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Mangas e Animes A Cultura Pop Japonesa N
Mangas e Animes A Cultura Pop Japonesa N
São Francisco/MG
2017
Ary Batista Neto
São Francisco/MG
2017
Ary Batista Neto
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________
Orientadora Prof.ª M.ª Andréa Helena Puydinger De Fazio
Professora da Universidade Estadual de Montes Claros – Unimontes
__________________________________________________
Prof. Dr. Alysson Luiz Freitas
Professor da Universidade Estadual de Montes Claros - Unimontes
__________________________________________________
Prof. Dr. Alessandro de Almeida
Professor da Universidade Estadual de Montes Claros - Unimontes
Agradecimentos
A Mariana, que me deu o apoio mais importante durante todo este curso.
A toda Universidade, o corpo docente que tanto me ensinou, e meus colegas de sala e
de campus, pela convivência prazerosa e pelas boas experiências.
A Andréa, minha orientadora, por todas as correções minuciosas e o cuidado em fazer
deste um bom trabalho. Sem sua orientação este seria, sem dúvidas, um trabalho muito
inferior.
A toda minha família que me incentivou e me deu todo o suporte necessário.
Especialmente os meus amados avós Clarice e Ary (in memoriam).
A todos mais que, por quaisquer meios, me ajudaram nessa jornada.
Resumo
O presente trabalho analisa a presença da cultura pop japonesa no Brasil, focando no que
consideramos ser o principal produto dessa cultura no exterior: os animês e mangás. Para esta
tarefa, utilizamos o conceito de indústria cultural, desenvolvido pelos pensadores
frankfurtianos Adorno e Horkheimer, a fim de entender o que são, em essência, os produtos
da cultura pop as implicações dessa cultura no seu público consumidor. Revisitamos através
de análise bibliográfica alguns dos materiais mais relevantes já produzidos no Brasil sobre a
cultura pop japonesa, e inserimos as informações obtidas sobre a história dos mangás e
animês dentro do contexto histórico do desenvolvimento político e econômico do Japão, a fim
de entender suas relações. Por fim, afunilamos ainda mais a análise e separamos dois mangás
de gerações diferentes para, ao analisar comparativamente as produções, perceber suas
diferenças através de suas relações com seus respectivos contextos históricos.
This paper works on the japanese pop culture in Brazil by focusing which we consider the
main products of this culture outside of Japan: the animes and mangas. In order to fulfil this
task, we used the concept of cultural industry, developed by the Frankfurt School
philosophers Adorno and Horkheimer. Then, we tried to understand what are in essence the
pop culture products and its implications over its consumer public. By bibliographic analysis,
we revisited some of the most relevant works produced in Brazil about the Japanese pop
culture, we inserted the informations obtained about the history of manga and anime within
the context of the political and economic development of Japan, in order to understand its
relations. Lastly, we narrowed the analysis by picking two mangas from different generations
to compare its differences, from the relations with they respective historical contexts.
INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 10
3.3 A influência do contexto histórico na construção dos universos fictícios dos mangás .............. 49
FONTES....................................................................................................................................54
INTRODUÇÃO
1
Histórias fantásticas filmadas com atores reais.
2
“Otaku” é um termo usado para designar os fãs de animês, mangás, cosplays, e outros gêneros da cultura pop
japonesa.
3
Abreviação do inglês “costume play”. Ato de se vestir e interpretar um determinado personagem.
4
G1 Grande Minas. Montes Claros sediou o III Anime King. Disponível em: http://g1.globo.com/mg/grande-
minas/mgintertv-1edicao/videos/t/edicoes/v/montes-claros-sediou-o-iii-anime-king/2598587/. Acesso em
21/03/2015.
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gerações, de modo que pintam bem um quadro geral, ainda que um tanto superficial, de
algumas características básicas dos mangás, suas mensagens, sentidos e suas relações com
seus contextos.
Para cumprir nossas propostas, dividiremos esta pesquisa em 3 capítulos. No primeiro,
conceituaremos a “indústria cultural”, analisando, ainda, a trajetória desse tipo de produção
cultural no Japão, buscando sempre traçar paralelos com o contexto histórico, a fim de
entender as continuidades e rupturas que marcam a produção de mangás e animês.
No segundo capítulo, abordaremos a internacionalização da cultura pop japonesa,
concentrando-nos principalmente no desenvolvimento político e econômico do Japão a partir
de seu contato com o Ocidente. Para temática, julgamos mais importante compreender as
modificações estruturais da sociedade japonesa e do mercado de consumo e sua inserção no
capitalismo global, elementos que se mostram mais elucidativos para o tema do que a análise
da difusão da cultura japonesa através da emigração nos séculos XIX e XX. Analisaremos
ainda neste capítulo, a influência do pop japonês nos seus consumidores brasileiros, a fim de
entender concretamente qual o papel dessa cultura na realidade nacional.
No terceiro capítulo, passaremos a analisar os mangás e animês enquanto fontes
históricas. Para tal, selecionamos dois mangás do estilo shonen (Dragon Ball e One Piece),
que são produzidos para o público masculino jovem. São desse estilo a maioria dos
mangás/animês mais populares do Brasil, aqueles que passam ou passaram em TV aberta, que
ficaram mais tempo em exibição e que obtiveram maior êxito no mercado editorial nacional.
13
Diferente do que geralmente se entende por cultura popular, isto é, como um conjunto
de saberes e fazeres de um povo, o termo “cultura pop” tem um sentido próprio6. O pop está
ligado não só a um modo particular de se expressar artisticamente, o qual se faz,
principalmente, através da técnica industrial e dos meios de comunicação de massa, mas
também está ligado a uma finalidade própria: a venda e o consumo em massa. Assim, a
cultura pop está relacionada ao que os estudiosos da Escola de Frankfurt convencionaram
chamar “indústria cultural”.
Ecléa Bosi identifica a indústria cultural como um sistema de comunicação de ideias.
“O sistema é a indústria cultural. Indústria enquanto complexo de produção de bens. Cultural
enquanto o tipo desses bens” (Bosi, 2009, p. 61). Neste sentido, acreditamos que a chamada
cultura pop deve ser vista como um conjunto de bens culturais produzidos por esse sistema.
Importante ressaltar que, neste trabalho, nos afastaremos do conceito de cultura
“emprestado” da antropologia, que frequentemente é abordada nos trabalhos de História
Cultural, uma vez que as especificidades desta obra requerem também um conceito específico
de cultura, que foge à conceituação usual, mais adequada aos trabalhos que se debruçam sobre
a cultura popular tradicional. A “cultura” abordada neste trabalho se refere especificamente à
produção material de bens artísticos voltados para o consumo, sem dissociação entre as
estruturas materiais nas quais esses bens são produzidos e os elementos humanos que
compõem esse sistema (práticas, representações, imaginários, etc.).
6
O surgimento do termo “pop” está ligado à pop art dos anos de 1950 e 60, que foi um movimento artístico que
visava criticar – de forma um tanto cínica – o vazio, alienação e repetição mimética da sociedade de consumo
produzindo em massa obras que retratavam ícones da indústria cultural. Para mais informações sobre o assunto,
ler: MCARTY, David. Arte pop. São Paulo: Cosac Naify, 2002.
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Entendemos, dessa forma, que há um caráter de imposição intrínseco à cultura produzida pela
indústria cultural, de modo que ela será sempre, e em alguma medida, externa às massas.
Porém, esse caráter dominador, ou mercantil, da cultura, não pode ser visto como uma
novidade capitalista, conforme analisam Adorno e Horkheimer (1985):
O novo não é o caráter mercantil da obra de arte, mas o fato de que, hoje, ele se
declara deliberadamente como tal (...). As puras obras de arte, que negam o caráter
mercantil da sociedade pelo simples fato de seguirem sua própria lei, sempre foram
ao mesmo tempo mercadorias: até o século dezoito, a proteção dos patronos
preservava os artistas do mercado, mas, em compensação, eles ficavam nesta mesma
medida submetidos a seus patronos e aos objetivos destes (ADORNO,
HORKHEIMER, 1985, p. 130).
Tudo só tem valor na medida em que se pode trocá-lo, não na medida em que é algo
em si mesmo. O valor de uso da arte, seu ser, é considerado como um fetiche, e o
fetiche, a avaliação social que é erroneamente entendida como hierarquia das obras
de arte – torna-se seu único valor de uso, a única qualidade que elas desfrutam
(ADORNO, HORKHEIMER, 1985, p. 131).
