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Paulo Vinicius Baptista da Silva

Nathalia Savione Machado


Neli Gomes da Rocha (orgs.)

Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


NEGRAS ESCREVIVÊNCIAS,
INTERSECCIONALIDADES E ENGENHOSIDADES:
ARTES, MEMÓRIA E ESPAÇOS

2021
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA
PARANÁ - UFPR DE PESQUISADORES/AS
REITOR NEGROS/AS - ABPN
Ricardo Marcelo Fonseca DIRETORIA
GESTORES 2020-2022
VICE-REITORA PRESIDENTE
Graciela Bolzón de Muniz Prof. Dr. Cléber Santos Vieira

SUPERINTENDÊNCIA DE INCLUSÃO, SECRETÁRIA EXECUTIVA


POLÍTICAS AFIRMATIVAS E Profa. Dra. Silvani dos Santos Valentim
DIVERSIDADE
Paulo Vinicius Baptista da Silva DIRETOR DE RELAÇÕES INSTITUCIONAIS
Prof. Dr. Delton Aparecido Felipe
COORDENAÇÃO DE POLÍTICAS
AFIRMATIVAS DIRETORA DE RELAÇÕES
Nathalia Savione Machado INTERNACIONAIS
Profa. Dra. Maria Malcher
NÚCLEO DE ESTUDOS AFRO-
BRASILEIROS DIRETORA DE ÁREAS ACADÊMICAS
Megg Rayara Gomes de Oliveira Profa. Dra. Vera Rodrigues

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE
INSTITUTO FEDERAL DO PONTA GROSSA – UEPG
PARANÁ - IFPR REITOR
REITOR Miguel Sanches Neto
Odacir Antonio Zanatta
VICE-REITOR
PRÓ-REITOR DE EXTENSÃO, PESQUISA, Everson Augusto Krum
PÓS-GRADUAÇÃO E INOVAÇÃO
Marcelo Estevam PRÓ-REITORA DE ASSUNTOS
ESTUDANTIS - PRAE
DIRETORA DE EXTENSÃO, ARTE Ione da Silva Jovino
E CULTURA E COORDENADORA
DO NÚCLEO DE ESTUDOS AFRO- COORDENADORIA DE COMUNICAÇÃO
BRASILEIROS E INDÍGENAS SOCIAL - CCOM
INSTITUCIONAL Luciane Silva Navarro
Mônica Luiza Simião Pinto
NUREGS - NÚCLEO DE RELAÇÕES
ÉTNICO-RACIAIS, DE GÊNERO E
SEXUALIDADE
Aparecida de Jesus Ferreira
COORDENAÇÃO EDITORIAL DO NEAB UFPR
Paulo Vinicius Baptista da Silva

CONSELHO EDITORIAL DO NEAB UFPR


Dr. Acácio Sidinei Almeida Santos – UFABC
Dr. Alex Ratts – UFG
Dr. Alexsandro Rodrigues - UFES
Dr. Ari Lima – UNEB
Dra. Aparecida de Jesus Ferreira – UEPG
Dra. Conceição Evaristo – Escritora
Dr. Eduardo David de Oliveira – UFBA
Dra. Eliane Debus – UFSC
Dra. Florentina da Silva Souza – UFBA
Dr. José Endoença Martins – FURB
Dra. Lucimar Rosa Dias – UFPR
Dr. Marcio Rodrigo Vale Caetano – UFRG
Dr. Moisés de Melo Santana – UFRPE
Dra. Nilma Lino Gomes – UFMG
Dra. Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva – USFCAR
Dra. Wilma Baía Coelho – UFPA

PROJETO GRÁFICO
Beatriz Vieira de Oliveira

DIAGRAMAÇÃO
Catalogação na Fonte: Sistema de Bibliotecas, UFPR
Brenda M. L. O. dos Santos
Biblioteca de Ciência e Tecnologia

N385 Negras escrevivências, interseccionalidades e engenhosidades : artes, memória e espaços /. – XI


COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/ as Negros/as, 9 a 12 de novembro de 2020. –
Organização : Paulo Vinicius Baptista da Silva, Nathalia Savione Machado, Neli Gomes da Rocha
... [et al.]. – Curitiba : Universidade Federal do Paraná, 2020.

806 p. : il., color.


[ Livro 1 ].
ISBN: 978-65-86233-77-3 [Recurso eletrônico].
Inclui bibliografias.

1. Arte negra. 2. Artistas negros. 3. Negras na arte. 4. Pesquisadores. 5. Literatura brasileira - Escritores
negros. 6. Negras na literatura. 7. Cultura Afro-Brasileira. I. Universidade Federal do Paraná. II. Instituto
Federal do Paraná - IFPR. III. Universidade Estadual de Ponta Grossa - UEPG. IV. Associação Brasileira
de Pesquisadores/as Negros/as - ABPN. VI. Título.

CDD: 320.5408996

Bibliotecária: Vanusa Maciel CRB- 9/1928


XI COPENE - CONGRESSO BRASILEIRO DE PESQUISADORES/
AS NEGROS/AS

CURITIBA - PARANÁ
9 a 12 de novembro de 2020

COORDENAÇÃO GERAL - XI COPENE


Prof. Dr. Paulo Vinicius Baptista da Silva - (SIPAD e NEAB-UFPR)
Profa. Dra. Nicéa Quintino Amauro (ABPN)
Profa. Dra. Megg Rayara Oliveira - (NEAB-UFPR)
Profa. Ms. Nathalia Savione Machado (SIPAD-UFPR) Infraestrutura online
Profa. Ms. Neli Gomes da Rocha (ABPN) - Produção Executiva Local

COORDENAÇÃO COMISSÃO CIENTÍFICA


Aparecida de Jesus Ferreira - NUREGS / UEPG
Eliane Santana Dias Debus - UFSC
Megg Rayara Oliveira - NEAB / UFPR

COMISSÃO CIENTÍFICA
Agradecemos a cada pessoa do Comitê Científico pela emissão dos pareceres as diversas
modalidades de trabalhos submetidos
Abrahao De Oliveira Santos, Acácio Sidinei Almeida Santos, Adilbênia Freire Machado,
Adilson Pereira Dos Santos, Adna Candido De Paula, Adriana Inês De Paula, Adriana Marques
De Andrade, Adriana Soares Sampaio, Agnes Raquel Camisao, Aguinaldo Rodrigues Gomes,
Ahyas Siss, Ailton Mario Nascimento, Alaerte Leandro Martins, Alan Augusto Moraes
Ribeiro, Alcione Correa Alves, Aldia Mielniczki De Andrade, Aleksandra Menezes De Oliveira,
Alessandra Pio Silva, Alexander Cavalcanti Valença, Alexandre Da Silva, Alexandre De
Oliveira Fernandes, Alexandre Do Nascimento, Alexandre Pinheiro Braga, Alexandre Ribeiro
Neto, Alexsandro Do Nascimento Santos, Alexsandro Eleotério Pereira De Souza, Alline
Aparecida Pereira, Amanda Motta Castro, Amarildo Ferreira Júnior, Amauri Mendes Pereira,
Ana Beatriz Sousa Gomes, Ana Cristina Conceição Santos, Ana Dindara Rocha Novaes, Ana
Lidia Cardoso Do Nascimento, Ana Lúcia Goulart De Faria, Ana Lucia Silva Souza, Ana Maria
Carvalho Dos Santos, Ana Paula Procopio Da Silva, Analise De Jesus Da Silva, Anamaria
Prates Barroso, Andrea Mazurok Schactae, Andréa Pires Rocha, Andrea Rosendo da Silva,
Andresa De Souza Ugaya, Andressa Queiroz Da Silva, Angela Maria De Souza, Angela Moraes
Cordeiro Sena, Anna M. Canavarro Benite, Anny Ocoró Loango, Antonio Donizeti Fernandes,
Aparecida De Jesus Ferreira, Aparecido Vasconcelos De Souza, Ariana Kelly Dos Santos,
Basilele Malomalo, Benedito De Sales Santos, Benjamin Xavier De Paula, Bianca Cristina Da
Silva Trindade, Bruna Ribeiro Troitinho, Bruno Camilloto, Camila Daniel, Carlos Alberto
Ivanir Dos Santos, Carlos Benedito Rodrigues Da Silva, Carlos Henrique Ònà Veloso, Carlúcia
Maria Silva, Carmelia Aparecida Silva Miranda, Carolina De Paula Teles Duarte, Carolina
Maria Costa Bernardo, Caroline Felipe Jango Da Silva, Cassiane De Freitas Paixão, Catia
Regina Gutman, Cicera Nunes, Cintia Cardoso, Clarice Martins De Souza Batista, Claudemira
Vieira Gusmão Lopes, Claudete De Sousa Nogueira, Claudete Ribeiro De Araujo, Claudia
Cristina Ferreira Carvalho, Claudia Regina Vieira, Cleber Santos Vieira, Cleide Maria De
Mello, Clélia R. S. Prestes, Cloris Porto Torquato, Cristiane Luiza Sabino De Souza, Cristiane
Maria Ribeiro, Cristiane Sousa Da Silva, Cristiano Dos Santos Rodrigues, Cristina Maria
Arêda-Oshai, Dagoberto José Fonseca, Dalva De Cássia Sampaio Dos Santos, Dalzira Maria
Aparecida, Damaris Bento, Daniara Thomaz Fernandes Martins, Daniela Fagundes Portela,
Daniela Ferrugem, Danilo Luiz Marques, Dayse Cabral De Moura, Débora Alfaia Da Cunha,
Débora Cristina De Araújo, Débora Cristina De Araújo, Debora Cristina Jeffrey, Deivison
Moacir Cezar De Campos, Dejair Dionísio, Delma Josefa Da Silva, Delton Aparecido Felipe,
Denilson Araújo De Oliveira, Denis Moura De Quadros, Denise Maria Soares Lima, Desirée
Francine Dos Santos, Deusa Maria De Sousa, Diléia Aparecida Martins, Diogo Pereira Matos,
Dulce Maria Pereira, Dyego De Oliveira Arruda, Ecivaldo De Souza Matos, Edilene Machado
Pereira, Edimara Gonçalves Soares, Edimilson Antonio Mota, Edineia Tavares Lopes, Edna
Maria De Araujo, Edna Sousa Cruz, Eduardo David De Oliveira, Eduardo Oliveira Miranda,
Eduardo Quintana, Edwin Pitre-Vásquez, Elcimar Simão Martins, Elenita Maria Dias De
Sousa Aguiar, Eliana Cristina Pereira Santos, Eliane Santana Dias Debus, Elisângela De Jesus
Santos, Elison Antonio Paim, Elizabeth De Jesus Da Silva, Ellen Gonzaga Lima Souza, Emanoel
Luís Roque Soares, Emãnuel Luiz Souza E Silva, Emerson Urizzi Cervi, Erica Portilho, Ernane
José Xavier Costa, Estela Carvalho Benevenuto, Eudaldo Francisco Dos Santos Filho, Evandro
Nunes De Lima, Everton Neves Dos Santos, Fabiana De Pinho, Fábio Lucas Da Cruz, Fábio
Macedo Velame, Fany Serafim Nascimento, Fernanda Fares Lippmann Trovão, Fernando
Jorge Pina Tavares, Fernando Luiz Monteiro De Souza, Flávia De Jesus Damião, Flavia Gilene
Ribeiro, Flávia Paola Félix Meira, Flávia Rodrigues Lima Da Rocha, Flávio Santiago, Franciane
Conceição Da Silva, Francisco Antonio Nunes Neto, Gabby Hartemann, Gabriel Nascimento
Dos Santos, Gabriel Swahili Sales De Almeida, Giane Vargas Escobar, Gilberto Ferreira Da
Silva, Gislaine Gonçalves, Giverage Alves Do Amaral, Gracyelle Costa Ferreira, Grazielly
Alves Pereira, Gustavo Pinto Alves Da Silva, Halina Macedo Leal, Helena Do Socorro Campos
Da Rocha, Heloisa Helena De Oliveira Santos, Henrique Cunha Junior, Iamara Da Silva Viana,
Ilka Boaventura Leite, Ilzver De Matos Oliveira, Ione Da Silva Jovino, Iraneide Soares Da
Silva, Irapoan Nogueira Filho, Iris Maria Da Costa Amâncio, Irislane Pereira De Moraes, Isis
Aparecida Conceição, Itacir Marques Da Luz, Ivo Pereira De Queiroz, Ivonete Da Silva Lopes,
Izanete Marques Souza, Jalber Luiz Da Silva, Janaina De Azevedo Corenza, Jaqueline Gomes
De Jesus, Jefferson Gustavo Dos Santos Campos, Jeusamir Alves Da Silva (Tata Ananguê),
Joana Célia Dos Passos, Joana D'arc De Oliveira, Joanice Santos Conceição, João Batista De
Jesus Felix, João Ricardo Bispo Jesus, Jocenildes Zacarias Santos, Joelma Rodrigues Da Silva,
Jonathan Da Silva Marcelino, Jorge Augusto De Jesus Silva, Jorgete Maria Portal Lago, Josafá
Moreira Da Cunha, Josane Dos Santos Oliveira, Josaniel Vieira Da Silva, José Antonio Novaes
Da Silva, José Bonifácio Alves Da Silva, Jose Da Cruz Bispo De Miranda, José Humberto
Rodrigues Dos Anjos, José Nilton De Almeida, José Rivair Macedo, José Valter Pereira,
Joselina Da Silva, Josiane Silva De Oliveira, Juliana Silva Santos, Juliete Da Paixão Vidal, Júlio
César Da Rosa, Julio Claudio Da Silva, Jurema Oliveira, Jussara Alves Da Silva, Kabengele
Munanga, Karina Klinke, Karla Dos Santos Guterres Alves, Kassandra Da Silva Muniz, Katia
Regina Da Costa Santos, Kênia Gonçalves Costa, Kleber Aparecido Da Silva, Laysmara
Carneiro Edoardo, Leandro Passos, Leonardo Lacerda Campos, Leonor Franco De Araujo,
Letícia Carolina Pereira Do Nascimento, Lorena Francisco De Souza, Lourenço Da Conceição
Cardoso, Luana Carla Martins Campos Akinruli, Lucia De Fatima O De Jesus, Lucia Helena
Xavier, Lucia Maria Barbosa Lira, Luciana Alves, Luciana Venâncio, Luciane Ribeiro Dias
Gonçalves, Luciano Mendes De Jesus, Luciene Araújo De Almeida, Lucimar Felisberto Dos
Santos, Lucimar Rosa Dias, Luena Nascimento Nunes Pereira, Luís Carlos Ferreira Dos
Santos, Luis Thiago Freire Dantas, Luiz Alberto De Lima Leandro, Luiz Carlos Vieira Tavares,
Luiz Sanches Neto, Luiza Nascimento Dos Reis, Luiza Rodrigues De Oliveira, Luzia Aparecida
Ferreira, Magali Da Silva Almeida, Maicom Souza E Silva, Mailsa Carla Pinto Passos, Márcia
Basília De Araújo, Marcia Cabral Da Costa, Márcia Lúcia Anacleto De Souza, Marcio Hollosi,
Marco Aurelio Barbosa, Marcos Antônio Alexandre, Marcos Dos Santos Santos, Marcus
Vinicius De Freitas Rosa, Margarida De Cássia Campos, Maria Albenize Farias Malcher,
Maria Alice Rezende Gonçalves, Maria Anória De Jesus Oliveira, Maria Aparecida De Matos,
Maria Aparecida Rita Moreira, Maria Cecília De Paula Silva, Maria Clareth Goncalves Reis,
Maria Cláudia Chantre Costa Cardoso, Maria Da Conceicao Dos Reis, Maria Das Graças
Gonçalves, Maria De Fátima Lima Santos, Maria De Fátima Matos De Souza, Maria Do
Socorro Da Costa Coelho, Maria Ester Ferreira Da Silva Viegas, Maria José De Jesus Alves
Cordeiro, Maria Luísa Pereira De Oliveira, Maria Margarete Santos Benedicto, Maria Nilza
Da Silva, Maria Simone Euclides, Maria Teresa Sánchez Alcolea, Mariana Aparecida Dos
Santos Panta, Mariana Bracks Fonseca, Mariana Gino, Marilu Márcia Campelo, Marina
Pereira De Almeida Mello, Maristela Abadia Guimarães, Marizete Gouveia Damasceno,
Marli De Azevedo, Marlina Oliveira Schiessl, Marluce De Lima Macêdo, Marta Regina Dos
Santos Nunes, Mary Francisca Do Careno, Mary Valda Souza Sales, Mauricio Macedo Vieira,
Megg Rayara Gomes De Oliveira, Michele Guerreiro Ferreira, Miguel ngelo Silva De Melo,
Míriam Cristiane Alves, Moises Melo Santana, Mônica Helena Harrich Silva Goulart,
Monique De Carvalho Cruz, Nádia Cardoso, Nadson Vinícius Dos Santos, Nailza Da Costa
Barbosa Gomes, Natalino Neves Da Silva, Nathalia Savione Machado, Nedy Bianca Medeiros
De Albuquerque, Nelia Aparecida Da Silva Cavalcante, Neli Gomes da Rocha, Nicéa Quintino
Amauro, Nilvaci Leite De Magalhães Moreira, Nubia Regina Moreira, Olindina Serafim
Nascimento, Osvaldo Martins De Oliveira, Otair Fernandes De Oliveira, Patricia Marinho De
Carvalho, Patricia Martins, Paulo Alberto Dos Santos Vieira, Paulo Fernando Soares Pereira,
Paulo Henrique Barbosa Silva, Paulo Roberto Cardoso Da Silveira, Paulo Vinicius Baptista Da
Silva, Paulo Vitor Palma Navasconi, Pedro Barbosa, Piedade Lino Videira, Priscila De Oliveira
Xavier Scudder, Priscila Elisabete Da Silva, Queila Batista Dos Santos, Rayane Noronha
Oliveira, Reginaldo Conceição Da Silva, Reginaldo Ramos De Britto, Reinaldo Da Silva
Guimarães, Renata Giovana De Almeida Martielo, Renata Gonçalves, Renato Noguera,
Renê Marcelino Da Silva Junior, Renilda Aparecida Costa, Ricardo Matheus Benedicto,
Richard Christian Pinto Dos Santos, Roberta Brasilino Barbosa, Roberta Da Silva Gomes,
Roberto Carlos Da Silva Borges, Roberto Gonçalves Barbosa, Rodrigo Pedro Casteleira,
Rodrigo Portela Gomes, Rosa Margarida De Carvalho Rocha, Rosana Machado De Souza,
Rosangela Ferreira De Souza Queiroz, Roselete Fagundes De Aviz, Rosemberg Ferracini,
Rosilene Silvia Santos Da Costa, Rute Ramos Da Silva Costa, Rutte Tavares Cardoso Andrade,
Samuel Silva Rodrigues De Oliveira, Sandra Aparecida Da Silva, Sandra Maria Cerqueira Da
Silva, Sandra Regina Leite De Campos, Sara Da Silva Pereira, Sarita Faustino Dos Santos,
Sátira Pereira Machado, Selma Maria Da Silva, Sergio Da Silva Santos, Sérgio Luís Do
Nascimento, Sérgio Nunes De Jesus, Sérgio Pereira Dos Santos, Silvana Carvalho Da Fonseca,
Silvani Dos Santos Valentim, Silvio Cezar De Souza Lima, Simone Cristina Reis Conceição
Rodrigues, Sirlene Ribeiro Alves Da Silva, Sônia Beatriz Dos Santos, Sulamita Rosa Da Silva,
Tales Willyan Fornazier Moreira, Tharine Louise Gonçalves Caires, Thatianny Alves De Lima
Silva, Thiago Lima Dos Santos, Túlio Henrique Pereira, Valéria Correia Lourenço, Valéria
Gomes Costa, Valéria Gomes Costa, Vanderlei Serafin Antunes, Vera Marcia Marques
Santos, Vera Regina Rodrigues Da Silva, Vilma Patricia Santana Silva, Viviane Gonçalves
Freitas, Walker Douglas Pincerati, Wanderson Flor Do Nascimento, Willian Robson Soares
Lucindo, Wilma de Nazaré Baía Coelho, Wilson Roberto De Mattos, Yone Maria Gonzaga,
Zâmbia Osorio Dos Santos, Zelinda Dos Santos Barros, Zilda Martins Barbosa.

CONNEABS (GESTÃO 2020-2022)


Coordenação Nacional
Maria Malcher - coordenadora
Profa. Dra. Iraneide Soares (Vice-coordenadora nacional)
Região Norte
Profa. Dra. Renilda Aparecida Costa (Coordenadora)
Prof. Dr. Mauro Torres Siqueira (vice-coordenação)
Região Nordeste
Prof. Dr. Antônio Baruty (Coordenador)
Profa. Me. Izanete Marques Souza (vice-coordenação)
Região Centro-Oeste
Profa. Dra. Claudia Cristina Ferreira de Carvalho (Coordenadora)
Prof. Dr. Marysson Jonas Rodrigues Camargo (vice-coordenação)
Região Sudeste
Prof. Dr. Ricardo Dias da Costa (Coordenador)
Profa. Me. Rosana Machado de Souza (vice-coordenação)
Região Sul
Profa. Dra. Megg Rayara Gomes de Oliveira (Coordenadora)
Prof. Me. Eráclito Pereira (vice-coordenação)
CONSELHO FISCAL DA ABPN
Profa. Me. Laurenir Santos Peniche; Profa. Dra. Patrícia Gomes Rufino Andrade; Prof. Dr.
Reinaldo dos Santos.

COORDENAÇÃO COMUNICAÇÃO DA ABPN


Prof. Dr. Deivison Moacir Cezar de Campos - Ulbra
Agex – Agência Experimental de Comunicação Integrada – Ulbra
Thais Souza – Criação
Fátima Giuliano - Coordenação

COMISSÃO DE COMUNICAÇÃO
Andréa Rosendo da Silva - USP
Andressa Ribeiro - UFPR
Beatriz Vieira de Oliveira - UFPR
Camille Bropp Cardoso - UFPR
Daniel Alexsander Silva da Luz
Daniele Aparecida de Lima Taques (audiovisual) - UFPR
Débora Ribeiro - UFPR
Deivison Moacir Cezar de Campos - Ulbra
Diego Dias Da Silva - UEMS
Felipe Ferreira Alves (audiovisual) - UFPR
Gabriel Muxfeldt Siqueira- UFPR
Judit Gomes da Silva – UFPR
Juliana Ertes Santos - UFPR
Letícia Rocha Portela - UFPR
Lorenzzo Henrique de Paula Gusso - UFPR
Marina de Arruda Alencar - UFPR
Mateus Camilo dos Santos (audiovisual) - UFPR
Matheus de Castro Borsato - UFU
Naiara Caroline dos Santos Neves - UNIFESP
Sara da Silva Pereira - NEAB/UFPR e NEABI/UFAC
Sérgio Luis do Nascimento- PUCPR
Tainara dos Santos Alexandre- UFPR
Thiago Henrique Borges Brito - UFOP
COMISSÃO DE CULTURA
Ana Lucia Mathias Fernandes Coelho - Profa. da Educ. Básica e NEAB/ UFPR
Benedito Isidoro Diniz - Produtor Cultural (Externo)
Celso Luiz Prudente – UFMT e IEL/UNICAMP
Edwin Ricardo Pitre Vásquez - UFPR – Deartes
Gabriel Arruda - Trancista
Larissa Nepomuceno Moreira - UFPR
Mariana Silva Souza - UFPR
Régis Rodrigues Elisio- UFU
Ronaldo Feitosa - COC/PROEC
Vanderlei Serafin Antunes - UFPR

COMISSÃO DE EDITAIS
Kelvy Kadge Oliveira Nogueira - UFPR
Flávia Rodrigues Lima da Rocha - UFAC
Graciele Alves Babiuk - UFPR

REPRESENTAÇÕES DOS MOVIMENTOS SOCIAIS NEGROS E CULTURAIS DO PARANÁ


Aline Di Giuseppe – UFPR
Amanda Mendes de Lima - Centro Universitário Curitiba – Unicuritiba
Ana Paula Romani – UFPR
Benedito I. Diniz – ARTISTA
Brenda Santos - UM BAILE BOM
Dalzira Maria Aparecida - Ile Asè Ojubo Ògún – Associação Cultural Omo Ayê
Carine Rossane Piassetta Xavier - IFPR- Colombo
Edna Aparecida Coqueiro - SEED
Galindo Pedro Ramos - SEED
Glaucia Pereira do Nascimento – UFPR
Jane Marcia Madureira Arruda –
Joyce Luciane Correia Muzi - IFPR/UFPR
Kamylla dos Santos - Grupo Baquetá
Luis Carlos dos Santos - APP Sindicato e CONSEPIR
Kênia Cristina Libero Robertina Ramos - Coletivo Ero Ere
Nei Luiz Moreira De Freitas - OAB/PR
Paulo Borges - ACNAP
Pedro Gonçalves – UFPR
Suelen Matos – UFPR
Vanderlei Serafin Antunes - UFPR
Záire Osório Dos Santos – UFPR
Livraria Vertov
Fórum Permanente de Educ. e Diversidade Étnico-Racial (FPEDER-PR)
COMISSÃO DE INSCRIÇÃO
Antônio Ferreira - IFPR/Paranaguá
Camila Cristiane Moreira de Almeida - UFU
Cleci Da Cruz Martins - SMED (Araucária-PR)
Fernanda Lucas Santiago - PPGH-UDESC
Graciele Alves babiuk - UFPR
Maria Inês Carvalho Correia – UFPR
Neli Gomes da Rocha - ABPN

COMISSÃO DE INFRAESTRUTURA
Adriana Inês De Paula – UFPR
Andressa Ribeiro - UFPR
Ébio Luiz Ribeiro Machado - TJPR
Elenilton Vieira Godoy - UFPR
Erick da Silva Santos - UFPR
Ione da Silva Jovino- UEPG
José Carlos Appolinário - TV UFPR
Letícia Sampaio Pequeno - TJPR
Kelvy Kadge Oliveira Nogueira - UFPR
Marina de Arruda Alencar - UFPR
Mônica Luiza Simião Pinto - NEABI IFPR
Nathalia Savione Machado - UFPR
Thaís Regina De Carvalho - UFG

COORDENAÇÃO SIMPÓSIO EDUCAÇÃO BÁSICA XI COPENE


Profa Ms Rosa Margarida de C. Rocha - Fórum Nacional de Educ. Básica ABPN
Profa Dra Alessandra Pio - (UFRJ)
Profa Ms Josiane Climaco - (UFBA)
Profa Dra Lucimar Rosa Dias - (UFPR)
Prof. Ms. Paulo Borges – ACNAP e Fórum Permanente de Educ. e Diversidade Étnico-
Racial (FPEDER-PR)
Profa. Adriana Zielinski – Fórum Permanente de Educ. e Diversidade Étnico-Racial
(FPEDER-PR)
Profa. Edna Aparecida Coqueiro – Fórum Permanente de Educ. e Diversidade Étnico-Racial
(FPEDER-PR)
COMISSÃO DE MONITORIA
Edicelia Maria Dos Santos de Souza - NEABI UFPR Litoral
Juliana Maria Da Rosa Elia – UFPR
Veridiane Cristina Benato - UFPR

EQUIPE DE MONITORIA
Alexandre F. Braga, Aline Adriana Oliveira, Aline Vargas Escobar, Amanda Barbosa Veiga
dos Santos, Amanda Caroline Alves Pereira, Ana Paula Nascimento Lourenço, Antoniele de
Cassia Luciano, Ariane De Sá Andrade Cruz, Bianca Lopes Brites, Carla Aparecida da Costa,
Carlos Alberto Mendonça Filho, Francisco Otávio Araújo Dos Santos, Gabriella Santos Da
Silva, Gabriel Ribeiro Da Silva, Graciéle Pereira Souza, Higor Natanael Azevedo Carvalho,
Hugo Ribeiro De Souza, Izabely Morais Santana, Jessica Barbosa Joaquim, Jéssica Suzana
Magalhães Cardoso, Jéssica Teixeira Eugênio, Josué Goulart, Lara Danuta Da Silva, Leidiane
Lopes Da Silva, Lilian Soares Da Silva, Lívia Maria Nascimento Silva, Lucas Eduardo Zulin,
Luana Larissa De Carvalho Ferreira, Luana Ribeiro Da Trindade, Luziane Da Silva Pinheiro,
Marília Renata Felix Rodrigues, Matheus Silva Freitas, Nayhara Almeida De Sousa, Pedro
Augusto Gonçalves Alves, Raíssa Ladislau Leite, Rafael Barbosa De Jesus Santana, Rian
Santana Mota.

APOIO TÉCNICO
Ana Lúcia Lourenço - Desembargadora do TJPR
Andrea Kominek - UTFPR
Ana Paula Vieira - PROGRAD/UFPR
Daniel S. P. Soares - FUNPAR//UFPR
Geison David da Silva - Instituição Academia Policial Militar do Guatupê-PR
Mardem Lincoln Amaral Machado - TJPR
Maria Aparecida Blanco de Lima- Desembargadora do TJPR
Rafaela Pauluk - UFPR
Sérgio Luis Do Nascimento - PUC/PR
Toni André Scharlau Vieira - UFPR
EQUIPE DE INTÉRPRETE DE LIBRAS
Aldemar Balbino da Costa – UFPR
Claudinei Matoso – UFPR
Cleverson Rogério dos Santos – IFPR
Danielle Marrie Moraes – UFPR
Edilena da Silva Frazão - UTFPR
Elizete Pinto Cruz Sbrissia Pitarch Forcadell - IFPR
Jonatas Rodrigues Medeiros – UFPR
Juliana da Silva Richter – IFPR
Karianny Aparecida Gerotto Del Mouro - IFPR
Katia Silene Veiga Lamberti - IFPR
Marly Pessoa Souza – UFPR
Peterson Simões – UFPR
Priscila Mara Simões – UFPR
Rhaul de Lemos Santos – UFPR
Sarah Tamara Corrêa Hilgemberg - IFPR
Sérgio Ferreira – UFPR
Tiago Machado Saretto - IFPR
Valdeir Ramos Pereira - UTFPR
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
Negras Escrevivências, Interseccionalidades e Engenhosidades: Artes, Memória e Espaços ..
........................................................................................................................................... 23
Rita de Cássia Moser Alcaraz, Juliana Ertes Santos, Paulo Vinicius Baptista da Silva

ST 06: ARTE NEGRA- TEATRO E LITERATURA


A Mulher Negra e a Literatura no Brasil: Entre Letras, Discursos e o Reconhecimento da
Escrita ................................................................................................................................ 29
Athemis Nunes da Fonseca

Compaixão de Toni Morrison: Um Bildungsroman Decolonial .......................................... 39


Natalino da Silva de Oliveira

MIL LITROS DE PRETO: o Largo está cheio e as Mães de Maio .......................................... 48


Lucimélia Aparecida Romão

Negras cenas em um belo horizonte ................................................................................. 60


Denilson Alves Tourinho

Pedagogia do Teatro Afro-Diaspórica na Formação de Professores(as) de Teatro ............. 67


Monique Priscila de Abreu Reis, Tatiane Cosentino Rodrigues

“Na praia essa mulher ficou chorando”: reflexões acerca do conceito “Mater Dolorosa”
em Gonçalves Crespo e demais escritores(as) negros(as) ................................................. 74
Bruno Barra da Silva

Relações Étnico-Raciais na Sociedade Brasileira – A Retórica dos Cadernos Negros .......... 84


Joselaine Galvão de Souza, Rachel Benta Messias Bastos

GiraDramatúrgica: encontro, pesquisa e criação por e entre dramaturgas/os negras/os .. 95


Carlos Alberto Mendonça Filho

ST 29: LETRAMENTOS, LINGUAGENS E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS:


INTERSEÇÕES POSSÍVEIS
Mulheres pretas no Cerrado goiano e suas narrativas insurgentes: Letramentos como práti-
cas de encantamento ...................................................................................................... 106
Maria das Neves Jardim de Deus, Ludmila Pereira de Almeida

Escrita insurgente de mulheres negras e periféricas - gênero classe e raça na educação


brasileira: por uma pedagogia antirracista ..................................................................... 114
Magda Antunes Martins, Maria Marlete de Souza

Ubuntu-Libras: Uma experiência construtiva agregando valores na diversidade ........... 126


Evelin Seluchiniak Nunes, Diléia Aparecida Martins
ST 30: LINGUAGENS E LITERATURAS DE ESCREVIVÊNCIA E
REEXISTÊNCIA NEGRAS: DECOLONIALIDADES NO ENSINO DE
LÍNGUAS E DE LITERATURAS ANTIRRACISTAS
A Escrita de Si: uma proposta de educação antirracista ................................................... 137
Mariana Jafet Cestari, Juliana Azevedo Pacheco, Emily Vitória da Silva Claudino

Construção da Autenticidade na Escrita e Etnicidade Negra: Relações em Comum? ....... 147


Fernando Porfirio Lima, Gabriel Nascimento

ST 31: LITERATURA INFANTIL, JUVENIL E DEMAIS PRODUTOS


CULTURAIS PARA INFÂNCIA, JUVENTUDE E A AFIRMAÇÃO
IDENTITÁRIA NEGRA
Literatura infanto-juvenil com personagens quilombolas: identidades inscrevendo educa-
ção escolar ....................................................................................................................... 158
Ana Fátima Cruz dos Santos

A construção da identidade feminina negra na obra "O mundo no Black Power de Tayó" ......
......................................................................................................................................... 168
Larissa Oliveira de Paula, Renan Fagundes

Formação Continuada de Professoras/es da Educação Infantil na Perspectiva da Corporei-


dade e da Literatura Afro-Brasileira e Africana ................................................................. 178
Sarita Faustino dos Santos, André da Silva Mello

Personagens negras no livro ilustrado: uma análise da obra “O príncipe da beira”, de Josias
Marinho ........................................................................................................................... 186
Mariana Silva Souza, Débora Cristina de Araujo

A ancestralidade, identidade e representatividade negra na literatura infanto-juvenil: Zum-


bi dos Palmares ................................................................................................................ 193
Karla Cristina Eiterer Rocha

A Literatura Infantil e a temática étnico-racial: (Re)ocupando espaços e (Re)fazendo histó-


rias ................................................................................................................................... 202
Cristiane Veloso

Jogos de Tabuleiro de Tradição Africana na Escola ........................................................... 211


Renan Bispo dos Santos Silva, Denise Aparecida Corrêa

Juventude negra e literatura: por um erguer de vozes em sala de aula ........................... 222
Cristina Cristo Alcantara do Nascimento, Maria Anória de Jesus Oliveira

ST 32: LITERATURA NEGRA E CRÍTICA CONTEMPORÂNEA: DESAFIOS


E INTERVENÇÕES
Ancestralidade e Afro-brasilidade em Percurso de Inscrição ............................................ 237
Jurema Oliveira

Negras Escrituras: o papel das mídias sociais na divulgação da escrevivência negra ........ 245
Bruna Ribeiro Troitinho
ST 47: POÉTICAS DO EXISTIR: ESCREVIVÊNCIAS DO POVO NEGRO
NA LITERATURA E EM OUTRAS ARTES
Carolina Maria de Jesus: conquistas e desafios na sua trajetória de escrita em 60 anos de
Quarto de Despejo ........................................................................................................... 259
Vanessa Maria Poteriko da Silva

MEU CORPO DANÇA: reiteração de memórias de movimentos ancestrais ...................... 268


Tatiana Maria Damasceno

ST 22: ETNOMUSICOLOGIA
Ressignificações, relações e permanência de elementos musicais diaspóricos africanos no
conjunto percussivo de uma casa de candomblé e de uma bateria de escola de samba em
São Paulo ......................................................................................................................... 279
Tata Bewalaja, Rafael Y Castro

ST 37: MUSICALIDADES/CORPORALIDADES AFRICANAS E


AFRODIASPÓRICAS: CULTURA POPULAR, PERSPECTIVAS
ÉTNICORACIAIS E INSURGÊNCIAS EPISTEMOLÓGICAS
Ritos, Fundamentos e Sacramentos: A atualidade performática dos Reinados ................ 290
Dayane Nayara Conceição de Assis

Sintonizando o Rap nas rádios de BH ................................................................................ 298


Vítor Gonzaga dos Santos

Textualidade afro-banta nas vozes e cantares no Jongo da Serrinha ................................ 308


Ana Daniela dos Santo Rufino

ST 57: REPRESENTATIVIDADE NEGRA NA MÍDIA, NO CINEMA, E NO


AUDIOVISUAL AFRICANO E AFRO-DIASPÓRICO
O Racismo nas Mídias Brasileiras ..................................................................................... 318
Rander de Souza Ferreira, Silvia Matos de Sousa

O Teatro negro por sobrevivência já nasce cinema! Uma experiência junto ao Movimento
Cor de Anastácia .............................................................................................................. 328
Christiano Cesar Mattos Dias (Cachalote Mattos)

A dimensão subalterna da mulher negra expressa na produção fílmica "a negra de..." ... 337
Sunshine Cristina de Castro Reis Santos

Cinema negro brasileiro contemporâneo e saberes estético-corpóreos: reflexões sobre


agência e reeducação do olhar ......................................................................................... 347
Ana Carolina da Silva Gonçalves

Uma análise da semiótica peirceana, plano de expressão e conteúdo através do clipe "Inácio
da catingueira" ............................................................................................................. 357
Andressa Vieira Almeida
ST 58: RITMOS DA IDENTIDADE: MÚSICA, JUVENTUDE E
IDENTIDADE
Cantos de liberdade: enunciando a subjetividade dos homens negros a partir do rapper
Baco Exu do Blues ............................................................................................................ 371
Matheus Eduardo Borsa

Raça e Gênero: A música como instrumento de resistência das mulheres negras ............ 380
Eloara dos Santos Cotrim, Delton Aparecido Felipe

A Cúmbia no Panamá: uma teoría sobre sua origem ........................................................ 387


Nodier Alexander Casanova Camacho

Projeto-de-Vida Racional: Discurso Decolonial, Pensamento Liminar e Possibilidades de


Emancipação a partir do Hip Hop ..................................................................................... 398
Gabriel Chaves Amorim

ST 61: TECNOLOGIAS, CULTURAS, MÍDIAS E LINGUAGENS: FORMAS


DE ABORDAR AS QUESTÕES ÉTNICO-RACIAIS E DE ENFRENTAR O
RACISMO
Educação, Saúde e Re-Existência através do Audiovisual: Os Vídeos Antirracistas do Slam
Poesia .............................................................................................................................. 411
Ana Lúcia Nunes de Sousa, Vitória Adeva Elias Aquino Silva, Patrícia Cardoso de Jesus

Sobre Imagens e a Educação do Preconceito ................................................................... 419


Tais de Almeida Costa, Graziele Alves de Lira

“Ser feliz (no vão, no triz) é força que me embala”: mulheres negras inventando Tecnologias
de sobrevivência .............................................................................................................. 429
Leidiane Macambira

Fio a fio na luta contra o racismo: as Experiências de mulheres negras na Transição e as mí-
dias .................................................................................................................................. 440
Rejane Macedo, Ana Luisa Aguiar

O ciberativismo e sua relevância na luta antirracista ........................................................ 451


Sunshine Cristina de Castro Reis Santos, Alex Matos Rabelo, Jaquileude Araújo Martins

Comunicação e imigração: uma análise de caso de xenofobia ......................................... 460


Sirlei de Souza, Jonathan Prateat, Kawanna Alano Soares

Antirracismo no youtube: análise de conteúdo dos vídeos populares de 35 Youtubers ne-


gras/os ............................................................................................................................. 470
Janine Monteiro Moreira, Ana Lúcia Nunes de Sousa, Maiana Elói Ribeiro dos Santos

ST 04: ARQUEOLOGIA NEGRA - PROTAGONISMO, EPISTEMOLOGIAS


E DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES SOBRE MEMÓRIA, PATRIMÔNIO E
ANCESTRALIDADE
Impulso coletivo teatro antirracista e contra-colonial, na luta pelo direito à Terra, à cidade e
à memória ....................................................................................................................... 480
Jorge Peloso de Azevedo
Pensamentos e ensinamentos de Dona Francisca correia da costa: olhares Autoetnográficos
......................................................................................................................................... 495
Maria Aparecida de Matos

ST 14: CULTURA AFRO-BRASILEIRA E PATRIMÔNIO: PRESERVAÇÃO,


IDENTIDADE E MEMÓRIA
Oralidade, memória e poesia: o canto no Congado na Comunidade dos Arturos (MG) como
referência cultural do patrimônio afro-brasileiro ............................................................. 501
Beatriz dos Santos Chaves, Otair Fernandes de Oliveira

Decolonizando tempos, espaços e memórias: diálogos com professores na Província da Huí-


la em Angola .................................................................................................................... 512
Elison Antonio Paim

Museu do Negro: A (des)integração da memória e representação da história negra no Brasil


......................................................................................................................................... 522
Tainá de Oliveira, Gleice Cristina

Marcos sócio-históricos na trajetória da Associação Satélite Prontidão ........................... 531


Camila Rosângela da Silva, Karla S. G. Alves, Edison Luiz Saturnino

CLUBES SOCIAIS NEGROS: mapeamento, memória, patrimonialização e educação das rela-


ções étnico-raciais ........................................................................................................... 541
Eráclito Pereira, Giane Vargas Escobar

Mulheres negras, memória e resistência: um olhar de dentro do NEABI Mocinha ........... 548
Amanda Caroline Alves Pereira, Giane Vargas Escobar

Clubes Sociais Negros do Brasil: patrimonialização e o mapeamento do IPHAN sob o olhar


da juventude negra acadêmica ........................................................................................ 557
Ariane De Sá, Richelle Costa, Giane Vargas Escobar

100 anos de existência do Clube Social Negro 24 de Agosto através de um jogo didático .......
......................................................................................................................................... 566
Rafael Barbosa de Jesus Santana, Giane Vargas Escobar

O povo de santo na "moderna Bahia": novas performances na defesa do patrimônio cultu-


ral negro .......................................................................................................................... 575
Edmar Ferreira Santos

ST 35: MODOS DE VER E NARRAR: HISTÓRIAS E MEMÓRIAS NEGRAS


NO BRASIL E NA DIÁSPORA AFRICANA
Histórias afro-curitibanas:relatos de efetivação da Lei 10639/03 na Rede Municipal de Ensi-
no de Curitiba/PR ............................................................................................................. 586
Valéria Pereira da Silva

Cidades dentro da Cidade: reflexões sobre história, direitos humanos, memórias e Identida-
des – uma ação do PIBID na escola ................................................................................... 595
Elizabeth de Jesus da Silva
ST 05: ARQUITETURA, URBANISMO E CIDADE AFRICANA E AFRO-
BRASILEIRA
Espaços de sociabilidade negra e suas transformações: o Clube Treze de Maio em Curitiba ...
......................................................................................................................................... 604
Juliana Harumi Suzuki, Matheus Becker Walteman de Freitas

Arquiteturas das Nações dos Terreiros de Candomblé: Diferenças Arquitetônicos entre os


Terreiros da Bahia ............................................................................................................ 614
Fábio Macêdo Velame

Arquiteturas dos Quilombos do Sertão Baiano: O Quilombo de Barrocas na Região de Cam-


po Formoso ...................................................................................................................... 624
Fábio Macêdo Velame

Quilombo Salamina Putumuju: Arquiteturas da Resistência Quilombola do Recôncavo Baia-


no .................................................................................................................................... 638
Fábio Macêdo Velame

O Culto dos Antepassados: Dinâmicas Identitárias do Povo Macua em Contexto Urbano na


Cidade de Quelimane - Moçambique ............................................................................... 650
Jacinta Francisco Dias

ST 49: POPULAÇÃO NEGRA E O DIREITO À CIDADE: INTERFACES


ENTRE RAÇA E ESPAÇO URBANO
O “problema” favela: uma análise da relação equívoca entre favela e cidade .................. 661
Liliane Souza dos Anjos

A importância da descentralização e a democratização de bens culturais como exercício de


descolonização: uma análise sobre o legado representativo do Museu Cafua das Mercês .....
......................................................................................................................................... 671
Sunshine Cristina de Castro Reis Santos

Marcas Históricas das Desigualdades ............................................................................... 679


Andaraí Ramos Cavalcante, Sheila Cavalcante dos Santos

ST 20: EMANCIPAÇÕES E PÓS-ABOLIÇÃO: EXPERIÊNCIAS NEGRAS


DE LIBERDADE, TRABALHO, EDUCAÇÃO, SOCIABILIDADE E
TERRITORIALIDADE
AFROEMPREENDEDORISMO FEMININO EM CURITIBA: Reflexões de campo sobre a Feira do
Afroempreendedor da Praça Zumbi dos Palmares ........................................................... 688
Suelen Karini Almeida de Matos

Oranian é Paulo da Portela: O mundo que Paulo Benjamim de Oliveira fez crescer ......... 696
Karen Garcia Pêgas
A (re)inserção social de alforriados e libertos no Paraná nas últimas décadas do século XIX ...
......................................................................................................................................... 706
Alexandre Padilha, Camile Ribeiro Texca, Fábio Lucas da Cruz

Resquícios da escravidão: (re)pensando a condição do negro nas relações de trabalho es-


cravo no Brasil .................................................................................................................. 714
Alex Matos Rabelo

Abolicionismo em Diamantina, Minas Gerais (1880-1888) ............................................... 723


Higor Carvalho

Caminhos que se cruzam: Merenciana e Maria Ignacia, mulheres libertas em Palmas/PR,


1800-1900 ....................................................................................................................... 733
Renilda Vicenzi, Thalia Faller

ST 13: CORPOS NEGROS: EXPERIÊNCIAS SOCIAIS DE


ESCRAVIZADOS/AS E LIBERTOS/AS, AFRICANOS/AS E CRIOULOS/
AS NA ESCRAVIDÃO E NA PÓS EMANCIPAÇÃO NO BRASIL
O pensamento projetual espontâneo: resistência negra no período escravocrata brasileiro
através da sua produção de imagens e artefatos ............................................................. 741
Hugo Horácio Duarte

06 de Fevereiro – 326 Anos de luta e resistência da população negra – Reverenciando Pal-


mares ............................................................................................................................... 751
Cláudia Cristina Rezende Puentes, Igor Luiz Rodrigues da Silva

Sociabilidades negras em meio às sociedades operárias de Curitiba ................................ 761


Fernanda Lucas Santiago

As múltiplas temporalidades do subúrbio carioca: Da "Clara dos Anjos" de Lima Barreto às


narrativas históricas nas salas de aula .............................................................................. 772
Barbara Cristina Soares Pessanha

Desumanização do corpo negro: A influência das imagens de controle no processo de subal-


ternização da mulher negra ............................................................................................. 779
Aline Alves Aleluia, Eduarda Gonçalves Marengo

“Ela faz o destino dela”: Uma história de resistência em Pernambuco-1854 .................... 787
Tatiany de Oliveira Simas

Religiões de matriz africana: um olhar de vida sobre a morte social no contexto de escravi-
dão .................................................................................................................................. 792
Danielle Campos de Moraes

ST 62: TEMAS E DEBATES EM HISTÓRIA DA ÁFRICA


África, Negro e Raça : debate proposto por Achille Mbembe a partir da obra A Crítica da Ra-
zão Negra ......................................................................................................................... 798
Bianca Lopes Brites
Introdução
NEGRAS ESCREVIVÊNCIAS,
INTERSECCIONALIDADES E ENGENHOSIDADES:
ARTES, MEMÓRIA E ESPAÇOS
Rita de Cássia Moser Alcaraz1
Juliana Ertes Santos2
Paulo Vinicius Baptista da Silva3

No lugar onde Obax havia enterrado a pedra,


havia nascido um imenso baobá.
Mas não era um baobá como outros,
era grosso e forte como um elefante.
Seu tronco enrugado parecia estar desenhado
com pequenos detalhes.
Sua copa estava repleta de flores coloridas
e pássaros nunca vistos por ali.
(Neves, 2016, p.28)

A introdução deste livro reúne os trabalhos sobre artes, memória e espaço e


possui como título: Escrevivências, interseccionalidades e engenhosidades: artes,
memória e espaços.
Neste sentido, os trabalhos apresentados no COPENE 2020, tendo nesta décima
primeira edição uma abordagem remota, com o apoio da Associação Brasileira de
Pesquisadores/as Negros/as – ABPN, a Universidade Federal do Paraná (UFPR), o
Consórcio Nacional dos Núcleos de Estudos Afro-brasileiros, representado pelos
NEAB-UFPR, NUREGS-UEPG e NEAB-IFPR; a Universidade Estadual de Ponta Gros-
sa, o Instituto Federal do Paraná, forma sementes que florescem neste livro. O
evento ocorreu em dois momentos, com atividades remotas entre os dias 09 e 12
de novembro de 2020 - iniciados na semana da África com abertura em 23 de maio
e programação entre os dias 24 a 26 de maio de 2021 na Universidade Federal do
Paraná (UFPR), em Curitiba/PR.
Nenhum ano passa de forma incólume, mas, sim, o de 2020 foi um marco e
mesmo na tentativa de ultrapassar tanta impotência e limitação, a arte e o encon-
tro do COPENE apresentaram como possibilidade a interação e a adaptação para
(re)significar esse momento pandêmico. Impossível não refletir sobre tal momento
sem pensar no descaso político que ocasionou tantas mortes.

1 Pesquisadora do NEAB-UFPR, professora do Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade.


2 Pesquisadora de IC do NEAB-UFPR, Coordenadora da Comissão de Comunicação do XI
COPENE, discente de Letras da UFPR.
3 Pesquisador NEAB-UFPR e CNPQ; Coordenador local do XI COPENE, docente do Programa
de Pós-Graduação em Educação da UFPR.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 23


Artes, memória e espaços
As mortes lembram os ciclos da própria semente expressos na epígrafe acima,
morre-se para outros ciclos serem possíveis de existir. Quiça que o espaço de per-
das possa trazer renovação no campo político. A (re) existência de encontros como
o COPENE e os trabalhos apresentados em tantos eixos diferentes são como se-
mentes, sendo plantadas para (re)estruturar esgarçamentos possíveis dento de
um campo político mobilizado por tensões e subtrações históricas.
A referência a escrevivências como título deste livro, termo cunhado por Con-
ceição Evaristo, que começa a publicar aos 44 anos, apresenta as escolhas teóri-
cas e visões de mundo experienciadas pelos 80 trabalhos divididos nas 19 sessões
temáticas que organizam os capítulos deste volume. Em diálogo com a autora a
vida se mistura a arte e amplia o conhecimento. O qual, na compreensão política
a teorização impacta contextos linguísticos, da expressão artística e interroga a
academia e seus reducionismos epistemológicos. As sessões foram divididas nos
seguintes temas:

1. Arte Negra - Teatro e Literatura;


2. Letramentos, linguagens e relações étnico-raciais: interseções possí-
veis;
3. Linguagens e Literaturas de Escrevivência e Reexistência negras: deco-
lonialidades no ensino de línguas e de literaturas antirracistas;
4. Literatura Infantil, Juvenil e demais produtos culturais para infância,
juventude e a afirmação identitária negra;
5. Literatura negra e crítica contemporânea: desafios e intervenções.
6. Poéticas do existir: escrevivências do povo negro na literatura e em
outras artes;
7. Etnomusicologia;
8. Representatividade negra na mídia, no cinema, e no audiovisual afri-
cano e afro-diaspórico;
9. Ritmos da Identidade: Música, Juventude e Identidade;
10. Tecnologias, culturas, mídias e linguagens: formas de abordar as ques-
tões étnico-raciais e de enfrentar o racismo;
11. Arqueologia Negra: protagonismo, epistemologias e diálogos interdis-
ciplinares sobre memória, patrimônio e ancestralidade;
12. Musicalidades/Corporalidades Africanas e Afrodiaspóricas: cultura
popular, perspectivas étnico-raciais e insurgências epistemológicas;
13. Arquitetura, Urbanismo e Cidade Africana e Afro-Brasileira;
14. População Negra e o Direito à Cidade: interfaces entre raça e espaço
urbano;

24 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
15. Emancipações e Pós-Abolição: experiências negras de liberdade, tra-
balho, educação, sociabilidade e territorialidade;
16. Corpos Negros: experiências sociais de escravizados/as e libertos/as,
africanos/as e crioulos/as na escravidão e na pós emancipação no Brasil;
17. Modos de ver e narrar: histórias e memórias negras no brasil e na
diáspora africana;
18. Temas e debates em História da África;
19. Cultura Afro-Brasileira e patrimônio: preservação, identidade e me-
mória.

De fato, nas pesquisas, assim como na vida social, as visões de mundo, os va-
lores, entre outras possibilidades indicam trajetórias e princípios para um movi-
mento de pesquisas na área que apresentam sujeitos heterogêneos em um espaço
interseccional diaspórico tendo como eixo o Brasil e que contribuem na construção
de pesquisas na área da Educação das relações étnico-raciais (ERER).
Isso quer dizer que os trabalhos aqui escritos em si guardam memória, traje-
tória, um pouco de Conceição que também é escrevivência, e compartilham por
meio da arte, da memória a complexa tarefa em disseminar a semente teórica de
bases advindas de uma problematização de ideias antirracistas e que tem em si
implicações epistemológicas de investigações que alteram o modo de olhar para a
área de Humanidades.
A perspectiva metodológica de diferentes olhares permite observar tendências
de investigação heterogêneos e interseccionais na expressão de sujeitos sociais
que validam suas pesquisas inclusive pela expressão espacial corporificada na voz,
identidade, cabelo e cor de pele. De fato, a legitimidade ocorre pelas manifesta-
ções atuais e atenções tomando como base o fortalecimento da área. O Copene
em seus mais de 20 anos em diálogo com a sociedade por meio da centralidade
de pesquisadoras negras e pesquisadores negros aponta mudanças em diferentes
áreas de estudo.
Para além de uma distinção teórica e epistemológica em se fazer a pesquisa
e situar a arte, a literatura, a diáspora, a contemporaneidade entre outros se faz
necessário situar os espaços. Refletir em espaços, atualmente, é considerar um
isolamento social devido a pandemia, enfatizamos como tal questão se relaciona
ao espaço intimista, aquele da solitude e por vezes da solidão. Na compreensão de
que a primeira é um ato de interiorização e o segundo um ato possível de adoeci-
mento. Sem dúvida, o país adoeceu, no entanto, a condição crítica deste momento
social pandêmico foi semeada por estudos que permitiram a crítica e a denúncia
do que ocorre neste momento. Significa afirmar que um momento de princípios
de avanços na área de ERER, como o combate antirracista, e na minimização das
desigualdades sociais, de gêneros e raciais encontram-se pautadas em reflexões
teóricas das pesquisas e reflexões apresentadas neste livro. Aqui neste relato como

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 25


Artes, memória e espaços
na epígrafe enunciada acima, a semente nasce com a força de um Baobá. Tais
estudos apontam de forma abrangente tendências na área. A consolidação dos
trabalhos e pesquisas apresentadas neste livro indicam também a prospecção do
campo desbravando as áreas ao reformular os reducionismos teóricos. Tal proces-
so impacta memórias, amplia identidades sociais e fortalece aspectos teóricos na
compreensão ao contexto plural local e global.
A pesquisa no Brasil ao considerar diferentes contextos de fala e trajetórias
orienta a uma educação que passa a ser construída pela interseccionalidade de
sujeitos sociais. A relevância disso encerra um desafio de ampliar epistemologica-
mente a grande área das humanidades.
A pluralidade da formulação teórica que passa a orientar reflexões por meio
de outros contextos pode ser iluminada pela perguntas e desafios das maneiras
eurocentradas e tradicionais de se orientarem as pesquisas acadêmicas. A revisão
epistêmica passa pela revisão de perguntas e propõe compreensões que alargam a
própria estrutura social nos modos de agir, pensar e encontrar soluções no comba-
te antirracista e na visibilização de identidades sociais por meio de pesquisas apli-
cadas com percursos investigativos contemporâneos e formulações para se pensar
e teorizar a arte, a literatura, os letramentos, a arquitetura, os diálogos históricos
e organizá-los em perspectivas socioculturais contextualizadas de centralidade de
memórias e identidades negras. Tal centralidade não exclui outros sujeitos na área,
na verdade apenas deslocam para a centralidade, pesquisas e pesquisadores por
vezes rotulados como periféricos. Reitero a importância do percurso do conheci-
mento de maneira a elaborar uma perspectiva que enfatiza trabalhos e os pesqui-
sadores negros e suas identidades sociais como importantes. Ao lidar com o uso
específico de termos próprios da área de ERER também tratamos em oposição às
exclusões histórias epistêmicas, dos aspectos coloniais que persistem nos discur-
sos e pesquisas acadêmicas em diferentes partes do mundo. Pesquisar é um ato
político assim como publicizar tais artigos na disseminação do conhecimento e na
consciência de se preservar memorias e identidades no campo de estudos.
Nem sempre é possível pensar na inspiração que as pesquisas e suas formula-
ções guardam como herança; baniu-se em meados do século XIX e XX a inspira-
ção da acadêmica pela racionalidade empírica, pelo determinismo e o biologismo
cientifico a serviço da subalternização racial e organização estratégica excludente
política, jurídica, cultural. Retoma-se a inserção de culturas, linguagens, geografias
e pesquisas, e insirimos nelas a inspiração, compreendida como memória aos que
vieram antes. E re(afirmamos) a persistente atuação de negros e negras nas artes,
na literatura, na arquitetura, na ampliação de espaços geográficos e assim retomo
e ressignifico nesta introdução, a soma dos passos de uma trajetória. Somam-se
uma a tantas outras, em um artigo, as referências utilizadas remetem a dimensão
de tantos outros que antecederam a pesquisa. O caminho é essencialmente plural,
mesmo quando os passos são individuais, a ancestralidade expressa desde o título
possui bases africanas.

26 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
A formulação do conhecimento é expressa pela legitimidade acadêmica de pro-
dução de pesquisas com impacto na escolarização, na sociedade e no potencial
autoral por meio da interlocução que descontroem pressupostos que não reconhe-
cem outros pontos de partida históricos e socioculturais.
Ao percorrer de forma abrangente os 80 artigos aqui elencados constata-se a
reflexão e as reivindicações sociais e culturais, tendo como base identidades ét-
nico-raciais, tensionando a teorização pós-estruturalista e informando ao campo
identidades em intersecção na liberação de opressões e de visões tradicionais. A
construção de significados e significações re(organizam) o tecido social e discursivo
entendendo-os como ganhos culturais e sociais para além da academia.
Atravessar diferentes áreas de conhecimento implica em um foco sócio-histó-
rico de onde as pessoas atuam. A partir daí as práticas culturais, artísticas, trans e
interdisciplinares impactam as redes institucionais do que e como aprender, além
de apresentarem o percurso de conhecimentos produzidos e dos ganhos sociais de
autores-pesquisadores e de como pensam.
Pensar é um ato qualificado de organização mental complexo na comparação,
esquematização, reflexão e diálogos. Assim, retomamos a citação inicial desta in-
trodução e lembro que uma personagem criança ao enterrar uma pedra é um ato
inicial de resistência, suas histórias haviam sido questionadas, enterra-se o elefan-
te, sua companheira de aventuras como uma semente. No entanto, a tentativa de
esquecer, transforma-se Nafisa (o elefante que a acompanha em suas aventuras)
em esperança, o que morre e germina é a semente, o que cresce é o Baobá tão
forte como um elefante. Tantas possibilidades abrem-se quando a arte, a literatu-
ra, a arquitetura ocupam os espaços da escrita em livros, as imagens, assim como
a memória referenciam trajetórias e podem ser compartilhadas por meio dessa
publicação. Reitero neste volume a força dos artigos como Baobá, sejam na força
de seus pesquisadores e na “escrivência” das experiências compartilhadas nos 80
artigos aqui publicados.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 27


Artes, memória e espaços
ST 06
Arte Negra -
Teatro e Literatura
descoloniais
A MULHER NEGRA E A LITERATURA NO
BRASIL: ENTRE LETRAS, DISCURSOS E O
RECONHECIMENTO DA ESCRITA
Athemis Nunes da Fonseca

INTRODUÇÃO
A fim de compreender a dificuldade de mulheres negras serem reconhecidas
e legitimadas enquanto escritoras/autoras de obras literárias pelas instituições
(grandes editoras, mídia, bienais, feiras literárias, universidades e etc.), que esta
pesquisa está dividida em três seções, sendo elas Entre letras: Educação formal,
onde visitamos a história da educação da população negra no Brasil, desde o colo-
nialismo, a fim de perceber como esse passado de ausências reverbera até os dias
atuais. Buscamos mostrar que para a comunidade negra ter domínio das palavras
sempre foi mecanismo de luta por uma participação na sociedade brasileira e isso é
reafirmado na seção Discursos, sabendo que este artigo não dá conta da temática
que é a educação da população negra no Brasil desde o colonialismo que entrela-
çamos com outros estudos para atingir o seu objetivo a partir das pesquisas feitas
por Santiago (2012) ao buscar compreender as narrativas das mulheres negras na
literatura e suas simbologias. Por fim em O Reconhecimento da escrita como forma
de ilustrar essa falta de reconhecimento das instituições trazemos os dois casos de
maior reverberação, os casos de Carolina Maria de Jesus e de Conceição Evaristo.

ENTRE LETRAS: EDUCAÇÃO FORMAL


O autor Marcus Vinícius Fonseca (2016), traz estudos a respeito da historiografia
do negro no Brasil, no qual evidencia que alguns dados podem estar equivocados
em relação a educação formal da população negra, pois, são tratados de forma
generalizada quando na verdade deveriam ser analisados e interpretados de forma
individual.
A Constituição de 1824 garantia a instrução primária gratuita a todos os cidadãos
(VEIGA, 2016, p. 208).

É certo que, do ponto de vista racial, a Constituição de 1824, na


qualificação do cidadão, não fez restrições quanto à condição
étnica das pessoas, tendo sido definidos como cidadãos brasilei-
ros, “[...] os nascidos no Brasil, quer sejam ingênuos ou libertos,
ainda que o pai seja estrangeiro; os filhos de pai brasileiro e os
ilegítimos de mãe brasileira nascidos em país estrangeiro que
vieram se estabelecer no império; todos os nascidos em Portu-
gal; os estrangeiros naturalizados”. (VEIGA, 2016, p. 279)

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 29


Artes, memória e espaços
Segundo Veiga (2016) o Ato Adicional de 1834 previa que a implantação das
aulas de instrução elementar passasse a ser competência das Assembleias Provin-
ciais. Neste caso cada província tratava da inclusão e da permanência de negras e
negros cativos, livres ou forros nas escolas oficiais de formas diferentes. Como é
o caso apresentado da província do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais apresen-
tado por Fonseca (2016). Sendo a primeira de exclusão total da população negra
(cativos, livres ou forros) ao sistema de ensino da época e a segunda permitia e in-
centivava essa permanência no sistema educacional. Portanto, fica nítido que vale
interpretar os seus contextos históricos e de formação populacional específicos de
cada províncias à época.
São poucos os estudos que trazem informações sobre a educação da população
negra antes do século XIX, no entanto, isso não significa que esta foi inexistente.
Segundo Cressoni (2016) durante a colonização os jesuítas, por exemplo, instala-
ram colégios nas províncias de Salvador e Pernambuco durante o século XVI. No
entanto, estes dedicavam-se na catequização de indígenas e negros africanos es-
cravizados. Seus interesses eram puramente religiosos e cristãos, com intuito único
de ensinar a ‘palavra do Criador’.
Enquanto na primeira metade do século XIX há evidências documentais de que
negros cativos e forros não eram autorizados a frequentar escolas, contudo isso não
significa que estes não tinham acesso ao letramento ou de que eram iletrados (vis-
to que estes pertenciam a outras sociedades). Um dos casos apresentado por Mo-
rais (2016) nos remete a Revolta dos Malês. Onde foi identificado junto ao corpo
de alguns dos revoltosos amuletos com escritos em árabe, orações e passagens do
Alcorão. Cativos e forros acessavam também o mundo das letras através de pro-
fessores e mestres particulares, assim como escolas públicas de forma ilegal, já que
a fiscalização por parte do império não era frequente.
Outro aspecto relevante sobre a educação da população negra no Brasil nos re-
mete a Lei do Ventre Livre de 1871. Após a sua promulgação as províncias trataram
de formas diferentes a obrigatoriedade da educação de ingênuos, mas pode-se di-
zer que tanto meninos quanto meninas tiveram acesso à educação formal, fossem
em escolas particulares ou públicas ou ainda com professores particulares ou em
irmandades.
Durante o século XIX, nota-se alguns protagonistas que contestaram a ordem
estabelecida e as desigualdades do sistema de ensino, entre eles estão indivíduos
pretos e pardos que já haviam sido instrumentalizados e passaram - alguns em suas
próprias residências - a alfabetizar e escolarizar a população negra. Igrejas também
abriram escolas e passaram a atender a população negra, indígena e pobre. Alguns
abolicionistas também eram entusiastas da escolarização de negros libertos, livres
e escravizados.
Segundo Luz (2016) durante a primeira metade do século XIX há registros que
indicam que a Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais de Pernambuco1, socie-
dade majoritariamente formada por trabalhadores pretos e pardos, evidenciam

30 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
que alguns de seus membros eram muito bem letrados. Exemplo disso, é a figura
de Izídio de Santa Clara, que fora o primeiro diretor da associação. A associação
tinha como eixo central o campo educacional e que o próprio Izídio, homem pardo
e que tinha o ofício de carpina, ministrava aulas em sua residência. Ainda sobre a
Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais de Pernambuco1:

Entre esses trabalhadores, havia filhos de cativos ou mesmo es-


cravos alforriados que haviam se tornado exímios especialistas
em determinadas atividades, alguns chegando até mesmo ao
patamar de mestres do ofício, mas que, em razão do estatuto
social referendado na cor da pele, acabavam encontrando difi-
culdades de acessar as letras por meio da instrução formal. Essa
particularidade talvez refletisse a própria configuração do local
onde começaram a ser ministradas as aulas da associação. (LUZ,
2016, p.124)

Ana Flávia Magalhães Pinto (2018), em Escritos da Liberdade nos mostra que
nas décadas de 1860 e 1870 a população negra já se organizava, mas somente a
partir de 1887, um ano antes da abolição da escravatura pela Princesa Isabel, que
estes movimentos, orquestrados por intelectuais negros tomaram notoriedade
na sua militância pelos direitos da população negra. Surgiram nesse contexto os
primeiros grupos do Movimento Negro Brasileiro, como por exemplo, a Liga dos
Homens de Cor, no Rio de Janeiro e a seguir outras Associações Negras em estados
como São Paulo e Rio Grande do Sul. O movimento clubista, dos homens de cor,
teve grande protagonismo nesse processo, já que estes estavam comprometidos a
garantir o pleno exercício da cidadania a população negra à época e positivar a sua
imagem perante a sociedade. Esse movimento tem grande influência nesse proces-
so de alfabetização e escolarização da população negra.
Sob o governo republicano de Getúlio Vargas e com a Constituição de 1934 a
educação escolar tornou- se obrigatória, seu texto não determinava que ela fosse
realizada em instituições escolares oficiais e nada continha em relação a educação
de negros e negras. Ao mesmo tempo a Frente Negra Brasileira cobrava atenção
para a importância da educação formal da população negra, largada à sua própria
sorte.
Segundo Rosemberg e Piza (1996, p.116), em relação a população feminina (5
anos ou mais nos anos de 1872 a 1991), os dados nos mostram que de 1872 a 1970
mais da metade dessa população era analfabeta. Esses dados não distinguem as
mulheres por raça/etnia, mas nos situam da situação da mulher no geral em relação
ao letramento e a escolarização no Brasil. Segundo o site Retratos das Desigualda-
des de Gênero e Raça do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) os dados
a respeito da população brasileira feminina analfabeta de 15 anos ou mais de ida-

1 Iniciada em 1836 e fundada oficialmente em 1840.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 31


Artes, memória e espaços
de, do ano de 1995 a 2015 nos evidencia que no recorte racial as mulheres negras
representam um maior número de analfabetas do que as mulheres brancas.
Chartier (2009, p.108) coloca um fator de extrema importância a respeito do
interesse do Estado na alfabetização e escolarização de algumas camadas sociais.
E como esse interesse se manifesta no controle social do conhecimento, visto que,
quanto maior o letramento e a escolarização, menor o número de mão de obra
para os ofícios da terra ou da manufatura. Assim, podemos também entender a
demora na adesão às cotas raciais nas universidades públicas brasileiras.

DISCURSOS: A LITERATURA COMO MECANISMO DE LUTA


Nos estudos feitos a partir da obra Vozes Literárias de Escritoras Negras de Ana
Rita Santiago (2012), que traça um percurso analítico sobre a construção da identi-
dade da mulher negra na literatura brasileira, perpassando por autores canônicos
que retrataram a mulher negra de forma estereotipada e negativista e de autores
e autoras negros e negras que retrataram as mulheres negras de forma humana e
positivista e também trazendo traços afro diaspóricos buscamos compreender o
que está em jogo.
Santiago (2012) fala especificamente sobre a constituição da identidade da mu-
lher negra a partir da literatura e como é pela mesma literatura que as mulheres
negras reivindicam que essa identidade que o outro vê não é uma identidade real.

Ao (re)apresentar uma diferença negativa de mulher negra, a


literatura reproduz simbolicamente, estereótipos que a subju-
gam, através de qualitativos carregados de imagens de um pas-
sado de escravização, exploração, sensualidade, libido e virilida-
de exacerbada, negando-lhe aspectos positivos, que promovam
uma construção afirmativa de suas identidades. Sendo assim,
pela linguagem, pois, é possível se (re)produzirem sentidos que
pouco favorece o exercício da alteridade. (SANTIAGO, 2012, p.
99)

É o que as autoras entrevistadas relatam ao serem perguntadas sobre se sen-


tirem valorizadas e o que falta para que elas e outras mulheres negras escritoras
sejam devidamente reconhecidas e valorizadas. E ao cruzamos essas falas com ini-
ciativas que buscam dar ênfase na literatura negra feminina, compreendemos que
ainda temos um longo caminho a percorrer para a legitimação dessas mulheres
enquanto escritoras, já que essas são atravessadas pelo racismo.

Por meio dessa literatura, na qual se compreendem identida-


des e culturas negras como elaborações humanas, instituídas de
valores, crenças, histórias, experiências, indagações, dentre ou-
tros, acredita-se que se constroem oportunidades de expressão
de si, da negritude, de referências de africanidades, de vivên-
cias, bem como de concepções de mundo. A escrita literária ne-

32 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
gra torna- se uma textualidade de formação e de fortalecimento
de identidades negras, possivelmente, por isso a pesquisadora
Damasceno (1988), ao caracterizar a poesia negra brasileira, su-
gere que essa textualidade se evidencia através da procura da
identidade do negro. (SANTIAGO, 2012, p. 133)

Por se tratar de uma escrita insurgente que suas forças são temidas pelas ins-
tituições, pois, colocam a prova as certezas e tradições da lógica operante que be-
neficia aqueles poucos que sempre detiveram o poder. “[...] com ênfase na criação
de vozes poéticas e nas construções discursivas e imaginárias de femininos e femi-
nismo negro, cotejadas por anseios por escrita e vozes literárias que vislumbrem
emancipação e resistência” (Santiago, 2012, p. 147). A autora analisa os textos das
escritoras negras atuais e analisa seus versos com as dimensões simbólicas da vida
em sociedade e suas imbricações no racismo.

O RECONHECIMENTO DA ESCRITA
Os dados anteriormente destacados nos interessam a fim de ilustrar os discur-
sos literários das mulheres negras e como essas dificilmente são legitimadas pelas
instituições.
Carolina Maria de Jesus é um desses exemplos, ela escreveu o livro Quarto de
Despejo: Diário de uma favelada. Sua primeira edição foi lançada em 1960. O livro
começa a ser narrado em 1955 e vai até 1960, em seus textos ela nos mostra como
era incomum uma mulher negra ter interesse pelos livros e pela escrita e também
como a escrita era importante para ela ao viver em condições de subsistência, to-
das narradas em seu livro, denúncias de desigualdades sociais presentes ainda em
nossa sociedade. Ela mostrou também como a sua escrita – cheia de erros grama-
ticais básicos devido ao seu baixo nível de escolarização – tornou- se ferramenta
de luta e resistência.
O caso de Carolina Maria de Jesus, nos mostra também como apesar de ter
ganhado dinheiro com seus livros publicados, ela apenas foi consagrada após a sua
morte. Fato que confirmaisso é que somente recentemente2 a Companhia das Le-
tras3 anunciou que irá publicar todos os escritos da autora. Podemos relacionar
essa ação também ao movimento Black Lives Matter4, que no Brasil através de ati-
vistas e intelectuais negras e negros têm chamado a atenção para as condições de
vida da população negra brasileira e a sua representatividade em espaços de poder.
Conceição Evaristo é outra mulher negra que demorou a colher os louros de sua
produção literária. Ela iniciou na literatura em 1990, publicando contos e poemas

2 Notícia anunciada em 2020.


3 A maior editora localizada no Brasil.
4 Movimento iniciado nos EUA e propagado em todo o mundo, ganhando grande notoriedade
e comoção popular após o assassinato de George Floyd numa abordagem da polícia durante a Pande-
mia de Covid-19.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 33


Artes, memória e espaços
na série Cadernos Negros, que surgiu no Quilombhoje5, que é uma das associações
do Movimento de Associações Negras que surge ainda no Brasil Império. Sua pri-
meira publicação por editora se dá em 2003. Em 2006 é lançado o seu segundo
livro. Depois em 2011, Conceição Evaristo lança o seu volume de contos. Em 2013
a obra Becos da memória ganha nova edição, pela Editora Mulheres, de Florianó-
polis, e volta a circular nas prateleiras e catálogos literários. Em 2014 a escritora
publica Olhos D’água, livro finalista do Prêmio Jabuti na categoria “Contos e Crô-
nicas”. Enquanto em 2016, lança mais um volume de ficção, “Histórias de leves
enganos e parecenças”. Em 2017, o Itaú Cultural de São Paulo realizou a Ocupação
Conceição Evaristo, que visava evidenciar aspectos da vida e obra da escritora. Em
2018, a escritora recebeu o Prêmio de Literatura do Governo de Minas Gerais pelo
conjunto de sua obra.
Aqui se faz necessário relatar o acontecido com Conceição Evaristo na disputa
por uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, em 2018, onde ela desafiou a
tão consagrada academia e seus membros ao candidatar-se a uma cadeira com
campanha popular e sob o discurso da falta de representatividade negra na insti-
tuição. Conceição foi derrotada por Cacá Diegues, homem branco, que recebeu 22
votos, enquanto ela recebeu apenas 1. Caso ganhasse Conceição Evaristo seria a
primeira mulher negra a ocupar uma cadeira na casa. Ela viria a ocupar a cadeira de
número 7, cujo patrono é ninguém mais, ninguém menos que o poeta abolicionista
baiano Castro Alves. Atualmente, há apenas 5 mulheres na casa e somente 1 negro
entre os 39 acadêmicos.
Chartier (2009, p. 23) no primeiro capítulo de sua obra, A aventura do livro: do
leitor ao navegador, defende que a cultura escrita é inseparável dos atos violentos
que a reprimem. Segundo ele, antes mesmo de existir o direito do autor sobre a
sua obra, a identidade do autor esteve ligada à censura e à interdição dos textos
considerados subversivos pelas autoridades religiosas e/ou políticas. Ainda neste
primeiro capítulo Chartier (2009, p. 32) evoca Foucault para uma questão muito
importante sobre a identidade de quem produz uma obra literária, dizendo que
“numa determinada sociedade, certos gêneros, para circular e serem recebidos,
têm necessidade de uma identificação fundamental dada pelo nome de seu autor,
enquanto outros não”. Podemos nos utilizar desta afirmação para problematizar
o fato de alguns autores serem consagrados independente de suas obras serem
“boas” ou terem relevância social, enquanto outros autores levam anos para se-
rem consagrados e alguns nunca chegam a ser. No entanto, isso também vai de-
pender do contexto social e político da época, bem como do contexto social ao qual
o autor está inserido.
No caso acima citado, de Conceição Evaristo e ao buscar informações sobre o
ocorrido notamos como as relações interpessoais dos autores e a ordem vigente
influenciam a tomada de decisão das instituições. Pois o seu reconhecimento vai
depender das instituições que determinamo que será ou não legitimado, de acordo

5 Fundado em 1980, com intuito de dar visibilidade as literaturas negras.

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Artes, memória e espaços
com os interesses políticos e culturais da sociedade. Afirmações como essa colabo-
ram com o fato de que é necessário saber de qual lugar se fala, se escreve. A partir
de qual contexto e o que se pretende com isso.
Assim como relato por Carolina Maria de Jesus sobre a raridade de mulheres
negras terem gosto pela escrita e pela leitura, notamos que isso tem relação com o
processo histórico de educação formal das mesmas bem como destes constructos
sobre seus espaços na sociedade.

O cerceamento e desconhecimento de autoras negras, partici-


pantes da pesquisa, por exemplo, agrava mais ainda, quando se
percebem naturalizados os papéis sociais que lhes são atribuí-
dos, não como cuidadoras de seus entes, mas como serviçais de
lares de famílias abastadas. Assim, essa realidade suscita uma
escrita de autoria feminina, sobretudo de autoras negras, com
tons de protesto e de reivindicação de direito à contra fala e
às formações de si para além de estereótipos negativos e, mais
ainda, a discursos diferenciadores daqueles que as subjugam ao
espaço doméstico e ao silenciamento. (SANTIAGO, 2012, p. 149)

Percebendo que a escrita das mulheres negras foi forjada como mecanismo de
luta identitárias e de possibilidade de narrativas outras que não a aquela instituída
pelo olhar do outro através de denúncia e combate ao racismo e outras opressões,
como de gênero e de classe, numa sociedade estruturalmente racista e negativis-
ta estendemos como e manter essas escritoras deslegitimadas pelas instituições
como autoras e especialistas na arte da palavra faz parte dessa engrenagem.

Nesse contexto, a literatura afrofeminina é uma produção de au-


toria de mulheres negras que se constitui por temas femininos
e de feminismo negro comprometidos com estratégias políticas
civilizatórias e de alteridades, circunscrevendo narrações de ne-
gritudes femininas/feminismos por elementos e segmentos de
memórias ancestrais, de tradições e culturas africano-brasileiras,
do passado histórico e de experiências vividas, positiva e nega-
tivamente, como mulheres negras. Em um movimento de rever-
são, elas escrevem para (des)silenciarem as suas vozes autorais
e para, através da escrita, inventarem novos perfis de mulheres,
sem a prevalência do imaginário e das formações discursivas do
poder masculino, mas com poder de fala e de decisão, logo se-
nhoras de si mesmas. (SANTIAGO, 2012, p. 154)

Notamos nas respostas das entrevistadas a necessidade de impulsionar as vozes


de suas companheiras de caneta e papel, por exemplo, ao serem questionadas so-
bre quem são suas autoras referência e ao indicarem aquelas que as acompanham
em saraus, slam’s e outras profissionais da arte e da cultura que se reconhecem na
luta e proporcionam umas às outras oportunidades que o grande mercado literário
não proporciona.

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Artes, memória e espaços
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como pesquisadora da área da cultura e das políticas culturais não poderia dei-
xar de trazer ideias para que este cenário se cambie. Numa rápida pesquisa por
editais que visassem incentivar a escrita de mulheres negras foi percebida a sua
quase inexistência, com ações muito pontuais promovidas por pequenas editoras
e/ou coletivos artísticos e culturais, o que foi reafirmado em entrevista, quando
perguntado sobre a participação das autoras em editais e prêmios para escritoras.
Portanto, acredito que o caminho está por aí. Se faz necessário que se amplifique
os estudos acerca das necessidades das escritoras negras, que haja mapeamentos
que nos auxiliem a compreender onde elas estão e quais suas necessidades especí-
ficas. E que o Estado tome partido nessa luta e promova iniciativas que incentivem
e promovam suas carreiras literárias.

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Artes, memória e espaços
COLABORADORAS
Patricia Meira (escritora, compositora e produtora cultural) – entrevista dada em 4
e 5.out.2020.
Tawane Theodoro (escritora) – entrevista dada em 5.out.2020.

AUTORIA
Athemis Nunes da Fonseca
Bacharelanda do Curso de Produção e Política Cultural; Bolsista do Programa de
Educação Tutorial- Produção e Política Cultural; Membra do Núcleo de Estudos
Afro-brasileiros e Indígenas- Mocinha da Universidade Federal do Pampa- Campus
Jaguarão.
E-mail: athemisfonseca@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2036-0137
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7517117238672313

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Artes, memória e espaços
COMPAIXÃO DE TONI MORRISON:
UM BILDUNGSROMAN DECOLONIAL
Natalino da Silva de Oliveira

A desumanização racista não é apenas simbólica;


ela delimita as fronteiras do poder (...).
O racismo faz diferença.
Ser um Outro neste país faz diferença,
e a verdade desanimadora é que
provavelmente continuará a fazer.
É raro que comunidades humanas abram mão
de privilégios por simples altruísmo,
e portanto o único mundo em que se pode
imaginar os apoiadores da branquitude
renunciando à sua religião é um mundo em que
seus privilégios se transformem num luxo
ao qual eles não se podem dar.
(Morrison, 2017, p. 16-18)

INTRODUÇÃO
Armei-me de aparatos teóricos que pudessem me aproximar da escrita de Toni
Morrison. Contudo, todas as aproximações intermediadas pelo academicismo tor-
navam a minha compreensão de Compaixão mais distante, menos sensível, mate-
rialista, desastrosa. Crucial foi olhar para mim. Talvez, este tenha sido o exercício
mais importante para a aquisição de uma episteme decolonial.
Os anos de prática intelectual não me soterraram em um conjunto de títulos
que lutei tanto para conquistar e que não me tornaram mais digno. Ardem ainda
em carne viva as antigas feridas que com as novas se acumulam. Minha tessitura
intelectual arde como o corpo vivo de um negro preto diaspórico carregado em
ressentimentos de um existir marcado pelo imperativo da sobrevivência.
Partindo daí, foi possível verificar os enigmáticos pontos de coesão da narra-
tiva e que acabavam do desalinhar meu ser. Não há uma parte deste livro que
não me faça sentir: sentir ódio, tristeza, rancor. Mas, há também alguns pequenos
momentos de amor, de alegria e de verdadeira compaixão. Estes lapsos, em que
nos esquecemos da dor, doem mais em nós, negros e negras, pois sabemos ou
pressentimos que não são duradouros. Porém, é o que nos faz seguir, caminhar.
Como se a vida mesmo fosse algo por vir e ainda assim é necessário aproveitar
cada momento.
Compaixão é um romance lançado em 2008 e com ele, Toni Morrison retoma o
tema da escravidão apresentado em Amada. É interessante observar que os dois

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Artes, memória e espaços
títulos trazem um significado positivo com as palavras utilizadas. Porém, há uma
triste ironia nos dois, pois o contexto apresentado em ambas narrativas acaba con-
tradizendo as noções apresentadas nos títulos. E isso pode ser observado com ni-
tidez em Compaixão. O romance retrata a pequena Florens, uma garotinha negra
de sete ou oito anos que não consegue andar sem usar sapatos, é entregue como
forma de quitar uma dívida de seu antigo proprietário para com o senhor Jacob
Vaark. Ela é oferecida pela própria mãe com forma de proteger o bebê que ainda
estava carregando no colo. Sendo assim, ela é afastada do amor materno e vive
com a incômoda sensação de ter sido rejeitada.
Levada para a fazenda de Vaark, ela encontra o núcleo de personagens prin-
cipais: Rebekka, a esposa de Vaark; Lina, uma escrava de origem indígena sobre-
vivente da varíola; Sorrow, escrava negra que é retratada como infeliz (o próprio
nome significa tristeza, diria que seria “desgraça” mesmo). As ações giram em tor-
no estas quatro sofridas mulheres chefiadas até o momento da morte pelo Senhor
Vaark.
O romance apresenta duas vozes, dois registros narrativos. O primeiro registro
que conhecemos é da própria Florens que inicia a abordagem de sua história. A
voz de Florens se apresenta em tom materno de alguém que conta algo na inti-
midade para um ouvinte mais jovem: “Não tenha medo. Eu contar não vai te ferir
(...)” (Morrison, 2008, p.7). A própria protagonista afirma que tudo começa com
os sapatos. Afinal, este tipo de acessório jamais seria de comum uso entre negros
escravizados. Isso acaba trazendo consequências para a personalidade de Florens,
pois tal como afirma Lina, os pés de Florens “(...) são inúteis, vão ser sempre ma-
cios demais para a vida e nunca vão ter as solas fortes, mais grossas que couro, que
a vida exige.” (Morrison, 2008, p. 8). É no relato em primeira pessoa que sentimos
“na pele” as dificuldades enfrentadas pela protagonista.
O artigo que se apresenta almeja analisar Compaixão de Toni Morrison pela
perspectiva decolonial e como romance de formação. Além disso, objetiva acom-
panhar Florens como uma representação do ser que alcança a percepção de suas
identidades e que se afasta das amarras destrutivas e coloniais. Serão avaliadas
perspectivas decoloniais de leitura juntamente com teorias sobre romances de
formação para alinhar a interpretação aqui elaborada com amadurecimento da
protagonista. A caminhada é muito íngreme e repleta de armadilhas e obstácu-
los. Porém, não a farei. Convidei para a roda bell hooks (1995), Benjamin (1994),
Mignolo (2003), Quijano (2005), Boaventura de Sousa Santos (2010), Sarlo (1997),
Gilroy (2001).

ESTRUTURA NARRATIVA
A voz de Benjamin ainda ecoa em meu fazer acadêmico de forma reverberativa,
fruto de uma antiga paixão materializada em alguns artigos publicados aqui e aco-
lá. Ouço-o afirmar: "a arte de narrar está em vias de extinção" (Benjamin, 1994, p.

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Artes, memória e espaços
197). A artificialidade provocada pela reprodutibilidade técnica dificulta a produção
de uma narratividade centrada no sensível. Pois, a narração é algo natural da ora-
lidade em proximidade com um fazer artesanal que já brilha como um vaga-lume
em meio aos holofotes do mainstream e da arte como produção. Contudo, o que
se observa no romance Compaixão é o retorno do narrador tradicional, daquele
que narra uma experiência. O romance já é introduzido por uma voz alicerçada na
oralidade: “Não tenha medo. Eu contar não vai te ferir (...)”(Morrison, 2008, p.7).
Contudo, quando o que se narra é algo tão forte, tão traumático, fica complica-
do seguir uma estrutura linear. Os pontos ficam soltos e a emoção toma conta de
tão forma que o que se apresenta é um todo vivo e indomável. É nestes metamor-
fosear que a escrita de Morrison consegue resgatar o ato de narrar.

Talvez seja necessário, apesar de tudo […], acreditar que novas


formas narrativas, que ainda não sabemos denominar, estejam
nascendo; elas atestarão que a função narrativa pode se meta-
morfosear, mas não morrer. Pois não temos qualquer ideia do
que seria uma cultura em que não se soubesse mais o que signi-
fica narrar. (Ricoeur, 1995, p. 46 - grifo do autor).

Portanto, o romance se apresenta em estrutura caleidoscópica e palimpséstica.


O caleidoscópio se apresenta nas camadas que rejeitam categoricamente uma ló-
gica linear. Ao passo que o palimpsesto é encontrado na peculiar lida com o tempo
- esta entidade que se apresenta na narrativa de Morrison com natureza anárquica.
É como se o leitor estivesse constantemente raspando novos fatos sob antigas vio-
lências. Sendo assim, antigo e novo, nesta estrutura, estão em existência simultâ-
nea. Isso fere a lógica eurocêntrica de controle da temporalidade e apresenta uma
lógica ancestral, do tempo enquanto circularidade mítica.
Porém, quando se aborda o texto de Morrison, a decolonidade se apresenta até
mesmo no uso calibanístico1 da língua. A língua inglesa empregada por Toni Morri-
son funda outro idioma dentro do inglês. Aparentemente, a forma como emprega
a língua acaba por corroer o inglês, gerando a ideia de que existem outros idiomas
dentro da própria língua. Morrison acaba por fundar um inglês enquanto língua
estrangeira para os próprios ingleses ou demais falantes brancos da língua. Há uma
preocupação demasiadamente poética e musical da autora no uso das palavras.
A escrita de Morrison, portanto, alcança o viés performático da literatura, da
palavra. A fala se aproxima da coisa. Morrison é a macumbeira que faz uso de pa-
lavras e as estrutura em poderosos ebós epistemológicos distorcendo e, ao mesmo
tempo, contrapondo a lógica eurocêntrica do discursos enquanto signo esvaziado.
A fala da autora é - resgatando a capacidade performativa do signo. Nas páginas de

1 Referência a Caliban, personagem da peça A tempestade de Shakespeare. Ele assimila a cul-


tura e domina a língua de Próspero para poder blasfemar contra seu mestre. Desta forma, é por meio
da dissimulação que Caliban se apropria de elementos culturais de seu senhor para poder usar estes
como armas, como ferramentas para exercer sua fala própria; deixa, assim, de ser um mero repetidor.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 41


Artes, memória e espaços
Compaixão, há "um grau de elaboração que coloca a função poética em destaque,
através de uma gama de mecanismos que atraem a atenção do ouvinte para as
propriedades formais do ato de expressão (Bauman, 2008, p.9). Os mecanismos
se estruturam em pausas, em repetições, em aliterações; elaboram uma prosódia
com raiz na oralidade ancestral. A poética ancestral da oralidade é a realidade em
que todo falar não é apenas um mero balbuciar; e sim que se apresenta enquanto
força política transformadora (Gilroy, 2001). O falar da ancestralidade vem mon-
tado na ação - isso resgata o valor da experiência e o narrador contemporâneo é
incorporado pelo narrador tradicional.
A língua inglesa oficial não é a língua de Florens, tampouco seria a de Morrison.
Assim como a língua portuguesa oficial não é a minha língua. Porém, a língua que
Morrison capta da boca de Florens se aproxima da minha língua e, até mesmo,
posso dizer que são as mesmas. É a língua de minha avó e de suas benzeduras, a
de afeto utilizada por minha mãe; É a língua que utilizo com minha filha, com meu
filho no convívio íntimo e diário. É a língua que acolhe e que inclui - é a língua da
verdadeira compaixão.

INSTRUÇÕES PARA O EBÓ


A metodologia empregada é de cunho bibliográfico tomando por base a análi-
se do discurso literário com elementos de literatura comparada; não como forma
de comparar diferentes textos narrativos, mas sim para revisar a teoria literária a
partir de características demandadas pelo romance de Morrison. A leitura cami-
nhará pelo sendeiro da epistemologia decolonial, por isso será essencial convidar
para a roda a companhia de camarás bell hooks (1995), Benjamin (1994), Mignolo
(2003), Quijano (2005), Boaventura de Sousa Santos (2010), Sarlo (1997), Gilroy
(2001).
Como guia para a caminhada de leitura decolonial de Compaixão, serão se-
guidos os passos da protagonista da narrativa. O romance nos apresenta Florens
como uma menina que inicia sua trajetória calçando os sapatos que eram de outra
pessoa e que não se encaixavam bem em seus pés. Esses calçados inadequados são
aqueles que são impostos pela colonização e que obrigam com que as pessoas su-
balternizadas caminhem sem qualquer segurança e de forma totalmente desajei-
tada. Os pés artificialmente e forçosamente calçados representam o indivíduo que
é forçado a adquirir toda uma complexidade de costumes que sempre o colocarão
em situação de extrema desvantagem: língua, cultura, religião.
Compaixão é um romance lançado em 2008 e com ele, Toni Morrison reto-
ma o tema da escravidão apresentado em Amada. É interessante observar que
os dois títulos trazem um significado positivo com as palavras utilizadas. Porém,
há uma triste ironia nos dois, pois o contexto apresentado em ambas narrativas
acaba contradizendo as noções apresentadas nos títulos. E isso pode ser obser-
vado com nitidez em Compaixão. Porém, durante o romance também é possível

42 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
visualizar as transformações ocorridas na capacidade de Florens se relacionar com
este ambiente hostil. As estratégias de sobrevivência vão alterar profundamente
as características físicas e psicológicas da protagonista. Esta e outras características
acabam trazendo para o romance de Morrison aspectos próprios de um romance
de formação.
O termo Bildungsroman e´de origem alemã. Contudo, ainda que alguns roman-
ces alemães sejam utilizados como paradigmas para esse tipo de narração (Os anos
de aprendizado de Wilhelm Meister de Goethe, por exemplo), o romance de forma-
ção não se limita àqueles que são escritos por alemães, com personagens alemães
e tendo como espaço o contexto da Alemanha. O gênero narrativo que acompanha
as transformações políticas, sociais, estilísticas, morais, filosóficas, psicológicas, fí-
sicas de uma personagem acaba se manifestando em diferentes solos, elaborado
por diferentes escritores e, por consequência, com diferenciadas perspectivas.
Compaixão se estrutura enquanto romance de formação quando narra a histó-
ria de Florens, desde seus primeiros passos (utilizando os calçados que desajeita-
damente não se encaixam em seus pés) até o momento em que retira os sapatos
para pisar o solo descalça e em que fortalece as solas de seus pés com as próprias
feridas, cicatrizes e calos provocados por este ato.

REFLEXÃO DECOLONIAL
O pensamento decolonial não se constitui enquanto um esforço de retorno ao
que existia antes do processo de colonização - isso seria um fazer impossível e sem
qualquer possibilidade de ocorrer. Decolonizar é buscar aquilo que Mignolo deno-
minou de pensamento fronteiriço (Mignolo, 2003) - um método que se aproxima
do que vem sendo denominado como epistemologia das encruzilhadas. Afinal, só
ouvindo Exu para entender a lógica dos cruzos. Afinal, Exu matou um pássaro on-
tem com a pedra que arremessou hoje (sabedoria ancestral Iorubá). Portanto, é
preciso acertar a colonialidade de ontem com a pedra que jogamos hoje. Impossí-
vel? Não, apenas é necessário seguir a lógica exuística da encruzilhada. Impossível
é negar a realidade diaspórica do povo negro. Impossível é viver aqui sem pisar o
chão, sem cortar nossos pés neste solo tão hostil, sem criar dureza nos tecidos de
nossa existência.
Porém, abandonar o sonho de retorno ao período anterior ao processo colonial
não significa abrir mão de qualquer tentativa de retorno. Sankofa é o adinkra que
impera nossas existência diaspórica e periférica. O pássaro mítico que gira o pesco-
ço entoando “volte e pegue”, sabendo que nem tudo é possível ou útil pegar. Mas,
é essencial retomar, reconhecer nossa riqueza cultural e conhecer o processo que
nos levou até nossa atual condição:

Seu povo tinha construído cidades protegidas durante mil anos


e, a não ser pela marcha mortal dos europas, podiam continuar

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 43


Artes, memória e espaços
construindo por mais mil. Acontece que o chefe da tribo estava
completamente errado. Os europas nem fugiram nem morre-
ram. Na verdade, disseram as velhas encarregadas das crianças,
ele tinha se desculpado por seu erro na profecia e admitiram
que por muitos que tivessem morrido de ignorância ou doença
mais sempre viriam. Viriam com idiomas que pareciam latidos
de cachorro; com uma fome infantil por peles de animais. Para
sempre cercariam terra, embarcariam árvores inteiras para paí-
ses distantes, tomariam qualquer mulher para um prazer rápido,
arruinariam o solo, profanariam lugares sagrados e adorariam
um deus sem graça e nada imaginativo. Deixam seus porcos pas-
tar nas costas do mar, transformando tudo em dunas de areia
onde nada verde pode jamais brotar de novo. Seccionados da
alma da terra, eles insistiam na compra de seu solo, e como to-
dos os órfãos eram insaciáveis. Era seu destino mastigar o mun-
do e cuspir um horror que destruiria todos os povos primordiais.
(Morrison, 2008, p. 55)

É preciso se negar a fazer como os colonizadores. Não se pode comer tudo e


cuspir ódio, horror ou medo. Exú come tudo que a boca come. Mas, não come
qualquer coisa, pois é conhecimento básico para a nagologia de que a boca só
come aquilo que pode fazer bem, que pode nutrir, que traz força e vitalidade. E não
se pode trocar um alimento ancestral pelo alimento vazio que agora está sendo
vendido no mercado. Escolher o alimento que nutre o Ori (cabeça) e não aceitar
epistemologias que insistem em quebrantar nossas forças. Quem não se acostuma
a visitar a encruzilhada fica perdido e não sabe qual caminho escolher. Ser decolo-
nial é fortalecer os pés até o ponto em que a pedra é que sangra com nosso pisar
descalço. É virar a própria fúria como estratégia de resistência. É também se for-
talecer sem se esquecer dos seus com a ternura da verdadeira compaixão de um
cafuné.
E onde reside a compaixão para com os negros?

O viajante ri da beleza e diz: “Isto é perfeito. Isto é meu”. E a


palavra incha, ressoando como um trovão pelos vales, pelas ex-
tensões de prímulas e malva. Criaturas saem de cavernas per-
guntando-se o que aquilo significa. Meu. Meu. Meu. As cascas
dos ovos da águia estremecem e um até racha. A águia gira a
cabeça em busca da fonte de estranho trovão sem sentido, do
som incompreensível. Ao identificar o viajante, ela mergulha
para remover com as garras seu riso e seu som antinatural. Mas
o viajante, atacado, levanta o cajado e bate na asa dela com toda
a força. Gritando, ela cai e cai. Em cima do lago turquesa, além
da cicuta eterna, através das nuvens cortadas pelo arco-íris.
Gritando, gritando ela é levada pelo ar em vez de pela asa. En-
tão Florens sussurrava: “Onde ela está agora?”. “Ainda caindo”,
Lina respondia, “caindo para sempre.” Florens mal respira. “E os
ovos?”, pergunta. “Chocam sozinhos”, diz Lina. “Sobrevivem?”,
o sussurro de Florens é urgente. “Nós sobrevivemos”, diz Lina.
(Morrison, 2008, p. 61- 62)

44 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
Este ser que a tudo nomeio e que a tudo deseja dominar não pode carregar algo
tão sensível quanto a compaixão. A compaixão, a verdadeira compaixão anunciada
no título do romance de Morrison não surge, tal como fica evidenciado ao longo da
narrativa, no momento em que o senhor branco adquire como sua propriedade a
pequena criança escravizada. Ela só surge verdadeiramente nos momentos cruciais
deste romance de formação em que percebemos mínimas ações de solidariedade
entre aqueles que sobrevivem, entre os que são subaternizados. Isso fica claro no
momento em que Florens e Lina veem uma águia morrer e Floren pergunta para
Lina se os ovos iriam sobreviver e Lina responde: “Nós sobreviveremos”. Este “nós”
alinha e une oprimidos em um mesmo ideal de sobrevivência. A Compaixão, a ver-
dadeira Compaixão, reside na fala de minha avó, nas benzeduras de minha avó.
Uma voz que foge da lógica falocêntrica, epistemicida e eurocentrada. Uma voz
inteligível entre os “seus”, os “meus”, os “nossos”, inteligível pela via cordial (do
coração). Ela habita a voz presente no romance de Morrison e que identifico como
a da minha saudosa avó.Uma voz inesperada aparece e, com o impacto provocado
pela doçura em meio a tanta aspereza, traz à tona o verdadeiro sentido da palavra.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Florens foi acompanhada por esta pesquisa do início ao fim da narrativa. Assim,
foi possível buscar relações entre aspectos da vida da protagonista e conceitos pró-
prios de epistemologias suleadas e decoloniais. Observando elementos de estilo e
conteúdo narrativo, é visível que o romance de Toni Morrison se nega a permitir
que o esquecimento apague as mazelas que demonstram que humanidade em di-
versos momentos se perdeu. Sua narrativa é um daqueles textos que “(...) teimam
em opor-se à hipocrisia de uma reconciliação amnésica que pretende calar o que,
de qualquer modo, já se sabe” (Sarlo, 1997, p. 32).
É a voz fortalecida de Florens ao final da narrativa de suas perambulações rumo
ao verdadeiro esclarecimento, com seus pés no chão, que ouvimos a canção de-
colonial: “Está vendo? Você está certo. A minha mãe também. Eu virei fúria mas
também sou Florens. (...) Mãe, você pode ter prazer agora porque as solas dos
meus pés estão duras feito madeira de cipreste”(Morrison, 2008, p. 151). É no giro
da personagem que esta pesquisa observa e analisa também a gira epistemológica
encontrando indícios, ferramentas e estratégias para que o subalternizado possa,
enfim, falar.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 45


Artes, memória e espaços
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AUTORIA
Dr. Natalino da Silva de Oliveira IF Sudeste MG- Campus Muriaé
E-mail: natalinoletras@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7426-7283
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8958870038386049

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Artes, memória e espaços
MIL LITROS DE PRETO:
O LARGO ESTÁ CHEIO E AS MÃES DE MAIO
Lucimélia Aparecida Romão

Menina
Menina, eu queria te compor em versos,
Cantar os desconcertantes mistérios
Que brincam em ti,
Mas teus contornos me escapolem.
Menina, meu poema primeiro,
Cuida de mim.
Conceição Evaristo

Há uma importância enorme na parceria entre a arte negra e os movimentos


sociais no combate ao racismo estrutural. Esta parceria no Brasil, tem início na
década de 1940, quando Abdias do Nascimento, professor universitário, político
e ativista dos direitos da população negra, cria o Teatro Experimental do Negro
(TEN) e consegue pela primeira vez colocar negros como protagonistas no palco
do Teatro Municipal do Rio de Janeiro (RJ). O ativista possibilita ao negro a oportu-
nidade de surgir como herói em cena e cria a partir de então, um outro espaço de
representação dos afrodescendentes na sociedade brasileira que não apenas de
papeis secundários por meio dos quais se exaltavam apenas os estereótipos tais
como os cômicos e/ou escravizados como até aquele momento era representado
(ALEXANDRE,2017, p.31).
Desde o surgimento do grupo de Nascimento, outros coletivos e artistas negros
como os performers Priscila Rezende, Musa Mattiuzzi e Preto Amparo, a dançarina
Suellen Sampaio e o grupo Teatro Negro e Atitude entre outros, narram em suas
obras a realidade do povo afro brasileiro, na ideia de evidenciar a higienização
nacional embasada em uma ciência racista, principalmente no que tange a antro-
pologia e a sociologia.
O racismo a brasileira é uma prática sofisticada que se reinventa e por isso está
operando em grande escala até hoje. Com funções definidas, ele tem uma lógica e
é uma tecnologia que se estabelece solidamente na cultura brasileira e por isso não
é eliminado com decretos. A arte negra surge na ideia de desmontar essa estrutura
que se ergueu em diversas frentes do conhecimento pois como nos diz Almeida
(2018, p.54):

A ciência tem o poder de produzir um discurso de autoridade


que poucas pessoas têm a condição de contestar, salvo aque-
las inseridas nas instituições em que a ciência é produzida. Isso
menos por uma questão de capacidade mas por uma questão

48 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
de autoridade. É da natureza da ciência produzir um discurso
autorizado sobre a verdade.

Diante do compromisso político da arte negra e do peso dela enquanto ciência,


foi pensado a performance instalação MIL LITROS DE PRETO no ano de 2018, e teve
sua estréia no município de São João del Rei/ MG como MIL LITROS DE PRETO: A
MARÉ ESTÁ CHEIA, em uma ocupação do Centro Cultural da Universidade Federal
de São João del Rei (MG) em 2019 . Foi o início desse projeto que evidencia e que
dimensiona a mortandade do negro brasileiro.
A partir de uma iniciação científica sobre teatro negro, surge “a maré está
cheia” como parte prática dessa pesquisa, sendo o livro “Racismo Estrutural” do
advogado e professor universitário Silvio Almeida, uma das literaturas base do es-
tudo. Também foram coletados e aprofundados dados sobre o genocídio da popu-
lação negra, presentes no Atlas da Violência publicado anualmente pelo Instituto
de Pesquisa Economica Aplicada-Ipea. Baseando-se em dados do ano de 2017 que
evidencia que a cada 25 minutos um jovem negro é assassinado pela policia no
Brasil buscou-se dimensionar essa realidade violenta.
Dentro desse contexto nos deparamos com o movimento Mães De Maio, uma
rede de mulheres que tiveram seus filhos assassinados pelo Estado Brasileiro De-
mocrático de Direito na grande São Paulo e na Baixada Santista. Criado a partir da
chacina dos Crimes de Maio de 2006, o coletivo visa lutar por justiça para todas as
vítimas da violência institucional, discriminatória e policial contra a população po-
bre, preta e os movimentos sociais brasileiros, além de zelar pela memória e lutar
pela verdade dos que padeceram em virtude dessa barbárie.
No ano de 2006, policiais e grupos paramilitares de extermínio ligados à polícia
assassinaram mais que 500 pessoas em cerca de 8 dias – que hoje constam entre
mortas e desaparecidas, – das quais mais de 400 jovens pretos, afro-indígena e
pobres foram executados concisamente.
Essas mulheres realizam uma série de atividades desde que as primeiras fa-
mílias de vítimas de violência policial começaram a superar o luto da morte de
seus entes. Atuam acolhendo familiares e amigos de vítimas do Estado; denunciam
casos e acompanham a situação de investigações e processos; participam de de-
bates, conferências, encontros, seminários; e organização de atividades de luta,
como vigílias, protestos e marchas. Elas foram convidadas para compor a perfor-
mance instalação MIL LITROS DE PRETO: O LARGO ESTÁ CHEIO.
Essa performance instalação aconteceu no dia 29 de Setembro de 2019 como
parte da 9ª Edição da Mostra 3M de Arte no Largo da Batata em São Paulo, expôs
junto com o Movimento das Mães de Maio a violência policial que a cada 23 mi-
nutos (dados do Atlas de Violência de 2019) elimina um jovem preto, pobre e ou
periférico.
Este manifesto artístico ocupou cerca de 750m² no Largo. Nesse espaço mil
baldes pretos etiquetados com informações das vítimas ( nome, idade, gênero e
causa da morte) e uma piscina de plástico de 7 mil litros vazia atravessava o fluxo

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 49


Artes, memória e espaços
das pessoas que por ali circulavam. De tempos em tempos como uma ladainha os
nomes de vítimas da violência policial, sons de sirene, tiros e helicóptero vindos de
um aparelho mecânico preenchiam a praça.
Cerca de 34 mães se colocaram entre os baldes e a piscina, enquanto Débora
líder do Movimento Mães de Maio ao microfone narrou a violência e a dor que
uma matriarca periférica sofre ao ter seus filhos, irmãos, pais, avós e bisavós cei-
fados pelas mãos do Estado. Marcos Vinícius, PRESENTE. Soa um alarme e as Mães
de Maio junto a performer Lucimélia Romão, sua mãe, sua tia e prima e mais duas
performers convidadas começaram a virar os baldes que contém 7 litros de líquido
vermelho representando sangue dentro piscina, lendo cada nome que continha
nas etiquetas e gritando "presente". A ação se repete incansavelmente até que
todos os baldes estejam vazios e a piscina cheia. Foi entoado cantos de luta e as
bandeiras do movimento da Mães de Maio levantadas, várias mães deram seus
depoimentos ao vivo e um documentário foi criado a partir dessa ação no Largo
da Batata.

FIGURAS 1 E 2: APRESENTAÇÃO DA PERFORMANCE


INSTALAÇÃO MIL LITROS DE PRETO: O LARGO ESTÁ CHEIO

50 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
MIL LITROS se materializou no Largo, tornando esse espaço que foi historica-
mente palco da opressão religiosa sobre os indígenas, em uma plataforma para
transformação social através da arte. Um espaço de diálogo e um momento de
respiro foi criado nesse encontro, friccionando a tensão de um povo que está acos-
tumado apenas a resistir, possibilitando assim uma outra narrativa, um enunciado
de existência. Deu voz para esses jovens que tiveram suas vidas interrompidas,
que perante a um estado genocida não passam de meros números. Um manifesto
permanente por outros mundos possíveis que não apenas esse, que faz da morte
do outro algo positivo.

FIGURAS 3 E 4: APRESENTAÇÃO DA PERFORMANCE


INSTALAÇÃO MIL LITROS DE PRETO: O LARGO ESTÁ CHEIO

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 51


Artes, memória e espaços
FIGURAS 5 E 6: APRESENTAÇÃO DA PERFORMANCE
INSTALAÇÃO MIL LITROS DE PRETO: O LARGO ESTÁ CHEIO

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Artes, memória e espaços
Esse trabalho buscou refletir a política base do estado para com os negros bra-
sileiros desde a escravidão e denuncia o extermínio iminente. Desvela a tática de
guerra travada contra um povo que nunca teve direito e condições de lutar de igual
para igual. Desvela a permanência desta guerra até os dias atuais. Tem-se como
um disparador para amplitude desse projeto, políticas e práticas recentes prove-
nientes de governos atuais que evidenciam como a violência por parte do estado
avança como um maremoto nas periferias.
O Pacote Anti Crimes criado pelo ex Juiz Sérgio Moro que previa a flexibilização
das leis brasileiras onde se permite aos nossos policiais cometer e justificar atos
criminosos direcionados principalmente a população negra como legítima defesa;
atitudes como a do ex governante do Rio de Janeiro, no início de 2019, de atirar de
helicópteros na periferia virando videogame com direito a videoaulas no YouTube,
assim como o processo de revitalização do próprio Largo onde a performance acon-
teceu, e que reduziu quase toda a região- onde se encontravam favelas e cortiços,
em área comercial, demonstram a necessidade histórica de limpar as periferias.
Higienizar. Antes o que era velado se torna referência e modelo para a sociedade.
A partir da ação, tornar-se palpável aquilo que é somente numero, aquilo que é
apenas estatística e remonta a história de cada um que faz parte dessa realidade. O
Largo sempre movimentado, com sua rotina rápida foi atravessada pelas sirenes de
dor. A obra trouxe em seu bojo a morte de jovens, parindo junto às mães, um mo-
vimento onde a arte e a ciência soma a militância das matriarcas. A arte negra que

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 53


Artes, memória e espaços
tem como principal característica a função sócio político, encontrou nas Mães de
Maio combustível para avançar contra a hegemonia brasileira que cria estratégias
de desmobilização da população preta, pobre e periférica . Como afirma abdias do
Nascimento (2018, p.94):

O objetivo expresso dessa ideologia é negar ao negro a possibi-


lidade de autodefinição, subtraindo-lhe os meios de identifica-
ção racial. Embora na realidade social o negro seja discriminado
exatamente por causa de sua condição racial e da cor, negaram
a ele, com fundamentos na lei, o direito legal da autodefesa. A
constituição do país não reconhece entidades raciais; todo mun-
do é simplesmente brasileiro. Mas o preceito, ao se tornar ope-
rativo, ganha uma dupla qualidade - de ferramenta usada con-
venientemente no interesse da estrutura do poder, e de arma
imobilizadora apontada na direção das massas afro-brasileiras.
(p. 94)

FIGURAS 7 E 8: APRESENTAÇÃO DA PERFORMANCE


INSTALAÇÃO MIL LITROS DE PRETO: O LARGO ESTÁ CHEIO

54 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
A performance que constrói outras perspectivas de existência, gerando grito
que suspende a barbárie, convida o espectador a perceber o meio que vive e cria
novas possibilidades de vida. Ela evidencia o engajamento da performer enquanto
pesquisadora negra em revelar a política de extermínio do Estado brasileiro para
com a população periférica, pois como nos convoca Almeida (2018, p.44) “em um
mundo que a raça define a vida e a morte, não tomá-la como elemento de análise
das grandes questões contemporâneas demonstra a falta de compromisso com a
ciência e com a resolução das grandes mazelas do mundo”.

FIGURAS 9 E 10: APRESENTAÇÃO DA PERFORMANCE


INSTALAÇÃO MIL LITROS DE PRETO: O LARGO ESTÁ CHEIO

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 55


Artes, memória e espaços
FIGURAS 11 E 12: APRESENTAÇÃO DA PERFORMANCE
INSTALAÇÃO MIL LITROS DE PRETO: O LARGO ESTÁ CHEIO

56 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
A partir desse trabalho podemos desmistificar a história de que todos os pretos
são bandidos, que na periferia só dá o que não presta e que a polícia brasileira não
tira a vida de inocentes. Apresentamos o outro lado da moeda ao expor um cemité-
rio a céu aberto, nomear essas vítimas e mostrar seus familiares narrando a histó-
ria de jovens trabalhadores que foram assassinados injustamente. Um cenário foi
estabelecido no Largo da Batata onde todos que passavam eram automaticamente
convidados a velar aqueles corpos.

FIGURAS 13 E 14: APRESENTAÇÃO DA PERFORMANCE


INSTALAÇÃO MIL LITROS DE PRETO: O LARGO ESTÁ CHEIO

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 57


Artes, memória e espaços
Pensando no compromisso político da arte negra e no peso dela enquanto ciên-
cia, realizar o manifesto artístico MIL LITROS DE PRETO: O LARGO ESTÁ CHEIO em
conjunto com as Mães de Maio gera uma confluência que vem a ser uma grande
arma contra o racismo sistêmico promovendo, uma disputa de narrativas e criando
fissuras na história única que desumaniza corpos negros e periféricos. Há aqui uma
necessidade de tornar palpável através da arte contemporânea o que é crescer
sendo preto no Brasil. Uma violência que todo brasileiro independente de cor e gê-
nero sabe da existência, mas não tem noção da dimensão. Os crimes contra o povo
negro por parte do estado brasileiro democrático de direito são crimes de ódio.
O primeiro tiro fere, o segundo tiro causa dificuldade de respirar e o terceiro
mata! Então para que serve o quarto? O quinto? O sexto? O sétimo? O oitavo? O
nono? E o décimo tiro?

REFERÊNCIAS

ALEXANDRE, Marcos. O Teatro Negro Em Perspectiva: dramaturgia e cena negra no Brasil


e em Cuba.Rio de Janeiro: Malê, 2017.

ALMEIDA, Silvio. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.

GARSON, Isaac Bernat. O olhar do griot sobre o ofício do ator: reflexões a partir de encon-
tros com Sotigui Kouyaté. Acesso: 08 de Nov. de 2020. Disponível em: <www.portalabra-
ce.org/vcongresso/textos/estudosperformance>.

58 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
KOUYATÈ, Sotigui. Falas. In MONTEIRO, Juliana. Encontrar – protocolo de aprendizado.
Santo André: Cadernos da ELT – Ano III. Número 2. 2005, p. 32-37.

LIMA, Evani Tavares. Por uma história negra do teatro brasileiro. Urdimento, v.1, n. 24,
p92- 104, julho 2015. Acesso: 07 de Nov. de 2020 Disponível em: <http://revistas.
udesc.br/index.php/urdimento/article/view/1414573101242015092>.

NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascara-


do. São Paulo: Perspectiva, 2016, p.113.

NASCIMENTO, Abdias. Teatro Experimental do Negro: trajetória e reflexões. In.: Estudos


Avançados. Vol. 18. N.o 50. São Paulo: 2005, p. 210.

SANTOS, Fátima Verônica. Contar histórias a partir da tradição do griot. IV Congresso de


pesquisa e pós-graduação em artes cênicas 2010. Disponível em: <www.portalabrace.
org/vicongresso/estudosperformance>. Acesso: 08 de Nov. de 2019.

AUTORIA
Lucimélia Aparecida Romão Graduanda em Teatro (UFSJ/ MG)
E-mail: lucimelia.romao@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0133956027436926

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 59


Artes, memória e espaços
NEGRAS CENAS EM UM BELO HORIZONTE:
UM BREVE OLHAR SOBRE AS TEATRALIDADES
CATALOGADAS PELO PRÊMIO LEDA MARIA
MARTINS

Denilson Alves Tourinho

Precisamos e devemos codificar


nossa experiência por nós mesmos,
sistematizá-las, interpretá-las e tirar desse ato
todas as lições teóricas e práticas
conforme a perspectiva exclusiva
dos interesses das massas negras e
de sua respectiva visão de futuro.
Esta se apresenta como tarefa da atual
geração afro-brasileira: edificar a ciência
histórico-humanista do quilombismo.
(NASCIMENTO, 1995 apud CARDOSO, 2011, p.79)

INTRODUÇÃO
Negra Belo Horizonte contemplada a partir das Artes Cênicas. Nessa perspec-
tiva raiou no horizonte da capital mineira um empreendimento arquitetado como
prêmio de teatralidades e edificado em epistemologias e estéticas negras. O Prê-
mio Leda Maria Martins de Artes Cênicas Negras de Belo Horizonte é um projeto de
estudos, homenagens e engendramentos. Em cada edição da premiação configura-
-se um tema orientador, na realização de lançamento, em dezembro de 2017, teve
o mote Afeto Emancipatório de Nilma Lino Gomes; a segunda edição, em 2018,
Escrevivência: escrever, viver, se ver de Conceição Evaristo; a terceira edição Exu-
zilhar de Cidinha da Silva; e Quilombismo, na quarta edição, inspirado no livro “O
Quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista, de Abdias Nascimen-
to, edição 2019.
O Prêmio Leda Maria Martins forma uma comissão de júri para apreciação das
montagens de teatro, dança e performance catalogadas por meio de curadoria de
Denilson Tourinho, idealizador e coordenador do projeto. A referida catalogação,
com descrições e imagem, encontra-se disponível no site oficial da premiação, e
descortina trabalhos cênicos de Belo Horizonte e região metropolitana, do ano de
1972 até março de 2020, com atualizações realizadas em cada nova edição.
Esse acervo documental das Artes Cênicas Negras de Belo Horizonte, junto às
analises críticas dadas ao trabalho de curadoria, propiciou ao negro artista e edu-

60 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
cador Denilson Tourinho a fabulação de um produto pedagógico que atendeu à
dissertação, Artes Cênicas Negras e a Educação das Relações Étnico/Raciais em
Belo Horizonte, do mestrado profissional da Faculdade de Educação da Universida-
de Federal de Minas Gerais, e agora essa pesquisa acadêmica resulta neste artigo.
Nesse engendramento artístico e educacional podemos associar as proposições de
Gomes (2017) acerca das atuações do movimento negro em diversas vertentes,
como movimento social educador e emancipatório.
Com o título Êsquiz q’eu isse cô es, o produto pedagógico da referida disser-
tação é um texto dramatúrgico que reúne 264 nomes de montagens cênicas ne-
gras, articuladas em 09 atos, com diferentes proposições temáticas. O nome dessa
dramaturgia reverencia uma trilogia de espetáculos de dança da Cia SeráQuê?, e
estruturalmente indicou uma tecnologia de agrupamento de nomes para o desen-
volvimento do texto, trata-se de um recurso epistemológico e poético com emba-
samentos históricos, culturais e estéticos. A pesquisa cultural da supracitada com-
panhia de dança resultou em Êsquiz, Q’eu Isse e Cô Ês, nomes dos três espetáculos
que formam uma trilogia e expressam a influência da cultura negro africana Banto
em Minas Gerais, negritada por meio da fala.
Essa escrita dramatúrgica dialoga com a perspectiva educativa do ABC do Qui-
lombismo em Abdias Nascimento (1980), como um abecedário negro brasileiro.
Não de A a Z, mas de A a E, o texto teatral, resultado da supracitada pesquisa
acadêmica, apresenta nomes de espetáculos e seus significados, a partir de seus
próprios nomes teatrais e sinopses.
O texto, artístico acadêmico, Êsquiz q’eu isse cô es pode ser considerado um
acervo que negrita cenas da longa história de produção cênica negra da capital mi-
neira, como um lugar de encruzilhada, que interessa analisar os caminhos possíveis
de análises críticas, poéticas e epistemológicas para educação das relações étnico/
raciais negras.

ABRAM-SE AS CORTINAS
Descortinar as teatralidades negras belo-horizontinas tem sido papel artístico,
crítico e educativo de artistas e pesquisadores, exemplar em Marcos Antônio Ale-
xandre (2017), ao apresentar um histórico de espetáculos teatrais negros de Belo
Horizonte em O Teatro Negro em Perspectiva: dramaturgia e cena negra no Brasil e
em Cuba, resultado de pesquisa acadêmica que se tornou livro e é referência para
estudos em teatro negro. E já de cara a capa, Alexandre elencou uma imagem do
espetáculo Madame Satã, de 2015, para anunciar o livro e destacar a cena teatral
negra da capital mineira.
A perspectiva de registrar a negrura cultural belo-horizontina foi negritada em
Afrografias da Memória, por Leda Maria Martins (1997), com levantamento e re-
gistro epistemológico, cultural e artístico da Irmandade de Nossa Senhora do Rosá-
rio do Jatobá, na região do Jatobá, em Belo Horizonte, Minas Gerais. Martins, nessa

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 61


Artes, memória e espaços
publicação, registrou expressões culturais banto, em Minas Gerais, de maneira ins-
piradora para afro grafar outras negras culturas e artes. A partir dessasconsidera-
ções, anunciamos referências e estímulos nos estudos de Marcos Antônio Alexan-
dre e Leda Maria Martins para contemplar outros horizontes das cenas negras da
capital mineira.
No mesmo ano de lançamento do livro O Teatro Negro em Perspectiva: drama-
turgia e cena negra no Brasil e em Cuba, de Marcos Alexandre, contemplamos tam-
bém a primeira edição do Prêmio Leda Maria Martins de Artes Cênicas Negras de
Belo Horizonte, não por coincidências, mas por conhecimentos e reconhecimentos
do amplo histórico de produções negras de teatro, dança e performance da capital
mineira.

ARTE E EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO/RACIAIS


Negra Belo Horizonte contemplada com vistas para as Artes e a Educação. Nes-
se panorama, este artigo analisa as Artes Cênicas Negras em atuações de mediação
cultural em Belo Horizonte, entendendo essa proposição como uma das possibili-
dades para a Educação das Relações Étnico/Raciais.
Teatro, dança e performance, formas também descritas neste estudo como
Artes Cênicas, Artes da Cena ou Teatralidades, são expressões artísticas e cultu-
rais que costumam ser compreendidas, no âmbito escolar, apenas na disciplina de
Arte, mas são de uso e contemplação para os diversos campos do conhecimento –
embora, nem sempre, como experiência estética. Nesse artigo, em especial, a Arte,
nas diversas expressões aqui trazidas, são abordadas com foco no que se refere à
inserção e ao ensino de temáticas no universo da História e Cultura Afro- Brasileira
e Africana.
Instituída em janeiro de 2003, a Lei federal 10.639 “altera a Lei n. 9.394, de 20 de
dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da Educação nacional, para
incluir, no currículo oficial da rede de ensino, a obrigatoriedade da temática ‘His-
tória e Cultura Afro-Brasileira’”. Essa legislação é um marco que desvela a necessi-
dade, ainda presente, de institucionalização normativa para a inserção de Negras
Histórias e Culturas no sistema educacional brasileiro.
A criação da lei dez meia três nove, como costuma ser chamada por educadoras/
es, explicitou a obrigatório do ensino de História de Cultura Negra, no Brasil, o que,
paralelo e implicitamente, sugere a existência de um movimento de implementação
desta regulamentação no currículo escolar, que, historicamente, estruturou-se na
ausência da abordagem dos referidos conteúdos.
Em 2008, essa regulamentação foi complementada com a lei 11.645, na qual a
obrigatoriedade temática foi atualizada, com um acréscimo, determinando o ensi-
no de “História e Cultura Indígena”, no currículo escolar dos estabelecimentos de
Ensino Fundamental e Médio, da rede pública e privada.

62 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
Com a inserção normativa desses conteúdos no currículo escolar é preciso re-
ver, incluir e/ou reconhecer a presença estruturante dessas Histórias e Culturas no
currículo oficial da rede de ensino brasileira, além de analisar os conteúdos históri-
cos e culturais, claramente, já contemplados, por exemplo, pelo ensino do que se
toma como a Língua materna do Brasil, a Portuguesa, ainda a Inglesa e, em alguns
casos, a Espanhola.
Nas áreas da Arte, as Artes Cênicas Negras são significativas expoentes de sabe-
res e culturas, pois afirmam estéticas, negritam a presença e denunciam a ausência
de representações negras na cena cultural e, em seus desdobramentos, sugerem e
implementam ações e políticas de promoção da igualdade racial.
Nilma Lino Gomes (2017) traz para o conhecimento (ou despertar da memória)
a importância do programa educativo elaborado e realizado pelo Teatro Experi-
mental do Negro (TEN), grupo de teatro negro idealizado, fundado e dirigido pelo
negro ativista social Abdias do Nascimento, na cidade do Rio de Janeiro, com ativi-
dades entre os anos 1944 e 1968. As atuações do TEN não se limitavam ao campo
das artes e o grupo também teve destaque na educação, inclusão social e política.
A autora complementa ressaltando que “a luta pela visibilidade dos negros e
das negras na cena artística e cultural, na literatura e na mídia continua até hoje”
(Ibid., p. 31). Legado de gerações passadas, a atuação artística e social, em prol da
população negra brasileira, continua sendo a cena principal para os negros grupos
teatrais e artistas ativistas das questões étnico/raciais.

AULA-ESPETÁCULOS
A catalogação de espetáculos do Prêmio Leda Maria Martins atendeu ao levan-
tamento acadêmico da dissertação Artes Cênicas Negras e a Educação das Relações
Étnico/Raciais em Belo Horizonte com referenciais conceituais e estéticos, além de
informações técnicas, das artes da cena negra de Belo Horizonte. Esse conteúdo,
também, atendeu ao que se configurou em uma composição dramatúrgica e pe-
dagógica, chamada de Aula-Espetáculos, e apresentada como recurso educativo
resultante da pesquisa no Mestrado Profissional em Educação (PROMESTRE), da
UFMG. O estratagema dessa Aula-Espetáculos é aquilombar em palavras, bus-
cando aí um significante, começando pelo título do próprio trabalho, Êsquiz q’eu
isse cô es, e seguindo para o restante da produção. Uma composição que come-
ça apresentando a proposta artística pedagógica, depois um abecedário cultural
produzido com nomes e sinopses de espetáculos de Artes Cênicas Negras de Belo
Horizonte e, logo em seguida, um aquilombamento representado em afrografias
que são nomes dos referidos espetáculos, nomes esses que, juntos e intercalados
por algumas de suas sinopses, contam os próprios enredos e propósitos, em meta-
linguagem. Uma Aula-Espetáculos.
Êsquiz q’eu isse cô es é Eles quiseram que eu fosse com eles, é sobreposição da cul-
tura negro africana no falar, e nesse caso também no grafar, sobre a língua imposta

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 63


Artes, memória e espaços
como oficial no Brasil. No léxico, semântica, prosódia, sintaxe e, especialmente, na
fala, em todos os setores da língua brasileira há presença da língua Banto (CASTRO,
2005). Esses saberes e estéticas são apresentados em forma de abecedário poético
logo no Primeiro Ato da supracitada Aula-Espetáculos:

A de Agô. “Agô”: “licença – termo de origem yorubá, recorrente


no cotidiano dos povos e comunidades tradicionais de matriz
africana”.
B de Brasil. “Brasil de Todas as Áfricas” é saudação ao continente
africano e às afrobrasilidades.
C de Ciberterreiro. “Ciberterreiro” se traduz em “procedimentos
das artes e das culturas que emergem no Atlântico Negro e seu
diálogo com as tecnologias digitais de som e imagem.”
D de (Re)Descobrindo. “Sempre à frente, desvelando os cami-
nhos, ‘(RE)DESCOBRINDO’...”
E de Êsquiz. Êsquiz é a “performance inaugural da trilogia ‘Êsquiz
q´eu isse co ês’... pronunciado numa sonoridade de um dialeto
da língua portuguesa, o Mineirês, que por sua vez acentua as
influências de origem ‘Bantu’ na cultura brasileira

Essa fabulação textual reúne nomes de espetáculos e trechos de suas respec-


tivas sinopses para arquitetar uma intervenção pedagógica por meio das Artes da
Cena e/ou vice-versa. Essas Artes geram e são movimentos negros que fazem da
cena: políticas, estudos, educação, afetos, ações, representatividades, afirmação,
denúncias, epistemes, culturas, estéticas, manifestações, histórias, resistências e
emancipação. O texto dessa dramaturgia artístico-pedagógica é introduzido com
pedido de licença, em yorubá, para começar a ação e comunicação, e é o próprio
nome do espetáculo que diz a benção. Agô, é muito mais que três letras e um
acento, mais que uma palavra, ela é afro grafia de memórias do passado, presen-
te e futuro que se pretende salvaguardar em história e costume. Cada palavra tem
sua ascendência, e o conjunto de palavras que são nomes de teatralidades negras
anunciando os seus lugares de fala, é quilombo dos falares.
Já no Terceiro Ato estão aquilombadas teatralidades que abordam ou tem re-
presentações da mulher negra, podemos ler convergências entre os espetáculos
mesmo com as barras que separam os nomes:

Vaga carne | Negr.a


Onde toca? | O grito da mulher preta
Se os homens são feitos do barro, nós somos feitas da lama Diá-
logos femininos e identidade
Mulheres de baobá | Elas também usam blacktie Mulheres ne-
gras também choram | Água viva Sarau Atemporal ou a mulher
e as águas do tempo Eras
Dar a luz | Refém solar
Travessia | Ruídos em movimento Cânticos para solitude | Bu-
raco-saudade

64 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
Memórias de Bitita, o coração que não silenciou | Contava com
o céu pra tudo Frágil, eu?
Eu | Eu mulher | Unha postiça | Pantera | Pixaim elétrico |
Omobirin Agbara Bendita a voz entre as mulheres
Simpatias de mãe A-corda que é real!

Assim como nas Artes Cênicas, a Educação também pode acessar engendra-
mentos criativos para elaboração de recursos pedagógicos, até mesmo como reco-
nhecimento de produções artístico-culturais que abordam e dramatizam questões
sociais e dialogam com a Educação das Relações Étnico/Raciais.
O espetáculo Mulheres de Baobá, citado logo acima, estreou em 2011 pela Cia
Baobá, tem elenco composto somente por mulheres negras e a dramaturgia inspi-
rada nas escritoras Conceição Evaristo, Leda Maria Martins, Elisa Lucinda e Jussara
Santos. A peça mescla dança afro-brasileira, percussão, declamação de poesias e,
em 2020, foi contemplada pelo Prêmio Leda Maria Martins, na categoria, Oralitura,
da área Texto e Trilha Sonora.
Afrografar as Artes e Culturas Negras belo-horizontina, como Alexandre (2017)
e Martins (1997), faz parte das várias vertentes do movimento social educador
registrado por Gomes (2017) e orientam constructos como o levantamento docu-
mental, de 264 produções de Teatro Negro, do Prêmio Leda Maria Martins de Artes
Cênicas Negras e a tecnologia quilombista que resultou em Aula-Espetáculos.
Essas são algumas cenas em um belo horizonte de teatralidades negras, avista-
das em panoramas de patrimônio cultural, com afirmações de representatividade,
reconhecimento epistemológico e valorização. Diante de tantas cenas que possibi-
litam experimentos criativos, instiga manter abertas as cortinas dos palcos das Ar-
tes e da Educação para os próximos atos com os quase trezentos espetáculos belo-
-horizontinos de Artes Cênicas Negras catalogados pelo Prêmio Leda Maria Martins.

REFERÊNCIAS

ALEXANDRE, Marcos Antônio. O teatro negro em perspectiva: dramaturgia e cena negra


no Brasil e em Cuba. Rio de Janeiro: Editora Malê, 2017.

FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO. XIV Bienal de São Paulo: catálogo geral. Proposições
Contemporâneas. São Paulo. Fundação Bienal de São Paulo, 1977.

CARDOSO, Marcos Antônio. O movimento negro em Belo Horizonte: 1978-1998. Belo Ho-
rizonte: Mazza Edições. 2002.

GOMES, Nilma Lino. O movimento negro educador. Vol. 1. Petrópolis: Editora Vozes, 2017.
NASCIMENTO, Abdias do. O Quilombismo. Petrópolis: Vozes, 1980.

NASCIMENTO, Elisa Larkin. Trechos da introdução ao livro O Quilombismo. Rio de Janeiro.


Outubro. 2001. Disponível em: http://www.abdias.com.br/movimento_negro/quilombis-
mo.htm. Acesso em 08 de dezembro. de 2019.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 65


Artes, memória e espaços
MARTINS, L. M.. Afrografias da memória: o Reinado do Rosário no Jatobá. São Paulo:
Perspectiva, 1997.

PRÊMIO LEDA MARIA MARTINS. Prêmio Leda Maria Martins. Belo Horizonte. Disponível
em: http://premioledamariamartins.com/. Acesso em 27 de out. de 2019.

TOURINHO, Denilson Alves. Artes Cênicas Negras e a Educação das Relações Étnico/Ra-
ciais em Belo Horizonte. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal de Minas Gerais,
Faculdade de Educação. Belo Horizonte. 2020.

AUTORIA
Denilson Alves Tourinho Universidade Federal de Minas Gerais
denilsontourinho@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1226236182121742

66 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
PEDAGOGIA DO TEATRO AFRO-DIASPÓRICA NA
FORMAÇÃO DE PROFESSORES(AS) DE TEATRO
Monique Priscila de Abreu Reis
Tatiane Cosentino Rodrigues

INTRODUÇÃO
Durante pesquisa de mestrado realizada no Programa de Pós-graduação em
Educação da Universidade Federal de São Carlos, sobre formação de professores(as)
de teatro em educação para as relações étnico-raciais, foi possível perceber que há
uma lacuna teórica sobre a articulação entre a formação de professores(as) de tea-
tro, para atuação na Educação Básica, a educação para as relações étnico-raciais e
o estudo de uma concepção mais ampla de teatro, realizado a partir da experiência
dos corpos negros na diáspora. Esta interseccionalidade é ainda pouco explorada
na formação docente e se constitui em um campo fértil para proposições de novas
metodologias para formação inicial na questão étnico-racial e para o ensino de his-
tória e cultura afro-brasileira e africana, tendo como referência a Lei 10.639/2003.
Nesta pesquisa, concluída em 2017, além de análise documental e bibliográfica
sobre o tema, foram realizadas entrevistas semiestruturadas, com dois pesquisa-
dores e uma pesquisadora, com as quais foi possível tecer considerações iniciais
sobre as possibilidades de formação inicial de professores(as) de teatro pelo viés
das ações de extensão junto à comunidade, das novas epistemologias e do Outro
Teatro (Ligiéro, 2015), aliando formação prática e investigativa, que valoriza as tra-
jetórias individuais, experiências coletivas e os saberes ancestrais de mestres(as),
compreendendo as corporalidades negras como instâncias de conhecimentos.
A pesquisa de mestrado trouxe novas perspectivas e indicativos de estudos para
a elaboração de pedagogias do teatro afro-diaspóricas, não no sentido de um ma-
nual limitador, mas no sentido de apontar possibilidades de formação de professo-
res(as) de teatro a partir do teatro negro e das performances afro-brasileiras, reco-
nhecendo outras epistemologias presentes nas manifestações culturais e artísticas
produzidas pela população negra na diáspora.
A participação no ciclo de estudos do Grupo de Estudos em Teatro Negro, no
presente ano, proporcionou aprofundamento teórico muito potente ligado a prá-
ticas formativas e performativas da arte negra, compreendendo as performances
negras como pedagogias culturais, com estéticas próprias e marcadas por elemen-
tos como a dança, o canto, a música, a poesia, a oralidade, a tradição, o ritual.
Além da obra de Zeca Ligiéro, é possível encontrar subsídios teóricos nas produ-
ções de Leda Maria Martins, Marcos Antônio Alexandre, Evani Tavares Lima, Licko
Turle e Alexandra Gouvêa Dumas, entre outros(as) pesquisadores(as) que têm in-
vestigado poéticas negras.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 67


Artes, memória e espaços
Logo, é possível se pensar em proposta de pesquisa tendo como eixo central o
mapeamento de grupos e pesquisadores(as) das manifestações performáticas
afro-brasileiras e afro-diaspóricas. Com a continuidade da pesquisa, espera-se lan-
çar novos olhares sobre a produção artística e cultural afro-brasileira e da popu-
lação negra da diáspora para o desenvolvimento de propostas de pedagogias do
teatro afro-diaspóricas para a formação de professores(as) de teatro.

A PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO A PARTIR DAS


MANIFESTAÇÕES PERFORMÁTICAS AFRO-BRASILEIRAS
Trabalhar com o ensino da arte na perspectiva da reeducação das relações étni-
co-raciais é compreender que precisamos construir pontes entre os nossos estudos
e vivências e as experiências de grandes mestres e mestras, sejam da academia,
seja das comunidades. Mestres e mestras das tradições milenares afro-brasileiras
que fazem parte de nossa comunidade, portadores e produtores de saberes.
Para a compreensão das corporalidades podemos partir dos estudos da pro-
fessora Leda Martins (2003), que traz a ideia de “corpo como local de inscrição do
conhecimento”. A professora Leda Martins é grande referência quando se fala em
teatro negro, em corpos negros em cena. Em seu artigo Performances da oralitura:
corpo, lugar da memória a autora afirma que

[...]o corpo em performance é, não apenas, expressão ou repre-


sentação de uma ação, que nos remete simbolicamente a um
sentido, mas principalmente local de inscrição do conhecimen-
to, conhecimento este que se grafa no gesto, no movimento, na
coreografia; nos solfejos da vocalidade, assim como nos adereços
que performativamente o recobrem (p.66).

A autora nos convida a pensar a memória a partir da voz e do corpo, “[...] dese-
nhados nos âmbitos das performances da oralidade e das práticas rituais (p.63)”,
reconhecendo o corpo como “[...] inscrição, recriação, transmissão e revisão da
memória do conhecimento, seja este estético, filosófico, metafísico, científico, tec-
nológico, entre outros (MARTINS, 2003, p.66)”.
A partir dos estudos de pensadores e pensadoras negros e negras podemos cons-
truir novas possibilidades de se pensar a produção de conhecimento na formação
de professores(as). No Volume 1, da Coleção História Geral da África, no capítulo
A Tradição Viva, de Hampaté Bâ (2010), começa com a seguinte citação de Tierno
Bokar

A escrita é uma coisa, e o saber, outra. A escrita é a fotografia


do saber, mas não o saber em si. O saber é uma luz que existe
no homem. A herança de tudo aquilo que nossos ancestrais vie-
ram a conhecer e que se encontra latente em tudo o que nos

68 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
transmitiram, assim como o baobá já existe em potencial em sua
semente (p.167).

Esta citação nos faz partir de um outro lugar para entender a construção dos sa-
beres. Partir da ancestralidade, não é uma recusa da ciência e nem da tecnologia.
É a compreensão de nossa totalidade, de uma concepção de integralidade dos di-
ferentes aspectos da vida. Quando falamos em formação de professores(as) na
perspectiva da educação para as relações étnico-raciais é possível buscar subsídios
em epistemologias africanas, afro-brasileiras e indígenas. Rompendo com a visão
da formação, nos moldes eurocêntricos e estadunidenses, centrados na leitura e
na escrita como formas hegemônicas de produção de conhecimentos. Marise de
Santana (2014) ao falar sobre a relação de culturas africanas com o movimento,
nos mostra que são parte fundamentais nos processos educativos.

Na sua sapiência, os africanos buscaram sempre reverenciar o


movimento para continuar falando, ouvindo, cheirando, degus-
tando, olhando, intuindo, comunicando. É ele, o movimento,
que produz o ciclo do tempo, das marés, das estações, do plan-
tio, assim como o ar que circula para produzir o fogo, a água que
se desloca para formar as nuvens, portanto, todos os processos
da vida, inclusive os educativos dentro das escolas, só podem
acontecer na dinâmica realizada pelos movimentos (p.68-9).

Desta forma, é possível pensar o movimento como um valor civilizatório de so-


ciedades africanas e, trabalhar nos processos educacionais e de formação docente,
com o entendimento de movimento ligado à comunicação de todos os seres.

PEDAGOGIAS DO TEATRO AFRO-DIASPÓRICAS: CAMINHOS


POSSÍVEIS PARA A FORMAÇÃO DE PROFESSORES(AS) NA
TEMÁTICA ÉTNICO-RACIAL
A pedagogia do teatro é um campo que busca incorporar as pesquisas que inves-
tigam a inserção do teatro em vários níveis e modalidades de ensino, relacionando
metodologias, didáticas e pedagogias na interface com a epistemologia teatral. O
estudo da relação entre teatro, cultura e pedagogia abre amplas possibilidades
para o trabalho da temática étnico-racial.
A diáspora negra - dispersão forçada dos povos africanos no período colonial
para diferentes partes do mundo - pode ser usada como categoria analítica para
entendermos como as performances artísticas e culturais da população negra em
suas diferentes manifestações foram fundamentais na construção de comunidades
afro-diaspóricas transnacionais (SILVÉRIO, 2016) e como podemos, a partir delas,
construir propostas de pedagogias do teatro afro-diaspóricas. “Como termo ana-
lítico, a diáspora constitui um quadro interpretativo de análise da articulação do

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 69


Artes, memória e espaços
modo como se relacionam bens, objetos, pessoas, formas culturais (ABRAMOWICS,
CRUZ, 2015, p. 159)”.
Zeca Ligiéro (2011) fala sobre o conceito de motrizes culturais utilizado para

[...] definir um conjunto de dinâmicas culturais utilizadas na


diáspora africana para recuperar comportamentos ancestrais
africanos. A este conjunto chamamos de práticas performativas,
e se refere à combinação de elementos como a dança, o canto,
a música, o figurino, o espaço, entre outros, agrupados em ce-
lebrações religiosas em distintas manifestações do mundo afro-
-brasileiro (p.107).

A partir da obra do professor Zeca Ligiéro, podemos partir de outra perspectiva


para se pensar os corpos em cena e a formação de professores(as) de teatro. O
autor tem produzido conhecimentos sobre o Outro Teatro, uma reconceituação
do teatro abrangendo as performances afro e ameríndias em suas características
seculares, ligadas ao cantar/dançar/batucar/contar, à participação do público, ao
ritual.
No ano de 2020, o professor Zeca Ligiéro está coordenando o Seminário de
Estudo da Encenação Possível, com o tema Outro Teatro: Tradição, Performance
e Espaço Público, promovido pelo Núcleo de Estudos das Performances Afro-Ame-
ríndias (NEPAA/UNIRIO). Entre os assuntos abordados no seminário estão o Outro
Teatro, teatro da tradição longe da casa de espetáculo, o ritual e o teatro das ori-
gens. A programação do seminário, ainda em andamento e com duração de vinte
semanas, conta com a participação de pensadores(as), pesquisadores(as), profes-
sores(as), artistas e performes, com cerca de sessenta convidados(as), inclusive
com participantes de outros países. Este evento, com transmissão on-line aberta,
constitui-se em importante iniciativa de compartilhamento de estudos e diferentes
saberes.
Outra importante ação que está acontecendo, neste ano de 2020, são os Estu-
dos em Teatro Negro, composto por cursos livres e on-line, promovidos pela Pele
Negra - Escola de Teatro(s) Preto(s), um coletivo de pesquisadores(as), artistas e
professores(as) do teatro e da dança. Tendo como um de seus coordenadores o
professor Licko Turle, dois módulos já foram realizados e o terceiro módulo en-
contra-se em andamento, em parceria com Escola de Teatro e da Pró-reitoria de
Extensão da Universidade Federal da Bahia. O primeiro módulo centrou-se em di-
ferentes abordagens e pesquisas sobre a prática do teatro negro, sendo realizado
por meio de quinze encontros, com duração de duas horas cada. O segundo mó-
dulo, foi organizado com dez encontros de 2 horas cada, abordando as questões
sobre o espetáculo negro,

[...] tendo como eixo temático o espetáculo e seus procedimen-


tos artísticos como pedagogias do ensino do teatro. Assim faze-
mos por entendermos que a produção de um espetáculo teatral

70 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
(desde a elaboração do seu projeto, passando pela seleção de
elenco, definição de texto ou tema, encenação, técnicas, apre-
sentações públicas e produção) pode ser sistematizada como um
percurso de produção de conhecimentos tanto teórico quanto
práticos, além de contribuir para a criação de novas tecnologias1.

O terceiro módulo dos Estudos em Teatro Negro, em andamento, organizado


em oito encontros com duração de três horas cada, traz para o foco a perfomance
negra contemplando obras que

[...] perpassam as artes visuais, a dança, o audiovisual e a cena.


Também refletiremos sobre a relação entre performance e vul-
nerabilidade, performatividade de gênero, a relação com cura-
dores e a criação de redes de cooperação entre artistas. Ao final
do módulo, será possível ter esboço de uma cartografia da per-
formance negra brasileira e seus apontamentos afrodiaspóricos,
com artistas de diferentes nacionalidades, disciplinas, modos de
produzir e afetações2.

Os encontros dos Estudos em Teatro Negro constituem-se em importantes fon-


tes de pesquisa para o desenvolvimento de propostas de pedagogias do teatro
afro-diaspóricas para a formação de professores(as) de teatro, centradas nos sabe-
res estéticos-corpóreos produzidos pelos corpos negros.

Os saberes estéticos-corpóreos produzidos pela comunidade ne-


gra e organizados pelas negras e negros em movimento e pelo
Movimento Negro Brasileiro encontram lugar dentro da raciona-
lidade estético-expressiva discutida por Santos (2004, 2006). Es-
ses saberes dizem respeito não somente à estética da arte, mas
à estética como forma de sentir o mundo, como corporeidade,
como forma de viver o corpo no mundo (GOMES, 2017, p. 79).

Estes saberes estéticos-corpóreos dos corpos negros confrontam, combatem e


resistem ao racismo, ao mesmo tempo em que celebram e reverenciam a ancestra-
lidade, constroem uma identificação positiva com a origem afrodescendente, pro-
movem o empoderamento e outras formas de conhecimentos. Para Rufino (2019)
“[...] a diáspora africana é, ao mesmo tempo, um fenômeno de despedaçamento e
reconstrução (p.121)”.

Além de se caracterizar como um enredamento de múltiplas


encruzilhadas, riscadas pelo ir e vir dos navios, percursos que
redimensionam as relações e as presenças nas bandas de cá, a

1 Excerto do texto de apresentação do 3° módulo dos Estudos em Teatro Negro. Disponível em:
(https://www.even3.com.br/etn3/). Acesso: 06 nov. 2020.
2 Excerto do texto de apresentação do 3° módulo dos Estudos em Teatro Negro. Disponível em:
(https://www.even3.com.br/etn3/). Acesso: 06 nov. 2020.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 71


Artes, memória e espaços
diáspora é como Yangí. A partir de cada fragmento estilhaçado,
pulsa uma nova invenção. Cada fragmento dos saberes, das me-
mórias e dos espíritos negro-africanos que por aqui baixam é
um pedaço de um corpo maior que, mesmo picotado, se colo-
ca de pé e segue seu caminho dinamizando a vida. A dinâmica
versada nas bandas de cá é cruzada, alteritária e ambivalente.
Nesse caso, a reinvenção perpassa por transformações radicais,
ações que produzam, ao mesmo tempo, um desarranjo e um
reposicionamento. (RUFINO, 2019, p.121-2).

Neste sentido, faz-se necessário pensar a formação inicial de professores(as)


de teatro a partir de outras perspectivas, por meio de pedagogias afro-diaspóricas
que reconheçam o corpo como “local de inscrição do conhecimento” (MARTINS,
2003).

CONSIDERAÇÕES EM PROCESSO
As Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-raciais
e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e africana apontam a área de
Arte como prioritária na implementação da temática étnico-racial nas escolas. Des-
ta forma, é fundamental a formação de professores e professoras para o trabalho
com a temática.
A formação inicial de professores(as) teatro deve contemplar esta temática
tanto para a compreensão e combate das práticas racistas e discriminatórias que
fazem parte da sociedade e que, também estão presentes na escola, quanto para a
promoção práticas pedagógicas que busquem o reconhecimento e a valorização da
cultura afro-brasileira e africana no cotidiano escolar e esteja em consonância com
o campo normativo da educação para as relações étnico-raciais.
Buscamos o entendimento de como tem se dado as pesquisas e experiências
sobre os corpos negros em cena, a partir de uma concepção ampla de teatro e o
estudo das manifestações performáticas afro-brasileiras, pensando na intersecção
com a formação de professores(as) de teatro. Há indicativos de que o mapeamento
de coletivos, grupos ou núcleos de pesquisas, que têm se debruçado em pesquisas
no campo das manifestações performáticas da população negra na diáspora, é um
caminho para o desenvolvimento de propostas de pedagogias do teatro afro- dias-
póricas.

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youtube.com/watch?v=LYkObtuCepo&feature=emb_logo> Acesso: 06 nov. 2020.

AUTORIA
Monique Priscila de Abreu Reis
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo
E-mail: reis.monique@ifsp.edu.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8926-8286
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6493021586914602

Tatiane Cosentino Rodrigues


Universidade Federal de São Carlos
E-mail: tatiane.rodrigues@ufscar.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4402-2805
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8361431964064731

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 73


Artes, memória e espaços
“NA PRAIA ESSA MULHER FICOU CHORANDO”:
REFLEXÕES ACERCA DO CONCEITO DE “MATER
DOLOROSA”EM GONÇALVES CRESPO E DEMAIS
ESCRITORES(AS) NEGROS(AS)

Bruno Barra da Silva

Pelos teus olhos,


minha Mãe,
vejo oceanos de dor claridades de sol posto,
paisagens roxas paisagens
(Agostinho Neto em “Mamãe Negra”, 2003).

INTRODUÇÃO
Tendo em vista que o corpo negro dentro da academia foi, por muito, tomado
como mero objeto de pesquisa, cujas vozes e saberes eram (e por vezes ainda são)
silenciados e deslegitimados, evidenciamos que, ao analisar textos literários de
pessoas negras, não as tomamos como objeto de pesquisa, mas sim como sujeitos
ativos no processo do fazer artístico e científico. Conforme Kilomba (2019) “essa
passagem, de objeto a sujeito é o que marca a escrita como um ato político” (p. 28).
Além disso, tomamos a liberdade de conduzir o texto a partir da primeira pessoa
uma vez que não acreditamos em uma ciência que se diz neutra e imparcial, porém
numa “epistemologia que inclua o pessoal e o subjetivo como partes do discurso
acadêmico, pois todas/os nós falamos de um tempo e lugar específicos, de uma
história e uma realidade específicas – não há discursos neutros” e nesse sentido
o emprego do ‘eu’ nasce em “oposição absoluta do que o projeto colonial prede-
terminou”(KILOMBA, 2019, p. 58). A partir dessa perspectiva, ensejamos estudar o
conceito de ‘Mater Dolorosa’ a partir de poema de título homônimo, escrito pelo
poeta parnasiano negro Gonçalves Crespo, bem como traçar paralelos com textos
da literatura brasileira contemporânea de autoria negra.
Crespo, nascido no Brasil em 1864, era filho de um comerciante português com
uma mestiça escravizada, e ainda adolescente se radicou em Portugal, onde mais
tarde estudou Direito na Universidade de Coimbra, trabalhou como escritor, jor-
nalista, político e se configurou como um dos mais importantes nomes na onda
parnasiana lusitana (CRESPO apud PEIXOTO, 1942).
A obra do autor tem sua classificação bastante dividida pela crítica portuguesa
e brasileira (BARRA, FRANCESCHINI, 2020, p. 128). Massaud Moisés em A literatura
portuguesa, mais especificamente no subcapítulo “Veleidades parnasianas”, afir-
ma que o poeta carioca, embora tenha feito carreira literária em Portugal, demons-

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Artes, memória e espaços
tra, em alguns poemas, saudades de sua terra natal. Sobre o estilo adotado pelo
escritor, o estudioso pontua que

Gonçalves Crespo vacilou entre um Romantismo tardio e a acei-


tação de moldes novos. Com referência aos últimos, preocu-
pou-se em demasia com o lado marmóreo, escultural, frio e a
poético do Parnasianismo, de que foi um fervoroso adepto e pro-
pugnador. Escreveu Minuaturas (1870) e Noturnos (1882), de
que se destaca o soneto “Mater Dolorosa”, em lembrança de sua
mãe, uma janela aberta à espontaneidade que afasta os exces-
sos do brilho formal, vazios de poesia, e utiliza reminiscências da
infância passada no Brasil, que encerram as notas melhores de
sua poesia. “As Velhas Negras” e “Ao Meio-Dia” são ainda outros
dois cromos da realidade brasileira pintados com os olhos da
memória e da saudade (MOISÉS, 1999, p. 188).

A figura do negro em sua obra não é homogênea, como demonstra Edimilson


Pereira de Almeida: “O poeta expressou uma visão ambígua de sua etnia: ora apre-
sentou o negro com qualidades, ora recusou sua imagem, condicionado pela ide-
ologia que vinculava o negro aos vícios e defeitos” (2018), a exemplo de Camões
em Os Lusíadas (1572) e Aluísio de Azevedo em O Cortiço (1890). Leiamos um breve
trecho do conto “Negrinha”, de Monteiro Lobato, que descreve a criança negra de
modo naturalista, desprovida de humanidade: “Depois, vala comum. A terra papou
com indiferença aquela carnezinha de terceira – uma miséria, trinta quilos mal pe-
sados...” (LOBATO, 2009, p. 12).
Quebrando, pois, estigmas e descrições baseadas em “vícios e defeitos”, Crespo
destaca-se como um dos pioneiros na produção poética da temática afro-brasilei-
ra: “[...] embora o ambiente brasileiro pouco houvesse contribuído para sua for-
mação, devemos atentar ao fato de ter ele levado consigo, para a nova pátria, as
heranças africanas” (BASTIDE 1943, p. 81). Ampliando-se a temática, em carta a
Machado de Assis (6 de junho de 1871), Crespo se reconhece “brasileiro” e “ne-
gro”: “[...] eu não sou português e não andava envolvido nestas tricas de compa-
drios, que por aqui dizem as más línguas – abundam [...]. A V. Excia, já eu conhecia
de nome há bastante tempo. De nome e por uma secreta simpatia que para si
me levou quando me disseram que era... de cor como eu” (CRESPO, 1871 apud
MAGALHÃES JUNIOR, 1958, p. 109-110). Apesar de radicado em Portugal desde a
adolescência e de ter formado sua vida pessoal e profissional ali, o autor admite:
“não sou português”. Ademais, ainda que ele exponha não estar “envolvido nestas
tricas de compadrios”, notamos que os poemas de Nocturnos apresentam dezenas
de dedicatórias, que vão de nomes de escritores, jornalistas, poetas, políticos a
viscondes portugueses. Nossa percepção de leitores nos diz que para se encaixar
ao ‘panteão’ da literatura de sua época, esse foi seu caminho. Esse fato, todavia,
não prejudica a noção de identidade de Crespo, uma vez que ele tem consciência de
sua negritude, porém sabe que sua identidade é validada pelo dominante apenas

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 75


Artes, memória e espaços
quando segue os protocolos coloniais. Conscientes do embate histórico e munidos
do viés identitário, decidimos, pois, trilhar uma (re)leitura preta/decolonizadora do
poema a seguir.

UMA LEITURA NEGRA DE “MATER DOLOROSA”

Quando se fez ao largo a nave escura, Na praia essa mulher ficou


chorando, No doloroso aspecto figurando
A lacrymosa estatua da amargura.

Dos céus a curva era tranquilla e pura:


Das gementes alcyones o bando
Via-se ao longe, em circulos, voando Dos mares sobre a cérula
planura.

Nas ondas se atufára o Sol radioso, E a Lua succedêra, astro ma-


vioso,
De alvôr banhando os alcantis das fragas...

E aquella pobre mãe, não dando conta Que o Sol morrêra, e que
o luar desponta,
A vista embebe na amplidão das vagas... (CRESPO, 1882, p. 132-
133).

Já no primeiro verso, “Quando se fez ao lago a nave escura”, compreendemos


“nave escura” além de uma simples embarcação, mas como meio de transporte
que simboliza o horripilante navio negreiro, a conduzir pessoas em situações cru-
éis e desumanas ao triste destino da escravidão. Acreditamos nessa visão, dado o
momento histórico em que o poema foi escrito. Em meados do século XIX os pre-
núncios da liberdade já ganhavam força nos países americanos, como as revoltas
de Barbados (1816), Demerara/Guiana (1823) e Jamaica (1831). No Brasil, além de
Palmares, levantes como a Revolta dos Malês (1835) levariam à tardia abolição de
1888 (MARQUESE, 2006, p. 115). O sistema só foi completamente suspenso em
razão da lei Bill Aberdeen (1845), que autorizava os britânicos a prender navios ne-
greiros na costa Atlântica. Assim que a pressão antiescravista inglesa seria sentida
por Crespo em Portugal.
Na sequência da leitura, temos: “Na praia essa mulher ficou chorando”. Neste
verso fica evidente o sofrimento da mulher, além de dialogar diretamente com o
título do poema. Perguntamos, pois: se a nave já não está mais ancorada, porque
essa mulher chora? Quem é essa mulher? Se levarmos em conta que a nave parte
com pessoas escravizadas, quem chora é uma mulher preta, mais uma mãe que
teve seu(s) filho(s) covardemente arrancados de sua companhia. Nos dois últimos
versos da primeira estrofe, temos a confirmação de seu sofrimento: “no doloroso
aspecto figurando/ a lacrimosa estátua da amargura”.

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Artes, memória e espaços
Apesar da dificuldade de classificar sua obra e sua própria identidade – por-
tuguês ou brasileiro? Literatura portuguesa ou (afro)brasileira? – “Mater Dolorosa”
nos instiga um olhar sobre a história da população negra na diáspora, e, a partir
dele, entendemos que, além do conceito clássico/embranquecido da mãe cristã
sofredora, tal ideia está presente na literatura brasileira de autoria negra contem-
porânea. Eis um conceito que atravessa séculos e permanece vivo, latente nas nar-
rativas de sujeitos negros atravessados pelo julgo da colonialidade e da violência
que ceifa os fazeres peculiares de cada etnia e cultura. No caso específico do po-
ema, ao tomarmos como referência a biografia do autor, homem negro brasileiro
que fez carreira literária em Portugal, podemos ainda pensar que a mulher que na
praia ficou chorando é sua própria mãe. Como Luís Gama (1830-1882), Gonçalves
Crespo é filho de mãe negra e pai português. Ambos foram, por conta de seus pais,
afastados precocemente de suas mães. Em Um defeito de cor (2006), romance de
Ana Maria Gonçalves, a saga de Kehinde, africana da Costa da Mina, configura o
universo das mães apartadas de seus rebentos. Depois de ter perdido vários filhos,
o que ainda estava consigo foi vendido pelo próprio pai a comerciantes portugue-
ses:

De repente, tudo o mais perdeu a importância, os muçurumins,


os federalistas, a Cemiterada, a fuga pra Itaparica, a viagem para
o Maranhão, a Roça da sinhá Romana, os voduns. Tudo aquilo só
tinha feito com que eu me afastasse, permitindo que você fosse
tirado de mim. Ao mesmo tempo que eu tinha esperança de te
encontrar, achava que era pra nunca mais. Talvez a esperança
fosse apenas o meu axé, o emi que fazia a vida circular dentro
de mim, impulsionando, como tinha feito com a Passarola. Seu
desaparecimento foi pior que a morte do seu irmão, muito pior,
porque ele eu sabia onde e como estava. Mas foi bom ter espe-
ranças, pois acho que o destino resolveu aliviar a mão agora, e
por isso não hesitei em deixar tudo para trás e partir” (GONÇAL-
VES, 2006, p. 631).
[...]
Eu tentava tomar cuidado para que o Banjokô não pegasse mui-
to sol, pois, com certeza, a sinhá não ia gostar da cor mais escura
que ele já tinha adquirido. Estava londe de ser preto, mas tam-
bém não passava mais por filho de branco, como ela gostaria
que acontecesse (GONÇALVES, 2006, p. 323).

Embora escrito no século XIX, esse poema se faz atual uma vez que mulheres,
mães, negras, ainda choram com a partida de seus filhos e filhas, mortos, diuturna-
mente. De acordo com o Atlas da Violência 2020, em 2018 foram assassinados 58
mil brasileiros. Desse total, 75,7% eram negros (pretos e pardos). Carolina Maria de
Jesus, em Quarto de despejo (1960), relata vários episódios de maus-tratos contra
seus filhos: “A D. Rosa, assim que viu o meu filho José Carlos. [...] saiu com um pau
para espancá-lo” (p. 13); “Um dia eu cheguei e encontrei o João chorando. Ele
disse-me:

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Artes, memória e espaços
– Sabe, mamãe, a D. Rosa me jogou bosta no rosto” (p. 72); “....Quando eu
cheguei na favela encontrei um nortista que estava com uma peixeira procurando
o meu filho” (p. 80); “Assim que a nojenta viu-me começou insultar-me. Mostrou
uma peixeira para o José Carlos disse que lhe pretende picar” (p. 84); “Ele segurou
o José Carlos nos braços, obrigando a deitar-se ao seu lado no assoalho” (p. 136).
A fim de retratar a imagem melancólica da dor sentida na despedida materna,
Crespo recorre a imagens contrastantes: apesar do motim interior, o navio atraves-
sa um mar calmo, cuja curva, no horizonte, apresenta-se “tranquila e pura”. Nessa
parte, o poeta centra sua escrita em mitos clássicos da Antiguidade greco-romana,
como a referência às Alcíones. Na mitologia helenística Alcíone é mulher de Ceix,
rei da Tessália. Certo dia, o Rei parte em viagem aos mares. Alcíone se desespera
com um mau pressentimento. Na metade do trajeto, as ondas e os ventos provo-
cam um naufrágio e seu amado morre. Na manhã seguinte, ao se dirigir à praia, Al-
cíone encontra o corpo de Ceix. A cena lastimosa é ainda mais dramatizada quando
a jovem é transformada numa ave. Enquanto voava, da garganta saíam-lhe sons de
dor. Então os deuses transformam o casal em aves que se acasalam e reproduzem,
assim que Alcíone choca os ovos nos ninhos que flutuam no mar, sinal de que os
mares são seguros à passagem dos marinheiros (FARIAS, 2010).
A lenda de Alcíone serve de metáfora a Crespo, uma vez que a ave tanto simboli-
za o choro de dor pela partida quanto significa bom agouro aos que partem ao mar.
Os românticos, como Lord Byron em “The Bride of Abydos” (“A noiva de Abdios”,
1813); e Keats, em “Endymion” (“Endimião, 1818) também cantaram o mito. Além
disso, sua conexão aos clássicos fica evidente na segunda e na terceira estrofes,
haja vista que nos deparamos com belas descrições da natureza, escritas em um
português bastante rebuscado. É primoroso o modo como o eu-poético pinta o
crepúsculo e o despontar da noite: “Nas ondas se atufara o Sol radioso,/ e a Lua su-
cedera, astro mavioso,/ de alvor banhando os alcantis das fragas.../ E aquela pobre
mãe, não dando conta / que o Sol morrera, e que o luar desponta,/ a vista embebe
na amplidão das vagas...”. Assim como Luiz Gama, Crespo atende ao rigor técnico
e formal da época, sobretudo pelo emprego dos “versos decassílabos sáficos, no
mais fiel estilo parnasiano, como se o poeta evocasse Safo, Alceu, Anacreonte,
Catulo, Horácio e Sêneca, mestres nos versos com tal metrificação” (BARRA, FRAN-
CESCHINI, 2020, p. 123).
O que nos chama atenção, também, é a inovação conteudística de suas obras.
Apesar dos tratados de métrica e rimas aos quais estavam submetidos, eles ino-
vam. Luiz Gama o fez de várias maneiras ao criticar a hipocrisia da sociedade brasi-
leira e ao fundar a voz negra em nossa literatura, um eu-lírico que além de poético,
é político. São os sujeitos étnicos do discurso discorridos por Cuti: “O sujeito étnico
negro do discurso, enraíza-se, geralmente, no arsenal de memória do escritor negro.
E a memória nos oferece não apenas cenas do passado, mas formas de pensar e
sentir, além de experiências emocionais” (2010, p. 89). Outrossim, Crespo inova ao
romper com o silêncio acerca do sofrimento dessa mãe, que pode, inclusive, ser a

78 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
sua. À maneira de Conceição Evaristo, ainda que mais de um século antes, perce-
bemos um movimento de escrevivência, ou seja, as memórias, vivências e marca-
ções de identidade aparecem em sua poesia: “Eu sempre tenho dito que a minha
condição de mulher negra marca a minha escrita, de forma consciente inclusive.
[...]. Isso me marca como cidadã e me marca como escritora também” (EVARISTO
apud NASSIF, 2016, s/p). À autora, a escrevivência é um modo de escrita/vivência
decorrente da realidade social que cercou[a] seu universo negro; tal e qual o poeta
brasileiro em sua época.
Assim que, diante da “escrevivência” de Gonçalves Crespo, por mais que versas-
se na moldura métrica clássica, celebrando os mitos gregos, empenhamo-nos aqui a
reler o poema a partir da cosmovisão africana. A terceira estrofe indica a presença
da geografia brasileira e/ou da costa atlântica africana, tendo em vista que a mãe
de Crespo é metáfora das milhares de mães que choraram a forçada separação
de seus filhos, capturados e trancafiados em navios negreiros. Lembrando-se que
tanto nas regiões iorubanas quanto nas bantos, de onde vieram a maioria dos es-
cravos ao Brasil, o cenário é o descrito nessa parte: “De alvôr banhando os alcan-
tis das fragas...” (1882, p. 133.), ou cheio de rochas e precipícios, esculpidos pelo
Atlântico.
No último terceto, a figura da “Mater Dolorosa” volta à cena. Grande se mos-
tra seu sofrimento. O tempo passou, já é noite e seu olhar, o sal de suas lágrimas,
confunde-se com o sal das águas de Iemanjá – rainha do mar, conhecida pelo seu
pranto, como cantado pelo grupo Oludum em “Iemanjá amor do mar” (1991): “Ie-
manjá, seu pranto me faz inspirar / deixou seu amor pra nunca mais voltar / Trans-
formou-se num rio em lágrimas de dor / E no ventre de mãe os seus filhos gerou,
/ Nascendo de repente, Oxumaré, Xangô. / [...] Eu sei que o mar é o caminho para
todo lugar”.
Se “o mar é caminho para todo lugar”, os múltiplos espaços bifurcam-se no pas-
sado e no presente do choro da mãe negra. Hoje seguimos encontrando a “Mater
Dolorosa”, como em “Os guris de Dolores Feliciana”, conto presente em Histórias
de leves enganos e parecenças, de Conceição Evaristo (2016). No início da narra-
tiva, conhecemos parte da rotina de cuidados de uma mãe para com seus filhos;
como funciona a organização das roupas no armário; seus modos de arrumação,
entre outros aspectos. Esta Mater tem nome: Dolores, ou, conforme sua própria
etimologia, “a palavra dor, tem origem do latim, dolor. Sofrimento moral, mágoa,
pesar, aflição, dó, compaixão” (PIEDADE, p. 17). Dolores é mãe de três meninos e
somente na metade do conto percebemos um elemento comum entre a Mãe do
eu-poético de Crespo e a de Conceição Evaristo – se na praia a mulher ficou choran-
do pela partida de seu filho; esta verte lágrimas quando fala dos seus. Do XIX ao XXI
a dor é elemento que atravessa a vida das mães negras: “Quando Dolores Feliciana
falava dos filhos, os olhos dela vertiam sangue. Ela sempre falava deles com a voz
entrecortada de sangue também. E foi olhando nos olhos marejados de sangue de
Dolores que entendi a expressão ‘lágrimas de sangue’ [...]” (EVARISTO, 2016, p. 46).

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Artes, memória e espaços
Na sequência do conto, Dolores anuncia que ainda que os filhos não estejam
em casa, faz questão de manter a arrumação de seus pertences, “pois vão e voltam
sempre” (EVARISTO, 2016, p. 46). No entanto, no parágrafo seguinte, quando a
terceira parte da narrativa se instaura, descobrimos o motivo da morte de cada
guri, e como a mãe ficou sabendo. Todas as mortes extremamente violentas:

Chiquinho, o primeiro de nascimento e também o de morte. Ti-


nha acabado de completar 19 anos, quando partiu (o que me
consola é que ele vai e volta). Depois foi Zael, esse a segunda
vida que gerei, a segunda que perdi, nem 17 anos tinha ainda. O
corpo dele apareceu depois de três dias sumido. Dizem que uma
única bala fez o cérebro dele voar pelos ares. Tudo aconteceu
no dia em que fazia um ano, que a vida de Chiquinho tinha sido
esgarçada por mais de 15 balas.
Nato, o menorzinho, o meu caçula, também se foi. Depois de
quase um mês desaparecido, surgiu um corpo aqui perto de
casa. Era o dele (EVARISTO, 2016, p. 46, 47).

Após esta passagem, a mãe relata, com muita emoção, a memória do último
abraço que deu no filho. Segundo Mbembe, “poderíamos pensar que as ideias re-
cém-desenvolvidas [sobre a necropolítica] dizem respeito a um passado distante”
(2016, p. 135). Mas não. O autor é enfático ao argumentar que as formas “con-
temporâneas que subjugam a vida ao poder da morte (necropolítica) reconfiguram
profundamente as relações entre resistência, sacrifício e terror”, além de propor a
noção de necropolítica/necropoder para “explicar as várias maneiras pelas quais,
em nosso mundo contemporâneo”, vários são os meios e objetos, tais “as armas de
fogo” implementados “no interesse da destruição máxima de pessoas e da criação
de ‘mundos de morte’, formas novas e únicas da existência social, nas quais vas-
tas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o status de
‘mortos-vivos’”(MBEMBE, 2016, p. 146).
Nesse sentido, a “Mater Dolorosa” do passado é análoga à “Dolores Feliciana” do
presente – mães de Marielle Franco, de Ágata, de João Vinícius, de João Pedro e
dos milhares de jovens negros(as) cotidianamente assassinados(as) no país. Sobre
essa questão, Vilma Piedade, em Dororidade, expressa: “Tem uma dor constante
que marca as Mulheres Pretas no cotidiano – a dor diante de uma perda. E, nesse
jogo cruel do Racismo, quem perde mais? Quem está perdendo seus filhos e filhas?
Todos pretos. Todas Pretas. A resposta tá estampada nos dados oficiais sobre o
aumento do Genocídio da Juventudo Preta. Dororidade” (2017, p. 18).
De volta ao conto, temos a notícia de que uma foto de Dolores Feliciana foi vei-
culada num jornal com a legenda de “Mater Dolorosa”. A essa expressão é repe-
tida cinco vezes. Num movimento de repúdio a tal legenda, outro jornal, de modo
racista e preconceituoso afirma que um “Jornal Sensacionalista compara a dor de
uma mãe qualquer com a Dor da mãe de Cristo, nosso Salvador. A dor de uma mãe
qualquer não pode tomar como referência a imagem da Mãe de Cristo, Nossa Se-

80 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
nhora” (EVARISTO, 2016, p. 47). É nítida à visão desumanizada dessa mãe, preta,
jamais apta a alçancar a ‘pureza’ e ‘natureza imaculada’ da Mãe de Deus. “A Mater
Dolorosa sofreu pela morte do filho que veio para salvar a humanidade. Essa mãe
qualquer, chora por um filho que simboliza a perdição da humanidade” (EVARISTO,
2016, p. 47). Note-se que o adjetivo “qualquer” desqualifica e repudia essa mãe que
sofre, exemplo nítido do projeto colonizador. Assim que impera a hierarquização do
sofrimento e das dores de duas mães, segundo os critérios racistas do opressor.
Ao final do conto, Dolores Feliciana nos conta que a Mãe de Cristo a visita e a
consola: “Mas eis que a Mater Dolorosa, aquela que, na dor, é semelhante a mi-
nha, me apareceu em casa e me consolou. Ela me disse que me entendia, mas que
eu esperasse pouca ou nenhuma compreensão das pessoas. E desde então Mater
Dolorosa acolhe minha dor e minhas lágrimas de sangue” (EVARISTO, 2016, p. 49).
Nesse impasse, são as mães que choram as “lágrimas de sangue” as representadas
na literatura de caráter decolonial, sobretudo porque nos dispusemos sensíveis à
dor sagrada e humana daquelas que perderam seus filhos para nunca mais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Num primeiro olhar, o poema “Mater dolorosa”, do parnasiano Gonçalves Cres-
po, poderia evocar apenas a temática bíblica de Maria chorando durante o trajeto
de Cristo pela via-crúcis, e, posteriormente, a mãe segurando o filho morto no
sepulcro. Contudo, por sua identidade de homem negro e brasileiro, acreditamos
aqui que a análise do conceito deveria dialogar com outras vozes, a exemplo das
escritoras brasileiras contemporâneas negras como Carolina Maria de Jesus em
Quarto de despejo (1960), Ana maria Gonçalves em Um defeito de cor (2006) e
Conceição Evaristo em “Os guris de Dolores Feliciana” (2016).
Infelizmente, inúmeros são os relatos literários que trabalham com a dor da
mãe negra, enfatizando-se ainda mais a bruteza do racismo que permeia as re-
lações sociais brasileiras, sobretudo pelo pensamento colonial predominante no
território. O resultado é a assombrosa necropolítica, ou a política da morte que se
apresenta como paradigma tanto dos filhos afastados de suas mães na época da
escravidão quanto nos dias de hoje. Assim que as mulheres que choram não são
cópias fidedignas da mãe do Cristo europeizado, mas mulheres negras que tiveram
seus destinos ceifados pela dor da separação de seus filhos.

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82 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
AUTORIA
Bruno Barra
Universidade Estadual de Maringá
E-mail: bsbarra00@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3089785123426262

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 83


Artes, memória e espaços
RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NA SOCIEDADE
BRASILEIRA: A RETÓRICA DOS CADERNOS
NEGROS
Joselaine Galvão de Souza
Rachel Benta Messias Bastos

INTRODUÇÃO
A pesquisa “Relações étnico-raciais na sociedade brasileira – a retórica dos Ca-
dernos Negros” foi um estudo de natureza teórica e análise bibliográfica realizada
através da experiência no Programa Institucional de Bolsa de Iniciação Científica no
Instituto Federal de Goiás (PIBIC IFG - Goiânia Oeste). Esta pesquisa pautou-se na
investigação sobre a retórica histórica da produção de livros de contos e poemas,
intitulados Cadernos Negros, publicados anualmente pela editora Quilombhoje.
De acordo com Schwarcz (2012) a partir de meados dos anos 1970 iniciou-se
uma nova compreensão de cidadania engendrada pela contestação dos valores e
pela luta dos movimentos pela democracia, igualdade e diversidade. E, segundo
Costa (2012), nos períodos derradeiros da década de 1970, ainda em condições
de minoria, o jovem negro começava a ingressar nas universidades e ter acesso
à produção cultural, aos bens culturais, que por sua vez refletiu na necessidade
de busca por sua identidade, de autoconhecimento.
Os Cadernos Negros foram criados justamente nesta fase de redemocratização
do país, num contexto que era praticamente reduzido o tipo de produção que re-
presentasse a população negra e os escritores afro-brasileiros. Estes começaram
a circular em vários Estados brasileiros, contribuindo assim com a visibilidade da
literatura negra, que se distingue da literatura brasileira pela especificidade da re-
presentação do negro, ou seja, “os descendentes de africanos passem de objeto a
sujeito da escrita” (QUILOMBHOJE, Histórico Cadernos Negros). Sobre estes aspec-
tos, Moura (1988) argumenta que na sociedade brasileira os reflexos do modelo
social encontram-se presentes em nossa literatura. Trata-se do modelo despótico
e racista utilizado como superestrutura ideológica que legitima a desigualdade ra-
cial. A esse respeito, a partir de uma revisão sociológica da literatura brasileira é
possível destacar que na primeira fase da literatura nacional romântica, o sujeito
negro é negado, exclui-se sua existência social, estética e humana. Impõe-se ao
negro a configuração de anti-herói, inferior, subalterno e negando sua beleza.
No histórico dos Cadernos chama-nos a atenção sobre a literatura negra não
ser alvo do mercado editorial, assim, esta produção atende a esta demanda dessa
literatura [in]existente. Os Cadernos Negros, portanto, têm como meta dar visibili-
dade à literatura afro-brasileira e discutir questões como auto-estima dos afro-des-
cendentes e afeto negro. Sobre a chamada Literatura Negra Bernd (1988), expõe
que o conceito emerge dos próprios autores negros com o intuito de caracterizar

84 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
e diferenciar suas produções. É uma questão do negro, construir sua própria iden-
tidade e desconstruir um mundo criado pelo branco, do qual ele não faz parte,
contribuindo assim, para reversão dos valores e construção de uma nova ordem
simbólica. Por vezes, na Literatura Negra, o eu representa o nós, que remete a ideia
da construção do eu por meio do social (BERND, 1988). Para a autora as instân-
cias legitimadoras das obras literárias se baseiam na emergência, reconhecimen-
to, consagração e conservação, podem elevar ou “jogar às sombras”. A Literatura
Negra tem o caráter de dar voz e conscientização do ser negro, esbarra nessas
instâncias legitimadoras.
Por fim, com a realização do estudo e investigação da pesquisa, pode-se afir-
mar que os Cadernos atuam como forma de resistência, ação política, militância
e publicização da cultura afro-brasileira, que busca romper com o velamento e
o silenciamento do negro brasileiro. Após a realização da pesquisa bibliográfica
e documental, pudemos observar também que os Cadernos atuam como forma
de visibilidade do negro na sociedade brasileira, que buscam romper as barreiras
que as instâncias legitimadoras impõem, de sujeito partícipe da história-política e
cultural da nação brasileira.

APORTE TEÓRICO
Os Cadernos Negros, a sua elaboração é oriunda das lutas dos próprios autores
que publicam nele, lutas por um espaço em que o negro, juntamente com sua
produção intelectual, possa se manifestar. Os Cadernos foram custeados por seus
fundadores e vendidos em lançamentos de livros ou distribuídos em poucas livra-
rias, mas, desde o lançamento, tentam alcançar o número máximo de circulação,
uma vez que era limitada o acesso à Literatura Negra impressa. Atuam, assim,
como uma forma de visibilidade destas produções literárias. Compreendemos a
importância da história de criação dos Cadernos para o âmbito acadêmico, pois
disponibilizam fontes de estudos e investigação, com pautas focadas na resistência
cultural e no enriquecimento da questão racial brasileira
O termo Literatura Negra, conforme aponta Bernd (1988), emerge dos autores
negros com o intuito de caracterizar e diferenciar suas produções e, por isso, a
crítica tem a função de tornar essa nomeação visível e legitimá-la. É uma questão
de o negro construir sua própria identidade e desconstruir um mundo criado pelo
branco, do qual ele não faz parte. A escrita da Literatura Negra segue algumas
leis fundamentais, que Bernd (1988) nos apresenta da seguinte forma: Emergência
do eu enunciador (de um eu-que-se-quer-negro; o eu funde-se ao nós coletivo; e
que apresenta um negro que narra em primeira pessoa); Construção da epopéia
negra (cantar os seus heróis); Reversão dos valores (reconstruir um mundo que
não seja dos brancos para que possam tomar consciência e enfrentar sua condição
de negro); e Nova ordem simbólica. Essa necessidade de uma nomeação para a
literatura ou mesmo a construção de uma identidade e desconstrução de outra

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Artes, memória e espaços
pelo discurso, fazendo surgir o eu negro enunciador, é resultado da forma como a
relação entre as raças é tratada no Brasil, sendo, portanto, uma construção social,
argumenta Schwarcz (2012).
Quando um eu-que-se-quer-negro utiliza do discurso para se afirmar, este dia-
loga com o discurso do outro que o negou enquanto negro, seu enunciado se tor-
na réplica do enunciado do outro. Pensando nas leis fundamentais da Literatura
Negra, em que o eu funde-se ao nós coletivo e procura uma reversão dos valores,
de modo que possam construir uma nova ordem simbólica. Para Bernd (1988), as
instâncias legitimadoras que se baseiam na emergência, reconhecimento, consa-
gração e conservação das obras literárias podem elevar ou “jogar às sombras” as
obras literárias.

[...] algumas instâncias são diretamente responsáveis pela emer-


gência das produções literárias, como revistas, jornais, editoras
e livrarias; outras lhes trazem o reconhecimento, como a crítica
e a historiografia literárias, enquanto outras garantem sua con-
sagração: prêmios e academias, reservando-se à escola e biblio-
tecas a sua conservação [...] Quanto maior o potencial revolucio-
nário e desagregador da ordem vigente [...] tanto maior será o
risco de que uma das instâncias acima venham a obstacularizar
seu percurso e sua conservação (BERND, 1988, p. 40 e 41).

Sendo assim, como a Literatura Negra tem esse caráter de conscientização do


ser negro, esbarra nessas instâncias legitimadoras. Ao buscarmos investigar a ori-
gem e a história do Cadernos Negros, compreendemos a sua missão de legitimação
da escrita negra.
A respeito da origem histórica dos Cadernos, no texto de apresentação O histó-
rico dos Cadernos Negros, disponível na página eletrônica Quilombhoje Literatura1,
inicia com a frase “Os Cadernos foram criados em plena fase de redemocratização
do país.” De acordo com Schwarcz (2012b, p.10) a partir dos anos 1970 começa
uma nova compreensão de cidadania e contestação dos valores “É nessa época
que surgem os movimentos de minorias e uma compreensão diferente da ideia de
igualdade, com diversidade.” Trata-se de movimento de grupos socialmente mar-
ginalizados, tais como: movimentos sociais feministas, ambiental e o movimento
negro. Pode-se compreender como um momento importante de reivindicações e
conquistas que historicamente foram negadas a essas minorias.
Consta também na página eletrônica Quilombhoje Literatura2, a primeira pu-
blicação impressa dos Cadernos que ocorreu em 1978, com participação de oito
poetas que dividiram os custos do livro, sendo este publicado em formato de bolso
com 52 páginas. A circulação dos livros ocorreu através das pessoas e também da

1 http://www.quilombhoje.com.br/cadernosnegros/historicocadernosnegros.htm
2 http://www.quilombhoje.com.br/cadernosnegros/historicocadernosnegros.htm.

86 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
distribuição em algumas livrarias. Como ocorreu um retorno significativo, os Ca-
dernos, passou então a serem publicados, um por ano, alternando entre poemas.
A época era praticamente reduzida o tipo de produção que representasse efeti-
vamente a população negra e escritores afro-brasileiros. Os Cadernos começaram
a circular em vários Estados brasileiros, o que propiciou a participação de escrito-
res de diversas regiões. Contribuindo assim, com a visibilidade da literatura negra
que se distingue da literatura brasileira em sua representação do negro. “os des-
cendentes de africanos passaram de objeto a sujeito da escrita” (QUILOMBHOJE,
Histórico Cadernos Negros). A esse respeito Bernd (1988) explica que a literatura
negra surge no âmbito acadêmico como fonte de estudos e investigação, com pau-
tas focadas na resistência cultural e no enriquecimento da questão racial brasileira.
Portanto, pensar sobre a literatura brasileira é indagar a respeito da formação
social do Brasil, como afirma Moura (1988) ao argumentar que na sociedade bra-
sileira os reflexos do modelo social encontram-se presentes em nossa literatura, a
qual possui um modelo despótico e racista. Na época do escravismo os romancis-
tas representavam em suas obras ficcionais o modelo de beleza greco-romano e
seus valores. Eram representados dessa forma, os heróis e heroínas brancas, não
havendo personagens negros em suas obras. Um dos problemas provocados pela
literatura nacional, utilizada como superestrutura ideológica que vela a realidade,
é o fato de não se discutir a questão racial no Brasil. Esta é considerada como algo
resolvido pela população em função da credibilidade na existência de uma demo-
cracia racial pautada pela inexistência dos conflitos entre as distintas matrizes ét-
nicas.
Esta também é uma problemática suscitada por Moura (1988) que acredita ser
necessário uma revisão sociológica da literatura brasileira. Tal necessidade base-
a-se na própria história de formação desta literatura nacional e sua relação com
o povo negro. Observa-se que na primeira fase da literatura nacional romântica o
negro é negado, exclui-se sua existência social, estética e humana. O negro quando
retratado era de forma bestial ou para opor ao índio (idealizado). Assim, impõe
ao negro a configuração de anti-herói, inferior, subalterno e negando sua beleza
(BERND, 1988).
Dessa forma, sendo imposto ao negro a configuração de anti-herói, verifica-se
na atualidade no histórico dos Cadernos disponível no site Quilombhoje Literatura,
que ainda a literatura negra não é alvo do mercado editorial. Pode-se afirmar que
os Cadernos Negros atendem a esta demanda dessa literatura [in]existente, desde
o ano de 1980. Portanto, sob a responsabilidade da editora Quilombhoje, a editora
surgiu através de encontros de jovens poetas que se reuniam para discutir sobre
a publicação desse tipo de literatura. Tratava-se de definir a organização, editora-
ção, lançamento, os quais ocorreram e ocorrem em eventos culturais e, recente-
mente com co-edição com uma editora mediante um processo colaborativo e sem
fins lucrativos que visa romper com as barreiras impostas pelo mercado.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 87


Artes, memória e espaços
Além desses aspectos, ainda é importante destacar que consta na página ele-
trônica Quilombhoje Literatura3, o histórico de formação do Quilombhoje enquan-
to grupo. E, vale destacar o objetivo que os une enquanto coletivo “O grupo tem
como proposta incentivar o hábito da leitura e promover a difusão de conhecimen-
tos e informações, bem como desenvolver e incentivar estudos, pesquisas e diag-
nósticos sobre literatura e cultura negra.” (QUILOMBHOJE, Histórico). O trabalho
desenvolvido tem colaborado para provocar o surgimento de outras atividades,
tais como: cursos, seminários e debates sobre literatura afro. Atividades estas,
segundo informações disponíveis no site, organizadas por faculdades de letras e
entidades interessadas nas questões literárias e raciais em vários lugares do Brasil.
A meta é justamente dar visibilidade à literatura afro-brasileira e discutir questões
como auto-estima dos afro-descendentes.
Neste sentido, também em função de compreender o corpus deste projeto de
pesquisa, recorremos a diferentes fontes, por meio da pesquisa bibliográfica so-
bre os Cadernos Negros. Encontramos o livro Um Pouco de História dos Cadernos
Negros: período de 1978 a 2008, uma história que está apenas começando, de
Aline Costa, relacionado ao v olume especial dos Cadernos Negros Três Décadas.
Trata-se de um material significativo em registros documentais e fotográficos que
discute sobre a criação e a batalha para a manutenção da série, disponível no
site: https://issuu.com/mbantu/docs/historicotresdecadas. A partir da leitura do
livro foi possível conhecer a história, ou seja, o entrelinhas do nome Cadernos
Negros. De acordo com Costa (2012), o nome foi escolhido por Hugo Ferreira
que observou uma mulher negra, moradora da favela chamada Carolina Maria
de Jesus. Ela escrevia em cadernos, daí a escolha do nome.
Carolina viveu o antagonismo das classes sociais e o agravamento da soma da
discriminação e marginalização que recai sobre os negros.
Ribeiro (2011) afirma que mesmo o negro sendo subjugado, como o foi Carolina
em sua trajetória de vida, este encontra nos bairros africanos, as chamadas favelas,
espaço onde pode viver e conviver com seus demais. Nestas novas relações cons-
trói-se a sua própria cultura com influências africanas. Assim, o negro urbano, jun-
tamente com sua cultura rica singular, torna-se parte da cultura popular brasileira,
aproveitando cada oportunidade na sociedade para mostrar o seu valor.
Um marco importante para a mudança desta realidade que o negro enfrentava,
segundo Costa (2012), está relacionada aos movimentos que estavam ocorrendo
no Brasil no ano de publicação dos Cadernos negro. Esses movimentos possibili-
taram a criação de diferentes manifestações de contestação e reconstrução das
ideologias vigentes, como a revogação do Ato Institucional N-5 (Al-5); eleição para
os sindicatos e movimentos estudantis; noventa anos de assinatura da Lei Áurea;
ONU elegeu 1978 o ano Internacional Anti-apartheid, além de promover discus-
sões de ações afirmativas; criação do Movimento Negro Unificado (MNU) e Centro
de Cultura e Arte Negra (CECAN).

