Você está na página 1de 18

FACULDADE DE DIREITO DO LARGO SÃO FRANCISCO

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Mike Cury Fogagnolo - Monitores: Lucas Augusto Ponte Campos; Misaac D. C. Souza
Nº USP: 8547262
CEL: (11) 97037-2803
Email: ​mike.fogagnolo@usp.br​ / mikecuryfoga9@gmail.com
Turma 13 - Diurno

A NORMA FUNDAMENTAL COMO FONTE DE OBJETIVIDADE DO SISTEMA


JURÍDICO

SÃO PAULO
2019
FACULDADE DE DIREITO DO LARGO SÃO FRANCISCO
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Mike Cury Fogagnolo


Nº USP: 8547262
CEL: (11) 97037-2803

A NORMA FUNDAMENTAL COMO FONTE DE OBJETIVIDADE DO SISTEMA


JURÍDICO

Trabalho apresentado à
disciplina de Introdução ao Estudo do Direito,
ministrada pelo Professora Associada Dra. Elza Antonia Pereira Cunha Boiteux,
do curso de Direito da Universidade de São Paulo

SÃO PAULO
2019.
1 - A NORMA FUNDAMENTAL COMO FONTE DE OBJETIVIDADE DO SISTEMA
JURÍDICO

A ciência do direito busca, ao estudar seu objeto, delimitá-lo em seus


aspectos característicos a fim de separá-lo do restante das manifestações da
realidade para melhor o conhecer, visando, assim, atingir sua essência, elaborando
modelos que, de forma mais ou menos precisa em suas partes ou na sua totalidade,
intencionam explicar este fenômeno social. Tal é o objetivo de uma teoria que almeje
a generalidade do fenômeno: uma teoria geral do direito.
Nesse sentido, a ciência do direito por vezes concebeu seu objeto como
sendo um sistema normativo jurídico, o qual tem por fim regular o comportamento
humano em sociedade. Um sistema normativo jurídico não é, de qualquer forma, o
único sistema que se coloca à regular a conduta humana em sua vida em sociedade.
Há também, como objeto de uma ciência natural, neste caso a biologia, o sistema
genético, que regula o comportamento humano por meio de sua constituição
biológica. Há também a psicologia, que estuda a psique, a qual também age sobre o
comportamento humano. Por outro lado há os sistemas normativos, que realizam
essa regulamentação por meio de normas e que são, portanto, objetos das
chamadas ciências humanas, ou ciências do espírito, entre eles os sistemas
normativos da moral e também o jurídico.
A partir disso, faz-se necessário especificar este sistema normativo por meio
de sua diferenciação entre esses outros sistemas normativos. Disso se encarrega o
termo “jurídico”, que qualifica um sistema normativo como sendo um sistema que se
refere à sociedade em sua estrutura e em sua dinâmica, regulando tais aspectos, e
que também pressupõe um elemento bilateral de característica imperativo-atributiva
de um ordenamento normativo no sentido em que associa uma obrigação que deve
ser cumprida à atribuição de se aplicar uma sanção, constituída por um ato
coercitivo, ao não cumprimento de tal obrigação. Mesmo que uma teoria geral do
direito não se restrinja mais à uma visão do direito apenas como obrigação e
coação, tais características possuem grande relevância a ponto de serem, na teoria
pura kelseniana, o centro gravitacional sobre o qual o direito se realiza, sendo
concebido por Kelsen como um sistema coativo da conduta humana.
A diferença do sistema normativo jurídico para sistemas normativos morais
geralmente é motivo de confusão, uma vez que ambos se realizam por meio de
normas imperativas da conduta humana. Assim como a norma jurídica, a norma
moral também obriga um indivíduo a uma conduta tida por tal ordem como devida,
porém não possui como sanção um ato coativo, o qual é particularidade da sanção
jurídica. Não é, porém, necessário que se considere a sanção jurídica como
elemento motivador da conduta devida. Geralmente a motivação provém mais de
costumes e da experiência moral do que da sanção jurídica, uma vez que aqueles
possuem um caráter psicológico mais eficaz que o jurídico. Essa eficácia maior do
efeito psicológico motivador da conduta humana se deve, ao menos em parte, a seu
maior grau de subjetividade. Tanto é assim que em uma ordem moral o ser obrigado
possui uma forte dependência do sentir-se obrigado, ou seja, desse elemento
subjetivo psicológico que age em um indivíduo. Por outro lado, em um sistema
jurídico a norma obriga mesmo que não haja o fator subjetivo, e, portanto, mesmo
que um indivíduo não se sinta psicologicamente obrigado. Essa diferença denota a
objetividade que há em um sistema jurídico. Essa objetividade, por sua vez,
relaciona-se também com a unicidade de um sistema normativo, ou seja, sua
característica de constituir-se em um sistema fechado, com fontes de direito bem
definidas e que se diferencia de um outro sistema jurídico qualquer cujas fontes não
sejam reconhecidas pelo primeiro, como é o caso de um sistema jurídico de um
estado em face ao de outro. O reconhecimento de um sistema jurídico por seus
destinatários como legítimo para obrigá-los sem necessariamente haver o
sentimento de obrigação, como é próprio da moral, denota esse aspecto objetivo do
direito. Para explicar essa objetividade que há no sistema jurídico e, portanto, nas
normas que o compõem, é necessário explorar a ideia de norma fundamental,
conceito este que encerra diversos aspectos de um sistema normativo.
Segundo Kelsen, a norma fundamental é aquela que confere ao sentido
subjetivo de um ato de vontade o seu sentido objetivo, quando a questão da validade
da norma posta por esse ato reconduz à norma fundamental. Ela é, portanto, fonte
de objetividade de uma norma e, dessa forma, de todo um ordenamento ao qual ela
se refere. Essa característica da norma fundamental é entendida por Kelsen por
meio de uma analogia ao conceito do lógico-transcendental, encontrada na teoria do
conhecimento de Emmanuel Kant. Faz-se oportuno, para melhor entender o tema,
uma breve menção histórica do desenvolvimento da concepção filosófica do
conhecimento.

