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RELATOS DE VIAGEM E A IMIGRAÇÃO DE MÉDICOS ITALIANOS:

POSSIBILIDADES DE ESTUDO
Leonor C. B. Schwartsmann
Doutoranda PPG em História PUCRS
leonorschwartsmann@hotmail.com

Resumo: Ricardo D’Elia escreveu um relato de viagem onde narra a sua experiência na
América do Sul no período de 1888 a 1906. Seu relato inicia na sua partida na Itália,
com referências a sua vivência no Uruguai, Argentina e Paraguai. No Brasil, trabalhou
em Cuiabá, Rio Grande e finalmente na colônia de Jaguari, município de São Vicente
(RS). Pode-se identificar a formação de redes sociais e de cadeias migratórias, o
estabelecimento profissional nas diferentes cidades, a presença de competição entre os
médicos italianos, a luta para o reconhecimento social e profissional, as profissões
dentro da mesma família, como medicina e farmácia, a importância das novas
especialidades médicas, a convivência com curandeiros e os chamados médicos
homeopatas, e a ocorrência freqüente de itinerância entre os médicos. No relato é
salientado o imaginário envolvendo a imigração para o Brasil, as políticas de
acolhimento que determinavam as facilidades de recepção do imigrante no Brasil
comparado aos outros países do Prata.
Palavras chaves: relato de viagem- médicos italianos- história da medicina

A literatura de viagem é uma fonte documental para a pesquisa da história da


medicina. O propósito deste artigo é estudar os aspectos de inserção profissional de
médicos italianos contidos no relato de viagem do médico Ricardo D’Elia (1906). Este
médico para a América do Sul em 1888. Seu livro foi escrito após estadia de 18 anos.
Nele está descrito sua itinerância desde a Itália, a sua viagem na Europa, a viagem para
Buenos Aires com escalas no Rio de Janeiro e Montevidéu, os períodos em que esteve
trabalhando em Buenos Aires e Córdoba; em Assunção e Paraguary; em Cuiabá, Rio
Grande, São Vicente e na Colônia de Jaguari.l
Núncia Constantino, em estudos preliminares do relato de D’Elia, constatou, nos
aspectos relacionados à mentalidade do autor, uma preocupação em informar e destacar
as virtudes do Sul do Brasil para a imigração italiana e os seus benefícios, em especial
os encontrados no Rio Grande do Sul, a influência do Positivismo ao associar o trabalho
do imigrante como propulsor do progresso. O médico citado identifica o grande trânsito
de italianos por essas regiões, dá conselhos a quem quer emigrar e ressalta a
oportunidade que o Rio Grande do Sul oferecia aos estrangeiros.(1993, p. 42-45) Foi
também notado que o texto é permeado por uma visão colonialista, eurocêntrica, como
aquela demonstrada na saudação proferida pelo médico, ao novo agente consular
italiano da cidade de Rio Grande. D’Elia destacou a grandeza da pátria italiana,
lembrando que “... a Itália havia dominado o mundo com a espada, havia dominado o
mundo com a cruz cristã, e agora estava dominando com a corrente imigratória, que
muito concorre para o progresso e a civilização dos povos. (SCHWARTSMANN, 2008,
p. 145)
Na metodologia utilizada neste artigo, foi empregada a análise textual discursiva
do material constante no relato a partir de uma extensa revisão bibliográfica. Segundo
Roque Moraes e Maria do Carmo Galiazzi, esta análise é um processo repetitivo de
escrita e que tem como objetivo a construção de metatextos a partir de categorias e
subcategorias resultantes da análise. Desta maneira, os metatextos representam “um modo
de teorização sobre os fenômenos investigados.” (2007, p. 32)
Na análise do paradigma indiciário, indícios fornecem a chave para alcançar
generalizações mais amplas. Pistas infinitesimais permitem captar uma realidade mais
profunda, de outra forma inatingível.(GINZBURG, 1989, p. 145-149) Acreditamos que
a partir do estudo do relato deste médico, rico em informações, pode-se chegar a
regularidades, aos sinais comuns, aos condicionamentos culturais e sociais destes
indivíduos que representam uma coletividade.