3 http://www.quilombhoje.com.br/quilombhoje/historicoquilombhoje.htm

88 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
Costa (2012) ainda afirma que neste período da década de 1970, o jovem negro
começava a ingressar nas universidades e ter acesso à produção cultural, aos bens
culturais os quais as gerações anteriores não teve acesso. Essa mudança refletiu
na necessidade de busca por sua identidade, de autoconhecimento. O número de
jovens negros universitários era ínfimo em comparação à grande população negra
brasileira, que ainda encontrava barreiras para o acesso a essa cultura e educação
formal.
Outra fonte significativa para a investigação sobre os Cadernos, o artigo
Quilombhoje e Cadernos Negros, publicado no ano 2000 por Luiz Silva, mais co-
nhecido por Cuti. O autor faz um histórico detalhado sobre a formação dos Cader-
nos e Quilombhoje em seu site (http://www.cuti.com.br/artigocardernosnegros).
Segundo Cuti no ano de 1978 em reunião no Centro de Cultura e Arte Negra – Ce-
can, no Bairro da Bela Vista – SP, um grupo de jovens militantes e também poetas
trabalhando na edição do Jornal Jornegro afloraram a ideia de construção de uma
antologia literária, com poemas. A proposta partiu de Cuti (Luiz Silva), Hugo Ferrei-
ra, Eduardo de Oliveira e Oswaldo de Camargo. A ideia de construção dessa anto-
logia literária ganhou apoio de Jamu Minka, Ângela Galvão, Henrique Cunha Júnior
(Cunha) e Célia Aparecida Pereira (Celinha), formando assim, uma cooperativa de
oito autores, que arcaram com os custos da edição e toda sua produção, visando
variadas experiências e tendências estéticas.
No processo de produção do primeiro volume surgiu o desejo de se publicar
também os contos, destinando a próxima edição para este gênero literário. No
prefácio do primeiro volume de contos José Correia Leite expressou “Todos os con-
tos aqui reunidos formam um ensaio que pode ser o elo de uma união fraterna,
com o nobre propósito de levar mais longe o enfeite literário, para se tornar na
mensagem de uma nova esperança.”, podemos observar que este movimento de
produção literária significava para os seus envolvidos um elo de união fraterna,
uma nova esperança.
Sobre a criação da Editora Quilombhoje, Cuti expõe que independentes dos Ca-
dernos, ocorriam semanalmente reuniões informais para discutirem sobre literatu-
ra, no bar conhecido por Mutamba. Assim, no ano de 1980, Oswaldo de Camargo,
Cuti, Paulo Colina, Abelardo Rodrigues e Mário Jorge Lescano se autodenominaram
Quilombhoje. Com o crescimento do grupo e sua evolução enquanto projeto de
discussão literária, os encontros foram intitulados de Roda de Poemas.
Mas, à medida que o Quilombhoje foi ampliando o número de participantes
a composição do grupo foi alterada. Saíram quatro de seus fundadores restando
apenas Cuti que juntou ao grupo: Sônia Fátima da Conceicão, Jamu Minka, Oubi
Inaê Kibuko, Miriam Alves, Esmeralda Ribeiro, Márcio Barbosa, Vera Lúcia Alves e
José Abílio Ferreira. Segundo Cuti, em 1982 os Cadernos passaram então a ser de
responsabilidade por sua edição e lançamentos do Quilombhoje. Além dos Cader-
nos foram publicados outros oito livros.

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Artes, memória e espaços
Com número reduzido de componentes Esmeralda, Márcio e Sonia, em 1998 o
Quilombhoje publicou três livros: Cadernos Negros - os melhores poemas, Cader-
nos Negros - os melhores contos e Frente Negra Brasileira (depoimentos), o volume
de poemas contou com a participação de 21 autores, e no de contos 16.
De acordo com Cuti em 1999 com a publicação anual ininterrupta, os Cadernos
ganharam tamanho padrão 14x21cm, com publicações alternadas entre poemas e
contos. Publicaram 90 autores, num total de 957 poemas e 201 contos. Cuti chama
nossa atenção para o fato de que a sociedade brasileira tem como “reflexo de uma
população tradicionalmente iletrada, tanto pelo analfabetismo quanto pelo pre-
conceito anti-leitura persistentes no Brasil.”, assim torna-se expressivo o número
de autores.

PROBLEMA DE PESQUISA (E/OU HIPÓTESE E/OU OBJETIVOS)


Esta pesquisa pautou-se na investigação sobre a retórica histórica da produção
de livros de contos e poemas, intitulados Cadernos Negros, publicados anualmente
pela editora Quilombhoje. Buscou-se como problemática de pesquisa a compreen-
são sobre o processo histórico de formação das relações étnico-raciais no Brasil e
seus desdobramentos na contemporaneidade a partir da elucidação e investigação
analítica dos Cadernos Negros enquanto produção, histórico-política.

METODOLOGIA
Trata-se de uma pesquisa de natureza teórica e bibliográfica, o estudo teórico
pautou-se pela leitura, interpretação, produção textual e discussão sobre o pro-
cesso histórico de formação das relações étnico-raciais na sociedade brasileira e
seus desdobramentos na contemporaneidade. Foi utilizado como referências os
textos/livros dos autores Moura (1988 e 1989), Ribeiro (2011), Schwarcz (2012) e
Bernd (1988). Concomitante ao estudo teórico foi realizada o estudo bibliográfico
referente à investigação dos Cadernos Negros, buscando compreender sua origem
histórico-político, a relação com a editora Quilombhoje Literatura, as caracterís-
ticas da publicação e coleta de dados disponíveis de cada caderno, haja vista a
finalidade de conhecer e investigar o corpus deste projeto, os Cadernos Negros.

RESULTADOS E ANÁLISE
A pesquisa bibliográfica nos possibilibou analisar os Cadernos Negros, sendo
estes compostos por poemas e contos, teve como primeiros autores, os militantes
poetas. Neste sentido, para compreender os questionamos sobre o motivo se de
escolher estes gêneros como forma de expressão e visibilidade recorremos à auto-
ra Bernd (1988) sobre a significância da chamada Literatura Negra.

90 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
Dessa forma, para pensar na característica das publicações dos Cadernos foi
fundamental compreender sobre o movimento cultural e político da época (1978).
Destaca-se mais uma vez o estudo do livro História do Negro no Brasil de Clóvis
Moura (1989), o qual discute sobre o movimento e organização cultural eferves-
cente na década de 1970. Com a decadência do regime militar (1964-1985), a
população negra retomou sua atitude de luta contra as violências que lhes eram
sofridas, além de promoverem momentos interativos. Assim, em 1978 com a orga-
nização de um ato público de protesto contra a violência e assassinatos de negros
pela polícia e jovens atletas negros expulsos do Clube de Regatas Tietê, foi criado o
Movimento Negro Unificado, o MNU que existe até os dias atuais. De acordo com
Moura (1989) surge como movimento de reivindicação contra o racismo e explora-
ção da população negra brasileira.
Moura (1989) explica sobre a existência de movimentos anteriores à década de
1970, que foram significativos para a tomada de consciência de ser negro no Brasil,
como a imprensa negra paulista, em 1915. A imprensa um foi marco importante
para despertar nos negros e articular entre estes uma ideologia que os represen-
tasse, a fim de buscar uma identidade étnica e um fortalecimento enquanto grupo.
A partir desta tomada de consciência étnica propiciada pela imprensa negra paulis-
ta formou-se a Frente Negra Brasileira fundada no ano de 1931, a qual tornou- se
um partido político em 1936. Mas, com a implantação do Estado Novo (1937-1945)
a Frente Negra foi desarticulada totalmente em 1938.
Em busca de espaço na sociedade brasileira formaram-se também o Centro de
Cultura Afro-Brasileira (1936), Teatro Experimental do Negro (1944), Teatro do
Povo (1945), Comitê Democrático Afro-Brasileiro (1945) e Teatro Folclórico Brasi-
leiro (1948).
Para compreendermos a respeito do público alvo, no histórico sobre os Cader-
nos Negros, disponível na página eletrônica4, contém informações sobre o público
leitor caracterizado como heterogêneo, constituído em sua maioria “por pessoas
da comunidade afro-brasileira, especialmente universitários, professores e profis-
sionais liberais. Mas também há leitores comuns e intelectuais pertencentes a ou-
tros segmentos étnicos da população.”.
No site Quilombhoje Literatura, especificamente na página eletrônica AfroEscri-
tores5, existe uma parte destinada à apresentação dos autores que publicam nos
Cadernos. É um espaço destinado para manifestação sobre o processo de criação
e importância da literatura afro a partir do posicionamento dos autores e autoras
sobre a importância desta literatura.
Para os autores que publicam nos Cadernos o público alvo de suas escritas, é
a população em geral, a população negra, visto que esta literatura resgata a hu-
manidade de uma parcela da população que foi historicamente marginalizada. Ao
pensar neste público como heterogêneo significa mostrar que existem negros que

4 http://www.quilombhoje.com.br/cadernosnegros/historicocadernosnegros.htm
5 http://www.quilombhoje.com.br/afroescritores/afroescritores.swf

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 91


Artes, memória e espaços
escrevem para o público em geral, que procura conhecer a escrita negra em suas
diferentes manifestações e, para um público específico que busca a partir desta li-
teratura uma reconstrução de uma identidade e autoimagem legitimada em nossa
sociedade.
Com relação à coleta de dados sobre os Cadernos Negros, na página Quilom-
bhoje Literatura6, existem também as resenhas dos cadernos de número 24, 25,
26, 27 e 28, juntamente com a resenha de duas publicações especiais, Cadernos
Negros Melhores contos (1998) que reúne volumes 1 ao 19 de Cadernos e Cader-
nos Negros melhores poemas (1998) que reúne também os volumes 1 ao 19 de
Cadernos . Na sessão de livros raros estão presentes os Cadernos de número 16
(1993), 20 (1997) e 21 (1998). Em cada resenha dos Cadernos encontramos infor-
mações a respeito do gênero publicado, com breve apresentação do livro e nome
dos autores. Para comprar existe informações no site dos pontos de vendas em São
Paulo, Salvador, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília e loja virtual.
No site Quilombhoje Literatura só é possível encontrar estes livros citados aci-
ma, os demais livros tem publicações em outros sites, alguns ligados diretamente à
editora outros com o intuito de promover os lançamentos dos livros.
No blog QUILOMBHOJE. Informes, comentários e outras coisas7 existem infor-
mações mais atualizadas sobre os livros. A primeira publicação realizada no blog
data janeiro de 2008, contudo ocorre erro na página, o que não permite o acesso
para nós leitores. O blog é destinado à realização de inscrições para participação
no lançamento dos Cadernos, com a disponibilidade de dados do local, horário e
programação.
Na publicação de novembro de 2010 existem informações a respeito do lan-
çamento do livro Cadernos Negras Volume 33 – Poemas Afro-Brasileiros. Em
publicação no mês de dezembro de 2011 as informações estão relacionadas
ao lançamento do livro Cadernos Negros 34 – Contos Afro-Brasileiros. No mês
de novembro de 2012 consta informações sobre o lançamento do livro 35, o qual
as inscrições foram encerradas por terem sido já todas preenchidas. Em 2013 no
dia 03 de dezembro foram abertas as inscrições para o lançamento do Caderno
volume 36. O lançamento do livro Cadernos Negros volume 37 – Poemas Afro- Bra-
sileiros ocorreu no dia 12 de dezembro de 2014. Para o lançamento dos Cadernos
de volume 38 contos afro-brasileiros foi marcado para o dia 18 de dezembro. O
último livro publicado Cadernos Negros 39 – Poemas diversos foi lançado no dia
16 de dezembro de 2016. Para cada volume dos Cadernos vem acompanhado de
resenha e nomes dos autores.

6 http://www.quilombhoje.com.br/oslivros/resenhaintro2.htm
7 http://www.quilombhoje2.com.br/blog/?m=200901

92 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O projeto de pesquisa possibilitou o estudo e compreensão do processo histó-
rico de formação das relações étnico-raciais no Brasil, com enfoque no negro e sua
relação intrínseca com a constituição da literatura nacional. A literatura brasileira
atua como superestrutura ideológica do modelo despótico e racista, dada a nossa
formação social. Neste sentido, a literatura negra surge para que o negro possa
construir sua própria identidade e desconstruir um mundo criado pelo branco. As-
sim, destaca-se que os Cadernos Negros significam a materialização desta litera-
tura negra que busca romper com o velamento e o silenciamento do povo negro
brasileiro. Após a realização da pesquisa bibliográfica e documental, pudemos ob-
servar que mesmo os Cadernos atuando como forma de visibilidade do negro na
sociedade brasileira, estes ainda estão em busca do rompimento que as instâncias
legitimadoras impõem, buscando legitimidade.

REFERÊNCIAS

BERND, Zilá. Introdução à literatura negra. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988.

COSTA, Aline. Um Pouco de História dos Cadernos Negros: período de 1978 a 2008, uma
história que está apenas começando. 2012. Disponível em: https://issuu.com/mbantu/
docs/historicotresdecadas Acesso em: 10 de maio de 2017.

CUTI. Quilombhoje e Cadernos Negros. Disponível em: https://www.cuti.com.br/artigo-


cardernosnegros Acesso em: 22 de março de 2017.

MOURA, Clóvis. História do Negro no Brasil. São Paulo: Editora Ática, 1989. 84 p. MOURA,
Clovis. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Editora Ática, 1988.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 3º ed. São Paulo:
Companhia das letras, 2011.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na so-
ciabilidade brasileira. 1. Ed. São Paulo: Claro Enigma, 2012a.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Cidadania, um projeto em construção. 1ª- ed. — São Paulo : Claro
Enigma, 2012b.

QUILOMBHOJE. Disponível em: http://www.quilombhoje.com.br/ Acesso em: 11 de de-


zembro de 2016.

QUILOMBHOJE. Informes, comentários e outras coisas. Disponível em: http://www.qui-


lombhoje2.com.br/blog/Acesso em: 28 de abriu de 2017.

QUILOMBHOJE. Histórico Cadernos negros. Disponível em: http://www.quilombhoje.


com.br/cadernosnegros/historicocadernosnegros.htm Acesso em: 03 de maio de 2017.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 93


Artes, memória e espaços
AUTORIA
Joselaine Galvão de Souza
FE/UFG
E-mail: j oselainegs@gmail.com
ORCID: 0000-0001-56376048
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3089785123426262

Rachel Benta Messias Bastos


IFG
E-mail: rachel.bastos@ifg.edu.br
ORCID: 0000-0001-7786-6505
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2303166673494701

94 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
GIRADRAMATÚRGICA: ENCONTRO, PESQUISA
E CRIAÇÃO POR E ENTRE DRAMATURGAS/OS
NEGRAS/OS

Carlos Alberto Mendonça Filho

INTRODUÇÃO
O que é uma dramaturgia negra? O que define uma dramaturgia como negra?
Será que é a cor da pele de quem escreve, é a cor do ou da personagem principal,
é a cor da maioria dos personagens que fazem parte dessa trama? É o tema? Será
que uma pessoa branca pode escrever uma dramaturgia negra? Começo a levan-
tar esses questionamentos antes, durante e após a minha experiência como dra-
maturgo-integrante do Núcleo de Dramaturgia do SESI-PR1 no ano de 2019, onde
me propus a escrever sobre a (r)existência negra no Brasil, procurando investigar
como as questões micro e macro se relacionam na (sobre)vivência das pessoas
negras no Brasil.
Tudo foi e vem sendo impregnado de branco: casas, terras, corpos e corpas,
vozes, palavras. Ao levantar episódios de racismo cotidiano, Grada Kilomba (2019)
reflete que o mundo colonial, além de engendrar uma pilhagem ostensiva de cor-
pos/as, subjetividades, culturas e riquezas naturais dos territórios colonizados,
operou também pela disseminação e manutenção de ideologias supremacistas,
sexistas e racistas através das instituições sociais.

Nos pediam para ler sobre a época dos “descobrimentos por-


tugueses”, embora não nos lembrássemos de termos sido des-
cobertas/os. Pediam que escrevêssemos sobre o grande legado
da colonização, embora só pudéssemos lembrar do roubo e da
humilhação. (...) Que ótima maneira de colonizar, isto é, ensinar
colonizadas/os a falar e escrever a partir da perspectiva do colo-
nizador. (KILOMBA, 2019, p. 65)

Assim, a educação2 e a arte3, diretamente (enquanto discurso) ou pelo campo


da linguagem (a palavra e a imagem, por exemplo), são práticas que também rati-

1 O Núcleo de Dramaturgia do SESI-PR 2019 realizou suas atividades de julho a novembro,


propondo oficinas de formação dramatúrgica com artistas brasileiros que possuem pesquisa na área.
Cada um dos 12 integrantes foi orientado por um(a) artista local e produziu um texto autoral cujo mote
foi a América Latina e suas urgências.
2 Na educação, penso principalmente quanto às práticas de ensino na universidade pública,
visto que a instituição superior de ensino ao qual estou me formando possui essa característica.
3 No campo da arte, me detenho à análise do teatro e da dramaturgia, principalmente no

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 95


Artes, memória e espaços
ficam e atualizam epistemologias eurocêntricas, patriarcais, brancas e heterosse-
xuais em sua maioria. Teorias que surgem a partir da decolonialidade4, desenvol-
vidas por autoras/es como Leda Maria Martins (1995), Djamila Ribeiro (2017), Luiz
Rufino (2019), entre outras/os/es, ao denunciar epistemicídios e a desigualdade
gerados por um sistema, também reivindicam outras formas de entender o mundo
e as relações que daí surgem. Destrinchar o racismo sintomático também na arte,
recortando-a nas áreas do teatro e da dramaturgia5, pede que nos debrucemos
sobre alguns questionamentos norteadores, como propõe Júnia Pereira (2019):

A pergunta “quem fala?” sempre foi possível ou foi(é) dirigida a


todos os enunciados teatrais? Como se configura historicamen-
te a visibilidade da autoria na criação dramatúrgica e o que ela
tem (ou não) a ver com o gênero e outros marcadores sociais
dos(as) dramaturgos(as)? (PEREIRA, 2019, p. 64)

Apreender a dramaturgia como um lugar acessível, democrático e possível para


todas/os se mostra como um grande desafio, principalmente quando avançamos
sobre a segregação histórica no teatro (mas também na arte em geral) contra
as múltiplas narrativas populares, periféricas e de resistência advindas das ditas
“maiorias minorizadas”, como as dramaturgias negras e os teatros negros. As
constantes reproduções e postulações únicas dos ditos cânones europeus-bran-
cos-masculinos no teatro dito ocidental constrói uma grande maquinaria perversa
que escolhe, classifica, referencia e recomenda quem pode pensar, quem pode
escrever e como se deve escrever.

Além de se constituir como homem, nosso olhar demarca o dra-


maturgo clássico também como europeu, pois ele só pode ser
concebido em uma análise que exclui manifestações espetacula-
res de outros continentes e centra suas investigações na Europa,
excluindo também, dela, as tradições populares nas quais não
existe contexto não somente para a forma dramática pura, mas

Brasil. Porém, as diferentes linguagens artísticas podem ser utilizadas para pensar essa manutenção
colonial, principalmente ao analisarmos as principais metodologias utilizadas no ensino artístico e a
não-representação de maiorias minorizadas nas iconografias, por exemplo.
4 Para entender a decolonialidade, Nelson Maldonado-Torres define primeiramente o colo-
nialismo moderno como “(...) os modos específicos pelos quais os impérios ocidentais colonizaram a
maior parte do mundo desde a “descoberta.” (MALDONADO-TORRES, 2020, p. 35). Decolonialidade
então, “(...) refere-se à luta contra a lógica da colonialidade e seus efeitos materiais, epistêmicos e
simbólicos.” (MALDONADO-TORRES, 2020, p. 36)
5 Para utilizar uma definição específica a fim de análise, parto do pressuposto de que a drama-
turgia “(...) corresponde ao planejamento e elaboração de textos de todo e qualquer formato ou gêne-
ro discursivo (...), a ser comunicado publicamente” (NICOLETE, 2013, p. 72). Essa comunicação pública
que a dramaturgia pressupõe não opera somente pelo campo do texto escrito ou verbal, mas também
por uma conjuntura de signos existentes na composição de imagens, por exemplo. Dessa forma, não
restringimos o texto dramatúrgico somente à uma concatenação lógica de falas e acontecimentos, mas
sim abrimos o campo de definição para diversas possibilidades e formas de se fazer.

96 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
também para a primazia do texto e/ou do autor. (PEREIRA, 2019,
p. 65)

Ao deflagrar essa hegemonia branco-europeia que atualiza e reproduz a domi-


nação colonial pela linguagem (nesse caso, a escrita dramatúrgica), Júnia Pereira
nos propõe uma mirada às outras possibilidades de escritura cênica que pautam
outras formas de fazer, de pensar e de existir na cena. Dessa forma, a dramaturgia
e o teatro podem assumir lugares de desobediência e resistência ao atuar pela des-
colonização de uma lógica importada e maniqueísta, pautando urgências e trans-
formações próprias de seu tempo.
Leda Maria Martins (1995) analisa historicamente que as cenas negras insurgem
no Brasil pela busca do deslocamento da visão e do discurso ao que já está posto
como norma no teatro dos séculos XIX e XX, colocando em cheque representações
feitas por dramaturgos e encenadores que recorriam ao estereótipo, à satirização
e à demonização da pessoa negra. Assim, as nossas histórias vem gingando e carna-
valizando o que o imaginário branco estruturou ao escravizar, objetificar, demoni-
zar, negar, anular, marginalizar, hiperssexualizar, invisibilizar, violentar, racializar e
tentar exterminar o/a negro/a, suas diferentes culturas, vivências e subjetividades,
com isso propondo narrativas e poéticas sobre nós e para nós.
Empretecemos a cena e o papel no desejo e no direito de poder nos enxergar-
mos ao ler/interpretar um texto ou produzir/assistir a um espetáculo. As nossas
narrativas mergulham em mares de manifesto, denúncia e resistência, sambam as
plurais existências afro-diaspóricas que ao mesmo tempo se ajuntam e se afastam
numa grande encruzilhada6 poética e política.

PELE, COR E ESCREVIVÊNCIA


A aparente falta de teóricas/os e artistas negras/os/es se mostra uma necessi-
dade a ser falada e discutida por mim, principalmente devido às outras vivências
que começo a ter fora do ambiente acadêmico com outros cursos7 voltados ao
teatro negro e à dramaturgia. Começo a questionar os porquês de não estarmos
estudando pessoas negras importantes para a construção de um teatro dito brasi-
leiro, mas também quanto às grandes teorias do teatro ocidental, da sociologia, da
educação e no que se refere à própria formação pedagógica das/os discentes do

6 Alinho-me ao prof. Dr. Marcos Alexandre ao dialogar com as teorias pensadas anteriormente
pela profa. Dr. Leda Maria Martins (1995): “(...) a encruzilhada é um lugar de encontro e desencontro,
passagem, interseção, mediação, entrecruzamento. Como espaço de trânsito e deslocamento, na en-
cruzilhada, nós nos deparamos com um ponto de interseção, um lugar em que os corpos se cruzam e
são cruzados, tocados” (ALEXANDRE, 2017, p. 57-58).
7 Um dos cursos que participei foi o projeto “Negro Olhar”, realizado pela atriz e diretora Tatia-
na Tibúrcio, que promove ciclos de leitura dramatizada de textos de autoras/es negras/os e a própria
pesquisa quanto à história do teatro negro brasileiro. Pude participar da etapa curitibana do projeto
em 2019, promovido pelo SESC Paraná.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 97


Artes, memória e espaços
curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Estadual do Paraná. Onde esta-
vam e estão as/os artistas e teóricas/os negras/os/es?
Em contraponto à reprodução e a manutenção desse ideário colonizador, é
necessário mencionar que muitas/os professoras/es brasileiras/os vêm propondo
outras abordagens para os conteúdos curriculares, reforçando através de ações
extensionistas8, grupos de estudos e encontros temáticos a importância de peda-
gogias que partam da decolonialidade para a emancipação e a construção de novos
saberes na arte, nas/os corpas/os/es, nas relações interpessoais e para a formação
de artistas de teatro.
Outro ponto recorrente para mim é a representatividade negra na universida-
de: não tenho outras/os/es colegas auto-declaradas/os/es negras/os/es em minha
turma, ao passo de que, no colegiado de Teatro, não há nenhum/a professor/a ne-
gro/a/e ministrando aulas. Todas essas “ausências” se mostram sintomas da natu-
ralização do racismo que também segrega e gerencia os lugares a serem ocupados,
ainda mais numa cidade como Curitiba9.
Todas essas interrogações coçam, incomodam, mas também mobilizam; o que
se revela é o apagamento, o silenciamento, o escasso incentivo, o processo de re-
produção de uma narrativa única, a ausência de inserção, a exclusão e o exotismo
das/dos artistas negras/os/es e suas produções, sintomas do racismo estrutural
que se mostra como um dos pilares da formação social brasileira e do colonialismo
como um todo, pois:

(...) não poder acessar certos espaços, acarreta em não se ter


produções e epistemologias desses grupos nesses espaços; não
poder estar de forma justa nas universidades, meios de comu-
nicação, política institucional, por exemplo, impossibilita que as
vozes desses indivíduos sejam catalogadas, ouvidas (...) O falar
não se restringe ao ato de emitir palavras, mas de poder existir.
(RIBEIRO, 2017, p. 65)

Os teatros negros10 insurgem a partir da reivindicação dessas urgências: o direi-


to de existir, o direito de poder falar, de poder se ver representado/a nas histórias

8 Um exemplo recente dessas ações é o projeto Estudos em Teatro Negro, que promove en-
contros virtuais sobre a cena negra a partir de pesquisas acadêmicas e entrevistas com artistas negras/
os/es. O projeto é realizado a partir da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e é coordenado pelo prof.
Dr. Gustavo Melo Cerqueira e pelo prof. Dr. Licko Turle. Os encontros do Módulo I iniciaram em maio de
2020, com as aulas ocorrendo às terças e quintas-feiras das 14h às 16h. Mais informações disponíveis
em: https://www.youtube.com/channel/UCjVtUsM4PxU05NyK406E_RA. Acesso: agosto, 2020.
9 É impossível que eu não mencione o racismo cotidiano, direto ou simbólico, presente não só
em Curitiba mas em muitos lugares do sul do país, fruto de uma política de embranquecimento ope-
rada pelo governo imperial entre o final do século XIX e início do XX. Um dos exemplos mais recentes
desse racismo velado foi o da juíza Inês Marchalek Zarpelon, que sentenciou um homem negro à prisão
pela sua “raça”, associando a cor da pele à violência e vandalismo. Disponível em: https://www.brasil-
defato.com.br/2020/08/12/exclusivo-juiza-diz-em-sentenca-que-homem-negro-e-criminoso-em- ra-
zao-da-sua-raca. Acesso em: agosto, 2020.
10 Utilizo aqui “teatros negros” para tentar abranger a pluralidade e a diversidade presente tan-

98 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
contadas na cena, seja ela no palco, seja na rua, na arte, na educação, na sociedade
e em qualquer outro lugar.

(...) Uma das premissas do teatro negro é ser uma arte engajada
e este engajamento deve ser manifestado em distintos níveis,
assumindo características que vão desde uma arte que seja (por
que não?) panfletária até uma estética que assume vieses que
dialogam com outras nuances que exploram características re-
lacionadas com os aspectos políticos e ideológicos que possam
assumir espaços voltados para questões dos afetos e das subje-
tividades, demonstrando que há um vasto campo de atuação do
teatro negro e que este, hoje, não mais se restringe exclusiva-
mente ao caráter da religiosidade. (ALEXANDRE, 2017, p. 35-36)

Um lugar de manifesto também paira sobre os teatros da diáspora, pois as ce-


nas negras expõem, questionam e denunciam tudo aquilo que é negado ou ainda
não existe em sua plenitude - principalmente quando pensamos num país como o
Brasil onde o racismo possui máscaras de diferentes tons brancos e o pensamento
colonial ainda fundamenta as práticas do Estado. Mesmo após 132 anos de uma
falsa abolição, ainda não somos livres.

TEMPO, VERBO E ENCRUZILHADA


Sob orientação da profa. Dra. Stela Fischer, crio a GiraDramatúrgica - Núcleo de
Pesquisa e Criação em Dramaturgia, projeto de extensão vinculado à Universidade
Estadual do Paraná - Campus de Curitiba II, que iniciou seus trabalhos em abril de
2020, com previsão de término para outubro do mesmo ano. Meus principais ob-
jetivos ao pensar a Gira são os de criar um grupo de dramaturgas/os/es negras/os/
es voltado à pesquisa e à experiência criativa nas áreas de dramaturgia e teatro ne-
gro; estabelecer conexões, trocas de experiências e diálogos entre artistas negras/
os/es de diferentes regiões do país; estimular o exercício da escrita criativa para a
cena e a busca por diferentes narrativas, visando a construção de uma dramaturgia
negra autoral e inédita de cada dramaturga/o/e; e aprofundar questões, pertinên-
cias e urgências sobre a Dramaturgia Negra e o Teatro Negro Brasileiro.
Devido à pandemia de COVID-19 precisei adaptar o projeto à nova realidade
de distanciamentos físicos e simbólicos. Houve com isso o aumento do alcance de
pessoas interessadas em compor o curso devido ao ambiente virtual, não ficando
restrito somente à região de Curitiba. Visando otimizar o contato e o acompanha-
mento de cada integrante, foram selecionadas onze dramaturga/os/es11 de sete
estados do país (RS, PR, SP, RJ, ES, BA e MA).

to na formação brasileira como nos movimentos cênicos que desde o século XIX pautam o/a negro/a,
suas subjetividades e histórias como centro do que entendemos no ocidente como teatro.
11 Participaram da primeira edição da GiraDramatúrgica as/os dramaturgas/os/es Carolina Ma-
ria, Cláudia Simone, Diego Ferreira, Denise Telles, Jaiara Soares, Kelle Bastos, Mário Alves, Ozzy Souza,

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 99


Artes, memória e espaços
A Gira se forma principalmente através de procedimentos e práticas pedagó-
gicas que reivindicam uma outra abordagem através da descolonização das rela-
ções de ensino-aprendizagem em dramaturgia, entendendo o desenvolvimento da
escrita para a cena como uma poética-política democrática e interdisciplinar que
emerge das encruzilhadas insurgidas do jogo de estar junto. Tomo como referência
o que propõe o professor Luiz Rufino (2019), que amplia entendimentos de que as
relações de ensino e aprendizagem resultam do cruzo entre diferentes saberes (va-
lorizando principalmente o que é marginalizado, tornado periférico, não-hegemô-
nico), que acontece a partir da experiência humanizante, afetiva e mediadora do
encontro, da aglomeração mesmo que virtual. Proponho na Gira a aplicação dessas
possibilidades do entre e por consequência a contínua formação dramatúrgica das/
dos integrantes.
Não foi exigido das/os participantes uma experiência prévia na área da dra-
maturgia nem do próprio teatro; inclusive, há no grupo pessoas ligadas a outras
áreas como o cinema, a jornalismo e a literatura de um modo geral. Entendo que
qualquer pessoa, seja qual for seu repertório e vivência, pode vir a escrever um
texto para a cena, desmistificando um imaginário povoado pela exclusão e pelo
“dom”. Também, o referencial bibliográfico sobre teatro e dramaturgia a ser estu-
dado buscou priorizar obras brasileiras, especialmente no que se refere às escritas
por autoras/es negras/os/es.
Com esses deslocamentos das epistemologias do centro, damos um rolê a cada
encontro, perpassando saberes que o mundo branco postula como periféricos, ou
marginalizados, ou “menores”, invertendo assim a composição e o exercício da
aprendizagem para transgredir efetivamente pela ação, no caso, a escrita para a
cena. O que interessa é, justamente, a pluralidade de ideias, narrativas e jeitos de
contar histórias. Celebramos a alteridade como potência para a cena e para a escri-
ta, entendendo que a vivência e o repertório de cada dramaturga/o/e-integrante
são diversos e igualmente riquíssimos dentro de sua singularidade. Não me coube
então nesse caso específico propor uma ideia ou abordagem temática-estrutural
que servisse a todos de uma maneira igual, mas sim convergir possibilidades de
reinvenção do mundo e da vida a partir da dramaturgia e do acontecimento de
estarmos juntos. Outras vozes emergem de um silêncio secular.
Os processos de criação dos textos dramatúrgicos partiram fundamentalmente
de pesquisas teórico-práticas compartilhadas entre as/os dramaturgas/os/es so-
bre dois grandes temas: o teatro negro brasileiro e as representações e urgências
negras na dramaturgia. Nessas investigações analíticas e documentais, realizadas
nos primeiros meses do curso (abril, maio e junho), buscamos resgatar a(s) histó-
ria(s) negra(s) do teatro brasileiro e os nomes apagados e/ou invisibilizados histo-
ricamente pela branquitude, promovendo análises e debates em grupo a partir de
falas públicas e textos norteadores escritos por autoras/es negras/es, como Lima

Rafael Cristiano, Tamyres Costa e Yannikson Pereira. Os encontros foram e são realizados virtualmente
pelas plataformas Google Meet e Zoom.

100 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
Barreto, Leda Maria Martins, Sayonara Pereira, Daniel Santos Costa, Evani Tavares
Lima, Abdias do Nascimento, Dione Carlos, Gloria Anzaldúa, Aldri Anunciação, Jô
Bilac e Grace Passô.
Num segundo momento, dos meses de julho a outubro, nos voltamos à escrita
dos projetos dramatúrgicos individuais. Intencionando auxiliar no tecer e na trama
dos fios das urdiduras propostas por cada dramaturga/o/e, foram realizadas outros
jogos de escrita que trabalharam, por exemplo, com a efemeridade da obra e a
criação sem pudor e julgamento, visando escrever de forma automática e crono-
metrada tendo como base uma foto, um áudio, uma conversa; também houveram
a carta de apadrinhamento, que foi uma dinâmica entre as/os dramaturgas/os/es
onde, depois da leitura do material escrito pela/o sobrinha/o/e, cada padrinho/
madrinha sugeria possibilidades para a obra em análise, através de disparadores
referenciais como a sugestão de um filme, uma música, uma peça, uma imagem,
etc.). Após cada exercício, sempre propus que cada participante compartilhasse
ao grupo sobre como havia sido os desafios e os prazeres de realizá-lo, bem como
ler as escrituras realizadas. Compreendo que o ato de ouvir um feedback sobre seu
texto e/ou ler o que a/o colega produziu e apreender a linguagem sendo desenvol-
vida processualmente no texto agem também como práticas de aprendizagem na
formação dramatúrgica.
Os onze textos dramatúrgicos seguem em andamento e em constante costura;
cada dramaturga/o/e opera seu coser de forma livre e autônoma, mirando a escri-
ta para a cena não como um problema inalcançável ou irresolúvel, mas como um
lugar onde tudo é possível. Esse caráter processual é bastante importante para a
composição dramatúrgica, visto que cada obra possui um modus operandi específi-
co e requer tempos de maturação e abordagens diferentes. Além dos ciclos de aná-
lise relacional com cada projeto dramatúrgico, proponho orientações individuais
com cada participante, onde podemos aprofundar questões, anseios, dúvidas, me-
dos, conquistas, tudo o que alimenta e faz parte de um processo criativo e artístico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A GiraDramatúrgica - Núcleo de Pesquisa e Criação em Dramaturgia é uma ini-
ciativa inacabada: não há ponto final, mas sim as reticências. Os anúncios e as ur-
gências pairam pelo ar, nossas teias de ligação estão cada vez mais tomando forma
e não há dúvidas de que vieram para ficar. Estes são processos contínuos e que
reverberam pelo tempo, como as dramaturgias. Cabe a nós, dramaturgas/os/es
negras/os/es brasileiras/os/es, continuarmos promovendo discussões, pesquisas
e aquilombamentos outros de formação e encontro para que cada vez mais conti-
nuemos ocupando espaços e visibilizando nossas vozes e reivindicações.
Ao entendermos a dramaturgia feita por dramaturgas/os/es negras como ação
de reescrita da pessoa negra na representação teatral e, consequentemente, no
próprio mundo, ludibriamos e damos uma rasteira em todo um projeto colonial de

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 101


Artes, memória e espaços
dominação que alimenta e é retroalimentado pela sociedade em que vivemos, até
mesmo pela educação e pela arte. A dramaturgia e o teatro devem, são e precisam
continuar sendo áreas artísticas verdadeiramente democráticas e acessíveis à to-
das/os/es, sinalizando um devir decolonial transformador e plural.
Ao gestar e colocar no mundo onze novas dramaturgias negras num contexto
histórico-social como ao qual estamos passando, povoamos e fomentamos nossas
cenas com narrativas outras que não as que a branquitude internalizou e limitou
(como exclusivamente o ridículo, a morte e/ou a dor, tudo sob a ótica do branco).
Fazendo uma menção à autora Conceição Evaristo: eles combinaram de nos matar,
mas nós combinamos de não morrer (e também escrever, pois a escrita é um ato
de vida!).
Ao olhar para a espiral do tempo até agora, me vejo conquistando lugares e pro-
movendo iniciativas que nunca pensei que poderiam ter algum êxito ou que seria
eu quem proporia, muito devido às impossibilidades e às negações que permeiam
nossas subjetividades desde a infância. Como artista e docente em formação, me
descubro e me emancipo a cada nova leitura ou pesquisa dramatúrgica nova, a
cada diálogo que tenho com minhas/meus pares e a cada encontro que temos
na Gira. Que continuemos na ginga, fazendo arte e tecendo histórias em espaços
pretos onde efetivamente possamos nos sentir libertas/os, corajosas/os e empo-
deradas/os. Estejamos sempre juntas/os/es!

REFERÊNCIAS

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em Cuba. Rio de Janeiro: Malê, 2017.

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102 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
AUTORIA
Carlos Alberto Mendonça Filho
Universidade Estadual do Paraná
E-mail: carloscanarim1@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7742-0212
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4363129411386863

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 103


Artes, memória e espaços
ST 29
Letramentos,
linguagens
e relações
étnico-raciais:
interseções
possíveis
MULHERES PRETAS NO CERRADO GOIANO E
SUAS NARRATIVAS INSURGENTES:
LETRAMENTOS COMO PRÁTICAS DE
ENCANTAMENTO

Maria das Neves Jardim de Deus


Ludmila Pereira de Almeida

Vozes-Mulheres
A voz de minha bisavó
ecoou criança nos porões do navio. ecoou lamentos
de uma infância perdida.

A voz de minha avó ecoou obediência


aos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãe ecoou baixinho revolta


no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas roupagens sujas
dos brancos pelo caminho empoeirado
rumo à favela
A minha voz ainda ecoa versos perplexos
com rimas de sangue e fome.

A voz de minha filha


recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si as vozes mudas
caladas engasgadas nas gargantas.

A voz de minha filha


recolhe em si a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
O eco da vida-liberdade.

Conceição Evaristo

INTRODUÇÃO
O corpo que sente, que fala e exerce linguagem é localizado e sua inscrição no
mundo é marcada também no exercício geopolítico. Nosso objetivo aqui é discu-
tir, dentro de nossas experiências situadas, o que é ser mulher preta, o que é ser

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 105


Artes, memória e espaços
mulher preta no Cerrado goiano e que narrativas ancestrais (que produzem vida)
acompanham o trânsito desse corpo vivente na encruzilhada dos brasis. Nossos
caminhos escrevividos, nas escrevivências de Conceição Evaristo, retomam os pas-
sos largos que chega à “encruziada” do sertão, aparentemente, cada vez mais árido.
Nesse reconectar com nossas ancestralidades da mãe-idade, busco nutrir o meu
corpo. Falar do “eu mesma” é dizer nós, situadas no chão e no sentir o Cerrado,
maior bioma brasileiro e local de (re)conexão.
Estamos com os pés nas águas, daqui nascem os rios que alimentam não só o
Brasil, mas o mundo. Mas também, estamos com as mãos no fogo, no acender as
chamas do fogão a lenha, no fazimento da comida, nas alquimias que a cozinha
possibilita. As mãos estão também mexendo com o fogo quando não permitimos
que o nossos saberes apaguem, o que requer, muitas vezes, botar fogo na cozinha
da intelectualidade brancocêntrica. Mulheres das águas, do fogo e da terra, nosso
corpo é território que gesta encruzilhadas ao renascimento africano. A fumaça e a
ventania que surge e insurge são sinais de que não estamos sozinhas e de que não
vamos deixar as outras sozinhas.
A palavra encanta o mundo. Desde pequena aprendemos que a palavra tem
poder e tem que ser usada com responsabilidade. Não é atoa que em conversa
de gente grande a gente não ficava por perto. Isso é porque, além do respeito a
quem veio antes, é preciso não só saber falar, mas saber o peso de cada palavra,
é preciso ter compromisso com a palavra e seus efeitos. Por isso, esse exercício de
pensar a sociolinguística decolonial junto a cosmolinguística se direciona não só a
compreender os sistemas e códigos de como a língua se organiza, mas é adentrar
seu espírito, aquilo que a sustenta enquanto tal, sua trajetória epistêmica, o que a
faz ser utilizada e qual o universo que a significa.
Então, prentendemos, nesse encantamento que decoloniza as fronteiras do
nosso lugar imposto, caminhar em direção as nossas memórias, percorrendo o ca-
minho e as artimanhas da capoeira para colher na estiva a comida nossa e encon-
trar nas encruzilhadas o alimento que as nossas ancestrais deixaram para nossa
sobrevivência durante esse fuga. Os rastros da episteme forjada pelas mulheres
negras, intelectuais e sábias das táticas de liberdade, foram plantados muito antes
de Brasil ser Brasil, e essas táticas continuam pulsando em nossos corações. Ele-
mento índice material de que somos continuidade das realezas e potências que
consolidaram as primeiras civilizações do mundo, civilizações invadidas, mas nunca
eliminadas. Buscamos na cosmolinguística, nos conhecimentos que nos impulsio-
nam ao cosmosentir o mundo, para transgredir junto às epistemologia da mãe-cer-
rado, noções sobre letramentos e quanto eles nos direcionam às profundidades
de nossa existência. Trazendo aqui juntas Ana, Edna, Amália e Vó Otília, algumas
raízes que sustenta nossa árvore. Porque para se alcançar as estrelas, é preciso an-
tes ter raízes profundas e fortes.

106 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
“A CABEÇA PENSA ONDE OS PÉS PISAM”
O movimento da linguagem será articulado aqui a partir das pistas transdiscipli-
nares da sociolinguística decolonial em diálogo com a cosmolinguística (REZENDE,
2020; BANIWA, 2017). Isso nos ajudará a compreender como a linguagem se arti-
cula na fundamentação de uma sociedade desencantada e que despotencializa as
diferenças, as narrativas de nós mesmas, e arquiteta as ações de nomear a partir
de um corpo da razão EUrocentrica.
Entendendo língua como um ato espiritual, que precisa ser vivido e falado (BA-
NIWA, 2020), ela nos fornece universos de significação e composição que caracte-
rizam a teia simbólica de um povo. É preciso considerar nessa dinâmica que pa-
lavras também matam e são as primeiras armas em qualquer guerra, e prática de
destruição. Língua/linguagem serão tidas no caminho desse texto como inerentes
ao ato de fazer mundos e atribuir corpo-sentido a ele. Por isso, nos nutrimos aqui
das mulheres pretas e suas trajetórias situadas, isso não as tendo como corpus de
análise, mas como corpos-narrativas que fomentam teorizações sobre o mundo,
sobre (sobre)vivências em diáspora e em manutenção de vida.
Esse trajeto percorre a ideia de epistemologias, conforme afirma Noguera
(2020), como sendo condições para as possibilidades de conhecimentos, isso tendo
o conhecimento como ato de expansão da potência da vida, em que conhecer é
uma ação nutritiva organizada pelo cosmosentir o mundo, que fornece caminhos
para narrar sobre os acontecimentos de forma situada. Noguera (2020), além disso,
traz o conhecer como uma forma de nos nutrirmos do mundo e estabelecer relações
entre seus seres. Isso sendo que cada alimento tem um sabor e nos proporciona um
tipo de suprimento, e conhecê-los nos ajuda a restabelecer um equilíbrio. Conhecer
também, ainda segundo Noguera (2020), tem a ver com escolher o que comer, por-
tanto, é estabelecer qual narrativa é mais interessante para a vida e para organizar
os acontecimentos. O conhecimento como alimento se remete ao estômago – tal-
vez, por isso, quando a branquitude se depara com temas que fogem do seu paladar,
como o racismo, logo sentem o estômago doer, o mal-estar, a azia, ou queimação.
Conhecimento é também o exercício epistêmico de vomitar o alimento enve-
nenado e tomar em nossas mãos, a partir de nossas possibilidades, a retomada de
nossa história não contadas ou que foram contadas como maldição aos nossos
corpos-saberes. O percurso da encruzilhada vem para entendermos que “nossos
passos vêm de longe” e conhecê-los é nos conduzir ao gosto de viver (NOGUERA,
2020). Trazer o corpo para o exercício epistêmico, científico, é enegrecer esse lugar
pela expansão da potência de libertação que o nosso povo tem, pela insistência em
existir mesmo diante das encruzilhadas apagadas que nos tornam seres perdidos,
em termos simbólicos. Seres que nem tiveram o direito a saber sua origem genea-
lógica e a degustar diretamente da realeza que marca nossos passos. Isso passa pelo
ouvir as mais velhas, tocar nossas irmãs e irmãos, e saber que não estamos sós, é
degustar das práticas de amor que nos fazem sobreviver, é poder respirar e movi-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 107


Artes, memória e espaços
mentar a expulsão do carrego colonial, é nos encher de encanto, mesmo estando
aquebrantadas.
Saber onde se pisa é estratégia para não pisar em ciladas, não ser surpreendida
por tropeços projetados ao longo do caminho, é encontrar as brechas fincadas por
quem veio antes. Esse cuidado vem dos saberes e dizeres ancestrais que sopram
em nossos ouvidos sobre o perigo de um caminho com armadilhas coloniais, é estar
atenta ao que insiste em massacrar as nossas existências, é revitalizar as cerrado-
epistemologias. Ouvir as mais velhas é alimentar nossas memórias, é possibilitar
uma colheita de palavras engenhosas (EVAVISTO, 2003), golpes dóceis cultivados
em imaginações férteis como mostram os movimentos das capoeiras cerradeiras.
Nas diversidades que habitam esse lugar o pequi é ouro e timbó é sabão nas mãos
das mulheres negras, engenheiras da transformação. São inúmeras as feituras que
seguem fazendo seus círculos de vida. Nós sustentamos o mundo.
Nossos saberes educam, mas a todo momento nossas sabedorias são questio-
nadas. Nosso Cerrado vai se modificando em cinzas por anseios da monocultura,
cultivo esse que é modelo de morte. Mata a terra e seus seres, quem vive dela e
nela, a política do agronegócio é ameaça ao futuro. O sertão nunca matou os seus.
O plano de dominação global que apaga e subjuga as narrativas locais é o que mata
nossa epistemologia, o capitalismo age pela linguagem e materializa sua marca
nos corpos negros, nas comunidades tradicionais, em qualquer pessoa que o ten-
ta impedir. Nesse entendimento, o epistemicídio mata os saberes e as vozes das
mulheres negras que vivenciam linguagens não-autorizadas. É preciso, então, nos
fortalecermos contra a atuação do fantasma do epistemicídio, para que nossos es-
píritos não sejam roubados nesse caminhar. De acordo com Carneiro (2005, p. 97)

o epistemicídio é, para além da anulação e desqualificação do


conhecimento dos povos subjugados, um processo persistente
de produção da indigência cultural: pela negação ao acesso a
educação, sobretudo de qualidade; pela produção da inferiori-
zação intelectual; pelos diferentes mecanismos de deslegitima-
ção do negro como portador e produtor de conhecimento e de
rebaixamento da capacidade cognitiva pela carência material e/
ou pelo comprometimento da auto-estima pelos processos de
discriminação correntes no processo educativo. Isto porque não
é possível desqualificar as formas de conhecimento dos povos
dominados sem desqualificá-los também, individual e coletiva-
mente, como sujeitos cognoscentes. E, ao fazê-lo, destitui-lhe a
razão, a condição para alcançar
o conhecimento “legítimo” ou e deslegitimado. Por isso o epis-
temicídio fere de morte a racionalidade do subjugado ou a se-
qüestra, mutila a capacidade de aprender etc.

As práticas de vivências que trazemos estão para muito além dos letramentos
alfabéticos. O extermínio desse saber que paira em nossos sonhos querem apagar
os nossos corpos políticos (REZENDE, 2020), nossos corpos-territórios de cura (XA-

108 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
CRIABÁ, 2020). São narrativas de nós mulheres pretas nesse sertão, nesta cidade
sertão, condenada, pela história oficial, a ser o espaço do “quintal da casa grande”
(Rio de Janeiro e São Paulo). Mas aqui nossas ancestralidades trazem matriarcas
parteiras como as avós Ana e Amália, Abolicionistas como Chica Machado, ativistas
como Marta Cezária, líderes quilombolas, Tia Romana e Dona Prócopia. Senhoras
protagonistas nesse cenário sertanejo como as vozes da terra que educam e eman-
cipam a todas nós. A memória viva dessas trajetórias reflete nossas vivências e
existências. O cerrado goiano – lugar ferido pela colonialidade do bandeirantismo
que até hoje é exibido como herói na principal avenida da capital, é um protótipo
do modo de ser colonial.
O ato de evocar as “encruzilhadas” (RODRIGUES, 2017; AKOTIRENE, 2018) é tra-
zer a firmeza e foco para os caminhos planejados pelas antepassadas, é um ato
de interconectar o sentirpensar, os trânsitos, os vários caminhos aos quais somos
impedidas de caminhar quando a questão é o ato de conhecer o mundo, poder
falar sobre ele e praticar ciência a partir de nosso chão. Encruzilhadas, a partir da
cosmologia Yorubá, nos fornece a percepção de que só é possível falar de lingua-
gem a partir do encanto do cosmosentir, por isso, trazer o cerrado goiano como
nosso grande ancestral, como chão nutritivo que sustenta nossas palavras-seres-
-natureza, é um ato de respeito. A palavra magia de Hampate Ba (2010) que traz o
encantamento da verdade, das mais velhas, essa ou essas palavras são poderosas
quando ouvidas. “A fala humana como poder de criação” ação de transmissão uma
espécie de “gira política poética que fala sobre outros modos de existir e praticar
saber”. Nesse sentimento de retomada, sentindo, fazendo e chegando tão perto
de nós e das nossas, voltamos tão profundo da memória ancestral.

O encantamento como uma capacidade de transitar nas inúme-


ras voltas do tempo, invocar espiritualidades de batalha e de
cura, primar por uma política e educação de base comunitária
entre todos os seres e ancestrais, inscrever o cotidiano como
ritmo de leitura e escrita em diferentes sistemas poéticos e pri-
mar pela inteligibilidade dos ciclos é luta frente ao paradigma
de desencanto instalado aqui. Ou seja, o encante é fundamento
político que confronta as limitações da chamada consciência das
mentalidades ocidentalizadas (SIMAS & RUFINO, 2020, p.5).

Segundo avó Otília, benzedeira que sabe alguns fazeres de cura com raízes, en-
cantamento é a palavra aliada a fé. A fé, não se limita a religião, aqui é algo da
conexão que sempre tivemos para com os seres da natureza, é o que move as
energias e as forças do movimento do ser sendo, como aponta filosofia Ubuntu. A
palavra encantada no ato de benzer é poética, ritmada junto ao pulsar do coração
de quem diz, e movimenta entrada e saída do corpo. A palavra faz, realiza, aliada
aos corpos envolvidos, ao ta de ouvir e falar baixinho, a performance acontece e
direciona o fazer. A criatividade da sobrevivência é o que nos sustenta aqui, as
garrafadas de raízes, o cuidado com as plantas, é o que organiza o ato de fala do

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 109


Artes, memória e espaços
encantamento. Saberes de trincheira. É preciso saber o que se faz, ter domínio da
língua escrita aqui não é requisito, mas gestar cada palavra ao falar e carregá-la de
sentido para que atinja o corpo é fundamental. Precisamos nos benzer das maldi-
ções coloniais que operam na ideia de língua padrão.
Com isso, vamos compreendendo a interioridade da Améfrica Ladina (GONZA-
LEZ, 1988) como o cruzamento de narrativas pretas em diáspora. Gestora das pos-
sibilidades de sentir e dar sentido a linguagem como enfrentamento à necropolítica
(MBEMBE, 2018), que também tem sua dimensão nas práticas de linguagem ao
descorporificar, historicamente os corpos negros que contribuem e forjam outras
percepções de se estudar linguagem. Isso sem perder a importância de se ter a lin-
guagem como a articuladora de nosso Orí (GERBER, 1989). As dicotomias impostas
aos corpos negros como mente e corpo (FANON, 2008) são invenções que impõem
incompletudes distantes do caminhar diaspórico e suas tecnologias de sobrevivên-
cia. No processo de apagamento epistémico,

entendemos e defendemos que a perda do vínculo intercós-


mico, isto é, a perda da comunicação intercósmica, que é a co-
municação que envolve todos os cosmos, a comunicação com
a natureza, acarretou o desequilíbrio comunicativo, levando ao
extremo da comunicação violenta, com dizeres e palavras que
ferem e adoecem os seres já historicamente feridos e adoecidos
(REZENDE, 2020).

Partimos daqui porque entendemos que esse campo fértil gestou também Leo-
degária de Jesus que abriu caminhos em 1906 com sua escrita (REZENDE, 2020), pri-
meira poetisa a publicar. Precioso (2019) afirma, em termos históricos, que Goiás
se portava como um trecho interno do tráfico atlântico e uma das práticas era as
mandingas pelos negros se configuravam um pluralismo religioso e não em um sin-
cretismo, “em fins do século XVIII, “devotos pretos” de Nossa Senhora do Rosário,
em pleno sertão goiano, praticaram lado a lado o catolicismo e o vodum” (PRECIOSO,
2019, p. 101). Nisso, as bolsas de mandingas, elemento mágico em que se mistura-
va objetos religiosos, como a hóstia, se tornava formas de fechar o corpo, aumen-
tar força vital e promover bem-aventurança em vida. Essas técnicas de restaurar
o que foi perdido com a escravização também fortalecem a base de como ocorreu
a continuidade, a promoção do corpo saudável para essa continuidade e respeito
para com os mortos, por rezas e preces específicas (PRECIOSO, 2019).
A conexão com o cosmos é o sussurro da sobrevivência, ouvir os segredos da
natureza que indica qual planta é melhor para tal tratamento requer uma escuta
atenta, mas sem rejeitar que o outro ouvido deve estar aberto aos ensinamentos
de quem pisou aqui antes. Mulheres negras têm caminhado umas nos rastros das
outras para enfrentar o racismo, sexismo, feminicídios e extermínios nesses cerra-
dos. Evidenciamos no agora a luta de Marta Cezária de Oliveira que desde a década
de 80 vem trabalhando na construção do movimento de mulheres negras em Goi-
ás. (SANTOS, CARVALHO 2017).

110 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
Nesses passos entendemos a nossa trajetória, as encruzilhadas estão marcadas
como o encontro e possibilidades de caminhada. Os letramentos lançado aqui são
engolidos por Exu e transformados em saber outro. Somos atravessadas e travessas
em nossas andanças. E o estudo da linguagem nesse construto é também exposto à
transformação. A cozinha e sua alquimia são nossos elementos, que põem a prova
da escolha do sabor o que pode ser tempero e o que é veneno. Produzir e falar de
nós é temperar nossas ações com condimentos que cada momento precisa. Somos
diversas e essa diversidade também se encontra na potência de se fazer um bom
cozido, que pode tanto alimentar quanto matar, a depender de quem seja a pessoa
que vai receber. Se antes essa era um instrumento para se livrar do senhor do oci-
dente, hoje também, por outras vias, pode se tornar um caminho para manchar a
branquitude da academia.
No entanto, sem se esquecer de nossas “manhas”, precisamos pisar nesse chão
devagarinho com dona Ivone lara, mas também com Dona Dalva que fez os primei-
ros a sambar em Goiás. Diantes dessas protagonistas que aqui constrói e constru-
íram seus trajetos entre as cascas e arbustos do cerrado que é berço das águas do
mundo, é o bioma mais antigo do país e é ponte para se chegar a todos os outros
biomas do Brasil. A relação de ginga do Cerrado em se reerguer, apesar do fogo, a
ter suas árvores de casca grossa e raízes profundas que vão em busca da água, a
(re)conexão que as comunidades tradicionais, a terra realiza, são tidos aqui como
fundamentos para os nossos letramentos. Não é possível falar de linguagem sem
falar da terra, das “bolsas de mandingas” que precisamos fazer em cada acesso aos
espaços de poder como forma de nos protegermos, mas também proteger quem
vem depois. Falar de ancestralidade é falar de futuro, segundo Ribeiro (2019), e de
pluralidade de futuros, Freitas (2016) nos diz que a diáspora abala a perspectiva
essencializante de unanimidade racial e de tratamento dos negros como se fossem
exatamente idênticos, questionando os modelos de classificação que foram usados
para os africanos e os afrodescendentes durante a colonização e também após
esse período, já que ela afeta uma ideia de origem e de identidade únicas, com-
preendendo o homem e a mulher negros como seres complexos, constituídos de
múltiplas raízes, de matizes diversas e fragmentadas. A África plural encenada aqui
é devir e não mais essência ontológica ou signo de um desejo inócuo de retorno ao
mesmo (Freitas, 2016, p. 222)
Tudo isso indica a força que rege os seres e a produção de linguagem dessa lo-
calidade. Isso alimenta nosso sentir para as práticas de letramentos como encan-
tamentos da palavra, os letramentos como leituras de mundo (FREIRE, 2011) que
antecedem e vão além de um olhar miope, que enxerga apenas o agora e quem
está perto. Mas é contemplar as encruzilhadas que fazem das palavras novos mun-
dos possíveis. Isso porque a separação violenta das dimensões intrínsecas entre
natureza e humanidade nos assombram, nos levam à despotencialização de quem
somos. Permeamos esse Cerrado que pariu o mundo. Crescemos diante do sol da
seca. Mas também da chuva- vida. Aqui as narrativas existem e (re)existem. A vida

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 111


Artes, memória e espaços
nasce com as parteiras, rezadeiras, benzedeiras e curandeiras e suas narrativa nas
práticas de cura. Letramentos como práticas de encantamento é resgatar o que
sempre fomos, o que sustenta cada território Ladino, é fechamento de corpo e
prece em favor de um enterro digno a quem veio antes. É lembrar o exercício de
nos amar e amar os nossos, prática secularmente impedida e impressa em dor aos
nossos corpos-corações, drenados pelo cansaço e desesperança como projeto de
morte.
Portanto, não se tem linguagem sem corpo, a linguagem emana em nossas
ações. Mesmo às vezes não sabendo, mas sentimos, pois, só somos e existimos
pelo corpo, matéria biológica e cosmológica que alimentou e alimenta a terra e vi-
ce-versa. Sem o corpo não temos possibilidade. Nossos corpos não são dissociados
de nossos cantos e danças, assim como não estamos dissociadas dos enfrentamen-
tos pelo lugar de fala. Estamos na busca de (re)ORIentarmos nossos corpos contra o
silenciamento que aponta Djamila Ribeiro (2017). O corpo é transpassado pela fala
do mundo e pela fala que exerce. Esse ebó exige responsabilidade. A saída está no
coletivo, por isso as engenhosidades femininas negras nesse lugar são marcadas
pelas gestações juntas e juntos. Linguagens são o que o espírito exerce ao perfor-
mar pelos assentamentos dos letramentos.

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n.1, p. 71 - 88, Jan./Jun. 2018.

SANTOS, Maria Elisa de Magalhães. CARVALHO, Euzebio Fernandes de. Marta Cezaria de
Oliveira e a Organização do Movimento de Mulheres Negras em Goiânia. Entrevista. Revis-
ta Tempori ação, 2017.

SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, Luiz. Encantamento: sobre política de vida. Editora Mórula.
Editorial, 2020.

XAKRIABA, Célia. Exposição Virtual Mundos Indígenas- Corpo- território. 2020. https://
www.instagram.com/tv/CFbCcFUnYFu/?hl=pt-br. Acessado em 10/11/ 2020.

AUTORIA
Maria das Neves Jardim de Deus
Universidade Federal de Goiás
E-mail: marianevesjardim@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9798915118054795

Ludmila Pereira de Almeida


Universidade Federal de Goiás
E-mail: ludjornalismo@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7570835899790922

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 113


Artes, memória e espaços
ESCRITA INSURGENTE DE MULHERES NEGRAS
E PERIFÉRICAS – GÊNERO CLASSE E RAÇA NA
EDUCAÇÃO BRASILEIRA: POR UMA PEDAGOGIA
ANTIRRACISTA

Magda Antunes Martins


Maria Marlete de Souza

INTRODUÇÃO
A discussão apresentada nesse artigo é um recorte das nossas experiencias
construídas a partir de pesquisa do Mestrado e Educação na FAE/UFMG entre 2018
a 2019. Durante esse período, pudemos dialogar com a escrita das vivências de um
grupo de mulheres negras, pobres, trabalhadoras domésticas e estudantes da EJA,
moradoras da região metropolitana de Belo Horizonte. Essas mulheres enfrentam
cotidianamente o peso do preconceito linguístico em uma sociedade que se vale
da linguagem não só como instrumento de comunicação, mas como elemento de
distinção e estratificação social. Procuramos por meio de nossos trabalhos enten-
der como a escrita e a leitura resgata a história de vida dessas mulheres, conside-
rando o retorno delas à escola depois de adultas e também sua produção textual
autobiográficas compreendendo em que medida o fato de serem mulheres, em
sua maioria negras e de baixo poder aquisitivo, interveio em seus processos de
alfabetização e letramentos.Partimos do pressuposto de que as mulheres, sujeitas
desse estudo foram privadas de seus direitos básicos de sobrevivência, entre esses
o direito a educação escolar.
Segundo dados das Nações Unidas, publicados em 2010, em cada três adultos
no mundo que não sabem ler nem escrever, dois são do sexo feminino. Esses dados
justificam o grande número de mulheres matriculadas na modalidade de ensino de
Jovens e Adultos. Quem são essas mulheres? Certamente pessoas que não tiveram
a oportunidade de completar sua escolaridade no Ensino Fundamental e Médio
na infância e adolescência. São jovens, adultas, idosas, maioria pretas ou pardas,
donas-de-casa, ambulantes e trabalhadoras domésticas, exercendo as funções de
cuidadoras, babás, diaristas, etc. Muitas delas desempenham suas funções e nem
sempre mantêm vínculos de trabalho, se mantendo na informalidade. Essas mu-
lheres fazem parte de um grupo de pessoas que foram excluídas de seus direitos
mais básicos de sobrevivência e trazem consigo trajetórias, saberes, experiências
e dúvidas, além de vontade de recuperar o tempo perdido1 aprender a ler e es-

1 O termo "tempo perdido" é muito utilizado por sujeitos que interromperam os


estudos por algum tempo. É como se o tempo fora da escola fosse considerado inútil, des-
cartando todo conhecimento de mundo adquirido nesse percurso.

114 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
crever. A produção escrita, delas, nos possibilitou compreender melhor suas tra-
jetórias de vida; uma escrita, via memória, de suas próprias vidas. Escolhemos o
gênero discursivo "autobiografia" para realizar nossa intervenção pedagógica por
se tratar de uma escrita que possibilita ao escritor relatar sua própria história de
vida. Os gêneros textuais e discursivos tiveram destaque a partir a implementação
dos PCNs nos anos de 1997 e 1998 que trouxeram para discussão em sala de aula
o discurso, condições de produção, gênero e texto, afirmando que "Todo texto se
organiza dentro de determinado gênero em função das intenções comunicativas,
como parte das condições de produção dos discursos, as quais geram usos sociais
que os determinam" (BRASIL, 1998, p. 21)2
O trabalho de campo foi constituído de discussão, pesquisa, leitura e escrita em
sala de aula, bem como a leitura das biografias e de obras das escritoras negras
Carolina Maria de Jesus (Quarto de despejo- diário de uma favelada) e Conceição
Evaristo (Poemas de recordação e outros movimentos). Trata -se de duas escritoras
negras, oriundas das classes populares , com trajetórias de privações e ao mesmo
tempo de superação aos limites e obstáculos produzidos por uma sociedade que
trata com diferença o sujeito por causa da cor de sua pele e a condição social. Am-
bas utilizam-se de suas histórias de vida, de luta, resistência e resiliência para com-
por algumas das mais importantes obras da literatura contemporânea brasileira na
perspectiva de uma educação antirracista.
Propusemos a leitura e discussão das obras, iniciamos o trabalho com a escri-
ta em sala de aula e posteriormente procedemos à análise dos textos. Para estru-
turar nossos trabalhos, buscamos embasamento teórico nos autores que discutem
as questões levantadas até aqui que nos possibilitaram uma reflexão sobre as ca-
tegorias sociais de análise de dados pelas quais as educandas aqui estudadas são
permeadas. Este estudo foi pensado levando em consideração o marco teórico que
envolve as seguintes categorias de análise: subjetividade, memória, intersecciona-
lidade, diálogo/discurso, escrevivência, raça, gênero, mulheres e classe social. Os
conceitos trabalhados nestas pesquisas são aqueles definidos por autores com os
quais vamos dialogar ao longo da escrita nesse trabalho.
Além dos autores que trabalham com os conceitos acima, outros contribuíram
para o discurso que envolve o sujeito nessa modalidade de ensino da EJA e as
questões da linguagem, referência nestas pesquisas. Dessa forma, o aporte teórico
foi baseado nos estudos sobre EJA no Brasil: Freire 1979, nos estudos críticos do
ensino da literatura; Soares, 2004; Marinho, 2010; Bakhtin, 2003, entre outros. O
trabalho de leitura das obras das duas escritoras foi seguido de discussão e escrita
de textos autobiográficos pelas educandas da EJA com análise das trajetórias de
letramento e da escrita dos textos produzidos por elas.

2 Parâmetros Curriculares Nacionais- PCN - Língua Portuguesa, Brasília, 1998.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 115


Artes, memória e espaços
ESCRITA, LETRAMENTO E LETRAMENTO LITERÁRIO
Para nos posicionarmos diante do tema letramento, vamos tentar entender
como ocorreu a criação e definição do novo termo. A autora Marildes Marinho
(2010) tece uma discussão sobre letramento em uma perspectiva histórica sobre
a construção da palavra e do conceito de letramento. Segundo ela, as transforma-
ções socioeconômicas, políticas, históricas e/ou culturais provocam o surgimento
de novos conceitos e/ou termos para designar fenômenos recém- surgidos e que
ainda se encontram em processo de recepção e compreensão pela sociedade na
qual se inserem. Desse modo, a adoção do vocábulo letramento atende a uma
nova realidade, a leitura e a escrita realizadas dentro de um contexto social no qual
o indivíduo está inserido.
Segundo a professora Magda Soares, letramento é a tradução para o português
da palavra inglesa "literacy" e é “o resultado da ação de ensinar ou de aprender a
ler e escrever: o estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indiví-
duo como consequência de ter-se apropriado da escrita”(SOARES, 2004, p. 18). De
acordo coma autora, nota-se uma dificuldade de formular uma definição precisa
do fenômeno letramento porque ele cobre uma vasta gama de conhecimentos,
habilidades, capacidades, valores, uso e função social. Marinho (2010) conclui da
mesma forma ao afirmar que as pressões sociais exigem das universidades ações
imediatas de inclusão e pesquisas para se compreender as novas identidades que
surgem. Assim, é difícil pensar em um conceito fechado de letramento devido à
grande mobilização de movimentos sociais e identidades socioculturais.
O termo letramento é recente para os educadores brasileiros, mas temos regis-
tros dele desde a década de 80. Mary Kato (1986), em sua obra No mundo da escri-
ta: uma perspectiva psicolinguística, fez a primeira referência ao termo no Brasil.
Na obra, a autora declara que, apesar de a aprendizagem se constituir de "um
processo global indivisível em sua descrição e compreensão", é possível isolar três
aspectos metodológicos para serem examinados. O primeiro deles é a natureza da
linguagem escrita como objeto de estudo; o segundo refere-se à leitura e à produ-
ção da linguagem escrita como atividades cognitivas e o terceiro é a compreensão
dos processos de aprendizagem (Kato, 1986, p. 8). Ao longo do texto, a autora vai
discutindo como esses aspectos, do ponto de vista da psicolinguística, interferem
na aquisição da linguagem. Segundo ela, ao trabalhar a linguagem, a escola tem
como função:

[...] introduzir a criança no mundo da escrita, tornando-a um


cidadão funcionalmente letrado, isto é, um sujeito capaz de fa-
zer uso da linguagem escrita para sua necessidade individual de
crescer cognitivamente e para atender às várias demandas de
uma sociedade que prestigia esse tipo de linguagem como um
dos instrumentos de comunicação. Acredito ainda que a cha-
mada norma-padrão, ou língua falada culta, é consequência do
letramento, motivo por que, indiretamente, é função da escola

116 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
desenvolver no aluno o domínio da linguagem falada institucio-
nalmente aceita (KATO, 1986, p.7).

O tipo de processo utilizado no ato da leitura depende, segundo Kato (1986), de


uma série de condições, tais como, do grau de maturidade do sujeito como leitor;
do nível de complexidade do texto; do objetivo da leitura; do grau de conhecimen-
to prévio do assunto tratado e do estilo individual do leitor. Portanto, no ato da
leitura, o leitor vai se deparar com inúmeros gêneros padronizados e específicos
que lhe exigirão diferentes tipos de interpretação.
Como observado, o termo letramento se refere às práticas sociais de leitura e
escrita trabalhadas em um contexto social, que ultrapassa a alfabetização, tornan-
do o cidadão capaz de utilizar a linguagem escrita em seu cotidiano diário. Dessa
forma, a alfabetização ganha um novo aspecto, cuja função não se resume em
decodificar símbolos, mas em levar conhecimentos e saberes que influenciam na
formação da subjetividade dos sujeitos no processo de aprendizagem dos educan-
dos e educandas.
Se, por um lado, a prática do letramento significa formar cidadãos letrados
com o uso social da leitura e da escrita, por outro, o letramento pode se referir à
transmissão pura e simples do conteúdo escolar, caracterizando o que Paulo Freire
(1979) denominou como "concepção bancária"3. A escola, responsável pela esco-
lha das obras literárias e pela organização do currículo, exerce grande influência
no processo de letramento dos educandos e educandas.
A instituição escolar também pode agir como uma disseminadora de ideologias
a serviço de interesses do mercado de trabalho, legitimando o sistema de exclusão,
sustentado no discurso do progresso, utilizando um método de ensino baseado na
"Educação bancária".
Ao lerem os textos das obras de Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo,
os educandos e educandas da EJA apreciaram as duas leituras, mas a obra "Quarto
de despejo, diário de uma favelada" foi a que causou maior impacto em todos eles.
A autora-personagem mostrou, diariamente, todo sofrimento vivido com os filhos,
o combate à fome e a luta pela sobrevivência. São fatos que também estiveram
presentes na vida da maioria deles. Os educandos e educandas da EJA tiveram
uma atitude de “adentramento” do texto, estabeleceram um vínculo muito próxi-
mo com a obra de Carolina Maria de Jesus, apontando para uma relação dialógica
entre autora e leitores, demonstrando um nexo entre o lido e o vivido. A leitura de
textos não-ficcionais traz o leitor para o mundo real, mais palpável, e faz com que
ele, através do imaginário social em que está inserido, se envolva e, muitas vezes,
se identifique com fatos ocorridos no texto.

3 Termo usado por Freire para designar a educação tradicional em que o aluno é um ser pas-
sivo, recebendo as informações prontas, como se fosse um banco onde os conteúdos são depositados
pelo educador/a.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 117


Artes, memória e espaços
A constituição identitária presente nos textos autobiográficos das educandas
da EJA está marcada por eixos norteadores ligados às questões sociais, quando
apontam dificuldades financeiras; familiar, quando envolvem separação, morte ou
abandono por parte de membros da família; geográfico, quando temos situações
que remetem às mudanças de domicílio e espaço de moradia e trabalho, quando
o sujeito deixa a escola para trabalhar e contribuir com o sustento da família e
com sua própria sobrevivência. Esse pertencimento identitário de cada uma delas
está marcado por questões comuns em todas as narrativas. O fio condutor desse
eixo é a questão social quando aponta a interrupção dos estudos para assumir o
trabalho, como declarado por oito das dez educandas selecionadas para a pesqui-
sa e por vinte e quatro do total de educandos e educandas da EJA em seus textos
autobiográficos. O desejo de mudança, conquistar uma vida melhor para si e para
os seus, faz parte do discurso cotidiano proferido pelas mulheres que participaram
desse trabalho. Elas sentem as dificuldades que a falta de escolaridade representa
em suas vidas e têm ciência de que a ausência de conhecimentos formais produz
desigualdades, pois as oportunidades não são as mesmas quando o sujeito não
tem acesso a escola, como podemos observar no depoimento abaixo.

Meu sonho é trabalhar, né menina? E ter uma vida melhor com


meus filhos. Depois de adulta voltar estudar e poder ajudar os
meus meninos no dever de casa. Porque hoje eles pedem o es-
tudo completo no currículo. Poder arrumar um serviço ne? Não
tendo estudo a pessoa não tem nada. ( Educanda da EJA).

Brian Street (2014) ao pensar em um modelo alternativo para o modelo autô-


nomo de letramento, com uma visão reduzida de alfabetização, propõe o modelo
denominado o modelo ideológico de letramento que engloba a relação de intera-
ção social entre os sujeitos, considerando sua relação com o outro e com a socie-
dade na qual ele vive. Assim, o letramento ideológico, proposto por Street, dialoga
com a proposta de alfabetização empregada e defendida por Paulo Freire (1979):
"Nesse sentido, alfabetizar-se não é aprender a repetir palavras, mas a dizer a sua
palavra, criadora de cultura." (FREIRE, p.13).
Por um lado, os textos produzidos pelas educandas da EJA apresentam uma
escrita que tem características semelhantes, com uma linguagem comum ao grupo
que, ao dar visibilidade às suas histórias, utiliza-se de expressões que se referem
às situações sociais do seu cotidiano e, ao mesmo tempo, apresenta a identidade
de cada sujeito. Todas expressam as dificuldades pelas quais passaram e contam
a história de suas vidas, mas, por outro lado, cada escrita tem a singularidade de
cada sujeito que a constrói.
Nesse processo destacamos também a importância da memória e da oralidade
no percurso e nas “escrevivências” dessas mulheres negras em processos ante-
riores a escola como potencias para subsidiar o trabalho pedagógico em sala de
aula. Assim como Evaristo ( 2018) acreditamos que á memória e a oralidade são

118 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
fundamentais no processo de formação escolar também na Educação de Jovens e
Adultos.
Para Skerrett (2011) apud Ferreira (2015), “Letramento Racial tem uma com-
preensão poderosa e complexa da forma como raça influencia as experiências so-
ciais, econômicas, políticas e educacionais dos indivíduos e dos grupos” De acordo
com Ferreira, para que tenhamos uma sociedade mais justa e igualitária, é neces-
sário que haja mobilização tanto das identidade racial branca quanto da negra para
discutir sobre raça, racismo e letramento racial crítico, com o objetivo de realizar
um trabalho crítico na escola, abordando todas as disciplinas do currículo escolar.
(Ferreira, 2015, p. 36).
Elucidar a memória e a tradição popular por meio das histórias de vida dessas
mulheres, tendo em vista o pertencimento étnico da maioria delas, qual seja: são
negras, pobres, periféricas e trabalhadoras domesticas representa uma ação políti-
ca e pedagógica de valores desses saberes e desse conhecimento de mundo que os
sujeitos educandos da EJA carregam consigo de através de suas trajetórias de luta
e de resistência mediante a opressão histórica da população negra no país.
Assim corroboram com esse pensamento Stela Maria de Oxossi (2007) ao afir-
mar que “o que existe em potencial pode ser materializado pela palavra”. Oralidade,
memórias e escritas são manifestações naturais da linguagem e os acontecimentos
do passado, quando são reativados pela memória passam a ser reconstruídos em
nosso dia a dia através da nossa fala, da escrita, de desenhos e outras manifesta-
ções próprias da nossa identidade e maneira pessoal de se expressar. No caso das
mulheres pesquisadas, observamos por meio de suas escritas e de outras formas
de manifestações de linguagens, algumas revelações que demonstram a importân-
cia do retorno à escola, mesmo após a vida adulta. E vimos que por um lado existe
o desejo manifesto de melhorar de vida, seja pelas exigências ligadas ao mundo do
trabalhou e por outro a necessidade de auxiliar um filho ou um neto nas tarefas
escolares. Muitas delas, ainda trazem, marcas de um passado de exclusão, não se
percebendo como sujeitos de direitos, de responsabilidades sociais ou merecedo-
ras de afeto.
A escrita produzida pelas educandas da EJA apresenta verbos no passado,
lugar que marcou momentos de muitas dificuldades e exclusão social, mas é um
passado que tem muita importância na vida dessas mulheres. Esse passado é tra-
zido, via memória, sempre que necessário para reafirmar o que já foi, contrastar
com o que é agora e o que virá no futuro, possibilitando, com os conhecimentos
de mundo adquiridos ao longo dos tempos, imprimir sentido e significados em
suas vidas enquanto mães, mulheres, trabalhadoras e produtoras de cultura. Além
da linguagem escrita, algumas educandas da EJA utilizaram outros tipos de co-
municação, tais como, desenhos, fotos e colagens que também apresentavam in-
formações importantes sobre elas. O uso do código escrito por algumas mulheres
e outras formas de expressão do conhecimento, como observamos em alguns
relatos e em outras situações na escola não se relaciona somente às práticas

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 119


Artes, memória e espaços
escolares, são produções de conhecimentos que abrangem todo aprendizado ad-
quiridos dentro e fora da escola, conhecimento homem e mundo, relevantes no
percurso de aprendizagem dessas mulheres, como pode ser observado no trecho
que segue:

Voltar para escola (...) eu acho que tenho muita coisa para
aprender. Meu genro diz que sou muito inteligente e diz por
que não faço curso de bolo o que está dando dinheiro? Um dia
inventei de fazer uns bolos de pote. Ele levou para a empresa e
as pessoas disserem que nunca comeram nada tão gostoso. Mas
eu tenho que conseguir conciliar uma coisa com outra coisa (...).
Sozinha eu não consigo. Já trabalhei demais ( ...) não tenho uma
pensão, não tenho nada” (educanda da EJA) .

Assim, reconhecer as letras, formar palavras, escrever frases, produzir textos e


refletir sobre o lugar social a que pertencemos estão além da mera repetição de
ideias. Significa compreender e refletir qual o sentido que está empregado dentro
de um texto e de um contexto e saber fazer inferências sobre o mesmo relacionan-
do as suas vivências. O relato dessa mulher afirma que o retorno escolar é parte de
sua estratégia de sobrevivência. Nesse aspecto, buscamos dialogar com Kleimam
(2007) quando ela ressalta a importância dos conhecimentos prévios dos educan-
dos. De acordo com a autora, é relevante a importância de trazermos para a sala
de aula os saberes construídos pelos educandos em processos anteriores a escola.
Conhecimentos esses que são nada mais e nada menos que as informações guar-
dadas na memória que podem ser reativadas no momento da leitura e que permite
aos educandos darem suas opiniões e expressando as suas ideias.
No depoimento das mulheres, com as quais tivemos contato, está evidente o
desejo de estudar, mudar de vida e conquistar uma vida melhor, embora o distan-
ciamento e a realidade marginalizada, vivenciadas por elas, culminem em anos de
distanciamento da escola, sendo, não por acaso, uma realidade muito comum na
trajetória dos educandos da EJA. E na historia de vida dessas mulheres não é dife-
rente, conforme texto que segue:

Com a criação dos filhos, minha situação ficou mais complica-


da, e parei de pensar nos estudos e dediquei-me somente às
atividades do lar. Após alguns anos me separei depois de trinta
anos de casada, minha vida começou a mudar. (Trecho do texto
escrito por uma educanda em 20 nov. 2018).

Graça Paulino (2002) define letramento literário como parte do letramento em


que o cidadão letrado seria aquele que cultivasse e assumisse a leitura de diversos
textos literários. Ao mesmo tempo, atenta para a negação de acesso ao livro às
camadas mais pobres da população. As estratégias editoriais e as distorções no
mapeamento da distribuição apontam para um estrangulamento do processo de

120 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
democratização da leitura. Os sujeitos que pertencem às classes "desprestigiadas"
têm mais acesso aos gêneros textuais considerados “menores” na economia das
práticas simbólicas de uma sociedade (BOURDIEU, 2007), como a bíblia, receitas
culinárias, revista de moda, horóscopo, autoajuda, etc. Segundo Paulino, o livro
literário e o acesso a bens culturais da considerada alta-cultura estão mais presen-
tes nas classes médias e altas da sociedade.
Rildo Cosson, em "Letramento literário ‒ teoria e pratica" (2014, p. 16), afirma
que "é no exercício da leitura e da escrita dos textos literários que se desvela a arbi-
trariedade das regras impostas pelos discursos padronizados da sociedade letrada
e se constrói um modo próprio de se fazer dono da linguagem que sendo minha, é
também de todos". Segundo o autor, em todas as manifestações de comunicação,
mesmo as aparentemente orais e imagéticas, a escrita se fez presente porque "é
por meio dela que armazenamos nossos saberes, organizamos nossa sociedade e
nos libertamos dos limites impostos pelo tempo e pelo espaço." (COSSON, 2014, p.
16). É importante observar, complementando o pensamento do autor, que, além
dessas manifestações de comunicação citadas acima, incluímos mais uma possibi-
lidade de comunicação que é a subjetividade negra construída na resistência com
base na afirmação da consciência marcada nos corpos negros por meio das lutas
e experiências diárias da população negra. É preciso entender o processo de letra-
mento dentro da relação de poder estabelecido na sociedade. Oliveira (2000) nos
ajuda a entender essa relação,

Considerando "letramento" como um fenômeno político (Gi-


roux, 1983), as práticas linguísticas e as formas de conhecimento
que ele favorece não podem ser entendidas fora das relações
de poder que estruturam a sociedade mais ampla. O contato
com estas relações de poder, ou melhor, o contato com as vozes
dos "outros poderosos", sejam elas a literatura canônica, a lin-
guagem padrão ou mesmo a voz da autoridade do professor e
até de outros colegas, é fundamental para que os alunos leiam
não apenas diferentes textos mas, também, para que leiam dife-
rentemente qualquer texto, para que desenvolvam uma reflexão
dialética da realidade e interroguem a complexidade de suas
próprias histórias. (OLIVEIRA, 2000, p. 87).

A linguagem oral e/ou escrita vai funcionar garantindo e registrando a perma-


nência dessa subjetividade. Tão importante quanto a escrita, a leitura literária se
apresenta como uma prática social importante para a formação do leitor que deve
ser adquirida e compartilhada em casa, na escola e na comunidade. A questão
apresentada é: como se dá o processo de letramento literário? Que obras serão
lidas? Qual é o objetivo da escola, como instituição, ao selecionar as obras a serem
lidas? A escolha pela obra literária a ser lida é feita pelo próprio leitor, mas, em
muitas situações, o primeiro contato do aluno com o livro literário é efetuado na
escola. Nesse caso, a escola ou o/a educador/a são os responsáveis pela escolha
das obras a serem lidas durante todo ano letivo. Sobre esse assunto, Cosson (2014)

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 121


Artes, memória e espaços
afirma que, por um lado, algumas escolas insistem em manter o cânone, mesmo
diante de críticas de alguns segmentos da sociedade. Por outro, há professores que
preferem indicar obras que eles já leram, o que determina que os mesmos livros se
mantenham por décadas na lista das obras a serem lidas na escola.
Cosson (2014), ao analisar o processo de leitura, afirma que ele envolve inú-
meras práticas e postulados, e que a interpretação do texto parte do “entreteci-
mento dos enunciados que constituem as inferências, para chegar à construção do
sentido do texto dentro de um diálogo que envolve autor, leitor e comunidade.”
(COSSON, p. 64). Ao aprofundar a discussão sobre a interpretação no contexto do
letramento literário, o autor a divide em dois momentos, um “interior” no qual é
chamado de “encontro do leitor com a obra” que consiste no instante em que está
presente a decifração, palavras, páginas, capítulos, terminando na compreensão
global da obra. Por isso, por mais íntimo que esse momento possa parecer, ele é
construído no campo social. O outro momento, denominado “exterior”, relacio-
na-se com a concretização da interpretação, a construção de sentido dentro de
uma determinada comunidade. Refere-se ao que fazemos com a leitura, quando a
usamos para fazer comparações, tecer comentários e argumentos sobre questões
relacionadas ao tema lido.
Dessa forma, a seleção das obras de Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaris-
to foi primordial para o trabalho desenvolvido em sala de aula com as educandas,
porque elas proporcionaram a construção de discursos questionadores sobre os
problemas da nossa sociedade, com uma análise reflexiva sobre as questões so-
ciais, políticas, econômicas, gênero e raça. A escrita das autoras é marcada pela
falta, pela denúncia da desigualdade social e do preconceito racial, mas, também,
pela resistência dessas mulheres. A trajetória das mulheres negras desde a colônia
até os dias atuais deixa rastros quando observamos as desigualdades nas estru-
turas da nossa sociedade marcada pela negação do acesso a direitos sociais, civis
e políticos ao longo dos anos. Ao nos contar suas histórias, as educandas da EJA
abrem as janelas de suas vidas e nos mostram suas trajetórias marcadas pela desi-
gualdade social que vai abrindo caminho para outras desigualdades.
Quando direcionamos nosso olhar para as educandas da EJA, mulheres pobres
e maioria negra, entendemos que elas são interseccionadas por esses marcadores
de diferença que se sobrepõem e excluem quando fazem parte de processos so-
ciais de exclusão e produção de desigualdades e opressões. Todos esses fatores
interviram nos processos de alfabetização e letramento das educandas ao longo
da vida. As histórias de vida contadas pelas educandas da EJA mostram o passado
de exclusão vivido por elas e, ao mesmo tempo, evidenciam esperanças de dias
melhores, diante da volta à escola. As dificuldades encontradas, sejam elas de
criação dos filhos, a questão da sobrevivência e da superação, enfim, as questões
de gênero, raça e classe, presentes em cada relato de vida, marcam suas subjetivi-
dades. Os marcadores de diferença aparecem de forma interseccionados na escrita
elaborada pelas educandas da EJA. Elas são em sua maioria negras invisibilizadas

122 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
socialmente, obrigadas a abandonar os estudos para trabalhar dentro e/ou fora de
casa. Essas questões são resultado da exclusão social a que essas educandas fo-
ram submetidas ao longo dos tempos e que aparecem nas escritas autobiográficas
como forma de denúncia. A escrita autobiográfica literária resgata a trajetória de
vida vivida ao longo dos anos e é analisada sob uma nova perspectiva no presente.
Os textos nos possibilitam compreender que, mesmo estando em outros espaços
e em outros tempos, a memória construída ao longo dos anos mantém viva a tra-
jetória percorrida pelo indivíduo durante todo esse tempo. O passado, mesmo do-
loroso, é importante para olhar para frente, retomar a escola e construir uma nova
trajetória de vida.
As educandas da EJA identificaram, na linguagem e na literatura, uma forma
de compartilhar o que está dentro de si, em uma espécie de denúncia e desabafo,
mas também de superação, por meio de seus textos autobiográficos. Nesse senti-
do, o letramento significa aprender a dizer e refletir sobre a própria trajetória de
vida. Podemos constatar, por meio das narrativas, a superação das dificuldades
enfrentadas pelas educandas, cujos textos estão permeados pelas questões sociais
traduzidas na pobreza, na falta ou abandono da escola para trabalhar. A educação
de Jovens e Adultos é apontada com orgulho como instrumento para conseguir um
emprego melhor e ter acesso aos direitos negados na infância, adolescência e vida
adulta.

CONCLUSÃO
Concluímos que o fato de serem mulheres negras, em uma sociedade patriarcal
e com um passado escravista, intensifica as formas de discriminação que elas so-
frem diariamente. Como empregadas domésticas, as condições de gênero e raça
ganham materialidade, revelando a face perversa de uma sociedade racista e clas-
sista. As histórias de vida contadas pelas educandas da EJA revelam uma escrita
que subverte à tentativa de mantê-las silenciadas. As palavras insurgentes dessas
mulheres negras revelam o passado de exclusão social vivido por elas, possibili-
tam fazer uma análise entre educação, classe, gênero e raça, ao mesmo tempo em
que evidenciam realizações e esperanças de dias melhores com o retorno à escola
por parte das educandas da Educação de Jovens e Adultos. Observamos que as
mulheres negras são uma parcela significativa da nossa sociedade que ainda têm
menos acesso à educação formal e, consequentemente, a vários outros direitos
fundamentais. Essas mulheres, por causa de seu histórico de desigualdade e falta
de escolaridade, estão inseridas nas posições menos qualificadas no mercado de
trabalho e ocupam profissões consideradas de menor prestígio social, cujos ganhos
financeiros não são compatíveis com seus gastos pessoais e familiares. Elas são
invisibilizadas pela sociedade, situação que reflete nas condições de subalterni-
dade em que vivem. O retorno delas à escola é um ato de insurgência, rebeldia e

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 123


Artes, memória e espaços
de superação da condição de desiguais impostas a essas mulheres durante todo o
percurso de suas vidas.
Portanto, essa realidade que temos hoje sobre a Educação de Jovens e Adultos
no país mostra que ainda é preciso um grande esforço para vencer os desafios
que estão postos nos dias atuais, a partir dos trabalhos produzidos por todos que
lutaram e lutam pela educação no campo da EJA. Um desses desafios é levar em
consideração as especificidades dos sujeitos da Educação de Jovens e Adultos dis-
cutindo a relação entre alfabetização e letramento, num trabalho voltado para as
práticas sociais de leitura e escrita.

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124 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
AUTORIA
Magda Antunes Martins
Prefeitura Municipal de Contagem
E-mail: professoramgd@yahoo.com.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7325-076X
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2465672137599329

Maria Marlete de Souza


Universidade Federal de Minas Gerais
E-mail: marletedesouza@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3749-9557
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5039289637889982

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Artes, memória e espaços
UBUNTU-LIBRAS: UMA EXPERIÊNCIA
CONSTRUTIVA AGREGANDO VALORES NA
DIVERSIDADE
Evelin Seluchiniak Nunes
Diléia Aparecida Martins

RESUMO
A existência de mais de uma cultura dentro do espaço das Escolas Bilíngues para
Surdos é um tema rico que traz como realidade a diversidade étnica. Aqui, é pre-
ciso ir além da própria Libras, explorando temas que tragam as raízes da formação
do povo brasileiro: a Cultura Africana e o sentimento de ser parte dessas origens
dando valor e driblando a cultura do racismo que permeia a sociedade. Neste arti-
go narramos uma experiência a partir da participação e estudos no grupo Ubuntu-
-Libras e sua contribuição para futuras ações em práticas em escolas bilíngue para
surdos a partir de projetos envolvendo a Literatura Surda e adaptações de Contos
Africanos em Libras com a finalidade de inserir valores e construir futuros “lugares
de fala” a outros surdos, e combatendo o racismo presente nestes espaços. O uso
da Literatura Universal, Contos Africanos e a Literatura Surda em geral possibili-
tam o sujeito surdo se narrar, conhecer a si e a comunidade linguística a qual faz
parte. Mas para que isso ocorra, é preciso um trabalho que envolve recursos visu-
ais, interpretação, formatação e produção de vídeo. Estes elementos que também
existem na produção de contação de histórias para ouvintes tem um recurso a
mais que é a presença do Surdo como narrador ou um Intérprete de Libras negro.
A presença destes profissionais possibilita que quem narra se identifique com o
personagem e traga mais essência e raiz identitária e cultural as narrativas que se
baseiam em contos africanos. Tal prática contribui para criações literárias visuais
onde a visibilidade da cultura surda e negra se faz presente, possibilitando refle-
xões sobre a identidade e práticas linguísticas nas escolas bilíngue, pois conforme
Furtado (2012), ser surdo e negro é constituir-se de duas diferenças, num processo
de alterização, pois a comunidade surda é vista como um grupo minoritário onde
se insere uma diversidade e onde se reflete as relações de poder nos diferentes
espaços sociais em que convivem.

PALAVRAS- CHAVE: Ubuntu-Libras; Escola Bilíngue para Surdos; Literatura Surda.

126 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
INTRODUÇÃO
Debater a língua em seu uso social é o trabalho de todo pesquisador que aden-
tra a área da educação linguística, no entanto aqui procuro explorar um pouco da
questão da Libras e de seu uso a partir do contexto social. Pelo fato de esta fazer
parte da história e cultura da comunidade surda, é importante percebê-la como
uma “instituição social” (CESÁRIO, VOTRE, 2008, p. 141). Sendo a Literatura Surda
um gatilho cultural desta comunidade, ela deve dar espaço à diversidade presente
dentro de meio.
O grupo Ubuntu-Libras surgiu da necessidade de dar visibilidade ao surdo e
também ao intérprete negro, trazer para a educação bilíngue de surdos artefatos
culturais da ancestralidade africana. Dentre estes artefatos culturais estão às nar-
rativas dos contos africanos, narrados por pessoas que fazem parte da comunidade
surda (professores surdos e intérpretes de Libras).

A DINÂMICA DA TROCA CULTURAL NA ERA DAS LIVES


O ano de 2020 ancorou uma nova realidade para quem está acostumado
ao ensino e as palestras presenciais. A pandemia trouxe a tona realidade
educacional do país mostrando que muitos alunos, ouvintes e surdos, es-
tão sem acesso à internet e não tem celular ou notebook/computador para
acompanhar as aulas remotas. No entanto, por outro lado, aumentou o
espaço de divulgação de palestras virtuais envolvendo a comunidade surda
sob os mais diversos temas, desde educação, saúde, direitos, acessibilidade,
racismo, diversidade cultural, violência contra a mulher, gênero e muitos
outros assuntos.
Foi neste cenário que surgiu o grupo de estudos surdos Ubuntu- Libras, volta-
do à cultura surda e tornando acessíveis adaptações de contos do povo africano.
Além disso, o grupo divulga eventos nas diversas áreas buscando o interesse e
objetivando a troca de informação, oportunizando o trabalho de intérpretes de
Libras negros ao indicar eventos que peçam tradutores, sendo como maioria even-
tos acadêmicos.
O grupo é formado por surdos, maioria negros, intérpretes de Libras, de
diferentes regiões do Brasil. A diversidade cultural e religiosa esta presen-
te nos diálogos, e a ajuda nas questões de vocabulários linguísticos se faz
presente, visto que é pouco e agora crescente a divulgação de religiões de
matriz africana, por exemplo, a Umbanda. As reuniões ocorrem uma vez
por mês às segundas-feiras, com tempo de duração de até duas horas com
o uso da plataforma do Google Meet. Nelas estão presentes apresentação
de tradução de contos africanos, adaptações e troca de conhecimentos para
a produção de material de mídia como vídeos, formatação e aplicativos. O
grupo tem participantes surdos e ouvintes, alguns necessitam de tradutores

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 127


Artes, memória e espaços
para acompanhar, pois a língua oficial de comunicação nos encontros é a
Libras.
O termo Ubuntu, segundo Diop (1992) significa unidade na diversidade e tem
como base a filosofia africana, pois na África existe uma infinidade de línguas e
culturas que convivem entre si. Para Vasconcelos (2017, p. 101), esse pensamento
se direciona “a convivência harmoniosa com o Outro”. Esse seria também um dos
objetivos do grupo, mas dando acessibilidade linguística a comunidade surda. É
também uma forma de engajamento na luta por direitos, de forma pacífica e cons-
ciente. Ainda, em Vasconcelos, o fato de ser uma filosofia não ocidental e trazer
este conceito, a “essência do ser humano”, significa valorizar e abrir espaço para a
generosidade, o acolhimento, o respeito ao próximo, ser amigo, compassivo, hos-
pitaleiro, benevolente e empático. Resumindo, é demonstrar nossa humanidade
ao próximo.
É a essência que norteia a nossa busca pelo bem comum, pelo crescimento e
ajuda aos outros surdos e ouvintes através da informação. Considerando que os
surdos participam de duas comunidades: surda e ouvinte. Convivem em uma socie-
dade multiculturalista, portanto, dependem da cultura visual criada pelo ouvinte
(tecnologias). Ela acabou se tornando uma necessidade de uso cotidiano. Mas a
Libras continua convivendo de forma subalterna na educação dos surdos que pre-
cisam dela, deixando uma marca de exclusão linguística e social. Porisso, adaptar
narrativas é criar uma ponte entre o conhecimento e a comunidade surda, res-
peitando a diversidade presente dela e se engajar junto ao Movimento Surdo em
busca de direitos.
Mas antes devemos conhecer melhor o que é Movimento Surdo, como é forma-
do e o que ele reivindica. Para compreender melhor o termo, teríamos que usar o
plural, ou seja, os movimentos surdos, pois são movimentos que lutam por mais de
um direito, que, segundo Klein (1999, p. 01) são “entendidos como movimentos so-
ciais articulados a partir de aspirações, reivindicações, lutas das pessoas surdas no
sentido do reconhecimento de sua língua, de sua cultura”. Estes movimentos são
vistos pela comunidade surda como uma possibilidade de se representar politica-
mente e também uma forma de resistência para com os ouvintes. Em Perlin (1998,
p. 71), este movimento representa a luta por direitos que vão além da educação,
como trabalho, saúde e cultura.
Se vivêssemos em um país onde os diferentes falares ou variedades linguísticas
recebessem outro olhar, o da diversidade, nosso ensino não estaria apenas preo-
cupado em ensinar normas gramaticais, mas valorizar as diferentes variedades e
estilos linguísticos usados pelo povo. Desta forma não estaríamos tentando neu-
tralizar a Língua Portuguesa e seu ensino, pois reconheceríamos que estas varieda-
des existem e precisam ser respeitadas. Conforme afirma Camacho (2013, p. 19), a
negação de conflitos na área da linguagem parece estar de acordo com a negação
de conflitos sociais em geral, gerada por fatores de ordem histórica, sociocultural
e étnica.

128 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
Considerando que toda cultura é dinâmica e não está livre de conflitos, ques-
tionamentos, dúvidas, divergências ou embates (WILLIAM, 2019, p. 21), e que ela
nem sempre se dilui e muitas vezes requerem respostas sectárias, é o que acon-
tece no caso da apropriação cultural. Ainda em William, a aculturação, termo que
significa fusão ou modificação de uma cultura, grupo ou indivíduo como forma de
adaptação, é também “um contato permanente que gera mudança em seus pa-
drões culturais”.
No caso da cultura surda e cultura negra, vemos uma troca e acessibilidade,
pois estamos acostumados (digo como sujeito surdo) a presença de intérpretes
em poucos espaços públicos, como igrejas (maioria evangélica e católica), escolas
inclusivas (quando tem) e universidades. Quando o conhecimento de um grupo
cultural é acessível ao outro, ele ganha um seguidor, alguém que tem sede por
conhecimento, que irá compartilhar para outros que está aprendendo.
Para Bauman (2001), esse cenário de transformações (tecnológicas, da era da
informação) encurtou as distâncias transformando as relações humanas. Antes do
pós-modernismo, na modernidade sólida, a modernidade criou bases advindas das
revoluções e transformações pelas quais o mundo passou (guerras, tecnologias,
revoluções). O trabalho que antes partia da imitação de um fazer, tem se tornado
cada dia mais complexo e cada vez mais dinâmico (menos manual e mais tecnoló-
gico), envolvendo amplos conhecimentos e habilidades. Mas Bauman descreveu
também o cenário atual, aquele advindo da pós-modernidade, ao qual nomeou de
modernidade líquida: este se caracteriza pela individualização (egocentrismo) do
mundo e desconstrução de paradigmas das sociedades tradicionais anteriores (ho-
mofobia, racismo). Desta forma o hibridismo cultural representa a pluralidade de
ideias, pensamentos, linguagens, concepções em diferentes espaços e na pós-mo-
dernidade, estes espaços começaram a se constituir, indo além de onde o sujeito
se encontra, perpassando a diferentes níveis.
Desta forma, a tecnologia tem contribuído para que em momentos como agora,
os diferentes falares da Libras também estejam em contato através do uso das re-
des sociais como o Facebook, Instagram e Youtube, sendo este último o de maior
público, pois seu formato de expandir a tela e a presença de janela para tradutor
de Libras (Tils) e legenda facilita e é mais acessível (desde que se tenha acesso a
uma rede de internet) e mais claro para acompanhar as discussões.

O GRUPO UBUNTU-LIBRAS E A LITERATURA SURDA


No Brasil, existem muitos grupos linguísticos que não usam o português como
L1 e lutam por seus direitos em relação à sua língua. É o caso dos surdos que,
conforme o Censo de 2010, realizado pelo IBGE, corresponde a 10 milhões de pes-
soas, ou seja, 5% da população brasileira. Desses, 2.147.366 milhões apresenta
deficiência auditiva severa, situação em que há uma perda entre 70 e 90 decibéis
(dB). Nesse contingente, 70% têm dificuldade de compreender o português. No

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 129


Artes, memória e espaços
município de Ponta Grossa, os dados da pesquisa apontam que mais de 13.000
pessoas apresentam algum grau de perda auditiva, sendo que mais de 3.000 pes-
soas apresentam de um grau profundo a uma grande dificuldade para ouvir, além
dos que apresentam alguma dificuldade. Desse modo, deve-se destacar a falta de
acessibilidade linguística e o desconhecimento da sociedade, aliados à desvaloriza-
ção dos profissionais surdos e de políticas educacionais para a inclusão efetiva da
Libras nas escolas.
Quem é o surdo?

Podemos definir uma pessoa surda como aquela que vivência


um déficit de audição que o impede de adquirir, de maneira na-
tural, a língua oral/auditiva usada pela comunidade majoritária
e que constrói sua identidade calcada principalmente nesta dife-
rença, utilizando-se de estratégias cognitivas e de manifestações
comportamentais e culturais diferentes da maioria das pessoas
que ouvem. (LONGMAN, 2007, p. 67).

Ser surdo não significa apenas não ouvir, mas sobreviver no mundo ouvinte
através da percepção visual, pois quando o surdo aprende a falar ele terá que “ou-
vir” com os olhos. Nas palavras de Sacks (1998, p. 129), nascer surdo, ser surdo
expõe o indivíduo a uma série de possibilidades intelectuais e culturais que, quem
ouve, ou melhor, fala num mundo de falantes não pode imaginar. Dentre as habi-
lidades desenvolvidas pelas pessoas surdas, Sacks cita a habilidade de descrever
o espaço quando dialogam ou narram suas “experiências visuais”. E, segundo ele,
é uma experiência tão rica em detalhes que só os que compreendem percebem.
As escolas bilíngues para surdos já foram tratadas como gueto por abrigarem
um grupo seletivo de pessoas: os surdos. No entanto, estes espaços já foram sinô-
nimos de sofrimento, o processo consistia na oralização, e isso só mudou a partir
da década de noventa. As escolas bilíngues foram surgindo após a criação da Lei nº
10.436 de 2002 e o Decreto nº 5.626 de 2005 que oficializou a Libras como língua
de instrução para a comunidade surda.
Em seu sentido corrente, a palavra bilinguismo se refere à pessoa que é fluente
em mais de uma língua. No caso do surdo, o termo se refere ao ensino com a fina-
lidade de inseri-la no ensino regular a fim de satisfazer às necessidades culturais e
linguísticas da pessoa surda. Estas serão tratadas mais adiante neste trabalho nos
termos de Capovilla (2000): é preciso dar acesso a uma base linguística à criança
surda. Este autor destaca que o acesso à linguagem permite o acesso à comuni-
cação, aprendizagem de conceitos, conhecimento do mundo concreto, cultural
e social. Se não houver uma base compartilhada e um acesso que contemple os
requisitos necessários desta língua (cultura surda e convivência com usuários da
Libras), “o mundo da criança ficará confinado a comportamentos estereotipados
aprendidos em situações limitadas”, ou seja, se resumirá a imitação de comporta-
mentos e dificuldade de compreender a surdez (perda de identidade, indefinição).

130 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
Mc Cleary (2006) considera a existência de dois tipos de bilinguismo, no caso de
quem queira aprender uma língua estrangeira e também quando não se é profi-
ciente na língua nacional, ou seja, falando outra língua que não seja a língua oficial
do país, como acontece no Brasil com os indígenas e os surdos. Mas o bilinguismo
que se propõe pela comunidade ouvinte difere do almejado pela comunidade sur-
da: os surdos querem uma escola em que a Libras seja língua de instrução, enquan-
to que na realidade o que encontram é a escola onde a língua portuguesa é a língua
de uso geral, uma escola ouvinte1 que tem alunos surdos inclusos.
O olhar da sociedade ao outro se resume a separar o que se considera normal
do considerado anormal, como forma de classificar, desconsiderando suas diferen-
ças, numa busca pela inclusão desse outro. Esse normal é uma norma considerada
ideal, mas que em sua prática exclui, ou seja, marginaliza quem é diferente quem
faz parte da alterização. Nestes grupos estão inseridos os negros, os deficientes
físicos, os cegos, os obesos, os homossexuais, os índios, os surdos e todos aqueles
que possuem algo que os caracterize como diferentes.

Esse processo é a prática de fazer com que o outro seja pensa-


do, produzido e inventado como minoritário. Assim, podemos
compreender que os grupos minoritários são produzidos nas re-
lações de poder e que quando grupos são nomeados como mi-
noritários, estão automaticamente sendo concebidos como os
“outros”, os atores coadjuvantes da história (FURTADO, 2012).

No caso dos surdos, existe muito além da diferença, que se exprime nesta lín-
gua, a Libras. É preciso de uma política linguística que se volte para suas caracterís-
ticas culturais, históricas e identitárias.
Os surdos participam de duas comunidades: surda e ouvinte. Convivem em
uma sociedade multiculturalista, portanto, dependem da cultura visual criada pelo
ouvinte (tecnologias). Ela acabou se tornando uma necessidade de uso cotidiano.
Mas a Libras continua convivendo de forma subalterna na educação dos surdos
que precisam dela, deixando uma marca de exclusão linguística e social.
Nos espaços de convivência entre surdos e ouvintes ocorre o trabalho frontei-
riço da cultura que exige um encontro com o novo que não seja parte contínua
do passado e presente. No interior de cada grupo cultural, existe a tensão de so-
brevivência cultural, a existência marcada pela sensação de sobrevivência, de ser
diferente (PERLIN, 2006, p. 75).
Mas para compreender essa discussão sobre cultura, identidade, surdez e lín-
gua, é preciso saber se um dado grupo que possui características diversas é dife-
rente do nosso. No caso de um sujeito pertencente a outro grupo étnico, como os
chineses e árabes, por exemplo, que possuem diferença física e linguística em rela-

1 Expressão muito usada pelos surdos ao se referir as pessoas que não são surdas, o oposto
deles, os ouvintes.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 131


Artes, memória e espaços
ção aos brasileiros, percebemos com facilidade, sabemos que possuem identidade
diversa da nossa. Mas e os surdos? Uma explicação interessante é dada por Leite:

Um fato empírico é que essas pessoas tendem a conviver mais


entre si, de modo que esse agrupamento deve ser resultado de
uma identificação maior que sentem em relação aos membros
de sua comunidade através da língua que falam, dos assuntos
pelos quais mais se interessam, das roupas que usam, da religião
que professam, entre uma série de outros aspectos. O conjunto
desses elementos pode ser entendido como a tradição cultural
desses indivíduos, que é edificada dentro de sua comunidade
desde o nascimento da pessoa e que é constantemente negocia-
da e re-significada a cada nova situação de enunciação cultural,
seja na relação com os próprios membros de seu grupo, seja na
relação com a sociedade majoritária (2008, p. 3).

Assim, a ela é uma tradição que é passada não pela família do surdo (já que a
maioria possui pais ouvintes) e, sim, pela escola através do contato da criança sur-
da com outros surdos adultos (professores), e também em ambientes como igrejas
e associações de surdos, em menor grau, assim como lugares que contribuem para
a sua divulgação.
Mas um aspecto importante é a valorização dos diferentes surdos que vivem
nestes espaços. Pois conforme o ambiente, a surdez só é evidente para surdos que
convivem em escolas inclusivas, principalmente os estudantes surdos negros. Para
exemplificar, cito um trecho da pesquisa de Furtado (2012), onde os surdos en-
trevistados afirmarem não ter sofrido preconceito por serem surdos negros, mas
serem discriminados, conforme a autora, por serem duplamente diferentes.
O racismo como permanência em nossa sociedade é firmado pela narrativa ma-
joritária do status quo. Ela oferece a oportunidade de desafiar diálogos perniciosos
que perpetuam estereótipos e opressão (WATSON, 2017, p.21tradução minha). As-
sim, na escola bilíngue ao buscar o trabalho na diversidade, é preciso incluir a iden-
tidade cultural negra. É preciso de narrativas e contação de histórias com sujeitos
surdos e também intérpretes negros. Respeitando o lugar de fala, pois conforme
Ribeiro (2017, p. 39) o lugar social não determina uma consciência discursiva sobre
esse lugar, mas sim, o lugar que ocupamos socialmente nos faz ter experiências
distintas e outras perspectivas. Ou seja, o contato com outros falantes da Libras
nos oportuniza a refletir quem somos.
E é nas escolas bilíngues que temos o trabalho com a Arte Surda, Cultura Surda,
a Literatura Surda, o Humor Surdo... Os artefatos culturais. Ao darmos espaço para
outras culturas, buscamos que todos os surdos se aceitem como são não só apenas
na surdez, mas na diversidade racial. Daí a importância de explorar as adaptações
feitas pelos professores surdos negros de contos africanos, de contos em Libras,
adaptações estas que introduzem o personagem surdo negro e até os regionalis-
mos e a diversidade linguística no falar da Libras, o regionalismo linguístico.

132 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
Assim, o grupo Ubuntu-Libras, a partir dessa filosofia, contemplar a comunida-
de surda na diversidade linguística e cultural busca que todos possamos divulgar o
que produzimos e tornar acessível ao público surdo e também ouvinte.

CONSIDERAÇÕES
Sabemos que a realidade de quem vive a surdez muitas vezes é retratada fora
do espaço linguístico-cultural, reforçando o lado médico e clínico, criando um este-
reótipo social. Neste caso, se imprime o uso de aparelhos AASI, IC, assim como na
ótica sociológica quando o surdo tem sua vida como indivíduo em que tem contato
com uma sociedade despreparada para recebê- lo. Descrever a surdez e a repre-
sentação da cultura surda sem ser surdo é um desafio fronteiriço, que exige cuida-
do, pois se devem destacar quais sujeitos surdos se quer representar e o contexto
social.
Outro aspecto a se destacar é o papel dos ouvintes que fazem parte do universo
surdo, segundo Anater (2008), vivem em fronteiras, numa perspectiva de auxiliar
o surdo a encontrar seu lugar no mundo. Reafirmando, semelhante às línguas es-
trangeiras e indígenas, é preciso dar destaque e espaço próprio para pesquisas que
agreguem valor à LÍNGUA DE SINAIS como língua e cultura da comunidade surda.
Considerando Skutnabb-Kangas (1988), a educação bilíngue, no caso aqui pro-
posto na educação de surdos, ela não se resume ao ambiente linguístico, mas en-
volve a comunidade e a sociedade. Assim, para que ocorra a educação bilíngue de
surdos com o ensino da Libras como L1 e disciplina como componente curricular,
é preciso de uma política voltada para esse processo, que trabalhe em conjunto
com a sociedade as vantagens de se ter mais de uma língua. O papel do professor
pesquisador surdo e ouvinte que atuam no campo da educação de surdos, neste
cenário conforme Freire, a sua “presença no mundo não é a de quem a ele se adap-
ta, mas a de quem nele se insere. É a posição de quem luta para não ser apenas
objeto, mas sujeito também da História” (2010, p. 54).
Portanto, o grupo de estudos Ubuntu-Libras além de abraçar a luta do Movi-
mento Surdo e Negro, tem proporcionado aos seus participantes momentos de
trocas reflexivas, debates, discussões e fortalecido o papel do professor surdo ne-
gro e do Tils como atuantes e divulgando a Cultura Africana, através de contação
de histórias em Libras, da divulgação de eventos, vídeos e materiais visuais. Ou
seja, sua representatividade, pois o surdo pode sim sinalizar suas dificuldades, as
barreiras que encontram diariamente, mas eu como intelectual não poderei des-
crever minuciosamente o que é ser surdo somente cada sujeito surdo em sua indi-
vidualidade e heterogeneidade tem esse direito, ao qual devo preservar.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 133


Artes, memória e espaços
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WILLIAM, Rodney. Apropriação cultural. São Paulo: Pólen, 2019. 208 p.

AUTORIA
Evelin Seluchiniak Nunes
PMPG- PR (Escola Bilíngue para Surdos Geny de Jesus Souza Ribas)
E-mail: evy.19@hotmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6375-4841
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5641037502539154

Diléia Aparecida Martins


Universidade Federal de São Carlos
E-mail: dileiamartins@ufscar.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0450-1246
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4802875511597756

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 135


Artes, memória e espaços
ST 30
Linguagens e
Literaturas de
Escrevivência
e Reexistência
negras:
decolonialidades
no ensino de
línguas e de
literaturas
antirracistas
A ESCRITA DE SI: UMA PROPOSTA DE EDUCAÇÃO
ANTIRRACISTA

Mariana Jafet Cestari


Juliana Azevedo Pacheco
Emily Vitória da Silva Claudino

Como o desejo, a língua rebenta,


se recusa a estar contida
dentro de fronteiras.
bell hooks

INTRODUÇÃO
Este texto nasce do movimento entre prática-teoria-prática de uma experiência
educativa que se pretende antirracista e, por adotar esse objetivo, reconhece a
necessidade incessante de se (re)pensar e de se (re)inventar. Partimos de nossa
atuação em um programa de extensão, o “A Escrita de Si como Instrumento de
Visibilidade para os Terceirizados do CEFET-MG”, desde as posições de técnica ad-
ministrativa e coordenadora do programa, professora EBTT atuante junto a uma
das turmas e bolsista do Ensino Médio – em todos os casos educadoras/educandas
com distintas trajetórias acadêmicas e pertencimentos raciais – para relatar e discu-
tir teoricamente nossa prática. Nossa expectativa é de que os diálogos promovidos
no âmbito do XI COPENE contribuirão para nossa atuação e para a reflexão sobre
os processos de construção do conhecimento, reprodução de hierarquizações so-
ciais e discriminações, bem como para as práticas de (re)existência e de resistência
à dominação ideológica.
Portanto, mobilizadas pela práxis, a partir da escuta das vozes das(os) sujei-
tas(os) que compõem o projeto (entre as/os quais incluímo-nos), tecemos um en-
saio no qual articulamos algumas formulações dos campos da educação libertária,
da Linguística Aplicada e da Análise de Discurso. Nossas reflexões perpassam os
desafios para o ensino de Língua Portuguesa comprometido com práticas de edu-
cação antirracista, as contribuições das formulações teóricas sobre os letramentos
de reexistência para nossa prática pedagógica e a denúncia da opressão como parte
de processos de subjetivação que podem, ao quebrar silêncios, produzir resistência
e deslocar sujeitos e sentidos. Nosso texto divide-se em três movimentos: 1) re-
flexão sobre as tensões entre o imaginário dominante sobre o ensino de Língua
Portuguesa e os letramentos de rexistência; 2) debate sobre políticas do silêncio,
racismo e denúncia na constituição do sujeito; 3) relato acompanhado de breve
análise sobre uma atividade didática que resultou na produção de cartazes de de-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 137


Artes, memória e espaços
núncia de discriminação racial e social vivenciada pelas educandas e educandos do
Programa.

A ESCRITA DE SI: TOMAR A PALAVRA


O Programa A Escrita de Si constitui-se como uma iniciativa filiada às concep-
ções de educação como prática da liberdade (HOOKS, 2017) e centra-se em narra-
tivas de vida como parte de práticas de letramento crítico junto a trabalhadoras e
trabalhadores terceirizados que atuam na área de limpeza e serviços gerais do CE-
FET-MG. O projeto nasce em junho de 2016, a partir de um diálogo entre a técnica
administrativa que escreve o presente ensaio e Maria Aparecida, trabalhadora ter-
ceirizada. Sua concretização como ação de extensão data junho de 2018, quando
foi iniciado um curso que reuniu práticas diversas de leitura e produção de texto no
Campus I do CEFET-MG, em Belo Horizonte.
As turmas são compostas em sua maioria por mulheres e negros com histórias
recorrentes de exclusão durante sua escolarização. No Programa, essas pessoas vi-
venciam um ambiente onde o aprendizado formal vem atrelado a debates que pro-
porcionam pensar sobre a própria realidade, sobre o trabalho e sobre as relações
sociais, em uma articulação entre a leitura da palavra e a leitura do mundo. A sede
de conhecimento despertada pelo curso levou alguns dos alunos do Escrita ao Exa-
me Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja) em
2019 e também proporcionou novas perspectivas para todos. Um dos resultados
da primeira etapa do projeto foi a edição de um livro que reúne narrativas de vida
dos participantes. Nos textos produzidos, as(os) educandas(os)/educadoras(es) re-
fletem sobre formas de reconhecimento, fortalecimento e compartilhamento de
suas trajetórias.
De forma bastante sintética, em grande parte de nossas ações, partimos da lei-
tura da produção literária de escritoras como Carolina Maria de Jesus e Conceição
Evaristo para práticas de interpretação dialogada, com vistas às escrevivências no
entrelaçamento entre ficção, poesia, testemunho e biografia, buscando confron-
tar o “imaginário construído em que o sujeito negro surge destituído do dom da
linguagem” (EVARISTO, 2009, p. 22). As atividades didáticas trabalham com tex-
tos multimodais e procuram romper barreiras entre letramentos legitimados pe-
las instituições de prestígio e outros que marcam as trajetórias dos sujeitos, com
destaque para os letramentos de reexistência, em releituras de identidades étni-
co-raciais, de gênero, políticas, dentre outras (SOUZA, 2011). Assim, procuramos
propiciar processos de subjetivação de resistência e reexistência nos movimentos
de escuta e reflexão sobre as narrativas de vida no entrelaçar entre os âmbitos
individual e coletivo, questionando as desigualdades sociais, raciais e de gênero es-
truturantes da formação social brasileira.

138 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
TEORIA E PRÁTICA EM MOVIMENTO IMAGINÁRIO DOMINANTE
SOBRE ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA E OS LETRAMENTOS
DE REEXISTÊNCIA
Uma das grandes referências de nossa prática como educadoras no A Escrita
de Si é a intelectual estadunidense bell hooks (2017), que propõe, em diálogo com
Paulo Freire, a educação como prática questionadora das parcialidades que refor-
çam os sistemas de dominação (como o racismo e o sexismo) e que têm moldado
as práticas pedagógicas, buscando proporcionar estratégias diferentes para parti-
lhar o conhecimento a grupos diversificados de alunos. Além de uma concepção
insurgente de educação, a autora reflete sobre as variedades linguísticas em sala de
aula e o papel da norma padrão da língua nos processos educativos.
Das formulações da autora, gostaríamos de retomar a afirmação de que “Na
comunidade da sala de aula, nossa capacidade de gerar entusiasmo é profundamen-
te afetada pelo nosso interesse uns pelos outros, por ouvir a voz uns dos outros,
por reconhecer a presença uns dos outros” (hooks, 2017, p.17). Compreendemos,
em diálogo com a feminista negra, a sala de aula como um lugar onde ouvir a voz
uns dos outros ou reconhecer a presenças supera as ideias de presença física ou
voz sonora. Trata-se de reconhecer que a professora (ou o professor) não é a única
responsável pela dinâmica educativa bem como reconhecer que a língua padrão
não pode ter como efeito a reiteração violenta da divisão e hierarquização entre
aqueles que supostamente sabem ou não falar (e escrever) corretamente a sua
própria língua. Além disso, trata-se de combater a ideia de que só merece ser ouvi-
do aquele que fala a língua padrão.
Em nossa experiência nas salas de aula do Escrita, por várias vezes nos depara-
mos com os alunos se auto intitulando “burros”. No momento dessas conversas,
buscamos aprofundar essa percepção e questionar suas bases ideológicas. Quan-
do perguntados “burros por quê?”, a resposta vem acompanhada muitas vezes de
uma risada sem graça e explicações quase que padronizadas, demonstrando uma
regularidade de sentidos de um imaginário sobre a língua e sobre o ensino da lín-
gua: “é porque eu não sei escrever direito”, “eu não sei falar corretamente”.
Em diálogo com o que propõe Nascimento (2019), passamos a nos indagar e
a compreender que essas afirmações estão vinculadas ao racismo linguístico (ao
preconceito racial entrelaçado com o social e o linguístico) que difunde um imagi-
nário de língua associado à identidade da branquitude brasileira, assumindo que o
Estado brasileiro promoveu historicamente políticas linguísticas excludentes para
aqueles que não são brancos no país, em especial os afro- brasileiros e indígenas.
Diante desse processo de exclusão que ressoa na sala de aula, cria-se a necessida-
de de transformar o imaginário do ensino de língua e mesmo a ideia de que ensinar
variedades de prestígio da língua significa necessariamente um gesto democrati-
zante.
Assim nos aproximamos das formulações de Souza (2011) sobre letramentos de
reexistência. Para a autora, os letramentos de reexistência são capazes de capturar

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 139


Artes, memória e espaços
a diversidade social e histórica dos padrões de linguagem e por isso são sui generis,
uma vez que contribuem para a desestabilização do discurso de que práticas vali-
dadas socialmente são somente as aprendidas na escola formal.
Entendemos que para uma prática pedagógica e teórica com intenção libertá-
ria, é necessário que se pratique um ensino a fim de não eternizar uma linguagem
opressora e colonialista. É necessário reconhecer que os letramentos predominan-
tes no espaço escolar silenciam grupos sociais marginalizados, que os educandos
experienciam práticas de letramentos de reexistência em espaços externos à es-
cola bem como têm suas trajetórias de escrevivências e que essas práticas têm po-
tencial de propiciar o engajamento dos sujeitos e a sua corresponsabilidade no
processo educativo.
Na prática, entretanto, deparamo-nos com as tensões entre o imaginário domi-
nante acerca da escolarização e das figuras do professor e do aluno e nossa posição
de intencionar uma pedagogia libertária e questionadora das assimetrias sociais. Na
trajetória de dois anos do Programa, de certa forma, negociamos nossos desejos
em busca de contemplar efetivamente o coletivo dos estudantes: em alguns mo-
mentos, aproximamo-nos mais às práticas escolares padrão, em outros fizemos
circular entre integrantes do Programa textos, vozes e variedades linguísticas his-
toricamente marginalizados nas instituições escolares e buscamos fazer circular
a produção dos educandos para além dos limites da sala de aula, em direção às
práticas dos letramentos de (re)existência.
Muitas vezes, lidamos com os desafios de “aprender não só com os espaços de
fala, mas também com os espaços de silêncio” (hooks, 2017, p.232), compreenden-
do que nos foi demandada como educadoras uma escuta paciente que subver-
tesse a cultura do imediatismo do consumo capitalista. E nesse tempo, fomos
construindo junto às turmas a noção de que a língua que serve como “arma capaz
de envergonhar, humilhar, colonizar” (hooks, 2017, p.224) também faz o convite
para o outro ouvir, para subverter os sentidos dominantes, em suma, resiste.

DENÚNCIA: A QUEBRA DO SILÊNCIO E O MOVIMENTO DO


SUJEITO
Para além dos silêncios e de sua presença significante em sala de aula, desdo-
bramos nossa reflexão sobre a política do silêncio. Perguntamo-nos, então, sobre
como compreender os movimentos do sujeito para se significar na relação com
os processos históricos de silenciamento. Além disso, tentamos pensar a denún-
cia discursivamente como possibilidade de movimento subjetivo, compreendendo
que a resistência, quando se toma uma perspectiva do sujeito constituído ideologi-
camente, não se resume a um ato voluntarioso.
Para contribuir com esta reflexão, recorremos ao estudo fundamental sobre o
silêncio na Análise de Discurso. Trata-se do livro As formas do silêncio – no movi-
mento dos sentidos, de Eni Orlandi (2007). Tendo como fio condutor do livro a apre-

140 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
sentação dos sentidos do silêncio, a autora discute a política do silêncio, ligando o
não-dizer à história e à ideologia. O silenciamento é visto como alargamento da
noção de censura, uma “estratégia política circunstanciada em relação à política dos
sentidos: é a produção do interdito, do proibido” (ORLANDI, 2007, p.75). Seguindo
com a autora, “como, no discurso, o sujeito e o sentido se constituem ao mesmo
tempo, ao se proceder desse modo se proíbe ao sujeito ocupar certos “lugares”, ou
melhor, proíbem-se certas posições do sujeito” (ORLANDI, 2007, p.76).
No caso das classes e grupos dominantes no Brasil e sua relação com o Esta-
do, não se estabelece atualmente uma política do silêncio direcionada aos grupos
subalternos definida pela censura, pela interdição do dizer instituída e regulamen-
tada. Entretanto, há uma política do silêncio pelo fato de os discursos dominantes
apagarem sentidos possíveis e indesejáveis para o rompimento do status quo, de
seus privilégios de classe-gênero-raça-orientação sexual assim como a divisão so-
cial e material da enunciação não possibilita que todos ocupem os mesmos lugares
de poder-dizer.
Sobre as políticas do silêncio, interessa-nos pensar o modo como, em relação às
desigualdades raciais, nos discursos dominantes “o silêncio exerce duplo papel: o
de negar os processos de discriminação racial, buscando ocultar a racialização das
relações sociais, ao mesmo tempo em que propõe uma homogeneidade cultural ao
brasileiro” (SILVA, ROSEMBERG, 2008, p. 82).
Em direção aos argumentos de movimentos sociais sobre a relação entre silên-
cio e dominação, é basilar a contribuição de Audre Lorde (2019). A autora aborda o
silêncio em oposição ao medo e à dor, medo da autorrevelação e da visibilidade
implicadas no dizer e no agir, quando a história é de invisibilização ou de distorção
da visão por conta dos efeitos de despersonalização do racismo (LORDE, 2019). De-
ve-se, assim, romper e quebrar o silêncio.
Considerando as lutas por representação, é possível aproximar voz/silêncio de
visibilidade/invisibilidade. O racismo entendido como política de silêncio pode ser
atrelado à política da invisibilização, sendo que o processo de invisibilização do
sujeito é pensado como repetição de determinadas imagens dominantes acompa-
nhada de interdição a determinadas representações (CESTARI, 2015). Essa reflexão
nos é cara quando consideramos que o A Escrita de Si propõe sua intervenção no
sentido de romper com a invisibilidade social, jogando com a polissemia de escrita,
que pode ser aproximada da ideia de voz própria e de tomada de palavra. A denún-
cia aparece, nesse contexto, como prática discursiva que pode tensionar a política
do silêncio do racismo em seu caráter de violência usurpadora da humanidade do
ser, atrelando-a à luta pelo dizer, pela palavra, por voz, uma luta para o sujeito se
significar.
Essa reflexão sobre a denúncia dialoga com as proposições de Modesto (2015).
Desde uma posição da Análise de Discurso materialista, o autor pergunta-se sobre
o que significa denunciar do ponto de vista discursivo. Reconhecendo que o ato de
denunciar aparece como elemento favorável às ações políticas por igualdade, dis-
corre sobre um recobrimento do social pelo jurídico que produz como evidência a

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 141


Artes, memória e espaços
importância de denunciar: “é, de fato, cidadão aquele que diante de uma ‘situação
adversa’ denuncia, fazendo valer seus direitos ou os direitos do outro” (MODESTO,
2015, p.160). Essa evidência ideológica está na base do sentido da denúncia como
prática de resistência do ponto de vista dos movimentos sociais.
Seguindo no diálogo com o autor, discutiremos na próxima seção o funciona-
mento da denúncia em uma discursividade em que o “denunciar” pode funcionar
como um gesto de resistência, considerando que é a contradição que constitui a
resistência nas relações de identificação que interpelam o sujeito. Logo, não se
define a resistência com base na intencionalidade de um sujeito consciente que
se coloca “contra algo” e fora da dominação ideológica, sendo que “a resistência
só se torna possível tendo como base o discurso dominante como pré-construído”
(MODESTO, 2015, p.161).

CARTAZES-DENÚNCIA: INTERVENÇÃO ANTIRRACISTA


Uma das estudantes mais velhas quebrou o silêncio e disse. Tomando a formula-
ção de Audre Lorde (2019) sobre o modo como o silêncio nos imobiliza, as palavras
acompanhadas pelo pranto e de novo pelo silêncio da dor pela humilhação racista
denunciada tirou-nos da imobilidade e se fez ação. Essa denúncia, entendida em
seu funcionamento discursivo (MODESTO, 2015), dizia respeito a um fato viven-
ciado no interior da própria instituição escolar. Ela surgiu na sala de aula quando
se compartilhava entre colegas uma atividade “para casa” sobre discriminação e o
cotidiano na favela a partir de leitura prévia de quadrinhos do livro Quarto de Des-
pejo, de Maria Carolina de Jesus. A acolhida da denúncia transformou-se em um
processo educativo mais amplo que culminou na elaboração de cartazes para serem
fixados no espaço do CEFET-MG como modo de intervenção antirracista no espaço
escolar que tensionasse o cotidiano que invisibiliza e silencia os trabalhadores e
trabalhadoras terceirizadas.
A ação didática foi iniciada pela professora que é uma das autoras do artigo e
teve sua sequência pela atuação de outra docente, Bruna Ferraz, que assumiu a
turma por conta da licença maternidade da primeira. A partir dessa experiência,
em diálogo com as formulações teóricas que apresentamos anteriormente, refle-
timos sobre o ato de denunciar e sobre o racismo enquanto política de silêncio.
Vale ressaltar que a atividade foi ampliada para contemplar vivências de discrimi-
nação de diferentes ordens, excedendo a discriminação racial. Refletindo retros-
pectivamente, pode-se afirmar que a proposta didática relaciona-se às práticas dos
movimentos sociais – entre eles os movimentos negros, feministas e LGBTQI+ – de
fazer circular as palavras de vítimas de violência, principalmente nos espaços do
digital (a exemplo das redes sociais que se tornam locus de organização e difusão
dessas lutas). Ou seja, mesmo que sem remeter de forma mais direta a práticas de
letramento de um grupo específico fora do espaço da escola, a proposta didática
retomou uma memória das lutas e uma prática de uso da linguagem contra as
opressões e discriminações de diferentes tipos.

142 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
A ideia era que cartazes com os relatos de discriminação fossem impressos e es-
palhados por toda a escola como forma de se fazer ouvir, de se fazer ver para além
do uniforme de trabalho e de um corpo historicamente significado como subalter-
no pelas matrizes de sentido racializantes. Porém, por conta da interrupção do ano
letivo de 2020 no formato presencial, a ação ainda não foi realizada. O movimento
de escrita deste ensaio, por sua vez, lança uma série de questões do ponto de vista
ético e político acerca da circulação desse material e deve impactar os rumos desse
projeto.
Até que ponto a denúncia de situações de violência e humilhação racistas tem
potencial de provocar transformações na escola no sentido de levar a comunidade
acadêmica a se rever e a rever as trabalhadoras e os trabalhadores terceirizados
desde outras matrizes de sentidos? Como selecionar e posicionar no espaço físico
da escola esses dizeres organizados em cartazes? Quais outras ações poderiam
acompanhar os cartazes de modo a articular a denúncia ao anúncio de um projeto
de educação antirracista e plural para todas as pessoas que compartilham a insti-
tuição educativa?
Consideramos que as experiências diversas com os gestos de protesto e com a
denúncia entre as educandas e os educandos foram mobilizadas também diferen-
temente no momento de elaboração do relato pessoal que iria compor os cartazes.
Outro ponto que parece ter impactado o coletivo foi a tensão entre não ser mais
possível suportar o silêncio da discriminação e o medo de alguma ameaça à vaga
de trabalho, retomando ponderações de Audre Lorde (2019) em seu emblemático
ensaio. O desenvolvimento da atividade mostrou ainda que não era unânime a per-
cepção de que sofriam discriminação. O anonimato foi adotado como estratégia
para fazer circular os relatos evitando represálias ou mesmo a vergonha de viven-
ciar por mais uma vez a violência que se denunciava ao se colocar em circulação os
dizeres sobre ela.
A leitura dos enunciados produzidos para compor os cartazes de denúncia le-
vou-nos a identificar algumas regularidades de sentido e mesmo modos diferen-
tes de conceber o ato de denunciar. Alguns relataram um acontecimento (de um
passado mais distante ou de um “hoje”), citando a fala de um terceiro ou ainda seu
silêncio significante. Outros dirigiram-se diretamente aos seus interlocutores – a
comunidade acadêmica do CEFET – questionando sobre o modo como são trata-
dos. Houve ainda quem textualizasse que nunca foi alvo de discriminação.
Constituído nosso arquivo de denúncias, elencamos três regularidades de efei-
tos de sentido que agrupamos sob as descrições que seguem: i) o uniforme que
significa e apaga o sujeito: entre os efeitos de visibilidade e invisibilização social;
ii) o trabalho de limpeza sob tensão: entre a humilhação e o reconhecimento do
trabalho como necessário para o bem-estar da comunidade acadêmica; iii) a(o)
trabalhador(a) como suspeito(a): a acusação ou a insinuação do risco de furto.
Por conta do espaço curto, apresentaremos somente algumas considerações de
análise sobre o primeiro recorte discursivo:

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 143


Artes, memória e espaços
a. Chegando no CEFET, encontrei uma pessoa que me disse: – Sem uniforme
você é uma pessoa diferente!
b. Eu não gosto muito de trazer marmita. Certo dia, fui almoçar num res-
taurante das redondezas. Senti um tratamento frio, diferenciado. Me senti
incomodada com a situação. Fiquei com aquilo na cabeça e pensei em voltar
no mesmo restaurante, mas sem o uniforme. Fiquei surpresa com a diferença
de tratamento. A atendente faltou colocar um tapete pra eu pisar. Ou seja,
sofri preconceito só por causa do uniforme! Não sabia ela que a pessoa era
a mesma! O dinheiro também era o mesmo. Nessas horas, me dá raiva dessas
situações, mas depois me dá pena dessas pessoas, por serem tão pobres de
espírito.
c. Eu gostaria que, aqui no CEFET, eu fosse vista como igual a todos. Não é só
porque estou de uniforme que eu sou diferente. Afinal, não somos sangue do
mesmo sangue? Então, por que nos tratam com diferença? Quando morrer-
mos não iremos todos para o mesmo lugar? Não há escolha.

Sobre o uniforme, percebemos como um elemento que resume/homogeneíza/


limita a vivência numa aparência. Mais do que isso, o uniforme apaga a história
particular do sujeito para significá-lo a partir de seu pertencimento a um grupo, de
modo a definir os lugares em que pode ficar e os espaços aos quais pode pertencer.
Também se pode pensar que o uniforme significa o sujeito pelo funcionamento do
efeito do pré-construído, ou seja, a memória dos sentidos que faz parecer eviden-
te, de forma metonímica, a posição social subalterna do sujeito. E essa evidência
dos sentidos visibiliza o corpo do sujeito de modo a atualizar e fixar sentidos produ-
zidos em outras condições de produção e atualizados no enquadramento do olhar:
trata-se de uma eficácia ideológica que determina o que se pode e deve ver a partir
de determinadas posições sujeito.
Os sentidos atribuídos pelos sujeitos à discriminação por estarem de uniforme é
percebida pelo tratamento de quando não estão de uniforme, ou seja, é na ausên-
cia que ele se significa como “diferença”. Em (a), alguém no interior do CEFET nota
uma “diferença” quando a(o) trabalhador(a) não está de uniforme (a visibilidade
do corpo sem uniforme faz com que seja enquadrado pelo olhar do outro como
“diferente”, indiciando a invisibilização no cotidiano do uso desse traje). De forma
oposta, em (b), pela vivência em um restaurante nas imediações, sente-se a dife-
renciação quando vestia o uniforme (pelo contraste de sua presença no mesmo
espaço sem a vestimenta de trabalho, quando a “diferença” não é notada: “Não
sabia que a pessoa era a mesma!”). Interessa perceber o contraste porque o movi-
mento de uniforme dentro da instituição e nos outros espaços da cidade também
significam diversamente. Já em (c), não é um acontecimento particular do passado
que é denunciado, mas algo que se repete, como marcam os tempos verbais: se
denuncia a diferença de tratamento e o uniforme como significando essa condição
de diferente.
Percebemos, então, um jogo entre o “mesmo” e o “diferente”, sendo nos dois
casos o “diferente” significado negativamente, apesar de poder parecer em (a) um
elogio dependendo da posição em que se inscreve o sujeito. Vejamos que em (c) o

144 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
jogo entre “diferente”, “igual” e “mesmo” se repete. Não igualmente: se em (b) o
que iguala as pessoas é o “mesmo dinheiro” que as posiciona como consumidoras,
em (c) é a condição humana que compartilha o “sangue” e a morte como destino.
Nos dois casos, uma ideia de igualdade permeia a denúncia do racismo ou de outro
sistema que esteja na base da discriminação como inaceitável para o cidadão que
reconhece e exige seus direitos, retomando um sentido corrente do ato de denun-
ciar tratado por Modesto (2015). Em (b) são nomeados diversos sentimentos mo-
bilizados a partir da vivência da discriminação: incômodo, surpresa, raiva e pena.
Em (c), o recurso às questões que interpelam o leitor da denúncia parece buscar
convencê-lo da condição de igualdade e vulnerabilidade de todos os corpos, sem
distinção, como conclui: “Não há escolha”.
Valeria aqui uma reflexão sobre a afirmação de que a discriminação se dá pelo
uso ou não do uniforme exclusivamente, como lemos em (b) como uma conclusão
baseada em sua experiência. Um gesto de interpretação poderia levar-nos a en-
tender que o uniforme aparece como evidência da motivação do preconceito para
aquele que enuncia (de modo similar como aparece como evidência para aquele
que discrimina), sem que sejam necessariamente perceptíveis outros processos de
exclusão.
Além das regularidades que apontamos, percebemos um movimento de nega-
ção da proposta didática que diz respeito ao efeito do racismo e da subalternização
como política de silêncio, que nega sua existência e, desse modo, dificulta sua per-
cepção, sua nomeação, sua denúncia e movimentos subjetivos que posicionem o
sujeito como contrário à discriminação. Um trabalhador afirmou “nunca sofri uma
discriminação no ambiente de trabalho, eu sei o meu lugar”. Consideramos, nesse
caso, que ele se significa na posição sujeito que lhe atribui o lugar de subalterni-
dade, o que não lhe dá direito à expressão de si, fazendo com que, independen-
temente do que lhe seja dito ou o modo como seja tratado, ele considere que seu
lugar é o de silêncio. Uma dolorosa constatação quando se busca praticar o antirra-
cismo – mais um desafio para seguir lutando.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: PARA SEGUIR CAMINHANDO


Nossas análises discutem as identidades discursivas das(os) sujeitas(os) nas
contradições dos efeitos de sua invisibilização social e do silenciamento (LORDE,
2017; ORLANDI, 1997) e da significação e reinvenção de sua voz e da visibilidade de
seus corpos no movimento da denúncia, analisada como funcionamento discursivo
(MODESTO, 2015). Dito de outra forma, discutimos como a denúncia, nas tensões
entre o dito e o não-dito, contribui para os movimentos de inscrição do sujeito na
história e para o reconhecimento e partilha de resistências e reexistências.
Além disso, com as análises, vislumbramos a possibilidade de a denúncia produ-
zir como efeito um movimento entre passado-presente-futuro: o passado denun-
ciado, no presente do acontecimento enunciativo, pode projetar imaginariamente

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 145


Artes, memória e espaços
um futuro de superação da discriminação. E juntamo-nos, como educadoras, a esse
projeto de futuro, movimentando-nos para práticas de letramento alinhadas às de-
mandas das educandas(os) e à educação para a liberdade.

REFERÊNCIAS

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ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2011. v. 1. 176p.

AUTORIA
Mariana Jafet Cestari
Departamento de Linguagem e Tecnologia do CEFET-MG
E-mail: marianajcestaricefet@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2374199330901081

Juliana Azevedo Pacheco


Programa de Pós Graduação em Educação Tecnológica - CEFET-MG
E-mail: julianapacheco@cefetmg.br
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9195615671910277

Emilly Vitória da Silva Claudino


Estudante do ensino médio técnico do curso de Eletrônica do CEFET-MG.
E-mail: evisclaudino@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9951922381814022
CONSTRUÇÃO DA AUTENTICIDADE NA ESCRITA
E ETNICIDADE NEGRA: RELAÇÕES EM COMUM?

Fernando Porfirio Lima


Gabriel Nascimento

INTRODUÇÃO
Para se ter um norte sobre plágio acadêmico, precisamos mostrar como essa
relação se dá em diversos espaços. Por exemplo, se recito um poema, logo em
seguida tenho que informar ao ouvinte que aquelas palavras não são minhas, ou
mesmo quando criamos e recriamos um poema em público, lidamos com a relação
de autoria constantemente. Por outro lado, a internet tem sido o meio de maior
propagação do plágio, pois através dela os estudantes têm um vasto acervo de
informações e parecem ter dificuldade de usá-la de maneira correta.
Por exemplo: a quantidade de textos que as pessoas copiam e colam nas redes
nos dá uma noção do problema e, para contorná-lo, precisamos dar mais impor-
tância ao tema dos processos de autenticidade da escrita, ou, pelo menos, inserção
do processo de autoria (POSSENTI, 2002), de maneira que a autenticidade esteja
correlacionada à ideia de autoria. Isso implica dizer que, ao falar, cada pessoa tem
seu meio cultural e através dele um lugar de fala (RIBEIRO, 2017), ou, como que-
rem os intelectuais chicanos nos Estados Unidos e os decoloniais na América Lati-
na, lócus de enunciação (MIGNOLO, 2000). O sentido de lugar de fala ou lócus de
enunciação parecem derivar, portanto, do entendimento que Benveniste (1976)
problematizava a respeito do sistema pronominal, em que, ao enunciar o mundo,
o sujeito enuncia sua própria posição de construção do enunciado, a enunciação.
Assim, lugar de fala e lócus de enunciação denunciam o espaço da construção lin-
guística e de poder, inclusive aquela marcada por condições impostas pelo racismo.
Sendo assim, neste trabalho vamos debater a relação entre linguagem e racis-
mo ao provocar a estreita relação entre autenticidade e processo de escrita por
pessoas negras a partir de uma coleta de dados entre estudantes recém-ingressa-
dos na Universidade Federal do Sul da Bahia.

LINGUAGEM E COLONIALIDADE:
O QUE HÁ EM COMUM ENTRE ELES
O processo de construção linguística durante muito tempo foi entendido como
neutro e fora da estrutura geopolítica e racializante do poder construído no Oci-
dente. As mais diversas formas de línguas que chegaram com as caravelas nas
Américas não foram apenas amostras dos falares dos colonizadores, mas também
registros de sua dominação.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 147


Artes, memória e espaços
Philipson (1992), por exemplo, reconhece que a língua (no caso dele a língua
inglesa) foi desde sempre um objeto de dominação nos lugares onde chegaram
os colonizadores. De acordo com Mignolo (2000), as primeiras formas de escrita
encontradas pelos missionários espanhóis nas Américas não eram consideradas
formas de língua, como citamos a seguir:

No século XVI, os missionários espanhóis julgavam e ranquea-


vam a inteligência humana e a civilização de acordo com o en-
tendimento sobre aquele povo ter ou não um alfabeto em seu
sistema de escrita. Isso foi um momento inicial na configuração
da diferença colonial e na construção do imaginário atlântico
que se tornará a imagem do mundo colonial e moderno (MIG-
NOLO, 2000, p. 3).

Diversos autores têm apontado, por exemplo, para a ideia de que vários desses
registros foram sistematicamente destruídos no processo de invasão colonial. Por-
tanto, nos questionamos: em que medida linguagem e colonialidade podem ter
relações em comum?
Essa pergunta parece ser respondida quando revisamos a própria história do
Português no país. A chegada dos portugueses por aqui, por exemplo, não coinci-
de com a implantação do português como língua oficial, o que só vem acontecer a
partir de 1757 quando, ao impor o uso da língua portuguesa aos indígenas todos
aqueles que viviam no território brasileiro, os portugueses classificaram as línguas
indígenas como:

invenção verdadeiramente abominável, e diabólica, para que


privados os Índios de todos aqueles meios, que os podiam civi-
lizar, permanecessem na rústica, e bárbara sujeição, em que até
agora se conservavam. Para desterrar esse perniciosíssimo abu-
so, será um dos principais cuidados dos Diretores, estabelecer
nas suas respectivas Povoações o uso da Língua Portuguesa, não
consentindo por modo algum, que os Meninos, e as Meninas,
que pertencerem às Escolas, e todos aqueles Índios, que forem
capazes de instrução nesta matéria, usem da língua própria das
suas Nações, ou da chamada geral (grifos nossos).

Nesse documento os portugueses instituem aquilo que pode ser chamado como
primeira política linguística no país, ou seja, a instituição de uma língua europeia,
o português, para substituir as línguas gerais, que eram línguas formadas a partir
das línguas indígenas.
A relação entre colonialidade e linguagem é precisamente íntima se nós enten-
dermos aquilo que Veronelli (2016) chama como colonialidade da linguagem:

A colonialidade da linguagem e do discurso constitui um aparelho


sofisticado, agentes religiosos, civis e educacionais, instituições
e práticas que naturalizaram a dominação colonial discursiva-

148 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
mente. Naturalizar é um fazer, um processo de criar uma com-
preensão intersubjetiva da experiência da colonialidade. Dizer “É
natural” significa aqui que isso é produzido, e parte da produ-
ção envolve a criação de barreiras naturais à inteligibilidade de
transformar seres colonizados em seres construídos como “inca-
pazes” de ter uma expressividade racional (VERONELLI, 2016, p.
409, grifos da autora)

Tal como Veronelli (2016), Singh (2018) nomeia essa relação entre linguagem
e colonialidade pelo termo do inglês mastery que, para nós, se versa como “domí-
nio”. A ideia de domínio, aqui retratada a partir das mazelas coloniais herdadas des-
de a chegada dos portugueses, é que guia a visão de que, ao chegar, o português
também trouxe sua língua, o Português, que passou a ser imposta mais especifica-
mente a partir da reforma pombalina do Estado português.
Assim, podemos entender que a linguagem foi um dos aparelhos utilizados para
excluir, subsumir e explorar os povos cujas terras foram invadidas pelos colonizado-
res. Por isso, nosso interesse neste capítulo é averiguar em que medida o processo
de escrita, quando produzido através da ideia de indício de autoria, pode revelar
marcas de autoria/autenticidade no texto.

O PLÁGIO ACADÊMICO
O plágio é uma preocupação atualmente no meio acadêmico. Sendo ele repro-
duzido em várias outras esferas da sociedade, um grande problema que temos
diagnosticado como professores e agentes educacionais é que grande parte dos
alunos do ensino médio, público e que conseguem chegar ao ensino superior não
têm noção da complexidade do que é o plágio, ou mesmo não sabem o que é plágio
acadêmico. Por isso, nos entendemos inicialmente que esse tipo de formação deve
ser ofertada já no ensino médio:

Contudo, quando o despertar do interesse pela pesquisa é esti-


mulado ainda no Ensino Médio, que é o que está acontecendo
em várias instituições de ensino, torna-se impossível não refletir
sobre os mesmos problemas encontrados na Educação Superior,
isto é, o uso inadequado da Internet na apropriação das infor-
mações encontradas, sob o pretexto de construir conhecimento.
(BONETTE, 2010, p.07).

Segundo Ferreira e Persike (2014, p. 519), “o plágio vem se constituindo num


problema crescente nos vários níveis de ensino – fundamental, médio e universitá-
rio – e na própria prática científica.” Ao analisar o tema do plágio em uma das mais
importantes universidades do país, a Universidade de São Paulo, a autora destaca
que:

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 149


Artes, memória e espaços
Algumas causas são identificadas para o plágio: a expansão da
internet [...], a falta de orientação clara do professor para a con-
fecção do trabalho pelo aluno e falta de instruções formais aos
alunos e pesquisadores que estão desenvolvendo um trabalho
e/ ou pesquisa, em cursos de redação, metodologia e filosofia da
ciência. (FERREIRA; PERSIKE, 2014, p. 520).

Ou seja, podemos ter como base a concepção de que o plágio se reproduz mes-
mo nos espaços de produção científica, o que muitas vezes se dá por causa da
falta de orientação. Assim:

Diante desse quadro e numa tentativa de lidar com o problema,


a Capes endossa as diretrizes da OAB para o combate ao plágio
nas instituições de ensino, sugerindo o uso de softwares de de-
tecção do plágio e de ações próprias das instituições para o seu
combate [...] (FERREIRA; PERSIKE, 2014, p.520).

A cultura da internet como meio de produção e propagação do conhecimento


de certa forma faz com que os assuntos se tornem dispersos, ao menos na cabeça
do estudante que não teve a devida formação a ter uma visão crítica em sua leitura.
Segundo Santos e Alomba Ribeiro (2014), alguns desses problemas de escrita de-
rivam dos princípios de objetividade na rede que, na visão deles, é resultado das
mudanças políticas globais no âmbito da modernidade.
Em uma análise crítica sobre a reprodução técnica da obra de arte, por exem-
plo, Benjamin (1955, p.01) diz que “[...] O que os homens faziam sempre podia ser
imitado por outros homens.” Desse modo podemos também usar o mesmo termo
na escrita, ninguém produz conhecimento do nada, sendo que na academia um pes-
quisador desenvolve sua tese com base em outros trabalhos anteriores. Bakhtin
(1997), que não trata da questão de plágio acadêmico ou autenticidade na escrita
em si, mas desenvolve a ideia de interação baseada nos atos de fala do sujeito, ana-
lisa que, ao produzir sua fala, o sujeito está sempre fazendo soar uma série de vozes
que, mesmo não marcadas, estão impregnadas em seu discurso. Quando alguém diz
“você é negro, mas é bonito”, essa fala não só denuncia o racista que a produz, mas
o próprio sistema racista que permite que, durante séculos, milhões de sujeitos
continuem a reproduzir o preconceito racial. Ou seja, a autoria está sempre conec-
tada a diversas vozes que não necessariamente estão no texto, mas, portanto, são
vocalizadas a partir de um dialogismo, como chama Bakhtin (1997).
Neste sentido, podemos destacar a importância do ensino da ideia de autoria
para combater aquilo que queremos compreender como plágio acadêmico, pois
quando produzimos, seja um artigo, monografia e etc., a ideia de autoria está sem-
pre construída, de maneira marcada ou não no texto.
Por isso, destacar que plágio é crime e que há punições severas para o pratican-
te não é o suficiente, sendo que isso as universidades públicas já fazem, muitas ve-

150 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
zes sem impacto. Indo além da própria faceta confusa da criminalização, podemos
conceituar plágio:

como um ato pelo qual um indivíduo faz crer aos outros, mesmo
que por omissão, que um determinado trabalho intelectual é de
sua autoria (isto é, assinando-o com o seu nome, sem declarar
explicitamente que porção ou porções são pertencentes a de-
terminado autor, por meio de uma referência de rodapé ou na
bibliografia), quando, na verdade, ele é cópia de algum outro an-
terior. Tal ato é normalmente considerado antiético (ou mesmo
imoral, em praticamente todo o mundo), chegando a ser clas-
sificado como crime em vários países, especialmente no meio
acadêmico. (BONETTE, 2010, p.10).

Dessa forma, entendemos que o plágio precisa, mais do que uma política de pu-
nição que, via de regra, pode significar mais justiçamento e aprisionamento de cor-
pos negros e indígenas não conformados ainda com as regras violentas do sistema
formal de escrita, é necessário haver formação diferenciada sobre autor e autoria
para reconhecimento da importância da autenticidade no texto.

[...] O oferecimento de oficinas e palestras que tratem do plágio;


o ensino da paráfrase e do discurso acadêmico, seja pelos pró-
prios professores das disciplinas, seja pelos cursos de redação
acadêmica, tanto em língua materna quanto em língua inglesa;
orientação clara e precisa sobre a confecção de trabalhos acadê-
micos exigidos e a criação e expansão de tutorias sobre a escrita
acadêmica em que dúvidas acerca do uso de diferentes vozes
3

no discurso acadêmico podem ser sanadas. (FERREIRA, M. M.;


PERSIKE, 2014, p.533).

Destaco aqui como importante, não apenas das universidades investirem em


oficinas e extensão, ensinando os alunos desde o primeiro semestre a lidarem com
citações e a respeitarem as diretrizes da propriedade intelectual, mas também das
escolas de ensino médio mudarem suas dinâmicas, como, por exemplo, estimular
os alunos a pesquisas de campo, fazendo-os reconhecer a importância de autenti-
cidade, e aos poucos criarem sua marca autoral de escrita e, assim, poderem cons-
truir suas trajetórias rumo ao mundo acadêmico.

INDÍCIOS DE AUTORIA
O conceito de indícios, segundo o código de processo penal brasileiro, é “a cir-
cunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por in-
dução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias.” (Art. 239, CPP.)
Ou seja, a própria noção de indício é uma construção de sentidos evidenciada pela
indução. Interligando-a ao conceito de autoria na escrita, vemos que o autor é uma

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 151


Artes, memória e espaços
figura subjetiva ligado intrinsecamente ao texto, que, segundo Possenti (2002),
não permite que se pense a noção de autor sem considerar a noção de singularida-
de. Partindo disso, temos o norte para os indícios de autoria onde encontramos no
texto marcas de subjetividade ou concepção de mundo do indivíduo.
No entanto, perguntamos: podemos dizer que qualquer sujeito, ao escrever,
torna-se autor? Primeiro é importante haver um entendimento entre autor e auto-
ria. Possenti (2002, p.107), parafraseando Foucault, diz que “autor é um correlato
de obra: não há autor sem obra, não há obra sem autor.” Podemos dizer que autor
é quem cria uma obra, seja no gênero musical, literário, artístico e etc. mas, isto não
define o conceito de autor, pois se trata de uma estrutura política, social e econô-
mica o ato de tornar a obra uma propriedade. Já a autoria está ligada ao discurso
enunciado pelo sujeito que, quando escrito, imprime marcas subjetivas, ou seja,
uma singularidade que pode ser analisada por marcas linguísticas, variação, posi-
ção e contextualização do autor/sujeito:

A enunciação em seu todo é um processo vazio que funciona


perfeitamente sem que seja necessário preenchê-lo com a pes-
soa dos interlocutores: linguisticamente, o autor nunca é mais
do que aquele que escreve, assim como “eu” outra coisa não é
senão aquele que diz “eu”: a linguagem conhece um “sujeito”,
não uma “pessoa”, e esse sujeito, vazio fora da enunciação que o
define, basta para “sustentar” a linguagem, isto é, para exauri-la.
(BARTHES, 1984 apud FURLANETTO, 2016, p.780)

Ainda é importante destacar que um texto nasce a partir de outros. Assim, tra-
ta-se de criar e recriar com base nos autores tomando distância como aquele que
enuncia e, ainda assim, colocando suas marcas no texto, e nele enunciado, ou seja,
“o texto é um tecido de citações, oriundas dos mil focos da cultura.” (FURLANETTO,
2016, p. 781). Desse modo, o que dá ao sujeito a condição de autor é o hic-et-nunc,
o aqui-e-agora, aquelas marcas que se fixam estruturalmente no texto de modo in-
visível (FURLANETTO, 2016), evidenciando o que Possenti (2002) chama de indícios
de autoria.
Já sabemos que não há texto sem autor, mas pode haver ausência de autoria
marcada em um texto. Por exemplo: a frase “a coisa tá preta” é de autoria de uma
sociedade branca e racista tendo como intuito diminuir as pessoas negras. Além
disso, é uma frase que pode vir de qualquer fonte ou fonte nenhuma. Porém, lem-
brando Bakhtin (1997), ainda que não esteja marcada, essa ausência de marca, que,
pelo autor, ao se referir à poética de Dostoiévski, chama de sujeito indireto livre,
revela várias vozes que, mesmo que não sejam chamadas de autoras, são traços
da ideologia vigente. É o caso do racismo, cuja autoria é sempre negada por quem
a pratica. Por exemplo, há mais de 20 anos Venturi e Turra (1995) realizaram uma
pesquisa para checar se o racista brasileiro se enunciava como racista. O resultado,
no entanto, foi impactante. No levantamento, 90% dos entrevistados admitiram
que há racismo no Brasil. Porém, mesmo indicando que havia racismo no Brasil, 96%

152 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
não se identificavam como racistas. Ao tratar desse caso e de muitos outros no país,
o antropólogo Kabengele Munanga chamou o racismo no Brasil de crime perfeito,
isto é, no Brasil se comete um crime sem autoria marcada.
Assim, a posição de autor deve está marcada no texto, pois, “trata-se de fazer
com que identidades e ações que aparecem num texto tenham exatamente his-
toricidade” (POSSENTI, 2002, p.112). Isso ajuda a desmitificar a falsa objetividade
científica, calcada no positivismo, de não uso da primeira pessoa do singular ou do
plural ou no texto. Mas será que alunos negros antes de ingressarem na universi-
dade são vistos como autores? Segundo Souza e Pacífico (2011) para que o sujeito
possa posicionar-se na função de autoria, é preciso que haja espaços (condições)
de autorização do dizer.
Compreendemos que no ensino regular é aplicado um modelo de ensino que
acaba por intensificar o processo de silenciamento de vozes, sobretudo vozes ne-
gras. Quando a escola impõe livros didáticos em que a identidade desses alunos
não são reconhecidas e a multiplicidade de saberes historicizados por esses alunos
é descartada (numa tentativa de separação entre lógos e pathos, ou razão e emo-
ção na construção do ethos como estrutura do sujeito). Ou seja, a escola tenta im-
por uma construção falseada de racionalismo, não levando em consideração que,
“assumir o lugar de autor significa permitir ao sujeito identificar-se com determina-
da formação discursiva e isso a escola não faz, quando escolhe e legitima um único
sentido para os textos, fazendo os alunos repetirem-no em seus escritos.” (SOUZA
e PACÍFICO, 2011, p.76).

ALGUNS DADOS E SUA CONTRIBUIÇÃO


PARA ESSA DISCUSSÃO
Para localizar nosso argumento central, selecionamos duas resenhas produzi-
das por estudantes do Colégio Universitário de Cabrália e Complexo Integrado de
Educação de Porto Seguro, unidades acadêmicas da Universidade Federal do Sul da
Bahia. Nessa unidade, estudantes, de maioria negra e indígena, da própria comu-
nidade, adentram a universidade via ações afirmativas com reserva de vagas para
esse grupo de até 85%. Com isso, passam cerca de 1 ano com disciplinas completa-
mente ministradas em sua comunidade.
A coleta de dados se deu após a turma ingressante, de maioria negra e indígena,
assistir ao documentário Nunca nos Sonharame entregar resenha do mesmo. Além
de checar plágios e orientar a turma, acolhemos a necessidade de analisar aqueles
textos cujas estratégias enunciativas demonstravam indícios de autoria. Não por
acaso, os dois autores, de duas turmas distintas, são afroindígenas. De fato, um se
declara como afroindígena e a outra como negra. A estudante Lorena (nome fictí-
cio), ao descrever a cena do documentário, expressa:

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 153


Artes, memória e espaços
O eixo central são os sonhos dos jovens daquela comunidade,
onde muitas vezes, são sonhos que não são possíveis realizá-
-los, pois, grande parte daquela população é de baixa renda (gri-
fos nossos).

Ao descrever o documentário, Lorena produz supostos erros ortográficos ou gra-


maticais (como supostamente, a partir da tradição gramatical normativa, se po-
deria interpretar de “são sonhos que são possíveis realizá-los”, ou a ausência de
vírgula entre “muitas vezes”) que informam a originalidade do seu texto e não sua
incompreensão da cultura escrita.
Além do argumento de que a análise gramatical normativa é imprópria para essa
análise, mesmo como base comparativa, rememorar essa tradição sempre (como
fizemos neste caso propositalmente) nos remete àquilo que Flores e Rosa (2015)
muito apropriadamente chamam de ouvinte branco ideal. Ou seja, mesmo que,
para desconstruir a visão tradicional, ao utilizarmos ela, estamos utilizando uma vi-
são brancocêntrica de norma de onde nunca saímos, e, sendo nesse caso, uma mar-
ca da oralidade perfeitamente compreensível dentro das práticas discursivas dos
letramentos acadêmicos iniciais. Um texto que pratica o plágio, por exemplo, pode
vir sem marcas similares, mas sem originalidade, portanto. Mesmo sem querer, ou
mesmo querendo, Lorena impõe sua marca de oralidade necessária na escrita.

Portanto, fica claro que o ensino púbico não está morto, é es-
sencial que haja investimentos nessas escolas, para que os jo-
vens continuem sendo influenciados a estudar (grifos nossos).

Nesse caso, destacamos o “fica claro” por ser algo do repertório da estudante,
além do uso de “é essencial”. O tal ouvinte branco oculto na língua (White listening
subject, cf. FLORES e ROSA, 2015), isto é, nosso inconsciente que julga tudo-e-to-
dos pela régua do que não soa correto na língua, ignora que a estudante parece
conversar no texto como uma conversa em que as pausas nem sempre são repre-
sentadas por nosso sistema de pontuação. Ramon (nome fictício), nosso segundo
participante, parece ter traços que confirmam nossa análise sobre Lorena, como
segue abaixo:

Um documentário baseado na realidade da educação brasileira,


onde dá ouvidos a vários jovens estudantes de escolas públicas,
e educadores nacionais, onde eles expresão rotinas e sentimen-
tos vividos por si próprios. [...] A obra vem com o intuito de mos-
trar a realidade das escolas públicas brasileiras [...] são pessoas
de classe média e classe média baixa, até mesmo miseráveis.
Que muitas vezes não têm apoio algum ou se quer incentivo [...].

154 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
Como o texto de Lorena, o texto de Ramon é rico em detalhes, tem coerência
e interna. Portanto, tem qualidade. Além disso, marca a realidade através de sua
crítica sem negar de onde parte.

POR UMA VISÃO ANTIRRACISTA


SOBRE PLÁGIO E INDÍCIO DE AUTORIA
Ser antirracista é, como pregava Davis (2016), mais do que não ser racista. Ser
antirracista é, segundo nosso entendimento como homens negros, praticar o antir-
racismo todo dia, mesmo que em alguns momentos nós venhamos a repetir alguns
aspectos do racismo.
Neste texto posicionamos de uma só vez a discussão sobre plágio e sobre indí-
cio de autoria para politizá-la frente à questão do racismo. Reclamamos em nossa
discussão da maneira como esses dois aspectos vêm sendo tratados no contexto
educacional.
Através dos dados aqui descritos, que são parciais e fazem parte de estudo em
andamento, buscamos posicionar esses dois aspectos, plágio e indício de autoria,
mais do que uma dicotomia, mas de maneira complementar. Porém, o que os po-
litiza é, pois, a necessidade de se posicionar no próprio sistema educacional, pos-
sibilitando aos estudantes o aprendizado consciente e monitorado do processo de
autoria para combatermos, assim, o plágio desavisado.
Este capítulo, portanto, toma a língua como meio de produzir uma agenda polí-
tica inclusiva e antirracista, chamando a atenção de professores, educadores e lin-
guistas para uma visão menos generalista e mais específica da realidade do letra-
mento, levando em conta a necessidade de, para além de criminalizar o estudante,
levá-lo a se enunciar no texto por meio da legitimidade de sua autoria.

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AUTORIA
Fernando Porfirio
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
E-mail: fernandoporfirio@aluno.ufrb.edu.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7714-3462
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8767626219021564

Gabriel Nascimento
Universidade Federal do Sul da Bahia
E-mail: gabriel.santos@csc.ufsb.edu.br
ORCID: http://orcid.org/0000-0002-7695-9264
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6926147100348906

156 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
ST 31
Literatura
Infantil, Juvenil e
demais produtos
culturais
para infância,
juventude e
a afirmação
identitária negra
LITERATURA INFANTOJUVENIL COM
PERSONAGENS QUILOMBOLAS: IDENTIDADES
INSCREVENDO EDUCAÇÃO ESCOLAR
Ana Fátima Cruz dos Santos

Assim como o mundo econômico e político,


as histórias também são definidas pelo princípio de nkali:
como elas são contadas, quem as conta,
quando são contadas e quantas são contadas
depende muito de poder.
Chimamanda Ngozi Adichie1

INTRODUÇÃO
A construção narrativa dentro de um território abrange suas referências cultu-
rais, étnicas, religiosas, linguísticas e outros marcos identitários de um grupo ou co-
munidade. Devido à aproximação de pessoas de outros grupos, conflitos históricos,
assimilações linguísticas, não teremos uma única narrativa a validar, nem devemos
estereotipar povos, pois os compartilhamentos de saberes nos faz múltiplos e di-
versos. Assim como nos trouxe Chimamanda na acima, vivemos no limiar do perigo
da história única, cuja população negra e suas diversas formas de organização cul-
tural, política e econômica é invisibilizada ou reduzida a características limitantes
de sociedade e aprendizado diante do discurso de quem detém alguma esfera de
poder.
O último informe, realizado em 2017, sobre as certificações de comunidades
territoriais quilombolas no Brasil, apresentou 736 comunidades situadas no estado
da Bahia devidamente certificadas pela Fundação Cultural Palmares – órgão até o
ano de 2019 responsável por esse senso (INCRA, 2017). Deste modo, a Bahia en-
contra-se no topo do ranking dos estados brasileiros com localidades reconhecidas
como de descendentes de quilombolas ou remanescentes de quilombos. Porém,
quando tratamos de educação escolar, produções literárias, materiais didáticos
para essas comunidades quilombolas baianas, o desempenho não se encontra no
mesmo parâmetro.
Desde a institucionalização da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial (SEPPIR2) - órgão do Poder Executivo do Brasil, instituída pelo presidente

1 ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. Tradução Julia Ro-
meu. 1ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p.23.
2 Secretaria extinta em 2019.

158 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
Luiz Inácio Lula da Silva em 21 de março de 2003, com o objetivo de promover a
igualdade e a proteção de grupos raciais e étnicos afetados por discriminação e
demais formas de intolerância, com ênfase na população negra – ações legislativas
voltadas para práticas curriculares educacionais foram implementadas a fim de mi-
nimizar os efeitos do racismo e discriminação racial no Estado brasileiro. Os grupos
sociais com grande ênfase de aparatos legais para o fomento de materiais didáti-
cos, literários e culturais foram os quilombos que durante as gestões das ministras
Matilde Ribeiro (2003-2008), Luiza Helena de Bairros (2011-2015) e Nilma Lino Go-
mes (2015) encontraram condições para um volume expressivo na produções de
cartilhas, livros, resoluções e outros documentos que legitimam e apresentam as
necessidades e expressões desses grupos identitários por especialistas, escritores
e/ou educadores quilombolas.
Tal demarcação se faz necessária neste trabalho porque pretendemos apresen-
tar um levantamento das referências literárias infantojuvenis com personagens
quilombolas brasileiras publicadas entre os anos 2001 até 2019, especificando as-
pectos identitários em produções literárias que situem quilombos da Bahia, fruto
dos desdobramentos da perspectiva curricular apontadas no Plano Nacional de Im-
plementação das Diretrizes Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais
e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africanas (Lei 10.639/2003).
A principal problematização investigada é: quais símbolos identitários são mani-
festados nestas narrativas? São tais representações por meio da linguagem literá-
ria que temos por hipótese a visibilidade da cultura do território quilombola, suas
expressões discursivas, os conhecimentos econômicos e educacionais comparti-
lhados na comunidade sob a forma de história literária como uma das ferramentas
utilizadas na efetivação da Educação Escolar Quilombola que respeite as tradições
e construções sociais do grupo em vivência.

EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA


A Resolução número 08, datada de 2012, promulgada pelo Governo Federal
Brasileiro para trabalhar os materiais didáticos e paradidáticos enquanto Educação
Escolar Quilombola (SANTOS, 2015) é uma das conquistas das lideranças quilom-
bolas que vislumbraram o respeito às manifestações culturais de cada território
por meio de práticas de letramentos peculiares de cada grupo. Afinal,

[...] a imposição cultural de origem eurocêntrica passa pela


abordagem curricular da escola básica e faz com que grupos e
povos, dentre estes os/as negros/as, fiquem invisibilizados e in-
feriorizados, porque submetidos a padrões hegemônicos, geral-
mente considerados como os únicos a serem valorizados. (LIMA,
2015, p.24)

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 159


Artes, memória e espaços
A afirmativa que coaduna com a realidade em diversas escolas quilombolas,
públicas ou comunitárias, que esbaram na tendência a seguir um currículo úni-
co, isolado das vivências e histórias das comunidades em que são implementados,
projetando uma “educação letrada” distante dos letramentos de Reexistência3 dos
estudantes do lugar.
O reflexo desse “desarranjo cultural” se destaca nos textos, imagens, relações
interpessoais, processos identitários e consequentemente são reproduzidos en-
quanto saberes essenciais em processos e práticas pedagógicas de educadores/
as não atentos às referências locais de cada território. Por isso, a relevância de
cumprir os atributos legais elencados na Resolução n. 08 (2012) que frisa, den-
tre os pontos, a necessidade de ter educadores nascidos ou residentes no pró-
prio quilombo em que atua profissionalmente. Tal consideração parte do princípio
que este profissional reconhece a cultura e identidade local, tão logo as práticas
pedagógicas a serem inscritas no currículo escolar para formação intelectual dos
estudantes da região. Uma educação escolar respeitando os modos de produção
de conhecimento local.
Segundo Vanda Machado (Fundação Cultural Palmares, s/n), o “quilombo é
mais que um território. É um lugar da ancestralidade viva. [...] O território quilom-
bola é a base da resistência e das trocas materiais e espirituais”, logo atentamos
que a resistência mencionada pela autora não diz respeito apenas à liberdade física
conquistada pelos africanos e afro-brasileiros pós- escravidão, do corpo negro livre
das correntes e torturas; condiz com a manutenção e exercício de sua medicina
popular, a prática de costumes e religiosidade com referências afro, além de uma
prática educativa cotidiana de caráter coletivo a qual definimos enquanto Educa-
ção Quilombola, a qual reverbera no espaço escolar dando continuidade ao apren-
dizado dos saberes ancestrais.
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Edu-
cação Básica (2012) se configuram nas diversas modalidades: educação infantil,
ensino fundamental, ensino médio, educação do campo, educação especial, edu-
cação profissional técnica de nível médio, educação de jovens e adultos, incluindo
educação a distância. Estas modalidades visam a orientar os sistemas de ensino
para que eles possam colocar em prática a Educação Escolar Quilombola manten-
do, assim, uma conversa com a realidade sociocultural e política das comunidades
e do movimento quilombolas. Propõe discutir territórios quilombolas (conceitos e
sentidos), o significado de conhecimento e princípios para uma proposta político-
-pedagógica de uma escola comprometida com a questão étnico-racial. O território
e a oralidade são referências levantadas pedagogicamente na Educação Quilom-
bola e deve se fazer representada nas suas escolas, para isto, faremos um recorte
na área de nosso interesse: a literatura infantojuvenil enquanto um corpus para

3 Conceito levantado pela linguista profa. Dra. Ana Lúcia Silva Souza (2011) que
salienta as práticas de letramentos das comunidades negras reverberando as linguagens e
modos de uso da língua considerando a trajetória histórica, a cultura e referências coletivas.

160 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
análise desse modelo de currículo e práticas pedagógicas peculiares para cada co-
munidade.

LITERATURA COM PERSONAGENS/AMBIENTAÇÃO


QUILOMBOLAS
A análise filosófica sobre o pertencimento da persona em determinado grupo,
remete-nos ao conceito de identidade que conforme Stuart Hall, é um complexo
de “divisões e antagonismos sociais que produzem uma variedade de diferentes
‘posições de sujeito”(2011, p.17-18), fruto do pensamento das sociedades pós-
-modernas introjetadas em um mundo globalizado o qual conduz as culturas num
caldeirão de possibilidade. Logo, não temos apenas uma identidade em voga, e
sim, identidades. Somos plurais. Contudo, as expressões culturais fundantes de um
grupo social o relaciona a determinado pertencimento identitário, o qual conse-
quentemente fomentará em outros grupos o desmembrar das raízes com outros
formatos culturais e assim sucessivamente.

Para cada ponto de vista postulado a partir de um local de dis-


curso, de relação de poder, lidamos com o lugar de fala que
as personagens emergem no discurso4 oralizado nas histórias
contadas pelos mais velhos aos mais novos nas dinâmicas do
cotidiano e/ou texto escrito nos livros de literatura enquanto
uma das diversas estratégias para eternizar a memória ances-
tral. Consideremos lugar de fala segundo o conceito descrito
por Djamila Ribeiro após uma reflexão sobre os diversos aportes
teóricos de feministras negras na diáspora africana como Grada
Kilomba, Patricia Hill Collins, Luiza Bairros e Spivak: este locus
social em que o discurso é a materialização desse lugar repre-
sentativo de quem tem direito a existir, quem exerce o poder de
manifestar e decidir. A isto denominamos lugar de fala.

A literatura enquanto uma das expressões da Linguagem humana (assim como


a Língua) está nesta posição filosófica de Reexistência por diferentes práticas de le-
tramento (KILOMBA, 2019; SOUZA, 2011). As histórias construindo e influenciando
na formação identitária de seus leitores sob afirmações e/ou negações vocabula-
res, semânticas da história das populações africanas e afro-brasileiras na diáspora
até a formação de modos de resistência e reexistência, a exemplo, os quilombos.
Considerando a união dessa formação identitária proporcionada pelos adultos no
meio familiar com a formação escolar, um olhar mais atencioso sobre os materiais
pedagógicos literários apresentou resultados positivos sobre a crescente produ-
ção de livros de histórias que são narradas pelos próprios quilombolas enquanto
registro de sua memória e cultura. Apresentamos uma lista de produções literárias

4 Significando um sistema que estrutura um imaginário social coletivo, o qual figura


poder e controle dos atos da comunidade de fala que representa.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 161


Artes, memória e espaços
infantojuvenis cujos personagens aparecem ilustrados de forma respeitosa, sem
estereótipos ou discriminações e os textos verbais representam aspectos vivencia-
dos por tais comunidade.
A tabela a seguir apresenta algumas obras publicadas referentes à literatura
infantojuvenil pautando histórias e vivências quilombolas por diferentes pers-
pectivas e em diferentes territórios brasileiros. A apresentação das personagens
– principalmente nas publicações realizadas pelo Ministério da Educação – está re-
lacionada a histórias narradas nas respectivas comunidades mencionadas: Tapera,
Kalunga, Cabula, Cazumbinha. Tal menção, feita pelos próprios quilombolas, que
com a colaboração de técnicos da Secretaria de Reparação, Ministério da Educação
e coordenadores pedagógicos, torna a obra literária genuinamente peculiar por
descrever em linguagem, imagens e estilo narrativo as identidades do grupo social.
Das obras citadas, duas foram escritas referenciando comunidades quilombolas
do estado da Bahia. São elas: Bucala: a pequena princesa do Quilombo Cabula e
Histórias da Cazumbinha. Iremos nos especificar em descrever estas obras e pon-
tuar os elementos de identidade a ser trabalhados durante a prática pedagógica
segundo a Educação Escolar Quilombola.
Bucala: a pequena princesa do quilombo Cabula obra escrita por Davi Nunes,
ilustrada por Daniel Santana, publicada pela Editora Malê (2ª edição, 2019) expõe
de forma animada e aventureira o olhar da menina quilombola que apresenta o
Quilombo Cabula para o/a leitor/a, referenciando a oralidade dos mais velhos en-
quanto elemento basilar para conhecer a história do lugar; a resistência a ameaça
escravocrata dos capitães do mato e os senhores brancos; o estar em afeto aninha-
da com sua mãe e seu pai salientando uma composição de família e contrariando a
imagem estereotipada que traz, na maioria das histórias com protagonismo infantil
negro, o isolamento ou ausência de uma família ou relações de parentesco associa-
das à identidade positiva da criança negra.
Tanto texto quanto ilustrações reportam-se para uma trama de pertencimento
a um território de origem ancestral africana e carregado de simbologias culturais e
étnicas de uma identidade afro-diaspórica vivenciada no território quilombola exis-
tente em plena capital baiana (Salvador), a qual está cada dia mais ambientada em
referências europeias, ocidentais, apesar da resistência e Reexistência de grupos
sociais que habitam a região e circunscrevem histórias do quilombo em atividades
coletivas de arte poética, grafites, feiras populares e bibliotecas comunitárias.
As menções linguísticas de origem africana reforçam a necessidade de aquilom-
bar a língua desde a infância. Vejamos os termos utilizados: Mocambos (p.08), axé
(p.11), miçangas (p.28) e o próprio nome do quilombo, Cabula (título). O caminho
narrativo trabalhado pelo autor também é outra estratégia pedagógica por nos en-
volver da parte exterior da trama – conhecendo primeiro a personagem principal,
Bucala, e sua família – e aos poucos nos fazendo adentrar pelas matas, mocambos
e rios, caracterizando esse movimento de interiorização, aquilombamento através
da textualidade, por meio da construção discursiva. Além de realizar anagramas

162 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
com o nome Cabula nos nomes das personagens Bucala, Lacabu (a mãe) e Calabu
(o pai), enfatizando ritmicamente o instrumento Cabula (uma das origens etimo-
lógicas).
Histórias da Cazumbinha, obra escrita por Meire Cazumbá e Marie Ange Bor-
das (que também ilustrou) pela Editora Companhia das Letrinhas(2010) – narra a
vivência de uma menina chamada Cazumbinha. Ela nasceu no interior da Bahia,
numa comunidade quilombola situada às margens do rio São Francisco. Lá a me-
nina cresceu e aprendeu sobre as nuanças da vida e se interessou pelo mundo. No
quilombo também ensinaram Cazumbinha a ler e a escrever - onde ela decidiu que
queria revelar ao mundo o seu universo, lugar de fala enquanto criança quilombola
protagonista de sua história
Durante a história são apresentadas as comidas e as roupas, as plantas e os
bichos, as pessoas e os lugares, as canções e as festas, as brincadeiras e os medos
que a personagem encontra no seu quilombo. Cada trecho da narrativa é contado
usando marcas da oralidade, como se estivessem sendo contadas em voz alta; as
histórias transmitem com sensibilidade o ritmo dos acontecimentos e da vida no
local.
A ideia para criação do livro originou-se de um projeto idealizado por Marie
Ange Bordas que envolveu as crianças do Quilombo Rio das Rãs, na Bahia. As auto-
ras participaram de oficinas em que ouviram as histórias da Cazumbinha e criaram
desenhos para elas. Utilizando-se da técnica de superposição de imagens, reali-
zaram superpostos a fotos do local e seus moradores, os desenhos (criados pelas
crianças do quilombo) que ilustram esse volume, o qual denomina-se livro foto-
-ilustrado. Há ainda um texto explicativo sobre os quilombos e as comunidades
quilombolas.
As duas obras em questão inserem a criança, negra, gênero feminino, quilom-
bola enquanto protagonista da narrativa e conhecedora dos elementos que consti-
tuem o espaço onde vivem e constroem afetos, símbolos, artes e representações.
O pertencimento e identificação das demais crianças com as personagens ocorrerá
através da enunciação principalmente pelo uso de termos linguísticos existentes
em comunidades de fala com descendência negro-africana, também como a tra-
jetória histórica descrita e nas ilustrações – que em História da Cazumbinha os
desenhos foram criados pelas crianças do Quilombo Rio das Rãs.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
As vivências territoriais devem ser espelhadas nos currículos escolares, assim
como refletir as identidades culturais e linguísticas de seus falantes. Em destaque,
as comunidades quilombolas do estado da Bahia ainda apresenta, na literatura
infantojuvenil, baixa menção das histórias das mais de 700 (setecentas) comunida-
des quilombolas reconhecidas. A provocação desse artigo é reforçar aos produto-
res literários (são eles e elas: escritoras/es, editoras, ilustradores/as, curadores li-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 163


Artes, memória e espaços
TABELA 1 | LIVROS DIDÁTICOS

Nº LIVRO / MATERIAIS AUTORIA TIRAGEM EDIÇÃO

Quilombos: espaço de
resistência de homens e Ministério da
01 10.000 2006
mulheres negras (livro do Educação
professor)

Quilombos: espaço de
resistência de homens e Ministério da
02 15.000 2006
mulheres negras (livro do Educação
aluno)

Uma história do povo Ministério da


03 5.000 2006
Kalunga (2ª edição) Educação

Yoté, o jogo da nossa histó-


Ministério da
04 ria (livro do professor, 7.500 2008
Educação
livro do aluno, tabuleiro)

Ministério da
05 Estórias Quilombolas 7.500 2008
Educação

Schuma Schu-
maher, Paulo
06 Minas de Quilombos - No prelo
Corrêa
Barbosa

Kit A cor da cultura (4 livros, Ministério da


07 2.000 2006
4 CDs, 1 jogo) Educação

Meire Cazum-
08 História da Cazumbinha bá, Marie Ange 1000 2010
Bordas

Bucala: a pequena princesa


09 Davi Nunes 1000 2019
do Quilombo Cabula

(Coleção Griôs da Tapera)


Tapera Encantada;
Como proteger as crianças
10 e fazê-las crescerem fortes; Sinara Rúbia 1000 2019
As pedras da Tapera; Dona
Sebastiana e como tudo
começou

Fonte: feita pela pesquisadora (2014-2020)


Figura 1: Capa do Livro Bucala (2ª edição, Editora Malê, 2019)

Fonte: Site Amazon.com

FIGURA 2: HISTÓRIAS DA CAZUMBINHA

Fonte: http://www.tecendosaberes.com/historias-da-cazumbinha/#ad-image-0
terários) a necessidade de fomentar mais trabalhos descrevendo e compartilhando
o modo de vida e saberes quilombolas peculiares para cada território associando
essas práticas cotidianas quilombolas com práticas pedagógicas fincadas nas refe-
rências ancestrais africanas e afro-brasileiras, musicalidade, circularidade e marcos
da oralidade.
Cada trama reconta um passo da jornada pela liberdade epistêmica das popu-
lações negras na diáspora africana, tão bem nomeada por Lélia Gonzalez como
“Améfrica” ou a “transatlanticidade” das relações América, Europa e África, citada
por Beatriz Nascimento. Ambas teóricas elucidaram o que continuamos a ecoar
nesse texto como o lugar do corpo negro nas linguagens.

REFERÊNCIAS

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. Tradução Julia Romeu. 1ª
Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

BRASILIA. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e


para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília, DF: 2004.

BRASÍLIA. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola: algumas


informações [Cartilha do Governo Federal, online] 2011.

BRASÍLIA. Uma História do povo Kalunga. Brasília: Secretaria de Educação Fundamental/


MEC; SEF, 2001.

CAZUMBÁ, Meire; BORDAS, Marie Ange. Histórias da Cazumbinha. Companhia das Letras.
Selo: Companhia das Letrinhas, 2010. Disponível em: < https://www.companhiadasletras.
com.br/detalhe.php?codigo=40597>. Acesso em 29/09/2020.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomas Tadeu d Silva.


Guaracira Lopes Louro. 11 ed. 1 reimp. Rio de Janeiro: DP&A, 2011.

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estrutura-fundiaria/quilombolas>. Acesso em 26/05/2020.

KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: episódios de racismo quotidiano. Lisboa: Orfeu


Negro, 2019.

LIMA, Maria Nazaré Mota de. Relações étnico-raciais na escola: o papel das linguagens.
Salvador: EDUNEB, 2015.

MACHADO, Vanda. Projeto Irê Ayó. Brasília: Fundação Cultural Palmares, s/n.

NUNES, Davi. Bucala: a pequena princesa do Quilombo Cabula. Ilustrações Daniel Santana.
2º Edição. São Paulo: Editora Malê, 2019.

REDEH. Minas de Quilombos. Minas Gerais: SECAD, 2008.

REDEH. Quilombos: Espaço de Resistência de crianças, jovens, mulheres e homens negros.


Rio de Janeiro: SECAD, 2005.

166 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
RESOLUÇÃO Nº8, DE 20 DE NOVEMBRO DE 2012. Resolução CNE/CEB 8/2012. Disponível
em: <www.seppir.gov.br/arquivos-pdf/diretrizes-curriculares>. Acesso em 14 fev. 2014.

RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. São Paulo: Sueli Carneiro. (Feminismos Plurais/Coordena-
ção de Djamila Ribeiro) Pólen, 2019.

RÚBIA, Sinara. Dona Sebastiana e como tudo começou. Ilustrações de Renato Cafuzo. São
Paulo: LSS, 2019. (Coleção Griôs da Tapera).

RÚBIA, Sinara. As pedras da Tapera. Ilustrações de Renato Cafuzo. São Paulo: LSS, 2019.
(Coleção Griôs da Tapera).

RÚBIA, Sinara. Como proteger as crianças e fazê-las crescerem fortes. Ilustrações de Rena-
to Cafuzo. São Paulo: LSS, 2019. (Coleção Griôs da Tapera).

RÚBIA, Sinara. Tapera encantada. Ilustrações de Renato Cafuzo. São Paulo: LSS, 2019.
(Coleção Griôs da Tapera).

SANTOS, Ana Fátima Cruz dos. Análise de Livros Didáticos e Paradidáticos em Educação
Escolar Quilombola em Santiago do Iguape. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-
-graduação em Crítica Cultural. Alagoinhas/ Universidade do Estado da Bahia, 2015. Dis-
ponível em: <https://portal.uneb.br/poscritica/wp-content/uploads/sites/113/2018/07/
ANA- F%c3%81TIMA_CARTAZ_DIVULGA%c3%87%c3%83O_DEFESA_P%c3%9aBLICA_DE_
DISSERTA%c3%87%c3%83O.pdf>. Acesso em: 30/09/2020

SECADI, MEC. Estórias Quilombolas. (Organizadora) Gloria Moura. Brasília: Ministério da


Educação, Secretaria da Educação, Secretaria de educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade, 2008. 100 p.

SECADI, MEC. YOTÉ: o jogo da nossa história: o livro do aluno. Brasília: Ministério da Edu-
cação, Secretaria de educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2008.

SECADI. A cor da Cultura. (4 livros, 4 CDs, 1 jogo). Brasília: SECADI/MEC. 2006

SOUZA, Ana Lúcia Silva. Letramentos de Reexistência: poesia, grafite, música, dança: Hip-
-Hop. São Paulo: parábola Editorial, 2011.

AUTORIA
Ana Fátima Cruz dos Santos
Doutoranda no Programa de Crítica Cultural/ Linguagens UNEB/Campus II Profes-
sora Educação Básica – Camaçari/BA
Orientadora: Profa. Dra. Maria Anória Oliveira de Jesus - Programa de Crítica Cultu-
ral/ Linguagens UNEB/Campus II
E-mail: anafatimadossantos@yahoo.com.br
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5377093428497518

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 167


Artes, memória e espaços
A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE FEMININA
NEGRA NA OBRA “O MUNDO NO BLACK POWER
DE TAYÓ”
Larissa Oliveira de Paula
Renan Fagundes

“Prometo corpo meu


Que vou te acolher
Te olhar com amor
Te enaltecer
Corpo que carrega minha história, minhas lutas
Tu és perfeito,
Não vou mais me importar com olhares julgadores
Vou te fazer jardim, plantar mil flores”
(Aline Maxiline)

INTRODUÇÃO
A motivação para a escrita deste trabalho se deu do desejo de trazer para o cen-
tro das discussões a literatura infantil e juvenil de matriz afro-brasileira e a constru-
ção da identidade negra dentro desta literatura, para tanto nos propomos a anali-
sar uma narrativa infantil e juvenil, a qual é O Mundo no Black Power de Tayó escrita
por Kiusam de Oliveira (2013). À vista disso, por meio deste trabalho buscamos
contribuir, mesmo que minimamente, para os estudos da área. Para tanto, consi-
deramos a literatura como aporte para o desenvolvimento social e cultural e que
corrobora para a construção identitária dos indivíduos, visto que é um instrumen-
to que auxilia a formação dos indivíduos. Nesta perspectiva, a literatura infantil e
juvenil de origem afro-brasileira tem como objetivos: a construção da identidade
das crianças e jovens negros e não negros, colaborar para o resgate e a afirmação
positiva da cultura afro-brasileira e a formação de crianças que respeitem a diver-
sidade cultural.
No tocante a construção da identidade, tivemos respaldo nos escritos de Hall
(2011) e Gomes (2002), o primeiro explana que a identidade é construída ao longo
do tempo e que as experiências vividas ao longo da vida influenciam neste proces-
so. Tendo em vista a construção da identidade negra, Gomes (2002) explica que
esta se constrói a partir do olhar do negro sobre si mesmo e, também, do olhar do
outro sobre ele, portanto, as relações sociais e as experiencias vividas impactam na
construção identitária. Levando isso em consideração, as narrativas lidas ou con-
tadas para/pelas crianças e jovens são importantes neste processo identitário, por
isso, é importante que estas histórias apresentem personagens negros que rom-

168 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
pam com os estereótipos negativos criados ao longo dos séculos. Ou seja, perso-
nagens que exaltem e representem a cultura africana e afro-brasileira de maneira
positiva e enalteçam a estética negra.
Nesta perspectiva, este trabalho se objetivou a analisar a construção da identi-
dade negra na narrativa O Mundo no Black Power de Tayó, de Kiusam de Oliveira
(2013). Para isto, as categorias de análise escolhidas foram a estética negra: cor-
po e cabelo, considerados expressão e símbolo da identidade negra, Movimento
Negro, Movimento Black Power, aspectos que são abordados na narrativa. Vale
destacar que para analisar a estética negra nos respaldamos no livro de Nilma Lino
Gomes (2019), Sem perder a raiz, no qual a autora analisa o cabelo como símbolo
e expressão de resistência e como forma de expressão da estética e da identidade
negra. Para tanto, procuramos voltar nosso olhar para como a identidade negra é
construída nesta narrativa e se o modo que a personagem é apresenta colabora
para a afirmação positiva desta identidade. Vale ressaltar ainda, que a análise foi
realizada a partir do olhar afrocêntrico e nas reflexões acerca das africanidades
(heranças culturais africanas) e africanidade (representação da identidade negra).
Antes da análise propriamente dita, fizemos reflexões sobre a inserção e a traje-
tória dos (as) personagens negros (as) na literatura infantil e juvenil, a história e as
lutas do Movimento Negro e do Movimento Black Power e a importância destes
para a construção da identidade negra. Além disso, refletimos também sobre o
corpo e o cabelo como aportes da identidade negra.
Cabe informar aqui que este trabalho foi escrito como Trabalho de Conclusão
do Curso (TCC), do curso de licenciatura em Letras Português-Inglês, na Universi-
dade Estadual de Ponta Grossa.