1.2 - A Objetividade

Desde a época pré-socrática, a filosofia ocidental vem buscando a essência


do conceito de verdade, questionando se o que sentimos é verdadeiro ou não.
Famoso é o mito da caverna de Platão, o qual retrata que aquilo que se crê como
verdadeiro não passa de uma ilusão, de sombras projetadas por um pequeno feixe
de luz que emana da verdade real. Para que esta seja alcançada, exige-se que se
rompam com as correntes do senso comum, da subjetividade arbitrária, e que se
mantenha o espírito aberto ao novo. Com isso, esse filósofo coloca a verdade como
algo alheio a quem a experimenta, algo que tem uma existência em si, que não
depende do capricho do observador e que, portanto, se impõe a todos que a
buscam. Para buscá-la é necessário que se investigue por meio do pensamento, e
não dos sentidos físicos. Esses são enganosos, pois se moldam à subjetividade de
cada um, e não dão mais do que vislumbres do real. Assim, o pensamento, por meio
de mecanismos intrínsecos a sua natureza, seria capaz de alcançar a essência das
coisas, ou seja, a sua existência por trás dos sentidos, aquilo que se chamou de
realidade ontológica. Importante destacar que a verdade, para ser atingida,
dependeria desses mecanismos próprios do pensamento, e nisso se baseia a
chamada corrente inatista da filosofia da razão.
Aos inatistas se opuseram os chamados empiristas, que não pressupuseram
mecanismos inatos ao pensamento humano, mas conceberam o conhecimento
como sendo obtido por meio dos sentidos, que ao observarem os padrões dos
fenômenos, suas repetições e peculiaridades, formariam assim o conteúdo do
conhecimento. Não concebiam, portanto, o pensamento atuando de uma forma
contrária aos sentidos, que seriam enganosos, enquanto aquele seria o meio
possível para encontrar a essência dos fenômenos, formando o conhecimento.
Entendiam, sim, que os sentidos teriam a capacidade de captar a realidade: mesmo
que pudessem distorcer os fenômenos, poderiam perceber os padrões e criar o
conhecimento de um fenômeno por meio de sua causa, efeito, e nexo causal. Por
séculos essas duas correntes filosóficas se mantiveram antagônicas, sem uma teoria
que trouxesse uma resolução ao problema da razão, e, portanto, da verdade.
Kant realiza o que ficou chamado de revolução copernicana da filosofia,
emblema que denota a força de sua teoria e que indica também uma mudança de
foco na filosofia da razão. Assim como Copérnico colocou o sol, ao invés da terra, no
centro do universo, Kant coloca o sujeito do conhecimento, ao contrário do objeto, no
centro de sua filosofia do conhecimento. Dessa forma, busca estabelecer a interação
entre sujeito e conteúdo da experiência, e o faz separando elementos os quais ele
chamou de elementos a priori daqueles que chamou de elementos a posteriori. Para
Kant, os elementos a priori são aqueles inerentes ao ser humano, que oferecem a
experiência, que é o elemento a posteriori, ao conhecimento. Dessa forma o
conhecimento pode atuar sobre a experiência criando o entendimento. A essa
possibilidade de conhecer e criar o entendimento, ou seja, aos mecanismos
