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Um crime na Paraíba: Radcliffe-Brown e a sanção ritualística

Com bastante ênfase, a mídia noticiou o “desfile” que a polícia da Paraíba teria feito
com suspeitos de assaltar um posto de gasolina e que resultou na morte de um policial
militar.1 Esse foi um crime que teve grande repercussão naquele Estado, e que chegou a
mobilizar cerca de 80 policiais para a captura dos suspeitos. Após mostrar os suspeitos
algemados na traseira de uma caminhonete, trafegando pelas ruas da cidade de Patos-PB, a
polícia afirma ter impedido que os mesmos fossem linchados ao chegarem a delegacia.
O fato narrado trouxe à tona uma característica presente também nas chamadas
“sociedades primitivas”: a aplicação de uma sanção ritualística como reação a um ato
aviltante e perturbador da ordem moral comunitária - e, portanto, causador de revolta social.
Nada de novo no front, diria Radcliffe-Brown, o antropólogo inglês que, na obra
Estrutura e Função na Sociedade Primitiva (1952), estudou a punição e seus aspectos rituais
nas sociedades de tecnologia simples, os quais não possuíam autoridades constituídas (como
ocorre em sociedades onde há a figura do estado) nem conheciam o Direito tal qual nós o
conhecemos. Queremos usar esse caso da Paraíba para, sucintamente, apresentar aos leitores a
teoria da origem do direito, segundo Radcliffe-Brown.
Autor clássico da antropologia, Radcliffe-Brown tratou das relações sociais e culturais
das chamadas “sociedades primitivas” por meio de uma análise sincrônica, ou seja,
preocupando-se com a sua estrutura lógica (interna) de funcionamento, num dado momento
histórico. Sua investigação se vale de modelos e talvez por isso ele seja, dentre os autores
clássicos da Antropologia, aquele que mais se aproxima do estudo do Direito. Autor cuja obra
abrange vários temas antropológicos, é um tanto quanto difícil classificá-lo como pertencente
a esta ou aquela escola antropológica – a despeito de muitos o classificarem de estrutural-
funcionalista - pois autores clássicos em geral – e este é o caso de Radcliffe-Brown - têm
estudos que perpassam várias escolas de pensamento.
Radcliffe-Brown é considerado um dos maiores representantes da antropologia
inglesa, com vasta experiência de pesquisa e no ensino em diversos países, inclusive com uma
passagem pela Universidade de São Paulo - USP. Seus textos, que são obrigatórios na
disciplina Antropologia Jurídica ou Antropologia do Direito em muitos cursos de Direito no
Brasil, ainda hoje auxiliam no entendimento do fenômeno jurídico atual.