A PRESENÇA DOS (AS) PERSONAGENS NEGROS (AS) NA


LITERATURA INFANTIL E JUVENIL
A inserção de personagens negros nas narrativas infantis e juvenis ocorreu entre
os anos de 1920-1940, neste período, havia o desejo de produzir narrativas com
uma “identidade nacional”, ou como Gouvêa (2005) denomina “brasilidade”. Se-
gundo a autora, antes da década de 1920 os personagens negros eram ausentes
nestas narrativas, ou quando presentes remetiam ao passado escravocrata recen-
te. Ela explica ainda que conforme as discussões acerca da “brasilidade” foram se
expandido “[...] a representação do negro na literatura infantil altera-se” e, portan-
to, o negro surgia nas obras “de maneira mitificada, identificado com as raízes do
país” (GOUVÊA, 2005, p.84).
Sobre a década de 30, Gouvêa (2005) explica que os personagens negros eram
representados de modo estereotipado e, especialmente, neste período que se
tornou forte a presença deles nas narrativas, tendo eles papel de contadores de
história, este fato demostra que havia a presença de traços da oralidade e a trans-
missão de histórias de matriz africana. Um fato importante desta recuperação da

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 169


Artes, memória e espaços
oralidade é que Monteiro Lobato, em Histórias de tia Nastácia, ironizava e apon-
tava a contradição nessa retomada. Tendo em vista os estudos da referida autora,
percebemos que apesar da presença do (a) negro (a) nas narrativas, ele ainda era
referido por termos relacionados a sua raça, como “preto” e “pretinha”, coisa que
não acontecia com os personagens brancos. Portanto, embora houvesse a tenta-
tiva de recuperar, por meio dos personagens negros, uma identidade nacional, os
autores ainda não conseguiam retratá-los de maneira positiva, além disso, tinha a
animalização destes personagens nas narrativas.
Na década de 50 a representação do personagem negro não mudou, pois, se-
gundo Araujo (2015), pela falta de estudos sobre os negros (as) nas histórias infantis
nesse período “[...] infere-se que sua situação aproximou-se da retratada nas déca-
das anteriores, cujas características do primitivismo e ingenuidade relegavam-nas
à vida distante dos grandes centros” (ARAUJO, 2015, p.108). Essa representação
sofreu alterações apenas a partir dos anos 70, quando o conceito de juventude e
adolescência teve alterações, o que levou a necessidade de uma literatura especifi-
ca e realista. Nessa perspectiva, Jovino (2017), com respaldo em Piza (1998), expla-
na que as narrativas tinham o intuito de denunciar as injustiças, como o preconceito
e a discriminação racial, no entanto, “[...] muitas delas terminam por apresentar
personagens negros naturalizados nas representações com as quais pretendiam
romper” (JOVINO, 2017, p.12).
Sousa (2005) constatou em seus estudos novas modificações nos personagens
negros, no final do século XX e começo do XXI, em especifico na representação fe-
minina. Segundo a autora, pode-se vislumbrar novas propostas, ainda que tímidas,
de representação positiva das mulheres nas narrativas (SOUSA, 2005, p.200). Ape-
sar disso, Araujo (2015) conclui que “[...] o século 20 encerra- se tal como começou
para as personagens negras na literatura infanto-juvenil: relegando-as a condições
bastante demarcadas negativamente” (ARAUJO, 2015, p.113). Portanto, por mui-
tos anos os negros foram representados de maneira inferior e negativa e mesmo
com as tentativas de mudar esse quadro, como a denúncia do preconceito e discri-
minação racial, não foram bem- sucedidas.
Na contemporaneidade há a necessidade de abordar a temática africana, seus
costumes e crenças e, consequentemente os personagens negros. Neste sentido,
Jovino (2006) explica que na contemporaneidade algumas narrativas infantis e ju-
venis buscam romper com os estereótipos negativos ligados a cultura africana e
afro-brasileira. Percebemos então a evolução na forma que os personagens negros
eram retratados décadas atrás e de como eles são construídos nos dias atuais. Este
fato poderá ser notado na análise da obra O Mundo no Black Power de Tayó (2013).

170 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
MOVIMENTO NEGRO E MOVIMENTO BLACK POWER E SUAS
LUTAS
No Brasil, o Movimento Negro surgiu ainda durante o período escravocrata,
quando os escravos, devido a violência e injustiças praticadas contra eles, uniram-
-se em busca de formas de resistências. Esse movimento vem desde então lutan-
do por igualdade, inclusão social dos negros – nos diversos espaços sociais – e o
combate ao racismo presente na sociedade brasileira. Segundo os estudos de Do-
mingues (2007), essa luta se originou e se tornou mais evidente quando os negros
foram libertos da escravidão, no entanto, ser livre não significou ter seus direitos
assegurados, pois o sistema político da época não proporcionou a eles benefícios
materiais e simbólicos, pelo contrário os marginalizou. Por conta disso, o autor ex-
plica que houve mobilização entre os negros e por isso surgiram dezenas de grupos
(grêmios, clubes) em alguns lugares do Brasil, e, cada grupo tinha suas convicções
e objetivos na luta contra o sistema desigual em que viviam. (DOMINGUES, 2007,
p.103).
Ainda de acordo com o autor, a Imprensa Negra, que surgiu juntamente com os
grupos, publicava jornais produzidos por negros a fim de refletir sobre o racismo
e pensar em soluções para essa problemática. Após alguns anos surge a Frente
Negra Brasileira, considerada a entidade negra mais importante do Brasil por suas
reivindicações políticas e da luta pela integração dos negros na vida social, política
e cultural, além de denunciar a discriminação racial (GOMES, 2012, p.737). Após
anos de reivindicações, a primeira lei antidiscriminatória brasileira foi aprovada no
ano de 1951 no Congresso Nacional, mas mesmo após a lei ser aprovada, os (as)
negros (as) ainda eram perseguidos e estigmatizados por lutar contra um problema
que supostamente não existia, o racismo (DOMINGUES, 2007, p.111). Posterior-
mente a esse período, surgiu o Movimento Negro Unificado que reorganizou, no
cenário político, o combate ao racismo, além disso, é considerado o responsável
pela ascensão de pesquisadores e intelectuais negros que se tornaram referência
nos estudos sobre a questão étnico-racial.
Outra conquista do Movimento Negro foi a lei n° 10.639 de 2003, posteriormen-
te n°11.645/08, a qual tornava obrigatório o ensino de história e cultura africana e
afro-brasileira nas escolas públicas e privadas. Após isso, outras demandas foram
conquistadas, como a disponibilização das cotas raciais e a criação de uma associa-
ção voltada para os estudos sobre a temática racial. Além disso, esse movimento,
no século XXI, procura resgatar a autoestima dos negros (as) e denúncia discrimi-
nação racial sofrida por eles. Ademais, o movimento luta pela ressignificação e
politização positiva da raça, segundo Gomes (2012, p.731), ao ressignificar a raça
o Movimento Negro questiona a história do Brasil e da população negra que nele
vive e, também, pode-se entendê-la como uma vantagem para se conseguir uma
sociedade democrática e igualitária. De acordo com a autora, ao politizar a raça
pode-se romper com visões distorcidas e negativas sobre os negros, sua história e
sua cultura, retirando a população negra do lugar de suposta inferioridade racial

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 171


Artes, memória e espaços
(GOMES, 2012, p.731). Esse status de inferioridade pode ser percebido na constru-
ção dos personagens negros descrita na seção anterior, portanto, é contra essas
ações seja na literatura ou em outra campos que o Movimento Negro vem lutando e
buscando uma afirmação positiva desse povo.
Um movimento surgido a partir do Movimento Negro foi o Movimento Black
Power, o qual teve seu início nos Estados Unidos em 1960. Assim como no Brasil,
os negros americanos eram vistos de maneira inferior, viviam na pobreza e eram
vítimas de racismo, e, foi a fim de lutar contra as leis que segregavam a popula-
ção negra e pelos seus direitos civis que os jovens afro- americanos organizaram
esse movimento. De acordo com Santos (2019, p.35), esse movimento tinha como
objetivos elevar a autoestima dos negros e os valorizar, tendo como umas das fra-
ses mais conhecida e usada o “black is beautiful”, que em português significa “ser
negro é lindo” ou “preto é lindo”, portanto, vemos que a frase ao colocar o negro
como lindo tentava descontruir os estereótipos negativos relacionados à eles. Sen-
do assim, percebemos que o movimento surgiu tendo em pauta a luta antirracista
e a valorização do negro, ajudando, assim, a construção da autoimagem positiva
deles e a aceitação dos cabelos crespos naturais.
No Brasil, segundo Santos (2019), o Movimento Black Power teve como objeti-
vo tornar o cabelo crespo natural objeto de orgulho e afirmação identitária para os
negros brasileiros. Portanto, os negros, por meio do seu Black Power, mostravam
o orgulho de ser negro, se identificavam de maneira positiva e, além disso, mani-
festavam resistência perante o modelo de beleza considerado ideal pela socieda-
de brasileira da época, o branco europeu. Resistiam/resistem, também ao sistema
racista que operou/opera no Brasil e no mundo, ademais, exalta a beleza negra, a
qual por muito tempos foi diminuída e faz com que haja a construção positiva da
identidade negra, assim como a identificação de modo afirmativo entre os negros.
Na próxima seção abordaremos a importância do cabelo e do corpo negro para a
construção identitária positiva.

ESTÉTICA NEGRA: CORPO E CABELO E A CONSTRUÇÃO


IDENTITÁRIA NEGRA
As identidades contemporâneas, de acordo com Hall (2006), são mutáveis e
estáveis, ou seja, elas mudam e se reconstroem conforme as experiências vividas
pelos sujeitos ao longo da sua vida. Segundo o autor, a identidade é “[...] algo for-
mado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes [...] ela permanece
sempre incompleta, está sempre em “processo”, sempre “sendo formada”” (HALL,
2006, p.38). Além disso, ele explica que o contato com o outro, o olhar do indivíduo
sobre si mesmo e o olhar do outro sobre ele influenciam na construção da identi-
dade, portanto, as mais variadas relações sociais vivenciadas pelos sujeitos ajudam
na construção identitária. Nesta mesma perspectiva, mas explanando a identidade
negra, Gomes (2002) afirma que a construção desta “[...] é um processo que não se

172 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
dá apenas a começar pelo olhar de dentro, do próprio negro sobre si mesmo e seu
corpo, mas também na relação com o olhar do outro, do que está fora” (GOMES,
2002, p.2).

Levando em consideração que a identidade negra se constrói no contato com o


outro e no conflito, Gomes (2002) explica que essa identidade, no Brasil, passa por
processos complexos e tensos, visto que existe o racismo, o mito da democracia
racial e a imagem negativa relacionada aos negros, construída ao longo dos séculos.
Segundo ela, esses aspectos levam a essa tensão, pois os (as) negros (as) se cons-
troem imersos entre a imagem construída em uma sociedade racista e a busca e
luta pela construção de uma autoimagem positiva. E é nesse processo tenso que o
corpo negro se destaca “[...] como veículo de expressão e de resistência sociocul-
tural, mas também de opressão e negação” (GOMES, 2019, p.29). Nesse sentido,
a autora afirma que o corpo e o cabelo negro são símbolos da sua identidade, pois
são veículos de expressão e resistência diante das mais diversas situações vividas
cotidianamente pelos (as) negros (as) brasileiros, sendo assim, esses dois aspectos
são importantes para a construção identitária negra.

Para além disso, Gomes (2019) explica que o cabelo, nas antigas etnias africa-
nas, era considerado “[...] uma marca de identidade e dignidade” (GOMES, 2019,
p.331), embora esse significado tenha ganhado novas configurações no decorrer
dos anos, ele ainda continua forte entre os (as) negros (as). Portanto, o cabelo e
os penteados usados pelos (as) negros (as) décadas atrás e contemporaneamente
carregam significados e, tendo isso em vista, podemos inferir que o cabelo no estilo
Black Power utilizado pelos negros, no Brasil e no mundo, carrega sentido, como já
explicado, desde o seu surgimento até os dias atuais ele é sinônimo de resistência,
afirmação identitária e exaltação da beleza negra e dos cabelos naturais. Sendo
assim, o (a) negro (a) ao ter uma percepção positiva sobre seu cabelo e seu corpo
e uma autoimagem positiva poderá ter sua identidade construída de modo afirma-
tivo, apesar das tensões que a cercam.

O MUNDO NO BLACK POWER DE TAYÓ – ANÁLISE


O Mundo no Black Power de Tayó, escrito por Kiusam de Oliveira e ilustrado por
Tais Borges, publicado em 2013. É uma narrativa infantil e juvenil que conta a histó-
ria de Tayó, uma menina de seis anos que apesar da sua pouca idade já enfrenta o
racismo e preconceito existente na sociedade de uma maneira inovadora e encan-
tadora. Além disso, Oliveira (2013) apresenta desde as características físicas até as
psicológicas da personagem, mostrando assim que Tayó é linda exteriormente e
interiormente, possuindo uma personalidade doce e alegre. A personagem, tam-
bém, recupera as heranças africanas e as externaliza no seu cabelo, na exaltação da
beleza negra, na relação com sua mãe e com a história dos seus ancestrais.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 173


Artes, memória e espaços
Começamos pela análise realizada tendo em vista o Movimento Negro. A narrati-
va se inicia apresentando a personagem principal: “TAYÓ tem 6 anos. É uma meni-
na de beleza rara. Encantadora, sua alegria contagia a todos que perto dela ficam”
(OLIVEIRA, 2013, p.8)1, o nome da personagem aparece em letras maiúsculas, para,
provavelmente, destaca-lo. O nome é de origem ioruba e significa “da alegria”, a
escolha desse nome pela autora pode estar fundamentado nas lutas do Movimento
Negro, pois foi a partir da fase que se lutava para a promoção de uma identidade
étnica para o (a) negro (a) que os descendentes africanos passaram a registrar seus
filhos com nomes de matriz africana. Podemos compreender aqui a busca de uma
referência identitária africana. Outro aspecto que retoma o movimento é fato de
que Oliveira (2013) opta por utilizar a palavra “negro” para descrever os olhos de
Tayó, essa escolha pode ter sido feita visando a ressignificação da palavra, tendo
em vista o uso positivo dela e a busca por contribuir para esse processo. A autora,
também, retrata na narrativa a luta antirracista promovida por este movimento,
quando Tayó de uma forma afrontosa luta contra o racismo sofrido por ela e bem-
-humorada responde a seus colegas de classe “MEU CABELO É MUITO BOM porque
é fofo, lindo e cheiroso. Vocês estão com dor de cotovelo, porque não podem car-
regar o mundo nos cabelos como eu posso” (p.27), sendo assim, ela não se deixa
abater e não se coloca em uma posição inferior aos seus colegas.
Percebemos na obra que Tayó, desde muito cedo, conhece a história dos seus an-
tepassados, as suas lutas e as condições que os trouxeram a força para o Brasil, sen-
do este um dos aspectos do Movimento Negro, conhecer a história e as lutas dos
ancestrais africanos e assim resistir e lutar como eles fizeram durante muitos anos.
Compreendemos também que Tayó supera as lembranças ruins, do racismo sofri-
do, por meio das africanidades – heranças africanas – que se encontram presentes
na vida dela (sons, cores, danças, jogos, religiões etc.), mostrando que leva consigo
essas heranças e com elas resiste e se torna mais forte. Sendo essa recuperação
de elementos culturais, um dos ideais do Movimento Negro, o reconhecimento da
história africana, suas heranças culturais e o ensino delas na escola. Outro aspec-
to importante encontrado na narrativa é o rompimento de estereótipos, uma das
pautas do movimento, seja na exaltação das características físicas e psicológicas
da Tayó, seja na presença da figura materna na vida da personagem. Tendo em
vista que a presença da mãe nas histórias infantis e juvenis por muito tempo foi
escassa, essa obra vem para romper com o estereótipo de que personagens negras
são quase sempre órfãs. Além disso, notamos a menção a mãe de uma maneira
carinhosa e positiva, demostrando a importância dela para a construção positiva
da identidade de sua filha.
O Mundo no Black Power de Tayó, aborda, como título explicita, o estilo de
cabelo Black Power, que está ligado ao Movimento Black Power, o qual tinha como
objetivos luta contra os estereótipos negativos, construção da identidade negra

1 Todas a citações referentes a obra O Mundo no Black Power de Tayó serão referen-
ciadas apenas com a página. Todos os trechos são referentes a (OLIVEIRA, 2013).

174 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
positiva, exaltação da beleza negra, elevar a autoestima e mostrar orgulho de suas
raízes, sendo esses aspectos recorrentes na narrativa de Tayó. Como explicado, um
dos principais lemas desse movimento foi o “black is beautiful”, traduzido para o
português seria “ser negro é lindo”, a fim de mostrar para os (as) negros (as) que
s seus cabelos e traços faciais e corporais também eram bonitos e que deveriam
ser aceitos e exaltados por eles e pela sociedade. Percebemos isso na narrativa
quando a autora descreve a personagem como uma criança de “beleza rara”, e
que seu rosto é considerado “[...]uma moldura de valor, que destaca belezas infi-
nitas” (p.8), provavelmente, Oliveira (2013) quis por meio desta descrição positiva
exaltar e destacar a beleza negra e, também, construir no imaginário do leitor uma
imagem positiva de Tayó. Outro ponto interessante é o fato de que a protagonista
não carrega seu penteado Black Power, mas sim o ostenta, ou seja, ela tem orgulho
dele, sendo o orgulho uma das palavras-chaves do Movimento Black Power, pode-
mos perceber aqui a possível influência do movimento na narrativa. Por meio da
nossa análise, inferimos que esse movimento tem grande influência na construção
identitária da protagonista, pois Tayó se reconhece como bela e tem orgulho dos
seus traços físicos e do seu cabelo crespo natural e essa autoimagem positiva dela
parece ser importante tanto para a luta contra o racismo, quanto para a constru-
ção da identidade positiva.
No tocante a estética negra: corpo e cabelo, inferimos que a autora busca exal-
tar os traços físicos da personagem, seu cabelo e seu corpo, reconhecendo e ex-
pressando a beleza negra, como por exemplo, quando descreve Tayó como “[...]
menina de beleza rara. [...] seu rosto parece uma moldura de valor, que destaca
belezas infinitas” (p.8), ou seja, sempre busca intensificar a beleza de Tayó. Essa
intensificação é feita, no decorrer da narrativa, por meio de comparações das par-
tes corpóreas da protagonista e elementos que destacam a seu corpo de maneira
positiva. Podemos perceber isso quando seus olhos são descritos como “[...] tão ne-
gros como as mais belas noites que do alto miram com ternura qualquer ser vivo.”
(p.11), essa comparação dos olhos negros e as mais “belas noites” intensificam po-
sitivamente a beleza dos olhos de Tayó. Outro contraste positivo ocorre entre o
nariz da protagonista uma pepita de ouro, além de intensificar ao contrastar com
algo tão valioso – ouro – a autora rompe com os estereótipos ligados ao nariz dos
(as) negros (as). Vale ressaltar que ao longo da história há outras comparações
positivas. Levando tudo isso em conta, o reconhecimento da beleza negra, a inten-
sificação desta e o rompimento de estereótipos negativos, Gomes (2019)2 explana
que ao “Eleger o negro e a negra como belos é dar a eles o estatuto de humanidade
que lhes foi roubado pelo racismo” (p.356), sendo assim, Oliveira (2013), possivel-
mente, buscou mostrar e dar o estatuto de humanidade à Tayó.
Para além disso, percebemos que Tayó usa seu cabelo crespo natural e parece
o amar, pois o ostenta com muito orgulho. Referente a assumir a textura natural

2 Todas as citações referentes a (GOMES, 2019) aparecerão apenas com o número


da página.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 175


Artes, memória e espaços
dos cabelos, Gomes (2019) explica que “[...] assumir a textura crespa do cabelo é
entendido como valorização da raça negra perante a sociedade brasileira” (p.194),
portanto, podemos inferir que ao mostrar esse orgulho e uso do cabelo natural,
a autora, provavelmente, tinha como objetivo valorizar os (as) negros (as) e suas
características físicas. Outro fato interessante é que Tayó busca valorizar a textura
natural dos seus cabelos por meio da manipulação deles, colocando flores e borbo-
letas nele, ou seja, enfeites naturais e tendo o conhecimento que alguns povos afri-
cano antigos utilizavam elemento da natureza para ornamentar seus penteados,
podemos perceber então que Tayó se inspira nessa herança cultural para enfeitar
seus cabelos, além disso, compreendemos o legado africano presente na contem-
poraneidade. E, o fato de a mãe ajudar Tayó a enfeitar seu cabelo pode simbolizar
a sua importância para que ela conheça as heranças africanas e as mantenha vi-
vas. Além disso, Gomes (2019) explana que muitos (as) negros (as) se pautam nas
referências identitárias africanas para a construção das suas identidades, isso é o
que parece acontecer com a protagonista de Oliveira (2013), pois muitos trechos
analisados mostram que esse aspecto é importante para a construção identitária
de Tayó.
Visto que Tayó é construída de modo a exaltar e reconhecer sua beleza, desta-
cando positivamente seu corpo e seu cabelo, podemos inferir que a personagem
está em processo de construção identitária afirmativo, pois, o corpo e o cabelo,
ícones identitários, aparecem na narrativa de maneira positiva. Concluímos então
que a identidade negra positiva, na obra, é construída por meio da retomada das
heranças culturais africanas e da exaltação e do reconhecimento do corpo e do
cabelo negro de modo positivo, além disso, os Movimentos Negro e Black Power
parecem ser pilares importantes neste processo identitário.

REFERÊNCIAS

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de racialização no programa nacional de biblioteca na escola (PNBE). 335 páginas. Disser-
tação (Mestrado em Educação), Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2015.

DOMINGUES, Petrônio. Movimento Negro brasileiro: alguns apontamentos históricos. Ni-


terói: Tempo, v.12, n.23, 2007. p.100-122.

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GOMES, Nilma Lino. Movimento Negro e educação: ressignificando e politizando a raça.


In: Educação & Sociedade: Campinas, v.33, n.120, 2012. p.727-744.

GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra.
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176 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


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HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva, Gua-
racira Lopes Louro. 11ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

JOVINO, Ione da Silva. Personagens negras na literatura infantil brasileira de 1980 a 2000:
revisitando o tema. In: 38° Reunião Nacional ANPEd. São Luís, 2017. p.1-17.

JOVINO, Ione da Silva. Literatura infanto-juvenil com personagens negros no Brasil. In:
SOUZA, Florentina; LIMA, Maria Nazaré (Orgs.). Literatura afro-brasileira. Salvador: Cen-
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OLIVEIRA, Kiusam de. O mundo no Black Power de Tayó. São Paulo: Peirópolis. 2013.

SANTOS, Denise Bispo dos. Para além dos fios: cabelo crespo e identidade negra feminina
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SOUSA, Andréia Lisboa de. A representação da personagem feminina negra na literatura


infanto-juvenil brasileira. In: Educação, Ministério da diversidade, Secretária de Educação
Continuada, Alfabetização e Educação antirracista: caminhos abertos pela Lei Federal n°
10.639/03. Brasília: Ministério da Educação, Secretária de Educação Continuada, Alfabeti-
zação e Diversidade, 2005. p.185-204.

AUTORIA
Larissa Oliveira de Paula
Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG)
E-mail: paulaoliveira.0198@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3281-8563
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0574965138182151,

Renan Fagundes
Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG)
E-mail: renanfagundessouza@gmail.com;
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2817-2691
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1258318808956651

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 177


Artes, memória e espaços
FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORAS/
ES DA EDUCAÇÃO INFANTIL NA PERSPECTIVA
DA CORPOREIDADE E DA LITERATURA AFRO-
BRASILEIRA E AFRICANA

Sarita Faustino dos Santos


André da Silva Mello

INTRODUÇÃO
O presente estudo apresenta-se como um projeto de mestrado em desenvol-
vimento e pretende fomentar a discussão étnico-racial para potencializar a des-
construção do racismo, uma vez que na Educação Infantil de Vitória/ES existem
práticas e comportamentos sociais que necessitam de enfrentamento. Há relatos
de professores que evidenciam a angústia de famílias negras ao não declararem
o seu pertencimento racial no ato da matrícula; famílias de mães e de pais negros
que negam tal pertencimento na ficha de matrícula dos seus filhos, declarando-os
como “brancos ou pardos”, gerando, com isso, falsos indicadores na promoção de
políticas públicas do município.
Esse contexto revela, ainda, um racismo presente no cotidiano das unidades
de ensino que são invisíveis nas atitudes e nos comportamentos da comunidade
escolar, em relação às subjetividades, às características físicas e territoriais das
crianças negras. Na Comissão de Estudos Afro-Brasileiros (CEAFRO), da Secretária
de Municipal de Educação de Vitória/ES, há registros de discursos de professores e
de técnicos-administrativos que denunciam estereótipos que circulam nas escolas,
tais como, “crianças negras têm o cabelo ruim e não aprendem” ou “as famílias
negras são relaxadas”.
Os territórios, na sua maioria de negras/os, que não tem “jeito”, territórios
de “bandidos”, crianças “fedorentas”, estigmas que revelam a cor da pele como
algo pejorativo e que estão associados a um grupo racial inferiorizado. No ano de
2017, um episódio de racismo na Educação Infantil de Vitória ganhou repercussão
nacional, quando uma professora foi impedida de trabalhar com bonecas abayomi,
sob a acusação de estar promovendo macumba (utilização pejorativa do termo) na
escola. Desta forma, evidenciar o racismo e combatê-lo é uma necessidade urgen-
te, é uma forma de superar atitudes que marcam negativamente as histórias das
crianças negras.
O caderno de estudo Educando Contra o Racismo (VITÓRIA, 2007), produzido
pela CEAFRO, revela que as práticas racistas e incoerentes são sistematicamente
atualizadas na nossa contemporaneidade, por uma rede de invisibilidades e neu-
tralidades que a todo momento produz um "ser negro" desqualificado e inferiori-
zado nas escolas (VITÓRIA, 2007). Para além da denúncia, o documento oferece

178 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
possibilidades pedagógicas para a promoção da igualdade racial nas escolas, na
perspectiva de contribuir para reverter o quadro negativo no processo de constru-
ção das identidades de crianças negras nas unidades escolares municipais. É neste
ponto que se situa a relevância da proposta investigativa: contribuir para a altera-
ção do quadro de desigualdade racial no contexto escolar municipal.
Considerar a importância do estudo sobre as infâncias, as relações raciais, a
corporeidade e a literatura como dimensões constituintes do processo formativo
docente, na perspectiva de situar a afro-brasilidade não em uma data específica e
comemorativa, mas dentro do cotidiano escolar ao longo de todo o ano letivo, se
faz necessário. É possível que essa intenção pedagógica se efetive na Educação
Municipal de Vitória, lócus da pesquisa em foco.
O documento orientador para a Educação Infantil do município (VITÓRIA, 2006)
evidencia a necessidade de se buscar práticas afirmativas da criança e do adulto
negro como "sujeitos de interesses válidos e direitos legítimos" (p. 36). Salienta-
-se a valorização da identidade da criança negra em diferentes tempos e espaços
escolares, visto que o “[...] preconceito racial reforça a impotência do outro em
função da cor da pele, do tipo de cabelo, da condição de classe, neutralizando des-
se modo, as desigualdades de tratamento entre as crianças e adultos” (VITÓRIA,
2006, p. 50). O desafio é, portanto, transformar essas leis e propostas curriculares
(intenções) em ações práticas e concretas no cotidiano das instituições infantis.

APORTE TEÓRICO
A abordagem das relações étnico-raciais na educação infantil pode evidenciar
positivamente a população negra e indígena, constituindo-se como elemento de
formação de suas identidades, assegura a intelectual negra Cida Bento (2012), na
obra intitulada "Educação infantil, igualdade racial e diversidade: aspectos políti-
cos, jurídicos, conceituais". De modo ampliado, Stuart Hall (2015, p. 41), na produ-
ção “A identidade cultural na pós-modernidade”, aponta o processo de formação
da identidade fragmentada do sujeito, deixando evidente que todas as identidades
estão localizadas no espaço e nos tempos simbólicos. Pensado no contexto de glo-
balização, as diversas culturas que caracterizam as várias infâncias transitam entre
as noções de identidade e diferença como uma relação social. Importante pensar
que não há harmonia nessa relação de alteridade e, tanto a sua definição discursiva
como a linguística, estão sob a égide das forças e do poder que representam cam-
pos de disputas (HALL, 2015).
Com base em Hall (2015), considerando a importância de compreender esse
“jogo de inversão” e pensando as infâncias como período de vastas e variadas ex-
periências, em que muito se aprende e muito se media, o trabalho com as rela-
ções étnico-raciais surge pela preocupação dessa mesma infância ser considerada
apenas por uma vertente curricular, numa concepção de criança universalizada.
Privilegia-se uma infância referenciada por apenas uma única cultura de domínio

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 179


Artes, memória e espaços
eurocêntrico, desconsiderando as crianças negras e indígenas, reproduzindo, des-
sa forma, o racismo nas escolas.
Os modelos pedagógicos podem se tornar ainda mais complicados para as
crianças que não se enquadram no referencial privilegiado pelos processos de es-
colarização. Para as crianças negras, é preciso pensar um currículo que se aproxime
da sua vertente cultural e histórica. Dessa forma:

Pensar articulação entre educação, cidadania e raça significa ir


além das discussões sobre temas transversais ou propostas cur-
riculares emergentes. Representa o questionamento acerca da
centralidade da questão racial na nossa prática pedagógica, nos
projetos e nas políticas educacionais e na luta em prol de uma
sociedade democrática que garanta a todas/os o direito de cida-
dania (CAVALLEIRO, 2001, p. 83).

Neste sentido, a articulação entre a literatura afro-brasileira e africana e a cor-


poreidade se consolida no encontro do componente curricular Educação Física com
as diferentes linguagens presentes nos cotidianos dos Centros Municipais de Edu-
cação Infantil (CMEIs). As práticas pedagógicas dialogam na perspectiva da integra-
lidade da criança, cujo protagonismo é valorizado na interação entre pares e com
os adultos.
Considerando a importância da educação das relações étnico-raciais, esta pes-
quisa se propõe a explorar práticas corporais afro centradas e a literatura com
recorte étnico-racial, visto que podem potencializar a identidade dos estudantes
também pela cosmovisão africana. As questões que emergem nesta proposta de
pesquisa são as seguintes: Quais os caminhos que percorrem as/os professoras/es
dos CMEIs de Vitória para promover a educação das relações étnico-raciais no seu
cotidiano? Como os docentes da escola entendem a possibilidade de se trabalhar
em uma perspectiva afro-brasileira e africana? Como trabalhar os valores civiliza-
tórios africanos por meio da literatura e da corporeidade na educação infantil? Os
trabalhos das/os professoras/es na educação Infantil, na perspectiva da cultura
africana, aparecem isoladamente ou estão inseridos em um projeto institucional?
A literatura infantil e a corporeidade afro centrada colabora no trabalho docente
dessas profissionais?
A literatura infantil, na perspectiva das relações étnicos-raciais, abarca uma se-
quência de pesquisas que já evidenciaram uma defasagem no que se refere à re-
presentação positiva do corpo negro no Brasil. A pesquisadora negra Débora Cristi-
na Araújo sinaliza que os resultados de estudos sobre relações raciais na literatura
infantil apontam desigualdades no tratamento de crianças negras e não negras.
Conforme a autora:

O que se pode verificar na maior parte das pesquisas arroladas


neste breve levantamento é que se reiteram, em seus resulta-
dos, a presença de estereótipos acerca da representação de per-

180 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
sonagens negras na produção literária infantil e juvenil. Outro
elemento importante é que grande parte das obras analisadas
fazem parte de acervos de bibliotecas de escolas podendo, desta
forma, atuar de modo negativo e depreciativo na formação de
estudantes acerca da história e cultura afro-brasileira e africana
(ARAÚJO, 2017 p. 68).

Além disso, a autora também pontua que os trabalhos realizados pela comuni-
dade acadêmica confirmam os limites para o tema na pesquisa científica. Araújo
(2017) menciona sua preocupação com a formação dos/das estudantes leitores/as
considerando o acervo descomprometido com as relações étnico-raciais afirmati-
vas. Neste contexto, se reforça a preocupação com as/os professoras/es na sua for-
mação inicial e continuada, muitas vezes mediadas por livros de abordagem euro-
centrada. Estas etapas de formação necessitam ser tratadas de modo a contemplar
todo o conjunto de etnias locais e nacionais, em atendimento às Leis 10.639/2003
e 11.645/2008. Mais do que atender às prerrogativas de leis, é necessário um real
compromisso com a educação para as relações étnico-raciais.
As intelectuais negras Nilma Lino Gomes e Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva,
na obra "Experiências étnico-culturais para formação de professores", demarca-
ram a importância para a compreensão do campo educacional considerar formas
articuladas das lutas sociais, políticas e culturais na promoção da igualdade racial
na educação. De acordo com as autoras, a diversidade étnico-cultural possibilita
que os sujeitos sociais não deixem de ser sujeitos políticos culturais (GOMES; SIL-
VA, 2006). Neste sentido, a articulação entre a literatura e a corporeidade perfa-
zem componentes fundamentais para uma educação das relações étnico- raciais
prazerosa, lúdica e fundamentada em princípios de equidade.
Nesta perspectiva, Júlio César Tavares, poeticamente, afirma: “[...] corpo que
fala antes mesmo de me utilizar do aparelho fonador pelo qual vou emitindo as
imagens acústicas que pronuncio, antes de me tornar consciente do próprio corpo”
(TAVARES, 2012, p. 37).
No entanto, ao se trabalhar a cultura afro-brasileira como prática pedagógica,
há um risco recorrente: a ideia de folclorização aparece fortemente representada
em muitas literaturas e práticas corporais. Nesse sentido, o filósofo e pesquisador
negro Eduardo Oliveira alerta para o uso do termo quando diz que as culturas afri-
canas e afro-brasileiras foram entregues ao campo do folclore com o objetivo de
trancafiá-las ao campo fossilizado da memória. Para ele, “[...] folclorizar, nesses ca-
sos, é reduzir uma cultura a um conjunto de representações estereotipadas, alheias
ao contexto que produziu essa cultura (OLIVEIRA, 2009, p. 62). Considerando estas
questões, depreendemos que a educação formal carece de possibilidades de inte-
ração com as novas linguagens e formatos educacionais para conseguir atingir de
forma positiva, integral e completa os sujeitos da/na escola com suas singularida-
des étnicas e raciais.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 181


Artes, memória e espaços
Diante dessa conjuntura, propor uma pesquisa colaborativa, em que os profes-
sores são convidados a refletir sobre sua prática, a partir de uma abordagem das
questões étnico-raciais e do combate ao racismo, corresponde à mobilização de
pressupostos teóricos que permitem a formação do/a professor/a que avança para
além do campo dos discursos. Tomás (2017) ajuda nessa articulação, ao denunciar
que há um hiato entre intenções (leis, diretrizes) e ações (práticas nos cotidianos
da escola). Conforme a autora, urge desocultar silêncios e combater a exclusão, a
opressão e a discriminação das crianças, que se acentuam quando a cor da pele é
evidenciada negativamente.

PROBLEMA DE PESQUISA (E/OU HIPÓTESE E/OU OBJETIVOS)

OBJETIVO GERAL
Articular a literatura e a corporeidade afro-brasileira e africana na formação
continuada de professoras/es, pedagogas/os, gestoras/es, Assistentes de Educação
Infantil (AEI) e na produção de conhecimentos para a mediação pedagógica na Edu-
cação Infantil.

OBJETIVOS ESPECÍFICOS

1. Fomentar políticas de formação docente afirmativas na busca da equidade ra-


cial nos cotidianos dos Centros Municipais de Educação Infantil de Vitória/ES, no
enfrentamento do racismo estrutural, mediante processo de formação continuada
com profissionais da Educação Infantil de Vitória/ES, a partir da parceria entre Uni-
versidade e Educação Básica;
2. Desenvolver formação teórico-prática afro centrada, mediada pela literatura e
pela corporeidade e afro-brasileira e africana, para professoras/es da Educação
Infantil da rede pública municipal de Vitória/ES.
3. Produzir conhecimentos de natureza aplicada para a mediação pedagógica na
rede pública de Educação Infantil de Vitória/ES com temáticas articuladas à litera-
tura e a corporeidade afro-brasileira e africana.

METODOLOGIA
Trata-se de uma Pesquisa-Ação Colaborativa, na perspectiva proposta por Ibia-
pina (2008). De acordo com a autora, essa metodologia possibilita a formação con-
tinuada de professores e a produção de conhecimentos. A Pesquisa Ação-Colabo-
rativa tem como princípio central explicitar a unidade pesquisa-formação que, em
processo de compartilhamento e de negociação, dizeres e fazeres são colocados
sob análise por meio da reflexão crítica, perspectivando a transformação de um

182 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
contexto educacional. Concernente à pesquisa-ação, os termos ação e mudança
são considerados fundamentais para intervenção com foco na transformação so-
cial. Para Ibiapina (2008, p. 23), a Pesquisa-Ação Colaborativa permite “[...] indagar
a realidade educativa em que investigadores e educadores trabalhem conjunta-
mente na implementação de mudanças e na análise de problemas”. Essa parceria
viabiliza uma corresponsabilidade na tomada de decisões e no cumprimento das
ações de investigação e produção de conhecimentos.
É importante frisar que toda pesquisa-ação, independentemente do seu viés,
pretende transformar uma determinada realidade. Portanto, nessa pesquisa, bus-
ca-se superar o racismo e o preconceito nas relações étnico-raciais, promovendo a
equidade entre crianças negras e brancas no contexto da Educação Infantil de Vitó-
ria/ES. Intenta-se, com isso, transformar as práticas pedagógicas que reproduzem
cotidianamente discursos que reforçam estereótipos negativos de crianças negras
e comportamentos sociais indiferentes à comunidade negra. O movimento forma-
tivo proporcionará visibilidade de culturas negras e enfrentará a subalternidade
dessa população. A perspectiva de transformação da realidade ocorrerá mediante
as ações empregadas nos cotidianos dos CMEIs de Vitória, por meio de projetos de
intervenção pedagógica e na produção de conhecimentos provenientes dessas ex-
periências pedagógicas, que serão sistematizados nos seminários e na produção de
material didático pedagógico.
A população do estudo contempla os/as professores/as dos 49 CMEIs da rede
pública de Vitória, com duas vagas para cada instituição infantil. Temos a perspec-
tiva da amostra ser composta, por até, 98 professoras/es da Educação Infantil do
município, com formação em educação física, artes, pedagogia e assistentes de
educação infantil.
O período de desenvolvimento da formação continuada compreenderá as ex-
periências formativas com os tutores do projeto, que serão iniciadas em novembro
de 2020, e com as/os professoras/es participantes da formação continuada, que se-
rão realizadas de março de setembro de 2021. O projeto será submetido ao Comitê
de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal do Espírito San-
to (Ufes). Os participantes serão informados sobre a Pesquisa-Ação Colaborativa e
expressarão seu desejo de participar mediante assinatura do Termo de Consenti-
mento Livre e Esclarecido.
A formação continuada será realizada por meio da parceria entre Ufes e a Se-
cretaria Municipal de Educação de Vitória e ocorrerá em duas dimensões: uma
presencial e outra virtual. Considerando o cenário atual e os desdobramentos da
pandemia da Covid-19, vislumbramos a possibilidade de ofertar a formação total-
mente em ambiente virtual, ou seja, em formato não presencial. A formação con-
tinuada estará centrada no protagonismo dos participantes, em que os saberes de
natureza prática e teórica estabelecerão relações dialógicas e dialéticas, mediados
pelas experiências compartilhadas pelos sujeitos envolvidos.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 183


Artes, memória e espaços
Conforme o planejamento, a formação está organizada de 15 de março a 30 de
setembro de 2021, com uma carga horária de 100 horas, contemplando as seguin-
tes etapas: palestra de abertura, fóruns de discussões virtuais, seminário para a
produção textual, seminário sobre as experiências pedagógicas, com a participação
de pesquisadores reconhecidos dentro da produção e discussão étnico-racial e pu-
blicação de material didático pedagógico sobre relações étnico-raciais na Educação
Infantil, com base na formação vivenciada. Desta forma, a formação dialogará com
os cotidianos dos docentes por meio de suas práticas de escrita. Será proposto
que as/os professoras/es construam um projeto de intervenção com a temática
étnico-racial e, mediante acompanhamento pedagógico e tutoria, eles desenvolve-
rão o projeto pedagógico na dinâmica curricular dos CMEI que estão inseridos, no
primeiro semestre de 2021, concomitante ao processo de formação continuada. Os
participantes da formação e os tutores organizarão essas experiências pedagógicas
e produzirão relatos sobre elas, no formato de pôsteres e de comunicações orais.
Essas produções serão apresentadas no Seminário de Práticas Pedagógicas, como
também comporão o material didático-pedagógico, que será produzido como pro-
duto final dessa pesquisa.
Empregaremos a Análise de Conteúdo (AC), proposta por Bardin (2011), para
analisar os discursos e o material didático-pedagógico produzido por professo-
res(as) participantes da formação continuada. A AC incide sobre a mensagem escri-
ta, oral, gestual, silenciosa, figurativa e documental. Nesta pesquisa, focalizaremos
as mensagens escritas e orais, que serão sistematizadas no material didático-pe-
dagógico e nas entrevistas e, nesse processo, percorreremos os três polos crono-
lógicos propostos pela autora (pré-análise; exploração do material; inferência e
interpretação) a fim de compreendermos as mensagens trabalhadas.

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AUTORIA
Sarita Faustino dos Santos
Universidade Federal do Espírito Santo
E-mail: saritafaustino2015@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9101511415717571

André da Silva Mello


Universidade Federal do espírito Santo
E-mail: andremellovix@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1466918874732141

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 185


Artes, memória e espaços
PERSONAGENS NEGRAS NO LIVRO ILUSTRADO:
UMA ANÁLISE DA OBRA “O PRÍNCIPE DA
BEIRA”, DE JOSIAS MARINHO

Mariana Silva Souza


Débora Cristina de Araujo

INTRODUÇÃO
No contexto das produções literárias para crianças é possível compreender que,
historicamente, muitas narrativas contribuíram para a elaboração de estereótipos
acerca da população negra. Estudos como os desenvolvidos por Maria Anória de
Jesus Oliveira (2003), Heloisa Pires Lima (2005) e Maria Cristina Soares Gouvêa
(2005) apontam categorias recorrentes de estereotipia: subalternização, passivida-
de, pobreza, desamparo, feiura, entre outras. Também sobre as ilustrações, com-
ponente essencial do livro infantil, tais noções relacionadas à inferiorização são
reiteradas, conforme discutem Paulo Vinicius Silva e Fúlvia Rosemberg (2010), ao
constatarem, ao longo do século passando, a predominância de obras literárias com
personagens brancas ilustradas em contextos de valorização, enquanto negras fo-
ram representadas de modo depreciativo. Assim, reiterou-se a associação do cor-
po branco como modelo de humanidade: “a ilustração foi fonte privilegiada para
fixar a pertença que não precisa ser nomeada, pois as pessoas são ‘naturalmente’
brancas” (ROSEMBERG; SILVA, 2010, p. 112).
Diante desse quadro, a escolha de obras literárias para o trabalho com media-
ção de leitura demanda cuidados. A naturalização da ausência de protagonistas
negras nos livros infantis ou a utilização de obras que apresentam tal grupo racial
de modo estereotipado é um entrave, pois provoca uma lacuna na formação iden-
titária de crianças negras. Já o contrário produz impactos extremamente positivos,
como reflete Inaldete Pinheiro Andrade (2005, p. 120): “Se a pessoa acumula na
sua memória as referências positivas do seu povo, é natural que venha à tona o
sentimento de pertencimento como reforço à sua identidade racial”.
As histórias contadas para crianças e as imagens nelas presentes não deve-
riam invisibilizar ou destruir a humanidade de um povo. É imprescindível que as
personagens negras sejam representadas de modo digno, pois podem compor um
repertório múltiplo na memória dos leitores e leitoras em formação. Isso poderia
possibilitar reconhecimento para meninos e meninas negras, como também incitar
o respeito, em crianças brancas, aos distintos grupos raciais. Diante disso, a pro-
posta deste artigo é de discutir sobre a importância do texto visual na elaboração
de representações positivas de personagens negras. O objetivo é de analisar o livro

186 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
ilustrado1 “O príncipe da beira”, do ilustrador e artista-professor Josias Marinho
(2011).

OUTRO PRÍNCIPE, OUTRAS HISTÓRIAS


Para Luiz Camargo (2006, p. 27) é relevante refletir sobre a obra literária como
um objeto, pois existem “certas conotações e expectativas associadas ao suporte
material” que também devem ser analisadas. Tomando justamente tal perspectiva
analítica é que utilizamos como metodologia procedimentos propostos na tese de
doutorado deste autor, pois é um estudo que nos fornece recursos significativos
à interpretação das ilustrações em livros literários. Destacaremos três aspectos de
sua pesquisa: análise do suporte livro; análise das ilustrações; análise da relação
entre o texto verbal e o texto imagético.
O suporte compreende aspectos materiais da produção, como formatação, pa-
pel utilizado na impressão, formas e cores. A análise das ilustrações envolve a inves-
tigação dos enquadramentos, composições, cores, formatos, tamanhos, técnicas
utilizadas e relações estabelecidas com outras imagens, buscando compreender
os significados propostos pelos desenhos. A relação entre texto verbal e imagético
na obra constitui uma “co-laboração dos discursos verbal e visual, constituindo um
discurso duplo, um diálogo” (CAMARGO, 2006, p. 25).
Em “O príncipe da beira” tais aspectos serão investigados a partir da escolha de
algumas ilustrações. Esse livro, publicado em 2011 pela Mazza Edições, foi o pri-
meiro livro escrito e ilustrado por Josias Marinho. A narrativa apresenta memórias
do autor, nascido no estado de Rondônia, na cidade Real Forte Príncipe da Beira,
localizada à margem do Rio Guaporé. Próximo das águas desse rio vive o protago-
nista do livro que entende como seu reino a região onde mora.
Acerca do suporte da obra, o material utilizado na capa foi papel cartão de gra-
matura 250, enquanto as páginas do miolo foram impressas em papel offset com
120 de gramatura e característica fosca, atribuindo um aspecto artesanal às ilus-
trações.
Além disso, a fonte escolhida para compor o texto verbal foi grafada em cai-
xa-alta, o que facilita a leitura de crianças em fase de aquisição da leitura escrita.
Ademais, a cor das letras, que a exceção da capa e folha de rosto estão em azul
escuro, fazem direta referência ao rio, também representado em azul nas ilustra-
ções do livro.
Na contracapa são exibidos o nome da obra, do autor e a identidade visual da
editora em fundo vermelho. Para análises como a aqui empreendidas, informações
como essas (acerca de contracapa, folha de rosto) são relevantes pois, concordan-

1 Para a autora Sonia Pascolati (2017, p. 249) os livros ilustrados são produções lite-
rárias nas quais “palavra e imagem constituem um só todo de sentido”. Tratam-se de obras
que apresentam textos verbais e visuais em relação de interdependência na criação dos
significados da história.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 187


Artes, memória e espaços
FIGURA 2: CAPA DO LIVRO “O PRÍNCIPE DA BEIRA”, DE JOSIAS MARINHO

Fonte: Marinho, 2011.

FIGURA 3: FOLHA DE ROSTO DO LIVRO

Fonte: Marinho (2011, p. 1).


do com Sophie Van der Linden (2011, p. 61), constituem “um patamar convencio-
nal que precede a narrativa”.
Nessa página, também chama atenção a discreta e ordenada presença de cin-
co peixes ilustrados, cuja cor predominante é o branco. Pode-se inferir que essas
imagens moderadamente contextualizam a história e convidam o público leitor a
adentrar na narrativa proposta pelo autor.
As ilustrações internas são compostas por uma diversidade de técnicas e ma-
teriais: nanquim, serigrafia, colagem, papel de seda e lápis de cor. Predomina, nas
produções imagéticas de Josias Marinho, a cor preta (nanquim) para representar
a pele negra, utilizando a cor branca apenas para contornar as nuances dos cor-
pos. O efeito visual são pessoas ilustradas com feições e formas proporcionais e
simétricas. Essa técnica revela um salto de qualidade no uso da tinta preta para a
ilustração de corpos negros, já que, como discutido em outro estudo, “a cor preta
para ilustrar corpos de pessoas negras foi recorrentemente utilizada ao longo de
produções do século 20, mas com o propósito de realçar traços físicos de modo
estereotipado” (SOUZA; ARAUJO, 2020, p. 201-202). A figura humana negra dese-
nhada pelo artista apresenta equilíbrio na caracterização dos rostos, pois evita a
representação de lábios e narizes em dimensões exorbitantes. Esse modo de re-
presentar a pele negra pode apontar uma ressignificação da negritude em perso-
nagens ilustradas na literatura infantil.
Outra característica observada foi a predominância de um estilo ornamental, já
que as figuras apresentam muitas variações de técnicas, cores e formas, bem como
acabamentos minuciosos. A Figura 4, por exemplo, retrata o protagonista junta-
mente com seus irmãos, cujo laços familiares são realçados pelas vestimentas com
a mesma estampa, reiterando o sentido de pertencimento a uma comunidade. Por
outro lado, a individualidade de cada personagem é garantida, pois características
físicas como formato do rosto, dimensões de bocas, olhos, narizes e penteados nos
cabelos são distintas entre si. Além disso, as expressões faciais são diversas, bem
como outros aspectos como faixa etária e uso de adereços.
Na imagem seguinte o protagonista encontra-se sentado, sorridente e com os
olhos fechados (Figura 5). Tal desenho sugere ideia de uma criança que vivencia
sensações boas e experiências alegres, proporcionadas por sua imaginação.
O diálogo entre o texto verbal e a ilustração oferecem ao público leitor uma
interpretação aberta pois, embora seja mencionado que “a laranjeira vira balanço”
(MARINHO, 2011, p. 9), no plano imagético não é assumida a representação de
uma brincadeira específica, o que oferece a quem lê a possibilidade de imaginá-la.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dois aspectos são realçados neste estudo, cujo objetivo foi de analisar, ainda
que de modo sucinto, o livro ilustrado “O príncipe da Beira” (2011), de Josias Ma-
rinho, considerando a obra em sua materialidade e os desenhos que compõem a

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 189


Artes, memória e espaços
FIGURA 4: ILUSTRAÇÃO DO PRÍNCIPE COM SEUS IRMÃOS

Fonte: Marinho (2011, p. 12-13).

FIGURA 5: IMAGEM DO MENINO BRINCANDO

Fonte: Marinho (2011, p. 8).


história. O primeiro deles é o uso da cor preta com a finalidade de valorizar a negri-
tude do protagonista, incidindo em um avanço nas representações imagéticas de
personagens negras na literatura infantil.
O segundo aspecto de destaque é o reconhecimento de que tal obra, protagoni-
zada por uma criança negra, colabora para a criação de novas narrativas sobre in-
fâncias negras na literatura infantil pois exibe a criança negra em contextos perme-
ados por ludicidade, alegria e afeto. Eliane Debus (2017, p. 22) ressalta a relevância
desse aspecto ao discutir que “o contato com textos literários, que apresentam
personagens em diferentes contextos, ou a existência de escritores oriundos de
diferentes contextos, permite uma visão ampliada de mundo”. Assim, a experiência
de leitura de obras literárias que tematizam a cultural africana e afro-brasileira é
fundamental no contexto educacional, haja vista a formação de leitores e leitoras
cidadãs.
Acreditamos que os livros ilustrados, cujas personagens são negras, devem ser
observados com um olhar atento, de maneira tal a considerar as imagens expostas
nas produções. Portanto, reiteramos a importância de artistas comprometidas/os
com a criação de desenhos nos quais a qualidade estética ative sentidos lúdicos
e envolventes, como também retratem as crianças negras de modo respeitoso e
sensível.

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AUTORIA
Mariana Silva Souza
UFPR
E-mail: marianasouzza09@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2133-0028
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0063672781564386

Débora Cristina de Araujo


UFES
E-mail: deboraaraujo.ufes@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8442-3366
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3089785123426262

192 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
A ANCESTRALIDADE, IDENTIDADE E
REPRESENTATIVIDADE NEGRA NA LITERATURA
INFATO-JUVENIL: ZUMBI DOS PALMARES
Karla Cristina Eiterer Rocha

INTRODUÇÃO
Este trabalho tem como objetivo apresentar três leituras sobre Zumbi dos Pal-
mares dentro da literatura infanto-juvenil que consideramos essenciais, para o res-
gate da nossa história. Os livros narram a história do guerreiro negro, a partir da
perspectiva de resgates da identidade e da ancestralidade do povo afro-brasileiro,
ensinando as crianças e aos jovens sobre a representação e a representatividade
negra. As narrativas apontam, para ressignificações de valores atribuídos a identi-
dade e a cultura, na figura do herói negro de Palmares.
As leituras são diversificadas, tanto em termos de críticas, intenções discursivas,
representações artísticas e formas de narrar a história, pois temos um encontro de
múltiplas linguagens que parte da literatura, pois é nela, como destaca o crítico
Antônio Candido (2006) que encontraremos essa multiplicidade das linguagens,
esse espaço de profusão de narrativas, cada qual com a sua função social, da mes-
ma forma como salienta Bosi (2000) é nesse encontro das linguagens diversas que
podemos encontrar várias doações, de sentidos as quais podem nos permitir uma
visão ampla das maneiras de ler.
Sabemos, porém, que ainda segundo Munanga (2012) é preciso que se reconhe-
ça o pluralismo que há no Brasil, com relação ao tema racial, pois apesar da ciência
desmistificar esse mito da democracia racial, ainda é muito intenso o preconceito
e o racismo em situações cotidianas e o nosso papel, como agentes sociais é o de
trabalhar para que as mudanças aconteçam. Estas reconfigurações e reconstruções
nós também podemos encontrar em Homi Bhabha (2013), pois o autor reafirma a
importância do ser humano lidar com a diferença, conhecer outras mentes de for-
ma que evite as desigualdades e construam um projeto político de humanismo que
estabeleça como prioridade, conhecer e reconhecer o outro e percebam o quanto
podemos nos encontrar entrelaçados. As leituras das obras que apresentaremos,
com certeza, multiplicarão os olhares dos leitores e ressaltarão a importância do
compromisso que todos devemos ter e da valorização que deve ser dada ao sujeito
negro e sua inserção social.
A nossa leitura terá como foco a apresentação de três grandes livros. O primeiro
livro é o de Sônia Rosa ZUM ZUM ZUMBIIIIIIII, ilustrado por Simone Matias nos
oferece a oportunidade de conhecer profundamente o rei negro que brilha como a
noite e aponta para o combate aos estereótipos, reforçando também a luta contra
o racismo. O segundo livro ZUMBI DOS PALMARES: os tambores da liberdade do

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autor Maicon Tenfen, ilustrado por Jackson Gebien traz Zumbi como o imortal,
aquele que não poderia ser ferido por nenhuma lâmina, pois a sua vida era ligada
ao eterno toque do atabaque. E o terceiro livro ZUMBI, O MENINO QUE NASCEU E
MORREU LIVRE de Janaína Amado o qual foi ilustrado por Gilberto Tomé. Este livro
também dialoga com o tema retratado nos dois livros mencionados anteriormen-
te, pois aborda a vinda dos negros por meio dos navios negreiros, o nascimento
do rei Zumbi, as questões culturais e religiosas do povo afro-brasileiro e Palmares
como parte da África, lugar refúgio.

ZUM ZUM ZUMBIIIIIIII: A HISTÓRIA DE ZUMBI DOS PALMARES


PARA CRIANÇAS.
O nosso intuito é trazer para as discussões sociais, históricas e literárias, novas
leituras com visões positivas sobre Zumbi dos Palmares cuja representação dis-
cursiva se dá, pela escrita de autores da literatura infantil e juvenil. Propomos a
articulação de novas vozes baseada numa análise crítica e literária.
Zum zum Zumbiiiiiiii é uma história sobre Zumbi dos Palmares escrito por Sônia
Rosa com ilustrações de Simone Matias. A autora Sonia Rosa nasceu no Rio de Ja-
neiro. Ela é contadora de histórias, orientadora educacional, pedagoga e escritora
de literatura para crianças e jovens. Já foi contadora oficial de histórias de uma
brinquedoteca, situada nos jardins do Museu da República. E após fazer graduação
na área de cultura afro-brasileira, recebeu o diploma de “Orgulho Carioca” por sua
atuação na área da educação na cidade e foi homenageada com seis bibliotecas
que ganharam o seu nome.
O livro foi ilustrado por Simone Matias que nasceu em santos - São Paulo. É
ilustradora e professora de artes. Tem mais de cinquenta títulos publicados. Desco-
briu a ilustração de livros para infância em um intercâmbio como babá nos Estados
Unidos no ano 2000, e se apaixonou pelas lindas imagens que uma história pode
trazer. Em 2006, estudou ilustração na Scuola Internazionale d’ Ilustrazione, em
Sàrmede, Itália, e em 2007 ilustrou seu primeiro livro.
As ilustrações acompanham a sequência da narrativa. Tudo é belo e harmôni-
co de acordo com as imagens. Os aspectos da reescritura podem ser percebidos
através das imagens também. A família revive um dia que homenageia um líder
político-histórico, para o seu povo, os familiares enquanto preparam uma refeição
e se confraternizam também contam ao menino a história de desse líder.
A narrativa é introduzida pela palavra Zumbi, mas começa com um zunido que
parece s: “zum, zum, zum”... Zumbi. Zumbi é enaltecido no decorrer do projeto
textual por sua valentia e inteligência, reconhecido como alguém iluminado que
brilhava como a noite. A narrativa é marcada por um feriado que permite a toda
família estar em casa, por isso há bolo gostoso no forno e brincadeiras entre pai
e filho utilizando um peão que reproduz na palma da mão do pai este som “zum

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zum zum” que evoca também o “zum zum zum” da capoeira que o menino joga na
escola.
E o “zum zum zum” vem do vento da janela também fazendo o vento que se
pergunta será que vai chover? O vento parece cantar, assobiar na janela um sopro
que é o: Zum zum zumbiiiiiiiiiii, zum zum zum biiiiiiiiii, zum zum zum biiiiiiiiii. O ven-
to aparece sempre com seu assobio e chama esse iluminado e brilhante rei. Para o
menino nasce uma questão que faz a mãe depois de ouvir a música engraçada can-
tada pelo vento. Ele quer saber se Zumbi e o vento são amigos. (ROSA, 2016, p.4-5)
E a mãe naquele gesto acolhedor além de colocar o filho no colo acompanhado
de cafuné. Conta que Zumbi era sim amigo do vento, da capoeira, da música, do
pião, dos passarinhos e de tudo que fosse livre. Fazendo um passeio pela história
a mãe conta que Zumbi viveu num tempo em que alguns homens sem coração,
escravizavam outros homens cujas peles eram negras, muitos africanos e filhos de
africanos. Seres humanos que trabalhavam dia e noite sem descanso, eram muito
maltratados e não recebiam nenhum pagamento pelo trabalho que desempenha-
vam.
E ela, a mãe começa a falar sobre como era Zumbi: um rapaz bonito, forte, va-
lente que tinha a pele parecida com a cor da noite e que brilhava muito. Destacou
que era um ser iluminado, que sempre brilhou tão forte e brilha até hoje cada vez
que contamos a sua história. Disse também ao filho que ele não queria que o povo
do quilombo voltasse a ser escravizado.
O interesse do filho cresce e mãe narra o nascimento de Zumbi no quilombo
mais importante dos quilombos: Palmares. Explica para ele a finalidade de um qui-
lombo, lugar onde se refugiavam as pessoas que fugiam da escravidão e que bus-
cavam a liberdade. E disse a ele que existiam muitos quilombos, que se localizavam
em lugares altos em morros e bem escondidos nas matas. E a vida no quilombo vai
sendo retratada: cada um tinha um tinha sua casa e família. Todos trabalhavam,
cozinhavam, brincavam, cantavam, estudavam, colhiam, plantavam, faziam arte, e
eram muito felizes.
Então ela retoma a figura de Zumbi como um guerreiro, o mais forte, o co-
mandante que liderava os outros homens do quilombo, pois eles sofriam muitos
ataques de soldados dos governantes, ou pelos homens de confiança de muitos se-
nhores de escravos. Observou que Zumbi cuidava do Quilombo dos Palmares com
muita garra e dedicação dizia a mãe dando continuação à história, por isso os seus
feitos são conhecidos até hoje. Por isso é conhecido como o Zumbi dos Palmares.
Destacou que Zumbi não era muito bem quisto pelos que queriam escravizar as
pessoas e invadir o quilombo, pois seus inimigos sabiam que ele não tinha medo
de nada e de ninguém. E que defenderia seu amado povo até a morte, se preciso
fosse. Porém, Zumbi não viveu sempre no Quilombo de Palmares. Quando ele era
bebê, houve uma invasão em seu quilombo, destruíram tudo e o levaram. Assim,
não foi criado por sua família. Mas ele se tornou um rapaz que estudou e aprendeu
várias línguas e, assim voltou para sua gente e com eles foi lutar até o fim de sua

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vida. Por abraçar essa luta e essa causa a favor da liberdade de todos os escravi-
zados do Brasil é que se tornou essa pessoa tão especial para todos nós. E hoje
em vinte de novembro comemoramos o seu dia para que ninguém esqueça das
maldades que foram feitas contra nós e da luta deste grande homem contra os que
cometiam essas atrocidades. E juntos deram um viva a Zumbi! (Rosa, 2016)
Depois da história contada eles se abraçaram, longamente. E o menino disse a
mãe o quanto gostou da história, e até disse que Zumbi já era seu amigo. O bolo já
estava pronto, cheiro gostoso que perfumava a casa. O pai colocava a mesa, tinha
suco de laranja nos copos coloridos, mesa forrada com toalha bordada e muita
alegria pela casa! Muita poesia para todos os lados! E a cortina balançava com o
vento que entrava pela janela, livre, leve e solto... zum zum zum biiiiiiiii, zum zum
zum biiiiiiiiii, zum zum zum biiiiiiiii, um sopro, uma cantoria, um assobio: zum zum
zum biiiiiiii, zum zum zum biiiiiiiiii, zum zum zum biiiiiiiiii
Ao final do livro há uma página intitulada fato histórico que traz a data de no
nascimento de Zumbi dos Palmares no ano de 1655 em Alagoas. Aponta-o como
líder do Quilombo de Palmares e que lá a população alcançada foi de aproximada-
mente trinta mil habitantes. Ressalta que a população era livre, viviam de acordo
com sua cultura e produzindo o que precisavam para sobreviver.
Há também em seguida, uma informação que Zumbi nasceu livre, mas foi cap-
turado quando ainda era criança e entregue ao padre jesuíta Antônio Melo o qual
criou Zumbi batizando-o de Francisco. Ensinou-o latim, português, álgebra e a re-
ligião católica. Zumbi ajudava o padre até nas celebrações das missas, porém aos
quinze anos ele fugiu de Porto Calvo, para viver no Quilombo dos Palmares. Lá ele
deixa o nome de Francisco e passa a ser chamado de Zumbi. Ainda segundo esses
fatos históricos foram relatadas que o quilombo sofreu muitos ataques e que em
1694 o bandeirante Domingos Jorge Velho conseguiu atingir seu objetivo. E após
uma intensa batalha e a sede do quilombo ter sido atingida o (Macaco). Zumbi en-
contra-se ferido, mas consegue fugir, porém foi traído por um companheiro que o
entregou para as tropas do bandeirante. Foi morto em vinte de novembro de 1965.
Essa nota explicativa termina com a afirmação de que Zumbi é considerado um
dos grandes líderes da História do Brasil. Símbolo da resistência e da luta contra a
escravidão. Zumbi lutou pela liberdade de culto, religião e prática da cultura afri-
cana no Brasil Colonial. O dia de sua morte, vinte de novembro, é lembrado e co-
memorado em todo território nacional como o dia da consciência negra. (ROSA,
2016, p.27)

ZUMBI DOS PALMARES: OS TAMBORES DA LIBERDADE


O livro é escrito por Maicon Tenfen, filho de agricultores, cresceu em Itupo-
ranga Santa Catarina. Estudou no seminário são Francisco de Assis, próximo a sua
casa onde aprendeu o hábito da leitura e despertou o desejo pela escrita. Escreveu
alguns contos e novelas. E atualmente leciona literatura Brasileira na universidade

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de Santa Catarina. Promove palestras dedicadas à leitura e se dedica a escrever his-
tórias. O ilustrador Jackson Gebien é de Blumenau, mora em Penha de Itapocoroy,
Santa Catarina. Já ilustrou muitos livros e no momento trabalha com ilustrações
para muitos HQS e Digital Comics.
Nessa narrativa, Zumbi é apresentado como o rei imortal aquele que seria inca-
paz de ser ferido por uma lâmina, pois ele jamais morreria, independentemente,
do que lhe acontecesse. Sua vida estaria ligada a um toque de atabaque, enquanto
existisse toque o guerreiro nunca morreria, pois corria como o raio trevoso e zunia
como a flecha veloz. Ele era a própria luz, o chefe supremo, o nosso rei imortal e
Palmares era muito mais do que uma ideia, pois a resistência negra sempre iria
continuar.
A narrativa já traz inicialmente uma crítica à forçosa assimilação, quando men-
ciona pela voz do narrador-personagem que apesar da teimosia do homem branco
de chama-lo de Tiburcio, ele ainda lembrava seu verdadeiro nome: Tonga -o filho
do glorioso Bamboré - nobre da antiga nação Bantu, que se situa além-mar, a som-
bra de Ogun, senhor da guerra e de cada coração que hoje pulsa nas senzalas do
Brasil.
Esse negro está fugido do tumbeiro há dois anos. Aprendeu a língua, costumes
e ainda as falsidades do lugar, mas reluta para não esquecer suas origens tribais,
suas tradições e habilidades de caçador e pescador.
Vigiado por um homem o qual se refere de: Carcará, capitão do mato, negro
desavergonhado e traidor, cão dos brancos e verdugo da própria raça. Prepara-se
para subir a Serra da Barriga, mesmo após ouvir o tal homem tagarelar sobre os
quilombos serem destruídos e que a cabeça de Zumbi estaria exposta numa Praça
em Olinda. Comemoravam e mostravam, uma lâmina de um facão que teria mata-
do Zumbi, e supostamente rasgado carne dele....

“Não acredito, não. Inventaram essas mentiras para desanimar


nosso povo, para diminuir as fugas incontroláveis, às vezes até
em massa, que vem ocorrendo nos canaviais de Pernambuco.
Zumbi é o guerreiro que não morre nunca. Enquanto existir o
toque do atabaque, sua liderança ocupará cada recanto da mata
e da montanha. Ele corre como um raio trevoso, ele zune como
a flecha veloz. Zumbi é a luz. É a inspiração de nossa gente.”
(TENFEN, 2002, p. 4)

Para livrar-se da cadeia demorou muito tempo, gastando algemas, e como que
o feitor pressentia as fugas já mandava trocar as algemas por outras. O que aumen-
tava os anseios de liberdade, e antes que acabasse o ânimo, começou o trabalho
de desgastá-la de novo. Colocou-se a caminho, mesmo que indagado por um amigo
a respeito dos castigos, mas foi. Não se preocupou com as torturas que poderia
sofrer um fujão como: como ser açoitado por couro cru, castração, amputação de
membros do corpo, ou até ter todos os dentes quebrados por um martelo, se o in-
feliz fosse recapturado. Fez-se destemido e disse que ninguém iria deitá-lo no laço

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até que encontrasse Zumbi. Um irmão desejou-lhe a proteção de Xangô e pediu
para que seu caminho fosse iluminado e guiado.
E durante a fuga um temor que seus irmãos de cor pagassem por sua fuga lhe
veio à mente. Percebeu que podia estar sendo seguido, com sede e o corpo exausto
ainda prosseguiu. Ele sabia que por uma questão de tempo poderia ser encontrado
e como apoio relembra um provérbio que falava sobre não se desesperar, pois o
desespero poderia ser pior conselheiro de um fugitivo. Dormiu durante a caminha-
da e teve pesadelos ruins, mas logo chegou ao quilombo e avistou os seus irmãos
de cor. E seus olhos contemplaram: um mais velho, bem forte e bem altivo, com
marcas de origem tribal no seu rosto, outro mais jovem, mas já alinhado à nobreza
dos valentes. Eram os homens de Palmares. Ele não tinha dúvidas. E contou-lhes
que a última coisa que ouviu foi a voz do carcará.
Depois de conversarem descobriu, através de relatos dos palmarinos que o car-
cará aproximou-se bem de onde ele estava e que tinha o ameaçado, mas que um
grupo de guerreiros negros o salvou das mãos do maldito o qual de caçador virou
caça e foi obrigado a fugir. Camuanga se apresentou a ele e prometeram que ele
seria cuidado pelos irmãos. E disse-lhe que não era um delírio apontando o homem
a sua frente e dizendo-lhe que este era Zumbi, o poderoso de Palmares.
Dia após dia recuperava-se das feridas e acostumava-se melhor com a ideia de
estar ao lado do chefe supremo, do mais afamado negro dos quilombos. E tomou
coragem para perguntar ao rei sobre a veracidade da destruição de Palmares. Ele
fechou os olhos e confirmou gestualmente com a cabeça. Então percebera que
carcará havia dito a verdade, mas que não era uma verdade completa, pois Zumbi
estava vivo.
Zumbi ainda era destemido e insistente como nas histórias que contavam. Con-
tinuava vivo, seu braço ainda sustentava muito bem uma lança como ninguém.
Então ele dizia que por cem anos todos foram livres que os quilombos cresceram e
se fortaleceram, mas que por um erro de Ganga zumba que acreditou na promessa
de paz dos brancos, muitos palmarinos haviam sido traídos ao mudarem-se para o
vale do rio Cacahu.
Ainda assim, Palmares resistiu por um bom tempo. Muitas lutas aconteceram
e batalhas foram vencidas, mas com a chegada da Cora Portuguesa e o demônio
paulista Jorge Velho, muitas chacinas foram lideradas contra o quilombo. Porém
isso não impediu que ele renascesse. Muitos sobreviveram aos ataques e todas
as aldeias refizeram, pois estavam longe do fim e em breve sairiam das sombras
novamente.
Naquela semana Tonga tornou-se membro da comunidade de Palmares e Zum-
bi o arranhou com o oboé sagrado no peito e no braço esquerdo, molhou suas as
feridas esfregando lhe um pano bento e por fim entoou um canto de guerra. “O
quilombo não é apenas uma aldeia. É uma ideia. E isso só quer dizer uma coisa: a
resistência negra há de continuar!” (TEFEM, 2002, p. 23)

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Muitos anos depois, quarenta homens, quarenta guerreiros negros atacaram o
engenho de
D. Joaquim. Muitos bestificados e incrédulos, mal puderam reagir ao ataque. E
Zumbi foi a caça do Carcará. A casa-grande pegou fogo. E aconteceu um confronto
entre o bem e o mal, um duelo entre Zumbi e o Carcará, o guerreiro das trevas con-
tra o guerreiro da luz. Zumbi e Carcará eram dois mestres da ginga africana. Zumbi
lutava mais por baixo, com movimentos longos e rápidos como uma serpente. E
Carcará atacava pelo alto como um amigo da traição, usava golpes secos, desritma-
dos e tinha no punho uma faca. Zumbi não sentia medo de seu oponente, mas ele
ao contrário mostrava uma face assustada.
Então, zumbi perguntou a ele se não o reconhecia. E ele não acreditava que
Zumbi ainda pudesse estar vivo. Quando Carcará viu ao seu redor o engenho pe-
gando fogo, pensou em fugir, mas sabia que os outros negros poderiam interferir.
E fala que se não havia acabado com Palmares antes iria fazê-lo naquela hora.
Correu contra Zumbi impondo-lhe a faca que tinha no punho, mas Zumbi fez com
que ele caísse no chão. O oponente se levantou espumante, avançou, benção de
peito armada e veloz. Zumbi se abrigou no rente da terra foi como se pudesse se
esconder da visão do inimigo.
Zumbi muito bem equilibrado, antes de ser novamente atacado pelo inimigo,
girou-se com destreza e fez seu golpe explodir no pescoço do adversário. Girou
rapidamente, dessa vez um giro imortal. E disse-lhe que depois de todo mal que
havia feito a ele e a seus irmãos eis que chegava o seu fim. A luta se encerrou, toda
destruição acabou. Zumbi retirou seus homens e seguiram para Palmares, levaram
com ele alguns irmãos que ainda eram cativos naquele lugar e até crianças mesti-
ças, filhas dos fazendeiros brancos, tinham nomes de brancos, mas a partir daquele
momento receberiam os seus nomes africanos, haveriam de aprender e respeitar
as tradições do quilombo. E nessa noite a floresta entoou um canto de júbilo, eles
podiam sentir. Todos eles sob a liderança de Zumbi, o rei imortal, finalmente pode-
riam cantar, dançar e tocar os seus tambores- os eternos e incansáveis tambores
da liberdade.
Percebemos que há uma reescrita da versão hegemônica da História nessa nar-
rativa. É interessante ressaltar como os boatos foram desmistificados. As lacunas
foram preenchidas por essa versão ficcional que dá a Zumbi o direito de saber o
que falam sobre ele, através de um irmão de cor, que mesmo ouvindo tais versões,
não acredita, confia na imortalidade do rei e segue para Palmares. Zumbi prova
sua imortalidade resgata o seu povo e mantêm Palmares vivo.
As ilustrações comungam com a ideia de reescrita da versão hegemônica. São
dez imagens que acompanham o texto sequencialmente. Traços próximos à reali-
dade africana o que pode ser observado como uma tentativa de exaltar e marcar a
identidade deste povo.

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Artes, memória e espaços
ZUMBI, O MENINO QUE MORREU E NASCEU LIVRE.
O livro Zumbi o menino que nasceu e morreu livre foi escrito por Janaína Amado
e ilustrado por Gilberto Tomé. A narrativa começa narrado sobre a liberdade de
Zumbi o qual havia nascido livre e corria solto pela mata totalmente livre: subia e
descia de árvores, lutava capoeira e empinava pipas coloridas dessas do rabo bem
cumprido. Gostava de rodar peão e de cantar para os orixás: os deuses que seus
antepassados tinham trazido da África e cultuavam no Brasil. Porém, um dia sua
liberdade foi tomada. Foi capturado e levado para longe de tudo e de todos, para
um lugar desconhecido.
No entanto, esse menino nunca se esqueceu de sua gente. Logo que teve uma
chance, ele fugiu. Por meio da história de Zumbi dos Palmares acompanhamos a
historia de povo um povo contra a escravidão e a sua luta inalcançável pela liber-
dade. Um dia, o menino que já era um homem, foge e volta para o seu povo. Lutou
em defesa de Palmares e se tornou líder do Quilombo.
Quando foi capturado foi ofertado a um padre o qual lhe criou e com ele apren-
deu a ler e escrever. Aprendeu até a rezar uma missa católica. Foi ainda batizado
pelo padre e ganhou um novo nome, um nome cristão: Francisco. O desejo do
padre era que ele também usasse uma batina um dia e que no futuro ensinasse a
religião católica, para os escravos (AMADO, 2014, p.7)
Zumbi aprendeu tudo sobre os homens brancos, costumes, língua e religião. Já
conhecia seus pensamentos e podia imaginar como agiriam diante dos aconteci-
mentos, o que foi de grande valor para suas estratégias de guerra.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que essas narrativas fazem questão de nos mostrar é que Zumbi não pode e
não deve ser esquecido, sua história como líder nunca pode ser esquecida. Ela pre-
cisa ser assou a ser contada e recontada, a cada dia mais e mais, de boca em boca
e por todos os lugares. As notícias de suas vitórias devem ser espalhadas como o
vento. Ele foi um grande guerreiro, um herói, amado pelos negros e odiado pelos
senhores de escravos. Seu objetivo era muito maior do que lutar por Palmares.

Ficou marcado na História por não aceitar acordos com os brancos e lutava para
que todos fossem libertos, não apenas os palmaristas, lutava contra tudo e contra
todos, para que não existisse mais escravidão. Suas peripécias se tornaram letras
de música, livros, séries de televisão, filmes e documentários. E até nas escolas
brasileiras finalmente, passou a ser estudado.
Zumbi se tornou uma inspiração para todos nós os brasileiros: crianças, jovens e
adultos! Ele inspira resistência e nos da força, para lutar contra as injustiças e para
almejarmos um país com mais igualdade. Sua trajetória de vida mostrou o quanto
é importante lutarmos pelos nossos sonhos e perseverar!

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Artes, memória e espaços
REFERÊNCIAS

AMADO, Janaína. Zumbi o menino que nasceu e morreu livre. São Paulo: Formato, 2012.
BHABHA, Homi K. O local da cultural. 2. ed. Belo Horizonte: UFMG, 2013.

BERND, Zilá. Introdução à literatura negra. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988. BERND,
Zilá. Literatura e Identidade Nacional. Porto Alegre Editora da UFRGS, 2011. BOSI, Alfredo.
Literatura e Resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

BRAZ, Júlio Emílio. Zumbi: O despertar da liberdade. Rio de janeiro: Memórias Futuras
Edições, 1995.

CANDIDO, Antônio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 2.ed. São
Paulo: Companhia Editorial Nacional,1957.

CANDIDO, Antônio. O escritor e o público. In: . Literatura e sociedade, 12 ed. Rio de Ja-
neiro: Ouro sobre Azul, 2011.

DEBUS, Eliane Santos. A literatura infantil contemporânea e a temática étnico-racial: ma-


peando a produção. Anais do 16º Congresso de Leitura do Brasil - Seminário de Literatura
Infantil e Juvenil, 2007.

ROSA, Sonia. Zum zum Zumbiiiiiiii: A história de Zumbi dos Palmares para crianças. Rio de
Janeiro: Pallas, 2016.

TENFEN, Maicon. Zumbi dos Palmares: os tambores da liberdade. São Paulo: Sivadi Edito-
rial, 2002.

AUTORIA
Karla Cristina Eiterer Rocha
Universidade Federal de Juiz de Fora
E-mail: karlaeiterersanrana78@gmail.com
Lattes: https://wwws.cnpq.br/cvlattesweb/PKG_MENU.menu?f_cod=1B-
C0285224140411646B95C13139451F

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Artes, memória e espaços
A LITERATURA INFANTIL E A TEMÁTICA ÉTNICO-
RACIAL: (RE)OCUPANDO ESPAÇOS E (RE)
FAZENDO HISTÓRIAS
Cristiane Veloso

INTRODUÇÃO
Temos podido observar que a Literatura Infantil e Juvenil vem ganhando cada
vez mais espaço nas prateleiras, nos projetos escolares e também nas pesquisas
acadêmicas. Tal fato pode ser considerado um avanço, tendo como premissa o
histórico desprivilegiado da Literatura feita para crianças e jovens, sobretudo da-
quelas voltadas para a temática negra.
Com base nesse cenário, optamos por pesquisar a Literatura Infantil com temá-
tica étnico- racial em que personagens negras aparecem como protagonistas ativas
da narrativa. Para o presente trabalho selecionamos como objeto de análise, duas
obras infantis que apresentam releituras de clássicos infantis muito conhecidos
pelas crianças, são elas Chapeuzinho e o leão faminto e Pretinha de Neve e os sete
gigantes. As referidas adaptações, além do protagonismo negro, trazem suas nar-
rativas para o contexto africano, apresentando elementos culturais relacionados à
África como pano de fundo para o enredo e para as novas inserções, o que dialoga
diretamente com os pressupostos da Lei 10.639/03.
A relevância das presentes versões está no fato de que a criança negra tem a
possibilidade de se ver retratada em um conto de fadas, não apenas em substitui-
ção de uma personagem branca por uma negra, mas por todo o contexto negro
que contemplam as obras.
A representação de personagens negras na Literatura Infantil sempre foi mar-
cada pela presença de estereótipos racistas, por subalternidades e silenciamento
de suas vozes. No entanto, nos últimos anos é possível observar uma mudança
significativa deste padrão, fato que pode ser comprovado a partir de pesquisas
acadêmicas como as de Débora Araujo, Eliane Debus, Maria Anória entre outras.
A representação positiva de crianças negras na literatura é essencial para sua afir-
mação identitária bem como para seu empoderamento diante de uma sociedade
eurocêntrica e racista.
Não temos dúvidas de que é urgente a construção de uma prática antirracista,
pautada no respeito às diferenças, sejam elas étnico-raciais, identitárias, culturais
ou religiosas, e para isso, entendemos a literatura como facilitadora deste pro-
cesso, uma vez que ela pode ser provocadora de questionamentos e de reflexões
acerca da realidade. Acreditamos que os livros aqui apresentados podem colabo-
rar bastante neste sentido, uma vez que confrontam padrões de representações

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Artes, memória e espaços
distorcidos e promovem uma identificação positiva entre as personagens e os pe-
quenos leitores.

A TEMÁTICA ÉTNICO-RACIAL NA LITERATURA INFANTIL


A temática étnico-racial vem ganhando cada vez mais espaço nas publicações
voltadas ao público infantil, sobretudo a partir da criação da lei 10.639/03, lei fede-
ral que torna obrigatório o ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira
nas escolas públicas e privadas. A referida lei acabou fomentando o mercado edito-
rial brasileiro a produzir obras literárias que pudessem contribuir com a construção
identitária de crianças negras dentro e fora da escola. Não haveria maneira melhor
de apresentar a história e a cultura afro-brasileira e africana às crianças senão atra-
vés da literatura.
Acreditamos que a literatura é capaz de proporcionar ludicidade, conhecimen-
to, trocas culturais, reflexões, construção identitária, deleite e encantamento. De
acordo com a professora e pesquisadora Eliane Debus, o caráter simbólico da li-
teratura pode contribuir para reflexões que rompam com a desigualdade étnica
e para a construção de uma visão que contemple a valorização da diversidade. “A
identificação com narrativas próximas de sua realidade e com personagens que
vivem problemáticas semelhantes às suas leva o leitor a re-elaborar e refletir sobre
o seu papel social e contribui para a afirmação de uma identidade étnica” (DEBUS,
2007, p.1).
A literatura, de uma forma geral, auxilia na compreensão do mundo e das rela-
ções humanas através da exposição dos contextos sociais existentes. Ou seja, por
meio do texto literário, o indivíduo pode ter contato com a realidade que o cerca
e, assim, ser capaz de elaborar e reelaborar melhor suas questões a respeito de
si, do outro, do mundo e da vida. Para a doutora em educação Eliane Cavalleiro
“compreende-se que o reconhecimento positivo das diferenças étnicas deve ser
proporcionado desde os primeiros anos de vida” (CAVALLEIRO, 2006, p.26).
Portanto, é de suma importância que os livros infantis com temática étnico-ra-
cial prezem por uma qualidade estética, imagética e narrativa bem como romper
com o padrão antigo de apresentar os personagens negros em atividades subalter-
nas ou em posição de inferioridades perante a vida à sociedade.
A ausência do protagonismo negro na Literatura é fruto de inúmeras pesquisas,
dentre elas destacamos os apontamentos do ensaísta Cuti (2010) que corroboram
com a justificativa da existência de uma vertente negra da Literatura brasileira.
Segundo o autor, quando as questões sobre a presença do negro são observadas
na literatura, encontramos, em sua maioria, textos escritos por pessoas brancas,
as quais descrevem as negras de forma caricaturadas. As descrições perpassam por
aproximação com objetos, e animais. A maioria das personagens são apresentadas
como aquelas que não têm histórias, não têm família e não há uma explicação a

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 203


Artes, memória e espaços
respeito das suas origens. São textos que agridem a humanidade do negro e essa
agressão se sustenta a partir de falácias advindas do racismo.
O protagonismo e a representação positiva de personagens negras, sobretudo
para as crianças negras é de total relevância, tendo em vista que o período da in-
fância é cunhado de descobertas e significações que serão a base para a constitui-
ção destas enquanto indivíduos.
Temos buscado, atualmente, inserir nas várias áreas da educação o trabalho
com a identidade positiva das crianças negras, com a intenção de mudar esse ce-
nário que sempre foi aliado à escravidão, à discriminação e à pobreza. Precisamos
construir cidadãos que tenham consciência da sua identidade, da sua história, da
sua ancestralidade, para que com isso a sua autoestima seja desenvolvida e no
futuro essas crianças busquem seus lugares dentro da sociedade, ressignifiquem
os valores que foram atribuídos a elas, sejam agentes dessa mudança mostrando a
todos que o que importa são os múltiplos saberes e que não devemos preterir, ex-
cluir ou diminuir qualquer tipo de cultura. Diante disso ressaltamos a importância
de trazer a história e a cultura do continente africano para as crianças negras da
diáspora.
A literatura infantil que retrata temáticas africanas preocupa-se com o resgate
do passado para transformar o futuro e mantém um diálogo constante com a crí-
tica que busca novas formar de ver e de ler, atentando-se sempre para a descons-
trução de estereótipos, o combate ao racismo e para a destruição dos muros que
foram construídos entre as culturas e a humanidade.

CHAPEUZINHO E O LEÃO FAMINTO


O livro Chapeuzinho e o leão faminto é uma publicação da editora brinque-book,
foi escrito pelo autor e ilustrador inglês Alex T. Smith e traduzido por Gilda de Aqui-
no. Alex tem vários livros publicados e traduzidos para vários idiomas, alguns como
autor e ilustrador e outros apenas como ilustrador. No Brasil foi publicado também
pela Companhia das Letras e alguns de seus livros são bem conhecidos das crian-
ças. Em 2015 seu livro O convidado da Raposela integrou o elenco de obras sugeri-
das pelo MEC no PNLD/PNAIC – Programa Nacional de alfabetização na idade certa.
Apesar de se tratar de um autor branco e não brasileiro, em Chapeuzinho e o
leão faminto, Alex consegue abordar a temática racial e as referências da cultura
afro-diaspórica de forma muito divertida e bem construída, com ilustrações que
favorecem a beleza e a representatividade, fugindo dos estereótipos racistas ainda
encontrados em muitos livros dessa área. Chamo a atenção para este fato porque
temos pesquisado a literatura infantil há algum tempo e acreditamos que seja pos-
sível que autores e ilustradores brancos possam sim fazer um trabalho respeitoso
e contemplar a identidade negra de forma adequada. Claro que não se trata da
maioria, para confirmar nossa tese levamos em consideração a receptividade das

204 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
obras pelas crianças e, observando suas reações e relatos, verificamos alguns casos
bem positivos.
Como o próprio título já insinua, o livro traz uma releitura bem humorada do
clássico Chapeuzinho vermelho de Charles Perrault. Na narrativa original, ao le-
var doces para sua avó doente a menina do capuz vermelho encontra um lobo no
caminho e daí se constrói todo o enredo da história. No livro de Alex não há uma
menção clara à cor vermelha, mas é possível observar que a menina usa um vestido
vermelho e laços no cabelo da mesma cor. Outro diferencial é que nesta releitura
a menina visita uma tia, a tia Rosa, e não sua avó. No caminho ela encontra um leão
(animal comum na Savana africana) e não um lobo.
O caminho da casa de Chapeuzinho até a casa de tia Rosa era longo, assim como
na história original não era um caminho urbano, trata-se de um caminho em meio a
natureza. O livro de Alex traz a menina passando por diversas paisagens e animais
africanos, como girafa, crocodilos, elefantes, suricatos, javalis e etc. Até que, ao
parar para descansar debaixo de uma árvore, aparece um leão. O leão, assim como
o lobo, apresenta traços humanizados e fala com a menina.
O plano do leão era comer a chapeuzinho e sua tia Rosa. A ilustração desse pla-
no é uma atração a parte, as crianças se divertem bastante e mesmo as que ainda
não sabem ler conseguem identificar as intenções do lobo pelas imagens. O leão
então inicia seu plano “muito esperto”, como ele mesmo diz, chegando na casa de
tia Rosa antes de Chapeuzinho. Ele a esconde dentro do armário e se veste com sua
camisola. Ao chegar na casa da tia a menina logo percebeu que se tratava do leão,
ela olhou ao redor e conseguiu ver sua tia pela fresta do armário. Então ela decidiu
dar uma lição no leão malvado. Neste ponto da história, podemos observar uma
característica muito importante que o autor imprimi na personagem, a esperteza,
a inteligência e a experiência de vida. A menina não é ingênua a ponto de se deixar
iludir por um leão vestido com roupas de gente e logo resolve dar o troco, salvar
sua tia e acaba se tornando a heroína da história. Essa capacidade da menina em
resolver a trama da narrativa, se mostrar tão empoderada e terminar vitoriosa
desperta das meninas negras leitoras um deslumbramento e uma identificação po-
sitiva com a personagem.
Para dar o troco no leão, Chapeuzinho começa fazendo trancinhas em sua juba,
um típico penteado africano. Claro que a motivação faz alusão ao clássico diálogo
entre Chapeuzinho vermelho e o lobo: “Que olhos tão grandes!” “Para que essa
boca tão grande?”. Aqui a menina exclama: “Que cabelo despenteado!”. E daí ini-
cia sua vingança. Imagine um leão com a juba cheia de tranças... as crianças se
divertem.
Na sequência, ao observar a boca do leão, chapeuzinho se espanta novamente:
“Que dentes sujos e podres você tem, tia!” e começa a escovar os dentes do ani-
mal. Depois resolve trocar a roupa dele por uma outra mais bonita... até que o
leão, desesperado, grita: “Pare!”. Chapeuzinho não se intimida diante do leão e,
apontando-lhe o dedo, diz que suas atitudes não foram boas e que, estando fa-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 205


Artes, memória e espaços
minto, bastava pedir comida e não sair por aí tentando comer as pessoas. O leão
pede desculpas e, junto com a menina e tia Rosa, agora livre do armário, saboreiam
um delicioso lanche. Mas não acaba por aí, Chapeuzinho ainda precisará intervir
na conduta no leão mais uma vez, mas não vamos contar aqui para não estragar a
surpresa do livro.
Para finalizar queremos ressalvar mais alguns pontos positivos desse livro:
todos os personagens são negros, bem desenhados, sem traços estereotipados;
apresentam elementos da cultura negra africana como penteados afro e animais
africanos; o protagonismo da menina negra e a potência de suas atitudes e de seu
discurso, sua superioridade para com o leão; os elementos divertidos da narrativa
e a utilização da temática negra não apenas como base para a construção narrativa
mas sim como um recurso para desenvolver identidade, autoestima e empodera-
mento de crianças negras.

PRETINHA DE NEVE E OS SETE GIGANTES


Pretinha de neve e os sete gigantes é mais um trabalho incrível do renomado
ilustrador Rubem Filho, que a partir desta obra inaugura sua carreira como autor.
No título já é possível identificar que se trata de uma versão do clássico Branca de
Neve e os sete anões, história que, originalmente, vem da tradição oral alemã e foi
reescrita pelos Irmãos Grimm. O conto passou por várias versões, o que é comum
em narrativas orais, e esta versão de Rubem Filho não deixa nada a desejar para as
outras trazendo elementos inovadores, de cunho histórico-cultural.
A versão apresentada por Rubem Filho traz a história para o cenário africano
e mistura ficção e elementos reais para construir um imaginário lúdico e simbólico
para as crianças negras. Já no começo o autor situa a história no Monte Kilimanjaro,
na África, e ainda chama a atenção para o leitor de que na África também há neve.
Um rei e sua família vivem num belo castelo no alto da montanha. Observa-se aqui
uma forma de desconstruir o imaginário sobre o continente africano como sendo
um lugar quente e pobre.
A personagem principal do livro se chama Pretinha, em contraponto com a per-
sonagem clássica que se chama Branca. Pretinha não tem uma madrasta e sim
um padrasto, um rei africano que se casou com sua mãe por conta de seus dotes
culinários. A menina se sentia triste pois o padrasto era um homem convencido,
mandão e muito arrogante e a mãe não tinha tempo para ela, pois passava o tempo
todo na cozinha preparando doces para o marido.
Um dia a menina resolveu sair de casa, um lugar muito “gelado” como ela mes-
ma diz, e conhecer o mundo. Podemos entender a frieza mencionada pela menina
tanto em questões termológicas como pelas atitudes dos moradores, a falta de
demonstrações de afeto e interação entre eles. Assim como na história de Alex
Smith, a personagem vai passar por várias paisagens e animais africanos ao longo
de sua jornada.

206 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
FIG. 1 – O PLANO DO LEÃO

FIG. 2 – CHAPEUZINHO E O LEÃO

Fonte: Smith, 2019


FIG. 3 – PRETINHA E O TACHO DE COBRE

FIG. 4 – REFERÊNCIA A ANIMAIS AFRICANOS

Fonte: Filho, 2013.


Outras inovações desta versão estão no fato de substituir o famoso espelho por
um tacho de cobre falante que conversa com Pretinha na cozinha do castelo, lugar
onde a menina passada boa tarde do tempo acompanhando sua mãe. Ao sair pelo
mundo Pretinha encontra sete gigantes e não sete anões como no conto clássico.
Um dado curioso é que os gigantes é que pensam que a menina era uma anãzinha.
Porém, algo em comum com o original conhecido das crianças são os nomes, os
sete gigantes possuem os mesmos nomes dos sete anões. O autor é muito criativo
e utiliza a metalinguagem em alguns momentos e a alusão a vários outros contos
clássicos como Chapeuzinho vermelho, Cachinhos dourados e Alice no país das ma-
ravilhas.
Pretinha depois de algum tempo já estava adaptada e feliz junto dos seus ami-
gos gigantes, mas sua mãe sofria por ela no castelo. Ao saber, pelo tacho de cobre,
que a menina estava infeliz e fugira de casa o rei desce a montanha para procurá-la.
Em princípio muito bravo e nervoso mas ao longo do caminho seus sentimentos
foram mudando e ele percebia que há muito tempo não via nem sentia as belezas
de fora do castelo, e já mais sensibilizado, chegou até a casa dos gigantes. Ofereceu
à menina um doce encantado (não era uma maçã) mas logo percebeu que o doce
havia derretido com o calor. Ao ouvir sua voz, Pretinha logo o reconheceu e ficou
feliz com sua chegada.
Ao retornarem do trabalho os gigantes estranharam aquela figura, outro “nani-
co”, mas logo eles perceberam que o rei também era um homem triste e que a vida
na montanha gelada não deveria ser muito boa mesmo. Eles sugeriram construir
um novo castelo ali mesmo para que a família pudesse recomeçar. O rei aceitou e
assim foi feito. Pretinha de neve passou a viver feliz ao lado de sua mãe, do padras-
to, de seus novos amigos e o do tacho falante.
A trama narrativa traz pontos divertidos e intrigantes nos diálogos que envol-
vem tanto o tacho quanto os gigantes. Optamos por explanar aqui somente a ideia
central do texto sem fazer citações das partes comentadas. Deixamos como suges-
tão que todos leiam o livro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Gostaríamos de reiterar a necessidade de apresentar às crianças negras livros
infantis em que personagens negras apareçam como protagonistas. No entanto
não apenas que elas tenham o papel principal mas que esse protagonismo traga
um sentido de importância e valorização para essas crianças. Segundo o dicionário
a palavra protagonista significa aquela em torno da qual se constrói uma narrativa.
No entanto, acreditamos que a literatura com temática étnico-racial precisa ir mui-
to além deste sentido de protagonismo.
O protagonismo negro deve ser aquele capaz de provocar emoções positivas,
expectativas de futuro e capacidade de escolha em nossas crianças negras. Se ver
retratada numa obra, mas sem que essa representação lhe traga alguma identifica-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 209


Artes, memória e espaços
ção positiva, não promove o que queremos propor sobre protagonismo. Protago-
nismo pressupõe ocupar espaços antes negados e escrever ou reescrever sua vida
de acordo com seus desejos mais profundos.
Em ambos os livros apresentados neste artigo, o protagonismo negro é eviden-
te. Não há apenas uma inserção de papeis principais, mas sobretudo, atitudes e
convicções são trabalhadas a partir das personagens. Aspectos emocionais, sociais e
culturais são organizados de forma a prender a atenção da criança e despertar iden-
tificação e identidade. Isto sim é o protagonismo de fato, e só desta forma conse-
guiremos impactar o leitor e promover autoestima e empoderamento nas crianças.

REFERÊNCIAS

CAVALLEIRO, Eliane. Do Silêncio do lar, ao silêncio escolar: racismo, preconceito e discri-


minação na educação infantil. São Paulo: Contexto, 2006.

CUTI. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro Edições, 2010.

DEBUS, Eliane Santos. A literatura infantil contemporânea e a temática étnico-racial: ma-


peando a produção. Anais do 16º Congresso de Leitura do Brasil - Seminário de Literatura
Infantil e Juvenil, 2007.

FILHO, Rubem. Pretinha de Neve e os Sete Gigantes. 4ª. ed. São Paulo: Paulinas, 2013.

SMITH, Alex T. Chapeuzinho e o leão faminto. Tradução: Gilda de Aquino. São Paulo: Brin-
que-Book, 2019.

AUTORIA
Cristiane Veloso de Araujo Pestana
Universidade Federal de Juiz de Fora
E-mail: cristianeveloso.78@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0543012796161285

210 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
JOGOS DE TABULEIRO
DE TRADIÇÃO AFRICANA NA ESCOLA
Renan Bispo dos Santos Silva
Denise Aparecida Corrêa

INTRODUÇÃO
O presente trabalho é fruto de pesquisa1 realizada no âmbito da Educação para
as Relações Étnico Raciais, tendo como premissa o direito de todas as pessoas, in-
dependente da origem étnica, cultural e religiosa se sentirem pertencentes, repre-
sentados e acolhidos em suas diferentes raízes culturais na Escola.
Há mais de uma década, as Leis 10.639/03 e 11.645/08 (BRASIL, 2003; 2008) que
estabeleceram a inclusão da História e Cultura Africana, Afro-Brasileira e Indígena
nas redes de ensino, fazem parte de um conjunto de políticas implementadas para
assegurar que, conhecimentos e saberes tradicionais de povos que historicamente
foram suprimidos e invisibilizados, sejam reconhecidos e apreciados na escola.
Tais conquistas não se fizeram sem luta e resistência que acompanham os mo-
vimentos sociais liderados pela população negra e indígena, assim:

Vale reafirmar que a preocupação do Movimento Negro e das


organizações indígenas com a educação, com o currículo escolar
e a formação dos educadores não nasceu ontem. Há décadas,
e de forma mais incisiva nos últimos dez anos, vários olhares
têm se voltado para a questão das relações, dos cotidianos, das
situações surgidas em sala de aula, apontando o quanto ocorre
de discriminação no espaço escolar, e também as dificuldades
dos agentes educativos (professores, diretores, coordenadores
pedagógicos, agentes escolares, equipe administrativa) em lidar
com tais situações. (BRASIL, 2009, p. 252).

As crianças no Ensino Fundamental possuem, como sujeitos culturais e histó-


ricos, experiências próprias de vida, em que os mesmos devem ser problematiza-
dos e absorvidos pela escola. De acordo com a Base Nacional Comum Curricular
(BNCC), a Educação Física busca a qualificação para a leitura, produção e vivência
de práticas corporais as quais se organizam em: brincadeiras e jogos, danças, es-
portes, ginásticas e lutas (BRASIL, 2016).

1 Trabalho de Conclusão de Curso intitulado “Jogos de tabuleiro


africanos na educação física escolar: possibilidades pedagógi-
cas”, de autoria de Renan Bispo dos Santos Silva, sob orientação
da Profa. Dra. Denise Aparecida Corrêa apresentado a Faculdade
de Ciências da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesqui-
ta Filho” – Campus de Bauru, como requisito para conclusão do
Curso de Licenciatura em Educação Física.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 211


Artes, memória e espaços
Em um país onde 55% da população é negra (IBGE, 2017) sendo o primeiro país
com maior população negra fora da África e o segundo país no mundo, perdendo
para a Nigéria (TRIUMPHO, 2004), é importante tratar da história e culturas africa-
nas de forma valorizada e positivada nas escolas.
É neste sentido que os objetivos da Educação Física se dão no Ensino Funda-
mental, trabalhando com os estudantes a valorização, conhecimento e apreciação
das diferentes manifestações de cultura corporal, refletindo acerca das origens his-
tóricas e culturais de tais manifestações, percebendo a diversidade como riqueza
para construção de uma sociedade justa e solidária (BRASIL, 1997).
Em relação aos jogos africanos, concordamos com Prista; Tembe; Edmundo
(1992) que ao retratar aqueles praticados em Moçambique, concebem o jogo
como uma: “actividade profundamente enraizada nas características da sociedade
moçambicana, cujo estudo deverá considerar o facto de que a sociedade de onde se
observam os jogos se caracteriza por uma simbiose de influências culturais” (p. 9).
Alinhados com essa concepção e na perspectiva de trazer tais conhecimentos
de forma valorizada no contexto escolar propomos intervenção com dois jogos de
tabuleiro africanos, denominados Yoté e Senet, concebendo-o como patrimônio
sociocultural, uma vez que são portadores de conhecimentos valiosos, transmitidos
por gerações através da oralidade e expressões pictóricas, perpetuando a memória
dos saberes tradicionais africanos.
Assim este estudo tem por objetivo refletir acerca de uma experiência envol-
vendo confecção e vivência dos jogos de tabuleiro de origem africana “Yoté” e
“Senet” nas aulas de educação física no ensino fundamental.

JOGOS AFRICANOS: UM OLHAR PARA A DIVERSIDADE


CULTURAL NA ESCOLA
A Educação Física como componente curricular obrigatório na Educação Básica
tem buscado cada vez mais tratar seus conteúdos no âmbito da cultura de movi-
mento, ou seja, o jogo é um conteúdo que deve ser tratado em seus referenciais
históricos e culturais.
No contexto brasileiro tais referenciais são plurais, ou seja, atravessados pela
contribuição de diferentes povos: africanos, asiáticos, europeus e indígenas, confi-
gurando a Escola como um espaço marcado pela diversidade cultural e, ao mesmo
tempo, por supervalorização de determinadas culturas em detrimento de outras.
De acordo com Munanga (2015) a história do negro na formação do que hoje
conhecemos por Brasil foi substituída pela visão colonial Europeia justificada pelo
sincretismo cultural. Em tal visão os invasores colonizadores são considerados os
salvadores e pacificadores enquanto que os dominados são os subjugados e selva-
gens, desconsiderando a história de luta e resistência do povo negro.
A escassez de materiais didáticos e produtos culturais para a infância e juven-
tude especialmente os acervos literário, de brinquedos e jogos que contemplem a

212 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
diversidade identitárias dos alunos na escola, reforça a percepção de um grupo es-
pecífico a ser mais valorizado. A este respeito Cavalleiro (2001, p.145) afirma que:

Um olhar superficial sobre o cotidiano escolar dá margem à com-


preensão de uma relação harmoniosa entre adultos e crianças;
negros, brancos. Entretanto, esse aspecto positivo torna-se
contraditório à medida que não são encontrados no espaço de
convivência das crianças cartazes, fotos ou livros infantis que
expressem a existência de crianças não-brancas na sociedade
brasileira.

Diante desse cenário, desde a implementação do conjunto de politicas afirma-


tivas e da implementação das Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações
Étnico Raciais (BRASIL, 2004) tem-se observado esforços de professores/professo-
ras e pesquisadores/pesquisadoras inclusive no âmbito da Educação Física Escolar
para enfrentar o currículo eurocêntrico, ampliando os conteúdos e legitimando os
referenciais teóricos de diferentes culturas.
Estudos como de Pereira, Gonçalves Junior e Silva (2009) buscaram contribuir
para a formação da identidade e respeito a diversidade étnico-cultural, a partir dos
jogos, brincadeiras, danças e contos de matriz africana. Seus achados ratificaram
que o brincar e o jogar das culturas africanas propiciaram situações de acolhimento
étnico-cultural e pertencimento identitário entre as crianças.
Nessa direção Duarte e Santos (2009) ao planejarem os jogos e brincadeiras
Africanas e Afro-brasileiras em diálogos com as crianças, constataram que as brin-
cadeiras propostas se assemelhavam aquelas conhecidas e pertencentes ao coti-
diano delas, tais como: Terra Mar (Moçambique) com Careca Cabeludo e Morto
Vivo; Pegue o Bastão (Egito) com Escravos de Jó; Pegue a Cauda (Gana e Nigéria)
com Pega-Pega Rabinho; Labirinto (Moçambique) com Adivinhação.
Assim, podemos compreender que a vivência de manifestações culturas lúdicas
de matriz africana, possibilitaram às crianças de um lado, desfrutarem de um rico
patrimônio cultural da humanidade e de outro ampliarem os conhecimentos acer-
ca da origem histórica e cultural, despertando nas crianças negras a valorização de
seus conhecimentos ancestrais e permitindo se sentirem representadas em suas
origens étnicas no espaço escolar (MARANHÃO; GONÇALVES JUNIOR; CORRÊA,
2007).
Os dois jogos que elegemos como conteúdo de nossa intervenção foram o Yoté
e o Senet, originários do continente africano, respectivamente África Ocidental e
Norte da África, o que possibilitou explorar conteúdos históricos e culturais de di-
ferentes povos.
O Yoté é um jogo muito popular na África Ocidental, em países como Senegal,
Guiné e Gâmbia, por ser de fácil acesso, podendo cavar as casas no chão e utilizar
pedras/sementes. No tocante à ancestralidade, este jogo tem muita potência uma
vez que sua permanência dependia das gerações passadas, pois cabia ao familiar
mais velho ensinar aos mais novos garantindo a perpetuação de muitas formas de

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 213


Artes, memória e espaços
jogar, sendo que, ao alcançarem uma certa habilidade/nível de jogo que os mais
velhos lhes passariam os “planos de jogo” de sua família (BRASIL, 2010).
O Senet é um jogo originário do Egito, cuja palavra que dá ao nome do jogo
significa passagem, ou seja, representa a viagem para o mundo dos mortos. As
representações pictóricas do jogo encontradas em tumbas mostram uma pessoa
jogando com um adversário ausente, e essa ausência indica a presença de Osíris
(SANTOS, NETO E SILVA, 2008).
Em termos de objetivos e mecânicas estes dois jogos também demarcam di-
ferenças significativas. O Yoté é considerado um jogo de captura de peças cujas
estratégias até os dias de hoje muitas são desconhecidas, isto porque são trans-
mitidas oralmente e presente em muitas gerações como segredos de família. Já o
Senet é um jogo de percurso e sua denominação significa passagem, ou seja, a via-
gem para o mundo dos mortos. Ambos os jogos são carregados de Ancestralidade,
com o signo de resistência, construção histórica, inclusão, respeito às diferenças e
experiência dos mais velhos (OLIVEIRA, 2009).

METODOLOGIA
A pesquisa foi pautada na abordagem metodológica qualitativa, a qual pressu-
põe: “[...] o contato direto e prolongado do pesquisador com o ambiente e a situa-
ção que está sendo investigada. [...] Os ‘significados’’ que as pessoas dão às coisas
e à sua vida são focos de atenção especial do pesquisador” (BOGDAN E BIKLEN,
1994, p. 47-51).
Além da pesquisa bibliográfica, foi realizada pesquisa de campo, envolvendo in-
serção em uma Escola da Rede Pública Estadual de São Paulo, e intervenção com a
vivencia e confecção de dois jogos de tabuleiro de origem africana, com uma turma
de 28 crianças do 6° ano do Ensino Fundamental. O conteúdo foi ministrado du-
rante as aulas de Educação Física, totalizando oito aulas com duração de cinquenta
minutos cada.
Como instrumento de coleta de dados utilizamos questionário para delinea-
mento do perfil da turma, entrevista semiestruturada (NEGRINE, 2004) bem como
registros em diários de campo de cada aula ministrada (BOGDAN & BICKLEN, 1994).
As entrevistas foram feitas com 14 educandos/as, sendo 9 meninos e 5 meninas.
Cada educando/a recebeu um caderno de registros individual com espaços livres
para registrarem por escrito o que aprenderam em cada aula durante toda a inter-
venção. Os dados coletados neste material foram identificados com o sufixo “CR”
após o nome fictício do/a educando/a, enquanto que os relatos captados nas en-
trevistas foram identificados com o sufixo “E”.
Seguindo os preceitos éticos exigidos, a professora de educação física da turma,
os pais ou responsáveis pelos/as estudantes foram solicitados a autorizarem a par-
ticipação na pesquisa, para concessão de entrevista, registro das observações em
diário de campo e uso de imagem, assinando o Termo de Consentimento Livre e

214 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
Esclarecido, bem como, aos/as educandos/as, o Termo de Assentimento Livre e Es-
clarecido. De modo a garantir o sigilo ético, os nomes dos/as educandos/as foram
substituídos por nomes fictícios escolhidos por eles/as.
Os dados coletados foram submetidos à análise de conteúdo categorial temática
(GOMES, 2009), dando origem a duas categorias: a) (Re)conhecendo a África e b)
Fazendo Juntos.

RESULTADO E ANALISE
A categoria “(Re)conhecendo a África” foram analisados os conhecimentos que
os alunos obtiveram durante a vivência e confecção dos jogos. O primeiro dado
interessante é o conhecimento dos/as educandos/as acerca dos jogos de tabuleiro,
circunscrito a Dama e ao Xadrez, dos quais apenas dois citaram conhecer a origem
histórica dos mesmos, e ainda de forma incerta mencionando serem originários da
África ou da Ásia.
Isso é particularmente importante já que com a vivência dos jogos Yoté e Senet
os/as estudantes destacam aprendizagens relacionadas aos aspectos históricos e
culturais relativos aos significados dos jogos e os nomes dos países, bem como co-
nhecimentos relacionados aos respectivos países de origem.
Com relação ao primeiro aspecto, notamos nos relatos como foi significativo
para os/as estudantes compreenderem os significados das expressões presentes
nos jogos, ao destacarem: “Aprendi que o nome dos jogos tem significados” (Cris-
tiano - CR) e “Que Senegal significa “Canoa” e em Wolof, Sunuggal” (Rodrigo - CR).
No tocante aos conhecimentos que aprenderam sobre a origem dos jogos, os
relatos a seguir destacam a ancestralidade: “No Senegal se fala Francês e Wolof. A
ancestralidade que significa passar uma história de geração a geração. Não é can-
sativo e aprendemos a cultura” (Iasmiyn - CR).
Outro aspecto que esta categoria revela tem relação com a desconstrução de
uma visão negativa e limitada sobre a África, seu povo e sua cultura. Observando a
resposta dos/as estudantes com a pergunta que se “O que conhecem sobre a Áfri-
ca?”, percebemos um conhecimento limitado e visões negativas sobre a África: “é
um país triste” (Pedro Rezende - CR), “Que sofreram muito. Tinham o candomblé
como religião. Comiam feijoada e mandioca. Eram escravos dos portugueses” (Cla-
ra - CR), “Só há calor e animais” (Lionel - CR).
Tais resultados coadunam com os estudos de Maranhão; Gonçalves Junior;
Corrêa (2007), tendo em vista que essas respostas negativas prévias à experiência
foram paulatinamente substituídas por percepções positivas sobre a África que
observamos nas falas a medida que ampliavam seus conhecimentos com as vivên-
cias dos jogos: “Aprendi que [...] a palavra Senegal significa Canoa” (Gustavo – CR);
“Descobri que a África tem cinco partes, que a África não é um país” (Larissa – E);
“Aprendo sobre as línguas e o continente africano” (Ariadne – CR); “Aprendi que
o Yoté veio do Senegal, África Ocidental e é bem divertido e estratégico. Aprendi

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 215


Artes, memória e espaços
que o Senet significa passagem o jogo veio da África Oriental e ele é bem diferente
e também tem casas muito legais como a do Renascimento e a das Águas” (Cherril
- CR).
Destacamos, portanto, a riqueza de recuperar a trajetória histórica de origem
dos jogos, valorizando as raízes africanas em sua riqueza como patrimônio cultural,
pois “[...] as culturas de matrizes africanas nos ensinam valores que perpassam
conteúdos e fórmulas pedagógicas, nos ensinam a respeitar e valorizar as memó-
rias, os conhecimentos dos mais velhos, dos mais experientes, e isso garante inclu-
sive a manutenção das tradições” (SILVA, 2016, p.56).
Na segunda categoria “Fazendo juntos” emergiram dois aspectos significativos,
um deles foi relacionado à confecção dos jogos, o que foi percebido pelos/as edu-
candos/as como uma oportunidade de terem seu espaço de criação e autonomia,
como revelam as falas a seguir: “Eu gostei porque a gente nunca confeccionou
jogo nenhum. Já tinha feito vários jogos, mas nunca confeccionado. É uma maneira
de aprender que nem todo dia a gente vai pra quadra” (Aghata Victoria – E); “Foi
legal porque teve que desenhar e pudemos criar mesmo” (Bernini – E) e “Acho in-
teressante, porque isso é uma coisa que só vai aprender na escola” (Iasmiyn – E).
A fala da estudante a seguir mostra a importância de ter presente nas aulas este
tipo de prática autônoma aos estudantes: “[...] a gente teve muita criatividade [...]”
(Ariadne – E).
Encontramos posicionamentos divergentes de um educando e uma educanda
que manifestaram que o processo de confecção e criação dos jogos, não condiz com
a aula de Educação Física, como relatou Larissa – E: “Achei mais ou menos, porque
a Educação Física é de fazer exercício. Podia ser em Artes, porque é mais desenho”
e Lionel – E que entendendo que pode ser trabalhado na educação física porém:
“Quando tiver chovendo ou quando todo mundo tiver cansado e não quer fazer
uma aula, joga o jogo”.
A partir dessas falas é necessário refletirmos sobre a ausência de tais conteúdos
na escola, pois a falta de vivências diversificadas pode fazer com que os/as edu-
candos/as entendam que a Educação Física seja apenas ir para a quadra ou “fazer
exercícios”, e em outro componente curricular devo desenhar, contar ou escrever.
O estudante em sua fala a seguir entende que a interação de outros componentes
pode ser feita, afirmando que também é possível interligar as aulas pois: “[...] a
gente aprende mais que separar uma aula”.
Esses dados vão ao encontro do trabalho de Gehlen e Lima (2013) e concorda-
mos com as autoras de que é preciso que mais trabalhos como estes sejam feitos,
de forma que tais concepções sejam desconstruídas, pois como elas dizem: “Foi
preciso desmistificar certa concepção que alguns alunos tinham referente aos jogos
de tabuleiro, como por exemplo, de que os mesmos servem somente como uma
opção de aula para um dia de chuva” (GEHLEN; LIMA, 2013, s/p)
O segundo aspecto se refere à valorização que os/as estudantes deram ao fazer
juntos, o respeito ao jogar com o outro e o fazer com o outro, como demonstram

216 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
os seguintes relatos: “Trabalha bastante em dupla. [...] é muito legal e tem que tra-
balhar em equipe. Trabalhar em grupo é bom [...]” (Rodrigo – CR); “Foi legal, achei
criativo, a gente se divertiu e fez bastante grupo e interagimos juntos” (Cherril – E).
Essa valorização da partilha e de estar com o outro que emergiu dos relatos dos/
as estudantes ratifica as reflexões de Brandão (2005, p.99) quando defende que
“Nós só conseguimos viver e experimentar a vida como uma coisa boa e valiosa,
quando estamos juntos e partilhamos momentos significativos deste ‘estar jun-
tos’”.
Ressaltamos que essa forma de se relacionar com o outro reforça valores de
cooperação e interação da turma, tendo relação com o que Maranhão (2009, p.50)
afirma ao dizer “[...] que tal maneira de existir africana ilustra a relação dos afri-
canos e seus descendentes com o mundo, bem como a relação entre Eu e o Outro
fora dos parâmetros da racionalidade eurocêntrica [...]”.
Os relatos destacam também a importância de ouvir e de esperar a vez do outro,
revelando processos educativos de respeito e coletividade: “A gente se reuniu mui-
to, pediu a opinião de todo mundo” (Ariadne – E); “Joguei o Senet, tem um monte
de regra, e que a gente tem de esperar o outro jogar” (Clara – CR).
Nesse sentido, tais dados indicam a valorização dos jogos de tabuleiro na edu-
cação física escolar como forma de estimular a coletividade, pois:

Nos jogos de tabuleiro os jogadores podem estabelecer as re-


gras ou criar suas próprias regras, estimulando a cooperação.
Oferece a oportunidade de ensinar a viver em grupo e respeitar
as regras estabelecidas. Traz a ludicidade do jogo, a alegria e o
prazer de jogar, proporcionando momentos agradáveis, e expe-
riências que oferecem uma grande satisfação (GEHLEN; LIMA,
2013, s/p).

A postura respeitosa para com o outro a partir da vivência de tais jogos indi-
cam a potencialidade educativa dos mesmos na educação física escolar, na medida
em que, faz emergir outras possibilidades de convivência e de jogar valendo-se de
princípios que não o da disputa, mas o da partilha tanto dos sabores quanto dos
dissabores de toda e qualquer experiência social.

Todos podem participar e todos se envolvem, independente-


mente de graus de habilidade e destreza. Aprende-se a confiar
e a compartilhar. Pode haver uma ampla mistura de grupos que
brincam e jogam juntos, criando-se um clima de aceitação mú-
tua e recíproca [...] Há um aprendizado de solidariedade com os
sentimentos dos outros, e mutuamente todos desejam o suces-
so de outros, ao lado de seu próprio sucesso. Desenvolve-se a
autoconfiança, pois todos são aceitos. Há um aumento da capa-
cidade de perseverar, face às dificuldades a serem coletivamente
enfrentadas. (BRANDÃO, 2005, p. 97).

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 217


Artes, memória e espaços
Acreditamos que esses dados são valiosos em nos alertar para ficarmos mais
atentos aos pilares de uma educação que valorize os princípios de solidariedade e
de partilha. Quem sabe assim possamos contribuir com alguns passos para a tão
almejada educação para a paz na escola.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O percurso elucidado nessa pesquisa fundamenta a potencialidade pedagógica
da vivência dos jogos Yoté e Senet como conteúdo valioso para a Educação das Re-
lações Étnico Raciais na escola, pois ao ampliar o acervo de conhecimento de jogos,
com destaque aos aspectos históricos e culturais, os/as educandos/as reconstroem
visões negativas e estereotipadas sobre África, além de ampliarem o repertório de
jogos de tabuleiro aprofundando conhecimentos sobre a história dos países de ori-
gem dos jogos, atribuindo significados aos conhecimentos geográficos, linguísticos,
culturais e ancestrais de forma lúdica e convidativa.
Um outro aspecto que ressaltado pelos/as educandos/as e que a comunidade
escolar deve se atentar é o quanto valorizaram os momentos de criatividade e
coletividade. A valorização de estarem livres para criar e (re)criar o jogo, podendo
desenhar hieróglifos no caso do jogo egípcio e de confeccionar as peças dos jogos,
assim como a importância de partilhar estratégias ao jogarem em conjunto, saben-
do ouvir e também ser ouvido/a. Ressaltamos que esses resultados foram possíveis
por conta das estratégias didáticas utilizadas que procuraram trazer e ensinar mui-
to além de um jogo novo com regras e técnicas, mas, sobretudo, como fonte de
conhecimento histórico e cultural.
Consideramos, portanto, que os jogos de tabuleiro são portadores de um rico
conhecimento cultural carregado de ancestralidade africana, que quando trabalha-
do dando destaque para suas origens, contextualizando sua história e cultura e não
apenas como válvulas de escape a dias de chuva, assumem um potencial educativo
como conteúdo intercultural e multidisciplinar valioso na educação básica.
Ressaltamos que tais conhecimentos advindos de uma experiência nas aulas
de Educação Física podem e devem dialogar com outros componentes curricula-
res como Geografia, História e Artes, potencializando um trabalho em conjunto
com demais professores/as para a interlocução com os conteúdos e integração
de conhecimentos entre os componentes curriculares, o que consideramos fun-
damental e bastante construtivo para a efetivação da Educação para as Relações
Étnico Raciais como um compromisso de toda a Escola na efetivação de um projeto
político pedagógico a favor de uma educação democrática, justa e equânime para
todas e todos se sentirem pertencentes ao espaço escolar.

218 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
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220 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
AUTORIA
Renan Bispo dos Santos Silva
Discente do curso de Bacharelado em Educação Física da Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (DEF/UNESP/Bauru)
E-mail: renan.bispo3@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0044-0746
Lattes: http: //lattes.cnpq.br/2707772457534321

Denise Aparecida Corrêa


Docente do Departamento de Educação Física da Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita
Filho” (DEF/UNESP/Bauru)
E-mail: denise.correa@unesp.br
ORCID: http://orcid.org/0000-0001-9890-7476
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7114759404153218

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 221


Artes, memória e espaços
JUVENTUDE NEGRA E LITERATURA: POR UM
ERGUER DE VOZES EM SALA DE AULA
Cristina Cristo Alcantara do Nascimento
Maria Anória de Jesus Oliveira

INTRODUÇÃO
O presente texto resulta de uma pesquisa de mestrado em andamento. Para
a explanação que se segue, situaremos parte do levantamento bibliográfico que
realizamos até o presente momento. Situaremos, também, a ambiência escolar e
destacamos a relevância social da alteração da LDBEN 9.394/96 pela Lei Federal
10.639/03 na educação brasileira. Iniciamos as reflexões contextualizando o cená-
rio social brasileiro em tempos de pandemia e concebemos, ao final, a literatura
infanto-juvenil negra/afro-brasileira (OLIVEIRA, 2010), como um dispositivo impor-
tante que pode contribuir para a ressignificação identitária negra.
Estabelecer os primeiros contatos com o campo de pesquisa em um momento
que coincide com o início de uma guerra contra um inimigo invisível que ameaça a
saúde mundial - um vírus que forçou o mundo a parar e simultaneamente a buscar
uma arma em comum: a cura, através da vacina, é uma batalha árdua. Este é o
panorama no qual a presente pesquisa se encontra.
Trazemos à cena deste trabalho, em um primeiro momento, uma reflexão sobre
o cenário social de desolamento que vivemos, haja vista que fomos surpreendidos
pela pandemia (Covid 19), para trazer ao centro das discussões a invisibilidade de
uma camada da população brasileira que conhece muito bem o que é a vida em
isolamento social, em uma quarentena que está longe de chegar a um desfecho
exitoso. Para essa população que é negra, majoritariamente, passar por privações
materiais, viver isolados e esquecidos na invisibilidade não é algo novo.
Em tempos de pandemia, o que mais se ouve falar em chão brasileiro é comum
ouvirmos dizer que estamos nos reinventando, que iremos sair melhores dessa
situação, que seremos outros após a pandemia e que estaremos mais fortes. Mas,
será que refletiremos melhor sobre os problemas em comum, e quem sabe pen-
saremos mais no outro? Há uma visível esperança de que mudanças se operem no
quesito humanidades. Porém, ao olharmos atentamente a nossa realidade, nota-
mos que estamos diante de uma sociedade dominada por uma política que, diante
do mapa de morte que vem se assolando, não tem o menor escrúpulo ao mostrar
qual é o seu propósito: priorizar quem deve viver e, por outro lado, fazer morrer
quem é preterido na sociedade, a população negra, no caso. Nos referimos, aqui,
à noção de necropolítica de Achile Mbembe (2016), que parte do conceito de bio-
política de Foucault.

222 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
Mas, afinal, onde se encaixa esta pesquisa, uma vez que seu enfoque está na
investigação das vozes silenciadas da juventude negra na escola, pelo viés da li-
teratura? Conforme ressalta Pereira (2018) a respeito do método, é necessário ao
pesquisador a convicção de que são os sujeitos da pesquisa que irão conduzi-lo/a ao
método e não o contrário, ou seja, são os nossos parceiros de pesquisa os prota-
gonistas; a eles é proporcionada a oportunidade de aquisição de uma língua. Logo,
entendemos que toda a história vivida e as transformações pelas quais eles passam
irão influenciar diretamente nos rumos da pesquisa.
Além disso, nossos estudos se constroem sob o prisma da Crítica Cultural que,
por sua vez, lida com a tecnologia dos signos. E não se pode deixar de destacar
nestes estudos a influência derridariana, quando o teórico propõe uma estraté-
gia geral de desconstrução, o que significa desconstruir a oposição, invertendo a
hierarquia; essa oposição – e o próprio racismo é um exemplo disso – ou binaris-
mo, existe para reforçar as hierarquias, em uma relação de poder de uns sobre os
outros; e enquanto crítico literário precisamos, ao estudar o objeto, submetê-lo a
esse deslocamento do binário, para assim evitar o essencialismo cristalizado, os
valores que estão impregnados na sociedade. Logo, é fundamental esse olhar para
os sujeitos envolvidos através do entre-lugar, do qual se pretende fazer emergir
as vozes dos protagonistas, que no caso em questão são jovens negros e negras,
levando-se em conta a possibilidade de, através da literatura, contribuir para a afir-
mação identitária. Afinal, de qual lugar esses jovens irão falar a partir de então? De
onde suas vozes irão emergir, uma vez que já trazem consigo as marcas de uma
história que lhe foi contada pela ótica do opressor, uma ótica brancocêntrica e he-
gemônica, cuja intenção sempre foi mantê-lo em permanente invisibilidade, numa
silenciosa e sórdida quarentena? É possível que o vírus (covid-19) apenas reitere,
reforce aquilo que essa camada da nossa sociedade já venha vivendo desde sempre,
escancarando para todos questões já existentes: o genocídio (físico e também da
alma) de uma massa oprimida por quem, para manter a sua soberania, só entende
uma forma de governar.
Por outro lado, interessa-nos rediscutir quais literaturas poderão ser ofertadas
para esses jovens na busca de suscitar neles esse erguer de vozes há muito sufo-
cadas, permitindo que se abra fissuras nos conceitos engessados que lhes foram
transmitidos desde sempre. Sobre isso, bell hooks (2019) faz uma importante refle-
xão sobre a autorrecuperação, quando descarta essa noção de que o “eu” existe
em oposição a outro que deve ser destruído e aniquilado, afirmando que:

...são precisamente essas vozes que são silenciadas, reprimi-


das, quando somos dominados. É essa voz coletiva que lutamos
para recuperar. Dominação e colonização tentam destruir nossa
capacidade de conhecer o eu, de saber quem somos. Nós nos
opomos a essa violação, essa desumanização, quando buscamos
autorrecuperação, quando trabalhamos para reunir os fragmen-
tos do ser, para recuperar nossa história. (hooks, 2019, p. 78)

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 223


Artes, memória e espaços
Sendo assim, embora trazendo nessa fala uma narrativa de si, hooks está falando
com todos os que ela está representando nessa experiência vivida, nos convidando
a transgredir os paradigmas e a recusar a violência histórica à qual o povo negro
fora submetido.
Uma vez tendo situado a explanação evidenciaremos, a seguir, como se deu o
interesse de enveredar pela investigação da literatura negra infanto-juvenil, além
de focalizar seu papel para a afirmação identitária de jovens leitores dentro de uma
escola pública de Alagoinhas.
Sendo assim, embora trazendo nessa fala uma narrativa de si, hooks está falando
com todos os que ela está representando nessa experiência vivida, nos convidando
a transgredir os paradigmas e a recusar a violência histórica à qual o povo negro
fora submetido.
Uma vez tendo situado a explanação evidenciaremos, a seguir, como se deu o
interesse de enveredar pela investigação da literatura negra infanto-juvenil, além
de focalizar seu papel para a afirmação identitária de jovens leitores dentro de uma
escola pública de Alagoinhas.

DO CHÃO DE CASA AO CHÃO DA ESCOLA: DESCONSTRUIR OU


REFORÇAR ESTEREÓTIPOS?
A escola, segundo Kleiman (1995), é a principal agência de letramento. Portan-
to, ainda que se procure oferecer aos seus alunos um programa diversificado de
leituras, nas instituições escolares, limita-se, na maioria dos casos, à leitura escolar,
mantendo-se um programa que despreza os textos que circulam fora da sala de
aula. A prioridade, o processo de decodificação de signos, o qual é fragmentado,
expresso através de textos que ignoram as próprias histórias daqueles alunos. Isso
nos faz pensar na emergência do uso da Lei 10.639/03 como marco legal que po-
tencializa a transformação do ensino e nos impactos que essas mudanças poderão
provocar nessa juventude negra, com a oferta de uma literatura que possibilite
uma afirmação identitária dos alunos.
Logo, tomando a escola como espaço importante para a construção do proces-
so de humanização e não apenas a construção de saberes escolares, espera-se que
esse espaço seja fundamental para se compartilhar uma visão positiva das iden-
tidades dos atores que o compõem. Mas o que de fato se vê é que, na realidade,
apesar dos avanços em relação aos estudos que envolvem educação para as rela-
ções étnico-raciais, como as conquistas nos campos teóricos e legais sobre o tema,
ainda há muito que se compreender no que se refere às questões raciais na escola,
uma vez que, na prática, essa lei não chegou ao chão da escola, de fato.
Para Nilma Lino Gomes (2002), captar essas dimensões simbólicas pelas quais
o negro constrói a sua identidade é algo que deve ser compreendido dento e fora
dos muros da escola. E uma dessas representações simbólicas está na sua relação
com o corpo. Sobre isto, ela levanta a seguinte provocação:

224 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
Mas como captar as impressões e representações do negro sobre
o próprio corpo, articulando-as com as experiências escolares e
não escolares? Esta não é uma tarefa fácil, porém não é impossí-
vel. Um dos caminhos para a sua realização poderá ser o desen-
volvimento de uma escuta atenta, por parte dos educadores e
das educadoras, ao que os negros e as negras têm a dizer sobre
as suas vivências corpóreas dentro e fora dos muros da escola.
(GOMES, 2002, p.41)

Partindo dessa necessidade de escuta atenta às informações que estão impres-


sas nos corpos negros, voltamos o olhar para a nossa própria prática enquanto
professora do Ensino Básico da rede pública. Ao olhar para a nossa prática edu-
cacional fazemos uma indagação: o que temos sido feito, enquanto educadoras,
pelos integrantes da comunidade escolar no sentido de fazer valer os marcos legais
que há quase duas décadas (2003/2020) foram implementados na forma da Lei
10.639/03? O que nos inquieta na área em se tratando do silenciamento de uma
juventude que, embora aparente uma convivência cordial com os seus pares e até
demonstre ignorar as práticas racistas, apresentam uma característica que é prati-
camente comum a todos: a autonegação?
É importante ressaltar que, a princípio, relutamos em levar adiante a temáti-
ca em questão, a literatura destinada às crianças e aos jovens, por considerá-la
bastante discutida, sem nenhum ineditismo para uma pesquisa acadêmica. Com
o passar do tempo e à medida que fomos realizando leituras na área, foi surgin-
do o desejo e a necessidade de desenvolver pesquisas dentro dessa abordagem.
Mediante o levantamento bibliográfico que fizemos, identificamos rico referencial
teórico sobre o tema. Destacamos, do referencial, as pesquisas empreendidas por
estudiosos/as negros. E graças a este rico universo de pesquisadores negros foi
que tivemos a condições de dar conta de que há questões imprescindíveis para
dar continuidade à pesquisa em andamento, e uma delas, dentre muitas, é que a
autonegação da criança e do jovem negro pode ter seu início dentro do próprio am-
biente familiar e ser reforçada na escola que, por sua vez, ao invés de representar
um lugar de agregação, pode tornar-se mais um ambiente de discriminação e de
humilhação, quando não possui um olhar cuidadoso e uma escuta atenta aos sinais
emitidos pelos alunos e às mensagens que podem estar sendo veiculadas até mes-
mo pelo livro didático ou literário. Muitas vezes o que a escola está julgando como
indisciplina ou rebeldia, nada mais é do que uma linha de fuga (ou quem sabe uma
linha de resistência), uma válvula de escape para o que está de fato oprimindo esses
jovens que, à sua maneira, tentam talvez fazer ouvir a sua voz sufocada.
Ao observar essa juventude negra e pensar sobre a literatura infanto-juvenil a
ela ofertada na atualidade e em especial após a implementação da Lei 10639/03,
reporto-me à criança negra e leitora que fui1, penso na literatura que me foi ofer-

1 A mudança de colocação pronominal (1ª pessoa) aqui, é para demarcar a experi-


ência da pesquisadora/mestranda e não da orientadora, cujas vivencias foram diferentes e

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 225


Artes, memória e espaços
tada, procuro nelas as personagens negras (e/ou não-negras) e o que elas tinham
para me dizer. Concluo, nessa “viagem”, que uma das leituras que mais me marcou
foi de autoria de Monteiro Lobato, Reinações de Narizinho, uma coletânea de con-
tos, consagrado como um dos melhores livros do autor. Ao elencar as personagens,
percebo que minha admiração era totalmente voltada para a Narizinho, persona-
gem branca, protagonista e representante da privilegiada classe média da época.
Também relembro que, até na peça teatral que a professora propôs como tra-
balho escolar, eu pedia para fazer o papel de tal personagem, Narizinho. Hoje me
dou conta da violência a que fui submetida, ao ser representada na literatura- que
era feita “para mim” - por pessoas em situação de subalternidade, de inferiorização
e humilhações frequentes, e que por esse motivo eu me envergonhava de tais per-
sonagens. Não pretendo com essas considerações, reduzir a importância do autor
da obra mencionada, visto que é reconhecida a importância do mesmo para a época,
sendo considerado por muitos estudiosos como um marco para a literatura infan-
to-juvenil do século XX, especialmente no tocante ao resgate do folclore nacional,
como destaca OLIVEIRA (2003), ao elencar os pontos positivos e negativos na lite-
ratura lobatiana:

Ao aludido escritor, deveu-se o investimento nas primeiras edi-


toras voltadas para as produções infantis e também juvenis. Ele
educa o leitor por meio de sua obra, mas ao mesmo tempo o
diverte e apresenta um universo imerso em fantasia, ludicidade,
criatividade e aventura no Sítio do Pica-Pau Amarelo. Mas, por
outro lado, há críticas quanto à estereotipia atribuída ao negro
na obra de Lobato. Em especial nas Histórias de Tia Nastácia e
em Reinações de Narizinho. Na primeira narrativa, a cultura po-
pular é depreciada e o conhecimento de Tia Nastácia é asso-
ciado à ignorância. Em contraposição, existe Dona Benta, que
simboliza a sabedoria livresca. (OLIVEIRA, 2003; p. 44)

A produção de Lobato, no entanto, reforça racismo quanto à população negra


em sua obra e já contamos com diversas produções que rasuram seu viés racista
(OLIVEIRA, 2003). Assim sendo, ressuscitar suas obras para impor aos estudantes
negros é, sem sombra de dúvidas, uma violência que persiste dias atuais nessa
negra diáspora.
É fundamental que não se perca de vista que a noção de diáspora negra em nosso
contexto, como pontua Stuart Hall (2005), para quem a identidade negra, é atra-
vessada por outras identidades, mas que é possível (e necessário) que se promova
esse deslocamento do poder para outros centros, formado o que ele chama de
sociedade tardia, um devir negro que está a formar-se ainda. E isso só será possí-
vel se soubermos primeiramente quem somos, pois “é somente pelo modo como
representamos e imaginamos nós mesmos que chegamos a saber como nos cons-
tituímos e quem somos.” (HALL, 2003, p.346).

não serão pautadas nesse texto, por não ser o foco do estudo.

226 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
LITERATURA NEGRA INFANTO-JUVENIL E LINGUAGENS DA
RE-EXISTÊNCIA: QUEM JÁ PERCORREU POR ESSES CAMINHOS
A partir dos pressupostos teóricos levantados até o momento da pesquisa, pre-
tendo apresentar uma revisão bibliográfica, elencando os principais autores que
pesquisaram e ainda pesquisam a respeito da literatura negra infanto-juvenil e a
sua importância na afirmação identitária das crianças e adolescentes em idade es-
colar, argumentando em que sentido estas fontes estão contribuindo para a com-
preensão do meu objeto.
Em sua dissertação de mestrado, Maria Anória de Jesus Oliveira (2003) apresen-
ta a interpretação de produções literárias publicadas entre 1979 e 1989, evidencia a
presença ou ausência de personagens negros nas obras pesquisadas, constatando
se houve inovação quanto à caracterização de tais personagens. A pesquisadora
problematiza essas representações e a sua influência para a afirmação identitária
dos leitores.
Os estudos em questão traz uma base de fundamental importância para a pre-
sente pesquisa, pois demarca o panorama da literatura negra infanto-juvenil do fi-
nal do século XX e certamente será uma importante contribuição nos estudos com-
parativos dos personagens negros nos últimos anos, além de se constituir como
importante eixo teórico e estrutural que deverão sustentar nossos estudos.
Sobre a análise das obras literárias infanto-juvenis, a tese de doutorado de Dé-
bora Cristina de Araújo (2015) investigou a maior política educacional de distribui-
ção de livros a bibliotecas de escolas públicas brasileiras, o PNBE, com o objetivo
de interpretar como as relações internas dentro das instituições que gestam e exe-
cutam o Programa podem influenciar a composição dos seus acervos, no que se
refere à diversidade étnico-racial e à qualidade literária.
No tocante à análise das obras do PNBE, a autora constatou que a trajetória
dos personagens negros na literatura infanto-juvenil só passou a ser representada
mais positivamente a partir dos anos 2000, apesar de predominar ainda a sub-re-
presentação, levando a uma categoria de “otimismo parcimonioso”. Além disso, a
pesquisa exigiu um estudo mais aprofundado sobre o critério de “qualidade literá-
ria” na escolha do acervo do PNBE, uma vez que o eixo raça não foi inserido como
categoria analítica na maioria das pesquisas, o que revelou uma dificuldade ou
resistência em incluir outros eixos que não o econômico como fator negativo em
uma política educacional.
Ainda sobre esse aspecto, Daniela Galdino (2019), em sua tese, estuda o lugar
da literatura infanto-juvenil no ensino de história e cultura afro-brasileira consi-
derando o caráter afirmativo da Lei 10.639/03 ao analisar tal política nos acervos
do PNBE. Os trabalhos contribuirão com a pesquisa em andamento no sentido de
apresentar uma análise de obras literárias infanto-juvenis ofertadas pelo PNBE no
período pós Lei 10639/03, identificando a sua relevância no trato das questões
étnico-raciais na escola.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 227


Artes, memória e espaços
Sabendo da dimensão simbólica do corpo e o cabelo do negro e como tal dimen-
são está associada ao processo de inferiorização da condição de ser negro, recorre-
mos a Nilma Lino Gomes (2002) que estabelece uma articulação entre os processos
educativos escolares e não-escolares e a construção da identidade negra. Discu-
tem-se as representações e as concepções semelhantes, diferentes e complemen-
tares sobre o corpo negro e o cabelo crespo, construídas dentro e fora do ambiente
escolar, a partir de lembranças de adolescentes e jovens negras entrevistadas du-
rante a realização de uma pesquisa etnográfica sobre corpo e cabelo como ícones
identitários em salões étnicos.
O corpo e o cabelo como ícones da identidade negra no processo educativo
configura um estudo indispensável para entender os estereótipos e combatê-los;
tal estudo, aliado à análise dos perfis dos personagens negros presentes nos textos
literários serão ferramentas importantes na busca de caminhos para a compreen-
são do objeto de pesquisa e possível contribuição para novos rumos das relações
étnico-raciais na escola.
Em sua dissertação, Sara da Silva Pereira (2019) apresenta um importante estu-
do que analisou como crianças com idade entre 3 e 4 anos experienciam processos
de leitura, contação e apresentação de livro animado de uma história de literatura
infantil de temática da cultura africana e afro-brasileira. Embora a minha pesquisa
tenha o propósito de trabalhar com adolescentes entre 12 e 14 anos, o objetivo
final da pesquisa coaduna com as ideias da pesquisadora estudada, especialmente
no que se refere à prática da escuta atenta e sensível das vozes dessas crianças so-
bre suas inquietações e suas impressões acerca das questões identitárias.
Daniela Maria Segabinaz (2017) investiga em seu artigo as recentes publica-
ções em que princesas negras são protagonistas nos enredos literários. Realiza uma
análise comparativa entre os contos de fadas, do século XIX, e as narrativas con-
temporâneas, particularmente Cinderela e Chico Rei (2015), a partir de um estudo
acerca dos elementos estéticos que constituem essas obras, como a originalidade
das temáticas que as norteiam e os textos visuais que apresentam. Trata-se de
uma contribuição de grande relevância para esta pesquisa, uma vez que discute
textos contemporâneos de temática étnico-racial, mas que trazem protagonistas
que representam papéis questionáveis, levantando indagações sobre os perigos de
um racismo cordial e velado dentro da literatura, que ao invés de promover uma
reafirmação identitária, reforça estereótipos.
A pesquisadora Débora Oyayomi Araújo (2017) estudou os discursos produzidos
por crianças e professoras, a partir de obras literárias infantis com personagens ne-
gras. A autora destaca a importância da formação de professores para a efetivação
da aplicação da Lei 10639/03, ao constatar em sua pesquisa a falta de conhecimen-
to e até as discordâncias reveladas nosrelatos dos próprios educadores. Sobre isso,
ela enfatiza que:

O desconhecimento dos motivos que levaram à aprovação de


uma lei com tal perspectiva, associado ao racismo (in) conscien-

228 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
te acaba por gerar manifestações contrárias que prejudicam a
efetiva implementação da Lei. Dentre as resistências, impera o
discurso: “por que não se fala também da história dos italianos,
dos japoneses, dos alemães, etc.” (...) É nesse sentido que se
torna imprescindível que discussões mais aprofundadas sobre
as relações raciais na escola passem a fazer parte da formação
de professoras e professores, com vistas a uma reformulação na
prática docente, para além do currículo. (ARAÚJO, 2017; p.79)

A autora chama a atenção ainda para o papel da escola, por ser capaz de exer-
cer influência sobre a formação identitária as crianças e jovens que nela estão in-
seridos e por isso tem também a responsabilidade de combater toda forma de
discriminação no ambiente escolar. Esse trabalho, construído a partir das experiên-
cias do chão da escola, contribuirá para a pesquisa em andamento, pois investiga
justamente as desigualdades na caracterização das personagens negras em relação
às brancas, o que faz da literatura um dos maiores fomentadores do preconceito
racial no Brasil.
Para tratar da diáspora negra e as suas relações de cultura e pós-colonialida-
de, Stuart Hall (2003) apresenta doze ensaios e duas entrevistas que percorrem
questões como a discussão da identidade cultural, da questão racial e do racismo, a
contestação à hegemonia cultural na sociedade midiática e de consumo e o diálogo
com correntes contemporâneas de pensamento sobre cultura. A pesquisa empre-
endida encontra em Hall um importante suporte no que se refere às discussões
sobre questões identitárias, atreladas ao racismo, comparando-o com o contexto
de outras sociedades pós-coloniais, trazendo a identidade brasileira para o centro
do debate político-cultural.
Em seu livro intitulado Pele negra, máscaras brancas, Frantz Fanon (2008) discu-
te sobre a negação do racismo contra o negro na França; aborda o pensamento da
Diáspora Africana, o pensamento da descolonização, do pensamento psicológico,
da teoria das ciências, da filosofia e da literatura caribenha. O referido psicanalista
trata também da ideologia que ignora a cor, e como ela pode apoiar o racismo que
nega - pensamento que causou grande turbulência nas décadas de 1960 e 1970.

O livro de Fanon busca aguçar o senso crítico sobre o racismo e seus impactos.
Apresenta uma discussão profunda sobre a negação do racismo e a emergência no
processo de descolonização, o que dialoga diretamente com o problema apontado
na pesquisa em questão, provocando um convite à reflexão sobre a necessidade
de mudanças de paradigmas das relações étnico-raciais em nossa escola, com o
enfoque nas obras literárias que estão presentes na biblioteca e que não somente
apresentem personagens negros, como também os apresentem em espaços de
poder, de protagonismo e que, acima de tudo, possibilitem o conhecimento da sua
história, aquela que lhes fora omitida por gerações.
Achile Mbembe (2016), em Necropolítica, um ensaio que discute e atualiza o
conceito de “biopoder” de Michel Foucault o qual, segundo ele, se exerce por meio

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 229


Artes, memória e espaços
da guerra pelo poder, o direito de matar, dialoga com as concepções de teóricos
como Hegel, Bataille e Hannah Arendt explorando a relação do biopoder com no-
ções de soberania e o estado de exceção (conceito discutido em relação ao esta-
do Nazista, ao totalitarismo e aos campos de concentração). Utiliza-se do termo
“Campos de morte” como a metáfora central para a violência soberana destrutiva
e último sinal de poder absoluto do negativo. O texto relaciona-se com o nosso
objeto de estudo, uma vez que aponta a escravidão como uma das primeiras ins-
tâncias da experimentação da biopolítica; condição que representou uma tripla
perda: lar, corpo (direito sobre ele) e status político, ou seja, a “morte social” do in-
divíduo; e o nosso trabalho, por sua vez, objetiva a experimentação de uma prática
pedagógica que desconstrua essa visão de subalternidade possibilitando, através
da leitura, uma descoberta da riqueza e da potência do povo negro, e sua capaci-
dade resistência e re-existência à dominação.
Para tratar dos aspectos relacionados aos letramentos identitários, contaremos
com os aportes teóricos de autores como Ana Lúcia Silva Souza (2011) que apon-
ta uma importante reflexão sobre letramentos, identidades, cultura da juventude,
com destaque para a juventude negra e o movimento hip-hop como agência de
letramento fora da escola, mas apontando uma possibilidade de articulação com
o letramento que se tenta fazer dentro dela. A autora salienta a importância de
contribuir para a compreensão das singularidades que informam o desenvolvimento
de práticas sociais dos usos da língua, em contextos não escolares, tornando esses
sujeitos agentes comunitários de letramento. Segundo seus estudos, esse movi-
mento cria um espaço fértil para tais práticas, pois

Para muitos ativistas, o hip-hop mostra-se como espaço de pro-


dução cultural e política em que uma série de práticas de uso
social da linguagem são mobilizadas em função de suas neces-
sidades. (...) Tais práticas de letramentos estão voltadas para a
concretude da vida dos ativistas, relacionando-se às questões
culturais e políticas e visando, de alguma maneira , ampliar suas
possibilidades de inserção em um lugar de crítica, contestação e
de subversão, no qual, como sujeitos de direitos e produtores de
conhecimentos, possam forjar espaços e atuar dentro e fora da
comunidade em que vivem. (SOUZA, 2011.p.16-17)

Fazer-se ouvir as vozes das margens, tornando os/as jovens agentes dos letra-
mentos de reexistência é uma das metas do nosso trabalho em construção. Deste
modo, os estudos da autora supracitada serão basilares para avaliarmos os nossos
sujeitos de pesquisa, uma vez que trataremos da busca da sua afirmação identitária
a partir da leitura literária, levando em consideração os seus letramentos sociais e
as suas identidades raciais em re/construção.
Áurea Pereira (2018), cujo livro se concentra na identificação das trajetórias de
vida associadas ao contexto sociocultural da localidade de Saquinho, Bahia; suas
experiências educacionais na comunidade, na família e na escola e as práticas cultu-

230 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
rais vinculada aos letramentos construídos nas esferas pública e privada. Embora
a autora tenha como objeto de estudo o letramento de mulheres idosas, a obra
contribui para a pesquisa no sentido de compreender as vozes silenciadas e iden-
tificar a pluralidade de letramentos presentes nos espaços mais inferiorizados da
sociedade.

IDENTIDADES NEGRAS E LITERATURA: O QUE PODE TER


MUDADO APÓS A LEI 10639/03
É inegável que a implementação da Lei 10. 639/03 representa um grande avan-
ço nas políticas relacionadas à educação para as relações étnico-raciais em nosso
país. E isso se deve a décadas de lutas travadas por grupos como o Movimento
Negro, conselhos estaduais entre outros militantes da causa. Porém, esta Lei, que
trata da obrigatoriedade dos estudos da história e cultura africana, afro-brasileira
e indígena em todas as escolas brasileiras, tem encontrado muitos obstáculos, que
vão desde a gestão de material didático até a formação de professores. Conforme
afirma Maria Nazaré de Mota Lima (2015),

a vigência da LDB com as alterações decorrentes das Leis


10.639/03 e 11.645/08 implica posicionamentos, reflexões,
práticas que, muitas vezes, são nada ou pouco conhecidas pe-
los professores/as, responsáveis diretos , mas não únicos, pela
mediação, a fim de que os conhecimentos de que trata a LDB
sejam produzidos e disseminados no contexto escolar. (...) Como
podem os educadores/as, porém, abordar temas como racismo,
preconceito, discriminação racial se não possuírem informação a
respeito? Se acreditarem que a questão, não é relevante ou ine-
xiste? ( LIMA, 2015, p.85-86)

Sabe-se que o trabalho de formação de professores na dimensão dos estudos ét-


nico-raciais também é recente em nosso país; sabemos também que, para além da
formação profissional, a incorporação de tais estudos deve passar necessariamente
pelo reconhecimento da própria história e da identidade por parte do educador/a,
ou seja, é preciso considerar em que medida esse professor/a está consciente das
suas questões de identidade, raça e gênero. Nós, educadores, antes de qualquer
formação acadêmica, precisamos definir o nosso pertencimento, para então dis-
cutirmos as possibilidades de instigar o outro a pensar sobre a sua afirmação iden-
titária também.
Sobre essa questão da formação do educador, Araújo (2017) acrescenta que,
além do desconhecimento, por parte dos educadores, dos motivos que levaram à
aprovação de uma lei com tal perspectiva, o racismo (in)consciente acaba por gerar
manifestações contrárias que prejudicam a efetiva implementação da Lei. Segundo
ela, “dentre as resistências, impera o discurso: ‘por que não se fala também da his-
tória dos italianos, dos japoneses, dos alemães, etc.’” Isso mostra o quanto a institui-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 231


Artes, memória e espaços
ção escolar tem responsabilidade no combate a todas as formas de discriminação
racial. Portanto, nós, professores/as, precisamos ter consciência da nossa subjeti-
vidade, saber de onde viemos e quem somos, para termos condições de colaborar
com a quebra de paradigmas e reexistir em consonância com os nossos educandos,
ou seja, saber para onde queremos ir.
Quanto às obras de literatura infanto-juvenil de temática africana ou afro-bra-
sileira, pesquisadas em momentos posteriores à implementação da Lei 10.639/03,
pode-se notar, com base no referencial teórico estudado até o momento, que em-
bora tenha ocorrido alguns avanços na qualidade da produção literária, no tocante
ao protagonismo dos personagens negros, o número de obras com estas caracterís-
ticas é ainda muito inferior ao das obras com personagens brancos como protago-
nistas. Como exemplo, trazemos o relato de uma das mais recentes pesquisadoras
sobre o tema, Sara da Silva Pereira (2019) que, ao analisar o acervo das obras lite-
rárias oferecidas pelo PNBE para a escola por ela pesquisada, constata que:

(...) pelo menos no acervo de livros de literatura infantil da insti-


tuição, ela (a diversidade étnico-racial) não está bem represen-
tada, pois há livros disponibilizados às crianças que apresentam
imagens estereotipadas de personagem negro. Sendo assim,
não estamos garantindo à criança o direito à diversidade que
valoriza a diferença, uma vez que a identidade negra aparece na
literatura disponível em pequeno número e algumas apresen-
tando negros negativamente. (PEREIRA, S.S.2019, p.63)

Associando estas análises aos meus estudos e ao fazer o levantamento (ainda


inconcluso) da literatura negra infanto-juvenil ofertada pelo PNBE na escola pes-
quisada, começamos a perceber a carência de obras consideradas inovadoras no
mercado editorial em relação à construção de personagens negros. É importante
salientar que, para considerar uma obra inovadora quanto à temática abordada,
nos baseamos nos aspectos elencados por Oliveira (2010), a saber: “o papel de des-
taque desempenhado pelos protagonistas negros; a relação destes protagonistas
com outros personagens em diferentes situações e espaços sociais; as descrições
que retratam a valorização fenotípica dos protagonistas, realçando a beleza ne-
gra”; o enredo com perspectivas outras, inserindo temáticas que vão além da dis-
criminação racial, evidenciando questões como a resistência negra e a religiosidade
de matriz africana.
Outro aspecto que chama a atenção nesse levantamento é o fato de a maioria
das editoras e dos autores adotados pelo PNBE serem os considerados consagra-
dos no mercado. Editoras étnicas, como Nandyala e Mazza, que são voltadas para
escritores negros que destacam personagens de um lugar valorizado, raramente
aparecem no acervo (GALDINO, 2019). Além disso, obras literárias tradicionais, que
representam comprovadamente o “racismo à brasileira”, são mantidas no acervo, a
exemplo das obras lobatianas.

232 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
O propósito deste estudo é investigar quais literaturas oferecidas aos estudan-
tes irão possibilitar a afirmação identitária, cumprindo-se também com o que pro-
põem os marcos legais (LDBEN 9.394/96; Lei Federal 10.639/93). Também é nosso
objetivo identificar quais dessas literaturas estão, ao contrário do que a lei exige,
reforçando estereótipos e promovendo a manutenção do racismo em suas verten-
tes distintas, a exemplo do mito da democracia racial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Retomando a reflexão que dá início a este artigo, voltamos a pensar no sujeito
de pesquisa a partir do lugar em que ele pode estar neste momento de pandemia.
Um lugar de confinamento e invisibilidade, de incertezas e ameaças de morte cons-
tantes. O vírus só veio a intensificar o que na realidade já existia, o racismo.
Mas se por um lado o vírus intensificou o medo, as desigualdades, o abandono,
isto pode nos instigar a tentar ressignificá-lo, porque é diante das ameaças que se
deve intensificar as lutas, a resistência, o enfrentamento para desmontar as es-
truturas construídas politicamente em seus intentos de silenciar cada vez mais as
vozes interditadas nas margens.
E a literatura pode ser, a nosso ver, o gatilho para um contágio positivo, que
poderá fazer emergir nesses alunos uma linguagem antirracista, despertando neles
o devir negro. Mas ao mesmo tempo há o perigo de uma literatura que seja capaz
de fazer exatamente o contrário, aniquilar o corpo já sofrido e dominado, conven-
cendo-lhe a render-se às verdades construídas sob a ótica do dominador. Por isso
a necessária e crítica análise das obras que levamos para a sala de aula.
Logo, chegamos a essa etapa da pesquisa cientes da complexidade que envolve
a investigação de uma literatura que ofereça para as crianças e adolescentes negro/
as a oportunidade de reconhecer-se como tal, mas em uma perspectiva positiva,
desconstruindo os estereótipos que estão entranhados em suas vidas há gerações,
e cuja manutenção é o propósito de uma sociedade que se vale desse racismo es-
trutural para garantir a sua soberania.

REFERÊNCIAS

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XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 233


Artes, memória e espaços
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234 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
AUTORIA
Cristina Cristo Alcantara do Nascimento
Programa de Pós- Graduação em Crítica Cultural da Universidade do Estado da
Bahia- UNEB
E-mail: cristalcaio@hotmail.com ; ccristinacristo@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0006-7972
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8230675907790580

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 235


Artes, memória e espaços
ST 32
Literatura
negra e crítica
contemporânea:
desafios e
intervenções
ANCESTRALIDADE, AFRO-BRASILIDADE EM
PERCURSO DE INSCRIÇÃO

Jurema Oliveira

“Negro preto cor da noite”,


nunca te esqueças do açoite
Que cruciou tua raça.
Em nome dela somente
Faze com que nossa gente um dia gente se faça!

Negro preto, negro preto, sê tu um homem direito


como um cordel posto a prumo!

É só teu proceder
Que, por certo, há de nascer a estrela do novo rumo!1

INTRODUÇÃO
A ancestralidade que nos alimenta aparece na base das linguagens (romance,
conto, poesia, provérbio) e expressões artísticas de matriz africana. O preexistente
é um personagem recorrente nas narrativas contemporâneas da afro-brasilidade,
mas também se manifesta de outras formas à medida que esse sentir e estar nesta
sintonia se mostra nos ritmos, alimentos e religiosidades cultuadas pela comuni-
dade negra. Neste sentido, o objetivo deste estudo é pautar modalidades poéticas
que transitam pelo plano da territorialidade coletiva exposta nas formas enuncia-
tivas moldadas na escrita cuja filosofia de sustentabilidade deste modo de estar
no mundo é de matriz africana. Dito isto, objetiva-se detectar a territorialidade
idealizada nos poemas de Oswaldo de Camargo, Éle Semog e Agostinho Neto. Os
textos selecionados são: Poema XL, Grito de angústia e Em maio, de Oswaldo de
Camargo; Distúrbio psicossomático, aliás, banzo e Ponto histórico, de Éle Semog;
Partida para contrato e Adeus à hora da largada, de Agostinho Neto.

INSCRIÇÃO POÉTICA DE RESISTÊNCIA


O espaço da literariedade dos autores selecionados explicita os caminhos a se-
rem explorados por meio da configuração precisa que desponta da espacialidade
demarcadora de uma territorialidade plastificada “ao pé do fogo” como diz Camar-

1 GUEDES, Lino. “Negro preto”. In: http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/sao_


paulo/lino_guedes.html. Acesso em 09 out. 2020.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 237


Artes, memória e espaços
go em seu poema nomeado “Poema XL” (CAMARGO, 2015, p. 101). O fogo exposto
na linguagem poética traz para cena uma memória ancestral pertencente à matriz
africana. Em torno da fogueira pensava-se a vida, os projetos coletivos, histórias
eram contadas e ensinamentos eram transmitidos. No entanto, esse fogo ancestral
transitou entre os continentes e adentrou outras espacialidades para contar novas
histórias, porque “Ao pé do fogo viviam quase sempre as histórias” (CAMARGO,
2015, p. 101) materializadas nos relatos da avó que lembrava os mistérios antigos
para energizar os caminhos das gerações que a sucederam como a “minha mãe”
que tinha “velhice na voz”. Nessa configuração imagética localiza-se a figura da
mais velha:

[...] minha avó se lembrava de antigos vestidos


e falava em baús com mistérios do tempo de antanho, meninota
ela e o tempo, primaveril.
O fogo, nessas noites, também lembrava histórias (CAMARGO,
2015, p. 101).

A imagem construída por meio da simbologia do fogo, representação dos valo-


res trazidos pelos negros escravizados, mantem-se viva e delineada na resistência
poética que uniu gerações em torno da fogueira imaginaria só compreendida na
dinâmica da palavra artística unificadora de vozes silenciadas na senzala, mas rea-
nimada no poema “Grito de angústia” do mesmo autor, texto este construído com
a energia de um coração capaz de “mover o mundo”:

Dê-me a mão!
Meu coração pode mover o mundo com uma pulsação.
Eu tenho dentro em mim anseio e glória que roubaram a meus
pais.
Meu coração pode mover o mundo, porque é o mesmo coração
dos congos, bantos e outros desgraçados,
é o mesmo (CAMARGO, 2015, p. 102).

“Grito de angústia” tem três estrofes irregulares, sendo a primeira composta


por nove versos, a segunda com doze versos e a terceira com cinco versos, sem
rima e sem métrica. O poema conta também com a repetição de estruturas frasais
dando ao texto um tom crítico- politico acerca da experiência escravocrata de ou-
trora. O eu-poético sustentando a postura advinda da experiência africana estende
a mão aos seus compatriotas, pois tem um coração capaz de movimentar o mundo.
O cenário desenhado por ele expõe a territorialidade dos seus descendentes, por-
que carrega no peito o “mesmo coração dos que são cinzas” (CAMARGO, 2015, p.
102) e repousam sob a “Capela dos Enforcados”.
A dimensão coletiva visível no discurso poético explicita a memória ancestral
que não foi diluída nas cinzas. É na escrita crítica que Camargo acolhe imaginaria-
mente os corpos impossibilitados de se movimentar para despertar o mundo. As-

238 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
sim, o sujeito poético: “É o coração da mucama/e do moleque” (CAMARGO, 2015,
p. 102), apesar de saber como “ninar gente branca”. No entanto, sua força vem
das experiências, da herança apreendida por meio das histórias “feitas à sombra
das palmeiras/ ou nas margens do Nilo” (CAMARGO, 2015, p. 102) pelos seus an-
cestrais, mas silenciada na esfera do universo fatual durante as décadas de escravi-
dão. E para ratificar seu conhecimento, o sujeito poético reafirma:

Eu conheço um grito de angústia, e eu posso escrever este grito


de angústia e eu posso berrar este grito de angústia. Quer ouvir?
- Sou um negro, Senhor, sou um ... negro! (CAMARGO, 2015, p.
103).

A territorialidade negra cuja estética esta pautada na coletividade atualiza sen-


sações pertencentes aos antepassados que é o fio condutor do hoje e do amanhã,
mas também estabelece a criticidade necessária em relação ao simulacro que foi o
13 de maio, como expõe Camargo em seu texto intitulado “Em maio”:

Já não há mais razão para chamar as lembranças e mostrá-las ao


povo em maio.
Em maio, sopram ventos desatados por mãos de mando, turvam
o sentido do que sonhamos (CAMARGO, 2015, p. 104).

As mãos de mando não são as mesmas estendidas aos seus compatriotas como
aquelas explicitadas no texto “Grito de angústia”. No poema “Em maio”, identifi-
ca-se uma senhora Liberdade em descompasso com suas ações, pois não libertou
ninguém “e nada sabe” das vidas negras:

Em maio, uma tal senhora Liberdade se alvoroça e desce às pra-


ças das bocas entreabertas e começa:
“Outrora, nas senzalas, os senhores...” Mas a Liberdade que des-
ce às praças nos meados de maio,
pedindo rumores, é uma senhora esquálida, seca, desvalida e
nada sabe de nossa vida.
A Liberdade que sei é uma menina sem jeito, vem montada no
ombro dos moleques ou se esconde no peito, em fogo, do que
jamais irão à praça (CAMARGO, 2015, p. 104).

A materialização do fato adverso no corpo textual por meio da metáfora da


sensibilidade ou da emoção coletiva ao perceber que a liberdade ainda é jovem e
não se pronuncia com tanta desenvoltura, se faz presente via percurso escondido
no peito daqueles “que jamais irão à praça”. O recurso estilístico, valorativo do
entrecruzamento problematizado acerca do 13 de maio na poética de Camargo,
reatualiza um contexto disforme de dimensões turvas, nada condizente com os
impulsos advindos dos processos históricos em uma temporalidade das organiza-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 239


Artes, memória e espaços
ções nomeadas como irmandades negras, quilombos e de todos os movimentos
libertários distintos à falácia do 13 de maio.
Em diálogo com “Distúrbio psicossomático, aliás, banzo” de Éle Semog, poema
de uma única estrofe com oito versos, o sujeito poético reforça a disparidade da
falsa liberdade promovida no 13 de maio ao pontuar o papel do oceano Atlântico
na vida daqueles que foram repousar no território aquático e em outras paragens
não escolhidas por eles:

Tem dias que o coração aperta,


e uma tristeza vai moendo as entranhas, e uma moleza esbagaça
os planos
e uma certeza estraga o amanhã.
Vou me curar na praia de Copabacana. E sentado ali, por finito
tempo,
fico olhando aquela merda de oceano Atlântico que interrom-
peu o meu destino (2014, p. 83).

Entender o movimento da territorialidade negra na linguagem artística significa


elaborar as configurações especificas condizentes com os atores aqui representa-
dos. A clivagem verbal e não verbal pontua direcionamentos demarcadores dos
valores negros não detectáveis nas séries poéticas e literárias cujos atores/autores
são outros. A temporalidade é um fator significativo e funciona constantemente
como parâmetro estético da ação em curso para delimitar aquilo discutido, valori-
zado, admirado ou criticado. A estrutura artística dos gestos criativos, dos rituais
coletivos, da memória ancestral oriundos das ações poéticas e literárias produzidas
por atores históricos não petrificados pelo arcabouço teórico convencional se faz
presente nos poemas de Camargo e Semog:

As experiências passadas mantêm-se retidas na memória e po-


dem ser recuperadas no presente por meio da linguagem. O cor-
po guarda dois tipos de vivências: uma ligada à memória-hábito,
que faz parte do adestramento cultural do sujeito, e a outra se
define como imagem-lembrança. A memória-hábito constitui-se
num conjunto de conhecimento adquirido pela observação e
pela repetição de movimentos ou palavras. Ela se faz necessária
à vida comunitária, à socialização. A outra, a imagem-lembran-
ça, ocupa a área profunda da mente e, ao ser evocada, se corpo-
rifica de forma única, irreversível. O sonho poético nasce desta
experiência latente nas zonas mais profundas do psiquismo. As
impressões configuradas na escrita são resultantes de um mate-
rial que tem o aspecto de um palimpsesto – manuscrito sob cujo
texto se descobre a escrita ou escritas anteriores – que, raspado
várias vezes, tende a dar o tom, o colorido, às representações,
às manifestações das essências escondidas nas profundezas das
substâncias da matéria (OLIVEIRA, 2011, p. 76).

240 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
O trânsito neste cenário de criatividade artística impõe um olhar distinto da-
queles recorrentes em produções artísticas advindas de uma série literária já pa-
dronizada teoricamente e que consolidou um discurso racista. Se em Camargo o
coração move o mundo, em Semog ele aperta a alma do indivíduo, mas identifica
criticamente o elemento provocador da dor que interrompeu seu destino.
Em perspectiva dialógica com a poética de matriz angolana convoca-se para
cena literária Agostinho Neto com o poema “Partida para o contrato”. Detecta-se
entre o texto de Neto e Semog uma semelhança histórica sugerida na voz poética.
A fala que anuncia a saída do território angolano para São Tomé e Príncipe no texto
“Partida para o contrato” narra a experiência de exploração, do trabalho semies-
cravo. O mar aparece mais uma vez como aquele que separa o sujeito negro de
seu ponto de origem. A estrutura do poema é composta por quatro estrofes com
versos livres, sem métrica, rima e conta com uma estrofe monóstica. Na primeira
estrofe, o leitor é apresentado ao semblante do personagem: “O rosto retrata a
alma/ amarfanhada pelo sofrimento” (2004, p. 9). A partida é extremante dolorosa
e historicamente nem sempre havia expectativa de retorno à terra natal. Na segun-
da estrofe, o eu poético expõe o estágio de violência a que o sujeito é submetido:

Nesta hora de pranto vespertina e ensanguentada Manuel


o seu amor
partiu para S. Tomé
para lá do mar (NETO, 2004, p. 9).

Paulatinamente, o poema vai expondo a trajetória de Manuel, cujo destino é


fixar-se no território aquático. O que leva o eu poético a questionar:

Até quando?

Além no horizonte repentinos


o sol e o barco se afogam
no mar escurecendo
o céu escurecendo a terra
e a alma da mulher (NETO, 2004, p. 9).

A travessia entre Luanda e S. Tomé e Príncipe assemelha-se aquela efetivada


pelo oceano Atlântico rumo as Américas. Captar a linha mestra da territorialidade
negra para dimensionar a perspectiva artística com um cunho politico-ideológi-
co em curso significa atrelar o engajamento artístico aos demais referenciais que
precisam ser explicitados, porque a arte materializa as vozes silenciadas. O papel
do autor é, também, ter consciência de seu lugar de fala, do momento histórico e
atrevimento para articular as novas configurações aos dados fatuais. A ideia da ter-
ritorialidade negra amplifica o campo de visão à medida que se identifica a cadeia
ancestral comportamental de matriz bantu se firmando discursivamente desde os
primórdios da inserção negra nas Américas e nos contextos distintos àqueles de

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 241


Artes, memória e espaços
nascimento de Manuel, personagem valorizado por Neto em sua escrita. As eluci-
dações e precauções oriundas da metáfora da criação presente no poema “Partida
para o contrato” caracteriza um direcionamento teórico a partir do conhecimen-
to histórico do trabalho feito por contrato em São Tomé e Príncipe para traduzir
mimeticamente a ausência de direitos humanizados direcionados ao personagem
Manuel no plano real. A sintaxe do texto valoriza a repetição frasal, a sua recons-
trução, despertando no leitor uma reflexão acerca da situação, porque:

Não há luz
não há estrelas no céu escuro Tudo na terra é sombra
Não há luz
Não há norte na alma da mulher Negrura
Só negrura... (NETO, 2004, p. 9).

No trecho anterior, detecta-se a materialidade das faltas no corpo textual por


meio da metáfora sensível que registra na encenação poética a ausência do amado
na vida da mulher em decorrência da travessia por ele para São Tomé e Príncipe. A
ideia não se separa da coisa narrada e pode ser identificada nos fatos históricos so-
bre a movimentação dos angolanos rumo ao país S. Tomé e Príncipe. A estética do
sentimento é a abertura para acolher as dimensões da invisibilidade negra do dia-
-a-dia de um contexto colonial fatual. Esta dimensão só é perceptível na cena poé-
tica traçada por Neto, mas também exposta por Camargo e Semog em suas obras.
Os autores aqui exemplificados usam os recursos imagéticos para captar o espaço,
o local, o destino comum àqueles sujeitos impossibilitados de se movimentar para
outras paragens naquele momento, mas movimentam-se no espaço poético com
o dinamismo só perceptível na escrita artística. De acordo com Arlindo Barbeitos:

Assim como o camponês aprende a trabalhar a terra, o poeta


aprende a trabalhar com a palavra, aprende a não dizer de mais
e a não dizer de menos, aprende a sugerir. A poesia não deve
fazer mais que sugerir; ela é um compromisso entre a palavra e
o silêncio, não o silêncio de quem não tem nada para dizer, mas
o silêncio que é o sumo de muita coisa. Então o poeta traduz.
Ele é uma boca, e deve ser a boca daqueles que não têm boca
(2004. p. 9).

A materialidade do conhecimento vivenciado pelo poeta produz uma estética e


uma ética recorrente no estilo artístico performático. Nessa linha de fuga, a discur-
sividade dos autores aqui selecionados une no espaço literário uma solidariedade
pertinente à espacialidade imaginaria e plastificada nas linhas de seus versos. Dito
isto, “Ponto histórico” de Semog com duas estrofes irregulares de 25 versos sinali-
za um olhar negro acerca das coisas:

242 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
Não é que eu Seja racista...
Mas existem certas Coisas
Que só os NEGROS Entendem2.

Ritualisticamente, o vinculo corpo/situação se concretiza na dimensão coleti-


va, pois só o conjunto adquire força para ultrapassar as individualidades frágeis,
divisíveis que inviabilizam os ritos herdados dos antepassados. O elo coletivo na
solidariedade produz por força do ritual os vínculos territoriais alinhando corpo/
espaço na sua plenitude geracional, alimentando as conexões de pertencimento
tão necessárias à visibilidade do sujeito negro, porque existe:

[...] um tipo de amor Que só os NEGROS Possuem,


Existe uma marca no Peito
Que só nos NEGROS Se vê3.

O poeta aprende a trabalhar a palavra para amenizar a dor na hora da largada


tão bem detalhada por Neto no poema “Adeus à hora da largada” composto por
seis estrofes irregulares, dois versos dísticos sem rima e sem métrica. Entender o
movimento pelo mundo dos corpos negros significa ouvir os ensinamentos da Mãe:

Minha Mãe
(todas as mães negras Cujos filhos partiram)
tu me ensinaste a esperar
como esperaste nas horas difíceis (2004, p. 7).

No entanto, as disparidades e a impossibilidade de concretizar aquilo sugerido


pelas mães levaram o eu poético afirmar que a África metaforizada no texto aguar-
da pelos seus libertadores:

Eu já não espero
sou aquele por quem se espera Sou eu minha Mãe
a esperança somos nós
os teus filhos
partidos para uma fé que alimenta a vida (2004, p. 7)

UM PERCURSO EM CONSTRUÇÃO
A leitura desenvolvida a partir dos poemas escolhidos sinaliza a presença da-
quele fogo ancestral sugerido na poética de Camargo para alimentar os sonhos
das gerações futuras pontuadas na escrita de Semog, pois o sujeito mesmo com o

2 SEMOG, Éle. Ponto histórico. In: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autores/11-textos-dos-


-autores/235-ele- semog-texto-selecionados.
3 SEMOG, Éle. Ponto histórico. In: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autores/11-textos-dos-
-autores/235-ele- semog-texto-selecionados.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 243


Artes, memória e espaços
coração apertado vai à praia de Copacabana olhar o oceano Atlântico que separou
seus antepassados de sua terra natal. Assim, o percurso se amplifica na voz de
Neto quando os personagens de sua discursividade juntos vão à busca da luz para
acalentar os corações de todas as mães cujos filhos tiveram que partir.

REFERÊNCIAS

BARBEITOS, Arlindo. Angola, angolê, angolema. Luanda: Maianga, 2004.

CAMARGO, Oswaldo de. Poema XL. In: Raiz de negro brasileiro: esboço autobiográfico.

São Paulo: Ciclo contínuo, 2015.

CAMARGO, Oswaldo de. Grito de Angústia. In: Raiz de negro brasileiro: esboço autobio-
gráfico. São Paulo: Ciclo contínuo, 2015.

CAMARGO, Oswaldo de. Em maio. In: Raiz de negro brasileiro: esboço autobiográfico. São
Paulo: Ciclo contínuo, 2015.

GUEDES, Lino. “Negro preto”. In: http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/


sao_paulo/lino_guedes.html. Acesso em 09 out. 2020. NETO, Agostinho. Partida para
contrato. In: Sagrada esperança. Luanda: Maianga, 2004. NETO, Agostinho. Adeus à hora
da largada. In: Sagrada esperança. Luanda: Maianga, 2004. SEMOG, Éle. Distúrbio psicos-
somático, aliás, banzo. ADÚN, Guellwaar; ADÚN, Mel;

RATTS, Alex (Org.) Ogum’s noques negros: coletânea poética. Salvador: Ogum’s toques
negros, 2014.

SEMOG, Éle. Ponto histórico. Disponível em http://www.letras.ufmg.br/literafro/auto-


res/11-textos-dos-autores/235-ele-semog-texto- selecionados. Acesso em 09 out. 2020.

OLIVEIRA, Jurema. No limite entre a memória e a história: a poesia. Vitória: Edufes, 2011.

AUTORIA
Jurema Oliveira
Universidade Federal do Espírito Santo – Ufes, pesquisadora da Fundação de Apoio
à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo - Fapes
E-mail: juremajoliveira@hotmail.com ORCID: 0000-0003-3635-4348
Lattes: http://lattes.cnpq.br/ 7613986737053601

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Artes, memória e espaços
NEGRAS ESCRITURAS: O PAPEL DAS MÍDIAS
SOCIAIS NA DIVULGAÇÃO DA ESCREVIVÊNCIA
NEGRA

Bruna Ribeiro Troitinho

RESUMO
A literatura negra produzida por mulheres esteve sempre à margem do cânone
literário. A redescoberta de Maria Firmina dos Reis é um sintoma do processo de
invisibilização que as escritoras negras passaram no Brasil. A escritora lançou seu
primeiro romance, Úrsula, em 1859, alcançando sucesso à sua época, mas esque-
cido na literatura brasileira até 1975, quando surgiu a segunda edição do romance.
Como Maria Firmina, poderíamos citar outras escritoras: Carolina Maria de Jesus,
Anajá Caetano, Ruth Guimarães, Geni Guimarães e tantas outras que ainda são
colocadas à margem do cânone literário. A presente proposta pretende refletir
sobre o papel das mídias sociais na divulgação e visibilidade da produção de escre-
vivência negra. Por escrevivência, compreendo isto como a dialética entre a escrita
e a experiência, rompendo o silêncio imposto à produção de literatura de sujeitos
negros desde a perspectiva de Conceição Evaristo. Articulo ao longo da pesquisa a
escrita enquanto forma de poder e de tornar-se sujeito, conforme apontam Grada
Kilomba e Patricia Hill Collins. O objetivo é compreender como emerge a voz das
escritoras negras nas mídias sociais a partir de perfis literários organizados por mu-
lheres negras. Essa proposta analisa o perfil literário Negras Escrituras, organizado
pela autora proponente, dialogando com outros perfis com a mesma proposta.
Como resultados parciais, percebe-se que estes perfis literários possuem um an-
seio de criar um espaço de ruptura com o cânone literário, demarcando a produção
dos sujeitos negros à margem em direção ao centro da produção literária. Esses
perfis impulsionam, mesmo que numa proporção menor que perfis dedicados à
literatura hegemônica, a leitura de obras e a aproximação com escritoras negras
brasileiras através da apresentação de suas biografias. Além disso, muitos perfis
criam leituras coletivas, incentivando o compartilhamento de ideias sobre uma
mesma obra.

Palavras-Chave: Escrevivência Negra; mídias sociais; Negras Escrituras; literatura


negra.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 245


Artes, memória e espaços
INTRODUÇÃO
O presente estudo parte de uma perspectiva de compreensão da literatura
como um produto da cultura, por isso apresenta hierarquias e disputas na escrita
e divulgação. Como consequência dessas disputas, a escrita de mulheres negras foi
colocada à margem do cânone literário. Contudo, nos últimos anos, em especial a
partir das Políticas de Ações afirmativas, estudantes negras e negros fizeram o res-
gate da produção dessas mulheres esquecidas pela sociedade e mercado editorial.
O exemplo mais pertinente do que estou afirmando nesta introdução é a Maria
Firmina dos Reis, primeira romancista deste país, uma mulher negra cuja obra es-
teve em profundo esquecimento até a década de 19701. Contudo, apenas recente-
mente sua trajetória e obra foram revisitadas pela crítica literária, como é o caso da
obra “Maria Firmina dos Reis na literatura afrodescendente brasileira: revisitando
o Cânone (2016)”, de Algemira de Macêdo Mendes, assim como nas pesquisas aca-
dêmicas desenvolvidas por intelectuais negras, como é o caso da obra “Silêncios
(Pre)scritos: Estudos de romances e autora negras brasileiras (1859-2006)”, da Fer-
nanda R. Miranda2.
A obra de Fernanda tem um peso muito importante ao trazer para o debate a
produção de várias escritoras negras ao longo da história, como é o caso de Firmina
e Carolina Maria de Jesus. A respeito de Carolina, graças às pesquisas e à demanda
crescente de acesso a sua escrita, o resgate de sua obra também começa a cami-
nhar em direção ao reconhecimento. Neste ano de 2020, a editora Companhia das
Letras anunciou que irá lançar várias obras perdidas Brasil afora de Carolina, recu-
peradas através de muita pesquisa. Inclusive fazem parte do Conselho Editorial3
a Vera Eunice, filha de Carolina, e as pesquisadoras Fernanda Miranda, Amanda
Crispim, Fernanda Felisberto e Raffaella Fernandez.
Esses exemplos apresentados nesta introdução suportam o argumento que
será apresentado ao longo deste artigo: a conexão entre pesquisas acadêmicas
feitas por mulheres negras e a demanda crescente de acesso à leitura de obras de
mulheres negras estão rompendo o silenciamento imposto à literatura de autoria
negra feminina. Dentro da demanda crescente, compreendo também o surgimen-
to de uma comunidade online de mulheres negras produzindo conteúdo literário
sobre a autoria feminina negra, que é o foco central deste artigo.
A escrita deste artigo parte deste lugar que ocupo como produtora de conteúdo
na internet sobre a literatura de autoria negra e também como uma cientista social
em formação, cuja preocupação foi e é compreender os processos de invisibiliza-
ção e resistência da cultura negra no Brasil.

1 A obra de Maria Firmina dos Reis foi descoberta por acaso em 1973 pelo pesquisador Nasci-
mento Moraes Filho, cuja pesquisa resultou no livro Maria Firmina dos Reis: fragmentos de uma vida.
A consequência desse achado foi a publicação da 2ª edição de Úrsula. (MIRANDA, 2019).
2 A obra recebeu o Prêmio Capes de Tese 2020 na área de Linguística e Literatura.
3 Informações fornecidas pela editora Companhia das Letras em suas redes sociais.

246 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
Este artigo está organizado em três seções. A primeira é uma discussão teórica
sobre o silenciamento da literatura de mulheres negras e suas escrevivências como
alternativas. A segunda seção define as redes sociais e como foi feita a seleção dos
perfis analisados. A última é uma breve análise dos perfis selecionados para este
artigo. Tendo em vista que é uma pesquisa ainda em desenvolvimento, este artigo
é um início da discussão sobre o papel desses perfis literários para divulgação da
literatura de autoria feminina negra.

ROMPENDO OS SILÊNCIOS COM AS ESCREVIÊNCIAS


Nesta seção, apresentarei brevemente as discussões em torno da autoria negra
no Brasil desde uma perspectiva da colonialidade do saber, ser e poder (LANDER,
2005; MALDONADO-TORRES, 2008; QUIJANO, 2005) que reproduzem o silencia-
mento desta literatura. Os conceitos de colonialidade surgiram dentro do Grupo
Modernidade/Colonialidade, quando intelectuais latino-americanos, em sua maio-
ria homens brancos, questionavam a produção do saber eurocêntrico. Na perspec-
tiva desses teóricos, a modernidade surge quando a Europa expande seus territó-
rios para as Américas no século XV e cria alguns marcadores da diferença nesse
processo como a raça. O resultado desse processo histórico é a colonialidade, que
é definida como “uma lógica global de desumanização que é capaz de existir até
mesmo na ausência de colônias formais” (MALDONADO-TORRES, 2019, p. 36). As
colonialidades do saber, poder e ser, operando juntas, organizam e mantêm di-
versas camadas de desumanização as quais afetam diretamente a subjetividade
humana.
Em consonância com esta perspectiva, parto do argumento que o sujeito corpo-
rificado é o elemento-chave que conecta as três colonialidades, pois “é constituído
e sustentado pela sua localização no tempo e no espaço, sua posição na estrutura
do poder e na cultura, e nos modos como se posiciona em relação à produção do
poder” (MALDONADO-TORRES, 2019, p. 43). Com base nisso, posso afirmar que
parte da literatura de autoria negra foi colocada à margem do cânone literário
devido à combinação do lugar social dentro da estrutura de poder que ocupavam
na sociedade. Conforme afirma Cuti (2014, p.46), “a literatura negra vem sendo
prejudicada pelo viés estritamente sociológico que a vê apenas como representa-
ção mimética”. As sujeitas negras subalternizadas que se lançam na escrita foram
e ainda são vistas como uma literatura marginal ou panfletária, insuficiente de per-
tencerem ao campo literário. Dessa forma, o olhar que é dado à obra da Carolina
e de outras escritoras e escritores nesse lugar sociológico retira a capacidade de
narrar a sua poética, a privando de ser compreendida como pertencente ao campo
literário (BAROSSI, 2017). Como demonstra Miranda (2013), Carolina é colocada no
lugar “favelada que escreve”, logo ela poderia continuar a afalar desde que falasse
do seu lugar de subalterna, sendo esta mais uma estratégia de silenciamento.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 247


Artes, memória e espaços
A respeito do silenciamento, vemos desde a obra de Spivak (2010) que a con-
dição de subalternidade implica a imposição do silêncio que funda esse não- lu-
gar epistêmico. Contudo, essa subalternidade silenciosa de Spivak é problemática
“porque sustenta a ideia de que o sujeito negro não tem capacidade de questionar
e combater discursos coloniais” (KILOMBA, 2019, p.48). Kilomba nos alerta que
essa perspectiva de subalterna silenciosa é perigosa porque reforça ideologias as
quais afirmam que os grupos subordinados se identificam com os algozes e em
segundo lugar fortalece a imagem de que esses grupos são menos humanos, logo,
não podem falar em seu próprio nome. hooks também contribui nessa discussão
sobre o rompimento com o silenciamento imposto aos grupos subalternos ao afir-
mar que “apenas como sujeitos é que nós podemos falar. Como objetos, perma-
necemos sem voz – nossos seres, definidos e interpretados pelos outros” (hooks,
2019, p. 45, grifo meu).
Conceição Evaristo (2009) discute como a literatura brasileira feita por pessoas
não- negras ao longo dos anos tem narrado os/as sujeitos/sujeitas negros/negras
como desprovidos de linguagem, portanto, incapazes de aprender a linguagem do
homem branco. Além disso, Conceição discorre acerca da construção do imaginá-
rio brasileiro da mulher negra a partir dessas narrativas não-negras. Essas narrati-
vas retiram qualquer laço de descendência da mulher negra e reforçam a imagem
de controle4 de “mãe preta” cuidadora dos filhos dos brancos (EVARISTO, 2009).
Por outro lado, a autora nos mostra outras escritas que surgem empenhadas em
transformar os que outrora eram tratados como objetos como sujeitos da narra-
tiva.
O conceito de escrevivência de Conceição Evaristo se apresenta como uma pos-
sibilidade de romper com esse silenciamento imposto por muito tempo na litera-
tura brasileira. “Escrever Becos foi perseguir uma escrevivência. Por isso, também
busco a primeira narração, a que veio antes da escrita. Busco a voz, a fala de quem
conta, para se misturar à minha.” (EVARISTO, 2020, p.11). Em Becos de Memória,
temos a primeira argumentação de Conceição a respeito do conceito e posterior-
mente ela o irá reforçar como parte da escrita de uma literatura negro- brasileira:
“[...] os textos afro-brasileiros surgem pautados pela vivência de sujeitos negros/as
na sociedade brasileira e trazendo experiências diversificadas, desde o conteúdo
até os modos de utilização da língua.” (EVARISTO, 2009, p.27). À época da escri-
ta desse trecho, Conceição refletia sobre iniciativas que visavam propagar vozes
negras como o grupo Quilombhoje responsável pelos Cadernos Negros, um dos
principais meios de divulgação de escritores/escritoras negros/negras no Brasil.
Mais de uma década depois dessa reflexão de Conceição Evaristo, temos o sur-
gimento de várias editoras especializadas na literatura de autoria negra, como a
Malê, criada em 2015, com muitos perfis literários em várias plataformas divul-

4 Refere-se às imagens produzidas socialmente durante o período de exploração colonial e


que perduram até os dias atuais, que refletem o interesse dos grupos dominantes de manter a mu-
lher negra em subalternidade (COLLINS, 2019).

248 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
gando e problematizando o mercado editorial brasileiro. No ano de 2016, a carta
aberta da professora Giovana Xavier à Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP)
pontuava que esse evento literário continuava a impor um silenciamento da escrita
de autoria negra, conforme o trecho a seguir.

Em um país de maioria negra e de mulheres, é um absurdo que


o principal evento literário do país ignore solenemente a produ-
ção literária de mulheres negras como Carmen Faustino, Cidinha
da Silva, Elizandra Souza, Jarid Arraes, Jennifer Nascimento, Livia
Natalia e muitas outras”, diz o documento. “Que naturalizando
o racismo, a curadoria considere que fez sua parte convidando
autoras da raça Negra que infelizmente não puderam aceitar o
convite. A não procura de planos a, b, c diante destas supostas
recusas relaciona-se à falta de compromisso político da FLIP com
múltiplas vozes literárias nacionais e internacionais [...] Este si-
lenciamento do nosso existir em uma feira que se reivindica cos-
mopolita, mas está mais para Arraiá da Branquidade, se insere
no passado-presente da escravidão(XAVIER, 2016, n.p).

O reflexo da repercussão desta carta, somado a produção intelectual de mulhe-


res negras sobre a literatura de autoria negra no Brasil e a demanda por essa litera-
tura, no ano de 2019 o mesmo evento contou a participação de diversos nomes de
escritores/escritoras negros/negras. Como é sabido, dos 5 livros mais vendidos da
FLIP de 2019, 4 são escritores/escritoras negros/negras (Grada Kilomba, Ayobami
Adebayo, Kalaf Epalanga, Gaël Faye) e 1 do escritor indígena Ailton Krenak.

AS REDES SOCIAIS E A SELEÇÃO DOS PERFIS


Neste artigo, foram analisados perfis que estão na rede social Instagram, criada
em 2010, e cujo foco são as imagens e vídeos, se mostrando uma rede vinculada à
estética. Defino rede social como um local de conexão de pessoas por meio de seus
interesses que são facilitados pela tecnologia.

Uma rede social é definida como um conjunto de dois elemen-


tos: atores (pessoas, instituições ou grupos; os nós da rede) e
suas conexões (interações ou laços sociais) [...]. Uma rede, as-
sim, é uma metáfora para observar os padrões de conexão de
um grupo social, a partir das conexões estabelecidas entre os
diversos atores (RECUERO, 2009, p.24).

Como toda rede social, o Instagram incentiva a formação de comunidades atra-


vés dos interesses em comum. O universo literário dentro dessa plataforma é gran-
de e assim como na vida off-line, reproduz algumas hierarquias. Basta uma pesqui-
sa simples pelas hashtags, um mecanismo de busca por temas, por bookstagram
ou Instagramliterário, hashtags usadas para categorizar conteúdos literários, para

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 249


Artes, memória e espaços
FIGURA 1: PERFIL NEGRAS ESCRITURAS

Fonte: Instagram Negras Escrituras, 2020.

FIGURA 2: LEITURA COLETIVA

Fonte: Instagram Negras Escrituras, 2020.


FIGURA 3: PERFIL LENDO MULHERES NEGRAS

Fonte: Instagram Lendo Mulheres Negras, 2020.


