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[I]
[f.1] Segundo anunciam ideólogos alemães, a Alemanha passou nos últimos anos por
uma revolução sem paralelo. O processo de decomposição do sistema de Hegel,
iniciado com Strauss[N3], transformou-se numa fermentação universal para a qual são
arrastados todos os "poderes do passado". No caos geral, poderosos impérios se
formaram para logo de novo ruírem, emergiram momentaneamente heróis para serem
de novo remetidos para a obscuridade por rivais ousados e mais poderosos. Foi uma
revolução ao pé da qual a Revolução Francesa[N4] é uma brincadeira de crianças; uma
luta universal face à qual as lutas dos Diádocos[N5] aparecem mesquinhas. Os princípios
expulsaram-se uns aos outros, os heróis do pensamento derrubaram-se uns aos outros
com uma pressa inaudita, e nos três anos entre 1842 e 1845 varreu-se mais do passado
na Alemanha do que anteriormente em três séculos.
Para apreciar correctamente esta charlatanice filosófica, que até no peito do cidadão
alemão honesto desperta um grato sentimento nacional, para dar bem a ideia da
mesquinhez, da tacanhez provinciana de todo este movimento jovem-hegeliano,
nomeadamente do contraste tragicómico entre os verdadeiros feitos destes heróis e as
ilusões sobre esses feitos, é necessário observar todo o espectáculo de um ponto de vista
exterior à Alemanha (2).
[f.2] A crítica alemã não abandonou, até aos seus esforços mais recentes, o terreno da
filosofia. Longe de examinar as suas premissas filosóficas gerais, as suas questões
saíram todas do terreno de um sistema filosófico determinado, o de Hegel. Não apenas
nas suas respostas, mas já nas próprias questões estava uma mistificação. Esta
dependência de Hegel é a razão pela qual nenhum destes críticos mais recentes tentou
sequer uma crítica ampla do sistema de Hegel, por mais que cada um deles afirme estar
para além de Hegel. A sua polémica contra Hegel, e entre si, reduz-se ao facto de cada
um deles ter chamado a si uma faceta do sistema de Hegel e tê-la virado tanto contra
todo o sistema como contra as facetas reclamadas pelos outros. A princípio chamavam a
si categorias puras de Hegel, não falsificadas, como substância e consciência de si (3),
mas posteriormente profanaram estas categorias com nomes mais mundanos, como
espécie, o Único, o Homem (4), etc.
[p. 3] As premissas com que começamos não são arbitrárias, não são dogmas, são
premissas reais, e delas só na imaginação se pode abstrair. São os indivíduos reais, a sua
acção e as suas condições materiais de vida, tanto as que encontraram como as que
produziram pela sua própria acção. Estas premissas são [p. 4], portanto, constatáveis de
um modo puramente empírico.
Podemos distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião — por tudo o
que se quiser. Mas eles começam a distinguir-se dos animais assim que começam a
produzir os seus meios de vida, passo este que é condicionado pela sua organização
física. Ao produzirem os seus meios de vida, os homens produzem indirectamente a sua
própria vida material.
O modo como os homens produzem os seus meios de vida depende, em primeiro lugar,
da natureza dos próprios meios de vida encontrados e a reproduzir.
[p. 5] Este modo da produção não deve ser considerado no seu mero aspecto de
reprodução da existência física dos indivíduos. Trata-se já, isso sim, de uma forma
determinada da actividade destes indivíduos, de uma forma determinada de exprimirem
a sua vida, de um determinado modo de vida dos mesmos. Como exprimem a sua vida,
assim os indivíduos são. Aquilo que eles são coincide, portanto, com a sua produção,
com o que produzem e também com o como produzem. Aquilo que os indivíduos são
depende, portanto, das condições materiais da sua produção.
Esta produção só surge com o aumento da população. Ela própria pressupõe, por seu
turno, um intercâmbio [Verkehr] dos indivíduos entre si(N7) A forma deste intercâmbio é,
por sua vez, condicionada pela produção(13).
[f. 3] As relações de diferentes nações entre si dependem do grau em que cada uma
delas desenvolveu as suas forças produtivas, a divisão do trabalho e o intercâmbio
interno. Esta proposição é geralmente aceite. Mas não só a relação de uma nação com
outras, também a própria estrutura interna dessa nação depende da fase de
desenvolvimento da sua produção e do seu intercâmbio interno e externo. Até onde
chega o desenvolvimento das forças de produção [Produktionskräfte] de uma nação é
indicado, com a maior clareza, pelo grau atingido pelo desenvolvimento da divisão do
trabalho. Cada nova força produtiva, na medida em que não é uma simples extensão
quantitativa das forças produtivas até aí já conhecidas (p. ex., o arroteamento de
terrenos), tem como consequência uma nova constituição da divisão do trabalho.
A reunião de territórios maiores em reinos feudais era uma necessidade para a nobreza
latifundiária como para as cidades. A organização da classe dominante, a nobreza, tinha
por isso, em toda a parte, um monarca à cabeça (15).
Em completa oposição à filosofia alemã, a qual desce do céu à terra, aqui sobe-se da
terra ao céu. Isto é, não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou se
representam, e também não dos homens narrados, pensados, imaginados, representados,
para daí se chegar aos homens em carne e osso; parte-se dos homens realmente activos,
e com base no seu processo real de vida apresenta-se também o desenvolvimento dos
reflexos [Reflexe] e ecos ideológicos deste processo de vida. Também as fantasmagorias
no cérebro dos homens são sublimados necessários do seu processo de vida material
empiricamente constatável e ligado a premissas materiais. A moral, a religião, a
metafísica, e a restante ideologia, e as formas da consciência que lhes correspondem,
não conservam assim por mais tempo a aparência de antinomia. Não têm história, não
têm desenvolvimento, são os homens que desenvolvem a sua produção material e o seu
intercâmbio material que, ao mudarem esta sua realidade, mudam também o seu
pensamento e os produtos do seu pensamento. Não é a consciência que determina a
vida, é a vida que determina a consciência. No primeiro modo de consideração, parte-se
da consciência como indivíduo vivo; no segundo, que corresponde à vida real, parte-se
dos próprios indivíduos vivos reais e considera-se a consciência apenas como a sua
consciência.
Este modo de consideração não é destituído de premissas. Parte das premissas reais e
nem por um momento as abandona. As suas premissas são os homens, não num
qualquer isolamento e fixidez fantásticos, mas no seu processo de desenvolvimento real,
perceptível empiricamente, em determinadas condições. Assim que este processo de
vida activo é apresentado, a história deixa de ser uma colecção de factos mortos —
como é para os empiristas, eles próprios ainda abstractos -, ou uma acção imaginada de
sujeitos imaginados, como para os idealistas.
Lá onde a especulação cessa, na vida real, começa, portanto, a ciência real, positiva, a
representação da actividade prática, do processo de desenvolvimento prático dos
homens. Cessam as frases sobre a consciência, o saber real tem de as substituir. Com a
representação da realidade, a filosofia autónoma perde o seu meio de existência. Em seu
lugar pode, quando muito, surgir uma súmula dos resultados mais gerais que é possível
abstrair da consideração do desenvolvimento histórico. Estas abstracções não têm,
separadas da história real, o menor valor. Só podem servir para facilitar a ordenação do
material histórico, para indicar a sequência de cada um dos seus estratos. Mas não dão,
de modo nenhum, como a filosofia, uma receita ou um esquema segundo o qual as
épocas históricas possam ser ajeitadas ou ajustadas. A dificuldade começa pelo
contrário, precisamente quando nos damos à consideração e ordenação do material, seja
de uma época passada seja do presente, à representação real. A eliminação destas
dificuldades está condicionada por premissas que de modo nenhum podem ser aqui
dadas, e que só resultarão claras do estudo do processo real da vida e da acção dos
indivíduos de cada época. Vamos escolher aqui algumas destas abstracções, que
utilizamos em contraposição à ideologia, e vamos explicá-las com exemplos
históricos(19).
[II]
[1] Não nos vamos, naturalmente, dar ao trabalho(20) de esclarecer os nossos sábios
filósofos sobre o facto de que a "libertação" do "Homem" não avançou um único passo
por terem resolvido a filosofia, a teologia, a substância e todo o lixo na "Consciência de
Si", por terem libertado o "Homem" do domínio destas frases sob as quais ele nunca foi
escravo; de que não é possível conseguir uma libertação real a não ser no mundo real e
com meios reais(21), de que não se pode abolir [aufheben] a escravatura sem a máquina a
vapor e a mule-jenny, nem a servidão sem uma agricultura aperfeiçoada, de que de
modo nenhum se pode libertar os homens enquanto estes não estiverem em condições
de adquirir comida e bebida, habitação e vestuário na qualidade e na quantidade
perfeitas. A "libertação" é um acto histórico, não um acto de pensamento, e é efectuada
por relações históricas, pelo [nív]el da indústria, do com[ércio], da [agri]cultura, do
inter[câmbio]... [2] então, ulteriormente, consoante as suas diferentes etapas de
desenvolvimento, o absurdo da substância, do sujeito, da consciência de si e da critica
pura, tal como o absurdo religioso e teológico, e depois eliminam-no de novo quando
estão suficientemente desenvolvidas (22). Como é natural, num país como a Alemanha,
onde se processa apenas um desenvolvimento histórico miserável, estes
desenvolvimentos do pensamento, estas trivialidades transfiguradas e ineficazes,
encobrem a falta do desenvolvimento histórico, fixam-se e têm de ser combatidas (23).