1
Fonte: (http://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2015/06/policia-desfila-em-carro-aberto-com-suspeitos-de-
matar-pm-na-paraiba.html)
Conforme as investigações de Radcliffe-Brown sobre as sociedades de tecnologia
simples, o conjunto de práticas a que se poderia chamar de direito primitivo estava
relacionado à magia e à religião. Essas sociedades possuíam costumes sustentados por
sanções sociais, que seriam, segundo Radcliffe-Brown, uma “reação por parte de uma
sociedade, ou de um número considerável de seus membros, a uma forma de comportamento
que é, consequentemente, aprovado (sanções positivas) ou rejeitados (sanções negativas)”.
Nas sanções havia um elemento ritualístico que fazia com que os membros da comunidade
percebessem que houve uma reação àquele ato que causou um sentimento de repulsa à
coletividade. Por isso, aquilo que chamamos Direito Penal e Direito Civil na sociedade
moderna pode ser explicado nas sociedades de tecnologia simples pelo que se chama
respectivamente de Direito dos delitos públicos e Direito dos delitos privados.
Uma ação é considerada um delito público numa sociedade de tecnologia simples
quando “sua ocorrência levar normalmente a procedimentos organizados e usuais por parte
de toda a comunidade, ou pelos representantes reconhecidos da autoridade social, que
resulta na atribuição das responsabilidades a um dado indivíduo da comunidade, e na
atribuição por parte da comunidade ou dos seus representantes, de uma certa pena ou
castigo à pessoa responsável pelo delito cometido”. O delito público é punido com uma
espécie de sanção penal, ou seja, “basicamente uma reação por parte da comunidade contra
uma ação cometida por um de seus membros, que ofende algum forte sentimento moral
específico, e que conduz assim a uma condição de disforia social. A função imediata da
reação é dar expressão a um sentimento coletivo de indignação moral e, consequentemente,
restabelecer a euforia social. A sua função, em última instância, é manter o sentimento moral
em questão no seu grau desejável de intensidade, nos indivíduos que constituem a
comunidade em questão”.
Um delito público ofende o sentimento moral da comunidade e gera, portanto, uma
sensação de indignação moral. São exemplos notórios e até extremos de delitos públicos nas
sociedades de tecnologia simples o incesto, entendido como a prática de relação sexual entre
pessoas proibidas de manter tais relações entre si; a feitiçaria ou magia negra, principalmente
a realizada dentro dos limites da aldeia; a quebra reiterada de costumes tribais. Tais ações
muitas vezes violam proibições que entram no mundo do sagrado e precisam ser punidas
severamente por deixarem uma impressão de impureza na comunidade, que se sente como
que contaminada pelos atos ofensivos de seus membros e reclama a sua punição.
As sanções ritualísticas derivam da ideia “de que certas ações ou acontecimentos
tornam um dado indivíduo, ou um grupo de indivíduos, ritualisticamente impuros ou
poluídos, de forma que se torna necessária uma ação definida para remover a impureza”.
Em algumas situações, o sentimento de contaminação é tamanho que provoca na comunidade
forte indignação, levando a que seja sancionado com a pena de morte o membro que cometeu
a violação, como um meio definitivo de purificação social.
No Direito dos delitos privados, por sua vez, não há uma ofensa moral à coletividade
ou mesmo uma violação ao mundo do sagrado, pois apenas uma pessoa ou mesmo um
pequeno grupo sofrem a ofensa. A sanção será mais simples, pois o objetivo é a satisfação do
indivíduo ou grupo ofendido, logo, não há satisfação da comunidade como um todo. Em tais
casos, existe um outro tipo de procedimento: “uma pessoa ou um conjunto de pessoas que
tenha sofrido alguma ofensa, perda ou danos, por violação de direitos reconhecidos, fará
apelo para uma autoridade judicial constituída, que declarará a outra pessoa ou conjunto de
pessoas responsável, e dará a ordem para que os réus deem uma satisfação ao queixoso,
satisfação que será muitas vezes em forma de pagamento de uma indenização por danos
sofridos.” O delito privado é uma ação que está sujeita, portanto, a uma sanção de restituição.
De uma forma mais geral, o direito do delito privado busca evitar ou diminuir o sentimento de
disforia social que surge de conflitos no seio da sociedade:
“Uma ação que constitua uma violação dos direitos de uma pessoa ou grupo de
pessoas, poderá levar a uma retaliação, por parte da pessoa ofendida, contra a pessoa ou
grupo de pessoas responsáveis pela ofensa.”
São exemplos de delitos privados nas sociedades de tecnologia simples o homicídio, a
lesão corporal, o furto, o adultério, a falta de pagamento de dívidas. Apesar de ações que
ofendem diretamente um membro ou grupo da comunidade, há a necessidade de censura
moral por ser considerado ato anti-social. Em tribos africanas, por exemplo, quando um
indivíduo furta, ele é obrigado a devolver ao ofendido o dobro do valor do que foi furtado.
Mas há situações em que um ato que seria classificado como delito privado se transforma em
delito público. Trata-se do caso de ações classificadas como delitos privados que, se
cometidas contra autoridades sociais, transformam-se em delitos públicos e passam a ser
punidas com sanções ritualísticas, uma vez que a comunidade de uma forma geral se sentiu
ofendida.
Da mesma forma, o descumprimento de uma sanção de restituição imposta por um
mediador escolhido pela comunidade gera o mesmo sentimento de repulsa e indignação de
toda a comunidade. Esse indivíduo, que inicialmente seria punido com uma sanção de
restituição, agora será punido com uma sanção ritualística.
Percebemos claramente essas características no acontecimento narrado na Paraíba,
inclusive com a tentativa de linchamento por parte da população, mostrando que as pessoas
vistas como culpadas naquele momento se tornaram alvos da censura dos demais moradores,
que tentaram o assassínio como forma de dissipar a poluição moral que acometia, de uma
certa forma, todos os moradores daquela cidade. O fato de a vítima do homicídio ser um
agente do estado responsável pela segurança pública, choca ainda mais a comunidade. A crise
engendra a sua resposta, e a fala de um dos policias, transcrita na reportagem citada, mostra
claramente tais características, quando ele afirma que a Polícia deu uma resposta para a
sociedade:
“O tenente-coronel Francisco Campos comentou que a ação foi uma resposta à
população da cidade sertaneja. ‘Nós acreditamos que eles passarão um bom tempo fora de
ação. Acredito que seja uma resposta para a sociedade, para a família, para os nossos
companheiros do batalhão, para toda a população sertaneja que confia na Polícia Militar’”.
O caso revela que, longe de sermos tão sofisticados e modernos em nossas ideias de
justiça, a realidade é sempre mais interessante do que nossos manuais técnicos nos permitem
ver. As características ditas “primitivas” são uma constante nos fenômenos de violência
atuais, e, talvez por tais similitudes entre o contemporâneo e o arcaico, Radcliffe-Brown tenha
considerado que o direito dos delitos públicos originou o Direito Penal das sociedades
modernas. Isto revela, por outro lado, e mais profundamente, que as sociedades de tecnologia
simples, chamadas de “primitivas”, ou aquelas tecnologicamente complexas ou “civilizadas”,
são constituídas de seres humanos que, desde que se constituíram como tais, têm uma mesma
unidade lógica e racional, como passaram a postular muitos antropólogos posteriores a
Radcliffe-Brown.

Milton Gustavo Vasconcelos - mestre e doutorando em Ciências Criminais pela


PUC/RS.
Sebastião Patrício Mendes da Costa - mestre em Direito pela UnB, mestre em
Antropologia e Arqueologia pela UFPI, doutorando em Direito pela PUC/RS.
Wilson Franck Jr. - mestre e doutorando em Ciências Criminais pela PUC/RS.

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