pressupostos da razão que possibilitam tal capacidade humana Kant chama de
condição lógico-transcendental. Seriam esses pressupostos lógicos inatos ao ser
humano, e dessa forma Kant estabelece a validade da verdade como sendo a
correta relação do conteúdo do entendimento com tais pressupostos, os
pressupostos lógicos-transcendentais, que são, para o filósofo, universais, presentes
em todos os seres humanos, e por isso a verdade seria também universal. Assim
sendo, seriam, portanto, esses pressupostos a origem da validade e objetividade da
verdade.
Fazendo uma analogia a isso, Kelsen concebe a objetividade de um sistema
normativo ao pressupor uma norma fundamental como sendo o elemento
lógico-transcendental de tal sistema, atribuindo dessa forma sua validade e,
portanto, objetividade, impondo-se, consequentemente, aos seus destinatários.
Explica o autor a natureza da norma fundamental como sendo a última premissa
maior de uma cadeia silogística que se pode realizar para encontrar a validade de
uma norma, não podendo ser obtida, por conta disso, como conclusão de um
silogismo. Todas as normas que, por meio de tais silogismos de validade, conduzem
à uma mesma norma fundamental são normas pertencentes a um mesmo
ordenamento, tendo, portanto, na norma fundamental o fechamento lógico do
sistema de que fazem parte. A partir desse ponto, a questão se dá sobre a validade
da própria norma fundamental, ou seja, como é possível validá-la. Ora, se toda
norma é validada por uma que seja superior a ela, e não há norma superior à
fundamental, então esta não pode ter sua validade dada desta forma.
Segundo Norberto Bobbio, em sua teoria do ordenamento jurídico, a norma
fundamental cumpre a função que possuem os postulados científicos1, que são
bases solidamente aceitas pela comunidade científica e que servem como pontos de
partida para o estudo zetético de um ramo do conhecimento. Por conta disso, a
explicação da validade da norma fundamental não pode ser dada com base na
ciência jurídica apenas.
Observa-se que Kelsen, em sua tentativa de explicar o fenômeno jurídico
apenas do ponto de vista da dogmática jurídica, é levado a colocar tal fenômeno
sobre um fundamento que tem causa e explicação alheia ao sistema constituído por
tal fenômeno, permitindo-se em tal ponto considerar que apenas a pressuposição de
uma norma fundamental validadora do sistema é suficiente para sua objetivação. E a
este pressuposto Kelsen nem mesmo chega a considerá-lo como real, ou mesmo
como hipótese, mas sim como uma ficção2 (a princípio, chega a considerar a norma
fundamental como uma norma hipotética, mudando, mais tarde, para a ideia de tal
norma como uma ficção), uma vez que considera que tal norma não existe de fato,
como produto de um ato de vontade que constitui uma norma, e que é contraditória
consigo mesmo, já que, como norma, deveria pressupor outro poder que a autorize,
mas acaba por pressupor justamente o contrário, a ausência de tal poder. A teoria
da norma fundamental explica e orienta o sistema como que numa relação análoga,
de certa forma, a de causa e consequência - poder validador e norma válida, em que