FIGURA 4: POSTAGENS LENDO VOCÊS

Fonte: Instagram Lendo Mulheres Negras, 2020.


encontramos criadores de conteúdo branco nos posts de maior impacto na plata-
forma. Esse é um debate que produtores/produtoras de conteúdo negras/negros
têm colocado em suas redes. Questionamentos sobre quem são os/as produtores/
produtoras de conteúdo selecionado por grandes editoras, quem são os/as esco-
lhidos/escolhidas por clubes de assinatura de livros, são constantes.
Na próxima seção apresento os perfis selecionados a partir dos seguintes cri-
térios: produtoras se identificam como negras e produzem conteúdo refletindo
sobre o processo de silenciamento de escritoras negras. Dentro desse universo de
Instagram literários produzidos por pessoas negras há uma diversidade de perfis
que este artigo não conseguirá abarcar. Além disso, no ano de 2020 muitas pessoas
ingressaram na comunidade devido ao período de isolamento social que estamos
vivendo em consequência da COVID- 19. A leitura foi uma das atividades de lazer
bastante incentivada durante este período de restrição. O exemplo comum dentro
da comunidade de instagram literário foi a organização de leituras coletivas com
encontros semanais ou mensais, virtuais, para discutir um livro em específico e
compartilhar as impressões e a experiência de leitura.

ANÁLISE DOS PERFIS


Como relatei na introdução, também faço parte desta comunidade desde o
ano de 2018 através do perfil Negras Escrituras. Criei este perfil com o anseio de
compartilhar minhas leituras, especialmente de autoria negra, porque era comum
dentro da academia professores e colegas alegarem não conhecer escritores/es-
critoras negros/negras. O perfil também reflete uma angústia com a reprodução
da colonialidade do saber evidente na maioria das disciplinas de Ciências Sociais
que cursei durante meu mestrado e agora no doutorado, que continuam com as
bibliografias centradas no eixo Europa-Estados Unidos.
No decorrer do ano de 2020, organizei três leituras coletivas. A primeira foi
o livro Pensamento Feminista Negro, da Patricia Hill Collins, que resultou na for-
mação de um coletivo de mulheres negras e acadêmicas que refletem sobre suas
vivências na academia. A segunda foi em parceria com outros dois perfis sobre o
livro Fique Comigo, da escritora nigeriana Ayòbámi Adébáyò. A última, que ainda
está em andamento, é o livro Um defeito de cor, da Ana Maria Gonçalves. Também
participei de uma leitura organizada por outro perfil da obra Água de Barrela, de
Eliana Alves Cruz.
O Lendo Mulheres Negras foi criado em 2016, em Salvador, e era inicialmente
um clube de leitura dedicado a conhecer e divulgar a literatura negra. O projeto
ampliou sua atuação desde a fundação através de ações como o “Lendo vocês”, no
qual seguidoras podiam mandar seus textos para que a página divulgasse, o “30
autoras negras”, realizado no mês de novembro para divulgar escritoras negras
brasileiras, e o “Isso é arte de mulher negra”, que compartilha a produção cultural
das mulheres negras.

252 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
No ano de 2020, o Lendo Mulheres Negras organizou o “I Seminário Lendo Mu-
lheres Negras: escrita e pensamento de mulheres negras”, o qual contou com a par-
ticipação de escritoras e pesquisadoras, além de contar com um espaço para expo-
sição de pesquisas acadêmicas sobre a escrita e o pensamento de mulheres negras.
Este evento foi um marco no diálogo entre as escritoras, as produtoras de conteúdo
e as pesquisadoras acadêmicas, reforçando o argumento que trago ao longo deste
artigo. São esses três eixos responsáveis pelo rompimento do silenciamento sobre
a literatura negra no Brasil.

O Mulheres Negras na Biblioteca surgiu em 2016, quando quatro estudantes do


curso técnico em Biblioteconomia perceberam que não existiam autoras negras
na biblioteca na instituição e ouviram a justificativa de que “não havia demanda”.
Elas iniciaram ações de arrecadação de livros, rodas de conversa e começaram a
ampliar o debate, resultando no coletivo Mulheres Negras na Biblioteca.

FIGURA 5: MULHERES NEGRAS NA BIBLIOTECA

Fonte: Mulheres Negras na Biblioteca, 2020.


FIGURA 6: “QUANTAS AUTORAS NEGRAS VOCÊ CONHECE?

Fonte: Mulheres Negras na Biblioteca, 2020.

Durante o ano de 2020, o Mulheres Negras na Biblioteca organizou diversas


ações online para refletir sobre sua questão fundadora: “quantas mulheres negras
você já leu?”. Foram organizadas lives e chamadas ao vivo no Instagram com es-
critoras reconhecidas e em início de carreira para falar sobre a escrita de mulheres
negras. Em parceria com o Sesc Ipiranga, o coletivo organizou uma web série intitu-
lada “Quantas autoras negras você já leu?”, com episódios semanais cuja reflexão
central é o porquê do silenciamento da literatura de autoria feminina negra. Os
vídeos foram disponibilizados tanto no YouTube quanto no Intstragram do Sesc
Ipiranga.
O perfil Leituras Decoloniais surgiu como uma alternativa de financiamento da
produção de conteúdo de quatro mulheres negras: 1) Maria Ferreira, que possuiu
um blog, um perfil no Youtube e no Instagram chamado Impressões de Maria, 2)
As irmãs Pétala e Isa, que possuem um perfil no Instagram, Afrofuturas, no qual
indicam leituras de ficção científica e afrofuturismo5; 3) Camila Dias, que no seu
perfil, Camila e seus livros, compartilha diversas impressões sobre livros e universo
literário.

5 O afrofuturismo é um movimento estético, filosófico e cultural que combina o resgate da


história da diáspora negra e sua cosmologia e mitologia, criando uma narrativa afrocentrada.

254 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
FIGURA 7: LEITURAS DECOLONIAIS


FIGURA 8: POST DE APRESENTAÇÃO DAS PRODUTORAS

Fonte: Instagram Leituras Decolonais, 2020.


A leituras decoloniais promove encontros mensais para discutir intelectuais
negras e promover o debate sobre a colonialidade das leituras. Além disso, elas
organizam um encontro para incentivar a escrita das mulheres que participam dos
encontros para quebrar os mitos que existem no processo de escrita. De todos os
perfis citados neste artigo, este é o mais novo (2020), mas suas produtoras já são
conhecidas na comunidade de Instagrams literários. Como apontado anteriormen-
te neste artigo, não conseguirei explorar toda a diversidade de perfis que existem
na comunidade de Instagrams literários produzidos por mulheres negras.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo é resultado de uma pesquisa em andamento que busca compre-
ender como os perfis literários somados com as pesquisas acadêmicas realizadas
por intelectuais negras estão rompendo com o silenciamento estrutural imposto à
literatura de mulheres negras. Ambos têm contribuído para a crescente demanda
ao acesso dessa literatura, resultando em projetos de editoras de lançamento de
novas escritoras negras. Como apresentei durante o artigo, a escrita das mulheres
negras através de suas escrevivências (EVARISTO, 2009) apresenta uma outra nar-
rativa sobre a sociedade e outras formas de fazer literatura.
Os perfis, ainda com impacto pequeno se comparado a outros do mercado, im-
pulsionam as discussões sobre a invisibilidade da literatura de autoria negra atra-
vés de ações como leituras coletivas, debates com as próprias escritoras e divul-
gação de escritoras independentes, como se viu na seção de análise dos perfis.
Devido o momento atual – o isolamento social causado pela COVID-19 – ainda há
muito que analisar sobre o papel desses perfis na divulgação da literatura de auto-
ria negra feminina.

REFERÊNCIAS

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Disponível em << https://www.instagram.com/p/CBq3z7vAvd0/?utm_source=ig_web_
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256 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
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Disponível em << https://conversadehistoriadoras.com/author/gixavier/>>. Acesso em 15
de setembro de 2020.

AUTORIA
Bruna Ribeiro Troitinho
Universidade Federal de Santa Maria
E-mail: brunari.troitinho@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8178-9319
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7142653390797346

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 257


Artes, memória e espaços
ST 47
Poéticas do existir:
escrevivências
do povo negro na
literatura e em
outras artes
CAROLINA MARIA DE JESUS: CONQUISTAS E
DESAFIOS NA SUA TRAJETÓRIA DE ESCRITA EM
60 ANOS DE QUARTO DE DESPEJO
Vanessa Maria Poteriko da Silva

Eu disse: o meu sonho é escrever!


Responde o branco: ela é louca.
O que as negras devem fazer...
É ir pro tanque lavar roupa.
Carolina Maria de Jesus (1996a).

INTRODUÇÃO
Quarto de despejo: diário de uma favelada foi publicado em agosto de 1960, um
diário já esperado pelo público da época devido às reportagens lançadas pelo jor-
nalista e editor Audálio Dantas antes da publicação. Ao anunciar um fato inédito:
uma negra moradora da favela do Canindé, com pouca instrução, escreve um diário
de suas agruras, Dantas desperta previamente no público um sentimento de curio-
sidade a respeito do conteúdo desse diário. Os versos acima, de Carolina Maria de
Jesus, denunciam o tipo de público que viria a receber sua obra: um público que, em
sua maioria, considera loucura uma mulher negra se propor a escrever, público que
reflete uma sociedade que predetermina um local para a mulher negra: o tanque
(que pode ser interpretado também como todo serviço doméstico). Apesar disso,
esse público comprou sua obra e a tornou temporariamente um best seller nacio-
nalmente e internacionalmente conhecido, traduzido em várias línguas.
Este trabalho traz algumas considerações apontadas na minha pesquisa de mes-
trado concluída em 2019, no curso de Pós-Graduação em Letras, Área de Concen-
tração em Estudos Literários, na Linha de Pesquisa Literatura, História e Crítica, do
Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Paraná (PPGL/
UFPR), intitulada “A trajetória na construção da identidade da personagem-narra-
dora-autora Carolina Maria de Jesus em seus diários”1. Ao analisar a trajetória da
escritora, foi possível perceber as conquistas e os desafios pelos quais a escrita de
Carolina Maria de Jesus enfrentou e ainda enfrenta em nossos dias.

1 Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/60738 . Acesso em set.


2020.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 259


Artes, memória e espaços
DAS CONQUISTAS
As publicações de Carolina nos anos de 1960 e 1961 foram suas grandes con-
quistas. A partir delas, Carolina Maria de Jesus saiu da favela do Canindé para o
mundo e conseguiu finalmente realizar o sonho da casa própria. Seus diários moti-
varam outras pessoas, promoveram reflexões das mais diversas em todas as áreas
do conhecimento. É importante ressaltar a persistência que Carolina teve para que
sua primeira publicação ocorresse.
Carolina Maria de Jesus passou duas décadas tentando ser reconhecida como
“poetisa negra”. Seu primeiro texto publicado foi uma poesia, no jornal Folha da
Manhã, em 1941. Em suas memórias, Carolina fala sobre esse momento: “Minhas
vizinhas foram comprar a Fôlha da manhã, liam e comentavam, quem havia de di-
zer e quem haveria de dizer. Quando eu passava nas ruas eles me olhavam outros
apontavam: è aquela! Que saiu na Fôlha da Manhã” (JESUS, 2015, 218)2. Fica evi-
dente neste trecho a curiosidade das vizinhas com relação a uma mulher, nas con-
dições sociais de Carolina, ter publicado uma poesia em um jornal, de modo que
até juntaram dinheiro para comprar o jornal para se certificarem da veracidade do
fato, ao ser apontada na rua, Carolina representa uma exceção, algo inédito para
as pessoas ao seu redor. Carolina segue seu relato sobre a lembrança deste dia:

Enquanto os outros me admiravam sou uma coisa me entriste-


cia e me preocupava. Eu lutava para ficar livre do pensamento
poético que me impedia o sono. Percebi que andando de um
lado para o outro o pensamento poético dissipava um pouco.
Quando sentia fome as ideias eram mais intensas, comendo algo
eu notava que diminuíam. E passei a ter medo da fome. Passei a
trabalhar de pressa, andar com rapidez, não parava um segundo
para me cansar, deitar e adormecer logo. (...)
Creio que já me familiarizei com esta miniatura de calvário.
Quando percebo que estou exausta, sento com um lápis na mão
e escrevo (JESUS, 2015, 218-219).

O pensamento poético atrapalhava a rotina de Carolina, aumentava com a fome,


tirava-lhe o sono, ao ponto de ela perceber que não era possível lutar contra essa
força poética que ocupava seu pensamento, Carolina então se rende dizendo que
se familiarizou “com esta miniatura de calvário”. Conciliar a escrita com a rotina de
serviços domésticos dela era algo complicado. Mesmo assim, Carolina continuava
sua peregrinação por redações de jornais e rádios até que, em 1942, um jornalista
publica uma reportagem sobre essa “poetisa negra”:

Trabalhando como doméstica, dando continuidade às idas às re-


dações de jornais e rádios, conseguindo assim que um jornalista
ouvisse sua história e a publicasse em uma reportagem sobre

2 Mantém-se aqui a grafia original da publicação.

260 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
ela no jornal A noite em 9 de janeiro de 19423, intitulada “Poe-
sia, fogões e panelas”, na qual o jornalista a definiu como uma
“estranha criatura”, “cor de pixe”, “falando com desembaraço e
fluência”.
Segundo a reportagem, Carolina Maria de Jesus afirmou que a
poesia a tentava e dificultava sua continuidade nos empregos do-
mésticos, pois acabava deixando os afazeres para escrever seus
versos: “A poesia, senhor, é todo o meu sonho e todo o meu tor-
mento” (A NOITE, 1942, p. 5). Ela apresentou ao repórter alguns
poemas, tendo dois publicados na reportagem juntamente com
alguns versos improvisados no momento. Carolina Maria de Je-
sus aproveitou para denunciar que sua cor interferia na concre-
tização de seu sonho de viver como poetisa: “Minha cor, certa-
mente, concorria para que eu não pudesse realizar as minhas
aspirações. Revoltava-me. Bem sei que não tenho ilustração.
Que não sei muito, muito, o português... mas duvido que haja
por aí pessoa mais bem inspirada do que eu” (A NOITE,1942, p.
5). (SILVA, 2019, p. 26).

O modo fluente de falar causa estranhamento no jornalista que caracteriza Ca-


rolina como “estranha criatura”, destacando sua “cor de pixe”. Nesta época, Caro-
lina já denunciava que a barreira da cor dificultava que seu sonho de ser reconhe-
cida como poetiza fosse concretizado.
Com o nascimento dos filhos, a partir de 1948, Carolina Maria de Jesus teve que
deixar o trabalho doméstico, foi morar na favela do Canindé, onde construiu seu
4
barraco um pouco antes do primeiro filho nascer. Ela passou a viver como cata-
dora de papel pelas ruas de São Paulo para se sustentar e também a seus filhos.
Do lixo, ela também reaproveitava papéis e cadernos para escrever suas ideias.
Quando o repórter Audálio Dantas se encontrou pela primeira vez com Carolina,
em 1958, na favela do Canindé, ela já tinha guardado vários cadernos com seus es-
critos, já tinha enviado cadernos para os Estados Unidos, tentando sua publicação.
Sobre esse encontro, a filha de Carolina, Vera Eunice, ressalta:

Ele pediu para ler os cadernos dela, selecionou os mais legíveis


entre os diários, romances, poesias, tudo escrito em folhas, al-
guns em papelão, outros em papel amassado, pegou alguns ca-
dernos e levou embora para ler. Voltou depois, e disse a minha
mãe que um jornal iria ajudar a publicar o diário. Só o diário,
nada de romance, nem poesia. O Audálio disse para ela conti-
nuar escrevendo, contando os episódios da favela, da pobreza,
das brigas, que ele se comprometia a encontrar uma editora. Mi-
nha mãe, claro, ficou entusiasmadíssima! Ela queria escrever um
livro e ver seu nome na capa (MEIHY E LEVINE, 2015, p. 82).

3 Arquivo disponível em <http://memoria.bn.br/pdf/348970/per348970_1942_10745.pdf> ,


página 5. Acesso em 08 mar. 2018.
4 Antes de João José, Carolina Maria de Jesus engravidou de uma menina, para
a qual deu o nome de Carolina, mas ela não chegou a nascer viva. Em 1950, nasceu seu
segundo filho, José Carlos, e, em 1953, Vera Eunice.
Segundo Vera Eunice, Dantas prometeu publicar o livro de Carolina Maria de
Jesus, mas nada de poesia, nem romance, apenas diários. Com isso, Dantas contri-
buiu com o estereótipo da “escritora favelada de diários” que rondou a trajetória
de Carolina muito mais que a imagem da “poetisa negra” que tanto ela tentou
desconstruir. No entanto, conseguir publicar um livro, partindo do ambiente da
favela, levando em conta o contexto social e econômico, foi uma grande conquista
para Carolina, além de ser a concretização de um de seus sonhos: ver seu nome na
capa de um livro.
O sucesso de vendas de Quarto de despejo possibilitou também que Carolina
finalmente conseguisse sair da favela para sua tão almejada casa de alvenaria, es-
pantou a presença da fome, mesmo que por um certo tempo, e ainda possibilitou
a publicação do segundo diário: Casa de Alvenaria: diário de uma ex-favelada. Po-
rém, o sucesso acabou atrapalhando os planos literários da escritora:

O descontentamento da escritora com a nova vida fora da favela


também era visível, pois seu tempo para escrever e ler estava
reduzido, devido ao tanto de pessoas que a procuravam para
tentar alguma vantagem, pensando que ela estava rica com o su-
cesso do primeiro livro. Além disso, havia pressão para que ela
publicasse apenas diários, principalmente por parte de Audálio
Dantas (SILVA, 2019, p. 29).

Carolina Maria de Jesus estava descontente com sua nova realidade, porém, ela
a enfrentou, pois, segundo ela mesma dizia “Não nasci para ser teleguiada a pior coi-
sa que ha, é a gente enxergar, e andar puchada num cabrêsto como se não enxer-
gasse” (JESUS, 1996b, p. 153-154). Com a força da insistência, Carolina Maria de
Jesus consegue lançar um LP, pela RCA Victor, hoje conhecida como Sony Music,
no qual cantava suas próprias composições: Quarto de despejo: Carolina Maria de
Jesus cantando suas composições e, sem o apoio de Audálio Dantas, ela publicou
seu terceiro livro: Provérbios, em 1961, com “um apanhado de dizeres populares,
popularescos ou popularizados” (MEIHY E LEVINE, 2015, p.43), da mesma forma
que publicou seu quarto livro, em 1963, o romance Pedaços da fome. Ao analisar
a trajetória de vida da escritora, destaca-se como conquista a realização das publi-
cações e a insubmissão às imposições que a sociedade lhe fazia para que ela fosse
minimamente aceita no mundo elitizado e branco dos escritores.

Apesar do epíteto a “escritora favelada” atribuído a Carolina Ma-


ria de Jesus, ela não passou sua vida toda na favela. Considerada
como um local de transição, de passagem, a extinta favela do
Canindé, em São Paulo, abrigou a escritora por aproximadamen-
te uma década. Seu trajeto de vida, iniciado no município mineiro
de Sacramento, foi marcado pela herança miserável destinada
aos negros após a abolição, passando pelo ambiente da favela e
se encerrando com a volta às suas origens rurais, no sítio em Pa-
relheiros, São Paulo. Em vida, mesmo sem poder publicar seus

262 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
textos, Carolina Maria de Jesus continuava produzindo. Segundo
Vogt (1983, p. 212), “Carolina vive, então, como muitos outros
pobres e negros no Brasil – Lima Barreto talvez seja o caso mais
trágico de nossa literatura – a esperança de resgatar, pelo prestí-
gio intelectual, o prestígio social que nunca tivera” (SILVA, 2019,
p. 19).

O desprestígio social, mesmo depois de tanto sucesso com Quarto de despejo


não silenciou a escritora, que nos deixou mais de cinco mil páginas manuscritas ou
datilografadas que atestam hoje que, apesar de seu difícil trajeto de vida, com a
constante presença da fome, com muita persistência e insistência, Carolina Maria de
Jesus se utilizava de sua paixão pela leitura e pela escrita para superar seus inúmeros
desafios de vida e o principal: constatar sua existência e expressar sua resistên-
cia. Postumamente, outras publicações surgiram, como Diário de Bitita (1986), Meu
estranho diário (1996), Antologia pessoal (1996), Onde estaes Felicidade? (2014),
Meu sonho é escrever...contos inéditos e outros escritos (2018), Clíris (2019).

DOS DESAFIOS
Ao analisar a trajetória de Carolina Maria de Jesus, deparamo-nos com alguns
desafios, dos quais elenco dois: a edição realizada nas publicações, que suprimiu
muitos trechos de modo que o leitor tivesse uma visão parcial das ideias da escri-
tora e a insistência de alguns críticos literários de não considerar seus textos como
literatura, principalmente seu mais famoso livro: Quarto de despejo.
Começando pelas edições realizadas por Audálio Dantas em Quarto de Despejo
e em Casa de Alvenaria. No prefácio de Quarto de despejo ele explica como reali-
zou a edição:

Fui o responsável pelo que se chama edição de texto. Li todos


aqueles vinte cadernos que continham o dia-a-dia de Carolina e
de seus companheiros de triste viagem.
A repetição da rotina favelada, por mais fiel que fosse, seria
exaustiva. Por isso foram feitos cortes, selecionados os trechos
mais significativos. (DANTAS, 1963, p.3)

Segundo, Dantas (1963), ele realizou cortes na narrativa para evitar a exaustão
da rotina da favelada, deixando apenas os trechos “mais significativos”. Questiona-
-se aqui que há subjetividade em considerar as coisas como mais ou menos significa-
tivas, de modo a retirar trechos que poderiam ser mais significativos para o público
feminino ou para o público negro, enquanto conhecedor do contexto histórico do
qual estava inserido, Dantas procurou também deixar o texto mais “aceitável” para
o público em geral daquela época. Esse processo de edição também se aplica a
Casa de Alvenaria (1961).

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 263


Artes, memória e espaços
Uma edição mais drástica ocorreu na publicação de Pedaços da fome (1963). Ela
não foi realizada por Dantas uma vez que ele havia deixado claro para Carolina que
só publicaria seus diários. Segundo Fernandez (2019, p. 136), o romance foi “tragi-
camente editado”. Em sua pesquisa nos manuscritos, Fernandez (2019, p. 136-137)
constata que até mesmo o nome do romance foi alterado – no original constava “A
Felizarda”, de modo que se mantivesse a relação da escritora com o estereótipo da
“escritora favelada” ainda atrelada ao contexto da fome e da miséria como se fosse
o principal viés do enredo. Carolina Maria de Jesus relata em uma reportagem para
o jornal do Brasil em 11 de dezembro de 1976, citado por Fernandez (2019, p. 136-
137) as dificuldades de publicação e a base do enredo de “A Felizarda”:

O moço que ia publicar mudou o livro todo, tirou as expressões


bonitas, não gostei. Os americanos querem publicar, mas não
conseguem encontrar tradutor. Os tradutores brasileiros lá fi-
cam cheios de importância e não querem traduzir meu livro. /
A Felizarda é uma moça muito rica e por isso ninguém queria
casar com ela. Depois de casar com um moço pobre, viver na
favela, mendigar e ser presa, o pai, um coronelão, a encontra e
a leva para casa. Ela senta no piano, e relembra dos tempos de
moça rica, toca valsas vienenses. O filho dela agarrado a sua saia
pergunta: Mamãe quem é você?

Além dessa edição “trágica” em Pedaços da Fome, o livro postumamente pu-


blicado, Diário de Bitita (1986) também teve uma edição que o deixou diferente
do original deixado por Carolina Maria de Jesus, mas este foi mais por força da
tradução, já que o livro foi primeiramente publicado em 1982 na França e a versão
brasileira é uma tradução da francesa, e não a versão original em português escrita
por Carolina. Diário de Bitita, diferente de Quarto de despejo e Casa de alvenaria,
não é estruturado em formato de diário, ao contrário do que diz seu título. Trata-se
de narrativas memorialísticas da infância da escritora, com uma linguagem estru-
turada, mais elaborada do que nos dois primeiros diários. Isso porque, conforme
dito, o trabalho de edição ocorreu duplamente (pela jornalista brasileira Cleia Pisa
que traduziu do Português para o Francês, e pela editora francesa Anne-Marie Mé-
tailié que adaptou o texto para o público francês) o que resultou em outro texto,
diferente da proposta original apresentada por Carolina Maria de Jesus. A versão
publicada no Brasil em 1986 é a tradução da versão francesa. Segundo entrevista
realizada por Fernandez em 2014 (citada por Fernandez, 2019, p. 86), a jornalista
Clélia Pisa comenta da seguinte maneira a edição de Journal de Bitita (1982): “...
Tiramos o que tiramos e o que podíamos tirar. Teve que ser traduzido, e o impor-
tante no Journal de Bitita é que fosse um testemunho que pudesse ser lido por um
francês que não tivesse nenhuma referência da Carolina. Porque este livro não é o
original”. Assim, mesmo passando pela tradução e edição, Diário de Bitita publicado
no Brasil continua tendo seu valor enquanto narrativa memorialística que integra
a trajetória de Carolina Maria de Jesus enquanto narradora e personagem de si.

264 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
No ano de 1996, mais dois livros de Carolina foram publicados e passaram pela
edição de Meihy e Levine: Meu estranho diário (1996) e Antologia Pessoal (1996).
Meu estranho diário traz textos diarísticos mais completos e inéditos com relação
a Quarto de despejo e Casa de Alvenaria, no entanto, cortes também foram reali-
zados segundo o ponto de vistas dos editores. Já Antologia Pessoal é o tão sonhado
livro de poemas que Carolina queria publicado, no entanto, nem o nome do livro
foi o que Carolina desejou: “Clíris”. Alguns poemas não entraram na edição deste
livro pela escolha dos editores, poemas importantes em que Carolina traz um eu
lírico negro feminino e debate temas como as cotas nas universidades, como no
poema “Feijões” (JESUS, 2019, p. 25).
Novas revisitações ao trabalho da escritora vêm sendo realizadas, a partir de
2014, ano da comemoração de seu centenário, principalmente nos manuscritos, e
Carolina ressurge como forma de resistência e protesto, sendo tomada como inspi-
ração para grupos de mulheres negras e de militâncias em geral. Surge uma nova
preocupação com as edições, sendo que, a partir de então, procuram realizar o
mínimo de interferência para que Carolina seja lida e compreendida por meio de
um discurso mais próximo dos seus originais. Como exemplo, temos as obras Onde
estaes Felicidade? (2014), Meu sonho é escrever ... contos inéditos e outros escritos
(2018) e Clíris: poemas recolhidos (2019).
Apesar de tantas publicações, alguns críticos e estudiosos literários ainda não
são capazes de reconhecer a produção de Carolina como literatura. Uma polêmica,
ocorrida no ano de 2017, na academia Carioca de Letras, trouxe à tona o debate so-
bre o que é Literatura e quem pode produzi-la. No dia dezessete de abril de dois mil
e dezessete, escritores e estudiosos literários se encontraram na Academia Carioca
de Letras, no Rio de Janeiro, para homenagear a escritora Carolina Maria de Jesus.
No evento em questão, um dos convidados a homenagear a escritora o professor
de Literatura e Presidente do Conselho Deliberativo da Associação Brasileira de
Imprensa (ABI), o Drº Ivan Cavalcanti Proença, referiu-se a seu primeiro livro publi-
cado em 1960 (Quarto de despejo: diário de uma favelada) como um importante
retrato sociológico e político apenas, desmerecendo o caráter literário da obra de-
vido à linguagem utilizada pela autora e pelo gênero autobiográfico que se encerra
o diário (com esses itens qualquer um poderia escrevê-lo). Essas palavras soaram
como preconceituosas para alguns mas não para outros presentes, que saíram dali
levando a discussão que até hoje é válida.
Cabe ressaltar que, dentro de um panorama histórico de imensa desigualdade
social, a leitura e a escrita restringiram-se, por muitos séculos a uma minoria da
população brasileira ligada à aristocracia rural, à igreja ou ao Governo. Ler e es-
crever fora deste grupo era um ato de rebeldia. Assim, o que ler, o gosto literário, a
forma de falar e escrever prestigiada socialmente eram definidos por uma minoria
privilegiada e mantidos por ela, com base em cânones ou modismos da literatura
estrangeira.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 265


Artes, memória e espaços
Quando o Modernismo surgiu no Brasil com um ideal de valorização da “língua
do povo”, percebe-se que esse ideal não conseguiu transpor as barreiras entre a
elite e o povo, de modo que a linguagem empregada por Carolina Maria de Jesus
(que estudou apenas dois anos no ensino regular) gera muita repulsa naqueles que
ainda pregam uma Literatura presa a moldes e estruturas linguísticas dentro de um
padrão da norma considerada culta. Dessa forma, considerar uma mulher negra e
pobre como escritora também é algo complicado para quem ainda traz em si um
ideal de escritor que seja homem, branco, e com certo convívio na nossa pequena
sociedade elitizada, e isso é algo a ser desconstruído.
Essa desconstrução perpassa os currículos escolares que ainda perpetuam
quem são os verdadeiros escritores nacionais, com seus livros didáticos que enges-
sam quem deve ou não ser estudado, lido, analisado ou até mesmo excluído. É ainda
muito recorrente nestes livros que a figura do povo na nossa literatura (escravo,
trabalhador rural, operário) aparecer mais como objeto e figurante nos enredos
conhecidos do que como o sujeito que fala.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A revisitação dos conceitos do que é Literatura a partir da fala “isto não é Lite-
ratura” para a obra “Quarto de despejo”, de Carolina Maria de Jesus, serviu para
desmascarar a elitização de que sofre ainda a nossa Literatura.
Não é necessário alterar os conceitos de Literatura que já existem para consi-
derar essa obra como literária. Em “Quarto de despejo” há poesia, há um discurso
literário que passou e passará por muitas gerações de leitores deixando sua marca,
sua sensibilização, sua denúncia social e política, sua humanidade e desumanidade.
O que é preciso urgentemente é que mais e mais leitores tenham uma visão crí-
tica para perceberem, dentro do meio literário e editorial em geral, uma ideologia
secular machista e preconceituosa que procura definir o que o leitor pode ler, o que
ele deve considerar cânone, quem pode fazer literatura neste país, etc.
Apesar de a fala “isto não é Literatura” estar carregada de tudo o que queremos
superar do nosso passado escravagista, patriarcal e elitista, a discussão serviu para
que mais pessoas pudessem conhecer quem foi Carolina Maria de Jesus, o que é a
Literatura Marginal, o que é a Literatura Negra ou Afro-Brasileira e que, sim, todos
capazes de trabalhar com a palavra podem produzir Literatura, uma vez que, resu-
midamente, trata-se da arte da palavra. A elitização da arte literária deve dar seu
No caso de Carolina Maria de Jesus, é possível notar que ela atribui à Literatura
não apenas uma arma que age no âmbito das ideias contra a discriminação e mar-
ginalização do negro, mas uma forma também de conseguir recursos financeiros
para lutar contra a fome e as péssimas condições de vida que ela e seus três filhos
levavam.

266 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
REFERÊNCIAS

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to de despejo. Edição Popular, 1963. Disponível em: <https://historiaafrosuzano.files.wor-
dpress.com/2016/10/1960-quarto-de-despejo-p1.pdf> Acesso em 10/01/2018.

FERNANDEZ, Raffaella. A poética de resíduos de Carolina Maria de Jesus. São Paulo: Aetia
Editorial, 2019.

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. Edição Popular,
1963a. JESUS, Carolina Maria de. Provérbios. São Paulo: Luzes, 1963b.

JESUS, Carolina Maria de. Pedaços da fome. São Paulo: Aquila, 1963c.

JESUS, Carolina Maria de. Antologia Pessoal. (Org.) José Carlos Sebe Bom Meihy. Rio de
Janeiro: UFRJ, 1996a.

JESUS, Carolina Maria de. Meu estranho diário. José Carlos Sebe Bom Meihy e Robert M.
Levine (Orgs.). São Paulo: Xamã, 1996b.

JESUS, Carolina Maria de. Antologia Pessoal. (Org.) José Carlos Sebe Bom Meihy. Rio de
Janeiro: UFRJ, 1996a.

JESUS, Carolina Maria de. Diário de Bitita. São Paulo: SESI-SP editora, 2014.

JESUS. Carolina Maria de. “Minha vida...” In: MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Cinderela ne-
gra: a saga de Carolina Maria de Jesus. 2 edição. Sacramento MG: Editora Bertolucci,
2015.

JESUS, Carolina Maria de. Clíris: poemas recolhidos. (Org.) Raffaella Fernandez e Ari Pi-
mentel. Rio de Janeiro: Desalinho, Ganesha Cantonera, 2019.

JESUS, Carolina Maria de. Meu sonho é escrever... contos inéditos e outros escritos. (Org.)
Raffaella Fernandez. 1ª ed.. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial, 2018.

MEIHY, José Carlos Sebe Bom. LEVINE, Robert M. Cinderela negra: a saga de Carolina Ma-
ria de Jesus. 2ª ed. Sacramento, MG: Editora Bertolucci, 2015.

SILVA. Vanessa Maria Poteriko da Silva. A Trajetória na construção da identidade da perso-


nagem- narradora-autora Carolina Maria de Jesus em seus diários. Dissertação (Mestrado
em Letras) – Setor de Ciências Humanas da Universidade Federal do Paraná: Curitiba,
2019. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/60738 Acesso em out.
2020.

AUTORIA
Vanessa Maria Poteriko da Silva
Doutoranda em Letras – Estudos Literários - UFPR
E-mail: vapoteriko@hotmail.com / vapoteriko@gmail.com ORCID: 0000-0003-
0579-5554
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3089785123426262

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Artes, memória e espaços
MEU CORPO DANÇA: REITERAÇÃO DE
MEMÓRIAS DE MOVIMENTOS ANCESTRAIS
Tatiana Maria Damasceno

INTRODUÇÃO
A trama cultural brasileira oferece ao artista-pesquisador, um território simbó-
lico que se revela através de cores, gestos, vestimentas, comidas, objetos, rituais,
crenças e de fazeres e dizeres que é mediado pelo corpo em experiências cotidia-
nas, seja ela sagrada ou profana. Podemos observar que, a interface da linguagem
da dança com fontes tradicionais da cultura brasileira encontra-se presente na rea-
lização de inúmeras pesquisas e criações cênicas. Nesta perspectiva, estar em cam-
po, observando e vivenciando práticas performativas preservada por uma determi-
nada comunidade social fixa uma etapa fundamental para o artista- pesquisador
investigar a atuação do corpo no processo de reiteração de memórias coletivas.
Atuo como professora no Programa de Ensino e Criação em Dança (formado
pelos cursos de Bacharelado, Licenciatura e Teoria em Dança) do Departamento
de Arte Corporal que prevê a formação de intérpretes, performers, coreógrafos,
professores, críticos e pesquisadores nas artes corporais com conhecimentos e ha-
bilidades que permitem o desenvolvimento de processos de produção artística, a
partir de suportes diferentes, como sendo o resultado da integração da dança com
outras áreas do conhecimento.
Esta comunicação pretende apresentar recortes da pesquisa cênica e apresen-
tação do solo Fé no Corpo ou Corpo em Fé? sem perder de vista, procedimentos
artísticos que venho desenvolvendo na Universidade Federal do Rio de Janeiro a
mais de 20 anos. A ideia é rememorar o caminho trilhado, confirmando e afirman-
do escolhas de pensamentos, pesquisas artísticas e práticas pedagógicas. Proce-
dimentos que mobilizam conceitos e saberes afro-urbano-ancestral ancorados na
cosmovisão africana, afrobrasileira e afroameríndia, entendidos aqui como ações
performáticas contra hegemônica.

FÉ NO CORPO OU CORPO EM FÉ
Fé no Corpo1 é um trabalho artístico em continua construção, cuja pesquisa esté-
tica gestual se ancora nos estudos e discussões da performance que cobre um terri-
tório amplo de ações, singulares e coletivas, identificadas com um comportamento

1 Ficha Técnica Fé no Corpo: Pesquisa, criação e Interpretação: Tatiana Damasceno, Direção:


Renata Borges, Fotografia: Julius Mack e Derick Abreu, Desenho de luz: Luciana Liege, Iluminação:
David Israel, Figurino: Tatiana Damasceno e Renata Borges.

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Artes, memória e espaços
FIGURA 1: SOLO FÉ NO CORPO OU
CORPO EM FÉ? PERFORMER TATIANA DAMASCENO

Fonte: 11º Encuentro do Instituto Hemisférico. UNAM, Cidade do México, 2019

FIGURA 2: SOLO FÉ NO CORPO OU


CORPO EM FÉ? PERFORMER TATIANA DAMASCENO

Fonte: 11º Encuentro do Instituto Hemisférico. UNAM, Cidade do México, 2019


expressivo. Entendendo isso, fixo o meu olhar e reflexões nas práticas espetacu-
lares ritualísticas e nas práticas artísticas elaboradas para a cena (dança-teatro),
aportadas em tradições africanas ressignificadas e reordenadas em solo brasileiro.
Fé no corpo é uma criação revisitada de práticas, pensamentos, experiências e va-
lores que formaram, e ainda formam, o meu corpo, de maneira geral, dentro do
contexto da sociedade, e, do religioso das tradições do candomblé. Neste sentido,
o que foi experiência e se configurou como memória corporal, é revivida e senti-
da novamente no espaço do acontecer, onde o sujeito da experiência, como bem
sublinha Bondía (2002), é tomado de paixão, de receptividade, de paciência, de
disponibilidade e de abertura essencial. Segundo o filosofo africano Jean-Godefroy
Bidima:

Não podemos entrar na filosofia, assim como na vida, senão


misturados a uma história que nos precede e enredados em his-
tórias que se tecem entorno e sobre nós. Histórias nas quais se
sondam nossas próprias constituições e situações; histórias nas
quais se separam narrativas intrincadas que nos levam e trans-
portam em direção a um outro lugar; histórias que nós antecipa-
mos por nossa audácia e que nos capturam; histórias, finalmen-
te, que se conjugam no condicional de tanto que suas armadilhas
conduzem a língua às nossas categorizações arriscadas. (2002,
p. 7)

Essas histórias e experiências tornam-se, na pesquisa do solo, vestígios de re-


cordações num corpo passante. Num corpo em transição, em deslocamento, que
segundo Bidima (2002), revela o que ele se tornou ou o que ele é agora, origi-
nário de pensamentos de mediações, afirmando assim, a incompletude da minha
própria história corpo-oral. A evocação do corpo em fé é uma recordação no cor-
po, um ato que é ao mesmo tempo tradicional, singular e transitório (CONNERTON,
1999). Como a exposição de minhas memórias podem afetar o olhar é a memória
de quem assiste a performance?
A performance, tanto do trabalho artístico como de práticas rituais, é entendida
como uma ação ritualizada, reiterativa, um comportamento recuperado, como bem
salienta Richard Schechner (2003). Para Schechner (2003, p. 28), partindo do que
quer que seja “a performance ocorre apenas em ação, interação e relação. A per-
formance está entre”. O autor segue destacando que a performance é única não
só em sua materialidade como na interatividade. Porque performances são feitas
de pedaços de comportamentos restaurados. O conceito de “comportamento res-
taurado” é fundamental para entendermos o corpo do performer como atualizador
de memórias de práticas performáticas, artísticas ou rituais, que sobressaem em
diferentes espaços, sendo nesses espaços memorizadas, reinterpretadas e trans-
mitidas.
Ligiéro (2014), um dos responsáveis pela introdução deste conceito no Brasil,
chama atenção para o fato de que o termo “restauração”, quando aplicado às per-

270 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
formances afro- brasileiras, poderia também ser traduzido como “recuperação do
comportamento” – a partir da tradução feita para o espanhol – mas ultimamente,
o autor tem pensado que “reiteração do comportamento” é mais adequado, uma
vez que não se trata apenas de trazer de volta de uma memória coletiva um com-
portamento ancestral, mas reafirmá-lo no presente por meio da performance2 . O
comportamento restaurado ou reiterado é, portanto, uma experiência concreta,
pessoal que instrui o performer (o adepto, o artista ou o brincante) como deve ou
deveria atuar (desempenhar o seu papel), são roteiros e ações, textos conhecidos,
movimentos codificados (SCHECHNER, 2003). Diríamos que são movimentos rea-
presentados.
O objeto de desejo da encenação do solo é oferecer ao espectador, de maneira
variada e poética, uma visita ao corpo em fé, na fé em um corpo afrodescenden-
te, que no espaço cotidiano e extracotidiano organiza ações que afirmam valores,
crenças, escolhas estéticas e conhecimentos, que são vistos, até hoje, com um cer-
to estranhamento, principalmente por pertencer ao diversificado universo cultural
de matriz africana. Fé no Corpo ou Corpo em Fé? Questiona na cena: quando você
olha o que você vê e o que você não vê? Reavivando a reflexão sobre diversidade,
respeito, memória, corpo negro em suas tradições, modos de ser social e cultural.
O solo oportuniza à formação de um ponto de vista crítico sobre práticas que,
de certa forma, não são vivenciadas ou entendidas por muitas pessoas, mas que as
confrontam no dia a dia, principalmente por meio de imagens expostas na cidade e
a reverberação delas no imaginário popular.
No cotidiano de diversas cidades brasileiras, obviamente, algumas mais e ou-
tras menos, percebemos uma diversidade de práticas relacionadas ao universo
afro-brasileiro. É comum vermos um indivíduo passear na cidade em dias distin-
tos, vestido todo de branco com alguns colares de conta3 envoltos ao pescoço. Os
adeptos do candomblé, também chamados de povo de santo, geralmente se ves-
tem de branco em um dia da semana que é dedicado ao seu orixá; as sextas- feiras
são dedicadas a Oxalá; e no período de certas obrigações que exigem a utilização
do branco como preceito4. Vestir-se de branco depende da ocasião. Em relação aos
adornos, vemos também o uso de brincos de ouro, prata ou cobre cravado com um
búzio, pulseiras de prata e cobre nos braços e o uso do pano estampado ou de ou-
tras cores enrolado na cabeça. Sem falar nas barracas das baianas do acarajé e da
venda de ervas em casas que comercializam artigos religiosos. Não é difícil vermos
também alguém fazendo um ebó5 ou uma oferenda nos espaços da cidade e em

2 LIGIÉRO, Zeca. Comunicação com a autora, 2014.


3 Também chamado fio de contas ou ilequês. Contas enfiadas em cordões (cordonê) ou fios
de náilon. Raul Lody informa que “eram enfiadas na palha-da-costa [...]. As cores e tipos de materiais
que formam cada fio-de-contas variam conforme a intenção, podendo marcar hierarquia, situações
especiais, uso cotidiano, além de identificar os deuses.” (2001, p. 33).
4 Norma; algo recomendado para se praticar; ensinamento que orienta a conduta antes,
durante ou após os rituais.
5 A palavra ebó significa sacrifício. Segundo José Beniste (2002, p. 280), “o ebó pode ser defi-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 271


Artes, memória e espaços
seu entorno como: na encruzilhada, na mata, na estrada, na praça, na praia, em
frente ao cemitério ou na cachoeira.
Sobre o imaginário, Laplantine e Trindade (1997), esclarece que ele é um mobi-
lizador e evocador de imagens que utiliza o simbólico para exprimir-se e existir, por
sua vez, o simbólico pressupõe a capacidade imaginária. Eles esclarecem também
que: “as imagens e o imaginário são sinônimos do simbólico, pois as imagens são
formas que contêm sentidos afetivos universais ou arquetípicos, cujas explicações
remetem a estruturas do inconsciente.” (1997, p.17). Para os autores imagens são
construções baseadas nas informações obtidas pelas experiências visuais anterio-
res.

Nós produzimos imagens porque as informações envolvidas em


nosso pensamento são sempre de natureza perceptiva. Imagens
não são coisas concretas, mas são criadas como parte do ato de
pensar. Assim a imagem que temos de um objeto não é o próprio
objeto, mas uma faceta do que nós sabemos sobre esse objeto
externo. (1997, p. 11)

Ao longo do texto, me permito levantar algumas questões oportunas, já que,


ao expor o meu corpo na cena, é tudo que o constitui, abro a possibilidade de re-
velar ou de esconder minhas escolhas no mundo. Mesmo sabendo que as vezes, o
meu corpo parece ocultar o processamento de fatos, que escapam ao pensamento,
escurecendo uma parcela de luz, de um saber de si próprio. De saber informações
que são acionadas e fixadas em diversas partes e sistemas do corpo (sensorialidade
corporal e afetiva), mas que a consciência não consegue entender ou explicar. O
entendimento vem através do movimento do corpo todo de forma orquestrada.
“Viver o corpo não é somente assegurar um domínio ou afirmar sua potência, mas
também descobrir sua servidão, reconhecer sua fragilidade (BERNARD, p.12, 2016).
Assim, às vezes sinto o meu corpo. Sandra Meyer Nunes ao falar de ação e cognição
afirma que:

A ação “consciente” (incluindo a do ator) emerge, muitas vezes,


de movimentos aparentemente involuntários, orquestrados em
uma rede neuronal rica em referenciais, memórias passadas e
percepção do momento presente sem o controle intencional do
agente. Há um terreno desconhecido (e criativo) que não depen-
de plenamente da intenção do ator, mas que pode ser acionado
pela parte cabível ao exercício de sua vontade. (2003, p.129)

Ao pensar sobre o corpo no solo Fé no Corpo ou Corpo em Fé?, especificamente


nos pontos da produção da ação consciente / inconsciente, da fragilidade, da rela-
ção corporal em diversos meios sociais e sobre a potência corporal que evidencia a

nido com um ato de se fazer uma oferenda, do reino animal, vegetal ou mineral, de comidas, bebidas
e qualquer objeto, a uma divindade ou entidade espiritual.”.

272 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
presença cênica, no palco, no terreiro ou em outros cenários de atuação, surgem as
questões : Como lidar com as alterações do corpo, com as interrupções de ensaio
em uma segunda passagem? Como lidar com o corpo desgastado pelo tempo e
pelo vazio do espaço? Como lidar com o trânsito entre ir mover e se automotivar
todos os dias? Como lidar com as disparidades políticas e sociais? Porque nem
sempre é fácil estar em potência na cena. O corpo não está preparado todos os dias
por mais experiência que tenha. O tempo, como na sabedoria do terreiro, paira o
corpo. Mas o corpo, por si só, continua a se mover no limite entre o real e o cênico.
Talvez porque o corpo já seja cena, já seja o próprio terreiro. E tudo é uma questão
de deslocamento no espaço e entre espaços. É como Nunes (2003, p.121) escla-
rece, “Esta presença estaria ligada à comunicação corporal imediata articulada no
organismo do ator no aqui e agora”. Não importando o espaço.
Na criação da performance utilizei em laboratórios as reflexões advindas nos
terreiros de candomblé, nas festas populares em espaços urbanos, a observação
de práticas religiosas no cotidiano da cidade e o entendimento do meu corpo ao
buscar restaurar o corpo simbólico, que ativa uma energia significativamente alte-
rada, energizada, reiterada.

FIGURA 3: SOLO FÉ NO CORPO OU


CORPO EM FÉ? PERFORMER TATIANA DAMASCENO

Fonte: 11º Encuentro do Instituto Hemisférico. UNAM, Cidade do México, 2019

Ao propor um mergulho na memória dentro do processo de composição, par-


ti para uma investigação profunda de como o corpo pode acessar suas energias
FIGURA 4: SOLO FÉ NO CORPO
OU CORPO EM FÉ? PERFORMER TATIANA DAMASCENO

Fonte: 11º Encuentro do Instituto Hemisférico. UNAM, Cidade do México, 2019

FIGURA 5: SOLO FÉ NO CORPO OU


CORPO EM FÉ? PERFORMER TATIANA DAMASCENO

Fonte: 11º Encuentro do Instituto Hemisférico. UNAM, Cidade do México, 2019


e quando acessadas o lugar do corpo físico e seus estados de presença são al-
cançados. A energia está envolvida em todos os processos da vida, pensamentos,
sentimentos, ações, processos vitais, etc. Neste sentido, o trabalho de ativação do
movimento corporal é importante para acionar o fluxo respiratório do indivíduo
e aumenta o nível de energia do corpo. O corpo excitado e quente torna-se um
corpo vivo, ativo, falante, firme e mais confiante para expressar suas experiências.
Laboratórios com essa proposta precisam ser vividos intensamente, porque o ob-
jetivo é desenvolver uma pesquisa de si, reconhecendo suas potências energéticas
e propor um trabalho a partir delas.
A repetição do gesto assim como lugar de apropriação de uma fala que se trans-
forma na medida em que os ensaios iam acontecendo, propiciaram uma mudança
do corpo e da cena. A memória, aos poucos, foi se tornando um discurso alterado
pela construção do movimento do corpo.
Nos laboratórios um ponto alimentou o outro entrelaçando experiências pes-
soais e de trabalho de campo. Concomitante à montagem da performance, reali-
zei exercícios direcionados para compreensão e desenvolvimento do movimento,
dentro da composição do campo do corpo em fé. Neste processo, percebi que a
fisicalidade do corpo não vem apenas do movimento, mas de uma memória que é
acionada através de uma pesquisa sobre os gestos, os gostos, as sonoridades, as
vivências e de um movimento que não se encontra anterior ao fazer, a memória
se encontra em movimento (DAMASCENO; AZEVEDO, 2018, p. 296-297). Há nesta
dança aquilo que Louppe (2012) associa a uma evocação de sensações, espelhos
e ressonâncias que vão além de uma interpretação sobre o que está sendo dança-
do, mas sim de um horizonte simbólico a partir das imagens trazidas pelo corpo a
partir daquela dramaturgia exposta em cena. A memória, segundo Louppe (2012),
é o retorno daquilo que esquecemos na medida em que o movimento inaugura
continuamente a presença. Esta presença, durante o processo criativo era desen-
volvida a partir dos estímulos para criação: como: música, imagem, objeto, uma
situação, um figurino e a iluminação cênica. Às vezes explorava só os movimentos
dos ombros e dos membros superiores ou da coluna e da cabeça ou dos membros
inferiores e dos pés. Nesse processo, buscou-se diferenciar a relação com o espaço
percebendo a importância de determinadas partes corporais nas práticas afro-bra-
sileiras.
Até que ponto, na sociedade contemporânea, práticas performativas afro-an-
cestrais- brasileiras são percebidas como excêntricas, ultrapassadas e destituídas
de conhecimentos valorosos para formação dos sujeitos sociais?
As tradições afro-brasileiras englobam performances como a música, a dança, e
diversas outras práticas intermediadas pelo corpo-oral, em seus rituais privados e
públicos. Neste sentido, o corpo-oral é o principal canal de expressão e de comuni-
cação com o sagrado. As tradições afro- brasileiras revelam e afirmam uma cultura
do corpo-oral, um corpo que funcionou para os negros como lócus de alteridade.
As práticas por eles organizadas encontraram na linguagem dos gestos, dos mo-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 275


Artes, memória e espaços
vimentos, das palavras e dos sons seu principal veículo de expressão (DAMASCE-
NO, 2015). Assim, podemos pensar no corpo como local da inscrita de textos de
movimentos que guardam a memória de um grupo no processo de travessia. Os
textos que transportam sentidos são recordados pelas performances corporais em
translações, acionadas em diferentes momentos nos rituais, nas festas e nas diver-
sas produções artísticas. Neste cenário se configura a própria diversidade da nossa
cultura, em suas tradições e seus fazeres contemporâneos construindo no jogo co-
reográfico a poética do solo.
Nas práticas tradicionais o sujeito é parte integradora da performance. No dizer
do professor Júlio Tavares (2013), o corpo, expressão maior de mediações cultura/
natureza, imbuído de saberes orientados pelos ritos e pela tradição, constitui-se
e se organiza como um arquivo vivo ambulante, que transita por muitos lugares
disseminando saberes. A memória do terreiro, provida de redomas sensórias pró-
prias, inscreve-se no corpo do devoto. Assim, o corpo assume um papel imediato,
“realiza: a ação direta da produção da presença”, como destaca Tavares (2013, p.
81). Essa produção de presença numa coletividade, pode ser compreendido como
um movimento social e político em que os sujeitos organizam práticas, expressam
vontades e valores, afirmam identidades, articulam discursos abrindo espaço para
novos significados e uma maior interação dos indivíduos.
O Cenário do solo é desenhado por alguns objetos, que, espalhados, habitam e
transformam o espaço. Um círculo, uma reta, uma encruzilhada, uma curva, um lu-
gar que permite a instauração de um ambiente estético e simbólico, propício para
o acontecimento do jogo de tensão da prática do corpo em fé na fé no corpo. A
montagem da performance foi concebida a partir do diálogo interdisciplinar entre a
dança, a música e as artes plásticas. Buscando na cena uma dramaturgia elaborada
através da composição de imagens poéticas em movimento.

REFERÊNCIAS

ANTONACCI, Maria Antonieta. Memórias ancoradas em corpos negros. São Paulo: EDUC -
Editora da PUC-SP, 2015.
ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural.
Tradução de Paulo Soethe. Campinas, SP: Unicamp, 2011.

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BIDIMA, Jean-Godefroy. De la traversée: raconter des expériences, partager le sens. Rue


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CONNERTON, Paul. Como as sociedades recordam. 2. ed. Oeiras: Celta, 1999.

276 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
DAMASCENO, Tatiana Maria. Nas águas de Iemanjá: um estudo das práticas performa-
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AUTORIA
Tatiana Maria Damasceno
Universidade Federal do Rio de Janeiro
E-mail: tatidamaria@gmail.com
ORCID: 0000-0003-4941-6077
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0488607161700226

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 277


Artes, memória e espaços
ST 22
Etnomusicologia
RESSIGNIFICAÇÕES, RELAÇÕES E PERMANÊNCIA
DE ELEMENTOS MUSICAIS DIASPÓRICOS
AFRICANOS NO CONJUNTO PERCUSSIVO DE
UMA CASA DE CANDOMBLÉ E DE UMA BATERIA
DE ESCOLA DE SAMBA EM SÃO PAULO
Tata Bewalaja
Rafael Y Castro

INTRODUÇÃO
O foco deste trabalho é discutir, a partir da influência da diáspora africana na
musicalidade brasileira, determinados conteúdos e métodos de transmissão de co-
nhecimentos utilizados em terreiros de Candomblé e em Baterias das Escolas de
Samba, observando como muitos dos elementos estruturais trazidos via diáspo-
ra negra foram ressignificados nas formações musicais dos conjuntos percussivos
dessas tradições. Focamos nas relações deste conhecimento herdado e como ele
se apresenta na Casa de Candomblé Angola Kyloatala e na Bateria do GRCSES Im-
pério de Casa Verde, em São Paulo.
Averiguamos também, de maneira geral, quais seriam as principais causas do
baixo nível de informação e reconhecimento das amplitudes destas influências,
tanto nesses próprios ambientes em particular, como no Brasil em geral. Utili-
zamos como principais referenciais teóricos trabalhos de Tiago de Oliveira Pinto
(2015), Rolando Fernández (1986) e Simha Arom (1991), que tratam da circulari-
dade de padrões rítmicos entre musicalidades diaspóricas, naquilo que se refere à
amplitude do entendimento da complexidade da construção polifônica a partir da
polirritmia e da melodia de timbres (conceito de ritmo como fenômeno multidi-
mensional) e de ZERBO (2010), sobre a oralidade.
Discutimos como questões estruturais musicais representam e determinam
comportamentos sociais específicos em busca de um território e de um reconhe-
cimento social maior, suportado pelo conhecimento ancestral oriundo de parte
do continente africano que é utilizado nas religiões de matriz afro e apropriado,
mantido e transformado nas metodologias artístico pedagógicas das Baterias das
Escolas de Samba.

METODOLOGIA E PRESSUPOSTOS TEÓRICOS


Nossa metodologia incluiu: a) visitas de campo e pesquisa participativa nos anos
de 2019 e 2020, b) entrevistas com integrantes destas comunidades, c) análise in
loco das metodologias e significados utilizados nos rituais internos e externos ao

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 279


Artes, memória e espaços
público e d) reflexão sobre parte da bibliografia referencial. PINTO (2015) trata das
relações estruturais da rítmica afro-brasileira oriundas da diáspora e da relação
diversificada da transculturalidade como característica que transforma a sonori-
dade. AROM (1991) e PINTO (2015) abordam a perspectiva multidimensional sob
este prisma, o da melodia de timbres. Neste sentido, para o estudo dos ritmos tra-
dicionais de influência africana, fundamentalmente, se faz necessário perceber a
amalgama entre ritmo e timbre, a circularidade de padrões rítmicos e a construção
polifônica a partir da polirritmia e da melodia de timbres. FERNANDÉZ (1986) ob-
serva que “entre os traços musicais que os africanos contribuíram na formação da
música americana, em particular a da América Latina, o ritmo possui uma impor-
tância especial” (FERNÁNDEZ, 1986, p.7-8) que, no contexto do samba, ocupa ao
mesmo tempo uma função de organização temporal e de execução de “‘configura-
ções tímbricas’ que muitos músicos chamam de ‘melodias’” (PINTO, 2015, p. 100).

DISCUSSÃO E RESULTADOS
A partir da influência da diáspora - conteúdos e métodos de transmis-
são de conhecimentos
Consideramos que as Escolas de Samba são utilizadas como veículo de transmis-
são dos saberes oriundos anteriormente da diáspora para os terreiros, e sequen-
cialmente dos terreiros para as Baterias e outros setores. Rodolfo dos Reis (Tata
Kylonderu), Tata Nkisi, sacerdote principal do Kyloatala-Casa de Angola, relata que:

O povo de santo saía do terreiro para conseguir barganhar alguns


materiais que utilizavam nas Escolas de Samba. Muitos sempre
participaram e frequentemente estavam nos dois locais... [H]á
muita conexão entre os terreiros e o Samba... Muitos ogãs são
ritmistas, por exemplo. Eu, toda a vida, além de frequentar al-
gumas Escolas, sempre atendi as lideranças para cuidar destes
locais espiritualmente. (REIS, Rodolfo dos. Entrevista de Rafael Y
Castro. 20/12/2019. Casa de Angola Kyloatala.).

Em busca de uma compreensão mais abrangente dos significados analisados


na relação entre os elementos do Candomblé e das Baterias das Escolas de Samba
aqui investigados, partimos da necessidade em analisar como os reflexos do mo-
vimento da diáspora poderiam determinar ou influenciar esta compreensão, visto
que os indivíduos responsáveis pela troca destes elementos convivem nestes locais
considerados como reprodutores de um conhecimento herdado e transformado
mas, nem sempre, reconhecido de forma clara ou em sua totalidade. Também nos
interessamos em analisar quais seriam os reflexos sociais de tudo isso, de que ma-
neira isto também é classificado (status), ou reconhecido no ambiente externo ao
contexto e que também poderia influenciar ou determinar possíveis compreen-

280 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
sões equivocadas ou tendenciosas sobre o próprio fenômeno – a migração de pes-
soas que trazem uma cultura identitária transformada de diversas maneiras. Neste
processo, notamos certos conflitos que corroboram com a falta de compreensão
sobre a relevância desta herança cultural via diáspora.
Partindo do pressuposto de que nosso objeto central investigado está inserido
em ambientes caracterizados pelas práticas realizadas dentro dos conceitos da cul-
tura popular, ou seja, pela oralidade, um dos aspectos mais marcantes é o processo
da transmissão de conhecimento de um líder para os iniciantes através da imitação
e repetição. Este processo é comum em ambientes coletivos diversos, pela neces-
sidade de transmissão de conhecimento de geração para geração.
A tradição oral foi definida como um testemunho transmitido oralmente de uma
geração a outra. Suas características particulares são o verbalismo e sua maneira de
transmissão, na qual difere das fontes escritas. Devido à sua complexidade, não é fácil
encontrar uma definição para tradição oral que dê conta de todos os seus aspectos
(ZERBO, Joseph Ki, 2010, pág. 140).
Nas Baterias das Escolas de Samba e nos terreiros, a metodologia utilizada é a
prática de alguns padrões estruturais (toques e levadas) que devem ser reproduzi-
dos pelos novos interessados em participar destes grupos, e pelos que já apresen-
tam familiaridade com os conteúdos.

Ressignificação de elementos da diáspora nessas formações musicais

Justamente pelo aspecto traumático deste processo diaspórico, muitos co-


nhecimentos foram, de uma forma ou de outra, preservados como algo que não
poderia ser esquecido, servindo de base para a permanência destas pessoas em
um novo local. Seria assim uma maneira de manter algo identitário como forma
de resistência e reconexão com seus locais de origem, na tentativa de ressignifi-
cá-los estrategicamente como ferramenta de sobrevivência. No entanto, no caso
aqui analisado ficou claro que, atualmente, boa parte das pessoas – normalmente
aquelas das gerações mais novas –, não reconhecem claramente muito do que elas
mesmas reproduzem e herdam via diáspora. Falamos aqui daqueles que produzem
e desenvolvem os saberes oriundos destas influências – da cultura negra –, e que
compõem grande parte do pensamento percussivo afro- brasileiro reproduzido
nos terreiros e nas Baterias.
Entendemos que todos os pontos de convergência entre elementos negros, ori-
ginários principalmente de ritos como o do Candomblé, relacionam-se com todo
um comportamento enraizado em traços culturais étnicos que se mantém e se
transformam dentro das Escolas de Samba em geral e nas Baterias em particu-
lar. De forma geral, esses elementos são os espaços reservados a orixás dentro de
algumas agremiações, a proximidade entre células rítmicas em diferentes instru-
mentos utilizados nos dois contextos, a existência daquilo chamado de timeline
ou clave que resulta em certa função múltipla do ritmo, algumas formas de ensi-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 281


Artes, memória e espaços
namento de padrões em diferentes instrumentos e a enorme proximidade entre
toques executados nos atabaques no Candomblé e figuras rítmicas apresentadas
na caixa – instrumento este que representa a própria identidade de cada Bateria,
entre outros. Observamos que estes elementos, decorrentes da diáspora negra no
Brasil, são transformados e mantidos nas Baterias de Escola de Samba de forma
consciente, como sinal de resistência e elemento identitário, mas são também re-
produzidos de maneira natural e menos consciente.
Cada um desses grupos – Baterias e Casas de Candomblé – tem seu próprio
estilo, responsável para que a identidade de cada um deles seja reconhecida pelo
“Outro”. Apesar de compartilharem muitos aspectos em comum, alguns detalhes
fazem a diferença e criam a marca de cada um. No caso das Baterias, por exemplo,
o naipe de caixa é o responsável pela identidade sonora considerada mais marcan-
te de todo o conjunto.

Busca de um território e de um reconhecimento social maior: o conhe-


cimento ancestral apropriado, mantido e transformado

A utilização deste conhecimento, em prol de uma tentativa de reconexão com


um local de origem imaginado, de reconstrução de uma identidade, ocorre de vá-
rias maneiras. Nos casos aqui estudados a própria linguagem se faz presente nesta
reconexão, mantendo-se como base de uma apropriação evidenciada através da
utilização de determinados termos nos terreiros de Candomblé. Termos como An-
gola, Bantu, Rainha Ginga, Orixás e Candomblé apontam para a confluência entre
práticas, saberes e sentidos, num processo aqui denominado de “circularidade”
entre terreiros e Baterias de Escolas de Samba. Ao mesmo tempo, estas pesso-
as tratam esses locais como extensões de suas próprias casas, o que representa
uma certa reconexão com uma identidade e um local perdido pela diáspora em um
novo território, utilizado como ressignificação cultural.

Alguns aspectos que determinam relações entre os conjuntos percussi-


vos do Candomblé e das Baterias

a. flexibilidade e similaridade do timeline


Há diversas denominações para determinar certas sequências rítmicas estrutu-
rais que normalmente remetem o ouvinte a um reconhecimento identitário. Esses
padrões rítmicos são geralmente chamados de clave, timeline, estrutura esque-
lética ou padrão estrutural. Alguns instrumentos, como o agogô e o tamborim,
por exemplo, são centrais para este reconhecimento. Neste sentido, os padrões
cíclicos utilizados nos timelines na África teriam derivado, por exemplo, o próprio
teleco teco no Brasil – timeline referencial ao samba. Evidenciam-se também diver-
sas variantes desses timelines, o que chamamos de reduções, simplificações. Ou

282 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
seja, retiram-se partes das notas de um determinado padrão sem que seja afetada
a estrutura central do mesmo, contribuindo assim para que seja possível a realiza-
ção de um número de variações, de acordo com a criatividade dos líderes – alabês,
Mestres, primeiros repiniques. O fato de que o timeline se apresente de forma
variável é essencial pois, didaticamente, é importante que o aprendiz o assimile de
forma compactada (em blocos), começando com simplificações do mesmo, repro-
duzindo assim parte da estrutura com menor um número de notas, mas dentro da
linguagem. Em geral, há um enorme cuidado em se respeitar a tradição, de manei-
ra a determinar o que pode, ou não pode, ser modificado dentro da totalidade do
padrão. A utilização do casco do instrumento em determinados momentos para a
realização do timeline é também uma prática bastante comum entre os ritmistas
de ambos os conjuntos.

b. células rítmicas comuns às duas tradições analisadas


Encontramos significativa proximidade entre células rítmicas realizadas no ago-
gô e tamborim no Samba e no gã no Candomblé. O uso dessas células também
chama atenção pela função assumida dentro da gira (no caso do gã) e no samba, já
que elas apresentam um tipo de estrutura rítmica que representa a soma de bati-
das com durações diferentes realizadas de forma constante do início ao fim de uma
execução, ou seja, a timeline ou clave. Há pontos de convergência, por exemplo,
entre o aguerê de Oxóssi – ou Odé – e a levada de caixa da Portela, assim como
levadas de caixa herdadas de toques de atabaques (como as do GRCES Unidos de
Vila Isabel, oriundas do fundamento do atabaque lé no Kabula). Nesse sentido, po-
demos afirmar que todas as Baterias possuem a mesma influência – a herança do
toque dos atabaques –, já que as mudanças nas levadas de caixa de uma para outra
Escola são sutis e normalmente mantêm a mesma frase rítmica em comum com os
atabaques. Observemos algumas sobreposições de padrões que corroboram com
esta afirmação:

FIGURA 1: LEVADA DE CAIXA E TOQUE CABULA (CANDOMBLÉ NAÇÃO ANGOLA)

Fonte: Transcrição de Rafael Y Castro, 2020.


FIGURA 2: LEVADA DE CAIXA E TOQUE
ALUJÁ DE XANGÔ (CANDOMBLÉ NAÇÃO KETO)

Fonte: Transcrição de Rafael Y Castro, 2020.

Notamos, neste último exemplo, o que é apontado por Fernández (1986) como
o processo de binarização dos ritmos ternários africanos na América Latina. Um
timeline ou clave que apresenta uma subdivisão ternária em colcheias é transfor-
mado em uma subdivisão quaternária em semicolcheias, mudando a subdivisão de
um sub-pulso ímpar para par, em um mesmo espaço no compasso e com um pulso
comum entre as duas possibilidades.

c. sistematização de breques/convenções - conceito de pergunta e resposta


A prática da pergunta e resposta é uma ferramenta bastante didática e artística
nos conjuntos de percussão. A musicalidade brasileira, em grande parte, utiliza
deste recurso, o que para nós seria uma marca muito característica do que foi pro-
duzido inicialmente na África. Esta influência é um fato típico da consciência musi-
cal herdada e reproduzida nos terreiros e nas Baterias, principalmente naquilo que
se refere à criação dos chamados breques. Ou seja, um instrumentista realiza um
discurso musical reconhecido pelos outros e estes o respondem sonoramente, com
a execução de padrões também reconhecidos. Estes padrões são repetidamente
imitados por cada um dos integrantes, até ficarem estabelecidos em um arranjo.
No caso do Candomblé a imitação se dá pela necessidade de cantar as cantigas, se-
guindo o modelo de um zelador ou ogã mais velho que as cante com mais fluência.
Além dos mais novos precisarem aprender tais cantigas, também há necessidade
de resposta pelos outros, no mesmo sentido dos breques de Bateria. A diferença
entre as Baterias e os terreiros é que no primeiro esse processo de imitação se dá
pela execução rítmica e no segundo pelo canto.

d. transmissão de conhecimentos com base na oralidade


A metodologia utilizada nestes locais é desenvolvida a partir do referencial afri-
cano, cujas principais estratégias são intrínsecas à oralidade: imitação e repetição.
Uma sociedade oral reconhece a fala não apenas como um meio de comunicação
diária, mas também como um meio de preservação da sabedoria dos ancestrais, ve-
nerada no que poderíamos chamar elocuções-chave, isto é, a tradição oral. A tradição

284 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
pode ser definida, de fato, como um testemunho transmitido verbalmente de uma
geração para outra (ZERBO, Joseph Ki, 2010, págs. 139, 140).
No entanto, nota-se um certo desconhecimento, ou mesmo negação, da am-
plitude e importância da tradição oral. Várias situações, no decorrer da pesquisa,
mostraram essa depreciação. Talvez pelo fato da oralidade não se apresentar de
forma física – não palpável –, o reconhecimento da sua abrangência e importância
em determinadas culturas torna-se inferiorizada. Embora a oralidade seja tratada,
por um lado, como algo menos desenvolvido, ela reflete uma sabedoria em par-
ticular, sendo portanto necessária e determinante para a transmissão de conhe-
cimento nos seguintes pontos observados no nosso objeto investigado: a) trans-
missão de toques (atabaques) e levadas (caixa, repinique), especificamente para
os aprendizes, b) conceitos diversos baseados nos fundamentos, c) memorização
de determinados padrões em levadas e toques, d) transmissão do passo a passo
para a montagem de determinados breques ou do próprio vocabulário do alabê
no rum, e) transmissão das variações realizadas nos instrumentos e utilizadas em
momentos de solo ou em conjunto, f) combinados diversos em ações estratégicas,
g) memorização de letras diversas (sambas) e cantigas para orixás específicos ou
do roteiro do xirê, h) variedade de sonoridades desejada dos instrumentos e i) me-
morização de hinos (alusivo) e rezas.

Causas do baixo nível de informação e reconhecimento destas influên-


cias

Observamos que, mesmo que estes locais sirvam de manutenção de uma cultu-
ra que possibilita oferecer certo sentido existencial e de pertencimento aos parti-
cipantes, através da performance musical, ocorre um certo desconhecimento das
particularidades essenciais que representam a herança diaspórica, assim como
uma falta de compreensão do conhecimento promovido dentro da Umbanda e
do Candomblé e o que esses representam para o Samba. Com base nas pesquisas
nos locais aqui investigados, identificamos as seguintes variantes relativas ao baixo
reconhecimento dessas influências:
1. algumas pessoas sabem da herança e a valorizam;
2. algumas pessoas sabem e querem esconder; e
3. algumas pessoas não sabem, apesar da herança aparecer corriqueiramente.

As principais razões para este fato seriam:


a. tentativa de apagamento por meio da dominação de outras culturas e etnias
O apagamento causado por estratégias de dominação destruíram, ao menos em
parte, a cultura de origem. A memória das pessoas submetidas a este processo car-
rega aspectos conflituosos que contribuem para o desconhecimento de sua etni-
cidade. Porém, mesmo com tantos conflitos, alguns traços permanecem e servem

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 285


Artes, memória e espaços
como códigos internos e insígnias de poder em grupos e instituições de resistência
social e étnica, como nos terreiros e nas Escolas de Samba. Algumas estratégias
são escolhidas por motivos de sobrevivência, assim como para evitar certos tipos
de exposição social.

b. compreensão equivocada de relações e potencialidades


Apesar de terem consciência parcial de suas potencialidades, a partir de suas
ações dentro destas práticas, muitos deixam de reconhecer o nível deste conheci-
mento amplo e necessário por optar em escolher, fora de seu ambiente coletivo,
não expor isso de maneira tão fácil ou natural. As estratégias de apagamento e
depreciação da cultura ancestral, promovida por gerações de indivíduos que foram
escravizados, determina muito dos resultados e de como esse conhecimento ainda
fica considerado como algo místico ou tratado como um assunto nebuloso.

Essa história de Escola de Samba com macumba, não é bem as-


sim. Eu mesmo acho que não tem muito sentido. Ouvi falar mas
nem penso sobre isso. Acho que é uma coisa antiga. Hoje em dia
as pessoas não falam muito disso, assim, de maneira natural.
Acho também que não dá pra dizer que não existe, todo ano as
Escolas trazem enredos falando sobre. Jeferson dos Reis. Entre-
vista de Rafael Y Castro. 10/11/2019. Áudio. Sambódromo do
Anhembi. Ensaio Técnico do GRCSES Império de Casa Verde.

Outras pessoas, como relatado abaixo, preferem associar a utilização destas


referências africanas como um possível oportunismo midiático:

Pra mim é coisa de moda, ouvi falar das relações dos toques com
as batidas de caixa mas prefiro nem me meter nisso. Não posso
falar do que não entendo com clareza. Precisaria conversar com
alguém que é do movimento, que circula na religião e no samba.
(Silva, Dagoberto. Entrevista de Rafael Y Castro. 03/09/2019. Áu-
dio. Quadra do GRCSES Império de Casa Verde).

Outros fatores também nos mostram essa depreciação do conhecimento afri-


cano no Brasil, diretamente nos terreiros e nas Escolas de Samba: a) a localização e
estrutura dos locais de atividades, b) a falta de segurança vista como uma ameaça
para o público acessar tais locais, c) a associação do samba e do povo de santo com
algo marginalizado, d) o medo de ambientes tidos como alvo de perseguição polí-
tico-religiosa, e) a associação direta do Candomblé com algo “demoníaco”, estabe-
lecido estrategicamente por outras religiões como tentativa de dominação de fiéis
(Exu = Diabo), f) os processos metodológicos pedagógicos e artísticos da tradição
oral, utilizados no ensino e aprendizagem, são associados com algo menos desen-
volvido, mais primitivo e menos refinado e g) racismo. Algumas das entrevistas
realizadas corroboram com tais afirmações:

286 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
Eu fico preocupada com a movimentação dos meus filhos, peço
para eles não circularem por aí com os nossos trajes. Já tive-
mos muita perseguições e hoje em dia ainda é muito perigoso.
(Claudia de Oya. Yalorixá do Ilé Adé Oju Oya. Comunicação Oral.
Mesa: Intolerância religiosa: a perseguição aos cultos afro- bra-
sileiros ontem e hoje. Centro Cultural Vergueiro. 29/11/2018).

Vamos tirar o kipá porque o Pai não gosta que circulemos por aí
assim. Precisa dar uma disfarçada. Já tivemos algumas questões
no passado por causa disso. Na verdade, acho que não preci-
sa. O Pai mesmo disse que é preciso se defender. Só não pode
provocar. É importante evitar certos confrontos mas ser quem
somos sempre. (Costa, Carlos da. Entrevista de Rafael Y Castro.
Casa de Angola Kyloatala. Áudio. 01/08/2019).

Notamos que as duas descrições acima, reforçam tais preocupações por fatos
ocorridos. Da mesma forma que tenta-se ocupar o espaço com seus significados
ancestrais existenciais. A busca pelo reconhecimento da identidade e a possibilida-
de de expressar uma opção, uma filosofia de vida, uma outra forma de viver, que
reconecta aos saberes e sentidos oriundos da África, estes: desenvolvidos, amplia-
dos e transformados no Brasil, torna-se uma constante batalha.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após identificar conexões entre os dois conjuntos analisados, naquilo que se re-
fere: a) à flexibilidade e similaridade do timeline (linha rítmica central) em proces-
sos iniciais de aprendizado e na construção de todo o arranjo da grade percussiva,
b) às células rítmicas comuns às duas tradições analisadas, c) à sistematização de
breques – convenções utilizadas nos arranjos das baterias (oriundos do conceito
de pergunta e resposta entre instrumentos – prática africana e afro-brasileira – e
d) à transmissão de conhecimentos com base na oralidade, concluímos que as prá-
ticas africanas nos conjuntos percussivos e os locais aqui analisados representam
a continuidade de uma cultura apropriada, mantida e transformada que, através
da performance musical, servem de manutenção de uma cultura que possibilita
oferecer certo sentido existencial e de pertencimento aos participantes. Apesar
disso, e considerando o fato de que essas duas comunidades são formadas, em
sua maioria, por indivíduos afro descendentes, notou-se um desconhecimento de
particularidades essenciais que representam tal herança diaspórica, independente
de apresentarem fortemente essa conexão em suas práticas. As principais razões
disso seriam: a) a tentativa de apagamento por meio da dominação de outras cul-
turas e etnias, b) a compreensão equivocada, por parte dos atores e do público
externo, das características e complexidades musicais existentes nesses grupos,
que têm como base, através de um padrão referencial dominador, aquilo esta-
belecido como uma cultura mais refinada e mais desenvolvida e c) o medo em
se comprometer com práticas desenvolvidas dentro de Casas de religiões afro e

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 287


Artes, memória e espaços
Escolas de Samba –, ambientes corriqueiramente tidos como alvo de perseguição
político- religiosa.

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288 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
ST 37
Musicalidades/
Corporalidades
Africanas e
Afrodiaspóricas:
cultura popular,
perspectivas
étnico-raciais
e insurgências
epistemológicas
RITOS, FUNDAMENTOS E SACRAMENTOS: A
ATUALIDADE PERFORMÁTICA DOS REINADOS.
Dayane Nayara Conceição de Assis

INTRODUÇÃO
Uma cultura de celebração, positivação da imagem de mulheres e homens ne-
gros, ressignificação de uma fé colonizadora em um lugar de resistência; como uma
prática que atravessa os séculos os reinados se destacam por uma performatividade
singular onde louvar as rainhas e reis coroados e os santos canonizados se entrela-
çam.
Inicialmente como uma tradição que surge em um contexto de escravização
ao longo dos séculos a coroação de rainhas e reis negros atestam a renovação da
tradição nos contextos locais; mantendo entre outras questões uma inversão ainda
que temporária do poder performático em sociedades fortemente marcadas por
um passado escravista.
Embebida das concepções de uma organização dos povos negros de origem ban-
tu trata-se de uma complexa organização cultural que com diversas ramificações e
tipologias se firmam em inúmeras regiões do Brasil. Para esse artigo nos interessa
pensar a tradição de maneira mais ampla oferecendo uma ideia geral sobre os mi-
tos fundadores, organização das guardas e expressões de corporalidades negras.
Para essa reflexão ancoro-me em minhas experiências pessoais como perten-
cente a essa tradição a partir da guarda de congo de Padre Pinto - Caxambu em
Minas Gerais onde por vezes me coube o lugar de princesa, herança herdada pela
rainha conga Sá Mena (in memoriam) minha bisavó.
Proponho ao leitor um mergulho por águas que levam até uma tradição de ma-
triz afro- brasileira com moldes e contornos próprios e ainda pouco compreen-
didos. Trata-se de uma celebração festiva que não se resume, portanto, em sua
manifestação performática para o público, mas antes, porém, produz dinâmicas
sociais únicas e ressignifica as estanques noções de identidade cultural.

O MITO
Que é lindo de se ver ninguém duvida, colorindo as ruas as cortes negras mar-
cham entoando cantos de louvação ao sagrado. Em geral fazem parte das tradições
de suas vilas, quilombos e cidades, há uma lógica em toda essa procissão cantada e
dançada; a festa grande como é chamada é um rito do qual antecede muitas outras
preparações.

290 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
Faz tanto tempo que está ali que por vezes não prescinde a necessidade de expli-
car de onde veio como uma memória e tradição forjada em uma época de cativeiro
para os negros, os mitos e as cosmovisões acerca dos reinados seguem essa esteira
na tentativa de fundamentar essa prática. As discussões sobre a origem dos reina-
dos também conhecidos como congadas divergem sobre a origem africana ou afro-
-brasileira da tradição ( COSTA, 2006) e embora algumas pesquisas apontem para
um modelo de reconstrução das realezas africanas a partir das guardas; a narrativa
trazida pela maioria dos reinadeiros remetem a uma origem ligada a aparição da
padroeira vinda das águas.
Nos cantos entoados é possível perceber o mito; utilizo-me aqui deste conceito
para pensar a noção de uma narrativa construída para remontar a um momento
fundacional; os caminhos percorridos pelas águas constituem um imaginário muito
presente nas reflexões sobre a chegada forçada e a vida do negro africano aqui na
condição de escravizado; se por um lado a grande Kalunga serviu de transporte
para sua chegada por outro simboliza o cemitério daqueles que não resistiram, e
ainda uma separação insuperável frustrando a ideia de volta a nossas terras. Con-
tudo nesse caso a chegada de Nossa Senhora trazida pelas águas simboliza maleme
diante da situação de cativeiro.
De geração a geração a história contada que se repete é a da santa branca que
aparece nas águas e não consegue ser retirada de lá pelos homens brancos senhores
de escravo; após fracassadas tentativas de trazer a tal santa para a capela constru-
ída é permitido aos negros cativos buscarem a santa. E é assim a partir dos cantos
entoados e ao som das caixas construídas nas senzalas que Nossa Senhora do Ro-
sário aceita sair das águas sob a aclamação dos negros, sentada no tambor.
A imagem de N. Sra. do Rosário se estabelece dessa maneira como a padroeira
daquele povo cativo cujas lágrimas se transformam em algumas versões em rosas
brancas; e em outras nas contas do rosário. Contido nessa narrativa se encontra o
alento que significava naquele contexto social e ainda hoje replicado nas guardas
ser acolhido pela santa que rejeita as vãs aclamações dos senhores e humildemen-
te aceita os louvores dos escravizados. Encanta-me a narrativa do grande Aganga
Muquiche1 Sr Geraldo Artur Camilo do venerável terno dos Arthuros em MG, citado
por Leda Maria Martins (1997):

Então ficô seno o tambô sagrado, o Candombe. É ele tirô ela.


Num tambô ela veio sentada, igual andô. É Santana. Por isso nos
começa o Candome assim:
-É, tamborete sagrado. Com linceça , auê!

Por isso é que nos bate o Candome, brincando, igual desafio.


Porque o branco desafia o nego e parece que ele ganha. Mas
ganha é cá os negos véio. Igual com Nossa Senhora [...] quem
ganhô? (MARTINS, 1997, p.50)

1 Entre o vocabulário dos reinadeiros Anganga Muquiche refere-se a aquelas/aqueles grandes


e veneráveis sábios que com sua antiguidade e sapiência se eternizam nas memórias da tradição.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 291


Artes, memória e espaços
Faz- se mister localizar Nossa Senhora do Rosário dentro do panteão reinadei-
ro como uma santa ligada ao aspecto da liberdade, como uma passagem do fim
dos tempos cativos e para o melhor entendimento disso é importante localizarmos
onde os principais santos dessa cosmovisão se inserem nessa narrativa.
Santa Efigênia e São Benedito por exemplo se encontram como santos dentro
da liturgia ligados às memórias de escravização e de proteção aos castigos e todas as
intempéries sofridas pelos negros nas senzalas. No caso de ambos representando o
número ínfimo de santa/os negros cultuados no catolicismo oficial são concebidos
como divindades com extrema proximidade aos seus devotos por compartilharem
das dores do cativeiro; diferente do papel redentor de Nossa Senhora temos São
Benedito o escravo cozinheiro que com acesso a cozinha e aos alimentos em um
ato de resistência surrupiava de seus senhores para cessar a fome de seus irmãos,
e Santa Efigênia de origem Etíope como protetora dos lares. (BRASILEIRO, 2001,
p.26)
Dentro dessa cosmovisão é que se desenvolve toda a trama dos reinados uma
cultura que propaga a atualidade de seus mitos através do que MARTINS (1997)
conceitua como um cultura de encruzilhadas que tecido em um emaranhado de
ritos, símbolos e costumes vindos na memória na travessia forçada do atlântico , se
reconfiguram com as experiências vividas agora na diáspora.

FUNDAMENTOS
Os reinados em sua diversidade também conhecidos como congado, catupé, ca-
boclinhos, marujadas dentre outras inúmeras linguagens regionais dispõe de uma
complexa organização interna onde embora cada guarda ou terno tenha a mesma
origem; algumas de suas disposições internas são independentes se constituindo
como uma nação única. (BRASILEIRO, 2001, p. 14)
Entre as premissas básicas dessa tradição cultural se encontra a reverência aos
antepassados onde diferente de algumas tradições yorubanas essa antiguidade
não se celebra através dos deuses; nesse caso seguindo os fundamentos bantu a
vênia dirige-se àqueles que viveram entre nós e são celebrados em sua humanida-
de e importância para aquela comunidade.
Fica evidente o caráter familiar desse legado cultural onde os principais funda-
mentos se propagam a cada geração e se mantém vivo através das oralituras, tomo
como o empréstimo o conceito de Leda Maria Martins (1997) para frisar o quanto a
memória se constituiu a única bagagem do negro escravizado que cruza o atlântico
e trata tanto de guardar essas informações, quanto de adaptá-los à realidade em
que passarão a viver.
Refuto, porém, a ideia de compreender os reinados e sua prática de um cato-
licismo negro com algo sincrético entendendo o sincretismo a partir de todas as
concepções negativas associadas a esse conceito. Visto sempre como um aspecto
colonizador e de aculturação dos povos tradicionais a esteia em que se concebe

292 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
sob uma ideia simplista; de junção aos elementos das culturas dominantes para a
sobrevivências dos povos dominados.
Na linha do que advoga FERRETTI (1998) entendo que as demasiadas críticas
proferidas ao chamado sincretismo afro-brasileiro partem da premissa não ver-
dadeira de um purismo nas demais práticas culturais e religiosas. Nesse sentido a
autencidade exigida das práticas culturais negras remetem a um tempo mítico pré-
colonização não existente, para essa temática observemos os escritos de Ferretti:

Embora alguns não admitam, todas as religiões são sincréticas,


pois representam o resultado de grandes sínteses integrando
elementos de várias procedências que formam um novo todo.
No Brasil, quando se fala em religiões afro-brasileiras pensa-se
imediatamente em sincretismo, como “aglomerado indigesto”
de ritos e mitos, ou como “bricolagem” no sentido de mosaico
as vezes incoerente de elementos de origens diversas” (FERRETI,
1998, p. 2)

Pari passu com a discussão sobre o sincretismo se encontra as reflexões teóri-


co- metodológicas sobre a construção de um nagocentrismo nas discussões sobre
cultura afro-brasileira que equivocadamente cria uma hierarquização das práticas
culturais nagô em detrimento das visões de mundo dos povos bantus; e a cosmogo-
nia bakongo sobretudo no campo religioso. (OLIVEIRA, 2003).
Essas discussões que têm como precursores no Brasil autores como Nina Rodri-
gues, Edison Carneiro, Roger Bastide entre outros a grosso modo amparam suas
convicções sobre um suposto purismo encontrado nas práticas dos candomblés
nagôs em comparação ao bantus. Essa identidade nagocêntrica durante muito
tempo dominou os estudos antropológicos sobre religiões afro-brasileiras sendo
atualmente cada vez mais refutada por correntes que se dedicam a compreensão
dos povos bantus no Brasil.
Embora a maioria dos debates a respeito se centram em aprofundar nas investi-
gações dos candomblés angolas permito-me aqui utilizar de tais contestações para
pensarmos sobre os fundamentos dos reinados; e sua peculiar localização nessas
reflexões por tratar-se de uma manifestação de um catolicismo popular negro.
Dentro dessa visão purista uma prática católica ainda que fora dos padrões do
catolicismo oficial foi por muito tempo destituída de sua característica de resistên-
cia e prática cultural negra; e embora nunca tenha necessitado de tal autorização
para existir enquanto tal acredito enquanto congadeira e pesquisadora do tema
ser importante pontuar a discussão acima.
Feito isso convido ao leitor a visualizar a composição de uma guarda/terno de
reinado para melhor compreendermos os ritos. Na realeza temos as rainhas e reis
perpétuos seguidos das rainhas e reis festeiros e respectivamente suas princesas
e príncipes; ainda na corte destacamos o papel da/os guardas que protegem a re-
aleza pelo percurso.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 293


Artes, memória e espaços
Destaca-se ainda o papel das capitãs/ capitães responsáveis por conduzir o cor-
tejo com singularidade, sobre a musicalidade em todos os momentos sua liderança
é “puxada” por caixas tocando as toadas correspondentes a cada momento; que
podem ser substituídas por outros instrumentos como viola e ainda sanfonas. Se-
guindo essa liderança temos os dançantes também chamados de congadeiros ou
reinadeiro que respondem com vigor as ladainhas cantadas pelo comandante e
dançam por todo cortejo que pode durar horas.
Durante toda a celebração em cada ato específico é possível observar uma ritua-
lística única onde desde o levantamento do mastro das bandeiras, as saudações as
rainhas e reis até a chegada nas igrejas. Embora haja uma unicidade quanto a lou-
vação a Nossa senhora do Rosário cada terno de reinado possui sua individualidade
o que torna tanto complexo, quanto fascinante observar os cortejos pelas ruas que
une pessoas de todas as idades em torno dos fundamentos.
Destaco aqui um olhar especial para as roupas dos reinadeiros a miscelânia de
cores trazem vivacidade às ruas há muito significado em embelezar o Rosário de
Maria por esse motivo os capacetes, turbantes, saiotes e fitas sempre bem alinha-
dos além de identificar os ternos e a posição de cada um dos integrantes ali; reme-
moram a grandeza de um povo livre em trajar-se conforme tal liberdade exige.
Outro fundamento de igual importância no exercício dessa performatividade
é a sagrada alimentação dos participantes desde o café da manhã oferecido aos
reinadeiros antes de saírem em dança pelas cidades, quanto aos almoços muitas
das vezes oferecidos a toda comunidade. É interessante observar a fartura fla-
grantemente percebível e a partilha do alimento entre todos; por mais uma vez
aqui destaco os sentidos da valorização da liberdade muito presente em todos os
momentos ao lado das construções coletivas ; embora na atualidade as diversas
mutações sociais tem tornado cada vez mais difícil construir as festas de maneira
comunitária como anteriormente.
Por último quero aqui avultar o papel da musicalidade em todo esse enredo que
me encanta são rezas, clamores ao mesmo tempo em que são sotaques; é evidente
durante os cortejos as mensagens que devem ser externalizadas e aquelas que são
falas de si para si., no popular trocar línguas. Não é raro se ouvir dizer que uma
determinada/o reinadeira/o sabe falar a língua dos pretos antigos fazendo refe-
rências a aquela/es que ainda resguardam algum dialeto bantu que se mistura as
expressões regionais.
As ladainhas cada uma para o momento adequado reconstroem narrativas vivas
nas memórias e reforçam os mitos anteriormente analisados, na forma de coro
há quem “puxe” a cantiga que é respondida por todos ali presentes de maneira
uníssona. O canto representa nesse sentido a ligação espiritual dos ternos com
as divindades celebradas e conforme escreve LUCAS (2011) possuem uma rigidez
admirável quanto a execução do mesmo, observemos seus escritos:

Com base nessa concepção, os congadeiros apresentam uma


forma particular de teorização e de avaliação estética de suas

294 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
performances, a qual está intimamente vinculada ao correto
cumprimento de suas obrigações rituais, à qualidade da fé com
que produzem música e dança e à força da união do grupo. Nos
ritos, a experiência musical corresponde, portanto, à experiência
espiritual. (LUCAS, 2011, p. 3)

Saliento aqui que a preparação para os reinados se dá durante todo o ano e é


fundamental para o que LUCAS (2011) descreve acima ; é preciso fazer bonito não
somente para o cumprimento das obrigações rituais; as festas de reinado são um
momento esperado durante todo o ano sendo onde os ternos também se reúnem
em uma performatividade que é de um para o outro. Há aqui também um elemen-
to da vaidade e de se fazer eternizar as tradições perpetuadas por cada família,
cada terno por essa razão é incomum escutar ninguém canta ou dança como fulano
ou sicrano essas aparições são, portanto, eternizadas e vistas como um marco a ser
superado.
Esse é o emaranhado que envolve a tradição dos reinados que resisti por séculos
as transformações sem se afastar de sua origem sendo por vezes a base da forma-
ção das identidades culturais de seus participantes, sobretudo, das comunidades
quilombolas nos interiores e meios rurais, mas também sobrevivendo às grandes
cidades. Ressalto que boa parte disto deve-se ao modo de ser e fazer cultura ban-
tu que por vezes é erroneamente interpretado onde se vê assimilação é possível
refletir um pouco mais cuidadosamente e perceber as estratégias de existência,
admiro nesse sentido o que escreve SOUZA (2002) sobre o assunto:
O pensamento banto sempre teve uma admirável capacidade de resistir a trans-
formações radicais, distinguindo-se por incorporar as contribuições continuamen-
te dadas pelo contato entre os povos, lendo-as a partir do seu próprio instrumental
cognitivo e em parte aceitando-as como próprias. (SOUZA, 2002, p.68)
É partindo dessa premissa que caminho para pensar o último e conclusivo pon-
to deste trabalho para entender como uma tradição secular carrega consigo tanta
atualidade performática.

A ATUALIDADE PERFORMÁTICA DOS REINADOS


Muito embora hoje os reinados sejam vistos como celebração da cultura híbri-
da e imaterial de um povo nem sempre as relações sociais em seu entorno foram
amigáveis. Imaginar a expansão de uma manifestação cultural com essas caracte-
rísticas em uma sociedade marcadamente racista, operando em uma religião ofi-
cialmente eurocêntrica é certamente seguir as indicações de conflitos anunciados.
O catolicismo praticado pelas reinadeiras/os é entendido dentro de uma aná-
lise sobre a história desta igreja no Brasil como um catolicismo popular, portanto
não conforme com os pilares da religião oficial; esse fato durante muito tempo foi
estopim de conflitos e resistências por parte da igreja que não aceitava a festa dos
negros em suas dependências. Em alguns casos registra-se até o impedimento dos

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 295


Artes, memória e espaços
ternos de adentrar as igrejas como ocorreu na cidade de Oliveira em Minas Gerais
por algum tempo.
Isso porque um dos pontos tão atuais que os reinados sugerem é uma incômoda
inversão social ainda que de forma local na sociedade. Explico; como símbolo de
organização e resistência à dominação escravista as guardas de congado demar-
cam nas sociedades onde estão inscritas a possibilidade de uma inversão dos pa-
péis cotidianos por parte dos seus integrantes, ainda que de modo temporário para
o restante da sociedade, mas de forma permanente e hierarquizada nas comuni-
dades envolvidas. Desse modo homens e mulheres sobrepujados pelas condições
sociais e raciais assumem posições de reis e rainhas congos e consequentemente
os prestígios sociais atribuídos aquela posição política dentro do ritual. Ao escrever
sobre os filhos do rosário Patrícia Trindade Maranhão Costa (2006) incita a seguin-
te reflexão:

A inversão talvez seja possível por ser momentânea e mediatiza-


da pelo evento ritual que estabelece exatos momentos para co-
meçar e acabar, além de prescrever o comportamento adequa-
do a essa situação específica. Forma-se, assim, uma espécie de
communitas que emerge periodicamente à margem da estrutura
social e nesse caso entre aqueles que se situam nas posições
inferiores da mesma (COSTA, 2006, p.13)

Entender a potencialidade desse momento em específico requer pensarmos no


quanto as representatividades positivas importam em um contexto onde todo e
qualquer traço de negritude é visto enquanto adjetivações negativas. Nesse sentido
mulheres e homens negros, crianças e idosos trajando nas ruas vestimentas reais
e podendo apresentar livremente a expressão de sua cultura nos parece bastante
significativo em momentos onde existem diversas movimentações de valorização
e positivação da representação negro na esfera social.
Ademais nos dias atuais assim como em tempos imemoriais em algumas comu-
nidades sobretudo aquelas localizadas geograficamente no interior das capitais, a
pertença a um terno de reinado representa o ápice das interações sociais e lazer
especialmente para os mais jovens. Em meu trabalho de campo para pesquisa et-
nográfica em João Monlevade- MG (2017-2018) diversas vezes ouvi os saudosos
relatos daqueles que narram suas preparações sobre a festa do congado em Ca-
xambu, de como se arrumavam, compravam tecidos, os penteados do cabelo e os
namoros arranjados no baile.
Para esses reinadeiros não se trata apenas de uma festa o pertencimento a um
terno movimenta o modo como vivem cotidianamente, como são identificados por
sua raiz familiar; bem como o respeito e o reconhecimento que ser guardiãs/guar-
diões lhe conferem. Arrisco-me a dizer que esse pertencimento é o pilar para a ma-
nutenção de tradições muitas vezes relegadas pelas instituições formais que desti-
tuídas de olhar crítico não enxergam a potencialidade dessa manifestação cultural.

296 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
É notável por exemplo como o acesso as redes sociais tem sido usado ampla-
mente por algumas associações de reinadeiros e até mesmo as guardas de forma
individual no intuito de propagar sua tradição. Destacando esse ponto em relação
aos mais jovens que através das produções audiovisuais demonstram seu orgulho
em fazer parte dessa cultura, atestando o sucesso de um dos princípios fundamen-
tos das tradições negras: cada um de nós é um Griot!
Caminho para a conclusão dessas reflexões e convido ao leitor a pensarmos o
quanto é necessário a ampliação daquilo que temos entendido como cultura negra
no campo acadêmico. Os povos bantus no Brasil e sua cultura ainda tem muito a
nos oferecer enquanto campo teórico dada as suas complexidades ainda pouco
analisadas de forma mais crítica.
Há tanta poética nas narrativas dos reinados que esse trabalho se ocupa apenas
de trazer uma breve encenação para auxiliar a compreensão de algo que é tão
grande, a resistência e ressignificação são nesse sentido os dois grandes funda-
mentos e sacramentos dessa tradição. Uma festa religiosa que não é só uma fes-
ta; e que tão pouco se restringe a aspectos religiosos, temos aqui uma infinitude
de eventos onde pessoas comumente em posição de subalternidade revivem suas
memórias ancestrais de uma realeza negra.
A incrível diversidade de um povo disposta entre os mais diversos ternos é de
fato impressionante e nos leva a pensar nas riquezas ali presentes e tão bem res-
guardadas ao longo do tempo, se Nossa Senhora entendeu que o som dos negros
cativos de fato era o único possível para fazê-la sair das águas e sentar-se no andor
é plausível que ainda hoje seu manto reúna embaixo dele todos os segredos desse
povo que se intitula Filhas e Filhos do Rosário.

Salve Maria!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASILEIRO, Jeremias. Congadas de Minas Gerais. Fundação Cultural Palmares, Ministério


da Cultura, 2001.

COSTA, Patrícia Trindade Maranhão. As raízes da congada: a renovação do presente pelos


filhos do rosário. 2006. 241 f., il. Tese (Doutorado em Antropologia Social) -Universidade
de Brasília, Brasília, 2006.

FERRETTI, Sérgio F. Sincretismo afro-brasileiro e resistência cultural. Horizontes Antropo-


lógicos, Porto Alegre, v. 4, n. 8, p.182-198, jun. 1998.

LUCAS, Glaura. Tempo e música nos rituais do Congado mineiro dos Arturos e Jatobá. Tese
de Doutorado. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2005.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 297


Artes, memória e espaços
LUCAS, Glaura. ‘Vamo fazê maravilha!’: avaliação estético-ritual das performances do Rei-
nado pelos congadeiros. Per Musi, Belo Horizonte, n.24, p.62-66,2011.

MARTINS, Leda Maria. Afrografias da memória. Belo Horizonte: Mazza Edições, 1997.
MARTINS, Leda Maria. A oralitura da memória. In: FONSECA, Ma. Nazareth S. (org.) Brasil
Afro-Brasileiro. Belo Horizonte, Brasil: Autêntica, 41-59, 2000.

OLIVEIRA, David Eduardo de. Cosmovisão africana no Brasil: elementos para uma filosofia
afrodescendente. Fortaleza: Lcr, 2003. 182 p.

SOUZA, Marina de Mello e. Reis negros no Brasil escravista: história da festa de coroação
de Rei Congo. Belo Horizonte: Editora UFMG. (2002).

AUTORIA
Dayane Nayara Conceição de Assis- Nzinga Mbandi
Doutorando do Programa Interdisciplinar Sobre Mulheres, Gênero e Feminismo –
UFBA/ Bolsista FAPESB
E-mail: ladaiane@hotmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2646641025063825

298 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
SINTONIZANDO O RAP NAS RÁDIOS DE BH
Vítor Gonzaga dos Santos

“Aos puros eu compartilho


Nenhum sonho é tão pequeno
Pra quem sabe dividi-lo
Venho, provar que é possível” FBC

INTRODUÇÃO
Este artigo tem como objetivo apresentar alguns resultados da investigação re-
alizada durante a conclusão da graduação em Relações Públicas, sobre o RAP em
Belo Horizonte - Minas Gerais, voltada especificamente para compreender a au-
sência dos artistas do gênero nas principais rádios de sua própria cidade. A pesqui-
sa buscou responder quais são os principais motivos que fazem com que as músi-
cas desses artistas não serem reproduzidas nas principais rádios da capital mineira.
Perguntou-se, também, neste estudo, o que pensam esses artistas sobre a au-
sência de suas músicas nas rádios de sua própria cidade. Espera-se identificar na
visão dos músicos, o que seria necessário para maior veiculação de suas produções
nas rádios locais. A hipótese inicial desta pesquisa defendia a ideia de que o RAP
é gênero musical discriminado por sua origem nos movimentos negros estaduni-
denses.
Ao aprofundar os estudos sobre o tema, foi possível compreender o RAP como
uma estratégia de resistência negra. Segundo Guimarães (2012), alguns estilos mu-
sicais mostram uma imagem romantizada e harmoniosa de país, o que é contesta-
do pelo RAP.

a imagem de um país homogêneo e harmonioso – veiculada,


por exemplo, por grande parte da tradição do samba – é fran-
camente contestada pelo Rap, que faz uma crônica do cotidiano
da periferia em que se identificam tanto os conflitos diários – au-
sência de equipamentos sociais básicos, repressão policial, racis-
mo – quanto as alegrias vivenciadas no dia-a-dia. (GUIMARÃES,
2012, p.35).

Uma das indagações sobre essa não reverberação do RAP me ocorre ao analisar
o cenário musical desta cidade que ficou conhecida por sediar a Final Nacional do
Duelo de MC´s (maior competição do gênero no país); por revelar alguns dos prin-
cipais artistas da considerada nova geração no país, como: Djonga, FBC, Sidoka,
Clara Lima, Hot e Oreia, Chris Mc e que, mesmo obtendo destaque na cena e tendo
muitos fãs, esses artistas não tocam nas rádios de sua própria cidade .

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Artes, memória e espaços
Para atingir os objetivos optou-se pelo desenvolvimento de pesquisa qualitativa.
O levantamento de dados foi realizado por meio de entrevistas semiestruturadas
com 6 rappers, selecionados a parit dos seguintes critérios: ter iniciado sua carrei-
ra artística em Belo Horizonte ou região metropolitana de Belo Horizonte; possuir
projetos recentes, ou seja, de 2015 até então; possuir mais de 5 mil seguidores no
Instagram; possuir mais de 20.000 visualizações no próprio canal de Youtube.
Devido ao período de isolamento social causado pela pandemia do Coronavírus,
as entrevistas foram feitas e gravadas pela Plataforma Google Meet. Os áudios
e conversas foram arquivados, as entrevistas foram transcritas e os rappers e as
rappers autorizaram a utilização dos diálogos em trabalhos científicos, conforme
exigência da ética em pesquisa.

OS SUJEITOS
FBC Fabrício FBC, nasceu e foi criado na região metropolitana de BH. É um dos
maiores campeões do Duelo de MCs e transita por vários coletivos da cidade, ge-
rando frutos importantes, como o projeto Mestre Sem Cerimônia, do Coletivo Fa-
mília de Rua. Principais lançamentos: 2013
– álbum C.A.O.S; 2018 - álbum S.C.A; 2019 - álbum Padrim e, em 2020, álbum Best
Duo.

HOT E OREIA Mário Apocalypse, mais conhecido como Hot, é MC e marionetista.


Sua atuação na área artística vai do Rap ao teatro de bonecos. Neto do artista
plástico Álvaro Apocalypse, cresceu em meio ao universo do teatro de bonecos
dentro do Grupo Giramundo -Teatro de Bonecos, fundado por seu avô. Em meados
de 2009, conheceu o Duelo de MCs e começou a atuar na cena. Em 2013, lançou o
EP Borboletas Não Morrem; em 2018, lançou o EP Lua em Escorpião. Além do Rap e
do teatro de bonecos, Hot é articulador do Sarau 'Vira Lata', movimento literário
itinerante. Atua ao lado de Gustavo, conhecido como Oreia. Gustavo "Oreia" é MC
e participante ativo dos saraus e duelos de Belo Horizonte. Improvisa desde os 13
anos. Já se apresentou em São Paulo, Distrito Federal e Bahia, já tendo vencido
diversas batalhas do Duelo de MCs. Oreia é idealizador do Coletivo Zandra, que
produz eventos culturais na cidade. Pé do Ouvido, seu primeiro EP, saiu em 2016.
Como Dupla Hot e Oreia lançaram em 2019, o Álbum Rap de Massagem.

WELL MC Welbert ou Well como é conhecido no Duelo de MC’s é exímio poeta e


letrista, Em
2016, lançou seu álbum Gênese e desde 2014 vem lançando singles ano a ano.

MAC JÚLIA Compositora desde os 12 anos, a artista Mac Júlia carrega as influências
do skate e da pichação. Hoje mescla as vivências da tinta nos muros e da poesia
rítmica das ruas de Belo Horizonte. Em 2019, a artista lançou a Sextape: Love Me
Two Times, e, em 2020, a artista lançou o EP $imbio$e.

300 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
TAMARA FRANKLIN Dona de uma voz marcante, personalidade forte e um talento
diferenciado, Tamara Franklin nasceu e cresceu em Ribeirão das Neves (Região
Metropolitana de Belo Horizonte). Entre as ruas 20 e 40 do bairro Pedra Branca, a
artista aprendia as lições da rua que seriam tão necessárias como fonte de inspira-
ção mais tarde. Foi ali, naquele contexto, que Tamara começou a escrever seus pri-
meiros versos aos oito anos de idade. Em 2015, a artista lançou seu álbum Anônima.

VINICIN MC Vinícius de Andrade Lima, como consta nos documentos, foi batizado
nas ruas como Vinicin. Criado na Zona Norte de Belo Horizonte, o artista iniciou sua
trajetória no Duelo de MC’s e através de versos certeiros e pela interpretação única,
o artista lançou em 2016 seu álbum Vivenciar, que possui mais de 10.000 discos
vendidos.

O RAP E SUA EXPRESSÃO EM BH


A expressão RAP é uma abreviação em inglês de Rhythm And Poetry (Ritmo e
Poesia). Este estilo é assim denominado porque mescla um ritmo intenso com rimas
poéticas que integram o cenário cultural do Hip-Hop.
Embora tenha se difundido em grande parte no Bronx, subúrbio de Nova Iorque,
em meados da década de 70, sua origem está estreitamente ligada à musicalidade
presente nas tradições africanas incorporadas no continente americano durante o
processo escravagista e facilmente encontradas na Jamaica, país originário do RAP,
que é uma derivação do toasting.
A popularização do RAP ocorre somente na década de 1980, quando este gêne-
ro musical ultrapassa suas fronteiras e passa e passa a atingir novos mercados tan-
to dentro dos Estados Unidos quanto nos demais países, graças a um intercâmbio
cultural entre o RAP e outros estilos musicais populares dando origem a outros
gêneros como o raggamuffin, que era uma mistura com o reaggae. Outro exemplo
desse intercâmbio cultural entre diferentes estilos musicais é a música “Rock this
Way”, interpretada por Aerosmith e Run-D.M.C., em 1986.
Neste período surge também o Gangsta Rap com nomes como: NWA, Snoop
Doggy Dogg, Sean Puffy Combs, Cypress Hill, LL Cool J, e outros.
Neste mesmo período o Rap chegou ao Brasil. Onde jovens inspirados pelo Rap
Americano, que fazia referência à África, a Malcom X, a Martin Luther King e aos
Panteras Negras, começaram a se organizar, adotando a tendência do Rap cons-
ciente. Então, ao mesmo tempo em que o Rap Paulista se expandia ele se reorga-
nizou, impulsionando a expansão por todo país.
De acordo com a pesquisadora Said (2007), “tanto a cena estadunidense quanto
a paulista, foram vistas como referência para o Rap mineiro”.
E durante os seus mais de 30 anos de trajetória na cidade de Belo Horizonte o
RAP alcançou os mais diversificados movimentos culturais, assumindo posição de
destaque. Diversos coletivos e artistas das mais distintas regiões da cidade encon-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 301


Artes, memória e espaços
tram nas expressões artísticas formas de se posicionar diante de temas atuais e
necessários à sociedade e, principalmente, no seio das comunidades periféricas,
trazendo as vozes de pessoas do lugar, que, por muitas vezes, são inviabilizados.
Dentre os artistas que têm essa atuação marcada, temos o exemplo do Djonga,
reconhecido localmente e considerado o principal artista desta geração no país.

AS VOZES DOS ENTREVISTADOS


Como você se sente com a ausência de suas músicas nas rádios?

FBC
Eu acredito que essa ausência também acontece, mas por desinteresse meu e
também por direcionar o meu investimento para outros lugares, né. A gente dire-
ciona
mais o investimento para o YouTube, trabalhando com clipes, né. Mas eu acre-
dito que para tocar nas rádios se deve pagar um dinheiro, não? Como é que fun-
ciona? Eu não sei. Nunca parei para ligar para um escritório de alguma rádio para
falar sobre a música sabe? Mesmo a minha música atingindo milhões e milhões de
visualizações nenhuma rádio me procurou. O problema é que eles pegam alguns
artistas que estão ficando grandes e colocam eles para dentro do sistema para
que continue funcionando, mas eu entendo que as rádios ainda rendem um bom
dinheiro para os artistas e que a propaganda gira isso tudo.

Hot e Oreia
Eu sinto que nossa música poderia estar lá, né, se a gente tivesse uma maior
concentração para isso. Mas mesmo não estando lá a gente fica feliz porque ela tá
se virando de outras formas, né. São as formas que estão mais ligadas a nós hoje
em dia que é, Spotify, You Tube, shows... que é onde a molecada tá. Mesmo assim,
mesmo com tudo isso mesmo com plataformas gigantes pagas ou grátis, a rádio
ainda é gigante, né? Se não for maior aí eu não sei, mas é muito grande. Então seria
bom tá lá, mas nós não ficamos tristes, nem felizes está normal.

Well
Hoje em dia, indiferente. Não é algo que me abala... seria legal, mas eu entendo
que o contexto é outro, tá ligado? São universos diferentes.
Se existisse uma rádio especializada em Rap, se não tocasse meu som eu ia fi-
car muito triste, eu ia ficar realmente muito triste se tivesse uma rádio tipo a BBC
que tem em Londres e eu não fosse lá mandar uma música ao vivo eu ficaria muito
triste. Mas como a rádio... como eu disse anteriormente é estruturada para que
a maioria do público consome. Ou ele é tendenciosamente obrigado a consumir.
Minha música não tem espaço ali, mano, porque eu percebi isso uma vez que eu
fui tocar numa festa de um mano que gostava muito do meu som. Só que ele

302 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
tinha feito uma festa que não tinha nada a ver com o meu som, tá ligado? E aí ele
convidou atrações que tinham relação com o público que ele tinha convidado e ele
me chamou exclusivamente porque ele gostava e o meu show não foi nada legal. E
percebi que a gente tem as pessoas com quem a gente comunica e eu não acredito
que essas pessoas estão no rádio. E hoje eu nem penso mais assim em questão de
alcance é mais uma questão de identificação mesmo. Então se hoje eu tenho inter-
net para poder comunicar com as pessoas que gostam do meu som, para mim já
suficiente. Por mais que eu não alcance mais pessoas eu acredito que se fosse no
rádio eles iriam ouvir a música e achar indiferente também. Então acho que essa
minha ação ela é mais uma reação do que o público de rádio teria, sacô? Eles vão
ouvir, falar... não conheço esse cara, não sei quem ele é, não quero nem saber por
que eu não conheço. Então tipo assim... que é muito diferente de um contexto...
de repente eu quero a música do Djonga na rádio porque ele é um cara famoso, é
um cara que furou essas bolhas todas, tá ligado? Então é diferente as pessoas já o
conhecem então ali naquele espaço é um tipo de coisa. Agora eu que sou um artista
mais experimental, que busca transmitir uma parada sei lá mais maluca, tá ligado?
Não tem espaço para esse tipo {de música} Esse tipo de público simplesmente iam
ouvir, falar: - olha, legal, então beleza. Vou mudar de rádio, não conheço esse cara.
Então acho que a rádio para o meu no meu contexto não faria muito sentido a não
ser que existisse uma rádio especializada nisso tá ligado que tivesse um público seg-
mentado aí eu poderia tentar a sorte. Porque agora eu tô conversando com o meu
público. Então aqui eu tenho espaço. Para mim tirando isso, a internet hoje em dia
para mim é o melhor espaço para poder divulgar meu som.

Mac Júlia
É complicado né! Muito complicado nesse quesito então eu ouvir minha música
na Rádio Educativa UFMG umas duas vezes e foi de uma tremenda felicidade para
mim. Muita gente me chamando, me mencionando. Nossa acabei de te ouvir esta-
va aqui no trânsito. Então de certa forma eu me sinto desvalorizada não só eu, mas
eu acredito que vários artistas. Por estar ativa trabalhando, principalmente nesse
tempo de quarentena, não ter parado de trabalhar e ausência das minhas músicas
nas rádios, nos programas, nas entrevistas, isso me causa um pouco de ansiedade.
Não vou falar, não vou falar tristeza ou revolta, mas, principalmente, ansiedade
mesmo por estar trabalhando muito, Tá com planos e acabar vendo que as minhas
músicas talvez não estão chegando para um público que não é só o que eu já tenho
e isso me impossibilita de expandir meu público e isso faz com que eu me sinta
desvalorizada, né?

Tamara Franklin
Não sei se rola bem o sentimento não tive tempo de sentir alguma coisa, é tanta
correria. Eu acho que o corre é tão louco que a gente acaba focando um pouco mais
em onde a gente vê possibilidade, sabe. Por exemplo, na internet, eu tenho a possi-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 303


Artes, memória e espaços
bilidade de fazer movimentar assim e através do streaming eu posso movimentar
dessa outra forma. Então eu acho que ocorre, que exige tanto da gente e é uma
corrida mesmo por sobrevivência, né, porque eu preciso fazer meu corre, eu preci-
so fazer minha arte, preciso gerar uma grana com isso. Eu preciso fazer chegar nas
pessoas porque senão eu não pago minhas contas. Então a gente acaba priorizando
o que tá rolando, fraga? Então eu nunca parei para refletir assim sobre como eu me
sinto por não está tocando. Gostaria que esse distanciamento fosse vencido e que
eu conseguisse acessar também esses meios de comunicação, mas por não tocar
eu acho que eu não tenho sentimento nenhum. Sei lá, poderia estar na rádio, mas
não tá. Está bom porque está rendendo de outras formas, mas é isso vamos ver se
a gente faz um som para rádio. Mas mesmo assim é aquele trem tem que ter um
contato e tem que fazer aquele esforço lá.

Vinicin
Para ser sincero, eu não tenho sentimentos a respeito disso porque eu nunca es-
perei. Por acompanhar esse histórico de outros artistas que vieram do meu gênero
que só começaram a tocar em rádio quando eles começaram a trabalhar com outros
artistas de outros gêneros e quebraram essa barreira que ainda é muito grande. Eu
acredito nisso que se a gente ficar esperando um artista mediano, ficar nessa expec-
tativa de que música vai tocar em rádio, criar um sentimento de que a música vai to-
car em rádio é algum tópico, porque os artistas que tocam em rádio ou eles já fazem
aquela música que já é pré-definida como popular e tal que já tem uma aceitação
muito grande né pela sociedade que alguns gêneros como sertanejo. Então, um ar-
tista de rap, se criar essa expectativa aí, é uma perda de tempo, porque não existe
diálogo não tem a oportunidade. Para o artista de rap tocar a rádio ele vai ter que
trabalhar com artistas de outros gêneros até que a rádio se sinta segura para tocar a
música dele no sentido de que a aceitação vai ser muito maior do que eles esperam.

ANÁLISE
A partir dos relatos dos artistas, percebe-se que há um distanciamento entre
as rádios comerciais e eles. Devido a esse distanciamento, os artistas acabam “op-
tando” em desenvolver os seus trabalhos em outras plataformas, principalmente
digitais. Os rappers percebem também a necessidade de se destacar nacionalmente
para ter acesso às rádios. E para isso percebem que terão de fazer trabalhos com
artistas de outros gêneros e fazer um som mais pop, que agrada a galera.
Como disse a Tamara Franklin “é uma corrida mesmo por sobrevivência, né, por-
que eu preciso fazer meu corre, eu preciso fazer minha arte, preciso gerar uma gra-
na com isso. Eu preciso fazer chegar nas pessoas porque senão eu não pago minhas
contas”.

304 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
Também, como disse o FBC “o problema é que eles pegam alguns artistas que
estão ficando grandes e colocam eles para dentro do sistema para que continue
funcionando”
Mac Julia reforça “a ausência das minhas músicas nas rádios, nos programas,
nas entrevistas, isso me causa um pouco de ansiedade. Não vou falar, não vou falar
tristeza ou revolta, mas, principalmente, ansiedade mesmo por estar trabalhando
muito vejo que há diferença entre a posição dos homens e das mulheres quando
pergunto: Como você se sente com a ausência de suas músicas nas rádios?
Enquanto há posição como a do Well que diz “então se hoje eu tenho inter-
net para poder comunicar com as pessoas que gostam do meu som, para mim já
suficiente”, vejo que há um desejo das mulheres de acessar as rádios de construir
um outro público, como destaca Mac Julia “isso me impossibilita de expandir meu
público e isso faz com que eu me sinta desvalorizada, né”?

CONCLUSÃO
O objetivo deste artigo foi apresentar o resultado da minha pesquisa de conclu-
são de curso que buscava compreender os fatores que explicam a ausência dos
Rappers belo-horizontinos nas rádios de sua própria cidade.
Para conseguir responder ao que me interessava, realizei seis entrevistas se-
miestruturadas com os/as rappers: FBC, Hot e Oreia, Well, Mac Júlia, Tamara
Franklin e Vinicin.
Como conclusão, verifico a partir das entrevistas, que o Rap não está nas rádios
porque há um distanciamento entre o que se propõe as rádios e as mensagens
contidas nas letras do Rap. Ainda há resistência a esse gênero musical por causa de
sua origem negra, como afirmam alguns dos entrevistados.
Após ouvi-los foi possível perceber que eles e elas não se sentem frustrados
pela sua ausência nas rádios de sua cidade, como eu imaginei no início da pesquisa.
Eles estão buscando outros meios de divulgação de sua música, mas reconhecem o
rádio como uma ferramenta de comunicação potente.

REFERÊNCIAS

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AUTORIA
Vítor Gonzaga dos Santos
FLACSO Faculdade Latina-Americana de Ciências Sociais
E-mail: vitorgonzaga38@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9395352181153340

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Artes, memória e espaços
TEXTUALIDADE AFRO-BANTA NAS VOZES E
CANTARES NO JONGO DA SERRINHA

Ana Daniela dos Santo Rufino

Cacurucaia eu tô
Perengando eu tô
Mas não posso morrer
Ê, salve o Rosário
Ê, minhas Santas Almas, benditas
Ê, me salve todos jongueiros
Oh, Deus vos salve o Cruzeiro das Almas
Meu povo banto1

INTRODUÇÃO
O presente trabalho reflete as considerações parciais resultantes do processo
de construção da dissertação, em andamento, sobre o legado afro-banto no can-
cioneiro brasileiro, que encontra, na oralidade, presença legítima de produção de
conhecimento. LOPES, (2008, p. 93) nos alerta:

A negação da importância cultural do segmento banto na forma-


ção do povo brasileiro [...] repercutiu no inconsciente nacional,
principalmente porque as ideias sobre essa suposta inferiorida-
de foram formuladas, partir do século XIX, por escritores tidos,
então, como luminares da pesquisa científica.

Nossa pesquisa almeja, conjuntamente com os objetivos pré propostos, contri-


buir nesses equívocos em relação à presença e influencia banta no Brasil pois:

Ao contrário do que preconiza a etnologia tradicional, os Bantos


também foram agentes civilizatórios, também tem sua filosofia
[...] honram e prestigiam a arte do saber de seus escultores, seus
músicos, seus contadores de história, seus dançarinos, seus sa-
cerdotes, seus chefes. (LOPES, 2008, p. 157).

Devido as perversidades e imposições colonialistas, sabe-se que houve uma su-


pressão de saberes, sucessão de epistemicídios e demonizações relacionadas às in-
telectualidades negras. Leda Martins (2003) muito bem coloca que a textualidade
africana não ecoa nas nossas letras escritas ocidentais. E é no corpo e na voz que
encontramos essa espinha dorsal que dá vida, estrutura e sustenta a narrativa oral.
De acordo com a autora, tanto o corpo quanto a voz são “como portais de inscrição

308 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
de saberes de várias ordens.” Sueli Carneiro (2005) em sua tese de doutoramento
coloca o epistemicídio como uma “tecnologia de poder” usada desde do tempo da
escravização até nos tempo atuais, pela sua reprodução constante nos segmentos
sociais, políticos, econômicos e educacionais: Pois uma vez os africanos e, por ex-
tensão os afrodiaspóricos ainda hoje, destituídos pelos colonizadores de humani-
dade, razão e saber tem sua escravização legitimada e sacramentada:

[...]Destaca- se o epistemicídio como elo de ligacã̧ o de


tecnologias disciplinares e de anulacã̧ o. O seu domínio é a razão,
a produção dos saberes e dos sujeitos de conhecimento e os
efeitos de poder a eles associados. Nessa dinâmica, o aparelho
educacional tem se constituído, de forma quase absoluta, para
os racialmente inferiorizados, como fonte de múltiplos
aniquilamentos ou subordinação da razão. Dinâmica e produção
que tem se feito pelo rebaixamento da auto-estima que com-
promete a capacidade cognitiva e a confiança intelectual, pela
negação aos negros da condição de sujeitos de conhecimento,
nos instrumentos pedagógicos ou nas relações sociais no coti-
diano escolar, pela deslegitimação dos saberes dos negros sobre
si mesmos e sobre o mundo, pela desvalorização, ou negação
ou ocultamento das contribuições do Continente Africano
ao patrimônio cultural da humanidade, pela indução ou pro-
moção do embranquecimento cultural, etc. A esses processos
denominamos, nesta tese, de epistemicídio. CARNEIRO, 2005,
p. 324

Nessa travessia rumo à uma perspectiva de descolonização eurocêntrica é mui-


to importante a (re)construção da compreensão dos mais diversos níveis de opera-
ção, ethos e constructos sócio-filosóficos de matriz africana e da diáspora.

APORTE TEÓRICO
Para dialogar com nossa voz, os conceitos de Oralitura, cujo objetivo é conver-
ter a oralidade enquanto transmissora una de informação em indício documental
através da registração escrita e a escrita corporal apresentados pela pesquisadora
e ensaísta Leda Martins (2002); de epistemicídio, pela perspectiva da filósofa Sue-
li Carneiro (2005) e a contribuição de elementos musicais africanos de Mukuna
(2006) resultante de uma extensa pesquisa músico-cultural em tribos, como a dos
Bakongo, na África subsaariana. Também nos propomos a estabelecer diálogo, no
contexto léxico musical, com os trabalhos do músico e pesquisador Nei Lopes que
tem uma robusta pesquisa sobre o povo banto no Brasil a partir do levantamento
realizado a respeito deste vocabulário. Para o léxico nas canções que foram reco-
lhidas, propriamente dito, embasaremos nos aportes linguísticos resultantes das
línguas africanas em contato com o português europeu, como referendado na obra
de Yeda Pessoa de Castro (2005).

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 309


Artes, memória e espaços
PROBLEMA DE PESQUISA (E/OU HIPÓTESE E/OU OBJETIVOS)
Nosso objetivo é destacar a presença da herança africana em nossa música
vocal e no português brasileiro, como também sua textualidade e seu ethos nos
nossos falares, constituintes na nossa cultura. Assim elevar essa produção outrora
silenciada ao patamar intelectual de merecimento, como também levar o testemu-
nho/oralidade ao valor e ação de documentação histórica.

METODOLOGIA
Como metodologia utilizamos a etnografia dentro da Casa do Jongo. Observan-
do, as rodas de jongo (onde a parte musical e performática ocorre); as hierarquias
e ordenações internas; as interações dos realizadores, colaboradores, voluntários
e demais eventos. Foi perfeitamente possível e feliz a ação-participativa na casa.
Fizemos entrevistas semiestruturadas e gravações em áudio destas. Registros foto-
gráficos e de vídeo foram realizados, tanto das rodas quanto das interações sociais.
Como também consultas em produções acadêmicas. Para melhor sistematização
e organização optamos pela construção de uma tabela com os eventos realizados
na Casa do Jongo que acompanhei – tanto como ouvinte, como participante – e
de onde foram coletados os materiais sonoros, visuais e informativos para a pes-
quisa. O processo de registro áudio-visual na Casa do Jongo foi muito tranquilo, o
grupo está habituado a permitir imagens, conceder entrevistas e afins. Quanto aos
registros externos, foram pouquíssimos, pois exigia uma precaução por conta da
questão do tráfico no local. Para as fotografias e gravações os equipamentos usa-
dos foram um smartphone Iphone 6S – com auxílio de um mini tripé, na maioria
das ocasiões – uma câmera semi profissional Nikon D3200 e um microfone Rode.
A triangulação do material recolhido, com a literatura específica sobre o Jongo da
Serrinha e os testemunhos dos realizadores da tradições foi de valor primordial.

BANTO: UMA COMPREENSÃO LINGUÍSTICA


O nosso foco de pesquisa é o Jongo, manifestação musical e performática cujas
matriz é oriunda da região Congo-Angola (GANDRA, 1995), trazida por negros es-
cravizados banto, com forte expressão no Sudeste. Como campo escolhemos o
Jongo da Serrinha, grupo artístico e cultural, sediado na Casa do Jongo, no bairro
de Madureira, zona norte da cidade do Rio de Janeiro-Brasil. O Jongo da Serrinha
nasceu na década de sessenta pelas mãos e tambores do Mestre Darcy do Jon-
go, afim de levar esse gênero além da comunidade, adquirir visibilidade e assim
promover sua preservação. Hoje a Casa do Jongo promove oficinas artísticas, ati-
vidades pedagógicas, ações afirmativas de reconstrução histórica e identitária. O
Jongo da Serrinha continua com seu trabalho de propagar o jongo pelo Brasil e
pelo mundo e também manter as tradições ressignificadas pelos seus realizadores.

310 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
O jongo, mesmo sendo entendido com uma reelaboração das memórias/resíduos
dos traficados, traz e mantém consigo o ethos e legado banto em que se constitui.
Compreende-se o termo Banto como denominação de um grupo linguístico
que reúne cerca de 500 línguas presentes na África subsaariana e que revelam gran-
des semelhanças entre si (CAMARA, 2013, p. 116). Em 1862, o linguista alemão
Wilhelm Bleek propõe o termo banto para nomear a família linguística que desco-
brira, composta de várias outras línguas oriundas de um tronco em comum, o pro-
tobanto, falado há três ou quatro milênios atrás. Só mais tarde é que o termo pas-
sou a ser usado pelos estudiosos de outras áreas para denominar 190.000.000 de
individuos e falantes que habitam territórios compreendidos em toda a extensão
abaixo da linha do equador. Dessa forma, verificamos que os Bantos representam,
além de um grupo étnico, também um significativo conjunto de povos falantes de
língua com matriz em comum. Seus territórios englobam países da África Central
Equatorial, Gabão, Angola, Namíbia, República Popular do Congo, República Demo-
crática do Congo (RDC), Zâmbia, Burundi, Ruanda, Uganda, Quênia, Malaui, Zim-
bábue, Botsuana, Lesoto, Moçambique África do Sul. (VER CASTRO, 2005, p.25).
O linguista e pesquisador Joseph Greenberg (1963), diante a diversidade linguís-
tica do continente africano, formulou a teoria em que as línguas africanas estariam
divididas em grandes quatro troncos/famílias:

• Afro-Asiático: Anteriormente chamadas de ‘hamito-semíticas’, compreen-


dem as línguas da África do Norte
• Coissã: Línguas faladas na África do Sul e Namíbia, ao longo do deserto de
Calaari. Tem a característica fonológica pelo uso dos “cliques”, sendo conhecidos
como “línguas de clique”.
• Nilo-Saariano: Línguas do sul do Sudão e sul do Saara.
• Congo Cordofaniano: Línguas subsaarianas faladas por diversos povos que se
localizam em grande território que vai da direção sul do Saara ao cone sul-africano
e do Atlântico ao Pacífico. É nessa família que se encontram as línguas do grupo
banto.

O grupo dos bantoide se subdivide em duas ramificações:

• Bantoide do norte, com línguas faladas na Nigéria e no oeste de Camarões.


• Bantoide do sul, com diversos subgrupos. O principal é o banto, com várias
línguas, como o umbundo, quimbundo, quicongo.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 311


Artes, memória e espaços
FIGURA 1: MAPA DAS FAMÍLIAS LINGUÍSTICAS

Fonte: SANTIAGO, 2013, p. 32

A palavra bantu significa ‘pessoas’, sendo o plural de muntu. As línguas sob a


classificação bantu foram identificadas como tendo semelhanças entre si:

As línguas bantu compreendem um grupo de línguas com ca-


racterísticas comuns que se estendem desde a África ao sul do
Sahara, incluindo quase toda a África ocidental, partes do Sudão
central e oriental, sendo que seu sub-ramo bantu ocupa a maior
parte da África central, oriental e meridional (GREENBERG, 1971,
p. 131).

As línguas bantu são classificadas como línguas aglutinantes (SANTIAGO, 2013),


que são onde a maior parte das palavras são formadas pela aglutinação de morfe-
mas e cada morfema por sua vez é uma unidade significativa, como por exemplo:
plural, singular, substantivos e etc. Além do uso rico de prefixos, outra característi-
ca é a terminação dos vocábulos por vogal.
O linguista Malcon Güthrie apresenta sua “classificação prática”, que consiste
em uma subclassificação das línguas baseada na existência de traços linguísticos
comuns e da proximidade geográfica.

312 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
No exemplo a seguir podemos ter uma ideia das categorizações feitas por Gü-
thrie, em que separa a região geográfica como zona, reúne as línguas em grupos e
as nomenclaturas adotadas:

FIGURA 2: CLASSIFICAÇÃO DE GÜTHRIE

Fonte: CASTRO, 2005, P. 30

Aqui no Brasil, o povo banto se tornou conhecido por denominações muito am-
plas, principalmente congos e angolas, que trazem em si várias etnias e línguas
distribuídas entre os atuais territórios dos Congos e de Angola, (CASTRO, 2005, p.
34). Portanto identificaremos a robusta presença linguística de congo-angola no
português brasileiro.
O jongo, expressão musical de escravizados em áreas de plantio de café e cana
de açúcar, também chamada de dança de umbigada, foi detectada e catalogada
por vários pesquisadores como ARAÚJO (1964); CARNEIRO (1982); KUBIK (1990) e
um outro traço identificado foi a incidência de testemunhos afirmando a ancestra-
lidade em Angola, como também vocabulários em quicongo, por exemplo.
Em nossa pesquisa e análise lexical/vocabulário foi tomado por material o re-
pertório do Jongo da Serrinha.

RESULTADOS E ANÁLISE
Tomamos como material para as análises lexicais/vocabulário termos presentes
nas cantigas dos repertórios dos dois ritos: o CD Jongo da Serrinha (2002). As pre-
sentes análises levaram em conta o recorte da competência simbólica dos termos
banto e expressões como palavras-chave de força e significado que podem assumir
nos rituais e nas demais transmissões nas comunidades.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 313


Artes, memória e espaços
TABELA 1: VOCABULÁRIO REPERTÓRIO JONGO DA SERRINHA

CD JONGO DA SERRINHA

Angoma - variação (zin- Tambor cilíndrico, usado nas cerimônias Congo-


goma) Angola. Tambores de culto.

Candongueiro Intrigante, enganador, manha.

Cesto, posto em lombo de burro, para transportar


Cangalha - Kik. kangala
galinhas, mantimentos, etc.

Caxambu - Kik./Kimb
Espécie de Membrafone, atabaque.
kizungu, kazungu

Caxinguelê - Kik. kinsen-


Serelepe, mamífero roedor da família dos esquilos.
gele

Curiá – Ver cuniá Kik./


Comer
kimb. Kudiá

Bater palma, para saudar divindades e pessoas


Paó
importantes.

Instrumento feito com um pequeno barril que tem


numa das bocas uma pele bem estirada e em cujo
Puíta Ver cuíca Kimb./
centro está presa uma pequena vara, a qual ao ser
Umb pwita
atritada com a palma da mão, faz vibrar o tambor,
produzindo ronco.

Puxar para cima, suspender o cós de calças ou


Sungar
saias.

Tabela 1-Termos banto identificados nos materiais analisados. Ver dicionário (CASTRO, 2005)

CONCLUSÕES (OU CONSIDERAÇÕES FINAIS)


Apresentamos uma verificação da herança banta linguístico na tradição oral
que está presente nas expressões musicais e cantares brasileiros, que por conta de
um desprestígio e também na demonização do elemento africano/diaspórico não
ecoa com devido reconhecimento nas práticas e escritas do Ocidente. O preconcei-

314 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
to linguístico com a matriz afro ainda constitui em chaga e empecilho de desenvol-
vimento em diversos segmentos, como o da educação. A falta de conhecimento e
compreensão sobre esse legado, que se constitui em matriz partícipe do português
brasileiro, corrobora para a manutenção do racismo estrutural e desigualdades no
âmbito cultural e educacional. Através de mais pesquisas e produções nesse cam-
po, se vislumbra uma desconstrução e valorização da tão rica herança africana e
diaspórica em nossa sociedade.

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DISSERTAÇÕES E TESES
CAMARA, Andréa Albuquerque Adour. Vissungo: o cantar banto nas Américas. 191 f. Tese
(Doutorado Faculdade de Educação) – UFMG, Belo Horizonte, 2013.

CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do


ser. 339 f. Tese (Doutorado) - Universidade de São Paulo. São Paulo, 2005.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 315


Artes, memória e espaços
DISCOGRAFIA
JONGO DA SERRINHA. Jongo da Serrinha. Rio de Janeiro: Grupo Cultural Jongo da Serri-
nha, 2002. 1 Cd-livro

AUTORIA
Ana Daniela dos Santos Rufino
UFRJ
E-mail: anadanirufino@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3089785123426262

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Artes, memória e espaços
ST 57
Representatividade
negra na mídia,
no cinema, e
no áudiovisual
africano e afro -
diaspórico
O RACISMO NAS MÍDIAS BRASILEIRAS
Rander de Souza Ferreira
Silvia Matos de Sousa

INTRODUÇÃO
O Brasil é um país racista, devido esse racismo o negro encontra inúmeras des-
vantagens em relação ao branco, sendo que este sempre apresenta em condições
desfavoráveis nas escolas, empregos, saúde, moradias e entre outros espaços so-
ciais.
Conforme Gomes (2005) as inciativas de combate ao racismo têm se propagado
ultimamente em alguns espaços escolares devido a práticas adotadas por alguns
educadores e o desenvolvimento de atitudes antirracistas, porém, muito ainda fal-
ta para superar essa realidade, é preciso envolver toda sociedade, pois não é papel
apenas da escola essa responsabilidade de combater a discriminação. Esta tarefa
deve ser realizada em conjunto entre: escola, ambiente familiar e espaço social. No
ambiente educacional a ainda muito a ser feito.
Neste viés, percebemos que há uma necessidade de formação de indivíduos
críticos e que sejam conhecedores dos direitos civis, políticos e sociais. Entretanto,
torna-se de fundamental importância uma reflexão, sobre a presença das desigual-
dades na sociedade e, principalmente, dentro do ambiente escolar, por parte dos
profissionais da educação. Munanga (2012) na sua obra “Usos e sentido” trata bem
sobre esta realidade em que o negro se encontra com estas desvantagens, pois há
alguns que acreditam que:

A situação do negro no Brasil é apenas uma questão econômica,


e não racista, não fazem esforços para entender como as prá-
ticas racistas impedem ao negro o acesso na participação e na
ascensão econômica. Ao separar raça e classe numa sociedade
capitalista, comete-se um erro metodológico que dificulta a sua
análise e os condena ao beco sem saída de uma explicação pu-
ramente economicista (MUNANGA, 2012, p. 19).

Conforme o autor, é preciso enxergar que a situação do negro no contexto bra-


sileiro perpassa as questões econômicas. A visão de que as separações de classes
estão pautadas somente no ponto de vista economicista é um equívoco que ne-
cessita ser superado. O racismo está presente no meio social, e a negação deste,
em vistas de afirmar que seja apenas um elemento causado devido ao viés econo-
micista, tende a prejudicar a luta pelo seu fim.
De acordo com Schwarcz (1999) na população há muitos que defendem a ideia
de que não existe racismo dentro do país e tentam esconder, em algumas situ-

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Artes, memória e espaços
ações, que ocorre julgamento por crime e este crime, transformam as atitudes
racistas em injúria racial, considerando que perante a justiça essa diferença é im-
portante para não pagar pelo crime. Sendo assim, a autora enfatiza.

Distintas na aparência, as conclusões das diferentes investiga-


ções são paralelas: ninguém nega que existe racismo no Brasil,
mas sua prática é sempre atribuída a “outro”. Seja da parte de
quem age de maneira preconceituosa, seja daquela de quem
sofre com o preconceito, o difícil é admitir a discriminação e
não o ato de discriminar. Além disso, o problema parece ser o
de afirmar oficialmente o preconceito, e não o de reconhecê-lo
na intimidade. Tudo isso indica que estamos diante de um tipo
particular de racismo, um racismo silencioso e sem cara que se
esconde por trás de uma suposta garantia da universidade e da
igualdade das leis, e que lança para o terreno do privado o jogo
da discriminação (SCHWARCZ, 1999, p. 182).

Sendo assim, identificamos que as práticas de racismo têm sido atribuídas em


outro sentido para que não haja punições ao praticante, pois desta forma os crimi-
nosos continuam com suas ações preconceituosas em relação aos afro-descentes,
e isso possibilitam um tipo de racismo camuflado.
Portanto Schawrcz (1999) trabalha em sua obra na perspectiva de que os mode-
los deterministas raciais dos finais do XIX, pelas teorias de branqueamento do início
do século XX, depois pelas ideias da mestiçagem dos anos 1930, ou de estudos que
datam da década de 1950, almejavam usar o “caso brasileiro” como anúncio, pois
se acreditava que o Brasil seria um exemplo de democracia racial. A autora afirma
que, por trás do mito da convivência pacífica e da exaltação da miscigenação como
fator determinante para a construção da identidade nacional, na prática, a velha
máxima do “quanto mais branco melhor” nunca foi totalmente deixada de lado.
O preconceito racial, no Brasil, foi historicamente reforçado pelas teorias ra-
cistas europeias divulgadas a partir do século XIX, com uma concepção de povos
superiores designados para dominar os colonizados da época, tragados pelas ideias
da incapacidade em relação aos europeus. Assim, como consequência, condena-
ram outros grupos, nesse caso, os negros e índios, crença que passou a ter a fun-
ção de justificar a dominação e exploração colonialista. À medida que os grupos
dominados passam a compartilhar das crenças sobre si mesmas e se submetem à
dominação, o processo passa a ser legitimado.

O RACISMO NA SOCIEDADE BRASILEIRA


Para iniciar a discussão sobre racismo, partiremos das principais reflexões feitas
em: Gomes (2005), Araújo (2000), Cavaleiro (2001), Munanga (2012), juntamente
com Schwarcz (1999) entre outros.

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Artes, memória e espaços
O Brasil é um país racista, devido esse racismo o negro encontra inúmeras des-
vantagens em relação ao branco, sendo que este sempre apresenta em condições
desfavoráveis nas escolas, empregos, saúde, moradias e entre outros espaços so-
ciais.
Conforme Gomes (2005) as inciativas de combate ao racismo têm se propagado
ultimamente em alguns espaços escolares devido a práticas adotadas por alguns
educadores e o desenvolvimento de atitudes antirracistas, porém, muito ainda fal-
ta para superar essa realidade, é preciso envolver toda sociedade, pois não é papel
apenas da escola essa responsabilidade de combater a discriminação. Esta tarefa
deve ser realizada em conjunto entre: escola, ambiente familiar e espaço social. No
ambiente educacional a ainda muito a ser feito.
Ainda em Gomes (2005), ações contra o racismo na sala de aula não são práticas
simples, necessário se faz que os professores tenham uma formação adequada e
continuada para exercerem atividades contra a interiorização do negro. A forma-
ção dos educadores deve contemplar todos os envolvidos no processo de ensino e
aprendizagem, as atitudes racistas não são responsabilidade de um único profes-
sor e sim de todos, bem como de todas as disciplinas.
Somente uma formação adequada dos profissionais, possibilita a fundamenta-
ção necessária que estes possam tratar deste assunto, o qual ficou por muito temo
camuflado pelo mito da democracia racial.
O processo de atitudes antirracistas precisa ser elaborado no intuito de mostrar
os valores culturais, políticos, religiosos e sociais dos povos negros. Deste modo, as
escolas, bem como o espaço social e familiar, precisam combater o racismo e no
mesmo sentido explicitar os valores e a importância destes para a sociedade.
A partir da análise de um documentário intitulado “Discriminação institucional”
- Brasil 2014, no qual se discutia acerca da saúde do negro, percebemos que este
foi apresentado de forma inferiorizada. De acordo com Araújo (2000) as desvanta-
gens são vistas quando, durante cirurgias, usa-se maior quantidade de anestesias
em mulheres brancas do que em relação à mulher negra, ele ainda faz um ques-
tionamento: será que os negros sentem menos dor do que um branco? Revela
ainda que outro fator é a forma de tratamento que é imposta ao afro-descentes,
no sentido da ética moral.
Cavaleiro (2001) as diferenças de tratamento entre negros e brancos, como é o
caso de moradia, do emprego, é evidente essas desvantagens em que o negro se
encontra na sociedade.
Entretanto, em função do racismo ainda existente no Brasil, muito direito não
tem sido respeitado: direito ao trabalho, à permanência na escola, moradia digna
etc., o que em muitos momentos põe em xeque a democracia brasileira. Ideolo-
gias, estereótipos e práticas discriminatórias continuam influenciando nossa reali-
dade (CAVALLEIRO, 2001, p. 142).
Neste viés, percebemos que há uma necessidade de formação de indivíduos
críticos e que sejam conhecedores dos direitos civis, políticos e sociais. Entretanto,

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Artes, memória e espaços
torna-se de fundamental importância uma reflexão, sobre a presença das desigual-
dades na sociedade e, principalmente, dentro do ambiente escolar, por parte dos
profissionais da educação.
Munanga (2012) na sua obra “Usos e sentido” refere-se esta realidade em que
o negro se encontra com estas desvantagens, pois há alguns que acreditam que:

A situação do negro no Brasil é apenas uma questão econômica,


e não racista, não fazem esforços para entender como as prá-
ticas racistas impedem ao negro o acesso na participação e na
ascensão econômica. Ao separar raça e classe numa sociedade
capitalista, comete-se um erro metodológico que dificulta a sua
análise e os condena ao beco sem saída de uma explicação pu-
ramente economicista (MUNANGA, 2012, p. 19).

Conforme o autor citado, é preciso enxergar que a situação do negro no con-


texto brasileiro perpassa as questões econômicas. A visão de que as separações
de classes estão pautadas somente no ponto de vista economicista é um equívoco
que necessita ser superado.
O racismo está presente no meio social, e a negação deste, em vistas de afirmar
que seja apenas um elemento causado devido ao viés economicista, tende a preju-
dicar a luta pelo seu fim.
De acordo com Schwarcz (1999) na população há muitos que defendem a ideia
de que não existe racismo dentro do país e tentam esconder, em algumas situ-
ações, que ocorre julgamento por crime de este crime, transformam as atitudes
racistas em injúria racial, considerando que perante a justiça essa diferença é im-
portante para não pagar pelo crime. Sendo assim, a autora enfatiza.

Distintas na aparência, as conclusões das diferentes investiga-


ções são paralelas: ninguém nega que existe racismo no Brasil,
mas sua prática é sempre atribuída a “outro”. Seja da parte de
quem age de maneira preconceituosa, seja daquela de quem
sofre com o preconceito, o difícil é admitir a discriminação e
não o ato de discriminar. Além disso, o problema parece ser o
de afirmar oficialmente o preconceito, e não o de reconhecê-lo
na intimidade. Tudo isso indica que estamos diante de um tipo
particular de racismo, um racismo silencioso e sem cara que se
esconde por trás de uma suposta garantia da universidade e da
igualdade das leis, e que lança para o terreno do privado o jogo
da discriminação (SCHWARCZ, 1999, p. 182).

Sendo assim, identificamos que as práticas de racismo têm sido atribuídas em


outro sentido para que não haja punições ao praticante, pois desta forma os crimi-
nosos continuam com suas ações preconceituosas em relação aos afro-descentes,
e isso possibilitam um tipo de racismo camuflado.
Para Rassi (1998) quando se discute discriminação étnico-racial já se identifica
o etnocentrismo, sendo um conceito que traz consigo o interesse de valorizar um

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 321


Artes, memória e espaços
determinado grupo na sociedade e desqualificar outro. Ou seja, este grupo valori-
zado é predestinado a ser o exemplo da sociedade, pois impõe atitudes para que
seja dominante no país.
Entretanto, Rassi ressalta que a característica a qual marca está discriminação
advém da sociedade capitalista, que implantou este sistema no mundo e libertou
os escravos, eliminando a sua exploração em uma nova sociedade, porém, tem
buscado outras formas de qualificar o negro em uma posição sempre inferior. Des-
sa forma voltando à sua condição do passado, a de sujeito explorado.

UMA ANÁLISE DO RACISMO


Cabe aqui fazer uma análise do racismo enraizado na sociedade brasileira e
como ele se propaga, um dos exemplos consiste através dos meios de comunica-
ção, pois estes têm reproduzido com fidelidade os conceitos racistas e preconcei-
tuosos existentes na sociedade, assim muitas programações influenciam as ações
racistas, ao remeter a um modelo de sociedade que representa os interesses das
minorias brancas. Para contribuir com essa discussão faremos referências aos au-
tores, Chaves (2008), Araújo (2000) e Borges (2012).
Quando passamos a identificar a imagem dos negros nas mídias, percebemos
que estes se encontram em situação desfavorável em diversos setores sociais e são
representados em números menores em relação ao branco e quando isso aconte-
ce, é de maneira inferiorizada em funções de menor prestígio. Sendo assim, nota-
-se que ele aparece nas mídias de forma negativa quando se trata das telenovelas.
Portanto, esses mesmos meios de comunicação que mantêm a postura repro-
dutora do racismo, não deixam de contribuir quando se trata de denunciar ati-
tudes racistas que dão IBOP para os telejornais ou matérias de revistas. Por isso,
devemos analisar com cuidado essas reportagens, pois se houvesse interesse de
ressignificar a condição do negro, isso deveria estar presente em todos os tipos de
programação.
Discutir essa necessidade de dar lugar ao negro por meios das mídias constitui
a preocupação de Borges (2012) em relação à rejeição apresentada pelo espaço
da TV, que quando se usa a figura da população negra nas telenovelas, na maioria
das vezes, é em situações e funções de submissão à população branca, o perso-
nagem negro ocupa funções com empregos domésticos, de bandidos, escravos e
em alguns momentos morando nas ruas ou nas favelas. Isto são apenas algumas
situações que são presenciadas nas TVs, visto que acaba apenas reforçado o pre-
conceito racial e social entre as classes e degenerar a imagem do homem negroide.

[...] Brasil independente e democrático, onde acreditamos re-


gerem os princípios de cidadania, direitos humanos e, acima de
tudo, onde a responsabilidade social e ética do jornalista parece
estar mais claramente definida; o negro permanece sendo notí-
cia, salvo raríssimas exceções, nos mesmos espaços que sempre

322 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
lhe foram reservados. É o criminoso e carente, por um lado; e o
cidadão (negro) de sucesso, o exemplo de superação, por outro
(BORGES, 2012, p. 68).

Portanto, Borges (2012) apresenta uma divisão em grupos brancos e grupos


negros, em que a classe branca domina a maioria dos espaços sociais, transmitindo
um ideia através de suas posturas que uma sociedade de qualidade precisa ser só
de homens brancos, pois idealizam como seres superiores. “Essa percepção so-
cial é (também) fruto da visibilidade, efeito imediato daquilo que é retratado nos
meios de comunicação sobre a sociedade. Tal visibilidade se potencializa na plata-
forma televisiva e ganha proporções de difícil mensuração” (BORGES, 2012, p. 72).
Segundo Chaves (2008) a televisão e outros meios midiáticos são considerados
formadores de opinião, construindo um padrão social em que prevalece a cultura
e as características da sociedade branca, isso pode ser visto nos comerciais, nas
telenovelas e em outras programações, em que os telespectadores acabam ideali-
zando os valores representados nesses espaços.

Os meios de mídia, não dando visibilidade à verdadeira composi-


ção racial brasileira, acabam por compactuar severamente com
a tendência que ainda percebemos em uma parcela de negros,
os quais buscam uma identificação com os brancos, que se dá
pela identidade de branquitude, praticando assim, uma grande
negação da diversidade racial brasileira (CHAVES, 2008, p. 18).

Mediante as análises feitas em Chaves (2008) o negro aparece, muitas vezes,


nos comerciais em papeis pejorativos e em anúncios que "somente" se vincula
a sua raça. Principalmente em relação a produtos de beleza como alisamento de
cabelo e produtos voltados para suas características físicas. Entretanto, o autor
ressalta que o aumento de negros nos espaços de comerciais aparece, na maioria
vezes, feita por jogadores negros que já têm destaque, como Pelé.
Devido à pouca presença negra nos espaços das mídias, já se tem uma parcela
de indivíduos que se preocupam com esta desvalorização da figura negra e buscam
projetos de leis, junto ao congresso nacional, para que as propagandas, entre ou-
tras do tipo, possibilitem maior autonomia do negro nos espaços de comunicação.
Acerca das discussões identificadas em Araújo (2000) já se debatem que o au-
mento de negros na mídia seria pelo fato de as empresas perceberem que essa
população tem um percentual maior capaz de consumir seus produtos.

Nos últimos anos, tem havido uma mudança muito grande na


publicidade brasileira. Mudança está, muito forte, imposta pelo
movimento negro em relação à afirmação de figuras negras al-
tivas e não apenas com a representação do negro associada à
marginalidade e à pobreza, nota-se que o negro já participa -
mesmo que timidamente - desta mídia, e que ainda é necessária
a presença de modelos ou personagens negros, para protago-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 323


Artes, memória e espaços
nizarem, não somente produtos que são específicos para eles,
mas, sobretudo para representar a sociedade de modo geral.
Algumas empresas brasileiras como Dove, o Boticário, Malwee,
Vivo, Hipoglós, Banco do Brasil, dentre outras, já requisitam a
presença do negro em suas publicidades, contribuindo para que
a população brasileira perceba que existe uma nação com dife-
rentes grupos étnicos e raciais (CHAVES, 2008, p. 26).

Contudo Chaves (2008) nota que há algumas pessoas que não se preocupam em
dar maior espaço aos negros, tampouco com a imagem positiva do povo negro, só
pensam em si mesmos e na expansão de seu capital financeiro.
Para Araújo (2000) a mídia apresenta o branco como um padrão social, fazendo
com que os demais sejam consumidores dessa ideologia como algo a ser seguido,
ou seja, já se tem um perfil dominante no espaço comunicativo, a imagem branca,
que entre várias situações encontra-se em ambiente dominantes, reforçando sua
posição ao longo da história. É
ressaltado por Araújo que quando propõem inserir as pessoas negras, isso aca-
ba acontecendo de forma reconstituída, imitando o padrão da sociedade brasilei-
ra, fazendo um branqueamento, onde estes negros que adquirem seus espaços
acabam se adequando ao perfil de um branco.

Embora os negros já atuem em comerciais, jornais, moda, TV e


revistas, é perceptível que o padrão adotado para a escolha dos
negros para as campanhas publicitárias ou para a moda brasilei-
ra é aquele, com a cor de pele negra, porém com traços afilados
e cabelos alisados (CHAVES, 2008, p. 28).

Mediante aos diálogos de Araújo (2000) concebeu que a forma que o negro é
representado em telenovelas é estereotipada e estas imagens que são apresen-
tadas causam certos incômodos aos telespectadores e aos grupos que lutam con-
tra estas ações. Uma vez que estes sujeitos discutem que quando se pensa em
telenovelas, jamais se consegue associar o negro em um papel de destaque, na
maioria das vezes ele aparece como coadjuvantes nos filmes, telenovelas, entre
outros. Interessante observar que essa população compõe a maior parte da socie-
dade brasileira e deveria estar em outros papéis que não fosse de forma subalterna
aos brancos, mas sim em posições que permitissem a mudança de postura desta
sociedade racista.
Chaves (2008) e Araújo (2000) enfatizam bastante a falta de representação dos
povos afrodescendentes nas mídias e coloca a culpa nos meios de comunicação por
exercer este papel influenciador, não agindo de modo que valorizem a cultura do
negro nos espaços comunicativos.
Nota-se de forma tímida a inserção de negros na mídia brasileira, tendo uma
maior participação em propagandas. Isso possivelmente não significa um avanço
na luta contra discriminação racial, mas sim podemos identificar que seja o mer-

324 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
cado exigindo maiores participações de negros nos espaços para a divulgação de
produtos, uma vez que estes também são consumidores.
Portanto, a partir das análises sobre invisibilidade do negro dentro dos meios de
comunicação, percebemos que a sociedade brasileira ainda mantém um racismo
velado que, no entanto, é praticado intimamente dentro das novelas, dos filmes e
outros veículos midiáticos. Nesse viés, em nosso trabalho, identificamos esse pre-
conceito racial que existe, e que cada vez mais reafirma a ideia de que o negro é
inferior aos brancos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir das análises feitas identificou-se o termo racismo, que ficou evidencia-
do nas abordagens feitas nas obras de Munanga (2012) na sua obra “Usos e senti-
do” e Schawrcz (1999) “Nem Preto Nem Branco, Muito Pelo Contrário: Cor e Raça
na Intimidade”. Ambas as obras demonstraram o segregacionismo (separação de
raças), as quais dão sentido na existência de uma raça superior, e seguidamente,
apontam para uma desigualdade das raças humanas. Racismo é a convicção sobre
a superioridade de determinadas raças, com base em diferentes motivações, em
especial as características físicas e outras descrições do comportamento humano.
Consiste em uma atitude depreciativa não baseada em critérios científicos em re-
lação a algum grupo social ou étnico.
No Brasil, mesmo com um racismo evidente, há dificuldade na definição de
raça, pois neste país com grande nível de miscigenação, há pessoas discriminadas
como negros, índios, mestiços e entre outras (os), porém não são identificados
racialmente como tal, pois as ideologias do branqueamento forjavam uma nação
branca, ou seja, por determinado tempo tentou-se a eliminação desta raça negra,
uma vez que a sociedade dominante concebia a raça negra como algo intolerável
a sua classe.
SCHAWRCZ (1999) ressalta que os mais terríveis atos de racismo institucionali-
zado são a perseguição sistemática e o extermínio físico (genocídio, limpeza étnica
e tortura), como ocorreu na Alemanha nazista com o povo judeu e, mais recen-
temente, na antiga Iugoslávia e em Ruanda, entre outros países. Este momento
de eliminação das raças supostamente inferiores é visto de forma intolerável pela
autora, sobretudo que estas raças não brancas não eram admissíveis à sociedade
que se preocupava em ter somente uma raça, a branca. Vale ressaltar que estudos
têm sido feitos sobre esta concepção do termo de racismo.
Com base nos discursos que foram e continuam sendo realizados nos mais va-
riados contextos, a presente pesquisa possibilitou uma mudança na forma como
compreendemos a questão do racismo nos meios midiáticos e na sociedade. Me-
diante isso, é perceptível que o senso crítico se tornou mais aguçado, pois, não
tínhamos a percepção de que as práticas racistas no futebol se configuravam como
um crime, e que afetava a integridade dos povos negros.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 325


Artes, memória e espaços
REFERÊNCIAS

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BORGES, Roberto Carlos da Silva. BORGES, Rosane. Mídia e racismo. Petrópolis, RJ : DP et


Alii ; Brasília, DF : ABPN, 2012. 248p. ( Negras e Negros: Pesquisa e Debates).

CHAVES, Maria Laura Barbosa. O negro na mídia brasileira. Monografia. UniCeub – Cen-
tro Universitário de Brasília. 2008.

CAVALLEIRO, Eliane. Racismo e anti-racismo na educação: representado nossa escola/


Eliane Cavalleiro (organizadora). – São Paulo: Summus, 2001.

FILHO, Mário. O negro no futebol brasileiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2003.

GOMES, Nilma Lino. Educação e Relações raciais: Refletindo Sobre Algumas Estratégias
de Atuação. IN: MUNANGA, Kabengele (Org). Superando o racismo na escola. [Brasília]:
Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade,
2005.

MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. 3. ed.-1. reimp.Belo Horizonte: Au-


têntica Editora, 2012.

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neo: Desafios á Consolidação da Igualdade Étnico- Racial, 2008.

RAISSI, Sarah T. Preconceito. Revista Estudos, Universidade Católica de Goiás, Goiânia,


v.15, n.1/2, p.27-32, jan. /jun., 1998.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem Preto Nem Branco, muito pelo contrário: cor e raça na
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mo: mais uma tarefa essencial. ¬¬– in: Racismo e anti-racismo na educação: representa-
do nossa escola/ Eliane Cavalleiro (organizadora). – São Paulo: Summus, 2001.

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Anita, 1995.

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www.youtube.com/watch?v=_3CB6wq2jok>. Acessado dia 28/ 10/2015.

AUTORIA
Rander de Souza Ferreira
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal
de Mato Grosso, Campus Universitário de Rondonópolis.
E-mail: randersouza2013@outlook.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6004-3673
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3828407177776902

326 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
Silvia Matos de Sousa
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal
de Mato Grosso, Campus Universitário de Rondonópolis.
E-mail: silviamatos93@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5481-8682
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4413190963298830

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 327


Artes, memória e espaços
O TEATRO NEGRO POR SOBREVIVÊNCIA JÁ
NASCE CINEMA! UMA EXPERIÊNCIA JUNTO AO
MOVIMENTO COR DE ANASTÁCIA.

Christiano Cesar Mattos Dias (Cachalote Mattos)

INTRODUÇÃO AO QUILOMBO VIRTUAL


A proposta consiste em analisar como é construída a representação de sen-
tido em duas novas produções do Movimento Cor de Anastácia (um movimento
negro de artes integradas) com colaboração do Coletivo Siyanda – Cinema Expe-
rimental do Negro, do Coletivo Cor do Brasil de Teatro do Oprimido e do Coletivo
Madalena Anastácia de Teatro das Oprimidas. Partiu da sistematização designada
por Bárbara Santos "Teatro das Oprimidas"- (2019) e da sistematização da “Estética
do Oprimido” - (2009), realizada por Augusto Boal. Ambos foram utilizadas como
base teórica para construção, nálise, desenvolvimento, concepção e criação ima-
gética de um conjunto de novas performances como (Manifesto Estético e Certidão
de Óbito Negra). Fizemos muitos encontros on-line de discussão conduzidos por
Bárbara Santos, atualmente em Berlin e Claudia Simone1, da França. Por meios de
laboratórios teatrais investigamos como nossos corpos pretos são afetados pela vio-
lência em tempo de pandemia. Perguntas foram feitas: O que nos imobiliza? o que
nos mobiliza? o que nos paralisa? o que nos ativa? Imagens/movimentos, palavras/
textos, leitura/expressão e sinestesia artística. Desses encontros criamos os Mani-
festos Estéticos: A Violência nos Violenta (um conjunto de quatro vídeos manifesto,
um exercício de imagem e poesia) e A Certidão de Óbito Negra, (indignado com a
inércia na luta contra o racismo de amigos brancos "aliados", lançamos a pergunta
– (E se um amigo branco recebesse a nossa certidão de óbito?) Essas performan-
ces foram produzidas coletivamente em laboratórios teatrais na plataforma Zoom
e gravadas. Depois, desenvolvido esteticamente de forma pessoal e pós-editado
pelo coletivo de cinema. Em tempos de pandemia de COVID-19 o teatro negro
possível já nasce cinema!
Estamos em quarentena, isolados da presença física, impossibilitado de um
abraço, de um toque, de um cheiro no pescoço dos amigos, mas em hipótese al-
guma estamos em isolamento social. Os telefones, os computadores a tecnologia
aproximam mundos de pessoas que tem a possibilidade de existir nesse mundo
tecnológico. Mesmo o grupo tendo limitações de acesso à internet, sabemos que
isto influência o resultado final e reflete a exclusão digital de muitos negros e ne-
gras no Brasil, concordamos que se faz urgente e necessário esta produção como

1 Claudia Simone, mulher negra artista internacional, ativista do movimento de Teatro do


Oprimido.) atuando no Pas à Passo Théâtre de l'Opprimé França e Rede Ma(g)dalena Internacional.

328 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
forma de ação concreta continuada buscando atingir o maior número de pessoas
possíveis. É fato que no Brasil, milhares de brasileiros não possuem o direito de
existir no "mundo real" imagina no mundo virtual. Falo de um recorte específico
de coletivos de teatro e cinema com pessoas negras que se encontram todas as
quartas ferira de 11h às 13h30, via computadores e celulares, da maneira que é
possível, dentro de salas virtuais, em plataformas fechadas, dentro de salas físicas
em suas devidas residência. O espaço de ensaio é então o espaço dentro do espaço,
dentro do outro espaço. E todos eles existem não tenham dúvidas.
A experiência prática com os grupos possibilitou aprofundar e descobrir novos
jogos de imagem e poética negra, apontando possibilidades de criação de narrati-
vas em combate ao racismo e a Necropolítica (Achille Mbembe)2 implementadas no
Rio de Janeiro nas três esferas de governo, municipal, estadual e federal. Nasce um
processo criativo de um Teatro que por necessidade já nasce “cinema”, disponibili-
zado de forma aberta nas redes sociais e se transforma em possibilidade de criação
de identidade positiva de negras e negros como alternativa a maioria das produ-
ções de grandes mídias, que criam estereótipos e perpetuam negros e negras em
sub papeis, de sub empregos contribuindo assim com racismo.
Para além da produção estética de grupos de teatro e cinema negro, esses en-
contros são espaços de formação política, social, filosófica, econômico e principal-
mente, espaços de ações concretas continuadas que abrem perspectivas e estra-
tégias de pensamento e construção de futuros possíveis para o povo negro, para
além dos estereótipos impostos pelos grandes meios de comunicação. De forma
coletiva, trocamos experiências diversas sobre o que é ser negra e negro em dife-
rentes territórios desse país.
Em março de 2020, quando começou a pandemia da Covid-19, que acarretou
nos fechamentos dos locais de trabalho, centro culturais, teatro, cinemas, escolas,
bares e universidades entre outros espaços aqui no Brasil, surge junto, inúmeras
preocupações sobre tudo no que tange a maneira de trabalhar e sobreviver princi-
palmente para o povo preto. Com intuito de auto cuidado do coletivo, marcamos
encontros virtuais para falar sobre nossa saúde mental, sobre “O que é racismo es-
trutural?” (ALMEIDA, 2018), falar sobre “Apropriação Cultural” (WILLIAM, 2019) e
pra falar sobre qualquer outra coisa com a certeza de estar “aquilombado” a partir
do conceito de Beatriz Nascimento (RATTS, 2006). Os processos estéticos nascem
da necessidade desses grupos de negras e negros e suas relações com os aconte-
cimentos no mundo. Por necessidade de criar algumas ações contra os frequentes
ataques ao povo negro em diversas partes do mundo, por governos racistas dita-
toriais começamos um laboratório virtual. Com a notícia do assassinato de George
Floyd3, um homem negro nos EUA, o assassinato do menino João Pedro, que foi

2 MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte.


Tradução de Renata Santini. São Paulo: N-1 edições, 2018. 80 p.
3 Foi um afro-americano assassinado em Minneapolis no dia 25 de maio de 2020, estrangula-
do por um policial branco que ajoelhou em seu pescoço durante uma abordagem por supostamente
usar uma nota falsificada de vinte dólares em um supermercado.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 329


Artes, memória e espaços
executado pela polícia dentro de sua casa, no Conjunto de Favelas do Salgueiro,
em São Gonçalo, RJ e o visível crescimento de corpos pretos em situação de rua
durante a pandemia inauguramos nosso quilombo virtual.

APORTE TEÓRICO DO CORPO NEGRO


Como aporte teórico para esses processos, além dos autores a cima citados,
utilizamos experiências práticas de cada corpo negro presente. Uma teoria que
se acumula todas as vezes que nós somos parados pela polícia, todas as vezes que
nós somos seguidos em lojas de departamentos, ou todas as vezes que escutamos
“reservado” nos restaurantes, mesmo estes estando vazios. Também nossos cor-
pos acumulam aporte teórico com as experiências nos terreiros de candomblé e
umbanda, nas rodas de samba, nos Bailes Funks, Bailes Charmes nos guetos, fave-
las, morros e vielas da cidade, nos ensinamentos de vó, de mãe e de todos os mais
velhos.
Outra fonte teórica fundamental foi a pessoa Bárbara Santos, com a própria
experiência de mulher negra, socióloga, feminista que durante muitos anos dirigiu
o Centro de Teatro do Oprimido CTO-Rio, junto à Boal e hoje dirige o Kuringa, em
Berlin. A partir da Estética do Oprimido elaborada e sistematizada por Augusto
Boal entre 2001 e 2009, Bárbara Santos fez análises críticas sobre a obra de Boal
no que diz respeito à atualização da metodologia e a abordagem de especificida-
des do método, tais como gênero e raça. Essas análises críticas de Bárbara Santos
estão sistematizadas em três livros: Teatro do Oprimido Raízes e Asas, uma teoria
da práxis, (2016) esse lançado também nos idiomas Inglês, Espanhol, Italiano, em
tradução para o Frances; Percursos Estéticos, imagem, som, ritmo, palavra - Abor-
dagens originais sobre o Teatro do Oprimido, (2018) e Teatro das Oprimidas, Esté-
ticas feministas para poéticas políticas, (2019), este já traduzido para a versão em
espanhol, lançado em 2020, em Buenos Aires.

PROBLEMA DE PESQUISA - SOBRE O NOME OU SOBRE A VIDA


NEGRA?
Por necessidade o Teatro Negro do coletivo Cor do Brasil já nasce Cinema? Essa
foi uma das indagações feita em um dos aquilombamentos virtuais. A necessida-
de de continuar os encontros de forma remota se fez indispensável, continuamos
nas redes sociais cuidando da saúde mental uns dos outros do coletivo, isto foi
fundamental para continuidade de nossas existências. Segundo Bárbara Santos,
“estamos em isolamento físico, mas em hipótese alguma em isolamento social”,
temos que utilizar nossos corpos pixel para trocar afeto, carinho, cuidado, para fa-
zer teatro, performance e para o planejamento de ações futuras.
Com a facilidade da máquina, da tecnologia, com um click todo o encontro foi
gravado e registrado para pesquisas futuras, um processo de ensaio estético cheio

330 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
de novidades e descobertas. O transporte do ensaio físico presencial, para o ensaio
virtual, modificou algumas dinâmica de corpo e também revelou a fragilidade de
existência desses corpos negros também nesse mundo virtual. Com internet limi-
tada com baixa qualidade, pouca velocidade, que vai gerar interferências diretas
no processo estético e mesmo assim, vai ser incorporado nos produtos artísticos
porque o que está em jogo principalmente é a dimensão política de luta contra o
genocídio do povo negro para além da qualidade tecnológica.
Se o coletivo decide que o resultado alcançado no ensaio foi potente enquanto
essência para um determinado objetivo, esse teatro nasce quase cinema! Já nasce
capturado pela tela. Não estamos aqui querendo invadir o campo poético de uma
ou de outra arte, e muito menos rebatizar uma forma já existente de fazer arte,
talvez seja preciso achar uma nova nomenclatura para essa nova forma híbrida de
encontro. Viver essa forma de arte é uma possibilidade de viver sonhos, e construir
futuros em uma sociedade onde tudo evoluiu para nos matar, assassinar corpos
negros através processos muito violentos de apagamentos. Registrar nossos pro-
cessos e espalhar nossos produtos Artísticos/políticos, é uma forma de perpetuar
nossas subjetividades e existência. Assim como explica Bárbara Santos.

A Estética do Oprimido ao propor a análise crítica do real, a com-


pressão das variáveis envolvidas no problema analisado para
uma representação estética desse real a partir da perspectiva
própria, estimula a construção de uma narrativa autônoma. A
meta é que essa narrativa sobre o real, construída em coletivo,
dispute espaço de existência. Em outras palavras: oprimidos e
oprimidas se apropriam dos meios de produzir narrativas sobre
a realidade, criam espaço de partilha de suas perspectivas e lu-
tam para que essa narrativa também seja considerada enquanto
representação legítima do real e participe das análises sobre a
realidade. (Santos, 2018 p. 88).

METODOLOGIA POLÍTICA/ESTÉTICA/POÉTICA NEGRA


O intenso Processo Estético possibilitou a criação de dois blocos de Produto Ar-
tístico que denominamos de Manifestos Estéticos: A Violência nos Violenta (um
conjunto de quatro vídeos manifesto, um exercício de imagem e poesia lançado no
Instagram do grupo gto_cordobrasil) e A Certidão de Óbito Negra, (indignado com
a inércia na luta conta o racismo de amigos brancos "aliados", lançamos a pergun-
ta: E se um amigo branco recebesse a nossa certidão de óbito? O caminho criativo
começou como um jogo teatral, com jogos de imagem, palavra e som, no meio do
caminho se transformou em performances individuais, em seguida performances
coletivas e depois em uma terceira etapa, editamos o material arquivado e isso
virou cinema. Para a audiência que não acompanhou todo o processo de elabora-
ção só chegou a potência do vídeo. O intuito de registrar e editar a performance

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 331


Artes, memória e espaços
teatral em vídeo é sem dúvida a estratégia de aumentar a audiência de um debate
tão necessário.
O processo do Manifesto Estético A Violência nos Violenta se deu em encontros
virtuais de quinze em quinze dias, ainda durante a pandemia. Sempre as quartas
feiras nos reuníamos duas horas e meia de 11:00h às 13:30h para falar sobre auto
cuidado negro, política, filosofia, economia e também para o ensaio de teatro. As
crescentes notícias de violências contra corpos negros pelo mundo, fomentou no
grupo uma necessidade de reação e a grande arma que o coletivo dispõe é o teatro
político, é criar narrativas estéticas, que denunciem e possibilite a reflexão e o de-
bate social das temáticas raciais.
Neste contexto baseado em experiências desenvolvidas por Bárbara Santos no
livro Teatro das Oprimidas, utilizando como base a Estética do Oprimido e técnicas
de Teatro Jornal, de Augusto Boal. Claudia Simone e Bárbara Santos adaptaram
jogos teatrais para nova realidade virtual. Na plataforma do Zoom, lemos notícias
de jornais sobre o genocídio do povo negro no Brasil e no mundo. Partindo do sen-
timento que cada notícia causava no nosso corpo, isso era transformado em ima-
gem estática, cada participante criou uma imagem corporal, em seguida o grupo
analisava cada imagem, as imagens eram separadas em núcleos por semelhança ou
pela projeção imagética que causava nos participantes.
Separamos em quatro núcleos, as imagens sugeriam como temática: o apaga-
mento histórico, asfixia, resistência e aprisionamento. Separamos o grupo em du-
plas e cada dupla criou poemas para as imagens. Não era possível criar poema para
sua própria imagem, a ideia foi criar um jogo de observação de imagem e depois
de forma sinestésica4 transformar esta sensação em poema. Para facilitar, Bárbara
separou as duplas em salas diferente dentro do Zoom, estipulou um tempo de
cinco minutos para a produção do poema, em seguida todos voltavam para sala
principal e os poemas eram lidos. As imagens com a leitura dos poemas ganhavam
movimento, enquanto uma dupla declamava o poema, a outra dupla performava
com corpo, criando assim um conjunto de imagem com texto narrado/declamado.
Todo o processo estético foi gravado e esse pedaço final foi recortado, depois
editado e transformado em produto artístico. No processo de edição elaborado
por Carol Netto, dos coletivos Cor do Brasil, Madalena Anastácia e Siyanda e Hugo
Lima, diretor de cinema do coletivo de Cinema Negro Siyanda, o vídeo ganha mais
potência estética com a inclusão de trilha sonora vibrante e grafismo. Podemos
conferir as produções nos links na bibliografia.
Na Certidão de Óbito Negra o processo foi diferente. Alessandro Conceição, in-
dignado com a notícia do menino João Pedro morto dentro de casa, com um tiro
de fuzil, disparado pela polícia, em São Gonçalo e após um caloroso debate refle-

4 A sinestesia é uma figura de linguagem. Ela está associada com a mistura de sensações
relacionadas aos sentidos: tato, audição, olfato, paladar e visão. Sendo assim, essa figura de lingua-
gem estabelece uma relação entre planos sensoriais diferentes. Para o Teatro do Oprimido sinestesia
é o exercício de transformar a palavra em imagem, a imagem em som, o som em palavra e assim por
diante. Traduzir uma sensação em outra sensação.

332 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
xivo sobre a problemática de que, a temática racista precisa ser pauta de todas
as pessoas sejam elas negras ou brancas, ele lançou a pergunta – E se um amigo
branco que se diz aliado recebesse a nossa certidão de óbito? Será que assim eles
reagiriam e entrariam na luta? Após esta provocação Cachalote Mattos partiu para
criação da imagem Estética da Certidão de Óbito Negra. Vale ressaltar que nem to-
dos os participantes do coletivo se sentiu a vontade de participar deste manifesto,
a ideia de se ver morto, materializado em uma certidão de óbito, mesmo de forma
teatral, mesmo tendo como objetivo a luta de uma causa maior, causou pânico,
pavor que os impediram de performar. Cada integrante que desejou fazer esta
performance, mandou por escrito seus dados pessoais fictícios e a provável causa
da morte para ser inseridos no documento. Depois desta etapa cada integrante re-
cebia sua própria certidão de óbito e criavam um vídeo estético narrando a causa da
morte. Um interessante exercício de artes integradas que misturou comunicação
visual, teatro performance e cinema.

RESULTADOS E ANÁLISE OU CONTASTAÇÃO NEGRA


A todo momento se faz necessário lutar contra estereótipos, criados pelas gran-
des mídias, é preciso lutar mais a fundo contra as “Imagens de Controle” criado
pelo sistema de dominação de raça e gênero. Pensamos junto com Patrícia Hill
Collins na obra Black Feminist Thougth, quando ela propõe que a ideia de Imagens
de Controle vai além da criação de estereótipos, essa ideia cria roteiros sociais
de comportamento para a mulher negra e também para o homem negro. Neste
processo muitas pessoas do coletivo de teatro se apropriaram dos meios de produ-
ção do cinema e aprenderam a utilizar a câmera de filmagem, programa de edição,
programas de criação de imagem, necessidades fundamentais nos tempos onde as
possibilidades de trabalho se tornaram majoritariamente digital e por necessidade
de sobrevivência financeira ou necessidade de expressão se tornou fundamental se
apropriar dos meios de produção para criação de nossas próprias narrativas. Ex-
tremamente necessário assumir essas narrativas, para combater essas Imagens de
Controle e esses estereótipos imposto pelas mídias dominantes. Já pensava assim
Beatriz Nascimento.

“Não podemos aceitar que a História do Negro no Brasil, presen-


temente, seja entendida apenas através dos estudos etnográfi-
cos, sociológicos. Devemos fazer a nossa História, buscando nós
mesmos, jogando nosso inconsciente, nossas frustrações, nos-
sos complexos, estudando-os, Só assim poderemos nos entender
e fazer-nos aceitar como somos, antes de mais nada pretos, bra-
sileiros, sem sermos confundidos com os americanos ou africa-
nos, pois nossa História é outra como é outra nossa problemática
((RATTS, 2006, p. 38-39).

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 333


Artes, memória e espaços
FIGURA 1 – CERTIDÃO DE ÓBITO NEGRA - CACHALOTE MATTOS,
CLAUDIA SIMONE, ALESSANDRO CONCEIÇÃO E MAIARA MENDONÇA

Fonte: Acervo pessoal Cachalote Mattos


FIGURA 2 – QUILOMBO VIRTUAL FIGURA 3 – QUILOMBO VIRTUAL

Figura 2. Fonte: Acervo pessoal Cachalote Mattos, Print da tela, da esquerdar pra direita e de cima
pra baixo: Carol Netto, Bárbara, Santos, Maiara Mendonça, Cachalote Mattos, Eloana Gentil, Fer-
nanda Dias, Gabriel Horsth, Rachel Nascimento Claudia Simone, Alessandro Conceição.
Figura 3. Fonte: Acervo pessoal Cachalote Mattos, Print da tela, da esquerdar pra direita e de cima
pra baixo: Carol Netto, Claudia Simone, Alessandro Conceição, Bárbara, Santos, Eloana Gentil,
Cachalote Mattos, Fernanda Dias, Maiara Mendonça, Rachel Nascimento Nascimento.

CONSIDERAÇÕES FUTURAS
Representatividade negra na mídia, no cinema, no áudio visual, no teatro e
em todos os setores da sociedade no Brasil e no mundo é fundamental para criar
a possibilidade imagética de projeção de futuro para o povo negro. A proposta
do Movimento Cor de Anastácia é realizar o trabalho cênico a partir e através do
pensamento multidisciplinar artístico-político no teatro, em diálogo com música,
moda, dança, cinema, literatura, artes plásticas, filosofia, fotografia e na ciência.
Fortalecendo as perspectivas direcionais feminista negra, o Movimento Cor do Bra-
sil se transforma em Movimento Cor de Anastácia. Em plena atividade em tempo
de pandemia de COVID-19. Pesquisando um teatro que por necessidade de isola-
mento já nasce registrado, se o nome desta ação é cinema, teatro on line ou outra
nomenclatura podemos decidir. O importante é a dimensão estético/político do
que foi construído. Para que sigamos vivos e ocupando palcos, mesas de debates,
conferências, coordenações e direções de Ongs, empresas, hospitais, escolas de
samba, bancos de universidades, docências em universidades, departamentos aca-
dêmicos, reitorias, terreiros de candomblés e umbandas, púlpitos e ministrações
de igrejas, rodas de samba, rodas de Slam, rap e todo lugar que nós quisermos:
futuros do pretérito e presente dos futuros.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Sílvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte (MG): Letramento,
2018. BOAL, Augusto. A Estética do Oprimido, Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

BOAL, Augusto. Jogos Para Atores e Não Atores. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2006.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 335


Artes, memória e espaços
BOAL, Augusto. Técnicas Latino-Americanas de Teatro Popular. São Paulo: Civilização bra-
sileira, 1996.

BOAL, Augusto. O Arco- Íris do Desejo: Método Boal de Teatro e Terapia. Rio de Janeiro:
Civilização brasileira, 2012.

COLLINS, Patrícia Hill. Black Feminist Thought: Knowledge, Consciousness, and the Politics
of Empowerment: Nova York: segunda edição, Routledge, 2000.

MBEMBE, Achille. Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política da mor-


te. Tradução de Renata Santini. São Paulo: N-1 edições, 2018. 80 p.

NASCIMENTO, Beatriz. O conceito de quilombo e a resistência cultural negra. In: RATTS,


Alex. Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. SP: Instituto Kuan-
za, 2006,

SANTOS, Bárbara. Teatro do Oprimido Raízes e Asas - Uma Teoria da Práxis. Rio de Janeiro:
Ibis Libris, editora, 2016.

SANTOS, Bárbara. Percursos Estéticos, imagem, som ritmo, palavra - Abordagens originais
sobre o Teatro do Oprimido. São Pulo: Padê, editora, 2018.

SANTOS, Bárbara. Teatro das Oprimidas - Estéticas feministas para poéticas políticas. Rio de
Janeiro: Casa Philos, editora, 2019.

WILLIAM, Rodney. Apropriação Cultural. São Paulo: Pólen, 2019. Links: Manifesto Estético
a Violência nos Violenta: disponível em: https://youtu.be/KAQTosx91p4 https://youtu.be/
EaG1FIXh8bo https://youtu.be/vbXZcTD6c6U https://youtu.be/lLIcCrZfuXU

Links: Certidão de Óbito Negra: disponível em: https://youtu.be/bqTZo1_ZwII https://you-


tu.be/j7YkqPKM17Y https://youtu.be/FUp1EeJw8Lg https://youtu.be/PJ3w6T_-5D8

Links: Manifesto Agente pela Gente: https://youtu.be/kTi1MIsaDoc

AUTORIA
Christiano Cesar Mattos Dias (Cachalote Mattos)
UERJ
E-mail: cacha_rj@hotmail.com
ORCID: 0000-00026525-1781
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3250544213303304

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Artes, memória e espaços
A DIMENSÃO SUBALTERNA DA MULHER NEGRA
EXPRESSA NA PRODUÇÃO FÍLMICA “A NEGRA
DE...”
Sunshine Cristina de Castro Reis Santos

INTRODUÇÃO
Este trabalho aborda a condição da subalternidade da mulher negra a partir do
exame do filme “A Negra De...”, do diretor senegalês Ousmane Sembène. O filme,
com sua paleta bicolor, apresenta uma dualidade do feminino, expresso por meio
de uma sobreposição da imagem de uma mulher branca à de uma mulher preta.
Deste modo, constrói uma leitura do colonialismo como plano de fundo. Na nar-
rativa a senegalesa Diouana se submete a uma imigração compulsória por coesão
econômica, ludibriada pelo oportunismo de mobilidade social e a suposta bondade
da branquitude. A imagem de benevolência obtida por Diouana logo em seguida é
desconstruída pela instauração de uma releitura escravista, atrelada à domestifica-
ção e coisificação da protagonista. Com base em pesquisa bibliográfica proponho
um exame das interligações da subalternidade roteirizada e da realidade da mulher
negra na contemporaneidade. Para tanto, analiso o simbolismo imagético da inter-
seccionalidade, as discrepâncias discursivas do pensamento pós-colonialismo e as
práticas condicionadas ao trabalho doméstico.
O retrato da subalternidade apresentado pelo diretor senegalês Ousmane Sem-
bène é convite a reflexão da interseccionalidade, o filme a “A Negra de...” do ci-
neasta considerado o fundador do cinema negro africano, podemos observar a
trajetória de Diouana, uma jovem senegalesa que foi levada à França pelos patrões
que a empregavam em Dakar, as interface do colonialismo permeia o roteiro de
forma contundente, além de apresentar as discrepância entre a imagem do femini-
no branco e o negro, evidenciando a opressão relacionada a raça e classe, visto que
mesmo mediante a interligação de gênero, podemos observa disparidade, como
ressalta Albuquerque (2005) “Apesar de em determinadas relações todos os sujei-
tos em interação serem mulheres, umas detêm mais poder do que outras e é essa
assimetria de poder”.
A lógica simbólica da violência atrelada ao trabalho doméstico de uma africana
em um processo migratório em 1966 sistematizada pela a obra, não se difere da
realidade de mulheres negras em diásporas na atualidade, como no Brasil, onde
as mulheres negras compõem a maioria de trabalhadoras doméstica, segundo
IPEA(2019) cerca de 3,9 milhões ou seja 63%, e mesmo com conquistas pontuais
como a de 2013, onde a PEC 66 foi aprovada, transformando em lei as reivindica-
ções de empregadas domésticas, que há décadas lutavam por direitos trabalhista,
práticas abusivas ainda são vista de forma corriqueira.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 337


Artes, memória e espaços
O cineastas através da sua articulação ótica, apresentou uma crítica que pode
ter vários desdobramento de análise, como tem sido realizada ao longo do tempo,
salientando a importância da produção cinematográfica, como ressalta Silva (2015)
“Ver filmes é uma prática social tão importante, do ponto de vista de formação
cultural e educacional das pessoas, quanto à leitura de obras literárias, filosóficas,
sociológicas e tantas mais; por essa razão, o cinema passou a ganhar espaço como
ferramenta de pesquisa.”. O que foi reiterado nesse trabalho, que surgiu durante o
Eixo Interdisciplinar Cinema Africano e da Diáspora, ofertada pelo Curso de Licen-
ciatura Interdisciplinar em Estudos Africanos e Afro-Brasileiros, da Universidade
Federal do Maranhão.
Inicialmente analisaremos a imagens que configuram uma releitura escravista
atrelada à domestificação da protagonista, na sequência observaremos como as
dimensões da representação fílmica são realimentadas na contemporaneidade. E
encerraremos com reflexões sobre a realidade muldimensional da mulher negra,
as variáveis de gênero, raça, classe, como essas variáveis se conjugam e as consi-
derações devidas.

SOBREPOSIÇÃO IMAGÉTICA
Ousmane Sembène é considerado um dos grandes representantes da primeira
geração de cineastas na África francófona, que de acordo com Thackway (2003,
apud Oliveira, 2015) tem como características uma produção marcada por três te-
máticas; “Identidade cultural, representação e voz”. O cineasta senegalês optou
por uma abordagem de interesse coletivo, o que contribui para compressão da his-
tória e da cultura africana.
Segundo Gomes (2013) “A perspicácia e audácia em retratar, logo após a inde-
pendência, temas delicados e que questionavam as nefastas consequências causa-
das à cultura africana pelos colonizadores”. Foi o que o encaminhou ao reconheci-
mento internacional, através do prêmio Jean Vigo, auferido após a apresentação do
seu primeiro longa-metragem La Noire de... no Festival de Cannes em 1966.
A narrativa fílmica apresenta o pós-colonialismo como plano de fundo, deixando
em evidencia pontos que geram uma provocação a compreensão de como se deu
a reorganização territorial e subjetiva de uma sociedade recém independentes. As
contradições de um discurso de autonomia sociopolítica e as práticas colonialista,
incita a um questionamento: Até aonde de fato ocorreu uma ruptura colonial?
A nova roupagem do colonialismo e as relações de poder da década de 60, é
exibida em uma sobreposição imagética, onde os lugares sociais são bem definidos,
em uma extremidade temos a branquitude como voz hegemônica, que por hora se
camuflar ao discurso progressista, mas que reestrutura formas de dominação, e
no outro extremo temos a outridade, e o desejo de transgredir a “predestinação”
a subalternidade. Tona-se notável que mesmo como o termino formal do colo-
nialismo, o sujeito pós-colonial recebeu como herança a ansiar pela submissão, e a

338 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
dependência de seus possíveis subordinados, levando-os ao exercício continuo de
manutenção da hierarquização.
O primeiro contato de Diouana a com sua patroa ao chegar Antibes, é um enqua-
dramento visual do processo de dominação, inicia-se como uma suposta benevo-
lência, e a apresentação de novas possibilidades, ainda que as mesmas tem uma
perspectiva limitada pela moldura de uma janela, para posteriormente transportar
aquela mulher negra a uma cena de servidão, impostas pela mulher branca, uma
domesticação que não tinha sido acordada.
Para além do distanciamento da sua função inicial que seria a de babá, existe
uma necessidade de desumanizar, evidenciado no incomodo da patroa com suas
vestimentas, e o seu autocuidado, assim como a imposição do uso do avental. Sim-
bolismos que demarcam a opressão, configurada na aniquilação da subjetividade,
visto que a ausência de autônima, do direito sobre o próprio corpo, transformar-se
na instauração de uma releitura escravista.
Segundo Oliveira (2015) a diferencia entre as duas personagens são evidentes
em três fatos: Primeiramente na voz ativa “A francesa está sempre na posição de
quem manda”. Posteriormente pelo jogo das representações de superioridade e
inferioridade, transmitida pela postura corporal, a patroa estando sempre de for-
ma, imponente – ereta, enquanto a protagonista cabisbaixa – encurvada, e por fim
a dualidade das cores, o simbolismo do preto e branco, mesmo que a escolha da
película esteja pautada a pré-requisito financeiros, estabelece uma estética favorá-
vel as tensões narrativas, em uma linguagem delimitada pelas dialética do que era
compreendido como civilizatório – francês e o bárbaro – africano, o que possuía
domínio linguístico oficial e a quem era imposto o silencio, entre colonizadores e
colonizados.
Nesse sentido podemos observa também uma dualidade no que tange a produ-
ção cinematográfica, uma vez que se trata de um produto franco senegalesa, visto
que temos um financiamento francês e um diretor senegalês, podendo leva-nos a
refletir sobre a relação de poder nos bastidores.
Torna-se imprevisível salienta sobre o panorama de uma protagonista que não
se comunica verbalmente na projeção imagética, pela ausência do domínio língua
francesa, mas que apresenta a história através da sua perspectiva, o diretor utiliza
o recurso sonoro que conhecemos a voz ove, para dar voz a uma coletividade, se-
gundo Oliveira (2015) faz uma ligação da utilização desse recurso, com a tradição
oral africana de contar histórias.

A voz da Diouana aparece sempre no filme voz over. Essa voz,


que parece contar a história dentro e fora dela, está associada
á tradição oral. No continente africano, a cultural oral tem lu-
gar privilegiado, pois a manutenção do imaginário popular vem
da palavra falada, da voz do narrador- esse também conhecido
como griot (OLIVEIRA, 2015).