Nesta mesma direção argumenta Walter Benjamin (1975), ao dizer que “as técnicas de
reprodução aplicadas à obra de arte modificam a atitude da massa com relação à arte”
(BENJAMIN, 1975, p. 27). Se a arte, ainda que patrocinada, anteriormente era valorizada a
partir de si própria, na indústria cultural ela gira sobre um novo eixo, que é a massa para a
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qual é endereçada. Neste aspecto, Benjamin é tão pessimista quanto Adorno e Horkheimer
sobre a indústria cultural ao dizer que “a massa é a matriz de onde emana, no momento atual,
todo um conjunto de novas atitudes em relação à arte. A quantidade tornou-se qualidade”
(idem, p. 31).
Como a mercadoria produzida pela indústria cultural não preza pelo valor que ela
carrega em si, mas pelo seu potencial comercial, a indústria cultural rompe as barreiras antes
bem definidas entre cultura erudita e cultura popular, tais quais elas se apresentavam na
sociedade pré-industrial. Por um lado, ela cria o kitsch7 como contrafação da cultura erudita,
por outro, o popularesco como contrafação da cultura popular (BOSI, 2009, p. 84).
Assim, ela se apropria tanto do erudito quanto do popular, porém de maneira
vulgarizada e negativa. A indústria cultural se livra do conteúdo que essas culturas
precedentes possuem e se apropria de sua forma, ressignificando-a de acordo com o interesse
comercial, ou mesmo esvaziando-a de qualquer substância.
Um exemplo disso na cultura popular é o rap. Ritmo oriundo das periferias negras dos
Estados Unidos, que tem entre suas principais características uma feroz crítica social. Ainda
assim, é um tipo de música altamente comercializável e muitos rappers lotam casas noturnas
de classe média, fazem shows com grande aparato técnico e midiático e tem suas carreiras
tocadas por empresários, produtores e gravadoras. A própria crítica ao sistema, neste caso,
acaba por ser uma porta de entrada no mesmo.
O alcance do pop é tamanho que, até mesmo seus mais ferozes críticos não encontram
meios de o criticarem senão dentro do pop. Essa “iluminação” é, inclusive, o que inspira o
movimento artístico do Pop Art, que “foi um movimento artístico que criticava a sociedade de
consumo e a massificação da cultura. De maneira irônica e bem-humorada, também usava a
reprodutibilidade como aliada para defender essa crítica” (CORREA DE SÁ; SOCORRO, s/d,
p. 3).
Seria simplista, portanto, apenas chamar “hipócritas” os artistas que conseguem seu
sucesso profissional através da crítica do próprio pop e da indústria cultural. O problema não
é o sucesso comercial, a reprodutibilidade ou o trabalho, afinal, o artista é um trabalhador
como qualquer outro. O problema é a finalidade para a qual essa indústria opera e que esvazia
o conteúdo dos produtos, transformando, mesmo a obra mais crítica, em mero entretenimento,
em mera mercadoria. Isso se exemplifica no caso dos americanos de classe média, brancos em
7
Kitsch é um termo usado para se referir a objetos de mau gosto e baixa qualidade. Estes são produzidos em
massa e aspiram uma influência erudita, mas não possuem, porém, real significado artístico e cultural. Foi um
termo cunhado para separar a arte de vanguarda deste que é considerado um produto da indústria cultural.
16
sua esmagadora maioria, se divertindo em seus ambientes fechados ao som do mesmo rap que
acusa o status quo e a realidade social dos americanos negros e pobres.
Com isto fica claro que, apesar do aspecto dominador da indústria cultural, ela não dita
a produção de maneira autônoma. A produção gira em torno da massa consumidora; ela é
direcionada a públicos-alvo e regulada e quantificada por pesquisas de opinião, metas e
tabelas. Há um conjunto de valores que são anteriores à indústria cultural e aos quais ela tem
que se adaptar. Como afirma Ortiz (1985), “a indústria cultural organiza estas necessidades de
modo que o consumidor a ela se prenda, sempre e tão-só como eterno consumidor” (ORTIZ,
1985, s/p).
Assim, a indústria cultural age, não criando modelos de consciência, mas
padronizando modelos pré-existentes, a partir de sua produção em massa. As tendências
ditadas por essa indústria não são, assim, criadas sem base concreta, mas a partir dos valores
da época. Ela não apenas dita a moda, como é também ditada pela moda. Caímos aqui em um
paradoxo: a indústria cultural diz dar ao povo “o que o povo quer” ao mesmo tempo em que
tenta condicionar e padronizar os desejos populares, principalmente através da publicidade.
Nessa direção, Bosi (2009) ressalta que “não é a comunidade de receptores que se exprime
através dos meios, mas a mentalidade dos detentores desses meios, os quais supõem uma certa
visão do mundo na massa dos consumidores” (BOSI, 2009, p. 70). A cultura pop é produzida
não para um sujeito concreto, mas para uma massa abstrata, nivelada (geralmente) a priori e
por baixo.
É nesse ponto que vem à tona o problema da identidade na sociedade de consumo. Se
nas sociedades tradicionais o indivíduo tem uma identidade fixa e estável, papéis sociais bem
determinados e um conjunto de tradições que embasam suas práticas, na sociedade de
consumo, a identidade se torna móvel e múltipla, se prende mais ao visual, que expõe o tipo
de cultura que o indivíduo consome. A identidade se perde na forma e o conteúdo se torna
meramente superficial. Ela deixa, então, de se definir através de um papel social e passa a se
centrar unicamente no indivíduo e no que ele consome (CARLOS, 2010). Ou, como
argumenta Mogendorff (2012):
O que se percebe, então, é que a Escola de Frankfurt trata da indústria cultural com
extremo pessimismo. Não veem na sociedade de consumo nenhuma possibilidade de uma
emancipação humana, e apesar de sua poderosa capacidade de publicidade e produção, não há
nela qualquer possibilidade de esclarecimento. É aí que mora a grande crítica frankfurtiana ao
fracasso do esclarecimento. Ao contrário do otimismo, surgido no esclarecimento, em relação
ao desenvolvimento técnico e a razão humana, o que estes produziram foi não uma massa
esclarecida, mas uma massa sem rosto, que apenas possui medos e desejos: medos que a torna
presa fácil de soluções totalitárias, e desejos que a indústria promete saciar. Nas palavras de
Hanna Arendt, que corrobora com a visão frankfurtiana:
Acreditar que uma tal sociedade se torne mais culta à medida que o tempo passa e
que a educação fizer seu trabalho, é, penso eu, um erro fatal. Uma sociedade de
consumidores não pode, possivelmente, saber como cuidar de um mundo e das
coisas que pertencem exclusivamente ao espaço de fenômenos do mundo, porque
sua atitude central para com todos os objetos, atitude de consumação, provoca ruína
em tudo o que ela toca (ARENDT apud BOSI, 2009, p. 34).
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[...] a indústria cultural tem como objetivo único a dependência e a servidão dos
homens, como se a alienação fosse o fim da angústia. Para Adorno, o imperativo
categórico da indústria cultural é: “deves submeter-te porque todos os submetem”.
As criaturas se reconhecem em suas mercadorias (BOSI, 2009, p. 34).
Tal visão demasiado pessimista é o principal foco das críticas à leitura frankfurtiana da
indústria cultural. Umberto Eco os chamou “apocalípticos”, por produzirem “teorias da
decadência”. Sua função, nessa perspectiva seria “de consolar o leitor, já que, em meio à
catástrofe, se elevariam os “super-homens”, ou seja, aqueles acima da média, que olhariam
para o mundo com desconfiança. Para Eco, essa atitude seria um convite à passividade”
(MOGENDORFF, 2012, p. 157).
Outras críticas se baseiam na aparente posição elitista dos frankfurtianos, assim vista
pelo fato deles elogiarem e defenderem o erudito frente uma rejeição da cultura de massa. Eco
ataca a visão de que a cultura de massa é algo essencialmente mau. Para ele, é preciso, aceitar
que vivemos em uma sociedade industrial e pensar em meios de transmitir valores culturais a
partir dessa realidade. Por sua vez, os defensores da Escola de Frankfurt rebatem essas
acusações alegando que os ditos autores não são contrários à cultura popular ou a tecnologia,
mas sim críticos a esse sistema que os produz e instrumentaliza (MOGENDORF, 2012, p.
158-159).
Além disso, essas críticas que os associam a uma visão elitista dão a entender que os
frankfurtianos analisaram o fenômeno da cultura de massa de maneira isolada, como uma
mera crítica de arte, quando na verdade:
se apresenta como um aspecto ocidentalizante onde quer que esta chegue. Por isso, optamos
por analisar seu desenvolvimento no Japão a partir das relações que o país estabeleceu com o
Ocidente capitalista moderno.