1
BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. São Paulo. Edipro, 2016. p 69.
2
KELSEN, Hans. Teoria Geral das Normas, Porto Alegre, Fabris, 1986, p.323-332 (“A norma
fundamental”).
a segunda existe em consequência do primeiro -, porém rompe com a própria lógica
a que se propõe considerar como critério essencial no momento em que supõe uma
norma sem a validade conferida por um poder qualquer, uma norma sem esse lastro
que a objetiva. Chega, portanto, a uma consequência sem causa, e encerra, com
isso, todo o sistema em um pressuposto fictício de natureza lógica estranha àquela
que rege esse sistema.
Pode-se, no entanto, deixar um pouco de lado o rigor da ciência pura do
direito e buscar seguir a construção da cadeia lógica de causa e consequência,
buscando a causa do estabelecimento e objetividade de um sistema jurídico fora da
ciência jurídica dogmática, recorrendo, a outras áreas do conhecimento humano.
Se se considerar que um aspecto da ideia de objetividade é uma espécie de
imposição que esta estabelece em face dos indivíduos em geral, ou seja, que sobre
eles atua apesar de qualquer experiência subjetiva, então pode-se pensar em buscar
a explicação para o fenômeno da objetividade de um sistema jurídico em termos de
sua eficácia. Kelsen mesmo considera que para uma norma viger, ou seja, ser
válida, e isso significa ter objetividade conferida ao sentido subjetivo de um ato de
vontade, ela precisa ter um mínimo de eficácia, sendo necessário que seja
minimamente observada por seus destinatários ou aplicada por seus operadores.
Uma norma que regule um evento que não ocorre ou que não é observada e nem
aplicada em momento algum não é assim uma norma válida, pertencente a um
sistema jurídico válido. No entanto, Kelsen diz que a norma fundamental nada tem a
ver com a eficácia do sistema. Diz que eficácia é pressuposto, e não fundamento de
validade. Assim, segundo esse autor, pode-se considerar que a eficácia da norma é
uma condição necessária para sua validade, mas não suficiente. Precisa ainda uma
norma se fundamentar sobre a ideia da norma fundamental para ser válida. Uma
norma, dessa forma, pode ser criada e ser eficaz, mas não ser uma norma válida se
sua origem não for a norma fundamental do sistema posto pelo Estado. Assim pode
ser o caso de uma norma de um sistema moral, por exemplo, ou então, de uma
norma dada pelo chefe de uma organização criminosa a seus subalternos.
Considerando então que a validade de uma norma, mesmo pressupondo que
deva ser eficaz, não se dá por conta de sua eficácia, mas pela norma fundamental
que a valida, vale buscar o que a faz ser válida analisando o que faz a norma
fundamental ser válida. Para tanto, pode-se partir do entendimento da norma
fundamental como postulado básico sobre o qual se estrutura o sistema jurídico,
consoante a Norberto Bobbio, assim como outras ciências se estruturam sobre seus
próprios postulados fundamentais. Tais postulados, segundo esse autor, são
concebidos por consenso ou por evidência3. Assim, se se aplica essa ideia a norma
fundamental, cabe a questão de se esta seria produto de uma convenção ou de uma
evidência.
A essa questão foram dadas diversas respostas, porém há algumas que
valem ser mencionadas. Há, desse modo, a concepção contratualista, que tem em
Hobbes e Rousseau dois de seus maiores nomes, e entende a norma fundamental
como produto de uma convenção, um consenso entre os integrantes de uma
sociedade. Para Hobbes, os seres humanos, a fim de evitar o estado de natureza
em que todos têm direito a tudo4, abdicam de todos seus direitos, menos do direito à
vida, e entregam o poder a um único indivíduo, o qual se denota por soberano.
Dessa forma o direito deixa de ter caráter subjetivo, o qual deixa os seres humanos
vulneráveis ao arbítrio, e passa a ter caráter objetivo, uma vez que é produto de um
pacto estabelecido por todos e que, por isso, a todos se impõe. O problema desta
teoria é a carga de abstração em que se constitui e que acaba por não considerar as
características históricas de cada sociedade, criando um modelo que não encontra
tempo e lugar no âmbito factual. Por conta disso, o pacto, este acordo consensual
estabelecido pelos indivíduos de uma sociedade, nunca teria ocorrido de fato, não
podendo por isso ser uma explicação satisfatória da objetividade da norma
fundamental.
Outra hipótese é aquela que diz que a norma fundamental é um pressuposto
lógico-transcendental kantiano da razão e não apenas um análogo. Para esta
hipótese, o direito é concebido como sendo algo natural, anterior a um ordenamento
normativo, e, portanto, independente de autoridade. Uma norma cuja validade é
dada pela norma fundamental seria o mesmo que uma norma não posta por um ato
de vontade, mas descoberta pela razão, própria da natureza e válida por ser o