Mas esta é uma luta de importância local (24).
De resto, nesta concepção das coisas tal como elas realmente são e aconteceram, todos
os problemas filosóficos profundos se resolvem, como mais adiante se revelará ainda
com maior nitidez, muito simplesmente num facto empírico. Por exemplo, a questão
importante da relação do homem com a natureza (ou, como Bruno diz (p. 110)[N10], as
“antíteses na natureza e na história", como se estas fossem duas “coisas" separadas uma
da outra, como se o homem não tivesse sempre diante de si uma natureza histórica e
uma história natural), da qual saíram todas as “obras imperscrutavelmente elevadas" (28)
sobre “substância" e “consciência de si", desfaz-se por si própria com a compreensão de
que a celebrada “unidade do homem com a natureza" desde sempre existiu na indústria
e existiu em todas as épocas de formas diferentes, segundo o menor ou maior
desenvolvimento da indústria, tal como a “luta" do homem com a natureza, até ao
desenvolvimento das suas forças produtivas numa base correspondente. A indústria e o
comércio, a produção e a troca das necessidades da vida por um lado condicionam — e
por outro lado são condicionados, no modo como se processam, por — a distribuição, a
articulação das diferentes classes sociais; e assim acontece que Feuerbach, em
Manchester, por exemplo, só vê fábricas e máquinas onde há um século se viam apenas
rodas de fiar e teares, ou na Campagna di Roma só descobre pastagens e pântanos onde
no tempo de Augusto nada teria encontrado a não ser vinhedos e vilas de capitalistas
romanos. Feuerbach fala nomeadamente da observação da ciência da natureza,
menciona segredos que apenas se revelam aos olhos do físico e do químico; mas, sem a
indústria e o comércio, onde estaria a ciência da natureza? Mesmo esta ciência “pura"
da natureza só alcança o seu objectivo, bem como o seu material, por meio do comércio
e da indústria, por meio da actividade sensível dos homens. E de tal modo esta
actividade, este trabalho e esta criação sensíveis contínuos e esta produção são a base de
todo o mundo sensível como ele agora existe, que, se fossem interrompidos ao menos
um ano, Feuerbach não só encontraria uma enorme mudança no mundo natural como
muito em breve daria pela falta de todo o mundo dos homens e da sua própria faculdade
de observação — mais, da sua própria existência. É certo que, no meio de tudo isto, se
mantém a prioridade da natureza exterior, e é certo que tudo isto não tem qualquer
aplicação aos homens originais produzidos por generatio aequivoca(29); mas esta
diferenciação só tem sentido na medida em que se considera o homem como sendo
diferente da natureza. De resto, esta natureza que precedeu a história humana não é, de
modo nenhum, a natureza em que Feuerbach vive, é a natureza que hoje em dia, à
excepção talvez de uma ou outra ilha de coral australiana de origem recente, já em parte
nenhuma existe, e que portanto também não existe para Feuerbach.
[11](31) Com os alemães, que não dispõem de quaisquer premissas, temos de começar
por constatar a primeira premissa de toda a existência humana, e portanto, também, de
toda a história, ou seja, a premissa de que os homens têm de estar em condições de viver
para poderem “fazer história"(32). Mas da vida fazem parte sobretudo comer e beber,
habitação, vestuário e ainda algumas outras coisas(33). O primeiro acto histórico é,
portanto, a produção dos meios para a satisfação destas necessidades, a produção da
própria vida material, e a verdade é que este é um acto histórico, uma condição
fundamental de toda a história, que ainda hoje, tal como há milhares de anos, tem de ser
realizado dia a dia, hora a hora, para ao menos manter os homens vivos. Mesmo quando
o mundo sensível é reduzido ao mínimo, a um bastão, como com o sagrado Bruno[N12],
pressupõe a actividade da produção deste bastão. Assim, a primeira coisa a fazer em
qualquer concepção da história é observar este facto fundamental em todo o seu
significado e em toda a sua dimensão, e atribuir-lhe a importância que lhe é devida.
Como é sabido, os alemães nunca o fizeram, e por isso nunca tiveram uma base [Basis]
terrena para a história nem, consequentemente, um historiador. Os franceses e os
ingleses, embora tenham concebido a conexão deste facto com a chamada história
apenas de um modo extremamente unilateral, nomeadamente enquanto enredados na
ideologia política, fizeram não obstante as primeiras tentativas para dar à historiografia
uma base materialista, tendo sido os primeiros a escrever histórias da sociedade civil, do
comércio e da indústria.
A terceira relação, que logo desde o início entra no desenvolvimento histórico, é esta: os
homens que, dia a dia, renovam a sua própria vida começam a fazer outros homens, a
reproduzir-se — a relação entre homem e mulher, pais e filhos, a família.
Esta família, que a princípio é a única relação social, torna-se mais tarde, quando o
aumento das necessidades cria novas relações sociais e o aumento do número dos
homens cria novas necessidades, uma relação subordinada (excepto na Alemanha), e
tem então de ser tratada e desenredada segundo os dados empíricos existentes, e não
segundo o “conceito da família", como se costuma fazer na Alemanha. De resto, estas
três facetas da actividade social não devem ser entendidas como três fases diferentes,
mas apenas como três facetas ou, para escrever claro para os alemães, três “momentos"
que, desde o começo da história e desde os primeiros homens, existiram
simultaneamente, e que ainda hoje se afirmam na história.
Só agora, depois de já termos considerado quatro momentos, quatro facetas das relações
históricas primordiais, verificamos que o homem também tem “consciência" (34). Mas
também que não de antemão, como consciência “pura". O “espírito" tem consigo de
antemão [14] a maldição de estar “preso" à matéria, a qual nos surge aqui na forma de
camadas de ar em movimento, de sons, numa palavra, da linguagem. A linguagem é tão
velha como a consciência — a linguagem é a consciência real prática que existe também
para outros homens e que, portanto, só assim existe também para mim, e a linguagem só
nasce, como a consciência, da necessidade, da carência física do intercâmbio com
outros homens (35). Onde existe uma relação, ela existe para mim, o animal com nada se
“relaciona", nem sequer se “relaciona". Para o animal, a sua relação com outros não
existe como relação. A consciência é, pois, logo desde o começo, um produto social, e
continuará a sê-lo enquanto existirem homens. A consciência, naturalmente, começa por
ser apenas consciência acerca do ambiente sensível imediato e consciência da conexão
limitada com outras pessoas e coisas fora do indivíduo que se vai tornando consciente
de si; é, ao mesmo tempo, consciência da natureza, a qual a princípio se opõe aos
homens como um poder completamente estranho, todo-poderoso e inatacável, com o
qual os homens se relacionam de um modo puramente animal e pelo qual se deixam
amedrontar como os animais; é, portanto, uma consciência puramente animal da
natureza (religião natural).
Por aqui se vê imediatamente: esta religião natural ou esta determinada relação com a
natureza é condicionada pela forma de sociedade e vice-versa. Aqui, como em toda a
parte, também se manifesta tanto a identidade de natureza e homem que a relação
limitada dos homens com a natureza condiciona a sua relação limitada uns com os
outros, e a sua relação limitada uns com os outros condiciona a sua relação limitada
com a natureza, precisamente porque a natureza mal está ainda historicamente
modificada; e, por outro lado, a consciência da necessidade [Notwendigkeit] de entrar
em ligação com os indivíduos à sua volta é o começo da consciência do homem de que
vive de facto numa sociedade. Este começo é tão animal como a própria vida social
desta fase, é mera consciência de horda, e o homem distingue-se aqui do carneiro
apenas pelo facto de a sua consciência lhe fazer as vezes do instinto, ou do seu instinto
ser consciente. Esta consciência de carneiro, ou tribal, recebe o seu desenvolvimento e
formação posterior do aumento da produtividade, da multiplicação das necessidades e
do aumento da população [15] que está na base desta e daquele. Deste modo se
desenvolve a divisão do trabalho, que originalmente nada era senão a divisão do
trabalho no acto sexual, e depois a divisão espontânea ou "natural" do trabalho em
virtude da disposição natural (p. ex., a força física), de necessidades, acasos, etc., etc. A
divisão do trabalho só se torna realmente divisão a partir do momento em que surge
uma divisão do trabalho material e espiritual(36). A partir deste momento, a consciência
pode realmente dar-se à fantasia de ser algo diferente da consciência da práxis existente,
de representar realmente alguma coisa sem representar nada de real — a partir deste
momento, a consciência é capaz de se emancipar do mundo e de passar à formação da
teoria "“pura", da teologia, da filosofia, da moral, etc., “puras". E mesmo quando esta
teoria, teologia, filosofia, moral, etc., entram em contradição com as relações vigentes,
isso só pode acontecer pelo facto de as relações sociais vigentes terem entrado em
contradição com a força de produção existente — o que, de resto, também pode
acontecer num determinado círculo nacional de relações pelo facto de a contradição se
fazer sentir, não neste âmbito nacional, mas entre esta consciência nacional e a práxis
das outras nações(37), ou seja, entre a consciência nacional e a consciência geral de uma
nação (como agora na Alemanha); mas como esta contradição parece existir apenas
como contradição dentro da consciência nacional, parece então a esta nação que
também a luta se confina a esta porcaria nacional, precisamente porque esta nação é a
porcaria em si e para si.