O Japão de meados do século XIX ainda vivia um regime feudal, e há mais de 200
anos não mantinha relações comerciais com o exterior. Até que, em 1853, uma esquadra
norte-americana comandada pelo Comodoro Mattew Perry impressionou os japoneses com
seus armamentos e equipamentos modernos, como o telégrafo. Após uma série de
negociações e intrigas no governo japonês, os portos do país foram abertos para algumas das
principais potências da época (EUA, Inglaterra, França, Holanda e Rússia) (YAMASHIRO,
1964, p. 138).
A partir daí as forças feudais desmoronaram. Em 1868 o imperador Meiji deixou a
tradicional capital, Kyoto, e “fixou residência em Tóquio (a nova capital imperial),
assinalando o início da era moderna no arquipélago nipônico” (LUYTEN, 2011, p. 86). A
chamada “Restauração de Meiji” instituiu uma série de reformas políticas, econômicas,
sociais, diplomáticas e administrativas, para adequar o Japão aos tempos modernos. Houve,
portanto, uma grande abertura cultural do Japão com o exterior. “O governo resolveu manter
relações externas amistosas, para introduzir no país o que havia de bom no exterior, com o
fito de estimular o progresso do novo Japão” (YAMASHIRO, 1964, p. 147).
Foi nesse contexto que os cartuns nos moldes ocidentais foram introduzidos no Japão.
O principal responsável pela novidade foi Charles Wirgman (1835-1891) que foi para o Japão
como correspondente do jornal “Illustrated London News”, mas acabou por se casar e fixar
residência ali. É considerado o patrono da charge moderna japonesa, tendo editado a primeira
revista de charges nipônica, a “The Japan Punch” (LUYTEN, 2011, p. 86-87).
Ao mesmo tempo, nos EUA, a concorrência entre grandes jornais dos magnatas da
imprensa americana (Pulitzer e Hearst) impulsionava o desenvolvimento dos quadrinhos em
uma verdadeira luta para atrair novos leitores. Essa nova geração de quadrinhos americanos
influenciou fortemente o caricaturista Rakuten Kitazawa (1876-1955), um dos responsáveis
pela popularização do termo “mangá” para designar histórias em quadrinhos. Foi ele quem
criou os primeiros quadrinhos com personagens regulares e o primeiro cartunista japonês a ser
20
Não foi a primeira vez, porém, que os japoneses assimilaram uma grande influência
cultural externa. Entre os séculos VI e VIII os japoneses já haviam “achinesado” sua cultura,
porém, sintetizaram essa influência em algo próprio. Algo semelhante ao que aconteceu com a
influência ocidental do século XIX e início do século XX – os japoneses absorveram muito da
cultura ocidental, mas colocaram essa cultura a serviço de seu próprio gosto.
Em 1927, o imperador Hiroito sobe ao poder, e, no contexto da Grande Depressão, as
ideias fascistas se fortalecem no Japão. Nessa época, os mangás passam a cumprir a função
que o entretenimento costuma ter em tempos de crise: dar alento às pessoas, oferecer uma
fuga da realidade. Os mangás também ganham um tom nacionalista, condizente com o regime
em que se encontrava o país. Com o início da Segunda Guerra Mundial, os heróis das
histórias, de ambos os lados do conflito, passam a lutar contra os inimigos reais de seus
países, um grande exemplo disso é o Capitão América, declaradamente inimigo dos nazistas.
No Japão:
Com a derrota japonesa na guerra, o país foi ocupado pelos americanos, sob o
“supremo comando do general Douglas McArthur, até 1952” (LUYTEN, 2011, p. 105). Os
EUA, como de praxe, “falavam em democracia, igualdade e justiça; todavia por baixo dessa
aparência, muitos americanos pensavam em estratégias, padrões de comércio, no controle das
rotas marítimas e supremacia aérea” (GUEDES, 2010, p. 12).
O principal interesse americano era garantir uma base de apoio contra a influência
soviética na Ásia e no pacífico, e para garantir que o Japão não sucumbisse à influência
soviética, os EUA tiveram de ir além de simplesmente impor sanções, e passaram a ajudar na
21
De repente, tudo que havia sido proibido ao público japonês, ou desprezado pelos
japoneses durante a guerra por serem considerados “símbolos do inimigo”, invadia
as rádios, os cinemas, os jornais e as revistas, como as músicas das big bands, as
produções de Hollywood e as comics. Coisas antes inaceitáveis, como expressões
em inglês no vocabulário diário e Coca-Cola fazendo parte do cardápio de bares e
restaurantes, tornaram-se corriqueiras. (SATO, 2007, p. 14)
Porém, como já foi dito, o Japão não apenas assimilou essa influência estrangeira, mas
moldou-a a sua própria cultura:
[...] ao invés de cultuar ídolos alheios como se seus fossem, os japoneses criaram
seus próprios ídolos. A fórmula da produção e consumo em massa podia ser
americana, mas o produto final tinha que ser culturalmente japonês. [...] E assim se
formou o pop japonês contemporâneo: ocidentalizado na forma, mas nipônico no
conteúdo (SATO, 2007, p. 14).
Nos anos 50 e 60, com as pessoas ainda abaladas pela derrota na guerra e a penosa
reconstrução do Japão, foi forte a busca dos japoneses por entretenimento. E mesmo com a
poderosa concorrência de Hollywood, o nascente cinema japonês “criou seus próprios ídolos”
e conseguiu concorrer de igual para igual. Em 1954 surgia o ícone do monstro gigante
japonês. Godzilla, um monstro criado a partir dos efeitos da bomba atômica, foi um sucesso
de bilheteria. De acordo com Sato (2007), “em 1958 os cinemas japoneses receberam o
público pagante de 1.1 bilhão de pessoas, e calcula-se que em 1960 o Japão tinha 7.457
cinemas em atividade” (SATO, 2007, p. 15). No ramo musical, o kayõnkyoku, a “música
popular japonesa”, formado por bandas ocidentalizadas, mas com arranjos japoneses,
dominou o mercado fonográfico. Atualmente, o chamado j-pop, abreviação de “pop japonês”
já é um estilo bem estabelecido e basicamente ocidental em sua forma, pouco se diferenciando
da música pop ocidental (Idem, p. 16).
Podemos perceber, portanto, que o surgimento de uma indústria cultural no Japão está
relacionado à ocidentalização nos campos econômicos e culturais. O surgimento do Japão
como uma potência capitalista no pós-guerra e uma cultura voltada para o consumo é o que dá
as condições para que o pop japonês se desenvolva. Assim, por mais que a cultura pop
22
japonesa tenha suas muitas peculiaridades, ela está essencialmente condicionada e dominada
por todas as questões analisados anteriormente. O objetivo desta cultura não se configura em
traduzir uma nova consciência nacional, mas adequar essa consciência à nova sociedade de
mercado japonesa. A identidade nipônica se divide, assim, entre os deveres da honra e o
hedonismo do mercado.
Influenciados pelo “american way” o Japão abraçou a nova cultura consumista. Nos
anos 60, talvez a década mais próspera desde o pós-guerra, a indústria cultural japonesa foi
beneficiada por todas as condições ideais para seu funcionamento. Nessa época o Japão não
teve conflitos internos, passou por um grande crescimento econômico, grande distribuição de
renda, o que criou uma das classes médias mais ricas do mundo. O ideal consumista tornou
fácil o acesso a bens de consumo industrializados, além disso, o Japão passou a ter uma das
mais altas taxas de alfabetização do mundo (SATO, 2007, p. 17), fator fundamental para o
desenvolvimento da indústria dos mangás e animês, os carros-chefes do pop japonês.
1.2.1. O mangá
Figura 1: imagem do primeiro rolo do Chojugiga, retratando um macaco ladrão fugindo de outros animais
armados com galhos.
Fonte: http://cooljapannow.jp/enlargement.html?KEY=NEOART-599
A ilustração japonesa seria modificada no século XVI pela introdução dos tipos
móveis trazidos da Coréia após a invasão japonesa na Guerra Imjin10. No século XVII a
impressão já era prática generalizada no Japão e “quase todas as obras da literatura japonesa
foram impressas, com numerosas ilustrações” (LUYTEN, 2001, p. 82).