3
BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. São Paulo. Edipro, 2016. pg 69.
4
BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica. São Paulo. Edipro, 2016. p. 54 e ss.
produto de um entendimento racional5 em que o seu conteúdo é conforme aos
pressupostos lógico-transcendentais dessa razão, que tem como característica a
universalidade e portanto a objetividade. O sistema positivo, segundo essa hipótese,
não cria um direito, mas o reconhece e o acolhe em seu ordenamento. Essa
concepção é própria da corrente jusnaturalista, presente no pensamento iluminista e
em correntes filosóficas modernas. Porém não é satisfatória, uma vez que não dá
provas de uma existência real dos direitos naturais, os quais vêm, ao contrário do
que pressupõe o jusnaturalismo, sendo questionados pelo pensamento
pós-moderno, que por sua vez relativiza tudo que o se imaginou como universal e
objetivo em narrativas construídas, conduzindo a uma conciliação do subjetivo com o
objetivo. Não há, para diversas correntes de pensamento pós-modernas, algo
natural no ser humano que se possa entender como direito. Seres humanos só
conhecem direitos como criações sociais, ou seja, como constructos que se realizam
apenas na complexa dinâmica social, não sendo imaginável, por exemplo, a ideia de
um direito, mesmo que o próprio direito à vida, como objetivado pela própria
natureza, de modo que ela própria não respeita qualquer ideia de um direito assim,
afinal, um ser humano na natureza pode, por exemplo, ser morto por qualquer
animal sem um motivo valorativo que justifique essa morte. Para Kelsen, a
concepção jusnaturalista é ideológica, uma vez que a ideia de direitos naturais ao
ser humano seria uma criação burguesa a fim de diminuir o poder do Estado e
assegurar seus interesses. Não haveria portanto direitos que não fossem reflexos de
deveres impostos por normas, e mesmo um direito concedido não seria mais do que
o poder de fazer valer um direito reflexo de um certo dever por meio de uma ação
judicial que é, também, concedida pelo Estado àquele que dela pode-se utilizar.
Há correntes teóricas também que veem a norma fundamental não como
simples conceito abstrato e teórico, mas sim algo real fruto de um poder existente na
sociedade capaz de impor um ordenamento jurídico, utilizando-se em último caso da
própria força física para isso. Dessa forma um ordenamento é objetivado pela força,
que, assim como as leis da natureza, se impõe a todos e dessa forma adquire
objetividade e validade. Kelsen mesmo acaba por dar espaço a essa ideia no

5
BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. São Paulo. Edipro, 2016. p 70 - 71.
momento em que, ao tentar explicar a origem da primeira constituição histórica,
posta pela primeira e maior autoridade, diz que esta pode estabelecer-se em um
território antes não sujeito a outra constituição, ou posta por um poder
revolucionário, que rompe com a corrente anterior de legislações que vigiam em
certo território. Assim, na teoria pura do direito, acaba por entrar um elemento
sociológico para justificar a primeira constituição histórica, que é usada para explicar
a relação entre norma fundamental e ordenamento jurídico, resultando numa
possível impureza do método. É válido notar, não obstante, que o elemento
sociológico colabora ao garantir um suporte histórico-cultural ao fenômeno jurídico,
sendo capaz de apontar suas variantes e de fornecer uma explicação mais próxima
da realidade, evitando modelos pretensiosamente universais.
De uma forma ou de outra, independente da corrente teórica que se analise
em relação a norma fundamental, fato é que esta se coloca como uma pedra angular
da ciência jurídica. É, ao menos de um ponto de vista dogmático, uma forma de
garantir a operabilidade do direito, pois o validaria e o objetivaria mesmo que apenas
em caráter utilitarista. Assim, dentro da ciência do direito, não seria necessária a
questão da origem e validade da norma fundamental, e nem mesmo se a ausência
factual de tal norma coloca todo o direito, tão objetivo em sua manifestação social,
como sistema existente apenas no plano mental, que se realiza em uma conexão
intersubjetiva dos indivíduos que o criam. Tais investigações são próprias de outras
áreas do conhecimento humano, tais como a filosofia, a sociologia e mesmo a
psicologia. Fato é que a norma fundamental resolve de certa forma problemas de
operação do direito - que, como ciência que visa atuar sobre os aspectos reais da
vida, valoriza a resolução prática de seus problemas -, como em se tratando de dar
unidade ao sistema jurídico, estabelecer as fontes de tal sistema, e resolver a
questão individual da validade, ou seja, vigência de uma norma, realizando o
fechamento lógico e dando, assim, funcionalidade ao sistema.
2 - CRÍTICA À NORMA FUNDAMENTAL

