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REPRESENTAÇÕES URBANAS NOS RELATOS DE VIAGEM DE OSCAR LEAL

NO SÉCULO XIX

Beatriz Soares dos Santos Silva1.

Resumo:
O presente trabalho discute como cidades goianas aparecem nos relatos de viagem do luso-
brasileiro Oscar Leal na segunda metade do século XIX. Leal tem nacionalidade brasileira
mas seus pais tem origens portuguesas e ele passa boa parte de sua infância e juventude em
Portugal estudando, quando retorna ao Brasil se forma como dentista. Com um olhar curioso e
com seu próprio financiamento decide entra no interior do país conhecendo a vida e costumes
sertanejos. No livro Viagem as terras goyanas (Brazil central), publicado em Lisboa em
1892, Leal descreve dezenove agrupamentos urbanos (municípios, povoados e arraias) que
visitou no território goiano. Mas nesta comunicação será trabalhado somente as duas
principais localidades que também estavam no roteiro de outros viajantes naturalistas no
século XIX, a então cidade de Meiaponte, atual Pirenópolis, e Goyaz, atual Cidade de Goiás e
também duas cidades do sudoeste goiano, a então Dores do Rio Verde, atual município de Rio
Verde e Jataí. “Os pioneiros viajantes, notadamente europeus, foram os interessados em
retratar as paisagens e cidades brasileiras no século XIX, período em que elas passavam por
grandes transformações” (MENEZES, 2018, 254). Portanto busca-se analisar e lançar um
olhar para as representações sobre o espaço urbano que os viajantes apresentam em seus
relatos e compreender como eram organizadas as cidades espacialmente (as ruas, a arquitetura
da época, principalmente os prédios públicos) e socialmente, “convém aceitarmos a
necessidade indispensável de historicizar a cidade como ser social” (MENESES, 1996,
p.147), pensando-a como organismo vivo e o que cada detalhe tem para somar historicamente
ao todo. Pretende-se entender a formação dos núcleos urbanos goianos no século XIX.

Palavras-chave: Espaço Urbano. Relato de Viagem. Século XIX.

Introdução
Depois que ocorreu a abertura dos portos com a chegada da família real portuguesa no
então Brasil colônia em 1808 vários viajantes começam a realizar visitas para exploração e
descrição do espaço com seus interesses ligados a seus países de origem, uns naturalistas
como Emanuel Pohl e Saint-Hilaire, outros desenhistas como Burchell, e outros como Oscar
Leal que viajava por conta própria guiado pela a curiosidade de conhecer o sertão brasileiro.

Oscar Leal, filho do comendador Jacinto Leal de Vasconcelos, nasceu no Rio de


Janeiro em 1862 mas passa sua infância e adolescência estudando em Lisboa, quando retorna
ao Brasil se forma como cirurgião dentista. Em 1886 ele realiza sua primeira viagem ao
interior do país que ele descreve em seu livro “Viagem a um paiz de selvagens”, publicado em

1
Acadêmica do Curso de História da Universidade Federal de Jataí – UFJ.E-mail:
beatrizsoaresdossantossilva@gmail.com
1895 e em 1889 ele viaja pelo o sertão de Goiás e relata a sua viagem no livro “Viagem a
terras goyanas” publicado em Lisboa em 1892.

O objetivo neste texto é trabalhar com os relatos em que Leal retrata a vida e o espaço
sertanejo goiano na sua última viagem onde visitou 19 agrupamentos urbanos, mas
destacaremos aqui somente quatro, Perynopolis, Goyaz, Dores do Rio Verde e Jatahy 2
buscando analisar as representações que o viajante faz a respeito do espaço urbano.

Para entender essas representações é necessário a se atentar a que tipo de escrito ele
pertence: um relato de viagem, segundo Mary Anne Junqueira é um gênero hibrido que já foi
a muito usado por vários autores como fonte indubitável do passado, mas atualmente se vê a
necessidade em tratar o relato de viagem com uma certa crítica, pois além de fonte esse
trabalho o trata como um objeto de estudo que pode e deve ser questionado. “Creio que
devemos estar atentos a essa peculiar característica do corpus e compreender os recursos que
o viajante utiliza, consciente ou inconscientemente, para narrar a sua experiência”
(JUNQUEIRA, 2011, p.61). Portanto é necessário pensar em todas as possibilidades que um
relato carrega, conferir o lugar de fala e o seu universo cultural do viajante, o contexto em que
ele escreve, observar como foi elaborado o relato (narrativa, memória, cartas, diário, etc.) e
preocupar com quem o viajante quer ser, quem Oscar Leal deseja ser? um jornalista? um
aventureiro? um cientista?