É interessante notar como o próprio surgimento da palavra mangá, na sua acepção
moderna, está ligada ao desenvolvimento do capitalismo no Japão. Como já foi dito, no
período Edo (1660-1867) anterior “Revolução Meiji”, o Japão vivia em um regime feudal
fechado para o exterior. Os Portugueses, que anteriormente eram a maior influência europeia
no arquipélago, haviam sido expulsos. “Somente uma pequena ilha artificial, no porto de
Nagasaki, foi reservada às visitas anuais de navios holandeses e chineses. Os holandeses, ao
contrário dos lusitanos, haviam prometido limitar-se exclusivamente ao comércio dentro das
normas ditadas pelas autoridades japonesas”. (Idem, p. 82).
8
Monge budista
9
Acesso em 05/05/2016.
10
Conflito do final do século XVI envolvendo Japão, China e Coreia.
24
Figura 2: “A grande onda de Kanagawa”. A mais famosa obra de Hokusai, parte da série de gravuras “Trinta e
seis vistas do Monte Fuji”.
Fonte: http://madeinjapan.com.br/2004/04/06/ukiyo-e/11
11
Acesso em 05/05/2016.
25
A partir do século XIX, como já foi dito, a ilustração japonesa foi marcada pela
influência das charges inglesas, tanto na questão do traço dos desenhos, quanto dos conteúdos
dos quadrinhos. Segundo Luyten (2014), no início do século XX houve dois grandes marcos
para os mangás: a tradução dos cartoons americanos para o japonês e a separação entre os
públicos adulto e infantil. Após a Segunda Guerra Mundial, e com o sucesso da tirinha Sazae-
san12, que conquistou o público feminino, mais uma divisão, agora a produção para o público
infantil e adolescente se dividia também por gênero: o “shojo manga” para as meninas e o
“shonen manga” para os meninos.
As revistas shojo têm suas histórias produzidas em grande maioria por mulheres. As
histórias focam nos temas românticos e se passam em lugares comuns, como a escola, a casa e
a cidade, mas há também as histórias mais fantasiosas, semelhantes aos contos de fadas. Já as
revistas shonen focam em temas de aventura, esporte, luta e guerra. Cenários de ficção
científica aparecem tanto no shojo quanto no shonen, em cada caso, sempre dentro dos temas
próprios de cada público-alvo. As maiores marcas dos enredos shonen são, portanto, a
violência, a competição, a disciplina, além das alusões ao sexo e mesmo cenas de nudez e
sexo. Há um estilo próprio para jovens e adultos também, que é o “seinen”, com tramas mais
elaboradas, outras mais violentas e outras mais eróticas (LUYTEN, 2011, p. 40-50).
Os heróis das histórias japonesas também apresentam peculiaridades que os
distanciam dos ocidentais. Diferente dos tradicionais super-heróis ocidentais, altos,
invencíveis, justiceiros e musculosos, os heróis dos mangás partem da própria realidade
cotidiana, de modo que o leitor tem maior identificação (LUYTEN, 2011, p. 55). As histórias
japonesas ressaltam seus valores tradicionais, a honra, a sinceridade e a perseverança. O herói
japonês, longe de ser superpoderoso logo de início, ganha poder com o decorrer da história,
através de seu próprio esforço para alcançar o sucesso. Nessas histórias, é fundamental a
relação entre aprendiz e mestre, onde o aprendiz tem que ser disciplinado e esforçado para
superar seu tutor (Idem, p. 60). Mesmo o suicídio, regatando a tradição samurai, tem valor, na
medida em que purga a honra do herói fracassado. Numa visão weberiana, podemos perceber
que a própria ética japonesa retratada nas histórias se mostra um terreno fértil para o
desenvolvimento do capitalismo no Japão, e, consequentemente, o sucesso comercial de suas
histórias enquanto produtos capitalistas.
As heroínas estão muito mais associadas a características físicas idealizadas, como a
magreza, altura, pernas largas e à vestimenta impecável. Os olhos grandes que não denotam
12
Publicada em tiras de jornal, Sazae-san era uma história humorística “cuja heroína, uma mulher casada, com
filhos, representava o novo ideal de reconstrução do Japão” (LUYTEN, 2011, p. 43).
26
nacionalidade é outra marca das marcas registradas dos mangás. Nas revistas shojo, a
representação dos homens, também idealizada, é a do “príncipe encantado”. Tais aspectos
denotam que os mangás femininos, apesar de escritos por mulheres, reforçam os aspectos
tradicionais dos papéis de gênero na sociedade japonesa. Um exemplo disso é o papel da mãe
nos mangás, que representam a figura ideal da mulher. “É com a condição de mãe que as
mulheres no Japão adquirem sua posição social e, com isso, ganham muita força” (LUYTEN,
2011, p. 66).
Talvez o maior marco na modernização do mangá, tenha sido a obra de Osamu Tezuka
(1928-1989). Sua história “Shin Takarajima” (A Nova Ilha do Tesouro) foi o primeiro best-
seller do pós-guerra no Japão, vendendo mais de 400 mil exemplares, e deu o impulso para a
produção de mangás a partir daquele período. Ele implantou métodos de produção em massa,
contratando assistentes e fez várias inovações, tanto em questão de desenho, como os traços
simplificados, cabelos espetados e os já citados olhos grandes e expressivos, quanto em
narrativa. Suas histórias, longas, cheias de balões de falas e onomatopeias, carregavam
“mensagens humanísticas profundas, alto teor dramático, e frequentemente com finais tristes”
(SATO, 2007, p. 127).
Tezuma foi autor de clássicos como “Astro-boy” (Tetsuwan Atomu), “A Princesa e o
Cavaleiro” (Ribon no Kishi) e “Kimba, O Leão Branco” (Jungle Taitei). Também adaptou
lendas e clássicos da literatura para o mangá, como a história de Buda, Fausto de Goethe e As
Mil e Uma Noites. A obra de Tezuka significou o início do mercado de animações no Japão.
A TV foi inserida no Japão na década de 50, junto ao boom do consumismo ligado à
política de recuperação da economia. Tezuka, ávido por criar animações de qualidade, como
as da Disney, porém impedido pelos altos custos financeiros para fazê-las, inseriu uma série
de técnicas para baixar os custos de produção. Além disso, Tezuka “formou o ovo de todo um
sistema de financiamento privado de produção de animações, envolvendo a produtora, a rede
de TV e fabricantes de produtos licenciados” (SATO, 2007, p. 130).
Apostando nos personagens já consagrados nos mangás, como Astro Boy e A Princesa
e o Cavaleiro, Tezuka praticamente inaugurou o atual mercado bilionário de animês no Japão,
que são em sua esmagadora maioria, adaptações de mangás de sucesso, além de dar o impulso
inicial para sua internacionalização. Boa parte dos assistentes de Tezuka também se tornaram
mangakás (nome que se dá no Japão aos autores de mangás) de sucesso.
27
Figura 3: Tetsuwan Atomu, ou Astro Boy, no Ocidente, a obra-prima de Tezuka. Capa do Vol. 14 para a versão
estadunidense do mangá, publicado pela DarkHorseComics.
Fonte: https://www.darkhorse.com/Books/12-337/Astro-Boy-Volume-14-TPB13
13
Acesso em 05/05/2016.
28
1.2.2. O animê
A cultura Japonesa, e oriental como um todo, sempre foi vista como “excêntrica” no
Ocidente, portanto, nada mais natural que essa difusão começasse por seus vizinhos, países
com uma história muito mais longa de contato e influências mútuas com a cultura japonesa.
Durante a primeira metade do século XX, a relação do Japão com seus vizinhos
asiáticos foi sangrenta. O Japão se tornou a principal potência imperialista da Ásia, tendo
ocupado militarmente boa parte destes, inclusive a China, que havia sido a influência inicial
da civilização japonesa, inclusive na arte do desenho, como já foi mencionado acima.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, fracassadas as aspirações imperialistas do
Japão, as relações deste com seus vizinhos mudam em sua natureza: se antes o Japão se
impunha militarmente como potência, agora precisava fazê-lo economicamente,
Claro que as relações econômicas que o Japão passou a ter com seus vizinhos
englobaram também a indústria cultural. A partir das décadas de 1970 e 1980, a influência do
mangá e dos animês nas produções vizinhas do Japão se torna mais notória. Na China, por
exemplo, Astro Boy de Osamu Tezuka, um garoto robô que salvava a humanidade através do
uso da ciência e tecnologia, representava os valores que o governo chinês tentava emplacar no
país. (LUYTEN, 2011, p. 144)
Assim, se no período anterior à Segunda Guerra Mundial o que mais caracterizava os
quadrinhos ou animações, seja no Japão ou no Ocidente, era uma preocupação educacional
nacionalista, no pós-guerra essas produções ganham caráter mais mercadológico. O
30
liberalismo que toma o Japão pós-ocupação pelos Estados Unidos atinge os mangás, de modo
que suas histórias ganham contornos e pretensões mais universais. Os horrores do
nacionalismo na Segunda Grande Guerra tornam os heróis dos mangás em heróis da
humanidade, defensores da paz.