A teoria pura do direito esforça-se em manter-se dentro dos seus critérios de


pureza, rejeitando a entrada de elementos estranhos àqueles considerados por
Kelsen como puramente jurídicos. Disso resultam diversas críticas a tal teoria,
segundo as quais o direito não pode ser explicado plenamente pelo viés jurídico.
São, conforme coloca o professor Mario Losano, críticas externas à teoria as desse
tipo. Elas, porém, frequentemente não consideram a intencionalidade que há em tal
escolha epistemológica. Com efeito, ao se realizar um estudo científico de um objeto
qualquer é necessário estabelecer uma abordagem com critérios claros, os quais
são sempre fruto da escolha de um ponto de vista específico que se quer tomar do
objeto. Tal procedimento é inevitável, uma vez que a complexidade da realidade
oculta a completude dos objetos passíveis de investigação, impedindo, assim, de se
alcançar por uma única via uma apreensão integral, absoluta.
Por vezes, a escolha epistemológica, ao selecionar certos critérios e excluir
outros, causa uma deformação na realidade, já que suprime elementos que nela
existem e dá amplitude a outros, os quais se quer destacar. Assim se vê claramente,
por exemplo, nas construções cartográficas, em que, ao tentar representar o globo
terrestre em um mapa-múndi, é retirada sua tridimensionalidade, deformando-o em
uma superfície plana, o que faz alguns países serem menores do que realmente são
enquanto outros se ampliam. Essa deformação não é em si um mal, já que é, muitas
vezes, bastante útil para se tratar de um assunto: seleciona-se o que importa tendo
em vista uma certa abordagem e suprime-se o que, dessa forma, torna-se supérfluo.
A teoria pura do direito, assim, estabelece seu objetivo. Propõe-se não a
explicar o fenômeno jurídico como ele é em sua plenitude, mas sim pelo prisma
jurídico, esforçando-se por depurar este aspecto de outros. Evidente que, assim
como se deforma o globo em sua representação cartográfica plana, também o
fenômeno jurídico, ao ter sua inteireza reduzida apenas à parte que se quer dar
tratamento, mostra-se deformado em certos pontos.
A entrada do elemento sociológico e político da revolução para explicar a
origem da norma fundamental causa, também, uma relevante deformação na ideia
de revolução. Se para a teoria pura do direito a revolução é um fato jurídico e cujo
sentido é o de instituir uma nova norma fundamental, não é assim que a revolução é
tida aos olhos da história, da sociologia ou mesmo do olhar comum daqueles a quem
o processo revolucionário submete, ou então daqueles que, por essa via, são
alçados ao poder. O ponto de vista dado por Kelsen, submetido ao filtro jurídico de
sua teoria pura, deforma o conceito de revolução ao ponto de quase falsificá-lo,
como diz Losano: “Esse empobrecimento da noção de revolução está, assim, a um
passo da falsificação: a teoria pura do direito, ao impor a si mesma levar em
consideração apenas o elemento jurídico, colhe somente um setor dos problemas
estudados”. A revolução é muito mais do que uma mudança de norma fundamental,
pois representa um acontecimento fático, e, por conseguinte, do mundo do ser, com
todos os elementos extra-jurídicos que a compõe. Ainda segundo Losano, “a
tentativa de exprimir juridicamente o que não é jurídico resolve-se sempre em um
mascaramento da realidade com termos jurídicos”.6
Este mascaramento explica-se pelos pressupostos da teoria pura de Kelsen,
uma vez que ela objetiva descrever o direito apenas mediante o direito. Disso nasce
a necessidade de transformar em jurídico o que não o é. Sendo a ciência jurídica
uma ciência do dever ser, isso implica que essa transformação converte um ser em
dever ser. A distorção aqui se opera naturalmente pela inconciliabilidade, afirmada
pelo próprio Kelsen, entre esses dois planos (o do ser e o do dever ser). Por conta
disso, a revolução, esse processo histórico que se dá no mundo fático, passa a ser
apenas a instauração de um novo dever ser.
Isso no entanto se dá pela via do ser: a revolução instaura um novo dever ser
ou não conforme ela seja vitoriosa ou fracasse. Ou melhor: conforme os aplicadores
do direito de maneira geral reconheçam uma ou outra norma fundamental, a anterior
ou a revolucionária. Sustentar isso, no entanto, é, consoante Losano, afirmar que o
direito tem origem no ser, e, portanto, sua explicação é metajurídica.