Juntamente com essas possibilidades é necessário analisar o que as representações


desses relatos têm a agregar para historiografia e para qual direção elas caminham, Roger
Chartier diz que:

As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à


universalidade de um diagnostico fundado na razão, são sempre determinadas
pelos os interesses de grupos que as forjam. Daí, para cada caso, o é
necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os
ultiliza (CHARTIER, 2002, p.17).

Logo quando lemos os escritos de Oscar Leal se faz necessário atentar para o lugar de
onde ele está falando, um brasileiro aportuguesado que lutava para que o Brasil se torna-se
uma república. É curioso que embora elencasse que sua viagem era de interesse próprio, ao
longo do percurso ele participava e conduzia várias festas e reuniões com ideais republicanos,
é perceptível então que seu discurso era baseado em um ideal de um Brasil republicano, ainda

2
Para os nomes destas cidades adotamos no trabalho a mesma grafia usada a época da primeira publicação do
livro Viagem a terras goyanas.
mais quando ele utilizava a palavra “progresso”, falava sobre a chegada do progresso nesses
espaços urbanos, que significava o tempo posterior a proclamação da república e seus
benefícios. As analises dos espaços urbanos também seguem representações baseadas nas
suas vivências no Rio de Janeiro e em Portugal, o bom ou o ruim descrito nos seus relatos
parte de algo já conhecido, confortável e vivenciado anteriormente.

A Goyaz e Perynopolis de Oscar Leal


No final século XIX, no momento em que o viajante aportuguesado visita essas
cidades, Goyaz era o centro do estado sendo a capital, era o espaço urbano com forte presença
de progresso e semelhança com os grandes centros urbanos, e mantinha um contato maior
com o Rio de Janeiro, então capital do Brasil. Mas Leal não aprofunda em seus relatos sobre o
seu espaço urbano mas diz que a cidade é situada entre morros e fica quinhentos e cinquenta
metros acima do nível do mar. O viajante diz que:

Nestes cinco anos, Goyaz tem tido mais ou menos algum aumento, e
nos arrebaldes foram abertas novas ruas; comtudo, é para lamentar o
numero de vidas que anualmente dálli desappareceram por causa da
insalubridade local. Ultimamente tem apparecido frequentemente
casos de beri-beri, e outras moléstias vão surgindo sem caráter
endêmico, como a tuberculose, febres, etc (LEAL,1980, p.61).

Em seu texto ele ressalta algumas doenças que estavam afetando a população no
período e que faltavam médicos qualificados e com delicadeza para tratar a população. E fala
também sobre a imprensa em Goyaz que era composta pelo o Publicador Goyano, Correio
Official e a Gazeta Goyana. Sua estadia foi de 15 dias e depois parte da cidade e escreve
breves relatos.

Como ainda não foi possível o acesso a outras fontes como esses jornais nos arquivos
da cidade para discutir sobre as representações do viajante, buscamos na historiografia o livro
A normalização dos comportamentos na cidade de Goiás (1822-1889) de Danilo Rabelo que
trabalha também em seu recorte o período da viagem de Leal. O autor, citando fontes de
jornais, entre eles o Correio Oficial citado pelo viajante, e cartas dos presidentes de província
que a salubridade do local, o clima, e o mal posicionamento geográfico afetava a saúde das
pessoas, menciona também um relatório da Inspectoria de Hygiene Publica escrito pelo o
cirurgião Vicente Moretti Foggia que relata a falta de médicos em 1885, havendo apenas dois
médicos para todo o sul da província e sendo um deles o próprio relator que segundo ele
mesmo se encontrava em idade avançada e com dificuldades para estar atuando na profissão.
(p.37) Percebe-se se então que as representações de Oscar Leal sobre a insalubridade causada
pelo o posicionamento da cidade se assemelha com as representações encontradas no trabalho
historiográfico de Danilo Rabelo.

Sobre Perynopolis o viajante faz um relato com uma quantidade maior de detalhes
sobre seu espaço urbano e costumes locais.

O largo da matriz e o ponto mais central da cidade e para lá convergiam as


ruas Direita (Deodoro), Prata, Bomfim e ladeira do Rosario. São geralmente
calçadas de grandes lages e em todas existem casas que até hoje conservam o
velho estylo dos primeiros colonizadores do Estado goyano. O mais belo
edifício da cidade pertence outro`ora ao abastado capitalista Joaquim Alves de
Oliveira (já falecido) já não existe (LEAL, 1980, p.72).