Agora um dos mais bem-sucedidos países capitalistas do pós-guerra, a influência da
indústria cultural japonesa não tardaria a chegar no Ocidente. Segundo Santos (2011) foi a
partir da história “Ronin”14, publicada em nos Estados Unidos em 1983 por Frank Miller, que
o estilo mangá começou a ganhar espaço no Ocidente. Ronin abriu as portas do mercado
americano para heróis de outro tipo, que não os tradicionais e uniformizados heróis
americanos (SANTOS, 2011, p. 5).
A influência do pop japonês nos EUA, porém, tem antecedentes, alguns sucessos do
cinema japonês, como Godzilla, e as já citadas séries tokusatsus, sempre acompanhados de
merchandising e brinquedos, já eram uma realidade no Ocidente. Ou seja, os mangás foram
secundários na expansão do pop japonês pelo Ocidente, o carro-chefe sempre foram os
animês. O poder de alcance da televisão, nesse caso, superava em muito a folha impressa.
A relação da cultura japonesa com o Brasil tem uma origem anterior ao sucesso da
indústria cultural japonesa devido à imigração japonesa no Brasil. Foi intensa a imigração
japonesa para as Américas durante a chamada “Era Meiji”, período de transformações
estruturais que abriu o Japão para o mundo. As dificuldades do campesinato e do proletariado
emergente numa nação que passava por um processo de industrialização, foram motivos mais
que suficientes para que muitos japoneses se interessassem em oportunidades nas Américas.
Os EUA foram o primeiro país a importar mão de obra japonesa, para trabalhar no recém-
incorporado território do Hawaii. No início do Século XX, os países norte-americanos
passaram a dificultar o processo de imigração dos japoneses, o que incentivou sua vinda para
países sul-americanos, principalmente Peru e Brasil.
A primeira metade do Século XX foi um período de intensa imigração de japoneses
para o Brasil. O principal destino desses imigrantes eram as lavouras de café, principalmente
no Estado de São Paulo. A chegada do navio Kasato-Maru em 1908 no porto de Santos, com
781 imigrantes, marca o início dessa imigração. Porém, é entre os anos de 1924 e 1941 que a
14
No Japão feudal, os ronins eram samurais que não estavam juramentados a um daimyo (senhor feudal), o que
era visto como uma grande desonra.
31
imigração se deu de forma mais intensa. À época, eram grandes os subsídios do governo
japonês para os imigrantes, ao mesmo tempo em que se fechavam as portas em outros grandes
destinos de imigrantes japoneses. (DADALTO; FOEGER, 2010, p. 2-3).
Luyten (2011) destaca que, dadas as diferenças culturais, a assimilação dos japoneses
na sociedade brasileira foi muito mais difícil que a de italianos e alemães por exemplo. Um
ponto comum entre eles, porém, foi o esforço por preservar sua cultura de um processo de
“caboclização”, isto é, eles temiam que um contato muito amplo e aberto com as comunidades
locais interioranas empobreceria a bagagem cultural de seus filhos. Assim,
[...] além da preocupação do envio dos filhos à escola brasileira, fosse no meio rural
ou posteriormente no urbano, tomou-se também a iniciativa de criação de escolas
japonesas, cujo principal objetivo era a manutenção da língua[...]. Além da escola
japonesa, as crianças dispunham de outros elementos para um contato permanente
com a língua, tais como livros e revistas de histórias em quadrinhos [...] (LUYTEN,
2011, p. 153).
para se adequar aos padrões locais, pois esta pode ser vista como uma recusa de um aspecto
muito importante da indústria cultural, que é a massificação. Denota também a superação de
certas barreiras e tabus culturais que são empobrecedores na troca entre diferentes culturas. A
indústria cultural japonesa acaba, completamente sem querer, fazendo com que o Ocidente
tenha que repensar a sua própria.
Os anos 2000 foram responsáveis por trazer um novo elemento que mudaria a maneira
do público ter acesso ao pop japonês: a internet. A internet potencializa ao extremo o poder de
alcance do fansubbing, além disso, toda a comunidade de fãs de animês ganha visibilidade.
Surgem os fóruns online, onde se discute apenas a cultura pop japonesa e os usuários trocam
indicações (CARLOS, 2009, p. 5). Com a internet, passa a ganhar forma no Ocidente um
novo grupo, uma nova “tribo urbana”, a dos “otakus”.
O termo “otaku” foi cunhado pelo jornalista japonês Akio Nakamori, e designa um
“indivíduo que vive ‘fechado em um casulo’, isolado do mundo real e dedicado a um hobby”
(NAGADO apud CARLOS, 2009, p. 2). Além do teor pejorativo que era original ao termo,
deve-se ter em mente que é um termo originalmente usado para descrever qualquer aficionado
a um hobby e não necessariamente os aficionados por cultura pop. No Japão, a presença dos
otakus começou a ser notada a partir de 1980.
No Brasil, a palavra é usada especificamente para descrever os fãs da cultura pop
japonesa. O termo foi popularizado no início dos anos 2000 por uma revista especializada em
animês, a “Animax”. Diferente do Japão, onde o termo é pejorativo, no Brasil os otakus
demonstram orgulho de pertencer a esse grupo, porém, pelo fato de se distanciarem dos
padrões sociais, os otakus brasileiros também tendem a ser mal vistos socialmente e como
pessoas “infantilizadas”, por gostarem de desenhos, além do estranhamento causado pela
estética influenciada pelo pop japonês. Além disso,
Os Otakus brasileiros vivem a partir de uma outra cultura, antes estranha, pois não
estava dentro dos padrões culturais do seu país. E a identificação e exposição das
experiências desse grupo no Brasil, encontrados em diversas regiões, ainda causam
estranhamento quando se apresentam com suas roupas características e atitudes de
consumo da animação japonesa (BRITO, 2009, p. 37).
Os otakus são identificados como “tribo urbana”, uma vez que seu relacionamento se
dá em um nível acima de tudo, afetivo. Segundo a ideia do sociólogo francês Michel
34
Maffesoli, as tribos urbanas constituem uma organização informal, ligada por relações
afetivas, o “estar junto à-toa” (MAFFESOLI apud BRITO, 2009, p. 37). Uma vez que são
relações emocionais e imediatistas, esses espaços “neotribais” têm como uma de suas
principais características o distanciamento de qualquer projeto político, sua realidade se dá no
presente vivido em coletividade, isto é, nos espaços de convivência e no compartilhamento de
símbolos, sendo que estes, por sua vez, estão intrinsecamente ligados, ou são gerados pela
indústria cultural e o mundo do consumo. Tal panorama relembra imediatamente o
pessimismo frankfurtiano, quando estes afirmam que
animês, possui um acervo de quase 50.000 vídeos, conta com mais de 2.6 bilhões de
visualizações e geralmente tem, simultaneamente, mais de 100.000 usuários online15.
De certa forma, e apesar de ainda atrair um público bastante específico, o pop japonês
já não é tão estranho à cultura urbana brasileira, e se misturou a outros elementos de variadas
origens. Por exemplo, os numerosos eventos de animês, ou “animencontros”, que há muito
tempo congregam consumidores do pop japonês por todo Brasil, não se limitam a esse tipo
específico de entretenimento, mas suas atrações englobam outros elementos da cultura pop e
também de outras origens geográficas, como o cinema americano, o RPG, jogos eletrônicos,
bandas de rock e personalidades da internet.
A dimensão desses eventos pode ser exemplificada através do “Anime Friends”,
atualmente o maior evento do gênero em toda a América Latina, ocorre anualmente em São
Paulo. Em 2014 o evento recebeu mais de 100.000 pessoas, rivalizando, em adesão, ao
famoso Comic-Con, maior evento de cultura pop do mundo que acontece em San Diego nos
Estados Unidos e que concentra alguns dos principais lançamentos de Hollywood
(MIYAZAWA, 2014).