Os objetivos deste trabalho são, a partir e de uma analisa textual do relato:
avaliar como se desenvolvia o trabalho de médicos italianos em diferentes cidades do
cone sul; como eram formadas as redes sociais que facilitaram a inserção destes
profissionais, que fatores determinaram o seu reconhecimento social e profissional,
como se deu o seu estabelecimento profissional nas diferentes cidades. Desta maneira, a
pesquisa pode contribuir para preencher lacunas relativas ao fenômeno imigratório de
profissionais liberais, às características decorrentes da presença de médicos italianos
nesta região, em especial no sul do Brasil, em um momento de especialização e de
reconhecimento da profissão médica.
Características do relato de viagem
O texto de D’Elia apresenta as características de um relato alegórico, em que a
viagem é um pretexto escolhido pelo autor para expressar as suas opiniões. As suas
observações são subordinadas a um desígnio preconcebido que aquelas estão destinadas
a ilustrar, ou seja, apresentar a real situação social que ele viveu na América Latina.
(TODOROV, 1993, p. 98-99)
Sabe-se que os viajantes que percorreram as terras da América do Sul, através de
suas cartas, diários, crônicas, inventários, descrições, possibilitaram diferentes leituras
sobre a época em que foram escritos. Eles interpretaram a realidade social, econômica e
geográfica e desta maneira contribuíram para a produção de imagens sobre a América,
relativas aos diferentes campos que percorreram. (HEVILLA, 2007, p. 67)
D’Elia se inscreve na tradição dos viajantes que tecem uma visão otimista a
cerca das possibilidades de sucesso nos países da América do Sul. Para o emigrante, a
eleição de abandonar o lugar de origem para elevar o seu status econômico, social e
cultural é também o fruto da elaboração, no plano imaginário, de uma série de
estereótipos que atribuem à América o valor utópico de “Terra das Possibilidades”.
Desta maneira, a sua decisão de emigrar deve ser lida como uma eleição pessoal que
respondeu a exigências vinculadas com um projeto individual. (CATARULLA, 1999, p.
115)
As duas razões que o médico destacou para deixar a Itália são explicitadas: a
procura de felicidade e de fortuna. (D’ELIA, 1906, p. 145) No plano profissional, uma
razão para vir para a América foi poder atuar na profissão, executar honrosamente a sua
profissão e receber compensação. (p. 24) Suas expectativas são fundadas na constatação
da necessidade de médicos que encontrou na Argentina, no Paraguai e finalmente no
Brasil. Enfatiza a ausência de médicos no Brasil, nas pequenas cidades do interior do
RS e a possibilidade de seu trabalho ser reconhecido financeiramente. (p. 161)
Seu livro é dedicado ao emigrante que deseja conhecer a vida real na América
do Sul. Conforme o médico, as informações contidas no livro são ”um inventário do
imaginário, uma meditação sobre o passado, um misterioso domínio do pensamento e
da recordação, projetos abolidos, sonhos extintos, planos abatidos, experiências
desiludidas”. (p. 9) Assim, seu relato de viagem não deixa de apresentar em seu conteúdo
as características de autobiografia. Camilla Catarulla, ao estudar autobiografias de
imigrantes italianos observou que a versão privada que contém essas autobiografias
permite uma melhor compreensão das condições de vida na Itália que determinaram o
horizonte de expectativa com respeito àquela nação, das dificuldades na passagem de um
sistema conhecido a outro, das dinâmicas sociais que contribuíram para a integração ou
para a assimilação. Neste sentido, o ponto de vista do imigrante resulta como modelo de
uma classe social que viveu idênticas aspirações e conflitos. (1999, p. 117)
Os relatos de viagem escritos por médicos, desta maneira, se constituem em
possibilidades de pesquisa para a compreensão histórica dos processos de conformação
da profissão médica e podem ser considerados como dispositivos. Para Hortênsia
Castro, os relatos de viagem são registros da realidade dotados de perspectiva. Eles são
como filtros, ou seja, como dispositivos que selecionam e descrevem, sob
determinadas estratégias, certos elementos das áreas percorridas e relevadas;
também, como lentes, ou seja, dispositivos que definem para outros (os
destinatários ou leitores em geral do relato) o quê e como olhar. ( 2007, p.