[16] De resto, é completamente indiferente o que quer que seja que a consciência
comece a fazer sozinha; de toda esta porcaria extraímos apenas um resultado — o de
que estes três momentos, a força de produção, o estado da sociedade e a consciência,
podem e têm de cair em contradição entre si, porque com a divisão do trabalho está
dada a possibilidade, mais, a realidade de a actividade espiritual e a actividade
material(38), o prazer e o trabalho, a produção e o consumo caberem a indivíduos
diferentes; e a possibilidade de não caírem em contradição reside apenas na superação
da divisão do trabalho. É de resto evidente que os “espectros", os “vínculos", o “ser
superior", o “conceito", a “escrupulosidade" são meramente a expressão religiosa
idealista, a representação, aparentemente, do indivíduo isolado, a representação de
grilhões e limites muito empíricos dentro dos quais o modo de produção da vida e a
forma de intercâmbio àquele ligada se movem.
Com a divisão do trabalho, na qual estão dadas todas estas contradições, e a qual por
sua vez assenta na divisão natural do trabalho na família e na separação da sociedade
em famílias individuais e opostas umas às outras, está ao mesmo tempo dada também a
repartição, e precisamente a repartição desigual, tanto quantitativa como qualitativa, do
trabalho e dos seus produtos, e portanto a propriedade, [17] a qual já tem o seu embrião,
a sua primeira forma, na família, onde a mulher e os filhos são os escravos do homem.
A escravatura latente na família, se bem que ainda muito rudimentar, é a primeira
propriedade, que de resto já aqui corresponde perfeitamente à definição dos modernos
economistas, segundo a qual ela é o dispor de força de trabalho [Arbeitskraft] alheia. De
resto, divisão do trabalho e propriedade privada são expressões idênticas — numa
enuncia-se em relação à actividade o mesmo que na outra se enuncia relativamente ao
produto da actividade.
Além disso, com a divisão do trabalho está dada, ao mesmo tempo, a contradição entre
o interesse de cada um dos indivíduos ou de cada uma das famílias e o interesse
comunitário de todos os indivíduos que mantêm intercâmbio uns com os outros; e a
verdade é que este interesse comunitário de modo nenhum existe meramente na
representação, como "universal", mas antes de mais na realidade, como dependência
recíproca dos indivíduos entre os quais o trabalho está dividido.
E é precisamente por esta contradição do interesse particular e do interesse comunitário
que o interesse comunitário assume uma forma autónoma como Estado, separado dos
interesses reais dos indivíduos e do todo, e ao mesmo tempo como comunidade ilusória,
mas sempre sobre a base real [realen Basis] dos laços existentes em todos os
conglomerados de famílias e tribais — como de carne e sangue, de língua, de divisão do
trabalho numa escala maior, e demais interesses -, e especialmente, como mais tarde
desenvolveremos, das classes desde logo condicionadas pela divisão do trabalho e que
se diferenciam em todas essas massas de homens, e das quais uma domina todas as
outras. Daqui resulta que todas as lutas no seio do Estado, a luta entre a democracia, a
aristocracia e a monarquia, a luta pelo direito de voto, etc., etc., não são mais do que as
formas ilusórias em que são travadas as lutas reais das diferentes classes entre si (disto
os teóricos alemães não percebem uma sílaba, apesar de se lhes ter dado para isso
indicações suficientes nos Deutsch-Französische Jahrbücher [N13] e em A Sagrada
Família); e também que todas as classes que aspiram ao domínio, mesmo quando o seu
domínio, como é o caso com o proletariado, condiciona a superação de toda a forma
velha da sociedade e da dominação em geral, têm primeiro de conquistar o poder
político, para por sua vez representarem o seu interesse como o interesse geral, coisa
que no primeiro momento são obrigadas a fazer.
[18] Esta fixação da actividade social, esta consolidação do nosso próprio produto como
força objectiva acima de nós que escapa ao nosso controlo, contraria as nossas
expectativas e aniquila os nossos cálculos, é um dos factores principais no
desenvolvimento histórico até aos nossos dias. O poder social, isto é, a força de
produção multiplicada que surge pela cooperação dos diferentes indivíduos
condicionada na divisão do trabalho, aparece a estes indivíduos — porque a própria
cooperação não é voluntária, mas natural — não como o seu próprio poder unido, mas
como uma força alheia que existe fora deles, da qual não sabem donde vem e a que se
destina, que eles, portanto, já não podem dominar e que, pelo contrário, percorre uma
série peculiar de fases e etapas de desenvolvimento independente da vontade e do
esforço dos homens, e que em primeiro lugar dirige essa vontade e esse esforço(41). De
outro modo, como poderia, por exemplo, a propriedade ter uma história, assumir várias
formas, e, por exemplo, a propriedade fundiária, conforme as diferentes condições
existentes, passar em França do parcelamento para a centralização em poucas mãos, e
em Inglaterra da centralização em poucas mãos para o parcelamento, como é hoje
realmente o caso? Ou como explicar que o comércio, que não é de facto mais do que a
troca de produtos de diferentes indivíduos e países, domine o mundo inteiro pela relação
de procura e fornecimento [Nachfrage und Zufuhr] — uma relação que, como diz um
economista inglês, paira sobre a Terra semelhante ao Destino antigo e com mão
invisível distribui a felicidade e a infelicidade aos homens, funda impérios e destrói
impérios, faz nascer [19] e desaparecer(42) povos -, ao passo que com a supressão da
base, da propriedade privada, com a regulação comunista da produção e o
aniquilamento a ela inerente do alheamento [Fremdheit] com que os homens se
relacionam com o seu próprio produto, o poder da relação de procura e fornecimento se
dissolve em nada e os homens voltam a ter sob o seu domínio a troca, a produção, o
modo da sua mútua relação?
[18] O comunismo não é para nós um estado de coisas que deva ser estabelecido, um
ideal pelo qual a realidade [terá] de se regular. Chamamos comunismo ao movimento
real que supera o actual estado de coisas. As condições deste movimento resultam da
premissa actualmente existente (46).
***
Até aqui considerámos principalmente apenas uma das facetas da actividade humana, o
trabalho da natureza pelos homens. A outra faceta, o trabalho dos homens pelos
homens...(47)
[20] A história não é senão a sucessão das diversas gerações, cada uma das quais
explora os materiais, capitais, forças de produção que lhe são legados por todas as que a
precederam, e que por isso continua, portanto, por um lado, em circunstâncias
completamente mudadas, a actividade transmitida, e por outro lado modifica as velhas
circunstâncias com uma actividade completamente mudada, o que permite a distorção
especulativa de fazer da história posterior o objectivo da anterior, por exemplo, colocar
como subjacente ao descobrimento da América o objectivo de proporcionar a eclosão da
Revolução Francesa; deste modo, a história recebe então os seus objectivos à parte, e
torna-se uma "pessoa a par de outras pessoas" (como sejam: "Consciência de Si, Crítica,
Único", etc.), enquanto aquilo que se designa com as palavras "Determinação",
"Finalidade", "Germe", "Ideia" da história anterior mais não é do que uma abstracção
formada a partir da história posterior, uma abstracção a partir da influência activa que a
história anterior exerce sobre a posterior.
Na história até aos nossos dias é, sem dúvida, igualmente um facto empírico que cada
um dos indivíduos, à medida que a actividade se alarga à escala histórico-mundial, fica
cada vez mais escravizado sob um poder que lhe é estranho (cuja pressão eles
imaginaram como chicana do chamado Espírito do mundo, etc.), um poder que se
tornou cada vez mais desmedido e que em última instância se legitima como o mercado
mundial. Mas, do mesmo modo, está empiricamente provado que pelo derrubamento do
estado de coisas vigente na sociedade por meio da revolução comunista (da qual mais
adiante falaremos) e da abolição da propriedade privada que àquela é idêntica, este
poder tão misterioso para os teóricos alemães será dissolvido, e então será realizada a
libertação de cada um dos indivíduos na medida em que a história se transforma
completamente em história mundial(49). Depois do que atrás ficou dito, torna-se claro
que a verdadeira riqueza espiritual do indivíduo depende completamente da riqueza das
suas relações reais. Só deste modo os diferentes indivíduos são libertados das várias
barreiras nacionais e locais, colocados em relação prática com a produção (também com
a espiritual) de todo o mundo e colocados em condições de adquirir a capacidade de
fruição para toda esta variada produção da Terra inteira (as criações dos homens). A
dependência integral, esta forma natural da cooperação histórico-mundial dos
indivíduos, é transformada [22] por esta revolução comunista no controlo e domínio
consciente destes poderes que, gerados da acção dos homens uns sobre os outros, até
aqui se lhes têm imposto e os têm dominado como poderes completamente estranhos.
Ora, esta visão pode, de novo, ser concebida de modo idealista-especulativo, ou seja, de
modo fantástico como "autogeração da espécie" (a "sociedade como sujeito"), e deste
modo a série consecutiva de indivíduos em conexão entre si pode ser imaginada como
um único indivíduo que realiza o mistério de se gerar a si próprio. Torna-se aqui
evidente que os indivíduos se fazem de facto uns aos outros, física e espiritualmente,
mas não se fazem a si próprios, nem no sentido absurdo do sagrado Bruno, nem no
sentido do "Único", do homem "feito".
