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POSSIBILIDADES DE ESTUDO
Leonor C. B. Schwartsmann
Doutoranda PPG em História PUCRS
leonorschwartsmann@hotmail.com
Resumo: Ricardo D’Elia escreveu um relato de viagem onde narra a sua experiência na
América do Sul no período de 1888 a 1906. Seu relato inicia na sua partida na Itália,
com referências a sua vivência no Uruguai, Argentina e Paraguai. No Brasil, trabalhou
em Cuiabá, Rio Grande e finalmente na colônia de Jaguari, município de São Vicente
(RS). Pode-se identificar a formação de redes sociais e de cadeias migratórias, o
estabelecimento profissional nas diferentes cidades, a presença de competição entre os
médicos italianos, a luta para o reconhecimento social e profissional, as profissões
dentro da mesma família, como medicina e farmácia, a importância das novas
especialidades médicas, a convivência com curandeiros e os chamados médicos
homeopatas, e a ocorrência freqüente de itinerância entre os médicos. No relato é
salientado o imaginário envolvendo a imigração para o Brasil, as políticas de
acolhimento que determinavam as facilidades de recepção do imigrante no Brasil
comparado aos outros países do Prata.
Palavras chaves: relato de viagem- médicos italianos- história da medicina
O médico retorna para Assunção onde ficou trabalhando pelo período de seis
meses. Decidiu partir para o Mato Grosso pois considerava-se insatisfeito devido a
pouca receptividade que tivera na sociedade local e pela competição com os outros
médicos ali estabelecidos. Apoiou-se nos contatos prévios que tivera com italianos
residentes neste estado brasileiro e que se consultavam em Assunção. Os compatriotas o
exortaram a se estabelecer em Cuiabá. Lá, segundo suas palavras, ele seria estimado,
apreciado e faria fortuna. (p. 105) Sabia da existência de um farmacêutico que estava
doente e que pouco tempo depois veio a falecer, nesta cidade. Aproveitou a
oportunidade para comprar a farmácia para o seu irmão de 16 anos, prático de farmácia,
que viera recentemente da Itália juntamente com um cunhado. Nesta cidade, foi
estimado tanto por italianos como brasileiros e teve uma boa clientela e rede de
amizades. (p. 110) Sabendo de sua predileção e experiência nos estudos bacteriológicos,
o governo deste estado o encaminhou novamente para Assunção, para aprofundar seus
conhecimentos na produção de vacinas contra a varíola. (p.133)
Decide mudar-se para Rio Grande (RS), em 1901. Não é explicada a razão desta
escolha, mas sabe-se que ficou em torno de um ano nesta cidade. Seus escritos
constatam que era muito grande o número de italianos residentes, porém não havia
nenhum médico italiano trabalhando ali. Orgulhoso, informa que foi convidado para ser
agente consular nesta cidade, cargo que não aceitou. No período em que esteve nesta
cidade foi envolvido nas consequências de um crime, não bem esclarecido, que
acontecera no Mato Grosso. (p. 145) Morou em Rio Grande até 1902, quando decide
conhecer Bagé para se inteirar de possibilidade de clinicar nesta cidade.
Em Bagé, o médico é recebido pelo agente consular, o senhor Cerone que era
natural de Morano Calabro, distante 4 milhas de seu paese, e que conhecia Cassano e a
sua família. Entre as várias pessoas importantes que este apresentou-lhe estava o
italiano Ferdinando Martino, que era intitulado de médico homeopático. (p. 146) Esta
mesma pessoa é quem lhe providencia a carta de apresentação necessária para ter
entrevista com o médico Fernando Abott, vice-presidente do Estado, relacionada à
possibilidade de trabalho na região. D’Elia considera que Martino, filho de funileiro e
que tinha imigrado para o Brasil com 14 anos, era uma pessoa autodidata e que se
utilizava de livros de medicina para trabalhar e atender aos pobres. Devido aos
conhecimentos adquiridos na vida prática, se estabeleceu como farmacêutico e possuía
uma farmácia muito respeitada nesta cidade. O médico descreve como ocorreu a
formação deste indivíduo para prestar atendimento às pessoas.
Estimulado por uma grande vontade de instruir-se, começou a freqüentar
uma escola noturna, e ao estar na campanha lia e aprendia durante o
caminho. Frequentemente, acontecia que ao entrar em um casebre, distante
muitas léguas de um paese, encontrava-se com um pobre doente, que, por
falta de médico e de remédios, estava pouco a pouco morrendo. Entretanto,
ele viu a necessidade de dar um consolo a estes abandonados pela sorte.
Munido de um dos vários manuais de homeopatia que infestavam o Brasil e
de uma pequena ambulância, socorria aqueles miseráveis, se não fisicamente,
pelo menos moralmente, porque se acontecesse de alguns morrerem, os
familiares tinham pelo menos o consolo de que seus entes queridos haviam
recebido uma assistência médica na hora da morte. (p. 145-146)
D’Elia manteve uma atitude pragmática em seu relato em relação a esta situação.
Para Heller, “a unidade de pensamento e ação implica na inexistência de diferença entre
“correto” e “verdadeiro” na cotidianidade; o correto é também “verdadeiro”. E,
acrescenta, que os juízos e pensamentos objetivamente menos verdadeiros podem
resultar corretos na atividade social, quando representarem os interesses da camada ou
classe a que pertence o indivíduo, o que facilita sua orientação ou ação em resposta às
exigências cotidianas destas. (HELLER, 2004, p. 32)
Ao visitar o médico Fernando Abott, em São Gabriel, este insistiu que
estabelecesse nesta cidade. Ficou um mês ali e o acompanhou nas visitas aos seus
pacientes. Abott lhe deu “cartas de recomendação para todos os lugares do Estado do
Rio Grande do Sul”. (D’ELIA, 1906, p. 150)
Duas destas cartas eram direcionadas ao intendente do município de São Vicente
e para o diretor da Colônia de Jaguari, pertencente a este município e composta em sua
maioria por colonos italianos.
Relata que a notícia de sua chegada foi recebida como um acontecimento nestas
duas localidades e aproveitou para discorrer sobre a socialização desenvolvida com o
tabelião, o diretor da colônia e o vigário. Salienta as semelhanças encontradas no hotel
em São Vicente com os pequenos vilarejos da Itália, onde as pessoas mais influentes
jogavam e conversavam sobre as últimas notícias.
Este fato me trouxe a mente os costumes das pequenas aldeias da Itália, onde
o intendente, o secretário, o médico condotto, o farmacêutico, o ferreiro, o
barbeiro e o vigário se reuniam todos os dias na farmácia para comentar,
entre outras coisas, os acontecimentos políticos, que o farmacêutico leu em
algum jornal velho usado para embalar alguns remédios. (p.150)
Considerações finais
No final do século XIX e início do XX, há um intenso deslocamento de médicos
italianos que atinge o Rio Grande do Sul, e que inclui outros países da América do Sul.
Estes médicos procuravam melhores condições de trabalho caracterizando uma
itinerância profissional, ao mesmo tempo em que colaboraram com o aporte de
especialidades médicas. Alguns, como Ricardo D’Elia e Giovanni Palombini, deixaram
relatos de viagem que ao serem analisados, nos permitem, através de indícios, conhecer
melhor como eram as características do campo médico do período. O conhecimento das
redes sociais e, principalmente, das cadeias migratórias auxilia no entendimento de
como se processou a recepção de D’Elia e sua inserção profissional nos diferentes
centros urbanos.
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