É nesses eventos ocorrem as principais práticas de expressão e socialização desse
grupo, de modo que se tornam espaços fundamentais para o próprio exercício da identidade
dos otakus. Neles, os indivíduos trazem no seu repertório cultural o gosto pelos mangás e
animês, e podem se reconhecer e compartilhar simbolicamente valores em comum, fatores
essenciais para a construção da identidade, sendo que
[...] a identidade do sujeito é construída a partir das suas relações com o meio que o
cerca. Nessa vertente, o consumo está presente diariamente, integrando-se nesse
ciclo. Valendo disso, as marcas constroem suas identidades de acordo com que o
consumidor almeja, a fim de complementá-lo. A partir do ato do consumo, a marca
transfere seus valores conceituais e simbólicos a quem a utiliza, influenciando
diretamente o posicionamento social e a identidade do público. (KAMINSKI, 2010,
p. 38).
15
Dados de novembro de 2015. As estatísticas do site estavam disponíveis para o público na página inicial do
site, porém, este foi derrubado em meados de 2016, mudando de domínio, de modo que se perderam os dados
sobre o seu número de visitantes.
36
tem um valor simbólico para quem as usa, expressa seus gostos, sua individualidade, ao
mesmo tempo em que sucumbe seus consumidores à massificação.
Percebe-se que todos os espaços permeados pela cultura pop são essencialmente
espaços de entretenimento e diversão, corroborando a afirmação de Adorno (1985) de que o
controle da indústria cultural sobre os consumidores se dá através da diversão (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p 112). É essa diversão forçada e condicionada pela indústria, vista
pelos frankfurtianos como uma tentativa de fuga da realidade mecânica do capitalismo tardio,
que empobrece não só os produtos da indústria cultural, mas também as identidades dos
grupos sociais ligados a ela. Daí o pessimismo de que, sem a superação da cultura como
negócio, o fim do domínio, material e ideológico sobre os indivíduos não pode acontecer. Se
por um lado, a presença do pop japonês acrescenta na cultura brasileira com um hibridismo
interessante, que nos enriquece de especificidades, por outro, não leva a nada do ponto de
vista político, dada a sua natureza.
37
16
http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2015/06/one-piece-manga-com-321-milhoes-de-exemplares-entra-para-o-
guinness.html. Acesso em 05/05/2016.
17
http://icv2.com/articles/comics/view/1499/dbz-yu-gi-oh-headline-us-shonen-jump. Entrevista concedida pelo
gerente de marketing da Viz, parceira da Shueisha que publica a WeeklyShonenJump nos EUA. Acesso em
05/05/2016.
38
Dragon Ball foi criado por Akira Toriyama (1955-) – que à época já era famoso por
“Dr. Slump”, um mangá escrito anteriormente – e publicado pela revista Weekly Shonen
Jump de 1984 a 1995. As séries de mangá publicadas semanalmente costumam ser
compiladas em volumes após as publicações originais nas revistas. Dragon Ball contou com
39
519 capítulos, compilados em 42 volumes. Três séries de animês foram produzidas baseadas
em Dragon Ball: a primeira, homônima com 153 episódios e baseada nos primeiros 16
volumes do mangá; a segunda, Dragon Ball Z, foi baseada nos volumes restantes; a terceira,
Dragon Ball GT, não foi baseada no mangá, portanto não constitui conteúdo considerado
“canônico”, ou oficial da história. A série Dragon Ball Z ainda recebeu um remake,
denominado Dragon Ball Kai, que contou com 159 episódios e foi ao ar no Japão de 2009 a
2015. A série ainda contou com 19 filmes, sendo que apenas dois destes, os mais recentes,
contém conteúdo que segue a linha do tempo da série, e seu sucesso originou uma nova série
animada, Dragon Ball Super que começou a ser produzida em 2015 conjuntamente com um
mangá. Dragon Ball também possui quase uma centena de jogos eletrônicos lançados, sendo
uma das poucas franquias que seguem fazendo sucesso desde os anos 80 com os primeiros
consoles de videogames. Além disso, segundo um catálogo de 2014 da FUNimation, maior
distribuidora de animês dos Estados Unidos, a franquia Dragon Ball já vendeu mais de 40
milhões de jogos eletrônicos no mundo todo e mais de $5 bilhões em merchandising18.
No Brasil, Dragon Ball foi publicado pela Conrad Editora, uma das maiores do gênero
no país, em 83 volumes quinzenais de 2000 a 2002. Dragon Ball e Cavaleiros do Zodíaco,
publicados pela mesma editora, marcaram o boom de vendas de mangás no Brasil, no começo
dos anos 2000. Dessa leva inicial de Dragon Ball, foram vendidos mais de seis milhões de
exemplares19. Porém, fazendo o movimento inverso ao japonês, onde os mangás de maior
sucesso se tornam animês, no Brasil, os animês que fazem maior sucesso na TV é que atraem
o interesse da publicação de seus mangás pelas editoras. Foi Assim com Dragon Ball, cuja
série animada começou a ser exibida no Brasil ainda em 1996 no SBT e desde então tem
estado presente de forma contínua nos programas infantis de diferentes emissoras.
18
https://www.thecnl.com/FunimationNov2014Catalog.pdf. Acesso em 18/05/2016.
19
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2611200219.htm. Acesso em 05/05/2016.
40
Figura 4: capa da 1ª edição de Dragon Ball pela Conrad Editora. Com Goku em primeiro plano e o dragão
ShenLong em segundo plano.
Fonte:http://www.guiadosquadrinhos.com/edicao/dragon-ball-n-1/dr033101/2236520
A história de Dragon Ball gira em torno da procura por sete esferas mágicas, as
Esferas do Dragão (as Dragon Balls), que quando reunidas, invocam um dragão mágico, Shen
Long, que realiza um desejo daquele que o invocar. A história se inicia quando Bulma, uma
jovem herdeira da maior empresa de tecnologia do mundo, a Corporação Capsula (Capsule
20
Acesso em 05/05/2016.
41
Corp.), cujos serviços consistem como o nome deixa antever, em guardar em capsulas
basicamente qualquer objeto, de armas a veículos, ou até casas, procura pelas esferas com a
ajuda de um radar que ela mesma desenvolveu. Guiada por seu radar, Bulma se encontra com
o jovem Son Goku, que possui uma das esferas. Goku é uma criança anormalmente forte e
possuidora de um intrigante rabo de macaco, que, sozinha no mundo após a morte de seu avô
adotivo, e tendo salvado a vida de Bulma após um bandido tê-la atacado, passa a acompanha-
la em sua busca.
Em cada saga, aparecem novos e mais poderosos inimigos, de forma que elas seguem
mais ou menos o mesmo padrão: Goku é derrotado pelo novo inimigo que planeja dominar ou
destruir a Terra; Goku encontra maneiras de ficar mais forte; Goku retorna e derrota o
inimigo. Por vezes também, nosso protagonista morre e é revivido por seus amigos através
das esferas do Dragão. Também acontece de, mesmo morto, ele arranjar meios de treinar e se
fortalecer no “Outro Mundo”. Essas aparições de inimigos cada vez mais poderosos são
intercaladas por um evento que reúne os mais poderosos guerreiros da Terra, o Torneio de
Artes Marciais (Tenkaichi Budoukai).
Outra marca do desenvolvimento do enredo de Dragon Ball é a expansão do universo
da história enquanto ela se desenrola. Cada saga explora elementos novos, colocando-os sobre
o mesmo padrão exibido acima. Como o universo de Dragon Ball não se limita de
possibilidades, uma vez que desde o começo da história coexistem esferas mágicas, carros
voadores, animais antropomorfos falantes, etc., a história tende a inserir novos seres assim
que os anteriores se esgotam. Assim que os humanos chegam ao limite enquanto recursos para
o desenvolvimento do poder de Goku, aparecem androides, demônios, deuses, alienígenas e
deuses ainda mais poderosos na complexa hierarquia celestial do mangá. Enfim, cada saga é
um exercício de criatividade de como o autor irá colocar na história um vilão ainda mais
poderoso que o anterior. Essa forma de narrativa deixa a impressão de que a história não tem
finalidade alguma, continua, basicamente enquanto fizer sucesso e for do interesse do autor. A
própria estrutura permite e encoraja isso. Tudo gira em torno do desenvolvimento ad
infinitum do poder do herói. É nisso, acreditamos, que está um dos mais importantes aspectos
dos mangás, principalmente os shonen.