Esta soma de forças de produção, capitais e formas de intercâmbio social, que todos os
indivíduos e todas as gerações vêm encontrar como algo de dado, é o fundamento real
daquilo que os filósofos se têm representado como "substância" e "essência do
Homem", daquilo que têm apoteotizado e combatido — um fundamento real que de
modo nenhum é afectado nos seus efeitos e influências sobre o desenvolvimento dos
homens pelo facto de estes filósofos se rebelarem contra ele como "Consciência de Si" e
o "Único". Estas condições de vida que as diferentes gerações já encontram vigentes é
que decidem, também, se o abalo revolucionário periodicamente recorrente na história
será suficientemente forte ou não para deitar a baixo a base de todo o existente, e
quando estes elementos materiais de um revolucionamento total — ou seja, por um
lado, as forças produtivas existentes, por outro, a formação de uma massa
revolucionária que faz a revolução não apenas contra estas ou aquelas condições da
sociedade anterior, mas contra a própria "produção da vida" vigente até agora, contra a
"actividade total" em que se baseava — não estão presentes, então é completamente
indiferente para o desenvolvimento prático que a ideia desta transformação profunda já
tenha sido expressa centenas de vezes — como o prova a história do comunismo.
Toda a concepção da história até hoje ou deixou, pura e simplesmente, por considerar
esta base real da história, ou viu nela apenas algo de secundário e sem qualquer conexão
com o curso histórico. A história tem, por isso, de ser sempre escrita segundo um
critério que lhe é extrínseco; a produção real da vida aparece como historicamente
primitiva, enquanto o que é histórico aparece como existindo separado da vida em
comum, como extra-supraterreno. A relação dos homens com a natureza fica, deste
modo, excluída da história, pelo que é gerado o antagonismo de natureza e história. Daí
que tal concepção só tenha podido ver na história acções políticas de chefes e de
Estados e lutas religiosas e teóricas em geral, e tenha tido, em especial, em cada época
histórica, de partilhar da ilusão dessa época. Por exemplo, se uma época imagina ser
determinada por motivos puramente "políticos" ou "religiosos", embora a "religião" e a
"política" sejam apenas formas dos seus motivos reais, o seu historiógrafo aceita esta
opinião. A "ilusão", a "representação" destes homens determinados sobre a sua práxis
real é transformada no único poder determinante e activo que domina e determina a
práxis desses homens. Quando a forma rudimentar em que aparece a divisão do trabalho
dos Indianos e entre os Egípcios dá origem, nestes povos, ao sistema de castas no seu
Estado e na sua religião, o historiador acredita ser o sistema de castas [26] o poder que
gerou esta forma social rudimentar.
Enquanto os Franceses e os Ingleses se agarram pelo menos à ilusão política, que está
mais perto da realidade, os Alemães movem-se no reino do "espírito puro" e fazem da
ilusão religiosa a força motora da história. A filosofia da história de Hegel é a última
consequência, levada à sua "expressão mais pura", de toda esta Historiografia Alemã, na
qual a questão não é a dos interesses reais, nem sequer dos interesses políticos, mas dos
pensamentos puros, e que depois tem de aparecer ao sagrado Bruno como uma série de
"pensamentos" que se devoram uns aos outros e que por fim se afundam na
"Consciência de Si" e, de um modo ainda mais consequente, ao sagrado Max Stirner, o
qual nada sabe de toda a história real, este curso histórico tem de aparecer como uma
mera história de "cavaleiros", salteadores e espectros, face às visões dos quais ele
naturalmente só sabe salvar-se pela "impiedade"(55). Esta concepção é realmente
religiosa, faz passar o homem religioso pelo homem original do qual parte toda a
história, e coloca, na sua imaginação, a produção de fantasias religiosas no lugar da
produção real dos meios de subsistência e da própria vida.
[III]
A divisão do trabalho, que já atrás (pp. [15-18])(58) encontrámos como uma das
principais forças da história até aos nossos dias, manifesta-se agora também na classe
dominante como divisão do trabalho espiritual e [31] material, pelo que no seio desta
classe uma parte surge como os pensadores desta classe (os ideólogos conceptivos
activos da mesma, os quais fazem da formação da ilusão desta classe sobre si própria a
sua principal fonte de sustento), ao passo que os outros têm uma atitude mais passiva e
receptiva em relação a estas ideias e ilusões, pois que na realidade são eles os membros
activos desta classe e têm menos tempo para criar ilusões e ideias sobre si próprios. No
seio desta classe pode esta cisão da mesma chegar a uma certa oposição e hostilidade
entre ambas as partes, mas que por si própria desaparece em todas as colisões práticas
em que a própria classe fica em perigo, desaparecendo então também a aparência de que
as ideias dominantes não seriam as ideias da classe dominante e teriam um poder
distinto do poder desta classe. A existência de ideias revolucionárias numa época
determinada pressupõe já a existência de uma classe revolucionária, e já atrás ficou dito
o que era necessário sobre estas premissas (pp. [18-19, 22-23]) (59).
Toda esta aparência de que o domínio de uma determinada classe seria apenas o
domínio de certas ideias cessa, naturalmente, por si mesma logo que o domínio de
classes em geral deixa de ser a forma da ordem social, logo que, portanto, deixa de ser
necessário apresentar um interesse particular como geral ou "o geral" como dominante.
Uma vez separadas as ideias dominantes dos indivíduos dominantes, e sobretudo das
relações decorrentes de uma dada fase do modo de produção, e atingido assim o
resultado de que na história dominam sempre as ideias, é muito fácil abstrair destas
várias ideias "a ideia", a Ideia, etc., como o que domina na história, e entender assim
todas as diferentes ideias e conceitos como "autodeterminações" do conceito que se
desenvolve na história. E, então, também é natural que todas as relações dos homens
possam ser derivadas do conceito de Homem, do Homem tal como representado, da
essência do Homem, do Homem. Foi o que fez a filosofia especulativa. O próprio Hegel
confessa, no fim da Filosofia da História, que "apenas considerou o curso do conceito"
e que na história apresentou a "verdadeira teodiceia" (p. 446). Podemos agora voltar aos
produtores do "conceito", aos teóricos, ideólogos e filósofos, e chegamos então a esta
conclusão: os filósofos, os pensadores como tais, desde sempre dominaram na história
— uma conclusão que, como vemos, já foi expressa por Hegel[N25]. Todo o truque de
demonstrar na história a soberania do espírito (a hierarquia, em Stirner) reduz-se,
portanto, aos seguintes três esforços.
[34] N.º 1. É preciso separar as ideias dos que dominam por razões empíricas, em
condições empíricas e como indivíduos materiais, destes mesmos que dominam, e por
esta via reconhecer o domínio das ideias ou ilusões na história.
N.º 2. É preciso pôr uma ordem neste domínio das ideias, demonstrar uma conexão
mística entre as ideias que sucessivamente dominam, o que se consegue pela via de
considerá-las "autodeterminações do conceito" (e isto é possível pelo facto de estas
ideias, graças à sua base empírica, estarem realmente em conexão entre si, e pelo facto
de elas, entendidas como meras ideias, se tornarem autodistinções, diferenças feitas
pelo pensamento).
Este método histórico que dominou na Alemanha, e especialmente a razão por que
dominou, têm de ser explicados a partir da conexão com a ilusão dos ideólogos em
geral, por exemplo, as ilusões dos juristas, políticos (entre os quais, também, os
estadistas práticos), a partir das divagações dogmáticas e distorções destes sujeitos,
ilusão aquela que muito simplesmente se explica pela sua posição prática na vida, pela
sua actividade e pela divisão do trabalho.
[35] Enquanto na vida comum cada shopkeeper(63) sabe muito bem distinguir entre
aquilo que alguém pretende ser e aquilo que é realmente, a verdade é que a nossa
historiografia ainda não atingiu este reconhecimento trivial. Ela acredita que todas as
épocas são, literalmente, aquilo que dizem e imaginam ser.
[IV]
[41] Até aqui temos tomado os instrumentos de produção como ponto de partida, e já
aqui se revelou a necessidade da propriedade privada para certas etapas industriais. Na
industrie extractive(65), a propriedade privada ainda coincide completamente com o
trabalho; na pequena indústria, e em toda a agricultura até aos nossos dias, a
propriedade é consequência necessária dos instrumentos de produção existentes; na
grande indústria, pela primeira vez, é produto desta a contradição entre o instrumento de
produção e a propriedade privada, e para produzir tal contradição tem de estar já muito
desenvolvida. Por isso, só com a grande indústria é também possível a abolição da
propriedade privada.
Nas cidades que, na Idade Média, não tinham sido recebidas já feitas da história anterior
e se formaram a partir dos servos da gleba que se tinham tornado livres, o trabalho
particular de cada um era a sua única propriedade, além do pequeno capital que trazia
consigo e que consistia quase só da mais necessária ferramenta do ofício. A
concorrência dos servos fugidos que acorriam à cidade, a guerra permanente do campo
contra as cidades e, com ela, a necessidade de um poder armado organizado das cidades,
o vínculo da propriedade comum de um determinado trabalho, a necessidade de
edifícios comuns para venda das suas mercadorias numa altura em que os artesãos eram,
ao mesmo tempo, commerçants(66), e a consequente exclusão destes edifícios dos que
nada tinham a ver com a profissão, oposição de interesses dos diferentes ofícios entre si,
a necessidade de protecção do trabalho penosamente aprendido e a organização feudal
de todo o país foram as causas da união dos operários de cada um dos ofícios em
corporações. Não temos aqui de entrar nas múltiplas modificações do sistema
corporativo surgidas ao longo de desenvolvimentos históricos posteriores. A fuga dos
servos para as cidades teve ininterruptamente lugar durante toda a Idade Média. Estes
servos, perseguidos no campo pelos seus senhores, vinham isolados para as cidades,
onde já encontravam uma comunidade organizada contra a qual nada podiam e na
qual(67) tinham de se submeter à posição que lhes apontavam a necessidade do seu
trabalho e o interesse dos seus concorrentes organizados da cidade. Estes operários, que
entravam um por um, nunca puderam constituir um poder, porque se o seu trabalho era
regulado pelas corporações e tinha de ser aprendido, os mestres das corporações
submetiam-nos a si e organizavam-nos segundo o seu interesse, ou, se o seu trabalho
não tinha de ser aprendido, e não era por isso regulado pelas corporações, mas trabalho
de jorna, nunca chegaram a uma organização, e permaneceram plebe desorganizada. A
necessidade do trabalho de jorna nas cidades criou a plebe.