94-95)

As cadeias migratórias e a inserção dos médicos


O estudo do relato de D’Elia é uma oportunidade para se conhecer como ocorria
a inserção profissional de médicos na Argentina, Paraguai e Brasil. Através da leitura do
relato, nota-se uma descrição detalhada de como ocorreu este fato, na sua itinerância por
estes países. Sua viagem inicia-se na Itália, na companhia de membros diretos de sua
família nuclear e de parentes, como o irmão (prático de farmácia) e cunhados. Vê-se que
seus deslocamentos foram sempre feitos baseados em informações prévias, ou seja,
havia um plano predeterminado de deslocamento que procurava melhores condições de
sucesso profissional. Constata-se que o médico estava impregnado de informações
oferecidas por compatriotas e por membros de seu paese (ou adjacências) que viviam
nestes países.
As características observadas na composição familiar do grupo que está se
deslocando com D’Elia corrobora o constatado por Devoto. Segundo este autor, os
imigrantes europeus que se deslocaram para o Rio da Prata tinham uma perspectiva
maior de permanência, estavam compostos de maior quantidade de famílias e por
pessoas de maior qualificação profissional. Considera que havia a perspectiva de
empregos mais estáveis na Argentina ao serem comparados com aqueles disponíveis no
Brasil, ao mesmo tempo que o elevado custo das passagens, associado com uma
duração mais longa da travessia, reduziriam os benefícios mais imediatos. (2004, p. 75)
A formação de uma cadeia migratória explica a posse dos conhecimentos
necessários para os deslocamentos migratórios. Segundo L. Mac Donald, esta é definida
como “o movimento em que os futuros migrantes se informam sobre as oportunidades,
são providos de transporte e obtém seus alojamentos e empregos iniciais, através de
relações sociais primárias com imigrantes anteriores. (MAC DONALD apud DEVOTO,
2004, p. 122)
Conforme Devoto, as cadeias migratórias repartidas em um espaço territorial
possuem um caráter de aldeia ou micro regional maior que aquele familiar ou de
parentela. Este fator decorre de “uma revalorização da “comunidade”, como campo de
interação social, desde um ponto de vista conceitual e heurístico”. A aldeia é projetada
como o espaço social da cadeia migratória, em um deslocamento no qual ocorre a rede
de relações primária. Nela, são oferecidos um espírito paroquial, uma comunidade e
uma solidariedade. A aldeia é vista, desta maneira, como um lugar de pertencimento, a
pátria, o centro de experiências e de transmissão de mitos identitários. (2004, p. 127)
Devoto conclui que as cadeias migratórias podem ser vistas como pontes que conectam
redes sociais e que constroem um novo espaço de interação, de informação e de
oportunidades. (p. 144)
D’Elia tinha conhecimento antecipado sobre as possibilidades de trabalho que
teria pela frente em seus deslocamentos. Aliás, sempre procura explicar como vai
acontecendo seus contatos, as características das informações obtidas e as razões que
definiram estes contatos. Cita de que forma conhecia os informantes, para enfatizar a
credibilidade e não a simples possessão destas informações. Salienta que era filho do
prefeito de seu paese e que os compatriotas tinham obrigações decorrentes deste fato
como quando encontra o vigário de Paraguary (Paraguai). Muitos destes informantes
tinham sido colegas de escola ou de faculdade. Através destas informações, pressupõe-
se que a imigração de pessoas de seu paese foi muito grande e que os laços de amizade
ou de obrigação persistiram nos países da América do Sul. Este excesso de informação
relativo a possibilidades de imigração é uma característica do período da imigração de
massas o que torna os imigrantes mais inteirados das oportunidades existentes,
diferentemente dos recursos oferecidos pela família nuclear ou por outras formas de
patrocínio. (DEVOTO, 2004, p. 140-143)

Uma longa viagem


D’Elia viaja para a América com sua mulher Carlota, a filha Maria, seu primo
Leonardo Tarauto e mulher deste. Oportunamente, seu irmão junta-se a eles. Desde o
início de sua viagem, ainda na Europa, D’Elia descreve o encontro com pessoas
provenientes de seu paese, colegas de profissão e antigas relações que também estão se
deslocando. Nota-se que o autor relata as diferentes notícias que recebe a cerca da
viagem para a Argentina comparando-as com aquelas que recebe para se estabelecer no
Brasil.