Uma grande diferença dos heróis dos mangás e animês, se comparados com seus pares
ocidentais, é que eles não são naturalmente, ou acidentalmente dotados de grandes dons, ou,
se o são, esse dom geralmente não se vale por si só. Nos enredos dos mangás, os heróis, ainda
que dotados de habilidades naturais, precisam treiná-los e aperfeiçoá-los sob a ameaça de
ficarem obsoletos em suas histórias. Ao analisarmos três dos personagens principais – Goku,
42
Tudo isso, porém, é apresentado em Dragon Ball com um forte teor cômico, o que
também é uma característica marcante do gênero. Dessa forma, muitas dessas referências
culturais, é importante que se diga, entram na história como paródia, como um modo de dizer
que o autor não leva tão a sério a obra que produz. Talvez também seja um modo de
individualizar na obra caracteres que pertencem a outros contextos, ao mesmo tempo em que
suaviza a falta de originalidade e se desculpa por isso, através de elementos cômicos, como se
os próprios personagens estivessem cientes que são deformações de outros personagens.
Na contracapa do primeiro volume da versão americana de Dragon Ball, Toriyama
aborda a versatilidade da história de Dragon Ball para se adequar aos seus interesses, dada a
liberdade com que trata suas referências básicas:
O cenário de Dragon Ball tem uma espécie de atmosfera chinesa, mas não é
necessariamente a China. Exatamente onde ele acontece é incerto. A história em
geral é muito simples, mas eu gostaria de continuar criando mais detalhes e
ilustrações à medida que eu prossigo. Dessa forma, eu posso desenhar qualquer
coisa que eu quiser e aproveitar a tensão e excitação de descobrir o que eu vou
desenhar em seguida (TORIYAMA, 2006)21.
Sobre o modo como a cultura de massa se relaciona com suas referências, Umberto
Eco (2011) pontua, por exemplo, que uma das características da cultura de massa é “pegar
emprestados” elementos da vanguarda artística por sua funcionalidade. Principalmente se
considerarmos que Dragon Ball emprega elementos da alta cultura (o clássico Jornada ao
Oeste, por exemplo) apenas em sua dimensão estética, ignorando o conteúdo, bem como o já
estudado uso do enquadramento cinemático nos quadrinhos22 a análise de Eco é precisa
quando este diz que o kitsch se apresenta como gozo de efeitos sentimentais revestidos de
experiência estética, e que “o Kitsch renova-se e prospera justamente tirando um contínuo
proveito das descobertas da vanguarda” (ECO, 2011, p. 79-80). Característica da qual One
Piece, mangá sobre o qual passaremos a falar, não se distancia.
21
Tradução livre de: The setting of Dragon Ball has a sort of Chinese feel to it, but it’s not necessarily China.
Exactly where it takes place is uncertain. The Overall story is very simple, but I’d like to keep making up more
details and illustrations as I go along. This way, I can draw anything I want to and enjoy the tension and
excitement of figuring out what I’ll draw next.
22
Através da leitura de “Steve Canyon”, popular tira de jornal americana no final dos anos 40, Umberto Eco faz
um estudo pormenorizado da linguagem das estórias em quadrinhos no terceiro capítulo de “Apocalípticos e
Integrados”, já referenciado neste trabalho.
44
One Piece é escrito e ilustrado por Eiichiro Oda (1975-), fã declarado de Akira
Toryiama23, o que já deixa implícito algumas influências de Toryiama sobre sua obra. Já
citado neste trabalho como o mangá mais vendido de todos os tempos, One Piece estreou na
revista Weekly Shonen Jump em dezembro de 1997 e continua em publicação, contando com
mais de 800 capítulos compilados em 81 volumes. Uma adaptação para a televisão foi
produzida pela Toei Animation e estreou no Japão em 1999. Atualmente, o animê já conta
com mais de 700 episódios. One Piece conta também com 13 filmes lançados e dezenas de
jogos eletrônicos, além dos tradicionais e altamente lucrativos merchandisings que seguem
todo mangá de sucesso.
A série de mangá foi publicada no Brasil primeiramente pela Conrad Editora entre
2002 e 2008, sendo descontinuada na edição de número 70, porém voltou a ser publicada pela
Panini em 2012 e já conta com 110 edições licenciadas. Comparativamente com Dragon Ball,
a versão animada de One Piece obteve pouco êxito na TV aberta brasileira, tendo apenas sua
primeira temporada (com 54 episódios) exibida brevemente pelo SBT.
Este fato pode encontrar explicação em dois fatores sui generis: a geração anterior de
franquias japonesas havia feito sucesso no Brasil primeiramente através das animações, visto
que na época não havia no Brasil mercado editorial para os mangás que tornasse viável a
tradução e distribuição desses títulos a nível nacional. Conforme exposto anteriormente, os
animês criaram a demanda pelos mangás, de modo que o mercado editorial afunilava o
público do pop japonês no Brasil. Basicamente, aqueles que já eram fãs dos títulos através das
animações é que compravam os mangás. Com One Piece, aconteceu o contrário: surgiu num
momento em que já havia esse mercado editorial no Brasil, de forma que o mangá foi
publicado antes do animê e acabou sendo, nesse primeiro momento, uma obra para iniciados,
ao contrário de Dragon Ball, por exemplo.
Outro fator é que a versão exibida na TV brasileira é a versão americana do animê,
produzida pela empresa americana 4kids Entertainment. Essa versão é famigerada entre a
23
https://one-piecex.com.br/primeira-entrevista-do-oda/. Primeira entrevista de Oda como mangaka, traduzida e
comentada por fãs. Em certo ponto ele comenta como o estilo de desenhar de Toryiama influenciou o seu.
Acessa em 18/05/2016.
https://www.kamisama.com.br/?p=68. Entrevista concedida por Oda e Toryiama, autores de One Piece e Dragon
Ball respectivamente, em forma de diálogo. Oda se refere ao autor de Dragon Ball como “um deus” quando
perguntado como se sente em relação ao seu interlocutor. Acessa em 18/05/2016.
45
fandom24 de One Piece no Brasil por conter censuras significativas em relação à versão
original, cortes e alterações de diálogos, em uma tentativa de adequar o produto aos padrões
norte-americanos (trabalharemos melhor a questão da censura num tópico posterior). Além de
não ter conseguido boa aceitação pela fandom, o americanizado animê foi exibido a partir de
2008 na TV aberta brasileira, momento em que os programas infantis já se encontravam em
franca decadência, sendo substituídos por programas de variedades, e também quando a
internet já se mostrava uma ferramenta muito mais eficaz para a propagação do pop japonês.
Uma característica importante de One Piece, é que ele surge num momento em que os
mangás shonen apresentam, de forma geral, a mesma estrutura, seguindo os clichês
identificados como responsáveis pelo sucesso de seus antecessores. Como já foi pontuado,
não se pode subestimar a importância da visão mercadológica das editoras. Dessa forma, tanto
em forma como em conteúdo os shonen são bastante parecidos, visto que são produzidos para
o mesmo público, e agraciam os mesmos valores escolhidos por este público como os mais
importantes. O que mais diferencia os shonen é sua temática principal.
Cada título se passa em um mundo especialmente desenhado tendo em vista sua
temática. No caso de One Piece, a temática principal é a pirataria, de modo que o universo da
história é um universo marítimo e que faz referência à realidade da era dos “descobrimentos”,
cheio de mares inexplorados e povos desconhecidos. Em One Piece mesmo os maiores países
não passam de ilhas, muitas das quais baseadas em países reais, e o único continente é uma
fina linha de terra que circunda o planeta verticalmente, a “Red Line”. O mundo é dividido
em quatro Oceanos, marcando os quatro pontos cardeais, e tem no seu centro a Grande Rota,
o maior e mais perigoso Oceano do mundo, para onde todas as aventuras convergem. É um
universo naturalmente possuidor de grande capacidade de expansão, o que em parte explica a
longevidade da série. Porém, One Piece, como muitos outros títulos, segue a deixa de Dragon
Ball, misturando diferentes temáticas àquela central. Temas futuristas, mitológicos,
sobrenaturais e mesmo referências ao mundo real abundam em One Piece.
O enredo segue a tripulação dos “chapéus de palha”, cujo capitão, Monkey D. Luffy,
sonha em ser o “Rei dos Piratas” após ter se maravilhado quando criança com o senso de
liberdade e companheirismo de seu mentor, Shanks O Ruivo, um pirata que sacrificou seu
braço direito para salvar a vida do protagonista. O título de Rei dos Piratas será concedido
àquele que consegue chegar ao fim da Grande Rota e se apoderar do grande tesouro, o One
Piece, escondido ali por Gol D Roger, Rei dos Piratas anterior.
24
Termo de origem inglesa utilizado para caracterizar uma comunidade de fãs de um determinado produto
midiático.
46
Figura 5: Os chapéus de palha. A amizade e as ambições, ou sonhos, aparecem sempre como valor supremo nos
shonen.