O capital, nestas cidades, era um capital natural, que consistia da casa, das ferramentas
do ofício e dos compradores hereditários naturais, e que, devido ao intercâmbio não
desenvolvido e à escassa circulação, tinha de se transmitir de pais a filhos como
irrealizável. Não era este capital, ao contrário do moderno, um capital avaliável em
dinheiro e para o qual é indiferente estar investido nesta ou naquela coisa, mas um
capital directamente ligado ao trabalho particular do possuidor, absolutamente
inseparável deste, e nessa medida, um capital de estado [ou de ordem social ständisches
Kapital]. — A divisão do trabalho nas cidades entre [44] as diferentes corporações era
ainda [completamente natural](68) e nas próprias corporações não era realizada entre os
diferentes operários. Cada operário tinha de ser versado num ciclo inteiro de trabalhos,
tinha de saber fazer tudo o que se podia fazer com as suas ferramentas; o intercâmbio
reduzido e a escassa ligação das diferentes cidades entre si, a falta de população e a
limitação das necessidades não permitiram o aparecimento de uma maior divisão do
trabalho, e por isso todo aquele que queria ser mestre tinha de dominar completamente o
seu ofício. Por isso, nos artesãos medievais se encontra ainda um interesse no seu
trabalho especial e em ser destro nele que podia elevar-se a um certo sentido artístico
limitado. Mas também por isso cada artesão medieval se entregava completamente ao
seu trabalho, mantinha com ele uma grata relação de servo e estava muito mais
subordinado a ele do que o operário moderno, ao qual o seu trabalho é indiferente.
[46] Foi o trabalho que desde o inicio pressupôs uma máquina, ainda que na mais tosca
das formas, que a muito breve trecho se mostrou o mais capaz de desenvolvimento. A
tecelagem, anteriormente exercida no campo pelos camponeses, como actividade
secundária, para se proverem com o vestuário necessário, foi o primeiro trabalho a
receber um impulso e uma maior evolução com o alargamento do intercâmbio. A
tecelagem foi a primeira manufactura, e permaneceu a principal. A procura de tecidos
para o vestuário, que crescia à medida que aumentava a população, o começo da
acumulação e mobilização do capital natural devida à circulação acelerada, a
necessidade do luxo assim provocada e favorecida pelo gradual alargamento do
intercâmbio em geral, deram à tecelagem, quantitativa e qualitativamente, um impulso
que a arrancou da forma de produção precedente. A par dos camponeses que teciam
para uso próprio, os quais continuaram e ainda continuam a existir, surge nas cidades
uma nova classe de tecelões cujos tecidos se destinavam a todo o mercado interno e, as
mais das vezes, também a mercados estrangeiros.
A tecelagem, um trabalho que na maior parte dos casos pouca habilidade exigia e que
cedo se subdivide em inúmeros ramos, opunha-se, por toda a sua natureza, às peias da
guilda. A tecelagem foi também por isso exercida sem organização corporativa,
principalmente em aldeias e em vilas mercatórias que a pouco e pouco se tornaram
cidades e, a curto prazo, as cidades mais florescentes de cada país.
Com a manufactura, passa ao mesmo tempo a haver uma relação diferente do operário
com quem lhe dá trabalho. Nas corporações continuava a existir a relação patriarcal
entre os oficiais e o mestre; na manufactura, ocupa o lugar daquela a relação de dinheiro
entre operário e capitalista; uma relação que, no campo e em pequenas cidades,
conservou uma cor patriarcal, mas que nas cidades maiores, nas cidade realmente
manufactureiras, desde cedo perdeu quase toda a coloração patriarcal.
A relação das nações entre si no seu intercâmbio assumiu duas formas diferentes
durante a época de que temos estado a falar. A princípio, a pequena quantidade do ouro
e da prata em circulação condicionaram a proibição da exportação destes metais; e a
indústria, na sua maior parte importada do estrangeiro e tornada necessária pela
necessidade(73) de dar trabalho à população crescente das cidades, não podia dispensar os
privilégios que podiam ser concedidos, e naturalmente não apenas contra a concorrência
interna, mas principalmente contra a externa. O privilégio local das guildas foi alargado,
nestas proibições originais, a toda a nação. Os direitos alfandegários nasceram dos
tributos que os senhores feudais impunham aos comerciantes que atravessavam as suas
regiões para não os pilharem, tributos que mais tarde foram igualmente impostos pelas
cidades e constituíram, quando do aparecimento dos Estados modernos, o primeiro dos
meios de o fisco arranjar dinheiro.
O segundo período teve início por meados do século XVII, e durou quase até ao final do
século XVIII. O comércio e a navegação tinham-se expandido mais depressa do que a
manufactura, que desempenhava um papel secundário; as colónias começaram a tornar-
se consumidores importantes, as diferentes nações repartiram entre si, em longas lutas, o
mercado mundial que se abria. Este período começa com as leis da navegação e os
monopólios coloniais. A concorrência das nações entre si era, tanto quanto possível,
excluída por meio de tarifas, proibições e tratados; e, em última instância, a luta de
concorrência era conduzida e decidida por meio de guerras (especialmente guerras
marítimas). A nação mais poderosa no mar, os Ingleses, conservaram a sua
preponderância no comércio e na manufactura. Já aqui a concentração num país.
Este período é também caracterizado pelo fim das proibições de exportação de ouro e
prata, pelo aparecimento do comércio de dinheiro, dos bancos, das dívidas do Estado,
do papel-moeda, da especulação com acções e obrigações, da agiotagem em todos os
artigos e da formação da finança em geral. De novo o capital perdeu uma grande parte
do carácter natural que ainda trazia consigo.
A concorrência em breve obrigava todos os países que queriam conservar o seu papel
histórico a proteger as suas manufacturas com novas medidas alfandegárias (os velhos
direitos já não serviam contra a grande indústria), e logo a seguir a introduzir a grande
indústria sob direitos alfandegários protectivos. A despeito destes meios de protecção a
grande indústria universalizou a concorrência (ela é a liberdade prática de comércio, os
direitos protectivos são nela apenas um paliativo, uma defesa na liberdade de
comércio), estabeleceu os meios de comunicação e o mercado mundial moderno,
submeteu a si o comércio, transformou todo o capital em capital industrial e criou assim
a rápida circulação (o desenvolvimento da finança) e concentração dos capitais. Com a
concorrência universal obrigou todos os indivíduos à mais intensa aplicação da sua
energia. Aniquilou, tanto quanto lhe era possível, a ideologia, a religião, a moral, etc., e
onde não o conseguiu fez delas uma mentira palpável. Foi ela que, pela primeira vez,
criou a história universal, na medida em que tornou dependentes de todo o mundo todas
as nações civilizadas e todos os indivíduos nelas existentes para a satisfação das suas
necessidades, e aniquilou a exclusividade até aí natural de cada uma das nações.
Subordinou ao capital a ciência da natureza e retirou à divisão do trabalho a última
aparência de naturalidade. Dum modo geral, aniquilou a naturalidade, tanto quanto é
possível no seio do trabalho, e resolveu todas as relações naturais em relações de
dinheiro. No lugar das cidades surgidas naturalmente criou as grandes cidades
industriais modernas, nascidas de um dia para o outro. Onde penetrou, destruiu o
artesanato e, dum modo geral, todas as fases anteriores da indústria. Completou a vitória
[da] cidade comercial sobre o campo. [A sua primeira premissa] é o sistema automático.
[O seu desenvolvimento] criou uma massa de for[ças produ]tivas para as quais a
[propriedade](77) privada se tornou um grilhão, [52] do mesmo modo que a corporação
para a manufactura e a pequena oficina rural para o artesanato em desenvolvimento. Sob
a propriedade privada, estas forças produtivas recebem um desenvolvimento apenas
unilateral, tornam-se forças destrutivas para a maioria, e uma grande quantidade destas
forças não podem sequer ser aplicadas na propriedade privada. Criou, em geral, por toda
a parte, as mesmas relações entre as classes da sociedade, e aniquilou, por este meio, a
particularidade de cada uma das nacionalidades. E, finalmente, ao passo que a burguesia
de cada nação ainda conserva interesses nacionais particulares, a grande indústria criou
uma classe que, em todas as nações, tem o mesmo interesse, e na qual a nacionalidade
está já anulada, uma classe que realmente já está livre de todo o velho mundo e, ao
mesmo tempo, a ele se contrapõe. Torna insuportável para o operário não só a relação
com o capitalista mas o próprio trabalho.