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 339


Artes, memória e espaços
Sendo necessário ressalta que não seria uma análise comparativa entre uma
técnica e uma tradição, mas uma maneira de pensar as referências do cineasta
impressas na estética do seu filme, seja ela proposital ou não. Podemos assim com-
preender que a abrangência dimensional e os desdobramentos analítico da sua
obra, são para além das camadas posta inicialmente.

ETNICIZAÇÃO DO TRABALHO DOMÉSTICO


Mulheres negras protagonizam histórias de subalternidade entrelaçadas entre
ficção e a realidade, um cruzamento de gênero e raça que determina um lugar de
servidão. Logo uma obra fílmica como a Negra de... tem uma escrita imagética que
não pode ser restrita ao entretenimento.
A representação narrativa aguça uma sensação atemporal, embora seja ne-
cessário salientar que a violência que as mulheres negras sofrem são resultado
de determinadas condições históricas, sendo possível analisar casos individuais
e em conjunto, mas que tem uma historicidade. Mas enquanto mulher negra, é
improvável não construir um diálogo entre as condições de opressão escravista,
sua releitura pós colonial apresentada na obra, e a sua estadia na contemporanei-
dade. Compreendemos que o termo atemporal se torna inadequado, visto que o
anacronismo é um erro, mas a proposta desse estudo é examinar as interligações
da subalternidade roteirizada e da realidade da mulher negra na contemporaneida-
de, levando em consideração o pensamento de Kimloba (2019) que ressalta que o
racismo cotidiano pode ser visto não somente como uma reencenação do passado
colonial, mas como uma realidade traumática, que tem sido negligenciada.
Podemos observar o retrato da subalternidade contemporânea na sua disser-
tação de mestrado titulada como Eu empregada doméstica: narrativas, sentidos
e significados na luta pela efetivação de direitos das trabalhadoras domésticas no
Brasil, onde Almeida (2019) relata sua experiência quando foi contratada em 2014
para cuidar de uma criança de 4 anos durante o período matutino, mesmo já tendo
uma graduação em direito, e a vulnerabilidade causada pela ausência de uma esta-
bilidade financeira, a conduziu a situação semelhante a nossa protagonista, como
refere: “Me vi um dia agachada esfregando o chão da sua casa e lavando o seu
banheiro. Estava muito confusa quanto às minhas funções. Não tinha sido esse o
nosso combinado”. (ALMEIDA, 2019)

Se fui contratada para ser babá por que estou passando, esten-
dendo a roupa, limpando toda a casa, comprando pão, levando
a criança na escola e cozinhando?... Por que faz uso do prono-
me possessivo para se referir a mim quando conversa com outra
pessoa: “É minha empregada...”? (ALMEIDA, 2019).

A semelhança da realidade de Almeida (2019) e a ficcional de Diouana (1966)


onde ambas vislumbraram o trabalho como babá como um suporte necessário para

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Artes, memória e espaços
sua sustentação, porém, foi surpreendida com um projeto de dominação que se ini-
ciou como desvio de função, não podem ser vistos como mera coincidência.
Mesmo com historicidades distintas, o ficcional e as circunstância relatadas, coo-
peram com o pensamento de Boaventura de Sousa Santos (2007) que salienta que
a neutralização do colonialismo enquanto forma de dominação, não se configurou
em uma relação de justiça social que findasse com as desigualdades sociais, o co-
lonialismo manteve- se em forma de colonialidade. A histórica relação entre muca-
mas e sinhás estabelecem a naturalização da etnicização do trabalho doméstico, e
sobre slogan “como se fosse da família” uma trama de opressão é preservada como
tradição, evocada por muitas que proclamam a sororidade. Não temos a pretensão
de colocar Ousmane Sembène como “voz” do feminismo negro, mas acreditamos
que seu filme pode ser analisado pelas demarcações de cruzamento entre gêne-
ro, raça e classe que forjaram sua protagonista. Mas buscamos deslocar o olhar
para a importância de refletir como as opressões se combinam e entrecruzam.
O diálogo que tencionamos não estar pautado nas intenções do cineasta, uma
relação de autor e obra, mas em uma possível leitura da sua atuação na contempo-
raneidade, tentamos compreender o lugar pré-estabelecido da sua personagem no
imaginário, se existe um enquadramento dentro da ideia de imagem de controle,
conceito cunhado por Patricia Hill Collin, na obra Pensamento feminista negro: co-
nhecimento, consciência e a política do empoderamento. Para a autora as imagens
de controle não podem ser vistas somente como estereótipos, mas sobre tudo
como um script, uma roteirização social articulada para regular a visão e o trato
direcionada a mulheres negras.
Em sua análise a intelectual apresenta algumas das possíveis imagens de con-
trole, sendo elas: A imagem da mammy, da matriarca negra, da mãe dependente
do estado, a dama negra e a Jezebel. Iremos nos centrar a imagem da mammy
que seria a serviçal fiel, obediente, que conhece seu “lugar”, sendo “a face pública
que os brancos esperam que as mulheres negras assumam diante deles” (COLLINS,
2019), visto que algumas trabalhadoras domesticas ilustram a uma forma de obje-
tificação atrelada a mulher negra como a “mula do mundo”, ou seja, a que trabalha
como um animal. Entretanto faz necessário evidenciar que segundo Collins (2019) as
ideologias de dominação que definem os valores sociais, são uma importante ferra-
menta de poder para projetar concepções sobre a condição de mulher negra. “Para
tal, exploram símbolos já existentes, ou criam novos” (COLLINS, 2019), uma vez
que, essas imagens de controle naturalizam injustiças sociais, e são fundamentais
para manutenção de opressões interseccionais de raça, gênero e classe.

DA SENZALA MODERNA Á DESUMANIZAÇÃO COMO FETICHE


A estética e discurso de uma produção está atrelada ao seu contexto histórico,
nesse sentido o caráter denunciativo que observamos, é interligado as problemáti-
cas vivenciadas, com data e localidade especifica. Mas o processo de subjugação

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 341


Artes, memória e espaços
resultante do colonialismo imprimir iconografia emblemáticas de subalternidade.
O enclausuramento em uma dimensão espacial segregacional, torna-se um signo
autocrático que convergem no pós-colonialismo e na contemporaneidade, na de-
pendência doméstica de mulheres negras africanas e em diáspora.
A figuração da imposição opressora habitacional, é evidenciada na composição
ficcional, através do relato da Diouana que descrevia que a França que tanto alme-
jou desvendar, foi reduzida a espaço domiciliar, “A França aqui é a cozinha, a sala, o
banheiro e o meu quarto de dormir”. O lugar desumanizador que impossibilita sua
autonomia espacial e subjetiva, configurando a sua fixação ao um espaço simbólico
de servilismo, como é retratado no trecho a seguir:

A cozinha, o banheiro, o quarto, a sala de estar, a copa. É tudo


o que eu faço! Não vim à França pra isso! Como são as pessoas
daqui? Todas as portas estão fechadas dia e noite. Noite e dia! Eu
vim pra cuidar das crianças. Onde eles estão? Porque a madame
grita comigo o tempo todo? Não sou cozinheira e nem faxineira.

A senzala e quarto da empregada são demarcação físicas de um imaginário que


idealiza uma disposição a servidão integral, que implica em anulação absoluta da
humanidade, um legado colonial, constantemente reeditado, mas que estabelece
de maneira incontestável a posição social de duas mulheres, que mesmo interliga-
da pelo gênero, diferem pela raça e pela classe. Uma perspectiva já apresentada
por Sojourner Truth, em 1851, durante a Convenção dos Direitos das Mulheres de
Ohio, em Akron, ao proferir o discurso: Eu não sou uma mulher?

Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda


para subir em carruagens, e devem ser carregadas para atraves-
sar valas, e que merecem o melhor lugar onde quer que estejam.
Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar
sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar al-
gum! E não sou uma mulher? Olhem para mim? Olhem para
meus braços! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros,
e homem algum poderia estar à minha frente. E não sou uma
mulher? Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qual-
quer homem – desde que eu tivesse oportunidade para isso – e
suportar o açoite também! E não sou uma mulher? Eu pari treze
filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão, e quan-
do eu clamei com a minha dor de mãe, ninguém a não ser Jesus
me ouviu! E não sou uma mulher? (SOJOUNER, 2014).

Sojourner, Diouana a monocultura é modificada, mas imagem de uma mulher


negra como “mula do mundo” atravessa a ficção, a territorialidade e temporarie-
dade. A produção fílmica estabelece a visualidade de uma construção identitária
forjada na ausência, Diouana teve o direito sobre seu corpo usurpado, ela perdeu o
acesso ao livre trânsito, a sua autonomia vestuária, e sobre tudo a qualquer forma
de afeto. A sua subjetividade foi submetida aos mandos e desmando da sua patroa.

342 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
A francesa acreditou que a comprou com suas sobras, utilizando vários meca-
nismos para concretizar a marcação do seu pertencimento. A imposição de poder
sobre outro, foi apresentada não somente para a manutenção de regalias, mas
principalmente como fetiche. A patroa não se contentou em tê-la a disposição para
os afazeres domésticos sem remuneração, ela impossibilitou a sua humanização,
atribuindo a sua existência ao animal doméstico.
A narrativa apresenta alguns diálogos que fundamentaliza a percepção aborda-
da, entre eles, destacaremos a cena em que a jovem serve os convidados, e uma
convidada pergunta à patroa se a criada fala francês, a patroa responde que não,
mas acrescenta que a criada, porém, entende bem o francês, supondo que ela o
faz por instinto e a compara aos animais, afirmando que isso não importa muito, o
importante é que ela cozinha bem.
A protagonista é lembrada constantemente da sua posição social, o incomodo
com sua roupa e sapato, a imposição do avental, a naturalização da violação do seu
corpo por um convidado e a sonegação alimentar. A sua identidade é posta em uma
encruzilhada, tendo um vácuo como localização, um campo vazio, que ao mesmo
tempo que visível é invisível. Torna-se perceptível que o lugar de privilégio limita
a visão, o fetiche impulsiona a coisificação, e o auto ego impossibilita qualquer
percepção que torne aquele “objeto” em um sujeito digno de ser visto para além da
função utilitária.
A regulamentação dos corpos de mulheres negras, segundo Collins (2019) se-
ria uma argumentação socioconstrucionista, ou seja, dentro da contextualição das
relações de poder, elas são construídas dentro de uma matriz de dominação his-
toricamente caracterizada por opressões interseccionais. O conjunto de imagem
de controle são estruturada e estruturante, a fixação destinada a representações
sociais de servilismo, reencenam constantemente relações escravista, intersecções
que as mantem na mercantilização das suas corporeidades, como na “praça das
empregadas”, ou em algum arranjo contemporânea que as conservem à margem
da cultura do afeto, simbologias que segundo Borges (2012) são produzidos para
permanecia de hierarquias sociais, “As malhas verbovisuais que compõem a cena
intersemiótica (...) posicionam sujeitos e temas nos espaços de representação de
modo a fixá-los em categorias predeterminadas”.

A RETICÊNCIA COMO COISIFICAÇÃO


A titulação da obra de Ousmane Sembène deixa clara uma fissura identitária de
sua protagonista, uma ideia de pertencimentos alheio, configurando-se um exem-
pla da norma mística, que segundo Lorde (2019) é uma armadilha de poder na
sociedade que definem mulheres negras como outsiders. A “ outridade” é exempli-
ficada pela autora em um relato pessoal, ela narra que ao levar a sua filha de dois
anos dentro de um carrinho de compra em supermercado de Eastchester, 1967,
uma garotinha branca passando no carrinho com a mãe, fala alto, animada: “Olha,

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 343


Artes, memória e espaços
Mãe, uma empregada bebê”. E sua mãe diz para calar a boca, mas são a corrige,
evidenciando assim a mística normativa.
A ideia que Diouana pertence a qualquer pessoa, menos a ela mesma, está fin-
cada na mestra matriz do relato de Audre Lorde, que é a crença na superioridade
inerente a branquitude, que legitimam a dominância, ou seja, uma das versões do
colonialismo que tem homogeneidade de pessoas e coisas, que não difere o valor
cultural de um artefato, de um objeto decorativo. Nesse sentido assim como existe
o esvaziamento da simbologia da máscara africana, existe a destituição da humani-
dade Diouana, condicionando a vivencia na subalternidade, sob o julgo de opres-
sões interseccionais.
Mas um ponto crucial da narrativa que não pode deixar de ser analisado é a
transcendência da vulnerabilidade, a transformação de objeto á sujeito, que foi
demarcada pelo suicídio, segundo Kimloba (2019) seria uma forma de proteger a si
mesma, como um ato de se tornar sujeito, uma reivindicação da sua subjetividade,
a autora considera o suicídio como uma performance de autonomia, visto que só
um sujeito pode tomar uma decisão sobre própria vida, determinando sua existên-
cia, rompendo com não existência.

O racismo força o sujeito negro a existir como “Outra/o”, privan-


do-o de um eu próprio. O suicídio pode assim, de fato, ser visto
como ato performático da existência, imperceptível. Em outras
palavras, o sujeito negro representa a perda de si mesmo, ma-
tando o lugar da Outridade. (KIMLOBA,2019).

A conexão do suicídio como retrato de (R) existência ao sistema de expropria-


ção que coisifica e usurpar a individualidade, torna-se mais um exemplo de que
mesmo que os sistemas de opressões tenham as suas distinções temporais e ter-
ritoriais, a identificação das convergências permite a nomeação desses jugos co-
loniais que formatam a imagem de controle que são constantemente atualizadas
em um imaginário contemporâneo que tem a colonidade como uma tradição ainda
reverenciada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O diálogo do contexto da produção fílmica com a temporalidade em que a obra
está sendo vista, faz-se necessário para educação para uma consciência crítica, vis-
to que nos leva a confrontar as dimensões de uma possível cumplicidade com a
lógica de dominação personificada na sustentação das imagens de controle, teias
de opressões que enclausuram mulheres negras na base da pirâmide social.
A ruptura sistemática e a autorecuperação só é possível com o reconhecimento
da complexidade multidimensional da violação da identidade de mulheres negras,
pensar criticamente no reflexo que uma narrativa pós-colonial tem na contempo-
raneidade, torna-se essencial para o desenvolvimento de teorias de compreensão,

344 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
assim como estratégias de transformação. Dado que a superação das limitações em
termos de materialidade socioeconômica, psicoafetiva e educacional do feminino
negro, não se enquadra no enfrentamento de uma opressão estrutural, mas de
todos os atravessamentos da conjuntura sociocultural.
Não podemos almejar uma transcendência social radical, analisando a socie-
dade sem recorte de gênero, classe e raça, e principalmente sem compreender os
sujeitos que estão nessa encruzilhada. As semelhanças da história ficcional Dioua-
na com a realidades vivenciada por muitas mulheres negras na atualidade, provoca
a necessidade de fazer ecoar as vozes das intelectuais negras que se debruçaram
sobre as problemáticas interseccionais que foram retratadas na produção fílmica,
que pode até ser alheia ao seu autor, sendo proposital ou não, Ousmane Sembène
desenhou um retrato imagético que é um verdadeiro convite a pensamos intersec-
cionalidade.

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE, Rosana. Para uma análise multidimensional da situação das mulheres: as


relações entre género, classe e etnicidade. SOS Racismo, Lisboa, 2005.

ALMEIDA, Lyzyê Inácio. Eu empregada doméstica: narrativas, sentidos e significados na


luta pela efetivação de direitos das trabalhadoras domésticas no Brasil. 182 f. Dissertação
(Mestrado em Direitos Humanos) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2019.

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2012. v. 1. 244p.

COLLINS, Patricia Hill. Pensamento Feminista Negro: conhecimento, consciência e a polí-


tica do empoderamento. Tradução Jamille Pinheiro Dias. 1ª edição. São Paulo: Boi tempo
Editorial, 2019.

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Tradução: Heci Regina Candiani. 1 ed. São Paulo:
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IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Texto para discussão. Brasília, 2019. Dis-
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LIMA, David Marinho. Descolonização das mentes: Ousmane Sembène e a proposta de um


Cinema Africano na década de 1960. (Dissertação de mestrado). Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2014.

GOMES, Tiago de Castro Machado. OUSMANE SEMBÈNE E O (S) CINEMA(S) DA

ÁFRICA. 2013. 87 p. Monografia - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2013

KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: episódios de racismo quotidiano. Lisboa: Orfeu


Negro, 2019.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 345


Artes, memória e espaços
OLIVEIRA, Glaucia Regina Fernandes de. La noire de... em novela e filme: uma visão da iden-
tidade cultural senegalesa. 2015. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, São Paulo, 2015.

SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. (Orgs.) Epistemologias do Sul. São
Paulo; Editora Cortez. 2009.

SILVA, Fernanda Dorneles da. Histórias cruzadas e a movimentação social feminina negra
pelos direitos civis nos EUA nas décadas de 1950 e 1960. Monografia Graduação em Histó-
ria – Universidade do Vale do Taquari - Univates, Lajeado, jun. 2015. Disponível em: http://
hdl.handle.net/10737/839. Acesso 03 de dez de 2019.

SOJOUNER, Truth. E não sou uma mulher? – Sojourner Truth. Tradução de Osmundo Pi-
nho, Geledés, 8 jan. 2014. Disponível em: https://www.geledes.org.br/e-nao-sou-uma-
-mulher- sojourner-truth/. Acesso em: 21 jun. 2020.

AUTORIA
Sunshine Cristina de Castro Reis Santos
Graduanda do Curso de Turismo da Universidade Federal do Maranhão – UFMA
E-mail: sanycastro12@hotmail.com
Lattes: https://wwws.cnpq.br/cvlattesweb/PKG_MENU.menu?f_cod=387840AE-
0AEA53B9A404DD BD8920BB77#

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Artes, memória e espaços
CINEMA NEGRO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO
E SABERES ESTÉTICO-CORPÓREOS: REFLEXÕES
SOBRE AGÊNCIA E REEDUCAÇÃO DO OLHAR
Ana Carolina da Silva Gonçalves1

Não sou legível


Não sou entendível
Sou meu próprio Deus, meu próprio santo,
meu próprio poeta
Me olhe como uma tela preta,
de um único pintor
Só eu posso fazer minha arte
Só eu posso me descrever
Vocês não têm esse direito”2

SEÇÃO PRIMÁRIA
ST 57: Representatividade negra na mídia, no cinema, e no áudiovisual africano e
afro- diaspórico.

SEÇÃO SECUNDÁRIA
ST 61: Tecnologias, culturas, mídias e linguagens: formas de abordar as questões
étnico- raciais e de enfrentar o racismo.

SEÇÃO TERCIÁRIA
ST 35: Modos de ver e narrar: histórias e memórias negras no brasil e na diáspora
africana.

As reflexões apresentadas nesse trabalho giram em torno das narrativas criadas


pelas movimentações do cinema negro brasileiro contemporâneo, pensadas e pro-
duzidas por pessoas negras. Nos interessa interrogar os efeitos destas narrativas na
construção de modos de perceber e existir das pessoas negras.
Entendemos que a modernidade eurocentrada, fruto do longo período de co-
lonização e escravização, tem sido a principal produtora e mantenedora das rela-

1 Pós Graduanda Lato Sensu em Ensino de Culturas Africanas e Afro-Brasileiras (IFRJ – Cam-
pus São Gonçalo); Bacharel em Produção Cultural (UFF - Campus Universitário de Rio das Ostras)
2 BACO EXU DO BLUES. BBKing. Selo EAEO Records: 2018.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 347


Artes, memória e espaços
ções sociais hierárquicas e excludentes (QUIJANO, 2005). Um dos desdobramentos
dessa exclusão é a formatação de sentidos alimentada da invisibilidade de corpos
negros e/ou a exploração de significados estereotipados desses corpos nas repre-
sentações de produções midiáticas de maior visibilidade como o cinema de grande
bilheteria, TV, revistas e jornais (HALL, 2016; STAM e SHOHAT, 2006). No entanto,
essas representações massificadas não são únicas, no Brasil as produções do cine-
ma negro têm criado um tensionamento narrativo que desestabiliza a hegemonia
midiática e suas imagens tendenciosamente estereotipadas.
Desde a chegada dos europeus em terras americanas, foi desenvolvido e apri-
morado um sistema de poder global (QUIJJANO, 2005) baseado na hierarquização
dos povos tendo como fundamento a racialização pela biologia, e no capitalismo
como ditador da força de trabalho.
Esse sistema de poder global, assentado na ideia eurocêntrica, estabeleceu a fé
e religião cristã, a família nuclear, a relação monogâmica, a heterossexualidade, o
patriarcado falocêntrico, a branquitude3, a ideia da linearidade evolutiva do tempo
e o saber sintético4 como condutas únicas e válidas de civilidade.
Foi através do roubo de bens e tecnologias, da repressão à produção de saberes
e da imposição forçada do aprendizado de seus códigos culturais - o que Quijano
chama de “colonização das perspectivas cognitivas” - que os europeus consegui-
ram com êxito colonizar terras e mentes de maneira tão duradoura.
Concordamos com Hall (2016, p.22) que é por meio da linguagem que os signi-
ficados culturais são produzidos e circulados e que só podemos compreendê-los se
tivermos acesso comum a linguagem. Assim sendo o entrelaçamento dos sentidos
(“nossa noção de nós”) e culturas (“práticas que não são geneticamente programa-
da em nós”) “regulam nossas práticas e condutas, auxiliam no estabelecimento de
normas e convenções segundo as quais a vida em sociedade é ordenada e adminis-
trada”. Em outras palavras, nossa noção sobre quem somos e qual “grupo” perten-
cemos são processos que se estabelecem no campo sensível, do não palpável, mas
que se reverberam na concretude do cotidiano.
Nesse sentido, nossa imaginação também é atravessada pela colonização bran-
ca. Fato que delimitou o que é “real” devido ao poder político, econômico e cognitivo
conquistado e conseguiu reproduzir como verdadeiro. Resultando na manutenção
de simbologias redutoras em torno da corporeidade negra que tenta essencializar
o discurso racial nos indivíduos pela via da estereotipagem (HALL, 2016).
Segundo a jornalista e doutora em comunicação Rosane Borges, o sistema midi-
ático instaurou novas formas de sociabilidade no começo do século XX, substituin-
do os ordenamentos da família, da escola e da igreja e indica que

3 Segundo Maria Aparecida Bento, doutora em psicologia social, podemos compreender a


branquitude como a “projeção do branco sobre o negro, nascida do medo, cercada de silêncio, fiel
guardião dos privilégios” (BENTO, 2002, p.14.).
4 Termo cunhado por Nego Bispo, lavrador e mestre quilombola, para diferenciar as práticas
extrativistas da sociedade colonial na academia, dos saberes biointerativos produzidos pelos povos
politeístas e originários. (BISPO, 2015, p. 52)

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Artes, memória e espaços
...os estigmas se repetem, não em termos de conteúdos, mas
de articulação. Embora não sejam invariáveis (enquanto formas
constituídas da sociedade), os estigmas são invariantes (enquan-
to estruturas constituintes da sociedade). No caso em tela, essa
articulação vincula-se, remotamente, aos pilares do racismo, à
dimensão corpórea como elemento distintivo entre um eu civili-
zado e o outro bárbaro, o que nos faz concordar com teóricos, a
exemplo de Robert Stam, que avalia as imagens da mídia como
preservadoras de uma concepção colonialista e eurocêntrica
que não cessou de fornecer os elementos para a representação
dos grupos historicamente discriminados. (Borges, 2012, p. 188)

Relembrar o histórico colonial nos auxiliou a evidenciar os efeitos criados pelo


pensamento moderno nas formas de compreender o mundo, que em nome de uma
única narrativa, hierarquiza os modos de vida levando à desvalorização de saberes,
cosmovisões e cosmo-sensações5.
O regime de representação via estereotipagem no Brasil têm sido desafiado
através das denúncias dos movimentos negros bem como na produção cinemato-
gráfica negra. A seguir veremos como tem se dado o fortalecimento da agência do
cinema negro dentro e fora da tela. Movimento que produz outros sentidos sobre
corporeidades existentes e possíveis, colaborando para a reeducação dos nossos
olhares.

OPOSIÇÃO E CRIAÇÃO EM MOVIMENTO


As artes e as manifestações culturais se mostram, no contexto brasileiro, como
zona potente para a recriação de coporeidades negras fragmentadas pela violência
colonial. Não só pela urgência de se opor à hegemonia, mas primeiramente pela ne-
cessidade humana de manifestar seus sentidos. Em contexto de diáspora forçada,
as manifestações negras nesse território são atravessadas de alguma forma pela
emergência em recompor corpos violentados pelo olhar branco, desde os ritos de
fé como nas religiões de matrizes africanas como Candomblé, Umbanda e Jurema,
passando pelas ditas “culturas populares” como jongo, maracatu, congado e sam-
ba, até a literatura, teatro, artes plásticas e cinema. São movimentações que ao
mesmo tempo criam modos de presença, aumentam as narrativas das negritudes
possíveis e desestabilizam o discurso de poder eurocêntrico.
A insurgência de vozes dissonantes negras no campo da imagem se intensificou
com o fortalecimento da caminhada trilhada pelos movimentos negros ao longo
dos anos. Para os objetivos desse trabalho, dialogaremos com alguns feitos mais
recentes considerados centrais, para compreender a crescente consolidação de

5 Cosmosensação é um termo utilizado pela Katiúscia Ribeiro, mestre e doutoranda em


filosofia, para explicar a partir da filosofia africana que nossa apreensão do mundo não é realizado
apenas pela visão (cosmovisão) mas sim, por todos os sentidos: visão, olfato, audição, paladar e tato
(cosmo-sensação).

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 349


Artes, memória e espaços
agência do cinema negro contemporâneo. Este, se nutriu das lutas dos movimentos
negros e nasceu da oposição ao regime de representação. De acordo com Noel dos
Santos Carvalho e Petrônio Domingues, na década de 1970,

O teatro, a literatura e o cinema foram agenciados em torno des-


se projeto de afirmação identitária. Zózimo Bulbul, um dos prin-
cipais realizadores afro- brasileiros da época, teve sua produção
associada as aspirações e expectativas do movimento negro.
Dirigiu os curtas Alma no Olho (1973), Artesanato do Samba
(1974), com Vera de Figueiredo, e Dia de Alforria (1981), e o lon-
ga Abolição (1988). Outros cineastas negros também entraram
em cena. Waldir Onofre realizou As Aventuras Amorosas de um
Padeiro (1975), Antônio Pitanga, Na Boca do Mundo (1978), e
Quim Negro, Um Crioulo Brasileiro (1979). (Carvalho e Domin-
gues, 2018, p. 235)

No final dos anos 1990 e início de 2000, cineastas negras e negros começaram
a definir diretrizes para nomear o cinema negro através do Dogma Feijoada e do
Manifesto de Recife6. Uma ação de auto definição importante para se pensar estra-
tégias de ação e contra argumentar o regime de representação sobre a negritude
nas telas e nos bastidores.
Em 2007, Zózimo Bulbul iniciou o Centro Afro Carioca, espaço situado na re-
gião central do Rio de Janeiro, pensado para fomentar a produção cinematográfica
afro-brasileira e fazer conexões com o continente africano e outras diásporas atra-
vés do Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul7, dos cursos de formação profis-
sional, debates e pesquisas.
O Ministério da Cultura lançou em 2012 o Edital de Apoio para Curta- Metragem
– Curta Afirmativo: Protagonismo da Juventude Negra na Produção Audiovisual,
em parceria com a Seppir, contemplando 30 curtas metragens de jovens negras
(os, es) de 18 a 29 anos. A iniciativa, assim como toda ação por parte do Estado
em torno de medidas afirmativas, sofreu críticas e retaliações por ser considerada
anti-democrática e privilegiar um determinado grupo ético-racial8.
A segunda edição do Edital Curta Afirmativo ocorreu em 2014 tendo como foco
o protagonismo de cineastas afro-brasileiros na produção audiovisual sem recorte
de idade, contemplando curtas e médias-metragens. Isabela Aquino fez um levan-
tamento sobre os impactos das políticas públicas no cinema negro em 2018 e apon-
tou dados importantes para percebermos que além do foco racial, houve uma des-

6 Disponíveis no Catálogo do 20° Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte, realizado


em 2018: http://www.festivaldecurtasbh.com.br/wp-content/uploads/2018/08/20_FESTCURTAS-
BH_online.pdf
7 Em 2020, o Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul completa 13 anos, selecionando mais
de cem filmes com uma programação de dez dias.
8 O juiz federal José Carlos do Vale Madeira do Maranhão entrou com ação judicial para
impedir o cumprimento do edital e, posteriormente, para impedir o pagamento da verba aos contem-
plados.

350 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
centralização significativa do eixo Rio-São Paulo e o fomento de filmes realizados
por mulheres. Em 2016, foi lançado o edital Longa BO Afirmativo pelo Ministério da
Cultura e a Ancine, contemplando filmes longos de baixo orçamento.
O acesso a verba pública foi e é de extrema importância para a concretização das
produções de cineastas negras (os,es), visto que, cinema é uma arte cara, e não
tem como pensarmos em “inclusão” e “valorização” étnico racial sem mexer de
forma estrutural na forma que o dinheiro é distribuído.
Paralelo às pequenas brechas institucionais, houve uma crescente mobilização
em outras esferas do cinema negro, como o Ficine – Fórum Itinerante de Cinema
Negro, criado em novembro de 2013 por Janaína Damaceno e Janaína Oliveira.
Assim como o Centro Afro Carioca de Cinema, tem um diálogo bem ativo com as
produções do cinema negro nacional, do continente africano e de outras diásporas,
reunindo artigos, críticas e resenhas, além de oferecer cursos e oficinas sobre a
temática.
Com o objetivo de promover, valorizar e divulgar as produções de profissionais
negras (os, es) no audiovisual, foi fundada a A.P.A.N, Associação dxs Profissionais do
Audiovisual Negro, em 2016. Instituição que dialoga com toda a cadeia produtiva,
da concepção à distribuição. Em agosto de 2020, a cineasta e presidente da associa-
ção Viviane Ferreira foi eleita para presidir o Comitê Brasileiro de Seleção do Oscar
2021. Conquista importantíssima em meio a um ano tão difícil.
Dos frutos dessas caminhadas, podemos citar momentos marcantes como a es-
treia em 2015 de Kbela que lotou o Odeon em todas as sessões e, posteriormente, a
participação de Yasmin Tayná, diretora do filme, no Festival Internacional de Rotter-
dam em 2017. Fato que abriu caminhos para a Mostra Alma no Olho – O legado de
Zózimo Bulbul e Cinema Negro Brasileiro Contemporâneo no 48° edição do Festival
Internacional de Rotterdam, com curadoria de Janaína Oliveira, em 2019. Foram
exibidos 28 filmes, dentre eles, 24 foram curtas metragens e 4 longas (Oliveira,
2019).
O surgimento de mostras e festivais como o Egbé - Mostra de Cinema Negro de
Sergipe, a Mostra de Cinema Negro de Mato Grosso, Mostra Itinerante de Cinemas
Negros – Mohamed Bamba, Mostra de Cinema Negro Adélia Sampaio em Brazília,
Mostra Negritude Infinita de Fortaleza são exemplos da proliferação e fortaleci-
mento do cinema negro ao longo dos anos. No contexto do Rio de Janeiro, o Cine-
clube Atlântico Negro, conduzido pelo cineasta Clementino Junior tem, a 12 anos,
promovido o cinema negro através de atividades educativas. Exemplo de outra ca-
minhada importante para afirmar a sua propagação.
O cinema negro também tem sido tema em expansão no meio acadêmico, sen-
do refletido por pesquisadoras (os,es) desde a graduação, especialização, mestra-
do e doutorado, conquistou espaço em congressos, seminários, grupos de pesqui-
sa, etc. Fato que confirma que não se trata de uma moda passageira e sim uma
conjuntura histórica que merece ser considerada, analisada e documentada pro
agora e pra posteridade.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 351


Artes, memória e espaços
A participação de realizadores negras (os,es) nos festivais de cinema de maior
visibilidade, apesar de ainda ser tímida e não ser central para pensar agência do
cinema negro, merece destaque nesse curto panorama. Em 2018, o Festival Inter-
nacional de Curtas de Belo Horizonte (FESTCURTASBH) apresentou três mostras
especiais que se dedicavam ao cinema negro com curadoria de Heitor Augusto.
No mesmo ano, o júri técnico do 51° Festival de Brasília do Cinema Brasileiro pre-
miou “Temporada” de André Novais como melhor longa, além das premiações de
melhor atriz, melhor ator coadjuvante, melhor fotografia e melhor direção de arte.
“Ilha” de Glenda Nicácio e Ary Rosa também foi premiado como melhor roteiro.
Esses apontamentos são considerados fundamentais para pensarmos que o ci-
nema negro parte da agência, do protagonismo e presença de realizadoras (os,
es) negras (os, es), seja no tensionamento da oposição, seja na criação de espaços
formativos e para realizações. Na próxima sessão do texto nos interessa verificar a
produção do cinema negro contemporâneo na tela e a produção de sentidos que
atravessa e deixa ser atravessado por outras existências, saberes e estéticas.

SABERES ESTÉTICO-CORPÓREOS EM EXPANSÃO E SUAS


PERFORMANCES
Leda Martins aponta as dimensões epistemológicas desenvolvidas pelos corpos
que herdaram as cosmosensações africanas e são marcados pela necessidade de
reconstrução das subjetividades violentadas de forma sistemática. A partir da in-
vestigação e vivência ritualística do Congado, ela discorreu sobre como as culturas
negras nas Américas se constituem, encruzilhando vestígios, faltas e fabulações
para sobreviver ao apagamento.
O corpo dentro da performance-ritual é reapresentado e capturado pela força
simbólica, rompe com o tempo histórico presente e se desloca do espaço. Se ex-
pande para uma estrutur fabular, recriando outra corporeidade. Martins nomeou
esse processo de oralitura, e conclui que o corpo é “local de um saber em contínuo
movimento de recriação, remissão e transformações perenes do corpus cultural”
(MARTINS, 2002, p.89).
Essa performance-ritual modifica signos e revida, através do corpo, contra o ani-
quilamento. Com os mesmos fins, assumimos a importância do cinema negro para
o movimento de expansão, onde nossas possibilidades de ser se multiplicam atra-
vés dos repertórios imagéticos, fazendo operar outras narrativas na tela e reverbe-
rando outros sentidos para vida. Em outras palavras, a reelaboração do imaginário,
atravessados pela presença criativa negra, permitem novas elaborações de existên-
cia.
Nilma Lino Gomes (2019) argumenta que a luta por emancipação dos movimen-
tos negros, constituem saberes que nos reeducam e demarca como principais os
saberes identitários, os políticos e os estético-corpóreos, que “dizem respeito não
somente à estética da arte, mas à estética como forma de sentir o mundo, como

352 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
corporeidade, como forma de viver o corpo no mundo” (GOMES, 2019, p.79). En-
tão o modo como exteriorizamos nossa identidade, como nos representamos, nos
movemos e nos relacionamos, pode ser pensado a nível de performance.
Abrimos espaço para refletir, pensando nessa teoria sobre a produção de saber
a partir do corpo, sobre as produções do cinema negro contemporâneo, dentro e
fora da tela. Tanto no movimento de apropriação da tecnologia cinema, como na
criação e ressignificão de imagens múltiplas.
Sobre os atravessamentos do cinema na vida, bell hooks (2019) conclui, no tex-
to “O olhar opositor: mulheres negras espectadoras”, que

Cinematograficamente, apresentam novos pontos de reconhe-


cimento, personificando a visão de Stuart Hall de uma prática
crítica que reconheça que a identidade é constituída “do lado de
dentro, assim como fora” da representação, e nos convida a ver
o filme “não como um espelho de segunda mão para refletir o
que já existe, mas como forma de representação que é capaz de
nos constituir como novos tipos de sujeitos, e desse modo nos
possibilita descobrir quem somos”. (hooks, 2019, p. 240)

Se trata então, da produção de imagens que ultrapassam os limites das definições


históricas coloniais sobre as vivências negras em suas dimensões ética, estética e
epistemológica. Foram Tselecionados filmes curtos para perceber a representação
dessas existências e seus saberes. Considerando as limitações de espaço para uma
longa análise, apontaremos algumas percepções sobre o documentário “Fartura”
de Yasmim Tayná e a ficção “Rã” de Ana Flávia Cavalcanti e Julia Zakia ambos rea-
lizados em 20199. Os dois filmes trazem dimensões cotidianas, narrativas da vida
comum permeadas por cosmosensações presentes na vivência em comunidade.
“Fartura”, filme de 26 min, é ambientado dentro das memórias de famílias peri-
féricas. Fotos e filmagens nos conduzem para dentro de festejos dos anos 1990.
Logo de início, a voz em off relata uma relação com o tempo a partir da lógica cir-
cular. Em certa medida, desdenha da contagem do tempo como início, meio e fim,
comunicando a existência de um coletivo que percebe a vida de outras formas. Em
seguida, a evocação da lembrança pessoal da diretora é conectado com as outras
experiências mostradas, “tudo é muito parecido”, ela diz.
A comida é fio condutor para tratar de afeto, acolhimento, partilha e celebra-
ção, trazendo a dimensão sagrada que não se encerra nos ritos religiosos, mas se
estende para o cotidiano da comunidade. Tudo que é apresentado tem uma força
ritualística: a preparação para foto de família, a manipulação dos alimentos, a cozi-
nha como espaço de cuidado e criação, a festa como encantamento e parte indis-
sociável da vida. Chegando ao final, outra voz em off enfatiza que festa “não tem a
ver com alegria ou tristeza”, mas com a cultura, com “o jeito de dizer e viver o que
é”. São elementos que compõem um modo de ser e estar no mundo de um povo.

9 Filmes disponíveis gratuitamente no Porta Curtas: http://portacurtas.org.br/Especial/

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 353


Artes, memória e espaços
“Rã” também é ambientado na periferia e gira em torno do cotidiano de Val, mu-
lher negra e mãe solo de duas crianças. Os primeiros dois minutos e meio de filme
mostram escassez e poder coabitando. De um lado, as goteiras que atrapalham o
sono, do outro, seres limpam a casa embalados por uma cantiga pra Onã, Senhor
dos Caminhos que guarda o mundo dos Orixás. Val não está só. O dia seguinte
segue com a ida pra escola e trabalho, antes, a personagem passa no mercadinho
e faz suas compras no fiado, prática muito comum na periferia, onde o convívio
estreito permite que a palavra seja o único vínculo pro ato firmado.
Mais tarde a confiança é retribuída com a cessão de Val a uma pedido de Ne-
ném Preto, dono do mercadinho. A “carga” sendo descarregada no quintal da per-
sonagem cria uma tensão que é diluída no dia seguinte, o plot twist acontece na
fala de uma das filhas: “mãe, é de comer?”. As cenas seguintes mostram outra
prática comum em comunidades, o mutirão de mulheres reunidas para cozinhar,
a partilha da comida e bebida entre vizinhos, crianças aglomeradas brincando, en-
fim, a celebração da vida.
Os dois filmes representam na tela imagens habituais da vida, que anunciam,
mesmo que de forma indireta que, nem só de tragédias ou endeusamentos nossas
corporeidades são constituídas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Cinema negro é tudo, é qualquer coisa”. Essa foi a resposta dada pela (orí)
entadora desse trabalho, Janaína Oliveira. Resposta que me colocou em um longo
período de reflexão ou, como eu prefiro chamar, de “fritação”: quando algo é joga-
do no fogo e é transformado em outra coisa, tomando outra consistência.
A ideia inicial deste trabalho era relacionar cinema negro e educação, pensando
caminhos pedagógicos para o cumprimento da lei 10.639/03. Partia da premissa
fixa de que o cinema negro seria instrumento que representaria de forma positiva
a população negra. Nos salvando de estereótipos que nos perseguem e tentam res-
tringir nossas subjetividades na representação colonial.
Após o contato com os filmes, as referências bibliográficas e as provocações de
Janaína, me deparei com a impossibilidade de nomear o que é cinema negro. Foi
preciso, então, não só recusar a imaginação branca mas também as formas que eu
projetava como as mais adequadas à população negra. Nesse processo, meu olhar
foi reeducado para “mover- se para além do trauma”10.
Estar em contexto de diáspora forçada nos encurrala a nos mover dentro da lógi-
ca colonial, a empreender nossos esforços para ser contra o discurso racial. É um
círculo vicioso de dependência: eles violentam e nós, nos ocupamos em reagir.

10 Frase de Janaína Oliveira fazendo referência à diáspora forçada e ao racismo durante a


Master Class “Pensando o Cinema Negro Hoje”. Promovido pelo Centro Afro Carioca no encerramen-
to do “Curso Cinema e Pensamento: narrativas negras”. Disponível em: https://www.facebook.com/
CentroAfroCariocadeCinemaZozimoBulbul/videos/405776277114883

354 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
Deslocar sentidos para além da violência têm sido um exercício de rever minhas
concepções sobre o cinema negro contemporâneo. Somos educadas (os, es) a pen-
sar o mundo de forma cartesiana, a investigar acontecimentos, enquadrá-los e
nomeá-los. Se é justamente a lógica do enquadramento que priva nossa liberdade,
não posso encerrar essas reflexões na definição.
Entendendo que “negro” é utilizado de forma política, me aproximo novamente
de Stuart Hall quando ele discorre sobre os perigos da evocação de uma negrura
essencial como ponto de partida para pensar estratégicas interventoras:

No momento em que o significado ‘negro’ é arrancado de seu


encaixe histórico, cultural e político, e é alojado em uma categoria
racial biologicamente constituída, nós valorizamos, pela inver-
são, a própria base do racismo que estamos tentando descons-
truir. Além disso, como sempre acontece quando naturalizamos
categorias históricas (pensemos em gênero e sexualidade), nós
fixamos este significante fora da história, da mudança e da inter-
venção políticas. E uma vez que ele é fixado, estamos tentados
a usar ‘negro’ como suficiente em si mesmo para garantir o ca-
ráter progressista da política que combatemos sob essa bandeira
– como se não tivéssemos nenhuma outra política para discutir,
exceto a de que algo é negro ou não é. (Hall, 1992, p. 157)

Pensando no fortalecimento da agência e nas marcas dos filmes apresentados,


me atento à expansão de possibilidades corpóreas e estéticas que o cinema negro
tem apontado, dentro e fora da tela. Fatos que contribuem não só nos processos
de representação, mas a produzir outros saberes através de suas imagens e ações.
Alargando nossos sentidos, nossas formas de ser e estar.

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356 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
UMA ANÁLISE DA SEMIÓTICA PEIRCEANA,
PLANO DE EXPRESSÃO E CONTEÚDO ATRAVÉS
DO CLIPE “INÁCIO DA CATINGUEIRA”1

Andressa Vieira Almeida

A morte brinca com balas


nos dedos gatilhos dos meninos
Doris se lembrou do combinado,
o juramento feito em voz unísonora ,
gritando sob o pipocar dos tiros:
- A gente combinamos de não morrer
Conceição Evaristo

INTRODUÇÃO
A obra audiovisual “Inácio da Catingueira”, produzida pelo rapper, compositor
e cantor brasileiro Emicida, faz um cruzamento entre a sua história e a do persona-
gem escravizado Inácio da Catingueira. Durante o clipe, Emicida aborda questões
raciais contemporâneas, do passado escravista brasileiro e da diáspora africana. O
clipe tem como eixo a comparação entre presente/passado e o passado/presente,
utilizando a imagem de Inácio em contraste com a composição e voz do cantor,
produzindo-se assim, a consciência histórica. Emicida enuncia que a música/o vi-
deoclipe:

(...) é um convite à reflexão, sobre quem são os reais inimigos


dos que dizem lutar por igualdade, mas gastam seu tempo,
munição e energia dando tiros em espelhos, que refletem a si
mesmos. Em pouco tempo, nessa toada, seremos todos cacos
e o triunfo será entregue de bandeja, a quem crê que o Brasil
não precisa mudar urgentemente. Não derrape nas polêmicas.
(Emicida, 2018)2

Nessa relação presente e passado a participação do interlocutor é fundamental


para que as múltiplas leituras sugeridas pelo músico sejam compreendidas e, tam-
bém, que novas leituras sejam possíveis. A partir da semiótica, a participação do
interlocutor é essencial para dar sentido aos meios de expressão do videoclipe a

1 Sobre a figura de Inácio, ler o texto Inácio da Catingueira: A construção de um personagem


negro na historiografia da literatura de cordel brasileira, de Luciany Aparecida Alves Santos
2 Sobre a apresentação produzida pelo canto do clipe Inácio da Catingueira, ler a nota Com
vocês, Inácio da Catingueira

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 357


Artes, memória e espaços
TABELA 1: A TRICOTOMIA PEIRCEANA- CLASSIFICAÇÃO DOS SIGNOS

Fonte: Site sobre semiótica

FIGURA 1: RELAÇÃO TRIÁDICA DO SIGNO

Fonte: Site do 53º Congresso Brasileiro de Química.


ser analisado A escolha das imagens partiu de dois critérios: 1º: a possibilidade do
enredo múltiplo da obra audiovisual. 2º: o diálogo com a semiótica. Definidos es-
ses dois critérios, em sequência temporal, as diferentes imagens escolhidas, apro-
priando-se da semiótica como ferramenta analítica nos permite compreender a
formação dos diferentes sentidos construídos pelo texto.

A SEMIÓTICA
Antes de abordarmos a semiótica peirceana, é importante apresentarmos ou-
tros pesquisadores que estudaram a semiótica. A origem da semiótica foi na Gré-
cia Antiga, pois acompanha o surgimento da filosofia ocidental. No século XX, as
pesquisas de Ferdinand de Saussure e Charles Sanders Peirce, ganharam grande
visibilidade, e foi assim que este campo do saber ganhou sua independência e se
tornou uma ciência.
Para Lúcia Santaella (1986), a semiótica ajuda a entender a construção do sig-
nificado de um fenômeno da expressão da linguagem humana. “A semiótica é a
ciência que investiga todas as linguagens possíveis, ou seja, tem como objetivo o
exame dos modos de constituição de todo e qualquer fenômeno como fenômeno
de produção de significação e de sentido.” (SANTAELLA, 1985, p. 15). Sendo uma
ciência que cresce à medida que nos aprofundamos no universo das linguagens,
das codificações e das interpretações. Essa ciência tem como objetivo, o estudo
de diversos fenômenos que geram significações distintas, de acordo com cada mo-
mento histórico e social, ligados a todas as formas de expressão enquanto lingua-
gem a semiótica possibilita analisar as relações entre uma coisa e seu significado.
Na comunicação visual, o primeiro elemento é aquele percebido pela visão,
como as palavras escritas e as imagens. O segundo é tudo aquilo que está ausen-
te do percebido pelo olhar e é representado pelo signo. Para explicar o segundo
elemento, podemos usar a tricotomia peirceana, sendo: o signo consigo mesmo;
o signo com seu objeto dinâmico; o signo com seu interpretante. Conforme Silva:

Signo é aquilo que sob certo aspecto, representa alguma coisa


para alguém. Ele é um suporte, onde cada signo se constitui de
um significante (parte material) e um significado (abstrato). São
palavras, gestos, fotos, produtos e logotipos que uma pessoa
utiliza para comunicar informações a outras. É por meio do uso
de vários símbolos ou signo que uma empresa transmite infor-
mações a respeito de um produto aos consumidores. Existem
três tipos de signos: ícone é a relação direta; índice é a relação
de semelhança; símbolo é a relação comunicacional entre o sig-
nificante e o significado (MIEZ, SILVA, 2011, p.5).

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 359


Artes, memória e espaços
O terceiro elemento ou interpretante é a ideia que surge na mente do obser-
vador que percebe o signo. A semiótica possibilita analisar as relações entre uma
coisa e seu significado, dessa forma, é possível estabelecer tais relações.
Peirce usou uma concepção baseada no estudo dos fenômenos, onde o homem
interage com os signos. Ele definiu três categorias, para mostrar como os fenôme-
nos aparecem à consciência: a primeiridade que é a qualidade da consciência ime-
diata, percepção espontânea; a secundidade que envolve a reação, compreensão
e profundidade do seu conteúdo; e a terceiridade que remete a experiência das
mediações.
Na semiótica, a proposição de Louis Hjelmslev (1899 – 1965) é adotada como
“Plano de conteúdo e Plano de expressão”. O plano de conteúdo é o significado do
texto e o plano de expressão é a manifestação do conteúdo. Podemos notar que,
de forma o plano de conteúdo trata da composição dos sentidos que transmite
aquilo que o texto. Já o plano de expressão refere-se a estruturação sonora, visual e
imagética (verbal, icônico, gestual) é expresso o conteúdo do texto. A partir dessas
concepções teóricas passamos a seguir a análise do clipe, “Inácio da Catingueira”.

“INÁCIO DA CATINGUEIRA” EM PERSPECTIVA PEIRCEANA


BOCAS, DEDOS, VOZES E CANÇÕES
A abertura do clipe apresenta a imagem da metade da face de dois homens
negros, visivelmente perceptíveis pelos seus traços negróides. Bocas e dedos em
na direção desses dois homens, Tons de vermelho e preto. O vermelho traz a repre-
sentação da raiva. A cor preta traz uma mistura de medo, solidão e respeito. Esses
elementos constroem a primeiridade da imagem. Com as percepções mais aguça-
das, percebemos que um desses homens é Emicida. O outro homem ainda não é
possível identificar, mas se pode deduzir que seja alguma referência não apenas
para o cantor, mas para pessoas do movimento negro de modo geral.
As bocas e dedos apontam para os dois homens. Uma das bocas parece estar
gritando. O outro homem que ainda não era possível identificar na secundidade,
na terceiridade ganha sua identidade: Inácio da Catingueira era poeta e cordelista
é o homem que divide a face com Emicida, podendo ser reconhecido como Inácio
como uma figura histórica ou como um personagem ficcional da produção audio-
visual.
Os dois homens negros que fazem da arte sua vida. Emicida em batalhas de rap
e Inácio como repentista3 foram/são julgados por. As imagens das mãos e das bo-
cas têm um tom acusatório. Os motivos pelos quais essas figuras aparecem dessa
maneira pode ser pelos homens terem como característica física a negritude, mas,
também, por praticarem, a poesia de cordel e o rap, consideradas marginais.

3 Para entender o papel dos repentistas, ver a dissertação “Insultos”, “Elogios” e “Resistên-
cias”: participação da repentistas negros em cantorias do Nordeste (1870-1930), de Germana Guima-
rães Gomes.

360 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
FIGURA 2: INÁCIO DA CATINGUEIRA E EMICIDA

Fonte: EMICIDA, 2018, 0min25seg

ESTILHAÇOS
Na segunda imagem, a primeiridade se faz presente com a figura central de um
terço do rosto de um homem. Temos uma mão segurando um objeto. No canto
direito podemos observar três círculos e no lado esquerdo da imagem dispomos de
outra mão segurando outro objeto, diferente do que foi citado inicialmente. Existe
um terceiro objeto que aparentemente está saindo do que se encontra no canto
esquerdo da imagem.

FIGURA 3: CHICOTE, ARMA E ESTILHAÇO

Fonte: EMICIDA, 2018, 0min40seg.


A imagem segue usando como centralidade a cor vermelha e preta. Os três
círculos lembram algo perfurado ou que foi atingido, produzido por outros dois
objetos: o que se encontra esquerda da imagem e o que está mais no centro, indo
em direção ao lado direito. No centro da imagem temos parte do rosto de um dos
homens que foi citado na primeira imagem. Ainda no centro da imagem, temos ou-
tro elemento, o mesmo lembra um chicote. A terceiridade da imagem de Inácio da
Catingueira, dividindo a centralidade com um chicote e uma bala. Essa represen-
tação é extremamente simbólica, pois uma das formas de tortura e de provocar a
morte dos negros escravizados era o açoite, executado com o chicote. Atualmente
o que mais promove a morte de pessoas negras, principalmente de homens4, são
as armas de fogo que estão representadas na imagem por uma arma, uma bala e
estilhaços.

GRILHÕES5
A terceira imagem contém não apenas figuras, mas também signos. A figura
que aparece na esquerda da imagem apresenta um objeto em formação e que está
presa a outro objeto. No centro da imagem temos um conjunto de signos “PRECISA
DOS PRETO FUDIDO COM GRILHÃO NO PESCOÇO”. À direita temos uma pessoa
com um objeto na boca e outro no pescoço. O objeto do pescoço tem a figura de
outro ser que não parece ser algo bom.

FIGURA 4: GRILHÕES NO PESCOÇO

Fonte: EMICIDA, 2018, 1min58seg.


A secundidade da imagem, temos um feto e uma mulher presos com grilhões. A
figura da mulher traz mais elementos. Está com uma máscara no rosto e junto ao

5 Grilhões é uma corrente de metal, formada por anéis, em forma de cadeado. Utilizados há
séculos, como uma ferramenta para tentar impedir os presos de fugirem ou se movimentarem. Os
grilhões viraram símbolo de opressão, crueldade. A função dos grilhões era para o transporte dos
escravizados, para fazer com que eles não fugissem e nem se mexessem muito.
seu grilhão tem a figura de um vampiro. A máscara que a mulher usa é a Máscara
de Flandres6. Podemos fazer analogia em relação ao vampiro que está preso no
grilhão dessa mesma mulher. A escola de samba Paraíso do Tuiuti7 fez referência
ao então Presidente da República Michel Temer, representado por um vampiro. O
feto com grilhões pode ser visto de duas maneiras. A primeira, como os filhos de
mulheres escravizadas que já nasciam nas mesmas condições que as suas mães ou,
a segunda maneira, como a Lei do Ventre Livre8.

“NOVOS” GRILHÕES
Na imagem a seguir, temos uma pessoa imóvel, que está encostada em um
objeto que traz nele um conjunto de signos, “VEJA”9. Nas costas desse mesmo in-
divíduo temos mais um conjunto signos “MBL”10 e um objeto que encosta-se a seu
corpo, que está sendo manuseado por uma mão. Assim, podemos caracterizar a
primeiridade da quarta imagem. A secundidade pode ser estudada a partir do ob-
jeto que está encostando-se às costas das pessoas. Pode ser visto como um chicote
e o local onde esse indivíduo está preso seria o tronco.
Os signos que estão presentes na imagem fazem referência a uma revista bra-
sileira e ao Movimento Brasil Livre. A revista brasileira VEJA, se caracteriza como
a espiral do silêncio. A mídia hegemônica brasileira não coloca a população negra
como centralidade, ou quando se lembra dessa população é apenas em momen-
tos específicos que não representa os negros. O MBL conhecido Movimento Brasil
Livre liderado por jovens e utilizando-se da internet como principal ferramenta,
tornou-se conhecido e influenciador nos últimos anos. A sua pauta, conservadora,
defende a inexistência do racismo, as políticas meritocracias, o movimento escola
sem partido, o apoio do uso de forças policiais como solução para as desigualdades
sociais. Pautas essas que nos remetem ao colonialismo tão presente nos dias de
hoje.

6 Para entender mais sobre Máscara de Flandres, ler Técnicas da tortura: punições e castigos
de escravos no Brasil escravista, de Vilson Pereira dos Santos. E o texto A máscara, de Grada Kilomba,
disponível em: <https://www.revistas.usp.br/clt/article/viewFile/115286/112968> Acesso em 05 de
out. 2018.>
7 Ver o texto sobre a escola de samba em: <https://istoe.com.br/carnaval-do-rio-de-janeiro-
-mostra-criatividade- contra-a-crise-e-o-vampiro-temer/>.
8 Lei estabelecida durante o Brasil Imperial e que libertava crianças nascidas de mães escra-
vizadas após a data de promulgação da Lei, nas palavras da historiadora Giovana Xavier: “era um des-
compromisso do Estado, pois era uma escolha do senhor ficar com as crianças ou não, por isso que
é a primeira grande política institucional de abandono e preterimento das crianças negras no Brasil.”
(XAVIER, 00min31seg - 00min46seg, 2017)
9 É uma revista de distribuição semanal brasileira criada em 1968, durante a ditadura militar
pelo jornalista Roberto Civita, a revista trata de temas variados de abrangência nacional e global. Ver
história da revista em: <https://veja.abril.com.br/brasil/os-50-anos-de-veja-uma-linha-do-tempo/>
10 É um movimento político brasileiro que defende o liberalismo econômico e o republicanis-
mo, ativo desde 2014.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 363


Artes, memória e espaços
FIGURA 5: VEJA&MBL

Fonte: EMICIDA, 2018,3min19seg.

EU NÃO VENDI MINHA ALMA


Na quinta imagem, a primeiridade é composta por cantos. Temos um conjunto
de signos: “QUEM DIZ QUE EU VENDI MINHA ALMA” que se encontra nos cantos da
imagem. Esses signos estão em um fundo vermelho. No centro da imagem com o
fundo preto, temos quatro máscaras que estão em volta de um objeto que está em
chamas. As máscaras que aparecerem no centro da imagem pode ser reconhecido
como máscaras Africanas11. O objeto que se encontra no meio das máscaras é uma
cruz.
O conjunto de signos que estrutura a frase traz como reflexão um período histó-
rico, ainda presente para pessoas em diáspora. O fato de vender a alma para adqui-
rir coisas, faz com que algumas pessoas acreditem que pessoas negras não possuem
capacidade e para isso, precisam se vender. Na terceiridade podemos ampliar a
leitura feita sobre a cruz que está pegando fogo no centro da imagem. Pode estar
fazendo referência a Ku Klux Klan12. Organização nos Estados Unidos, conservador,
reacionário e extremista que defende a supremacia branca, o nacionalismo, e a an-
ti-imigração. A cruz pegando fogo usando, pode também ser relacionado ao rapper
Djonga, compositor da música, “Olho de Tigre"13. em que canta: “ Firma, firma, fir-
ma. Fogo nos racista” e usando, também, a referência a Ku Klux Klan.

11 Para saber mais sobre as mascaras africanas, ler texto Máscaras africanas: beleza,
magia e importância, de Joelza Ester Domingues
12 Sobre a organização ler artigo, A Ku Klux Klan e a instauração do medo nos EUA, de Viviane
Rodrigues Darif Saldanhas
13 Assistir o clipe <https://www.youtube.com/watch?v=0D84LFKiGbo>

364 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
FIGURA 6: EU NÃO VENDI MINHA ALMA

Fonte: EMICIDA, 2018,3min30seg.

FIGURA 7: KU KLUX KLAN E MINHA ALMA

Fonte: EMICIDA, 2018,3min33seg.


O julgamento presente na vida de artistas negros, que questionam e apontam
debater que ainda são silenciados, Emicida aborda na apresentação que faz sobre
o clipe “Inácio da Catingueira”. Também podemos compreender a concepção de
que quando artistas negros se apresentam para as grandes emissoras estariam se
vendendo, sem esquecer que eles ocuparem esses espaço e de extrema represen-
tatividade.

“Assisti ao longo de minha trajetória, muitos artistas inspira-


dores serem atacados, desrespeitados por motivos sujos, in-
tenções secundárias e argumentos rasos, com a intenção de se
aproveitar da confusão de nosso panorama cultural e manter
nossos irmãos e irmãs no lixo por mais 500 anos. (Emicida, 2018)

MÁSCARAS E ALMAS
As sete figuras de máscaras espalhadas pela imagem, são diferentes das más-
caras que aparecem na imagem anterior. Junto com essas novas máscaras temos
um conjunto de signos, “DESCENDE DE QUEM DIZIA QUE EU NEM TINHA UMA”. As
máscaras se referem a uma ideia diferente das máscaras Africanas, o fundo preto
instaura uma sensação de medo. Os signos que formam a frase que fazem referên-
cia ao fato de algumas pessoas serem vistas como sem alma, e também faz uma
conexão com a quinta imagem.
A terceiridade faz conexão com a imagem analisada anteriormente, assim po-
demos enfatizar que a cruz se refere a Ku Klux Klan. A frase remete ao período de
concretização da escravidão também, pois uma das fundamentações criadas pelos
europeus, para justificar a sua política de extermínio e exploração dos africanos e
indígenas das terras que hoje são as Américas, foi a de que esses povos não pos-
suiriam “almas” (um conceito cristão). A partir desse conceito, foram diversas as
consequências que aos povos africanos e diaspóricos, como, por exemplo: a per-
seguição às expressões culturais e filosóficas africanas. Esse processo colonial, na
música, se renova a partir da frase “Quem diz que eu vendi minha alma” ganhando
novos sentidos, sendo que os mesmos que excluíam a alma de africanos são aque-
les que acusam o músico de “vender sua alma”, demonstrando que, dentro do
processo capitalista, o artista negro passa a possuir alma, mas o seu trabalho não
pode ser vendido, tornando-se condição de vida (como o restante do videoclipe
demonstra).

366 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
MINHA CABEÇA NÃO É TROFÉU
Na figura central, a imagem busca dar foco a um preso com uma espécie de
“garrote” no pescoço. Na parte de cima, a direita, temos a de três cabeças que,
aparentemente, são do mesmo indivíduo que está na centralidade da imagem.
“QUER MINHA CABEÇA PRO SEU SENHOR PÔR NA ESTANTE?” são o conjunto de
signos que está a esquerda da imagem, esse signo é vermelho, assim como as de-
mais figuras.

FIGURA 8: MINHA CABEÇA NA ESTANTE

Fonte: EMICIDA, 2018,3min40seg.

As figuras dos quatros indivíduos possuem traços negróides. O que está no cen-
tro com um “garrote” no pescoço, lembra um objeto de tortura, semelhante como
o da terceira imagem. A frase tem um tom de questionamento, causando um possí-
vel desconforto em que ainda acredita que os negros são inferiores e devem servir
ao demais. Ao lembrar uma pessoa negra podemos identificar o mesmo como um
escravo que está sofrendo algum tipo de tortura. Na frase como podemos perce-
ber, é uma interrogação, portanto, indaga ao interlocutor: “Quer dar minha cabeça
pro seu senhor pôr na estante?”. Próximo às figuras, há novamente uma retomada
do período escravista, pois a expressão, “seu senhor” retoma esse período, assim
como a prática de colocar a cabeça na estante retoma um processo de espetacula-
rização da violência contra pessoas negras. Assim caracteriza-se a terceiridade da
sétima imagem.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 367


Artes, memória e espaços
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A música “Inácio da Catingueira” é uma obra múltipla e que possibilita diferentes
leituras, a partir do repertório que cada interlocutor possui. A tricotomia peirceana
permite que possamos “desmembrar” o videoclipe “Inácio da Catingueira” e com-
preender como funciona o seu processo de composição. As cores vermelha e preta
escolhidas pelo rapper Emicida, faz referência ao medo, respeito, isolamento, so-
lidão, raiva, revolução compõem o plano de expressão podendo manifestar a ideia
de que por mais que os negros em diáspora tenham sido vítimas do colonizados e
que isso ainda é presente em nosso cotidianos, e que por esses motivos ainda so-
mos vítimas de um estado racista e muitas vezes sentimos medo. Por isso a seleção
de imagens foi feita dessa forma, ainda fazendo parte do plano de expressão dessa
análise. O conjunto com a letra da música “Inácio da Catingueira” e o clipe valida o
plano de conteúdo. A obra audiovisual pode ganhar diversos significados, se ana-
lisado junto com a música aumentando assim, o plano de conteúdo do clipe. Pode
se abordar diversas situações a partir do desdobramento da música e das imagens
presentes, podendo ser esses desdobramentos, dentro da comunicação como a
espiral do silêncio, mas também, questões que não são enquadradas como áreas
profundas de estudo da comunicação como a tortura, a escravidão, o racismo, a
cultura periférica mudando e salvando vidas, religiões de matriz afras entre outros
assuntos. Acreditamos, no entanto, que as reflexões promovidas contribuem para
a compreensão da teoria e, também, para a visibilidade acadêmica da cultura rap.

REFERÊNCIAS

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do etano. In: 53º Congresso Brasileiro de Química, 2013, Rio de Janeiro.

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HJELMSLEV. Louis. Prolegômenos a uma teoria da linguagem. 2ª ed., [Trad. J. Teixeira


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368 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


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SEM AUTOR: Os 50 anos de VEJA: uma linha do tempo, VEJA, São Paulo, 12 jul, 2018.
Disponível em: < https://veja.abril.com.br/brasil/os-50-anos-de-veja-uma-linha-do-tem-
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AUTORIA
Andressa Vieira Almeida
Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA)
E-mail: Andressava2.aluno@unipampa.edu.br ou Andressa.v.almeida@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3476-6560
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8039036534515411

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 369


Artes, memória e espaços
ST 58
Ritmos da
Identidade:
Música, Juventude
e Identidade e
afro-diaspórico
CANTOS DE LIBERDADE: ENUNCIANDO A
SUBJETIVIDADE DE HOMENS NEGROS A PARTIR
DO RAPPER BACO EXÚ DO BLUES

Matheus Eduardo Borsa

INTRODUÇÃO
Este trabalho historiográfico é fragmento de uma pesquisa maior que tem por
temática as representações de masculinidades negras no rap, em particular, aque-
las produzidas por Baco Exu do Blues em seu álbum Bluesman (2018). A partir disso,
o propósito dessa análise é: por meio das músicas presentes no álbum Bluesman,
perceber como seus ritmos e rimas colaboram para o questionamento do estigma
do negro bandido, negro suspeito que recai sobre a identidade dos homens negros.
Apesar do objeto de análise ser o álbum Bluesman, é imprescindível imergir no
universo do protagonista Baco Exú do Blues e entender suas vivências, porque es-
tão intimamente ligadas a maneira perspicaz do rapper de refletir sobre o racismo
brasileiro e marcar uma postura política de representatividade a gente negra. O
disco, apresenta uma perspectiva pluri artística da música combinando elementos
musicais com referências de outras áreas da cultura, como a pintura, o cinema e a
literatura, usando de fortes metáforas para nos fazer lembrar que o rap continua
sendo a voz do gueto e das ruas.
Posicionar uma produção artística intimamente ligada à vida de uma pessoa
demanda sensibilidade, por isso, como método de análise para esta pesquisa é
fundamental utilizar a teoria interseccional1 estabelecendo uma leitura sobre as
histórias, subjetividades e posições sociais de sujeitos subalternos masculinos en-
volvidos. “As mulheres negras têm tido a consciência de que as experiências das
mulheres e dos homens negros estão unidas por solidariedades objetivas e subje-
tivas[...]” (VIGOYA, 2018, p. 52)
De certa forma, um desafio dos historiadores é deixar claro que a História e o
presente possuem uma relação intrínseca, principalmente no que tange estruturas
incólumes da sociedade transcritas nas relações de poder demonstradas pela cor,
pelo gênero e pela classe. Por isso, a importância de Baco Exú do Blues, um cidadão
fora das fileiras acadêmicas, que através do Rap consegue evidenciar essa relação
basilar entre a História e o presente. Entendendo a linguagem como um mecanis-

1 Conceito que emerge do feminismo negro norte-americano. Nesta pesquisa inter-


seccionalidade é utilizada, especialemnete, para pensar a experiência racializada, é sobre o
racismo interceptado por outras estruturas. “Sensibilidade analítica - a interseccionalidade
impede reducionismos da política de identidades - elucida as articulações das estruturas
modernas coloniais que tornam a identidade vulnerável [...] (AKOTIRENE, 2019, p. 59).

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 371


Artes, memória e espaços
mo da manutenção do poder, Bluesman consegue aproximar o discurso político
racial de diferentes grupos sociais.
Outra ferramenta oferecida pela História do Tempo Presente é a interdisciplina-
ridade2, que torna-se fundamental nesta pesquisa diante da escassez de interlo-
cuções na História sobre as masculinidades negras. O conceito de representação
é um caso onde há troca profícua entre as áreas de História e Ciência Sociais, pois
ambas definições se cruzam na medida que decifram a realidade do passado por
meio das representações. De acordo com a história cultural “os indivíduos e os
grupos dão sentido ao mundo por meio das representações que constroem sobre
a realidade” (PESAVENTO, 2003, p. 21), análogo a esse pensamento, o sociólogo
Stuart Hall define “representação como uma prática de produções de significados”
(2016, p. 140). Assim, a interdisciplinaridade é uma escolha política no sentido de
desestabilizar a lógica da autoridade discursiva. Ponderando o aporte dos diálogos
interseccionais, essa análise privilegiou as práticas contra-hegemônicas inscritas
na potencialidade dos subalternos de produzirem representações sobre si.
Foram escolhidas como fonte deste escrito, entrevistas que abordam falas pes-
soais relacionadas a história de vida e carreira do rapper Baco Exu do Blues, como
origem do artista, suas vivências e a interferência de seu marcador social, homem
negro. Primeiro, o diálogo realizado entre Lázaro Ramos e Baco no programa Espe-
lho do “Canal Brasil” disponível no YouTube. Segundo, a entrevista concedida por
Baco ao programa #provocações da rede de televisão “TV Cultura”. Além delas,
foram pensadas os elementos de contestação a figura do negro suspeito, negro
bandido nas músicas Minotauro de Borges33 e Bluesman.4

PRETO GUIA: O CÁRCERE VIOLADO


E A FUGA DOS HOMENS NEGROS
A pele preta é a cor guia que nos conduz a momentos de raiva, esperança, orgulho
e paixão5. Os passos acelerados, a respiração ofegante e o corpo negro moço indi-
cam a corrida pelas ruas a uma impressão de fuga. Entre a corrida fuga do moço in-
tercalam-se cenas de afeto, de outra gente negra, de rainhas e reis de cabelo afro,
de narizes largos e de sorrisos fartos, de gente negra feliz, bonita e vistosa. Mas e o
moço? Será que chegou ao seu destino? Ou, em um retrato fidedigno ao cotidiano

2 Marieta de Moraes Ferreira em diversos escritos destaca a interdisciplinaridade como um


dos desafios para pesquisas com objetos localizados no tempo presente, entre eles cito: FERREIRA,
Marieta. Notas iniciais sobre a história do tempo presente e a historiografia no Brasil. Revista Tempo
e Argumento, v. 10, n. 23, Florianópolis, jan./mar 2018, p. 80 ‐ 108.
3 999. Baco Exu do Blues: Minotauro de Borges. São Paulo: EAEO Records, 2018. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=iL42c1noVAA Acesso em: 8 jun. 2020.
4 999. Baco Exu do Blues: Bluesman. São Paulo: EAEO Records, 2018. Disponível em: https://
www.youtube.com/watch?v=82pH37Y0qC8 Acesso em: 8 jun. 2020.
5 999. Bluesman: Filme Oficial. Los Angeles: Stink Film, 2018. Disponível em https://www.
youtube.com/watch?v=- xFz8zZo-Dw. Acesso em: 8 jun. 2020.

372 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
brasileiro, a corrida do jovem negro terminará na cela? Não! Não desta vez. A vida
não será mais um ciclo mecânico pré determinado e presumível, o cárcere foi
violado e os homens negros estão escapando. O rapper Baco Exu do Blues, em oito
minutos, transmitiu o significado de Bluesman (2018). Em oito minutos, caracteri-
zou sua arte e apresentou quem é o homem preto Baco. Mas, ainda nos falta. Ago-
ra é a hora de entender a reivindicação das rimas, de rachar a estrutura e deixar a
representação do negro bandido, do negro suspeito perder-se em caminhos ínvios.
As práticas representacionais são essencialmente portadoras de significados,
dizem mais do que aquilo que mostram, comportam sentidos construídos social e
historicamente (PESAVENTO, 2003). Nesse sentido, tem sido essencial identificar e
revelar quais as formas de representação que vigoram sobre os homens negros no
Brasil na segunda década do século XXI. As representações do negro como violen-
to, agressivo, suspeito são constantemente apontadas nos meios comunicacionais
brasileiros e mostram como homens negros foram historicamente representados
pelo discurso colonial e pelas práticas de estereotipação. A formação do imaginá-
rio social6, por veículos de comunicação ou por declarações presentes na lingua-
gem individual das pessoas, acaba por reforçar estigmas, como o negro associado
à marginalidade, à sexualização de seus corpos e à força física.

Homens negros e pessoas negras em geral são representados ex-


cessivamente nos noticiários como criminosos. Significa que são
mostrados como criminosos de modo exagerado, mais do que
o número real de criminosos[...] Então, você educou um povo,
deliberadamente, por anos, por décadas, para crer que homens,
em especial, e pessoas negras, em geral, são criminosos.( CYRIL,
Malkia. 2016, 27m46s[...]29m10s)7

Embora Malkia Cyril esteja narrando a experiência norte-americana, é possível


perceber largas semelhanças com o cotidiano brasileiro, porque ambos países são
atravessados por estruturas marcadas a partir do jugo colonial, especialmente o ra-
cismo. A escravização de pessoas teve como pilar a hierarquização racial e instituiu
o racismo como uma estrutura fundadora da sociedade brasileira. Sinalizados nas
relações de poder, o corpo negro é discriminado de forma sistemática em diversas
esferas. Dentre as ramificações desse sistema, o traço punitivista é o carrasco que
marcou os corpos negros com peso das correntes e os assovios do chicote. Perver-
samente, remodelou-se após a liberdade assinada por uma fada madrinha que do
chicote fez uma varinha de condão8. Com um novo cenário político, as feridas dos

6 SILVA, Wagner Machado da. Equidade e Televisão: o programa Mister Brau, da Rede Globo,
e o estímulo à (re)construção do imaginário social do negro no Brasil. [dissertação de mestrado].
PUCRS, 2018.
7 Diretora-Executiva da Center for Media Justice, em declaração no documentário A 13ª
Emenda de Ava Duvernay.
8 EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. 3ª ed. Pallas, Rio de Janeiro, 2019.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 373


Artes, memória e espaços
antigos protagonistas continuam a doer, agora, porque são cutucadas por um “sis-
tema racializado de controle social”9.
Além de ter cumprido-se explicitamente pela lógica da escravidão, esse siste-
ma prisional se estabelce com o Código Criminal do Império do Brasil em 1830,
que mantém um tratamento diferenciado nas penas dos negros e brancos e entre
negros libertos e negros escravizados10. A reformulação nas leis criminais do Bra-
sil republicano não alterou o cárater sistêmico de inferiorização do negro, pelo
contrário, definiu outras políticas de regramentos a vida do negro na sociedade
brasileira. Dentre os decretos lançado com intuito criminalizante, há o nº 145 de
11 de junho de 1893 que determinava a prisão “correcional” de “mendigos válidos,
vagabundos ou vadios, capoeiras e desordeiros” em colônias fundadas pela União
ou pelos Estados (FLAUZINA, 2006, p. 68)11. Apesar do salto histórico, é perceptível
que o poder sobre o corpo negro continou - e continua - no âmbito criminal com
a Lei de Drogas de 200612 que atua como um mecanismo de reorganização desse
sistema criminalizador da população negra para a manutenção de hierarquias ra-
ciais (BORGES, 2017). O caráter simbólico de representação do negro como violen-
to, agressivo, suspeito nutriu o medo e a desconfiança que atravessaram os séculos
de escravização e intensificaran-se nos anos de liberdade.
A escravidão não é o lugar de origem das pessoas negras. Da mesma forma, os
estigmas que aprisionam a gente negra também não lhes pertencem, a figura do
negro suspeito é criada a partir da perspectiva do branco, esse lugar nunca nos
coube. Precisamos exercitar a capacidade de pensar o passado da gente negra a
partir da experiência de liberdade. Nas últimas décadas, uma série de intelectuais
apresentam o negro como agente de suas lutas por igualdade e cidadania, desde
antes da Abolição13, discurso presente nos ritmos e rimas de Baco Exú do Blues
que ao denunciar o estereótipo de uma identidade bandida sobre a imagem dos
homens negros assume a intelectualidade do seu rap.

9 Pensamento da advogada norte-americana Michelle Alexander, descrito no livro Encarcera-


mento em Massa da pesquisadora Juliana Borges.
10 Conforme o Art. 14 parágrafo 6º e Art. 60 estabelecem será permitido que negros escra-
vizados recebam punições fisícas e sejam devolvidos a seu senhores. Código Criminal do Império do
Brasil. Sanciona Lei de 16 de dezembro de 1830. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/lim/lim-16-12-1830.htm Acesso em 17 de out. 2020.
11 Fica a observação o fim da escravidão negou a população negra qualquer política pública
que garantisse controle territorial ou possibilidade de ascenção trabalhista, por conta da política de
branqueamento que impulsionou a imigração e transição de mão de obra.
12 Partindo da análise apresentada pela pesquisadora Juliana Borges, é possível perceber que
após a aprovação da Lei que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, população
carcerária negra - feminina e masculina - teve um aumento alarmante. Tráfico de drogas e roubo são
a maioria dos atos infracionais, que acometem a população negra jovem do Brasil “[...] e os argumen-
tos apresentados não diferem: vulnerabilidades sociais, necessidade de sustento dos filhos, desestru-
turação familiar, violência e abuso doméstico-sexual”(BORGES, 2017, p. 21).
13 Entre os vários trabalhos existentes, podem ser citados: Pinto (2014), Rios e Mattos (2004),
Albuquerque (2009), Chalhoub (1990) e a escrevivência de Conceição Evaristo.

374 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
[...]Eles querem um preto com arma pra cima. Num clipe na fa-
vela gritando "cocaína".
Querem que nossa pele seja a pele do crime [...]

Esses versos retirados da música Bluesman, transmitem como o racismo perpe-


tua-se, justamente, por criar um sistema de ideias que torna plausível à sociedade
justificar que existem lugares para negros e lugares para brancos, sem causar ne-
nhum incômodo. O lugar social que a espera dos homens negros no Brasil é o de
corpos projetados para violência, corpos vilipendiados, suspeitos. Esta estampa do
medo na pele de homens negros é fruto da estrutura racista que “fornece o senti-
do, a lógica e a tecnologia para reprodução das formas de desiguladade e violência
que moldam a vida social contemporânea”(RIBEIRO apud ALMEIDA, 2019, p.16).

Negro correndo da polícia com tênis caro. Tipo Usain Bolt de


Puma não paro.
Correndo mais que os carros. Eu não fui feito do barro.
Pisando no céu enquanto eles perguntam: Como esse negro não
cai? [...]

Por conseguinte, ao olhar para a letra da música Minotauro de Borges é per-


ceptível que Baco e sua arte, imbuída de ações políticas, confronta os projetos
sistemáticos que esperam que esse negro caia. É substancialmente uma fala de
exaustão a um arranjo que está acostumado a suspeitar de corpos negros e cei-
far suas vidas, mantendo-se impunes. A música e a arte são conjuntos simbólicos
imprescindíveis na visibilidade e na luta da gente negra. Funcionam como o meio
livre, onde a intelectualidade é exercitada, conforme destaca Toni Morrison: “Meu
paralelo é sempre a música porque todas as estratégias de arte estão aí presentes.
Toda a complexidade, toda a disciplina. Todo o trabalho deve passar por improvisa-
ção de modo a parecer que você jamais tocou nele.” (1993, p.175-82 apud. GILROY,
2012, p. 167)
Imaginemos um cenário contemporâneo, com enredo principal composto por
personagens masculinos. O elemento central da diferença entre esses homens é
a cor. O branco patriarcal hegemônico14 detêm o poder de construir às normas de
funcionamento desta sociedade, incluindo aspectos da subjetividades das pessoas.
Dentre esses, está estabelecido a virilidade15 como característica central da masculi-

14 Há diferentes masculinidades coabitantes na sociedade moderna. Homens brancos,


heterossexuais de classe social alta, configuram uma posição hegemônica, que na cultura ocidental,
ocupam o topo das relações de poder e asseguram a perpetuação do patriarcado. CONNELL, R. MES-
SERSCHMIDT, J. Masculinidade hegemônica: repensando o conceito. Estudos Feministas, v. 21, n.1.
Florianópolis, 2013, pp. 241-282.
15 Segundo as contribuições de Henrique Restier, no duelo de masculinidades, um eunuco so-
cial é um homem despojado de valores viris. “Um homem desvirilizado seria aquele homem incapaz,
covarde, frágil, dependente, submisso, imaturo etc. Seu oposto, o homem viril, teria qualidade como:
segurança, força física e moral, [...]responsabilidade, independência, respeito, dentre outros atribu-
tos.” (RESTIER, 2019, p.38)

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 375


Artes, memória e espaços
nidade. Ser viril é destituir-se da fraqueza, da fragilidade e do choro. Ser desviriliza-
do implica em perder no duelo das masculinidades. Nessa história, homens bran-
cos utilizaram do seu recurso de poder para criar representações sobre os corpos
que coexistem nesse espaço social, podendo remodelá-las a qualquer tempo, são,
portanto, a expressão máxima de valor humano. Os homens negros conseguem go-
zar da virilidade, mas, mesmo assim, tem o exercício de sua masculinidade privado
de reconhecimento pleno. Está inscrito em seus corpos negros a ferramenta para
afirmar sua virilidade, como um corpo-para-o-trabalho, um corpo hiperssexualiza-
do, um corpo que quando parado é suspeito e em movimento é culpado. Os ho-
mens negros trilharam o caminho que as versões hegemônicas de masculinidade
impuseram na tentativa de igualar-se ao branco-viril. Tamanha foi sua frustração
ao perceber que o reconhecimento não chegou. Insatisfeitos, entoaram no rap, um
ritmo originalmente subalterno, seu descontentamento. Para isso, utilizaram dos
sentimentos que reiteravam sua virilidade, a raiva e a revolta. Esses versos-revolta
ressoaram contra as tiranias de um sistema construído para afirmar as relações de
poder, responsável por sustentar espaços de desigualdades social. Estranhamente,
foram ouvidos, reproduzidos e reeinterpretados por um negro homem, com nome
homônimo aos Deuses, que ao reler a história recém descrita, descobriu que sua
masculinidade é mais forte quando expressa versos-ternura além da raiva e revol-
ta. Ele guardou o rap-revolta e, em um movimento de coragem, cantou para seus
irmãos o rap de afeto. Baco Exu do Blues em entrevista com Lázaro Ramos, diz:
“Você está dentro de uma sociedade que vê o preto como violento. Aí, eu tenho
que ser violento nas minhas letras. Se eu deixo de ser violento nas minhas letras,
automaticamente eu não estou mais fazendo música pra preto”. (CANAL BRASIL,
2019, 5m40s)
Apesar do peso das estruturas sociais, Bluesman veio para reivindicar o direito
das masculinidade negras à afetividade16. Baco Exu do Blues exercitou seu papel de
mensageiro, fazendo jus a Exu, propôs com sua arte a “liberdade das caixinhas[...]
não ser o que as pessoas esperam que você seja”(PROVOCAÇÕES, 2019, 10m.) Pro-
põe, como sugere Stuart Hall (2016), a produção de significados sobre si mesmos.
A produção artística de Baco rompe com a ideia de reprodução automática de uma
imagem submissa criada sobre os homens negros, e faz isso libertando o choro
engasgado na garganta dessas masculinidades negras. Entoou em seu canto o sen-
timento e a fragilidade17 como constitutivos de identidades negras.

16 Rappers negros brasileiros que falam de de sentimentos não é uma exclusividade de Baco
Exu do Blues, existem outros que o fazem, e legitimam as hipóteses deste trabalho. A escolha por
Baco Exú do Blues parte de uma identificação pessoal com a proposta artística do rapper que se con-
cilia com a proposta política que esta pesquisa deseja transmitir.
17 A ideia de fragilidade reinvindica um direito político e vai de encontro a reprodução de uma
ideia da masculinidade hegemônica ocidental, apresentada por Mara Vigoya “Assim, o homem negro
pode ser representado como primitivo, dócil e afável, porque não representa uma ameaça para a
masculinidade hegemônica ocidental (poderosa, autoritária e cheia de iniciativa)[...]”(2018, p. 108).

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Artes, memória e espaços
Eu amo o céu com a cor mais quente
Eu tenho a cor do meu povo, a cor da minha gente Jovem Bas-
quiat, meu mundo é diferente
Eu sou um dos poucos que não esconde o que sente[...]

A singularidade de Bluesman está no estranhamento, porque temos um homem


negro resgatando em suas rimas o direto à afetividade. Não um estranhamento aos
homens negros, já que o sentimento sempre fez parte de suas subjetividades. Mas
sim, um estranhamento para quem está acostumado a ouvir um rap de homens
negros caracterizado com falas de raiva e revolta e a olhar para eles como símbolo
de agressividade - sexual ou não. Está sendo proposto um movimento de reapro-
priação da subjetividade negra como plataforma política revolucionária, um corpo
negro sentimentalizado que não esconde o que sente.
Exteriorizar emoções não é tarefa fácil as masculinidades, quem dirá às mascu-
linidades negras. Nesse seguimento, a questão do sentimento e do afeto torna-se
política para os homens negros. É político, porque resgata a humanidade negada
as masculinidades negras e permite enxergarmos além do corpo-para-o-trabalho,
do corpo sexuado, do corpo suspeito. E caso algum leitor esteja se perguntando se
esta é uma afirmação que homens brancos não possuem afetividade, diremos que
não. Afinal, a gente negra parte da premissa que cor de pele não destitui o caráter
humano. Portanto, está pressuposto que homens brancos possuem e demonstram
afetividade, mas esse mecanismo nas mãos de quem está no topo da relações de
poder não pode significar uma ação política. Essa subjetividade não pode ser uti-
lizada para fixá-los em uma posição que já ocupam, a de universais. Agora, essa
subjetividade pode e deve ser usada para mostrar que as masculinidades negras
estão construindo, na margem, um espaço de liberdade. “Estar na margem é fazer
parte de um todo, mas fora do corpo principal” (hooks, 2019, p. 23). Isso é resultado
de uma tarefa coletiva, com papel central do feminismo negro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
É fundamental perceber que Baco Exu do Blues constrói um espaço de liberda-
de a partir da sua experiência, e a interseccionalidade é a ferramenta que possi-
bilita uma análise dessas subjetividades de uma perspectiva sensível às vivências
dos homens negros no Brasil. Nesse sentido, esse texto é uma contribuição à his-
toriografia das Masculinidades Negras, já que um dos objetivos do campo histo-
riográfico ao estudar a construção das masculinidades, é revelar subjetividades
(SANTOS, 2001). Embora ainda esteja em desenvolvimento, essa análise mostra
que sujeitos negros são capazes de pensar a si mesmos, utilizando um campo em
disputa, mas favorável a expressão de subjetividades. Baco encontrou no Rap um
meio de restituir aos homens negros, por meio da sua voz, o direito ao afeto, o di-
reito à fragilidade e ao fazê-lo ele colabora para o questionamento geral da noção
de masculinidade.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 377


Artes, memória e espaços
Dessa forma, olhar para o rap a partir das masculinidades negras consiste em
encontrar elementos que permeiam a vida cotidiana e construir uma análise re-
conhecendo as vivências e os espaços de luta, de muitas vidas que incomodam as
estruturas de opressão. E, fundamentalmente, perceber que o questionamento às
representações impostas e a construção de significados próprios sugere um dese-
quilíbrio nas relações de poder. Estamos, cada vez mais demonstrando as diversas
possibilidades de ser homem negro.

REFERÊNCIAS

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youtube.com/watch?v=-xFz8zZo-Dw. Acesso em: 8 jun. 2020.

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www.youtube.com/playlist?list=PLvDieTZVqJZWokopUaYQ7FTvary4WkiJU.Acesso em: 8
jun. 2020.

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(29m16s). Disponível em: https://tvcultura.com.br/videos/71657_baco-exu-do-blues-
provocacoes.html. Acesso em: 8 jun. 2020.

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em: https://www.youtube.com/watch?v=ghzaX-NteLI&t=1140s. Acesso em: 8 jun. 2020

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378 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


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poder na Nossa América. Papéis selvagens, Rio de Janeiro, 2018.

AUTORIA
Matheus Eduardo Borsa
Universidade Federal da Fronteira Sul - UFFS campus Chapecó
E-mail: matheusborsa@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0259259532957175

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 379


Artes, memória e espaços
RAÇA E GÊNERO: A MÚSICA COMO
INSTRUMENTO DE RESISTÊNCIA
DAS MULHERES NEGRAS
Eloara dos Santos Cotrim
Delton Aparecido Felipe

INTRODUÇÃO
A possibilidade de utilizar documentos musicais como fontes históricas trouxe
para as discussões acadêmicas temas e perspectivas que até o século XX não eram
possíveis de serem discutidos. Visto que, a maioria dos documentos históricos eram
produzidos por homens, brancos, de classe média, entre outras características dos
sujeitos que eram lidos como normativos. Por isso, a maioria dos textos que ver-
sam sobre raça e gênero escritos por estes indivíduos, utilizam as mulheres negras
como objeto de estudo. Mas, utilizar fontes produzidas e protagonizadas por mu-
lheres negras traz ao estudo subjetividades que só elas poderiam acrescentar ao
relato de suas próprias histórias.
No campo histórico, mulheres negras foram e continuam sendo protagonistas de
grandes revoluções e a música foi somente um dos instrumentos que elas utiliza-
ram como estratégias para defender suas causas. A história da música negra, com
foco no Brasil e nos Estados Unidos, revela aspectos da constituição do movimento
negro relacionada com a história de construção da identidade desses países. Essa
história é importante para entender onde o rap feminino negro se encaixa como
parte de reivindicação de direitos dentro do movimento negro. Assim como, uma
peça de ilustração das narrativas dessas mulheres negras em suas diferentes posi-
ções sociais. Assim, o texto trará questões teóricas e práticas sobre como a música
pode ser um caminho para que indivíduos sejam protagonistas de suas próprias
histórias.

APORTE TEÓRICO
Quando a música é produzida com a intenção de ser um meio de percepção das
mobilizações sociais, colabora para a compreensão da história, subjetividades e
identidades de um determinado grupo. Se torna uma expressão cultural ancorada
a uma memória coletiva podendo ser um instrumento de emancipação e tradu-
ção de processos identitários desses grupos de indivíduos historicamente subordi-
nados. Contribui também, para a compreensão das múltiplas temporalidades por
meio da percepção das mudanças, rupturas, simultaneidades, transformações, re-
corrências e permanências. Sendo assim, a música pode registrar uma orientação

380 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
no tempo e no espaço como relata diversos estudos no campo dos Estudos Cultu-
rais e História Cultural.

PROBLEMA DE PESQUISA (E/OU HIPÓTESE E/OU OBJETIVOS)


Os movimentos de valorização do corpo negro e de suas vivências atingiram
diversos espaços, inclusive a música. Especificamente no campo musical, mulheres
negras fazem história, como pioneiras e criadoras de diversos ritmos. A exemplo
disso temos Sister Rosetta (1915-1973), nome artístico da Rosetta Tharpe, mulher
negra nascida em Cotton Plant, Arkansas nos Estados Unidos, filha de apanhadores
de algodão e criadora do Rock and Roll. Sister Rosetta tinha um programa na rádio
nos anos 1930 e 1940 e é considerada a madrinha do Rock and Roll, ritmo que nas-
ceu a partir das transformações do Blues.
A partir de 1940, o Blues eletrificado e dançante foi o principal componente
para a nova linguagem musical do Rock and Roll. Sister Rosetta, foi influenciada
pelo Jazz e pelo Blues que fervilhavam em Chicago e os misturava com o Gospel. O
que, juntamente com suas habilidades na guitarra, tornaram-na bastante popular.
Rosetta era uma das poucas mulheres negras que tocavam guitarra na década de
20 do século XX.
Nesse período a população negra estadunidense passava por segregação racial,
linchamentos, violência policial e dificuldades para conseguir emprego, estudo e
serviços públicos. Foi a partir desse período que as organizações políticas antir-
racistas tomaram força. Valorizando as tradições afro-americanas, lutavam por li-
berdade, direitos civis, econômicos e políticos através de mensagens e discursos
oficiais ou populares. Os movimentos eram organizados por mulheres e homens
negros dos estados do Sul e do Norte que utilizavam a palavra “liberdade” como ex-
pressão de luta por igualdade, reconhecimento, direitos e oportunidades. O ápice
das mobilizações foi entre os meses de junho e agosto de 1963 quando o Departa-
mento da Justiça registrou mil quatrocentas e doze manifestações distintas e mais
de quinze mil prisões devido a protestos ocorridos em cento e oitenta e seis cidades
do país. E foi nessa época, em agosto de 1963 que ocorreu a passeata conhecida
como Marcha de Washington que levou mais de duzentas mil pessoas a ouvirem o
famoso discurso “Eu tenho um sonho” de Martin Luther King Jr (1929-1968).
Nesse contexto de luta do movimento negro estadunidense, podemos tratar
da luta do movimento negro brasileiro que apesar do contexto diferente teve na
música uma estratégia essencial para difundir suas reivindicações e histórias. Para
entender o movimento negro brasileiro e como ele se deu por meio da música, é
preciso compreender o processo de construção da identidade que representaria a
nação brasileira iniciado após os processos de independência do país. Após se sepa-
rar de Portugal e se tornar independente em 7 de setembro de 1822, o país iniciou
o projeto da sua imagem enquanto nação, da imagem do povo brasileiro. Com a
abolição da escravidão em 13 de maio de 1888, cuja motivação foi apenas econô-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 381


Artes, memória e espaços
mica, contribuindo assim para a manutenção do povo negro como um povo margi-
nalizado, desumanizado e sem assistência de direitos civis. Com a proclamação da
República em 15 de novembro de 1889, a preocupação em criar uma identificação
nacional que representasse a autonomia vitalícia do país cresceu. E além das altera-
ções na bandeira e no hino nacional, houve a tentativa mais radical de estabelecer a
identidade e o caráter da nação brasileira.
Assim como nos Estados Unidos o Blues foi o gênero que abriu portas para os
próximos ritmos. No Brasil nosso “Blues” foi o Samba. O Samba surgiu no país, prin-
cipalmente na região do Rio de Janeiro, como uma música dos negros escravizados
que também fazia parte dos rituais religiosos de matriz africana. A gênese desse
gênero musical estava no batuque africano, mas com uma feição urbana que o fez
se alastrar para fora dos redutos onde era originalmente produzido. A partir das
mudanças sociais, políticas e econômicas ocorridas no país a partir da década de
1930, após ser apropriado pela branquitude, o Samba deixou de ser um represen-
tante de “música preta” e passou a ser representante da “música brasileira”, sendo
utilizado para alimentar as ideias de nacionalidade e do mito da democracia racial.
Nos anos 1970, a percepção de que a inclusão de elementos da cultura negra
naquilo que se convencionou chamar “cultura brasileira” não teve como corres-
pondência a inclusão efetiva dentro dessa nacionalidade dos grupos negros e mes-
tiços. Pelo contrário, fez com que essa população, em especial os jovens, passas-
sem a procurar uma nova identidade que lhes correspondesse de modo integral
e não parcial. Contrariando assim a proposta desenvolvimentista dos anos 1950 e
1960 que construía a ideia de um país justo que possuía uma desigualdade social e
não racial.
Em Salvador (BA), cidade com a maior população negra fora do continente afri-
cano, a cultura negra sempre foi resistente e preservada. Desde os rituais religiosos
até os ritmos musicais ligados à essa religião. E é nesse território que surge um dos
mais fortes focos de reiteração dessa cultura ancestral africana e resgate de suas
matrizes culturais. Neste momento surge também, os blocos de carnaval como o
Olodum, em 1980, e o Axé Music.
Além dos ritmos baianos, outros movimentos subversivos se deram através da
música preta brasileira com o pagode, o funk e o hip-hop. Sendo assim, do samba
que se embranqueceu ao pagode que fez questão de ser preto, algo mudou em
relação a música popular, que deixou de ter uma preocupação em ser hegemoni-
camente “brasileira” para poder ser uma música que se faz no Brasil com músicos
que têm uma matriz cultural que remete ao continente africano e todos os povos
pretos espalhados pelo mundo.
O Hip-Hop, gênero musical que é o foco principal desse trabalho, acima de tudo
é um movimento cultural e não apenas um estilo de música. Segundo Ana Lucia
Silva Souza (2009), uma mulher negra pós doutoranda em Linguística Aplicada pela
Universidade de Brasília, o Hip-Hop, para muito além da expressão inglesa hip -ba-
lançar- e hop -quadril-, pode ser compreendido como um movimento social juvenil

382 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
urbano enraizado ao segmento populacional de baixo poder aquisitivo, a maioria
negra e jovem. Que historicamente ganhou força nos Estados Unidos a partir do
final dos anos 1970 e posteriormente se espalhou pelas grandes metrópoles do
mundo. Ainda hoje o universo Hip-Hop é marcado pela reflexão e crítica que faz
em relação às desigualdades sociais e raciais por meio da poesia, gestos, falas, lei-
turas, escritas e imagens que tomam forma pela expressividade de quatro figuras
artísticas: mestre de cerimônia -MC; disc-jóquei -DJ; dançarino ou dançarina -b.boy
ou b.girl e o grafiteiro e a grafiteira. É nessa cena que se encontra Mc Sofia e as que
estão nesse movimento junto com ela como Karol Conká, Tássia Reis, Drik Barbosa
e Stefanie.
Karol Conká1, estourou em 2015 com a música “Tombei” em parceria com o Tro-
pkillaz, grande sucesso na época, e grande hit ainda nos dias de hoje. Além da Karol
Conká com “Já que é pra tombar, tombei”, Tássia Reis2, também tem grandes letras
de empoderamento negro e feminino. A letra de “Preta D+” da Tássia Reis, além de
se tratar de uma música de empoderamento feminino negro e aceitação, utiliza o
que as mulheres negras vivenciam em relação às tentativas de emprego e relacio-
namentos amorosos para retratar suas experiências e sentimentos. Essa música é
um exemplo de uma das principais características do rap: ressignificar termos e
conceitos que possuem um tom pejorativo. Assim, “Preta demais” deixa de ser
uma ofensa e passa a ser uma autoafirmação de orgulho e empoderamento. É im-
portante destacar que Tássia Reis possui um corpo negro e gordo e isso influencia
suas letras assim como influencia quem as escuta, fazendo com que suas músicas
representem mulheres com vivências parecidas com as suas.
Drik Barbosa3, em seu álbum “Espelho” (2018), uma música com participação da
Stefanie. A música que leva o título do álbum, “Espelho”, cuja composição, além
das duas, inclui Emicida4 e Grou5, assim como em “Preta D+” de Tássia Reis, retrata
a vivência de duas mulheres negras, suas lutas e seus medos. Tudo o que passaram
para chegar onde chegaram e as lições que elas tiraram disso. Nestas músicas as

1 Karol Conka, nascida em Curitiba no dia 1 de janeiro de 1987 (idade 33 anos) é uma rapper,
cantora, produtora, apresentadora e atriz brasileira conhecida por seus hits de empoderamento femi-
nino.
2 Tássia Reis, nome artístico de Tássia dos Reis Santos nascida em 16 de agosto de 1989 (ida-
de 31 anos) em Jacareí, São Paulo, é uma rapper, cantora e compositora brasileira. Iniciou a carreira
com o EP "Tássia Reis" em 2014 e além dele possui o álbum de estreia "Outra Esfera" de 2016
3 Jovem rapper que desenvolveu as suas habilidades de freestyle na Batalha do Santa Cruz,
berço do rap contemporâneo. Nascida em São Paulo, em 1992, Drik (pronuncia-se Drika) compõe
desde os 14 anos de idade. Por ir além das rimas, foi convidada para cantar o refrão de alguns raps.
Em 2013, ao lado de Emicida, participou da música “Aos Olhos de uma Criança”, da trilha do filme “O
Menino e o Mundo” – um longa-metragem de animação feita por Alê Abreu. Foi em 2018, contudo,
que a cantora e compositora deu o passo mais sólido da sua carreira. Ao lançar o EP Espelho, que
transita entre o rap e o R&B.
4 Leandro Roque de Oliveira, o famoso Emicida, é um rapper, cantor e compositor brasilei-
ro. Nascido em 17 de agosto de 1985 (idade 35 anos), São Paulo, São Paulo. É considerado uma das
maiores revelações do hip hop do Brasil da década de 2000. O nome "Emicida" é uma fusão das
palavras "MC" e "homicida.
5 Músico que já participou dos dois álbuns de Drik Barbosa, até o momento.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 383


Artes, memória e espaços
cantoras falam também de amor. E mulheres negras falando sobre amor é sempre
revolucionário. “Muitas mulheres negras sentem que em suas vidas existe pouco ou
nenhum amor. Essa é uma das nossas verdades privadas que raramente é discuti-
da em público” (Bell Hooks, 2000, p.188). Tanto “Preta D+”, quanto “Espelho” são
músicas que retratam o que Bell Hooks ressalta no trecho de “Vivendo de Amor”.
Nessa obra, Bell Hooks aborda questões acerca da objetificação e hiper sexualiza-
ção do corpo negro que fazem com que ele seja visto como um objeto sexual.
A desumanização das mulheres negras faz com que elas sejam vistas como for-
tes e resistentes o tempo todo e consequentemente privadas de afeto, atenção,
cuidado, ajuda e amor. Por isso essas músicas trazem trechos como “A gente pode
se pegar, mas, ó, você cria expectativa demais, além do mais, eu amo a Becky do
cabelo bom” e “Nunca fui de ter dó, sempre me curei só, perdi as contas de quan-
tas venci com meu suor” que relatam tanto o preterimento quanto a “Solidão da
Mulher Negra”6, termo que aborda a solidão da mulher negra na dimensão afeti-
vo- sexual, tendo como eixo central seu preterimento, enquanto pretendente ao
mercado matrimonial, pelo parceiro da mesma etnia.

[…] Mais que qualquer grupo de mulheres nesta sociedade, as


negras têm sido consideradas ‘só corpo, sem mente’. A utilização
de corpos femininos negros na escravidão como incubadoras
para a geração de outros escravos era a exemplificação prática
da ideia de que as ‘mulheres desregradas’ deviam ser controla-
das. Para justificar a exploração masculina branca e o estupro das
negras durante a escravidão, a cultura branca teve que produzir
uma iconografia de corpos de negras que insistia em representá-
-las como altamente dotadas de sexo, a perfeita encarnação de
um erotismo primitivo e desenfreado. (HOOKS, 1995, p. 469).

Já a Mc Soffia representa na cena do rap as meninas negras mais jovens e possui


uma subjetividade diferente em sua narrativa. Nascida em São Paulo no dia 22 de
fevereiro de 2004, ela tem atualmente 16 anos. Desde os seus 12 anos atua no uni-
verso da música, quando lançou o single “Menina Pretinha” (2016), que fez grande
sucesso. Sua trajetória como artista lhe permite atualmente ter uma carreira só-
lida, estável e próspera. Já fez capa de Revista, grandes campanhas publicitárias,
participações em programas de TV e uma viagem internacional de grande importân-
cia onde visitou o festival Afropunk. Mc Soffia e suas músicas são inclusive citadas
em livros didáticos e planos de aula. Sua agente é sua mãe, Kamilah Pimentel (10
de dezembro de 1985, 35 anos) que teve Soffia Gomes da Rocha Gregório Correia,
nome verdadeiro da Mc Soffia, com 17 anos. Sendo mulher negra e mãe solo, Ka-
millah agencia a carreira de sua filha e trabalha como produtora cultural, além de
também fazer parte das produções das músicas da Mc Soffia.

6 ALVES DA SILVA SOUZA, Claudete. A solidão da mulher negra – sua subjetividade e seu
preterimento pelo homem negro na cidade de São Paulo. São Paulo, 2008.

384 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
Com “Menina Pretinha” Mc Soffia já chegou no rap mostrando qual era seu
propósito: naturalizar a beleza do corpo negro. Ela consegue fazer isso tanto com
a letra e ritmo quanto com o clipe que traz várias meninas negras de várias idades
com seus crespos, seus lenços e seus turbantes.

METODOLOGIA
Segundo Bell Hooks7, o protagonismo das mulheres negras é essencial para a
construção de uma subjetividade negra feminina. Para que, sobre as experiências
de luta das mulheres negras, hajam registros para além da dor e da falta. Pensar
em termos plurais é a saída para que as identidades dessas mulheres sejam recu-
peradas fora de um bloco monolítico. As definições de um novo retrato das mulhe-
res negras resultam de imagens que são constantemente reatualizadas nas narra-
tivas ficcionais contemporâneas, sejam escritas ou visuais. Assim, o texto mostra
como as mulheres negras utilizam o rap para questionar tanto o movimento negro
quanto o feminismo e reivindicam através dele suas próprias pautas e direitos.

RESULTADOS E ANÁLISE
Diante desses vários exemplos de mulheres na cena do rap, cada uma com seu
corpo, cada uma com sua idade e trajetória, umas produzindo álbuns, outras cons-
truindo carreiras de longa data apenas com singles. Mas, todas elas têm uma men-
sagem em comum nas suas produções: a importância de levantar a autoestima
de mulheres negras. Assim, cada rapper negra contará uma história, trazendo as
subjetividades de onde nasceram, como cresceram e foram socializadas no mun-
do. Bem como uma das principais bases do rap é não cantar o que não se vive, as
músicas do rap feminino negro, então, são uma das fontes históricas mais seguras
no que diz respeito à local de fala.

CONCLUSÕES (OU CONSIDERAÇÕES FINAIS)


Mais do que compor e cantar suas realidades, essas mulheres incitam uma ver-
dade que destoa do poder que geralmente rege a sociedade. A música funciona
como agente social que oferece aos seus ouvintes a proclamação de outra visão da
realidade, criando consensos e alimentando a esperança. Principalmente em mu-
lheres negras que se identificam com as letras das músicas e sentem que não estão
sozinhas.

7 Em “Mulheres Negras Revolucionárias: nos transformamos em sujeitas”, tema do terceiro


capítulo de “Olhares Negros – raça e representação” de Bell Hooks.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 385


Artes, memória e espaços
REFERÊNCIAS

ALVES DA SILVA SOUZA, Claudete. A solidão da mulher negra – sua subjetividade e seu
preterimento pelo homem negro na cidade de São Paulo. São Paulo, 2008.

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unicamp.br/handle/REPOSIP/269280>Acesso em: 17 de jul. 2020.

AUTORIA
Eloara dos Santos Cotrim
Universidade Estadual de Maringá
E-mail: eloara_santos@hotmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3571104607953197

386 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
A CÚMBIA NO PANAMÁ:
UMA TEORÍA SOBRE SUA ORIGEM

Nodier Alexander Casanova Camacho

La trajo em las
ancas la negra que
España envió a sus
colonias de allende
la mar,

y el dolor
callado de
su vida esclava
adurmió en el
ritmo del congo bailar.
(Cumbia, Isabella Illueca D.)

INTRODUÇÃO
A cumbia é uma dança e gênero musical que tem uma importância etnico-histo-
rico no Panamá e na Colombia. No entendo na maioria das investigações e publica-
ções especializadas durante o século XX e o presente, tem sido reconhecido como
gênero originário da Colombia; que dependendo da teoria, poderia ter nascido du-
rante a época prehispanica como ritual funerário dos indígenas Pocabuy na parte
alta do rio Magdalena ou como musica e dança de escravos africanos na cidade de
Cartagena de Indias por meio de fins da época colonial. Entretanto, alem da con-
trovérsia que existe em Colombia entre o caráter indígena ou africano da cumbia
em seu origem, estas teorias são insuficientes, porque não se aborda o fenómeno
da cumbia em sua totalidade, devido a que em seus estudos não se toma em conta
a cumbia cultivada no Panamá. É assim como internacionalmente até nos dias de
hoje, se tem definido a cumbia como um gênero musical colombiano, que a mea-
dos do século XX se dinfundio em toda a America, para se converter em um gênero
muito popular no continente americano.
Existem diferenças na percussão entre países, no caso colombiano existem 3
tambores:

1. Llamador: membranofone de couro animal e madeira, tensado com sistema de


cunha africano que marca o compasso.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 387


Artes, memória e espaços
2. Tambor alegre: membranofone de couro animal e madeira tensado com um
sistema de cunha africano que propõe a improvisação rítmica, variação tónica e a
sua vez marca o ritmo característico da cumbia.
3. Tambora: bimembranofone de pele animal e madeira atada com cordas, impro-
visa com batidas no couro e marca a linha de tempo da cumbia batendo na madeira
do instrumento com baquetas.

No Panamá o numero de tambores na orquestra varia entre dois e quatro. To-


mando como paradigma a orquestra da cumbia de Chorrera, que é a mais parecida
a da Colombia, estaria composta por instrumentos musicais com nomes e funções
diferentes:

1. Caja: bimembranofone de couro animal e madeira, atado com cordas que mar-
ca o compasso.

2. Tambor cumbiero: membranofone de couro animal e madeira, tensado com um


sistema de cunha africano que propõe a improvisação rítmica, variação tónica e a
sua vez marca o ritmo característico da cumbia.

É evidente a ausência em Chorrera de um tambor de cunha como o llamador


colombiano que marca o compasso. Por outro lado o tambor cumbiero que a pesar
de ter a mesma função do tambor alegre colombiano, é um instrumento cons-
truido exclusivamente para interpretar a cumbia, diferente do tambor alegre que
é utilizado para interpretar uma multiplicidade de géneros e ritmos musicais na
Colombia.
No que diz a respeito dos instrumentos melódicos para a cumbia colombiana,
se propôs que foram a gaita aerofono de origem indígena e o millo ou pito atra-
vessado aerofono de origem ainda em discussão (indígena ou africano), os instru-
mentos melódicos iniciais da cumbia quem junto aos tambores de origem africa-
no, interpretavam peças eminentemente instrumentais que durante o século XX
foi agregado letra. Ao contrario no Panamá as investigações deu como resultado
que a cumbia iniciou cantada em versos junto a tambores de origem africano, que
posteriormente ao agregar instrumentos de cordas de origem europeia ( violões,
violinos e rabeles) se convertiram em peças eminentemente instrumentales.
Ao margem destas diferenças que não são menores comparto com o doutor
Edwin Pitre- Vázquez que o time-line da cumbia em ambos países nos permite
identificar que há um origem comum em um passado remoto. Assim seguindo a
estrutrua proposta por Kubik, Pitre-Vázquez gráfica este padrão de ambos países
numa gráfica de linha do tempo para 16 pulsos:

388 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
X.xxX.xxX.xxX.xx
(Pitre, 2008; 71)

A CUMBIA NO PANAMÁ E SUAS ORIGENS


Presenta ao redor de 17 variantes musicais levando em conta o mapeio realiza-
do pelo o doutor Edwin Pitre-Vázquez. Já falando da musica especificamente po-
derias ser definida como um gênero musical composta por um conjunto de ritmos
em um compasso de 2/4 e 6/8, que a nível nacional é cultivada com mais ou menos
20 instrumentos musicais.
As origens a datações históricas da presença da cumbia no Panamá estão por
revelar-se, no entanto alguma fonte documentais sugerem que sua presença po-
deria notificar da época colonial espanhola. Um primeiro indicio poderíamos en-
contrar-lo em uma viagem realizada a america por Basilio Hall, quem esteve de
visita na cidade do Panamá no dia 2 de fevereiro de 1822, e plasma sua memoria
na obra “Extracts from a journal written on the coasts of Chili, Peru and Mexico”.
Hall da testemunho de sua observação de uma dança de afro-descendentes escra-
vizados na cidade do Panamá, quem dançavam em grandes círculos1 e cantavam
uma canção que pediam por liberdade ao som de uma cascara de côco tocada com
uma madeira2.
É interessante porque o testemunha assegura que a festa ao ar livre, parecia
que foi realizada para celebrar uma ocasião especial, o que coincidiria em data com
o “tempe di soto” época em que o povo congo do Panamá celebra seu ritual desde
da época colonial, em que os maus chamados “amos” lhe davam licencia aos es-
cravizados para festejar. Para fechar essa ideia é importante sinalizar que a cumbia
faz parte do ritual, pelo menos desde o século XIX, segundo declarações da rainha
congo emérita Alejandrina Lam.3
A continuação passo a transcrever o relato de Basilio Hall:

“Como habia estado fuera de cama por dos noches, atendiendo


el pilotaje del barco, yo estaba agradecido de retirarme en una
hora temprana; pero no podía conciliar dormir por la bulla en

1 Até o momento a cumbia é a única dança de origem afrodescentende no Panamá que se


dança em circulos.
2 É muito provável que os tambores estivessem proibidos pelas autoridades eclesiasticas ou
pelos seus mau chamados “amos”.
3 Entrevista pessoal, janeiro de 2012.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 389


Artes, memória e espaços
la plaza, o gran plaza, ante las ventanas de mi cuarto. Despues
de gastar en vano tiempo esforzandome por ignorar el clamor,
me levanté y me senté en la ventana para descubrir, si podía,
qué estaba pasando. Era una noche de brillante luz de luna, y
la hierva, que había sido dejada crecer en el centro de la plaza,
estaba cubierta con grupos de negros esclavos, algunos senta-
dos, y otros bailando en grandes círculos, al sonido de música
ruda, hecha al golpear una concha de coco con un palo corto;
mientras toda la fiesta, tanto bailadores como los sentados, se
unía en una canción con unas altas, pero no discordantes voces.
Parecía ser algún festival de ellos, que habían montado para ce-
lebrar de esa manera.

Estaba medio decepcionado, al descubrir nada apropiado o


sencillo en su musica; al contrario, era extremadamente viva, y
parecía el resultado de un desenfrenado regocijo. Muchos de
los grupos estaban cantando, no sin falta de sabor y espíritu, la
canción patriótica del día, de largo conocimiento en los países
independientes del sur, pero solo recientemente importada en
el istmo. 4El tema central de la cancion era Libertad! Libertad!
Libertad! Pero yo concibo que ninguno de esos desdichados
retenia el menor significado de esas palabras, pero la repetían
simplemente por la concordancia con la música. Mientras es-
cuchaba, no obstante, a esos esclavos, cantando en alabanza a la
libertad, fue dificil no creer que una parte del sentimiento debía
ir con la música: sin embargo, yo creo, que era de otra forma, y
que esa animación con que ellos cantaban, se debía enteramen-
te al carácter de la canción por sí misma, y estaba ocurriendo al
ser el aire de moda del día. Había algo que no concordaba en los
sentimientos en todo esto; y era doloroso escuchar a esta pobre
gente cantando en elogio a la libertad adquirida por sus amos,
de cuyos pensamientos ciertamente ninguna idea respecto a
ella había cambiado para extenderle la misma bendición a sus
esclavos.” (Hall, 1824, p. 88-89) (Tradução nossa)

Outra fonte documental do principio do século XX baseada na oralidade, sinali-


za que a mediados da década de 30 do século XIX, Rita Vallarino De Obarrio presen-
ciou durante sua infância danças de cumbia realizadas pelos afro-descendentes es-
cravizados nas suas residências para sua diversão e de sua família. Estas vivencias
foram recorridas pela sua neta Matilde De Obarrio viúva de Mallet, publicando-las
em sua obra “Bosquejos de la vida colonial de Panamá” em 1915:

[...] Mamá Chepita la esclava más anciana, venía con su cande-


lero de plata al atardecer, cuando el ángelus era tocado en las
torres de la catedral, seguida por Clara, quien llevaba las tijeras
y el platillo, para recortar y encender todas las velas de la casa
[...] Cuando todas las luces estaban encendidas, la familia y las
esclavas favoritas se reunían en la sala […] Llegaban los amigos,

4 Autores argentinos como carlos aldao e De Monteagudo, tem a teoria que estavam cantan-
do o hino argentino.

390 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
se tocaba el piano y se cantaba las baladas francesas de moda
[...] Otras noches se dedicaban los señores a bailar, o se hacía
bailar a los esclavos, para diversión de los amos. [...] Esta for-
ma de diversión era la que más gustaba a los niños (entre ellos
Rita Vallarino de Obarrio), traídos los tambores pujadores y re-
picadores, Benancia comenzaba el canto y su clara y dulce voz
se elevaba sobre las otras [...] Otra danza de los esclavos era la
cumbia, para ello las parejas avanzaban al centro del cuarto, los
hombres frente a las mujeres, y gradualmente se formaba un
círculo de parejas. El paso del hombre era una especie de saltito
hacia atrás, mientras la mujer se deslizaba hacia él llevando una
vela encendida en la mano, sostenida con un gran pañuelo de
colores vivos. Los espectadores le daban más velas a las favo-
ritas, cuando el círculo pasaba frente a ellos, y a veces las mu-
chachas difícilmente podían sostener diez y ocho o más velas en
una mano, con el pañuelo alrededor de ellas para mantenerlas
unidas." (De Obarrio de Mallet, 1961. p. 26-28)

Avançando na historia nos encontramos com um baile observado por Theodore


Johnson, durante sua estadia noturna no povoado de Gorgona (desaparecido de-
baixo das aguas do canal de Panamá) em 1849, nesse caso o autor estadunidense
Lila Cheville, considera que a roda de dançarinos ao som dos tambores descrita no
relato de Johnson, manten os mesmo elementos da cumbia atual em Panamá:

“La noche anterior no quedamos en Gorgona, un gran fandango


se sobrevino; y escuchando los alegres batidos de los tambores
nos unimos al grupo. En frente de una de las casas estaban sen-
tados dos hombres, acariciando una monótona cadencia en los
tambores; hechos de árbol de cacao de la mitad del tamaño de
un cubo común; llevado entre las piernas; y otro con una pe-
queña guitarra española, quien hacía gala de la música universal
en estas ocasiones. Los fiesteros formaron una rueda, en el me-
dio de cuantos escogieran entrar al baile. Consiste generalmente
de un lento arrastrar, hasta que es excitada con el aguardiente,
subiendo de tono conforme la noche avanza, la mujer danza fu-
riosamente hasta sus favoritos entre los hombres, que entonces
están obligados a seguir el conjunto, todos unidos en una clase
de chillido nasal o canto” (Johnson, 1865, p. 37-38). (Tradução
nossa)

Internacionalmente se tem dito que a primeira vez na historia universal, que é


mencionado o termino cumbia segundo o investigador colombiano Egberto Ber-
múdez, é para o ano 1870 em uma fonte vinculada com Panamá (Bermúdez, 2008).
Entre a fonte reconhecida no país se tem como documento “Un viaje al Darién” do
viajante colombiano Ernesto Restrepo Tirado. Nesse relato o citado autor mencio-
na os géneros musicais de moda em Darién panamenho durante sua visita no ano
de 1887, e entre eles menciona a cumbia:

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 391


Artes, memória e espaços
“ […] Los habitantes del Darién son muy amigos de diversiones,
y más que todo del licor. Todo bautizo, el santo o cumpleaños de
un amigo, un buen negocio, la muerte de un niño, son pretextos
para bailes y borracheras. Los bailes generalmente, son públicos
y acompañados únicamente del monótono ruido de uno o más
tambores rústicos, la cumbia, el tamborillo y el pasito son los
más usuales.” (Restrepo, 1961, p. 66)

Finalmente para culminar as crónicas, Jorge Conte Porras em seu artigo “Fiesta
y miseria en el arrabal”, menciona a seguinte referencia sobre a cumbia na cidade
de Panamá, de recompilado nos arquivos do município, tomo 35, arquivo número
2, anotação de Genaro Pacheco de 21 de janeiro de 1895:

“[…] Pacheco dice que en Calidonia, El Granillo y en Santa Ana:


Se vende licor clandestino en las fiestas de esos lugares en don-
de las diversiones consisten en las llamadas cumbias y mejora-
nas.” (Conte Porras, 1985, p. 134)

TEORIAS PANAMENHAS SOBRE A ORIGEM DA CUMBIA


Com um foco localista também não se tem abordado a presença do gênero na
Colombia com muita profundidade. A maioria dos autores tem estabelecido que a
cumbia é de origem africano de uma maneira muito abstrata, em virtude que seus
formatos mais antigos são praticados por afro-descendentes. No entanto para o
presente estudo quisesse abordar as perspetivava de Narciso Garay, Manuel Fer-
nando Zárate e Dora Perez de Zárate.
A primeira obra na historia universal que estuda de maneira teórica a cumbia é
“Tradiciones y cantares de Panamá”, publicada em 1930 na Bélgica por Narciso Ga-
ray. Este autor estabelecia o origem africano da cumbia baseado em suas caracte-
rísticas musicais, ao respeito sinaliza "Por su ritmo cuadrado, exento de toda velei-
dad ternaria, no denota tener raíces rítmicas indo-europeas" (Garay, 1999, p.139)
Manuel Fernando Zárate localizou a origem da cumbia no Bunde por meios ana-
lógicos5 em seu livro “Tambor y Socavón” (Zárate, 1962, p. 147), esta posição foi
superada e alterada entre 1985 e 1998, por sua esposa Dora Pérez de Zárate; Pela
sua parte sinalizava que a cumbia era originaria de Panamá, baseada na antiga ló-
gica de investigação musical que estabelecia, que onde há mais desenvolvimento
e variedade de um gênero pode ser localizado sua origem (Pérez de Zárate, 1985).
No que diz respeito a cronicas, localizava que a cumbia tinha sua origem na Calen-
da, Chica o Fandango del século XVII, em virtude das semelhanças que tinham no
baile (Pérez de Zárate, 1998, p. 22). Apoiado essa teoria se poderia agregar que

5 Seguindo a hipótese do colombiano Manuel Zapata Olivella no artigo "¿El Bunde


antecesor de la Cumbia?", publicado o jornal El Tiempo, postado em 22 de outubro de
1961.

392 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
a palavra calenda estava vigente pelo menos até 1995 em Santa Fé, província de
Darién, onde tinham a conotação de ser “un canto o canto de indios” (Sánchez,
2013, p. 180)

EM DIREÇÃO A UMA NOVA TEORIA


SOBRE A ORIGEM DA CUMBIA: O CUMBÉ
O primeiro em dizer que a palavra cumbia podia vir o “cumbé” foi o panamenho
Narciso Garay nos seguintes términos: “La palabra cumbia tiene la misma raíz que
cumbé, baile de origen africano registrado por el diccionario de la lengua como
“baile de negros”. (Garay, 1999, p. 139)
Esta mesma relação é feita em 1933, pelo sacerdote católico Celestino Malgado
que ao estudar a cumbia em Panamá estabelece a seguinte origem:

“En el África occidental donde se tomaban a los esclavos que


se traían a las Américas para el laboreo de las minas y de las
fincas, existe la tribu combe, a la que las demás tribus llaman
cumbé. Estos tienen su baile y su canto propio llamado maringa
o madinga, que signfica círculo. Se baila en circulo poniendo en
medio a los músicos6 y consiste en dar vueltas al rededor hacien-
do los moviemientos coreográficos que requiera la música. La
maringa o baile cumbé es un baile binario muy parecido al mo-
vimiento de la habanera, pero suele consistir en una sola frase
musical que canta el coro, y una paráfrasis melódica que entona
uno solo que tenga buena voz.” (Mangado, 1933. p. 87)

O cumbé aprece reportado pelo dicionário de autoridades de 1729 como “baile


de negros que se hace al son de un tañido alegre, que se llama del mismo modo, y
consiste en muchos meneos de cuerpo a un lado y a otro”, assim mesmo na Espa-
nha há registros documentais de sua popularidade durante o século XVI (Canibano
em aranzadi, 2008). no entanto o cumbé (tambor, baile e musica) que existem na
atualidade Guiné equatorial foi introduzido a traves de Serra Leoa, por imigrantes
jamaicanos de origem étnico de ioruba, que foram enviados a África pelos ingleses
ao ir levantando-se paulatinamente a escravidão ao inicio do século XIX. Portanto
poderíamos concluir que o cumbé é uma dança e musica emoldurado no fenôme-
no de “ida y volta”.
Em Serra leoa foi descrita por volta de 1830, uma dança de mulheres, denomi-
nada koonken o koonking pelo o viajante Rankin. A antropóloga e musicista Isabela
de Aranzadi estabeleceu que mediante a relação que existia entre Freetown em
Serra Leoa com Guiné Equatorial, dita dança foi introduzida junto ao tambor do
mesmo nome a ilha de Bioco, ficando registros que por volta de 1976 existiam três

6 O mesmo acontece nas cumbias do noroeste e sudoeste do Panamá, que coincidem com o
território dos antigos quilombos de africanos que se rebelaram contra o poder espanhol.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 393


Artes, memória e espaços
associações de kunki em Malabo (capital de Guiné Equatorial). Nessa mesma ilha
ao norte, a etnia Bubi utilizou o tambor denominando-o kunké. Como consequên-
cia da relação entre Bioco e Ano-Bom, o cumbé foi introduzido nessa ultima onde
se conserva até os dias de hoje como támbor, baile e musica.
No que se diz a respeito do tambor cumbé é escrito como um membranofo-
ne de golpe direto que tem uma forma quadrada com um marco duplo (como o
pandeiro), tem pele de animal cravada (de cabra ou antílope de fritambo) e possui
quatro patas. Seu som é grave e mede em torno de 45 a 50 cm.
O cumbé no Ano-Bom geralmente se dança em casal como a cumbia, um fator
que é europeu segundo De Aranzadi, devido a que na África é mais comum que as
danças seja de caráter masculino ou feminino. O descreve como um baile suave
que começa com todas as pessoas em pé em um circulo em casal. Uma pessoa diri-
ge o baile e pode estar no centro ou em casal. Em um principio se localiza de forma
intercalada, homens e mulheres no circulo formado para iniciar o baile. O tambor
chamado cumbé, é tocado com as mãos até um momento nomeado “punt”, que é
marcado por outros tambores intervenientes (tambali). A partir desse momento o
cumbé é tocado também com os pés e as mulheres quebram a formação e come-
çam a dançar na frente dos homens ao som de uma musica mais viva e
enérgica. (Aranzadi, 2008, p. 145)
Ao detalhar todas essa particularidades respeito ao cumbé de Guiné Equatorial
não é difícil estabelecer pontes entre dita tradição e a cumbia. O primeiro que res-
salta é a denominação cumbé, que tem vigência em Panamá entre o povo Congo
do Caribe, tendo como significado “ritmo musical” (Sánchez, 2013, p. 119). Por
outro lado no povo de Parita, na província de Herrera aparece um antigo baile de
carnaval chamado “El Cumbembe” que na atualidade se encontra em decadência.
Descrições do século XX, o caracterizava como um baile de rua de raiz afro que
se acompanhava com uma caixa e tambores, que cantavam uma tonada que di-
zia cumbé-cumbé, sendo esse coro a razão do nome do baile (Álvarez e Gallardo,
1975, p. 227). mudando de tradição na La Villa da província de Los Santos, aparece
na dança do “Torito guapo” um movimento chamado “secumbé” que coincide com
o aceleramento dos instrumentos musicais participantes ( uma flauta chamada
pito e um tambor com sistema de tensão de cunha chamado repicador tocado com
uma madeira), onde os dançarinos homens passam a dançar em roda no sentido
contrario ao relógio (como a cumbia panamenha e o cumbé de Guiné Equatorial),
nesse sentido vemos que se evidencia uma coincidente formação coreográfica com
as manifestações relacionadas com as palavras cumbia e cumbé em Panamá.
No povo de Pedasí, província de Los Santos também existe outros datos que
nos permitem estabelecer pontes com o cumbé existente em África. Até principio
do século XX existiu uma antiga festa onde participavam indispensavelmente as
mulheres “da vida alegre” (forma cortes dos santenhos de chamar a prostituição),
evento que era animado com cumbia ao som de bandoneons e tambores com sis-
tema de tenção de cunhas. Esta antiga festa guarda em comum a noção de femi-

394 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
nidade existente em Serra Leoa, ademais coincidente mente se chamava “El cun-
que”, é dizer o mesmo sinonimo para referir-se ao cumbé (baile e tambor), usado
pela etnia Bubi ou Bioco e pelos criolos de Serra Leoa. Ademais existe uma cumbia
santenha sapateada chamada também “El cunque o Nalú” cujo origem ainda está
em discussão se é uma peça de origem desconhecido ou se é do violonista Clímaco
Batista.
Centrando nos instrumentos musicais é importante mencionar que em Panamá
existe o “Tambor cumbiero” com uma função igual que o cumbé de Guiné Equato-
rial. Comparte com esse ultimo a noção de exclusividade ao ser um tambor de uso
especifico para a cumbia, no entanto tem um desenho diferente que irei detalhar:
é um tambor membranofone tensado com sistema de cunhas. É confecionado com
madeira de árvore de uña de gato o lano; também pode ser utilizado o coração da
árvore de corotú. Respeito aos couros utilizados podem ser de veado, gato solo,
tigrillo, tamanduá, tigre e saino. Tem uma altura de 52 cm, 28 cm de base superior,
19 cm de base inferior, com um espessor da madeira de 4,5 cm.
Ao igual que no cumbé a pessoa que toca o tambor cumbiero é o que propõe a
aceleração do ritmo ( em colcheia em um compasso 2/4) e a realização de passos
especiais chamados “la vuelta”. Mudando de região se faz pertinente mencionar
que no povoado de Ocú, a cumbia é iniciada bailando em círculos com homens e
mulheres um atrás do outro, em uma formação exatamente igual a primeira fase
do dança o cumbé do Ano-Bom. Finalmente em Chorrera existe uma antiga dança
de carnaval chamada “La cumbia del toro galán”, que é bailada exclusivamente por
mulheres ao igual que o kunki de Serra Leoa, nessa dança igualmente há uma líder
que fica no centro que com uma lenço vermelho realiza jogos taurinos com uma
representação de madeira do animal.

CONCLUSÃO
A abordagem da origem da cumbia é complexa, se levamos em conta as carac-
terísticas diferenciadas que tem o gênero tanto em Panamá como em Colombia.
É evidente que a nível global Panamá há uma primazia dos elementos africanos
e europeus em sua musicalidade. Enquanto que no caso da Colombia são obser-
váveis notavelmente os elementos africanos e indiginas americanos. É importan-
te destacar que entre Panamá e Colombia não existe um repertório comum na
cumbia tradicional, os instrumentos musicais cumprem funções diferentes, e as
maiores semelhanças se encontram na dança de roda e no que Pitre definiu como
único time-line presente em ambos países. Uma possível origem no cumbé como
um baile-género que esteve presente na bacia do Caribe durante a época colonial,
explicaria porque a existência dessa semelhanças convivendo com estas diferenças
estéticas-musicais, que não são menores levando em conta que Panamá e Colom-
bia são países vizinhos.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 395


Artes, memória e espaços
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ILUSTRAÇÕES (FIGURAS E TABELAS)

FIGURA 1: CAJA E TAMBOR CUMBIERO

Fonte: Autoria própia, 2013.

FIGURA 2: RODA DE CUMBIA EM CHORRERA, PROVINCIA DE PANAMÁ OESTE

Fonte: Autoria própia, 2014.


FIGURA 3: PARTITURA MUSICAL DE NALÚ O EL CUNQUE

Fonte: Agustín Vergara.

AUTORIA
Nodier Alexander Casanova Camacho
E-mail: opennodo@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3089785123426262

398 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
PROJETO-DE-VIDA RACIONAL:
DISCURSO DECOLONIAL, PENSAMENTO LIMINAR
E POSSIBILIDADES DE EMANCIPAÇÃO A PARTIR
DO HIP HOP
Gabriel Chaves Amorim

Ao contrário do que você queria


Tô firmão tô na correria
[...]
É seu pesadelo tá de volta
No puro ódio cheio de revolta
Vou te apresentar o que você não conhece
Anote tudo vê se não esquece (509-E: 2000)
Salve pra Maira!
Um salve pro meu irmão,
mano Gustavo Chaves,
que um dia trouxe consigo da rua o rap e
me entregou como referências-de-vida.

INTRODUÇÃO
O Presente trabalho analisa as letras de rap, sem fazer distinção entre os das
antigas e os contemporâneos1. Como comunicação-da-vida, teoria do linguista
Valentim Volochinov (2017) que descreve a significação da linguagem em relação
com o cotidiano, o rap remonta a uma ética de vida filosófica. Há de se fazer um
outro trabalho evidenciando a repercussão do rap na sociedade brasileira, pois, o
presente texto concentra em explorar as filosofias e sociologias que emergem das
letras de rap, buscando conexão e similitudes. Os contextos de produção e as traje-
tórias dos artistas podem ser vistas em (FELIX, 2005).
O contexto de comunicação do rap “pioneiro”, do final da década de 1980, se
relaciona com a abertura política do país, instalação da democracia, que trouxe
a Constituição, inaugurando a década de 1990 como uma possibilidade de novas
existências e muitas outras fitas2. Nesse contexto os grupos de Hip Hop surgem

1 Existe uma discussão que vale a pena ser abordada em outro momento, em relação à
continuidade do Hip Hop, sobretudo do rap, como manifestação cultural e de denúncia das políticas
violentas do Estado. Aqui apostamos na hipótese da existência de continuidades, não obstante as
rupturas provocadas pelos movimentos de ostentação.
2 Uma fita ou situação como fala Erving Goffman sobre as formas de interação e definição de
situação. O básico para se definir uma situação (fita) é conhecer os contextos, mas, o inusitado deve
ser inquirido com a seguinte pergunta: O que está acontecendo aqui? O que está rolando? A partir
daí se começa a definição de situação, dos quadros básicos da experiência. Quando se define o que

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Artes, memória e espaços
como representantes das possibilidades de ação social3 significada através do rap,
principalmente em relação às juventudes negras e periféricas. Na gringa, surgiu
das pesquisas empíricas, de músicos que tinham como laboratório os bailes orga-
nizados pelo Afrika Bambaata. Chegou no Brasil numa época (Fim da década de
1970) em que a “sociedade brasileira começa a se rebelar contra a ditadura militar
(1964-1985), os “bailes black importam dos EUA um tipo de música que servia de
inspiração para a luta pela emancipação sociorracial e econômica” (FELIX, 2005,
p.71). O antropólogo, mano, João Batista de Jesus Felix, define de forma categórica
o que é o hip hop e seus elementos básicos:

O QUE É O HIP HOP: A nosso ver, é fundamental informar, [...]


ele é constituído por quatro elementos: o primeiro e o segundo
elementos são os DJ e o MC; a arte que eles desenvolvem é o rap,
que é o resultado da reunião de duas palavras rhythm and poe-
try (ritmo e poesia). Trata-se de um tipo de “canto falado”, cuja
base musical é tirada do manuseio de duas pick-ups, comanda-
das pelo DJ, que incrementa sua apresentação com a introdução
de efeitos sonoros denominados scratch, back to back, quick
cutting e mixagens. A outra personagem na realização do rap é o
MC, que é a pessoa que ‘fala’ ou canta a poesia. Aqui os elemen-
tos são as figuras do DJ e do MC e não a sua prática artística, no
caso o rap. Com o rap surgiu o break, o seu terceiro elemento,
que é uma forma de dança na qual os seus praticantes devem
demonstrar grande domínio de sua gestualidade [...] O grafite,
quarto elemento do Hip Hop (FELIX, 2005, p.62-64)

O respeito as manifestações prosseguiu, contudo, o rap se consolidou como


poesia ritmada4, com conteúdo de denúncia às políticas estatais de morte, também
de afirmação desta mesma população periférica, pobre e negra. “Os truta tudo
da hora [...] curte o RAP [...] vários manos que dançando break roda no meio da
gente, entende, é atraente. Isso é lição pra mim como inspiração importante sim.
Não é qualquer que segue em frente e dança um bom break” (SABOTAGE, 2000).

está acontecendo, se entende a participação do sujeito. A partir da definição de situação, tentar defi-
nir a probabilidade deste fenômeno possuir reciprocidade dos pontos de vista. A interculturalidade se
dá então nessa possibilidade de reciprocidade de pontos de vista.
3 As letras de rap, vistas como ações sociais, são táticas organizadas para o grupo (pessoas
periféricas), em equipe. Como define o Filósofo e Sociólogo George Herbert Mead, comunicação é
uma ação social que “[...] proporciona uma forma de comportamento na qual o organismo ou indiví-
duo pode se tornar um objeto para si mesmo” (MEAD, 1982, p.128). A juventude negra e periférica
tem nesta primeira década de noventa liberdade de criar, há possibilidade de ser aquilo que não
pode, devido restrições culturais e políticas. O Rap exerce essa potência conscientizadora, recupera-
dora da auto estima e produtora de subjetividades.
4 No Brasil, Os MC’s e os DJ’s ganharam mais autonomia “frente aos dois outros elementos
(break e grafite)”(FELIX,
2005, p.121).

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Artes, memória e espaços
PROJETOS-DE-VIDA5 COMO ENFRENTAMENTO ÀS POLÍTICAS
DE MORTE
As letras de rap são etnografias, aqui não são relacionadas de forma sincrônica,
isto é, considerando os contextos particulares das poesias e músicas. A análise foca
na interpretação de conteúdo e em seu conteúdo generalizável e formal6, o que se
estende à muitas realidades. São etnografias pois versam exclusivamente de um
ponto de vista êmico, interno ao grupo social. Como ressalta Eduardo Tadeu do
Facção Central na poesia Versos Sangrentos:

“Eu sou o sangue e o defunto no chão da favela, A oração da tia


sem comida, [...] O mendigo com a perna cheia de ferida. Conto
a história do traficante, do ladrão no banco [...] do moleque com
a testa no muro da Febem, do nordestino tomando sopa [...] do
corpo que boia decomposto no rio [...] É uma gota de sangue
em cada depoimento, infelizmente é rap violento, Eduardo, Dum
Dum, Eric 12, lamento, versos sangrentos (FACÇÃO CENTRAL,
1999)

A comunicação pode mediar a vida, melhor dizendo, as justificações, objetivos,


problemas e principalmente as referências-de-vida. Penso em uma comunicação-
-da-vida, isto é, uma comunicação onde os significados são próximos ou iguais, que
correspondem às mesmas realidades, remetem aos projetos-de-vida e de comuni-
dade. As histórias que o rap traz junto7 remetem ao povo da periferia, que enfren-
tam problemas comuns entre si, “[...] sem emprego, na fome. A única saída que os
irmãos encontram aqui na periferia é o mundo do crime” (NDEE NALDINHO, 2015).
O povo não pertence de fato ao sujeito coletivo que é a população, objeto de cui-
dado das políticas públicas sociais, tampouco logra independência financeira. O
povo da periferia “[...] toma-se estrangeiro em seu próprio país e, por conseguinte,
cai sob as leis penais que vão puni-lo, exilá-lo, de certo modo matá-lo” (FOUCAULT,
2008a, p.58).
Neste sentido os grupos de Rap interpretaram a realidade e os problemas-de-
-vida que perpassava a periferia, podendo assim, elaborar estratégias de enfren-
tamento às políticas de morte perpetradas pelo Estado e elaborar alternativas
comunitárias de projetos-de-vida, como na poesia de NDee Naldinho “povo da
periferia”, em que narra os principais problemas-comunitários da periferia e suas
estratégias para enfrentar. “O povo da periferia há muito tempo 'tá abandonado né,
irmão [...] enquanto o povo da classe alta tá enchendo o rabo de dinheiro, o povo

5 Com o termo forma-de-vida entendemos [...] uma vida que jamais pode ser separada da
sua forma, uma vida na qual jamais é possível isolar alguma coisa como uma vida nua (Agamben,
2015 p. 10). Viver não se restringe às necessidades básicas de sobrevivência, mas na significação do
que se faz, como faz e por que faz. Nesta perspectiva o rap assume a categoria de ação social.
6 Ver definição de fita ou situação como fala Erving Goffman nota 3.
7 A raiz etimológica da palavra Referência: Trazer alguém consigo. Neste caso se pergunta,
que histórias o rap traz consigo?

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daqui tá no veneno. Destarte, o povo da periferia precisa encontrar maneiras de
se emancipar economicamente em relação à Sociedade, fortalecendo as redes de
cuidado das comunidades. O sociólogo Ferdinand Tönnies fala sobre comunidade e
sociedade, criando uma separação nos significados dos conceitos, baseado na ideia
de aceitação versus contrato. A comunidade é “compreendida como uma vida real
e orgânica [aceitação] – é então a essência da comunidade”. A sociedade [contra-
to], por sua vez, é “como uma representação virtual e mecânica” (TÖNNIES, 1973,
p.96).
NDee Naldinho fala na poesia Cuidado na Quebrada (2003) alguns “parágrafos”
que definem como a pessoa deve andar, em forma de diálogo, fala sobre os dese-
jos e valores que devem ser coibidos para fazer prevalecer o proceder, o projeto-
-de-vida. Portanto, quando falamos em projeto- de-vida, sua junção, isto é o uso
do hífen, sinaliza que o projeto está ligado à vida da pessoa, ao proceder para
com as situações que ocorrem na vida. “Conceito procedimento esse é o tema [...]
Parágrafo 1: Humildade na cena [...] Parágrafo 2: Malandragem tem seu tempo
[...] Malandro de mais não vive aqui dentro [...] Parágrafo 3: É correr pelo certo”
(NDEE NALDINHO, 2013). Ainda conforme a letra de rap, ser esperto nesse sentido
é empreender para si mesmo lucros em detrimento da coletividade, ignorando a
forma-de-vida, ou como estamos sugerindo o proceder. Por isso há uma crítica forte
em relação à valores de ostentação, desejo de riqueza e luxo. Como pontua NDee
sobre a ganância e a ostentação: “Pra você que quer mais além. Tudo que o boy8
tem você quer também. Uma goma de luxo no condomínio fechado. Uma puta de
elite carro louco blindado. Celular da moda notebook é diferente. Rolex no braço
rebook do bom" (NDEE NALDINHO, 2013). A humildade é o que prevalece como
proceder e principal justificação da forma de produzir vida do maloqueiro. Portan-
to, o projeto-de-vida racional, não opera através da racionalidade capitalista, mas
de uma economia substantiva, isto é, sob uma ética de vida. A ostentação faz com
que os projetos elaborados durante a, breve, vida seja interceptado pela política
de morte, o sistema carcerário. O menino feio, esperto e com cara de mal não quer
lavar privada! Nem deveria! Como diz Alex Pereira Barbosa, MV Bill, na poesia “Sol-
dado do Morro”:

“Feio e esperto com uma cara de mal, a sociedade me criou mas


um marginal. Eu tenho uma nove [arma 9 mm] e uma HK [Hecker
& Koch], com ódio na veia pronto para atirar. Um pelo poder dois
pela grana. Tem muito cara que entrou pela fama. Plantou na
boca tendo outra opção [...] Não durou quase nada amanheceu
no valão. Vida do crime é suicídio lento, Na cadeia [...] meus
amigos [...] lá dentro. Eu tô ligado qual é, sei qual é o final, Um
soldado negativo menos um marginal. Pra sociedade uma baixa
na lista e engordar uma triste estatística” (MVBILL, 1999)

8 O Termo Boy remete à pessoas de classe média alta, ou, que tenham um projeto de vida.
Isto é, sem hífen, com as referências voltadas para fora da periferia, sendo alienado de seus proble-
mas-de-vida.

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O crime é um meio-de-vida quando está ligado à ação de sustentar as necessida-
des básicas, em seus âmbitos materiais e espirituais9. Quando a pessoa “planta na
boca tendo outra opção”, isto é quando é interceptada pelo meio do tráfico, tem
seu meio-de-vida separado. Isso significa que o meio de vida sem hífen não está li-
gado à resolução do problema-de-vida, mas, à busca de satisfação de desejos super-
ficiais e ostentação, angariando objetivos externos à própria realidade, alienado dos
problemas que aflige sua vida. “O crime te chama, rapaz, não se entregue de vez,
negue de vez. Não seja burro igual meu pai10, não viu a coisa mais inteligente que
fez. E o Estado, estado crítico, tem me detestado e é recíproco” (ADL, 2016). Como
na poesia Favela Vive do grupo ADL, os chamados para o crime existem, muitas ve-
zes tácitos não oficiais, outras vezes convites literais. Mas são situações produzidas
pela desigualdade aí reside as definições de políticas de morte. “Somos filhos da
lama, Brasil que a mídia esconde [...] nos entopem de pólvora, coca, esgoto a céu
aberto. E quilombos de madeirite e concreto. O futuro chegou e ainda usamos
corrente. Escravizados através do tráfico de entorpecente. Nos empurram todo dia
goela a abaixo (ADL, 2016). Portanto, são as políticas de morte que fazem com que
a juventude “puxe o revolver”, como alerta NDee Naldinho, na poesia Menos um ir-
mão chega disso: “Armas e tudo futuramente, se transformaram e mataram muita
gente [...] Gente fina quem é hoje vai virar ladrão no futuro, acontecerá o absurdo
e você viverá na drogas [...] sem sorte totalmente livre para a morte e o terror, a
violência e o medo levará a sua vida” (NDEE NALDINHO, 1992).
Patrícia Hill Collins, feminista negra estadunidense, cientista social, fala do
conceito de “outsider within11” isto é, as pessoas pretas, indígenas, pobres e peri-
féricas estão na Sociedade sem ser reconhecidos, estão sem estar. A autora fala que
por um lado, isso pode ser uma vantagem pois evita a agressão à olhares diferentes
e produz subjetividades de resistência. Os que estão dentro, portanto, tendem a
concordar entre si, tendo em vista a similaridade de origem e formação. Os insiders
cultivam uma opinião parecida sobre o que é relevante para ser estudado em uma
sociedade, trocam interpretações de uma base preexistente buscando uma solução
em comum. O projeto de vida moldado à Sociedade é diferente de um projeto-de-
-vida voltado à comunidade. Mesmo quando a pessoa se esforça muito para ser
aceita na Sociedade “[...] suas lealdades como outsiders podem concorrer contra
sua escolha do status pleno de insiders, e podem estar mais aptas a permanecerem
outsiders within” (COLLINS, 2016, p.117). Portanto, mesmo que o periférico, fave-
lado, preto, pobre angarie para si recursos para que venha ser chamado de patrão

9 Para quem interessar, a filosofia clássica aponta o termo: Geisteswissenschaften, que


traduzido do alemão significa ciências do espírito, que é a forma como se organiza a significação do
mundo. Ciência.
10 Fica a deixa para um outro trabalho falando sobre aspectos de conteúdo desta forma-de-vi-
da que é ser maloqueiro, dentre muitos temas abordar: Abandono Familiar paterno, solidão, terceiri-
zação identitária, processos de identidade e alienação.
11 O conceito de within encontra uma boa definição como: [...] ver a realidade [...] tanto de
fora para dentro quanto de dentro para fora” (HOOKS in COLLINS, 2016, p.100)

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existe uma marca histórica difícil de apagar: “Aí, você saí do gueto, Mas o gueto
nunca saí de você, morou irmão? Cê tá dirigindo um carro, o mundo todo tá de olho
em você, morou? Sabe por quê? Pela sua origem, morou irmão? É desse jeito que
você vive. É o negro drama” (RACIONAIS, 2002).

(F)somos colonizados, desde a época colonial, em que o Brasil era


um território pertencente à Europa e havia uma relação de de-
pendência jurídica, cultural, econômica das pessoas locais com
as mentalidades externas, até os tempos de hoje. Como pontua
a feminista e antropóloga Ochy Curiel, certamente estas rela-
ções se transformaram, mas muitas lógicas permaneceram, nas
relações entre o Estado e as populações pobres,“[...] as formas
de dominação foram transformadas, mas não as estruturas de
relações entre centro e periferia. [...] estamos diante de um sis-
tema mundial capitalista/colonial europeu/europeu-norte-ame-
ricano/moderno e, eu acrescentaria, heterossexual12” (CURIEL,
2012, p.49).

Nesse sentido, entendendo a colonização como grande operação e problema


que incide sobre as populações latino-americanas, o conteúdo político/cultural do
Hip Hop tem o poder de tornar inoperante a colonialidade por meio da auto afir-
mação. Como aponta Patricia Hill Collins (2016), a autodefinição de identidade faz
com que se desfaçam os estereótipos. Os estereótipos podem se manifestar como
determinismos geográficos, raciais e econômicos, isso significa, que para se auto
definir não é “vencer na vida”, mas, se atribuir sentido às próprias vivências à par-
tir de significados caros à própria realidade social. Esses significados por estarem
entrelaçados com a história do país, se entrelaçam com a colonialidade (QUIJANO,
1992). A produção de uma identidade periférica submete à inoperância a produção
de uma mentalidade incutida pelo Estado e pelos governos. “O Estado vai encher
vocês com o máximo de merda [...] Bloqueiam potencial, olhe bem para seus ca-
los. Cês criaram um animal, algo indomesticável. É o preconceito racial, eu real-
mente vou roubá-los” (FROID, 2016). A poesia Pseudo Social de Froid, Renato, fala
do principal problema-de-vida vivenciado pelos que procuram escapar, o racismo.
Também tangencia em relação à governamentalidade (FOUCAULT, 2008b), que é a
mentalidade incutida mecanicamente. A música “Beco Sem saída” exemplifica bem
as opções da juventude periférica – terceiro-mundista – ou a falta delas:

Qual seria meu destino senão cantar [...] A sarjeta é um lar não
muito confortável. [...] muitos dormem, e outros morrem [...]
São chamados de indigentes pela sociedade. A maioria negros
[...] A burguesia, conhecida como classe nobre tem nojo e odeia
a todos nós, negros pobres. Por outro lado, adoram nossa po-

12 "Es decir, se han transformado las formas de dominación, no así las estructuras de rela-
ciones entre centro y periferia. Desde esta comprensión, Ramón Grosfoguel (2010) propone que
estamos frente a un sistema-mundo europeo/euro-norteamericano capitalista/ patriarcal moderno/
colonial y, yo agregaría, heterosexual. (CURIEL, 2012, p.49)

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breza pois é dela que é feita sua maldita riqueza. Beco sem saída
! [...] Leia, ouça, escute, ache certo ou errado, mas meu amigo,
não fique parado. (RACIONAIS, 1989)

Na poesia “Beco sem saída” os Racionais falam deste contexto de falta de op-
ções, em que a miséria e a falta de perspectivas se materializa no dia a dia, no
cotidiano, sendo a educação um ato de resistência, tão qual o crime é. Os membros
do grupo escrevem sobre o processo de reflexão que fazem sobre a relação entre a
realidade que vivenciam, a história do país e as atuais autoridades. Conscientizam a
juventude negra de que seu objetivo em projeto-de-vida deve ser de se construir
como negritude e se possível escapar do arranjo colonial escravista do sistema de
divisão social do trabalho. O rap atua promovendo reflexão sobre o papel da auto-
conscientização ou da consciência coletiva no processo de autoafirmação. A auto-
definição e autoavaliação são formas de desafiar os estereótipos que definem as
condições dos sujeitos e substituir por autodefinições. Para desafiar os estereótipos
é necessário se auto definir para atenuar a colonização do ser. "[...] os estereótipos
são uma representação de imagens externamente definidas e controladoras da [...]
para a desumanização [...] e para a exploração do seu trabalho." (KING in HILL,
2016, p.103). A autodefinição é importante pois desfaz a ideia de representação do
"outro". Ao resistir e não se conformar ao estereótipo, o colonizado, se reconfigura
no espaço social.
Não obstante ao processo de conscientização, havia e há, ideias que taxa a cons-
ciência negra de “chata”, “mimimi” ou “moralista”13. Podemos evidenciar na letra
da música “Negro Limitado”, como quando Edy Rock canta: “Você não me escuta
ou não entende o que eu falo, procuro te dar um toque e sou chamado de preto
otário [...] A verdade é que enquanto eu reparo meus erros. Você se quer admite os
seus” (RACIONAIS, 1992). Portanto para certos públicos as referências e ideias do
Racionais não remetem aos mesmos significados. A consciência negra é um processo
de inflexão e reflexão para entender sua identidade e seu projeto-de-vida. Nesse
processo de conscientização é importante fazer uma crítica à ostentação da rique-
za, ao machismo, à desigualdade social. Isso gera uma situação de questionamento
das próprias sociabilidades, isto é, da capacidade de relação entre periféricos:

[Negro limitado]: Então, vocês que fazem o RAP aí, são cheios
de ser professor. Falar de drogas, polícia e tal, e aí, mostra uma
saída. Mostra um caminho e tal, e aí [...] [Mano Brown]: Cultura,
educação, livros, escola. [...] Esse é o título Da nossa revolução,
segundo versículo. Leia, se forme, se atualize, decore. Antes que
os racistas otários fardados de cérebro atrofiado, os seu miolos
estourem e estará tudo acabado [...] Contra aqueles que que-
rem ver os pretos na merda. E os manos que nos ouvem irão

13 No processo de autoconhecimento é necessário o movimento de autocrítica, isso significa


estar disposto a reconhecer os erros e mudar a postura, como em relação à política, mídia, economia,
cultura, ética e – como se fala na quebrada – proceder.

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Artes, memória e espaços
entender. Que a informação é uma grande arma. Mais poderosa
que qualquer PT. Roupas caras de etiqueta, não valem nada [...]
[Negro limitado se conscientiza]: Pode crê, tem tudo a ver, não
é não! Ai, Racionais, fio da navalha, pode contar comigo (RACIO-
NAIS, 1992)

As juventudes das periferias são interceptadas pelas políticas de morte não obs-
tante ao processo de conscientização que o hip hop, sobretudo o rap, proporciona
aos projetos-de-vida e de comunidade. Se Autodefinir é um ato de resistência à
representação do outro. Não como um luxo, mas como um processo de reconheci-
mento e afirmação da pessoa humana, uma vez que o racismo torna as trajetórias
debilitantes, as mulheres negras autodefinidas se justapõem ante tal fato. Creio
que a auto definição não deve ser entendida como um processo de reconstrução
identitária descompromissada, onde o privilegiado “compra” cultura e identidade
que lhe convém. A autodefinição não anula o racismo existente na sociedade. Es-
creve o grupo de rap ADL: “o táxi não para pra nóiz. Pra nóiz só para o serviço da
Blazer. Padrão para mulheres e moças: Apresentadora loira da emissora, que as
negras e as gordas, só serviam pra cozinha e pra vassoura. Te enganaram quando
falaram Que a vida de favelado era boa” (ADL, 2016). Para se construir não basta
mudar o nome de favela pra comunidade é preciso construir uma verdadeira rede
de cuidado, como faz a cena do Hip Hop e as associações de bairro.
A desconstrução dos estereótipos anda junto do enfrentamento, pois, o Estado
e seus agentes utilizam as características raciais como forma de antecipar a ação.
Como diz Michel Dias Costa, o Rashid, na poesia Esteriótipo, “somos todos alvos”
se referindo aos estereótipos de quem morre nas mãos dos agentes do Estado,
como “[...] um dos 5 moleques no carro no Rio, podia ser eu ou o Douglas que se foi
no Jardim Brasil, podia ser eu. Outro inocente morto a noite e ninguém viu, podia
ser” (RASHID, 2018). Assim como os autores decoloniais, também feministas, que
guiaram o enfoque metodológico e teórico deste trabalho, o rap, traz junto essa
discussão sobre os estereótipos. Rashid também, dizendo que “esse estereótipo é
baseado em séculos de história controversa” (RASHID, 2018). Interessante pensar
o alcance que as teorias decoloniais têm tido. Assim como é interessantíssimo pen-
sar nos movimentos sociais que o rap tem provocado, absorvendo e criando epis-
temologias que empiricamente chegam às mentes periféricas. Que chegam aos
Condenados da Terra, num sentido bem Fanoniano14 mesmo.

14 Frantz Fanon, irmão, psiquiatra martinicano, sofreu o preconceito ao ir estudar na Europa


e se descobriu negro, pois até então vivia num país onde todos tinham a pele preta. Em seu livro –
manual de conscientização e denúncia - Pele Negra Máscaras Brancas fala da possibilidade de escapar
da regulação colonial, violenta e capitalista. Escreve Fanon: “Nem todos os povos estão aptos a ser
colonizados, só o estão aqueles que sentem esta necessidade” (FANON, 2008, p.94). Isto significa
estar sem ser, uma ética de vida que é traduzida pelo termo proceder.

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CONCLUSÕES
Como dito nas linhas introdutórias deste trabalho, há de ser feito um outro tra-
balho falando da repercussão, até mesmo em níveis quantitativos, dos grupos de
rap e da cultura Hip Hop nas vidas das populações periféricas. Como foi o caso da
categoria oficial de racismo, instituída em 1995, reconhecendo a estrutura colonial
racista no país, que certamente possui fortes relações com o rap e sobretudo com
os movimentos negros em geral. A musicalidade e a filosofia vinda com ela, a for-
ma-de-vida racional, de qual estou falando, não se esgota no gosto subjetivo pelo
hip-hop. Pois, o movimento entre as gerações acabaria com o rap denúncia, como
alguns já ousam teorizar. O rap, como identidade, está em movimento, se transfor-
ma, se conserva. Atualmente ainda se percebe inúmeros grupos de rap, sobretudo
devido à expansão da criação de conteúdo caseiro, autônomo e independente. As
potências que o Rap pioneiro, dos anos noventa, produziram ficaram para as novas
gerações de rappers. Aquilo que o sistema neoliberal não captura do rap é a prin-
cipal herança identitária que podemos identificar.
Ser capturado, tem várias conotações, dentre elas, aqui me refiro às postula-
ções de Michel Foucault em O nascimento da biopolítica. O indivíduo é racional e
busca o que interessa para a melhora de si mesmo. Afetos, instintos e desejos tam-
bém circulam na esfera econômica, a sofisticação no tratamento dos indivíduos
não só capturam a vida, mas, fundamentalmente, não deixam fora nenhum tipo de
aspecto não racional. A área do lazer, da moda, das artes não são necessariamente
áreas racionalizadas, mas a economia tem atuado como instrumentos de captura
dessas áreas. O contrato social, relação de cuidado do Estado para com as partes
que compõe a Sociedade, tem as mesmas bases antropológicas que o homoeco-
nomicus (FOUCAULT, 2008b). Isto significa que os projetos de vida(sem hífen), das
juventudes periféricas, se encontram entregues à própria sorte, aos próprios empre-
endimentos da vida, sem possibilidade de redes de cuidado, sobretudo advindo de
políticas públicas.
Projetos-de-vida são formas de produzir vida e trajetórias de satisfação e com-
preensão para as pessoas. Pode ser entendido como potência negra, o poder negro,
mas, aqui estamos estendendo à condição de vítima, consequentemente, explora a
capacidade de reivindicação de reparação, para toda a população periférica, sobre-
tudo, aquela que não aceita à regulação governamental. Conclui- se que um proje-
to-de-vida fornece para a pessoa consciência de si, identidade e meios para resolver
ou tornar inoperante os problemas-de-vida. Projeto-de-vida não está ligado ape-
nas ao planejamento da vida, mas nas capacidades que estão em potência e que
emergem no tempo presente para resolver problemas-cotidianos.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 407


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REFERÊNCIAS

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Paulo: Editora 34, 2017, 373p.

408 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
AUTORIA
Gabriel Chaves Amorim15
CAPES/PROSUC; PPGCS-UNISINOS; Coletivo Indígena
E-mail: gcamorim@edu.unisinos.br ; gchavesamorim@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7454-7867
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2316175296685346

15 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento


de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 409


Artes, memória e espaços
ST 61
Tecnologias,
culturas, mídias
e linguagens:
formas de abordar
as questões
étnico-raciais e de
enfrentar o racismo
EDUCAÇÃO, SAÚDE E RE-EXISTÊNCIA ATRAVÉS
DO AUDIOVISUAL: OS VÍDEOS ANTIRRACISTAS
DO SLAM POESIA
Ana Lúcia Nunes de Sousa
Vitória Adeva Elias Aquino Silva
Patrícia Cardoso de Jesus

INTRODUÇÃO
Nos últimos anos, com a popularização da internet e do smartphone, a pro-
dução e o compartilhamento do audiovisual online tem se tornado crescente em
nossa sociedade. Produzir e difundir audiovisual é uma atividade cada vez mais co-
mum entre a juventude, não mais restrita a profissionais do âmbito do cinema
e da comunicação. Desta forma, a juventude negra e periférica também tem se
apropriado dessas tecnologias da informação e da comunicação para produzir con-
teúdos especificamente voltados para discutir temáticas afins às suas vivências. Um
dos espaços privilegiados para esta apropriação tem sido o registro de eventos da
cultura Hip Hop, em especial os "poetry slam". O Slam poesia é um concurso de poe-
sia falada, com duração de três minutos, sobre temáticas variadas. Nos últimos dez
anos, os slams vem se popularizando no Brasil, acompanhado de uma intensa pro-
dução audiovisual. Através dos vídeos, compartilhados online, estes eventos têm
se tornando ainda mais populares os temas discutidos - que costumam abordar as
vivências das/os slammers, geralmente jovens negras/os periféricos - repercutem
ainda mais.
Este trabalho objetiva analisar as narrativas produzidas pelas/os poetas nos
Slams poesias, na cidade do Rio de Janeiro, e difundidas através de canais de vídeo
online no YouTube. Neste sentido, indagamos, por exemplo: 1) quais as temáticas
abordadas nas poesias? e 2) como estas narrativas exprimem práticas de resistên-
cia no enfrentamento ao racismo e outras formas de opressão?

RACISMO, VIOLÊNCIA E RESISTÊNCIA


Os dados do IBGE (1999) estimam que 52,1% dos jovens brasileiros são negros e
negras. Os dados do Atlas da violência (2016) apontam que houve um crescimento
de 18,2%, nos últimos anos, na taxa de homicídios de jovens negros no Brasil. As-
sim, ser um jovem negro no Brasil significa um cotidiano de resistência à violência
e enfrentamento às consequências do racismo, que acabam influenciado todas as
esferas e experiências da vida.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 411


Artes, memória e espaços
O racismo, segundo Almeida (2018) não é patologia social, nem evento isolado,
mas sim a própria norma dentro das relações políticas, sociais, econômicas, jurí-
dicas e familiares. É, portanto, um elemento estruturante da própria organização
social. O autor ressalta que “o racismo, como processo histórico e político, cria as
condições sociais para que, direta ou indiretamente, grupos racialmente identifica-
dos sejam discriminados de forma sistemática” (ALMEIDA, 2018, p.38). As pessoas
negras vem sendo historicamente construídas como inferiores (COLLINS, 2000),
como componente essencial para justificar a violação de direitos e interesses deste
segmento da população (BELL, 1992; GONZÁLEZ E HASENBALG, 1982).
No último censo da população, realizado em 2010, pela primeira vez, a maior
parte da população se autodeclarou negra. Segundo Creenshaw (1991), a identi-
dade política gera comunidade e empoderamento para grupos minoritários e opri-
midos. Assim, em contextos fortemente marcados pela violência, é compreensível
que este tipo de identificação política cresça, de forma a enfrentar o problema
como parte de um grupo organizado. A identidade, desta forma, passa a se ma-
nifestar como um lugar de resistência (CREENSHAW, 1991). No contexto brasilei-
ro, ser negro é “enfrentar uma história de 500 anos de resistência à dor” (NASCI-
MENTO, 2006, p.99); é ter antepassados que mais que enfrentar uma tentativa de
genocídio (FLAUZINA, 2006; VARGAS, 2010), lutaram para sobreviver, através de
diferentes estratégias de resistência.
Para Medina (2013, p.16) “a resistência, como uma atividade multifacetada, é
conceitualizada como uma contenda com, e não exclusivamente ou fundamental-
mente contra”. A resistência também pode ser interpretada como um “local de
abertura radical e possibilidades” (hooks, 1990, p.336), como a margem escolhida
como local de existência. Nesta margem, o empoderamento aparece como neces-
sidade simbólica e prática. Assumimos a ideia de Collins, (2000, p.204), para quem
“o empoderamento requer mais do que mudança na consciência individual”. Par-
te-se, assim, da ideia de empoderamento como um processo que requer transfor-
mações profundas no sistema social, de forma coletiva, e não apenas individual.

SLAMS, MULHERES E FEMINISMO NEGRO


A cultura hip-hop emergiu nos anos 1970, no contexto das tradições afrodias-
póricas, no subúrbio de Nova Iorque (GILROY, 2001; ROSE, 1994). A força desta
cultura, segundo Rose (1994), estava profundamente vinculada ao poder narrativo
das rimas e poesias questionavam o mundo, o sistema, a opressão racial, a vio-
lência policial, a pobreza, etc. Em 1986, num bairro operário branco de Chicago,
o poeta-operário Mark Kelly Smith criou um cabaré poético popular, cujo estilo se
popularizou como poetry slam/slam poetry (SMITH e KRANAIK, 2009). A vinculação
entre os slams e a cultura hip-hop foi quase automática, já que ambos nasceram
como espaço de expressão de comunidades marginalizadas, com forte vinculação
às lutas antirracistas.

412 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
Os “slam poetry” se espalharam rapidamente ao redor do mundo e, em 2008,
a rapper e poeta Roberta Estrela D’Alva, em São Paulo, inaugurou primeiro slam
do país (D’ALVA, 2011). Ao mesmo tempo que os slams se tornaram populares no
Brasil, a luta antirracista tomou um novo fôlego. Desde 2012 - quando a hashtag
#BlackLivesMatter tomou as redes sociais e as ruas- até chegar à atualidade, com
a reatualização e fortalecimento da pauta, após o assassianto de George Floyd. É
neste contexto que, no Brasil, os slam poetry assumiram um caráter marcadamen-
te antirracista e de enfrentamento à violência policial.
Ao observar a cena dos slams no Brasil, D’alva (2019) aponta que os Slams “tra-
dicionais” eram representados majoritariamente por homens. Assim, não deixa de
ser um espaço onde a reprodução da hegemonia masculina opera, perpetuando
dinâmicas de poder e dominação “outrificadoras” de mulheres (FREIRE, 2010). No
entanto, nos últimos anos, foram criados diversos slams organizados para grupos
sociais específicos, destacando-se o Slam das Minas, que objetiva criar espaços
seguros e confortáveis para que mulheres, principalmente as LGBTs, pudessem se
expressar (D’ALVA, 2019).
Estas mulheres, em grande parte negras, apresentam conteúdos presentes nas
discussões feministas negras (COLLINS, 2019). Retratam violências que atravessam
especificamente seus corpos, transformando as batalhas em cenário para o rom-
pimento com imagens de controle criadas para outrificação de mulheres negras
e sustentação de relações de poder e dominação racistas cisheteropatriarcais. O
slam, pode, então, ser compreendido como “espaços seguros”, onde as mulheres
mobilizam processos de autodefinição e autoavaliação (COLLINS, 2019), exercendo
oposição às imagens externamente definidas sobre este grupo e também cons-
truindo novas imagens sobre si e sua comunidade. Ademais, estas poetas, por meio
de suasperformances, fazem suas vozes ecoarem para um público amplo, rompen-
do com uma máscara de silêncio vigente no mundo branco (FANON, 2008), e im-
pulsionando processos de empoderamento, principalmente de mulheres negras.

OS VÍDEOS DO SLAM POESIA NO YOUTUBE


A pesquisa foi realizada a partir da análise de vídeos de Slam poesia, disponíveis
na plataforma YouTube. Realizamos uma busca manual, utilizando o buscador da
plataforma, com as seguintes palavras-chave: "slam vídeos" e "slam vídeos RJ". Os
vídeos selecionados foram, então, divididos em duas categorias: 1) “slam vídeos”;
e 2) “slam vídeos RJ”, na qual foram incluídos os dez vídeos mais visualizados de
cada categoria. A busca foi realizada em maio de 2019, de forma que os vídeos sele-
cionados referem-se aos materiais disponíveis na plataforma neste período. Após a
seleção, os dados dos vídeos foram colocados em uma planilha de excel, com infor-
mações como canal, título do vídeo, número de comentários, etc., e procedeu-se
a assistir aos vídeos, buscando os temas abordados nas poesias, como mostra a
figura abaixo (Figura 1 e Figura 2).

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 413


Artes, memória e espaços
FIGURA 1: TEMAS ABORDADOS NA CATEGORIA “VÍDEOS SLAM”

Fonte: Autoria própria.

FIGURA 2: TEMAS ABORDADOS NA CATEGORIA “VÍDEOS SLAM RJ”

Fonte: Autoria própria.


Após a seleção dos vídeos, os mesmos foram categorizados de acordo com os
temas abordados, sendo que as seguintes temáticas foram as mais presentes na
mostra: relações étnico- raciais, empoderamento, feminismo, violência policial e
desigualdade social. Também chama a atenção a predominância de dois canais nos
quais se concentram a maior parte dos vídeos: Gica TV, com oito (8) dos dez (10)
vídeos selecionados da categoria "slam vídeos"; e Grito Filmes, com nove (9) dos
dez (10) escolhidos na categoria “slam vídeos RJ”. Além disso, também é digno de
mencionar o grande número de visualizações que alguns dos vídeos alcançaram,
como o vídeo “Vencedora Slam Grito Filmes 2017 ‘Gabz’, que já havia sido visualiza-
do quase 1.5 milhão de vezes à época da coleta.

FIGURA 3: VISUALIZAÇÕES DOS VÍDEOS POR CANAL

Fonte: Autoria própria.

O campo de relações étnico-raciais aparece de maneira expressiva nas perfo-


mances selecionadas, visto que a maioria dos participantes são jovens negros e ne-
gras. Cabe ressaltar que o tema “racismo” é o que se destaca na categoria “relações
étnico-raciais”, aparecendo em onze (11) dos vinte (20) vídeos. Batalhas de slam
acabam sendo, então, cenário de denúncia das diversos mecanismos de genocídio
físico, psíquico, espiritual, realizado pelo mundo branco, fundado na violência (FA-
NON, 2008). Um destes mecanismos é a violência policial. Quando a poeta Adriele
recita no vídeo “Slam Grito Filmes + Slam Resistência “Adriele”: “24 horas sujeito a
morte/sobreviver aqui não passa de questão de sorte”, expõe através de sua voz,
um cotidiano atravessado pelo medo vivido em contexto de racismo antinegro,
onde a pele preta é representada como “alvo”, como “corpo matável” — como

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 415


Artes, memória e espaços
bem destaca Flauzina (2006) e Vargas (2010) — diante das instâncias políticas, jurí-
dicas e econômicas do estado do Rio de Janeiro, materializadas nas ações policiais.
Ademais, as poetas mulheres apresentam narrativas orientadas por uma pers-
pectiva feminista, enunciando como o machismo, racismo, lgbtofobia atravessam
suas experiências cotidianas, seja em relações sexuais-afetivas, saúde, acesso a di-
reitos, etc. Nas batalhas de slam, essas poetas, majoritariamente negras, acionam
repertórios “outros”, dotados do sentido de empoderamento (COLLINS, 2000; BER-
TH, 2018) das propostas teórico-políticas feministas, o qual não objetiva inverter
polos de opressão, mas confrontar as múltiplas engrenagens de um sistema colo-
nial patriarcal cisheterossexista (BERTH, 2018).
Nas poesias recitadas pelas mulheres negras nos vídeos selecionados, percebe-
-se uma construção de narrativa acerca de feminilidade, sexualidade, afetividade,
saúde, violência contra a mulher, que centralizam experiências femininas negras.
Algumas, como no vídeo "[Slam Fluxo] Bia Ferreira - Poesia: Feminismo Classe Mé-
dia", renomeiam o feminismo dito “universal”, representado hegemonicamente
por mulheres brancas de classe média, como “feminismo branco”. Logo, fazem um
confronto à neutralidade racial ilusória que caracteriza a forma como o grupo ra-
cial branco foi forjado, para garantia de seu lugar de “humanidade universal”. Em
versos como os da poeta Donattela, no vídeo “final Slam Grito Filmes 2017 “Dona-
tella”- , que diz “Patricinhas de Beverly Hills, tá achando que é Cher/Patricinhas da
favela portando seu Black Hair” , tensionam as relações dicotômicas entre mulher
branca/mulher negra, a qual posiciona mulheres brancas como símbolo exclusi-
vo da feminilidade, da beleza, do merecimento de afeto. Estas jovens poetas rei-
vindicam humanidade plena, “ser pessoa antes de mulata” como afirma Gabz (no
vídeo “vencedora Slam Grito Filmes 2017 “Gabz”), existir para além das imagens
construídas durante o regime escravista sobre mulheres negras como sinônimo de
“promiscuidade”, “negra raivosa”, “negra forte”.
Os vídeos do slam poesia coletados nesta pesquisa expõem a dinâmica colonial
em que “a metrópole é o corpo, a colônia é o corpo do outro” (NOGUERA, 2020),
sendo a metrópole representada pelas elites brancas brasileiras e a colônia sendo a
população negra, reduzida a “outra” do colonizador, dito símbolo da humanidade.
Os slams são, então, instrumentalizados por essa juventude como espaço de re-
sistência ao ódio projetado pelo Ocidente ao povo colonizado. Assim, segundo Lor-
de (2019), este ocidente deseja nossa morte desde que nascemos pessoas negras
(LORDE, 2019).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho partiu de vídeos que retratavam os slams poesia no Brasil e, espe-
cificamente, no Rio de Janeiro, alojados na rede social online YouTube. Escolhemos
trabalhar com os vídeos mais visualizados da plataforma, uma vez que a populari-
dade pode ser entendida como um parâmetro que nos possibilita, em certo nível,

416 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
ampliar nossa análise, mesmo que olhando para um universo micro. Assim, nossa
pesquisa aponta que as temáticas mais presentes nos vídeos mais visualizados de
slam no YouTube são: relações étnico raciais, empoderamento, feminismo, violên-
cia policial e desigualdade social. Estes temas estão diretamente vinculados com a
própria natureza do cenário Hip Hop/Slam, voltado para a discussão das vivências
das/os slammers. No Brasil, a questão étnico-racial domina as poesias, revelando as
pautas mais urgentes para a juventude periférica.
O feminismo negro também aparece de forma contundente tematizando os ví-
deos mais visualizados, trazendo o debate de pautas do pensamento feminista ne-
gro (COLLINS, 2019), como o empoderamento, a saúde e a educação do povo negro.
O enfrentamento à violência policial e às políticas de morte estatais, expressas na
desigualdade social, marcam as perfomances do Rio de Janeiro, onde os níveis de
violência contra a juventude negra e periférica são alarmantes. Ao alçar suas vozes
e denunciar o racismo, o sexismo, o classismo, a juventude negra se coloca contra a
necropolítica e rompe com a invisibilização e silêncio impostos pelo mundo branco
(FANON, 2008). Neste sentido, a potência destes vídeos não está só nas milhares
de visualizações que alcançam, mas na possibilidade criada pela juventude de se
autodefinir, de rompa com as imagens de controle (COLLINS, 2019) impostas pela
violência racista e, a partir daí, criar suas próprias narrativas.

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uma geografia supranacional da morte e suas alternativas. Revista da Associação Brasilei-
ra de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), v. 1, n. 2, p. 31-66, 2010.

AUTORIA
Ana Lúcia Nunes de Sousa
Doutora em Comunicação. Professora do Instituto Nutes de Educação em Ciências e
Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
E-mail: analucia@nutes.ufrj.br
ORCID: 0000-0003-1924-5297
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6689983214433853

Vitória Adeva Elias Aquino da Silva


Graduanda em Psicologia, bolsista de Iniciação Científica (PIBIC-UFRJ), da Universi-
dade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
Email: adeva.1703@gmail.com
ORCID: 0000-0002-6619-9505
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8165885289733878

Patricia Cardoso de Jesus


Graduanda em Psicologia, bolsista de Iniciação Científica (PIBIC-Faperj), da Univer-
sidade Federal do Rio de Janeiro -UFRJ
Email: patricia.c.jesus99@gmail.com
ORCID: 0000-0003-3540-4649.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3280926346259009
418 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as
Artes, memória e espaços
SOBRE IMAGENS E A EDUCAÇÃO DO
PRECONCEITO
Tais de Almeida Costa
Graziele Alves de Lira

INTRODUÇÃO
O presente trabalho pretende contar parte de uma experiência de um curso
de extensão realizado pelo LEAM - Laboratório de Estudos e Aprontos Multimídia:
relações étnico-raciais na cultura digital
- desenvolvido com uma turma do terceiro ano do Ensino Médio Normal em um
Colégio Estadual, localizado no Município de Nova Iguaçu/RJ no ano de 2018. Utiliza-
mos como suportes para nosso texto documentos, relatórios, projeto e entrevistas,
desenvolvidos coletivamente, não só ao longo deste curso, mas também de estu-
dos e movimentos anteriores.
Compreendemos o curso como mais um dispositivo para nos auxiliar a refletir
sobre como fomos/somos educados para o preconceito dentro e fora da escola.
Este configura-se como mais uma ação do Projeto de Pesquisa Educação das rela-
ções étnico-raciais na cultura digital (2017-2020), que propõe diversos movimen-
tos, cursos, criação de websites com foco em pensar como a educação brasileira
pode ampliar sua democratização através do uso da experiência com as diversas
tecnologias da informação e da comunicação (TICs) e de conversas nas salas de aula
sobre as questões étnico-raciais e sobre enfrentar o racismo à luz da lei (10639/03)
que torna obrigatório o ensino sobre História e Cultura Africana e Afro-brasileira
nas escolas.
O curso Sobre imagens e a educação do preconceito teve como questão proble-
mática as perguntas: Como as imagens tem atuado na educação do preconceito?
“O que temos naturalizado sobre as imagens como produção da "realidade", como
portadoras de "verdades"? Como fomos/somos educados para o preconceito?”
(FILÉ, 2018). Ou seja, o curso pretendeu discutir a formação tendo como referência
a produção do nosso olhar e, consequentemente, as formas naturalizadas de olhar
o Outro e de sermos olhados.
Os encontros entre os alunos e a equipe do LEAM aconteceram em forma de
oficinas, organizadas em quatro módulos, que trabalharam as linguagens mais co-
muns da cultura digital (áudio, vídeo e fotografia), discutindo sobre as possibilida-
des comunicativas e de produção da internet até as constatações dos alunos em
não se encontrarem representados nas tecnologias de ensino como livros, carta-
zes, murais e etc, desconsiderando o cumprimento da lei 10.639/03.
Como foco deste trabalho apresentamos o módulo dois do curso: Vendo e sendo
visto: sobre o olhar para si mesmo, para o outro e para o mundo. Esse módulo foi

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 419


Artes, memória e espaços
realizado tanto no modo presencial, como também não-presencial pela plataforma
Schoology e teve como foco a linguagem audiovisual.

JUSTIFICATIVA
Os desafios que enfrentamos para efetivarmos uma educação para relações
étnico-raciais não estão somente na falta de materiais e recursos, mas principal-
mente no âmbito das ideias, do conhecimento, da formação, da experimentação,
do questionar os discursos e as imagens naturalizadas, de buscar outras linguagens
e imagens que estão mais próximas dos estudantes que estão dentro das salas de
aula.

(...) a educação é capaz de oferecer tanto aos jovens como aos


adultos a possibilidade de questionar e desconstruir os mitos
de superioridade e inferioridade entre grupos humanos que fo-
ram introjetados neles pela cultura racista na qual foram socia-
lizados. Apesar da complexidade da luta contra o racismo, que
conseqüentemente exige várias frentes de batalhas, não temos
dúvida de que a transformação de nossas cabeças de professo-
res é uma tarefa preliminar importantíssima (MUNANGA, 2005,
p. 17).

As desigualdades encontradas no ambiente escolar, muitas vezes têm início na


chamada “invisibilização” dos alunos negros e pobres, que são a maioria nas esco-
las da região onde a escola está inserida e fogem do modelo estabelecido por nossa
sociedade como o aceito, e esperado, trazendo uma grande tensão entre esses
alunos, que não se enquadram no modelo, e os professores que muitas vezes não
estão preparados para recebê-los. Sobre essa problemática, Gomes afirma:

Na escola, no currículo e na sala de aula, convivem de maneira


tensa valores, ideologias, símbolos, interpretações, vivências e
preconceitos. Nesse contexto, a discriminação racial se faz pre-
sente como fator de seletividade na instituição escolar e o silên-
cio é um dos rituais pedagógicos por meio do qual ela se expres-
sa. Não se pode confundir esse silêncio com o desconhecimento
sobre o assunto ou a sua invisibilidade. É preciso colocá-lo no
contexto do racismo ambíguo brasileiro e do mito da democra-
cia racial e sua expressão na realidade social e escolar. (GOMES,
2012, p. 104-105).

Os(As) professores(as) não devem silenciar os preconceitos e discriminações


raciais presenciados nas escolas. O papel de educadores(as) deve ser cumprido
construindo práticas pedagógicas e estratégias de promoção da igualdade racial no
cotidiano da sala de aula, pesquisando mais sobre a história e a cultura africana e
afro-brasileira, para assim poder desnaturalizar opiniões preconceituosas sobre os

420 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
negros, denunciar o racismo e a discriminação racial e implementar ações afirma-
tivas voltadas para o povo negro, ou seja, é preciso superar e romper com o mito
da democracia racial.
Para analisar as relações étnico-raciais no Brasil faz-se necessário reconhecer a
complexidade do racismo brasileiro que é feito de muitas dissimulações, violências
simbólicas e físicas atingindo seu propósito ao inferiorizar os padrões e culturas
não-hegemônicas. Tomando esta afirmativa podemos pensar no processo de esco-
larização no Brasil que, como afirma ROMÃO (2005), pode ser vista a partir do ra-
cismo epistêmico e das injustiças cognitivas cometidas contra os negros e pobres.
Um dos impactos que a sociedade produz com a perpetuação do racismo epis-
têmico, do epistemicídio e da colonialidade do saber é a invisibilização e o silencia-
mento. Segundo Arendt (2007), o espaço de aparência dos sujeitos se dá no espaço
público. A autora afirma que “tudo o que vem a público pode ser visto e ouvido por
todos e tem maior divulgação possível. Para nós a aparência - aquilo que é visto e
ouvido pelos outros e por nós mesmos - constitui a realidade” (p. 59). Ao pensar-
mos nos estudos de Arendt podemos perceber que a construção de uma sociedade
e de uma escolarização baseada no eurocentrismo e por formas dissimuladas de
racismo invisibiliza os sujeitos negando até mesmo suas existências. Ou seja, o que
não aparece nos espaços públicos ou aparecem de forma marginalizada, inferiori-
zada e negada contribui para a afirmação dessa forma de ver como uma realidade.
Arendt afirma que é na relação com o outro, na aparência, que acontece a au-
têntica existência do indivíduo. Para Arendt só se escapa da aparência para a apa-
rência. “É com palavras e atos que nos inserimos no mundo, e esta inserção é
como um segundo nascimento, no qual confirmamos e assumimos o fato original e
singular do nosso aparecimento físico original” (ARENDT, 2007, p. 189).
Apresentando uma postura crítica frente aos projetos hegemônicos de escola
brasileira, o curso se propôs a articulação de duas demandas que chegam às esco-
las com bastante resistência por parte do sistema educacional: a primeira é a da
implementação da lei 10639/2003 que dispõe sobre o ensino da história e culturas
africanas e afrobrasileiras. A outra apresenta-se como um certo descompasso entre
modelos de produção de conhecimentos, de ensino-aprendizagem, de leituras e de
escrituras. Descompasso entre um ensino centrado na racionalidade escriturística
do livro e outras formas de pensar, narrar e produzir conhecimentos introduzidas
pelas tecnologias da informação e comunicação. (FILÉ, 2017, p.7). Por essas razões
surgem outros questionamentos: Como articular essas questões? Como trabalhar
tais questões na formação de professores?
O esforço em desenvolver esse curso com alunos(as) da Educação Básica bus-
cou compreender como esses(as) estudantes estão sendo formados(as) para atuar
como professores(as) e oferecer uma oportunidade de conversar sobre assuntos
que muitas vezes estão fora dos muros da escola.
A cultura digital, e especificamente chamamos a atenção para a linguagem au-
diovisual, ganha um espaço importante na forma como nos comunicamos, pro-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 421


Artes, memória e espaços
duzimos conhecimentos, compartilhamos informações, nos formamos, e é claro
como entretenimento e registro de momentos. Investimos na tentativa de dar a
ver algumas possibilidades das mídias contribuírem para a ampliação das formas
de comunicação e de produção de conhecimentos, buscando outras formas de en-
volver as pessoas no debate que se encontra a luta por uma educação antirracista.
Ao explicar a importância do uso das tecnologias da informação para a possível
ampliação das condições de acesso a informação, de produção de conhecimento e
acesso a inúmeras outras possibilidades de movimentação e de comunicação aos
alunos/professores, Filé (2017) nos alerta que a falta destes meios, pode levar a um
quadro de “injustiça cognitiva” (Santos, 2007), que se reflete nas desigualdades, na
invisibilização sofrida pela população negra em nosso país.
Por isso, é imprescindível o desenvolvimento de tais propostas ainda no pro-
cesso de formação de professores, seja nos cursos de graduação ou nos cursos de
extensão.

METODOLOGIA
Pensar uma produção de conhecimentos que enfrente esses tempos é refletir:
como fomos ensinados a ver, a pensar, a consumir, a produzir? E como podemos
construir outras possibilidades que destronem os modelos estabelecidos e nos per-
mitam avançar contra o desperdício da experiência, como nos aconselha Boaven-
tura. Contra o desperdício da experiência, inclusive na formação dos professores.

A produção social destas ausências resulta na subtracção do


mundo e na contracção do presente e, portanto, no desperdí-
cio da experiência. A sociologia das ausências visa identificar o
âmbito dessa subtracção e dessa contracção de modo a que as
experiências produzidas como ausentes sejam libertadas des-
sas relações de produção e, por essa via, se tornem presentes.
Tornar-se presentes significa serem consideradas alternativas
às experiências hegemónicas, a sua credibilidade poder ser dis-
cutida e argumentada e as suas relações com as experiências
hegemónicas poderem ser objecto de disputa política (SANTOS,
2002, p.15)

Baseando-nos nos estudos do cotidiano (CERTEAU, 1998), nossa proposta é tra-


balhar com os acontecimentos que resultaram das conversas, partindo de um pro-
blema e não de um tema isolado, como uma possibilidade de olhar para os proble-
mas que afligem nossa sociedade amplamente, como o racismo, a discriminação e
o preconceito, e afetam cada um de forma subjetiva, mas não individual. Para isso,
é necessário estar atento às nossas disponibilidades, à capacidade de reconhecer-
mos os nossos limites e à capacidade de nos deslocarmos, de nos mo- vermos, de
nos com-movermos com os outros e com o mundo.

422 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
Pensando nisso, a equipe do LEAM, orientada por seu coordenador Valter Filé,
decidiu dispor de um vídeo de relatos como dispositivo para iniciar uma conversa.
Uma conversa em que desejávamos que os estudantes refletissem sobre o que foi
visto e ouvido e assim expusessem suas vivências, suas opiniões, suas dúvidas, seus
processos formativos… O vídeo se estabelece como outra forma de narrar, com
outro tipo de linguagem, com possibilidades de recepção de outro tipo que a da
linguagem escrita, predominantemente usadas nas Instituições de Ensino. O vídeo
escolhido foi o Memórias de Formação1, uma produção do LEAM que apresenta
graduandas do curso de Pedagogia contando histórias de racismo, preconceito e
como veem o papel da escola e da formação de professores na luta por uma edu-
cação antirracista. Os depoimentos foram gravados no LEAM e estão sendo ofe-
recidos para pensarmos as relações raciais no Brasil e a formação de professores.
Após a exibição do vídeo os estudantes foram convidados a debaterem o que vi-
ram e ouviram utilizando suas memórias para contar histórias vividas por eles e por
seus familiares, refletindo sobre o papel das instituições, escola, família, mídia...
Memórias que muitas vezes são uma possibilidade de mobilização que podem dar
a ver nossos limites e potências considerando os critérios ético, estético e político.
Todo o debate gerado pelo vídeo “Memórias de Formação"1, mediado pelo coor-
denador Valter Filé, foi gravado, editado e exibido no encontro seguinte. Utiliza-
mos esse material para pensar as possibilidades mediadas pela ação de se ver e se
ouvir. Ver- se oportuniza pensar sobre os próprios conflitos, e por isso dissemos
que encontramos um caminho com o que Boaventura de Souza Santos chama de
Sociologia das Ausências (2002).

RESULTADOS E ANÁLISE
Conforme esboçamos acima, um dos intuitos do curso de extensão Sobre imagens
e a Educação do preconceito é a criação de um espaço de debate sobre as questões
raciais e as suas implicações para a formação das pessoas, assim como as questões
implícitas na produção das narrativas audiovisuais. Além disso, produzimos a partir
desses encontros dois vídeos sobre a temática que estão disponíveis no Youtube
para que desdobramentos em outros espaços-tempos continuem.
O módulo dois: Vendo e sendo visto: sobre o olhar para si mesmo, para o outro
e para o mundo foi realizado em duas etapas: modo presencial na escola e, tam-
bém, não presencial pela plataforma Schoology. Na atividade presencial tivemos
no primeiro encontro: a gravação de um debate entre os participantes que ofere-
ceram suas opiniões sobre racismo, preconceito e discriminação e formas de olhar
sobre as questões levantadas pela produção audiovisual Memórias de Formação.