Sobre os edifícios públicos ele diz que a Catedral é um templo espaçoso com cerca de
80 anos e com um exterior com má arquitetura com duas torres e um relógio em uma delas e
que cada bairro possuía um templo: Rosário, Bomfim e Carmo e no alto de uma montanha
obras inacabadas da capela de Santa Barbara. A cadeia é situada na parte baixa do largo da
Matriz, um edifício regular e pouco vistoso. O viajante diz que a cidade e composta por sete
ruas, três praças grandes, duas pequenas, alguns becos e travessas pouco edificadas e que uma
ponte de madeira une a cidade baixa ao bairro do Carmo que fica a margem direita do rio.
Sobre a como eram edificadas as casas diz que as mais antigas usavam malacacacheta e
rotulas de gretas e as casas mais recentes possuíam vidros.

O clima descrito nos relatos era ameno e sadio, e a agricultura e pecuária se baseava
em plantações de cereais, algodão, fumo, cana de açúcar, café e criação de gado e equinos:
“Alguns são uberrinos e produzem com abundancia toda a sorte de cereais e algodão, fumo,
canna de assucar e café. (...) Nas intervenadas ao longo dos campos nativos dá-se a criação
das raças bovina e cavalar” (LEAL, 1980, p.87)

Sobre os costumes Leal diz que as pessoas usavam nas paredes de suas casas figuras
retiradas de caixas de papelão e fardos de fazenda, mulheres não comiam a mesa, somente os
homens da casa, moças eram educadas em casa e somente os rapazes frequentavam a escola e
era motivo de vergonha para uma família e imoral uma moça dançar. (LEAL, 1980)

Novamente por falta de contato com os arquivos da cidade usamos a edição de


novembro/dezembro 1988 do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional SPHAN
próMemória para cruzar com representações do viajante luso-brasileiro sobre espaço urbano
de Perynopolis, e a revista diz o seguinte:

Meia Ponte era um arraial que contava com aproximadamente 300 casas:
algumas delas muito boas”, oito ruas, além de travessas e becos, praças,
chafarizes, uma fonte, cinco igrejas, uma Casa de Câmara e Cadeia construída
segundo o modelo português para o Ultramar, e o Hospício dos Religiosos da
Terra Santa (SPHAN, 1988, p.2).

Sobre as edificações relevantes a revista diz que “destaca-se a Igreja Matriz de Nossa
Senhora do Rosário, (...) É um edifício de grande porte, de linhas arquitetônicas despojadas
mas imponentes” e “a igreja de Nosso Senhor do Bomfim e a de Nossa Senhora do Carmo”
(SPHAN, 1988, p.3).

Ainda nos arredores de Perynopolis, Leal na cidade de Corumbá no dia 5 de dezembro


de 1889 recebe a notícia que a república foi proclamada em 15 de novembro no Rio de
Janeiro, alegre com esse momento tão esperado ele volta a Meia Ponte onde aconteceu
comemorações.

Dores do Rio Verde e Jatahy

Ele trata Jataí e Rio Verde sendo propícias para o desenvolvimento, na verdade já
eram pouco desenvolvidas, contudo precisavam alcançar o seu valor. Leal diz que Rio Verde
carece de indústrias, mas tem grande renda, a maior do estado, na criação de gado exportando
anualmente de 10 a 15 mil cabeças. Embora ele simpatizar com o feito econômico do
município ele critica arduamente o seu espaço urbano que é constituído de:

apenas de uma rua bastante extensa e sem nome, de duas outras de somenas
importancia e de uma praça pouco edificada onde está a matriz e a cadeia. A
matriz um templo mal construido, pequeno e sem nada de notável. O prédio
chamado-Cadeia é de sobrado e n’ele funciona jury e intendência municipal
(LEAL, 1980, p. 178).

Sua crítica vai além dos espaços públicos, também é direcionada às casas que “são
geralmente mal construídas e muito mal divididas interiormente e a argamassa das aredes é
feita com excremento de gado!”. (LEAL, 1980, p. 178)

Leal estava em Rio Verde, quando a república completava seu primeiro ano, onde ele
organiza as comemorações que teve direito até uma marche aux flambeaux (procissão
iluminada) durante a noite, mas o próprio diz que pessoas ali nem sequer entendiam o que
estava acontecendo e festejavam como se fosse uma festa para o Divino.

Infelizmente Rio Verde não encontramos dados historiograficos que possa ser
acessados virtualmente nesses tempos pandêmicos, então o este trabalho se limita ao que o
viajante relata, até que possamos cruzar com outras fontes que encontraremos nos cartórios e
arquivos da cidade.

Jatahy foi a última povoação visitada por Leal no território goiano. O viajante se
instala na melhor e maior casa da vila de Jatahy, e ao contrário de Rio Verde, seu primeiro
relato sobre o município e de elogio por seus edifícios públicos e particulares feitos por mãos
hábeis.