Suas angústias em relação à viagem podem ser notadas pela descrição do sonho
que teve ainda em seu deslocamento na Europa, no momento em que decidiu emigrar
para a América do Sul. Sonhou que estava numa selva caçando tigres quando caiu num
precipício cheio de serpentes e miasmas pestilentos. No sonho os seus amigos riem e
criticam a sua decisão de partir para América. (D’ELIA, 1906, p. 21) Conforme Peter
Burke, o conteúdo latente do sonho poderia estar configurado em parte pela cultura do
indivíduo. Desta maneira, os sonhos podem dizer algo sobre o indivíduo e sua cultura,
uma vez que referem-se às tensões, às angústias e aos conflitos vividos pelo indivíduo
que sonha. (1999, p. 46-47)
Também relacionado ao imaginário da imigração, há o conteúdo da carta que
recebe do pai, quando D’Elia já se encontra no Brasil, o exortando a partir deste país
imediatamente. Seu pai considerava ser o Brasil uma terra pestilenta de febre amarela e
de outras epidemias de alto contagio; seus habitantes eram gente selvagem, que
perseguia e que escravizava todos os estrangeiros. (1906, p. 119)
No trajeto de viagem ainda na Europa, no trem ou em navios, ou nas escalas em
terra nas cidades de Nápoles e Barcelona, há menções às pessoas conhecidas que vai
revendo, sendo que muitas delas estão também em processo de emigração. Encontra-se
com um amigo farmaceûtico e ex-dono de farmácia, em Nápoles, que também estava de
partida para a América. Há, também, uma descrição carregada de ironia acerca de uma
antiga conhecida do período em que estudava nesta cidade. Conta-lhe que estava de
partida para a América. Ela demonstra tristeza e, na sequência, retira-se do vagão de
trem sem se despedir, o que o deixa atônito. Tempos depois, ele é participado de sua
morte em decorrência de tuberculose no Hospital Gesù e Maria de Nápoles, e que seu
corpo foi utilizado em sessões de anatomia patológica para os mesmos alunos de
medicina que, antes, ela tinha compartilhado em momentos de alegria e de regozijo. (p.
22)
Esta visão irônica do exercício da medicina é repetida em suas anotações quando
participa de uma aula de medicina na qual o professor, de maneira teatral, discute o
trágico prognóstico de um paciente mordido por um cão raivoso, defronte ao mesmo em
Córdoba, na Argentina. A descrição da sessão é longa e é salientada a trágica postura
adquirida pelo paciente, que, solitário, parece estar sendo condenado à morte.