***
Estas diferentes formas são outras tantas formas da organização do trabalho e, assim, da
propriedade. Em todos os períodos teve lugar uma unificação das forças produtivas
existentes, na medida em que as necessidades a tornavam necessária.
___
__
Todas as colisões da história têm, pois, segundo a nossa concepção, a sua origem na
contradição entre as forças produtivas e a forma de [53] intercâmbio. Não é, de resto,
necessário que esta contradição tenha sido levada ao extremo num pais para conduzir a
colisões nesse pais. A concorrência com países industrialmente mais desenvolvidos,
provocada por um intercâmbio internacional mais alargado, é suficiente para criar uma
contradição semelhante também em países com uma indústria menos desenvolvida (por
exemplo, o proletariado latente na Alemanha, feito surgir pela concorrência da indústria
inglesa).
__
A concorrência isola os indivíduos uns contra os outros, não apenas os burgueses mas
ainda mais os proletários, e isto a despeito de os aproximar. Daí que demore muito
tempo até que estes indivíduos se possam unir, para não referir o facto de que os meios
necessários para esta união a fim de não ser meramente local —, as grandes cidades
industriais e as comunicações baratas e rápidas, têm primeiro de ser estabelecidos pela
grande indústria, e por isso só ao cabo de longas lutas se consegue vencer todo o poder
organizado contraposto a estes indivíduos isolados que vivem no seio de relações que
diariamente reproduzem o isolamento. Reclamar o contrário seria o mesmo que
reclamar a não existência de concorrência nesta época histórica determinada, ou que os
indivíduos banissem da cabeça relações sobre as quais, enquanto isolados, não têm
nenhum controlo.
____
Construção de casas. Entre os selvagens, é a coisa mais natural que cada família tenha a
sua própria caverna ou cabana, como entre os nómadas a tenda separada de cada
família. Esta economia doméstica separada é tornada ainda mais necessária pelo
desenvolvimento posterior da propriedade privada. Entre os povos agrícolas, a
economia doméstica comum é tão impossível quanto a cultura comum do solo. Foi um
grande progresso a construção de cidades. Em todos os períodos até hoje, entretanto, a
abolição [Aufhebung] da economia separada, a qual não se pode separar da abolição da
propriedade privada, era simplesmente impossível, dado que não existiam ainda as
condições materiais para ela. A instituição de uma economia doméstica comum
pressupõe o desenvolvimento da maquinaria, da utilização das forças naturais e de
muitas outras forças produtivas — por exemplo, água canalizada. [54] iluminação a gás,
aquecimento a vapor, etc., abolição [da oposição] de cidade e campo. Sem estas
condições, a economia comum não seria ela própria, por seu turno, uma nova força de
produção, careceria de toda a base material, assentaria num fundamento meramente
teórico, isto é, seria uma simples mania e não passaria de economia monástica. O que
foi possível revela-se na aglomeração nas cidades e na construção de casas comuns com
vários objectivos determinados (prisões, casernas, etc.). Que a abolição da economia
separada não se pode separar da abolição da família por si mesmo se compreende.
_______
(A afirmação, tão frequente em São Max, de que cada um é tudo o que é por meio do
Estado, é no fundo o mesmo que dizer que o burguês é apenas um exemplar da espécie
burguesa; uma afirmação que pressupõe que a classe dos burgueses existisse já antes
dos indivíduos que a constituem(80).)
Os indivíduos isolados só formam uma classe na medida [55] em que têm de travar uma
luta comum contra uma outra classe; de resto, contrapõem-se de novo hostilmente uns
aos outros, em concorrência. Por outro lado, a classe autonomiza-se, por seu turno, face
aos indivíduos, pelo que estes encontram já predestinadas as suas condições de vida, é-
lhes indicada pela classe a sua posição na vida e, com esta, o seu desenvolvimento
pessoal —, estão subsumidos na classe. É este o mesmo fenómeno que a subordinação
[Subsumtion] de cada um dos indivíduos à divisão do trabalho, e só pode ser eliminado
por meio da abolição da propriedade privada e do próprio trabalho(83). Como esta
subordinação dos indivíduos à classe se desenvolve numa subordinação a toda a série de
representações. etc., já foi por nós referido variadas vezes. — Se se considera
filosoficamente este desenvolvimento dos indivíduos nas condições comuns de
existência das ordens e classes que se sucedem historicamente, e nas representações
gerais que assim lhes são impostas, é certamente fácil imaginar que nestes indivíduos se
desenvolveu a espécie, ou o Homem, ou que eles desenvolveram o Homem; um
imaginar com que se dá à história algumas sonoras bofetadas. Pode-se então tomar estes
diferentes estados [ou ordens sociais] e classes como especificações da expressão geral,
como subespécies da espécie, como fases de desenvolvimento do Homem.
Esta subordinação dos indivíduos a determinadas classes não pode ser abolida antes que
se tenha formado uma classe que, contra a classe dominante, já não tenha de afirmar
nenhum interesse particular de classe.
____
A transformação dos poderes (relações) das pessoas em das coisas [sachliche] por meio
da divisão do trabalho também não pode ser abolida pelo facto de se banir da cabeça a
sua representação geral, mas apenas pelo facto de os indivíduos submeterem de novo a
si estes poderes das coisas e abolirem a divisão do trabalho(84). Isto não é possível sem a
comunidade. Só na comunidade [com outros, é que cada] indivíduo tem [56] os meios
de desenvolver em todas as direcções as suas aptidões; só na comunidade, portanto, se
torna possível a liberdade pessoal. Nos substitutos precedentes da comunidade, no
Estado, etc., a liberdade pessoal existiu apenas para os indivíduos desenvolvidos nas
relações da classe dominante, e tão-só na medida em que eram indivíduos dessa classe.
A comunidade aparente em que se uniram, até aqui, os indivíduos autonomizou-se
sempre face a eles, e foi, ao mesmo tempo, por ser uma união de uma classe face a
outra, para a classe dominada não só uma comunidade completamente ilusória como
também um novo grilhão. Na comunidade real, os indivíduos conseguem, na e pela sua
associação, simultaneamente a sua liberdade.
No caso dos proletários, pelo contrário, a sua própria condição de vida, o trabalho, e
com ele todas as condições de existência da sociedade actual, tornou-se para eles algo
acidental sobre que cada um dos proletários não tem nenhum controlo, e sobre que
nenhuma organização social lhes pode dar um controlo, e a contradição entre a
personalidade do proletário individual e a condição de vida que lhe é imposta, o
trabalho, torna-se patente para ele mesmo, nomeadamente porque ele já desde a
juventude é sacrificado e porque lhe falta a oportunidade de alcançar, no seio da sua
classe, as condições que o coloquem na outra. —
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_____
[60] A diferença entre o indivíduo pessoal e o indivíduo acidental não é uma distinção
conceptual, mas um facto histórico. Esta distinção tem um sentido diferente em tempos
diferentes, por exemplo, o estado [ou ordem social] como algo acidental ao indivíduo no
século XVIII, e plus ou moins(87) também a família. Não é uma distinção que nós
tenhamos de fazer para cada época, mas sim uma distinção que cada época faz com os
diferentes elementos que encontra, e não segundo um conceito, mas forçada pelas
colisões materiais da vida. O que surge como acidental a um tempo posterior em
contraste com o anterior, e portanto também entre os elementos que recebeu do anterior,
é uma forma de intercâmbio que correspondia a determinado desenvolvimento das
forças produtivas. A relação das forças de produção com a forma de intercâmbio é a
relação da forma de intercâmbio com a actividade ou a ocupação [Betätigung] dos
indivíduos. (A forma fundamental desta ocupação é, naturalmente, a material, da qual
depende toda a outra: espiritual, política, religiosa, etc. A diferente forma dada à vida
material depende sempre, naturalmente, das necessidades já desenvolvidas, e tanto a
criação como a satisfação destas necessidades são, elas próprias, um processo histórico
que não se encontra nem no carneiro nem no cão (renitente argumento principal de
Stirner[N32] adversus hominem(88)), embora os carneiros e os cães sejam por certo, na sua
forma actual, mas malgré eux(89), produtos de um processo histórico). As condições em
que os indivíduos, enquanto [61] não surgiu ainda a contradição, mantêm intercâmbio
uns com os outros são condições que pertencem à sua individualidade, e não algo de
exterior para eles, condições em que só estes determinados indivíduos, existindo em
determinadas relações, podem produzir a sua vida material e o que com ela se relaciona,
são portanto as condições da sua auto-ocupação [Selbstbetätigung] e são produzidas por
esta auto-ocupação(90). Esta condição determinada em que produzem corresponde,
portanto, enquanto a contradição ainda não surgiu, ao seu condicionamento real, à sua
existência unilateral, cuja unilateralidade só se revela com o aparecimento da
contradição e, portanto, só existe para as gerações posteriores. Então esta condição
surge como um grilhão acidental, e então a consciência de que é um grilhão é também
imputada à época anterior.