O Jatahy comquanto seja uma povoação tão recente que ainda tem a ventura
de abrigar vivos seus fundadores, é hoje uma vila notavel pelos os seus
edificios publicos e particulares, construidos por mãos habeis, e pelo
maginifico local em que se acha situada (LEAL, 1980, p.193).

Segundo Leal, Jataí é composta por uma rua principal, duas praças, essas “que
apresentam movimento unicamente, durante as festas religiosas ou populares” (LEAL, 1980,
p.193), também por duas escolas públicas e seu comércio por seis casas de fazenda (tecido),
várias tavernas, duas oficinas de ferreiro e de carpinteiro. Um costume que Leal identifica no
local é a pratica da dança sem problemas morais como foi relatado em Perynopolis.

Para cruzar informações com esses relatos Jataí também carece de uma historiografia
com recorte nesse período, mas dentre os poucos escritos o livro Jatahy: espaços de morar,
Menezes, Pinto Junior e Silva é um material rico para entender sobre as casas como um objeto
cultural e sobre o agrupamento urbano da cidade no século XIX. Os autores também
descrevem esse espaço com recorte na década em que Oscar Leal visita Jataí:

No início da década de 1880, Jataí era uma aglomeração com


aproximadamente 30 residências. Inexistiam edificações
administrativas e governamentais: a Coletoria Estadual viria a se
instalar em 1882, a Câmara de Vereadores foi instaurada em 1884, no
mesmo ano em que foi construído o edifício de Câmara e Cadeia, e em
1885 o poder judiciário instalou-se na Vila de Jataí (MENEZES;
PINTO JUNIOR; SILVA, 2012, p. 32).
Os autores mostram também duas imagens de prédios importantes do período, a
primeira igreja (figura 1) e a casa de câmara e cadeia (figura 2). E apresentam também uma
planta da cidade de 1908 que facilita na compreensão em como esse espaço era constituído
(figura 3).

Figura 1 – Primeira Igreja de Jataí


Fonte MENEZES; PINTO JUNIOR; SILVA, 2012, p. 29.
Figura 2 – Prédio de Câmara e cadeia.
Fonte: MENEZES; PINTO JUNIOR; SILVA, 2012, p. 30.
Figura 3 – Jataí em 1908
Fonte: MENEZES; PINTO JUNIOR; SILVA, 2012, p. 30.

Ainda neste texto os autores afirmam que “no final da década de 1880, Jataí já possuía
uma população de aproximadamente 1.500 almas, uma estrutura administrativa essencial, um
cemitério e algumas dezenas de edificações residenciais.” ( MENEZES; PINTO JUNIOR;
SILVA, 2012, p. 32).

Considerações finais
É notório portanto que os relatos de viagem escritos por Oscar Leal sobre Goyaz,
Perynopolis e Jatahy se assemelha bastante com outros trabalhos e pesquisas historiográficas
sobre o período, porém carregados de suas próprias representações e preocupações que lhes
cabiam naquele contexto histórico. Sobre a cidade de Rio Verde ainda não é possível tirar tais
conclusões por falta de material historiográfico.

Justamente pela falta de uma historiografia capaz de se pensar e analisar o espaço


urbano no século XIX nessas cidades goianas visitadas por Oscar Leal é que esse trabalho
existe e se encontra em andamento buscando cruzar novas fontes e representações com as
representações do viajante sobre o período. Portanto é necessário entrar em contato nas
cidades com os arquivos, cartórios, jornais é outros materiais da época que possam entrar em
discussão com os escritos do viajante para possibilitar uma compreensão mais clara do espaço
urbano no sertão de Goiás no século XIX.

Referências Bibliográficas:

CHARTIER, Roger. A História Cultural: Entre práticas e representações. 2 º edição. Memória


e Sociedade, Jan./2002.

JUNQUEIRA, Mary Anne (Org.); FRANCO, Stella Maris Scatena (Org.). Cadernos de
Seminários de Pesquisa (vol. II). São Paulo: USP-FFLCH-Editora Humanitas, 2011. v. 1. 129
p. 44-61

LEAL, Oscar. Viagem ás Terras Goyanas (Brasil Central). Goiânia: Editora da Universidade
Federal De Goiás, 1980.

MENEZES, Marcos Antonio de; PINTO JÚNIOR, Rafael Alves; SILVA, Adriano Freitas.
Jatahy: aspectos de morar (1880-1935). Goiânia. Ed. da PUC Goiás, 2012.

RABELO, D. Os excessos do corpo: a normatização dos comportamentos na Cidade de


Goiás, 1822-1889. Dissertação (mestrado)- Universidade Federal de Goiás, Goiânia, p.215,
1997.

SPHAN e Fundação Nacional Pró-Memória. Boletim – SPHAN 44, Rio de Janeiro, V. 44, p.1-
24, nov./dez. 1988.

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