Na escala no Rio de Janeiro, depara-se com outro conhecido, Antonio Bruno, de
Acri, engenheiro que está residindo nesta cidade com a mulher e duas filhas. Este casal
insiste para que ele e seus familiares fiquem no Brasil, pois acreditam que as chances de
sucesso são maiores que as existentes na Argentina. Entre estas, D’Elia é informado que
os brasileiros são mais generosos e afetuosos que os Argentinos e que existe uma
proteção das autoridades brasileiras referente aos imigrantes. As razões pelas quais
descarta a possibilidade de ficar no Brasil são as notícias que tem sobre a incidência da
febre amarela, doença que causa muita mortalidade entre os estrangeiros e que não
poupa os médicos. Além disso, tinha um parente morando em Buenos Aires que o
esperava, e 2000 habitantes de seu paese. (p. 63)
Em Buenos Aires, a família é recebida pelo parente Francesco Arcidiacono. As
informações contidas no relato ajudam a compreender como se dava a recepção dos
médios italianos e como ocorria a sua inserção profissional. Arcidiacono quer ajudá-lo a
se estabelecer como médico:
tu és meu parente, e eu devo ajudar-te até que tu possas praticar a tua
profissão; assim, a minha carteira e a minha casa estão a tua disposição, sem
necessidade de vender as tuas jóias.
Estes três meses que faltam para o parto de tua mulher vocês passarão em
nossa casa. Tu, entretanto, estudarás bem a língua espanhola, iniciarás as tuas
relações de amizade e com a concessão temporária do inspetor de higiene,
que é muito meu amigo, farás algumas visitas médicas. Após o parto de tua
mulher, irás para Córdoba e lá tu farás os exames de revalidação. (p. 76)
D’Elia parte para Córdoba, para prestar os exames. Lá, ele trabalha como
assistente em um antigo hospital da cidade, enquanto se prepara para o exame de
revalidação do diploma de medicina. (p. 82)
Em Córdoba, encontrou-se com outro compatriota que morava em Assunção, no
Paraguai. Este era farmacêutico e o convidou para morar nesta cidade devido às
facilidades para obter clientela. (p. 91) Ao chegar na capital, encontrou-se com Carlo
Pepe, seu colega de Faculdade de Medicina, em Nápoles, que era membro da comissão
examinadora dos médicos estrangeiros. Este o recebeu com muita frieza e tentou
obstaculizar o seu estabelecimento neste país. D’Elia critica a formação de Carlo Pepe,
pois este não possuía nenhuma especialização, além da licença médica. D’Elia aceita
fazer um acordo que o permite trabalhar fora de Assunção, e se dirige para uma pequena
vila chamada Pararguary, no interior do país. (p. 97)
Importante salientar que não há informação precisa sobre a especialização
médica de D’Elia. Sabe-se de seu interesse pela microbiologia, como a sua experiência
foi utilizada na prevenção da varíola, e a descrição de alguns acompanhamentos clínicos
e de cirúrgicos. Nota-se que o período estudado é o mesmo onde já se estavam
desenvolvendo as grandes especialidades médicas. No final do século XIX, a ciência
médica apresentava uma crescente especialização causada pela impossibilidade de se
dominar todo o seu conteúdo. (WEISZ, 2006, p. xii)
Retornando a Paraguary, esta pequena cidade não tinha outros médicos e
farmacêuticos. Sentiu-se protegido pelo vigário, padre Trufari, que era do mesmo paese
e que devia favores a seu pai. (D’ELIA, 1906, p. 18) O médico passou 18 meses na
miséria neste vilarejo onde foi constante a competição com os curandeiros e a
interferência dos padres nos assuntos de saúde. Seus apontamentos exemplificam a
dificuldade de seu trabalho ser reconhecido no momento de receber seus honorários. A
participação negativa dos padres jesuítas foi salientada por estes não estimularem os
doentes a procurarem tratamento médico ao mesmo tempo que faziam grandes e
dispendiosos funerais. (p. 100)
Há um comentário sobre este aspecto que ocorre no pequeno vilarejo do
Paraguary, referente ao exercício da medicina por pessoas não habilitadas
profissionalmente e que são valorizadas em suas comunidades.