O facto da conquista parece contradizer toda esta concepção da história. Até aqui fez-se
da violência, da guerra, da pilhagem, da rapinagem sangrenta, etc., a força que move a
história. Aqui só nos podemos limitar aos pontos principais, e pegamos por isso apenas
no exemplo mais marcante(92), a destruição de uma velha civilização por um povo
bárbaro e a formação que dela parte e de novo se inicia de uma nova estrutura da
sociedade. (Roma e os bárbaros, feudalidade e Gália, o império romano do Oriente e os
Turcos. [N34]
[63] Para o povo bárbaro conquistador, a própria guerra ainda é, como já atrás referido,
uma forma regular de intercâmbio, que é tanto mais ardentemente explorada quanto
mais o crescimento da população cria a necessidade de novos meios de produção no
modo de produção rudimentar tradicional que é, para essa população, o único possível.
Na Itália, pelo contrário, por meio da concentração da propriedade fundiária (causada,
além de pela compra e endividamento, também ainda por herança, na medida em que,
com a grande devassidão e os raros casamentos, as velhas gerações gradualmente se
extinguiram e a sua propriedade veio à posse de uns poucos) e da transformação desta
em pastagens (que foi causada, além das causas económicas habituais e ainda hoje
válidas, pela entrada de cereais roubados e pagos como tributo, e pela falta daqui
resultante de consumidores para o cereal italiano), a população livre quase desaparecera
e os próprios escravos morriam continuamente e tinham de ser sempre substituídos por
outros. A escravatura continuou a ser a base de toda a produção. Os plebeus, que se
encontravam entre os cidadãos livres e os escravos, nunca conseguiram ser mais do que
um lumpenproletariado. De um modo geral, Roma nunca foi além da cidade, e tinha
com as províncias uma conexão quase só política e que, por seu turno, como é natural,
também podia ser interrompida por acontecimentos políticos.
_____
Nada há de mais habitual do que a representação de que até aqui na história se teria
tratado apenas de tomar. Os bárbaros tomam o império romano, e com o facto desta
tomada se explica a passagem do mundo antigo para a feudalidade. Mas, na tomada
pelos bárbaros, trata-se é de saber se a nação que é ocupada desenvolveu forças
produtivas industriais, como é o caso com os povos modernos, ou se as suas forças
produtivas assentam principalmente na sua união e no sistema comunitário
[Gemeinwesen]. O tomar é ainda condicionado pelo objecto tomado. A fortuna em
papel de um banqueiro não pode de modo nenhum ser tomada sem que aquele que a
toma se submeta às condições de produção e de intercâmbio do pais tomado. Do mesmo
modo, todo o capital industrial de um país industrial moderno. E, por fim, o tomar acaba
muito depressa em toda a parte, e quando nada mais há para tomar tem de se começar a
produzir. Desta necessidade de produzir, que muito cedo surge, decorre [64] que a
forma do sistema comunitário adoptada pelos conquistadores que se fixam no território
tem de corresponder à etapa de desenvolvimento das forças produtivas que nele
encontram, ou, quando não é este o caso à partida, tem de mudar de acordo com as
forças produtivas. Deste modo se explica também o facto, que se pretende ter observado
por toda a parte no tempo que se seguiu à migração de povos, de que o servo era
realmente o senhor, e de que os conquistadores em breve adoptaram a língua, a cultura e
os costumes dos conquistados.
De modo nenhum a feudalidade foi trazida pronta da Alemanha teve, isso sim, a sua
origem, por parte dos conquistadores, na organização guerreira do exército durante a
própria conquista, e só depois desta aquela se desenvolveu, sob a influência das forças
produtivas encontradas nos países conquistados, até chegar à verdadeira feudalidade. O
quanto esta forma estava condicionada pelas forças produtivas demonstram as tentativas
fracassadas de impor outras formas oriundas de reminiscências da velha Roma (Carlos
Magno, etc.).
A continuar. —
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Aqui se revelam, portanto, dois factos(94). Primeiro, as forças produtivas aparecem como
completamente independentes e divorciadas dos indivíduos, como um mundo próprio a
par dos indivíduos, o que tem a sua razão no facto de os indivíduos, cujas forças elas
são, existirem divididos e em antagonismo uns contra os outros, ao passo que estas
forças, por outro lado, só são forças reais no intercâmbio e na conexão destes
indivíduos. De um lado, portanto, uma totalidade de forças produtivas que assumiram
uma forma como que concreta e que, para os próprios indivíduos, já não são as forças
dos indivíduos, mas da propriedade privada, e que por isso são dos indivíduos apenas na
medida em que estes são proprietários privados. Em nenhum período anterior as forças
produtivas tinham assumido esta forma indiferente para o intercâmbio dos indivíduos
como indivíduos, porque o seu próprio intercâmbio ainda era limitado. Do outro lado,
face a estas forças produtivas está a maioria dos indivíduos, aos quais tais forças foram
arrancadas, e que, por isso, roubados de todo o conteúdo real da vida se tornaram
indivíduos abstractos, mas que só deste modo são colocados em condições de entrarem
em ligação uns com os outros como indivíduos.
A única conexão em que ainda se encontram com as forças produtivas e com a sua
própria existência, o trabalho, perdeu no seu caso toda a aparência de auto-ocupação e
apenas mantém a sua [66] vida na medida em que a atrofia. Ao passo que, nos períodos
anteriores, a auto-ocupação e a produção da vida material estavam separadas pelo facto
de caberem a pessoas diferentes e de a produção da vida material, pela limitação dos
próprios indivíduos, valer ainda como um tipo subordinado de auto-ocupação, agora
elas divergem tanto uma da outra que, de facto, a vida material surge como fim, e a
produção desta vida material, o trabalho (o qual é agora a única forma possível mas,
como vemos, negativa — de auto-ocupação), como meio.
Além disso, a apropriação é condicionada pelo modo como tem de ser realizada. Só
pode ser realizada por meio de uma união, a qual, pelo carácter do próprio proletariado,
só pode ser, por seu turno, uma união universal, e por uma revolução em que, por um
lado, é derrubado o poder do modo de produção e de intercâmbio e da organização
social anteriores e, por outro lado, se desenvolvem o carácter universal do proletariado e
a sua energia necessária para levar a cabo a apropriação, e em que, além disso, o
proletariado deixa para trás tudo o que ainda lhe ficou da sua posição anterior na
sociedade.
Os filósofos têm-se representado como ideal, sob o nome de "o Homem", os indivíduos
que já não estão subordinados [68] à divisão do trabalho, e têm tomado todo o processo
por nós desenvolvido como o processo de desenvolvimento "do Homem", pelo que até
hoje, em todas as etapas históricas, "o Homem" foi substituído aos indivíduos e
apresentado como a força motora da história. Todo o processo foi assim tomado como
processo de auto-alienação "do Homem"(95), e isto essencialmente porque o indivíduo
médio da etapa posterior [foi] sempre substituído à anterior, e a consciência posterior
aos indivíduos anteriores. Por meio desta inversão, que desde o princípio abstrai das
condições reais, foi possível transformar toda a história num processo de
desenvolvimento da consciência.
***
Como o Estado é a forma em que os indivíduos de uma classe dominante fazem valer os
seus interesses comuns e se condensa toda a sociedade civil de uma época, segue-se que
todas as instituições comuns são mediadas pelo Estado, adquirem uma forma política.
Daí a ilusão de que a lei assentaria na vontade, e para mais na vontade dissociada da sua
base real, na vontade livre. Do mesmo modo o direito é, por seu turno, reduzido à lei.
[Na] lei os burgueses têm de se dar uma expressão geral, precisamente porque dominam
como classe.
Não há uma história da política, do direito, da ciência, etc., da arte, da religião, etc.(105)
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Ideia do direito. Ideia do Estado. Na consciência habitual a coisa está de cabeça para
baixo.
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[73](106) Os indivíduos partiram sempre de si, partem sempre de si. As suas relações são
relações do seu processo real de vida. A que se deve que as suas relações se
autonomizem contra eles? que os poderes da sua própria vida se tornem opressores
contra eles?
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Notas de rodapé:
(1) À letra: cabeça morta; termo usado na química para o resíduo que fica da destilação;
aqui: restos, resíduos. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(2) [No manuscrito foi riscado o passo seguinte:] [p. 2] Por isso fazemos preceder a
crítica específica de cada um dos representantes deste movimento de algumas
observações gerais. (Estas observações bastarão para indicar o ponto de vista da nossa
crítica tanto quanto é necessário para a compreensão e a fundamentação das críticas
individuais subsequentes. Contrapomos estas observações [p. 3] precisamente a
Feuerbach por ser ele o único que pelo menos fez algum progresso, e em cujas obras se
pode entrar de bonne foi (a) (b), as quais iluminarão mais de perto os pressupostos
ideológicos comuns a todos eles.
Conhecemos apenas uma única ciência, a ciência da história. A história pode ser
considerada de dois lados, dividida em história da natureza e história dos homens. No
entanto, estes dois aspectos não se podem separar; enquanto existirem homens, a
história da natureza e a história dos homens condicionam-se mutuamente. A história da
natureza, a chamada ciência da natureza, não é a que aqui nos interessa; na história dos
homens, porém, teremos de entrar, visto que quase toda a ideologia se reduz ou a uma
concepção deturpada desta história ou a uma completa abstracção dela. A ideologia é,
ela mesma, apenas um dos aspectos desta história.
(5) [No manuscrito encontra-se riscado o passo seguinte:] ...que surgiu reclamando para
si a qualidade de redentora absoluta do mundo de todo o mal. A religião foi
continuamente considerada e tratada como a causa última de todas as relações
repugnantes a estes filósofos, como o arqui-inimigo. (retornar ao texto)
(10) O texto desta secção é extraído da primeira versão da cópia passada a limpo.