Fonte: http://images2.wikia.nocookie.net/__cb20110210034323/onepiece/pt/images/7/76/Strawhatse.jpg25
Em One Piece, o poder político aparece muito bem retratado, o que não é tão comum
se tratando de shonens. Há um único governo central, o “Governo Mundial”, formado por
uma coligação de países e liderado por uma pequena elite de nobres, os “Tenryuubito”
(Dragões Celestiais), descendentes das famílias reais dos países que formaram o Governo
Mundial, e pelos “Gorousei”, um pequeno conselho composto por cinco homens. Os Gorousei
25
Acesso em 19/05/2016.
47
comandam a Marinha, que corresponde ao poder militar no mundo de One Piece. A marinha é
a principal antagonista dos piratas e coloca recompensas por suas cabeças. O Governo
Mundial também se utiliza de corsários, os “Shichibukai”, sete famosos piratas que passaram
a trabalhar para o Governo em troca de carta branca para suas ações. É informado na série que
o poder do mundo é equilibrado entre o Governo Mundial, os Shicibukai e os Yonkou, os
quatro piratas mais poderosos e que dominam o território conhecido como “Novo Mundo”
(Shinsekai), na Grande Rota.
Há também disputas de poder dentro da própria marinha, impulsionadas por diferentes
ideias do que é justiça e de como esta deve ser aplicada. Existem marinheiros que são
implacáveis contra qualquer ato criminoso, existem marinheiros corruptos que abusam de
suas posições e há ainda aqueles que se utilizam qualquer meio em nome da “justiça”. Entre
os piratas também há os que apenas viajam em busca de aventuras e sem prestar qualquer
satisfação ao Governo Mundial, quanto os que se notabilizam pela crueldade. Há ainda na
série um exército revolucionário, que pretende acabar com o injusto Governo Mundial. Esse
exército é liderado por “Monkey D. Dragon”, pai do protagonista, e tratado como “o homem
mais procurado do mundo”.
Figura 6: Os Gorousei, líderes do Governo Mundial de One Piece. Entre eles, um baseado em Mikhail
Gorbatchev, um que lembra a figura de Mahatma Gandhi e um homem atarracado de aparência judia que lembra
Karl Marx, além de outros de aparência europeia.
Fonte: https://one-piecex.com.br/mangas/leitor/594/#326
26
Acesso em 19/05/2016.
48
27
Para uma análise mais aprofundada sobre a crise econômica japonesa dos anos de 1990, ler: TORRES FILHO,
Ernanes Teixeira. A crise da economia japonesa nos anos 90: impactos da bolha especulativa. Revista de
Economia Política, vol. 17, nº 1 (65), janeiro-março/97. São Paulo, 1997.
50
japonesa era a que mais crescia no mundo. A polarização geopolítica, assim como o clima de
otimismo econômico, podem ser vistos nos mangás da época através de suas construções de
mundo: lugares com uma dicotomia bem clara entre bem e mal, onde a política e as ideologias
não aparecem, e a principal tarefa dos heróis, aqui, é defender o mundo das forças do mal. São
ameaças externas que ameaçam um mundo que, sem essas exterioridades instabilizadoras, vai
muito bem. Uma boa ordem instituída contra a ameaça iminente do caos e da destruição.
Por outro lado, os mangás de meados da década de 1990, como One Piece, mesmo
pertencendo ao mesmo gênero de Dragon Ball e tendo o mesmo público-alvo, construíram
seus mundos de forma bastante distinta da geração de mangás anterior. Nessas obras, o
mundo já é visto como um lugar onde diversas forças, grupos e indivíduos, com objetivos
diversos lutam por seus interesses. Agora, os heróis lutam por seus próprios sonhos, e não
mais simplesmente para defender o mundo ou uma ideia abstrata. Ainda existem heróis e
vilões, mas mesmo os vilões não são mais simplesmente “maus”, eles têm ideologias, projetos
próprios de poder e interesses que são mais bem trabalhados. Há um interesse maior em
explicar a origem do mal nos vilões, em justificar suas visões de mundo.
Outra característica interessante da nova geração de mangás é o cuidado em apresentar
maior diversidade humana nos seus personagens, principalmente em questão de gênero. As
mulheres são bem mais numerosas nos mangás shonen mais recentes do que nos da geração
de Dragon Ball. Porém, ainda pode e deve ser problematizada a representação das
personagens femininas nos mangás, que são muito utilizadas como recursos de fan service28
ou apresentadas de forma hiperssexualizada.
Figura 7: figure art da personagem Tashigi, uma oficial da Marinha de One Piece. Exemplo de fan service.
28
Elementos irrelevantes na história, mas que são inseridos como forma de atrair audiência e agradar os fãs,
muitas vezes através de situações com conotação sexual.
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Fonte:https:www.facebook.comonepieceexoficialphotosa.906358949425512.1073741828.906347252760015109
3892277338844type=3&theater29.
Um caso que merece atenção nesse sentido, é em One Piece existir uma ilha habitada
somente por homossexuais e travestis, tratadas todas pela mesma terminologia, “okama”, gíria
japonesa que significa tanto homossexual quanto travesti. Assim como no caso das mulheres,
a retratação é dúbia, se por um lado eles são retratados de maneira extremamente
estereotipada e como recurso cômico, por outro são retratados como pessoas valorosas,
corajosas e que, muitas vezes salvam os protagonistas. A ilha dos okamas é, inclusive, uma
importante aliada do Exército Revolucionário da série na luta para derrubar o Governo
Mundial.
O tema racial também aparece na série através dos “homens-peixe”. Meio humanos e
meio peixes, discriminados, segregados e escravizados pelo Governo Mundial, inicialmente
aparecem como vilões, mas à medida que a história se desenrola somos apresentados às
atrocidades cometidas contra eles e a verdadeira luta de alguns deles para viver em paz com
os humanos e a pura revolta e ódio contra os humanos de outros, causados por séculos de
maus-tratos.
Mais interessante ainda é o fato de parte do fandom de One Piece buscar ressaltar a
mensagem contra o preconceito e os valores humanistas apresentados no mangá. Um exemplo
é a “One Piece Ex”, maior site de One Piece em português que, em apresenta um podcast
sobre o animê e um dos programas, denomidado “quebrando preconceitos em One Piece”30,
tratou exclusivamente dessas temáticas. Muitos dos canais e páginas sobre o animê nas redes
sociais também costumam tratar dessas temáticas sociais e políticas do mangá. Apesar de
todas as implicações negativas da indústria, há ainda um esforço ativo dos fãs de ressaltar o
significado social da obra, para além do mero entretenimento.
29
Acesso em 16/08/2016.
30
Disponível em: https://one-piece-x.com.br/opexcast-46-quebrando-preconceitos-com-one-piece/. Acesso em:
06/03/2017.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
cultura são positivos pois serviram para um alargamento nunca antes visto do campo cultural,
tirando-o do domínio de poucos eruditos e do consumo quase exclusivo das classes altas. De
outro, os “apocalípticos” que dizem que a Indústria Cultural significa o fim da cultura como
bem superior, dotado de valor intelectual e que serve sobretudo como ferramenta da ideologia
dominante (ECO, 2011, p. 8-9).
Creio que não podemos ignorar nenhum dos posicionamentos, e apesar deste trabalho,
por limitações que são próprias de sua natureza, não os abarcar todos, cada um desses
direcionamentos teóricos acabam preenchendo as lacunas um do outro, muito mais que se
contradizendo.
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FONTES
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Routledge, 1991.
______ ; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Trad. Guido Antonio de
Almeida. São Paulo: Zahar, 1985.
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BOSI, Ecléa. Cultura de massa e cultura popular. 13ª ed. Petrópolis: Vozes, 2009.
BRITO, Rebeca. O fenômeno otaku: uma tribo urbana em ascensão. Trabalho de Conclusão
de Curso (Bacharelado em Ciências Sociais). Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
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CARLOS, Giovana S. A cultura pop japonesa no contexto da cibercultura. In: Simpósio
Nacional ABCiber, 3, 2009, São Paulo. Eixo temático “Entretenimento, práticas
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Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora,
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CORREA DE SÁ, Jéssica Rezende; SOCORRO, Juliane Maria Romanini; DEMARCHI, Rita
de Cássia (orientadora). Arte pop, indústria cultural e publicidade: um estudo iniciante sobre
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http://www.mackenzie.br/fileadmin/Graduacao/CCL/Pesquisa_e_Extensao/Arte_Pop_industri
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Acesso em 29/04/2015.
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YAMASHIRO, José. Pequena História do Japão. São Paulo: Editora Herder. 1964.