1 Vídeo produzido em 2016 pelo LEAM (nosso laboratório). O vídeo tem cerca de 19min e
se configura como uma das ações do projeto de pesquisa Relações raciais nas escolas e formação de
professores. Disponível em: <https://youtu.be/RCsBAqgdMpM>. Acesso em 30 out de 2020.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 423


Artes, memória e espaços
FOTOGRAFIA 1: ENCONTRO COM OS ESTUDANTES DO C. E. ARRUDA NEGREIROS

Fonte: álbuns do LEAM

FOTOGRAFIA 2: EXIBIÇÃO DO VÍDEO MEMÓRIAS DE FORMAÇÃO

Fonte: álbuns do LEAM


FOTOGRAFIA 3: GRAVAÇÃO DO DEBATE
COM ESTUDANTES DO C. E. ARRUDA NEGREIROS

Fonte: álbuns do LEAM

Nos vídeos produzidos com os alunos do Colégio Estadual Arruda Negreiros


podemos encontrar algumas narrativas sobre o racismo no mercado de trabalho, a
falta de representatividade nos meios de comunicação e nas diversas mídias; a vio-
lência e marginalização com o povo negro, a vulnerabilidade das pessoas negras, a
negligência da Justiça nos casos de racismo e as diversas formas de camuflar/mini-
mizar atitudes racistas. Muitos evidenciaram que o racismo no Brasil é revelado a
partir da questão da imagem.
O segundo encontro se resumiu em assistir ao vídeo Conversas sobre as rela-
ções raciais e linguagem audiovisual2 - vídeo produzido a partir das gravações do
primeiro encontro presencial - nosso objetivo era discutir sobre alguns aspectos da
produção narrativa, da produção do discurso audiovisual, tendo como principal en-
foque oferecer aos participantes a oportunidade de se verem, se autoavaliarem nas
opiniões, as formas de relacionarem-se com os/as demais e os seus olhares sobre
as questões tratadas no primeiro encontro. Tivemos duas atividades no modo não
presencial, na primeira: os participantes responderam ao questionário na platafor-
ma Schoology sobre autodeclaração racial e sobre o vídeo Memórias de formação
e na segunda oferecemos mais uma vez o vídeo da gravação do debate presencial
oportunizando que eles registrassem como se viram e como viram seus colegas
de turma. Apresentamos abaixo alguns recortes de depoimentos sobre o módulo:

2 Vídeo produzido em 2018 pelo LEAM (nosso laboratório). O vídeo tem cerca de 15min e se
configura como uma das ações do projeto de pesquisa Educação das relações étnico-raciais na cultura
digital. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=pCBF2MWaSPI>. Acesso em 30 out de
2020.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 425


Artes, memória e espaços
Marília Batista: Uma nova e ótima experiência, na qual pode-
mos ver nossas qualidades e defeitos e, ainda, analisarmos nos-
sas falas de uma forma mais criteriosa, podendo então, fazer
uma narrativa melhor de nós mesmos.
Yasmim Abreu: O racismo não nasce com a criança e sim quan-
do a sociedade ou até mesmo a família cria nela, transforman-
do-a em uma pessoa racista.
Nayra Vardiero: Foi um debate muito rico em informações,
onde todos comentaram e falaram tudo aquilo que tinham de
dúvidas. Não teve aquele bloqueio em dizer o que sentia ou dei-
xou de sentir. Foi muito rico este debate.
Débora Bernardo: Foi um debate produtivo, onde houve diver-
sos relatos de casos de racismo e preconceito que alguns sofre-
ram ou puderam ver alguém sofrendo com essas atitudes. Per-
cebi a dificuldade que temos de nos assumirmos como negros.
Todos conseguiram expor um pouco sobre o que pensava e refle-
tir bem. Achei os rostos um pouco tristes acho que foi por conta
do momento... Cada um relatando os casos, meio que doeu em
nós. E doeu saber que infelizmente ainda falta muito para se
mudar isso. Acredito que tudo o que foi falado ali nos permitiu
um novo olhar! Foi estranho me ver ali, mas foi rápido, o resulta-
do da gravação ficou bem bacana.

Nosso intuito ao dispor de alguns relatos e observações não esgotam as possi-


bilidades de refletir sobre os materiais produzidos no curso. Além das produções
aqui citadas tivemos a produção de um vídeo com um compilado dessa experiência.
O vídeo, que ganhou o mesmo nome do curso, Sobre imagens e a educação do pre-
conceito3 é mais uma produção que nos convoca a pensar como nossa formação
educa nosso olhar.

CONCLUSÕES (OU CONSIDERAÇÕES FINAIS)


Referenciando-nos pelo projeto de pesquisa Educação das relações étnico-raciais
na cultura digital, pretendeu-se com este curso de extensão desenvolver meios
para pensar como as desigualdades produzidas contra negros e afrodescendentes
na sociedade brasileira, e que repercutem na educação, poderiam ser pensadas na
chamada cultura digital. Discutiu-se as possíveis contribuições para a educação das
relações étnico-raciais, que as tecnologias da informação e da comunicação - seu
ecossistema material e simbólico - podem oferecer, assim como já tem provocado
profundas mudanças na sociedade. Utilizou-se as redes sociais, as mídias digitais e
suas linguagens como dispositivos para atuarem na reflexão desses novos profes-
sores, buscando uma educação mais democrática e o incentivo aos estudos sobre
a história e a cultura da África, dos africanos e seus descendentes pelo mundo e

3 Vídeo produzido em 2018 pelo LEAM (nosso laboratório). O vídeo tem cerca de 19min e se
configura como uma das ações do projeto de pesquisa Educação das relações étnico-raciais na cultura
digital. Disponível em: <https://youtu.be/ZcVtHabe9c0>. Acesso em 30 out de 2020.

426 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
mais especificamente no Brasil, trabalhando ainda que em um curto período, para
o combate ao preconceito, à discriminação e ao racismo digital. (FILÉ 2017).
O curso Sobre imagens e a educação do preconceito teve como questão proble-
mática a pergunta: Como as imagens tem atuado na educação do preconceito? A
produção do nosso olhar e, consequentemente, as formas naturalizadas de olhar o
outro e de sermos olhados a partir do que se produz como imaginários, represen-
tações, referenciais e modelos válidos, porém consequentemente deixando deter-
minadas imagens sem serem “percebidas”, produzindo invisibilidades que excluem
determinados tipos de pessoas, lugares e espaços tidos como diferentes ou estra-
nhos. Por essa razão, alertamos e convidamos os leitores, alunos e professores em
formação para buscarem outras formas de ver e dar a ver o mundo considerando
as subjetividades das pessoas comuns, desconfiando das verdades hegemônicas
que nos coloca reféns de uma única maneira de ver e ao mesmo tempo perder a
capacidade de enxergar aquilo que desconhecemos.
Colocar em discussão os assuntos que lidamos nos debates nos oportunizou
pensar e falar sobre assuntos que são pouco discutidos, que estão colocados como
um grande mal estar/ mal resolvido na sociedade. As pessoas precisam falar, con-
tar, pensar, sentir, ver, usar a comunicação como verbo. Ao expor as conexões que
fazemos vamos dando conta de como somos formados, e assim ampliamos nossa
capacidade de pensar como atuamos no mundo e como o mundo atua em nós.
Essa é uma tentativa para re-inventarmos formas outras de nos relacionarmos, que
possibilitem o pensamento de novas formas de nos organizarmos política, social,
cultural e economicamente, criando alternativas aos paradigmas estabelecidos,
além de buscar nossa existência e viabilizar a existência de todos e que transfor-
mem os pré-conceitos que estão postos como verdades históricas e produzindo
desigualdades em reflexões para o enfrentamento das questões que nos desafiam.

REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. 10.ed. Rio de Janeiro: Fo-
rense Universitária, 2007.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis-RJ: Editora Vozes, 1998; FILÉ,
Valter. Projeto de pesquisa Educação das relações étnico-raciais na cultura digital. 2017.

GOMES, Nilma Lino. Relações étnico-raciais, educação e descolonização dos currículos.


Revista Currículo sem Fronteiras, v.12, , n.1, pp 98-109 – jan-abr de 2012,

MUNANGA, Kabengele (Org.). Superando o racismo na escola. Brasília Ministério da Edu-


cação - Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.

ROMÃO, Jeruse. História da Educação do Negro e outras histórias. Brasília: Ministério da


Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 427


Artes, memória e espaços
SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da Razão indolente – contra o desperdício da ex-
periência. São Paulo: Cortez, 2000.

SANTOS, Boaventura de Souza. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das
emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 63. Outubro, 2002.

AUTORIA
Tais de Almeida Costa
SEEDUC/RJ
E-mail: taisagbara@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5670-9284?lang=en
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1082696389708753

Graziele Alves de Lira


Prefeitura Municipal de Japeri/SEMED
E-mail: liragrazi@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2127-8629
Lattes: http://lattes.cnpq.br/554840517971484

428 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
“SER FELIZ (NO VÃO, NO TRIZ) É FORÇA QUE ME
EMBALA”: MULHERES NEGRAS INVENTANDO
TECNOLOGIAS DE SOBREVIVÊNCIA
Leidiane Macambira
Shirley Martins

Mil nações moldaram minha cara


Minha voz uso pra dizer o que se cala
Ser feliz no vão, no triz,
é força que me embala
O meu país é meu lugar de fala
(Interpretada por Elza Soares)

INTRODUÇÃO
Este trabalho é um relato de experiência, fruto de diálogos via aplicativos digi-
tais de comunicação entre duas colegas – mulheres negras – em busca de reflexão
sobre as condições de vida de mulheres negras em nosso país, e suas táticas de
sobrevivência (CERTEAU, 2014). Trata- se de um exercício reflexivo sobre o que
temos considerado tecnologia e como ela influi em nossas vidas. Para isso, busca-
mos, a partir de uma personagem conceitual – a Comadre Mary Lu, presente no
samba composto por Luiz Grande, Marcos Diniz e Barbeirinho do Jacarezinho – ele-
mentos que nos ajudem a entender as diversas tecnologias criadas por mulheres
negras a fim de produzir modos de resistência para si e para os seus neste mundo
estruturado no racismo e no patriarcado. Tais discussões são desdobramentos de
estudos realizados no LEAM (Laboratório de Estudos e Aprontos Multimídias: rela-
ções étnico-raciais na cultura digital) no qual buscamos conhecer alguns dos efeitos
produzidos pelas novas tecnologias nas desigualdades provocadas pelas relações
raciais. Como elas atuam no combate, na resistência e-ou reafirmação do racismo.
Inspiradas na personagem Mary Lu, conversávamos pelo WhatsApp (um aplica-
tivo de mensagens instantâneas muito usado na atualidade por escolas e setores
de trabalho remoto nos tempos de pandemia) sobre nossas experiências e encan-
tamentos com as inúmeras histórias de mulheres negras, ou ao menos não bran-
cas, que, em meio a todo um sistema de opressão, conseguiram resistir e deram
a volta por cima. Tais feitos não foram casos de sorte, muito menos da “benevo-
lente” ação de terceiros, como vemos nas histórias dos contos de fadas europeus,
em que a gata borralheira é salva por um príncipe. Essas mulheres, portanto, não
precisaram de príncipes; elas mesmas produziram suas magias, ou, melhor dizen-
do, elas mesmas criaram suas tecnologias de serem felizes, no vão de suas vidas,

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 429


Artes, memória e espaços
imersas em uma sociedade cuja cultura está estruturada no patriarcado, na miso-
ginia, no machismo e no racismo.
Em meio a essas conversas, lembramo-nos dos demorados papos que batía-
mos em viagens de trabalho durante a semana no ônibus Lagoa - Centro do Rio,
por volta das 18 horas. Horário comum de saída das empregadas domésticas e
das professoras que lecionam no turno da tarde. Dividíamos a condução, ao pas-
so que partilhávamos histórias. Não demorava cinco minutos para começarmos a
conversar. Iniciava-se sempre por uma reclamação sobre o trânsito ou o fato de o
ônibus estar cheio… Mas depois a conversa seguia para as histórias do árduo dia
de trabalho, das fofocas das patroas e dos surreais pedidos de serviço – como la-
var 10 banheiros em um único dia ou oferecê-la de empréstimo para faxinar casas
de amigas gratuitamente –, essas contradições da “boa” e “complacente” elite do
Rio de Janeiro. Compartilhavam suas histórias, talvez porque tivéssemos a cara da
classe que se ocupa dos serviços insalubres e mal pagos do nosso país. Será que se
enganaram? (rsrsrsrs) Talvez a educação básica pública esteja dentro dessa mesma
categoria, se considerarmos as escolas de periferia praticamente esquecidas pelas
políticas públicas.
As experiências de conversar com essas mulheres nos fez perceber o quanto
de história e de resistência transita dentro dos ônibus. Por feliz coincidência, o
coletivo é um meio de transporte, uma mídia por onde é possível fazer circular
pela cidade as inúmeras histórias que não ouvimos nas mídias hegemônicas, como
a televisão e as mídias digitais. Quando muito, elas aparecem de modo caricato,
mostrando as relações entre empregada e patroa – mulher negra e mulher branca
– sempre com muito eufemismo, reafirmando o mito da “democracia racial”.
Mais felizes ainda ficamos quando descobrimos que, na Grécia, o meio de trans-
porte é chamado de metáfora, “[...] uma metáfora-transporte dos deslocamentos,
das mobilidades, das comunicações e das trocas simbólicas do mundo do samba
[e também das mulheres negras] e de todos aqueles que se reconhecem nele”
(FILÉ, 2010, p. 132). Gostamos desses sentidos e os trouxemos para brincar com as
palavras que circundam esta comunicação a fim de pensar as muitas questões que
nos surgiram.
Desse modo, intentamos fazer circular nossas histórias: duas mulheres negras
educadoras em formação que, durante a pandemia, em que não podemos circular
nos ônibus, fomos criando outros meios para sentarmos juntas – virtualmente – e
continuar as conversas. Por muitas vezes, sentou-se ao nosso lado a comadre Mary
Lu, uma mulher negra que por muitos anos foi empregada doméstica na Zona Sul.
Para não quebrar a tradição, ela se virou para nós, reclamou do tempo e começou
a papear: comunicou suas táticas de sobrevivência na lida com sua patroa. Com
ela aprendemos algumas questões importantes para pensarmos as tecnologias e
as relações raciais. O texto a seguir é uma composição realizada a partir dessas
conversas. Portanto, sua estética é fruto de uma composição possível a partir das
artes de fazer das quais lançamos mão nestes tempos. Sua estrutura pode não

430 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
ser tão harmoniosa, como esperado para um texto acadêmico, mas foi o possível
nas ocasiões em que estávamos: músicas, videochamadas, ligações, mensagens de
áudio, mensagens de texto, desabafos, risadas, preocupações… Uma tentativa de
exercitar o que aprendemos das conversas, de irmos juntando os “cacarecos”, frag-
mentos de pensamentos, e compor este ensaio.
Vejamos o samba pelo qual a conhecemos. Foi composto por Barbeirinho do
Jacarezinho, Luiz Grande e Marcos Diniz em 1998.

Benza Deus
A comadre Mary Lu
Que já fez muita faxina
Pra gente grã-fina
Lá na Zona Sul (lá na Zona Sul)
Ganhou cacareco pra chuchu
Hoje ela é empresária
Tem brechó na área de Nova Iguaçu

Mary Lu tem de tudo em seu antiquário Sumiê,


cristaleira, fogareiro e armário
Peça de vestuário
Pra quem não tem grana
Ela é muito bacana
Até faz crediário
Ela facilita qualquer transação
Mas se leva uma volta
A nega vira um cão
Ainda está pra nascer
Outra preta pra ter tanta disposição

Em cadeira velha ela passou verniz


Em gravura da antiga tirou cicatriz
Deu um duro danado
Sofreu um bocado
Mas hoje ela tem filial e matriz
E aquele cafifa que lhe gavionava
Ela mandou às favas porque não venceu
Hoje está estribada
Muito bem amada
E quem sabe, sou eu

Mary Lu é uma das muitas mulheres que moram em nossa cidade, que transitam
diariamente da periferia à Zona Sul, cruzando os nossos caminhos, sentando-se ao
nosso lado nos coletivos e até mesmo fazendo parte das nossas famílias. Mulheres
comuns, que na paisagem da cidade passam quase invisíveis. Nesse trânsito, Mary
Lu transportou aquilo que, para a elite, não tinha serventia, talvez usado até como
complemento do pagamento por seus serviços. Os cacarecos são reaproveitados e
ressignificados, fazendo deles artesanato para a produção de uma vida possível de
ser feliz. Uma felicidade que não cabe nos princípios individualistas do capitalismo,

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 431


Artes, memória e espaços
são “práticas comuns que apontam processos mais solidários e cooperativos, que
abrem caminhos e criam condições de possibilidades para uma vida outra, mais co-
operativa e solidária, nesses cotidianos vividos” (FERRAÇO; GOMES, 2013, p. 475).

MULHERES NEGRAS E SUAS ARTES DE FAZER NA PANDEMIA


[05/08 16:52] Mary Lu: Saiu há pouco tempo uma notícia no site da ONU Mulhe-
res1. Vocês viram? Lá dizia que a pandemia está afetando com muito mais agressivi-
dade as periferias de nossa cidade. Sinto-me comprometida a ter que fazer alguma
coisa para que isso não agrida com tanta força meus parentes e amigos. Como
informado na notícia, vários coletivos de mulheres se mobilizaram para diminuir
esse impacto. Estamos produzindo máscaras, distribuindo cestas básicas, produtos
de higiene… “Esta mobilização tem envolvido diversos grupos: agricultura familiar,
trabalhadoras domésticas, marisqueiras, catadoras e mães de jovens negros assas-
sinados” (MEIO DIGITAL, 2020).

[05/08 16:58] Leidiane: Lendo a notícia e ouvindo o que está sendo feito, fico pen-
sando nos elementos presentes nos fazeres e na luta por liberdade que podemos
perceber na vida dessas mulheres, as quais também percebo na sua vida, Mary Lu,
e nas nossas também. Também os vejo na vida de outras mulheres como Elza So-
ares, Dandara dos Palmares, Beatriz do Nascimento, Esperança Garcia, Lélia Gon-
zalez e tantas outras que não nasceram na chamada “Era da Cultura Digital”, mas
que têm muito a nos ensinar sobre tecnologia. Acredito que o que elas produziram,
com seus modos de vida, pode nos ajudar a pensar a educação das relações raciais
na chamada cultura digital.

Mas é justamente aquela negra anônima, habitante da periferia,


nas baixadas da vida, quem sofre mais tragicamente os efeitos
da terrível culpabilidade branca.

Exatamente porque é ela que sobrevive na base da prestação de


serviços, segurando a barra familiar praticamente sozinha. Isto
porque seus irmãos ou seus filhos são objeto de perseguição po-
licial sistemática (esquadrões da morte, “mãos brancas” estão aí
matando negros à vontade; observe-se que são negros jovens,
com menos de trinta anos. Por outro lado, que se veja quem é
a maioria da população carcerária deste país) (GONZÁLEZ, 1988,
p. 231).

[06/08 09:00] Shirley: Fiquei muito provocada por essas questões, de trabalharmos
a tecnologia a partir da poderosa comadre Mary Lu. Eu não sei se a gente teria per-
nas diante da imensidão de elementos que são possíveis. Acho que temos que es-

1 Notícia na íntegra: Mulheres Negras inovam em estratégias de apoio comunitário à popula-


ção negra na resposta à Covid-19.

432 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
tudar muita coisa. Será que damos conta? Mas algumas coisas foram acontecendo
neste período de isolamento, e confesso que tenho ficado muito mais ligada a isso.

[06/08 09:30] Leidiane: Eu gostei muito! Quando Filé2 fez essa provocação, pois
assim acho que foi, mais que uma proposta, uma provocação. Enfim, na hora, tam-
bém me pareceu algo muito grandioso e até impossível, dado o tempo de que dis-
pomos. Acho que em nossa conversa e na interlocução com a provocação feita por
ele existem elementos muito caros. Não podemos desperdiçá-los.

[07/08 16:40] Leidiane: Shirley, acredito que Mary Lu e o prefácio escrito por Emi-
cida praquele livro que estamos estudando – Comunidades, algoritmos e ativismos
digitais: olhares afrodiaspóricos –, podem nos ajudar a dar corpo a essas questões.
Quando ele vai falar sobre as tecnologias, que não são tão novidadeiras assim,
como está presente no imaginário coletivo, pensando, por exemplo, na diáspora
africana, fico imaginando as inúmeras tecnologias criadas pelos nossos ancestrais
para conseguir se comunicar entre si, mesmo sendo de países distintos, e tendo
que ouvir e falar apenas a língua de seu opressor.

DAS ARTES DE FAZER E SUAS TECNOLOGIAS

Mas o que é que África tem a ver com tecnologia? [...] Oras, se
a essência das redes sociais é a conectividade, está para nascer
uma que cumpra seu papel com mais eficácia do que um tam-
bor. Sentar-se em círculos, ouvir histórias (principalmente) dos
que vieram antes e extrair os melhores sentimentos dos parti-
cipantes, ressaltando como a escuta é valiosa, me parece estar
anos-luz à frente do mais promissor sonho de funcionalidades
facebookianas de Mark Zuckerberg (EMICIDA, 2020, p. 7).

Emicida traz como contraposto à conectividade pretendida pelas redes sociais


virtuais as culturas de origem africana, expressas, na escrita dele, na figura do tam-
bor, do sentar-se em roda para contar e ouvir histórias de seus ancestrais.
Necessitamos compreender o conceito de tecnologia. Em sua etimologia, no
grego, “tekhnología”, o radical “tekhno-”, de “tékhné”, está relacionado à arte,
ao artesanato. Se pensarmos que o principal exercício proposto pelas atuais tec-
nologias digitais é a produção de conectividade e comunicação, essas, portanto já
vinham há muito sendo praticadas pelas nossas antepassadas.
[08/08 18:00] Mary Lu: Trazendo para hoje, também encontramos formas que po-
deriam impossibilitar a comunicação na educação em meio à pandemia em que

2 Prof. Dr. Valter Filé, coordenador do LEAM - Laboratório de Estudos e Aprontos Multimídia:
A educação das relações étnico-raciais na cultura digital. Também nosso professor e orientador de
pesquisas.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 433


Artes, memória e espaços
estamos vivendo: conexões banda larga de alto custo e que não chegam a regi-
ões mais remotas de nosso estado, plataformas digitais pesadas como proposta
de educação remota, meios de acesso a benefícios sociais – como o auxílio emer-
gencial – cujo cadastro deu-se através de celulares e altas conexões etc. E ainda a
agravante realidade de pessoas que não nasceram na chamada era digital e que
têm muitas dificuldades para se familiarizar com essas novas demandas. No entan-
to, em meio a um turbilhão de impossibilidades, as pessoas conseguem produzir
modos de vida possíveis de serem vividos e de não sucumbirem à opressão. E o que
mais me deixa intrigada é ver como essas pessoas continuam suas vidas e ainda vão
criando redes de apoio para a sua comunidade.

[08/08 18:40] Leidiane: Mary Lu, o que você trouxe com sua fala, em diálogo com
o prefácio do Emicida, me faz pensar na força das palavras. Não digo apenas na
palavra escrita – pois desta já conhecemos o grau de importância nesta sociedade
grafocêntrica. Chamo a atenção para as múltiplas possibilidades de nos comuni-
carmos por meio da palavra. Há poucos dias li um capítulo do livro de bell hooks,
em que fala sobre a linguagem. Ela falava sobre a situação das pessoas que vieram
trazidas nos navios negreiros: sem suas roupas, adereços e os símbolos religiosos.
Eu até já ouvi falar que tinham suas cabeças raspadas para que não fossem identi-
ficáveis as etnias a que pertenciam. Dentro dos navios havia misturas entre grupos,
cada um com uma língua diferente. hooks, em seu livro, imagina a aflição de estar
no meio do oceano sem saber para onde iria, ouvindo e tendo de entender uma
língua desconhecida – a língua dos traficantes, a língua do opressor. Mas é neste
lugar, que não necessariamente é o seu, que essas pessoas encontram modos para
sobreviver, como expresso na poesia de Adrienne Rich: “Esta é a língua do profes-
sor, mas preciso dela para falar com você” (hooks, 2017, p. 225).

[09/80 08:00] Shirley: Essa poesia me faz pensar nos movimentos produzidos por
Mary Lu ao receber os cacarecos e transformá-los em elementos para produzir sua
autonomia. Talvez a patroa tenha usado esses utensílios como barganha para jus-
tificar o salário mal pago. Enquanto acreditava seguramente que estava se dando
bem com essas trocas e economizando nos baixos salários pagos à sua empregada,
a poderosa comadre estava fazendo daquilo que deveria ser sua aniquilação, as
armas do dominador – a palavra do opressor – um dispositivo para sua libertação.

[09/08 09:00] Leidiane: Então acho que essa proposta de pensar as tecnologias
como algo mais amplo e que expande a ideia de artefatos digitais, pensando a
comunicação e a linguagem como táticas de sobrevivência de mulheres negras
para transgredir os lugares preestabelecidos por uma ordem dominante: o lugar
da escrava e objetos de fetiches dos senhores brancos, a empregada e inimiga da
senhora branca, a ama de leite, mãe preta (por nossas ancestrais), bem como o
lugar da empregada doméstica como podemos ver no samba da poderosa Mary

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Artes, memória e espaços
Lu. Ela tem me ajudado a esgarçar os sentidos que eu tinha ao ler a poesia. Antes,
eu a percebia apenas no nível da palavra, mas agora ela se torna muito mais ampla.

AS TECNOLOGIAS AO LONGO DA HISTÓRIA


[01/09 09:00] Leidiane: Estava pensando na comadre Mary Lu, sobre sua ocupação
– empregada doméstica. Um trabalho comum a muitas mulheres negras que vivem
nas periferias do nosso estado. Essa não é uma informação estanque de nosso
contexto histórico. A vida dela me fez pensar no período pós-Abolição e nas condi-
ções de vida de mulheres, agora “livres”, com muitas aspas (rsrsrsrs). No período
pós-Abolição, por exemplo, muitas mulheres assumiram postos de trabalho como
babás e quitandeiras para suprir a ausência do Estado na garantia de alimentação
e moradia.

[01/09 09:20] Shirley: Com base em estudos feitos por Sueli Carneiro (2018), temos
um número muito grande de mulheres negras na ocupação de serviços insalubres,
como babás, lavadeiras, faxineiras e empregadas domésticas, percebendo os mais
baixos rendimentos. No entanto, são essas mesmas mulheres, como apresentado
por estudos da ONU Mulheres, que concentram maior responsabilidade na gestão
financeira de suas famílias – entendendo-se aqui que a família a que nos referi-
mos não é a família nuclear branca burguesa – trata-se de famílias compostas por
membros de diferentes gerações com ou sem vínculo sanguíneo. Em contraponto,
percebemos ainda que essas mesmas mulheres têm sido destaque na produção de
resistência frente ao agravante quadro de pandemia que estamos vivendo.

[01/09 19:00] Mary Lu: O lugar da casa tem sido um lugar de sobrevivência, pois é
com esse trabalho que encontro meios de sustentar minha família. Mas é também
o lugar de confinamento das mulheres negras, o lugar de ocultação dessas presen-
ças dos lugares públicos de produção de saberes e discussões políticas.

[01/09 19:40] Leidiane: Se no período escravocrata as mulheres escravizadas não


tinham suas vozes ouvidas nas assembleias coletivas, principalmente aquelas cuja
discussão envolvia os direitos sobre o seu próprio corpo… Após a Abolição, elas
continuam sendo submetidas ao lugar da invisibilidade, o lugar da cozinha, na casa
de suas patroas.

[...] o trabalho doméstico tem sido historicamente o campo que


mais absorveu a mão de obra negra e feminina, mantendo, no
entanto, essas trabalhadoras em situação de informalidade, sem
acesso aos direitos trabalhistas garantidos para outras catego-
rias, em uma espécie de prolongamento de aspectos do traba-
lho escravo (OLIVEIRA; LIMA, 2020, p. 203).

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 435


Artes, memória e espaços
Contudo, sendo empregadas domésticas, amas de leite, mães pretas, as mulhe-
res negras do período pós-Abolição "participaram da construção e da reconstrução
(dos) saberes de resistência" (COLLINS, 2019, p. 45) que hoje fazem parte do mo-
vimento negro. "Em suma, a participação das mulheres negras na elaboração de
uma cultura afro-americana em constante mudança estimulou visões de mundo
especificamente negras e centradas nas mulheres" (COLLINS, 2019, p. 45).
São estas as tekné que trazemos como ponto de força e reflexão neste traba-
lho. “O trabalho doméstico levou à exploração econômica das [brasileiras] negras,
mas ao mesmo tempo criou condições para formas de resistência especificamente
negras e femininas” (COLLINS, 2019, p. 45) A tekné como arte. As artes de fazer de
mulheres negras como Mary Lu e tantas outras que vivem anônimas transitando
pela cidade produzem suas vidas como obras de arte que se querem originais, re-
jeitando as representações a que são submetidas diariamente e que as colocam em
constante lugar de subalternidade.

[01/09 22:00] Shirley: Lendo uma pesquisa sobre a sobrevivência da mulher negra
nos dias atuais, Taís Oliveira e Dulcilei C. Lima (2020) trazem as seguintes proble-
matizações:

Embora tenham se passado mais de 130 anos desde o pós-Abo-


lição, a condição da mulher negra no campo do trabalho ainda
é uma preocupação que deveria, em um mundo ideal, ter aten-
ção de qualquer governo que pretenda compreender no deta-
lhe as mazelas das precariedades sociais. Ou seja, aquelas que
carregam os estigmas do machismo, preconceito de classe e do
racismo são importantes fontes de colaboração para o desenvol-
vimento de melhorias coletivas (OLIVEIRA; LIMA, 2020, p. 201).

[02/09 01:00] Leidiane: Hoje lendo Lélia González me atentei para algo interessan-
te que dialoga com a pesquisa feita pelas autoras que você trouxe.

Por que será que ela só desempenha atividades que não impli-
cam em “lidar com o público”? Ou seja, em atividades onde não
pode ser vista? Por que os anúncios de emprego falam tanto em
“boa aparência”? Por que será que, nas casas das madames, ela
só pode ser cozinheira, arrumadeira ou faxineira e raramente
copeira? Por que é “natural” que ela seja a servente nas escolas,
supermercados, hospitais, etc. e tal? (GONZALEZ, 1984, p. 233).

[02/09 01:05] Leidiane: Oliveira e Lima (2020) e Gonzalez (1984) tocam em pontos
muito necessários para a nossa conversa sobre as ausências e a invisibilização que
são naturalizadas nas paisagens urbanas, falam do fato de acharem comum e natu-
ral ver mulheres negras uniformizadas transitando pelas regiões elitizadas de nos-
sa cidade e considerarem incomum e até mesmo inconcebível vê-las em lugares de
liderança, gestão pública, espaços acadêmicos etc.

436 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
[02/09 06:00] Shirley: Outro ponto que não podemos deixar de trazer para esta
roda é que nunca estamos sós. Uma pesquisa feita pela Unesco Mulher alerta para
a importância de investimentos de políticas públicas em mulheres para o cres-
cimento do país, pois elas multiplicam esse valor entre os seus. Como exemplo
disso temos os projetos realizados no período de gestão de Lula e de Dilma que
eram registrados no nome da mulher: Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida… E
agora, o auxílio emergencial. Acho que esse movimento remete às mulheres no
pós-Abolição em que se tornaram babás, quitandeiras, lavadeiras etc. para livrar
suas famílias da fome. Essas mesmas formas de gerir a vida e gerar condições de
sobrevivência dão a ver tecnologias que considero importantes para pensarmos os
problemas raciais e de desigualdades em nosso país.

PUXANDO A CIGARRA: ESTÁ CHEGANDO O PONTO ONDE


DEVO DESCER. OU AS CONSIDERAÇÕES FINAIS
[05/09 06:00] Mary Lu: Assim tenho feito em minha comunidade. Abri um brechó e
uma filial em Nova Iguaçu. Vendo de tudo, “sumiê, cristaleira, fogareiro e armário”
(GRANDE; DINIZ; JACAREZINHO, 1998). Para aquelas que não têm grana, eu facilito
a compra, faço até crediário.

[...]Mas se leva uma volta


A nega vira um cão
Ainda está pra nascer
Outra preta pra ter tanta disposição
Benza Deus
A comadre Mary Lu

[05/09 09:00] Leidiane: Mary Lu, muitas são as redes de apoio criadas nas comuni-
dades por mulheres negras. Dando suporte umas às outras, vivendo os seus dias,
transitando pela cidade a caminho da Zona Sul. Trazendo os cacarecos que, en-
vernizados, podem se tornar peças de luxo de bem-estar nas casas da periferia.
Circulando nas “metáforas”, fazendo circular as histórias de resistência e rendições
nessa luta que enfrentamos todas.

[05/09 09:10] Shirley: A gente está às voltas com tantos afazeres, mas sempre
atentas a tudo que tem sido nossa paixão. Este trabalho, para além de um trabalho
científico, tem sido um momento de respiro que vamos encontrando no dia a dia. A
partir dessas artes de fazer (CERTEAU, 2014) das mulheres com as quais vamos nos
encontrando, com quem vamos aprendendo a problematizar a produção tecnoló-
gica na chamada era digital, cujos louros são apenas colhidos por pequena parte da
população mundial, na qual não fomos inseridas.
A viagem foi rápida. Chegamos ao ponto de destino de Mary Lu, mas ainda fal-
ta muito para o ponto final. Muitos assuntos ficarão para as próximas conversas,

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 437


Artes, memória e espaços
como por exemplo: o fato de ser narrada por três homens: a música foi composta
por três homens, isso nos deixou intrigadas… Será que não reforça a ideia de não
termos voz? De que sempre falam no nosso lugar? No entanto, em nossas conver-
sas percebemos que, mesmo na boca de três vozes masculinas, o poder de Mary Lu
não é apagado. Pelo contrário, o narrador se coloca em um lugar de instabilidade
porque ele sabe que não é dono dela. Sabe que sua participação na vida dela é uma
permissão. No entanto, ele sabe muito bem o que aconteceu com o “cafifa que lhe
gavionava. Ela mandou às favas porque não venceu” (GRANDE; DINIZ; JACAREZI-
NHO, 1998).
Talvez a música seja até um elogio a ela para que ele continue sendo amado e
aceito em sua vida. Ela se empodera, a partir do novo trabalho, e até mesmo cria
condições de escolher o próprio parceiro, não se submetendo mais ao que a explo-
rava. Essas questões ficam conosco como provocações feitas pela própria Mary Lu.
Também a deixamos aqui nas considerações com a intenção de que outras mulhe-
res possam sentar-se ao nosso lado para dar continuidade à conversa.

REFERÊNCIAS

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano 1: Artes de fazer. 22ª ed. Petrópolis: Vozes,
2014.

COLLINS, Patrícia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a políti-


ca do empoderamento. São Paulo: Boitempo, 2019.

ELZA SOARES. O que se cala (Douglas Germano). Rio de Janeiro: Gravadora Deck: 2018
(Meio digital). (3’58”). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=5ypEw_9BF-
fQ. Acesso em: 04 ago. 2020.

EMICIDA. Prefácio. In: SILVA, Tarcízio (Org.). Comunidades, algoritmos e ativismos digi-
tais: olhares afrodiaspóricos. São Paulo: Literarua, 2020. p. 7-8. Disponível em: https://
www.researchgate.net/publication/339954112_Comunidades_Algoritmos_e_Ativismos_
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FERRAÇO, Carlos E.; GOMES, Maria Regina L. Sobre as redes que tecem praticaspolíticas
cotidianas de currículo e de formação de professores/as. Currículo sem Fronteiras, v. 13,
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GONZÁLEZ, Lélia. Por um feminismo afrolatinoamericano. Isis Internacional, Santiago, v.


IX, p.133-141, jun. 1988.

GRANDE, Luiz; DINIZ, Marcos; JACAREZINHO, Barbeirinho do. Mary Lu. Rio de Janeiro:
1998. Samba.

HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade. Trad. Mar-
celo Brandão Cipolla. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.

438 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
OLIVEIRA, Taís; LIMA, Dulcilei C. Mulheres e tecnologias de sobrevivência: economia
étnica e afroempreendedorismo. In: SILVA, Tarcízio (Org.). Comunidades, algoritmos e
ativismos digitais: olhares afrodiaspóricos. São Paulo: Literarua, 2020. p. 201-217. Dis-
ponível em: https://www.researchgate.net/publication/339954112_Comunidades_Algo-
ritmos_e_Ativismos_ Digitais_olhares_afrodiasporicos. Acesso em: 01 out. 2020.

ONU MULHERES (Brasil). Mulheres Negras inovam em estratégias de apoio comunitário à


população negra na resposta à Covid-19. 2020. Disponível em: http://www.onumulheres.
org.br/noticias/mulheres- negras-inovam-em-estrategias-de-apoio-comunitario-a-popu-
lacao-negra-na-resposta-a-covid-19/. Acesso em: 11 jul. 2020.

AUTORIA
Leidiane dos Santos Aguiar Macambira
Doutoranda em educação pelo PPGEducação-UFF (Com bolsa da CAPES) E-mail:
leidianemacambira@id.uff.br
ORCID: 0000-0001-9073-2448
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3966779203035543

Shirley Martins da Silva Camillo


Graduanda em Pedagogia pela UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro
E-mail: shirleymartins.sm1@gmail.com
ORCID: 0000-0002-8345-0386
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4436864166105875

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Artes, memória e espaços
FIO A FIO NA LUTA CONTRA O RACISMO: AS
EXPERIÊNCIAS DE MULHERES NEGRAS NA
TRANSIÇÃO E AS MÍDIAS
Rejane Macedo
Ana Luisa Aguiar

INTRODUÇÃO
O que o cabelo crespo fez para ser chamado de ruim? O cabelo crespo dos
negros e das negras é visto como uma das expressões do racismo que cada vez
mais recai sobre estes sujeitos. Ao levantarmos esta questão, fazemos a escolha de
narrarmos nossas histórias de transição capilar. Por muitos anos, nós duas, subme-
temos os nossos cabelos crespos a processos químicos de alisamento sob o argu-
mento de que o cabelo liso era o mais “belo”. Relatamos fio a fio a luta que temos
travado contra o racismo, a partir de um elemento que pensamos ser simbólico - o
cabelo crespo - que é visto como parte de um sistema estruturalmente racista que
nega direitos, impõe estigmas e oprime os sujeitos.
O desejo então é narrar experiências levando em conta o que Larrosa (2002) diz
sobre aquilo que nos passa, nos acontece e afeta. Com isso, as experiências têm
uma dimensão singular, mas que também é coletiva, porque precisa do encontro,
do outro sujeito. Isto nos ajuda a pensar sobre o nosso encontro e de como as nos-
sas histórias se entrecruzam, tendo a questão da identidade negra e da transição
capilar como vivências em comum. Desse modo, é possível pensar que nenhum
processo identitário se constrói no isolamento, se desdobrando como algo nego-
ciado durante a vida toda, nas relações sociais e a partir da dialogicidade. A cons-
trução das identidades negras é um “movimento que não se dá apenas a começar
com o olhar de dentro, do próprio negro sobre si mesmo e seu corpo, mas também
na relação com o olhar do outro, do que está fora” (GOMES, 2019, p.28).
É importante informar a você leitor que fazemos parte do LEAM - Laboratório
de Estudos e Aprontos Multimídia: relações étnico-raciais na cultura digital, vin-
culado a Universidade Federal Fluminense. Durante um encontro do LEAM surgiu
entre nós duas o desejo de propor uma escrita que tratasse sobre as experiências
de transição capilar, apontando a dificuldade da aceitação dos nossos cabelos cres-
pos. Percebemos também que esta questão vem sendo desconstruída no decorrer
de um processo de nos tornarmos negras e educadoras, pois temos entendido que
durante anos fomos forçadas a alisar o cabelo para nos aproximarmos da beleza da
mulher branca, sob o argumento de que nossa beleza foge aos padrões eurocêntri-
cos. Temos visto que o cabelo da população negra é um elemento constantemente
manipulado com o objetivo de mascarar o preconceito que tal titude carrega, de
discriminar a pessoas negras e silenciar histórias de vida, histórias estas muita das

440 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
vezes negadas. Segundo Gomes (2003, p. 6-7), o cabelo crespo é usado como forte
argumento para retirar as pessoas negras dos lugares da beleza, sobretudo as mu-
lheres negras. Podemos dizer que isso ocorre nas múltiplas relações de poder que
atravessam a sociedade, seus modos de funcionamento e seus discursos.
Ao assumirmos os nossos cabelos crespos e deixarmos para trás a ditadura do
liso, pensamos que tal atitude pode ser considerada como forma de resistência e
de afirmação de nossa negritude (MUNANGA, 2015). Vamos tomando a consciên-
cia de que a expressão “cabelo ruim” que muitos utilizam para se referir ao cabelo
crespo, expressa uma das faces do racismo e da desigualdade social que recai às
pessoas negras. Com isso, apresentamos outras questões que nos inquietam e que
serão desenvolvidas no decorrer da escrita deste texto: até que ponto a catego-
rização e hierarquização dos cabelos são naturalizados em uma sociedade racis-
ta? Por que o cabelo crespo do negro é considerado “ruim” e o cabelo do branco
é considerado “bom”? Tal naturalização pode de alguma forma desencadear um
conflito que força as mulheres negras a alisar o cabelo na tentativa de sair/escapar
da inferioridade?
Comentários tipo: cabelo duro, armado e de Bombril1 eram associados aos nos-
sos cabelos e nos afetaram muito. Possivelmente outras mulheres também foram
atingidas por estes comentários. De certa forma ao negarmos nossa negritude
estávamos perseguindo nosso próprio corpo e seguíamos perseguindo o ideal do
branqueamento quando alisávamos os nossos cabelos crespos. Perseguimos o ide-
al da beleza eurocêntrica e buscávamos de algum modo destruir os sinais da cor
negra dos nossos corpos. Por que agimos assim? De forma automática estamos nos
sujeitando ao racismo, suprimindo a nossa negritude.
Estas questões são aqui assumidas como elementos disparadores que colabora
com a temática levantada neste texto. Buscamos problematizar em que medida
os nossos processos de transição capilar podem ser compreendidos como um dos
marcadores da nossa negritude, como símbolo de resistência, cobate ao racismo e
neste sentido, iremos refletir em que medida as nossas relações com as mídias so-
ciais digitais contribuíram e motivaram a nos assumirmos como mulheres negras.
Apresentamos a seguir algumas das nossas experiências da transição capilar, des-
tacando que a aceitação dos nossos cabelos teve grande influência dos sites que
visitamos e as pesquisas que realizamos em buscadores da internet. Pensamos que
as tecnologias de comunicação digital se desdobraram e se ressignificaram como
ferramentas decoloniais que inspiraram e deram apoio mútuo para a expansão da
autoestima, da negritude, ajudando a desfazer a predominância da beleza euro-
cêntrica em nossas vidas.

1 BomBril é uma marca de produtos de limpeza, o qual na década de 1950 lança uma linha
de esponja de aço chamada “Krespinha”. Esta usa a imagem de uma menina negra, onde faz alusão
ao cabelo da mesma. Por esta razão a identificação do produto é visto em discursos racistas. No
entanto, recentemente a marca retorna com a mesma linha, onde acaba sendo denunciada pelas
redes sociais como prática racista e é retirada do mercado. https://economia.uol.com.br/noticias/
redacao/2020/06/17/bombril-acusacao-racismo-produto.htm

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 441


Artes, memória e espaços
ASSUMIR O CABELO CRESPO - FIO A FIO NA LUTA CONTRA O
RACISMO
Existe uma mobilização com relação à luta e combate ao racismo e esta questão
se torna como uma das pautas da internet. Desde reportagens tratando sobre o ra-
cismo, até as blogueiras negras que narram suas experiências na transição capilar,
tudo isso de alguma forma nos afetou/afeta, fazendo-nos problematizar as nossas
vidas. O Brasil atualmente se encontra mergulhado em uma crise política que tem
deflagrado outras crises secundárias.
Dentre elas podemos destacar o fato de que os índices de violência contra a
mulher têm aumentado e isto é algo que precisa ser combatido. No cenário de tal
violência, a mulher negra enfrenta muitos desafios, pois além de ser violentada por
conta de seu gênero, também passa a ser agredida por conta da sua cor. Esta luta
diária tem demonstrado a importância da articulação entre mulheres no combate
ao racismo e a violência doméstica.
A união entre mulheres negras vem ganhando terreno na sociedade e o em-
poderamento destas mulheres também ganha espaço nas mídias sociais digitais
(Facebook e Instagram). As postagens relacionadas à autoestima e aceitação tra-
zem questões importantes de forma explícita ou implícita que vão tratar sobre
temas importantes, dentre eles o debate sobre transição capilar. Os depoimentos
de muitas mulheres negras nos inspiram, pois falam de superação de preconceitos
e empoderamento (reafirmação e autoafirmação).
De forma a nos ajudar a pensar na temática proposta, apresentamos como pos-
sibilidade o desejo de compor uma escrita entre nós a partir de duas crônicas,
retalhos de vida de cada uma, buscando assim trazer à tona algumas experiências
na transição capilar.

A MEMÓRIA QUE EU NÃO TINHA DO MEU CABELO CRESPO:


COMO ASSIM?- REJANE MACEDO
Não nasci branca e o meu cabelo nunca foi liso. Mesmo assim meu pai branco
mandava minha mãe negra alisar o meu cabelo com henê, passar chapinha baiana
e pente quente para que ficasse bem liso. Ele acreditava que assim eu poderia
passar como uma menina branca. Meu pai me colocava na frente do espelho e
mandava repetir que eu era “branca.” Por muitos anos eu também acreditei nisso.
Aos 40 anos de idade começo a me olhar, a sofrer e a querer resgatar minha an-
cestralidade. Fui pegando um desvio nos caminhos que estava seguindo. Foi uma
batalha me reconhecer negra. Olhava-e no espelho e não me reconhecia. Meu
cabelo alisado camuflava quem eu realmente era: uma mulher negra. Sentia-me
perdida. Eu não tinha a memória do meu cabelo crespo? Não lembrava da sua
textura, volume e muito menos se ele era crespo mesmo. Tomei a decisão de não
alisar mais o meu cabelo. Isso foi muito difícil. Tinha medo de não ser aceita como

442 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
mulher. Parei de fazer a escova progressiva. Cresceram três dedos ou quatro de
um cabelo crespo que não conhecia. Que cabelo era este? Perto da minha casa
tinha um salão de beleza e a cabeleireira que trabalhava lá era negra. Sempre via
muita movimentação por lá. Meninas e mulheres negras com seus cabelos crespos
e volumosos indo ao cabeleireiro pra fazer o que? Comecei a pesquisar na internet
sobre cabelos crespos e a cada pesquisa os buscadores me apresentaram como
resultados reportagens sobre tratamentos químicos e transição capilar para cabe-
los crespos. Quando clicava em buscar imagens, os resultados que me eram dados
traziam mulheres anônimas e famosas com seus mais variados tipos de cabelos
crespos. Comecei a me reconhecer nessas mulheres negras e me perguntar por
que meu cabelo crespo seria considerado ruim? O que me levava a pensar dessa
maneira? Foi aí que um dia saí em disparada para aquele salão. Sentei na cadeira
e falei para ela cortar aquele cabelo liso, pois ele não era meu. Mostrei uma foto
que estava no meu celular de uma mulher que postou no Instagram um corte de
cabelo que achei muito bonito. A cabeleireira perguntou se estava passando pela
transição capilar e respondi que achava que sim. Naquele momento não sabia ain-
da o que estava acontecendo e afetando minha vida. Ela começou a cortar o meu
cabelo e fio a fio uma batalha foi sendo travada. Olhei para o espelho e chorei.
Fechei os olhos e respirei fundo. Era difícil abandonar o que sempre fui. Era difícil
me reconstruir. A cabeleireira foi cortando o meu cabelo e narrando sua história
de transição capilar. Dizia que eu iria descobrir que meu cabelo era bonito e que eu
iria amar o meu cabelo crespo. Ela completou ainda dizendo que me cabelo ficaria
livre e sem química. Finalmente o corte de cabelo terminou. Parece que durou 40
anos. Balancei a cabeça e ele estava curto e crespo. Ri e chorei de nervoso. Olhava
para o espelho e tentava me reconhecer. Me achei bonita. Fui para casa e comecei
a construir minha nova história.
A crônica apresentada trata sobre a história de vida de uma mulher que se
reconhece negra somente aos 40 anos de idade. Isto pode nos causar espanto e
estranheza, mas se pensarmos que homens e mulheres negras são obrigados a
formular para si um projeto identitário de acordo como os modelos eurocêntricos,
considerados como universais, isso explica os motivos pelos quais estes sujeitos
têm dificuldades de reconhecer sua negritude. É um dos traços de uma violência
racial onde o próprio sujeito tende a perseguir o seu corpo, travando uma batalha
para perder a cor. Podemos dizer que ao fazer isso os sujeitos estabelecem uma
sujeição direta com o racismo.
Como então explicar que uma mulher só se reconhece negra já na vida adul-
ta? Podemos pensar inicialmente que a construção da ideia de cor como algo pe-
jorativo suprime o direito de ser e existir do sujeito, seu espaço de pensamento
e sua identidade negra, pensada aqui como um “processo identitário conflitivo”
(GOMES, 2019, p. 28). Isto acontece na medida em que este processo vai se des-
dobrando como um mecanismo que faz com que os sujeitos se afirmem como um
“eu” diante de um “outro”. Gomes também nos alerta que este “conflito identitá-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 443


Artes, memória e espaços
rio é coletivo, por mais que se anuncie individual” (IBIDEN). Esta mulher e muitas
outras negam a sua negritude por motivos diversos. Não estamos aqui atribuindo
julgamento mais sim procurando entender quais caminhos históricos, culturais e
econômicos podem desencadear tal atitude.
Historicamente padecemos com um racismo ambíguo e com o mito da demo-
cracia racial. Assim como diz Neusa Santos Souza, ser negro no Brasil é tornar-se
negro (1990, p. 77). Isto não acontece de forma tranquila. Se dá no contato com o
outro, no encontro sempre imprevisível, no conflito e no diálogo. No Brasil vivemos
num clima de discriminação e o desejo de embranquecimento segue afetando os
sujeitos, fazendo com homens e mulheres negras conviverem com um pensamen-
to que dificulta a formulação de enunciados de prazer sobre a identidade negra.
No caso das mulheres negras afetadas pelas dificuldades que vão encontrando de
encontrar espaços na sociedade racista, estas se veem muita das vezes forçadas a
se auto restringirem, a se tornarem outra coisa na tentativa de fugir da inferiorida-
de. O cabelo crespo destas mulheres é visto como um sinal crítico do corpo, uma
marca depreciativa que gera conflito com a própria estética.
Assim como descrito na crônica, muitas famílias interraciais têm dificuldades
para lidar com os processos identitários. A intervenção no cabelo crespo pode ser
um dos pontos de tensão nas relações familiares em que possivelmente o modelo
de beleza eurocêntrico de uma das partes vai querer se sobressair/ abafar/ aniqui-
lar a identidade negra da outra parte. Um pai que ensina a sua filha a ser branca,
que desconsidera que esta carrega traços da identidade negra, não pode aqui ser
culpabilizado de forma isolada. Ele é um retrato, uma representação de uma socie-
dade que historicamente discrimina as pessoas por conta da sua cor. Isto acontece
de forma estrutural e acaba por ser reproduzido pelas instituições, dentre elas a
família. Desta forma, como relatado na história de vida de uma mulher negra, é no
seio familiar que o racismo age com crueldade, pois as pessoas que mais deveriam
amá-la e protegê-la a renegam, oprimem e violentam o seu corpo de modo a forçá-
-la a se camuflar e não se assumir-se como sendo negra. Imaginamos o quanto de
dor, sofrimento e constrangimento afetam muitas famílias interraciais.
Destacamos também o fato de que em dado momento esta mulher negra é
tomada por uma consciência negra, algo que de certo modo emerge como uma ex-
periência que muda os rumos de sua história. Daí parte deste relato reafirma a pos-
sibilidade de superação de preconceitos e empoderamento feminino, o que nos dá
certo ânimo para continuarmos na luta contra o racismo. Podemos dizer que tudo
isso faz parte de uma grande rede aonde mulheres negras vão se unindo para so-
mar mais forças, pois grandes são os desafios da modernidade. E neste cenário que
destacamos as contribuições das mídias digitais sociais que nos ajudam a articular
ideias, a encontrar outras mulheres que também são afetadas pelas mesmas situ-
ações familiares e que se juntam, compartilham fotos, mensagens e informações
que vão colaborando de alguma forma com a formação de uma consciência negra.

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Artes, memória e espaços
As dificuldades de aceitação, de autoamor e valorização vão se consolidando no
encontro entre mulheres negras, na tomada de consciência sobre si e sobre a força
de todas juntas. A desconstrução da ditadura do cabelo liso e aceitação do cabelo
crespo é um dos caminhos de uma luta árdua que faz parte do combate ao racismo.
Quando paramos de alisar o cabelo percebemos o valor político que há nesta atitu-
de, pois rompemos com a reverência e conformidade, com as regras da sociedade.

CABELOS CRESPOS AO VENTO - ANA LUISA AGUIAR


Ah, esses cabelos ao vento, quem diria que um dia eles fossem voar… Mas, esse
dia aconteceu. Em uma manhã, eu e mais dois amigos (ambos pessoas brancas)
resolvemos ir numa trilha conhecida como Costão de Itacoatiara e, de repente An-
drea começou a falar sobre cabelo, a relação que tinha com o seu e queria saber
qual era a nossa. De maneira um tanto envergonhada falei sobre estar em transi-
ção capilar, dessa vontade ter partido de conversas com algumas amigas negras
e de ter assistido vídeos de blogueiras negras na rede social, especificamente no
Instagram.
Ao chegar no alto da pedra, Andrea me desafia a soltar o cabelo junto com ela
e deixarmos eles ao vento. No mesmo instante eu pensei: Hã? Como assim? Ela
está brincando com a minha cara, né?. Isto era algo “impossível” pra mim... eu não
queria participar dessa “aventura”! E, de novo eu começava a pensar: Eu não quero
fazer isso, não quero!
Se eu falasse que não, eles iam começar a me indagar do por quê e eu não que-
ria falar para eles que não gostava do que estava descobrindo dele. O motivo era
que aos meus olhos o meu cabelo estava sem forma, volumoso demais, resseca-
do, tudo ruim demais. O cabelo neste momento estava com penteado de rabo de
cavalo e para escondê-lo ainda mais tinha colocado um boné, onde não parava de
perguntar a mim mesma,“Como vou soltar o cabelo já todo marcado e amassado
na frente deles? Na frente do meu amigo, que na verdade eu estou interessada?
Vão rir de mim, do meu cabelo! Vão falar que ele está duro e cheio! Como que vou
soltar ele sem ao menos ter passando creme, sem ter molhado, sem ter feito um
corte? Ele está feio! O meu cabelo não é tão bom quanto o deles (liso)! Não vejo
ninguém igual a mim! "
Porém, Andrea insistiu tanto no desafio, que eu já não mais aguentava passar
por aquilo… Uma angústia! “Tá bom, tá bom, tá bom”, disse eu. Isso mesmo, eu
tirei o boné e o elástico do cabelo. Eu me desamarrei! Eu nunca antes tinha me
sentido tão livre, tão eu… até hoje não sei explicar a sensação de ver os fios do
meu cabelo crespo sendo levados pela força vento, é como se parte de mim estive
sendo também levada por aquele vento.
Esta segunda crônica, nos provoca a pensar em como esta mulher negra estava
condicionada à fala do outro, sendo este a pessoa branca. Por que a mulher negra
achava o seu cabelo ruim? A partir do quê ela elaborava esta ideia? Quem a disse

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Artes, memória e espaços
isto? Qual cabelo é dito bonito? De quem é? E, por que é? Para problematizar estas
indagações torna-se necessário primeiro considerarmos a lógica racial numa socie-
dade que foi colônia, em que se reverbera constantemente e de inúmeras formas
com elementos/produções/tecnologias para a reprodução da discriminação racial
e a das desigualdades sociais. Neste caso, especificamente, vemos em pauta a be-
leza hegemônica que segue uma padronização que é a europeia e a uma “outra”,
como sendo fora do padrão ideal de beleza. Nesta última são incluídos os negros,
os índios, os nativos, os aborígenes.
Podemos pensar que tais questões estão intrinsecamente estruturadas pela
produção do imaginário social, o que se entende que não é um problema indi-
vidualizado, mas sim coletivo. A dificuldade de uma mulher negra para aceitar a
sua imagem e sua subjetividade poderia estar ligada justamente a uma proposta
de apagamento das populações negras e indígenas. Com isso, pensamos que as
práticas do racismo também se apropriam da leitura perversa da estética negra e
se expressam através do corpo, da cor da pele e do cabelo crespo, ou seja, da ima-
gem. Se aproveita também da insegurança de nós mulheres negras com relação ao
nosso espaço na sociedade. Isto nos tira dos lugares de direito e de humanidade
previstos na legislação.
Fica claro, portanto, que as mulheres negras ao assumirem o cabelo crespo,
o corpo e a cor não estão apenas fazendo uma escolha/declaração estética, mas
também estão assumindo uma posição política e identitária. As mesmas passam a
confrontar todo e qualquer tipo de normalização/padronização imposta pela so-
ciedade (GOMES, s/d). Dentro desta perspectiva, escolhemos trazer as nossas ex-
periências ao assumirmos o cabelo crespo através de crônicas, pois, entendemos
que estas experiências singulares tomam dimensões de algo coletivo. São aconte-
cimentos que afetam a vida de muitas mulheres negras.

EFEITOS E FEITOS - O CABELO CRESPO NAS REDES VIRTUAIS

O meu cabelo é fonte da minha essência


Me diz que a resistência Não pode sucumbir.
O meu cabelo é fonte da minha essência
Provou que a resistência
Não vai deixar de existir.
(Débora Garcia da Silva)

Nossas histórias de transição capilar retratam o quanto fomos educadas e nos


sentíamos inseguras com relação a nosso valor na sociedade racista. Era o esforço
de nos parecermos brancas, negando a nossa negritude e colocando em prática os
padrões de “beleza” que nos eram impostos. Diante da problematização de nossas
experiências com os cabelos crespos, constatamos que uma sociedade racista se
apropria de diversas práticas que insistem em se aproveitar da insegurança que

446 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
nós mulheres negras somos educadas a apresentar diante da nossa beleza e lugar
na sociedade. Com isso, acabamos por naturalizar a categorização e hierarquização
dos cabelos e ficamos de certo modo obcecadas por mudar a nossa aparência, ten-
tando nos aproximar cada vez mais do perfil da mulher branca.
Na luta para superar a ideia de que o cabelo crespo do negro é considerado
“ruim” e o cabelo liso do branco é considerado “bom”, as mulheres negras vão
começando a romper com as expectativas da sociedade com relação aos modelos
de beleza. (GOMES, 2019). Desposadas do ritual de ter que alisar o cabelo entra-
mos de certo modo, em um processo de libertação, pois parte do nosso corpo - o
cabelo crespo - não é mais submetido à lógica racista. Neste percurso entramos
na mira das grandes empresas brancas que veem no empoderamento da mulher
negra um grande mercado para a venda de produtos de beleza específicos para ca-
belos crespos. Somos vistas como potenciais consumidoras de produtos de beleza
e estética. Dessa maneira, ao reconhecermos as influências das mídias digitais em
nossas histórias de transição capilar, não podemos deixar de destacar o fato de que
estas mídias ao mesmo tempo em que são tecnologias que abrem caminhos para
mulheres negras falarem sobre suas experiências, estas mesmas estão a serviço
do mercado, da lógica do consumo e continuam a reproduzir os modelos sociais,
econômicos e políticos das sociedades racistas.
A ideia de que nós mulheres negras não seremos aceitas acarreta uma luta
contra o próprio corpo e à medida que estamos frágeis e com baixa autoestima
vamos procurando ajuda em toda parte. A internet viabilizou acesso à informação
de todos os tipos e as mídias sociais digitais caíram no gosto do “povo”. Desde a
publicação de fotos, até o compartilhamento de notícias e entre outras coisas, ter
uma página no Facebook ou Instagram cria certo status social. Para estarmos ante-
nadas e conectadas com o mundo, nós mulheres negras também queremos ocupar
este espaço. Com isso, ao nos mostrarmos nas mídias sociais digitais buscamos um
espaço que majoritariamente é branco. A luta que travamos a cada dia também
adentra no espaço virtual. Neste espaço temos visto entretenimento e também
diversas questões polêmicas como, por exemplo, a disseminação de fake news e
os mais variados discursos de ódio que revelam o espaço virtual reproduzindo as
desigualdades sociais. A prática do racismo então se materializa nas mídias sociais
digitais(Facebook e Instagram), através de publicações, comentários e discursos
dos mais variados que vão demonstrando o quanto o poder produz aspectos sim-
bólicos e coercitivos que se materializam a partir de discursos de verdade.
Foucault diz que “[...] somos submetidos pelo poder a uma produção de verda-
de e só podemos exercê-lo através da produção de verdade.” (2012, p. 278- 279).
Isto nos faz pensar que embora possamos ter consciência da opressão existente
nas relações étnico- raciais, continuamos com o desejo do embranquecimento, de
nos parecermos com as mulheres brancas, bem sucedidas que estrelam as cam-
panhas de publicidade na internet. Queremos ser estas mulheres. Este desejo de

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Artes, memória e espaços
embranquecimento é reforçado pelos discursos de verdade e pela naturalização de
que a mulher negra precisa manipular o seu cabelo crespo para se tornar mais bela.
Fugindo a esta lógica e pensando em romper com certas amarras que a socieda-
de racista teima em nos impor, muitas mulheres negras, incluindo nós duas, vamos
fazendo outras escolhas e lutando por ocupar lugares antes negados às pessoas
negras. Vamos lutando para assumirmos nossas identidades e para sermos respei-
tadas na sociedade. O ideal de beleza eurocêntrico que também é disseminado nas
mídias sociais digitais vai sendo combatido como modelo universal. Este que fora
construído num contexto histórico, cultural e político vai perdendo espaço e sendo
ressignificado pelos sujeitos sociais, dentre eles a mulher negra.

CONCLUSÃO
Partindo das nossas experiências com a transição capilar e a intervenção das
redes virtuais, especialmente as mídias sociais digitais(Facebook e Instagram), du-
rante este processo, podemos perceber que existe um movimento em que a bele-
za da mulher negra é inferiorizada. O modelo de beleza universal diz respeito ao
perfil da mulher branca, revelando assim uma das faces do racismo. No entanto,
as mulheres negras seguem reagindo e resistindo as práticas de racismo. Com isso,
percebemos que existe uma movimentação para se combater qualquer tipo de
normalização do preconceito racial.
Barros (2020) afirma que “o feminismo negro tem sido uma das principais es-
tratégias de comunincação lançadas pelo ativismo de mulheres negras na internet
há alguns anos no Brasil no combate ao racismo e no fortalecimento de seus pro-
tagonismos”(p, 186). A consciência de que existe um conflito vivido na estética do
corpo da mulher negra marca profundamente uma grande virada histórica que nós
mulheres negras estamos construindo nesta rede que nos une.
Por esta razão, se faz necessário a permanência da luta contínua, em que seja
possível abrir espaços de fala e de escuta, ainda que tenhamos “contra ataques”.
Como nos diz Djamila Ribeiro,

Com todos os limites, o espaço virtual tem sido um espaço de


disputas de narrativas, pessoas de grupos historicamente discri-
minados encontraram aí um lugar de existir. Seja na criação de
páginas, sites, canais de vídeos, blogs. Existe nesse espaço uma
disputa de narrativa, mas ainda aquém do ideal por conta das
barreiras institucionais que impedem o acesso de vozes disso-
nantes. Como expressar-se não é um direito garantido a todos e
todas, ainda há a necessidade de democratização das mídias e
rompimento de um monopólio, a discussão sobre liberdade de
expressão também não pode ser pautada unicamente no direito
– não absoluto – de expressar opiniões. Friso que mesmo diante
dos limites impostos, vozes dissonantes têm conseguido produ-
zir ruídos e rachaduras na narrativa hegemônica [...] (2017, pág.
49).

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Artes, memória e espaços
Quando se manipula o cabelo crespo e se mexe no corpo de forma afirmativa,
principalmente quando são negras e negros que fazem isso, estamos diante de
uma forma de superação do racismo. A partir das discussões propostas na escrita
deste texto destacamos que o processo de transição capilar apresenta-se como
algo emergente entre mulheres negras que de alguma forma tomam consciência
da opressão que as afetavam. Contudo é importante afirmar a necessidade de se-
guirmos atentas, também nas redes virtuais, a respeito de qualquer forma de dis-
criminação e preconceito. Combatemos a reprodução de desigualdades em todos
os espaços, seguimos na luta e na tentativa de reeducarmos a sociedade nessa
compreensão de combate ao racismo e luta por justiça social.

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Olhares afrodiaspóricos; Organização e Edição: Tarcízio Silva - pág 25-41. Consultoria Edi-
torial: LiteraRUA – São Paulo, 2020.

AUTORIA
Rejane Macedo
Doutoranda em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação na Uni-
versidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro/Brasil.
E-mail: reluam30@hotmail.com
ORCID: 0000-0002-4264-028
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4173577020037130

Ana Luisa dos Santos Aguiar


Mestranda em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação na Univer-
sidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro/Brasil (Bolsista CAPES)
E-mail: anaaguiar@iduff.com .
ORCID: 0000-0001-5042-5398
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5310605765782810

450 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
O CIBERATIVISMO E SUA RELEVÂNCIA
NA LUTA ANTIRRACISTA
Sunshine Cristina de Castro Reis Santos
Alex Matos Rabelo
Jaquileude Araújo Martins

“Numa sociedade racista,


não basta não ser racista.
É necessário ser antirracista”.
Ângela Davis

INTRODUÇÃO
O presente artigo aborda o ciberativismo e sua utilização dentro da luta antirra-
cista, tendo como objetivo a análise dos impactos positivos e negativos da discur-
são sobre racismo em mídias digitais, assim como compreender se as mobilizações
em rede configuram-se em uma transformação social efetiva. A revolução tecnoló-
gica (re)configurou a forma que a sociedade passou a se relacionar, proporcionou
a disseminação de informação e comunicação, nesse sentindo agregou pessoas
com interesses semelhantes, tornando-se assim uma ferramenta para o fortaleci-
mento da visibilidade de pautas sociais. Imediatamente o ativismo conquista um
novo espaço, o ambiente virtual, que se destaca como mecanismo propiciador de
divulgação de epistemes contra hegemônicas. Tendo em vista, que os meios de
comunicação tradicionais estão atrelados os interesses elitistas, sendo (re)produ-
tores dos discursos colonizadores. Diante disso, os ciberativistas têm demonstrado
atualmente papel essencial na militância, ao mesmo tempo em que tem se tornado
um movimento controverso, em uma extremidade temos um exercício continuo
de informar, gerando um fomento do processo de conscientização e desconstru-
ção, assim como em outro extremo temos visto uma incompreensão sistêmica dos
conceitos que fundamentam os debates étnico-raciais, tem sido cada vez mais re-
corrente a utilização de conceitos, como lugar de fala, empoderamento e racismo
estrutural de maneira simplista e até mesmo equivocada, que caracteriza muitas
vezes o epistemicídio, visto que a intelectualidade negra e o rigor acadêmico são
postos como secundário na corrida por Likes. Assim, com base em uma pesquisa
bibliográfica, tendo como marco teórico os pensamentos de Rosane Borges, orien-
tamos nossa pesquisa sobre a utilização da transmídia como estratégica antirracis-
ta para além das hashtag.
Concluído assim, que é preciso considerar o ciberespaço sob um ponto de vista
histórico, que insira não somente as ferramentas e métodos da internet (sua base
técnica), mas, especialmente, os sujeitos envolvidos e as condições históricas de

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 451


Artes, memória e espaços
produção, articulação, de circulação dos discursos antirracistas, que se justifica pela
ausência da democratização da informação formal, mesmo com a Lei 10.639/03.
Dessa forma, o ciberativismo é fundamental para propagar a atuação dos mo-
vimentos políticos, baseados no processo de construção identitário, concernente
sob a égide conceitual de raça. Porém faz-se necessário o desenvolvimento de es-
tratégias que amenize apresentações conceituação a-histórica, que invisibiliza a
intelectualidade negra.

CIBERATIVISMO: O ENGAJAMENTO COMO ARTICULAÇÃO


POLITICA
Segundo Borges (2012), a mídia e a representações do outro tem uma contribui-
ção significativa para construção do imaginário, conduzindo assim ideais culturais,
ou seja, paramentos de normalidade, de beleza, de intelectualidade entre outros
panoramas identitários. Diante de racismo estrutural e estruturante, a produção
midiática ocupa um papel fundamental na desconstrução e na manutenção de es-
tereótipos racistas, a autora ressalta o empenho de pesquisadores, intelectuais e
ativistas do movimento negro no reposicionamento simbólico da população negra
através de estratégias discursivas.
No que tange a contemporaneidade, observamos um avanço das Novas Tecno-
logias de Informação e Comunicação (NTIC), para ampliação dessas vozes, os ati-
vistas viram nos blogs, sites e redes sociais um espaço de mobilização e difusão de
reivindicações de caráter diversos. Esses canais comunicativos apresentar-se como
espaço de narrativas contra hegemônicas, permitindo o alcance de um número
maior de pessoas, facilitando a interação e mobilização política desses movimen-
tos.
Segundo Gajanigo et al (2014), o ciberespaço passou a ser ocupado por sujeitos
heterogêneos, dissonantes e multifacetados, portadores de mecanismos de mobi-
lização também múltiplos. Através do ciberespaço as práticas políticas ganharam
um ambiente favorável, por meio desse espaço, as pessoas marginalizadas e não
ouvidas puderam divulgar diferentes pautas. O engajamento político e a divulgação
nas redes sociais permitem uma "educação política do sujeito" podendo proporcio-
nar assim um "melhor entendimento da participação democrática do cidadão na
política, na realidade sociocultural dos sujeitos como atores" (CUNHA, 2014, p.16).
As redes sociais tornaram-se instrumentos de resistência, expressão e partici-
pação políticas de grupos minoritários, trazendo para o centro do debate popular,
pautas que antes era restritas a ambientes acadêmicos e de militância. Através do
ativismo digital a história e cultura afro-brasileira pôde ser divulgada e propaga-
da, contribuindo para a luta do movimento negro e sendo de grande importância
para o combater as desigualdades sociais que afetam principalmente a população
negra.

452 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
[...] as nuances tecnológicas da militância possuem um potencial
formativo relevante, que auxilia no fortalecimento da consciên-
cia negra de muita gente, especialmente de jovens que a partir
dessas informações podem dar um salto no seu empoderamen-
to político. Para nós, isso é muito. É muito mais efetivo impulsio-
nar ativismos negros nas redes sociais, do que esvaziar a poten-
cialidades da negritude através de discursos de deslegitimação.
Escrevam, produzam, compartilhem informação, enegreçam
os espaços, todos eles, inclusive o digital. Viralizem negritude!
(BUENO E SILVEIRA, 2016).

Como salienta Borges (2012), é emergente a construção de enunciados midi-


áticos de rompimento com a lógica de emolduramento do outro, diante de uma
sistematização de padronização e fixação de signos e códigos excludente, em uma
suporta universalidade imagética a militância digital nos possibilita o pensamento
crítico e a contestação do padrão social vigente, uma fala em primeira pessoa. "A
comunicação política como revolução simbólica nas redes sociais interativas pode
ser construída com a participação política crítica, universos autônomos para cria-
ção, recriação de informação" (CUNHA, 2014, p. 86).

EPISTEMICÍDIO NO CIBERESPAÇO: A PSEUDO AUTORIZAÇÃO


DA FALA
Com base nos pensamentos de Borges (2012), observamos que mesmo o cibe-
rativismo favorecendo as contra narrativas, não podemos deixar de compreendê-lo
dentro da sua complexidade, “Há uma rede emaranhada que constitui a produção
e a recepção, o que demanda a criação de sistemas de orientações, expectativas
e convenções que circulam entre a indústria, os sujeitos espectadores e o texto”
(BORGES, 2012, p. 180). Para a autora, a mídia institui padrões operacionais, com
manobras de modelagem de escrita, de filmagem e fotografia, se tornando uma
instância de sintetização, ressaltando a existência de repertório acumulativo con-
ducente a associação e compreensão de discursos.
Ainda que, o ciberativismo se constitua como uma nova forma de atuação po-
lítica e social na qual os indivíduos e grupos potencializam suas ações políticas, as
redes sociais são um instrumento de grande influência e controle de massa, refém
de um lógica mercadológica e capitalista, nesse sentido em busca de engajamento
ou até mesmo pela velocidade informativa própria das redes, os discursos antirra-
cistas podem ser fragmentados e reproduzidos de maneira massiva, provocando
uma retroalimentação do racismo através do epistemicídio provocado pela simpli-
ficação e distorção de conceitos fundamentais para a compreensão estruturação
do racismo.
Com base nesses pressupostos, o pensamento do autor citado acima, nos di-
reciona a refletir acerca de uma sociedade que se mantém absolutamente desi-
gual, destituindo os negros (de maneira sistêmica, por vezes fragmentada) desses

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 453


Artes, memória e espaços
espaços de poder ou atuação política, sendo dessa forma, excluídos das zonas de
produção do conhecimento. Assim, o conceito de epistemicídio permite a compre-
ensão das diversificadas formas em que se expressam as incursões e contradições
vividas pelos negros em detrimento à educação e, sobretudo, as desigualdades
raciais. Pois, para Pessanha (2018), “matar o pensamento do outro, na verdade
transformar esse outro em “coisa”, em uma mera ferramenta para gerar lucro para
o sistema econômico capitalista, é uma estratégia que foi determinante para re-
legar ao negro uma condição de subalternidade e inferioridade perpétua”. Neste
sentido, a expoente filósofa Aparecida Sueli Carneiro (2005), ao analisar o episte-
micídio destaca que:

O epistemicídio é, para além da anulação e desqualificação do


conhecimento dos povos subjugados, um processo persistente
de produção da indigência cultural: pela negação ao acesso à
educação, sobretudo de qualidade; pela produção da inferiori-
zação intelectual; pelos diferentes mecanismos de deslegitima-
ção do negro como portador e produtor de conhecimento e de
rebaixamento da capacidade cognitiva pela carência material e/
ou pelo comprometimento da auto-estima pelos processos de
discriminação correntes no processo educativo. Isto porque não
é possível desqualificar as formas de conhecimento dos povos
dominados sem desqualificá-los também, individual e coletiva-
mente, como sujeitos cognoscentes. E, ao fazê-lo, destitui-lhe a
razão, a condição para alcançar o conhecimento “legítimo” ou
legitimado. Por isso o epistemicídio fere de morte a racionalida-
de do subjugado ou a seqüestra, mutila a capacidade de apren-
der etc.(CARNEIRO, 2005, p. 97).

Atrelado a essas conjecturas, a globalização e a alta dinamização das interações


sociais seguem ferrenhas, contribuindo para significativas transformações no que
tange a reprodução das relações que se estruturam a partir das dinâmicas que se
reproduzem no ciberespaço. Dessa forma, as relações de poder na esfera comu-
nicacional, com as novas mídias podem negar a marginalização das mídias hege-
mônicas. Mas essas ainda possuem poder e controle sobre o que circula, como
circula e com qual finalidade, o que não vai de encontro com seus interesses e sua
capacidade é rotulado como “fora dos padrões” (GRAÇAS, 2018, p. 47). Assim, a
matriz política de comunicabilidade possibilita espaços e relações não harmoniosas
e igualitárias entre os diferentes protagonistas sociais.
Portanto, as mídias sociais destacam-se enquanto reflexos dessa organização
social desigual e opressora. Pois, o racismo epistêmico estimula o extermínio sim-
bólico da alteridade e consequentemente institui “um único grupo no poder como
a voz da autoridade e da verdade que, por estar baseado nos paradigmas da neu-
tralidade e objetividade, exclui a visão dos outros” (SANTOS, 2016, p. 11).

454 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
ANTIRRACISMO PARA ALÉM DAS HASHTAGS
Segundo Lemos (2011), os ciberespaços são lugares complexificados de cone-
xões e emissões associativas, categorizado em três esferas, primeiramente a cons-
cientização e informação, que estaria direcionada a campanhas de promoção, a
segunda, organização e mobilização, que teria como objetivo a convocatória para
ações concretas, e terceiro, o hacktivismo, ou seja, atos eletrônicos. Nesse sentido
o autor evidência que a utilização da internet está para além da sua aplicação como
forma de expressão, tornando assim uma ferramenta emergente de visibilidade de
pautas de grupos minoritários, criando articulações necessárias para embates de
controle sócio discursivo e o estabelecimento de um contradomínio.
Torna-se notório o impacto da biopolítica de rede na cibercultura, sendo crucial
para disseminação ideológica e vínculo identitário, mas diante da multiplicidade de
agente e das múltiplas frentes, nos deparamos com a confiabilidade informativa,
uma vez que a comunicação em massa pode gerar ruídos de comunicabilidade.
Podemos citar como exemplo as mobilizações realizadas entre os meses de
maio e junho de 2020, motivadas pelo assassinato por asfixia do afro-americano
George Floyd, provocado por uma abordagem violenta realizada por um policial
branco em Minneápolis, nos Estados Unidos. Suscitando assim, protestos raciais
em muitas regiões da américa e da Europa, onde estátuas de escravistas e trafi-
cantes de escravizados foram derrubadas, observou-se também a viralização de
campanhas antirracistas nas redes, como a do quadro preto, realizada na terça fei-
ra 02 de junho de 2020, que além de objetivar um protesto silencioso em alusão a
George Floyd e ao João Pedro, um garoto negro de 14 anos, assassinado durante
uma ação policial dentro de casa, em São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio
de Janeiro. Através da Hashtag #Blackout Tuesday (em tradução livre: "terça-fei-
ra do apagão”) e a #TheShowMustBePaused (na tradução livre: o show precisa
ser pausado) foi uma iniciativa do setor musical, das americanas Jamila Thomas e
Brianna Agyemang, com uma grande agregação no Brasil. Que segundo Perassolo
e Lott (2020) desejava promover um dia de reflexão, uma espécie de dia de luto,
o que ganhou grande adesão de artista e anônimos, o protesto virtual também foi
visualizado por aplicativos como a Apple Music e o Spotify, que de formas distintas
aderiram à campanha, o primeiro substituiu a suas imagens do seu perfil, por ima-
gens da ação e o segundo adicionou 8 minutos e 43 segundos de silêncio entre as
músicas e os podcasts, o tempo do aprisionamento de George Floyd ao joelho do
policial. Gravadoras como Warner e Atlantic não funcionaram no dia.
Mas como foi ressaltado por Perassolo e Lott (2020), a hashtag #blackLives
Matter (em tradução livre: vidas negras importam) foi incluída por usuários, visto
que a mesma titulava o levante antirracista, o que culminou na invisibilidade de
informações necessária ao debate, gerando mais uma comoção projetada de auto-
promoção, do que uma ação antirracista de fato.
Motivados pelas mesmas demandas das campanhas virtuais, mas com objetivo
de promover uma ação efetiva, tendo a mídia digital com uma das fermentas ar-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 455


Artes, memória e espaços
ticulativa a Universidade Zumbi dos Palmares e a Afrobras, com apoio da Agência
Grey, desenvolveram o Movimento AR – vidas negras importam: nós queremos
respirar. manifesto nacional de mobilização que visa o desenvolvimento de 10
ações efetivas ao longo de cinco anos, as metas são as seguintes:

01. Mudança nos protocolos policiais para impedir técnicas de sufocamento


e estrangulamento em abordagens policiais, bem como disparos de arma de
fogo em invasões ou ocupação de favelas e comunidades.
02. Mudança nos protocolos da segurança privada para acabar com a hosti-
lização, perseguição e constrangimentos nos ambientes públicos e privados,
incluindo a eliminação da sala de agressão e tortura presente nos bancos, sho-
ppings e supermercados.
03. Criação de 500 mil bolsas de estudos para qualificação de jovens negros
em graduação, pós-graduação, pesquisa, formação tecnológica, economia
criativa, negócios e empreendedorismo.
04. Criação de 300 mil vagas de estágios, trainees e profissionais negros nas
empresas públicas e privadas.
05. Formação e qualificação de um milhão de quadros corporativos em discri-
minação e racismo e gestão da diversidade racial.
06. Implementação de recursos por meio de ferramentas, mecanismos, meto-
dologia de gestão, gerenciamento da inclusão, desenvolvimento de carreira,
ações e políticas de diversidade racial em 300 empresas públicas e privadas.
07. 300 milhões em compras corporativas do ambiente público e privado, de
serviços e produtos de empresas e empresários e profissionais negros.
08. Fundo Vidas Negras Importam de R$ 200 milhões para o fomento, apoio e
financiamento educacional, empreendedor, tecnológico e de economia cultu-
ral criativa para jovens negros.
09. Implementação integral da Lei da História do Negro e História da África e
da disciplina de Relações Étnico Racial em todo ambiente escolar e universitá-
rio público e privado do país.
10. Campanha de instalação da Rua Zumbi, do Selo da Igualdade Racial, am-
pliação e expansão da 'Virada da Consciência".

Segundo as informações dispostas na página do movimento, o mesmo busca “a


mobilização e engajamento de formação e formadores de opinião; fortalecimento
e consolidação do discurso, ideias e valores da Igualdade Racial ”, através de vá-
rios atores sociais e de “veículos de publicidade, mídia formal e rede virtual; com
contribuição voluntária individual, institucional e empresarial para viabilização dos
insumos, recursos e logística para promoção, realização e operação das agendas”
(AR, 2020).
Para analisar ou mensurar a eficácia das campanhas antirracistas, torna-se cru-
cial primeiramente analisarmos o que seria de fato o antirracismo. Segundo Santos
(2020), “A luta antirracista não pode ser caracterizada como uma ação exclusiva-
mente racial, identitária ou política” o autor gera um grande questionamento, se-
ria possível ser antirracista sem ser anticapitalista? Nesse sentido salienta que de-

456 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
vemos buscar um aprofundamento desse debate, visto que ausência de análise da
complexidade sociorracial, pode configura-se em uma reprodução e intensificação
das condições que mantem o racismo.

Isolar o racismo da totalidade complexa do qual faz parte é um


erro ideológico, histórico e metodológico. O racismo é econômi-
co, é político, é ideológico, é cultural, é subjetivo, pois faz parte
de um todo complexo e interligado empregado para exploração
e dominação da população negra (SANTOS, 2020)

O ciberativismo, assim como as campanhas que utilizam a mídia digital como


suporte, tem fortalecido as políticas identitárias, assim como ações educativas,
que tem a sua relevância na superação do racismo. Mas não podemos fazer uma
leitura do racismo somente como aparelhamento ideológico e de modo simplista.
Conforme Almeida (2019), o racismo tem caráter sistémico no qual ele classifica em
três concepções: individualista, institucional e estrutural, onde o autor relaciona o
racismo à subjetividade, com o estado e a economia. Nessa perspectiva faz neces-
sário questionamos a lógica capitalista das redes, quando desejamos mensurar a
eficácia do engajamento antirracista, não no sentido de desqualifica-la ou menos-
prezar o seu valor, mas no sentido de fomentar o aprofundamento historiográfico,
ampliando visualidade para além do caráter reformista, visto que a sociabilidade
das redes estaria pautada no neoliberalismo, e muitas das vezes as pautas raciais
são posta como atratividade mercadológica dentro de uma estratégia publicitária
e uma releitura contemporânea do colonialismo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A sociabilidade das redes não pode ser vista de maneira simplista e muito me-
nos acrítica, mas como uma instrumentalização política com ônus e bônus, pois à
medida que fomenta pautas e mobilizações raciais, podem fragmenta-las.
Deste modo faz-se necessário refletir sobre a complexidade da militância digital
e seus destronamentos na luta antirracista. Os ciberespaços tem uma relevância
significativa no tange a representatividade e a reelaboração de códigos identitá-
rios, de uma matriz preestabelecida em estigmas, no qual a população negra é
posta historicamente as margens, em uma concepção colonialista continua.
Porém no que se refere ao caráter pedagógico dos ciberespaços faz-se necessário
o desenvolvimento de estratégias que amenize apresentações e conceituação ana-
crônica, simplória, reducionista que evite distorção dos pensamentos e da produ-
ção dos intelectuais negros. Um aspecto essencial que deve ser ressaltado é tran-
sição dessa mobilização a esfera física, a concretude e eficiência da mesma na luta
antirracista, o que foi o grande percalço da pesquisa, visto que se trata de estudo
do tempo presente, logo é fragilizado pela ausência da sistematização de dados o
que deixa margem para trabalhos futuros.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 457


Artes, memória e espaços
REFERÊNCIAS

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Disponível em: http://www.movimentoar.com.br/. Acesso 12 set 2020.

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2012. v. 1. 244p.

CARNEIRO, Aparecida Sueli. A Construção do Outro como Não-Ser como fundamento do


Ser. 339f. Tese (Doutorado em Filosofia da Educação), Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2005.

CUNHA, Vanildes Vieira da. Comunicação política mediada por redes sociais interativas:
educação política do sujeito na sociedade pós-moderna. 201 f. Tese (Doutorado) Faculda-
de de Ciências Sociais, Educação e Administração, Departamento de Ciência Política, Rela-
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GRAÇAS, Suzielen Taiane das. Resistência: ativismo e articulação de mulheres negras atra-
vés de redes sociais. 101f. Dissertação (Mestrado em Integração Contemporânea da Amé-
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LEMOSAndré.Ciberativismo.Disponívelem:http://www.facom.ufba.br/ciberpesquisa/le-
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berativismo: uma análise do “Manifesto contra o preconceito às mulheres brasileiras em
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redes e gera críticas. Disponível em:https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/06/
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PESSANHA, Eliseu Amaro de Melo. Necropolítica e Epistemicídio: as faces ontológicas da


morte no contexto do racismo. 98f. Dissertação (Mestrado em Metafísica), Universidade
de Brasília, Brasília, 2018.

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org.br/o- que-e-ser-antirracista/. Acesso 12 set 2020.

458 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
AUTORIA
Sunshine Cristina de Castro Reis Santos
Graduanda do Curso de Turismo da Universidade Federal do Maranhão – UFMA
E-mail: sanycastro12@hotmail.com
Lattes: https://wwws.cnpq.br/cvlattesweb/PKG_MENU.menu?f_cod=387840AE-
0AEA53B9A404DD BD8920BB77#

Alex Matos Rabelo


Graduando do Curso de Estudos Africanos e Afro-Brasileiros da Universidade Fede-
ral do Maranhão – UFMA
E-mail: alexrabellos@hotmail.com

Jaquileude Araújo Martins


Graduanda do Curso de Estudos Africanos e Afro-Brasileiros da Universidade Fede-
ral do Maranhão –UFMA
E-mail: jaquileudemartins@gmail.com
Lattes: https://wwws.cnpq.br/cvlattesweb/PKG_MENU.menu?f_cod=B-
0788C0E555574B4D8549B9 7D92A0D23

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 459


Artes, memória e espaços
COMUNICAÇÃO E IMIGRAÇÃO:
UMA ANÁLISE DE CASO DE XENOFOBIA
Sirlei de Souza
Jonathan Prateat
Kawanna Alano Soares

INTRODUÇÃO
O movimento migratório é um fenômeno com o qual a humanidade convive há
séculos. Esse movimento consiste no processo de entrada e saída de pessoas de
determinado local para outro, com caráter temporário ou permanente. O Instituto
Migrações e Direitos Humanos (IMDH, web) define migrar como “movimento de
pessoas, grupos ou povos de um lugar para outro". Os motivadores de uma mudan-
ça brusca de território detêm em suas raízes situações como a carência de meios
de sobrevivência, desastres naturais e a impossibilidade política ou estrutural de
permanecer em seu país de origem.
Baeninger (2016) explica que o Brasil fora inserido na dinâmica migratória inter-
nacional no século XXI, como destino final ou rota migratória, devido às políticas
restritivas de imigração em países como Estados Unidos, França e Canadá. Em 2010
houve grande aumento do fluxo de imigração de haitianos ao Brasil devido à ca-
tástrofe que assolou o seu território e outros fatores estruturais, como a represen-
tação brasileira nas missões da ONU no Haiti1 e as políticas de governo que a época
facilitaram a entrada e permanência dos imigrantes ou pela situação econômica de
estabilidade que o país apresentava naquele momento.
Segundo os dados fornecidos pela Polícia Federal entre os anos de 2012 a 2016,
foram 77.077 imigrantes haitianos registrados no país, destes 21,07% em Santa
Catarina e com um recorte de 12,60% apenas na cidade de Joinville. Neste cenário,
o município destacou-se no recebimento de imigrantes por ser a terceira maior
cidade do sul do país, com viés no setor industrial e possibilidade de fornecimento
de emprego; outrossim do ponto de vista histórico e cultural fora um local que re-
cebeu grandes contingentes migratórios ao longo dos anos (SOUZA, 2019).
Quando solicitado dados atualizados ao Núcleo de Migração da Polícia Federal
de Joinville2, houve a informação que foram atendidos pela Polícia Federal 3.991

1 A operação nomeada MINUSTAH, pelas Nações Unidas, tinha como objetivo realizar a
estabilização do Haiti e prestar ajuda humanitária, estando sob o comando brasileiro do início ao fim,
foi encerrada em 2017 – durando quase quatorze anos. Existem controvérsias e denúncias durante o
período em que diversos indivíduos consideravam uma ocupação militar de um país estrangeiro no
Haiti, e denúncias de agressão, estupro e outros abusos. (POLITIZE, 2018)
2 Encaminhado e-mail solicitando informações sobre a imigração haitiana em Joinville à
Fabiano José Rohr, coordenador do Núcleo de Imigração da Polícia Federal, e na resposta foram
repassadas todas as informações seguintes – em abril de 2020.

460 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
imigrantes haitianos apenas na cidade de Joinville (SC) de 2007 a abril de 2020
– com maior incidência de imigrantes no ano de 2016 alcançando o número de
1.399 haitianos. Em relação ao recorte de sexo 2.493 eram do masculino e 1.498
do feminino.
Ao longo do século XX, se identifica um grande processo de migração da popu-
lação haitiana para vários países. No entanto, pôde-se constatar que após o ter-
remoto que devastou o Haiti em 2010, houve grande aumento migratório para o
Brasil. Na tabela repassada pela Polícia Federal constava o registro das datas de
entrada dos haitianos no país, com o primeiro registro em 03/11/1981 e o último
em 14/03/2020.

FIGURA 1: RELAÇÃO ENTRE O ANO E O NÚMERO


DE ENTRADAS DE IMIGRANTES HAITIANOS EM JOINVILLE/SC

Fonte: Informações repassadas pelo Núcleo de Imigração


da Polícia Federal, por e-mail em abril de 2020.

Acredita-se que o impulsionamento dos fluxos migratórios haitianos ao Brasil


encontra parte de sua motivação na Resolução aprovada pelo Conselho Nacional
de Imigração (CNIg) número 97, que passou a vigorar em 18 de janeiro de 2012 –
esta autorizava a concessão de até cem vistos permanentes mensais, de caráter
humanitário, para haitianos que desejavam morar no Brasil. Supõe-se que a baixa,
ocorrida no ano de 2017, seja devido às razões trabalhistas e o crescente número
de desemprego no Brasil – ainda maior entre os imigrantes.
Para Souza (2019, p. 25) “pensar a imigração como ato narrativo (como um ato
histórico e também comunicacional) é pensá-la na complexidade do que a atraves-
sa, na trama histórica que a constitui, nas tensões presentes e nas possibilidades
que envolvem a trajetória do sujeito imigrante”. Dessa perspectiva, o “processo de
formação de laços entre passado, presente e futuro, os meios de comunicação, por
fazerem parte do cotidiano da maioria, são fundamentais para a sua sedimenta-
ção” (BARBOSA, 2008, p. 84). O espaço digital pode ser considerado um local im-
portante para problematizar as tensões que envolvem os processos migratórios e
as narrativas que constroem sobre a vida concreta desse imigrante.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 461


Artes, memória e espaços
APORTE TEÓRICO
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) explica em seu artigo II,
parágrafo 1, que todos são seres humanos, independentemente de sexo, naciona-
lidade, etnia, raça, idioma, religião, deficiência ou qualquer outra condição. Este
mesmo instrumento fundamenta o direito à nacionalidade, em seu artigo XV:

Artigo XV
Todo homem tem direito a uma nacionalidade.
Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade,
nem do direito de mudar de nacionalidade. (ONU. Declaração
Universal dos Direitos Humanos, 1948)

No entendimento de Jardim (2017) as fronteiras são os limites de cada país,


aquelas que erguem barreiras e os meios de diferenciação de nacionalidades, lin-
guagens e cultura. E, a partir da existência dos fluxos migratórios, devem ser ave-
riguadas as reinvindicações de cidadania, nacionalidade e outros direitos que se
mostram essenciais para os imigrantes que chegam ao país.
Antigamente os imigrantes perdiam pouco a pouco os vínculos que possuíam
com o seu país de origem, mas quando se fala de imigração contemporânea a si-
tuação torna-se mais complexa. Percebe-se que os vínculos permanecem vivos,
ultrapassando as fronteiras, e quando chegam no país receptor os imigrantes ten-
dem a criar redes, atividades, meios de vida e ideologias juntando características
da sociedade de origem e destino – e a razão disto é pelos novos meios de trans-
porte e comunicação atuais – e estes são os fatores que caracterizam a imigração
transnacional e o transmigrante (SOLÉ, 2008).
Importa dizer que “as narrativas construídas pelo ou sobre o imigrante configu-
ram-se como atos comunicacionais permeados por tempos e espaços, ora conexos,
ora desconexos” (SOUZA, 2019, p. 25) e tais narrativas, sejam elas provenientes
de entrevistas orais ou escritas pelo próprio imigrante, estão carregadas das suas
vivências e a representação de sua origem (SOUZA, 2019).
Conforme defende Recuero (2009), na última década as redes sociais têm sido
aplicadas com maior ênfase e pluralidade para estudo dos grupos sociais, principal-
mente pelas linhas de raciocínio permanecerem registrados na Rede – tal situação
permanece ocorrendo até hoje – e que estas plataformas seriam essenciais para o
trespasse de informações, impactando o jornalismo, comunicação e o usuário da
rede.
E ainda, o que importa efetivamente nas informações que constam nessas pla-
taformas não é a mensagem que motiva o seu engajamento, mas o meio que foi
utilizado para repassá-la e que as redes sociais seriam este meio. O conhecimento
é publicado em redes online onde existem conexões diretas pelo indivíduo, que
pode ter um perfil tanto aberto como fechado, esta publicação alcança um grupo
delimitado pelas suas redes ou além delas (RECUERO, 2012).

462 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
PROBLEMA DE PESQUISA E OBJETIVO
Quais são as situações de xenofobia e/ou racismo que os imigrantes estão vi-
venciando nas redes sociais? E até que ponto é possível que as plataformas de
redes sociais funcionem como estratégia de inclusão de imigrantes haitianos na
sociedade?

METODOLOGIA
A origem da pesquisa em questão advém da necessidade de analisar as experi-
ências dos imigrantes com racismo e xenofobia em redes socais, se os imigrantes
conseguem utilizar essas redes para divulgar informações acerca dos seus Direitos
e ainda se efetivamente encontraram um local para expressarem suas opiniões e
vivências. Buscando analisar como são utilizadas as plataformas, a primeira etapa
da pesquisa consistiu em uma pesquisa bibliográfica existente sobre os fluxos mi-
gratórios contemporâneos e a imigração haitiana para o Brasil, mais especialmente
para Santa Catarina e Joinville nos últimos anos, também as produções acadêmicas
referente ao ativismo digital.
A segunda etapa da pesquisa, desenvolve-se após a aprovação pelo Comitê de
Ética, em 06/08/2020 sob o número do CAAE: 33719620.0.0000.5366, a partir da
abordagem quantitativa em que se deseja analisar as redes socais públicas de imi-
grantes e os diferentes conteúdos nelas contidos – nas mais utilizadas como Fa-
cebook, Instagram e Twitter. Para identificar tais redes utilizou-se termos como
‘imigrante’, ‘haitiano’ e ‘haiti joinville’ – em português, haitiano e crioulo.
Desse modo, foi possível abrir caminhos para que a pesquisa compreenda os
potenciais desses canais de comunicação quando relacionados ao cotidiano da co-
munidade haitiana de Joinville. Então, foi realizada a catalogação e organização
das informações pertinentes recolhidas, estas foram problematizadas e analisadas.
Mostrou-se de extrema relevância analisar os ataques virtuais ocorridos em 2017
com a Fotógrafa Amanda Araújo, descrita por Souza (2019), com isso fora possível
abranger as diferentes ramificações existentes nas redes acerca de imigração, ra-
cismo e xenofobia.

RESULTADOS E ANÁLISE
Com base nas pesquisas realizadas por Souza (2019) que problematizou diver-
sas manifestações comunicacionais públicas emanadas de mensagens políticas em
desagrado à presença de imigrantes negros em Joinville, que em sua concepção de-
sencadearam disputas simbólicas de pertencimento à cidade. Souza (2019) depa-
rou-se com múltiplas linguagens comunicacionais pertinentes: a) da notícia pública
em um jornal de grande circulação em que definiu o perfil ideal do trabalhador
local, b) pichação anônima com caráter de imposição em uma via pública com a

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 463


Artes, memória e espaços
frase “O Haiti não é aqui” e c) as interferências e a depredação ocorrida em um
trabalho artístico de fotografias de imigrantes haitianos, mostrando a intolerância
à existência do imigrante na cidade.
Em 2013 foi veiculado pelo Jornal ANotícia uma matéria que declarava que o
perfil do trabalhador desejado na cidade de Joinville era de um homem branco de
25 a 35 anos de idade. Este perfil criado pelos empresários ressaltava as influên-
cias deixadas pela colonização alemã e a cegueira perante o fato de o município
receber constantemente grandes números de haitianos, dando voz a um discurso
de ‘branquitude’ e racismo ‘velado’ no setor trabalhista – sendo que o direito de
trabalhar é um fator essencial para a continuidade e manutenção de vida no país
para o imigrante. Tal ato estigmatiza o imigrante haitiano e ressalta a problemática
de ainda existir no século XXI tais ações de rotulamento ao negro, mulher, idoso e
entre outros (SOUZA, 2019).
Sobre a ação explícita de recusa ante o imigrante haitiano na cidade, Souza
(2019) apresenta a pichação em uma rua de grande circulação no muro de uma
grande fábrica amplamente conhecida pela população local, com a mensagem in-
cisiva de que o imigrante haitiano não fazia parte da cidade (Figura 2). De certa for-
ma, dando a entender que o trabalho existente na cidade não era para os haitianos
e rotulando o suposto caráter de forasteiros.
Esta pichação teve grande repercussão na imprensa, causando debates no meio
online sobre a sua representação político-social no município e a falta de ações do
poder público com o acolhimento e resoluções de problemas e necessidades dos
haitianos. Ainda ocorreu a problematização sobre o fato de os culparem sobre algo
que, na verdade, são vítimas e o racismo ser direcionado unicamente a eles por
serem negros – e não ocorrer com outras nacionalidades de imigrantes (SOUZA,
2019).

FIGURA 2: PICHAÇÃO “O HAITI NÃO É AQUI”

Fonte: SOUZA, 2019, p. 132.

Ocorre que tal ação não passou sem resposta e o Movimento Antifacista de
Joinville revidou (Figura 3) com o objetivo não de apagar completamente a mensa-
gem anterior, mas sim de se impor em cima do já dito – uma forma de se posicionar
e ainda sendo assinada por um ator político, pois o Movimento Antifa 163 realiza
ações de enfrentamento contra manifestações xenofóbicas e racistas. Como já ex-
posto, essa contrariedade perante o imigrante haitiano possui raízes no racismo
já existente e traz à tona discussões sobre o lugar que é destinado à a população
negra no espaço urbano.

FIGURA 3: RESPOSTA A PICHAÇÃO “O HAITI NÃO É AQUI”

Fonte: SOUZA, 2019, p. 135.

Outra intervenção em que foi possível presenciar a recusa ao imigrante haitiano


na cidade deu-se em 2017, Souza (2019) relata o fato vivenciado pela acadêmica
Amanda Alves Cerqueira Araújo, do curso de Fotografia da Universidade da Região
de Joinville (Univille). Em que o seu Trabalho de Conclusão de Curso era um proje-
to fotográfico intitulado “Haitianos: cidadãos joinvilenses” e tinha como objetivo
visibilizar as singularidades de cada um. A acadêmica utilizou a técnica artística
chamada de lambe-lambe nas fotografias, conhecendo a pichação encharcada de
discurso xenofóbico e racista, resolveu criar uma provocação em busca de reflexão
dos cidadãos e expôs o seu trabalho artístico pelas ruas do centro de Joinville (Fi-
gura 4).

FIGURA 4: FOTOGRAFIA DO PROJETO HAITIANOS


CIDADÃOS JOINVILENSES

Fonte: SOUZA, 2019, p. 137.


Ocorre que as exposições sofreram depredações logo no outro dia (Figura 5),
onde as fotografias foram rasgadas e arrancadas dos locais onde estavam e Aman-
da (2017) declarou já esperar que acontecesse algo visto a possibilidade de des-
conforto que a reflexão causaria, mas ainda não havia conseguido compreender o
ocorrido. Ainda, para a defesa do Trabalho no curso de Tecnólogo em Fotografia a
acadêmica produziu um vídeo onde explicava o processo de criação e as repercus-
sões em redes sociais, com manifestações de xenofobia.

FIGURA 5: DEPREDAÇÕES DAS FOTOGRAFIAS COM TÉCNICA LAMBE-LAMBE

Fonte: SOUZA, 2019, p. 137.

FIGURA 6: ATAQUES NA REDE SOCIAL DA FOTÓGRAFA AMANDA ARAÚJO

Fonte: SOUZA, 2019, p. 139.


E quando a fotógrafa narrou a sua experiência de ter seu trabalho destruído,
surpreendeu- se com comentários racistas e xenofóbicos de um perfil falso no Fa-
cebook (Figura 6), que se posicionou expressando contrariedade pela exposição
artística e a presença de imigrantes haitianos. Infelizmente Amanda não procedeu
com nenhuma denúncia ao receber instruções dos advogados, onde declararam
que os resultados seriam melhores se feitos por uma associação que representasse
os haitianos ou por entidade de Direitos Humanos (SOUZA, 2019).
Esses comentários visavam polarizar questões como liberdade de expressão e
incitação ao ódio, papel das mídias sociais e a sensibilização para a cidadania e os
direitos humanos, além de diversos outros tópicos. Assim como explica Hall (2016)
o ‘outro’ negro é visto como a fonte do mal, o sujo e deturpado; buscando em dis-
cursos afirmativos de incitação ao ódio o reconhecimento do ‘outro igual’ com o
seu ponto de vista – exemplo do visto na Figura 5 com a utilização do termo “diga
não você também”.
Almeida (2018) explica que o racismo é sempre estrutural e que acarreta a desi-
gualdade política, econômica e jurídica. Este também seria aquele que leva à segre-
gação racial e o estabelecimento de locais públicos para determinados grupos – em
desfavor de outros –, como hospitais e escolas. Com isto, levanta-se o questiona-
mento se a segregação racial se expandiu para o âmbito digital e este é o motivo
para a falta de localização de falas dos imigrantes ou se existe outro fator para isto
– como medo de ataques racistas e antissemitismo.

CONCLUSÕES (OU CONSIDERAÇÕES FINAIS)


Recentemente buscou-se no espaço na mídia conteúdos de imigrantes haitia-
nos sob a sua visão de mundo e as vivências experienciadas na cidade de Joinvil-
le (SC), utilizou-se de palavras- chave como “haitianos Joinville”. Até o presente
momento a pesquisa ainda não apresentou dados suficientes para poder analisar
e problematizar a o ativismo em redes sociais pelos imigrantes haitianos, seja de
forma individual, seja enquanto grupo organizado.
Na plataforma Facebook, é possível encontrar algumas páginas uma delas re-
ferente à Associação dos Imigrantes Haitianos de Joinville e outra da Missão Hai-
tianos de Joinville – ambas as páginas possuem poucas informações e interações,
página TV Haiti no Brasil que possui conteúdos ativos e com intuito de entreteni-
mento, perfis religiosos, páginas voltadas para comércio/vendas e perfis pessoais.
Tratando-se do Twitter, não foi encontrado qualquer conta de imigrante ou uti-
lização de hashtags sobre o tema, mas na pesquisa foi levantado publicações de
terceiros falando sobre haitianos de forma pejorativa ante uma matéria publicada
pela Folha de São Paulo (web)3 intitulada “‘Você não é presidente mais’, diz haitia-

3 Folha de São Paulo. 'Você não é presidente mais', diz haitiano a Bolsonaro após crise do
coronavírus. Disponível em: https://twitter.com/folha/status/1239880166446374912?s=20. Acesso
em: 17 mar. 2020.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 467


Artes, memória e espaços
no a Bolsonaro após crise do coronavírus”. Em seu discurso o perfil4 declarava que
o imigrante era analfabeto, comunista e que este vinha de um inferno na Terra,
que seria o Haiti.
Tais observações permitem interpretar que nas plataformas de redes sociais, há
pouca interação de grupos haitianos organizados/institucionalizados que apresen-
tem notícias, informações ou discursos criados por imigrantes haitianos tratando
de suas inquietações, sejam elas referentes à sua própria cultura, ou à sua estada
na cidade de Joinville e as dificuldades que surgem dessa mudança.
Não se têm o conhecimento se a ausência ocorre de modo intencional, por
desconhecimento ou se ficam relegadas aos perfis pessoais ocupados pelos imi-
grantes. O que se propõe é que as plataformas de redes sociais, com sua grande
quantidade de usuários e percebida capacidade de penetração de informações no
cotidiano de quem as acessa, pode ser uma janela para que os imigrantes haitianos
possam ter voz na comunidade joinvilense.

REFERÊNCIAS

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2018. Disponível em: https://inegalagoas.files.wordpress.com/2020/04/almeida-silvio_-
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so em: 01 set. 2020.

4 Fala do usuário do twitter: “Um imigrante analfabeto e comunista - existe caisa mais tóxi-
ca??? - vindo de um inferno na Terra, o Haiti que tiveram até agora 32 golpes de estado sendo consi-
derado pelos derrotados brasileiros. É forte, hóin que sapiência, rsrs." além de outras mensagens de
ódio. Disponível em: https://twitter.com/mrreynaldo/status/1239864448283807747?s=20. Acesso
em: 12 set. 2020.

468 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
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ses_dissertacoes_interna.php?tease=20. Acesso em: 02 mai. 2020.

AUTORIA
Sirlei de Souza
Doutora - Professora Adjunta da Universidade da Região de Joinville
E-mail: professorasirlei@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1168-7034
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9958226369659395

Jonathan Prateat
Mestre - Professor Adjunto da Universidade da Região de Joinville
E-mail: j.prateat@univille.br
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0313114890310260

Kawanna Alano Soares


Acadêmica do curso de Ciência Jurídicas da Universidade da Região de Joinville
E-mail: kawannaalano@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7518-7573
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7931975558100604ANTIRRACISMO NO YOUTUBE:

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 469


Artes, memória e espaços
ANTIRRACISMO NO YOUTUBE: ANÁLISE DE
CONTEÚDO DOS VÍDEOS POPULARES DE 35
YOUTUBERS NEGRAS/OS
Janine Monteiro Moreira
Ana Lúcia Nunes de Sousa
Maiana Elói Ribeiro dos Santos

INTRODUÇÃO
A internet surgiu na década de 60, durante o auge da Guerra Fria, com o propó-
sito militar de formar uma rede de computadores que diminuísse a distância entre
seus pares (CARVALHO, 2006). Desde então, a rede vem cumprindo com o papel
de estreitar laços e viabilizar a comunicação. Assim, novas formas de escrita foram
viabilizadas através de blogs, plataformas de streaming e outras redes sociais, per-
mitindo interação entre narrador e leitor via comentários.
A propagação da velocidade da informação permitida pela rede mundial de
computadores permite levar informação e conhecimento a pessoas de diversas
regiões. A tecnologia surge como subproduto de uma sociedade e cultura, portan-
to, não se deve atribuir sentido único à tecnologia (LÉVY, 1999). Para o autor, uma
tecnologia não é considerada benéfica ou maléfica e tampouco neutra. Seria seu
uso, contexto e cosmovisões que determinariam sua adjetivação. Fato é que as no-
vas tecnologias de comunicação e informação podem promover a disseminação de
conhecimento de forma imagética, audiovisual que são absorvidos pelos sujeitos
de acordo com os signos e significados percebidos por eles.
As novas formas de interação social mediadas pelo computador aproximam su-
jeitos com predileções afins, constituindo-se em redes sociais virtuais. Os sites de
redes sociais possibilitam criação de um perfil público, articulando conexões por
meio de visualizações e navegações. Deste modo, as redes sociais aproximam su-
jeitos com valores sociais semelhantes, influenciando a percepção desses valores a
partir do pertencimento e fortalecendo esses princípios (RECUERO, 2012).
As redes sociais, sobretudo a plataforma de streaming YouTube, configuram-se
em uma rede de comunicação e poder, cujos protagonistas podem comunicar, in-
fluenciando o receptor por afetividade e pertencimento, a partir dos signos e signi-
ficados de suas narrativas. Além disso, as redes sociais, pelo seu potencial, configu-
ram uma alternativa para a ruptura do emudecimento e invisibilização de sujeitos
subalternizados e marginalizados. Dessa forma, a plataforma YouTube opera como
um veículo de comunicação que vem sendo apropriado para ampliação das narra-
tivas de negras/os.
Assim, esta pesquisa parte da seguinte pergunta: Qual o conteúdo predominan-
te nos canais de Youtubers negras/os? Além disso, nos interessa saber: na produ-

470 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
ção audiovisual de Youtubers negras/os, quais as temáticas abordadas nos vídeos
mais acessados?

YOUTUBE
O YouTube é uma plataforma que abriga conteúdos audiovisuais diversos e está
em segundo lugar entre os sites mais populares no Brasil. Além de oferecer diver-
sas opções de conteúdo audiovisual, um dos recursos disponíveis aos usuários é o
campo para comentários sobre os vídeos publicados.
Fanon (2008), baseado em seus estudos de psiquiatria, revela que os sujeitos
devem possuir um canal para extravasar a agressividade decorrente de energias
acumuladas. Assim, o autor informa que cada sociedade possui uma forma dife-
rente de catarse. Entende-se que a plataforma YouTube pode ser um dos canais
de catarse para negros manifestarem sua voz, rompendo com o sistema que os
emudece; podendo se configurar em uma plataforma que possibilite a prática de
resistência negra, a partir do compartilhamento de suas histórias e vivências. É
importante, entretanto, mencionar que a plataforma não é contra-hegemônica por
natureza. É uma plataforma proprietária, que visa o lucro e, inclusive, opera com
algoritmos que são considerados racistas e sexistas (SILVA, 2020). O que conside-
ramos que pode ocorrer é a apropriação desse conteúdo por movimentos sociais
e ativistas.

CAPITAL SOCIAL
O conceito de capital social originariamente foi empregado para definir um con-
junto de meios ou princípios produzidos, obtidos e compartilhados por meio de
interações no seio de um grupo. Pesquisadores perceberam que o conceito pode-
ria ser empregado nos estudos sobre tecnologias da informação e uso de mídias
sociais, já que esses comportamentos contemporâneos estabelecem um capital
social.
Dentre os autores que definiram o capital social, estão Bourdieu e James S.
Coleman. Para Bourdieu (2012), o capital social relaciona-se com um conjunto de
recursos conectados a uma rede de relações duráveis de conhecimento e reconhe-
cimento. Já para Coleman (1988), o capital social é definido por sua função e se
estabelece a partir de um aspecto de uma estrutura social e das ações de seus ato-
res, configurando uma relação de produção, visto que possibilita o cumprimento
de determinados objetivos que, em sua ausência, seriam inconcebíveis. O capital
social, produto das redes sociais na internet, contribui para alicerçar valores que
podem influenciar o comportamento dos sujeitos que fazem uso destas redes.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 471


Artes, memória e espaços
Recuero (2012 apud CORRÊA; VANZ, 2020), em seus estudos, identificou valores
construídos em sites de rede social: a legitimação, que relaciona-se com o reconhe-
cimento da presença do outro na rede; o suporte social relativo aos sentimentos
construídos de apoio, confiança e conforto da relação de interação com o outro;
visibilidade que pode ser entendida com o processo de reconhecimento e prota-
gonismo do sujeito na rede; popularidade, instrumento de medida da quantidade
de conexões do sujeito em sua rede; reputação, conceito referente à percepção
desenvolvida pelos sujeitos ao protagonista da rede e, autoridade cujo desígnio
perpassa a influência que o sujeito empreende sobre seus pares e que incorrem
em uma circularidade de influências que o sujeito exerce sobre seu nó e sobre os
adjacentes.

MATERIAIS E MÉTODOS
A pesquisa se ocupou de analisar o vídeo mais popular de canais de Youtubers
negras/os a fim de responder: qual o conteúdo predominante nos canais, as te-
máticas dos vídeos mais acessados, e perceber se havia um ativismo antirracista.
Para tal, foram mapeados, inicialmente, quarenta e cinco (45) canais de Youtubers
negras/os indicados em reportagens e postagens em redes sociais na Internet. O
critério de inclusão na amostra foi ter, no mínimo, dez (10) mil inscritos no canal de
Youtube. Desta forma, nossa amostra final resultou em trinta e cinco (35) canais. O
critério de escolha para análise dos vídeos de cada canal foi a popularidade (vídeo
favorito], disponibilizado pela plataforma Youtube (Tabela 1).

TABELA 1: VÍDEOS SELECIONADOS

Vídeo Mais Popular


Popularidade Nome do Canal NºInscritos
Conteúdo temático

1 Rayza Nicácio 1.710.000 Cabelo

2 Afro E Afins 587.000 Cabelo

3 Camila Nunes 545.000 Cabelo

4 Depretas 488.000 Cabelo

5 Gill Viana 477.000 Cabelo

6 Mari Morena 434.000 Cabelo

7 Herdeira Da Beleza 399.000 Maquiagem

8 Jacy July 393.000 Cabelo

9 Ao Natural 361.000 Corpo

10 Luci Gonçalves 288.000 Comportamento

11 Daniela Santos 265.000 Cabelo

472 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
12 Wanderlan Nascimento 250.000 Cabelo

13 Spartakus Santiago 132.000 Educação

Religião/ Orientação
14 Muro Pequeno 124.000
Sexual

15 Løad 120.000 Quadrinhos

16 Papo De Preta 113.000 Feminismo Negro

17 Tia Má 86.500 Feminismo

18 De Mudança 77.000 Finanças

Representatividade
19 Ana Paula Xongani 76.900
Negra

20 Preta Pariu 69.600 Cabelo

21 Ad Jr 67.900 Crítica Social

22 Neggata 64.700 Crítica Social

23 Soul Vaidosa 62.600 Maquiagem

24 Luciellen Assis 55.200 Cabelo

25 Canal Das Travas 39.500 Relacionamento

26 Elito 37.700 Vestuário

27 Guardei No Armário 37.600 Orientação Sexual

28 Magá Moura 33.600 Cabelo

Representatividade
29 Phcôrtes 27.500
Negra

30 Débora Ninja 18.100 Cabelo

Livros/Representativida-
31 Levvitalk 16.700
de Negra

32 Jean Fontes 14900 Cabelo

33 Valter Rege 11.700 Saúde Da Pessoa Negra

34 Samocréia 11.200 Relacionamento

35 Pretinho Mais Que Básico 10.700 Racismo Institucional

Fonte: autoria própria.

A amostra foi selecionada entre janeiro e fevereiro de 2020 e a análise dos re-
sultados ocorreu nos meses de março e abril. Para responder aos questionamentos
da pesquisa, a metodologia utilizada foi a análise temática dos títulos dos vídeos e
dos descritores dos canais, que se dá a partir da contagem dos temas e significados

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 473


Artes, memória e espaços
percebidos em uma unidade de codificação delimitada por uma frase (BARDIN,
2006).
Se nos servirmos da análise temática - quer dizer, da contagem de um ou vários
temas ou itens de significação, numa unidade de codificação previamente determi-
nada - apercebemo-nos de que se torna fácil escolhermos, neste discurso, a frase
(limitada por dois sinais de pontuação) como unidade de codificação.
A investigação inicial realizou-se por meio de “nuvem de palavras” criadas a
partir do complemento “word cloud”, baseado na descrição de cada canal de You-
tubers negras/os e de cada vídeo mais acessado. A “nuvem de palavras” permite
identificar quais as palavras mais frequentes nos descritores selecionados, basea-
dos na contagem das palavras, para tal, foram eliminados os conectores das frases,
mantendo apenas os núcleos das frases. Além disso, o complemento de software
permite a criação da imagem ilustrando as palavras mais utilizadas no texto anali-
sado.
É importante alertar para as limitações da pesquisa, dentre elas, a subjetivida-
de que permeia a categorização temática e de delimitação do assunto do vídeo,
visto que foram analisados a partir de descrição dos canais e títulos dos vídeos. A
pesquisa também contou com algumas dificuldades em relação à verificação do
quantitativo de seguidores e curtidas dos canais, bem como da seleção dos vídeos
mais populares, dado que a velocidade da transmissão e propagação dos canais é
muito rápida e propicia a alteração de número de seguidores de um dia para outro.
Assim, vale ressaltar que os dados apresentados, representam a realidade dos ca-
nais à época da coleta de dados.

RESULTADOS E DISCUSSÃO
Dos trinta e cinco canais (35) de Youtubers negras/os analisados, vinte e dois
(22) eram comandados por mulheres negras; e treze (13), por homens negros. O
canal que apresentou o maior número de seguidores é comandado por uma Youtu-
ber negra, que possui cento e setenta e um mil (171.000) seguidores. Com menor
número de seguidores é comandando por um Youtuber negro, e contabilizou dez
mil e setecentos (10.700) seguidores.
Segundo o resultado da nuvem de palavras, a palavra beleza apontou a maior
frequência, denotando que grande parte dos canais se ocupa desta temática. As
palavras autoestima, estética, cultura e moda, apresentam a mesma quantidade
de frequência, sendo repetidas nos descritores cinco vezes. As palavras cabelo,
empoderamento, mulher e relações étnico-raciais foram mencionadas quatro ve-
zes e a palavra maquiagem apareceu apenas uma vez, segundo os descritores dos
canais de Youtubers negras/os (Figura 1).
Em relação ao conteúdo temático dos vídeos mais acessados, os resultados
demonstraram que, de trinta e cinco (35) vídeos, quatorze (14) deles abordaram
de alguma forma o assunto cabelo; dois (2) vídeos falaram de maquiagem; outros

474 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
dois (2) vídeos se enfocaram na representatividade negra; mais dois (2) abordaram
críticas sociais a assuntos urgentes da sociedade (Figura 4 ). Logo, aparecem com
um (1) vídeo cada, os seguintes temas: questões sobre corpo e comportamento,
religião e orientação sexual, representatividade a partir de livros, feminismo, rela-
cionamentos, saúde da pessoa negra e racismo estrutural.

FIGURA 1: NUVEM DE PALAVRAS - CANAIS

Fonte: autoria própria.

FIGURA 2: NUVEM DE PALAVRAS - VÍDEOS

Fonte: autoria própria.


A partir dos resultados apresentados, pode-se inferir que a estética negra é o
assunto mais abordado pelas/os YouTubers negras/os, sobretudo, os conteúdos
referentes ao cabelo crespo. Podemos compreender este resultado a partir de uma
análise da importância da imagem para os povos negros para os debates sobre
racismo. Os corpos negros sempre foram expostos ora de maneira desumanizada,
animalesca (vale relembrar como Ota Benga e Saartjie Baartman foram expostos
como atrações em Museus Zôoantropológicos nos séculos XIX e XX), ora de manei-
ra fetichizada e sempre como feio em contraposição ao padrão de beleza eurocên-
trico (SILVA, 2015). A hierarquização de corpos dada sua classificação de beleza e
humanização que vêm ocorrendo desde a colonização e que estabelece os corpos
negros como inferiorizados, esteticamente feios e má aparência — fruto de uma
política racista — provoca nos sujeitos negros baixa auto-estima e outras consequ-
ências (SILVA, 2015).
A intelectual Nilma Lino Gomes vem pesquisando por décadas as questões de
negritude, sobretudo as questões envolvendo o cabelo crespo. Para ela, o discurso
proferido sobre o negro é permeado por impressões e representações sobre esse
corpo. O cabelo tem sido um dos principais símbolos utilizados neste processo, já
que desde a escravidão tem sido usado como um dos elementos definidores do
lugar do sujeito dentro do sistema de classificação racial brasileiro (GOMES, 2002).
Assim, é compreensível que o cabelo crespo tenha sido a temática mais presen-
te nos conteúdos produzidos por Youtubers negras/os. Aa identidade negra abarca
um complexo sistema estético, no qual é necessário considerar que ainda que os
cuidados com os cabelos estejam presentes em diversas culturas, para os sujeitos
negros, esse processo não ocorre sem conflitos denotando sentimentos de rejei-
ção, aceitação, ressifinificação e/ou negação identitária e de pertencimento étni-
co. De acordo com Gomes (2002), representações sociais estereotipadas do negro
estão presentes em toda sociedade e suscitam nos sujeitos negros experiêcias ne-
gativas, sobretudo em questões pertinentes ao cabelo.

CONCLUSÕES
Compreendendo que a internet e as plataformas de streaming disponibilizadas
na rede podem configurar um lócus de narrativas diversas, analisamos o Youtu-
be como uma possibilidade de expressão para ativistas negros/as. Desse modo,
o artigo teve como objetivo identificar o conteúdo predominante nos canais de
Youtubers negras/os e as temáticas abordadas nos vídeos mais acessados desse
Youtubers, além de reflexionar sobre essas temáticas.
Conclui-se portanto que o conteúdo predominante dos canais de Youtubers Ne-
gras/os pesquisados relaciona-se com assuntos pertinentes à beleza, sendo que
a temática dos vídeos mais acessados é o cabelo crespo. Compreendemos que a
presente pesquisa é apenas uma fração de uma pesquisa mais abrangente que pre-
tende, em um segundo momento, perceber na análise do discurso dos Youtubers

476 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
em questão, como se processam as narrativas antirracistas e a quem são ende-
reçadas. Neste sentido, abrem-se também diversas perspectivas para pesquisas
futuras, como endereçamento da produção audiovisual de Youtubers Negras/os,
análise do discurso das narrativas de Youtubers Negras/os e análise de recepção
das narrativas audiovisuais, construídas por Youtubers Negras/os.

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XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 477


Artes, memória e espaços
AUTORIA
Janine Monteiro Moreira
Instituto Nutes de Educação em Ciências e Saúde, Universidade Federal do Rio de
Janeiro
E-mail: janinemmoreira@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9838-9613
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9634369621070620

Ana Lúcia Nunes de Sousa


Instituto Nutes de Educação em Ciências e Saúde, Universidade Federal do Rio de
Janeiro
E-mail: analucia@nutes.ufrj.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1924-5297
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6689983214433853

Maiana Elói Ribeiro dos Santos


Instituto Nutes de Educação em Ciências e Saúde, Universidade Federal do Rio de
Janeiro
E-mail: maianaeloi@hotmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6829-5349?lang=es
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1386618858557030

478 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
ST 04
Arqueologia Negra:
protagonismo,
epistemologias
e diálogos
interdisciplinares
sobre memória,
patrimônio e
ancestralidade
IMPULSO COLETIVO TEATRO ANTIRRACISTA E
CONTRA-COLONIAL, NA LUTA PELO DIREITO À
TERRA, À CIDADE E À MEMÓRIA

Jorge Peloso de Azevedo

O racismo estrutural e institucionalizado nos poderes públicos e privados, o


epistemicídio sistemático contra as memórias, patrimônios e práticas de povos
negros e indígenas e o consequente genocídio secular dessas populações são he-
ranças coloniais que sequelam a população brasileira como um todo e forjam co-
tidianamente o profundo de nosso imaginário, seja nos anos de formação escolar
ou ao transitar prosaicamente pela cidade. É um conjunto articulado de elemen-
tos que tem erigido as cidades brasileiras ao longo da colonização, influenciando
diretamente as relações sociais e orientando nossa experiência urbana, e assim
impactando nossa consciência sobre o percurso histórico de formação dos espaços
urbanos ao deliberadamente omitir, apagar e manipular elementos que nublam
a percepção e continuamente produzem disrupção do sentido de lugar. É neste
campo conflituoso que o grupo teatral Impulso Coletivo se insere com sua atuação
poética e política, desenvolvendo criações teatrais desde 2008 na região central de
São Paulo que incidem em lutas populares e convergem problematizações sobre
território, urbanização, moradia, patrimônio, identidade racial e memória em áre-
as centrais historicamente periferizadas e racialmente segregadas.
O Impulso Coletivo foi fundado em 2007 por mim, Jorge Peloso, e Marília Amo-
rim, a princípio com o objetivo de pesquisar técnicas de treinamento físico de ator
que desenvolvessem no intérprete maior domínio sobre suas capacidades expres-
sivas (corpo, voz, movimento, etc.), produzindo uma presença psicofísica em cena
mais orgânica e vibrante. Mas logo sentimos a necessidade de integrar essa pesqui-
sa com temas que pudessem estimular e confrontar as técnicas que vínhamos de-
senvolvendo em sala de trabalho. Passamos o ano de 2008 compreendendo nossas
inquietações como moradores de São Paulo, e ao fim daquele ano conhecemos a
comunidade da Vila Itororó, no bairro do Bexiga. Os moradores da Vila encontra-
vam-se mobilizados para fazer frente a um decreto municipal de utilidade pública,
que ameaçava de despejo as cerca de 80 famílias que ali residiam, para construir
um polo cultural e gastronômico, ressuscitando um projeto que datava da década
de 70.
De imediato iniciamos uma profunda relação com os moradores da Vila Itororó,
tecendo ao mesmo tempo laços de criação, afeto e luta. Poucos meses depois, em
junho de 2009 o Impulso Coletivo passa concomitantemente a residir artisticamen-
te na Casa das Caldeiras, importante patrimônio industrial localizado no bairro da
Barra Funda, estendendo assim a territorialidade de ação do projeto que passamos
a nomear de “Desassossego – suas outras memórias”. Assim, o grupo transitava

480 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
semanalmente entre a efervescência política das mobilizações com os moradores
da Vila Itororó e a monumentalidade institucionalizada dos espaços históricos da
Casa das Caldeiras, sendo a segunda, o local onde passamos a concentrar o desen-
volvimento e a formalização de nossa primeira peça.
As dificuldades eram inúmeras, a começar pela escassez de recursos e pelos
trabalhos formais que tínhamos que sustentar para ter a liberdade de criação que
almejávamos com radicalidade, exercendo com o Impulso Coletivo um trabalho
complexo que uniu a criação de uma dramaturgia inédita, a encenação em um
espaço não-convencional como a Casa das Caldeiras, a pesquisa de campo e a atu-
ação política junto dos moradores da Vila Itororó. Em meio a esse turbilhão, nasceu
a peça “Cidade Submersa”, contando a história fictícia de Eliseu e Virgílio, dois
idosos que foram amigos de infância e se reencontram depois de muitos anos.
Eliseu está com Alzheimer e Virgílio tenta ajudá-lo a reencontrar sua casa na vila
onde cresceram. Entrecortando essa dramaturgia, surgem cenas metafóricas que
falam sobre mudanças da cidade e especulação imobiliária, entremeadas com de-
poimentos teatralizados de moradores da Vila Itororó. Em maio de 2010 estreamos
“Cidade Submersa” na Casa das Caldeiras, numa noite calorosa, com a presença de
muitos moradores e crianças da Vila Itororó, que puderam estar presentes por um
ônibus cedido pela administração da Casa das Caldeiras.
Este primeiro trabalho abriu espaço para outras apresentações, sobretudo
em espaços culturais independentes nas periferias e região metropolitana de São
Paulo, onde sempre fomos carinhosamente acolhidos. Este circuito cultural pelas
“quebradas” aos poucos afirmava nossa identidade como um grupo teatral peri-
férico absolutamente ignorado por instituições culturais hegemômicas da capital.
Nesta toada, o grupo apresentou “Cidade Submersa” integralmente pela primeira
vez na Vila Itororó em 2011, semanas antes da primeira desapropriação, que es-
vaziou o lugar quase que completamente. Na semana imediata após a primeira
desapropriação, ainda realizamos lá o ensaio fotográfico “Suas outras memórias”
em parceria com a documentarista Alícia Peres, em que foi registrada a recente
ausência presente nas casas, com pertences e vestígios deixados pelos morado-
res. As famílias foram realocadas para unidades habitacionais da CDHU na região
central, a serem pagas por aluguéis sociais pelos primeiros cinco anos, e a partir
daí via aquisição financiada. Apesar desta resolução aviltante do ponto de vista de
quem lutava pela permanência dos moradores na Vila Itororó – já que o proces-
so de usucapião então em andamento, que garantia o direito das famílias como
proprietárias, não foi devidamente julgado - não se pode negar que ela suavizou a
derrota do movimento.
Após um período em que tivemos de elaborar nosso luto pela violência estru-
tural operada no desmantelamento da população da Vila Itororó, aportamos em
2012 na Paróquia Nossa Senhora da Paz, no coração da Baixada do Glicério, bairro
localizado também na região central de São Paulo. Tentávamos entender como dar
continuidade às pesquisas iniciadas com o processo anterior e passamos a estudar

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 481


Artes, memória e espaços
FIGURA 1: VILA ITORORÓ E SUA COMUNIDADE

Fonte: Foto de Alícia Peres. Acervo Impulso Coletivo, 2009.

FIGURA 2: ENSAIO “CIDADE SUBMERSA” NA VILA ITORORÓ

Fonte: Foto de Vivianne Kiritani Acervo Impulso Coletivo, 2009.


FIGURA 3: “CIDADE SUBMERSA”
NA CASA DAS CALDEIRAS

Fonte: Foto de Alícia Peres. Acervo Impulso Coletivo, 2010.

FIGURA 4: “CIDADE SUBMERSA” NA VILA ITORORÓ

Fonte: Foto de Alícia Peres. Acervo Impulso Coletivo, 2011.


a história da região. O Glicério ocupa uma área de várzea do rio Tamanduateí, até
hoje está sujeita a inundações, num terreno de declive, da mesma natureza que a
Vila Itororó, e teve uma urbanização tardia, apesar de estar a poucos minutos do
núcleo urbano histórico de fundação de São Paulo.
Muito próxima ao bairro da Liberdade, localizada nos fundos da catedral da
Sé, a região do Glicério era chamada de distrito Sé Sul na São Paulo colonial, , en-
quanto a cidade crescia vigorosa em direção a oeste. Isso implicou numa relativa
desvalorização historicamente construída que fez com que a região fosse povoada
por uma população empobrecida e marginalizada, ambiente da sociabilidade negra
e indígena, e repleta de instituições públicas ligadas ao poder colonial e de repro-
dução do racismo escravista como a forca, o pelourinho, o Cemitério dos Aflitos,
a cadeia, o manicômio, a roda dos enjeitados, entre outros. É aterrador notar que
a aura negativa que ali foi se assentando desde o século XVI, permanece até hoje
e implica no cotidiano dos moradores do Glicério. São evidentes as conexões que
atravessam e perduram na história, se renovando para manter o racismo estrutu-
ral que impacta e estigmatiza existências negras, indígenas e empobrecidas. Atu-
almente os valores relativamente baixos dos terrenos atraem empreendimentos
imobiliários que apontam para a gentrificação da população de baixa renda do
bairro.
É neste segundo processo que o grupo começa a conhecer e encarar uma his-
tória de São Paulo pouco contada e conhecida à época, ligada às presenças funda-
mentais de povos africanos, afro-brasileiros e nativos com contribuições estrutu-
rais e incontornáveis para a cultura e para a produção popular do espaço urbano
paulistano. Para além de identificar genericamente que memórias são apagadas e
patrimônios materiais e imateriais são consequentemente destruídos, que esses
fatores impactam as relações sociais e as disputas pelo espaço urbano, o funda-
mental é reconhecer que são as matrizes étnico-raciais negras e indígenas e suas
inter-relações que são as mais atacadas por essas políticas estruturalmente racis-
tas.
Atualmente, diante da visibilidade desse debate, conquistada sobretudo pelas
intervenções do ativismo urbano, essas lacunas parecem óbvias, mas naquele mo-
mento era a primeira vez que nos defrontávamos com essas ausências tão presen-
tes na urbanidade paulistana. As últimas quatro décadas foram marcadas por pro-
fundas transformações no Brasil, em que vimos as pautas dos movimentos negro e
indígena conquistarem protagonismo no cenário político nacional. O processo de
descontrução do mito da democracia racial no país, engendrado pelo Movimento
Negro Brasileiro desde os primeiros anos do pós-abolição da escravatura, reorga-
nizado no final da década de 1970 e amplamente difundido em 1988, em face da
tentativa oficial de comemorar o centenário da assinatura da chamada lei áurea,
concomitantemente à promulgação da Constituição Brasileira; as políticas de cotas
raciais e sociais nas universidades geraram o ingresso de centenas de estudantes
que antes eram quase completamente apartados dessas instituições, e a promul-

484 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
FIGURA 7: DIVULGAÇÃO “A REAL FÁBULA DA CIDADE SUSPENSA”

Fonte: Foto de Alícia Peres. Acervo Impulso Coletivo, 2015.

FIGURA 8: “CIDADE SUBMERSA” NA VILA ITORORÓ

Fonte: Foto de Marcelo Heleno. Acervo Impulso Coletivo, 2015.


gação das leis 10.639/03 e 11.645/08 que versam sobre a obrigatoriedade do ensi-
no das histórias e culturas negras e indígenas, e junto de outros tantos fatores têm
transformado o imaginário brasileiro e tocado em silêncios profundos.
Enquanto hoje, nas universidades públicas, se proliferam pesquisas acadêmicas
à cerca dos saberes afro e indígenas e suas experiências no Brasil colonial e con-
temporâneo, no início dos anos 2000 o cenário era completamente diferente. Não
era incomum atravessar uma graduação inteira sem qualquer aula ou disciplina
que tocasse de forma profunda ou digna em debates sobre o racismo ou sobre as
contribuições fundamentais das culturas indígenas e afro- brasileiras para o país,
assim como a indústria cultural também compunha mecanismo fundamental para
forçar com que discussões raciais ficassem restritas às suas maiores vítimas. O Im-
pulso Coletivo nasceu do encontro de dois estudantes egressos da graduação de
licenciatura em artes cênicas do Instituto de Artes da Unesp (Universidade Esta-
dual Paulista), onde o panorama citado acima não foi diferente. E foi esse tipo
de ocultação que fez com que nos defrontássemos tardiamente com as heranças
simbólicas e concretas da ocupação negro-indígena na região central de São Paulo,
decorrência inevitável do aprofundamento das nossas pesquisas.
Mas é evidente que essas transformações no plano de nossos imaginários são
processuais, carregadas de perplexidade, contradições e revoltas, além de uma ne-
cessária atitude contínua de estudos e confrontos com o que é chamado de racis-
mo epistêmico, de forma que por meio de posturas críticas possamos combater os
ataques sistemáticos às existências de povos negros e indígenas e seus descenden-
tes. Somos nós mesmos vítimas desses processos e nossas reconstruções identitá-
rias permanecem constantes. É foi lá no Glicério que demos o primeiro passo para
tentar dar conta de narrar essas descobertas, criando “A Real fábula da Cidade
Suspensa” que estreou em 2015 na Casa do Migrante, baseada na fábula “A roupa
nova do rei” de Hans Christian Andersen, na qual tentamos recontar a história da
fundação de uma cidade que sobrepunha suas populações nativas, dividia migran-
tes por suas origens e cor de pele, e por fim surgia, pela força da grana, uma cida-
de suspensa modernizada sobre a original. Hoje, considero que este trabalho não
alcançou grandes desdobramentos públicos pelo fato de ter sido criado por duas
atrizes não negras e do grupo ter uma consciência racial limitada acerca do caráter
estrutural do racismo e sua interseccionalidade com outros fatores de exclusão.
Ainda em 2015, o grupo ainda testemunhou na Paróquia Nossa Senhora da Paz
o boom de migração haitiana e africana, e vimos o início do funcionamento do
projeto de restauro e gestão cultural da Vila Itororó já como equipamento público
da Secretaria Municipal de Cultura da cidade de São Paulo. A primeira ação de “res-
tauro” realizada foi a demolição de puxadinhos e autoconstruções da Vila Itororó,
que já ratificava a narrativa romantizada e elitistas e aí começávamos a compre-
ender como os discursos de centro cultural e patrimônio público estavam servindo
para aprofundar ainda mais o projeto higienista que opera no local até hoje. Logo
após a temporada de nossa segunda peça no Glicério, tomamos a difícil decisão de

486 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
FIGURA 9 E 10: EXPOSIÇÃO “REINTEGRAÇÃO DE POSSE”

Fonte: Fotos de Jorge Peloso. Acervo Impulso Coletivo, 2019.


voltar com a nossa “Cidade Submersa” nesta Vila Itororó já em processo de insti-
tucionalização, aquele que para nós é um território sagrado, onde nasce o Rio Ito-
roró, e fundamental para a estruturação do projeto estético e político do Impulso
Coletivo. Avaliamos que era necessário apresentar a peça na Vila, que permanece
como um documento cênico que sustenta a narrativa de resistência que confronta
a suposta necessidade de retirar seus legítimos moradores e o apagamento de suas
histórias e vestígios. Foram quatro apresentações no prédio que abrigara o antigo
Clube Éden na Vila Itororó, compondo a programação da I Jornada do Patrimônio
da Cidade de São Paulo.
Durante os anos seguintes, a peça seguiu com apresentações pontuais, mas o
processo de discussão pública só ganhou contornos mais agudos quando em 2018
a arquiteta Aline Fidalgo me informou sobre do debate “Diálogos com Marx: Cida-
de”, promovido pela Editora Boitempo no galpão anexo à Vila Itororó, em come-
moração aos 200 anos do filósofo alemão Karl Marx. No momento em que recebi a
mensagem me convenci de que precisaríamos estar presentes e que seria necessá-
rio fazer algum tipo de intervenção. Eu e Aline nos conhecemos em meio à luta dos
moradores na Vila Itororó, e os vínculos de afeto e luta que estabelecemos ainda
nos impulsionam a seguir acreditando que não é possível simplesmente assistir
este local ser transformado num cenário neutro e higienizado, onde o racismo tem
operado de forma hábil e rápida junto da indústria cultural no sentido de tornar
a Vila Itororó mais conhecida esvaziada do que quando seus legítimos moradores
lutavam para permanecer no local.
Neste caso, elucubrávamos como a Vila Itororó seria abordada pela mesa com-
posta de intelectuais conhecidos do campo da arquitetura, geografia, urbanismo
e patrimônio. Então elaboramos uma intervenção que fizesse frente às narrativas
naturalizantes de toda violência que vivemos juntos dos moradores, uma ação que
vivificasse toda humanidade que existiu ali naquele lugar, diametralmente oposta
à normatização institucional, expropriações materiais e simbólicas e as tentativas
de apropriação e neutralização de nossos discursos críticos. Criamos um roteiro
que servisse de orientação para o improviso que aconteceria ao vivo no debate.
Não nos surpreendeu que no dia do debate1 o mediador e a mesa não falaram ne-
nhuma palavra sobre o caso da Vila Itororó, e assim que o espaço foi aberto para
perguntas do público nos dirigimos ao centro e realizamos um ato que marcaria
a retomada das disputas narrativas públicas sobre o lugar. Era a reafirmação da
necessidade de se sustentar os conflitos no plano dos debates públicos com con-
trapontos concretos contra a naturalização das múltiplas violências que atingiram
essa comunidade e as tentativas de desmaterialização e dissuasão epistêmica dos
pressupostos racistas que orientaram todas as ações que ali sucederam. Nada me-
lhor para retomar a narrativa crítica do que um debate marxista, onde pudemos

1 Intervenção a partir dos 38 min em: https://www.youtube.com/watch?v=vaPWoYIEJA8&-


t=2338s

488 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
FIGURA 12: “CASA DE FAYOLA” NA VILA ITORORÓ

Fonte: Foto de Natália Pilati. Acervo Impulso Coletivo, 2019.

FIGURA 11: “CIDADE SUBMERSA” NA VILA ITORORÓ

Fonte: Foto de Natália Pilati. Acervo Impulso Coletivo, 2019.


operar na prática uma dialética radical de um Brasil negro, indígena de urbanidades
periféricas, socializando dores, desvelando a luta de classes e a segregação racial.
Narro os pormenores dessa noite, pois junto de fatores de ordem político-social
no país, como a iminente ascensão ao poder de um presidente assumidamente
racista em 2018, incidiram também dois assassinatos que me atingiram pessoal-
mente num período de 24hrs, o de Mestre Moa do Katendê, que pude conhecer
numa noite na casa da minha amiga capoeirista Jordana Dolores – ocasião em que
passamos a noite cantando cantos negros da capoeira –, e de Wagner Bahia, um
amigo pessoal que morava na Favela do Gica em Mogi das Cruzes. Foram dois
homens negros assassinados por outros dois homens negros. Foram alguns com-
ponentes traumáticos que me levaram a ter um sonho que enegreceu a leitura que
tínhamos da Vila Itororó. No sonho eu adentrava uma casa sem paredes, para qual
eu me mudaria com minha família. Quando olhava para uma abertura para fora,
via que estava dentro do Palecete da Vila Itororó, a construção mais emblemática
do conjunto de casas. Ao sair, avistava o Rio Itororó caudaloso e revolto correndo
em refluxo para dentro do pátio da Vila. Era uma visão impressionante. Quando
olho ao lado e vejo a filósofa negra Djamila Ribeiro que me desafia: “É Jorge, agora
você tem de fazer deste quilombo, um grande Quilombo!”.
“Itororó” é uma palavra tupi que significa “cachoeira pequena”, denotando a
primeira população a batizar o local e a ser expulsa da região. Em 2011, A Vila
Itororó tinha uma comunidade heterogênea, seja no quesito raça ou classe, mas
tendo como grande maioria uma população negra e migrante do norte e nordeste
do país, – descendentes, enfim, de povos originários e negros, que ocupavam as
casas mais precárias da Vila. Essa leitura da Vila Itororó como um território negro
não era enunciada nem pela população que ali vivia, nem pelos apoiadores da luta.
Isso implicou no não reconhecimento do racismo como um fator fundamental para
a destruição da comunidade. O fim de 2018 marca um novo momento das disputas
narrativas sobre a Vila Itororó quando ex-moradores e militantes da Vila Itororó se
encontram para conversar sobre essa leitura do local como um território negro A
partir daí passo a ser o porta-voz desse coletivo, denunciando, em inúmeras reuni-
ões públicas do movimento negro, a fim de atrair novos aliados, os crimes cometi-
dos na Vila contra a população e os imaginários negros e periféricos.
E foi num evento desses, ocorrido na noite de 19 de março de 20192, que en-
contrrei pistas signitivas sobre a negritude da Vila Itororó. Repeti o procedimento
que adotava em toda a reunião do Movimento Negro que eu pudesse me pronun-
ciar, relatando o desmantelamento da comunidade da Vila Itororó. Nessa noite
recebi retornos de quatro pessoas negras, que de diferentes maneiras me falaram
de suas conexões íntimas com aquele lugar, seja visitando familiares em férias ou
como militantes da área jurídica ou social. A ancestralidade me reservou ainda um
encontro mais epifânico com o escritor, jornalista e liderança negra Abílio Ferreira,
um dos debatedores do evento, que me presenteou ao falar que sobre seu conto

2 https://acaoeducativa.org.br/agenda/lancamento-do-mapa-da-rede-antirracista/

490 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
“A Casa de Fayola”, publicado no 8º volume da Antologia Cadernos Negros (1985),
que narra os conflitos de um casal negro ambientado na Vila Itororó. Abílio escre-
veu o conto baseado nas suas próprias experiências de vida ao frequentar a Vila no
início dos anos 80, e curiosamente o conflito central versa sobre as divergências
entre o casal Fayola e Alexandre, que discordam sobre ficar ou permanecer na Vila
Itororó, prevendo o que aconteceria concretamente depois de cerca de 20 anos da
publicação.
Esse encontro entre duas gerações do luta antirracista na capital paulista, sepa-
radas por quase quarenta anos e unidas pela Vila Itororó, não tardou a desdobrar
novas ações e criações. Pouco tempo depois de nosso primeiro encontro, eu e
Abílio já estruturávamos uma proposta para a Secretaria Municipal de Cultura de
São Paulo para compor a programação da V Jornada do Patrimônio. E foi assim
que realizamos o projeto “Reintegração de posse” na Vila Itororó, unindo a peça
“Cidade Submersa” e estreando “Casa de Fayola”, baseado no conto homônimo de
Abílio, além de uma exposição com ampliações em tecido de fotografias do ensaio
fotográfico “Suas outras memórias” e do conto original, tal como fora impresso
em 1985. As peças foram apresentadas nos dias 17 e 18 de agosto de 2019, e a
exposição permaneceu no galpão anexo a Vila Itororó por três meses, demarcando
este novo momento da luta contra o epistemicídio de povos negros e indígenas
na região central de São Paulo. O próprio nome da intervenção fez menção direta
tanto à historiadora negra Beatriz Nascimento – que numa entrevista de 1976 à re-
vista Manchete falava da necessidade da população negra reintegrar seus saberes
e tomar posse plena de suas existências e legados ancestrais –, quanto à parlamen-
tar trans-negra Erica Malunguinho, que chamou de reintegração de posse a sua
chegada à Assembléia Legislativa paulista como deputada eleita em 2018. O termo
também obviamente é a reapropriação no sentido contra-colonial contrapondo o
senso hegemônico do jargão jurídico utilizado para chancelar despejos e desapro-
priações contra população negra, indígena e periférica.
“Casa de Fayola” foi criada em colaboração com a atriz e diretora Camila Andra-
de, parceria dos grupos Impulso Coletivo e Quilombo Piracema de Teatro. Nossa
versão ainda teve mais uma apresentação no dia 25 de janeiro na própria Vila Ito-
roró como parte da programação das comemorações do 466º aniversário da cida-
de de São Paulo. A peça deu início a Expedição Fotográfica no Bexiga promovida
pela Secretaria Municipal de Cultura e Rede Globo. Estas articulações promovem
colisões diretas com as narrativas oficiais e provocam a reapropriação simbólica e
material da Vila Itororó como um quilombo urbano conectado a uma rede diversa
de territorialidades reivindicadas na cidade pelo povo preto, como o caso paradig-
mático do Sítio Arqueológico dos Aflitos, assim nomeado a partir do achamento,
em dezembro de 2018, de nove ossadas dos séculos XVIII e XIX num terreno de 400
metros quadrados do bairro da Liberdade. Por meio da sucessão de seus processos
de criação e atuação, o Impulso Coletivo aprofundou a ligação com as questões

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 491


Artes, memória e espaços
do apagamento da memória negra, indígena e periférica no centro de São Paulo,
sobretudo nos bairros da Baixada do Glicério, Liberdade e Bexiga.
Na Vila Itororó, o grupo tem operado uma atitude antirracista e contra-colonial,
a reconhecendo como síntese de disputas urbanas e da produção cultural e territo-
rial do imaginário popular periférico no centro, configurando-a também como eixo
articulador de um arco da presença de ancestralidades negras no núcleo central
de São Paulo, conectando o Glicério ao Bexiga. Ao longo de 13 anos de atuação,
os trabalhos do Impulso Coletivo compõem uma trama documental que age como
testemunho estetizado, criando um arcabouço que sintetiza, denuncia, coincide,
dinamiza e contribui com as lutas do movimento negro por direito à terra, à mora-
dia e à memória. São ações de luta antirracista que detonam processos de reapro-
priação simbólica e patrimonial, contra apagamentos seculares e que reinvindicam
a democratização do espaço urbano e intervenções físicas na paisagem que façam
justiça e reparem os ataques insistentes contra a população negra e indígena e
suas construções seculares na metrópole paulistana.

REFERÊNCIAS

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das herdeiras e dos herdeiros de Ananse. Belém: Secult/PA, 2009.

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AZEVEDO, Jorge Peloso de; DONOSO, Marília Gabriela Amorim. Problematização e repre-
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FARIAS, Marcio. Clovis Moura e o Brasil: um ensaio crítico. 1ª ed. São Paulo: Editora Dan-
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PINTO, Ana Flávia Magalhães. Escritos de liberdade: literatos negros, racismo e cidadania
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SANTOS, Ivair Augusto Alves dos. Direitos humanos e as práticas de racismo. Brasília: Câ-
mara dos deputados, Edições Câmara, 2013.

492 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
FIGURA 13 E 14: “CASA DE FAYOLA” NA VILA ITORORÓ

Fonte: Foto de André Andrade. Acervo Impulso Coletivo, 2020.

Fonte: Foto de Rafael Pulga. Acervo Impulso Coletivo, 2020.


SEVCENKO, Nicolau. A cidade metástases e o urbanismo inflacionário: incursões na entro-
pia paulista. Revista USP, São Paulo, nº63, 2004, p. 16-35.

MATERIAL ÁUDIOVISUAL

FERRAZ, Caio Silva. Entre Rios. 2009. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?-


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GERBER, Raquel. Ôrí.1989. Disponível em: www.youtube.com/watch?v=aUWlgzqKD7E

Site do Impulso Coletivo: https://impulsocoletivo.wordpress.com/vila-itororo/

AUTORIA
Jorge Peloso de Azevedo
Impulso Coletivo
E-mail: jorge7peloso@gmail.com / impulso.coletivo@yahoo.com.br
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2620501736536051

494 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
PENSAMENTOS E ENSINAMENTOS DE DONA
FRANCISCA CORREIA DA COSTA: OLHARES
AUTOETNOGRÁFICOS
Maria Aparecida de Matos

O objetivo desse texto é discorrer sobre saberes e história de vida de vovó Fran-
cisca Correia da Costa como benzedeira, parteira e raizeira. Nessa escrita utilizo
a metodologia da autoetnografia porque é uma narrativa construída na subjetivi-
dade de modo transpessoal, com ênfase sobre a constante relação que se estabe-
lece entre a memória pessoal e a memória coletiva, um tipo de escrita que acaba
por construir uma subjetividade historicizada e contextualiza, segundo Versianni
(2002). Minha escolha pelo método ocorre porque nesse contexto posso expressar
e fazer uma conexão entre o pessoal, social, cultural, espaços físicos e profissional
trazendo à tona o visível e invisível. Falar da minha convivência, emoções, bem
como reflexão política. O método autoetnográfico é pouco explorado no Brasil, há
uma certa resistência a essa metodologia, talvez pelo fato dela valorizar a subjeti-
vidade. Colyar (2013) pondera que na autoetnografia a escrita não é um ato disso-
ciável , é um processo que sustenta a conexão do eu e do sociocultural.
A escrevivência sobre vovó Francisca Correia da Costa é necessária porque esse
oficio de benzedeira já não existe mais no estado de Mato Grosso, por outro lado
ele, geralmente é exercido por mulheres negras do século XIX. Francisca Correia
da Costa exerce esse oficio desde 13 anos, veja que há muitas décadas, porque ela
fez 107 anos, agora em 5 outubro 2020. Há um provérbio africano muito citado
por afrodescendentes no Brasil e em países africanos que cada idoso/idosa é uma
biblioteca viva. Nossas bibliotecas vivas, ou seja as partiras, benzedeiras, raizeiras
estão desaparecendo; num futuro próximo ficará apenas na memória coletiva de
seus parentes e da comunidade onde elas viveram.
Benjamin (1993) afirma que a memória só é possível para aqueles que muito
viveu e por isso tem muito o que contar, os/as velho/as tornam-se narrador(es)(as)
por excelência; são testemunhas que relatam o observado e experenciado. Para
entender porque vovó Francisca não gosta que escreva o que ela nos ensina, pois
ela diz que a palavra é sagrada , e o que você fala, precisa ser cumprido, talvez ela
diga isso, a nós filhos e netas porque é a memória viva dos saberes que aprendeu.
Lembrei de Hampatê-Bá quando diz que a palavra vem antes da escrita, ela tem
sentido humano, som e gestos! É assim que inicio esse diálogo entre minha memó-
ria de tudo que sei sobre vovó Francisca e a escrita; aproveitando minha experi-
ência de ouvir e contar história, que é singular e ao mesmo tempo plural. É nessa
singeleza da oralidade e da fala como alma da narrativa que desejo apresentar, vovó
Francisca Correia da Costa.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 495


Artes, memória e espaços
Em 1985, comecei a participar dos festivais de inverno na Chapada dos Guima-
rães e ir com pessoas do grupo de teatro que eu participava e , outros colegas na-
turalistas, por lá ficávamos três dias ou até uma semana quando o festival acabava,
naquele tempo havia muito serração(neblina) no mês de julho ! Eram festivais mui-
to frio! Eu levei meu filho de 3 anos muito bem agasalhado e a mochila mas a casa
que eu ia ficar não tinha mais lugar. Alguém deixou eu esconder meu filho atrás de
uma barraca para que ele não pegasse tanta serração, para nós eram normal, usá-
vamos toucas, mantas, cachecol, cobertores, eram muitos shows nem percebíamos
ou sentíamos a dureza do inverno.
Eu conheci dona Francisca nesse festival de inverno, eu estava no festival sem
saber onde ia dormir com o pequeno Thiago, e nem tinha trazido barracas como
muitos companheiros e companheiras! Eu não sabia o que fazer, então uma jovem
que eu já tinha feito amizade ali, entre uma música e outras, observou que parei de
dançar porque o garoto veio atrás de mim. Ela ficou preocupada em ver o garoto
naquele frio medonho e muita garoa e convidou-me para ir à casa dela, ia pedir a
mãe para que pudéssemos dormir lá. A casa ficava bem afastada do espaço onde
ocorria o festival que era no centro da Chapada dos Guimarães, por isso andamos
umas duas horas. Chegamos e a jovem Luciana me apresentou a mãe Francisca,
era já madrugada e ela ainda estava acordada esperando a filha e o neto, quando
a jovem contou o que sucedia, imediatamente vovó Francisca arrumou para que
eu e meu filho dormisse com ela, único local mais vazio na casa dela que também
estava cheia, naquela época a casa de Francisca só tinha 4 cômodos, lembro-me
bem!! Desde aquele dia ganhei uma amiga, mãe e avó para meu filho.
Confesso que nessa idade eu não tinha dimensão da potencialidade e espiritua-
lidade dessa grande mulher, continuei indo à casa dela todas as vezes que ia a
Chapada e as filhas delas vindo a minha casa quando vinham em Cuiabá. Nessa
época pessoas de todos grupos sociais a procuravam .Eram os granfinos como ela
dizia e os sem recursos que vinham das roças em torno da cidade, de municípios
longiquos, glebas e até estrangeiros. Eu via chegar na Dona Francisca muitas co-
nhecidas, comadres, sobrinhas, gente que viviam na comunidade de onde ela vi-
veu, Lagoinha de Baixo, havia também os visitantes de carro que paravam lá com
crianças, adolescentes e idosos. Muitas pessoas levavam presentes para ela; tais
como uma galinha, saco de mantimentos, roupas, verduras, frutas. Dona Francisca
mandava esses visitantes numa pequena sala e atendia cada um no seu quarto,
por isso atendia de um a um. Assim foram passando os anos, no meados de 1992,
alguns professores que compravam casa na Chapada dos Guimarães, outros por
motivo de pesquisas da universidade (UFMT) que ouviam falar dela, como a grande
benzedeira, a visitavam muito, eu acompanhei algumas que me conheciam como
graduanda e pediam-me para levar até ela. Foram essas pessoas que ajudaram-na a
construir mais 3 cômodos e a sala dos santos onde ficariam as pessoas para benzer.
Esses mesmos visitantes doaram também alguns santos, anjos para o altar. Assim
as pesquisadores convenceram-na a ter um caderno para que cada visitante que

496 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
chegasse para quaisquer assunto com ela, assinassem no caderno, nome , cidade e
data.
Eu só tive dimensão de vovó Francisca Correia da Costa, como uma grande ex-
poente da cultura afro-mato-grossense em 1990, na universidade, eu estava cur-
sando Letras quando fiz uma disciplina “Cultura Brasileira I e II”, com a professora
Janete Siqueira, a primeira e professora negra e cuiabana que tive , essa mestra
deu-me os primeiros conhecimentos verdadeiros sobre a valoração da população
negra; com ela li muitos textos sobre herança da cultura africana, também fiz uma
disciplina História da África com um professor branco do curso de história, nesse
curso que durou 6 meses, conheci autores africanos, como: Hampatê-Bá, Boubou
Hama, Ki- Zerbo, li romances que falavam da libertação do Congo, Angola, Cabo
Verde, Quênia, entre outros países africanos. Até esse período eu não tinha dimen-
são de memórias negras, foi então que comecei a pensar nas coisas que vovó Fran-
cisca me dizia e ensinava. As histórias que ela contava do tempo que seus avós e
pais trabalharam na primeira usina de açúcar que teve na Chapada dos Guimarães,
em Mato Grosso, e que até ela pequena ia para a tal usina.
Quanto a essa história contada por vovó, fui pesquisar sobre esses engenhos e
Carlos Rosa (1995,p.42) afirmou que na Chapada no ano de 1842 havia fazendas
com gados, roças, canaviais, e criações com engenhos que empregavam mais de
30 escravos. Outros autores citam que esse município só enfraqueceu por volta de
1888 com a libertação dos escravos, é lógico que no interior do Brasil o escravismo
não terminou nessa data, se vovó Francisca nasceu em 1913 com certeza ela expe-
rienciou vários trabalhos análogos a esse regime cruel.
Assim que iniciei minha experiência de pesquisa apresentando-a expoente da
tradição oral africana em Mato Grosso; sem experiência alguma com pequenas
orientações para montar um questionário semi-estruturado, eu dizia vou escrever
sua história, vó Francisca!!! Ela riu muito e disse:- “ minha fia vai longe”.
A vovó Francisca Correia da Costa nasceu no dia 05 de outubro por volta de
1913, na Mata Fria, também conhecido como Lagoinha de Baixo, região rural desti-
nadas aos negros após o fechamento da Usina de açúcar que existiu naquela região
do Buritizinho no século XVIII. Na Lagoinha eles tinham um espaço para plantar, ali
viviam quase todas as famílias negras, um quilombo, mas ela nunca denominou as-
sim. Ela cresceu nessa região junto com a avó materna, eles plantavam, cortavam
lenhas, construíam cercas para prender gado junto com os irmãos e pai. Ela sempre
diz rindo que era um machinho!! Conta que aprendeu a benzer muito pequena
com a avó, começou seus trabalhos em casa, sem que os pais soubessem na volta
dos dez anos, quando aos domingos as pessoas iam visitar seus pais, ela levava
as crianças num quarto e já benzia de quebranto, arca caída, espinhela, cobreiro
brabo e outros males. Ela diz que obedecia ao que vinha do seu coração e as vozes
que ouvia institivamente. Foi com mais ou menos 10 a 12 anos que foi num terreiro
de umbanda de uma comadre de sua mãe, durante a gira, que ela foi confrontada
com a anunciação do seu dom, um cabloco incorporado pediu para conversar com

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 497


Artes, memória e espaços
uma “bacurá”(nome dado a jovem na linguagem de cabloco), que esta ali presente,
que andava curando e benzendo sem orientação. Ela relutou em se aproximar, mas
foi identificada por alguns que estava ali e a conhecia, acabou cedendo e diante do
cabloco acalmou-se. Foi ele que disse, que ela não precisava de gira, não precisava
incorporar para fazer trabalho de cura pois tinha o dom de nascença. Ela conta que
esse cabloco a testou mandando fazer pontos de exu no chão, de Sangô, Oum e
outro que não lembra mais. E segue fazendo até hoje, dito e feito. Até 105 anos
dona Francisca continuou benzendo aqueles que a buscavam! Ela diz; “ Mas mudou
muito nessas décadas, desde queaprendeu os trabalhos com os espíritos na casa da
avó e da mãe.” “- Tudo que eu escutava, tudo que eu via, ficava escrito na minha
cabeça como um livro, eu não esquecia nada”.
Dona Francisca se casou muito jovem com 14 anos e teve 12 filhos , sempre aju-
dando na plantação de mandioca, , feijão, canavial, no alambique, enxada e foice
na mão, fazia os trabalhos de cura nas horas vagas em sua casa na Lagoinha de bai-
xo” e foi também nessa idade que ajudou muita mulher no parto, tudo aconteceu
a primeira vez com a mãe dela que o pai tinha saído para a roça. Ela se mudou para
Chapada dos Guimarães.
Meu olhar sobre a história de vovó Francisca que vivenciei ela criando quase
todos os netos, cuidando dos filhos que tinha muita dificuldade dde conseguir em-
prego pois naquela época, eles não estudavam, mesmo ela vindo para Chapada
dos Guimarães, todos tinham que trabalhar , esse trbalho sempre foi nas planta-
ções. Bem o orgulho de vovó Francisca é que a maioria das netas estudaram até o
ensino médio. Vovó Francisca em sua simplicidade nunca deu trela ao preconceito,
mas suas filhas dizia mamãe quando agente vai procurar emprego, eles dizem:. –
Voce são netas da Chica benzedeira? O que emprego que temos é de limpar casa
e lavar roupa, algumas filhas aceitaram, outras não preferiam ajudar a mãe pois as
benesses que era recebia dos que a visitavam para uma benzição, uma garrafa ou
mesmo para fazer o parto de uma criança dava para ela ajudar as filhas e filhos que
estava ali com ela. Agora após os cem anos vovó Francisca Correia da Costa é muito
homenageada pelo pessoal das folias de reis e seu antigo comprades e comadres
do sertão. Quanto as autoridades da cidade nunca a hoemagearam, há dramatur-
gos e diretores de teatros que foram atrás dela para fazer filme, e até mesmo um
jornalista que fez uma linda matéria sobre a vida dela quando completo 105 anos.
No mais vovó Francisca continua viva , e nos cuidamos bem dela nos diais atuais.

REFERÊNCIAS

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498 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
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construindo práticas de enfrentamento ao racismo. Associação Brasileira de Pesquisado-
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KI-ZERBO. Joseph. História geral da África, I: Metodologia e pré-história da África / editado


por Joseph Ki -Zerbo. – 2.ed. rev. – Brasília : UNESCO, 2010. 992 p. ISBN: 978-85-7652-
123-5 1.,

AUTORIA
Maria Aparecida de Matos
Universidade Federal do Tocantins
E-mail: matos@uft.edu.br
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1784145961087058

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Artes, memória e espaços
ST 14
Cultura Afro-
Brasileira e
patrimônio:
preservação,
identidade e
memória
ORALIDADE, MEMÓRIA E POESIA: O CANTO NO
CONGADO NA COMUNIDADE DOS ARTUROS
(MG) COMO REFERÊNCIA CULTURAL DO
PATRIMÔNIO AFRO-BRASILEIRO

Beatriz dos Santos Chaves


Otair Fernandes de Oliveira

INTRODUÇÃO
Na região metropolitana de Minas Gerais, entre indústrias e vida urbana minei-
ra, encontra- se a Comunidade dos Arturos, no município de Contagem. A cidade
passou por muitas mudanças em sua paisagem nos últimos cem anos, mas, apesar
das transformações culturais, a Comunidade descendente de Arthur Camilo perma-
nece dedicada em manter tradições de seus ancestrais negros, tais como o Reinado,
Festa de Nossa Senhora do Rosário e da Abolição, Bezenção, Folias de Reis, Batuque
e Festa do João do Mato e muitas outras. Muitas destas celebrações, inclusive,
movimentam o município, recebem guardas de outras Irmandades e demais fiéis
visitantes. A preservação de memórias de matriz africana na Comunidade incen-
tivaram pesquisas e documentários sobre os Arturos. Cantos e práticas rituais que
compõem as celebrações do Reinado revelam-se como verdadeiros guardiões de
memórias da Comunidade como os sentidos de sua religiosidade, relações familia-
res, identidade étnica.
No ano de 2014 a Comunidade recebeu o título de Patrimônio Cultural de Minas
Gerais na categoria lugares. No entanto, apesar da relevância que o título pode re-
presentar, tal categoria tende a apresentar limitações, já que não expressa adequa-
damente as múltiplas dimensões que atravessam as práticas culturais dos Arturos
enquanto sujeitos históricos e detentores de bens cujas raízes abrangem visões e
valores de matriz africana (oralidade, circularidade, energia vital, musicalidade, lu-
dicidade e cooperatividade). Fator muitas das vezes invisibilizados na produção dos
documentos e instrumentos técnicos necessários ao Registro do bem conforme os
procedimentos administrativos previstos para o reconhecimento pelo órgão esta-
dual responsável pela política de preservação cultural, o IEPHA1.
O presente artigo busca apresentar os passos iniciais de nosso estudo sobre
o canto no Congado da Comunidade dos Arturos como referência cultural afro-
-brasileira, com foco nas práticas rituais do Reinado dos Arturos a partir de suas
tradições orais e memória ancestral. Este estudo é desenvolvido no âmbito do Pro-
grama de Pós-Graduação em Patrimônio, Cultura e Sociedade (PPGPACS/UFRRJ),
como parte da nossa dissertação no curso de mestrado, portanto, um estudo ainda

1 1 IEPHA: Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 501


Artes, memória e espaços
embrionário. Neste sentido, buscamos com este estudo destacar a importância do
canto no universo mitopoético e performático do Reinado dos Arturos.

APORTE TEÓRICO
A pesquisa terá como aporte teórico conceitos como: tradição oral africana,
conforme cita Jan Vansina (2010) e Ahamadou Hampaté Bá (2010); construção de
memórias, conforme argumentações de Pierre Nora e Michel Pollak; textualida-
de afro-brasileira em festas populares, segundo Reginaldo Prandi (2017) e Mar-
tha Abreu (1994), e no Congado Mineiro, com Glaura Lucas (2002), Leda Martins
(1997), Núbia Gomes e Edimilson de Almeida Pereira (2002). Sérgio Ferretti (1995)
e Caio César Boschi (1986) também integram este trabalho, como Maria
Cecília Londres Fonseca (2000), dentre outros autores.
O papel da memória se manifesta entre os Arturos desde o nome da Comuni-
dade. O termo “Arturos” é uma referência a Arthur Camilo Silvério, fundador do
grupo e pai da primeira geração da Comunidade, o responsável por transmitir as
tradições2. Arthur Camilo muda-se na primeira metade do século XX para terras
compradas por Camilo Silvério, seu pai. Dali, as primeiras gerações da família pas-
sam a depender do cultivo da terra, criam animais, constroem suas moradias e
articulam seus saberes. Entre 1965 e 1970, entretanto, a cidade de Contagem vê
sua paisagem sofrer modificações. Alguns espaços rurais passam por acelerados
processos de industrialização (VIEIRA, 2003: p.10) e muitos integrantes dos Arturos
são gradativamente introduzidos às fábricas na função de operários ou, no caso
das mulheres, passam a atuar como trabalhadoras domésticas em casas da cida-
de (GOMES E PEREIRA, 2000). A organização da Comunidade também passa por
transformações “na medida em que a indústria ocupou o lugar da agricultura como
principal geradora de recursos para o município” (GOMES; PEREIRA, 2000: p.167).
Apesar disso, festejos comuns à vivência rural e ao cuidado da terra continuam
a ser executados, como a Festa do João do Mato3. Além desta festa, da Comunida-
de o IEPHA inventariou outros bens4. Ao tratarem de práticas antigas sobre a terra

2 Nascido no antigo arraial de São Gonçalo de Contagem, em 21 de dezembro de 1885,


Arthur, mediante lei vingente, nasce livre2. No entanto, segundo relatos de seus filhos, Arthur Camilo
é apadrinhado por antigos proprietários de seus pais e vivencia um sistema de trabalho análogo à
escravidão até a adolescência. Ou seja, “seus proprietários e padrinhos, grandes donos de terras, ain-
da estabeleciam com seus empregados, relações de submissão, dependência, coerção, entre outras”
(IEPHA, 2014: p.38).
3 Segundo o Inventário da Comunidade: A origem da Festa da Capina ou Festa do João do
Mato está relacionada aos mecanismos de solidariedade rural, que tem sua base no mutualismo
laboral. A tradição de auxílio comunal nas atividades de roçado, de capina, limpeza de córregos, entre
outras, eram características comuns do chamado Brasil rural que paulatinamente vem se modificando
ao longo dos anos. A Festa do João do Mato se insere nesse âmbito sociocultural e, como toda dinâ-
mica cultural, passa por um processo de modificação de sua estrutura. (IEPHA, 2014: 54)
4 A Comunidade dos Arturos, Festa de Nossa Senhora do Rosário, Festa da Abolição, Folias
de Reis, Candombe, Guarda do Congo, Guarda de Moçambique, Batuque, Reinado, Levantamento de
Mastros, Conhecimentos Plantas, Benzeção, Confecção de Tambores, Mestre de Benzeção – Seu Má-

502 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
ou das primeiras aparições de Nossa Senhora do Rosário, festejos e rituais ilustram
a devoção da Comunidade à Senhora do Rosário, o papel da ancestralidade e ma-
nifestam os afetos que envolvem as tradições. Neste trabalho, dedicaremos nossas
análises à Festa da Abolição (maio) e de Nossa Senhora do Rosário (outubro) reali-
zadas durante o Reinado.
Entre os membros da Comunidade há diferentes interpretações sobre o que
é o Reinado. Alguns afirmam que é a própria Comunidade, outros, que é período
em que se realizam os festejos à Nossa Senhora e demais celebrações. Há também
quem afirme que o Reinado se constitui da Festa de Nossa Senhora Rosário apenas.
Apesar das divergências, a execução das tradições ao longo do ano acontece sem
prejuízos. Em todo caso, é importante destacar as origens da expressão “reinado”
no Brasil que é recorrente em outras regiões do país. O termo caracteriza princi-
palmente festejos comuns a culturas afro-brasileiras que giram em torno da coro-
ação de reis e rainhas negros, coroados pelos participantes da celebração. Entre os
Arturos, observa-se similaridades com este eixo condutor. Embora a coroação não
seja central em festas como a de Nossa Senhora do Rosário, a expressão também
realiza esta cerimônia com a condução das guardas de Congo e Moçambique. As-
sim, sob a benção de Nossa Senhora do Rosário, reis e rainhas recebem suas coroas
e mastros para exercerem funções rituais durante as celebrações da Comunidade.
Segundo Marina Souza (2002):

O que deve ser ressaltado no estudo dessas manifestações, fre-


quentes em diversas regiões do Brasil e que guardam entre si
semelhanças significativas, é que se inserem num processo de
constituição de identidades de comunidades negras no novo
Mundo, no qual as diferentes nações vão paulatinamente de-
saparecendo, passando todas a se abrigar sob o manto do rei
congo. (SOUZA, 2002: p.269)

A constituição do Reinado tem conexões com a reconstrução de identidades


africanas violentadas através do processo de colonização, pavimentado pelo escra-
vagismo. Apesar do uso de elementos católicos, “a comunidade negra, ao coroar
reis congo na américa portuguesa, destacava os aspectos africanos de seu catolicis-
mo” (SOUZA, 2002: p.276). O Reinado, integrado às demais celebrações das festas
da Comunidade ou interpretado como o período do ano em que elas são permiti-
das de acontecerem, sintetiza a potência que memórias de matriz africana detêm
e os modos como elas foram utilizadas como estratégia de sobrevivência cultural.
A coroação de reis negros e a eleição de sua corte aponta para os mecanismos uti-
lizados na manutenção de identidades africanas no Brasil.
O IEPHA, por outro lado, compreende o Reinado, como o período “em que o
Candombe e as guardas estão ativos, a parte do ano em que os tambores tocam

rio, Mestra do Batuque – Dona Tetane, Mestre Seu Antônio, Ofício Benzeção, Grupo Filhos de Zambi
(IPAC/IEPHA, 2014).

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 503


Artes, memória e espaços
e os congadeiros cumprem sua missão de louvar a Virgem do Rosário” (IPAC/ IE-
PHA, 2014: p. 121). No entanto, o Reinado entre membros da Comunidade é algo
de maior complexidade, formado por seus integrantes, e que interliga esferas do
profano e sagrado, ratifica identidades mediante perspectiva da etnicidade e da
religiosidade.

FESTA DA ABOLIÇÃO E A FESTA DO ROSÁRIO


A Festa da Abolição (também conhecida como Reinadinho, Festa Pequena ou
Festa da Libertação) acontece em maio e tem como um de seus objetivos rememo-
rar e encenar a assinatura da Lei Áurea de 13 de maio de 1888. Diferente da Festa
de Nossa Senhora do Rosário, a Festa da Abolição organiza esquetes e represen-
tações sobre os sofrimentos dos escravizados, as dificuldades de acesso à igreja e
o momento em que isso se “rompe” e membros da Comunidade e do grupo Filhos
de Zambi5 encenam a “fim da escravidão”. Inicia-se na sexta-feira do segundo final
de semana do mês de maio. Sua abertura se dá por meio do Candombe6, cerimô-
nia comumente realizada somente entre Arturos em que os ancestrais são convo-
cados por intermédio dos instrumentos sagrados, como Santanna, Santaninha e
Jeremias7. No sábado, as guardas de Congo e Moçambique reúnem-se na Capela
da Comunidade, seguem até a Igreja do Rosário e, após “celebração eucarística”
hasteiam bandeiras e soltam fogos.
A Festa do Rosário (Rosário de Maria ou Congada), por outro lado, “acontece
na primeira quinzena do mês de outubro, durante três dias, normalmente nos sá-
bados, domingos e segundas” (IEPHA, 2014: 25). A celebração é dirigida por seus
reis, rainhas e guardas que durante os três dias de celebração conduzem os ritos
que estruturam e narram o universo de devoção à Senhora do Rosário. Segundo as
narrativas da devoção, durante o período escravagista, a imagem da Virgem do Ro-
sário é encontrada nas águas do mar. Senhores brancos tentam retirá-la das águas,
a levam para uma igreja, mas, no dia seguinte, a Santa é vista no mesmo local de
antes: o mar. Apenas por meio dos instrumentos feitos e tocados por mãos negras
que a Santa move-se em direção à costa e nela fica em definitivo.

PROBLEMA DE PESQUISA E OBJETIVOS


A partir das reflexões feitas até aqui, consideramos para esta investigação a se-
guinte questão de pesquisa: como através do canto, a Comunidade dos Arturos

5 Grupo teatral formado por membros da Comunidade que articula tradições dos Arturos em
encenações. Além dos saberes da Comunidade, os Filhos de Zambi trabalham também com outras
temáticas ligadas à cultura afro-brasileira.
6 O Candombe é compreendido como “rito familiar que homenageia e invoca os antepassa-
dos e a Virgem do Rosário” (IEPHA, 2014: 77).
7 Instrumentos usados em ritos que invocam os ancestrais, como o Candombe.

504 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
preserva uma memória de matriz africana e/ou afro-brasileira? Assim, a proposta
de estudo aponta para a importância do canto na preservação de aspectos da cul-
tura afro-brasileira a partir da memória daqueles que foram escravizados e sofre-
ram o processo da diáspora africana, fenômeno invisibilizado pelos estudos sobre
a Comunidade e em diferentes campos do conhecimento, sobretudo, no campo do
Patrimônio Cultural.
Assim, analisar o canto como guardião na preservação da memória afro-brasilei-
ra no contexto do Reinado da Comunidade dos Arturos em Minas gerais é objetivo
central desta investigação. Como objetivos específicos, temos: relacionar história e
memória no Reinado da Comunidade dos Arturos; identificar o significado do canto
neste Reinado; compreender o canto como guardião da memória e preservação de
símbolos e práticas relacionados aos valores civilizatórios africanos na Comunida-
de.

METODOLOGIA
Como sabe-se, a pandemia internacional de Covid-19 alterou o ano de 2020
e, com isso, a condução de projetos de pesquisa para este ano foram modifica-
dos. Inicialmente, tínhamos organizado uma pesquisa empírica com visitas in loco
à Comunidade dos Arturos. A ideia era observar diretamente no campo a Festa da
Abolição, que aconteceria em 12 de maio, e a Festa de Nossa Senhora do Rosário
que aconteceria a partir do dia 12 de outubro.
Diante das medidas de isolamento social, optamos pela pesquisa bibliográfi-
ca e pesquisa documental. A primeira relaciona-se às fontes secundárias e será
executada na identificação e seleção de trabalhos/ estudos já realizados sobre a
Comunidade. A segunda forma de pesquisa se dará sobre fontes primárias, a partir
de documentos da própria Comunidade, Dossiê, Inventário de Referências Culturais
e Documentário IEPHA, de 2014.
Além disso, e apesar de o objeto desta discussão teórica se manifestar em cele-
brações cuja presentificação e corporeidade são essenciais, a execução das festas
estão momentaneamente canceladas e sem previsão de retorno. No entanto, o
Reinado dos Arturos possui vídeos de fácil acesso na internet e, os cantos, objeto
central desta investigação, tem algumas de suas transcrições registradas em obras
como a de Gomes e Pereira (2000) e de Lucas (2002).
A pesquisa bibliográfica, desse modo, conta com o levantamento de dados so-
bre a Comunidade a partir de Leda Martins (1997), Núbia Gomes e Edimilson de Al-
meida Pereira (2000), Glaura Lucas (2002), Romeu Sabará (1976) e Erisvaldo Santos
(2019) que serão algumas das referências para a contextualização dos Arturos. Para
embasamento da discussão sobre oralidade, performance e memória, os textos de
Jan Vansina (2010) e Ahamadou Hampaté Bá (2010); a construção de memórias, se
darão conforme argumentações de Pierre Nora e Michel Pollak, dentre outros.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 505


Artes, memória e espaços
RESULTADOS E ANÁLISE
A memória da Comunidade é estruturada sob referências ancestrais e na devo-
ção a Nossa Senhora do Rosário. Estes dois elementos são importantes na identida-
de artura. Para a compreensão dessa identidade, consideramos Stuart Hall (2015),
que a entende ao longo da pós-modernidade como “algo formado, ao longo do
tempo, através de processos inconscientes e não algo inato, existente na consciên-
cia no momento do nascimento” (HALL, 2015: p.24). Neste sentido, a Comunidade
sofre processso diversos que contribuirão para formulação da identidade atual do
grupo.
É importante considerar que a constituição da identidade afro-brasileira, per-
formada em seus ritos, estruturam-se sobre fundamentos e estratégias próprias
das tradições orais. Ou seja, a tradição oral faz parte da configuração dos Arturos,
bem como de seu sistema de ensino. Uma parte desses saberes, assim, conta com
memorização dos cantos, das práticas, das trocas cotidianas e dos laços entres os
membros da Comunidade. Este modo de organização de informações e sentidos
influencia a dinâmica do grupo. Nesse sentido, os cantos atuam como um dos me-
canismos de manutenção de tradições. Entender estes princípios fundadores dos
povos tradicionais implica entender que a oralidade é orgânica nestes espaços e in-
tegra todas as produções culturais do grupo. Portanto, a elaboração textual e ritual,
narra valores e memórias enquanto as preserva.
Em Oralidade e cultura escrita: a tecnologização da palavra (1998), Walter Ong,
assim como outros pesquisadores, ao descrever a história das transformações da
linguagem, centra-se no Ocidente europeu:

A sociedade humana primeiramente se formou com a ajuda do


discurso oral, tornando-se letrada muito mais tarde em sua his-
tória, e inicialmente apenas em certos grupos. O Homo Sapiens
existe há cerca de 30.000 –
50.000 anos. O mais antigo registro escrito data de apenas 6.000
anos atrás. (ONG, 1998; p.10)

O que é próprio da oralidade, costuma ser entendido como “primário” e/ou


“primitivo”, enquanto o que é próprio da escrita, é lembrado como “elevado” ou
“avançado”. A citação de Walter Ong demonstra isso: a história das civilizações
ocidentais enquadra o discurso oral na estrutura dos povos como parte de um pas-
sado longínquo e, seguindo a lógica do progresso e avanço técnico, a escrita confi-
gura a ascensão da civilização.
Apesar deste pano de fundo (que afeta também as percepções de Ong), o autor
reconhece que tais categorias totalizantes têm limites e podem ser reducionistas.
Para o autor, termos como “literatura oral” ou “escrita oral”, por exemplo, possibi-
litam a distorção da descrição do fenômeno oral entre sociedades tradicionais. Por
isso, Ong prefere expressões como “apresentação oral”, “formas verbais” ou “for-

506 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
mas artísticas orais”. Esta última “incluiria tanto as formas orais quanto as compos-
tas por escrito, assim como tudo o que se situa entre ambas” (ONG, 1998; P.22).
O movimento aqui proposto precisa levar em conta esta multiplicidade de ex-
pressões, o que a academia ainda não concluiu de modo satisfatório. O aspecto
oral de povos tradicionais não é sinônimo de atraso, mas sim da pluralidade de sen-
sibilidades, percepções e interpretações do real, o que, na verdade, evidencia a
complexidade destes grupos e as limitações da academia.
A relação do homem com a palavra e seus sentidos no contexto das tradições
orais é diferente. Na medida em que o registro depende dos artifícios da memória,
“a ligação entre o homem e a Palavra é mais forte” (HAMPATÉ BÁ; 2010, p.168).
Nesse espaço, entre palavra e sujeito, canto e homem, há especificidades; aquele
que profere o texto, assume com ele um compromisso. Nas palavras de Ahamadou
Hampaté Bá, etnólogo costa-marfinense, especialista em tradições orais do conti-
nente africano:

Lá onde não existe a escrita, o homem está ligado à palavra que


profere. Está comprometido por ela. Ele é a palavra, e a palavra
encerra um testemunho daquilo que ele é. A própria coesão da
sociedade repousa no valor e no respeito pela palavra.” (HAM-
PATÉ BÁ, 2010; p.168)

A palavra que flui por meio da verbalização oral, mesmo que, para a cultura
escrita, pareça fugaz, tem sua permanência nas práticas das tradições orais e na
maneira como o homem a apreende e a utiliza. Assim, para Hampaté Bá, não ape-
nas a memória atua neste tipo de tradição, mas também os acordos sociais esta-
belecidos entre seus membros e as narrativas construídas são fatores essenciais
para a manutenção dos discursos, bem como o próprio homem que a transporta. O
autor inclusive defende que “os primeiros arquivos ou bibliotecas do mundo foram
o cérebro dos homens. Antes de colocar seus pensamentos no papel, o escritor
ou o estudioso mantém um diálogo secreto consigo mesmo” (HAMPATÉ BÁ, 2010;
p.168). Portanto, aprofundar pesquisas sobre as textualidades e/ gêneros textu-
ais das tradições do Congado que originam-se destes formatos de relação com a
memória, é ter em perspetiva que a visão de mundo destas comunidades e dos por-
tadores destes textos têm suas especificidades de organização do conhecimento,
bem como os caminhos para manter saberes.
Além das percepções sobre a paisagem sonora e a instrumentalização do verbo
serem diferentes, as maneiras de manipulação da linguagem e dos textos, fazem
surgir gêneros próprios das comunidades orais (VANSINA, 2010), sendo o canto um
deles, e, no contexto do Reinado, a dimensão ritual precisa ser considerada como
importante fator. Assim sendo, a estrutura que compõe o canto do Congado e sua
sonoridade, ao constantemente retomarem letras de canções e seus os ritmos, o
grupo está a invocar a memória de seus antepassados. O que é, inclusive, explici-
tamente citado nos cantos: Ih, essa gunga num é minha, ai, ai/ Essa gunga num é

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 507


Artes, memória e espaços
minha/ Essa gunga é de vovó meu irmão/ Pra nós conservá/ Chora ingomá (Guarda
de Moçambique).
Leda Martins, rainha do Congado de Jatobá (MG) e professora da UFMG, traz à
academia importantes reflexões sobre o canto do Congado, nomeado pela autora
por “oralitura” ou “afrografia”. Martins defende que a textualidade destes cantos e
suas muitas potencialidades, fazem parte de um complexo sistema de informações
que tratam não só do Congado, mas da identidade poética afro-brasileira:

O estudo dessa textualidade realça a inscrição da memória afri-


cana no Brasil em vários domínios: nos feixes de formas poéti-
cas, rítmicas e de procedimentos estéticos e cognitivos fundados
em outras modulações da experiências criativas; nas técnicas e
gêneros de composição textual; nos métodos e processos de
resguardo e de transmissão do conhecimento; nos atributos e
propriedades instrumentais das performances, nas quais o cor-
po dança, vocaliza, performa, grava, escreve. (MARTINS, 1997,
p.67)

Martins aqui denota haver na textualidade do Congado, aspectos da memória


banto, ou dos povos descendentes da África. Seus procedimentos relacionados à
estética dos textos mantém-se interligados com os antepassados, de modo a con-
servar a memória dos escravizados.
Após pesquisas em comunidades tradicionais mineiras, como os Arturos, e, ana-
lisando especificamente as celebrações do Congado e do Candombe, Pereira (2017),
pensará a textualidade sagrada dessas festas sob a perspectiva de seu potencial
literário. Sua consideração entende os textos como poesia, ou seja, diferente do
que propõe os folcloristas do século XX, estes textos formam um gênero literário.
Pereira afirma que as culturas advindas do tronco linguístico banto ainda não com-
põem de modo expressivo as temáticas das produções do universo literário negro
e/ ou afro-brasileiro. Assim, a cosmologia mitopoética em que a Virgem do Rosário
e Nzambi convivem harmoniosamente, ainda não são exploradas neste eixo do
cânone. De acordo com Pereira,

a ênfase sobre o texto revelou uma refinada elaboração da lin-


guagem e dos arranjos sonoros, assim como o perfil criativo de
vários indivíduos. Em virtude da importância atribuída à letra e à
melodia, acreditamos ser pertinente chamar de “cantopoemas”
uma parte do discurso que os devotos elaboram para o período
específico das celebrações e que, mediante a aceitação do grupo,
permeia também as suas vivências cotidianas. (PEREIRA, 2010,
p.572)

Mesmo fora deste eixo, Pereira destaca em seu artigo8 a ausência dessas pro-
duções em poesias do modernismo, período em que, as artes (plásticas, cênicas e

8 Op. Cit. PEREIRA, 2017. Cantopoema: uma literatura silenciosa.

508 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
literárias) vislumbravam um projeto nacional específico. Apesar deste projeto, a
textualidade banto-católica9 não adentra ao corpus da poesia moderna e, até hoje,
a circulação das vozes do Rosário como produção artística precisam de maior espa-
ço para debate, embora sejam expressões que marquem comunidades como a dos
Arturos há mais de cem anos.

O que significa, deste modo, afirmar que os textos produzidos em


comunidades tradicionais – como entre os Arturos - durante ri-
tos e práticas religiosas, são cantopoemas, ou seja, objetos ar-
tísticos? Antes de tudo, pode significar a criação de bases para
concepções alternativas sobre produções artísticas, visto que
até então, a capacidade intelectual de execução e apreensão da
arte se manteve em grupos seletos. Assim, a proposta de Perei-
ra (2010), discute análises do campo literário e, apresenta aos
pensadores das Letras (e demais campos, como Antropologia)
a possibilidade de interpretações sobre os critérios estéticos
dos cânones. Ler os cantos como instrumentos de manutenção
de memórias e como objetos que podem ser entendidos como
arte, apresenta a possibilidade de novas leituras sobre o que é
arte.

De fato, percebe-se os cantos veiculam as “representações coletivas” presen-


tes na comunidade enquanto reafirma suas identidades durante as celebrações do
Reinado. Pereira seleciona alguns dos cantos em seu artigo e os cita os organizando
por meio de algumas de suas principais temáticas:

1. Afirmação da legitimidade do narrador:


É divera, povo bão
Agora eu vô falá
Eu sô fio dessa ingoma
Eu nasci nesse congá

2. Revigoramento dos laços com os ancestrais


Ih, essa gunga num é minha, ai, ai
Essa gunga num é minha
Essa gunga é de vovó meu irmão
Pra nós conservá
Chora ingomá

3. Os conflitos ideológicos
O sô Padro abre a porta
Ô!
Que o nego qué entrá
Qué ouvi a santa missa
Que o Padro
Eterno vai celebrá

9 Edimilson de Almeida Pereira usa deste termo em Cantopoema: uma literatura


silenciosa (2010)

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Artes, memória e espaços
Quando eu saí de casa Minha mãe recomendô
Oi, meu fio, cê num apanha Que seu pai nunca panhô

4. Valorização da etnicidade
Seo moçambiqueiro
Segura a toada
Que o povo de Angola
Não é caçoada

Nego de coroa
É nego batizado
Nego de coroa
Nego iluminado

CONCLUSÕES
Embora tenhamos avanços nas pesquisas sobre patrimônio cultural negro e/ou
afro-brasileiro, ainda são limitadas as investigações deste campo. O resultado das
análises feitas sob estes bens, tais como as realizadas pelo IEPHA, demonstram o
não desenvolvimento dos sentidos que performance e canto detém sobre os su-
jeitos detentores do bem, ou como estes elementos articulam-se em prol da pre-
servação de memórias de matriz africana. Canto e performance configuram não
apenas métodos de manutenção de ritos ancestrais, mas reivindicam o direito ao
passado. Assim, reconhecer a estética dos cantos, quanto estudá-los como guardi-
ões de memórias, aponta a complexidade destas produções e as lacunas de órgãos
como o IEPHA. Direcionar pesquisas para outras formas de se entender Memória e
Arte, amplia eixos de reflexão acadêmica e diversifica e construção científica.

REFERÊNCIAS

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da Silva & Guaciara Lopes Louro. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015.