(retornar ao texto)
(11) [No manuscrito encontra-se riscado o passo seguinte:] O primeiro acto histórico
destes indivíduos pelo qual se distinguem dos animais não é o de pensarem, mas o de
começarem a produzir os seus meios de vida. (retornar ao texto)
(12) [No manuscrito encontra-se riscado o passo seguinte:] Mas estas condições não
condicionam só a organização original, espontânea, dos homens, nomeadamente as
diferenças raciais, mas também todo o seu desenvolvimento ou não desenvolvimento
posteriores até aos nossos dias. (retornar ao texto)
(13) Termina aqui a primeira versão da cópia passada a limpo. A seguir este volume
reproduz o texto da versão principal dessa cópia. (retornar ao texto)
(17) [No manuscrito encontra-se riscado o passo seguinte:] As ideias que estes
indivíduos formam são representações ou da sua relação com a natureza ou da sua
relação uns com os outros, ou sobre a sua própria natureza. É evidente que em todos
estes casos estas representações são a expressão consciente — real ou ilusória — das
suas relações e, actividade reais, da sua produção, do seu intercâmbio, da sua
organização social e política. A suposição oposta só é possível quando se pressupõe,
além do espírito dos indivíduos reais e materialmente condicionados, ainda um espírito
à parte. Se a expressão consciente das relações reais destes indivíduos é ilusória, eles
nas suas representações colocam a realidade de cabeça para baixo, e isto por sua vez é
uma consequência do seu modo de trabalho material limitado e das relações sociais
limitadas que dele resultam. (retornar ao texto)
(18) [Versão original:] Os homens são os produtores das suas representações, ideias,
etc., e precisamente os homens condicionados pelo modo de produção da sua vida
material, pelo seu intercâmbio material e o seu desenvolvimento posterior na estrutura
social e política. (retornar ao texto)
Este volume vai continuar com três partes do manuscrito original. (retornar ao texto)
(23) [Nota marginal de Marx:] Importância das frases para a Alemanha. (retornar ao
texto)
(27) [Nota marginal de Engels:] NB. O erro não é que F[euerbach] subordine o
trivialmente óbvio, a aparência sensível, á realidade sensível constatada por meio de
uma análise mais rigorosa dos factos sensíveis, mas sim que, em última instância, não
seja capaz de lidar com o mundo sensível [Sinnlachkeit] sem o considerar com os
"olhos", isto é, através dos "óculos" do filósofo. (retornar ao texto)
(30) [No manuscrito encontra-se riscado o passo seguinte:] Se aqui, porém, entramos
mais na história, isso deve-se ao facto de os alemães estarem habituados a imaginar por
"história" e "histórico" tudo o que é possível, mas não o que é real, e disto nos dá um
exemplo brilhante nomeadamente o São Bruno com a sua "eloquência do púlpito".
(retornar ao texto)
No tomo 3 dos Marx/ Engels, Werke, Dietz Verlag, Berlim, 1969, p. 28, este parágrafo
vem precedido do subtítulo [1.] Geschichte (História), e segue-se imediatamente ao
parágrafo com que termina a versão principal (a segunda) da cópia passada a limpo.
(Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(32) Cf. cap. II, 8. (retornar ao texto)
(34) [Nota marginal de Marx:] Os homens têm história porque têm de produzir a sua
vida, e para mais de determinado modo: isto (a) é dado pela sua organização física, tal
como o é a sua consciência.
(a) Na MEGA: este ter de. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(36) [Nota marginal de Marx:] Primeira forma dos ideólogos, padres, coincide com
isto. (retornar ao texto)
(37) [Nota marginal de Marx:] Religião. Os alemães com a ideologia como tal.
(retornar ao texto)
(38) [Nota marginal de Marx que foi cortada:] actividade e pensamento, isto é,
actividade destituída de pensamento e pensamento inactivo. (retornar ao texto)
(40) Estes dois últimos parágrafos foram inseridos na margem pela mão de Engels.
(retornar ao texto)
(41) Sobre este passo escreveu Marx, à margem, o texto que é reproduzido neste
volume nos dois primeiros parágrafos da secção que se segue, a 5ª, imediatamente
depois do parágrafo em curso. (retornar ao texto)
(44) [Nota de Marx no topo da página seguinte do manuscrito que continua o texto:]
Comunismo. (retornar ao texto)
(46) No manuscrito, este parágrafo foi inserido por Marx por cima do primeiro
parágrafo desta secção. (retornar ao texto)
(48) O resto da página no manuscrito ficou em branco. A página seguinte começa com a
exposição das conclusões da concepção materialista da história. (retornar ao texto)
(49) [Nota marginal de Marx:] Sobre a produção da consciência. (retornar ao texto)
(50) [Nota marginal de Marx:] Que as pessoas estão interessadas em conservar o actual
estado da produção. (retornar ao texto)
(51) [Cortado no manuscrito:] ...a forma moder[na] da actividade sob a qual o domínio
de... (retornar ao texto)
(52) [Cortado no manuscrito:] Ao passo que todos os comunistas, tanto em França como
na Inglaterra e na Alemanha, de há muito estão de acordo sobre esta necessidade da
revolução, o sagrado Bruno continua a sonhar tranquilamente, e opina que o
"Humanismo Real", isto é, o comunismo, será colocado "no lugar do espiritualismo"
(que não tem qualquer lugar) apenas para que conquiste respeito. Então — continua o
seu sonho — teria na verdade "chegado a salvação, a Terra [teria sido] feita Céu e o Céu
Terra". (O teólogo continua a não poder esquecer o céu.) "Então a alegria e a glória
ressoarão nas harmonias celestiais por toda a eternidade" (p. 140)[N10]. O sagrado padre
da Igreja terá por certo uma grande surpresa quando o dia do juízo final, em que tudo
isto se consumará, romper sobre ele — um dia cuja aurora vermelha é o reflexo no céu
das cidades em chamas, quando ressoarem nos seus ouvidos, no meio destas "harmonias
celestiais", as melodias da Marselhesa e da Carmagnole com o troar indispensável dos
canhões, e a guilhotina a marcar o compasso; quando a "massa" infame bradar ça ira,
ça ira, e suprimir a "Consciência de Si" por meio do candeeiro[N16]. O sagrado Bruno
não tem o menor motivo para esboçar para si um quadro edificante de "alegria e glória
para toda a eternidade". Renunciamos ao prazer de construir a priori o comportamento
de S. Bruno no dia do juízo final. É também difícil de decidir se os prolétaires en
revolution teriam de ser entendidos como "Substância", como "Massa" que quer
derrubar a crítica, ou como "Emanação" do espírito ao qual falta ainda, entretanto, a
consistência necessária para digerir os conceitos de Bauer. (retornar ao texto)
(57) Ou seja, Bruno Bauer, Ludwig Feuerbach e Max Stirner. (retornar ao texto)
(60) [Riscado no manuscrito:] Estes "conceitos dominantes" terão uma forma tanto mais
geral e ampla quanto mais a classe dominante é obrigada a apresentar o seu interesse
como o de todos os membros da sociedade. A classe dominante tem, ela própria, em
média, a noção de que estes seus conceitos dominam, e distingue-os de representações
dominantes de épocas anteriores apenas pelo facto de as apresentar como verdades
eternas. (retornar ao texto)
(73) A sequência de "necessária" e "necessidade" nesta frase não revela, como poderia
parecer, desleixo da tradução. No original surge-nos também Nowendigkeit e nötíg.
(Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(79) Na MEGA: este segundo "como" (als) fora omitido. (Nota da edição portuguesa.)
(retornar ao texto)
(81) Nota marginal de Marx:] Começa por absorver os ramos de trabalho directamente
pertencentes ao Estado, e depois todas ± [mais ou menos] as ordens [Stände]
ideológicas. (retornar ao texto)
(84) [Nota marginal de Engels:] (Feuerbach: Ser e Essência.) Ver II, 9. (retornar ao
texto)
(91) Em francês no texto: por sua vez. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(92) Na MEGA: marcante (frappante). (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(93) Em francês no texto: associação dos indivíduos à associação dos capitais. (Nota da
edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(97) Traduzimos por sociedade civil o termo alemão bürgerliche Gesellschaft, também
traduzível por sociedade burguesa. O texto do próprio parágrafo é explícito no que toca
às razões da bivalência (mais do que ambiguidade) do termo alemão, tanto mais que o
último período distingue claramente os dois sentidos no mesmo nome. A tradução, no
entanto, para ser clara, carece desta nota. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao
texto)
(98) Em latim no texto: posse, tomada de posse. (Nota da edição portuguesa.) (retornar
ao texto)
(99) Em latim no texto. Trata-se da propriedade do antigo cidadão romano garantida por
lei. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(104) [Nota marginal de Marx:] A vontade sobre a vontade [...] reais, etc.
Nota destinada a elaboração posterior. (Em alemão: Den Willen über den Willen
wirkliche. etc.) (retornar ao texto)
(105) [Nota marginal de Marx:] À "comunidade", como ela surge no Estado antigo, no
feudalismo, na monarquia absoluta, a este vínculo correspondem (a) nomeadamente as
representações religiosas (cat[ólicas]).
(106) Esta última página do manuscrito não está numerada. As notas que contém
referem-se ao começo do enunciado da concepção materialista da história. As ideias
aqui esboçadas são desenvolvidas na 1ª parte do capítulo, na Secção 3. (retornar ao
texto) (retornar ao texto)