6
LOSANO, Mario. Sistema e Estrutura no Direito. O Século XX. Edição disponibilizada pelo Moodle
USP. pg - 70 - 71
A norma fundamental surge então como necessidade lógica de explicar o
direito renunciando a qualquer possibilidade metajurídica. Losano ainda aponta com
perspicácia a alteração realizada por Kelsen no texto da teoria pura, em 1965, em
que ele adiciona a ideia de uma autoridade metajurídica efetivamente existente
àquelas apenas consideradas efetivamente existentes.7 Tal autoridade metajurídica
efetivamente existente seria o elemento social que reúne a força necessária dentro
de certa conjuntura para ser reconhecido, então, como a nova autoridade legítima.
Assim, a norma fundamental cumpre seu objetivo na medida em que dá sua
explicação da validade de uma nova constituição, e, portanto, da existência de um
novo ordenamento, mantendo-se ainda dentro do campo do direito positivo, que é o
campo próprio da teoria pura Kelseniana. Faz isso, no entanto, por meio de um
processo complexo e que revela algumas dissonâncias com os próprios
pressupostos da teoria pura.
Primeiramente, pode-se apontar o fato da teoria pura criticar as outras teorias
jurídicas dizendo ​serem ideológicas, como seria o caso do jusnaturalismo, que
apresenta, por exemplo, elementos ideológicos liberais, como seria o caso da
justificação dada à propriedade privada. Apesar da proposta da teoria pura de ser
uma teoria que apenas descreve o direito como ele é e não como ele deveria ser, ao
tratar da norma fundamental Kelsen comete o deslize de colocá-la como um dever
ser, ou seja, não como algo que realmente se dá e que se está apenas descrevendo,
mas sim como algo que o jurista deve pressupor. Em suas palavras, ao falar sobre a
busca pela validade da norma - em que se segue uma sequência no sentido da
norma inferior para a superior (norma válida / norma validadora) -, afirma: “Tal busca
deve​ terminar como uma norma pressuposta como última e suprema”.
Nota-se aí, pelo próprio verbo usado na construção do texto, o “dever”, o
nítido caráter ideológico que a teoria pura acaba assim por carregar, a despeito de
suas críticas a outros sistemas que, segundo ela, pecam por esse motivo. O
problema ganha ainda mais amplitude quando se leva em conta que trata-se de um
aspecto de extrema importância nessa construção teórica, afinal de contas, a norma

7
LOSANO, Mario. Sistema e Estrutura no Direito. O Século XX. Edição disponibilizada pelo Moodle
USP. p 68-69
fundamental é o ponto final de sustentação da validade de todo o ordenamento
jurídico Kelseniano. 8
Soma-se a isso o problema, também destacado pelo professor Losano9, de,
fazendo-se, neste caso, uma crítica interna da teoria pura do direito, ser a norma
fundamental contraditória ao conceito de norma propugnado pela mesma teoria. Se
uma norma é um produto de um ato de vontade, ou, em outras palavras, é o sentido
objetivo que se dá ao sentido subjetivo de um ato de vontade amparado por uma
norma superior, é problemático chamar de norma àquilo que não é produto da
vontade, mas sim do pensamento. Porém, se se reconhecesse que, por tal motivo,
melhor seria chamar ao que se denominou como norma fundamental de algo como,
por exemplo, princípio fundamental, estaria-se aí a sair do campo positivista ao qual
a teoria pura pretende se fixar, uma vez que traria tal princípio como elemento
metajurídico e ideológico.
Pode auxiliar a compreensão deste assunto ainda o fato de Kelsen, após
considerar a norma fundamental como uma norma hipotética, mudar essa
enunciação para a de que ela seria, em verdade, uma ficção. É possível reconhecer,
dessa forma, a incapacidade de uma teoria puramente jurídica, no caso a teoria pura
do direito, explicar por completo o fenômeno jurídico, preferindo então, ao chegar no
limite do sistema, onde, a partir daí, para justificar sua validade, passa-se ao mundo
do ser, dar seu fechamento por meio de uma ficção, necessária para manter o
sistema sobre os pressupostos postulados, ainda que isso possa tornar falacioso
seu discurso de imparcialidade e neutralidade. Mas não se pode dizer que o próprio
Kelsen não percebeu o limite de sua teoria. Mais convincente é pensar que ele
soube de tais limites, e, por isso mesmo, obteve, a despeito de alguns problemas,
como é o caso dos já mencionados, reconhecimento no desenvolvimento de uma
teoria positivista. A esses limites, ele fecha, voluntariamente seus olhos, ou, como
ele mesmo diz: “O problema do direito natural é o eterno problema do que está por
trás do direito positivo. E quem procura uma resposta não encontra - temo - nem a