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GERAIS (org.). Dossiê de Registro da Comunidade dos Arturos – Contagem/ MG. Belo
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510 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
IEPHA (org.). INVENTÁRIO PARA FINS DE REGISTRO DA COMUNIDADE DOS ARTUROS.
Minas Gerais: IPHAN, 2014. Disponível em: http://iepha.mg.gov.br/index.php/com-
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1996. PEREIRA, Edimilson de Almeida. Um tigre na floresta de signos: estudos sobre poe-
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SOUZA, Marina de Mello e. REIS NEGROS NO BRASIL ESCRAVISTA: História da festa de


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VANSINA, Jan. A tradição oral e sua metodologia. In: ZERBO, Ki (ed.). História geral da
África I: Metodologia e pré-história da África. 2. ed. Brasília: UNESCO, 2010. v. 1, cap. 7,
p. 139 - 136. ISBN 978-
85-7652-123-5.

AUTORIA
Beatriz dos Santos Chaves UFRRJ/ PPGPaCs
E-mail: beatrizdschaves@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3762064626538570

Otair Fernandes de Oliveira UFRRJ/ PPGPaCs


ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8981-7970
E-mail: otairfernandes@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2554782696953531

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 511


Artes, memória e espaços
DECOLONIZANDO TEMPOS, ESPAÇOS E
MEMÓRIAS: DIÁLOGOS COM PROFESSORES NA
PROVÍNCIA DA HUÍLA EM ANGOLA
Elison Antonio Paim

Naquele tempo tinha professor,


mas a lamentação dos pais dizendo
que as meninas não podiam estudar,
os fazia meter só os nossos irmãos a estudar,
nós iamos acompanhar as nossas mamãs na lavra
para bombocar e daí, pronto, por causa dos nossos pais,
nós perdemos o direito de estudar,
porque os professores passavam mesmo nas sanzalas.
(Joana Bula Kiluange, 2018, p. 229)

INTRODUÇÃO
Esta comunicação resulta de pequisa de pós-doutorado realizada no Instituto
Superior de Ciencias da Educação - ISCED de Lubango em Angola. Teoricamente
dialogamos com autores da epistemologia decolonial, interculturalidade, História
Oral, memória, patrimônio cultural e história local.
Ao elaborar e desenvolver o projeto Decolonizando tempos, espaços e memó-
rias: experiências educativas na Província de Huíla – Angola, buscamos compreen-
der como são realizadas as aulas e atividades educativas em escolas na Província
de Huíla, no tocante as questões da memória e experiências educativas a partir do
estudo de documentos e das memórias dos professores das Escolas de Educação
Básica.
Foi no emaranhado de relações entre escolas e seus sujeitos que investiguamos
como as memórias, o estudo da história e cultura das comunidades bem como os
saberes não escolares estavam ou não presentes nas Escolas de Educação Básica.
Considerando esse contexto, nossos questionamentos originais foram referen-
tes a como as questões da memória, patrimônio cultural e história e cultura das
comunidades de Huíla estão presentes nas salas de aulas?
O estudo foi realizado a partir de dados coletados em escolas, narrativas de pro-
fessores, Instituto Superior de Ciencias da Educação-ISCED em Lubango e Biblioteca
Pública de Lubango.
Procuramos investigar os diferentes saberes, fazeres e experiências amalgama-
das na produção do conhecimento escolar identificando como as memórias, os
patrimônios e culturas locais são agenciados nas práticas docentes em escolas na
província de Huíla em Angola.

512 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
As observações e as narrativas do vivido permitiram, como lembra Thompson
(2002), auscultar os silêncios, bem como as vozes dos sujeitos envolvidos na pesqui-
sa e de outros presentes nos diferentes espaços da escola. As narrativas orais foram
coletadas por meio de entrevistas semiestruturadas no intuito de conhecer as prá-
ticas pedagógicas dos docentes, em especial aquelas relacionadas com as temáticas
memórias, patrimônios e o estudo da história e cultura locais. Todas as narrativas
orais foram gravadas, transcritas e textualizadas. Posteriormente, fizemos a cate-
gorização e construção das mônadas (narrativas que contem um todo) na relação
com outras fontes, referencial teórico e produções já existentes.
Os entrevistados ao total de quinze professores sendo onze mulheres e quatro
homens. Os locais das entrevistas foram em escolas atuais dos professores em
Lubango, escolas visitadas nos municípios da Humpata e Chibia e nas residências
dos entrevistados.
O contato com os professores ocorreu de diferentes formas. Diretamente nas
duas escolas visitadas na Chibia sendo uma urbana e uma rural e nas três esco-
las visitadas na Humpata sendo duas rurais e uma urbana. Uma vizinha professora
quando soube da pesquisa conversou com seus colegas e dois se dispuseram ser
entrevistados e uma professora da escola indicou sua filha. Um mestrando do IS-
CED indicou uma pessoa. Uma professora do ISCED indicou dois antigos colegas e se
dispôs ser entrevistada. A supervisora deste estágio Pós-doutoral me apresentou
a um amigo pessoal.
Com o número de entrevistados conseguimos abranger seis municípios da
Província da Huíla num total de quatorze. Em Lubango foram entrevistados uma
professora e um professor que narraram suas experiencias em escolas localiza-
das noutros municípios e seis (quatro mulheres e dois homens) entrevistados em
Lubango. Três foram entrevistados em Humpata, um em cada escola visitada (duas
mulheres e um homem). Dois em Chibia, uma professora em cada escola. Os de-
mais, narraram sobre experiencias em escolas de Quilengues (três, duas mulheres
e um homem), Caluquembe (uma) e Cacula (uma). Além dos professores em uma
escola de Lubango um estudante se dispôs ser entrevistado, nos narrou sua expe-
riencia enquanto estudante em um Seminário Católico localizado na Zona Rural.

UM POUCO DE ANGOLA
Disponibilizamos, de forma breve, algumas informações com o intuito de apre-
sentar a República de Angola aos leitores.
Angola está situada na África Austral e ocupa uma área de 1. 246.700Km2. Loca-
liza-se entre os 5 a 18 graus de latitude sul e de 12 a 24 graus de longitude. O seu
litoral é constituído basicamente por uma região de terras baixas, abrangendo toda
a faixa longitudinal em sentido norte-sul. Em pontos de planalto suas terras apre-
sentam uma altitude considerável entre 1.200 a 2.100 metros, aproximadamente
(MUACHIA, 2016).

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 513


Artes, memória e espaços
Angola está dividida em dezoito províncias: Cabinda, Zaire, Uige, Luanda, Bengo,
Kwanza- Norte, Kwanza-Sul, Malange, Lunda-Norte, Lunda-Sul, Benguela, Huambo,
Bié, Moxico, Namibe, Huíla, Cunene e Kwando-Kubango. As províncias são compos-
tas por 159 municípios e 618 comunas. Algumas das principais cidades de Angola
são: Luanda, Huambo, Lobito, Benguela, Lubango e Malanje (NGULUVE, 2006).
A população angolana, pela indicação do censo demográfico de 2014, é esti-
mada 24,3 milhões de habitantes, dos quais 62% vivem na área urbana e apenas
38% vivem nas zonas rurais. A maior concentração populacional está em Luanda,
a capital, que conta com 6,5 milhões de habitantes equivalendo a 27% do total de
angolanos (KEBANGUILAKO, 2016). É uma população multiétnica composta por vá-
rios grupos étnicos distribuídos em Ovimbundus (32%), Umbundus (20%), Bakon-
gos (11%), Tchokwes (9%). Ainda segundo o autor, 28% da população é formada
por povos de origem Bantu como os Nyaneca, Ngangela, Ovambo, Herero e os não
Bantu os Vâtwa, Khoisan e povos de origem europeia. Segundo Filipe Zau (2009),
em Angola, no ano de 1960, mais de 2, em cada 3 indivíduos brancos, não havia
ali nascido. Antes do êxodo de 1975, as raízes de mais de 70% dos brancos que se
encontravam em Angola, não remontavam além de uma geração.
O país foi colonizado por Portugal até 1975 quando, então, tornou-se inde-
pendente. Em decorrência da colonização o português é a língua de ensino e de
comunicação, porém fala-se também as línguas, Kimbundu, Kikongo, Tchokwé,
Nganguela e Umbundu. Além dessas ainda são faladas as línguas Fiote, Ngangue-
la Kwanhama e Nhaneka-Humbe (QUINTAS; BRÁS; GONÇALVES, 2019; NGULUVE,
2006).
Em Angola o subsolo é muito rico em minerais. Sendo relevantes a produção de
“petróleo, gás natural, diamantes, fosfatos, substâncias betuminosas, ferro, cobre,
manganês, ouro, rochas ornamentais, cobre, quartzo, gesso, mármore, granito ne-
gro, berílio, zinco, etc.” (NGULUVE, 2006, p.30). Em 2015 Angola produzia 1,77
milhões de barris diários. O petróleo representa 95% das exportações e 70% das
receitas fiscais do país (KEBANGUILAKO, 2016). A indústria petrolífera emprega
cerca de 10.000 nativos o que é muito pouco diante da necessidade de geração de
empregos. Estes, em sua ampla maioria, são destinados a estrangeiros com maior
capacitação tecnológica (MUACHIA, 2016).
Embora apresente grande quantidade de riquezas minerais sendo exploradas
“o Índice do Desenvolvimento Humano – IDH, segundo os dados do Programa das
Nações Unidas para o desenvolvimento - PNUD de 2013, é fixado em 0,526. Angola
apresenta uma “expectativa de vida de 51,87 anos, uma taxa de mortalidade de
13,89% e um rendimento per capita de 4.0 Euros. O que coloca o país na posi-
ção 149 no ranking mundial”. Portanto, “grande parte da população está colocada
abaixo da linha da pobreza, devido à desequilibrada distribuição da renda nacio-
nal” (KEBANGUILAKO, 2016, p.124).
Muitos dos problemas vividos pela população angolana são decorrentes de
duas guerras dentro de seu território que, juntas, somam 40 anos de lutas, confron-

514 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
tos, mortes, violações, saques e destino de boa parte das receitas para a compra
de armamentos e manutenção das tropas. A primeira delas foi a Guerra de Inde-
pendência contra os portugueses com duração de 1961 até 1975. A segunda foi uma
guerra interna entre seguidores de partidos políticos como o Movimento Pela Li-
bertação de Angola (MPLA), a União Nacional Pela Independência Total de Angola
(UNITA) e a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA), resultado do fracasso
do cumprimento do Tratado de Alvor que determinava a criação de um Governo
de Transição, assinado por representantes dos três movimentos a 15 de Janeiro de
1975. Segundo Justin Pearce, o consequente desentendimento dos três movimen-
tos de libertação levou à dissolução do Tratado e à retirada da UNITA e da FNLA de
Luanda, levando a que, “nas vésperas da independência, o MPLA, a UNITA e a FNLA
detinham o controlo exclusivo de regiões específicas de Angola” (PEARCE, 2017,
p. 79) – que viria a dar início à guerra civil angolana que se estendeu de 1975 até
2002.
Aspecto a ser considerado ao abordarmos historicamente a educação em Angola
é que, em diferentes momentos, se fez e se faz a cópia de modelos educacionais e
culturais de outros países. Essa cópia é realizada sem ou pouco considerar as parti-
cularidades e a “grande diversidade cultural de um país multiétnico, multilinguísti-
co e multiracial” (KEBANGUILAKO, 2016, p.95).
As condições acima descritas se evidenciam com maior intensidade nas escolas
localizadas no meio rural angolano em que onde as desigualdades sociais são mais
gritantes. Devido às precárias condições “as populações do campo, sobretudo as
mais jovens, abandonam a escola, deslocando-se para as cidades, correndo atrás
de “empregos” precários e expondo a sua vida ao risco” (MUACHIA, 2016, p.31).
A falta de incentivos educativos, tanto para alunos quanto para professores é pre-
mente. Assim sendo, as escolas rurais apresentam uma rede escolar deficitária;
famílias extremamente pobres; confronto entre o ensino formal e o informal, ou
simplesmente, as tradições culturais que em muitos casos impedem as raparigas
de participarem nas aulas, sobretudo quando chega o momento da realização dos
ritos de iniciação ou de passagem; a isto associa-se o casamento e a maternidade
que conduzem ao abandono precoce da escola. (MUACHIA, 2016, p.28)

NARRATIVAS MONADOLÓGICAS
Na perspectiva benjaminiana, memória é rememoração e a narrativa encontra-
-se intimamente relacionada ao ato de rememorar, entendido como o "exercício
do despertar, a possibilidade de ressignificação da própria experiência, através de
memórias conscientes e inconscientes cheias de significados, sentimentos e so-
nhos" (ROSA; RAMOS; CORRÊA; ALMEIDA JUNIOR, 2011, p. 203). O rememorar é,
ainda, entrecruzamento de tempos e espaços, pois "ao rememorar voltamos ao
passado com as lentes do presente, para que nesta reconstrução das lembranças,

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 515


Artes, memória e espaços
busquemos elementos que nos possibilitem agir sobre o presente e projetar um
futuro" (PAIM, 2005, p. 41).
Para Benjamin (1994, p. 205), a narrativa "não está interessada em transmitir
o "puro em si" [grifo do autor] da coisa narrada, como uma informação ou um re-
latório . . . se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na
argila do vaso".
Ainda na perspectiva benjaminiana, as narrativas, que são formas de dizer de
nossas experiências, podem ser expressas por mônadas, "que são centelhas de
sentido que tornam as narrativas mais do que comunicáveis: tornam-se experien-
ciáveis" (Rosa et al., 2011, p. 203). Na definição de Benjamin,

[...] em cada mônada, estão indistintamente presente todas as


demais. A ideia é mônada, nela reside, preestabelecida, a repre-
sentação dos fenômenos, como sua interpretação objetiva. [...]
a idéia é mônada, isto significa, em suma, que cada idéia contém
a imagem do mundo. A representação da idéia impõe como ta-
refa, portanto, nada menos que a descrição dessa imagem abre-
viada do mundo. (2007, p. 69).

Portanto, a mônada capta a totalidade na singularidade, ou seja, na construção


de mônadas como aporte metodológico com base na rememoração dos estudantes
indígenas, nos detalhes mais miúdos das narrativas, há a chance de recuperar o
universal, de escovar a história a contrapelo e superar a história linear e colonial, na
medida em que "a mônada pode revelar o caráter singular da experiência educativa
realizada, sem perder de vista suas articulações com o universo amplo da cultura
em que ela está imersa e com o olhar subjetivo do pesquisador" (ROSA et al., p.
205).
Alargando a interpretação para entender mônada, Cyntia Simioni França (2015)
diz que: “a mônada é concebida como a cristalização das tensões nas quais se ins-
crevem práticas socioculturais, plurais, contraditórias” (2015, p. 105), e que “a mô-
nada é um fragmento que salta do desenrolar do tempo linear” (p. 106); assim
tem-se as imagens monadológicas em narrativas, rememoradas/contadas num
tempo não linear da narração.
Ao ler as mônadas, mais precisamente na “Infância em Berlim”, observa-se
que “Nessas pequenas narrativas que remetem à infância de Benjamin, é possível
vislumbrar a articulação entre o vivido individual do autor e as esferas sociais mais
amplas, valorizando as experiências do passado infantil e ressignificando-as a partir
do olhar adulto. (SANTANA, 2017, p. 27). Em diálogo com Maria Carolina Galzerani
compreendemos que há a possibilidade de articulação do que é vivido (individu-
al) de quem narra com o contexto social, na qual a mônada é construída e torna-se
terreno fértil, para a construção de significados coletivos e particulares mais subs-
tanciais. Apresento a seguir duas monadas uma sobre a guerra e outra sobre a
organização da escola após a guerra.

516 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
Eu tinha uma idade que era quase igual a deles
Uma coisa que me marcou foi no Instituto Normal de Educação,
quando eu fiquei diretora, tinham vindo estudantes de todo o
país e eram quase da mesma idade que eu, eu tinha 22 anos. En-
tão, ter jovens que eram assim que tinham deixado as mães e os
pais, e que era eu quase que com a mesma idade e ter que pôr
regras e impor disciplina, eles diziam que eu era a jovem mais
velha. Então isso tinha, teve uma grande responsabilidade para
mim. Tanto que houve uma altura que havia tropa, porque havia
guerra, e havia uma diretora provincial que disse que se esses
meninos não se portarem bem, vamos pô-los todos na tropa.
E eu disse “não, eu fico com eles e me responsabilizo por eles”.
Tanto que hoje todos eles se lembram de mim e muitos deles
ainda, há alguns que estão no Ministério da Educação, outros
filhos médicos, há um estudante que foi para Cuba, que depois
voltou e lembrou-se, veio até aqui porque andavam a minha
procura. Então, essa experiência foi muito marcante porque eu
tinha uma idade que era quase igual a deles. Mas, eu não podia
pensar como eles e nem fazer. Então, uma vez eu entrei numa
sala e encontrei um vaso bem grande, que eles puseram em
cima da secretária porque eu tinha lhes dito que ia lhes pôr al-
guma sanção. Então, eles para me persuadirem levaram o vaso,
como eles sabiam que eu gostava de flores arranjaram um vaso
e puseram em cima da... Mas foi uma boa experiência porque ali
eu aprendi a lidar com a juventude, num outro contexto, e per-
ceber as dinâmicas juvenis de uma forma diferente, não tanto
naquela rigidez de não podem fazer. Então, consegui trazê-los,
tanto que isso me ajudou hoje bastante para minha experiência,
eu não tenho problema na maneira como elas pensam diferente,
de trazer os amigos, de pensar diferente, de vermos coisas dife-
rentes e isso ajudou-me muito. (Maria João, 2019)

Eu acabei por ter que esbofetear alguns alunos porque estavam


completamente em pânico
Assim no aspecto de transmitir conhecimentos eu acho que a
educação é tão cativante, porque cada dia, cada aula é uma aula
diferente. Cada dia, quer dizer não se repete, são coisas novas,
a forma como abordar as pessoas, os assuntos a serem trans-
mitidos, os conhecimentos a serem transmitidos. Eu acho que,
quer dizer, não tenho assim nesse lado não tenho nada que me
tenha feito, portanto, pensar dessa maneira. Mas há situações
marcantes. Por exemplo, sair para ir dar uma aula, para ir a dar
aulas e a quinhentos metros de chegar à escola haver um bom-
bardeamento. Não exatamente na escola, não exatamente na
escola, foi nas madeireiras do Chioco. Eu estava aqui na zona do
arco-íris, portanto, quinhentos metros mais ou menos. E quan-
do cheguei à escola, aquilo era um histerismo de todo também,
aquilo era um pânico, com os estrondos e tudo isso. E eu ter que
reagir e eu acabei por ter que esbofetear alguns alunos porque
estavam completamente em pânico. É... Era uma forma de fazer
com que eles reagissem, porque eles gritavam desalmadamente
sem perceber. Primeiro não sabiam o que era, só que era um
bombardeamento, não sabiam mais nada. E depois a preocu-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 517


Artes, memória e espaços
pação dos familiares, da casa. Portanto, todo aquele pânico que
se empoderava das pessoas e, às vezes, eu cheguei a dar pelo
menos a dois alunos. Eu acabei por dar duas bofetadas para
eles reagirem e começarem a pensar.

Porque o perigo já tinha passado, o bombardeamento já tinha


sido feito. Portanto, foi assim essas situações mais relacionadas
com guerra. Fora no sistema de aprendizagem todo o resto, acho
que foi absolutamente normal. Sempre pensar no futuro com
um otimismo muito grande. Não, não houve aulas. Não, não
houve. Não houve aulas a partir daí. Não houve porque, por-
tanto, era uma situação generalizada a nível da cidade. Porque,
embora, o problema tenha sido localizado, há efeitos colaterais
em todo lado. Quebra de vidros dos prédios, portanto, há o alas-
tramento da destruição digamos, pela vibração e depois aquela
preocupação de não saber dos pais, dos irmãos, cada um por seu
lado. Portanto, naquele dia já não era possível trabalhar mais. É...
é um caos mais psicológico. É, portanto, nem é fácil descrever
isso. É preciso sentir. Foi aqui na zona industrial. Sim, foi depois
da estação do caminho de ferro. Logo a seguir, naquela que era
uma área industrial. Foi uma fábrica que foi bombardeada. Os ca-
ças, os emirados sul-africanos, vierem e despejavam gás. E eu vi,
eu ouvi o primeiro estrondo e depois quando olhei, vi junto ao
Cristo Rei um avião passar. Até levantou poeira. É muito rente à
serra. Portanto, já depois de ter despejado as bombas. [...] Aliás
uma vez, saí também para dar uma aula e eu não sabia que era
a final, a final do campeonato escolar em que a turma onde eu
ia dar aulas ia à final. E quando cheguei à escola não tinha aulas
para dar, mas era o último tempo nesse período. E aproveitei,
vim para casa para almoçar e para depois voltar à fábrica. E a mi-
nha mulher estava aqui a terminar o almoço e eu estava ali ouvi
assim um barulho esquisito de um avião e eu cheguei à porta da
cozinha, e eu disse: olha, é um bombardeiro e não é nosso. Eu
vi o piloto, passou mesmo por aqui, onde agora está o Xyami.
Eu disse é um bombardeiro e não é nosso. Mas ela não perce-
beu que era um bombardeiro, ela pensou que eu estava a ver
um cargueiro. E de repente as explosões todas, foi aqui atrás da
serra. Atrás da capela havia uma base da Swapo. Assim atrás da
capela da Senhora do Monte, havia uma base da Swapo e eles fo-
ram bombardear ali. Uma comadre minha que na altura morava
aqui onde agora está o Xyami, tinha o filho que é meu afilhado, e
veio a correr, a correr com a criança tapada com uma fralda: “Aí
Sérgio, protege, protege o Edson, protege o Edson”. Quer dizer,
como se a fralda é que fosse protegê-lo do bombardeamento, já
tinha passado. Era outra pessoa que ficava completamente, por-
tanto, com um ataque de histerismo tal qual como os estudantes
naquela altura. Começa assim um bombardeamento e algumas
pessoas reagiam assim, com algum histerismo. E ela achava que
estando comigo e a fralda que tapava o filho era suficiente para
o bombardeamento. (Sergio Souza, 2019)

518 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES POSSÍVEIS
Precisamos pensar a colonialidade do ser, do saber, do poder e da natureza, como
um domínio que produz subjetividades, saberes e poderes que repercutam na educação,
considerando que a educação escolar é um dos suportes basilares da colonialidade, fun-
damental para a reprodução da colonialidade do saber. Assim sendo, as instituições
de ensino precisam estar abertas para dialogar com as diferentes comunidades,
afim de perceber se a educação que estão realizando coloca à disposição ferra-
mentas que atendam às necessidades destas para que possam viver em sociedade
sem que percam a sua identidade diferenciada. Muitas vezes, a educação oferecida
não é a que estão buscando nem a que responde às suas demandas. Para dar-lhes
resposta, é fundamental que os professores aprendam a exercitar a escuta das ne-
cesidades das comunidades. Podemos tomar como exemplo a escrita nas línguas
coloniais, que representa uma das dificuldades que muitos estudantes enfrentam,
que deve ser debatida de forma aberta a fim de que se encontre soluções para
facilitar e promover a comunicação educativa. Estas soluções devem partir da uni-
versidade e do seu diálogo com as comunidades tradicionais, através de programas
de extensão universitária pensados para o efeito.
As narrativas e as visitas às escolas nos possibilitaram conhecer: as condições
das escolas quanto às suas estruturas físicas, quando existem salas e quando estas
são inexistentes; as improvizações que cada professor se obriga fazer para realizar
seu trabalho; o envolvimento de comunidades na doação de materiais e constru-
ção das escolas; o trabalho voluntário de algumas pessoas que, após sua jornada
de trabalho, assumiram a tarefa de ensinar onde não havia professores; as fabri-
cações de materiais didáticos para suprir a falta deles nas escolas. As narrativas
evidenciam, muitas vezes, as dificuldades com a língua portuguesa que os próprios
professores têm.
As dificuldades com a língua portuguesa, as faltas de materiais que as narrativas
dos professores evidenciaram e que as visitas às escolas comprovaram, são resul-
tantes de uma história com um passado colonial onde a educação era privilégio de
poucos, seguida de uma guerra civil que impossibilitou a educação para todos e de
um processo de rapinagem que roubou o sonho projetado.
Embora não evidenciado diretamente aqui, destacamos que os professores são
muito orgulhosos de seu trabalho e ressaltam a importância daquilo que realizam
para construir os jovens ao narrarem muitos casos de jovens que se construiram
profissionais e que continuaram estudando, apesar de todas as condições se mos-
trarem adversas. Ou seja, apesar de todas as adversidades as pessoas procuram a
escola e lá aprendem.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 519


Artes, memória e espaços
REFERÊNCIAS

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520 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


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adelinotorres.com/teses.htm.

AUTORIA
Elison Antonio Paim
Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC
E-mail: elison0406@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7509-5572
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8695520812750828

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 521


Artes, memória e espaços
MUSEU DO NEGRO: A (DES)INTEGRAÇÃO DA
MEMÓRIA E A REPRESENTAÇÃO DA HISTÓRIA
NEGRA NO BRASIL
Tainá de Oliveira
Gleice Cristina

INTRODUÇÃO
O Museu do Negro está situado dentro da Igreja de Nossa Senhora do Rosário
e São Benedito dos Homens Pretos, na Rua Uruguaiana, Centro do Rio de Janei-
ro. Construída no século XVIII, a igreja pode ser considerada o primeiro templo
brasileiro construído exclusivamente pela iniciativa dos “escravizados livres”, tor-
nando-se um polo de religiosidade e, também, um local de refúgio para pessoas
escravizadas que fugiam das senzalas no período escravocrata.
A construção da igreja é oriunda de várias tensões, como territoriais e ideoló-
gicas. Isso porque em 1667, ocorreu a unificação das confrarias de Nossa Senhora
do Rosário e de São Benedito dos Homens Pretos. - assim formou-se a irmandade
"de mesmo nome" – que, nesta época, "localizavam-se" nas dependências da an-
tiga Igreja de São Sebastião do Morro Castelo. Devido "a concessão" do título de
Catedral da cidade à Igreja, ocorreu um conflito entre a irmandade e o Cabido1 res-
ponsável "por ela", fato que gerou o desligamento da irmandade das dependências
daquele templo
No ano de 1708, após a doação de um terreno – na época localizado na rua da
Vala, atual rua da Uruguaiana – a irmandade começou a construção da sua igreja
e, somente em 1938, o imóvel foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional (IPHAN).
Os escravizados que chegavam na igreja traziam consigo instrumentos de tor-
turas do sistema escravocrata. Esses objetos, por sua vez, foram sendo resgatados
pela Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos
que, além de abrigar a população negra, era uma grande força abolicionista, recru-
tando ações financeiras com a finalidade de comprar cartas de alforrias.
No ano de 1967, a igreja foi atingida por um grande incêndio que devastou
sua estrutura e parte do seu acervo. Devido a esse episódio, a irmandade decide
em 1969 criar o Museu do Negro, portanto, esse patrimônio histórico possui um
acervo que contém objetos de devoção religiosa e documentos históricos do negro
no Brasil. A construção no estilo barroco tem 284 anos e sobreviveu ao processo

1 Organização com vários cônegos em uma catedral - “Sacerdote que pertence a um cole-
giado de uma igreja, trabalha com serviços administrativos, auxiliando também na administração da
diocese”. Saber mais: https://www.dicio.com.br/conego/ - Acesso 29.10.2020

522 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
colonizador imperialista da cidade do Rio de Janeiro, chegando ao ano de 2019
interditado por más condições e risco de incêndio.
Ao buscar uma visão que contribua para salvar esse patrimônio histórico e cul-
tural da população negra no país, esse artigo é concebido a partir da disciplina
de Metodologia, do curso de Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio de
Janeiro.
A intenção da pesquisa é analisar as causas do fechamento do Museu do Negro
e o seu impacto no imaginário social brasileiro, haja vista as poucas representações
das heranças afro- diaspóricas em exposições permanentes nos museus do Rio de
Janeiro.
Convém destacar que, em virtude da pandemia global provocada pelo COVID-
19, desde março de 2020, no país, e as medidas de isolamento social para a conten-
ção do vírus, nossa pesquisa ficou paralisada. Por isso, encontra-se em andamento.
Diante desse cenário, o estudo aqui presente aponta resultados iniciais que vi-
sam colocar em debate a problemática envolvida nas motivações do fechamento
do museu, sendo um espaço patrimonial de consolidação e memória da história
dos negros escravizados em terras brasileiras e de sua descendência.

APORTE TEÓRICO
Nessa direção, a abordagem crítica utilizada decorre das leituras provenientes
de consultas bibliográficas de autoras e autores cuja ótica e proposta se aproxi-
mam da realidade do Museu do Negro. Tendo como base teórica Andréa Lúcia da
Silva de Paiva (2007), Janaina Cardoso De Melo (2013), Patricia Hill Collins (1998) e
Franz Fanon (2009) .
Ressaltamos aqui o trabalho de PAIVA (2007), que se intitula “Museu dos Escra-
vos, Museu da Abolição: o Museu do Negro e a arte de colecionar para patrimo-
niar”. A relevância deste artigo caminha juntamente com a relevância da presente
pesquisa, haja vista que foi a única referência encontrada contendo o Museu do
Negro como objeto de estudo direto. A autora nos traz:

"O museu parece retratar, até o momento, memórias que te-


ria a função de articular o passado e o presente tornando-as
seletivas nas narrativas dos indivíduos. Se o colecionamento é
exposto ao “olhar interpretativo” é porque existe uma finalida-
de de mediações entre ele e o expositor, certo ajustamento em
torno do “eu” e do grupo para quem a memória é “revelada” e,
neste caso, os agentes que fazem esta mediação são membros
da irmandade que agem de forma a “manter viva”, como mui-
tos afirmam a história de seus ancestrais. A forma de colecio-
namento (seleção e classificação) pelos “irmãos” justifica assim
sua prática patrimonial que parece “sintetizar” a articulação dos
objetos no museu com o seu tema proposto: “Para preservação
da História do Negro." (PAIVA, 2006, p.15)

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 523


Artes, memória e espaços
Neste sentido, de acordo com os subsídios acima, o valor do Museu é inesti-
mável para preservar a história e cultura do negro brasileiro. Fatores de extre-
ma importância para a formação do indivíduo preto que, condicionado hegemo-
nicamente a se enxergar a partir de referências europeias e ocidentais, produz
um auto ódio e é enclausurado em estereótipos construídos pelo branco (FANON
2008;2018). Ao passo que a solução só consegue ser sanada com a criação e a ma-
nutenção de referências próprias, o que leva ao objetivo desta pesquisa.

OBJETIVOS
O objetivo principal da pesquisa é analisar o impacto do fechamento do Museu
do Negro no imaginário social e naqueles que possuíam contato com o espaço.
Tendo em vista a importância do Museu na construção memorial e identitária do
país, fato trazido na própria história do patrimônio e no corpus documental da
pesquisa. Portanto, através das análises e hipóteses extraídas, este trabalho pre-
tende apontar caminhos para novas perspectivas que possibilitem em específico a
reabertura do Museu e, em geral, a valorização das heranças afro-diaspóricas na
sociedade brasileira, trazendo também como possibilidade um maior investimento
dos órgãos públicos para esse espaço através do impacto da pesquisa.
A pesquisa dialoga com as seguintes hipóteses: (A) O fechamento do Museu
ocorre pela perpetuação do racismo estrutural, que visa o apagamento da memó-
ria da história negra no país. E isso se reflete na negligência dos órgãos públicos
para a manutenção do espaço,(B) A coexistência do museu com um espaço reli-
gioso traria tensões na sua manutenção e valorização e (C) As pessoas frequentam
outros museus do RJ, porém desconhecem a existência do Museu do Negro.

METODOLOGIA
No que tange à metodologia foram adotados dois métodos: qualitativo e quan-
titativo. Com vistas à análise compreensiva de materiais históricos e acadêmicos
acerca do Museu e da Igreja, em consonância a aplicação de surveys e entrevistas
semi-estruturadas.
Desse modo, o exame se desenvolveu da seguinte forma: a) Levantamento de
dados do museu e da Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Ho-
mens Pretos. Através de documentos legais e históricos, e produções acadêmicas
sobre o espaço. b) Aplicação de surveys no perímetro do museu - Praça Monte
Castelo; Rua dos Andradas; Rua Uruguaiana e Rua reitor Azevedo Amaral - para
pedestres do local em três turnos: manhã, tarde e noite. O critério de seleção utili-
zado recaiu sobre a abordagem heterogênea com marcadores identitários concer-
nentes à raça, classe, renda, bairro, cor, nacionalidade, gênero, idade, objetivando
uma análise interseccional (COLLINS, 1998). c) Duas entrevistas com o curador do
Museu do Negro, uma sem roteiro e com anotações de campo e outra gravada e

524 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
roteirizada. O roteiro da entrevista prioriza a jornada ocupacional do entrevistado,
pois além de mostrar seu papel dentro das respectiva instituiçõe que faz parte nos
mostrará como a relação com o Museu, e seu fechamento, afetou sua subjetivida-
de. e) Transcrição da entrevista e sistematização de dados.
Todo esse processo sistemático é crucial para responder qual impacto históri-
co-social o museu do negro vai trazer para sociedade permanecendo fechado, pois
este tipo de instituição cumpre um papel cada vez mais relevante enquanto local
de ensino e produção científica.
É imprescindível retomar que a pandemia COVID -19 trouxe impactos metodo-
lógicos para a execução da pesquisa, as etapas das coletas de dados foram inter-
rompidas por conta do isolamento social, porém tomamos a decisão de apresentar
resultados preliminares que dão luz à importância desse trabalho.

RESULTADOS E ANÁLISES PARCIAIS DAS ENTREVISTAS


As análises iniciais das entrevistas foram concedidas no Colégio Pedro II, cam-
pus Centro2, nos bastidores do "Encontro do Setembro Amarelo, Outubro Rosa e
Novembro Azul - 1° Seminário da Rede Trilogia cultural", evento ao qual Ricardo
era um dos organizadores. E também no teatro da Biblioteca Parque3, ambas no
Rio de janeiro, apontaram uma tensão que vai para além do fechamento do mu-
seu. Quando perguntamos ao Ricardo quais os principais desafios encontrados no
Museu do Negro, ele relata:

“[...] Pelo histórico da irmandade, tá. A irmandade desde 1739


e assim vai… enfim, o obstáculo! A gente teve que cativar. Ima-
gine uma Irmandade que o mais novo tem 76 anos, aí você quer
mudar. Entra um grupo! Você sabe, historiador tem fama de ma-
luco! Aí a gente teve que moldar, mostrar para eles que a gente
não ia mudar a tradição, que a gente queria trazer a tradição de
volta. Aí eu tive que contar a história da irmandade, que muitos
não conheciam. (PASSOS, 2019, p.2).”

Doutro modo, se identifica que existe um conflito interno de interesses entre os


responsáveis pelo museu e os membros da irmandade. E, além disso, um conflito
racial que Ricardo aponta ao referir-se à dificuldade em gerenciar o espaço:

“Preto não gosta de preto! Eu fui tachado pelo movimento preto


de maluco, Dom Quixote. Era um Branco querendo abrir um mu-
seu de preto. Aí eu respondi, o que vocês têm que fazer eu estou
fazendo. Aí eles não me conheciam… Quem falava isso não me

2 PASSOS, Ricardo. Entrevista concedida a Tainá de Oliveira e Gleicilayne Cristina S.


Santana, Rio de Janeiro, 31 de Outubro. 2019.
3 PASSOS, Ricardo. Entrevista concedida a Tainá de Oliveira e Gleicilayne Cristina S. Santana,
Rio de Janeiro, 16 de Agosto. 2019.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 525


Artes, memória e espaços
conhecia, não conhecia minha militância dentro do movimento
preto. Eu sou do conselho municipal em defesa dos direitos dos
negros no município do Rio de Janeiro, na qual fui vice presiden-
te por 2 anos. Hoje eu sou só conselheiro e faço parte da comis-
são da educação. E uma coisa que me deixa entristecido foi isso,
a dificuldade que tivemos para reabrir o museu, a dificuldade
das pessoas que procuramos do movimento para nos auxiliar.
(PASSOS, 2019, p.2).”

O entrevistado começa a entrevista4 com a expressão “preto não gosta de pre-


to" para justificar a dificuldade que teve para realizar as atividades enquanto o
museu estava aberto. Essa frase está presente na pesquisa da socióloga Virgínia
Leone Bicudo (1945). A socióloga argumenta na sua tese que essa fragmentação
prejudica outra pessoa de cor, criando um "antagonismo entre pessoas negras".
Esse comportamento em sua grande maioria é resultado do racismo estrutural,
que confere o racismo não apenas através de atitudes individuais, mas oriundo
principalmente do funcionamento das instituições que estabelecem privilégios e
desvantagens tendo a raça como critério (ALMEIDA, 2019). Esta condição atinge
tudo que é oriundo das populações negras, incluindo as relações sociais desses
corpos.
O exemplo mencionado é uma das principais evidências levantada até o presen-
te momento da pesquisa, que dilata a problemática do fechamento para além de
problemas estruturais no prédio, mas também entre seus agentes.

AÇÃO CIVIL PÚBLICA IMPERIAL IRMANDADE DE NOSSA


SENHORA DO ROSÁRIO E SÃO BENEDITO
DOS HOMENS PRETOS
A ação Civil nº 1.30.001.002591/2012-05 emitida no dia 07 de fevereiro de
2017, diagnostica uma mirada histórica que levou a decisão de interditar o prédio
que abrigava o Museu do Negro e a Igreja Nossa Senhora do Rosário e São Bene-
dito dos Homens Pretos. De acordo com os dados apresentados, no ano de 2010,
o prédio começou a sofrer intervenção no circuito elétrico por conta do risco de
curto-circuito.
Conforme o relatório apresentado no inquérito, as obras iniciadas no ano citado
foram inconclusas. O abandono nas obras do telhado geraram a possibilidade de
ter danos estruturais a partir de infiltrações. Já no ano de 2012 o IPHAN - Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, fez uma vistoria no local e encontrou
diversas irregularidades como: “[...] ligação elétrica improvisada, pontos de luz da-

4 Entrevista transcrita pelas autoras e está disponível na plataforma Google Drive - https://
docs.google.com/document/d/17qs1B7GBUB6Rgh0XAQ2ft6WAzD0W0n3hvN9B5K7miHM/edit?usp=s
haring

526 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
nificados por infiltrações d'água, circuitos de força improvisados e com ligações
elétricas no solo desprotegidas[...]” (p.3).
Diante desses fatos, no ano de 2013 o IPHAN solicitou a Irmandade a comprova-
ção de hipossuficiência5. Após um ano, o documento não foi apresentado ao órgão
responsável, portanto uma nova vistoria foi feita, desta vez, não sendo admitidas
reparações parciais porque havia necessidade de uma reparação completa. Apesar
do grau de necessidade das reparações, no ano de 2016 o problema ainda não
havia sido solucionado, com base em alegações do IPHAN da não apresentação do
documento de hipossuficiência como também do corte orçamentário do governo
federal.
Portanto, o patrimônio se encontrava ao menos 6 anos até a saída do inquérito
carecendo de reparações adequadas, entretanto, como constatado no inquérito e
previsto por lei, a preservação do patrimônio cultural é obrigação do proprietário
do espaço e do Poder Público, determinando inclusive a punição dos danos a esse
patrimônio.6
Sendo assim, percebe-se a negligência tanto do órgão proprietário - irmanda-
de - quanto a do Estado com este patrimônio histórico e nacional, haja vista que a
partir de falas emitidas pelo curador do Museu, Ricardo Passos, houve tentativas
de diálogo com a irmandade para reparar o espaço. Assim como salientado no in-
quérito em relação ao Poder Público, "[...] A cláusula da reserva do possível, com
efeito, não pode ser utilizada como pretexto, sobretudo quando todas as evidên-
cias demonstram que não faltou tempo para planejar e providenciar a alocação dos
recursos[...]"( p.29).
Assim, é possível apontar que a responsabilidade deve ser compartilhada entre
os responsáveis pelo patrimônio e as autoridades públicas sem descartar a partici-
pação da sociedade.

QUESTIONÁRIOS
Com a finalidade de dimensionar o conhecimento da existência do museu den-
tre a população civil, criamos e aplicamos questionários aos pedestres que passa-
vam nas ruas do perímetro do museu: Rua da Uruguaiana; Praça Monte Castelo,
Rua dos Andradas e Rua Reitor Azevedo Amaral. Até o presente momento analisa-
mos 15 surveys aplicados no turno da manhã7, utilizando o princípio da aleatorie-
dade como critério de abordagem.

5 Instituição que não dispõem de orçamento financeiro para arcar com a manutenção ou
reforma de um bem. Saber mais em: http://portaltj.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=f-
397314c-6e89-4e94-b2e9- d05e06d3b6ca&groupId=10136 - Acesso 01.10.2020.
6 Para mais informações consultar o site: http://www.mpf.mp.br/rj e no campo de busca digi-
tar Ref.: Inquérito Civil no 1.30.001.002591/2012-05 do processo civil de intervenção do no Museu do
negro.
7 Essas entrevistas ocorreram no final do ano de 2019 e estava previsto para voltar junto com
o período letivo da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Essa etapa foi impactada pela pandemia

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 527


Artes, memória e espaços
Onze dos quinze entrevistados se encontravam na faixa etária de meia idade
(36 a mais de 51 anos), apenas 4 jovens adultos (18 a 24 anos) concederam entre-
vistas. Treze pessoas se autodeclararam negras, divididos entre pretos e pardos,
apenas uma se declarou como branca e outra como amarela. A concentração de
origem dos entrevistados dividiu-se entre Zona Sul e Centro, uma minoria partia da
Zona Oeste ou Norte.
Ao observar a relação de interação destes com espaços culturais, metade pos-
suía o hábito de frequentá-los, mas nenhum deles pagava pelas visitas. Apesar dis-
so, apenas 3 entrevistados tinham conhecimento da existência do Museu e, destes,
só 2 o haviam visitado. Muito embora o Museu do Negro seja um espaço cultural
de entrada gratuita, mais da metade transitam pelo perímetro do patrimônio mais
de 3 vezes na semana, sem frequentá-lo.
Em contrapartida, 7 entrevistados conheciam a Igreja, e destes apenas 2 sa-
biam que ela abriga um Museu. Ao serem questionados como o fato de um centro
religioso e um Museu dividirem o mesmo espaço os afetaria, a grande maioria se
mostrou neutra.
Ao fazer a leitura dessa base de dados, conseguimos identificar indícios que
direcionam para uma das hipóteses já existentes, ou seja, que o Museu do Negro
não era suficientemente conhecido no imaginário social. Em outras palavras, ainda
que ambos possuam a mesma localização, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário e
São Benedito dos Homens Pretos é mais conhecida. Outro fato interessante a ser
observado é que a maioria de pessoas autodeclaradas negras, de trânsito contí-
nuo, não conheciam um patrimônio que possui acervos acerca de sua história e
ancestralidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Haja vista o passado brasileiro escravocrata, em confluência o legado para popu-
lação negra, o estabelecimento de um Museu do Negro é um grande monumento
histórico da resistência cultural negra no país. A supracitada instituição apresenta
a singularidade de estar inserido em um templo religioso e em um prédio histórico,
construído por mãos negras que visavam assentar neste lugar sagrado um local
para celebrar a sua liberdade, sendo eles agentes e protagonistas da própria cons-
trução. Cabe salientar que a construção apresenta a intersecção entre a liberdade
e territorialidade, ou mesmo, profano e o sagrado. Seu fechamento no ano de 2019
é carregado de tensões que vão além das más estruturas prediais.
Conforme as análises apresentadas nesta pesquisa, apesar de iniciais, o fecha-
mento do Museu do Negro apresenta os seguintes fatos: o racismo estrutural afeta
as relações cotidianas da cidade, a relação do museu com o território, e a cone-
xão(ou ligação) do corpo da Igreja católica para com esse espaço. Perpassando

COVID 19 e acompanha a diretrizes da universidade para dar prosseguimento.

528 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
igualmente pela compreensão dos fatos históricos pelas gerações posteriores em
relação ao período pós - abolição.
Além disso, o levantamento acomodou evidências de uma objetividade do po-
der público para o silenciamento e o apagamento da história do negro africano(a)
/ afro-diaspórico. Em epítome, procuramos neste trabalho apresentar resultados
parciais como alicerce de ferramentas que possibilitem a abertura do Museu e dia-
logar com os aspectos históricos, culturais e sociais pois esse terreno é fértil, pos-
sibilitando uma ampliação dos estudos. Mediante as etapas apresentadas ao longo
da pesquisa, intuímos que a fase final da pesquisa, em suas conclusões, evidenciará
as consequências da permanência e do fechamento de um espaço/memorial, re-
presentativo do passado escravocrata que ainda estrutura as relações sociais no
Brasil.

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530 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
MARCOS SÓCIO-HISTÓRICOS NA TRAJETÓRIA
DA ASSOCIAÇÃO SATÉLITE PRONTIDÃO
Camila Rosângela da Silva
Karla S. G. Alves
Edison Luiz Saturnino

[...] a memória se enraíza no concreto,


no espaço, no gesto, na imagem, no objeto.
A história só se liga a continuidades temporais,
às evoluções, e às relações das coisas.
A memória é o absoluto e a história o relativo
(Nora, 1993, p. 9).

INTRODUÇÃO
Esta pesquisa tem como escopo analisar as mudanças ocorridas no decorrer da
trajetória histórica de 118 anos da Associação Satélite Prontidão (ASP), a partir da
constituição de um Memorial institucional. A agremiação é um clube social negro,
em funcionamento desde 1902, que promove ações relacionadas à cultura, ao la-
zer, à assistência social, à saúde e à educação para negros e negras da cidade de
Porto Alegre. Clubes sociais negros são lugares de cidadania, territorialidade e em-
poderamento, onde diferentes grupos se reúnem para atividades de socialização
familiar, solidariedade, organização política, valorização da cultura ancestral, edu-
cação antirracista, elevação da auto-estima, potencialização de pertencimentos e
afirmação de identidades negras. Nesse sentido, a investigação tem como objetivo
definir os marcos sócio- históricos que caracterizam a Associação Satélite Pronti-
dão, buscando preservar sua história e memória centenárias. Os aportes teóricos
estão fundamentados em autores que têm se ocupado em pesquisar o movimento
negro brasileiro, e, em especial, aqueles que se dedicam a pensar acerca das traje-
tórias de clubes sociais negros. Além disso, o estudo conta com contribuições teó-
rico-metodológicas de pesquisadores que tratam sobre as temáticas da cultura, da
memória e do patrimônio. A constituição do Memorial da ASP foi suscitada a partir
do anseio de um coletivo que busca conhecer diferentes marcos de um passado
que insiste em não passar, tornando este passado presente, garantindo visibilida-
de às experiências que envolvem trajetórias de instituições e sujeitos negros na
história do nosso país.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 531


Artes, memória e espaços
APORTE TEÓRICO

CLUBE SOCIAL NEGRO ASSOCIAÇÃO SATÉLITE PRONTIDÃO:


LUGAR DE MEMÓRIA, CULTURA E CIDADANIA
A Associação Satélite Prontidão - ASP é um clube social negro centenário, locali-
zado na cidade de Porto Alegre, cuja criação e trajetória advém de herança cultural
praticada pelos homens negros e mulheres negras desde o período colonial, em
diversas regiões do território nacional e na capital gaúcha, desde o final do século
XVIII. Clubes Sociais Negros,

[...] são espaços associativos do grupo étnico afrobrasileiro,


originário da necessidade de convívio social do grupo, volun-
tariamente constituído e com caráter beneficente, recreativo e
cultural, desenvolvendo atividades num espaço físico próprio.
(SILVEIRA, 2008 apud ESCOBAR, 2010, p. 61).

No Brasil, ainda durante o período escravocrata, negros e negras iniciaram um


processo de organização em irmandades, coordenadas pela Igreja Católica, cuja
prática cotidiana tinha por objetivo a ajuda mútua. Essa prática contrapunha-se
ao que pregava o sistema escravocrata, o qual costumava coisificar aqueles que
eram por eles explorados (MULLER, 2013; QUINTÃO, 2002). As irmandades de Nos-
sa Senhora do Rosário dos Homens Pretos foram as primeiras associações que se
caracterizaram por serem vetores de criação de sociabilidades e de construção de
identidades (BEZERRA, 2015).
Por volta de 1785 e 1786, em Porto Alegre, surgem os primeiros indícios de de-
voção a Nossa Senhora, e, em 1786, surge a Irmandade Nossa Senhora do Rosário,
configurando-se em uma das mais antigas associações que permitia a participação
de negros e negras forros e escravos na cidade (NASCIMENTO, 2009).

Em 1786, cerca de 220 pessoas, a maioria composta de negros,


assinou a ata de fundação daquela que seria uma das mais im-
portantes corporações de homens leigos de Porto Alegre. Ao
ingressar na Irmandade do Rosário, estas pessoas, independen-
temente e serem escravos ou livres, iniciaram um processo de
diferenciação em relação aos seus companheiros que optaram
em não aderir, ou não tiveram condições para se filiarem à Con-
fraria. (MULLER, 2009, p. 264).

A Lei Áurea, nº 3.353, de 13 de maio de 1888, demarca o resultado da ação do


movimento abolicionista o qual reuniu escravizados, forros, intelectuais e demais
membros da sociedade civil que buscavam a emancipação da comunidade negra.
A partir do Século XIX a constituição de associações, agremiações e/ ou grupos car-
navalescos, não mais vinculados à igreja católica, demonstram mais uma estratégia

532 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
adotada por esses agentes históricos buscando mecanismos de socialização, visibi-
lidade, fortalecimento da identidade e busca de cidadania. Com isso, refletir sobre
as dificuldades da comunidade negra em seu cotidiano, permite compreender a
abolição e o pós-abolição como campos de estudos que enfocam debates acerca
de diferentes condições sociais da comunidade negra, não apenas, associados a
uma herança da escravidão, pois esse período encerraria somente com o fim da
ordem de tratamentos desiguais.
Em 20 de abril de 1902, surge no bairro Cidade Baixa, na cidade de Porto Alegre
a Associação Satélite Porto-Alegrense. Fundada por famílias negras que objetiva-
vam proporcionar aos seus sócios, além de entretenimento, práticas de socorro
mútuo como alfabetização da comunidade na qual estava inserido o clube. No iní-
cio do século XX,

[...] passados 14 anos apenas da abolição da escravatura algu-


mas famílias da comunidade negra, num processo de ascensão,
unidas no propósito de construir uma sociedade que pudesse
abrigar as suas culturas, suas ideias e saberes, um espaço de
difusão de lazer e de entretenimento, fundaram a Sociedade Sa-
télite Porto-Alegrense [...]. (FEIJÓ, 2013, p. 12).

A instituição já passou por algumas remodelações estruturais, políticas e so-


ciais. Em 30 de setembro de 1956, ocorreu a fusão com o Grupo Carnavalesco
Prontidão, fundado em 1º de março de 1925, que se localizava no bairro Cidade
Baixa, o qual também realizava atividades assistenciais junto aos seus associados,
a exemplo de auxílio funeral e consultas médicas e odontológicas gratuitas. Neste
mesmo ano, então como Associação Satélite Prontidão - ASP adquiriu um imóvel
na Rua Coronel Aparício Borges, situado no bairro Glória, onde constituiu sua sede
que esteve naquele local por mais de cinco décadas. Nos dias atuais, a Associação
Satélite Prontidão está localizada na zona norte da cidade de Porto Alegre, na Rua
Alberto Rangel, 528, no Bairro Rubem Berta. Porém, a ASP enquanto clube social
negro, durante toda a sua existência sempre esteve sediada nos espaços geográfi-
cos de Porto Alegre nos quais a presença da comunidade negra é marcante.
Muito embora a Associação Satélite Prontidão tenha herdado de suas entidades
geradoras a tradição da realização de atividades de cunho recreativo e de sociabi-
lidade para a comunidade negra de Porto Alegre, a fusão em 1956 não diminuiu
o interesse e a dedicação pelas questões relativas à educação, à cultura e à assis-
tência social. De forma complementar e articulada, incorporaram-se a estas outras
atividades, inclusive de caráter filantrópico, mantendo- se a mesma filosofia de
trabalho adotada pelas antigas sociedades.
Devido a décadas de feitos nas áreas assistenciais, de apoio à cultura e fomento
à cidadania voltado para a comunidade negra porto-alegrense, em 11 de maio de
1994, a ASP é reconhecida pelo município como entidade de Utilidade Pública pela
Lei Municipal nº 7.425.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 533


Artes, memória e espaços
LEI Nº 7425, DE 10 DE MAIO DE 1994. DECLARA DE UTILIDADE
PÚBLICA A ASSOCIAÇÃO SATÉLITE-PRONTIDÃO. O PREFEITO
MUNICIPAL DE PORTO ALEGRE. Faço saber que a Câmara Mu-
nicipal aprovou e eu sanciono a seguinte Lei: Fica declarada de
Utilidade Pública, nos termos da Lei nº 2926, de 12 de julho de
1966, a Associação Satélite-Prontidão, sociedade civil com sede
e foro nesta Capital. Esta Lei entra em vigor na data de sua pu-
blicação. Revogam-se as disposições em contrário. Prefeitura
Municipal de Porto Alegre, 10 de maio de 1994. TARSO GENRO
- Prefeito. SÔNIA PILLA VARES - Secretária Municipal de Educa-
ção. Registre-se e publique-se. CEZAR ALVAREZ - Secretário do
Governo Municipal

IMAGEM 1:LOCALIZAÇÃO DOS BAIRROS EM QUE A ASP


JÁ TEVE SEDE INSTITUCIONAL

Fonte:CORRÊA E HECK, 20191 (Adaptado)1

No ano de 1997, a ASP recebe o título de utilidade pública no âmbito Estadual,


pelo Decreto Lei nº 1.130, de 24 de julho de 1949, regulamentado e alterado por
outros decretos. A assinatura da certidão é do Secretário de Estado do Trabalho,
Cidadania e Assistência Social, Deputado Iradir Pietroski.
Em 24 de junho de 2009, o Diário Oficial do Estado publicou a Lei nº 13.183, de
23 de junho de 2009, no qual a Governadora do Estado do Rio Grande do Sul, Yeda
Crusius, declarou a ASP integrante do Patrimônio Histórico e Cultural do Estado do
Rio Grande do Sul, conforme se lê a seguir:

LEI Nº 13.183, DE 23 DE JUNHO DE 2009. (Publicado no DOE


nº 117, de 24 de junho de 2009) Declara a Associação Satélite
Prontidão integrante do patrimônio histórico e cultural do Esta-
do do Rio Grande do Sul. A GOVERNADORA DO ESTADO DO RIO
GRANDE DO SUL. Faço saber, em cumprimento ao disposto no
artigo 82, inciso IV, da Constituição do Estado, que a Assembléia
Legislativa aprovou e eu sanciono e promulgo a Lei seguinte: Art.
1º - Declara a Associação Satélite Prontidão como patrimônio
histórico e cultural do Estado do Rio Grande do Sul, nos termos
e para os fins dos arts. 221, 222 e 223 da Constituição do Estado.
Parágrafo único - O objeto desta Lei é a entidade enquanto patri-
mônio imaterial e espaço de resistência cultural, de resgate de
sua contribuição étnica, de congregação e entretenimento das
famílias da comunidade negra. Art. 2º - Esta Lei entra em vigor
na data de sua publicação PALÁCIO PIRATINI, em Porto Alegre,
23 de junho de 2009. FIM DO DOCUMENTO2.

Com 117 anos de existência, a ASP, adota como data de fundação o dia 20 de
abril de 1902 e se configura como uma instituição historicamente apta e ampla-
mente credenciada para o desenvolvimento de atividades de cunho social, cultural
e assistencial. Para o desempenho dessas atividades, conta em seu quadro diretivo
com voluntários habilitados em áreas diversas, dentre as quais se destacam edu-
cadores físicos, pedagogos, assistentes sociais, sanitaristas, bibliotecários, historia-
dores, advogados, contadores e outros.
Atualmente, a ASP se caracteriza como um território negro da cidade de Porto
Alegre, pois estes são espaços onde

[...] os afrodescendentes constroem suas singularidades ao mes-


mo tempo em que reforçam o poder da inventividade das suas
culturas, promovem a organização social e a impulsão da força
política [...] (BITTENCOURT, 2010, p. 140).

Este território negro é um lugar de sociabilidade, busca de visibilidade e eleva-


ção de auto-estima, construção da identidade negra, combate ao racismo, preser-
vação de memória, promoção da cultura e de práticas cidadãs para o povo preto
da cidade. Além disso, a ASP também busca implementar ações favoráveis ao meio
ambiente e ao desenvolvimento sustentável, adotando para isto um modelo de
gestão participativa, decisão colegiada e trabalho em equipe.
É essa história secular da Associação Satélite Prontidão que suscitou o desejo
de constituir um memorial que possibilite conhecer e preservar as histórias e as
memórias dessa Instituição, bem como as experiências dos diferentes sujeitos que

2 Disponível em: http://www.raulcarrion.com.br/gabinete/projetos/LEI_13183.pdf . Acesso


em: 20/09/2019.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 535


Artes, memória e espaços
integraram e ainda integram a trajetória da Associação. Retomando a bela epígrafe
com a qual iniciamos o presente texto, cabe afirmar que autores como Pierre Nora
(1993), Edgar de Decca (1992) e Ulpiano Bezerra de Meneses (1992) traçam um
conjunto de diferenças que constituem as relações estabelecidas entre história e
memória. Elas operam a partir de diferentes lógicas, embora se mostrem imbrica-
das e estabeleçam justas relações a partir do passado como elemento comum. A
memória pertence ao âmbito da vida, sempre em constante atualização, produzida
por lembranças e esquecimentos, suscetível a manipulações, atravessada por in-
venções criativas. Para Stephanou e Bastos,

A memória é uma espécie de caleidoscópio composto por vi-


vências, espaços e lugares, tempos, pessoas, sentimentos, per-
cepções, sensações, objetos, sons e silêncios, aromas e sabores,
texturas, formas. Movemos tudo isso incessantemente e a cada
movimento do caleidoscópio a imagem é diversa, não se repete,
há infinitas combinações, assim como, a cada presente, ressig-
nificamos nossa vida. Esse ressignificar consiste em nossos atos
de lembrar e esquecer, pois é isso a memória, os atos de lembrar
e esquecer a partir das evocações do presente (2005, p. 420).

Por outro lado, a história é uma reconstrução daquilo que já não é mais, abri-
gando diferentes interpretações e reconstruções acerca do passado. A história, en-
tão, pode ser entendida como campo de produção de conhecimentos que se utiliza
de teorias explicativas, documentos, indícios e vestígios que auxiliam a explicar as
ações humanas em movimentos estabelecidos no tempo e no espaço. Segundo
de Decca, no coração da história trabalha um criticismo destruidor da memória
espontânea, a memória é sempre suspeita à história. O referido autor afirma que
a memória coletiva encontra-se refugiada em lugares pouco visíveis, onde alguns
grupos a mantêm resguardada do “assalto” da história. Enquanto a memória esfor-
ça-se para assegurar o sentimento de identidade de grupo ou de grupos, a história
desfaz identidades e põe em crise o próprio enunciado do sujeito histórico (DE
DECCA, 1992). Por seu lado, Foucault nos alerta que é preciso desligar a história da
imagem de “uma memória milenar e coletiva que se servia de documentos mate-
riais para reencontrar o frescor de suas lembranças”. Para ele, a história é

O trabalho e a utilização de uma materialidade documental (li-


vros, textos, narrações, registros, atas, edifícios, instituições,
regulamentos, técnicas, objetos, costumes, etc) que apresenta
sempre e em toda a parte, em qualquer sociedade, formas de
permanências, quer espontâneas, quer organizadas. O docu-
mento não é o feliz instrumento de uma história que seria em
si mesma, e de pleno direito, memória; a história é, para uma
sociedade, uma certa maneira de dar status e elaboração à mas-
sa documental de que ela não se separa (FOUCAULT, 2002, p. 8)

536 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
A intenção do memorial, então, é operar sobre uma ampla noção de documen-
to, considerando a importância da documentação escrita, oral, material, imagéti-
ca e arquitetônica para explicar a trajetória da Associação Satélite Prontidão, em
diferentes espaços e tempos. Busca-se construir um memorial que acolha a vida,
o vigor e a potência de um lugar de memória, mas que também comporte um
conjunto de indícios que possibilite a produção de diferentes leituras do passado,
dando a conhecer os processos de transformação que se sucederam no tempo e no
espaço. Um lugar que assuma a importância de servir como ponte entre o passado
e o presente da Associação Satélite Prontidão, um lugar de pesquisa, de fruição,
de afirmação identitária, de acolhimento de muitas vozes. Enfim, um lugar que
se reconheça, e seja reconhecido, a partir de suas dimensões históricas, políticas,
educativas e culturais.

PROBLEMA DE PESQUISA (E/OU HIPÓTESE E/OU OBJETIVOS)


A investigação procurou responder a seguinte questão de pesquisa: quais os
principais marcos sócio-históricos que constituem a trajetória centenária do clube
social negro Associação Satélite Prontidão que podem contribuir para a organiza-
ção do memorial institucional? A investigação teve como objetivo geral analisar
os principais marcos sócio-históricos que constituíram o transcurso centenário da
Associação Satélite Prontidão como instituição negra da cidade de Porto Alegre.
Como objetivos específicos, definiu-se: a) Indentificar materiais e narrativas que
contribuam para a reconstituição e descrição da história da ASP; b) Classificar e
categorizar os materiais que constituem o acervo do clube social negro investiga-
do; c) Mapear, por meio de uma linha do tempo, os principais marcos do percurso
histórico institucional.

METODOLOGIA
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, com fins exploratórios, que utilizou a aná-
lise de conteúdo como método. Segundo Bardin (1977), a análise de conteúdo é,

Um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando


obter, por procedimentos, sistemáticos e objetivos de descrição
do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não)
que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condi-
ções de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensa-
gens (BARDIN, 1977, p.42).

Conforme Bardin (1977), a pesquisa deve ser desenvolvida em três etapas: a)


pré-análise; b) exploração do material; c) Tratamento dos resultados, inferência
e interpretação. Na fase da pré-análise realizou-se a coleta do material, além da
separação, higienização e aplicação de técnicas de conservação de documentos.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 537


Artes, memória e espaços
Na etapa denominada exploração do material, procedeu-se a leitura e categoriza-
ção dos documentos tratados como dados da pesquisa. Na etapa final identifica-
da como tratamento dos resultados, inferência e interpretação, empreendeu-se a
análise dos dados e materiais coletados, com a elaboração de uma linha do tempo
interpretativa da história do clube. A coleta e produção de dados foram baseadas
em pesquisa documental e entrevistas semi-estruturadas. A pesquisa documen-
tal foi realizada no acervo da Associação Satélite Prontidão a partir de diferentes
objetos da cultura material, como cadernos de registros, atas, relatórios, fotogra-
fias, correspondências, gravações audiovisuais, discursos, álbuns, notícias da im-
prensa, informativos e outros. As entrevistas foram realizadas em uma “Roda de
Memórias” com frequentadores e sócios da ASP, visando a partilha e os relatos de
vivências na instituição. Tal atividade foi realizada objetivando, além da coleta de
dados para a pesquisa, a sensibilização acerca da importância da constituição do
Memorial.

RESULTADOS E ANÁLISE
Como resultado da investigação, podemos destacar a identificação de ex-sócios
e frequentadores do clube que poderão contribuir para a reconstrução da história
do clube por meio das narrativas de história oral. Verificou-se que ainda existem
no quadro social alguns griots que poderão produzir excelentes narrativas para
a constituição do acervo do Memorial. Quanto à categorização dos materiais do
acervo, os objetos encontrados foram classificados como bibliográficos, museo-
lógicos e arquivísticos. Identificou-se que há pouco material bi e tridimensional
e muitos documentos contabilísticos, fiscais e fotográficos. Além disso, o acervo
conta apenas com objetos a partir dos anos 50, pois a enchente dos anos 40 com-
prometeu o material institucional das décadas anteriores. A análise do acervo con-
tribuiu para a compreensão dos dois principais marcos da trajetória histórica da
Associação Satélite Prontidão, quais sejam: a) MUDANÇAS: mudanças temporais e
territoriais como a fundação, fusão e trocas de sedes; b) ASSOCIATIVISMO: atua-
ção social relacionada a auxílio mútuo, práticas recreativas, atividades esportivas,
vivências culturais e ações educativas. A fim de mapear os principais marcos do
percurso histórico da ASP, elaborou-se a seguinte linha do tempo (Imagem 2).

IMAGEM 2: LINHA DO TEMPO –


MARCOS HISTÓRICOS DA ASSOCIAÇÃO SATÉLITE PRONTIDÃO

538 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
Fonte: Os autores, 2020.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A organização do Memorial da ASP não tem sido um processo simples e muito
menos fácil. Tal processo, complexo e multifacetado, vem propiciando conhecer a
trajetória centenária de um clube social negro importantíssimo para a articulação
da resistência e manutenção da ancestralidade do povo negro na cidade de Porto
Alegre. Os clubes sociais negros tiveram um papel essencial no pós-abolição e pre-
cisam ter suas histórias contadas e sua função social ressignificada no momento
atual.
A partir da investigação realizada, é possível perceber que a Associação Satélite
Prontidão – ASP possui dois grandes marcos sócio-históricos, sendo estes as mu-
danças e o associativismo. A trajetória da ASP não é linear e constitui-se por meio
de uma rede de articulações entre os contextos históricos e os espaços ocupados
pela instituição (mudanças) e a função social do clube (associativismo negro).
Produzir narrativas e estabelecer os marcos sócio-históricos tende a viabilizar a
organização física e virtual do Memorial da ASP enquanto um lugar de memória e
múltiplas histórias, contribuindo com a construção identitária do negro a partir de
sua potência, ou seja, sua capacidade de organização por meio das famílias em um
espaço associativo.

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XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 539


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540 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
CLUBES SOCIAIS NEGROS: MAPEAMENTO,
MEMÓRIA, PATRIMONIALIZAÇÃO E EDUCAÇÃO
DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Eráclito Pereira
Giane Vargas Escobar

INTRODUÇÃO
O conceito de clube social negro foi construído em 29 de fevereiro de 2008,
durante um encontro em Brasília, com a presença do escritor e poeta da Consciên-
cia Negra, Oliveira Silveira, o Ministro-Chefe da Secretaria Especial de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (SEPPIR-PR), o sociólogo
Edson Santos e os integrantes da Comissão Nacional de Clubes Sociais Negros do
Brasil1 dos Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro
e Minas Gerais.

Clubes Sociais Negros são espaços associativos do grupo ét-


nico afro- brasileiro, originário da necessidade de convívio
social do grupo, voluntariamente constituído e com caráter
beneficente, recreativo e cultural, desenvolvendo atividades
num espaço físico próprio. (OLIVEIRA SILVEIRA apud ESCO-
BAR, 2010, p. 61).

Este conceito foi legitimado pela SEPPIR-PR, com vistas a dar conta das deman-
das de um segmento que se autodefiniu naquele momento histórico e exigiu do
Estado uma ação política de proteção e salvaguarda do seu patrimônio em vias de
desaparecer.
Os clubes sociais negros prestaram inúmeros serviços à comunidade negra e
à sociedade brasileira, pois faziam o que o Estado deixava de fazer. Eles surgiram
como um contraponto à ordem social vigente (em especial, a partir do século XIX), o
que possibilitou uma intensa ascensão econômica, política e social, sentimento de
pertença a um grupo, afirmando uma identidade negra positiva com a sua visão de
mundo, gerando com isso mobilidade social, autoestima elevada dos seus asso-
ciados, que seguiam padrões rígidos de comportamento, de moralidade e de bem
viver, forjando, de certa forma, uma classe média negra emergente.

1 Representada por Oliveira Silveira (Conselheiro CNPIR e Interlocutor/RS); Giane Vargas


Escobar (Diretora Técnica do Museu Treze de Maio/RS); Luis Alberto da Silva (Presidente da Sociedade
Cultural Beneficente Floresta Aurora/RS); Kelly Cardozo (Historiadora e Gestora do Instituto Mundo
Velho/MG); Kelly Cristina da Silva (Presidenta do Clube 28 de Setembro/SP); Renata Melo Barbosa do
Nascimento (Assessora Técnica e Cultural da SEPPIR) e Alexsandro Reis (Diretor de Ações Afirmativas).

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 541


Artes, memória e espaços
Esses territórios negros, além de se constituírem como um local de sociabilida-
de, visibilidade e apoderamento da população negra, tinham como objetivo angariar
fundos para apoiar as famílias negras em situação de vulnerabilidade, construir hos-
pitais, escolas e custear o pagamento da liberdade dos negros escravizados, auxi-
liando ainda nas despesas com funeral, na educação de jovens e de adultos, bem
como aulas de etiquetas para moças, bem como aulas noturnas em suas sedes,
atuando de forma incisiva na luta contra a escravidão, o racismo e a discriminação
racial.
Dessa forma, pode-se dizer que as edificações dos Clubes Sociais Negros cons-
truídas pelos trabalhadores negros ao longo dos séculos XIX e XX, com fins de lazer
e defesa de direitos de suas famílias, constituem verdadeiros “monumentos”, pois
foram construídos para um determinado fim, estrategicamente pensados e solidi-
ficados para demarcar um espaço, um determinado tempo e afirmar uma identida-
de (ESCOBAR, 2010, p. 82).
A discussão sobre clubes sociais negros veio à tona na I Conferência Estadual de
Promoção da Igualdade Racial, realizada em Porto Alegre - RS, em 2005. A partir
daquele evento, ganhou dimensão nacional. O ano de 2006 foi um marco para o
movimento de clubes sociais negros do Brasil, pois uma nova geração protagonizou
um movimento em prol do reconhecimento e manutenção do patrimônio material
e imaterial clubista, com vistas a preservar as inúmeras histórias, memórias e as
edificações construídas pela própria comunidade negra, espalhadas pelo país e, em
sua maioria, em estado lamentável de degradação e em vias de desaparecimento.
O ano de 2014 também se revestiu de um significado importante, pois após oito
anos de lutas, pesquisas, encontros estaduais e nacionais, reivindicações do movi-
mento clubista, o Estado brasileiro assumiu para si a responsabilidade de mapear
os clubes sociais negros em âmbito nacional2. Este mapeamento governamental fi-
nalizado no ano de 2015, foi solicitado pela coordenadora deste projeto ao IPHAN,
obtendo acesso ao mesmo no ano de 2019.
Entre os mapeamentos realizados pelo Estado, pela academia e intelectuais ne-
gros/as orgânicos/as, muitos espaços de sociabilidade negra seguem desaparecen-
do, sendo leiloados, enfrentando a negligência do Estado e inúmeras dificuldades
para se manterem, como o próprio Clube 24 de Agosto, que conseguiu reverter um
leilão e no ano de 2012 foi reconhecido e tombado como Patrimônio Histórico do
Estado do Rio Grande do Sul.
Sendo assim este Projeto de Pesquisa pretende preservar a memória destas
organizações negras centenárias, que precisam urgentemente serem registradas,
ensinadas aos alunos da Educação Básica e divulgadas para apropriação dos rema-
nescentes e daqueles que vierem depois.

2 Clubes Sociais Negros serão mapeados em todo o país. Disponível em: http://arquivo.
geledes.org.br/areas-de- atuacao/questao-racial/afrobrasileiros-e-suas-lutas/23903-clubes-sociais-
-negros-serao-mapeados-em-todo-o-pais. Acesso em: 19fev2016.

542 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
APORTE TEÓRICO
O projeto de pesquisa articula questões aliadas ao campo dos estudos cultu-
rais e do pós-abolição, coadunando as informações à luz das fontes produzidas pe-
los grupos sociais e pelo Estado, operacionalizando categorias teóricas como raça
(CARNEIRO, 2011), racismo estrutural e institucional (GONZALEZ, 2018; ALMEIDA,
2019), racialização (SILVA, 2017), branquitude (CARDOSO, 2014), patrimônio (ES-
COBAR, 2010) e memória (NASCIMENTO, 2018).

OBJETIVOS

GERAL
Organizar e sistematizar as informações e pesquisas sobre os Clubes Sociais
Negros do Brasil e do exterior, com vistas a criação de uma plataforma digital na
internet.

ESPECÍFICOS

1. Criar uma estrutura básica para a difusão e acesso ao acervo do centenário Clu-
be 24 de Agosto de Jaguarão, por meio de materiais didáticos, catálogo, exposições
e site, seguindo as diretrizes da LDB e da Lei 10639/03.
2. Desenvolver textos informativos para publicação no Site do Clube 24 de Agosto,
onde se pretende inserir o Banco de Dados do Acervo Fotográfico das Rainhas Ne-
gras do Clube 24 de Agosto e o mapeamento dos Clubes Sociais Negros do Brasil.
3. Tornar conhecido o mapeamento dos Clubes Sociais Negros do Brasil realizado
entre 2001 a 2010, por pesquisadores/as acadêmicas/os negros e negras em mo-
vimento e, em 2015, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN).

METODOLOGIA
A pesquisa de caráter qualitativo (GUERRA, 2010) articula questões aliadas ao
campo dos estudos culturais e do pós-abolição. Pretende-se ainda, refletir, descre-
ver e perceber os olhares das instituições no que se refere ao reconhecimento do
Patrimônio Cultural Negro.

Será que este olhar institucional tem servido para reproduzir as


lógicas do sistema opressor e racista, que não reconhece na to-
talidade as lutas seculares dos movimentos negros, atribuindo

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 543


Artes, memória e espaços
para os mesmos a responsabilidade na resolução do que de-
veria ser uma política pública nos processos de patrimonializa-
ção dos bens materiais e imateriais construídos pela comunidade
negra? Este Projeto conta com a parceria do Instituto Federal
Sul-rio-grandense - Campus Avançado Jaguarão, do Curso de
Museologia da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – (FABICO/UFRGS) e
do Coletivo Atinúké - Grupo de Estudos sobre o Pensamento de
Mulheres Negras.

A metodologia desenvolvida nesta pesquisa tem desde a sua origem, a pauta


das ações afirmativas. Conforme Stuart Hall (1996) "estamos sempre referencian-
do, escrevemos e falamos de um lugar e um tempo particulares", por isso ao sele-
cionar os/as pesquisadoras/es deste Projeto, um dos critérios importantes é ser
pessoa negra, pois durante muito tempo as pesquisas sobre espaços de associati-
vismo negro foram desenvolvidas por pesquisadoras/es brancas/os.
A partir de um olhar afrocentrado e afroreferenciado, essa pesquisa, em um
primeiro momento priorizará um levantamento bibliográfico e documental sobre
a temática dos Clube Sociais Negros disponíveis em banco de dados e plataformas
digitais em buscas de artigos, monografias, dissertações e teses disponíveis na in-
ternet. No ano de 2019, estudantes da disciplina Clubes Sociais Negros do Brasil
e Imprensa Negra no Pós-Abolição, ministrada pela Profa. Giane Vargas criaram
um banco de dados sobre os Clubes Sociais Negros que precisa ser organizado e
sistematizado.
No ano de 2020, o Projeto de Pesquisa Clubes Sociais Negros do Brasil: ma-
peamento, memória, patrimonialização e Educação das Relações Étnico-Raciais,
foi registrado na Unipampa Campus Jaguarão, na Plataforma SIPEE sob o nº
20200604232216, coordenado pelos docentes Giane Vargas (UNIPAMPA - Campus
Jaguarão) e Eráclito Pereira (FABICO/UFRGS), a proposta de caráter interinstitucio-
nal e binacional transcorrerá no período de 01/07/2020 a 31/12/2023 e conta com
o apoio do NEABI Mocinha e do Clube 24 de Agosto, integrando pesquisadores/as
de quatro instituições de ensino: Unipampa, UFRGS, IFSul e a UdelaR, no Uruguai.
Parcerias importantes foram estabelecidas e fazem parte do Projeto: a Profa.
Sherol Dos Santos (Coletivo Atinúké/UFRGS/Docente da Rede Estadual de Ensino
do RS), o Prof. Ruhan Conceição (Curso de Informática IFSul), a Profa. Fernanda
Olivar (Colectivo de Estúdios Afrolatinoamericanos/UdelaR/UY) e a Museóloga da
UFRB, a Joana Flores (doutoranda em Crítica Cultural pela UNEB).
Inicialmente contamos com as alunas voluntárias Ariane de Sá de Andrade Cruz e
Andressa Luiza Ferreira Costa Alves, do Curso de História-Licenciatura, a aluna Ca-
roline Maria dos Santos Souza, do Curso de Produção e Política Cultural e os alunos
voluntários da rede de educação básica, Cristian Borges, da EE Hermes Pintos Af-
fonso, Thomas Machado Raymundo e Guilherme das Neves Rodrigues, do Curso de
Informática/IFSul e Rodrigo de Souza Francisco, estudante de graduação do Curso
de Produção e Política Cultural/Unipampa - Campus Jaguarão.

544 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
RESULTADOS E ANÁLISE
Em agosto de 2020 o CNPq divulgou o resultado final referente aos editais de
bolsas e o projeto foi contemplado com três Bolsistas de Iniciação Científica, sendo
dois estudantes de Ensino Médio, através do Edital nº 134/2020 - Ensino Médio
- CNPQ/UNIPAMPA e um estudante de graduação, através do Edital nº 133/2020
- PIBIC-AF – CNPQ/UNIPAMPA. Após seleção dos bolsistas, iniciaram as reuniões
semanais de planejamento (Figura 1), através da Plataforma google meet (serão
mantidas nesta modalidade enquanto durar o período de isolamento por conta da
pandemia COVID19).

FIGURA 1: REUNIÃO DE PLANEJAMENTO

Fonte: Ruhan Conceição, Julho/2020

Para uma maior compreensão dos temas abordados, procedendo-se às reuniões


de estudos e discussões de artigos, dissertações, teses e livros de intelectuais ne-
gros e negras que abordam as questões étnico-raciais, político, sociais que dizem
respeito a comunidade negra do Brasil e Uruguai (Figura 2).

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 545


Artes, memória e espaços
FIGURA 2: REUNIÃO DE ESTUDOS

Fonte: Eráclito Pereira, Agosto/2020

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Podemos afirmar que os primeiros resultados desta pesquisa são a apropriação
dos conceitos e técnicas que estão sendo colocados em prática no desenvolvimen-
to das categorias, textos e construção do layout que irão compor a plataforma
digital na internet.
Espera-se com a finalização desta pesquisa lançar uma plataforma digital na in-
ternet e que a mesma possa visibilizar os diversos espaços de sociabilidade negra
que foram desenvolvidos, em sua ampla maioria, no pós-abolição e que permane-
cem ainda hoje pouco difundidos nos currículos escolares e na academia.
Ao longo de quatro anos pretende-se, também, produzir materiais didáticos
visando a educação básica, com a produção de exposição, site e um catálogo evi-
denciando as Rainhas Negras dos Clubes Sociais Negros do Brasil e Uruguai.

REFERÊNCIAS

AL-ALLAM, Caiuá Cardoso, ESCOBAR, Giane Vargas; MUNARETTO, Sara Teixeira. Clube 24
de Agosto (1918-2018): 100 anos de resistência de um clube social negro na fronteira Brasil-
-Uruguai. Porto Alegre: Editora ILU, 2018.

BRASIL. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Dossiê Final das Atividades
da Comissão e do Grupo de Trabalho de Patrimônio Imaterial. Departamento de Patrimônio
Imaterial/Iphan, 2003.

546 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
BRASIL. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Mapeamento dos Clubes
Sociais Negros no Brasil: Análise e Sistematização de Informações, 2015.

ESCOBAR, Giane Vargas. Clubes Sociais Negros: lugares de memória, resistência negra, pa-
trimônio e potencial. 221 pp. Dissertação. Mestrado em Patrimônio Cultural, Universidade
Federal de Santa Maria, 2010.

ESCOBAR, Giane Vargas. Projeto de Pesquisa Clubes Sociais Negros do Brasil: mapeamen-
to, memória, patrimonialização e Educação das Relações Étnico-Raciais. Plataforma SIPEE,
nº 20200604232216. Universidade Federal do Pampa Campus Jaguarão. 2020.

RATTS, Alex. Eu sou Atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo:
Imprensa Oficial/Instituto Kuanza, 2007.

SILVA, Fernanda Oliveira da. As lutas políticas nos clubes negros: culturas negras, raciali-
zação e cidadania na fronteira Brasil-Uruguai no pós-abolição (1870-1960). 279 pp. Tese.
Doutorado em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017.

AUTORIA
Eráclito Pereira
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS
E-mail: eraclito@ufrgs.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2348-8104
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6885347338042001

Giane Vargas Escobar


Universidade Federal do Pampa - Unipampa
E-mail: gianeescobar@unipampa.edu.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1138-0753
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9076251806577555

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 547


Artes, memória e espaços
MULHERES NEGRAS, MEMÓRIA E RESISTÊNCIA:
UM OLHAR DE DENTRO DO NEABI MOCINHA
Amanda Caroline Alves Pereira
Giane Vargas Escobar

A nossa escrevivência não pode ser lida como histórias


para “ninar os da casa grande” e sim para
incomodá-los em seus sonos injustos
Conceição Evaristo

INTRODUÇÃO
O presente artigo parte de inquietações, dificuldades e afetos que me encon-
traram quando eu, estudante do Curso de Produção e Política Cultural adentrei
na Universidade Federal do Pampa (Unipampa) Campus Jaguarão, no segundo se-
mestre de 2019. Escrevo a partir de minhas vivências, conectada ao pensamento
de outras mulheres negras, inspirada no conceito de escrevivência de Conceição
Evaristo (2008), que alude sobre a escrita que emerge de experiências de pessoas
negras no Brasil. Portanto, é deste lugar que escrevo, do corpo de uma mulher ne-
gra, entendida aqui como uma mulher africana da diáspora brasileira (GAIA; SCOR-
SOLINI-COMIN, 2020), que foge dos padrões heteronormativos.
É de dentro do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas Maria Cezarina
Cardozo (NEABI MOCINHA) da Unipampa Campus Jaguarão que parte meu olhar
para esta pesquisa, me impulsionando a trazer as questões que acometem ou aco-
meteram não só a mim, mas a outras mulheres negras que estão ou estiveram
nesta Universidade. Para a compreensão do que é o NEABI MOCINHA, o estudo
trará um breve histórico de sua construção, bem como apresentará Maria Cezarina
Cardozo, a mulher negra escolhida para nomear o Núcleo.
Considero este Núcleo tão importante para minha trajetória acadêmica como
para minha vida pessoal, pois, além de ter tido significante papel no processo de
(re)conhecimento do meu corpo preto, foi neste espaço que pude ressignificar o
amor, me permitindo olhar para meu interior e me amar desde dentro, amar mi-
nhas experiências, meu corpo negro e outras mulheres negras. bell hooks, em seu
artigo Vivendo de Amor, explana:

Quando nós, mulheres negras, experimentamos a força trans-


formadora do amor em nossas vidas, assumimos atitudes capa-
zes de alterar completamente as estruturas sociais existentes.
Assim poderemos acumular forças para enfrentar o genocídio
que mata diariamente tantos homens, mulheres e crianças ne-
gras. Quando conhecemos o amor, quando amamos, é possível

548 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
enxergar o passado com outros olhos; é possível transformar o
presente e sonhar o futuro. Esse é o poder do amor. (1993, p. 9)

Ao passar por um processo de escrita com outras mulheres negras, escutando-


-as e lendo seus depoimentos, acredito estar reverberando atitudes que alteram as
estruturas sociais às quais estamos inseridas. E através de um pesquisa de caráter
qualitativo (GUERRA, 2010) procederemos uma análise de conteúdo e de discur-
so, com a finalidade de responder a questão suleadora deste trabalho, que é: em
que medida o NEABI MOCINHA contribui ou contribuiu para a permanência das
estudantes negras que acorrem ou já acorreram à Unipampa? Para a pesquisa em-
pírica utilizaremos as técnicas de entrevistas não diretivas baseadas em narrativas
biográficas (KILOMBA, 2019), o que permite aprender sobre as experiências negras
dentro de uma sociedade racista.

O NÚCLEO DE ESTUDOS AFRO-BRASILEIROS E INDÍGENAS


MARIA CEZARINA CARDOZO (NEABI MOCINHA) - UNIPAMPA
CAMPUS JAGUARÃO
No dia 12 de janeiro de 1937, nasceu, na cidade de Jaguarão, Maria Cezarina
Cardozo carinhosamente apelidada de Mocinha, primeira filha de Genesia Nobre
Machado, e irmã de outros dezesseis, explica Rodrigo Lakman (2017). A vida de
Mocinha foi dedicada, quase em sua totalidade, ao carnaval, paixão que ela dividia
com os afazeres cotidianos. O carnaval de Jaguarão deve muito à persistência des-
sa mulher. Ela foi pioneira no carnaval de Jaguarão e, mais precisamente, dentro
da escola de samba Estrela D’alva, por ter idéias muito além do seu tempo, como
por exemplo, o entendimento da posição da mulher como ponto de concentração
de comando e a preocupação de que a mulher fosse respeitada dentro da escola.
Importante destacar que a pesquisa (LAKMAN, 2017) é um importante registro
de uma história até então não contada, entretanto, não mencionou que Mocinha
era uma mulher negra, e por consequência não revelou informações mais preci-
sas sobre sua negritude, seu pertencimento racial, nem discussões aprofundadas
sobre este conceito que consideramos de fundamental importância para o enten-
dimento da mulher que se forjou numa sociedade racista e impregnada de pre-
conceitos, em especial com “mulheres que fazem vento” (NUNES, 2014) e que não
pedem licença para transitar e agir, como Mocinha. No entanto, as imagens que o
mesmo trabalho apresenta, evidenciam a pele negra de Maria Cezarina Cardozo e
suas ações junto à comunidade preta e periférica de Jaguarão.
Nesse sentido, percebemos a importância do lugar de fala (RIBEIRO, 2017) do(a)
pesquisador(a) que escreve, neste caso um pesquisador branco que aborda a traje-
tória de uma mulher negra, sem afirmar este lugar de pertencimento de sua inter-
locutora. Acreditamos que, como pesquisadoras negras, este lugar não é neutro,

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 549


Artes, memória e espaços
afinal todos os discursos são “localizados” (HALL, 1996), pois não só falamos, como
pensamos, escrevemos, agimos e sentimos de um determinado lugar.
Sendo então Mocinha, uma mulher negra que muito fez pela história do car-
naval da cidade de Jaguarão, que quebrou paradigmas, mostrou resistência e a
construção de uma cidadania através da cultura, a figura escolhida para nomear o
Núcleo de Estudos Afro Brasileiros e Indígenas da Universidade Federal do Pampa
Campus Jaguarão, o NEABI MOCINHA. Um espaço de pontes de afeto, de aquilom-
bamento, de estudos e construção acadêmica. Aberto para todas, todes e todos,
sejam discentes da Unipampa ou não, doscentes ou não, o NEABI MOCINHA busca
contribuir com a luta antirracista através do ensino, da pesquisa e extensão.
Os primeiros passos para a organização do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e
Indígenas da Unipampa Campus Jaguarão (NEABI JAG) tiveram início em 2016, com
os Professores Éverton Fêrrer (Pedagogia) e as Professoras Sátira Machado (PPC) e
Simone Alves (Pedagogia). A primeira coordenação foi nomeada através da Porta-
ria 553, de 02 de maio de 2017, a qual designou a Profa Giane Vargas Escobar (His-
tória), como Coordenadora e o Professor Walker Pinceratti (Letras EAD), como Co-
ordenador Substituto. Importante salientar que estes docentes da Unipampa, cada
um a seu tempo, tiveram suas práticas pedagógicas em algum momento pautadas
pelo Movimento Negro Educador. Nesse sentido, o NEABI MOCINHA foi forjado
também por estes saberes construídos nas lutas por emancipação (GOMES, 2018).
A partir de maio de 2017 deu-se início à construção do Regimento Interno do
Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas da UNIPAMPA, sendo que em julho
de 2017 foi sugerido pela integrante do NEABI JAG, Shirlei Pereira Rosa, o nome de
Mocinha, a exemplo do NEABI do campus Bagé, que escolheu o escritor e poeta da
consciência negra para ser homenageado, sendo "NEABI Oliveira Silveira". Desta
forma, o então NEABI JAG passou a se chamar NEABI MOCINHA, nome legitima-
do por unanimidade pelo público que participou da 1ª Roda de Lembranças das
Rainhas Negras do Clube 24 de Agosto, evento alusivo às comemorações do 25 de
julho de 2017, Dia Internacional da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha.
Seguindo as diretrizes da Lei 10639/2003, entre os anos de 2017 a 2020 o NEABI
MOCINHA realizou mais de 70 reuniões e mais de 30 atividades como organizador
e apoiador, destacando-se entre elas: encontro com Angela Davis no Uruguay, em
2019, no evento “Sin racismo mejor democracia”, 8ª Festa de São Jorge 2019, even-
to do OBSERVAASUL “Juventude e educação: perspectivas dos dias atuais”, com a
Profa Nilma Lino Gomes, lançamento do livro dos 100 anos do Clube 24 de Agosto
na 65ª Feira do Livro em Porto Alegre 2019, XI Semana da Consciência Negra de
Jaguarão.
O NEABI Mocinha integra o Consórcio Nacional de NEABS da Associação Brasi-
leira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), assim como integra o Fórum de NEA-
BIS da Unipampa.
Em parceria com a ABPN, foi o organizador do IV COPENE SUL, o Congresso de
Pesquisadores/as Negros/as da Região Sul, que aconteceu em Jaguarão de 16 a

550 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
19 de julho de 2019, atingindo um público de mais de 600 pessoas. As atividades
realizadas dentro da programação ocorreram majoritariamente na Universidade
Federal do Pampa – Campus Jaguarão, entretanto outros espaços foram utilizados
para a execução de atividades, como o Teatro Esperança e o Clube 24 de Agosto. O
encontro evidenciou a produção intelectual, artística e cultural regional, nacional
e internacional sobre patrimônio e cultura afro-brasileira. Este evento impulsionou
sobremaneira a economia da cidade de 30mil habitantes.
Devido a pandemia Covid-19 que ainda perdura em solo brasileiro, não foi pos-
sível dar continuidade ao cronograma presencial estabelecido para o ano de 2020,
e desde março deste ano todas as reuniões passaram a se realizar de modo virtual,
utilizando-se para isso reuniões na plataforma google meet.
Nesse sentido, o NEABI MOCINHA deu continuidade a projetos utilizando-se,
especialmente, de suas redes sociais (facebook, instagram), bem como o site da
Unipampa para compartilhar sugestões semanais de cinema negro, com destaque
a personalidades negras, indígenas e quilombolas do Rio Grande do Sul, apresen-
tação de Clubes Sociais Negros do Brasil e Uruguai, dados sobre a saúde da popu-
lação negra e indígena no Brasil e ainda dicas de produções musicais para se ouvir
na quarentena.
Ainda este ano, no mês de setembro, o NEABI MOCINHA foi um dos Núcleos res-
ponsáveis pela acolhida virtual aos estudantes ingressantes da Unipampa Campus
Jaguarão, com a presença do primeiro Reitor negro desta Universidade, o Profes-
sor Roberlaine Ribeiro Jorge.

MULHERES NEGRAS QUE RESISTEM


Para a construção desta pesquisa, além de um levantamento bibliográfico, foi
elaborado um questionário semi-estruturado contendo 12 questões, e foram con-
tatadas 11 mulheres, integrantes e ex integrantes do NEABI MOCINHA, para res-
pondê-lo. Das 11 mulheres contatadas, 6 responderam ao questionário. Vale sa-
lientar que todas as participantes se auto declararam enquanto mulheres negras.
Além disso, é importante destacar que a pesquisa foi realizada durante o período
de quarentena da pandemia de Covid-19.
Optamos por preservar a identidade das participantes com a finalidade de pro-
porcionar a elas um ambiente seguro, que as deixassem sem receios para respon-
der. No entanto, duas participantes escolheram assumir a sua identidade, como
observa-se na fala de uma delas: “Bom por mim pode usar meu nome sim. Vanessa
está ótimo, chega de ser invisível na sociedade.” Permeada de simbolismos, essa
fala pode ser interpretada como um desabafo e um manifesto político. Segundo
Patrícia Hill Collins:

Para mulheres afro-americanas, o ouvinte mais capacitado a


romper a invisibilidade criada pela objetificação da mulher Ne-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 551


Artes, memória e espaços
gra é outra mulher Negra. Esse processo de confiança mútua
pode parecer perigoso porque só mulheres Negras sabem o que
é ser mulher Negra. Mas se não ouvirmos umas às outras, então
quem irá ouvir? (COLLINS, 2019, p. 11).

Porém, nós, enquanto mulheres negras nascidas em solo brasileiro, pergunta-


mos não somente quem irá ouvir mas também, quem irá documentar? Então, na
tentativa de romper com a invisibilidade dos discursos, bem como a realidade de
mulheres negras acadêmicas, que fazem ou fizeram parte do NEABI MOCINHA,
este artigo se propõe a trazer para a centralidade o pensamento e as experiências
das mesmas em suas respectivas trajetórias acadêmicas, que podemos observar
através de suas narrativas.
A primeira entrevistada argumentou que “Com a pandemia, senti dificuldades
pois tinha que pagar aluguel, fazer compras e tudo mais. Teve um abandono da
faculdade em relação aos calouros, se não fosse a ajuda do meu pai, não estaria
na faculdade.” Evidenciamos nessa fala certa negligência com relação aos ingres-
santes. Porém, para a entrevistada Maria, cujo ingresso se deu anteriormente ao
surto do novo Coronavírus, “a maior dificuldade foi a financeira, e através de bolsas
de pesquisas eu consegui permanecer, pois não tenho a bolsa permanência”. Esse
relato se complementa com o relato da entrevistada Vanessa, quando a mesma
expõe que “Os estudantes bolsistas não tinham dinheiro todos os finais de semana
para comer”.
Podemos observar que a questão financeira interfere na manutenção no que
tange a permanência no ambiente universitário, e que a mesma não é um fator
isolado por consequência da pandemia de Covid-19. Assim, identificamos conse-
quências gravíssimas, como constatado nas próprias respostas, afetando direta-
mente um direito básico, a alimentação dessas mulheres. Mesmo que, com uma
periodicidade anual, a Universidade disponibilizasse para a comunidade acadêmica
um edital específico para assistir aos alunos em situação de vulnerabilidade socio-
econômica, com programa de subsídio à alimentação, os discursos acima revela-
ram que se faz necessário um olhar que capte as diversas especificidades do corpo
discente, pretendendo sanar essas falhas. Conforme a entrevistada Cristal, sobre
as dificuldades de permanência, pode-se constatar algo que ultrapassa a questão
financeira

[...] tive dificuldade com os colegas que moraram comigo, fiquei


problemas psicológicos e fobia social, pela colega me ferir ver-
balmente e todos os dias, achei que não ia conseguir permane-
ce na universidade. Meus familiares me ajudaram pra sair dessa
situação, e hoje estou melhor e fazendo tratamento psicológi-
co por conta dessa colega que me prejudicou muito. (CRISTAL,
2020. Entrevista concedida à Amanda C Alves Pereira).

552 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
Com o relato acima, podemos considerar que a saúde psicológica também é um
fator que influencia na permanência de mulheres negras na universidade, e que
pede uma urgente investigação para identificar se o teor que afeta o psicológico
dessas mulheres é proveniente do racismo cotidiano (KILOMBA, 2019). O mesmo
aparece em outros momentos e discursos das entrevistas, sendo também identi-
ficado na forma de epistemicídio, e que coloca em cheque a permanência dessas
mulheres na universidade. Como expõe a entrevistada Deolinda Cecília:

Sim, os racismos com a escrita e fala. Muitos professores não


gostam que os alunos pisem no chão. Sou filhas das águas em
minhas mãos e pes expressão a corporiedade , o suor do nervo-
so e ansiedade caem todas as vezes que tenho que está a frente,
é preciso recriar técnica dos ancestrais para manter aqui. Par-
ticipei de grupos de estudos e pesquisas voltados para negros.
No começo não tive ,mais quando a professora Giane entrou na
Unipampa foi professora, psicóloga, amiga e mãe. (DEOLINDA,
2020. Entrevista concedida à Amanda C Alves Pereira).

Considerando a fala da entrevistada acima e as considerações de Sueli Carneiro


(2005, p.97) em que “o epistemicídio é, para além da anulação e desqualificação
do conhecimento dos povos subjugados, um processo persistente de produção da
indigência cultural(...)”, observo que há uma certa inaptidão de alguns profissio-
nais da educação superior, no que se refere a temas que abordem as questões ét-
nico-raciais, como também aparece com muita nitidez, no depoimento de Vanessa
Olanda, a seguir

Sim, senti muita dificuldade primeiro não temos suporte de


estudo como algo além daquele ensinamento Europeu, segun-
do que são poucos os professores que você sente reciprocida-
de; na verdade eu sentia isso só de uma Professora a qual eu
me parecia e que entendia que eu não estava me vitimizando
quando falava que eu não entendia a leitura, eu precisava ler a
maioria dos meus textos em voz alta para tentar entender, meu
conhecimento era muito oral eu consigo adquirir conhecimento
conversando e vendo. ler mais de 100 páginas ao dia não foi
algo fácil [...]. (OLANDA, 2020. Entrevista concedida à Amanda
C Alves Pereira).

As informações que a entrevistada traz, sobre a instituição fornecer um estudo


eurocentrado e um sistema de ensino que desvalida o sistema oral como ferramen-
ta de aprendizagem, certifica a urgente necessidade de uma atualização das grades
curriculares assim como das dinâmicas das aulas, a fim de contemplar as plurais
demandas do corpo discente.
Ao analisar as respostas do questionário, podemos identificar, entre outras
questões, o racismo institucional, o epistemicídio, e a fome como fatores que im-
pedem uma permanência saudável de mulheres negras na universidade. Contri-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 553


Artes, memória e espaços
buindo para a resposta da questão suleadora deste trabalho, que buscou investigar
em que medida o NEABI MOCINHA contribui ou contribuiu para a permanência das
estudantes negras que acorrem ou já acorreram à Unipampa, palavras como afeto
e acolhimento se destacaram nas narrativas. Como coloca a entrevistada Ariane, “É
um local que é além de um simples núcleo, é acolhimento, aquilombamento. Resis-
tência saber que a universidade é para você e que existe outras pessoas que estão
ali para lutar junto com você no reconhecimento desse espaço.”
Ainda sobre a importância do Núcleo para a permanência dessas mulheres na
universidade, segundo o depoimento de Maria, “o Neabi me da forças para lu-
tar sempre que eu penso em desistir(...)”. E “ajuda nesse momento de pandemia
com as suas reuniões quinzenais conversando com outros colegas, sabendo como
está cada um”, como destaca a entrevistada Ariane. Já para Deolinda Cecília, as
contribuições do Núcleo perpassam a ajuda para fortalecimento individual. Para
ela, o NEABI Mocinha “ajudou a compreender e entender as estruturas presente
na universidade. A escrever projetos que atendam as demandas do povo negro na
universidade.” para além de auxiliar no rendimento acadêmico, como explana Joa-
na “(...)Nos dois anos finais da minha graduação, o NEABI foi um dos projetos que
me possibilitou a ter um pensamento mais crítico e sensível em relação as pautas
antirracistas”.
Sendo assim, podemos considerar que a atuação do NEABI MOCINHA na Uni-
pampa campus Jaguarão contribui significativamente para a permanência das
mulheres negras aqui mencionadas, entre outros fatores, com suas reuniões
quinzenais em período pandêmico, e com incentivo a leituras afro referenciadas
auxiliando em produções acadêmicas que potencialize a escrita de nossas próprias
narrativas, para além de proporcionar afeto e cuidado, como refere a entrevistada
Joana “(...) o NEABI é um espaço onde mulheres negras podem se sentir acolhidas
e representadas.”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa ao fazer uma reflexão sobre a influência de Maria Cezarina Cardoso,
enquanto mulher negra e por suas contribuições no carnaval da cidade, identifica
que a questão de sua negritude ainda não é encontrada em obras acadêmicas,
dando a relevância necessária, levando em conta o tempo e o espaço em que suas
atuações se dão, deixando possibilidades para possíveis pesquisas futuras.
Mesmo que elucidadas as problemáticas que impedem uma saudável estadia
na Unipampa Campus Jaguarão, no que se refere a saúde alimentar e psicológica,
entre outras, é preciso evidenciar a relevância da existência do NEABI Mocinha,
pois ele auxilia sobremaneira na permanência de mulheres negras na UNIPAMPA
Campus Jaguarão, a medida que oferece um espaço de escuta, acolhimento, aqui-
lombamento, ensino e pesquisa dos estudos que permeiam a vida de pessoas ne-
gras, empoderando essas mulheres. Mocinha, portanto, muito além de um nome,

554 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
ela é a personificação da resistência, sendo inspiração para outras mulheres negras
que precisam resistir para existir numa sociedade racista e machista.
Não pretende-se com esses dados encerrar as discussões aqui iniciadas, mas
sim, propor que outras mulheres negras se apropriem de suas narrativas a fim de
realizar conteúdos acadêmicos acerca do recorte de raça e gênero nas instituições
públicas, bem como nos Núcleos que acolhem as demandas da população negra
brasileira, sendo essa população acadêmica ou não.

REFERÊNCIAS

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negras: escritos sobre os sentidos de democracia e justiça social no Brasil. Belo Horizonte:
Nandyala, 2014.

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte (MG): Letramento, 2017.

ENTREVISTAS

ANDRADE, Ariane. Ariane Andrade: depoimento. [set. 2020]. Entrevistadora: Amanda C


Alves Pereira. Entrevista concedida para publicação em artigo.

CECÍLIA, Deolinda. Deolinda Cecília: depoimento. [set. 2020]. Entrevistadora: Amanda C


Alves Pereira. Entrevista concedida para publicação em artigo.

CRISTAL. Cristal: depoimento. [set. 2020]. Entrevistadora: Amanda C Alves Pereira. Entre-
vista concedida para publicação em artigo.

JOANA. Joana: depoimento. [set. 2020]. Entrevistadora: Amanda C Alves Pereira. Entre-
vista concedida para publicação em artigo

MARIA. Maria: depoimento. [set. 2020]. Entrevistadora: Amanda C Alves Pereira. Entre-
vista concedida para publicação em artigo.

OLANDA, Vanessa. Vanessa Olanda: depoimento. [set. 2020]. Entrevistadora: Amanda C


Alves Pereira. Entrevista concedida para publicação em artigo.

AUTORIA
Amanda Caroline Alves Pereira
Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA)
E-mail: amandacpereira01@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8616-0715
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2695191876796244

Giane Vargas Escobar


Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA)
E-mail: gianeescobar@unipampa.edu.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1138-0753
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9076251806577555

556 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
CLUBES SOCIAIS NEGROS DO BRASIL:
PATRIMONIALIZAÇÃO E O MAPEAMENTO DO
IPHAN SOB O OLHAR DA JUVENTUDE NEGRA
ACADÊMICA
Ariane De Sá
Richelle Costa
Giane Vargas Escobar

INTRODUÇÃO
O objetivo deste trabalho é compreender o relatório de Mapeamento dos Clu-
bes Sociais Negros no Brasil: Análise e Sistematização de Informações, realizado
pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), que ocorreu
após a Comissão Nacional dos Clubes Negros, em 2009, o qual solicitava o registro
e a inclusão dos Clubes sociais Negros no Livro de Registro dos Lugares de memoria.
A hipótese suleadora é que a conclusão e a resposta negativa sobre o reconheci-
mento dos clubes como patrimônio imaterial vem de uma ótica embranquecida
e não reconhece as diferentes formas de organização das sociedades negras. O
propósito desta pesquisa é apresentar as inquietações e reflexões sobre a visão
de mundo embranquecida com que o Instituto explorou os clubes e, sobretudo
perceber a continuidade do apagamento da cultura negra através do Estado. Os
metodologia desta pesquisa é de caráter qualitativo, onde considera-se a subje-
tividade do objeto estudado e a percepção do pesquisador, bem como os fatores
que culminam na conclusão deste relatório. Utilizamos o método descritivo, pois
este artigo possui o objetivo de expor os fatores que compõem o resultado do ma-
peamento elaborado pelo IPHAN. Conforme Minayo (1993), a pesquisa é uma ação
que busca trazer respostas aos questionamentos, que faz uma combinação entre
teoria e dados, é um cenário que não tem fim. A intenção é ir além de dados nu-
méricos e porcentagens, mas sim, de analisar profundamente todos os fatores que
envolvem os atores que coexistem nesta realidade com a aplicação de ferramentas
e processos científicos (GIL apud SILVA e MENEZES, 2001).

O PEDIDO DE REGISTRO DOS CLUBES SOCIAIS NEGROS COMO


PATRIMÔNIO CULTURAL DO BRASIL
Conforme Giane vargas Escobar e Ana Luiza Coiro Moraes já pontuaram na obra
sobre Os Clubes Sociais Negros no Estado do Rio Grande do Sul (2016),

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 557


Artes, memória e espaços
[...] Em 2005, por ocasião da I Conferência Nacional de Promo-
ção da Igualdade Racial, foi deliberada a necessidade de ações
para promover e salvaguardar os espaços dos Clubes e Entidades
Sociais Negras, tendo em vista a maior parte desses organismos
revelar sintomas de fragilidade, desestruturação, problemas de
gestão e perigo de desaparecimento, a exemplo de tantos que
sucumbiram. (ESCOBAR; MORAES, 2016, p. 39).

As autoras explicam que foi no contexto daquele cenário pulsante das lutas dos
movimentos negros, que em 2006, numa iniciativa do Museu Comunitário Treze
de Maio de Santa Maria e de alguns clubes sociais negros do Estado do Rio Gran-
de do Sul, com o apoio do Governo Federal, através da Secretaria de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial – SEPPIR e Prefeitura Municipal de Santa Maria, que
ocorreu o I Encontro Nacional de Clubes e Sociedades Negras.
Conforme as pesquisadoras, importantes pautas foram construídas, no sentido
de reivindicar a patrimonialização dos Clubes Sociais Negros no Brasil e deliberar
ações de salvaguarda sob a responsabiliade do Estado e também do próprio Movi-
mento Clubista:

Neste Encontro foram construídas e deliberadas as principais de-


mandas para a preservação e salvaguarda dos espaços dos Clu-
bes Sociais Negros descritas na “Carta de Santa Maria” (2006);
além da constituição de uma Comissão Nacional dos Clubes
Sociais Negros, que no decorrer desses anos, realizou diversas
ações para o encaminhamento das necessidades levantadas e
descritas nesta Carta. O Movimento Clubista Negro do Estado do
RS realizou no período de 2006 a 2009 seis encontros estaduais,
com recursos dos próprios gestores clubistas, que culminaram
com intensas discussões do grupo que se reuniu para tratar de
interesses coletivos. (ESCOBAR; MORAES, 2016, p. 39).

As autoras destacam, ainda que a realização de Encontros fortaleceram as po-


líticas públicas de salvaguarda e reconhecimento de alguns espaços clubistas por
parte do Estado, ao relatarem que o 7º Encontro de Clubes Sociais Negros do Rio
Grande do Sul, realizado na cidade histórica de Jaguarão/RS, fronteira com o Uru-
guai, nos dias 18 e 19 de junho de 2011, num período crítico pelo iminente leilão
do único clube negro da cidade, fundado em 1918, às vésperas de completar 93
anos, foi que representantes de entidades do Movimento Negro do Rio Grande do
Sul participaram deste encontro e apontaram as principais diretrizes e estratégias
de atuação do movimento clubista sul-rio-grandense para os próximos anos.
Foi neste encontro que o Movimento Clubistas aprovou o Plano Estadual dos
clubes sociais negros RS. E foi graças a essa mobilização dos gestores dos Clubes
Negros do RS e diversos parceiros que posteriormente o IPHAE, o Instituto do Patri-
mônio Histórico e Artístico do Estado do RS reconheceu aquele espaço negro, sen-
do que o Governo do Estado do RS oficializou o tombamento da sede do Clube 24

558 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
de Agosto, através da Portaria Nº 004/2012, de 25 de janeiro de 2012. (ESCOBAR;
MORAES, 2016, p. 39-40).
Segundo as pesquisadoras naquele ano de 2012 o Estado do RS fez um recorte
racial na distribuição dos recursos públicos de um importante edital de fomento, o
que elas atribuem às lutas e reivindicações do Movimento Clubista

Outro resultado positivo deste 7º Encontro foi o atendimento


de uma das demandas dos gestores clubistas pelo Estado do Rio
Grande do Sul, que abriu Edital para seleção de entidades com
vistas ao desenvolvimento do Projeto “Rede RS de Ponto de Cul-
tura”, através de Edital SEDAC Nº 11, de 22 de junho de 2012,
onde fez uma distribuição por grupos socioculturais, destinando
25% deste edital para Comunidades do carnaval, do hip hop, da
capoeira, comunidade afrodescendente, comunidades de ter-
reiro, clubes sociais negros, organizações estudantis, sindicatos,
comunidades urbanas, assentamentos urbanos, associações co-
munitárias, cultura urbana em geral. Todas estas ações visavam
de alguma maneira o reconhecimento destes espaços como le-
gítimos representantes de parte da história dos afro-brasileiros
e que não podem correr o risco de desaparecerem como muitos
que já se foram. A memória é um direito, é escolha, é eleição, é
poder e é essencialmente seletiva, podendo ser utilizada como
instrumento de mudança social e desenvolvimento, a favor do
direito ao patrimônio individual ou coletivo ou àquilo que a so-
ciedade elege para ser lembrado ou esquecido. (ESCOBAR; MO-
RAES, 2016, p. 40).

O pedido de Registro dos Clubes Sociais Negros como Patrimônio Imaterial Bra-
sileiro e sua inclusão no “Livro de Registro dos Lugares de memória” foi encami-
nhado ao IPHAN, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em 13 de
maio de 2009, em Brasília, pela Comissão Nacional de Clubes Sociais Negros. Nessa
mesma oportunidade, a Comissão Nacional solicitou ao IPHAN autorização para
utilizar a Metodologia do INRC, o Inventário Nacional de Referências Culturais com
vistas a ir em busca de recursos para proceder o inventário nacional. Embora todos
os esforços por parte dos membros dessa comissão, tanto de Santa Maria como do
Paraná, mesmo com o projeto já incluído em plataformas governamentais e com
o recurso na iminência de ser destinado, em 2008 e 2010 não foi possível efetivar
o projeto e, finalmente no ano de 2014, graças aos esforços, luta e reivindicações
da sociedade civil, por parte do Movimento Clubista, o Governo Brasileiro resolveu
assumir esta demanda e efetivar a proposta do movimento clubista, já prevista na
Carta de Santa Maria, desde o ano de 2006.
Na atualidade os Clubes Sociais Negros, muitos centenários, reivindicam o di-
reito à memória e ao reconhecimento de um importante segmento da população
afro-brasileira na história deste país, ou seja, os espaços de sociabilidade e soli-
dariedade construídos pelos negros, em especial no período pós-abolição. Toda
memória pressupõe registro, materializado até mesmo no próprio corpo. É neces-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 559


Artes, memória e espaços
sário guardá-la em diferentes tipos de suporte (livros, áudio, vídeo, fotografias,
catálogos, cds, dvds, documentários, internet, etc) deixando, assim, registradas as
experiências, os saberes, as sensações, as emoções, os sentimentos que são impor-
tantes para uma determinada comunidade, num determinado tempo.
Uma das ações do Movimento Clubista no ano de 2020 são os encontros online
através de lives que visam auxiliar os gestores clubistas no processo de elaboração
de projetos e acesso à Lei Aldir Blanc, criada com o intuito de promover ações para
garantir uma renda emergencial para trabalhadores da Cultura e manutenção dos
espaços culturais brasileiros durante o período de pandemia do Covid-19.

O PARECER FINAL DA REUNIÃO DA CÂMARA TÉCNICA E O


MAPEAMENTO DO IPHAN: FRAGILIDADES E POSSIBILIDADES
Ao fazer uma análise sobre o relatório de pesquisa Mapeamento dos Clubes
Sociais Negros no Brasil: Análise e Sistematização de Informações, realizado pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em parceria com a
Secretaria de Promoção da igualdade Racial (Seppir) e a Fundação Palmares (FCP),
que após a 15° reunião da Câmara do Patrimônio Imaterial ter deliberado sobre a
necessidade de mapear os Clubes Sociais Negros, para que assim, possam julgar
sobre o pedido de incluí-los no Livro de Registro dos Lugares de Memória, enca-
minhado pela Comissão Nacional de Clubes Sociais Negros. O argumento apresen-
tado, era que “não haviam documentações o suficientes para serem levadas em
consideração e pesadas na determinação”, então, “decidiu-se o aprofundamento
do universo cultural dos clubes negros e iniciaram um mapeamento pelo Brasil”.
Como demonstra o trecho abaixo:

[...] Assim, constatou-se que, para poder avaliar preliminar-


mente a pertinência do pedido de registro desse bem cultural,
era preciso realizar antes um mapeamento. Pelo exposto, é im-
prescindível a coleta de informações mais sistemática sobre a
situação dos Clubes no país para que esses três órgãos possam
avaliar. ( pág. 6)

Segundo o artigo 216 da constituição federal, no qual o movimento clubista


teve como base para elaboração do pedido de registro dos clubes sociais negros.
“Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imate-
rial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identi-
dade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira,
nos quais se incluem: I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e
viver; III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos,
documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-
-culturais; V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artísti-
co, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.”

560 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
No capítulo 2. O Mapeamento e o instrumento de pesquisa: Alcance e Limita-
ção, o IPHAN relatou que na elaboração da pesquisa “não houve possibilidade de
deslocamentos e realização de entrevistas pessoalmente em alguns estados[...]”.
Não se propôs em elaborar um sistema de parcerias para a construção do mapea-
mento, tendo em vista a iniciativa do próprio movimento clubista, que em 2016,
junto a outros colaboradores visitaram clubes em diversas regiões do Brasil.
No decorrer do relatório o IPHAN apresenta argumentos insuficientes, de-
monstrando a falta de preocupação em aprofundar o mapeamento, na tentativa
de questionar que não houve desejo dos gestores em colaborar para a pesquisa.
Segundo o IPHAN “A maioria dos questionários foi preenchida por meio de con-
versas telefônicas ou via e-mail, aspecto que incidiu diretamente na qualidade dos
dados obtidos e na consolidação dos resultados”. Não se sabe se houve a cautela
em saber se o formulário era acessível à todos os presidentes, pois foi enviado um
e-mail com questionário, mas é importante ressaltar que nem todos têm acesso e
afinidade com as tecnologias. Alegou que “[...] havia uma desconfiança [...] inclu-
sive por conta do histórico problemático da relação entre as instituições governa-
mentais e essas entidades em âmbito municipal, estadual e federal.[...]’’ Nota-se
também uma desconfiança em repassar informações que iriam para um sistema
governamental, que em nenhum momento buscou fazer uma reparação histórica
dando um suporte financeiro ou manutenção. Além do medo, pois essa classe mais
favorecida possui a manipulação do poder para instituir leis, dispondo controle
social e cultural.
Ao entrevistar a Presidenta do Clube Recreativo do Harmonia de Caçapava do
Sul, Catia Cilene Morais Dutra, que realiza diversas atividades importantes para a
comunidade, nos leva a perceber o quão preciso é reconhecer que esses espaços
são como uma memória de luta e resistência contra a segregação racial. Recupe-
rando a identidade que historicamente lhes foi tirada, prejudicando um auto reco-
nhecimento da nova geração. Assim, Dutra relatou:

[...] O Clube realizou a primeira conferência e a única de juven-


tude no município. O Clube realizou também o primeiro encon-
tro de educadoras negras, reuniu todas as professoras negras
do município e mapeou as primeiras professoras negras [...] O
Clube foi protagonista de muitas coisas, muitos foram realizadas
ali dentro. Eu reafirmo diariamente que o clube como espaço
político, espaço onde a população negra fórmula demandas e
essas demandas vão adiante. (DUTRA, 2020. Entrevista concedi-
da a Ariane Andrade).

A Presidenta também reafirma a importância do tombamento desses espaços,


como um lugar de saberes, cultura, memória, e um patrimônio fundamental para
a construção de uma história “[...] mantendo o clube preservado a gente preserva
toda essa construção de identidade, do conhecimento da cultura, da história. Por

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 561


Artes, memória e espaços
isso que eu falo que além de ser um lugar de festividade, ele também é um centro
de referências.” ( DUTRA, 2020.)
Observa-se o valor pela busca da identidade de uma história sistematicamente
apagada e refletida em um modelo Europeu. No Brasil, um país originado de povos
indígenas, africanos, ciganos, judeus, árabes e etc… com uma vasta diversidade
cultural, cujo a valorização se dá preferencialmente ao modelo Ocidental, e des-
considera os costumes dos povos originários. Como resultado dessas ações, temos
o enfraquecimento desses monumentos, e sem o reconhecimento e a manutenção
das instituições governamentais, muitos gestores acabam utilizando de recursos
próprios para custear despesas e a salvaguarda do patrimônio dos clubes.

O ESVAZIAMENTO DOS CLUBES SOCIAIS NEGROS E O


DISTANCIMENTO DA JUVENTUDE
A negativa apresentada que questionou a baixa ou nula participação da juven-
tude negra nos Clubes Sociais Negros, chamando a atenção para o item 4.2, que
apontou o Esvaziamento dos Clubes Sociais Negros e Distanciamento da Juventude
carrega uma série de questões e certamente uma delas se dá pelo não reconheci-
mento de pertencimento a comunidade negra, a formação ao longo da vida com
espaços vazios sem representatividade social e cultural, e a luta diária dentro de
uma sociedade que nega a discrepância racial em seus acessos, mas que atinge
diretamente jovens negros, é evidenete, para aqueles que vivenciam e sentem na
pele as consequencias do racismo estrutural e institucional. O papel desenvolvido
pelos Clubes Sociais Negros como lugar de resistência e acolhimento pros seus vem
de uma trajetória que antecede a abolição da escravatura, é uma constância histó-
rica e perpassa por diversos cenários políticos/sociais, mas o cenário de resistência
e união era inegável. Segundo o pesquisador João Heitor Silva Macedo:

Por muito tempo a tendência etnocêntrica que impera em nosso


currículo escolar, calou as minorias que não se viam contempla-
das em uma história do Brasil que só assegurava aos europeus o
papel de protagonista. Os números produzidos pelo IBGE (Cen-
so de 2010) demonstram uma realidade que ainda é facilmente
percebida em sala de aula. Poucos alunos negros, que muitas
vezes ainda negam a sua própria negritude por não se sentirem
valorizados neste espaço. (MACEDO, 2018, p.78).

O mecanismo utilizado pela branquitude de concordância racial desenvolveu


um aspecto nas novas gerações de não pertencimento. A importância de validar
espaços como os Clubes Negros é exatamente essa, ser referência para aqueles
que não conhecem a própria história, que não tiveram acesso decorrente da apro-
priação, e embranquecimento da história do povo negro.

562 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
No excerto retirado do Mapeamento dos Clubes Sociais Negros no Brasil: Análi-
se e Sistematização de Informações diz: “[...] é preciso refletir sobre o modo como
as contingências históricas determinam a lembrança e o esquecimento de deter-
minadas dinâmicas culturais[...](BRASIL, 2015 pág 43). A lembrança que permane-
ce e sempre estará presente na memória das populações negras e especialmente
gestores dessas sociedades, é a de que o advento do homem branco tirou tudo de
seus ancestrais e continuam tirando até hoje. Certamente, o mecanismo de defesa
em não fornecer determinadas informações a pessoas não negras é consequência
desta lembrança. É sabido, que a maioria das intituições são constituidas majori-
tariamente por não negros, um fator decorrente do racismo estrutural, e remete a
pensarmos se houve o cuidado em buscar auxilio aos movimentos negros, ao pró-
prio movimento clubista que em 2006 já havia visitado diversos clubes pelo Brasil,
e principalmente a Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN) que é
a responsavel em promover pesquisa academico-cientifica prioritariamente por
pesquisadores negros. Se o tivessem feito, a esquematização e interlocução entre
as partes ocorreria de maneira diferente, a forma como o Instituto desenvolveu a
pesquisa possui uma série de erros brutais, como as sociedades negras vão levar
em consideração os resultados desse relatório, se em nenhum momento houve a
sensibilidade em consultá-los.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mesmo que a sociedade ainda acredite no mito da democracia racial e na falá-
cia de que não existe racismo no Brasil, as ações afirmativas, impulsionadas pela
Lei 10639/03, que torna obrigatorio o ensino da cultura africana e afro-brasileira
ns currículos e os Clubes Sociais Negros estão a todo momento contestando e afir-
mando que sim, existe racismo e é preciso problematizá-lo e combatê- lo cotidina-
mente.
As instituições hegemonicamente brancas começaram a perceber a existência
destas organizações negras seculares, entretanto, lançam um olhar ainda sob a óti-
ca e moldes colonizadores, nomeiam, encontram fragilidades e excluem suas for-
mas de existir sob alegação de não estarem dentro dos padrões, desconsiderando
a existência negra e os lugares de resistência que em sua maioria são a única mão
auxiliadora que aquela comunidade possui, mantendo viva a proximidade com as
tradições.
É preciso compreender e respeitar as formas de existência de cada clube, suas
particularidades e limitações são experiências únicas e merecem o devido reconhe-
cimento. Que o IPHAN reconheça a importância e o respeito às particularidades
dos Clubes Sociais Negros, e que o Movimento Clubista possa ser aliado na busca
de novas descobertas. A filosofia Africana tem como pressuposto a transmissão de
conhecimentos através da oralidade, que é algo sagrado e tais costumes devem

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 563


Artes, memória e espaços
ser levados em consideração, já que tratamos de uma herança ancestral de povos
africanos.

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DUTRA, Catia Cilene Morais. Catia Cilene Morais Dutra: Depoimento. [ Set.2020]. Entre-
vistadora: Ariane de Sá de Andrade Cruz. Entrevista concedida para publicação no XI CO-
PENE.

AUTORIA
Ariane de Sá de Andrade Cruz
Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA)
E-mail: arianecruz.aluno@unipampa.edu.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3786-7535
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7201908456583480

Richelle da Silva Costa


Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA)
E-mail: richellecosta.aluno@unipampa.edu.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1555-6653
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0940826285173043

Giane Vargas Escobar


Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA)
E-mail: gianeescobar@unipampa.edu.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1138-0753
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9076251806577555

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 565


Artes, memória e espaços
100 ANOS DE (R)EXISTÊNCIA DO CLUBE
SOCIAL NEGRO 24 DE AGOSTO ATRAVÉS DE
UM JOGO DIDÁTICO

Rafael Barbosa de Jesus Santana


Giane Vargas Escobar

INTRODUÇÃO
No ano de 2018, o Clube Social Negro 24 de Agosto, localizado na cidade de
Jaguarão/RS, fronteira Brasil-Uruguai, completou cem (100) anos de existência e
resistência. De sua história, muitas pessoas e instituições fizeram parte. Na ten-
tativa de divulgar essa longa trajetória, no ano subsequente (2019), foi elaborado
um jogo que pode ser utilizado de forma pedagógica em ambientes escolares e
não-escolares. Neste sentido, o presente trabalho se constitui como um relato de
experiência teórico-metodológico do processo de produção desse material didáti-
co, o qual foi elaborado como parte do trabalho final da disciplina de Estágio Super-
visionado III, do Curso de História-Licenciatura da Universidade Federal do Pampa
- Campus Jaguarão. Embasados nas contribuições de Al-Alam, Escobar e Munaretto
(2018) sobre a história do supracitado clube; nas ponderações de Huizinga (2000)
e Pereira & Giacomoni (2013) sobre a potencialidade pedagógica e representati-
vidade dos jogos; assim como em Silva & Silvério (2003) que nos ensinam sobre
a importância dos(as) negros(as) na produção do conhecimento; e nas conside-
rações de Bittencourt (2009) sobre os diferentes materiais didáticos no ensino de
história, buscamos divulgar neste artigo, o processo criativo do jogo didático de
cartas/tabuleiro, procurando responder às seguintes questões: como apresentar o
Clube 24 de Agosto para públicos não acadêmicos que têm pouco contato com o
jargão científico? Como visibilizar histórias e memórias da população negra de Ja-
guarão/RS que não se encontram nos livros didáticos? Como explicitar o poder de
ação dos/as negros/as na sociedade jaguarense pós-escravidão e no século XXI? Ao
compartilhar a experiência de elaboração desse instrumento pedagógico, busca-se
explicitar também a participação e protagonismo da população negra no Clube 24
de Agosto. Destarte, o material produzido mostrou-se e continua apresentando
grande relevância não só para a historiografia sobre a cidade, sobre o espaço de
sociabilidade negra ou para expor o poder de atuação dos/as atores e atrizes so-
ciais nas situações mais adversas, tal qual como uma rica ferramenta para a aula
de História no ensino básico.

566 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
O ESTÁGIO
O componente curricular de Estágio Supervisionado III faz parte da grade curri-
cular obrigatória do curso de Licenciatura em História da Universidade Federal do
Pampa (UNIPAMPA). Nele, os discentes devem propor uma atividade em espaço
não-escolar, como teatros, bibliotecas, terreiros de candomblé, entre outros. O
relato de experiência realizado neste trabalho tem como base a vivência de um
estagiário no espaço não-escolar do Clube 24 de Agosto, um Clube Social Negro
da cidade de Jaguarão/RS. As atividades desenvolvidas nesse ambiente foram re-
alizadas no período de dezoito (18) a vinte e três (23) de novembro de dois mil e
dezenove (2019), tendo como público-alvo estudantes do ensino fundamental e
buscando evidenciar uma nova história sobre a cidade de Jaguarão.

AS POPULAÇÕES NEGRAS EM JAGUARÃO E O CLUBE 24 DE


AGOSTO
Conforme Darlize Silveira et al. (2015), a historiografia oficial sobre a cidade de
Jaguarão “negligencia a atuação de sujeitos históricos que explorados como mão-
-de-obra construíram a riqueza deste país”, no caso, os(as) negros(as) (SILVEIRA et
al. 2015, p. 01). Para Matheus Batalha Bom (2019), tal historiografia despreza tam-
bém a existência de negros(as) nessa região. Segundo o autor, no final da década
de 1850, havia mais de cinco mil trabalhadores(as) escravizados(as) em Jaguarão;
só Porto Alegre que tinha mais que oito mil escravizados. Após a abolição oficial
em 1888, essa população permaneceu em terras jaguarenses, projetando e agindo
para com a sociedade, através, por exemplo, de associações como o Clube Recrea-
tivo Gaúcho e o Clube Suburbanos. Buscando evidenciar essa história pouco olhada
pela historiografia tradicional, Al-Alam, Escobar & Munaretto (2018) propuseram
analisar um dos espaços de sociabilidade, existência e resistência da população
negra jaguarense, o Clube 24 de Agosto.
Se o Quilombo dos Palmares “[…] foi a primeira grande ação afirmativa de bus-
ca da liberdade e da igualdade racial” (SILVA & SILVÉRIO, 2003, p. 10) a nível na-
cional, a nível local, o Clube 24 de Agosto também pode ser entendido como um
quilombo. De acordo com Al-Alam, Escobar & Munaretto (2018), os clubes negros
da cidade de Jaguarão/RS surgiram como resposta a uma sociedade brasileira e
rio-grandense racista que relegava os negros e as negras de determinados espaços
pretensamente brancos, como também da autonomia e protagonização dessa po-
pulação. Mesmo com a abolição jurídica, os ex-cativos continuaram marginalizados
na sociedade, devido a uma sociedade racializadora que não enxergava esses pre-
tos(as) como portadores(as) de cidadania. Conforme Al-Alam (2019), assim como
em várias localidades no Brasil, em Jaguarão, “a população negra tinha constrangi-
da a circulação por algumas ruas e calçadas, inclusive sendo proibidas de frequen-
tarem as associações e clubes de pessoas brancas” (AL-ALAM, 2019, p. 04).

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 567


Artes, memória e espaços
É nesse contexto que surge, em 1918, o Clube 24 de Agosto, um espaço que al-
mejava a positivação social dos/as negros/as, assim como a fomentação de um am-
biente de sociabilidade, lazer e resistência. Atualmente com cento e dois anos de
existência, o Clube 24 de Agosto contou ao decorrer de sua história com a partici-
pação de muitas pessoas que enxergavam esse espaço como um local de tenacida-
de, como por indivíduos que apenas aproveitavam as atividades culturais de lazer.
De qualquer forma, o Clube foi palco das mais diversas atividades, como: oficinas,
almoços, jantares, festas, bailes e eventos acadêmicos; projetos de conservação
e preservação do acervo fotográfico e da memória imaterial; concursos de beleza
voltados às mulheres negras; atividades afro-religiosas; laboração das Semanas da
Consciência Negra; assim como foi palco e cenário do livro sobre o centenário da
instituição, intitulado Clube 24 de Agosto (1918-2018): 100 anos de resistência de
um clube social negro na fronteira Brasil-Uruguai. Como podemos perceber, esta
instituição procurou construir uma sociedade mais justa, seja através do lazer e da
representatividade ou através de atividades educativas.
Para além de todas essas atividades, muitos negros e negras construíram uma
imagem social de influência, a ponto de serem identificados(as) como referências
para outras pessoas do próprio clube e da cidade de Jaguarão/RS. As mulheres ne-
gras em especial, conquistaram um espaço onde seus corpos e suas belezas foram
e continuam sendo valorizadas por meio de certames de beleza. É baseado nesse
espaço de fertilidade social que foi elaborado o jogo didático que será apresentado
a seguir.

A ELABORAÇÃO DO JOGO DIDÁTICO


Segundo Bittencourt (2009, p. 296), materiais didáticos são instrumentos me-
diadores do “processo de aquisição de conhecimento, bem como facilitadores
da apreensão de conceitos, do domínio de informações e de uma linguagem es-
pecífica da área de cada disciplina”. Nesse sentido, qualquer material pode ser
considerado instrumento pedagógico, conforme os questionamentos levantados
pelo(a) professor(a) historiador(a). No entanto, os livros didáticos de História, por
exemplo, podem ser interpretados como veículos “[…] de um sistema de valores,
de ideologias, de uma cultura de determinada época e de determinada sociedade”
(BITTENCOURT, 2009, p. 302), no nosso caso, uma sociedade branca racista, que
invisibiliza histórias e memórias contra-hegemônicas.
Considerando que outros materiais também podem ser utilizados com fins pe-
dagógicos, Pereira & Giacomoni (2013) veem os jogos como uma rica estratégia de
excitação da aprendizagem. Para os autores, no ato de jogar, “[…] os estudantes
estão na origem dos conceitos, pois que ali, no ato, conceitos históricos se gestam
e passam a dar forma à vida, aos modos de vida, aos antigos presentes” (PEREIRA
& GIACOMONI, 2013, p. 19). Já Huizinga (2000, p. 14), coloca que “a função do jogo
[...] pode de maneira geral ser definida pelos dois aspectos fundamentais que nele

568 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
encontramos: uma luta por alguma coisa ou a representação de alguma coisa”. No
jogo que foi construído, encontramos a luta contra a invisibização negra e a repre-
sentação dos comportamentos sociais negros em Jaguarão/RS.
Baseados nesses referenciais e nas questões mencionadas na introdução desse
trabalho é que o jogo didático sobre os cem anos do Clube 24 de Agosto foi pro-
duzido. O material aqui exposto foi elaborado no segundo semestre de 2019 e
apresentado durante a XI Semana da Consciência Negra de Jaguarão/RS, que teve
como temática: “A gente combinamos de não morrer – saúde, política, economia
e cultura negras”. O instrumento pedagógico foi divulgado na manhã do dia 20 de
novembro de 2019, contando com a participação de duas turmas do Ensino Funda-
mental dos anos finais de uma escola de Jaguarão, duas professoras que acompa-
nharam os(as) alunos(as) e alguns discentes do curso de História da UNIPAMPA. A
apresentação do material didático teve como objetivo disseminar um pouco dessa
nova historiografia jaguarense, que visualiza e centraliza a agência dos negros e
das negras na sociedade, principalmente no Clube 24 de Agosto.
O material didático elaborado se constitui enquanto um jogo de tabuleiro (Fi-
gura I) no qual a sorte decide quem ganha. O grande objetivo do jogo é preservar
o espaço do Clube 24, através das ações dos vários atores e atrizes sociais que, na
história real, tiveram grandes ações para com esta instituição. Cinco são os perso-
nagens (Figuras II e III) do jogo: Seu Madruga, Thomas, Giane, Comunidade Aca-
dêmica e Eugênia. Destarte, cinco pessoas podem participar da atividade. Cada
personagem/jogador(a) pontua ao pegar cartas (Figuras IV e V, por exemplo) nas
quais estejam escritas que este gamer pontua, conforme a ação descrita na carta.
Ao pontuar, os(as) jogadores(as) devem jogar o dado e andar no tabuleiro o nú-
mero de casas que cair no dado. No tabuleiro há alguns marcos históricos, como
o pós-abolição e a marginalização dos(as) negros(as) na sociedade, eventos que
podem mexer na dinâmica do jogo (Figura VI).
Ao caminhar no tabuleiro, os personagens entram em contato com alguns acon-
tecimentos que fizeram parte dos 100 anos do Clube 24 de Agosto, como a cons-
trução do atual prédio na década de 1960, a queima de documentos em 1980, o
processo judicial sofrido pela instituição em 1998 e o leilão do prédio do clube em
2007. Para além disso, o jogo conta com um cartão que explica historicamente o
processo que resultou na construção de espaços como o Clube 24 de Agosto. O
interessante nesse material didático é que ele foi pensado para que os(as) jogado-
res(as) verbalizassem enquanto jogam, sendo uma simbologia à história do Clube,
que não teve sua trajetória construída no silêncio. Do mesmo modo, foi pensado
para que todos(as) personagens pontuassem de modo coletivo, visto que o men-
cionado espaço de sociabilidade e resistência só existe nos dias atuais por causa da
ação coletiva.
Com essas sensibilidades criativas, que muito tem relação com o fato de nós
(autor e autora desse artigo) sermos negro e negra, a elaboração desse material
didático procurou (e espera-se que tenha atingido sua meta) “[…] alcançar as ori-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 569


Artes, memória e espaços
gens de nossa ancestralidade e para a construção de uma história que nos seja
comum e que esteja sintonizada com nosso povo” (SILVA & SILVÉRIO, 2003, p. 10).
Ao explicitar a agência de uma parcela dos(as) atores e atrizes, em grande parte
negro(a), que deixaram suas marcas no Clube 24 de Agosto, almejamos positivar
suas histórias e memórias, o que já é em si um ato educativo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Acreditamos que o jogo confeccionado conseguiu atingir seu objetivo de visibi-
lizar uma nova história sobre a cidade de Jaguarão, assim como em apresentar um
Clube Social Negro que era pouco conhecido dos(as) alunos(as) até então. Perce-
beu-se que o material é mais adequado ao ensino médio e que pode ser utilizado
tanto para iniciar, como para concluir os estudos sobre o pós-abolição e Clubes
Sociais Negros no Brasil, no Uruguai, no Rio Grande do Sul e em Jaguarão. Talvez
o jogo tenha falhas que só no ato de jogar possamos perceber. Essas possíveis
inconsistências poderão servir de aprendizado para aqueles(as) que coordenarem
a utilização do material, que assim farão melhorias no instrumento ou até mesmo
elaborarão outros materiais didáticos. Contudo, tal constatação não nos impossi-
bilita de afirmar que, o mencionado jogo, nos apresenta o Clube Social Negro 24
de Agosto como um espaço de vida que só existe porque a população negra ainda
vê sentido na existência dessa instituição. O jogo foi doado ao Núcleo de Estudos
Afro-Brasileiros e Indígenas da Unipampa – Campus Jaguarão (NEABI MOCINHA).

REFERÊNCIAS

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Agosto (1918-2018): 100 anos de resistência de um clube social negro na fronteira Brasil-
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570 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


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SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e; SILVÉRIO, Valter Roberto (Orgs.). Educação e ações
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SILVEIRA, Darlize Martinez, et al. Resistência Negra em Jaguarão/RS: primeiras notas so-
bre o Clube Suburbanos. In: Anais do VII Salão Internacional de Ensino, Pesquisa e Exten-
são – Universidade Federal do Pampa, 2015.

FIGURA I: TABULEIRO DO JOGO

Fonte: arquivo pessoal.

FIGURA II: PERSONAGENS

Fonte: arquivo pessoal.


FIGURA III: PERSONAGENS

Fonte: arquivo pessoal.

FIGURA IV: CARTAS

Fonte: arquivo pessoal.


FIGURA V: CARTAS

Fonte: arquivo pessoal.

FIGURA VI: JOGO COMPLETO PLASTIFICADO

Fonte: arquivo pessoal.


AUTORIA
Rafael Barbosa de Jesus Santana
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
E-mail: rafael.santana.001@hotmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5563-3081
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4820406640898726

Giane Vargas Escobar


Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA)
E-mail: gianeescobar@unipampa.edu.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1138-0753
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9076251806577555

574 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
O POVO DE SANTO NA “MODERNA BAHIA”:
NOVAS PERFORMANCES NA DEFESA DO
PATRIMÔNIO CULTURAL NEGRO
Edmar Ferreira Santos

INTRODUÇÃO
Este artigo procede de pesquisa de doutorado em andamento no Programa de
Pós- graduação em Estudos Étnicos e Africanos (Pós-Afro / CEAO) da Universida-
de Federal da Bahia, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da
Bahia (FAPESB). Examino neste texto as transformações que ocorreram no cenário
urbano de Salvador e aspectos da experiência do povo de santo baiano na década
de setenta do século vinte, especialmente mudanças na sua performance pública.
A historiografia sobre a religiosidade afro-brasileira ainda não se ocupou minu-
ciosamente desse período apesar de nele encontrarmos momentos críticos para
os religiosos como, por exemplo, o fim dos registros e licenças junto aos órgãos de
segurança pública no Estado da Bahia. Essa década também marca novo direciona-
mento das políticas do Estado da Bahia em relação a religiosidade afro-brasileira.
Nos anos que seguiram a segunda grande guerra, particularmente a partir de
meados da década de cinquenta, a Bahia (e muito especialmente a cidade de Salva-
dor) experimentou transformações nos planos econômico, social, político e cultu-
ral. Um marco fundamental dessas mudanças é o início da exploração de petróleo,
sinalizando o aumento de investimentos federais no Estado e criando um campo
industrial a ser aproveitado. A criação da Comissão de Planejamento Econômico
assumiu a elaboração de um plano de desenvolvimento que abarcou propostas
que viriam a se concretizar através do Centro Industrial de Aratu e do Polo Petroquí-
mico de Camaçari. O cenário de investimentos compreendia a implantação de um
banco de fomento, a aplicação de recursos em telefonia e energia elétrica – com a
construção de usinas e redes de transmissão –, bem como a conformação viária do
Estado às novas exigências de transporte e comunicação (BACELAR, 2006; PINHO,
2010).
Essas circunstâncias geravam diversas expectativas nos setores que compu-
nham a sociedade baiana, mas no que se refere aos estratos mais pobres da popu-
lação representou esperanças de trabalho, emprego e vida melhor. Tal perspectiva
provocou intenso movimento migratório do interior para a capital, impactando
fortemente a configuração da cidade. Entre os anos quarenta e noventa a cidade
passou dos quatrocentos mil habitantes para dois milhões de moradores. Todavia,
parece que as transformações econômicas e sociais mais acentuadas apenas ocor-
reriam na década de setenta quando grandes indústrias com sedes localizadas no

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 575


Artes, memória e espaços
sudeste do país se instalaram na Bahia1. Nas palavras de Roger Sansi “na década de
setenta, Salvador já não é mais uma cidade colonial ancorada no passado; ela se
transformava finalmente em uma cidade moderna” (SANSI, 2010, p.27). Mas o que
significava para o soteropolitano viver em uma cidade moderna?

A MODERNIZAÇÃO DE SALVADOR NA IMPRENSA BAIANA


O caderno especial do jornal Tribuna da Bahia2 publicado em 23 de abril de 1970
divulgou para os leitores, em dois volumes que somavam dezesseis páginas, níti-
das expectativas frente às realizações de setores empresariais e, sobretudo, da
administração pública da cidade naqueles últimos quatro anos. Por outro lado, o
caderno também revelava preocupações quanto ao destino da capital dos baianos:
“Mudar ou morrer”, eram as alternativas sinalizadas pelo título do caderno. O texto
explorava os problemas da cidade numa abordagem relacionada às adversidades do
mundo pós-guerra, especialmente os “contratempos” provocados pela industriali-
zação que “convocava a mão-de-obra ociosa do campo para os centros urbanos”,
agravando os problemas socioeconômicos das cidades erguidas sem planejamento
urbano. Salvador era uma dessas cidades. Os problemas da ausência de planeja-
mento urbano seriam vivenciados no cotidiano por meio de um sistema viário e de
transporte insuficiente, da escassa iluminação pública, das deficiências de abaste-
cimento de água e cobertura sanitária, bem como, pela multiplicação dos bairros
pobres, das favelas e das “invasões” que, para os redatores do caderno, criava
“tensões sociais que precisavam ser relaxadas”3.
Entretanto, o caderno era bastante elogioso aos anos de mandato do prefeito
Antônio Carlos Magalhães. O período em que ocupou a prefeitura por indicação do
regime militar se estendeu de treze de fevereiro de 1967 a dois de abril de 1970.
Pelo que se sabe o prefeito contou com circunstâncias especialmente favoráveis a
missão que lhe foi confiada pela ditadura de executar um plano de obras em curto
prazo na capital baiana. A excepcionalidade residiria principalmente nos extraor-
dinários recursos financeiros derivados do governo do marechal Castelo Branco,
embora a versão da prefeitura para o financiamento do programa de obras fosse a
alienação de áreas públicas aforadas (DANTAS NETO, 2006).
Todavia, o andamento de um programa de obras a ser realizado em tempo li-
mitado exigia que houvesse uma planta operativa e um planejamento executivo
no mínimo conveniente. No que se refere ao primeiro quesito, a administração
municipal dizia ter recorrido a um plano diretor existente desde 1947, elabora-
do por uma equipe de técnicos dirigidos pelo professor Mario Leal Ferreira e que

2 Os jornais, os processos criminais e a memória do povo de santo têm se constituindo nas


fontes privilegiadas para o estudo da história da religiosidade afro-baiana. Esta pesquisa tem se
apoiado até o momento na imprensa baiana, especialmente os jornais A Tarde, Diário de Notícias,
Tribuna da Bahia e Jornal da Bahia.
3 Jornal Tribuna da Bahia. Caderno Especial 1, 23 de abril de 1970, p.01.

576 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
estava “empoeirado nos gavetões burocráticos da Prefeitura Municipal”4. Outras
versões afirmam que o prefeito se beneficiou do trabalho que vinha sendo feito na
administração de Virgildásio de Senna, último prefeito eleito democraticamente
antes da instauração da ditadura militar (DANTAS NETO, 2006). Seguro parece ser
que o então prefeito jamais reivindicou a autoria do plano, embora capitalizasse
as glórias da execução que lhe renderia o início de uma liderança política que
se convencionou denominar “carlismo” e a posterior indicação do seu nome pelo
regime militar para o cargo de governador do Estado.
As obras estruturais do sistema viário de Salvador foram as mais importantes
realizações e, também, a “principal meta” da administração municipal entre fins
dos anos sessenta e início dos anos setenta. Basicamente quatro avenidas foram
inauguradas em curto espaço de tempo nos vales dos Barris, Nazaré, Bonocô e Ca-
murujipe, bem como um conjunto de viadutos e o início da construção da avenida
Paralela. O plano aproveitava os vales e os topos da cidade montanhosa para a
construção de um sistema viário mais eficiente, pretendendo a “interiorização ur-
bana” e a criação de linhas de tráfego entre o centro e a orla marítima da capital.5
As intenções desse traçado de novas vias se combinava com os desejos expostos
pelo prefeito na sua mensagem a câmara municipal em 1967, quando disse reco-
nhecer o dilema “permanente e quase dramático” entre as exigências de conserva-
ção e valorização do patrimônio histórico e cultural e “as pressões inarredáveis do
desenvolvimento urbano” (DANTAS NETO, 2006, p.291). Aliar tradição e paisagem
estava no horizonte da gestão municipal da modernização conservadora e, nesse
jogo, o centro histórico e a orla marítima se convertiam nos atrativos mais fortes
para a propaganda da cidade turística que se esboçava.
Por outro lado, a publicidade da capital encontraria obstáculos nos problemas
sociais que a cidade apresentava. A intensa migração que a capital havia recebido
nas duas últimas décadas era representada como a principal causa desses entraves.
Muitos desses migrantes saídos de áreas rurais do interior se bateram com as en-
costas dos morros ou com áreas pertencentes a Marinha, especialmente na cidade
baixa. Para a administração municipal – e para os setores que a amparavam poli-
ticamente e se favoreciam economicamente com as mudanças em curso – essas
pessoas formavam “grupamentos habitacionais ‘sub-normais’ como os Alagados,
invasões e favelas”. Eram essas as tensões sociais que deveriam ser “relaxadas”6.
O noticiário jornalístico nas primeiras semanas da gestão de ACM parece não
deixar dúvidas quanto ao ímpeto do prefeito de “ordenar” a cidade. Uma atenção
inclemente foi dispensada para as invasões e os vendedores ambulantes. A propó-
sito, intervenções nas invasões figuraram entre as suas ações administrativas prio-
ritárias (DANTAS NETO, 2006). No final da gestão em 1970 as palavras publicadas
no caderno especial do jornal Tribuna da Bahia nos oferecem indícios para refletir

4 Jornal Tribuna da Bahia. Caderno Especial 1, 23 de abril de 1970, p.01.


5 Jornal Tribuna da Bahia. Caderno Especial 1, 23 de abril de 1970, p.01.
6 Jornal Tribuna da Bahia. Caderno Especial 1, 23 de abril de 1970, p.01

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 577


Artes, memória e espaços
sobre aqueles anos de modernização da cidade: “Em todos os lugares máquinas e
homens se movimentaram removendo montanhas e construindo a cidade. Favelas
e invasões foram removidas e em seu lugar surgiram os jardins”7. A “urbanização”
do Dique do Tororó era exibida como “uma obra que engrandece qualquer cida-
de”. Áreas entendidas como “verdadeiros cancros sociais” iam “desaparecendo e
em seu lugar aparecendo parques e jardins”.8
Na imprensa do período se encontram avaliações positivas sobre as interven-
ções urbanas e o gestor municipal chegou a ser chamado de “prefeito do século”,
“o Pelé branco das construções” (DANTAS NETO, 2006, p.308) e “o prefeito camisa
10”9. Essa apreciação favorável muito se devia a reestruturação do sistema viário
da cidade. Em linhas gerais essa reformulação consistiu na formação de cintas con-
cêntricas envolvendo o centro comercial da Baixa dos Sapateiros com a disposição
de linhas radiais que saíam dessa mesma zona. As cintas foram constituídas da rua
J.J. Seabra, pelo vale do Canela, englobando a avenida Centenário, parte da Vasco
da Gama, rua Djalma Dutra, rua Cônego Pereira e Vale do Queimado. Para o funcio-
namento eficiente dessas cintas se fez a composição das radiais Vale dos Barris e
Vasco da Gama, Vale de Nazaré e Vale do Bonocô e o trecho da J.J. Seabra com
a avenida Heitor Dias. Esse traçado de antigas e novas vias além de possibilitar a
rápida ligação entre o centro e a orla marítima viabilizava a conexão entre bairros
sem que fosse necessário passar pelo centro da cidade. As obras viárias ainda con-
taram com a disposição de viadutos que foram batizados com os nomes de Marta
Vasconcelos10 e com homenagens ao regime militar: 31 de março11 e do marechal
Castelo Branco12.

O “MUNDO NEGRO” E A CIDADE MODERNA


Se por um lado a reforma do sistema viário parecia indispensável e mesmo posi-
tiva para a cidade, por outro lado, como observou o historiador Cid Teixeira “a popu-

7 Jornal Tribuna da Bahia. Caderno Especial 1, 23 de abril de 1970, p.04.


8 Uma demolição em particular era retratada com exaltação, tratava-se de uma ocupação na
orla marítima que foi removida para a construção de um jardim “especial”: “A prefeitura se orgulha
de ter construído, com exclusividade em todo o país, um jardim especialmente criado para o amor, é
o Jardim dos Namorados que surgiu no local de uma antiga invasão, no Bico de Ferro”. Jornal Tribuna
da Bahia. Caderno Especial 1, 23 de abril de 1970, p.02.
9 Jornal Tribuna da Bahia. Caderno Especial 1, 23 de abril de 1970, p.02.
10 Baiana, foi Miss Bahia, Miss Brasil e Miss Universo em 1968; o viaduto foi inaugurado em
1969 no Vale de Nazaré e dá acesso ao túnel Américo Simas em direção à Cidade Baixa.
11 Dia em que foi instaurado em 1964 a ditadura militar que perdurou mais de 20 anos no
Brasil.
12 Primeiro presidente do Brasil no período da ditadura militar, entre os anos de 1964 e 1967;
o viaduto faz a ligação entre o Vale de Nazaré (também batizada de Avenida Castelo Branco) e a
Avenida Bonocô; Paulo Fábio demonstra como essa “Salvador moderna” não é “filha de pai único”,
mas sim possui “vínculos históricos com a modernização conservadora que nascera, no final dos anos
cinquenta , no seio da elite baiana”, apressada pelas circunstâncias geradas pelo golpe militar de 1964
(DANTAS NETO, 2006).

578 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
lação de baixíssima renda ao redor, na margem da avenida e nas áreas próximas, foi
simplesmente banida (...) não houve nenhum planejamento na integração social
das avenidas. Essa falta de atenção ao social foi o lado negativo de tudo isso”13. Re-
ferindo-se ao processo de modernização da cidade, Jeferson Bacelar explicou que
a “novidade foi o aguçamento das desigualdades, com a concentração de riqueza
em um grupo minoritário, catalisador privilegiado de espaços e serviços públicos
e a perspectiva de classes médias fortalecidas, envoltas no pressuposto da mobili-
dade social”. A miséria e a violência foi a parte que coube aos pobres e negros da
cidade (BACELAR, 2001, p.194). Não obstante, o quadro de metamorfose urbana
se esboçava e um discurso de mudanças econômicas figurava naquela tela como
particularmente importante.
No que se refere as subjetividades políticas essas transformações parecem ser
ainda mais significativas, sobretudo no que tangenciava a produção de identidades
afinadas com os anseios de redemocratização do país e participação na vida social,
política e econômica de uma sociedade que se modernizava14 orientada por polí-
ticas autoritárias. As tensões entre aqueles setores beneficiados pelas alterações
econômicas e urbanas de um lado e, do outro lado, os explorados e excluídos, pas-
saram a se manifestar naquele momento com maior visibilidade. Nas décadas de
setenta e oitenta os grupos e organizações negras experimentaram um crescimen-
to numérico sem precedentes e, de maneira progressiva, mais institucionalizadas.
Nas considerações de Michel Agier, por exemplo, em relação ao do número de re-
gistros de terreiros na Federação Baiana do Culto Afro-Brasileiro, ele observou um
aumento expressivo de cem templos inscritos na década de quarenta para cerca de
dois mil na década de setenta. O quadro descrito por este autor contempla ainda:

[...] dezenas de escolas de capoeira; vários grupos de dança e


teatro afro; vários grupos, formais e informais, de escritores,
músicos e artistas plásticos negros. Temos de acrescentar a este
inventário alguns políticos negros locais...; e associações profis-
sionais explícita ou implicitamente marcadas pela presença de
negros, influenciadas por solidariedades ou estratégias políticas
formadas em círculos negros, ou pelo papel pessoal de líderes
negros na direção sindical. (AGIER, 1992 apud SERRA, 1995,
p.138-9)

A emergente cidade moderna vivenciava transformações ao tempo em que


recebia influências externas de diferentes formas. No que se refere ao “mundo
negro”, a inspiração em ideias e estéticas relacionadas aos movimentos e líderes
negros norte-americanos se fizeram sentir com intensidade pelo menos desde os

13 Para o historiador os maiores beneficiados eram os donos de automóveis que puderam se


favorecer da “alta comodidade” de sair do centro e chegar na Pituba (DANTAS NETO, 2006, p.309).
14 Pinho argumenta que a desigualdade foi um aspecto constituinte do processo de moderni-
zação local, que por sua vez foi marcado pelo “desenvolvimento de subjetividades afro-descendentes
modernizadas” (PINHO, 2010, p.306).

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 579


Artes, memória e espaços
primeiros anos da década de setenta. Estilos e usos encarnados nas roupas, na
gestualidade e nos cabelos dialogavam com as lutas raciais e com as formas de or-
ganização política dos negros notadamente dos Estados Unidos. Mas não apenas.
Também chegavam notícias das resistências anticoloniais, especialmente vindas
dos países africanos de língua portuguesa, como Angola, Moçambique e Guiné-
-Bissau. Todavia, a força de movimentos e lideranças negras paradigmáticas nor-
te-americanas dispunham de maior relevo naquele momento, como o movimento
Black Panthers e a influência de Martin Luther King, Angela Davis e Malcom X (BA-
CELAR, 2006).
Nesse contexto, jovens negros da periferia emergiam como novos sujeitos po-
líticos, ansiosos de participação na insipiente modernidade urbana e, para isso,
criavam formas de organização para as suas atividades coletivas. Desde pelo me-
nos as décadas finais do século dezenove o carnaval de Salvador já era um tipo de
arena do jogo de dissimulações e explicitação das tensões raciais e de classe na
Bahia15. Na década de setenta uma verdadeira indústria do entretenimento já ten-
tava configurar a festa de acordo com seus interesses comerciais. Na esteira desse
movimento pobres e negros passaram a ser ainda mais submetidos a restrições de
caráter sociorracial que de forma encoberta ou evidente inibia a participação nos
blocos de trio que se consolidavam. Por outro lado, as formas mais tradicionais
de participação carnavalesca dos negros (como as escolas de samba da Bahia) pa-
reciam fadadas ao desaparecimento, enfraquecidas pela falta de recursos e pela
redução do número de componentes. Nessa perspectiva se pode afirmar que o
surgimento a partir de fins dos anos sessenta dos blocos de índios16 e em 1974 do
bloco afro Ilê Aiyê no bairro da Liberdade é em parte fruto dessa modernização da
cidade e suas várias contradições.
Os blocos de índios e o bloco afro Ilê Aiyê evidenciaram através do carnaval os
novos contornos das tensões raciais na Bahia. Além de levar para as ruas conteú-
dos identificados com a cultura afro-brasileira, como a musicalidade, as letras das
canções, a performance, a indumentária e a estética corporal, expressaram tam-
bém a influência dos movimentos negros nacional e internacional, as inquietações
frente aos limites impostos pela política da ditadura militar e a emersão de outras
possibilidades de leituras e ações para a realidade da cidade. Essas recriações ne-
gras para experimentar a festa manifestavam fundamentalmente declarada con-
testação aos valores do mundo dos brancos. No caso mais específico do bloco afro
Ilê Aiyê as pautas da africanidade e da afirmação identitária buscavam aproxima-
ção com o candomblé baiano como matriz cultural fundamental (BACELAR, 2006;
PINHO,2010). A criação do bloco afro Ilê Aiyê é seguramente um marco do moder-
no processo de reafricanização da cultura soteropolitana e das tensões que se re-

15 Para uma leitura mais profunda do carnaval negro (PINHO, 2010).


16 Bacelar argumenta que a denominação “blocos de índios” faziam uma alusão ao olhar
preconceituoso da classe média baiana que se referia as pessoas que moravam em bairros populares,
geralmente de expressiva maioria negra, como “índios” (BACELAR, 2006).

580 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
dimensionavam naqueles anos17. Foi nesse sentido que a construção da identidade
racial negra daqueles anos encontrou no candomblé uma “rica fonte de referentes
culturais e de ícones dignificados, condizentes com a unidade necessária para atin-
gir os objetivos políticos de poder e igualdade social” (PARÉS, 2006, p.325).
Precisamente, representações dos religiosos afro-baianos ocuparam determi-
nada centralidade na modulação da reafricanização de Salvador naqueles anos.
No que se refere especificamente ao candomblé “jeje-nagô”, ele foi de certa ma-
neira escolhido e retratado como o depositário da ancestralidade, o que remetia
diretamente à África. De outro modo, ou talvez por isso mesmo, também foi visto
por muitos jovens negros como uma fonte primordial para as modernas identida-
des afrodescendentes (PINHO, 2010). Na Bahia, como constatou Jocélio Teles dos
Santos, se o candomblé não era reificado “como a religião inserida numa política
de combate à discriminação racial”, isso não impedia que jovens militantes negros
enxergassem a África, a história e a cultura negra na religião (SANTOS, 2005, p.165-
66), como a experiência do bloco afro Ilê Aiyê bem demonstra18.
A modernização da cidade também gerou impactos na geografia dos templos
religiosos afro-brasileiros localizados na capital baiana. O novo traçado viário atin-
giu o mundo que os religiosos criaram em áreas até então públicas, foreiras ou,
mesmo quando privadas, sem muito interesse econômico para seus proprietários
até aquele momento. Muitos terreiros foram deslocados para ceder espaço ao
concreto e ao asfalto. Segundo matéria publicada no jornal Diário de Notícias19 vá-
rios templos afro-baianos estavam localizados nas encostas que formavam os vales,
principalmente no Vale do Bonocô:

Aí existiam cerca de sessenta casas de candomblé, dez destas


concentradas num raio de 300 metros, entre a baixa da rua Da-
niel Lisboa e o sopé do antigo Brongo, denominado, atualmente,
“Subida da Sanave”. Cerca de 100 árvores sagradas foram sacri-
ficadas, restando, apenas, a árvore de Lôco (...).20

É difícil não assinalar a ironia do articulista quanto a modernização da capital


baiana. Evidente que a “Subida da Sanave” como novo topônimo em oposição ao

17 A fundação do Ilê Aiyê também explicita intersecções históricas entre classe, raça e religio-
sidade em Salvador. O avô de José Carlos dos Santos (um dos fundadores do bloco, mais conhecido
como Vovô do Ilê) foi estivador e participante do bloco negro de carnaval dos anos quarenta “Africano
Ideal”. A mãe de Vovô é a Ialorixá Hilda Jitolu (1923-2009), distinguida por ter dado permissão e apoio
a iniciativa de criação do bloco desde o início, além de ter cedido o espaço do terreiro para as ativida-
des que antecediam o desfile. Para a história do Ilê Aiyê ver (PINHO, 2010).
18 Outras experiências políticas movimentavam a identidade negra pelo Brasil naqueles anos.
Se levarmos em conta apenas o início dos anos setenta a imprensa negra estava ativa no eixo São
Paulo-Rio de Janeiro, bem como o Centro de Cultura e Arte Negra (CECAN) era muito atuante na
capital paulista, articulando cultura e política (DOMINGUES, 2007).
19 Jornal Diário de Notícias, 02 de abril de 1977.
20 Jornal Diário de Notícias, 02 de abril de 1977.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 581


Artes, memória e espaços
tradicional “Brongo” aparecia como um ícone da cidade moderna21. Alguns anos an-
tes uma reportagem do mesmo jornal veiculou o dramático caso de “Mãe Odeci”,
ialorixá com vinte e oito anos de iniciação à época e filha de santo do babalorixá
Paulo do Brongo. Ela morava na região do Bonocô, vendia acarajé no Acupe de
Brotas e ficou sem moradia, tendo que alugar uma casa naquela mesma localida-
de. Com dificuldades para cumprir os pagamentos se viu despejada, indo morar na
casa de seu pai de santo, acompanhada de quatro filhos e nove netos. A sacerdotisa
contou com o afeto e a solidariedade da sua comunidade religiosa para enfrentar a
dura experiência de ficar sem moradia. Contudo, a ialorixá não atribuía a sua des-
ventura às transformações pelas quais a cidade havia passado nos últimos anos,
porém, afetada pelas circunstâncias explicou de outro modo: “a proprietária da
casa me expulsou de casa e pouco tempo depois morreu atropelada, embora eu
nada tenha feito para isso, nem mesmo rogado praga22. É que a “reforma urba-
na” promovida a partir de 1968 (Lei 2.181/68) produziu efeitos importantes que,
combinada com as intervenções viárias, “deu a Salvador o acabamento de cidade
capitalista que ainda não possuía” (DANTAS NETO, 2006, p.321), incluindo entre
esses impactos uma inclemente especulação imobiliária.
Embora lançasse mão da cultura religiosa como forma de interpretar e resistir
às adversidades, Mãe Odeci aparece nas franjas desse debate público mais amplo,
sofrendo os efeitos da modernização da cidade. Por outro lado, Mãe Gamo23 tam-
bém se valeu de aspectos da cultura religiosa para enfrentar esse processo: “Orun-
gan, não nos tire as árvores. Nem a água. Como vamos poder cuidar de nossos pe-
jis”24. A sacerdotisa denunciou o corte das árvores sagradas da cidade sem nenhum
cuidado ritual: “Só quem sabe o que tem de fazer é que pode dar início ao corte,
do contrário pode haver consequências sérias” e expressou contrariedade com a
especulação imobiliária que causava aflição aos terreiros de modo geral e a sua
casa em particular, segundo a reportagem:

O Bogum, por exemplo, está com sua árvore de Azan-a-odô25


espremida entre dois paredões, porque o proprietário da área
(que é rendeira), passou a especular em torno de sua valoriza-
ção, com os serviços públicos ali realizados. Agora mesmo, teve

21 José Carlos Gomes dos Anjos aborda conflitos semelhantes em Porto Alegre – RS por meio
do conceito de desterritorialização. Assim o antropólogo explica: “Por desterritorialização entendo
aqui o fenômeno no qual dois territórios se sobrepõem no tempo. Um se torna a imagem virtual do
outro (...). A imagem-passado e a imagem-futuro coexistem num presente que as torna indiscerníveis:
o presente pertence à imagem-passado ou à imagem-futuro?” (ANJOS, 2006, p.33).
22 Jornal Diário de Notícias, 11 de outubro de 1974.
23 Ver sobre a liderança de Gamo Lokosì no Terreiro do Bogum (PARÉS, 2006).
24 Jornal Diário de Notícias, 02 de abril de 1977; Anteriormente, Mãe Runhó, antecessora de
Mãe Gamo à frente da comunidade religiosa do Bogum, já havia levado à imprensa suas preocupa-
ções com as intervenções urbanas e a crescente especulação imobiliária: “Ruinhó quer mato e rio
para ‘voduns’ do Bogum”, Jornal A Tarde, 05 de dezembro de 1975.
25 Em 1978, a árvore de Azonodo “caiu”, sobre a importância desse santuário natural para o
ritual jeje, ver (PARÉS, 2006).

582 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
de pagar perto de dez mil cruzeiros para efeito de atualização
do foro, a fim de que mais problemas não viessem ao terreiro.26

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A modernização de Salvador gerou muitos conflitos: intervenções em favelas,
ambulantes removidos, terreiros prejudicados ou deslocados, entre outros. As re-
moções aconteceram em várias metrópoles, seguindo a lógica desenvolvimentista
do regime militar. Na defesa do mundo negro, os religiosos afro-baianos acionaram
seus templos naturais (as árvores sagradas) também como forma de inserção no
debate público sobre os rumos da cidade. Dessa maneira, elas foram posicionadas
como “um patrimônio de grande significado para os descendentes dos africanos,
e mesmo para todas aquelas pessoas ligadas ao candomblé”. Antes da reforma
viária, o cenário urbano de Salvador dispunha de mais de “duas centenas” de ga-
meleiras “dominando a paisagem dos morros”27. Através dos altares naturais, os re-
ligiosos afro-baianos disputaram de forma material e simbólica os rumos da nova
metrópole.
As reivindicações dos religiosos não conseguiram impedir o avanço dos interes-
ses do capital e do Estado autoritário (nem parece ter sido esse o jogo), mas eles
se posicionaram, ofereceram visibilidade à seus interesses e à sua atitude política
crítica, expuseram valores diferentes, tiveram suas vozes repercutidas e reconhe-
cidas e, embora não obtivessem completo êxito, embaraçaram os poderes públicos
e impediram que importantes altares naturais tombassem.
Além da inscrição no debate público sobre o passado, o presente e os desti-
nos da cidade, é possível notar a tentativa de participação efetiva na dinâmica das
mudanças em curso. As reportagens são emblemáticas de um momento político
diferente para os religiosos afro-baianos. Além de haver a possibilidade de ouvir as
vozes das sacerdotisas e de outros membros das comunidades religiosas, as ma-
térias jornalísticas apenas parecem possíveis devido as novas circunstâncias nas
quais a religiosidade negra se posicionava, incluindo aí a histórica conquista da
liberdade religiosa.

REFERÊNCIAS

ANJOS, José Carlos Gomes. No território da linha cruzada: a cosmopolítica afro-brasileira.


Porto Alegre: Editora da UFRGS; Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006.

BACELAR, Jeferson. Mário Gusmão: um príncipe negro na terra dos dragões da maldade.
Rio de Janeiro: Editora Pallas, 2006.

26 Jornal Diário de Notícias, 02 de abril de 1977.


27 Jornal A Tarde, 31 de janeiro de 1980.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 583


Artes, memória e espaços
BACELAR, Jeferson. A Hierarquia das Raças: Negros e Brancos em Salvador. Rio de Janeiro:
Editora Pallas, 2001.

DANTAS NETO, Paulo Fábio. Tradição, autocracia e carisma: a política de Antonio Carlos
Magalhães na modernização da Bahia (1954-1974). Belo Horizonte: Editora da UFMG; Rio
de Janeiro: IUPERJ, 2006.

PARES, Luis Nicolau. A formação do Candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia.
Campinas: Editora da UNICAMP, 2006.

PARÉS, Luis Nicolau. O processo de nagoização no Candomblé baiano. In: BELLINI, Lígia,
SOUZA, Evergton Sales & SAMPAIO, Gabriela Reis (orgs.). Formas de crer: Ensaios de histó-
ria religiosa do mundo luso-afro-brasileiro, séculos XIV-XXI. Salvador: EDUFBA / Corrupio,
2006.

PINHO, Osmundo Santos de Araújo. O mundo negro: hermenêutica crítica da reafricaniza-


ção em Salvador. Curitiba: Editora Progressiva, 2010.

SANSI, Roger. Fetishes and Monuments: Afro-Brazilian Art and Culture in the Twentieth
Century. New York, Oxford: Berghahn Books, 2010.

SANTOS, Jocélio Teles. O poder da cultura e a cultura no poder: A disputa simbólica da he-
rança cultural negra no Brasil. Salvador: EDUFBA, 2005.

SERRA, Ordep. Águas do rei. Rio de Janeiro: Editora Vozes / Koinonia, 1995.

AUTORIA
Edmar Ferreira Santos
Professor da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), doutorando em Estudos
Étnicos e Africanos pelo Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO) da Universidade
Federal da Bahia (UFBA).
E-mail: estudosafricanos.edu@gmail.com
ORCID: 0000-0003-3059-7023
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3760561084905675

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Artes, memória e espaços
ST 35
MODOS DE VER E
NARRAR: histórias
e memórias negras
no Brasil e na
diáspora africana
HISTÓRIAS AFRO-CURITIBANAS:
RELATOS DE EFETIVAÇÃO DA LEI 10639/03
NA REDE MUNICIPAL DE ENSINO DE CURITIBA/PR

Valéria Pereira da Silva

Aprender com mulheres negras


é reverenciar o passado,
re(existir) hoje e torna-se esperança
para o futuro.

INTRODUÇÃO
A 500 anos não existia o povo brasileiro, o que chamamos de Brasil foi construí-
do sobre o apagamento dos povos nativos, detentores de hábitos, línguas, diversas
etnias que foram reduzidas a um só nome “índios”. A história desse imenso país,
foi descrita a partir do olhar dos colonizadores, que num ato de condescendência
trouxeram supostamente a civilização e modernidade. Os colonizadores vieram
“salvar” da barbárie, os povos primitivos.
Nesse encontro de europeus e não europeus e posteriormente africanos, os
colonizadores europeus forjaram sua identidade de superioridade, de povos civili-
zados e desenvolvidos. Tendo sua cultura transmitida como única verdade, pelos
sistemas ideológicos, a religião, o estado e a ciência.
A percepção da diferença foi categorizada por superioridade e inferioridade. A
ideia de acumular bens implementada pelos colonizadores divide homem e natu-
reza, contrariando os princípios de bem viver que reconhece a igualdade de direito
de todos (as) a dignidade à subsistência e a um ambiente equilibrado. Nesse con-
texto não havia lugar para grupos étnicos diferentes, e a garantia da supremacia
branca como dominante foi constituída.
Nesse processo violento e arbitrário, os povos não europeus foram desconsi-
derados no seu jeito de ser e viver, na tentativa de torná-los semi humanos, infe-
riorizando, convertendo culturas de indígenas e africanos em subculturas. Inclusi-
ve impondo uma nova língua. Maria Joaquina Silva(2003), ou dona Fiota- mulher,
quilombola, viveu em Tabatinga -MG, disse: “Para conhecermos uma história não
precisamos da letra (escrita), mas sim da palavra (falada)” . E disse essas palavras
em Gira de Tabatinga, uma língua afro-brasileira que costumava ser falada nas sen-
zalas de fazendas do interior de Minas Gerais. Essa era uma das maneiras que os
escravizados da região tinham de se comunicar sem que os senhores de engenho
pudessem entender. Pensar uma forma de comunicar para resistir e sobreviver e

586 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
foi assim que suas narrativas chegaram até nós, histórias de resistência e existên-
cia.
Para reconhecer o processo de formação humana, os diferentes saberes, vivên-
cias, aprendizagens sociais, culturais , pedagógicas e políticas da população negra
sobre si mesma e sobre o seu lugar de direito na sociedade, e necessário ouvir suas
vozes. Essa oitiva nos possibilita, talvez, oferecer uma resposta do subalternizado
perante a modernidade eurocêntrica.
Esse trabalho visa apresentar uma das ações da Secretaria Municipal da Edu-
cação de Curitiba/PR, por meio da Coordenadoria de Equidade, Família e Rede de
Proteção (CEFAR), a qual tem como objetivo efetivar políticas e práticas pedagógicas
de prevenção, promoção, proteção, defesa e reparação de direitos humanos. Direi-
tos que, embora estejam postos na constituição federal (1988), historicamente não
são para todas/os. A ação ocorreu no ano de 2019 com a de Assessoria de direitos
humanos - Promoção da Igualdade Racial com o objetivo de promover a valoriza-
ção e reconhecimento da presença e protagonismo da população negra em Curitiba.
Assim, todas as unidades da rede municipal de ensino foram convidadas a compilar
narrativas e registros de contos, lendas e memórias afro-curitibanas de profissio-
nais, da comunidade, de pesquisadoras/es sobre relações raciais, integrantes do
movimento negro, dentre outros.
Utilizamos a metodologia de coleta de narrativas, pois consideramos que es-
tas permitem reunir histórias que possibilitam a compreensão de um fato, de um
processo. Nos baseamos em trabalhos de Aparecida de Jesus Ferreira que aborda
narrativas autobiográficas no letramento racial crítico. Para que possamos compre-
endermos como seres territorializados, pertencentes a um grupo e ou comunidade
marcados (as), por uma política de conhecimento racializada, classista e heteros-
sexista que nos invade com suas amarras extraindo a possibilidade de nos situar-
mos em saberes localizados, que são comprometidos com a dignidade humana.
Essa escolha metodológica explicita um conjunto de valores, de posições teó-
ricas, políticas, que necessitam de coragem para enfrentar uma sociedade estru-
turalmente estabelecida nos pilares de raça, classe e gênero, poderes instituídos
pelo estado, ciência e igreja a partir da escravização no Brasil, mas se reinventa as
estruturas para continuar a servir aos interesses materias e simbólicos de determi-
nados grupos em detrimento de outros.
Foram recebidas 63 histórias coletadas de forma online, os relatos apresentam
lições de: coragem, persistência, resiliência, bem como dificuldades no que se refe-
re à ocupação dos espaços públicos e privados, às profissões, dores e a insistência
pela vida em plenitude.
Minha experiência de mulher negra, corrobora com o sentimento de que a in-
visibilidade imposta a população negra limitando e delimitando suas existências
precisam ser rompidas por meio da construção de uma sociedade mais equânime.
Isso é possível quando a tessitura se dá de e a partir das pessoas que sofreram/
sofrem uma histórica submissão e subalternização, trata-se da reexistência e da

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 587


Artes, memória e espaços
própria vida. Essas existências desestabilizam, pois causam incômodos e desafiam
a compreensão hegemônica.

PESQUISAS AUTOBIOGRÁFICAS: UM OLHAR PARA OS (AS)


SUJEITOS (AS)
Contar histórias é uma atividade praticada por muita gente: pais, filhos, professo-
res, amigos, namorados, avós... Enfim, todos contam-escrevem ou ouvem-leem...
Narrar é uma manifestação que acompanha o homem desde sua origem (Gancho,
1991). O exercício autobiográfico procura dar sentido ao nossos percursos, experi-
ências, a vida, pode auxiliar na inscrição de processos de aprendizagem na escola e
fora dela . Sentidos transformam-se em cultura. BASTOS (2014), “define narrativa,
pré-teoricamente, como o discurso construído na ação de se contar histórias em
contextos cotidianos ou institucionais, em situações ditas espontâneas ou em situa-
ção de entrevista para pesquisa social” (Bastos and Biar, 2014, p.99).
Podemos observar que as narrativas estão presentes no dia a dia como ins-
trumento para a coleta de informações , como princípio metodológico que guia
muitos trabalhos de investigação, buscando compreender a experiência humana.
As narrativas autobiográficas, tem as funções de autorregulação e formativa, como
estratégia para potencializar a formação e a autoformação de professores, tem
sido uma contribuição as professoras(es) uma vez que entrar em contato com a
própria singularidade, mergulhar na interioridade do conhecimento de si por ser
uma atividade formadora, coloca os sujeitos numa situação de aprendente sendo
possível analisar a formação pessoal e profissional, onde o sujeito se torna autor.
“Define-se, pois, narrativa de formação como um processo que exige que o sujeito
se envolva com os fatos da vida e reflita sobre eles” (BARREIRO and CASTRO, 2017,
p.35).
As pesquisas autobiográficas do tipo história de vida, são potentes ferramentas
capazes de “influenciar no mundo da identidade das pessoas, proporcionando-lhes
autoria, em um processo de inter-relação, identificação e reconstrução pessoal e
cultural”. Conforme afirma Barreiro e Castro (2017, p.23).
Narrar sua própria história permite ao sujeito(a) o encontro com as subjetivi-
dades, questionamentos, descortinando cenários individuais e coletivos, ressigni-
ficar vivencias produzindo respostas para os anseios individuais e sociais. Existe
uma profunda preocupação com a exclusão, negação, subalternidade ontológica e
epistêmico-cognitiva dos grupos e sujeitos racializados com as práticas de desuma-
nização e de subordinação, de conhecimentos que privilegiam alguns sobre outros
“naturalizando as diferenças e ocultando as desigualdades. Há uma preocupação
também manifesta com seres de resistência, insurgência e oposição, os que persis-
tem, apesar da desumanização e subordinação.
Gradativamente, a utilização de estudos de caso e história de vida, em pesqui-
sas qualitativas estão numa crescente, por considerarem indivíduos e seus grupos

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Artes, memória e espaços
sociais, “os quais descrevem quais processos estão ocorrendo e detalha diferen-
ças no caráter desses processos ao longo do tempo. (BREAKWEL, 2010, p.39). O
que reivindicamos para as narrativas são funções comuns à experiência cotidiana
e, mais complexas quando relacionadas à construção de sociabilidade, à conforma-
ção da experiência em padrões públicos de aceitação e à construção de um sentido
de quem somos e do mundo que nos cerca, ao adentrar essa zona de tensiona-
mento sobre relações raciais. Com desejo de imergir nas relações étnico- raciais na
sociedade curitibana, optou-se por enveredar por narrativas autobiográficas, Gatti
(2002), considera que

enveredar por novos caminhos considerados mais ajustados às


necessidades de uma compreensão direcionada do real, não
quer dizer apenas utilizar outros tipos de instrumentos, mas sim
transforma atitudes e perspectivas cognoscentes, sem abando-
nar o eixo da consistência explicativa (GATTI, 2002, p.6)

Para compreender esse cenário nos apoiamos Ferreira, (2015) que afirma que
através da Teoria Racial Crítica -TRC pode-se utilizar as narrativas e histórias para
entender as próprias experiências e de seus pares e como estas experiências po-
dem contribuir para o desvelar do funcionamento da sociedade e formação das
identidades, dessa forma,

[...] narrativa e contranarrativa deveria ser capturada pelo pes-


quisador, experimentada pelos participantes da pesquisa, e dito
por pessoas negras. Os avanços da Teoria Racial Crítica que cen-
tralizam raça na narrativa e contranarrativa para o conhecer e
para o conhecido. Em outras palavras, raça e racismo são co-
locados no centro da análise através da narrativa e da contra-
narrativa na Teoria Racial Crítica. (MILNER; HOWARD, 2013, apud
FERREIRA, 2015, p. 132)

A TRC se ancora em cinco princípios fundamentais a saber:

1.A intercentricidade de raça e racismo: premissa de que raça


e racismo são endêmicos e permanentes na sociedade dos
EUA...e que o racismo faz intersecção com as formas de subor-
dinação com base em gênero, classe, sexualidade, linguagem,
cultura e status de imigrante 2. O desafio à ideologia dominante:
essa teoria desafia reivindicações de objetividade, neutralidade,
raça, meritocracia, não ver cor e igualdade de oportunidades,
alegando que essas posturas mascaram a divisão e problemas
associados com poder e privilegio dos grupos dominantes 3. O
compromisso com a justiça social: a agenda de pesquisa da jus-
tiça social e racial da TRC expões a “ convergência de interesse”
dos ganhos de direitos civis, como o acesso ao ensino superior
e trabalhos para a eliminação do racismo, sexismo e pobreza
4. A perspectiva interdisciplinar: TRC se estende para além das
fronteiras disciplinares para analisar raça e racismo no contexto

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 589


Artes, memória e espaços
de outros domínios, tais como a sociologia, estudos da mulher,
estudos étnicos, história e psicologia. A utilidade da perspectiva
interdisciplinar permite uma análise mais abrangente e multifa-
cetada de como a raça, racismo e (des)igualdade racial se mani-
festam. 5. A centralidade do conhecimento experimental: a TRC
reconhece o conhecimento empírico das pessoas de cor como
credível, altamente valioso e imprescindível para a compreen-
são, a análise e o ensino sobre subordinação racial em todas as
suas facetas. (CARRASCO, 1996). A TRC solicita, explicitamen-
te, analisa e escuta as experiências vividas das pessoas de cor
através de métodos contranarrativos “counterstorytelling”, tais
como histórias de família, parábolas, depoimentos e crônicas[...]
(FERREIRA, 2015, p 29)

Esses princípios foram atualizados por Solorzano (1997), e tem sido muito uti-
lizados nos últimos 20 nos no campo educacional, primeiramente difundida nos
Estados Unidos, recentemente Europa e aqui no Brasil tem aumentado o número
de pesquisadores/as em torno de estudos raciais críticos na área da educação, da
sociologia e da antropologia tais como Guimarães(1999) Cavalleiro (2001) Gomes
1995 e 2005) entre outros.
Ferreira, (2014) afirma que entre as cinco premissas apresentadas acima,
a mais utilizada nos estudos em educação, a de número 5, a “centralidade
do conhecimento experiencial”, pois é esse princípio que traz as narrativas, as
contranarrativas e as autobiografias como importantes para analisar as experiên-
cias vividas sobre raça e racismo (FERREIRA 2014, p. 253).
A Teoria Racial Crítica também aborda a branquitude, para tratar as relações
raciais, “[...] branquitude como lugar de privilégio racial, econômico e político,
no qual a racialidade, não nomeada como tal, carregada de valores, de experiên-
cias, de identificações afetivas, acaba por definir a sociedade.”(LABORNE, 2014,
p.152 apud FERREIRA, 2015, p.32).
Como veremos na próxima seção as narrativas coletas são desabafos, gritos de
apelo a existência, renovação de esperanças que se entrelaçam com as verdades
que a caminhada revela, na certeza que existem muitas verdades que se colocam
a descobrir , investigar, pesquisar. Não há prática social, mais política que a prática
educativa, educação significa abrir as mentes, despertar e permitir o nascimento
da inteligência. A rebeldia é uma manifestação da práxis político pedagógica de
existência, para romper com as “amarras reais concretas de ordem econômica,
política social, ideológicas que condena homens e mulheres negras a desumaniza-
ção”. A esperança nesse contexto, se torna uma necessidade ontológica que surge
para enfrentar a raiva, os medos, as angustias e construir o amor como aparato
político, amor como ferramenta de libertação. Equipando os subalternizados para,
existirem em um mundo antinegro(a) regido pelo capitalismo, eurocêntrico, bran-
co, embranquecido e colonializado pelo poder, resistindo a desumanização, ao ra-
cismo e a racialização.

590 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
HISTÓRIAS AFRO-CURITIBANAS: O QUE REVELAM
Na primeira leitura foram identificados 52 narrativas, 10 contos, 1 entrevista.
Os textos foram numerados de ‘N. 01 a N. 66’. Tratamos então de categorizar as
narrativas para uma melhor compreensão da realidade. Foram analisados 37 tex-
tos, esses com autorização de uso. Entre esses, 35 narrativas que possuem riqueza
de detalhes demonstrando assim a veridicidade dos fatos apresentados. Vejamos
alguns exemplos “Com 13 anos retornou para Curitiba... Casou em 2012” (N. 06)
“... Uma criança negra, gorda, que ganhou uma bolsa para cursar o fundamental
em um colégio particular. (N. 66) “... Em uma noite muito fria, as três dormindo em
um sofá cama, para se aquecerem juntas, a filha ao tomar água, derrubou a sobra...
(N.64) “... Uma moça perguntou se eu era babá da minha irmã... minha irmã é bran-
ca e eu sou negra” (N. 55).
Observamos que entre as 35 narrativas analisadas 31 são escritas por mulheres,
sobre mulheres. “Meu nome é Zeni” (N. 28), “chamo-me Lindaci”(N. 27), “Rute
trabalhava...”(N. 24) Temos 1 narrativa de autoria masculina cuja vida retratada é
de sua mãe, Dona Tina. (N.52) “Seria uma história comum não fosse o fato dela ser
uma mulher com M maiúsculo como ela mesma se descrevia”. As crianças também
participaram dessa escrita, “Sou uma menina muito sorridente e esperta”(N.12) e
temos a vida de 2 homens relatadas , senso um deles Alexandre, “não desistiu dos
seus sonhos, buscou em cada dificuldade uma oportunidade” (N.06)
Muitas dessas mulheres relatam o sonho de ser professoras desde a infância,
influenciadas por suas mães que sabiam que a educação pode conduzir a emanci-
pação, “Ela nos manteve estudando e dizia que somente com o estudo poderíamos
ter uma chance de melhorar nossa situação de vida” ( N.53)

Fiz o ensino técnico em administração, foram bons anos, quan-


do estava no segundo ano resolvi que queria arrumar outro tipo
de emprego, o curso foi abrindo minha mente em relação as leis
trabalhistas e ao que eu queria para meu futuro, os estudos fa-
zem isso com a gente... arrumei outro emprego... trabalhava na
escola servindo o lanche, lembra que falei lá no início do meu
sonho de ser professora... voltei a estudar, pedagogia EAD. Con-
segui voltar e terminar no mesmo no que prestei concurso para
docência I, ‘meu sonho de ser professora lembra’... assumi como
professora em uma escola no bairro CIC (N.23)

Em algumas narrativas podemos perceber o ciclo de 2 gerações, mãe e filha ini-


ciam a sua vida profissional como empregadas domesticas e ou babá, sendo que as
filhas rompem com esse ciclo e tornam-se professoras, essa trajetória de torna-se
professora para as mulheres negras não é uma caminhada fácil, “em 2002 voltei
a trabalhar de diarista, até que em 2005 encontrei uma amiga que me incentivou
muito a voltar estudar e a fazer pedagogia...(N.28) Na narrativa (N.27) observamos
que uma professora não foi bem acolhida na comunidade escolar: “não vou deixar

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 591


Artes, memória e espaços
minha filha com essa negrinha” as crianças reproduziam o racismo: “professora
para ficar branca você precisa tomar banho no leite”. Porque você e assim? A pro-
fessora passa a trabalhar com a diversidade de flores para chegar à diversidade de
pessoas e, conquista cada uma das crianças.
Algumas dessas guerreiras, enfrentaram o racismo em sua infância “ achei que
o preconceito estava só na escola, depois que eu fosse embora acabaria, mas não
foi bem assim!” Nessa análise percebemos que na escola acontece práticas de ra-
cismo, discriminação, invisibilidade e tantas outras violências, “durante toda minha
vida escolar posso afirmar que senti o racismo” (N.22) mas é nesse espaço também
que aprendemos a enfrentar tais situações conforme trechos das narrativas “apren-
dendo sobre a educação ficamos mais armadas com esse assunto” (N.26) “Gostava
muito de estudar...prestei concurso público e entrei para a área de educação, in-
vesti novamente em formações específicas realizando até o sonho de me formar
em uma faculdade colocando em prática o aprendizado” (N.59).
As vozes que ecoam de cada linha escrita, denunciam, choram, cantam e se
alegram, apontam caminhos, compartilham vivencias conectando-se ao presente
e aos poucos se encontram e formam uma teia, uma rede onde a narrativa indivi-
dual se torna coletiva, novas narrativas e interpretações surgem rompendo com o
silencio histórico, imposto aos negros e negras filhos e filhas da diáspora trazendo
as palavras ancestrais de resistência, persistência e (re)existência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Consideramos, como positivo o resultado da ação considerando que esta pro-
porcionou alguns desdobramentos tais como: uma performance na I Jornada curi-
tibana – “Equidade, família e rede de proteção II Fórum Transformando Realidades:
Equidade na educação, II Fórum da Rede de Proteção”; um encontro de autoras/
es negras/os nas dependências da Secretaria Municipal da Educação de Curitiba,
nessa ocasião foram compartilhados aspectos sobre as suas vivências na elabo-
ração das narrativas; socializado no “I Seminário do Erê-yá – desafios e perspecti-
vas para uma educação antirracista”. A coletânea das narrativas afro-curitibanas
também provocou reflexões na equipe proponente, durante as rodas de conversa
e grupos de estudo sobre as experiências cotidianas de racismo, discriminação e
preconceito que a população negra enfrentou e continua enfrentando. A partir
da experiência de organização das histórias afro-curitibanas foi possível promover
uma ação de enfretamento ao preconceito, discriminação, além do fortalecimento
e promoção de grupos historicamente silenciados.
Foram recebidos 63 textos, analisados 35 devido ao critério autorização para
uso da Secretaria Municipal da Educação de Curitiba. São histórias reais de pessoas
reais, que driblam o racismo no dia a dia. São ensinamentos, de pessoas que não
desistiram, um nobre legado.

592 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
Identificamos um espaço cronológico nas histórias Afro-curitibanas, entre 1934
e 2015 e, a movimentação da população negra no Brasil. Fica explicito que essa
população está sempre em busca de melhores condições de vida por isso dessa ca-
minhada as vezes dentro do próprio estado de origem e até mesmo interestadual.
O sonho de ter a casa própria ainda é um dos motivos de tantas idas e vindas.
Foi possível constatar que são histórias, vidas permeadas pela existência do ra-
cismo; não sendo muitas vezes assim nomeado. O que releva a dificuldade social
de afirmar a existência do racismo o que está intimamente ligado a construção do
mito da democracia racial. As narrativas apontam a cor da pele como dificuldade,
mas não trazem a palavra racismo. As palavras preconceitos e discriminação são
mais usuais.
Histórias afro-curitibanas apontam para a transformação de sujeitos vítimas da
opressão em atores políticos que protagonizam a resistência e a luta.

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reflexivas.ponta Grossa: Estúdio Texto, 2015.

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-preservacao-de-culturas/ Acesso em 19/10/2020

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 593


Artes, memória e espaços
AUTORIA
Valéria Pereira da Silva
E-mail: valeriasilvapedagoga@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9635-190X
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5825272518254718

594 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
CIDADES DENTRO DA CIDADE: REFLEXÕES
SOBRE HISTÓRIA, DIREITOS HUMANOS,
MEMÓRIAS E IDENTIDADES – UMA AÇÃO DO
PIBID NA ESCOLA

Elizabeth de Jesus da Silva

INTRODUÇÃO
Cidades dentro da Cidade: Memória e Identidades na Construção dos Direi-
tos Humanos intitula esse artigo e um projeto desenvolvido a partir do Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) - História da Universidade
Federal da Bahia (UFBA) no Colégio Estadual Odorico Tavares. A ideia do referi-
do projeto foi resultado de discussão da proposta Institucional do Programa, das
observações na referida escola e pensando nas habilidades especificas de cada um
dos/as bolsistas envolvidos/as, supervisora e coordenadora do Programa. Avalia-
mos ser esse tema agregador, ao mesmo tempo em que resumia a realidade do
citado Colégio. Nesse sentindo, é importante identificarmos as particularidades
dessa Unidade Escolar.
Existe um paradoxo em relação ao espaço social onde a escola está centraliza-
da, trata-se de um bairro de classe média alta da cidade de Salvador que abriga
estudantes de toda a cidade e região metropolitana. A partir do advento desse
Colégio, nesse espaço geográfico, socialmente favorecido com prédios luxuosos,
de grande envergadura estrutural e arborizada, passam a conviver, digamos que
amistosamente, os moradores do lugar, com alto padrão social, e os/as jovens es-
tudantes originários de diferentes e distantes bairros da Capital baiana e região
metropolitana. Não se tratava apenas de uma distância espacial, mas, também, e
fundamentalmente, social e cultural. O público escolar s diferenciava da ambiência
social em que a escola estava imersa.
O Colégio Odorico Tavares foi fundado com o princípio que o caracterizava como
“centro de excelência”, criado para atender filhos e filhas da classe média baiana,
oriundos/as de escolas da rede particular de ensino. No entanto, fugindo da sua
origem de criação, a escola passou agregar estudantes da periferia e subúrbios da
cidade, formando assim uma complexa composição. Os enfrentamentos sociocul-
turais decorrente a essas especificidades do local socialmente privilegiado no qual
a escola está inserida, bem como sua composição estudantil e todo o seu processo
de resistência em ficar naquele lugar pode ser relacionada a acontecimentos his-
tóricos pertinentes aos processos de resistências relacionados aos corpos negros
periféricos que adentram o Corredor da Vitória (nome do bairro que a escola está
inserida).