No Paraguary existem uma infinidade de curanderos (charlatães) que se
contentam de fazer uma visita em troca de um cigarro ou de um copo de
bebida: não conhecem nenhum medicamento e por isto dão ao acaso ervas
do campo. Eles são procurados até pelos médicos porque falam o guarani, e
se entendem com maior facilidade naqueles locais, a campanha, onde a
maior parte dos habitantes fala somente a língua guarani.
Não são procurados somente pelo povo, mas também pelos homens que
ocupam os mais altos cargos; o exemplo mais evidente que eu observei foi
com o Presidente da República Gonçales, que tendo sua esposa enferma
mandou chamar a médica de Taquaral, senhora totalmente analfabeta e que
curava somente com benzeduras. (p. 99)

O médico retorna para Assunção onde ficou trabalhando pelo período de seis
meses. Decidiu partir para o Mato Grosso pois considerava-se insatisfeito devido a
pouca receptividade que tivera na sociedade local e pela competição com os outros
médicos ali estabelecidos. Apoiou-se nos contatos prévios que tivera com italianos
residentes neste estado brasileiro e que se consultavam em Assunção. Os compatriotas o
exortaram a se estabelecer em Cuiabá. Lá, segundo suas palavras, ele seria estimado,
apreciado e faria fortuna. (p. 105) Sabia da existência de um farmacêutico que estava
doente e que pouco tempo depois veio a falecer, nesta cidade. Aproveitou a
oportunidade para comprar a farmácia para o seu irmão de 16 anos, prático de farmácia,
que viera recentemente da Itália juntamente com um cunhado. Nesta cidade, foi
estimado tanto por italianos como brasileiros e teve uma boa clientela e rede de
amizades. (p. 110) Sabendo de sua predileção e experiência nos estudos bacteriológicos,
o governo deste estado o encaminhou novamente para Assunção, para aprofundar seus
conhecimentos na produção de vacinas contra a varíola. (p.133)
Decide mudar-se para Rio Grande (RS), em 1901. Não é explicada a razão desta
escolha, mas sabe-se que ficou em torno de um ano nesta cidade. Seus escritos
constatam que era muito grande o número de italianos residentes, porém não havia
nenhum médico italiano trabalhando ali. Orgulhoso, informa que foi convidado para ser
agente consular nesta cidade, cargo que não aceitou. No período em que esteve nesta
cidade foi envolvido nas consequências de um crime, não bem esclarecido, que
acontecera no Mato Grosso. (p. 145) Morou em Rio Grande até 1902, quando decide
conhecer Bagé para se inteirar de possibilidade de clinicar nesta cidade.
Em Bagé, o médico é recebido pelo agente consular, o senhor Cerone que era
natural de Morano Calabro, distante 4 milhas de seu paese, e que conhecia Cassano e a
sua família. Entre as várias pessoas importantes que este apresentou-lhe estava o
italiano Ferdinando Martino, que era intitulado de médico homeopático. (p. 146) Esta
mesma pessoa é quem lhe providencia a carta de apresentação necessária para ter
entrevista com o médico Fernando Abott, vice-presidente do Estado, relacionada à
possibilidade de trabalho na região. D’Elia considera que Martino, filho de funileiro e
que tinha imigrado para o Brasil com 14 anos, era uma pessoa autodidata e que se
utilizava de livros de medicina para trabalhar e atender aos pobres. Devido aos
conhecimentos adquiridos na vida prática, se estabeleceu como farmacêutico e possuía
uma farmácia muito respeitada nesta cidade. O médico descreve como ocorreu a
formação deste indivíduo para prestar atendimento às pessoas.
Estimulado por uma grande vontade de instruir-se, começou a freqüentar
uma escola noturna, e ao estar na campanha lia e aprendia durante o
caminho. Frequentemente, acontecia que ao entrar em um casebre, distante
muitas léguas de um paese, encontrava-se com um pobre doente, que, por
falta de médico e de remédios, estava pouco a pouco morrendo. Entretanto,
ele viu a necessidade de dar um consolo a estes abandonados pela sorte.