8
LOSANO, Mario. Sistema e Estrutura no Direito. O Século XX. Edição disponibilizada pelo Moodle
USP. p 82 - 83
9
LOSANO, Mario. Sistema e Estrutura no Direito. O Século XX. Edição disponibilizada pelo Moodle
USP. 84 - 87
verdade absoluta de uma metafísica, nem a justiça absoluta de um direito natural:
quem levanta o véu e não fecha os olhos é ofuscado pela Górgona do poder”.
Mas há aqueles que levantam o véu e, de olhos abertos, buscam a cabeça
dessa Górgona, pois, assim como não conceberiam um corpo sem a cabeça,
tampouco pensam o direito sem suas partes presentes no mundo do ser. É o caso
do célebre jurista brasileiro Miguel Reale, que enuncia o direito não como
meramente um objeto abstraído da realidade sócio-cultural e histórica, existente
numa realidade do dever-ser, mas, sim, imerso no mundo fenomênico. São, dessa
forma, e segundo sua teoria da tridimensionalidade do direito, os valores, os fatos e
as normas os objetos da ciência jurídica. Não há aqui uma norma fundamental como
a proposta por Kelsen. Tampouco uma validade proveniente de tal norma, afinal de
contas, segundo Reale, normas não são apenas o resultado de meros processos
formais cujo sentido se objetiva pelo amparo de uma norma superior. O que há são
fatos, aos quais incidem valores, e, por meio de uma disputa simbólica entre tais
valores, cristaliza-se o vencedor por meio da criação da norma jurídica.
Nota-se que, dessa forma, podem ser evitadas algumas distorções
indesejáveis que possam advir de uma excessiva abstração por parte da corrente
normativista, em cujo centro se encontra a teoria pura do direito. Assim é no caso de
uma revolução que instaura um novo ordenamento, pois não é mais tida pela ciência
jurídica como uma mudança de norma fundamental, mas sim como uma disputa
valorativa, cujos valores vitoriosos serão o fulcro do novo ordenamento jurídico.
Também se alcança assim uma maior compreensão do espírito das normas, uma
vez que sua apreensão passa a se dar tendo em vista os elementos não apenas
formais, mas também históricos, culturais, filosóficos, psicológicos e sociológicos
que, na multiplicidade de suas influências e na complexa dinâmica social, gestam as
normas e os ordenamentos jurídicos.
É, porém, relevante apontar a relação entre direito e força, uma vez que
sendo as normas resultado de uma disputa de valoração dos fatos, segundo a teoria
tridimensional, ou de um dever-ser pressuposto por um nova norma fundamental
cuja instauração é revolucionária ou conforme a primeira organização Estatal sobre
certo território, conforme Kelsen, pode-se levar a pensar que, na base da questão, o
direito acaba por resumir-se à força. No entanto, segundo Norberto Bobbio10, direito
e força não são necessariamente equivalentes, considerando-se que o poder,
criador do direito, não se equivale à força física, podendo ser, como ocorre
realmente na prática, uma combinação entre força e consenso. A força é, segundo
esse autor, o instrumento pelo qual a norma reforça sua imperatividade, porém não é
o fim da norma jurídica, havendo aquelas que nem mesmo regulam a força pelo
estabelecimento de sanção, como é o caso de certas normas que, apesar de sua
validade, terminam por ser ineficazes.
Seja de uma maneira ou de outra, a norma fundamental encerra o direito em
si ao tempo em que surge como recusa ao que há de metajurídico nesse fenômeno.
Com isso, pode-se pensar que sua função de objetivação de um ordenamento se dá
apenas dentro da ciência jurídica, no momento em que esta se coloca a classificar
como válidas ou inválidas certas normas, de acordo com o critério lógico da
recondução à norma fundamental. Porém, fora do espectro do dever-ser da ciência
jurídica, a validade de um ordenamento se dá por como de fato este se expressa no
mundo, ou seja, pela sua eficácia, que se origina de uma conjuntura na qual certos
valores vencem a disputa ideológica que se dá no meio social. Assim, pode-se
considerar válido o estudo da ciência jurídica enquanto sistema normativo existente
no plano lógico, como efetivamente se percebe na atividade doutrinária, porém é
necessário também, ao jurista, compreender a real manifestação jurídica, que, por
vezes, pode se parecer à famigerada cabeça da Górgona: confusa, ilógica, poderosa
e intimidadora.

10
BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. São Paulo. Edipro, 2016. pg 71 - 75
Bibliografia

BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: lições de filosofia do direito.


São Paulo, Ícone Editora Ltda, 1995.

BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Direito. Tradução Denise


Agostinetti; revisão Silvana Cobucci Leite, 2ª. edição, São Paulo:
Martins Fontes, 2008.

BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica. São Paulo. Edipro, 2016.


191 pg.

BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. São Paulo. Edipro,


2016. 174 pg.

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. 5ª Edição. Lisboa: Fundação


Calouste Gulbenkian, 2001.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, trad. de João Baptista Machado,


8.ed. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2009.

KELSEN, Hans. Teoria Geral das Normas. Porto Alegre, Fabris, 1986.

KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Porto Alegre,


Fabris, 1986.

LOSANO, Mario. Sistema e Estrutura no Direito. O Século XX. Edição


disponibilizada pelo Moodle USP

REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª Edição, 1994

Você também pode gostar