Munido de um dos vários manuais de homeopatia que infestavam o Brasil e
de uma pequena ambulância, socorria aqueles miseráveis, se não fisicamente,
pelo menos moralmente, porque se acontecesse de alguns morrerem, os
familiares tinham pelo menos o consolo de que seus entes queridos haviam
recebido uma assistência médica na hora da morte. (p. 145-146)

D’Elia manteve uma atitude pragmática em seu relato em relação a esta situação.
Para Heller, “a unidade de pensamento e ação implica na inexistência de diferença entre
“correto” e “verdadeiro” na cotidianidade; o correto é também “verdadeiro”. E,
acrescenta, que os juízos e pensamentos objetivamente menos verdadeiros podem
resultar corretos na atividade social, quando representarem os interesses da camada ou
classe a que pertence o indivíduo, o que facilita sua orientação ou ação em resposta às
exigências cotidianas destas. (HELLER, 2004, p. 32)
Ao visitar o médico Fernando Abott, em São Gabriel, este insistiu que
estabelecesse nesta cidade. Ficou um mês ali e o acompanhou nas visitas aos seus
pacientes. Abott lhe deu “cartas de recomendação para todos os lugares do Estado do
Rio Grande do Sul”. (D’ELIA, 1906, p. 150)
Duas destas cartas eram direcionadas ao intendente do município de São Vicente
e para o diretor da Colônia de Jaguari, pertencente a este município e composta em sua
maioria por colonos italianos.
Relata que a notícia de sua chegada foi recebida como um acontecimento nestas
duas localidades e aproveitou para discorrer sobre a socialização desenvolvida com o
tabelião, o diretor da colônia e o vigário. Salienta as semelhanças encontradas no hotel
em São Vicente com os pequenos vilarejos da Itália, onde as pessoas mais influentes
jogavam e conversavam sobre as últimas notícias.
Este fato me trouxe a mente os costumes das pequenas aldeias da Itália, onde
o intendente, o secretário, o médico condotto, o farmacêutico, o ferreiro, o
barbeiro e o vigário se reuniam todos os dias na farmácia para comentar,
entre outras coisas, os acontecimentos políticos, que o farmacêutico leu em
algum jornal velho usado para embalar alguns remédios. (p.150)

É oferecido um quadro de como se dava os atendimentos médicos


acompanhados por D’Elia. Há a descrição da distância que necessitava percorrer para
encontrar os pacientes que compreendiam a distância de 5 léguas feitas à cavalo ou em
carroça, os acordos monetários relativos aos serviços prestados que eram feitos
previamente ao deslocamento, o tempo de espera nas casas dos doentes até a melhoria
do estado clínico do paciente, a convivência com o pessoal local até o retorno a sua
residência na Colônia de Jaguari ou em São Vicente. Aproveita para discorrer sobre
aspectos geográficos da viagem e as dificuldades da acarretava a estadia até de uma
semana na residência dos seus pacientes.
Um dos casos que visita é de um paciente, Piccuro Frotta, que vivia distante 11
léguas de Jaguari, próximo a localidade de Santiago do Boqueirão. O acordo do
pagamento, estipulado em 1 conto de réis, permitia que ele visitasse outros pacientes na
mesma viagem. No dia da partida, ele tomou sua carruagem com cocheiro e foi
acompanhado pelo encarregado que veio chamá-lo, mais um empregado que, conforme
a descrição era negro e que trazia também um cavalo para troca. O paciente tinha lesões
sifilíticas e apresentava um “excitamento nervoso”, que no seu diagnóstico, não era uma
conseqüência da doença infecciosa. Em dois dias, o paciente estava apresentando
melhores condições e D’Elia pode retornar a Jaguari. Na volta, em Santiago do
Boqueirão, foi procurado por várias pessoas e conseguiu auferir 500 mil réis de
honorários, em dois dias de consultas. (p. 161)
O outro caso que discorre, é sobre um paciente em estado gravíssimo que
apresentava tuberculose intestinal (sic). Os familiares solicitaram uma entrevista com
D’Elia juntamente com a opinião do doutor Fernando Abott. O último foi contatado por
telegrama por residir em São Gabriel e, chegando no dia seguinte, permaneceu durante
oito dias na cidade para acompanhar o caso. Não se sabe o que aconteceu com o
paciente ou o sucesso do tratamento. Há, no entanto, a descrição de várias solenidades
que incluíram jantares e bailes para recepcionar o ilustre personagem. (p. 158)
D’Elia é convidado para ir com o amigo, o advogado Pelagio de São Vicente,
visitar Porto Alegre. Nesta cidade é recebido pelo Presidente do Estado, Borges de
Medeiros. Conforme D’Elia, Pelagio intercedera para que ele recebesse um cargo na
Diretoria de Higiene. Borges de Medeiros gentilmente respondera que os cargos
públicos eram acessíveis somente aos cidadãos brasileiros. (p. 165)
Durante a estadia nesta capital, teve um encontro com o médico Biagio Rocco,
na farmácia de seu irmão Stefano Rocco. Os irmãos eram naturais de Morano Calabro,
sendo que Biagio fora seu colega nos bancos escolares, em Cassano al Ionio. Segundo
as informações recebidas, este médico trabalhava em Porto Alegre há cinco anos, e era
muito requisitado por italianos ou estrangeiros. Receitava diferentes fórmulas magistrais
que eram manipuladas no laboratório farmacêutico de seu irmão, e que tinham grande
aceitação no Rio Grande e fora deste estado. Entre estas, encontravam-se uma emulsão
de óleo de fígado de bacalhau, que recebera medalhas de ouro e de prata em diversas
exposições, e, também, outras especialidades que eram vendidas em grande escala. (p.
172- 173)
Foram várias as entradas no livro que ligam a profissão médica com a do
farmacêutico. Sabe-se que as atividades dos farmacêuticos estavam diretamente
associadas à prática médica. No início do século XX, segundo Edler, as farmácias
preparavam receitas solicitadas pelos médicos, fabricavam elixires, vinhos e licores
reconstituintes, pomadas e produtos de beleza, analgésicos à base de cocaína e de outros
componentes químicos, sais de quinino, morfina e produtos injetáveis. A clientela das
farmácias era eclética, composta por clientes dos médicos com receitas a serem aviadas,
clientes dos diversos agentes de saúde externos à Medicina oficial, pacientes que se
automedicavam ou que seguiam orientação terapêutica do farmacêutico. (EDLER, 2006,
p. 94-97)
D’Elia identifica um período da farmácia que se encontra em transformação, o
qual antecede à produção de medicamentos por outros farmacêuticos ou companhias
farmacêuticas, e às conseqüentes modificações nas suas formas de distribuição e de
comercialização que ocorrem no final do século XIX. A produção destes novos
compostos requeria conhecimentos específicos, demandava laboratórios e instrumentos
mais sofisticados. Até então a Medicina englobava um número pequeno de
medicamentos eficazes contra um número reduzido de doenças e uma grande
quantidade de misturas de efeito duvidoso.

Considerações finais
No final do século XIX e início do XX, há um intenso deslocamento de médicos
italianos que atinge o Rio Grande do Sul, e que inclui outros países da América do Sul.
Estes médicos procuravam melhores condições de trabalho caracterizando uma
itinerância profissional, ao mesmo tempo em que colaboraram com o aporte de
especialidades médicas. Alguns, como Ricardo D’Elia e Giovanni Palombini, deixaram
relatos de viagem que ao serem analisados, nos permitem, através de indícios, conhecer
melhor como eram as características do campo médico do período. O conhecimento das
redes sociais e, principalmente, das cadeias migratórias auxilia no entendimento de
como se processou a recepção de D’Elia e sua inserção profissional nos diferentes
centros urbanos.

Bibliografia
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