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 595


Artes, memória e espaços
O panorama acima descrito intenciona auxiliar a compreensão do contexto no
qual recursos de aprendizagem utilizados com objetivo de evidenciar povos não
visíveis pela história ensinada tornou-se uma preposição para esse texto. Desse
modo, apresentados como possibilidades, entre outras, de conexão entre a acade-
mia e a escola, entre a ciência e o trabalho docente.
É nesta perspectiva que este trabalho se coloca, na direção da visibilidade e
descoberta de possibilidades. Isto implica em entender que a proposta aqui apre-
sentada está relacionada ao contexto de onde emergiu a ideia em que está basea-
da. Assim como estudantes da escola Odorico Tavares e de tantos outros colégios
necessitam de visibilidade e direito a uma educação que estimule conquistas, a
necessidade de evidenciar a história escondidas e negadas.
Entendendo a contradição exposta acima, a temática apresentada nesse artigo
“Cidades dentro da Cidade” se justifica como sendo a escola uma “Cidade” que en-
globa outra “Cidades”, ou seja, a compreensão de cidades têm neste contexto uma
forma ampliada, pois conceitualmente ela se direciona a concepção de diferentes
culturas, histórias, identidades, significados de direitos, diferentes memórias dos
que compõem essa comunidade escolar e que, ao mesmo tempo, se encontram
em uma unidade que pode convergir ou divergir dentro do mesmo espaço, o esco-
lar. A sugestão do projeto que é apresentado nesse artigo versa sobre unidade e
diversidade presentes na história dessas pessoas dentro de uma perspectiva cole-
tiva e de amplitude de conhecimento, correlacionando as temáticas da história e
memória com a realidade dos direitos humanos.

HISTÓRIA, MEMÓRIA E DIREITOS HUMANOS


O estudo da história é fundamental para a preservação da memória e que uma
memória preservada se torna elemento importante para a defesa dos direitos hu-
manos. Isso significa que a necessidade de trabalhar a noção de direitos humanos
implica na atitude de salvaguardar a memória tanto das agressões a esses direi-
tos como das conquistas políticas relacionadas aos mesmos. A problemática seria
buscar formas de como o estudo da história auxilia na preservação da memória
relacionada aos direitos humanos. Partindo desse postulado, a atividade pedagó-
gica realizada no espaço escolar criou ações no sentido de trabalhar as questões
acima expostas a partir da realidade social, cultural e identitária de discentes. Nes-
se sentido, o tratamento das temáticas arroladas toma um direcionamento no am-
biente escolar destacando o protagonismo dos estudantes, vistos como sujeitos
históricos. Desse modo, se postula a seguinte formulação: trabalhar com histórias,
memórias e direitos humanos tendo em conta a situação de vida dos/as jovens es-
tudantes. Nessa perspectiva, a reestruturação das ideias foi pensada na realidade
de vida dos/as estudantes como “minhas histórias”, “minhas memórias” e “nossos
direitos humanos”. Trata-se, portanto, de reelaborar as histórias e memórias de
estudantes e trabalhá-las na perspectiva de reivindicações dos direitos humanos.

596 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
Direitos humanos imbricados com a realidade de vida dos estudantes, buscando
suas histórias de vida e com isso o resgate de memórias sociais e culturais viven-
ciadas.
Nessa perspectiva, pensamos na possibilidade de trabalhar histórias de vida dos
estudantes em uma dimensão coletiva. Histórias e memórias de vida coletivas di-
zem respeito especialmente ao local de moradia no qual se processa as relações
sociais e culturais desses/as jovens. Trata-se de pensar em construir um trabalho
das histórias de bairros onde vivem esses/as jovens a partir das suas experiências
de vida. Os bairros aqui são vistos como entidades com autonomia relativa em
relação a estrutura da cidade e ao mesmo tempo como realidades sócio espaciais
integradas a realidade geral dessa mesma cidade.
Os bairros são, portanto, “Cidades dentro da Cidade”. Assim sendo, as realida-
des de vida dos estudantes estão simultaneamente relacionadas ao contexto geral
da cidade como da especificidade de seus bairros. As histórias e memórias desses
estudantes se processam substancialmente nos bairros. Histórias de vida imbrica-
das na história do bairro, memória vivenciada no bairro como um dos suportes da
memória de vida. Trata-se aqui de trazer a ideia da “História Local” expressa na
história da cidade e dos bairros. Essa história local necessita da memória para vir à
tona. O plano, por conseguinte, busca trabalhar as memórias dos bairros dos estu-
dantes como elemento de suas memórias de vida e com isso reconstruir a história
de vida associada à história do Bairro. Essa perspectiva implica em ter um estudo
antecipado da história da própria cidade como pano de fundo para a história dos
bairros.
Toda história precisa de um foco. No caso desse trabalho, que se fundamen-
ta em uma perspectiva de história local, o foco seria a problemática dos direitos
humanos. Ou seja, trabalhar com as memórias dos/as estudantes relacionadas à
questão dos direitos humanos. Buscar nas suas memórias e histórias de vida nos
bairros as situações nas quais estejam colocadas a realidade dos direitos humanos.
A partir disso, relacionar essas memórias locais dos direitos humanos com a histó-
ria da cidade na qual estão imbricadas.
A cidade simultaneamente produz e expressa uma identidade e, nesse âmbito,
os bairros produzem e expressam identidades dentro da identidade. Essa situação
identitária na cidade de Salvador está umbilicalmente relacionada a sua história e
conformação étnica. Trata-se de um espaço urbano marcadamente afrodescen-
dente. As histórias e memórias relacionadas aos direitos humanos não podem
deixar de levar em conta essa dimensão sócio, cultural e -histórica da cidade de
Salvador. Enfim, o plano se direciona para a questão dos direitos humanos em uma
realidade de jovens majoritariamente afrodescendentes. Nesse contexto, busca
memórias que levam a construção de uma história que coloque em questão a pro-
blemática das identidades.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 597


Artes, memória e espaços
DIREITOS HUMANOS E EDUCAÇÃO
DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

As questões relacionadas a identidade configuram primordiais quando se trata


de uma educação pautada nas relações étnico-raciais, portanto existe uma neces-
sidade latente de desenvolver estratégias pedagógicas que trabalhe com direitos
humanos, especialmente voltado para a educação das relações étnico-raciais nas
escolas públicas. O contexto pedagógico para a efetivação dessas discussões se re-
laciona à urgência de desenvolver práticas educacionais direcionadas à construção
de uma escola plural. Isso implica em uma integração de conhecimentos culturais
requerendo um olhar reflexivo, acima de tudo para percepção das diferenças. A
perspectiva educacional dos direitos humano deve estar associada à perspectiva
de estratégias pedagógicas de combate a discriminações que devem ser criadas
para superar a desigualdade de cunho social e étnico-racial nas escolas.
Compreende-se que as resoluções, pareceres e leis existentes nas últimas dé-
cadas da realidade brasileira abriram espaço para mudanças, todavia há muito a
ser feito, a principiar por uma educação que esteja pautada na busca por reconhe-
cimento das diversas culturas como elemento de garantia dos direitos humanos.
Esse raciocínio se fundamenta nas reflexões da historiadora Lynn Hunt que proble-
matiza o paradoxo dos direitos humanos em duas dimensões: a dimensão oficial
das declarações dos direitos humanos e a dimensão da realidade social no qual es-
sas declarações se inserem. Nesse sentindo, pensar formas de uma educação que
inclua todas as culturas, sem hierarquização se constitui em uma noção de direito
defendida por Hunt: “Os direitos humanos só puderam florescer quando as pesso-
as aprenderam a pensar nos outros como seus iguais, como seus semelhantes em
algum modo fundamental”. (2009, p. 58)
Uma educação voltada para criação de uma escola plural necessita trabalhar
com possibilidades pedagógicas apontando para a atuação num posicionamento
de respeito à diversidade cultural dos educandos. Isso implica em valorizar as ini-
ciativas que tomem o protagonismo estudantil como princípio. Do mesmo modo,
trabalhos educacionais inovadores devem ser regidos pela premissa dos/as estu-
dantes como sujeitos históricos. Nesse sentido, se coloca a noção de história local
associada à história de vida, ambas reveladas pelo recurso à memória oral e ima-
gética.

EDUCAÇÃO E MEMÓRIA
A perspectiva da memória adotada nesse texto se diferencia do clássico estudo
“Memória Coletiva” de Maurice Halbwachs no qual defende a ideia de que a his-
tória liquidou a memória. As reflexões desse autor se fundamentam na associação
da história com a escrita e a memória com a oralidade, no sentido de que a escrita

598 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
destruiu a oralidade. Esse texto, que explana um trabalho pedagógico realizado
com estudantes do ensino médio de escola pública, com recurso na memória, bus-
ca uma alternativa diferenciada do referido autor.
Nesse caso, recorremos a complementariedade entre memória e história elabo-
rada por Jaques Le Goff em “Memória e História”. Nesse estudo o autor busca se
contrapor as noções que separam radicalmente noções como passado e presente,
antigo e moderno, memória e história, escrita e oralidade. Segundo o referido au-
tor estes pares não são antitéticos e sim complementares, ainda que mantenham
suas identidades conceituais próprias. Isso significa que memória não é a mesma
coisa de história, mas elementos sociais que se interagem. Assim sendo a memória
reforça a construção do conhecimento histórico e a produção historiográfica con-
tribui significativamente na manutenção da memória. E, essencialmente, a memó-
ria se torna elemento básico da identidade, seja ela individual ou coletiva.
No mesmo sentido, a memória aqui trabalhada é a memória viva como é coloca-
da pelo historiador Pierre Nora no texto “Os lugares de memória”. Não é a memó-
ria congelada dos lugares de memória tais como os monumentos, mas a memória
das gentes. Nas palavras desse historiador:

A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse


sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da
lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deforma-
ções sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, sus-
cetível de longas latências e de repentinas revitalizações (NORA,
1993, p.9).

Nas perspectivas acima expostas que as ações pedagógicas se fizeram presen-


tes, sustentadas na unidade entre ciência e arte na qual possamos trabalhar pe-
dagogicamente com produção de conhecimento tanto pela pesquisa como pela
mediação artística. No caso atividades das artes musicais e audiovisuais como ins-
trumentos mediadores do conhecimento e na aprendizagem. Uma apropriação ne-
cessária desses recursos para resgatar a memória e a nossa cidadania como apon-
tado por José Ricardo Oriá Fernandes. Esse autor relaciona este objetivo ao direito
de todos à memória histórica: "O direito à memória como direito de cidadania in-
dica que todos devem ter acesso aos bens materiais e imateriais que representem
o seu passado, a sua tradição, enfim, a sua história" (FERNANDES, 2006, p.138).
Trata-se, portanto, de reelaborar as histórias e memórias dos/as estudantes e
trabalhá-las na perspectiva de reivindicações dos direitos humanos. Direitos hu-
manos imbricados com a realidade de vida dos/as estudantes, buscando suas his-
tórias de vida e com isso resgatar memórias sociais e culturais vivenciadas. Nessa
perspectiva, trabalhamos histórias de vida desses/as em uma dimensão coletiva.
Histórias e memórias de vida coletivas dizem respeito especialmente ao local de

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 599


Artes, memória e espaços
moradia no qual se processa as relações sociais e culturais desses/as jovens. Fala-
mos de um trabalho das histórias de bairros onde vivem a partir das suas experiên-
cias de vida. Os bairros aqui são vistos como entidades com autonomia relativa em
relação a estrutura da cidade e ao mesmo tempo como realidades sócio espaciais
integradas a realidade geral dessa mesma cidade. Os bairros são, portanto, “Cida-
des dentro da Cidade”. Assim sendo, as realidades de vida dos/as estudantes estão
simultaneamente relacionadas ao contexto geral da cidade como da especificidade
de seus bairros. A cidade simultaneamente produz e expressa uma identidade e,
nesse âmbito, os bairros produzem e expressam identidades dentro da identidade.
Essa situação identitária na cidade de Salvador está umbilicalmente relacionada
a sua história e confirmação étnica. É um espaço urbano marcadamente afrodes-
cendente. As histórias e memórias relacionadas aos direitos humanos não podem
deixar de levar em conta essa dimensão sócio, cultural, racial e histórica da cidade
de Salvador. Desta maneira, a utilização de recursos artísticos foram fundamentais
para compreensão da memória, história, cidadania e identidade.
Dentre as propostas de mediação utilizamos o cinema como metodologia cujo
objetivo foi aproximar os conteúdos escolares de uma visão mais ampla de mundo.
As produções audiovisuais costumam promover debates e comparações com o que
foi dito em sala de aula, portanto é um facilitador na compreensão de temáticas
que potencialmente se apresentam como complicadas. Além de incitar acesso a
outras fontes de conhecimento que vão além do livro e texto didático. O cinema
proporciona e instiga a arte, fotografia, icnografias, recursos que facilitam e diver-
sificam as formas de aprendizagem, por desfocar as metodologias cujo princípio se
pauta apenas na utilização de recursos únicos. O cinema/a produção audiovisual
se apresenta como uma alternativa de aproximação do conhecimento produzido
nas instituições de ensino, do conhecimento histórico com as realidades dos/as
estudantes.
Seguindo a lógica das atividades desenvolvidas a partir da história dos bairros e
a utilização de produções audiovisuais e entendendo a papel importante da arte de
modo geral no processo de ensino-aprendizagem, outra proposta foi a utilização
do Hip Hop como instrumento de educação. A ideia foi refletir sobra a construção
da identidade negra no Brasil através das letras de RAP. Para tanto foi necessário
dialogar com temáticas sobre o tráfico de escravizados transatlântico, o pós- abo-
lição e a construção de história de estigmas e estereótipos acerca da população
negra. Afinal, como relata o antropólogo Kabengele Munanga: “a elite brasileira,
preocupada com a construção de uma unidade nacional, de uma identidade nacio-
nal, via esta ameaçada pela pluralidade étnico- racial” (2019, p.127). A partir dessa
reflexão de Munanga pensamos que música, assim como o cinema e a história dos
bairros estão relacionadas, dentro da perspectiva educativa, diretamente a estima,
valorização e fortalecimento de identidades de jovens estudantes de escola públi-
ca na Bahia.

600 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Cidades dentro da cidade foi um trabalho desenvolvido em uma escola pública
da capital baiana que utilizou variados recursos didático-metodológico com o obje-
tivo de debater memória e identidade com estudantes partindo das suas próprias
histórias e memórias. Partimos da comunidade, do bairro, visto que cada bairro
possui características diferentes e representam uma importância social e econômi-
ca exercendo determinadas funções dentro da cidade. Pesquisar a história do bair-
ro de cada discente, por meio da memória oral dos moradores e dados estatísticos,
assim como desenvolver estudos sobre o passado da localidade, identificando as
mudanças e as permanências do local, através de atividades práticas que levem
estudantes buscar, analisar e investigar a sua comunidade e como se veem neste
processo, a fim de ter uma compreensão destas transformações. Essas ações tive-
ram o objetivo de nos percebermos e compreendermos sobretudo a nossa história,
o nosso trânsito geográfico do bairro para a escola, entendermos a geografia da
cidade que nos mostra acima de tudo uma diversidade.
A pluralidade de pensamento, de experiências, culturas e formas de expressão
que existem dentro de um só lugar, o Colégio Estadual Odorico Tavares. A troca de
vivências, obtidas pelo cotidiano de cada um em seu espaço de sociabilidade, foi a
chave principal. As ações pedagógicas contribuíram para discussões mais críticas e
produtivas do ponto de vista conceitual. A evolução foi perceptível o senso crítico,
capacidade de formulação de argumentos se afloraram. Os diferentes saberes e
pensamentos fomentaram discussões e fez com que cada ação se tornasse singular
acompanhada de trocas de saberes. O viés científico estava presente no trabalho
realizado, bem como, a compreensão de a memória dinamizada direciona para do-
mínio e validação do conhecimento histórico na perspectiva de uma transformação
possível através de uma educação que vise a emancipação. Trata-se de colocar a
premissa de que o estudo da história é fundamental para a preservação da memó-
ria e que uma memória preservada se torna elemento importante para a defesa e
constante luta pela manutenção (e ampliação) dos direitos humanos e consequen-
temente a elevação da autoestima de estudantes que necessitam da visibilização
de histórias antes esquecidas, não faladas, escondidas.

REFERÊNCIAS

FERNANDES, José Ricardo Oriá. Memória e Ensino de História. In: BITTENCOURT, Circe
Maria F. (org.). O saber histórico na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2006. p.128-148.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.

HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: uma história. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009. LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Unicamp, 1996.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 601


Artes, memória e espaços
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus
identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.

NORA, Pierre. Entre história e memória: a problemática dos lugares. Revista Projeto Histó-
ria. São Paulo: v. 10, p. 7-28, 1993.

602 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
ST 05
Arquitetura,
Urbanismo e
Cidade Africana e
Afro-Brasileira
ESPAÇOS DE SOCIABILIDADE NEGRA E SUAS
TRANSFORMAÇÕES: O CLUBE TREZE DE MAIO EM
CURITIBA

Juliana Harumi Suzuki


Matheus Becker Walteman de Freitas

INTRODUÇÃO
Espaços de sociabilidade podem ser entendidos como locais onde se percebe
para além da interação social, uma satisfação no compartilhamento de experiên-
cias e identificações dos indivíduos que dela participam. Esse é o conceito trabalha-
do por Guimarães (2008) e que serve como ponto de partida para análise do Clube
Treze de Maio e sua relação com a comunidade negra de Curitiba.
A partir desse ato de compartilhar vivências comuns, diferentes grupos pon-
tuaram nas cidades lugares por eles eleitos como espaços de representatividade.
Por meio dessa lógica de espacialização, ao longo de sua trajetória, a população
negra de Curitiba também elegeu espaços que apoiaram sua presença enquanto
comunidade. Antes da abolição da escravatura em 1888, a Igreja do Rosário, per-
tencente ao centro histórico da cidade, se encontrava como um dos pontos de
referência para a reunião de negros libertos e escravizados. Essa era uma situação
relativamente não rara, vista a existência de igrejas exclusivamente destinadas a
essa população e atreladas a atuação comunitária de algumas irmandades católi-
cas. Após o fim do regime escravocrata no Brasil, ao menos no nível da oficialidade,
o perfil segregador desses templos deixa de fazer sentido para as novas dinâmicas
coletivas e nesse contexto surgem os clubes sociais negros.
Essas entidades emergiram não somente da necessidade de convívio e inte-
ração, mas também daquela relacionada à assistência social. A exemplo disso, o
Clube Treze de Maio foi constituído tendo como objetivo prestar auxílio mútuo,
médico-hospitalar e educacional à comunidade afro curitibana. Ao mesmo tempo,
abrigou manifestações de lazer e demais festividades carregadas de importância
cultural e recorrentes até os dias de hoje. Observada a trajetória da instituição,
atualmente pode-se atribuir a sua imagem um destaque no cenário da memória e
do patrimônio afro-paranaense. Portanto, compreender mais sobre os percursos
dessa entidade a partir de sua espacialidade é mais uma forma de explorar a histó-
ria da presença negra na capital do estado e contribuir para as discussões étnicas
presentes na agenda contemporânea.
Somado a isso, em uma perspectiva de escala mais interior, a pesquisa objetiva
também entender os vetores que influenciaram as transformações espaciais da
sede do clube e dessa forma compreender, por exemplo, o processo de conso-

604 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
lidação da prática de eventos no local, majoritariamente relacionados a cultura
afro-brasileira.

METODOLOGIA
Com o objetivo de nortear teoricamente a abordagem desenvolvida nesta pes-
quisa, de início foi realizada uma conceituação sobre espaços de sociabilidade por
meio da tese A sociabilidade e seus espaços: um estudo histórico a partir de seus
intérpretes (GUIMARÃES, 2008). Em seguida, utilizando-se de referências web e
bibliográficas foi traçado um panorama histórico da presença negra em Curitiba,
visando introduzir uma contextualização importante para o processo de compre-
ensão a respeito da trajetória do Clube Treze de Maio. Essa aproximação inclui
observações sobre a Igreja do Rosário no objetivo de encaminhar o andamento da
pesquisa para o espaço do clube, visto que ambos os locais protagonizaram o su-
porte para as atividades sociais de seus frequentadores em diferentes momentos.
Por fim, com base em entrevista, buscas webgráficas e consultas aos acervos ins-
titucionais do IPHAN e IPPUC, construiu-se uma análise espacial da sede do Clube
Treze de Maio que explora os possíveis vetores de transformação do lugar ao longo
dos anos. Esse estudo final teve como cerne a leitura de peças gráficas oriundas
de desenhos arquitetônicos desenvolvidos pelo IPPUC e colaboradores em 2000.

RESULTADOS E ANÁLISE

CONCEITUAÇÃO: ESPAÇOS DE SOCIABILIDADE


A presente pesquisa, centrada na trajetória do Clube Treze de Maio, inicia sua
análise a partir de uma aproximação sobre o conceito de espaços de sociabilidade
a fim de embasar as caracterizações aqui apresentadas. O texto que referencia este
acercamento é a tese defendida por Guimarães (2008), cuja proposta explora uma
série de recortes temporais por meio da observação de seus intérpretes.
Logo de início, em seus pressupostos teóricos, apoiando-se em autores como
Le Goff, Guimarães coloca que “o sentimento de prazer que se tem a partir de
uma experiência de interação social é a chave para identificar uma situação de so-
ciabilidade” (GUIMARÃES, 2008, p.10). Portanto, as ideias de congregação, união,
reunião, mostram-se de antemão basilares ao conceito aqui abordado e esse sen-
timento de prazer tem essencialmente relação com o compartilhamento de ex-
periências e identificações. O outro alguém com quem se estabelece um convívio
dentro da sociabilidade “é simplesmente alguém diferente de mim com o qual,
porém, de algum modo, em algum momento, eu me identifico ou, ao menos, posso
compartilhar algo: um instante, um olhar, um comentário, um espaço, a cidade, a
existência.” (GUIMARÃES, 2008, p. 12). Nesse sentido, sendo o objeto de estudo

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 605


Artes, memória e espaços
desta pesquisa um clube social negro, é válido enfatizar a importância desse lugar
de compartilhamento de experiências para a comunidade que dele faz uso, no que
diz respeito às questões sociais brasileiras.
Dentro da série de exemplos citados pelo autor ao longo de sua tese, por vezes
estão presentes outros fenômenos, como religiosidade e associação profissional,
conectados a ideia de sociabilidade (GUIMARÃES, 2008, p.117). Nesse âmbito, ob-
servando os espaços ocupados pela comunidade negra ao longo da história, tam-
bém é perceptível o casamento entre esses outros conceitos. A Igreja do Rosário
dos Pretos de São Benedito atrela sociabilidade à atuação religiosa e o hoje
chamado Clube Treze de Maio, mas que foi fundado como Sociedade Operária Be-
neficente Treze de Maio, traz em sua origem atividades de associação profissional.
Tópicos futuros buscarão ampliar perspectivas históricas sobre essa temática.

PRESENÇA NEGRA EM CURITIBA


Soma para a presente pesquisa compreender mais sobre a realidade da comu-
nidade negra de Curitiba, principalmente a partir de sua trajetória histórica. Pelo
último levantamento realizado pelo IBGE (2010), Curitiba conta com 1.751.907
habitantes dos quais 2,8% se autodeclaram pretos e 16,7% pardos. Isso nos traz,
do ponto de vista quantitativo, que aproximadamente 19,5% da população possui
alguma ascendência negra.
Essa ascendência, em se tratando de Brasil, está relacionada com a população
africana escravizada e traficada para as Américas entre os séculos XVI e XIX. Segun-
do Cunha (2012), esse contingente de mão de obra escrava negra passou a chegar
ao atual território do Paraná a partir da segunda metade do século XVII, no cenário
de fundação da cidade litorânea de Paranaguá. Antes disso, predominava na região
o uso da força de trabalho de escravizados indígenas, oriundos de povos como os
tupi e os caingangues. Esses grupos de colonos do litoral avançaram no sentido oes-
te, atravessaram a serra do mar e se fixaram em localidades do primeiro planalto
paranaense.
Para além dessa movimentação oriunda do litoral, a circulação por rotas no in-
terior da colônia já era conhecida e utilizada (ALBUQUERQUE; FILHO, 2006, p.56).
A porção leste do Paraná, com cidades como Ponta Grossa, Castro e Curitiba, con-
tinha percursos de tropeiros, que por sua vez também incluíam em suas atividades
o comércio de escravizados. Portanto, para além do tráfico negreiro que aportava
em cidades costeiras como Paranaguá e Antonina, pode ser citado esse outro vetor
de movimentação que pelo interior conectava regiões como São Paulo e Rio de
Janeiro ao sul da então colônia.
As condições de trabalho escravo em Curitiba não se diferenciavam significati-
vamente daquelas presentes em outras regiões da colônia ou do posterior impé-
rio. O cenário passa a se modificar com a chegada de grupos imigrantes europeus
no final do século XIX, que associada a abolição do regime escravocrata catalisou

606 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
uma série de mudanças na dinâmica social brasileira, especialmente no Sul. A res-
peito dos efeitos desse novo arranjo social na vida da população afrodescenden-
te, Cunha (2012, p.33) aponta “que o negro teria sido estilhaçado pela escravidão
tanto quanto pela pseudoliberdade e igualdade que conquistou posteriormente.
(...) Negros e mulatos se viram condenados a ser o outro, ou seja uma réplica sem
grandeza dos ‘brancos de segunda classe’”.
Esse processo de invisibilização da comunidade negra no Paraná, de acordo com
Carvalho (2016, p.101), também foi influenciado pelo Movimento Paranista que
na primeira metade do século XX, buscou a construção de uma imagem identitária
para a sociedade paranaense. Dentro desse exercício de construção de um ideário
cultural, para a autora essa contribuição se dá pela sugestão de uma simbólica
harmonia entre as etnias formadoras da população paranaense, principalmente na
capital do Estado. Contudo, quando observado o panorama histórico das relações
entre esses grupos, contentor de décadas de escravidão, emergem outras interpre-
tações diversas ao conceito de harmonia.
Ao longo desse percurso brevemente descrito, a comunidade afro curitibana
elegeu espaços que abrigaram o exercício da sociabilidade, como o Clube Treze de
Maio. Esses locais se tornaram espaços representativos pela importância histórica
e identitária à eles associada. Antes da existência do Clube, a atual Igreja de Nossa
Senhora do Rosário de São Benedito, era o espaço que desempenhava o papel de
suporte para parte das interações entre os negros e negras presentes na região
central da cidade. Nesse sentido, acrescentar a esta discussão questões referentes
a trajetória desse templo, contribui para a aproximação histórica em relação ao
espaço do Treze de Maio.
A igreja se localiza no centro histórico de Curitiba, no bairro São Francisco, com
a fachada principal voltada para a Praça Garibaldi. O primeiro edifício foi demolido
e reconstruído entre as décadas de 1930 e 1940. O novo projeto, presente nos dias
atuais, assumiu uma estética neocolonial. O ínicio da obra original do templo cató-
lico é datado por volta da primeira metade do século XVIII. Segundo Fedalto (1958),
o edifício construído por escravizados, abrigava as práticas religiosas da população
negra de Curitiba - isso em um período onde brancos e negros tinham espaços de
culto distintos. Até a abolição da escravatura, o templo era conhecido por Igreja do
Rosário dos Homens Pretos de São Benedito.
Para além das atividades ligadas a prática de celebrações e ofícios católicos, o
templo continha também a atuação da irmandade de Nossa Senhora do Rosário.
Essa confraria aceitava negros escravizados como membros, assim como indivídu-
os livres. Nas colocações de Lima (2015), “ninguém deixava de ser escravo por in-
serir-se em irmandades, evidentemente. [...] Mary Karasch qualificava as confrarias
que continham cativos como instituições não muito prestigiadas na sociedade, mas
que elevavam o status de seus membros no interior do grupo escravo.” Ao mesmo
tempo, essas entidades propiciavam a construção de relações entre seus mem-
bros no sentido da sociabilidade e do apoio mútuo. As informações relacionadas

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 607


Artes, memória e espaços
a essas irmandades propiciam também compreender mais sobre a trajetória do
templo. Apesar de impreciso, tem-se como o período de finalização da construção
da igreja, as datações dos primeiros sepultamentos de membros do grupo em seu
interior, por volta do final do século XVIII e início do século XIX.
Nos períodos seguintes à promulgação da Lei Áurea, em 1888, o espaço do tem-
plo paulatinamente transiciona seu perfil de um lugar ocupado majoritariamente
por pessoas negras para um espaço com outras características de uso desvincula-
das daquelas antigas. Isso pelo fato de não haver, ao menos oficialmente, a neces-
sidade de segregação dos locais de culto entre brancos e negros. E nessa conjuntu-
ra de mudança dos paradigmas sociais da época, surge o Clube Treze de Maio como
uma nova instituição de apoio às relações entre afrodescendentes.
Vale destacar que apesar das mudanças referentes ao caráter público do tem-
plo, em datas festivas atuais ocorrem na igreja cerimônias ligadas às culturas de
matriz africana. Isso se dá essencialmente pela conexão histórica entre esse espaço
de sociabilidade e a comunidade negra de Curitiba.

O CLUBE TREZE DE MAIO E SUAS TRANSFORMAÇÕES


Em 2014, em ação conjunta do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Na-
cional (IPHAN), com a Fundação Cultural Palmares (FCP) e a Secretaria de Políticas
de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), foram mapeados no estado do Paraná
seis clubes sociais negros. De acordo com a Comissão Nacional de Clubes Sociais
Negros uma entidade com tal perfil é entendida como um “espaço associativo do
grupo étnico afro-brasileiro, originário da necessidade de convívio social do grupo,
voluntariamente constituído e com caráter beneficente, recreativo e cultural, de-
senvolvendo atividades num espaço físico próprio”. Estas instituições emergiram
entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX e objetivavam a assis-
tência mútua entre seus associados. Dos seis clubes paranaenses apenas quatro
encontram-se ativos e o mais antigo destes é o Clube Treze de Maio, localizado em
Curitiba.
FIGURA 1: FACHADA ATUAL DO CLUBE TREZE DE MAIO

Fonte: Google Maps, 2020.


Fundada em 3 de maio de 1888 por negros livres e ex-escravos, a Sociedade
Operária Beneficente Treze de Maio - primeiro nome que recebeu - nasceu com o
objetivo de prestar apoio a comunidade de escravizados que viriam a ser libertos
pela promulgação da Lei Áurea em 13 de maio 1888. Como observado anterior-
mente, a partir dessa pseudoliberdade conquistada, os ex-escravizados se viram
sujeitos a uma nova condição social com outros desafios e dificuldades intrínsecos.
Diante desse cenário, estavam incluídas nas atividades da agremiação, a prestação
de apoio médico-hospitalar e educacional, assim como ações voltadas ao suporte
financeiro da comunidade (IPHAN, 2014).
De início, as reuniões de formação do primeiro corpo de sócios ocorreram nas
casas de alguns dos organizadores. O encontro que firmou os objetivos iniciais em
3 de maio, se deu na residência do Sr. João Batista Gomes de Sá, onde foram no-
meados os membros de uma diretoria provisória que tinha como presidente o Sr.
Hilário Munhoz. Essa diretoria foi responsável também pelo início das obras do
primeiro edifício que abrigou a sede da sociedade. Essa construção era descrita
como simples, em madeira e encontrava-se no mesmo local que a sede atual na
Rua Desembargador Clotário Portugal, atual bairro São Francisco. Na época a rua
era conhecida como Travessa Colombo (IPPUC, 2000).
Em 15 de agosto do mesmo ano, foi formada a primeira diretoria que teve como
presidente o Sr. Benedicto Modesto da Rosa. Neste período inicial a sociedade
contava com 59 membros que em 1891 se reuniram para a eleição de uma segunda
diretoria. O resultado foi a reeleição do presidente e a composição de uma nova
equipe de gestão. No ano seguinte, quando a sociedade comemorava quatro anos
de existência (13 de maio de 1892), a associação foi renomeada e assumiu o nome
pelo qual é conhecida até os dias atuais: Clube 13 de Maio. Outro acontecimento
importante na década de 1890, mais precisamente em julho 1896, foi a doação do
terreno onde já se situava o edifício do clube, por parte da Prefeitura Municipal de
Curitiba (IPPUC, 2000).
Essa ação do poder municipal pode ser entendida como impulsionadora do pro-
cesso de consolidação do clube enquanto espaço, observada a permanência da en-
tidade no mesmo local pelos anos que seguiram. Já na primeira metade do século
XX, entre as décadas de 1930 e 1940, o clube inicia um processo de abertura para
o público geral. Essa dinâmica se deu principalmente pela criação de bailes domini-
cais e demais festividades que atraíam um contingente de pessoas externo aquele
relacionado ao corpo de associados. Essa nova postura da instituição, provavel-
mente modificou os números habituais de frequentadores do espaço e somada a
uma demanda por modernização, em 1946 é realizada a primeira reforma no local.
Sobre a presidência do Sr. Demétrio Da Costa, a direção optou em 24 de outubro
de 1946 pela atualização das instalações sanitárias do terreno (IPPUC, 2000). Na fi-
gura 2 pode ser observada uma implantação com a conformação espacial do clube
no período que o levantamento realizado pelo IPPUC foi concluído, em 2000.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 609


Artes, memória e espaços
FIGURA 2: IMPLANTAÇÃO DO EDIFÍCIO. LEGENDA: 1 - ENTRADA; 2 - COZINHA;
3 - GUARDA-VOLUMES; 4 - BAR; 5 - SAIÃO DE FESTAS; 6 - SANITÁRIOS; 7 -
ADMINISTRAÇÃO; 8 - PÁTIO EXTERNO COBERTO; 9 - HABITAÇÃO

Fonte: IPPUC, 2000. Adaptado pelo autor.

O processo de abertura do clube para o público externo a partir da década de


1930, resultou no aumento do contexto social do clube (IPPUC, 2000). Diante dessa
expansão é provável que surgiram para a entidade a necessidade e o interesse por
acomodações mais amplas e equipadas. Em 1954, optou-se pela construção de
uma nova sede no lugar da antiga construção de madeira. Na pesquisa realizada
pelo IPPUC (2000) e referenciada ao longo deste trabalho, consta uma carta datada
de 14 de agosto de 1954, onde o então presidente do clube Sr. Demétrio da Costa,
escreve ao diretor da Cia. Brahma solicitando uma espécie de empréstimo para a
construção da nova sede. Não foram encontradas informações referentes a efeti-
vação ou não dessa operação. No entanto, o documento traz consigo a informação
de que à época o clube contava com 350 sócios contribuintes. Tal contingente de
associados justifica a necessidade e a possibilidade de ampliação do clube, aprova-
da pela prefeitura em 23 de outubro de 1954.
Essa construção da década de 1950 engloba a maior parte do programa espacial
da sede. O salão principal com 200m² de área configura-se como espaço protago-
nista do clube (ver figura 3) e se associa, do lado oposto ao da rua, com um palco
em nível elevado para apresentações. Com acesso pelo mesmo salão, encontram-
-se duas salas de apoio, um guarda volumes e a sala da administração. Além disso,
ao fundo do lote foi construída uma pequena habitação com três ambientes. Em
entrevista concedida ao autor (2019), o atual presidente do clube, Sr. Álvaro da Sil-
va, relatou que a casa dos fundos do clube foi utilizada pela esposa do Sr. Demétrio
da Costa - presidente da instituição à época da construção -, Dona Nadir, até sua
morte. Atualmente é o presidente do clube que mora na casa.
Em 1974, sobre a presidência do Sr. Euclides da Silva, uma nova reforma é re-
alizada no clube. Nesta fase é realizada uma expansão de parte da construção de

610 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
1954, resultante nos espaços da cozinha e do bar. Mais uma vez, é realizada uma
ampliação que sugere a consolidação do espaço como local para eventos, no sen-
tido de requalificação de equipamentos antes existentes ou então ligados às novas
demandas da época. Nesta mesma etapa de reformas é construído um muro que
encerra a testada principal do lote, partindo da fachada da década de 1950. Este
fechamento pode ser observado na figura 1.
Em seguida, no ano 1996 foi realizada a adição de uma instalação sanitária na
residência dos fundos e a construção de uma cobertura que abriga um pátio ex-
terno, também na porção mais interior do lote. A constituição deste espaço de
convívio a mais, reforça a ideia de uso do clube para a realização de encontros e
eventos. Em 2004, na gestão do Sr. Álvaro da Silva, foi executada uma última in-
terferência no corpo do edifício principal (SILVA, 2019). Naquele ano a estrutura
de madeira que compunha a cobertura do salão principal foi substituída por uma
laje de concreto (figura 3).

FIGURA 3: SALÃO PRINCIPAL

Fonte: IPHAN, 2014.

Segundo o Sr. Álvaro (SILVA, 2019), a prática de locação do espaço do clube


para eventos e festividades é a principal forma atual de arrecadação financeira. Ele
ainda inclui em seu relato a ocorrência de crises financeiras ao longo da história do
clube e enfatizou a importância da prática anteriormente citada para a manuten-
ção do conjunto da entidade. Ao mesmo tempo, o espaço também abriga eventos

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 611


Artes, memória e espaços
ligados ao contexto cultural negro de Curitiba, sendo a instituição reconhecida pelo
seu legado como patrimônio material da comunidade afro curitibana.

CONCLUSÕES
O mesmo elemento motivador da pesquisa pôde ser constatado a partir das
análises desenvolvidas: a premissa de que o clube possui um destaque no contexto
histórico da comunidade negra de Curitiba. Isso se dá tanto pelo fato deste local se
caracterizar como um espaço de sociabilidade importante, como pelos atravessa-
mentos por ele protagonizados desde o período da abolição da escravatura no final
do século XIX. Nesse sentido, a contextualização histórica desenvolvida colaborou
em muito para esse processo de compreensão.
Com relação às transformações espaciais vivenciadas pela entidade, o que pode
ser inferido a partir dos paralelos estabelecidos entre as análises gráficas e históri-
cas, é a ocorrência de duas fases principais. A primeira delas antecede a conclusão
da obra de 1954 e se relaciona com as primeiras décadas de existência do clube
e seu respectivo amadurecimento enquanto instituição. A segunda fase engloba
uma série de interferências pontuais ocorridas nos anos seguintes e que estiveram
associadas tanto a ideia de expansão e requalificação funcional do espaço, quanto
a necessidade de manutenção do edifício. Somado a isso pode ser observada a in-
fluência do crescimento no número de usuários do local no âmbito da necessidade
de ampliação. Sem dúvida, a consolidação da prática de eventos internos ao clube
e daqueles frutos de locação e arrecadação financeira também impulsionaram as
mudanças constatadas.
Além disso, a presente pesquisa observa outras questões para discussões fu-
turas como a sugestão de uma análise mais aprofundada das características es-
paciais da construção principal de 1950, em comparação a temática arquitetônica
de Curitiba à época. Ao mesmo tempo, é válida uma atenção para a qualidade do
impacto das reformas posteriores no aspecto patrimonial do espaço do Clube Tre-
ze de Maio.

REFERÊNCIAS

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Salvador: [s. n.], 2006. Disponível em: https://www.geledes.org.br/wp-content/uplo-
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de Ciências Humanas - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2016. Disponível em:
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612 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
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set 2020.

SILVA, Álvaro da. Entrevista concedida a Matheus Becker Walteman de Freitas. Curitiba,
30 abr. 2019.

AUTORIA
Juliana Harumi Suzuki
Universidade Federal do Paraná
E-mail : suzuki@ufpr.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6148-5238
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2779758207001593

Matheus Becker Walteman de Freitas


Universidade Federal do Paraná E-mail: matheusbecket@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8377-2513
Lattes:http://lattes.cnpq.br/5269929642390842

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 613


Artes, memória e espaços
ARQUITETURAS DAS NAÇÕES DOS
TERREIROS DE CANDOMBLÉ: DIFERENÇAS
ARQUITETÔNICOS ENTRE OS TERREIROS DA
BAHIA

Fábio Macêdo Velame

INTRODUÇÃO
O presente trabalho problematiza a diversidade arquitetônica dos terreiros de
candomblé da Bahia, vistos por olhares da sociedade mais ampla como sendo to-
dos ‘’iguais’’, inseridos no mundo da representação e da homogeneidade.
Todavia, o Candomblé é organizado por nações vinculado as diversas etnias que
vieram para o Brasil durante o tráfico Negreiro para as Américas, oriundas de diver-
sas regiões da África, assumindo ainda uma dimensão sócio-política.
Cada nação possui uma organização, estrutura, rituais, mitos, línguas especifi-
cas, ou seja, um cosmo (visão de mundo) e ethos (ética e estética) particulares e
singulares o que implica em arquiteturas distintas, onde apresentam elementos
específicos e próprios. Nesse víeis surge à questão, ‘’Quais são as especificidades
arquitetônicas dos Terreiros de Candomblé da Bahia?’’
Para responder esse questionamento apresentaremos o estudo a partir do mé-
todo comparativo mostrando os elementos arquitetônicos em comuns, e, princi-
palmente, os diferentes nos terreiros do Recôncavo Baiano: da Nação Nagô-Vo-
dum o terreiro Capivari – Pé de Cajá; da nação Nagô-Ixejá o terreiro Viva Deus; da
Nação Nagô Tedô o terreiro Aganju Didê; da nação Angola do Terreiro Dendezeiro;
da Nação Jejê-Mahi o terreiro Roça do Ventura – Sejá Hundé; e da Nação Ketu o
terreiro Ilê Axé Ogunjá.
Foram identificados elementos e espaços arquitetônicos que diferenciam as
nações de candomblé da Bahia, constituindo mais um elemento de identificação
étnica do povo-de-santo da Bahia.

ARQUITETURA DA NAÇÃO NAGÔ-VODUM


A nação Nagô-Vodum possui como características arquitetônicas a correlação
entre natureza e construções. Simplicidades nas construções e nos acabamentos,
oriunda da influência dos povos jejes (daomeanos do Benin), geralmente feitas em
adobe e taipa. Mas, ao mesmo tempo, possuem uma exuberância na organização
espacial dos ambientes durante as festas que advêm da influência doa nagôs (Ioru-
bás da Nigéria). Possuem geralmente um quarto de santo, que agrega os assentos
de Orixás e Voduns num mesmo e único ambiente.

614 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
Há interpenetração Jeje-Iorubá com agregação de elementos de outras culturas
dentro do sistema religioso afro-brasileiro – processo contínuo de crioulização –
com o catolicismo popular (altares e nichos), com os caboclos (índios, marujos,
boiadeiros – pinturas, quadros, assentos, e casas), com a maçonaria (pinturas, es-
culturas e altos relevos), e com muçulmanos (pinturas e altos relevos), presentes
na tatialidade e espacialidade arquitetônica dos templos.
No Nagô-Vodum a família de santo é pequena e fechada implicando em tem-
plos-casas, compactos com interpenetração entre espaços sagrados e domésticos.
Mas, o aspecto arquitetônico mais proeminente do Nagô-Vodum são as árvores
que irrompem os telhados dos barracões, Ilê Orixás, e quartos de caboclos. As ár-
vores são os elementos geratrizes dessas arquiteturas, fundaram os terreiros, con-
dicionaram e orientaram o seu crescimento (ver Fig.01).

FIGURA 1: TERREIRO DO CAPIVARI

Fonte: Fábio Macêdo Velame, São Félix, 2010.


ARQUITETURA DA NAÇÃO NAGÔ-IXEJÁ
A nação Nagô-Ixejá possui como características arquitetônicas o equilíbrio en-
tre espaços construídos e natureza. A vinculação dos lugares dos Ilê Orixas com a
natureza – as posições das árvores sagradas atrás dos templos dos Orixás.
O refinamento construtivo dos espaços arquitetônicos, detalhes construtivos
elaborados, e exuberância da composição do barracão durante as festas com a
colocação de bandeirolas coloridas, pinturas e insígnias dos Orixás as paredes do
espaço arquitetônico.
No Nagô-Ixejá os Orixás estão dispostos em Ilê Orixás individualizados, um tem-
plo para cada divindade separadamente. Nessa nação as famílias de santo extensas
possuem uma grande quantidade de membros, com uma desvinculação da família
de santo com a consangüínea, implicando diversos quartos de filhos de santo na
arquitetura dos templos para os rituais em calendários curtos de festas. Possuem
uma relação espacial própria onde os átissás (árvores sagradas) encontram-se a
frente dos pêpeles (altares) nos assentos de Órixas (ver Fig.2 e 3).

FIGURA 2: TERREIRO VIVA DEUS

Fonte: Fábio Macêdo Velame, Cachoeira, 2010.

616 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
FIGURA 3: TERREIRO VIVA DEUS

ARQUITETURA DA NAÇÃO NAGÔ-TEDÔ


A nação Nagô-Tedô possui como características arquitetônicas a predominância
da natureza em relação aos espaços construídos, com uma grande vinculação com
a natureza – matas, bambuzais, árvores sagradas e pedras.
Apresenta uma simplicidade nas construções (adobe e taipa) e nos acabamen-
tos, em virtude da grande influência do jeje (daomeanos do Benin) nessa nação,
mas, apresenta, também, exuberância na organização espacial dos ambientes du-
rantes as festas oriunda da influência nagô (Iorubás da Nigéria).
Possuem tal como à nação Nagô-Vodum apenas um quarto de santo, que agre-
ga os assentos de Orixás e Voduns num mesmo e único ambiente. Apresenta, ain-
da, o paralelismo afro-católico com a presença de altares católicos no barracão. A
família de santo dessa nação é pequena e fechada, implicando em templos peque-
nos, compacto com interpenetração entre espaços sagrados e domésticos, entre
casa e templo (ver Fig.4 e 5).

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 617


Artes, memória e espaços
FIGURA 4: TERREIRO AGANJÚ DIDÊ

Fonte: Fábio Macêdo Velame, Cachoeira, 2010.

FIGURA 5: TERREIRO AGANJÚ DIDÊ


ARQUITETURA DA NAÇÃO ANGOLA
A nação Angola possui como características arquitetônicas o usos das cores na
arquitetura relacionada à divindade patrona da casa, o Inquice (deuses Bantus do
Congo e Angola) regente do templo.
A presença nichos católicos (paralelismo afro-católico), de forma ampla nos es-
paços dos terreiros, assim como a presença de quartos e casas de caboclos (índios,
marujos, boiadeiros, etc...) na mata de forma independente.
Apresenta famílias pequenas e consequentemente, interpenetração, entre es-
paços sagrados e domésticos, entre casa e templo. Como elementos arquitetôni-
cos mais proeminentes apresentam o assento de Quitembo (o Inquice Tempo) na
entrada do terreiro em uma árvore sagrada (gameleiras brancas) e ou em pepeles
com seus respectivos Igbás, e, também, a presença de quartinhas nas partes altas
do terreiro: cumeeira, portões, portais, platibandas (ver Fg. 6).

FIGURA 6: TERREIRO DENDEZEIRO

Fonte: Fábio Macêdo Velame, Cachoeira, 2010.


ARQUITETURA DA NAÇÃO JEJE-MAHI.
A nação Jeje-Mahi possui como características arquitetônicas a grande predo-
minância da natureza em relação aos espaços construídos, a grande quantidade
de assentos predominantes nos atissás (árvores sagradas) e moradas dos Voduns
(divindades daomeanas do Benin)
A nação Jeje-Mahi possui uma forte vinculação com a natureza – matas, bam-
buzais, árvores sagradas e pedras. A nação Jeje-Mahi possui famílias pequenas e
fechadas, próprio da tradição jeje implicando em templos pequenos, compactos e
com espaços herméticos.
Possui como elementos marcantes da arquitetura a simplicidades nas constru-
ções (adobe e taipa) e nos acabamentos – ‘’estética da austeridade’’ proveniente
da ética dos Voduns, com pisos em terra batida na maioria dos ambientes, e no
barracão durante as festas e obrigações aos Voduns coloca-se no piso o ‘’bostei-
ros’’, que é o revestimento de barro junto com estrume de boi para afastar os maus
espíritos e energias negativas, e, por fim, o uso da terra na construção de espaços
sagrados como pejis (quartos pequenos), sabajis, casas de Vodum (ver Fig.7 e 8).

FIGURA 7: TERREIRO ROÇA DO VENTURA

Fonte: Fábio Macêdo Velame, Cachoeira, 2010.

620 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
FIGURA 8: BARRACÃO DO TERREIRO ROÇA DO VENTURA

Fonte: Fábio Macêdo Velame, Cachoeira, 2010.

ARQUITETURA DA NAÇÃO KETU


A nação Ketu possui como características arquitetônicas a correlação entre na-
tureza e construções, com uma qualidade material nos acabamentos, uma exube-
rância na organização espacial dos ambientes durantes as festas proveniente da
ética, valores e o refinamento dos Iorubás.
Possuem quartos dos Orixás espalhados pela casa, e Ilê Orixás, espalhados pelo
terreiro, um para cada divindade, ou espalhados em conjunto com proximidades
mitológicas e de culto.
As famílias de santo são grandes e numerosas, implicando em templos-casas,
amplos com interpenetração entre espaços sagrados e domésticos.
E tem como elemento marcante, a presença do poste central – Opá de ligação
entre o Orum (plano de existência imaterial) e o Aiê (plano de existência física) no
barracão do terreiro (ver Fig 9 e 10).

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 621


Artes, memória e espaços
FIGURA 9: TERREIRO ILÊ AXÉ OGUNJÁ

Fonte: Fábio Macêdo Velame, Cachoeira, 2010.

FIGURA 10: BARRACÃO DO TERREIRO ILÊ AXÉ OGUNJÁ

Fonte: Fábio Macêdo Velame, Cachoeira, 2010.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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interpretações de civilizações. São Paulo: Pioneira, USP, 1971.

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VELAME, Fábio Macêdo. Arquiteturas da Ventura: Os Terreiros de Candomblé de Ca-


choeira e São Félix. Salvador: 2012. Tese (Doutorado) – Faculdade de Arquitetura, Uni-
versidade Federal da Bahia, 2012.

AUTORIA
Fábio Macêdo Velame
Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia, CEAO – Centro de
Estudos Afro-Orientais da UFBA
E-mail: velame.fabio@gmail.com
ORCID: 0000-0003-4414-2521
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0386406510741414

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 623


Artes, memória e espaços
ARQUITETURAS DOS QUILOMBOS DO SERTÃO
BAIANO: O QUILOMBO DE BARROCAS NA
REGIÃO DE CAMPO FORMOSO
.
Fábio Macêdo Velame

INTRODUÇÃO
O presente ensaio busca compreender o papel da arquitetura na construção da
territorialidade e da resistência das comunidades quilombolas do sertão baiano.
Têm como recorte as 22 comunidades remanescentes de quilombos localizados na
zona rural do Município de Campo Formoso na Microrregião de Senhor do Bonfim,
no sertão baiano, e como objeto de estudo de caso a ''Casa Odum Rondu'' de Dona
Josefa, localizada na comunidade quilombola de Barrocas na rede de quilombos de
Laje dos Negros. Busca-se entender como uma casa e sua arquitetura constrói rela-
ções de territorialidades entre diversas comunidades quilombolas e como ela tece
uma rede que abrange toda a região através da análise metodológica das práticas,
rituais, atividades e funções nela existentes. Para tanto três conceitos e caminhos
metodológicos são fundamentais para a análise: território, etnicidade e cultura.
Busca-se entender como uma casa e sua arquitetura tecem relações de ter-
ritorialidades entre diversas comunidades quilombolas? Como ela constrói uma
rede que abrange toda a região? Quais os valores, práticas, rituais, atividades e
funções nela existente capaz de agregar diversas comunidades quilombolas, man-
tendo-as coesas? Como as práticas culturais e religiosas constituem a etnicidade
dessas comunidades quilombolas? Essas 22 comunidades quilombolas inicialmen-
te constituem uma territorialidade em rede, um território descontínuo, onde cada
comunidade quilombola, numa escala reduzida, constituiu um território contínuo,
com suas especificidades, mas que se comunicam, conectam-se, realizam trocas
materiais e simbólicas das mais diversas. Constituem, ainda, territórios introverti-
dos, operando uma rede de cooperação, solidariedade, ajuda mútua, tornando-se
o lócus de resistência sócio-culturais dos negros quilombolas locais, notadamente,
durante os grandes períodos de seca que assolam a região.
Esses territórios introvertidos quilombolas passaram por um processo de di-
ferenciação simbólica, a partir de uma etnicidade relacional, no qual foram his-
toricamente rotulados, depreciados e estigmatizados pela sociedade mais ampla
que habitam as cidades da região como sendo "descendentes de escravos", "gente
atrasada", "povo da época da escravidão", e "gente negra que chega a ser azul",
constituem um grupo étnico, a margem da sociedade mais ampla da região. Vivem
num isolamento, "perdidos no tempo e no espaço", abandonados a toda sorte pelo
estado, no coração do sertão baiano.

624 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
Esse distanciamento das cidades da região torna a rede de territórios introver-
tidos quilombolas de Laje dos Negros, em uma das principais estratégias de sobre-
vivência do povo negro quilombola da região. Esses quilombolas lançam mão da
etnicidade primordial (cultural e religiosa), e situacional (política) como forma de
combate aos estigmas projetados sobre eles pela sociedade mais ampla, através
dos processos da etnicidade relacional a partir da Arquitetura do Centro Odum
Rondu.
No campo do território serão utilizados as seguintes teorias e autores: terri-
torialidade multiescalar – territórios contínuos, territórios descontínuos, territó-
rios-rede (Marcelo Souza); território-teia (Robert Sack); territórios extrovertidos e
introvertidos (Rogério Haesbaert); territórios da errância (Joel Bonnemaison). No
campo da etnicidade serão tratados os seguintes autores e teorias: etnicidade pri-
mordial (Marx Weber e Cliffort Geertz), etnicidade relacional (Fredrick Barths), e a
etnicidade situacional (Abner Cohen). E, por fim, no campo da cultura será utilizada
a noção de cultura oriunda da Antropologia Hermenêutica ou Antropologia Inter-
pretativa de Cliffort Geertz.
O termo território surgiu da etologia, ramo da biologia (zoologia), que estuda o
comportamento dos animais e suas acomodações ao meio ambiente e suas rela-
ções com o espaço. O termo território foi empregado pela primeira vez na geogra-
fia na segunda metade do século XIX, por Friedrich Ratzel em sua obra Geografia
Política1. Foi o geógrafo alemão que criou o conceito de espaço vital (Lebensraum).
Para Ratzel o território seria uma parte da superfície terrestre apropriado e utili-
zado por um grupo humano. A adaptação do homem ao meio ambiente se daria
pela utilização de recursos naturais (fontes de energia), para a reprodução dos
aspectos materiais de uma dada cultura. Ratzel estabelece a noção de território
como um elemento inerente ao Estado Moderno cuja riqueza estaria vinculada a
aquisição de novos territórios fornecedores de fontes de energia, matérias-primas
e mercados consumidores. O autor defende a idéia de que quantos mais territórios
conquistados mais rica seria uma determinada nação.
Marcelo Lopes de Souza, geógrafo brasileiro, em seu trabalho Sobre o espaço:
Território Autonomia e Desenvolvimento2, também sob a luz do pensamento de
Foucault, irá questionar o vínculo das relações de poder com o substrato social e
material tratado por Raffestin. O autor trata o território como um campo de for-
ças3 projetado no espaço:

1 Ver também a obra Antropogeografia de Friedrich Ratzel.


2 SOUZA, Marcelo Lopes. de. Sobre o espaço: Território Autonomia e Desenvolvimento. In
CASTRO, I.E. de; GOMES, P. C. C; CORRÊA, R. L. (orgs.) Geografia: Conceitos e Temas. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, p. 77- 116, 1995.
3 O conceito de Poder enquanto uma correlação de forças é tratado pelo filósofo francês
Michel Foucault em Microfísica do Poder, e, Vigiar e Punir. Para o autor o poder passa a ser um campo
de forças em diversas escalas e presente em todas as relações sociais, rompendo com as noções clás-
sicas de poder como uma coisa que possui uma substância, e, portanto, que pode ser possuído por
alguém, o poder não se têm, se exerce sempre em uma relação com o outro; o poder não é algo, uma
coisa, uma meta, um fim a ser atingido por uma pessoa, grupo ou classe social, mas sempre relações

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 625


Artes, memória e espaços
O território não é o substrato social em si, mas sim um cam-
po de forças, as relações de poder espacialmente delimitadas
e operando, destarte sobre um substrato referencial. […] Sem
sobra de dúvida pode o exercício do poder depender muito di-
retamente da organização espacial, das formas espaciais; mais
ai falamos dos trunfos espaciais da defesa do território, e não
do conceito de território em si. […] O território será um campo
de forças, uma teia ou rede de relações sociais que, a par de sua
complexidade interna, define ao mesmo tempo um limite, uma
alteridade: a diferença entre 'nós' (insiders) e os 'outros' (outsi-
ders). (SOUZA, 1995, p. 98)

Para Marcelo Lopes de Souza o espaço físico pode permanecer o mesmo, en-
tretanto, as relações de poder criam territorialidades diversas num determinado
espaço, que podem ser duráveis ou efêmeros, lineares ou cíclicas, longos ou cur-
tos, estáveis ou instáveis, podendo configurar-se como territórios contínuos e des-
contínuos. Marcelo Lopes de Souza conceitua os territórios contínuos como uma
extensão limitada da superfície; e, territórios descontínuos como uma rede a arti-
cular dois ou mais territórios contínuos. Os territórios descontínuos são ao mesmo
tempo pontos da rede, e territórios contínuos, ou seja, uma extensão limitada de
superfície, e não apenas um nó na concepção clássica de rede, ele é um nó, mas
também, superfície delimitada. Da noção de territórios descontínuos, a partir de
uma análise multiescalar, Marcelo Lopes Souza deriva o seu conceito de territórios-
-rede, onde as redes e os territórios (superfícies) coexistem simultaneamente em
escalas diferentes.
A noção de território desvinculado de um substrato material, mas sim entendi-
do enquanto relações de poder que se projetam no espaço é ampliado por Robert
Sack (1986), em sua obra Human Territoriality que problematiza o território sob
três aspectos: 1 - diferencia a territorialidade animal (regida pelos instintos), e hu-
mana (interesses, estratégias, e táticas de ação no espaço); 2 - os territórios não
possuem uma dimensão estática, fixa, podendo, inclusive, mudar de lugar, sendo
móveis e, também, durar um determinado período de tempo, ou seja, o território é
dinâmico; 3 - o território pode ser composto por várias parcelas de espaços conec-
tados por um mesmo agente, constituindo-se em rede, uma teia4.
Essa teia além de constituir essas relações de poder, um campo de forças que
se espacializa em temporalidades distintas, é também uma rede de significações.
A cultura através de suas dimensões simbólicas caracteriza essas relações de po-
der, dão uma cara, uma face ao campo de força, qualifica expressivamente o ter-
ritório. As dimensões simbólicas também delimitam o espaço criando o território,
demarcam simbolicamente o substrato material. O antropólogo americano Clifford

e correlações de forças; e, por fim, o poder não habita em um lugar, o Estado, mas está presente de
forma difusa em todo o corpo social.
4 Ver também BRITO, Cristóvão. Revisando o conceito de território. Revista de Desenvolvi-
mento Econômico. Salvador: ano IV, nº6, p.12-20. Julho de 2002.

626 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
Geertz em sua obra A Interpretação das Culturas nos traz o conceito de Cultura
enquanto uma teia de significações, um sistema de concepções herdadas e expres-
sadas em símbolos:

Acreditamos, como Max Weber, que o homem, é um animal


amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assu-
mo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portan-
to, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas
como uma ciência interpretativa, à procura do significado [...]
De qualquer forma, o conceito de cultura ao qual eu me ate-
nho não possui referentes múltiplos nem qualquer ambiguidade
fora do comum, segundo me parece: um padrão de significados
transmitidos historicamente, incorporados em símbolos, um sis-
tema de concepção herdadas expressas em formas simbólicas
por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desen-
volvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida.
(GEERTZ, 1989, p.4)

O geógrafo brasileiro Rogério Haesbaert (2004), em sua obra O mito da


desterritorialização: do fim dos territórios à multiterritorialidade, apresenta
três formas de abordagem do território: econômica; jurídica-política; e, a cul-
tural. A econômica trata o território em sua perspectiva material, como uma
consequência espacial das tensões, disputas e embates entre as classes sociais
inerente nas relações entra o capital-trabalho na sociedade capitalista. A jurí-
dica-política problematiza o território como um espaço delimitado, definido,
controlado sob a tutela do Estado que exerce o seu poder. A cultural foca
o caráter simbólico do território, através do vivido, do experimentado, uma
apropriação subjetiva do espaço que se dá pelo imaginário e afetividade. As
três vertentes sobrepõem-se, relacionam-se. Rogério Haesbaert irá defender,
ainda, a proposição de que não existe território sem algum tipo de caracte-
rização, qualificação e valorização simbólica seja ela positiva ou negativa dos
espaços pelos seus usuários, pelas pessoas que vivenciam e experimentam os
espaços. Nessa perspectiva, o território edifica-se a partir de relações de po-
der, campos e correlações de forças, que se espacializam através de processos
de demarcação e delimitação simbólica5. O simbólico estabelece a diferença,
traça a relação entre o nosso território e o território deles, do ''outro'', do di-
ferente. O simbólico ao estabelecer a diferença, imprime tensão ao campo de
forças. Tensão de relações de poder que estigmatizam, hierarquizam, valoriza
uns (cultura dominante da sociedade mais ampla), e depreciam outros (sub-
culturas6 das minorias), estabelecendo valores de juízo, definindo o que é bom

5 Ver também o trabalho HAESBAERT, Rogério. Identidades Territoriais. in CORRÊA, R. L. e


ROSENDAHL, Z. Manifestações da Cultura no Espaço. Rio de Janeiro: EDUERJ, p. 49-58, 1999.
6 Subcultura não é aqui tratada como uma cultura inferior, subalterna, mas como a cultura
das minorias, as culturas de resistência à cultura dominante da sociedade mais ampla.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 627


Artes, memória e espaços
e mau, belo e feio, o agradável e desagradável, transformando o outro que é
diferente de mim em marginal, vadio, alguém perigoso.
O território é, segundo a perspectiva de Haesbaert, o espaço apropriado,
organizado, conectado e articulado por um determinado grupo cultural atra-
vés de processos simbólicos e afetivos que lhes são próprios e particulares.
Rogério Haesbaert7 trata os territórios culturais em uma configuração em rede,
ele traça duas modalidades de redes: as extrovertidas; e, as introvertidas. As
redes extrovertidas são aquelas cujos fluxos destroem territórios, chamadas
também de desterritorializantes. E, as introvertidas, que criam novos territó-
rios, chamadas de territorializantes que operam laços de cooperação, amizade
e ajuda mútua, de companheirismo e solidariedade operando linhas de fuga e
reterritorializações8.
Joel Bonnemaison (2002), geografo francês, inserido na vertente da Nova
Geografia Cultural, ou Geocultura, em seu trabalho Viagem em torno do ter-
ritório9, propõe um caminho de análise do espaço e dos territórios através da
cultura. Defende que é pela existência de uma determinada cultura que se cria
um território, e é através de um território que se desenvolve, fortalece, e se
exprime a relação simbólica existente entre espaço e cultura. O autor concebe
os territórios em uma perspectiva espacial de rede que ele chama de territó-
rios da errância. Bonnemaison considera territórios da errância, sobretudo das
comunidades tradicionais, a rede composta de espaços especiais, expressivos,
chamados de pontos fortes ou lugares significativos, e os itinerários, que são os
percursos, caminhos, trajetos, rotas reconhecidas que ligam e conectam os lu-
gares significativos (BONNEMAISON, 2002, p.98). Território da errância: lugares
significativos e os itinerários propiciam o espaço experimentado, vivido, percor-
rido, do desejo, da vontade, e da afetividade. Uma rede cujos nós (pontos), são
lugares significativos que em uma escala reduzida também constituem territó-
rios, e cujas linhas são os percursos, itinerários, rotas que conectam ''pontos
fortes'', tornando-se territórios em movimento, em fluxo, nômades. O ato de
percorrer é ele próprio um território nômade traçado pelo corpo do itinerante.
Segundo Joel Bonnemaison:

''[…] espaço e território não podem ser dissociados: o espaço


é errância, o território é enraizamento. O território têm ne-
cessidade de espaço para adquirir o peso e a extensão, sem
os quais eles não podem existir; o espaço têm necessida-

7 Ver HAESBAERT, Rogério. Hibridismo, Mobilidade e Multiterritorialidade numa Perspectiva


Geográfico-Cultural Integradora. In: SERPA, Angelo. Espaços Culturais. Vivencias, imaginações e repre-
sentações. Salvador: EDUFBA, p. 393-419. 2008.
8 DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia. vol. 5. São Paulo: Ed. 34,
1997.
9 BONNEMAISON, Joel. Viagem em torno do território. In: CORREA, R L. & ROSENDHAL, Z.
(Orgs.). Geografia cultural: um século (3). Rio de Janeiro: EDUERJ, p. 83-131, 2002.

628 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
de de território para se tornar humano''. (BONNEMAISON,
1981, p. 262).

O uno dilui-se, fragmenta-se, em uma totalidade de outra natureza, uma


totalidade fragmentária. Uma rede, territórios descontínuos, territórios intro-
vertidos, territórios itinerantes, lugares do sagrado que dão sustentação ao flu-
xo da vida, que levam fortunas e venturas aos desvalidos do sertão baiano. O
território é um conceito chave no entendimento das problemáticas e da vida
quilombola por diversos motivos: constitui o substrato espacial do desenvolvi-
mento da micro economia local, geralmente de base familiar onde se desen-
volvem práticas diversas de subsistência arraigadas na terra; pela relação com
a natureza (marés, estações do ano, ciclo lunar, etc...), que regem a vida e a
produção; pelas relações de parentescos que ali se estabelecem; pelos lugares
sagrados e simbólicos que agregam a comunidade; e pelas relações de ances-
tralidade personificadas na terra, o território assume para o quilombola uma
relação ontológica.
A Bahia é atualmente o segundo estado em número de quilombos certifica-
dos pela Fundação Cultural Palmares (FCP), são 462 quilombos, perdendo ape-
nas para o Maranhão com 632 quilombos. Do universo de quilombos da Bahia
os que apresentam os piores índices de desenvolvimento humano IDH, segun-
do diagnósticos da SEDES-Secretária da Pobreza e Desenvolvimento Social da
Bahia, são os localizados no semi-árido baiano, notadamente, os da região do
sisal, e dentre esses, o mais notório é o quilombo de Lajes dos Negros por cons-
titui uma rede que agrega cerca de 22 comunidades quilombolas.
A rede de comunidades remanescentes de quilombos de Laje dos Negros
fica a duas horas de estrada de terra de Campo Formoso, em meio a plantações
de sisal. O sisal constituiu a base econômica da região e, notadamente, das
comunidades quilombolas locais, que trabalham tanto nas plantações, quanto
no processamento do sisal.
Todavia, sob a égide do sisal essas comunidades vivem em sub empregos
próximo ao trabalho escravo, sobrevivem no limite da pobreza com ajuda dos
programas sociais do governo federal, principalmente o Bolsa Família, sendo
que, para algumas famílias esse benefício constitui a única fonte de renda.
A rede de quilombos de Laje dos Negros perfaz uma população de 12.700
pessoas, distribuídas da seguinte forma, por números de famílias: Laje dos Ne-
gros (700); Laje de Cima I (130); Laje de Cima II (124); Barroca (52); Sangrador I
(32); Sangrador II (36); Sangrador III (29); Mulumgu (84); Alagadiços (96); Casa
Nova (48); Amaro (66); Ferreira (42); Pato I (74); Pato II (33); Pato III (34); Pedra
(68); Paqui (150); Saquinho (55); Bêbedo (66); Poço Pedra (38); Lagoa Branca
(80); Buraco (48).
A rede de quilombos de Laje dos Negros surgiu, conforme Florência Costa
Nascimento, de 85 anos, neta de um escravo chamado Miguel da Costa a par-
tir da ação de um negro, escravo, chamado Luizinho. Segundo Dona Florência,

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 629


Artes, memória e espaços
Luizinho veio fugido e encontrou essa localidade protegida por uma cadeia de
morros, estratégica para fugas e para instalação de uma comunidade quilom-
bola, e lá casou e constitui família, dando o nome do lugar de Laje, mais tarde a
população do quilombo, acrescentou o termo Negros, dando a nomenclatura
atual de Laje dos Negros.
Uma outra versão dada por Dona Josefa Florentina Sales Celestino, 56 anos
de idade, e líder da comunidade quilombola de Barrocas (Fig.01), dona da ''Casa
Odum Rondu'', e que desenvolve os ofícios de parteira, curandeira e rezadeira o
nome Laje dos Negros é oriundo de um riacho próximo a comunidade constituída
de pedras e lajes e, em uma ocasião de fuga, dois negros, escravos, pularam e su-
miram no rio, daí o termo Laje dos Negros.

FIGURA 1: QUILOMBO BARROCAS

Fonte: Fábio Macêdo Velame, Campo Formoso, Bahia, 2010.

O Quilombo de Barrocas, que têm como padroeiro Santo Antônio, constitui a


comunidade quilombola da região mais precária e pobre. As casas não possuem
cisternas e fossas sépticas. A comunidade não possui sistema de abastecimento de
água da EMBASA, é abastecido por um tanque existente na comunidade quilom-
bola de Mulungu, tendo, portanto, graves problemas de abastecimento de água,
notadamente, durante o verão com as secas recorrentes.
O atendimento médico é precário, não possuem posto de saúde e o médico vai
a comunidade três vezes ao mês. A comunidade têm um alto índice de óbitos de

630 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
mulheres provenientes de complicações na hora do parto devido a distância ao
posto de saúde e hospital em Campo Formoso, a própria Dona Josefa teve 17 filhos
dos quais apenas 6 filhos encontram- se vivos, os demais, morreram no parto. Não
possui escola municipal, essa encontra-se no quilombo de Laje dos Negros, toda-
via, atualmente está desativada.
Todavia, embora seja a comunidade mais precária e desprovida de serviços ur-
banos dentre os quilombos de Laje dos Negros a comunidade quilombola de Bar-
rocas possui a principal construção da região: "Centro Odum Rondu" (Fig. 02), que
é a casa de Dona Josefa Florentina de Sales Celestino, também conhecida de Dona
Josefa, a "casa da esperança no sertão baiano".
O Centro Odum Rondu é uma Casa de Cabloco onde acontecem práticas afro-
-brasileiras mescladas com práticas oriundas do catolicismo popular do alto sertão
baiano. As principais manifestações culturais da comunidade são as festas oriundas
do catolicismo popular do sertão baiano mesclado com práticas de origem africa-
nas, ou seja, novenas seguidas com rodas de Samba - Rodas de São Gonçalo -, a sa-
ber: festa de São João; festa de Santo Antônio; Caruru de São Cosme e São Damião;
Santa Bárbara; e, a festa de São Gonçalo.
As duas principais festas da comunidade são a festa de Santo Antônio e São
Gonçalo, sempre seguida da aparição do Cabloco Odum Rondu, que dança, cura e
aconselha os desvalidos do sertão baiano, segundo Dona Josefa:

O Meu Santo Antônio de Luz ele é dono da Maré, ô


meu Santo Antônio de Luz, ele é luz, é luz, ô
meu Santo Antônio de Luz,

O Meu Santo Antônio de Luz ele é dono da Maré, ô


meu Santo Antônio de Luz, ele é luz, é luz, ô
meu Santo Antônio de Luz,

E, ainda temos a de São Gonçalo, ainda, segundo Dona Josefa:

São Gonçalo não é como os outros santos, como os outros san-


tos,
São Gonçalo quer que cante, quer que cante,

São Gonçalo não é como os outros santos, como os outros san-


tos,
São Gonçalo quer que cante, quer que cante.

O termo Odum Rondu é uma corruptela do termo Ogum de Ronda, que é


uma entidade respeitada e reverenciada em Terreiros de Candomblé da Na-
ção Angola e muito recorrente em templos de matrizes africanos no interior do
estado. Dona Josefa tinha uns "calundus" quando era criança e, com 12 anos
começou a "cair", depois começou a trabalhar rezando e tratando as pessoas,
como ela nos diz: "passei a fazer sentença de rezar as pessoa", usando sempre

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 631


Artes, memória e espaços
o raminho vassourinha, arruda, manjericão pra "rezar o povo". Odum Rondu,
dá o nome a casa, porque é o cabloco que mais se manifesta em Dona Josefa,
ele é o responsável pela "saúde" do povo e conselheiros dos desvalidos.

FIGURA 2: CASA ODUM RONDU

Fonte: Fábio Macêdo Velame, Quilombo de Barrocas, Bahia, 2010.

O "Centro Odum Rondu" é composta pela casa de Dona Josefa, com caracte-
rísticas residenciais, somada por um salão lateral, um "barracão", assemelhan-
do-se aos barracões dos terreiros de candomblé.
Esse "barracão" (Fig. 03) é constituído por dois espaços: o salão, onde se
realizam as festas da comunidade com as possessões das entidades (caboclos,
boiadeiros, vaqueiros ver Fig. 04), com a marcação no piso (itoto ver Fig.05) e no
teto do centro do salão (com conchas e fitas), em volta do qual se dão as festas,
onde dança o Cabloco Odum Rondu, constituindo o axi mundi da casa e, ainda,
uma salinha onde vestem as entidades; e, um nicho, ao fundo do salão onde está
um altar católico, com diversas imagens de santos e santas católicos (Fig.06).

632 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
FIGURA 3: BARRACÃO CASA ODUM RONDU

Fonte: Fábio Macêdo Velame, Quilombo de Barrocas, Bahia, 2010


FIGURA 4: CABOCLO ODUM RONDU

Fonte: Fábio Macêdo Velame, Quilombo de Barrocas, Bahia, 2010.

FIGURA 5: ITOTÔ BARRACÃO CASA ODUM RONDU

Fonte: Fábio Macêdo Velame, Quilombo de Barrocas, Bahia, 2010.


FIGURA 6: ALTAR CATÓLICO NA CASA ODUM RONDU

Fonte: Fábio Macêdo Velame, Quilombo de Barrocas, Bahia, 2010.

O "Centro Odum Rondu" desempenha várias funções dentro do quilombo, cons-


titui o coração do Quilombo de Barrocas, e, também, o centro da rede de quilom-
bos de Laje dos Negros. A casa tece o território-rede, o território extrovertido, o
centro da errância e da itinerância das comunidades quilombolas que a ele diri-
gem-se atrás de cuidados para seus infortúnios e fortunas, desventuras e venturas,
dando sustentação ao fluxo da vida. A casa possui diversas funções que se justa-
põem dentro do quilombo:

1. centro comunitário onde são realizadas as reuniões sobre problemas da comu-


nidade;
2. centro cultural, onde são realizadas as preparações das festas da comunidade;
3. creche, onde as crianças ficam enquanto as mães vão trabalhar no sisal;
4. centro de processamento do sisal e artesanato utilizando as fibras do sisal;
5. escola, onde as crianças desenvolvem atividades de coordenação motora e
aprendem as primeiras letras com os próprios lideres quilombolas que viram pro-
fessores improvisados;
6. posto de saúde, onde são feitos os tratamentos e práticas medicinais alternati-
vas e rezas por Dona Josefa;

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 635


Artes, memória e espaços
7. posto de serviços sociais com a distribuição de cestas básicas;
8. farmácia do povo onde distribuem-se os remédios da secretária municipal de
saúde;
9. centro religioso onde realiza-se as novenas católicas, missas, e o recebimento
de entidades para atendimento da comunidade.

E é justamente a religiosidade que torna a construção, o "Centro Odum Ron-


du" , o centro do quilombo de Barrocas, torna-a a principal construção da rede
de quilombo de Lajes dos Negros. Ela é a mais importante porque a população
local atribui o valor de ancestralidade ao cabloco Odum Rondu, que pelas curas,
tratamentos, realizações e acontecimentos feitos aos desvalidos no alto sertão de
Campo Formoso tornou-se um ancestral coletivo de toda a rede de quilombos de
Laje dos Negros.
A figura do Odum Rondu e a sua morada, sua casa, constrói a identidade da
comunidade quilombola de Laje dos Negros. O Centro Odum Rondu propicia, num
primeiro momento, uma identidade primordial, enquanto herança recebida da
imagem de uma entidade coletiva cujo prestigio se estende aos seus seguidores,
cabloco que historicamente havia salvado seus pais, avós e bisavós de grandes
mazelas. Num segundo momento, uma identidade relacional, na medida em que,
distingue e diferencia os membros dos quilombos de Laje dos Negros das popula-
ções dos demais quilombos da região, imprimindo um teor de prestigio por serem
protegidos por um cabloco forte e de grande poder. E, por fim, uma identidade
situacional, em momentos em que, essa população enfrenta grandes mazelas, em
períodos de grandes secas, quando o caboclo se faz mais presente trazendo fortu-
na e ventura aos desvalidos do sertão.
Todos os membros da Rede de Quilombos de Laje dos Negras se reportam para
a Casa Odum Rondu, para ouvi do Cabloco uma solução ou conselho sobre pro-
blemas pessoais de ordem profissional, financeiros, saúde, de amor, e, também,
coletivos em épocas de grandes secas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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nos. São Paulo: 1992. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências,
Universidade de São Paulo, 1992.

SOUZA. Vilson C. Nagô: A nação de ancestrais itinerantes. Salvador: Ed. Fib, 2005.

AUTORIA
Fábio Macêdo Velame
Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia, CEAO – Centro de
Estudos Afro-Orientais da UFBA
E-mail: velame.fabio@gmail.com
ORCID: 0000-0003-4414-2521
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0386406510741414

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 637


Artes, memória e espaços
QUILOMBO SALAMINA PUTUMUJU:
ARQUITETURAS DA RESISTÊNCIA
QUILOMBOLA DO RECÔNCAVO BAIANO
Fábio Macêdo Velame

INTRODUÇÃO
O presente trabalho visa analisar a importância da terra enquanto um elemento
de resistência cultural e construção identitária - do território a arquitetura -, nas
Comunidades Quilombolas de Maragojipe, Recôncavo Baiano, sobretudo, na co-
munidade remanescente de Quilombo Salamina Putumunju. A partir da questão
"Como a terra materializada na Arquitetura do Quilombo estabelece uma cosmo-
visão, uma ética e estética a comunidade?"A terra, nessa comunidade quilombola,
como elemento material da produção arquitetônica é depositaria de saberes locais
vinculadas aos valores de natureza, ancestralidade e parentesco, e compõe a sua
cosmovisão e o seu ethos.
Entretanto, hoje em dia, existe um processo paulatino de abandono do uso da
terra na arquitetura em virtude de três aspectos: a chegada dos projetos da Minha
Casa Minha Vida, a Ética e Estética dos Cultos Neopentecostais, e o desmatamento
proveniente de diversos fatores, principalmente, o plantio de eucaliptos para a
indústria de celulose que reduziu, substancialmente, a oferta de madeiras de lei.
A comunidade quilombola de Salamina Putumuju localizada1 no município de
Maragojipe-Ba (ver Fig.01), constitui a maior comunidade quilombola da região
formada por 52 famílias e distribuídas em seis localidades: Tororó, Ponta do Ferrei-
ro, Olaria, Dunda, Piripau, e Forte Salamina (ver Fig.02).
O quilombo de Salamina Putumuju constitui, também, o maior quilombo do
município em extensão territorial ocupa cerca de 2.061,5588ha, um perímetro de
25.000m e é uma referência na luta pela posse da terra para todos os demais qui-
lombos locais2. Foi certificada como Comunidade Remanescente de Quilombo3

1 A Comunidade Remanescente de Quilombo Salamina, esta situada na foz do rio Paraguacu,


no municipio de Maragojipe, compreende as areas de Terrenos de Marinha area Remanescente da
Fazenda Salamina de propriedade Espolio de Rosalvo Ribeiro Sanches Junior, Fazenda Eleonora de
propriedade do Sr. Eduardo Raimundo Neiva Lordelo, Fazenda Santa Maria de propriedade do Sr.
Eduardo Raimundo Neiva Lordelo, Fazenda Salamina de propriedade da Sra. Tania Maria Martinez
Sanches, Sítio Jaqueira de propriedade do Sr. Paulo Roberto Guerra Armede e Terras de Dação em
Pagamento do Sr. Eladio Ferreira Borges, todas proximas ao distrito de são Roque do Paraguacu, mu-
nicipio de Maragojipe. O territorio outrora sediava um grande engenho de cana-de-acucar denomina-
do Engenho Novo.
2 Em Maragojipe há 15 comunidades quilombolas: Dendê, Topa de Cima, Porto da Pedra,
Guaí, Guerém, Guaruçu, Giral Grande, Guizamga, Tabatinga de Baixo, Tabatinga de Cima, Zumbi, Buri,
Enseada do Paraguaçu. Salamina Putumuju, Pinho.
3 Em seu Artigo 2o, o decreto 4887/2003 considerou remanescentes das comunidades dos
quilombos: os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica

638 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
pela Fundação Cultural Palmares em 2003, e o seu RTID - Relatório Técnico de
Identificação e Delimitação Territorial foi elaborado pelo INCRA e concluído em
outubro de 2006. O processo de demarcação e titulação das terras encontra-se em
finalização no INCRA.

FIG.01: LOCALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES


QUILOMBOLAS DE MARAGOJIPE-BA

Fonte: Fábio Macêdo Velame, Salvador, 2012.

FIG.02: LOCALIDADES DO QUILOMBO SALAMINA PUTUMUJU

Fonte: Fábio Macêdo Velame, Salvador, 2012.

própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacio-
nada com a resistência à opressão histórica sofrida. A expressão Quilombo é um conceito próprio dos
africanos bantos que vêm sendo modificado ao longo do tempo: quer dizer “acampamento guerreiro
na floresta” (Lopes in: Boaventura, 2003). A matriz de inspiração da luta veio do quilombo africano
para se opor a uma estrutura escravocrata e pela implantação de uma outra ordem politica, o que
implica resistência territorial as formas de opressão.
Maragojipe era habitada por índios tupinambás que dedicavam-se a roças, a
pesca e a caça. Os colonizadores portugueses dedicaram-se, num primeiro momen-
to, a exploração da madeira, e, em seguida, a cultura da cana-de-açúcar, quando
foram construídos diversos engenhos ao logo do Rio Paraguaçu, dentre os quais,
em Maragojipe destacou-se o Engenho Novo.
No século XVII foi edificado o Forte de Santa Cruz, também chamado de Forte
Salamina, como elemento de defesa da entrada do Rio Paraguaçu de invasões es-
trangeiras em virtude do papel que a região adquiriu como a principal produtora
mundial de açúcar após a redução do papel do Haiti nesse mercado em consequ-
ência das rebeliões de 1792 que aconteceram naquele país. No Engenho Novo, por
volta do final do século XIX, não se cultivava mais a lavoura de cana-de-açúcar. As
atividades desenvolvidas passaram a ser a extração de madeira e de piaçava, e per-
duraram até ela ter sido comprada por Tiopombo de Almeida que criou a Fazenda
Charqueada Salamina e instalou a criação de gado de forma extensiva.
Alguns remanescentes de quilombos originários do antigo engenho foram tra-
balhar no charqueamento da carne, outros foram constrangidos a sair das áreas
que ocupavam e se concentraram em locais de difícil acesso, onde puderam plan-
tar sem o incomodo dos animais que destruíam suas roças, e continuar a extrair
a piaçava. (RTID-Salamina Putumuju, INCRA, 2006, p.19). Logo após a falência da
Fazenda Charqueada e do processamento da carne, a fazenda foi comprada por
Rosalvo Ribeiro Sanchez que deu continuidade a pecuária, mas agora, junto com a
atividade da piaçava e da extração da madeira. Com a morte de Rosalvo a fazenda
foi herdada pelo seu filho Rosalvo Ribeiro Sanchez Junior que deu continuidade
as atividades econômicas do pai. Ainda, então, os trabalhadores empregados nas
atividades da fazenda eram de remanescentes da fazenda Fazenda Charqueada
Salamina.
Todavia, antigas práticas do sistema escravista juntavam-se a novas, tais como:
violência física e moral4, com castigos corporais e psicológicos; atribuição de no-
mes de animais da fazenda aos trabalhadores no batismo ou como apelidos; a
obrigatoriedade de comprar os mantimentos alimentícios nas estrebarias e mer-
cados do dono da fazenda, produtos geralmente apodrecidos; obrigatoriedade de
entregar a metade ou dois terços da produção ao dono da fazenda; a proibição de
comer e comprar produtos caso não trabalhassem por motivos quaisquer, inclusi-
ve de saúde; a venda da fazenda de porteira fechada, inclusive com a venda das

4 Os integrantes da comunidade denunciam que, até bem pouco tempo, era comum por
parte dos proprietários a prática de violência física (castigos) e moral, que remetem ao período escra-
vagista: ''... os trabalhadores apanhavam com as mãos para trás...Rosalvo Velho gostava de bater, ele
criava o diabo debaixo do porão. Quando queria castigar amarrava uma arroba de piaçava na cabeça
do trabalhador prendia num cinto de aço e o nego tinha que ficar andando pra cima e pra baixo”.
Dona Palmira relata como era a relação entre os proprietários e os trabalhadores: “eu vim para cá
moderninha , cheguei aqui com 16 anos de idade, aqui era uma escravidão perpétua,... nas roças aqui
quem comia eram os animais...queriam vender a fazenda com os trabalhadores dentro como se fosse
animal...a gente trabalhava no pé do patrão que não tinha jeito, se não trabalhava não comia, os
escravos eram amarrados para apanhar no pé de cajarana, naquele tempo amarrava e batia até um
ficar doido.” (RTID- Salamina Putumuju, INCRA, 2006, p.20).

640 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
dívidas dos trabalhadores nos mercados e mercearias dos fazendeiros – vendendo
indiretamente a mão-de-obra local por intermédio das dívidas -, impossibilitado
a mobilidade dos trabalhadores locais; o seciamento da liberdade e do direito de
ir e vir em função das dívidas dos trabalhadores com os fazendeiros; expulsão de
trabalhadores das terras onde encontravam-se à gerações, em função de conflitos
e resistências locais5.
As principais atividades econômicas de subsistência da Comunidade Quilombo-
la de Salamina Putumuju são: o cultivo e o processamento do Dendê; a extração da
Piaçava; pesca e mariscagem; as roças de mandioca, aipim, banana, milho, feijão,
melancia (bobô), e a criação de gado extensivo.
E, as principais manifestações culturais que acontecem no quilombo, que resis-
tem de forma paralela a entrada paulatina dos cultos neo-pentecostais, são: janei-
ro-ano novo, fevereiro- iemanjá e carnaval, março-São José, abril-Semana Santa e
Sábado de Aleluia, junho-Santo Antônio, São João, São Pedro, agosto-São Barto-
lomeu, Sant´ana, São Roque, setembro-Cosme e Damião, dezembro-Natal. Temos
ainda: samba de roda, e a arquitetura de terra feita de taipa-de- mão, também
chamado de supapo.
A taipa-de-mão ou supapo, é uma técnica tradicional de terra do período co-
lonial constituída por uma estrutura primária e secundária (grade) em madeira e
preenchida com barro lançados a mão, daí o termo supapo. Essa técnica, comum
em comunidades rurais e urbanas do interior do Estado da Bahia, têm na Comuni-
dade Quilombola de Salamina Putumuju um dos principais patrimônios imateriais
e materiais em virtude de condensar em sua constituição os valores de: natureza,
ancestralidade, parentesco.
O valor da natureza nos é apresentado por Paul Claval (2004), em A Paisagem
dos Geográfos6, ao tratar a relação entre paisagem pictórica e natureza sacraliza-
da, entre olhar paisagístico e olhar cosmológico.

5 Para José de Souza Martins existe uma clara ligação entre a cessação do tráfico negreiro da
Africa para o Brasil em 1850 e a promulgação, no mesmo ano, de uma Lei que previa o desenvolvi-
mento de uma politica de imigração de colonos estrangeiros, sobretudo europeus. A Lei de Terras no
601, de 18 de setembro de 1850, dispôs sobre as terras devolutas do Império, sobre as possuídas por
títulos de sesmarias, sem preenchimento das condições legais, bem como por simples título de posse
mansa e pacífica (não entendi, esta confuso). Determinou que medidas e demarcadas as primeiras,
fossem elas cedidas a título oneroso, para empresas particulares, como para o estabelecimento de
colonias nacionais e de estrangeiros, autorizado o governo a promover a colonização estrangeira na
forma a que se declarar. Assim, a impossibilidade de ocupação sem o pagamento das terras devolutas
recriava as condições de sujeição do trabalho e do trabalhador que deveria desaparecer com o fim do
cativeiro. Diante deste contexto, as condições de sujeição do trabalhador e, por consequência , do es-
cravo liberto, foi delineando um processo de exclusão deste ex-escravo da possibilidade de ascensão
sócio-político-econômica, principalmente por se tratar de uma sociedade formada por grandes ex-
-senhores de escravos, como na região da Bacia do Vale do Iguape. (RTID-Salamina Putumuju, INCRA,
2006, p.18).
6 CLAVAL, Paul. A Paisagem dos Geógrafos. In: CORRÊA, Roberto Lobato; ROSENDAHI, Zeny
(orgs). Paisagens, Textos e Identidade. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2004, p.13-14.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 641


Artes, memória e espaços
Paul Claval defende que os países que começaram a praticar a pintura de pai-
sagens foram à China a partir do século IV e os Países Baixos, no Ocidente, com a
pintura flamenga no século XV, originando as civilizações paisagísticas:

"O Termo paisagem aparentemente não tem mistério. Surgiu no


século XV, nos Países Baixos, sob a forma de landskip. Aplica-se
aos quadros que apresentam um pedaço da natureza, tal como
a percebemos a partir de um enquadramento – uma janela, por
exemplo. Os personagens têm aí um papel apenas secundário.
A moldura que circunda o quadro substitui, na representação, a
janela através da qual se efetua a observação". (CLAVAL, 2004,
p.14).

A janela é a moldura que enquadrava a região, a pátria, o lugar de nascença,


ou seja, o pays, de onde deriva o termo paysage: "vista de um conjunto de uma
extensão do pays.’’ (CLAVAL, 2004, p.14). A janela criou o ‘’olhar paisagístico" que
já no seu nascedouro produziu a dessacralização do solo ancestral do pays, solo
sagrado dado por Deus e guardião dos restos mortais dos ancestrais, retirando da
cena o caráter religioso da natureza, que ao profaná-lo, transforma-o em paisagem
autônoma, esvazia o "olhar sagrado":

"A análise antropológica das relações com a paisagem implica,


portanto, uma reflexão sobre as formas de visão englobante que
caracterizariam o mundo ainda encantado das religiões tradicio-
nais, onde o sagrado estava em todos os lugares, e sobre as re-
lações entre o desencantamento do mundo e a estetização da
visão da natureza." (CLAVAL, 2004, p.14).

Na Comunidade Quilombola de Salamina Putumuju a natureza é sacralizada,


não é apenas algo natural, ou uma paisagem pictórica. Mas sim, uma construção
e habitat de entidades, uma natureza "encantada", onde o sagrado está presente
em determinados lugares: em pedras, fontes, riachos, matas, e árvores. A natureza
torna-se uma hierofania, com diversas manifestações e erupções do sagrado no
mundo. Essas arquiteturas feitas pelos quilombolas, torna-se ela própria parte in-
tegrante dessa natureza divinizada.
Não há, portanto, uma arquitetura do homem enquanto um artifício, artificial,
criado pelo homem como algo em contraposição a natureza, um domínio do ho-
mem sobre a natureza. Pelo contrário, a arquitetura do terreiro torna-se uma con-
tinuidade, uma extensão da natureza sacralizada, uma continuidade da morada de
entidades das matas, ancestrais, regidos sempre pelas ciclos da natureza: marés,
estações do ano, movimento da lua, e fauna.
O valor de ancestralidade, nos é trazido de forma mais ampla por Júlio Bra-
ga (1995), em Ancestralidade Afro-brasileira: O Culto de Babá Egum de Ponta de

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Artes, memória e espaços
Areia7, ao se debruçar sobre o culto de Babá Egum, dos mortos ilustres da comu-
nidade e de africanos, em Ponta de Areia, na Ilha de Itaparica, compreendendo o
papel central da ancestralidade na organização social dessa comunidade afro-bra-
sileira. Júlio Braga estuda como a noção de ancestralidade gera normas comporta-
mentais e disciplinadoras, dando coesão a comunidade pelas relações de coopera-
ção e ajuda mútua oriunda do respeito às orientações dos ancestrais. E, sobretudo,
a regência dos ancestrais na esfera do cotidiano dos membros da comunidade nos
espaços públicos e privados na cidade, tratando até os pormenores da organização
doméstica em função da ancestralidade.
A arquitetura conserva não só o templo, mas também a memória do ancestral
fundador da casa através da conservação da maneira de fazer, dos ensinamentos,
dos gostos estéticos, dos desejos e vontades, dos lugares edificados pelo ances-
tral. Lugares que conservam a tradição legada pelo fundador do templo através do
respeito e amor da comunidade terreiro pelo seu ancestral coletivo. Presente nos
momentos das festas, nas mazelas da vida cotidiana dacomunidade, e no dia-a-dia
das condutas dos filhos-de-santo, mesmo de outras gerações. Uma presença que
se dá na ausência.
Ao se conservar a taipa-de-mão, o supapo, ao se preservar os lugares onde se
deve pegar os melhores barros, a terra onde se oferece as melhores ligas; ao se
manter o saber das melhores árvores, resistentes ao tempo, aos cupins e blocas; ao
respeitar o saber dos ciclos do tempo de retirada da madeira da mata; ao zelar pelo
telhado com as telhas moldadas nas "coxas" apoiadas em ripas e caibros roliças
de galhos de árvores; ao cuidar do piso em chão batido, cimentado ou cerâmico,
com seus bancos de madeira agreste, e suas portas e janelas aparelhadas, no gos-
to dos ancestrais, se mantém a memória do ancestral coletivo da comunidade, o
fundador, se mantêm a tradição. Não se quer meramente conservar uma estética,
uma imagem, uma expressão arquitetônica determinada, o que se conserva, o que
permanece, é a tradição que se encontra resguardada e velada no cuidado com a
memória do ancestral familiar. Porque, para eles assim foi feito pelo ancestral, ali,
naquela arquitetura, está condensado o seu esforço, o seu sacrifício, a sua luta, a
sua resistência, sua caridade, desejos e gostos; é o lócus da história de vida deles
que se confunde com a história da própria comunidade.
O valor de parentesco aparece enquanto processo. É Claude Lévi-Strauss (1949),
em As Estruturas Elementares do Parentesco8 que nos coloca a questão do paren-
tesco a partir dos seus estudos sobre as casas da Europa durante a Idade Média.
Ele irá transformar a casa, e a arquitetura, no campo da antropologia, em uma
categoria analítica sócio-cultural fundamental dos estudos das relações do paren-
tesco, indo além das noções de clã, linhagem de sangue, família real, aliança e
descendência unilinear e bilinear.

7 BRAGA, Júlio Santana. Ancestralidade Afro-Brasileira: O culto de Babá Egum de Ponta de


Areia. Salvador: Ed. EDUFBA, 1995.
8 LÉVI-STRAUSS, Claude. As Estruturas Elementares do Parentesco. Petrópolis: Vozes, 1982.

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Artes, memória e espaços
Ele retira a arquitetura, a "casa", de um patamar inferir, de um mero cenário, de
mero sustentáculo da família, do nome da família, para o grau de elemento central
nos estudos das relações de parentesco nas sociedades complexas. Ele vai além
da oposição de aliança-filiação, sugerindo a casa, como meio, com o objetivo de
compreender as relações de parentesco e a construção da família.
Nesse sentido, Lévi-Strauss irá trabalhar a casa enquanto um símbolo dos laços
sociais numa forma material, como uma instituição social. Onde as realidades só-
cio-culturais, os contextos sócio-históricos constituem as casas, e são num sentido
inverso, constituídas pelas próprias casas. Lévi-Strauss defende que os processos
de construções das casas, tal como as suas espacialidades e expressões arquitetô-
nicas que as diferenciam, não devem e não podem ser trabalhados dissociados dos
grupos e comunidades culturais que as constroem e as habitam, e, num sentido
contrário, as casas tecem, compõem, constituem os contextos sócio-culturais des-
sas comunidades. Estabelece-se, logo, uma relação umbilicar.
É no ato e ação de se juntar, de se agrupar, de se unir em prol da conservação
das casa do Quilombo Salamina Putumuju, que a arquitetura produz a coesão da
comunidade, cujas localidades são nucleações familiares. Cada localidade em Sala-
mina é constituída por uma família que tece suas relações de parentesco de sangue
na manutenção da casa, assim, temos: em Olaria a família do Carmo, em Tororó a
família Conceição, na Ponta do Ferreiro a Família Costa, Forte de Salamina a família
Rocha Santos. No ato de irem juntos a mata recolher galhos e troncos de árvores
para o telhado, portas e janelas, para fazer a trama da taipa; retirar a terra e a água
do riacho e/ou fonte para fazer o barro do chão e das paredes, ou num mutirão
com materiais industrializados que se transmite, nessa temporalidade: os aconte-
cimentos da casa; as histórias de vida e feitos dos ancestrais; os acontecimentos
individuais; as histórias dos mais velhos, o saber da mata (o local do barro, espécies
de árvores e madeiras).
As casas quilombolas de Salamina Putumuju possuem os seguintes elementos
construtivos: estrutura primária formada por pilares chamados pelos quilombolas
de forquilhas, que rodeia toda a construção; as vigas, denominadas de travessas,
que fecham toda a parte superior da casa e amarra as forquilhas, além de apoiar a
cobertura; a cumeeira e terças da cobertura (ver Fig. 03 a 06).
Todas essas peças necessitam de madeiras mais resistentes e duradouras, por-
que recebem os principais esforços e darão a amarração da estrutura, além de
apoio a taipa (barro), e são frequentemente feitas das seguintes madeiras: biriba e
sucupira, madeiras escuras e mais resistentes. Tanto a trama quanto as forquilhas
são fixados ao solo a uma profundidade entre 50cm a 1m, sempre rodeadas com
conchas de ostras retiradas das atividades de mariscagem e criação no rio Para-
guaçu, porque sendo ricas em cálcio elas produzem um endurecimento na base,
penetração no solo e na própria madeira (ver Fig. 03 a 06).
A estrutura secundária é constituída de: trama do telhado, trama de vedação, e
estrutura dos vãos de esquadrias. Essas três partes são feitas de madeiras claras e

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Artes, memória e espaços
pouco resistentes. Assim a trama do telhado compostas de ripas e caibros tem as
madeiras: ripas a murta e pati, caibros a murta e a biriba. A trama de vedação, cha-
mada pelos quilombolas de grade, será feitas de madeira pau de leite e popombo,
madeiras claras e pouco resistentes. A estrutura dos vãos das esquadrias (portas
e janelas), chamada de portal pelos quilombolas será composta das madeiras can-
deias e pau de leite, também, madeiras claras e pouco resistentes (ver Fig. 03 a 05).

FIG.03: ESTRUTURA PRIMÁRIA E SECUNDÁRIA


DE UMA CASA NO QUILOMBO SALAMINA PUTUMUJU

Fonte: Fábio Macêdo Velame, Salvador, 2012

FIG.04: ESTRUTURA PRIMÁRIA E SECUNDÁRIA


DE UMA CASA NO QUILOMBO SALAMINA PUTUMUJU

Fonte: Fábio Macêdo Velame, Salvador, 2012


FIG.05: TRAMA (GRADE) DE MADEIRA DE VEDAÇÃO DAS PAREDES

Fonte: Fábio Macêdo Velame, Salvador, 2012

As casas do Quilombo de Salamina Putumuju possuem uma forte relação com o


lugar, o sítio e natureza. Segundo os conhecimentos das comunidades quilombolas
locais a retirada da madeira da estrutura primária da casa que compõe os pilares
(forquilhas), as vigas (travessas), terças, cumeeiras só podem ser feitas no verão e
na primavera, nos três dias depois da lua cheia, durante a lua minguante, e apenas
durante a maré baixa, de preferência no início do dia. Isso se deve porque durante
a lua cheia as marés atingem sua altura máxima, aumentando o nível de umidade
no ambiente que são absorvidas pelas madeira que, consequentemente, incham,
aumentam de volume e de seção, facilitando a entrada e penetração de cupins e,
principalmente, brocas, sobretudo, nas madeiras claras que possuem maior índice
de materiais ligantes entre as fibras da madeira que serve de alimentos a esses
insetos. As famílias quilombolas de Salamina Putumuju tentam, na medida do pos-
sível, utilizar em todas as peças da estrutura secundária a biriba que é mais resis-
tente do que as demais, todavia, pouco encontrada na região.
A argila para fazer o supapo (barro) e preencher a trama das paredes de veda-
ção é retirado da região as margens do Rio Paraguaçu onde funcionava uma antiga
olaria cuja atividade deu nome a uma das localidades do quilombo, a localidade de
Olaria, e, também, de um ponto determinado na área de extração do dendê den-
tro da mata. Isso deve-se a qualidade da liga do barro, mais aderente, maleável e
resistente. Além desse saber ancestral, tautológico, e técnico as comunidades qui-

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Artes, memória e espaços
lombolas tomam alguns cuidados espaciais para a manutenção dessa arquitetura
de terra, tais como: existência de varandas laterais e frontais, que envolvem toda
a construção, protegendo as paredes de barro das chuvas de açoites e dos ventos
fortes que provocam a erosão e depredação; argamassas e pinturas a base de cal
para revestir as paredes e evitar insetos, notadamente, o ''barbeiro'' responsável
pela doença de Chagas; a construção de uma cozinha com fogão a lenha fora e
afastado do corpo principal da construção para evitar incêndios; elevação do piso
para evitar a umidade de capilaridade nas paredes (ver Fig. 06 e 07).
Todavia, esse rico patrimônio imaterial e material que condensa os valores de
natureza, ancestralidade e parentesco passado de geração à geração está em risco
em virtude de três aspectos: 1 - Políticas públicas de habitação homogenizantes - a
chegada dos projetos do Programa Minha Casa Minha Vida; 2 - A Ética e a Estética
dos Cultos Neo-Pentecostais; 3 - Redução substancial da oferta de madeira de lei
em virtude do desmatamento.
As políticas públicas de habitação homogenizantes empregadas por órgãos es-
taduais e federais de habitação começam a chegar a essas comunidades, notada-
mente, o Programa Minha Casa Minha Vida, depois de diversas solicitações e rei-
vindicações das próprias comunidades quilombolas. Todavia, sempre centradas na
edificação, na casa, desvinculadas de propostas mais integradas e abrangentes do
habitat humano com urbanizações, infra-estrutura, saneamento, espaços públicos,
equipamentos urbanos, acessibilidade e mobilidade, dentre outros. E, ademais, a
própria casa encontra-se desvinculada da cultura local, das práticas sociais e mani-
festações culturais quilombolas, vem sempre como um modelo pré-estabelecido,
de cima pra baixo, de fora pra dentro, não atendendo a realidade local, as vontades
e desejos locais.
A Ética e a Estética dos Cultos Neo-Pentecostais começam a penetrar nas co-
munidades quilombolas de Maragojipe, principalmente, no Quilombo de Salamina
Putumuju cujos os evangélicos, hoje em dia, perfazem cerca de 80%. A penetração
desses cultos reduziu bastante e quase extinguiu as manifestações afro-brasilei-
ras locais como o samba de roda, as rezadeiras, a presença do Candomblé e do
povo-de-santo que migraram para São Francisco do Paraguaçu, algumas práticas
alimentares, e, também, afro-católicas como a festa de São Cosme e Damião. A éti-
ca dos cultos neo-pentecostais, herdada do protestantismo, prega que a a riqueza
e o conforto material na vida terrena são graças e bençãos de Deus pelo trabalho,
disciplina, dedicação e obediência. Portanto a arquitetura de terra é vinculada e
associada a pobreza, miséria, abandono decorrente de práticas locais afro-brasi-
leiras, afro-católicas, católicas e, principalmente, pelos quilombolas não serem até
então evangélicos e conhecedores da ''palavra''.
Assim, logo após a construção da Igreja Evangélica do Tororó, feita de bloco, os
novos fiéis quilombolas passaram a buscar, também, suas casas de bloco, sendo,
portanto, abençoados, redimidos, glorificados por serem, agora, vinculados as no-
vas práticas religiosas evangélicas.

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Artes, memória e espaços
A redução substancial da oferta de madeira de lei em virtude do desmatamento
é o fator principal do abandono da arquitetura de taipa-de-mão entre as Comuni-
dades Quilombolas. Os desmatamento galopante acontece para a feitura de roças,
criação de gado de forma extensiva que necessita de grandes áreas, da expansão
da industria da celulose com o plantio de eucaliptos e bambu na região, começan-
do a criar os desertos verdes na região, e, notadamente, para a extração e mer-
cantilização da madeira. Atualmente uma casa de taipa-de-mão no Quilombo de
Salamina Putumuju dura no máximo entre 5 à 6 anos, na geração anterior esse
período era de 12 à 15 anos, ou seja, hoje em dia uma pessoa nessa comunidade
quilombola terá de construir em média nove casas de taipa-de-mão, de supapo,
ao longo da vida, tornando-as, logo, indesejáveis pelo trabalho recorrente de fei-
tura que elas impõe. As madeiras encontradas e coletadas atualmente nas matas
da região são de baixa qualidade, durabilidade, resistência a umidade e a ação de
agentes biológicos de degradação.
Os valores de natureza, ancestralidade e de parentesco que mantinham essas
arquiteturas de terra em pé, lhes insuflavam vitalidade, riqueza, beleza, significado
e sentido não são mais suficientes para enfrentar as politicas públicas homoge-
neizantes de habitação, a ética e a estética dos cultos neo-pentecostais, e, muito
menos, os desmatamentos regidos pelo capital. Com esses rompe-se o fazer junto
a casa de barro tecendo as relações familiares de sangue e de cooperação, a família
extensa; quebra-se a memória dos ancestrais (pais, avós e bisavós), que ensinaram
os locais de coleta do melhor barro, que madeiras são boas e quais devem ser apli-
cadas em cada peça estrutural e de fechamento da casa; rompe-se a relação com a
natureza - com a maré, a lua, o tempo, as estações do ano. Vemos o esquecimento
de tais técnicas, saberes e fazeres nessas comunidades, e com elas o esquecimento
da própria identidade quilombola.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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LÉVI-STRAUSS, Claude. As Estruturas Elementares do Parentesco. Petrópolis: Vozes, 1982.

AUTORIA
Fábio Macêdo Velame
Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia, CEAO – Centro de
Estudos Afro-Orientais da UFBA
E-mail: velame.fabio@gmail.com
ORCID: 0000-0003-4414-2521
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0386406510741414

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Artes, memória e espaços
O CULTO DOS ANTEPASSADOS: DINÂMICAS
IDENTITÁRIAS DO POVO MACUA EM CONTEXTO
URBANO NA CIDADE DE QUELIMANE -
MOÇAMBIQUE
Jacinta Francisco Dias

INTRODUÇÃO
Depois das independências, os países africanos se alinharam para mudar a es-
trutura político-administrativo deixado pelos colonizadores. Neste contexto, Mo-
çambique marxista-leninista avança pelo projeto de “unidade nacional” para a
construção da identidade nacional e do homem novo para uma nova nação cujo di-
versos agrupamentos étnico-culturais foi submetida ao projeto assimilacionista do
governo português em Moçambique durante a ocupação efetiva (1884/1885). As-
sim, o alcance da identidade nacional em Moçambique passava pela homogeneiza-
ção da população moçambicana assim como disse PAREDES quando se refere que,
“[... ] O programa da FRELIMO passava pela luta contra as fidelidades do passado,
sejam as do colonialismo, sejam as do tradicionalismo.” (PAREDES, 2014, p. 21).
Pesquisas relacionados com identidades culturais, relações étnicas raciais, na-
cionalização, tem sido discutido por vários autores e Estados. O Brasil, tem 50%
da população que se autodeclara afrodescendentes da escravatura transatlântica
e de religiões de matriz africana, defende a inclusão nos curricular de educação
fundamentalmente nos cursos de Arquitetura e urbanismo de conteúdos da rela-
ções étnico-raciais, História, Cultura Africana e Afro-brasileira. A ideia, é devolver
uma parte da História e da ancestralidade a esses povos que durante muito tempo
contribuíram para a edificação das Cidades e das cidades Brasileiras (CARTA, 2018).
Nos dias de hoje é preciso entender as identidades em seus valores simbólicos
e o significado das crenças e do comportamento religioso na sua prática pois o
mundo globalizado transforma até as culturas isoladas (MARTINEZ, 2009).
Contudo, procurar compreender as mudanças que ocorreram ao longo do tem-
po na prática do culto dos antepassados leva ao conhecimento de um conjunto de
fatores condicionantes das mudanças sociais e culturais que afetam os povos im-
plicando na nova forma de ver e perceber os significados em meio urbano. Várias
são as perspectivas analíticas que entendem que assim como as fronteiras entre os
países africanos são arbitrárias, as identidades africanas também são uma constru-
ção imperialista (PATRÍCIO, 2011). Nesta perspectiva, torna pertinente entender
que as sociedades evoluem juntamente com as suas práticas que por vários fatores
carregam na “mochila” para lá onde “forem” na possibilidade de perder ou ganhar
uma nova identidade no lugar de chegada.

650 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
A abordagem do tema obedeceu ao método etnográfico, com o sustento biblio-
gráfico. Através da entrevista, várias entidades1 foram exploradas considerados
conservadores da história e tradições do seu povo. Para a concretização dos objeti-
vos foi necessário localizar geograficamente Moçambique e o povo Macua e inclui
a cosmogonia sobre a origem e organização sociocultural para depois o descrever o
contexto histórico de construção da identidade nacional e por fim apresentar a prá-
tica do culto aos antepassados em suas dinâmicas urbana da cidade de Quelimane.

LOCALIZAÇÃO GEOGRÁFICA DA REPÚBLICA DE


MOÇAMBIQUE
Para a compreensão do texto torna pertinente apresentar o território de Mo-
çambique. Localizado na África Austral e na costa oriental africana entre os parale-
los 10º 27’ e 26º 56’ de latitude sul, entre os meridianos 30º 12’ e 40º 51’ de longi-
tude este (MACUVEIA, 2018, p.5). Em termos da extensão territorial, Moçambique
limita-se com a Tanzânia ao norte através do rio Rovuma, a noroeste pela Zâmbia
e Malawi, a oeste pela república Zimbabweana, Sudoeste pela Suazilândia, a sul e
oeste pela república da África do Sul e pelo oceano índico a este. A população de
Moçambique, maioritariamente rural2 encontra-se distribuída territorialmente em
11 províncias, incluindo a capital Lourenço Marques, atual Maputo. De acordo com
os resultados de recenseamento geral da população e habitação 2017, a população
de Moçambique é de 27.909.798 Habitantes. Sendo 13.348.448 equivalente a 48 %
de homens e 14.561.352 equivalente a 52 % de mulheres (INE, 2017).

FIGURA 1: LOCALIZAÇÃO DA ÁFRICA AUSTRAL (MAPA 1)


GRUPO ÉTNICO POR PROVÍNCIAS DE MOÇAMBIQUE

Fonte: Elaborado por Isaac Ferreira Cavalcante 2020, com Qgis (3.14), pacote (HCM GIS).

1 Refere-se aos líderes comunitários, famílias seleccionadas aleatoriamente e pertencentes a


etnia Macua. Os Macuas residentes na cidade de Quelimane não se localizam num bairro específico,
porém, pode encontrar em um número maior ou menor em determinados bairros. Os informantes
desta pesquisa são residentes nos bairros Santagua A, Santagua B1, Santagua B2, Manhaua A, Ma-
nahua B, Brandão, 17 de Setembro e o bairro do cololo.
2 De acordo com os dados publicados em 2017 sobre população e habitação, 60% da popula-
ção de Moçambique habita em zonas rurais e os 40% em zonas urbanas.
Apesar das características étnicas ou tribais de Moçambique, em que o norte
é ocupado pelos Makondes, Nhanjas, Yao, Macuas (províncias de Nampula, Cabo
Delgado, Niassa e uma parte da província da Zambézia); o centro pelos Ndaus,
Senas, Nhungue, Chuabos ( províncias de Tete, Manica ,Sofala e Zambézia); os Cho-
nas, Tsonga-Vatsua -Chope, Pitanga (Maputo província e Maputo cidade, Inhamba-
ne, Gaza) a língua comum e oficial é o Português.
A distribuição espacial da população é heterogênea. Nota-se a convivência de
diferentes grupos étnicos que partilham usos e costumes diferentes em uma mes-
ma região o que faz pensar dos desafios e controvérsias de um projeto de “identi-
dade nacional”.
Em relação a religião a população de Moçambique é Católica, Islâmica, Zione/
Sião, Evangélica, Anglicana entre outras religiões desconhecidas. Os resultados do
censo do ano de 2017 apurou também que Moçambique é maioritariamente cristã
quando 45% representa cristãos católicos e 55% de protestantes. E 13.9% da popu-
lação em Moçambique se autodeclara sem religião (INE, 2017).
O povo Macua, é o grupo étnico mais numeroso e disperso de Moçambique que
segundo a mitologia tem a mesma origem, o monte namuli que constitui a relação
umbilical de todas as pessoas falantes de língua Emacua (MARTINEZ, 2009). Neste
contexto, o monte Namuli, localizado no distrito do Gurué, província da Zambézia
como “identidade” e o”berço” de todos os grupos étnicos falantes de Emacua é
citado em todas as práticas tradicionais como provérbios, lendas, canções tradicio-
nais, rituais. Segundo a tradição, os macuas sabem de onde saíram.
Quanto a organização social, o grupo étnico Macua é do tipo matrilinear o que
significa que a descendência e a sucessão do poder se processam por via materna.
O território é uma pertença da mulher mas nunca ao homem como o que sucede
na região sul de Moçambique (de sucessão patrilinear).

COMBATER O PASSADO PARA CONSTRUIR A IDENTIDADE


NACIONAL EM MOÇAMBIQUE
Para cumprir os acordos de Berlim (1884/1885) e submissão dos indígenas, foi
necessário aportuguesar a população moçambicana ignorando as práticas tradicio-
nais em suas cosmogonias com base na teoria de assimilação (EDGE, 1999, p.29).
Para o efeito, a administração colonial confiou a igreja católica que através das
suas instituições educava, cristianizava e assimilava os negros africanos para servir
e da melhor forma e fomentava a cultura portuguesa como modelo para a civiliza-
ção. Neste período a população de Moçambique recebeu o baptismo para a purifi-
cação3 das almas e uma porta de entrada ao estágio da civilização (BORGE, 2017.p.
170). A este propósito, o projeto colonial contemplou a construção de infraestru-
turas como paróquias, escolas, seminários, internatos para homens e mulheres em

3 Limpar o comportamento bárbaro dos indígenas através do batismo para ser aportuguesa-
do e passar a pertencer a sociedade civilizada.

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Artes, memória e espaços
diferentes regiões do país. Qualquer posição oposta, deveria ser combatido4 tor-
nando difícil o sentimento de uma identidade cultural própria.
Em 25 de Junho de 1962 através de experiências vivenciadas por diferentes
grupos étnico-linguísticos na vigência do sistema colonial em Moçambique e em
outros países da África e da Europa nasceram 3 três associações de luta anticolo-
nial de Moçambique, UDENAMO ( união democrática nacional de Moçambique ),
UNAMI ( união nacional africana de Moçambique independente ) e MANU (união
africana nacional de Moçambique ) e é formada a frente de libertação de Moçam-
bique (FRELIMO) na república da Tanzânia e em 25 Junho de 1975 declara-se a
independência de Moçambique.
Assim, a união pensada por Eduardo Mondlane passou a ser militância para a
construção do Estado-Nação e da identidade nacional de Moçambique pós-1975.
A FRELIMO idealizou todos os aspectos que marcaram as resistências a ocupação
colonial, como a base estruturante e ideológica do novo governo associado ao par-
tido e aos seus militantes rumo a formação do homem novo (BORGES, 2017, p.
100). A FRELIMO entendia que os fracassos registrados durante as resistências ao
colonialismo teriam acontecido por causa de falta de união da população local em
Moçambique. (CABAÇO, 2007 p 402-414).
Daí que, a construção da identidade nacional e do homem novo, com nova ban-
deira, novo hino e nova ideologia rumo a técnica e ciência, trabalhador, discipli-
nado, isento ao passado colonial e das práticas tradicionais consideradas obscu-
rantismo e supersticioso passava pelo entendimento do sofrimento vivenciado no
processo da descolonização iniciado na escola de Nachingueia.
Com os grupos dinamizadores (GD5) a FRELIMO controlava a vida nacional, (po-
lítica, econômica e religiosa) das comunidades. Qualquer recusa nesse sentido, ao
modelo e regras daí decorrentes, os envolvidos eram encaminhados aos campos
de reeducação onde esperava-se mudar de comportamento e viver como pessoa.
Com tudo, a FRELIMO em suas “utopias” de uma identidade nacional não se limitou
somente a uma crítica do passado colonial em si, e as tradições dos indígenas, mas
também por uma crítica ideológica das religiões implantadas.

O CULTO AOS ANTEPASSADOS


A prática do mukuttho existe desde o passado das sociedades africanas. Ela in-
sere-se dentro das manifestações da religiosidade baseada em crenças tradicionais

4 Combater as pessoas com mente descolonizadora. Escritores, movimentos de igrejas pro-


testante que ensinavam a população moçambicana em línguas locais. (Ver na obra de DAVID EDGE,
Moçambique no Auge do colonialismo, 1999, p.17). Essas missões protestantes promoviam ideias de
autodeterminação, africanidade e da valorização das culturas indígenas.
5 Grupos Dinamizadores, eram pessoas eleitas ao nível das células do partido FRELIMO para
representar o partido-Estado nas comunidades locais. Em suas práticas os Grupos Dinamizadores fo-
mentaram em seus bairros e em instituições do Estado a ideologia do partido FRELIMO e os projetos
da FRELIMO com o povo moçambicano.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 653


Artes, memória e espaços
sobre a existência das divindades e correspondência entre os vivos e os falecidos
e o território.
Segundo a tradição Macua, tem coisas no quotidiano que as pessoas vivas não
conseguem resolver e devem recorrer a quem é superior e tem uma ligação espi-
ritual munepa/espírito6 ou é muzumo assim como é chamado na língua chuabo na
cidade de Quelimane com Deus e o território em suas mitologias. Cristina Napido
de 54 anos refere que,

“A cidade de Quelimane7 é caracterizado por vários grupos ét-


nicos morando em distâncias de 2-5 metro de distância de uma
casa para outra. Ademais através do processo assimilacionista
do governo de Salazar vigente em África e em Moçambique des-
de a década de 1920, a seguir os processos migratórios para o
desenvolvimento da economia da época, o projeto de constru-
ção de identidade nacional do pós-independência, e a moderni-
dade em suas tecnologias “novelizadas” de facebook, whatsapp,
instagram etc algumas famílias renunciaram a prática do culto
aos antepassados para atender às estruturas raciais de antes.”8

Neste desafio de vizinhança e de preconceitos estereotipados sobre civilização


curandeirismo, feitiçaria uma estratégia viável é o de manter o diálogo “duplo” em
uma sociedade desestruturada.
Em relação a ausência de altar permanente na cidade de Quelimane e a estrutu-
ra das casas próximas uma da outra, sem quintal de vedação, por vezes partilhado
o único pátio entre as famílias, os praticante dos rituais procuraram reinventar o
lugar do culto /o altar que passou a ser flexível /renovável, dentro dos quintais das
casas e nos quartos das pessoas mais velhas diferenciado das zonas de proveniên-
cia dos Macuas.9

6 O munepa é alguém que viveu no mundo visível, morreu e passou a viver no mundo invisí-
vel adquirindo nova forma de ser.
7 Quelimane é a capital e a maior província da Zambézia, em Moçambique. Situa-se no Su-
deste da província, a cerca de 6 milhas da costa, no estuário do rio dos Bons Sinais, entre as coorde-
nadas de 17° 47’ – 17° 57’ Sul e 36° 50’ – 36° 57’ Este. Ocupando uma área de 117 km2, cujos limites
são os seguintes: Norte: distrito de Nicoadala; Oeste: Localidade de Namacata; Este: Localidade de
Madal; Sul: rio dos Bons Sinais e o distrito de Inhassunge.
8 Para senhora Cristina Napido de 60 anos, religiosa a ancestralidade está diluída e engolida
nas tecnologias. Este fato faz com que as novas gerações entendam pouco sobre ancestralidade.
Gerações estão desorganizadas.
9 Sr Américo Mopuela de 68 anos autoridade tradicional referiu que nas cidades não existe
lugar próprio aconselhado pelos antepassados. Na tradição altar do culto situa-se fora da casa ou da
aldeã como: ao pé da árvore considerada sagrada Mulapa ou Mussulo (imbondeiro), em morro de
muchê, próximo dos rios.

654 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
FIGURA 2. FOTOS DE CASAS EM QUELIMANE
PARA MOSTRAR A DISTÂNCIA ENTRE CASAS VIZINHAS E SEM VEDAÇÃO.

Fonte: Fotos tiradas pela autora em Quelimane (2019).

Na cidade de Quelimane há tendência de manter a tradição sem excluir as mu-


danças. Confirma-se aqui de que a cultura cresce, se desenvolve, se transforma,
mas sem deixar de ser ela mesma, mantendo a identidade nuclear (MARTINEZ,
2009c p.63). Há de fato algo que a identifica, e há outros traços que vão desapare-
cendo com o tempo e outros que vão mudando. Como disse Martinez, mesmo os
indivíduos se comportem fiéis à tradição não agem repetindo mecanicamente as
formas de manifestar, e, acrescentam algo novo e próprio (Idem).
Apesar desta realidade revelada em Quelimane, em Moçambique é rigoroso
em manter sagrado o lugar do culto aos antepassados que geralmente acontece ao
pé de uma árvore “Mussulo”/ olapa ou seja o embondeiro. Nos lugares de prove-
niência constroem alpendre de forma retangular no interior do qual recolhem as
oferendas como se observa a figura abaixo:

FIGURA 3: MUSSULO/OLAPA, O LUGAR DO CULTO


AOS ANTEPASSADOS DOS MACUAS DE MOÇAMBIQUE

Fonte: Foto 1(esquerda) pela autora (2020),


foto 2 por Alex Samuel Artur (2009), EP, (2020) e 4 Eliseu (2020).
De acordo com a mitologia Macua, os espíritos localizam-se longe da população
em lugares sagrados como ao pé do monte, muro de muchê, uma árvore plantada
nas proximidades do quintal por um falecido familiar e não é permitido tirar foto-
grafias pelo facto de ser considerado lugar sagrado. Entre os Macua-lomue, são
raras as vezes que o culto aos antepassados é praticado em lugares como encru-
zilhadas, cemitérios e próximo dos rios. São os médicos tradicionais que em sua
cosmovisão sobre certas intimidades levam as pessoas que procuram os serviços
para tratamentos específicos.
Em relação às oferendas, é sempre o que resulta do trabalho das famílias e es-
pecífico da cultura como é o caso da farinha de mapira/ ephepa que acompanhada
de orações é depositada lentamente ao pé da árvore sagrada. Na realidade da ci-
dade de Quelimane encontramos famílias que pelo fato de estarem unidas de laços
de afinidade acrescentam diversos alimentos já preparados (arroz, bolos de arroz,
a manga assada, o quiabo, a mukapatha, peixe, a bebida de sura extraída da árvore
de coco etc.) a modelo da cultura ECHUABO.

FIGURA 4. MOMENTO DO RITUAL DO CULTO


AOS ANTEPASSADOS EM QUELIMANE, MOÇAMBIQUE EM 2020

Fonte: Fotos tiradas pela autora em Quelimane (2019).

A matéria do culto inclui outros instrumentos de uso longe da identidade e da


visão cosmogônica como o refresco, o vinho, a cerveja, o bolo de arroz (mikathe)
confirmando neste sentido a duplicidade identitária das famílias africanas, no Mo-
çambique de hoje. E Em termos das temporalidades, o ritual aos antepassados é
realizado sempre que for preciso pela família, no início e o final de cada ano acom-
panhando o natal da igreja católica10.

656 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
Em relação aos instrumentos utilizados, na prática do culto na cidade de Queli-
mane são visíveis os elementos integrados e outros que parece inexistir. Verifica-se
o uso de pratos de louças, copos de vidro, xícara/chávenas entre outros materiais
da realidade cultural local. De acordo com Américo Mopuela, autoridade tradicio-
nal o pano branco e os instrumentos específicos (Vassoura/ Mvelo, a Enxada/ Ehi-
pa, Machado/Epasso) utilizados para limpar e ornamentar o lugar da prática do
culto no “Mussolo” / a árvore do embondeiro, não são usados nas cidades. Neste
sentido pode se perceber a perda externa dos símbolos identitários e a adequação
das práticas tradicionais as oportunidades oferecidas no espaço urbano e o querer
viver as crenças indígenas desse povo. Confirma-se também a perspectiva de que
as ofertas feita na prática do culto, são benéficos11.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A história de África e de Moçambique, deve ser entendida como uma história
de resistência a todos os valores identitários. Note-se que a presença portuguesa
em Moçambique difundiu a cultura portuguesa como modelo para seguir e o pós-
-independência caracterizou-se pela exaltação da ideologia FRELIMO-Estado com o
fundamento de identidade nacional e da formação do homem novo.
Na continuidade dos processos assiste-se a uma constante luta entre as im-
posições da modernidade e a procura constante em manter a riqueza cultural de
vários grupos étnicos no contexto de unidade ainda em construção em Moçam-
bique. Neste esforço da dinâmica cultural, as cidades africanas são de uma dupla
identidade.
Como se pode notar a duplicidade identitária em Moçambique está presente
em vários aspectos da vida desde o nome, a língua, a religião, no casamento, na
construção das casas entre outras práticas costumeiras das famílias, (MALANDRI-
NO 2010, p.4). Entre os Macuas não basta uma educação em instituições formais
é necessário também a educação tradicional feita através dos ritos de iniciação
masculino e feminino.
Ao praticar o culto tradicional dentro da casa diferentemente de uma árvore sa-
grada organizador do espaço e com instrumentos reconhecidos por aquele grupo,
revela a mudança da cultura com o tempo e transformação de símbolos específicos
que cada sociedade busca de uma outra sociedade como resultado das relações
sociais.
No entanto, a persistência na prática da tradição significa resistência às mudan-
ças com base na cosmovisão que se tem sobre o ritual. Ademais, a cultura é dinâ-
mica por força de outras culturas. Portanto a que acreditar que no contato entre

11 Ao benefício do próprio falecido ou dos falecidos, o bem-estar deles, para que a sua pas-
sagem e estadia para outra vida se tornem agradáveis; O benefício dos oferentes, isto é, o bem-estar
dos vivos. Esse bem-estar concretiza-se na realidade em alimentação suficiente, sobretudo, em tem-
po de fome, chuvas, seca, em saúde e boa sorte na doença. (MARTINEZ (2009).

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 657


Artes, memória e espaços
os povos há uma espécie de troca, permutas e propagação de traços culturais de
uma cultura para outra.
Com tudo, a cultura imaterial em suas dinâmicas é de complexa compreensão.
As mudanças culturais são visíveis nos aspectos exteriores em relação ao “lugar” as
“oferendas” e os “instrumentos”. O intercâmbio cultural que caracteriza hoje, os
vários grupos étnicos tratam de reencontrar e manter firme a própria identidade
cultural perdida, ignorada e desprezada no seu próprio meio.

REFERÊNCIAS

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ção em Moçambique (1975-1990). Tese de Doutorado em Ciências Sociais na Faculdade
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153, 2001.

AUTORIA
Jacinta Francisco Dias
Graduada em História Política e Gestão Pública, Mestra em Ciências Políticas e
Estudos Africanos pela Universidade Pedagógica de Moçambique.
Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal da Bahia.
Bolsista (Doutorado) FAPESB - Fundação de Amparo à pesquisa do Estado Estado
da Bahia.
E-mail: diasjack02@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6207-3529
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5345561904592473

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 659


Artes, memória e espaços
ST 49
População Negra e
o Direito à Cidade:
interfaces entre
raça e espaço
urbano
O “PROBLEMA” FAVELA: UMA ANÁLISE DA
RELAÇÃO EQUÍVOCA ENTRE FAVELA E CIDADE
Liliane Souza dos Anjos

INTRODUÇÃO
O modelo urbano excludente das cidades pós-modernas tem sido alvo de in-
vestigação por diferentes perspectivas teóricas. Pelo olhar das epistemologias do
Sul (SANTOS, 2019), – perspectiva teórica decolonial, que encara a produção de
conhecimento não hegemônica, reconhecendo as opressões promovidas por uma
modernidade estruturada na colonialidade, no capitalismo e no patriarcado – o
direito à cidade é a entrada para a contestação de critérios de sociabilidade que
dividem a cidade entre zonas selvagens e zonas civilizadas (SANTOS, 1998). A partir
do final da década de 80, o direito à cidade, no Brasil, tornou-se uma importante
bandeira política, articulando diferentes agentes da sociedade civil para exigir a
reforma urbana (CHUECA, 2019).
Já na perspectiva da Análise de Discurso materialista (doravante AD), a disputa
pelo espaço urbano é colocada em causa, e a cidade passa a ser observada em seus
processos de significação, no atravessamento das evidências que tornam possíveis,
na história, enunciados como o próprio direito à cidade (ORLANDI, 2004). Essa for-
ma de escutar o território urbano, de focalizar o modo como ele é interpretado, é
o que coloca o nosso trabalho em movimento.
A partir da AD, – cuja fundamentação teórica se assenta no legado de Michel
Pêcheux e nos desdobramentos teóricos promovidos por Eni Orlandi no Brasil – dia-
logamos com os estudos decoloniais para apresentar uma parte de nossa pesquisa
de doutorado, desenvolvida no âmbito do Instituto de Estudos da Linguagem da
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Concernidos em compreender o
funcionamento discursivo da promessa de pacificação das favelas, questão central
de nossa pesquisa, promovemos um olhar discursivo sobre esses espaços, a partir
do que eles dispõem a nós enquanto materialidade sócio-histórica.
A análise de alguns documentos tornou-se imperativa na pesquisa. São arquivos
que imbricam diferentes materialidades significantes (LAGAZZI, 2009), visual e ver-
bal, a saber: uma charge de 1908, que representa a campanha higienista de Oswaldo
Cruz para o Morro da Favella; um artigo do jornalista Carlos Lacerda de 1948; e, por
fim, um documento oficial do programa de “desfavelamento”, datado de 1968.
Para as análises dos materiais, temos, em nosso horizonte, os seguintes objeti-
vos: 1) observar o modo como, apesar de circularem em conjunturas diferentes, o
corpus materializa, como regularidade, trajetos de sentidos ligados a formulações
que colocam a favela como um “problema” a ser eliminado. 2) analisar, por uma

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 661


Artes, memória e espaços
perspectiva discursiva, como os materiais dão a ver a tensa relação entre cidade e
favela, de modo a apontar o racismo estrutural da sociedade brasileira.
Não como um problema a ser extirpado, uma unidade apartada da morfologia
da cidade e rejeitada por ela, conforme os materiais a apresentam, a favela deve
ser vista como um espaço determinado socio-historicamente. Assim, procuramos
dar visibilidade aos diferentes processos de significação dos morros, colocando em
jogo aquilo que faz transbordar, na textualidade dos materiais, sentidos ligados
a seus moradores e seus espaços. As páginas seguintes caminham nessa direção.

EXTERMINAR
Presente no Rio de Janeiro no final do século XIX, o Morro da Favella é referên-
cia obrigatória nos trabalhos orientados a uma perspectiva histórica dessas comu-
nidades. Pesquisadores como Gonçalves (2013) e Valladares (2005) nos contam
que, o também chamado Morro da Providência, foi ocupado, em 1897, por ex-es-
cravos e soldados remanescentes da Guerra de Canudos. Ali, eles se instalaram com
o intuito de pressionar o Ministério das Guerras, localizado próximo ao morro, para
o pagamento de soldos atrasados.
A partir de 1907, o Morro da Favella foi alvo de investidas higienistas, como
uma atualização dos gestos eugênicos1 que se seguiram no Brasil ao longo das dé-
cadas pós-abolição. Uma dessas campanhas aparece textualizada a seguir, em uma
charge publicada pela Revista “O Malho” no ano de 1908.

Fonte: VALLADARES, 2005.

1 Aqui a noção de eugenia está sendo mobilizada a partir de Schwarcz (1993). Termo criado
em 1883 pelo cientista britânico Francis Galton (eu: boa; genus: geração), a eugenia constituiu-se
como uma prática avançada de darwinismo social, teoria segundo a qual as raças eram tomadas
como fenômenos imutáveis, derivando daí a ideia de que qualquer miscigenação seria uma degene-
rescência. A partir de 1880, a eugenia foi transformada em um vigoroso movimento científico e social.
Essa composição visual, analisada por nós em ocasiões anteriores (ANJOS,
2019), traz o Morro da Favella, a partir de uma imagem humana. É de uma cabeça,
a do morro, que podemos ver pessoas sendo extraídas pelo pente da “Delegacia
da Hygiene”. Outros dois morros, o Morro do Vallongo e o Morro do Livramento,
aparecem ao fundo. Aqui, chamo atenção para a representação do médico higie-
nista Oswaldo Cruz, figura hiperdimensionada, que segura o pente responsável
por arrancar os moradores da favela do local onde moram. O médico em questão
personifica a política higienista vigente à época, sob condições de produção que
inscrevem no corpo da favela um gesto eugênico dado a ver na imbricação entre a
materialidade visual, a charge, e verbal: “Uma limpeza indispensável; a Hygiene vai
limpar o Morro da Favella, ao lado da Estrada de Ferro Central. Para isso, intimou
os moradores a se mudarem em dez dias”.
O diálogo abaixo produz efeitos sobre o que vemos na imagem:

(Sequência Discursiva 1):


Oswaldo Cruz: - Apre!... Com que parasitas se coçava a polícia!...
Qual! Nestas alturas só mesmo a gente da hygiene...
Morro da Favella: - Ora, graças, que me livro desta praga! Dê-lhe
p’ra baixa mestre Oswaldo!
Morro do Livramento: - Chi!!... Que rodada! Mas... Onde botar
tanta gente e tanto cisco?...
Morro do Vallongo: - Provisoriamente no morro da rua... Depois
da sucursal da sapucaia: atrás da câmara dos Deputados...

A limpeza indispensável é acompanhada por suspiros de alívio. “Ora, graças,


que me livro dessa praga” inscreve no fio do dizer enunciados provenientes de um
outro lugar, o do discurso pelo qual se nomeia como pragas os desencadeadores
dos surtos epidemiológicos. A formulação, então, ao mesmo tempo que significa
os moradores da favela como os causadores de moléstias sociais, aponta para a
necessidade de extirpá-los em um curto intervalo de tempo (“dez dias”), demons-
trando toda a presteza do governo Pereira Passos em resolver a um só tempo, o
problema da higiene (“só mesmo a gente da hygiene”) e da criminalidade (“com
que parasitas se coçava a polícia!”).
Dispondo do exercício de paráfrase, colocamos os sentidos em movimento a fim
de dimensionar o jogo discursivo na organização sintática em questão. Com isso,
chegamos a outros enunciados que sustentam os sentidos do diálogo mencionado:

(Paráfrase 1) As pragas, que coçam, precisam ser eliminadas.


(Paráfrase 2) Há moradores que fazem coçar a polícia.
(Paráfrase 3) Os moradores, que fazem coçar a polícia, precisam
ser eliminados.

O material põe em funcionamento sentidos que se colocam em oposição. Se, na


imagem, as pessoas são arrancadas pela figura do médico; na língua, essa aversão
é dada por significantes que destituem esses moradores da condição de humanida-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 663


Artes, memória e espaços
de. Tem-se uma matriz de sentidos que coloca os favelados à imagem de parasitas.
Quando observamos a seguinte composição: com que parasitas se coçava a polícia,
em oposição a gente da hygiene; me livro desta praga, opondo-se ao nome próprio
Oswaldo, reitera-se a interpretação de que é em termos de humanidade versus
não- humanidade que essa distinção se estabelece.

PROLIFERAR
Os governos dos anos 40 e 50 também foram pautados por uma oposição explí-
cita à favela. O episódio da “batalha do Rio de Janeiro”, campanha popular lançada
pelo jornalista e político Carlos Lacerda em 1948, ilustra bem essa questão.

Fonte: CORREIO DA MANHÃ, edição de 19 de maio de 1948.


Aqui, mais uma vez, podemos observar modos de identificar os moradores da
favela que nos dizem sobre uma diferenciação com relação aos demais habitantes
da cidade. Por se tratar de uma vasta campanha com pretensões de resolver defini-
tivamente o “problema das favelas”, a “batalha”, instituída discursivamente a par-
tir dos apelos retóricos do jornalista, em publicações do Jornal Correio da Manhã,
levou à inauguração de um longo período de remoções bem como transferência
dos moradores para conjuntos habitacionais construídos pelo Estado. Destaco o
fragmento abaixo para observamos uma recorrência no modo de significar, a um
só tempo, os moradores da favela e esses espaços:

(Sequência Discursiva 2)
Favelas, como esta da rua do Bispo, continuam a proliferar com
a mesma intensidade que os seus moradores.

A sequência acima apresenta a favela, bem como seus moradores, articulada a


já conhecida matriz de sentidos higienista, fazendo retornar ao fio do dizer antigos
paradigmas capazes de significar pessoas a sentidos de doença. As favelas, por esse
funcionamento, se proliferariam tão ferozmente quanto seus moradores. Desse
modo, essas associações ligadas aos significantes “proliferação”/“males” permi-
tem aproximar o discurso lacerdista à charge de 1908. Isso acontece, novamente,
no recorte abaixo:

(Sequência Discursiva 3)
O problema não se resolve todavia [...] simplesmente impedindo.
Impeça-se aqui, ela, a favela, nascerá acolá, e assim por diante.

Dado que a AD parte da premissa de que a linguagem não é transparente, de


que é ela a materialidade do discurso (e este por sua vez materializa a ideologia)
(ORLANDI, 2008), damos total atenção à própria construção sintática da sequência
discursiva acima. Observamos o uso do verbo “impedir” em uma sentença cujo
agente verbal não se apresenta no mecanismo sintático. Com o apagamento do
responsável pela ação de impedir, produz-se um efeito de que esse combate à
favela se daria de modo espontâneo. Além de partir de um pré-construído2 da exis-
tência da favela como um problema, combatê-la, tarefa reservada a um Estado
eugenista, aparece como algo da ordem do não nomeado. Com isso, omitem-se as
condições materiais que inscreveram a favela do Rio de Janeiro sob a marca de um
excesso contra o qual o Estado, insistentemente, lutou.
Soma-se à ausência de determinação descrita, a hiperdeterminação da refe-
rência favela. Explicaremos. A presença do pronome ela articulado à marcação do
aposto favela (em “...ela, a favela, nascerá acolá”) traz um efeito de saturação para

2 Segundo Pêcheux (2009, p. 101) o pré-construído “dá seu objeto ao pensamento sob a
modalidade da exterioridade e da pré-existência”.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 665


Artes, memória e espaços
o sujeito, permitindo, em termos discursivos, reiterar a favela como a questão prin-
cipal a ser debatida. Tem-se com isso, o seguinte efeito: o foco desliza de quem
seria responsável pelo combate para o motivo do incômodo, conferindo proemi-
nência àquilo considerado como o problema per si.
Apesar de obter resultados concretos irrisórios, a “batalha” deixou marcas no
imaginário do Rio de Janeiro. Com o passar dos anos, a favela tornou-se uma pau-
ta política inescapável, consolidando de vez a favela como um problema público,
representação máxima de perigo. Com o fracasso da “batalha do Rio de Janeiro”, a
presença do partido comunista nos morros e o aumento do número de favelas, uma
política de negociações com os morros consolidou-se na esfera pública, em alterna-
tiva a uma repressão radical contra os barracos. Assim, a cena política abriu espaço
para diferentes arranjos entre os poderes públicos e os moradores, a fim de atenu-
ar ali a influência das correntes políticas mais extremistas, cujo alcance se deu de
maneira crescente no fim dos anos 40 e início dos anos 50.

DESFAVELAR
Voltaremos nossa atenção agora ao último material de análise. Trata-se de um
excerto que versa sobre a CHISAM (Coordenação da Habitação de Interesse do So-
cial da Área Metropolitana do Grande Rio)3, política estabelecida pela parceria en-
tre o governo municipal, estadual e federal, constituída com a finalidade de acabar
com as favelas. Criada em 1968, durante a ditadura civil- militar, a CHISAM buscou
unificar a política para as favelas dos estados do Rio e da Guanabara, vislumbrando
sua total erradicação até, no máximo, o ano de 1976. Esse foi o estandarte do re-
crudescimento da chamada “era das remoções”.
Encontramos um desses recortes no trabalho de Brum (2010). Como parte de
um dos documentos oficiais da CHISAM, o excerto confere o nome de “programa
de desfavelamento” à prática da remoção, sob a argumentação de restituir dignida-
de ao morador da favela. Oficialmente, essa questão foi colocada assim:

Ao estabelecermos o programa de desfavelamento, fixamos


como premissa básica apresentar às famílias faveladas opções
que lhes permitissem sair da favela e passarem a ser proprietá-
rios de uma habitação condigna, acessível às suas rendas e em
local satisfatório”. (CHISAM, 1971, p. 61, apud BRUM, 2010, p.
105).

Atentamos para o prefixo de negação “des” articulado ao temo favelamento.


Uma negação que funciona sintomaticamente afirmando a possibilidade de digni-
dade para a moradia do favelado, somente a partir do momento em que fosse des-
tituído dessa condição. Pela construção discursiva, tornar-se proprietário de um

3 Instituída pelo Decreto Federal n.º 62.654, em 03/05/ 1968, subordinada ao Ministério do
Interior.

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Artes, memória e espaços
apartamento dos conjuntos seria sinônimo de dignidade. Negar a favela seria, por
esse motivo, equivalente a reafirmar a satisfação e condignidade da habitação. Há,
no texto, a presença dos seguintes deslizamentos: de barraco para habitação, de
morador a proprietário, de local insatisfatório a local satisfatório, de indignidade
para dignidade.
O atributo econômico (proprietário) se dissolve no moral (dignidade) em um
processo possibilitado pelo apagamento da favela. Negação, reiteramos, marcada
na língua. Negar a favela é condição para uma remodelação urbana, e na toada
dessa “recuperação”, o projeto de desfavelamento se propõe a retirar o favelado
da condição de “invasor de propriedades alheias” para titular de sua casa própria.
Tudo isso como se o título de proprietário encapsulasse qualidades sociais, econô-
micas, sanitárias e morais.
Em setembro de 1973, teve fim esse programa que chegou a remover mais de
“175 mil moradores de 62 favelas (remoção total ou parcial), transferindo-os para
novas 35.517 unidades habitacionais em conjuntos, estando a maioria destes nas
Zonas Norte e Oeste”. (PERLMAN, 1977, p. 242, apud BRUM, 2010, p. 106).

DA EXCLUSÃO E DO DIREITO À CIDADE


As breves análises sumarizadas aqui reafirmam a favela e seus moradores a par-
tir de negações e repulsas. Vimos que, como regularidade nos materiais, as dife-
rentes formulações estabilizam a favela na tensão entre sentidos de pestilência, no
movimento entre negações e excessos. São processos de significação materializa-
dos tanto pela língua quanto pela imagem. Movimentos que não poderiam jamais
passar despercebidos.
É que tais funcionamentos tocam na temática das opressões ligadas ao direito
à cidade, potencializando a questão pelo modo como os sentidos ligados à relação
da favela com a cidade são colocados à luz da história. Como mencionamos na in-
trodução deste trabalho, a Análise de Discurso contribui para entendermos como
se dá o funcionamento dos discursos sobre a favela, não somente pela dimensão
jurídica (o que está em jogo na articulação de direito à cidade). Com isso, não ne-
gamos as opressões e violências destinadas às populações dos morros, muito pelo
contrário. As análises observaram a favela inscrita, desde sua origem, a partir de
enunciados que a saturam de sentidos negativos, mesmo quando não é o jurídico
que sobredetermina essas relações de significação.
Por essa perspectiva, o caráter contestatório da desigualdade social no espa-
ço urbano se preserva, agregando à reflexão uma compreensão discursiva que põe
foco nos processos históricos, inscritos na língua, capazes de determinar o que de-
monstramos até aqui. Destacamos, a partir dessa interface teórica com os estudos
decoloniais, que os sujeitos favelados foram constantemente destituídos de senti-
dos de humanidade, a partir de uma urgência de se estabelecer um modelo de ur-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 667


Artes, memória e espaços
banidade que não comportava uma massa negra interpretada como excesso, como
um problema a ser extirpado.
Assim, apesar da ausência, na linearidade sintática, de significantes como ne-
gros, ou ainda, escravos, a análise mostra que a estrutura colonial pesa sobre o
que foi dito e como foi dito. Os modos de identificação de determinados sujeitos
em uma zona de não-ser (FANON, 2008) (vide os termos “pestes” e “proliferar”)
mostram que há uma exterioridade constitutiva desses discursos, nos levando a
identificar um funcionamento ideológico racista.
Essas identificações perversas apontam para uma violência simbólica, cujo com-
bate integra a luta decolonial pelo reconhecimento das minorias excluídas da cida-
de. Desse modo, se o “urbanismo moderno é a ferramenta utilizada durante mais
de um século para impor uma determinada ideia de cidade (colonialidade territo-
rial do saber) que é funcional para os interesses da classe dominante (colonialidade
do poder)” (CHUECA, 2019, p. 404-405), esse mesmo urbanismo é posto em xeque
por uma concepção discursiva que entende que, do urbano, não precisam vir, ne-
cessariamente, todos os sentidos para a cidade.
Quando encarada como materialidade significativa, a cidade é mais. Ela trans-
borda dando espaço para favela. Uma vez tomada pelo discurso jurídico (direitos
e deveres à cidade) ou urbano (administração de seus espaços), a cidade já compa-
rece significada, e mais, nas palavras de Orlandi (2004), essa tendência engessa os
modos de significá-la:

Esse aprisionamento da materialidade significativa da cidade


pelo discurso (do) urbano que a imobiliza no enquadramento
que a afasta de outros (novos) sentidos, destitui também o social
da sua significância mais própria, reduzindo as possibilidades de
sua historicização. As condições materiais concretas da cidade
antes de serem trabalhadas já são evitadas pelo planejamento,
pela administração. Os seus sentidos são domesticados por um
gesto de interpretação urban(izad)o. Evitam-se os conflitos, si-
lencia-se o que demanda sentido e evitam-se deslocamentos
reais (ORLANDI, 2004, p. 66).

Isso significa que focalizar a cidade em sua materialidade é também não perder
de vista a questão ética e política no fazer analítico discursivo. Ao expor o funciona-
mento racista que estrutura nossa sociedade, estamos refletindo sobre os conflitos
e desigualdades que formatam o capitalismo, no atravessamento das determina-
ções raciais. É a partir daí que procuramos opacizar os sentidos de ordem para a ci-
dade e seus moradores, para, assim, explorar outros modos de significação. Modos
que possam ir além da oposição repulsiva entre favela e asfalto.

668 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
CONCLUSÃO
As análises procuraram deslocar funcionamentos linguísticos e formulações
visuais. Assim, problematizamos os sentidos de favela, compreendida, por nossa
perspectiva discursiva, como um espaço de memória constituído na tensão de um
social dividido em grupos humanos identificados imaginariamente. Notamos que
a favela, tal como comparece nos materiais analisados, não teve, historicamente,
apenas o urbano (o administrável) como determinante dos discursos a seu respei-
to, mas também atravessamentos eugênicos, morais e econômicos.

REFERÊNCIAS

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tes materialidades significantes. In: ADORNO, G; MODESTO, R.; FERRAÇA, M.; BENAYON,
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gem à Suzy Lagazzi. Vol 2. Campinas: Pontes Editores, 2019, p. 213- 234.

BRUM, Mario Sergio. “Irregular, ilegal e anormais”: O estigma como política de Estado e a
remoção de favelas no Rio de Janeiro pela CHISAM (1968-1973). Revista do Arquivo Geral
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o processo brasileiro de construção do direito à cidade. SANTOS, Boaventura Sousa; MAR-
TINS, Bruno Sena (Orgs.). In: O pluriverso dos direitos humanos. A diversidade das lutas
pela dignidade. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019, p. 397 –417.

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GONÇALVES, Rafael. Favelas do Rio de Janeiro: História e Direito. Rio de Janeiro: Pallas/
PUC-Rio, 2013.

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Carlos: Claraluz. 2009. p. 57-67.

ORLANDI, Eni P. Cidade dos sentidos. Campinas: Ponte, 2004.

ORLANDI, Eni P. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos. 3. ed. São Paulo,
Campinas: Pontes, 2008.

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Eni P. Orlandi [et al.]. 4. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 2009.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Direitos Humanos, democracia e desenvolvimento. In: SAN-


TOS, Boaventura Sousa; MARTINS, Bruno Sena (Orgs.). In: O pluriverso dos direitos huma-
nos. A diversidade das lutas pela dignidade. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019, p.
39 – 61.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 669


Artes, memória e espaços
SANTOS, Boaventura de Sousa. Reinventar a Democracia: entre o pré-contratualismo e
o pós- contratualismo. Oficina do CES, Coimbra: Centro de Estudos Sociais, n. 107, abr.,
1998.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no
Brasil, 1870- 1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

VALLADARES, Lícia do Prado. A invenção da favela: do mito de origem à favela.com. Rio


de Janeiro: Editora FGV, 2005.

AUTORIA
Liliane Souza dos Anjos
Doutoranda em Linguística pelo IEL- Unicamp e professora da FATEC – Bragança
Paulista.
E-mail: lilianesouzaanjos@gmail.com
ORCID: http://orcid.org/0000-0001-9763-9166
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2978980227675051

670 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
A IMPORTÂNCIA DA DESCENTRALIZAÇÃO E
A DEMOCRATIZAÇÃO DE BENS CULTURAIS
COMO EXERCÍCIO DE DESCOLONIZAÇÃO: UMA
ANÁLISE SOBRE O LEGADO REPRESENTATIVO DO
MUSEU CAFUA DAS MERCÊS

Sunshine Cristina de Castro Reis Santos

INTRODUÇÃO
O presente artigo aborda aspectos da importância da legislação no exercício da
democratização de bens culturais e da legitimidade das narrativas de grupos histo-
ricamente silenciados. Nesse sentido buscamos refletir sobre as dicotomias entre
os direitos culturais e realidade vivenciada no espaço museal Cafua das Mercês – O
Museu do negro na Cidade de São Luís – Maranhão, Patrimônio Mundial da Humani-
dade, e um dos estados brasileiros com o maior percentual de pessoas negras, anali-
sando a sua relevância para a representatividade afro Maranhense.
Com base em uma pesquisa bibliográfica que tem como objetivo refletir sobre
a importância de uma educacional patrimonial decolonial, verificaremos as possi-
bilidades dos espaços patrimoniais como os museus, fomentarem o conhecimento
emancipatório.
Para abordar tal investigação, escolhemos alguns elementos de análise. Em pri-
meiro lugar, falaremos sobre o Bens Culturais como direito constitucional, des-
creveremos sobre a importância da constituição 1988 para o estabelecimento
dos Direitos Culturais com princípio da pluralidade, em seguida apresentaremos
a museologia como atividade de democratização de conhecimento, verificando a
importância dos museus como espaços de ações educacionais não formais, pos-
teriormente abordaremos a descentralização do poder como um dinamismo de
decolonização, levantaremos os impactos dos parâmetros coloniais de uma gestão,
e como essa matriz reproduz automaticamente na manutenção de estruturas que
restringi o acesso, e por fim analisaremos o patrimônio institucionalizado como
memorial do negro maranhense.

BENS CULTURAIS UM DIREITO CONSTITUCIONAL


Segundo Marés (1999) “Os valores Culturais de cada povo, sua identidade, são
representados por bens, materiais e imateriais, que se tornam jurídica protegidos
em virtude de Lei”. Preocupação que se deu no cenário pós Segunda Guerra Mun-
dial, onde se iniciou articulações que se configuraram em convenções e acordos
para preservação do Patrimônio Cultural da Humanidade, para proteção desses

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 671


Artes, memória e espaços
bens é necessária a presença do Estado e do Direito, criando normas e ações pro-
tetoras, sendo necessário salientar que não se trata de um interesse particular ou
estatal, mas um Direito público. A Legislação Protecionista na panorâmica brasilei-
ra vem se dando a partir das manifestações de artistas e intelectuais que promo-
veram a Semana de Arte Moderna em 1922 que idealizavam a proteção Jurídica
de Bens Culturais que somente se concretizou de fato em 1937 popularmente co-
nhecida como a “Lei do Tombamento”. Mas é crucial ressaltar que as formulações
constitucionais vigentes até então tiveram na Constituição de 1988 um marco na
preservação cultural.

A novidade mais importante trazida em 1988, sem dúvida, foi al-


terar o conceito de bens integrantes do patrimônio cultural pas-
sando a considerar que são aqueles “portadores de referência à
identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formado-
res da sociedade brasileira”. Pela primeira vez no Brasil foi reco-
nhecida, em texto legal, a diversidade cultural brasileira, que em
conseqüência passou a ser protegida e enaltecida, passando a
ter relevância jurídica os valores populares, indígenas e afro-bra-
sileiros. A tradição constitucional anterior marcava como refe-
rência conceitual expressa a monumentalidade e ao abandonar
esta referência, o que a Constituição atual deseja proteger não é
o monumento, a grandiosidade de aparência, mas o íntimo valor
da representatividade nacional, a essência da nacionalidade, a
razão de ser da cidadania. (MARÉS, 1999)

Segundo a Constituição Federal de 1988 (Art. 216), constituem patrimônio cul-


tural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente
ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: As
formas de expressão; Os modos de criar, fazer e viver; As criações científicas, artís-
ticas e tecnológicas; As obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços
destinados às manifestações artístico-culturais;

A constituição tutela o direito à proteção e fruição do patrimônio


cultural sob a forma de interesse difuso (necessidade comum a
conjuntos indeterminados de indivíduos), que somente pode
ser satisfeita numa perspectiva comunitária, vez que o patrimô-
nio cultural, enquanto valor inapropriável, pertence a todos ao
mesmo tempo em que não pertence, de forma individualizada, a
qualquer pessoa. (MIRANDA, 2018)

Miranda ressalta que o veículo normativo primário de defesa do patrimônio


cultural brasileiro é a própria Constituição Federal, portadora de regras e princí-
pios com força superior e vinculante, que devem ser devidamente identificados
e compreendidos pelos operadores do Direito. A proteção do Patrimônio Cultural
como Direito Fundamental, ocupando espaço no ponto máximo do ordenamento

672 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
jurídico; legitimação constitucional da função estatal reguladora, de forma que a
ausência de atuação do poder público é que deve ser justificada, uma vez que a
regra é governabilidade afirmativa; redução da arbitrariedade administrativa, de
forma que a opção administrativa a ser adotada deve ser sempre aquela mais
favorável à proteção do patrimônio cultural; ampliação da participação pública
mediante abertura e crescimentos dos canais de participação pública na formula-
ção e controle das políticas.

Nesse cenário, evidente que a fruição de um patrimônio cultural


hígido é corolário da dignidade da pessoa humana e da cidada-
nia (fundamentos da República Federativa do Brasil) e constitui
direito fundamental de terceira geração, sendo inconteste que
a tutela desse direito satisfaz a humanidade como um todo (di-
reito difuso), na medida em que preserva a sua memória e seus
valores, assegurando a sua transmissão às gerações futuras.
(MIRANDA, 2018)

Na elaboração da Constituição Federal de 1988 (CF/88), considerou-se a cul-


tura por uma abordagem mais ampla e abrangente de forma a reconhecer sua
real importância das matrizes de formação do povo brasileiro, sendo a primeira
Constituição brasileira a apresentar em seus dispositivos legais a expressão Direitos
Culturais, ou seja, trata a cultura como direito fundamental.

A MUSEOLOGIA COMO ATIVIDADE DE DEMOCRATIZAÇÃO DE


CONHECIMENTO
Segundo Moutinho (2017) ao longo do tempo se desenvolveu uma nova forma
de se pensar os museus, hoje temos uma perspectiva de lugar de aprendizado,
identidade e memória, mas no passado os museus se constituía como lugares eli-
tizados, bem como o acesso para pesquisa e especificadamente seu acervo estava
voltado para guardar artefatos das elites, sendo que o termo originário de museu
é mouseion, significando o templo das musas, filhas de Zeus (Poder) e Mnemósine
(Memória), que protegem as Artes e a História. A deusa Memória dava aos poetas
e adivinhos o poder de voltarem ao passado e de lembrá-los para a coletividade.

O museu é um legado europeu que durante décadas preservou


e reproduziu valores estéticos, glorificou personagens e fatos
que interessavam a uma parcela bem reduzida da sociedade
brasileira. Por vezes foram fruto de entusiasmo e de utopias de
pequenos grupos ou indivíduos (BLOISE, 2011)

A supremacia de uma etnia era comunicada através do espaço museal, logo


não existia pouco espaço para o desenvolvimento do papel educacional e princi-
palmente para manifestações culturais populares, essa perspectiva foi se transfor-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 673


Artes, memória e espaços
mando ao ponto da relação direta com a educação não formal como observamos
na atualidade, destaca Leite (2005) “O acesso aos bens culturais é um meio de sen-
sibilização pessoal que possibilita ao sujeito apropriar-se de múltiplas linguagens,
tornando-o mais aberto para a relação com o outro, favorecendo a percepção de
identidade e de alteridade”.

Espaços museais, entendidos aqui principalmente pelo viés de


que são, sobretudo, locais de preservação da memória, também
de identidade, compreendidos como âmbito, espaços aptos a
promover a participação social. Nesse sentido, os museus são
compreendidos como locais de representação das novas con-
cepções sociais. Sendo esse viés importante para captação do
público nesses espaços, como também ajuda no encaminha-
mento para tornar esses espaços mais acessíveis e inclusivos.
(MOUTINHO, 2017).

Os espaços que eram limitados a uma pequena parcela da sociedade foram se


inserindo a todos, colaborando com o processo de democratização a fim de ser per-
mitido a todos o acesso ao conhecimento. No Brasil, inicialmente aconteceu com a
intenção de se construir a nacionalidade do Estado brasileiro.

A DESCENTRALIZAÇÃO DO PODER UM EXERCÍCIO DE


DESCOLONIZAÇÃO
Segundo Braga e Saldanha (2014) A Declaração Universal dos Direitos Humanos
em 1948, entendendo que a cultura é indispensável ao desenvolvimento da per-
sonalidade e dignidade, estabelece que “todos têm direito a usufruir das artes e
participar livremente da vida cultural da comunidade”. Direito este que também
está resguardado pela Constituição Federal de 1988, visto que seu caráter eman-
cipatório e civilizatório é essencial para o desenvolvimento da descolonização e da
identidade coletiva concretizada na efetivação da democratização do Patrimônio
Cultural seja ele material ou imaterial.

O Princípio do Pluralismo Cultural, o Princípio da Memória Cole-


tiva, o Princípio da Participação Popular e o Princípio da Atuação
Estatal, são princípios inseridos na Constituição Federal de 1988,
que buscam possibilitar uma gestão democrática. O Patrimônio
Cultural é partícipe de todo e qualquer processo civilizatório,
sendo elemento de evolução da sociedade, assim como influên-
cia para o reconhecimento da memória coletiva, da construção
social, do emaranhado de culturas que interagem no binômio
tempo e espaço. (BRAGA E SALDANHA, 2014)

O Brasil é marcado pela desigualdade, e sabemos que o debate a respeito de


justiça social encontra-se mais no âmbito abstrato e filosófico do que no aspecto

674 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
concreto e legal, temos consciência que só uma legislação não tem a possibilida-
de de findar problemáticas tão complexas e seculares, estruturada em conflitos
sociais, regado a interesses políticos de uma elite que busca a manutenção dos
privilégios, pautados em discursos eurocêntricos, em exercício contínuo de violên-
cia simbólica, mas a contribuição constitucional é essencial para a desarticulação de
instâncias centralizadoras de poder que regem uma única narrativa, uma fala que
romantiza a relação entre colonizadores e colonizados, nesse sentindo os direitos
legais possibilitam o rompimento do silenciamento enfrentado por grupos histori-
camente subalternizados.

Colocada em uma posição de controle sobre a ordem social con-


trole da produção e distribuição de bens e poderes, uma classe
dominante constitui os seus pensadores, os seus artistas e sa-
cerdotes, os seus intelectuais, enfim, para que pensem o mundo
para ela ou para que o pensem e representem para todos, de
acordo com os seus interesses hegemônicos de classe. Somente
de uma tal posição estrutural de controle é possível realizar uma
representação totalizadora da realidade social. Uma representa-
ção ordenada, sistemática e coerente, ainda que fundada sobre
relações sociais contraditórias, como a que deriva da divisão so-
cial do trabalho. (BRANDÃO, 1984)

MUSEU CAFUA DAS MERCÊS, UM MEMORIAL AFRO


MARANHENSE
Localizado na Rua da Palma, 502, o Museu Cafua das Mercês espaço destinado a
preservação da memória cultural Afro Maranhense, foi criado pelo Decreto Estadu-
al nº 5.536 de, 05 de fevereiro de 1975 (ARAÚJO JÚNIOR, 2011; RODRIGUES, 1995).
Sendo vinculado ao Museu Histórico e Artístico.
Segundo Pinheiro (2015) o nome cafua teria sido destinado ao prédio, pois a
palavra é de origem tanto que seria equivalente à caverna, cova, lugar escuro e
isolado, nomenclatura propícia a sua funcionalidade no século XVIII, local constru-
ído para finalidade de deposito de africanos escravizados que desembarcaram no
portinho, que no exercício brutal da mercantilização dos seus corpos, eram dispos-
to de maneira amontoada antecedendo a sua comercialização em praça pública.
Fechado atualmente para reforma, e sem previsão para reabertura o Museu Cafua
das Mercês conhecida popularmente como Museu do Negro, foi criada com o
objetivo de preservar e difundir a cultura afrodescendente do Maranhão, tendo
no seu acervo objetos de cultos religiosos de origem africana como estatuetas, ca-
baças, cachimbos e parelhas do Tambor de Mina, importantes fotografias de mães
de santos da Casa de Nagô e da Casa das Minas, além de instrumentos da época
escravocrata, como uma réplica do pelourinho que ficava no Largo do Carmo.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 675


Artes, memória e espaços
Pinheiro (2015) salienta em sua pesquisa monográfica que são muitas as críticas
tecidas a dinâmica do espaço, como o enfoque ensebado a condição de escravi-
zado submetida ao negro africano, considerado até mesmo um espaço morto por
não refletir a contemporaneidade, o relato que autora apresenta do professor Luiz
Alves, representante do centro de cultura negra do maranhão é fundamental para
nossa reflexão.

O museu não pode ser uma instituição morta, do jeito que estar
lá ela uma instituição morta. Ela reflete na entrada a violência
sobre o negro, não é isso! Tem que colocar que era a civilização
africana que muito antes de cristo já existia. Qual foi o papel do
negro aqui no Maranhão? A arte, na agricultura, na economia, na
música. É isso que tem que ser feito! E os negros importantes
não estão lá nenhum. E as frases importantes desse povo, não
têm nenhuma? (PINHEIRO,2015)

Fala que corrobora com a da ialorixá do Axé Ilê Obá, Silvia de Oxalá, que per-
gunta:

Eles [instituições oficiais de memória e academia] vêem o negro


como escravo. Mas os negros não foram apenas escravos. Ti-
nham suas famílias, suas crenças, suas comidas. Ninguém conta
a história dos judeus, que também foram escravos, apenas como
escravos. Por que a história do negro tem que sempre a do povo
escravizado. (PINHEIRO,2015)

O Museu Cafua das Mercês exemplifica de maneira explicita que mesmo que
a constituição preveja o direito cultural, e que o mesmo tenha contribuído para a
iniciação de movimento de descentralização, no que tange a descolonização, existe
um longo caminho a seguir para validar os saberes étnicos para além da visibilidade
por conveniência, adentrar somente um espaço “memorial” como o museu, não
configura-se na concretude da democratização do conhecimentos. Visto que co-
nhecimento é poder, assim como as ações afirmativas, as política de cotas, ou a Lei
nº 10.639/03, que institui a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-
brasileira tem uma significância necessária, mas não podem ser tida com ações
exclusiva para desarticular um racismo enraizado nas instituições estruturante do
nosso país.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
As conquistas adquiridas através da legislação de Direitos culturais, tem uma
relevância significativa no processo de dinamizar a validação e a valorização do
patrimônio cultural para atores que representam a memória coletiva, multicultu-
ral da nação brasileira. Mas torna-se crucial ações que fomente as ecologias dos

676 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
saberes, ou seja, um conjunto de intervenções que visam um diálogo horizontal de
conhecimento.
A decolonização deve ser um exercício contínuo de desconstrução e recons-
trução da sistemática desigualdade sociocultural que se encontra multifacetada
em uma dinâmica de manutenção de privilégios. O Legado de saberes produzido
fora do núcleo de acessibilidade do saber dito como “oficial” visto como marginal e
insurgente são essenciais para uma democratização de bens culturais.

REFERÊNCIAS

ARANTES, Antonio Augusto. O que é cultura popular? São Paulo: Ed. Brasiliense, 1990.
BLOISE, Ana Silvia. O desafio da gestão dos pequenos museus. In: O que são para que
servem?

Organização Sistema Estadual de Museus de São Paulo - SISEM-SP. Secretaria de Estado de

Cultura, Brodowski, 2011.

BRAGA, Janine de Carvalho Ferreira; SALDANHA, B. O direito cultural como elemento


emancipatório e civilizatório e a efetivação da proteção do Patrimônio Cultural no Brasil.
(Org.). 1ed.Florianópolis: CONPEDI, 2014, v., p. 330-350

BRANDÃO, Carlos Rodrigues.O Que é Folclore?.Editora Brasiliense S.A.01223 - R . General


Jardim, 160 São Paulo – Brasil. 4° Edição 1984.

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LIMA, Diana F. C. Museologia-Museu e Patrimônio, Patrimonialização e Musealização:


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MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Constituição federal assegura ampla proteção ao pa-
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PINHEIRO, Cleonice. Museu Cafua das Mercês – Museu do Negro: análise da representa-
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São Luís, 2015.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 677


Artes, memória e espaços
AUTORIA
Sunshine Cristina de Castro Reis Santos
Graduanda do Curso de Turismo da Universidade Federal do Maranhão – UFMA
E-mail: sanycastro12@hotmail.com
Lattes: https://wwws.cnpq.br/cvlattesweb/PKG_MENU.menu?f_cod=387840AE-
0AEA53B9A404DD BD8920BB77#

678 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
MARCAS HISTÓRICAS DAS DESIGUALDADES
Andaraí Ramos Cavalcante
Sheila Cavalcante dos Santos

INTRODUÇÃO
Neste artigo serão apresentadas facetas das complexas e históricas desigualda-
des brasileiras, levando-se em consideração seu passado escravista e suas implica-
ções raciais e sociais, tendo por base um quadro identificado como “tempos som-
brios”, ideia que ilustra acontecimentos da realidade contemporânea brasileira,
marcada pela reprodução cotidiana de um panorama de incertezas. Essa se tornou
ainda mais profunda, difusa e espraiada em 2020, com a emergência de saúde pú-
blica que atingiu o povo brasileiro e a humanidade: uma pandemia, causada pelo
coronavírus /COVID-19.
Tendo por base esse quadro de incertezas contemporâneas, que foi agravado
ainda mais nos seis primeiros meses deste ano, em função da pandemia, num mo-
mento em que não há respostas efetivas para sanar a emergência sanitária, ao
mesmo tempo em que tais implicações ficam mais visíveis, são agravadas, origi-
nando outras desigualdades de ordem básica, relacionadas a onde e como vivem
certas populações, como se dá seu acesso ao trabalho, moradia, água, saneamen-
to, educação e saúde. Desta forma, é importante ressaltar o papel dos movimentos
sociais nesse processo.
As discussões rapidamente pontuadas acima servem como o solo a orientar a
construção deste artigo. Além dessa introdução, na segunda parte são abordadas
questões teóricas e gerais, que dão fundamento à ideia de “tempos sombrios” a
partir de notícias veiculadas sobre a pandemia; na terceira, as marcas históricas
das desigualdades; por fim, algumas considerações finais.

A PANDEMIA: UMA BREVE CRONOLOGIA


Na tese de doutoramento de uma das autoras, que teve como objeto de estudo
o racismo e formas de concretização de manifestações de violências contra jovens
negros em Salvador/Bahia, uma das partes do terceiro capítulo foi iniciada com
um trecho do poema “Aos que virão depois de nós”, de Bertolt Brecht. Traduzido
pelo poeta Manoel Bandeira, o poema fala em “tempos sombrios”. De certa forma,
assim como naquele momento, essa ideia ilustra acontecimentos da realidade con-
temporânea mundial e brasileira.
Mesmo tendo sido escrito em outro contexto histórico, e por um poeta nascido
em outra realidade, consegue se aproximar de forma fantástica a um quadro da
realidade atual, brasileira e internacional. Realidade que reproduz cotidianamente

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 679


Artes, memória e espaços
um panorama de incerteza atual e histórica no país. Incertezas essas vivenciadas
pela população de modo geral, principalmente pelos jovens, particularmente os jo-
vens negros, relacionadas com o “recrudescimento de posições radicalmente rea-
cionárias”, em especial no âmbito político-partidário, quando “assistimos atônitos,
a luz do dia, a movimentos rumo ao desmonte do Estado”.
Essas são questões presentes na contemporaneidade e que têm contribuído
para caracterizar este momento, marcado por um contexto de retrocesso associa-
do ao que foi identificado de tempos sombrios no poema. Tempo no qual um dos
fatos marcantes tem sido o discurso de ódio em relação às minorias: movimentos
sociais, sindicatos, bem como contra todos que busquem algum tipo de reação
contra essa espécie de “refluxo reacionário” (CASIMIRO, 2018, p. 41).
Referenciando-se em Costa (2016, p. 11), é importante apresentar também as
consequências de tal contexto na realidade brasileira, ao afirmar que “assistimos
atônitos, a luz do dia, a movimentos rumo ao desmonte do Estado”. Deve ser res-
saltada a “proposta de privatização do patrimônio público e desvinculação cons-
titucional de gastos sociais obrigatórios” que têm um objetivo político que é o de
“instituir um Estado mínimo no Brasil”, significando, portanto, prejuízos inimagi-
náveis para as políticas públicas de proteção social para a maioria da população
brasileira, tornando-se ainda mais graves neste momento da emergência sanitária.
Mas as incertezas e tensões, evidenciadas em decorrência dessa desestrutura-
ção ou reestruturação de cenário político contemporâneo foi mundialmente su-
plantada diante um surto de pneumonia em humanos, cuja primeira vítima fatal foi
registrada em 11 de janeiro. Os casos iniciais da doença foram descritos na cidade
de Wuhan – a mais populosa da China Central, localizada na província de Hubei, em
dezembro de 2019. De origem ainda incerta, especula-se que a doença surgiu pela
convivência próxima entre humanos e animais silvestres à venda num mercado
atacadista dessa cidade. Assim, a já prenunciada nova pandemia da globalização1
traz em si aspectos da miríade de interconexões entre os diferentes modos de vida,
uma economia globalizada, a facilitação do trânsito (de pessoas, mercadorias, in-
formações, doenças) pelo mundo, as demandas ecológicas.
Na primeira quinzena de janeiro, algumas matérias jornalísticas brasileiras so-
bre o então surto compararam a nova pneumonia misteriosa com doenças respi-
ratórias que ameaçaram sair do controle neste século2, mostrando que o receio de
uma epidemia ou, pior, uma pandemia, rondou as primeiras notícias sobre a infec-
ção viral. Entre os dias 13 e 20 de janeiro a doença é detectada em outros países,
além da China. Três dias depois, a OMS reconhece o caso como uma emergência na
China, e no dia 30, declara emergência de saúde pública de interesse internacional,
em função da disseminação do coronavírus em 19 países. Aqui no Brasil, naquele

2 A Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS), a Síndrome Respiratória do Oriente Médio


(MERS) e a Gripe Aviária, as duas primeiras, doenças respiratórias graves causadas por vírus da família
coronavírus responsáveis, respectivamente, por um surto e uma epidemia, e a última causadora da
pandemia de H1N1. Acessar: https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2020/01/06/a-misteriosa-
-pneumonia-que-preocupa-a-china.ghtml.

680 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
momento, nove casos, em seis estados, estavam a ser investigados e conforme o
Ministério da Saúde, nenhum foi confirmado3.
Já na época, o Comitê de Emergência do Regulamento Sanitário Internacional
da ONU destacou, dentre as medidas para contenção da propagação do vírus, “iso-
lar e tratar casos, rastrear contatos e promover medidas de distanciamento social
compatíveis com o risco”4. Os jornais brasileiros mostraram, impressionados, a agi-
lidade da resposta das autoridades governamentais e sanitárias chinesas, dentre
elas, um lockdown (bloqueio), o controle rigoroso da população em Wuhan e em
outras cidades na província de Hubei, que durou 76 dias.
No Brasil, as primeiras declarações públicas sobre o novo coronavírus, dadas
pelo presidente da República em finais de janeiro, sugeriram que a situação não
era “alarmante”5, pois não existiam casos confirmados no país. Poucos dias depois,
em meio à resistência presidencial em ceder aos apelos de repatriação de brasilei-
ros que se encontravam quarentenados em Wuhan e as pressões políticas e sociais
para que o fizesse6, poderes Executivo e Legislativo articularam a Lei 13.979/2020,
publicada no Diário Oficial da União em 07 de fevereiro, que versa sobre as ações
que podem ser adotadas para enfrentamento da emergência de saúde pública de
importância internacional, inclusive medidas de quarentena e isolamento social, “e
regulamenta a entrada de pessoas com suspeita de contaminação no país”. Nesse
esforço conjunto, a pauta tramitou, foi aprovada e publicada em apenas três dias7.
Em 10 de fevereiro, é publicada uma MP que destina ao Ministério da Defesa crédi-
to extraordinário de R$ 11.287.803,00 para o enfrentamento da então emergência
sanitária8.

3 Acessar: https://www.gov.br/pt-br/noticias/saude-e-vigilancia-sanitaria/2020/01/oms-de-
clara-emergencia-de- saude-publica-internacional-para-novo-coronavirus
4 Acessar: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&i-
d=6100:oms-declara- emergencia-de-saude-publica-de-importancia-internacional-em-relacao-a-no-
vo-coronavirus&Itemid=812
5 Acessar: https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,nao-e-uma-situacao-alarmante-diz-
-bolsonaro-sobre- coronavirus,70003173424
6 Acessar: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/01/31/bolsonaro-reune-ministros-pa-
ra-avaliar-risco-do- coronavirus-e-situacao-de-brasileiros-na-china.ghtml
7 A lei elenca uma série de medidas que, de um lado, funcionam como meio de evitar a
contaminação ou a propagação do coronavírus, que incluem, seja o arbítrio sobre ações da população
como isolamento, quarentena, uso obrigatório de máscaras de proteção individual, restrição do uso
de rodovias e aeroportos, seja a realização de estudo e ações epidemiológicos de controle e conten-
ção, como a realização compulsória de exames, testes, vacinas, exumação, necropsia, seja a autoriza-
ção para importação e distribuição de materiais, medicamentos, equipamentos e insumos da área de
saúde, sem licença sanitária, que fossem tidos como essenciais para o combate à pandemia. Acessar:
https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/02/06/bolsonaro-sanciona-lei-com-regras-sobre-quaren-
tena- e-medidas-contra-coronavirus-diz-planalto.ghtml
8 Acessar: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/02/10/bolsonaro-assina-mp-e-destina-
-r-112-mi-para- enfrentar-emergencia-de-saude-publica-provocada-pelo-coronavirus.ghtml

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 681


Artes, memória e espaços
As notícias sobre os esforços da sociedade civil, governamentais, epidemiológi-
cos e sanitários para compreensão e controle da doença estiveram ao lado daque-
las que pontuavam possíveis ameaças econômicas com ela advindas9.

PANDEMIA E DESIGUALDADES NO BRASIL


No Brasil em especial, a incertezas sentidas no ano de 2019 se tornaram ainda
mais profundas, difusas e espraiadas em 2020, com a emergência de saúde pública
que atingiu o povo brasileiro. A chegada da pandemia ao Brasil se inicia em áreas
habitadas por populações com alto poder aquisitivo. Sua propagação para as pe-
riferias, porém, coloca em evidência marcas históricas das desigualdades, que se
somam à magnitude dos problemas decorrentes dessa pandemia.
Diante do quadro de incertezas agravado pela emergência sanitária, percebe-se
o aumento das desigualdades sociais, considerando-se locais de moradia e estilos
de vida das populações, assim como seu acesso a elementos de necessidades bási-
cas que garantam sua sobrevivência, saúde e educação.
Podem-se citar como exemplo, em relação à realidade de Salvador, questões
urbanas que são históricas como os deslizamentos de terra. Em pleno mês de abril,
quando todas as atenções estavam voltadas para a pandemia, na cidade a “nor-
malidade” dos deslizamentos de terra e desabamentos de casas roubou a cena,
atingindo dois bairros, com um total de seis vítimas soterradas, resultando em dois
óbitos. Diante do quadro inusitado da necessidade de distanciamento e isolamen-
to social como uma das formas mais eficazes de evitar ação do contágio pelo vírus,
ficou evidente a impossibilidade dessa população seguir tal procedimento. Outro
fato que chama a atenção é o aumento dos números de mortes nestas áreas e
também entre a população negra.
Segundo uma pesquisa PUC/RIO10 sobre óbitos por Covid-19, pessoas sem esco-
laridade têm taxas três vezes maiores (71,3%) em relação àqueles com nível supe-
rior (22,5%). Quando junta raça e índice de escolaridade, a situação fica ainda pior.
Pretos e partos sem escolaridade morrem quatro vezes mais pelo novo coronavírus
do que brancos com nível superior (80,35% contra 19,65%). E mesmo que tenham
a faixa de escolaridade igual, pretos e pardos apresentam proporção de óbitos 37%
maior, em média, do que brancos.
Entre os discursos minimizadores do impacto da doença adotados por líderes
de alguns países, inclusive o nosso, e críticas a uma pretensa cobertura “exage-
rada” da imprensa, o Brasil registra seu primeiro caso de Covid-19, em finais de
fevereiro11. A imprensa internacional já fala em crise nas cadeias mundiais de abas-

9 Acessar: https://veja.abril.com.br/mundo/coronavirus-60-do-mundo-pode-ser-infectado/
10 Acessar: http://www.ctc.puc-rio.br/diferencas-sociais-confirmam-que-pretos-e-pardos-
-morrem-mais-de-covid-19- do-que-brancos-segundo-nt11-do-nois/
11 Acessar: https://www.brasildefato.com.br/2020/02/26/brasil-e-o-primeiro-pais-da-ameri-
ca-latina-a-identificar- caso-de-coronavirus

682 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


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tecimento devido à paralisação produtiva e distributiva chinesa12, da alta do dólar
e da queda das bolsas de valores mundo afora13. A incerteza trazida pelo vírus já
afeta o mundo.
Com a matéria Novo coronavírus já começa a afetar dia a dia da economia bra-
sileira14, o Correio Brasiliense trata dos impactos da epidemia na economia real na-
cional. E, mesmo assim, dias depois, o presidente fala à nação, dizendo que “não
há motivos para pânico” e que a situação “não é isso tudo que a mídia propaga”,
num mimetismo ao posicionamento adotado pelo presidente norte americano até
então15.
Finalmente, em 11 de março, a OMS muda o status de surto para pandemia,
cujos efeitos já podem ser vistos, não apenas no número de contaminados e mor-
tos pelo mundo, mas no comportamento instável da economia e da dinâmica so-
cial nos mais diversos aspectos. Fechamento de escolas e universidades16, desin-
formação e teorias da conspiração17, xenofobia contra chineses e descendentes18,
fraudes online19 também se intensificaram, no lastro da pandemia.
Apesar dessas recomendações e de notícias na imprensa sobre a necessida-
de de “achatar a curva” de contaminação - para que ele se espalhe ao longo
do tempo e o sistema de saúde dê conta - no país ainda não há uma política
sanitária clara sobre o problema. Ao contrário, o presidente da república inte-
rage fisicamente com manifestantes, em manifestações públicas de apoio ao
seu governo e confronto ao parlamento20 21.A partir daí, se inicia o embate que
marca o posicionamento do governo Bolsonaro frente à pandemia22: as reco-
mendações de especialistas sobre a necessidade do afastamento social versus

12 Acessar: https://www.dw.com/pt-br/efeitos-do-coronav%C3%ADrus-sobre-as-cadeias-
-mundiais-de- abastecimento/a-52558475
13 Acessar: https://economia.uol.com.br/noticias/bbc/2020/02/29/se-coronavirus-e-menos-
-letal-que-outras- epidemias-por-que-assusta-tanto-o-mercado.htm?
14 Acessar: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2020/03/03/inter-
nas_economia, 831654/novo-coronavirus-ja-comeca-a-afetar-dia-a-dia-da-economia-brasileira.shtml
15 Acessar: https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,coronavirus-esta-superdimensiona-
do-diz-bolsonaro-em- miami,70003226601
16 Acessar: https://en.unesco.org/covid19/educationresponse
17 Acessar: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/03/direita-global-ve-conspiracao-
-em-pandemia-do- coronavirus.shtml
18 Acessar: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/tatiana-prazeres/2020/03/xenofobia-que-
-cresceu-com-a-covid- 19-deixara-sequelas-de-longo-prazo.shtml
19 Acessar: https://atarde.uol.com.br/economia/pr-newswire/noticias/2138802-relatorio-so-
bre-crimes-ciberneticos- da-lexisnexis-risk-solutions-revela-novas-oportunidades-e-riscos-nos-canais-
-online-da-america-latina-durante- pandemia-global
20 Acessar: https://www.gazetadopovo.com.br/republica/atos-pro-bolsonaro-apoio-15-mar-
co/.
21 Acessar: https://www.gazetadopovo.com.br/republica/atos-pro-bolsonaro-apoio-15-mar-
co/
22 Acessar: https://www.brasildefato.com.br/2020/08/06/bolsonaro-e-as-quase-100-mil-
-mortes-trapalhadas- omissao-e-desprezo-as-vitimas

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 683


Artes, memória e espaços
mensagens dúbias ou abertamente críticas das medidas de distanciamento so-
cial, em especial, sob a justificativa dos impactos à economia. Numa ocasião,
falou: “Se afundar a economia, acaba qualquer governo. Acaba o meu governo.
É uma luta de poder”23.
Enquanto isso, as pessoas aplaudem pacientes recuperados24 e o trabalho dos
profissionais de saúde25, enquanto estes apelam para que as pessoas fiquem em
casa26. A população faz panelaços pelo país durante as falas presidenciais oficiais27
e os governos estaduais e municipais se posicionam com medidas de incentivo ao
isolamento social28. É nessa linha que, a despeito do posicionamento do então mi-
nistro da saúde em favor de medidas mais sérias de contenção do espalhamento
do vírus em território nacional29, e da primeira morte em território nacional em
consequência dele30 o presidente segue, ao longo dos meses seguintes, susten-
tando discursos ora inconsistentes31, ora de aberta oposição a posicionamentos e
recomendações técnicas e científicas sobre a gravidade e as formas mais eficientes
de enfrentamento da pandemia32.
Em meio a essa agitação social e política ocorre a decretação, em 20 de mar-
ço, do Estado de Calamidade no país, o que possibilitou o aumento de gastos
públicos pelo governo acima das metas fiscais descritas na Lei de Responsabi-
lidade Fiscal33. Houve uma modificação no panorama político-administrativo
como nas várias esferas de poder público, com relação ao enfrentamento da
pandemia34; o antigo debate da renda mínima retoma a cena. Daí a importância
de trazer para reflexão esse apanhado de fatos e relatos sobre a pandemia: as
políticas fiscais e assistenciais tomadas tiveram por motivador esse contexto,
que se refletiu também na amplitude e no modo como as ações foram pensa-
das, negociadas e tomadas.

23 23https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2020/03/16/interna_politica,1129266/bol-
sonaro-diz-que-ha-superdimensionamento-em-relacao-ao-coronavirus.shtml
24 Acessar: https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2020/04/16/video-paciente-
-com-covid-19-e- aplaudido-ao-receber-alta-de-uti-apos-29-dias-internado-no-df.ghtml
25 Acessar: https://oglobo.globo.com/sociedade/coronavirus-profissionais-de-saude-sao-ho-
menageados-com- aplausos-nas-janelas-24319194
26 Acessar: https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2020/04/16/video-paciente-
-com-covid-19-e- aplaudido-ao-receber-alta-de-uti-apos-29-dias-internado-no-df.ghtml
27 Acessar: https://valor.globo.com/politica/noticia/2020/03/31/bolsonaro-alvo-do-15-pane-
lao-seguido-durante- pronunciamento-na-tv.ghtml
28 Acessar: https://cbncuritiba.com/governadores-de-26-estados-pedem-manutencao-de-iso-
lamento-social/
29 Acessar: https://theintercept.com/2020/03/15/bolsonaro-coronavirus-saude-mandetta/
30 Acessar: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51931934
31 Acessar: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-03-24/forcado-por-coronavirus-bolsonaro-a-
cena-com-tregua-a- governadores-e-anuncia-ajuda-de-882-bilhoes.html
32 Acessar: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-53703044
33 33 Acessar: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/03/18/Calamidade-p%C3%BA-
blica-o-que-%C3%A9- e-quais-suas-implica%C3%A7%C3%B5es
34 Acessar: https://www.gov.br/economia/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/boletins

684 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não apenas o Brasil, mas vários países pelo mundo adotaram medidas objeti-
vando a proteção social de famílias vulneráveis e medidas de auxílio e incentivo
para empresas e trabalhadores35. A proteção social aos mais pobres durante a crise
causada pela pandemia, inclusive, foi recomendação do Banco Mundial para o Bra-
sil36. Neste contexto, até 21 de setembro, é o segundo país em número de mortes
e o terceiro em número de infectados.
Assim, ao lado das iniciativas de solidariedade37 de indivíduos, grupos empresas,
medidas legais foram tomadas visando, no geral, a manutenção dos empregos pe-
las empresas, o adio no pagamento de dívidas, a ampliação do crédito financeiro
e a transferência direta de renda para trabalhadores. Para esse último público,
foram implementadas importantes medidas, com destaque para a Lei 13.982/2020
(antigo Projeto de Lei 9.236/2017), que institui o auxílio emergencial a trabalhado-
res informais, e da Lei 14.020/2020, que cria o Programa Emergencial de Manuten-
ção do Emprego e da Renda, voltado para os trabalhadores formais.

Apesar de um contexto histórico marcado pela indiferença por


determinadas mazelas raciais e sociais e pelo preconceito em re-
lação às populações negras e empobrecidas, em Salvador, como
em todo Brasil, ações imediatas foram tomadas como forma de
mitigar as diversas dificuldades do enfretamento do coronaví-
rus, organizadas pelos movimentos sociais em especial os movi-
mentos sociais negros.

Um exemplo entre as dezenas de movimentos sociais e ONGs que têm realizado


um trabalho político efetivo de apoio às periferias por todo Brasil, neste momen-
to tão difícil é a Central Única das Favelas (Cufa). A Cufa está presente em mais
de 500 comunidades brasileiras, sendo que no “Estado da Bahia em 13 cidades e
44 localidades de Salvador receberam alguma dessas ações”. Dentre esse apoio,
destaca-se, ainda, o estímulo e amparo ao desenvolvimento do comércio local nas
comunidades38.
É um marco fundamental nesse contexto que não pode deixar de ser registrado,
que foi a força humanitária e política dos movimentos sociais nos bairros periféri-
cos por todo Brasil, com respostas mais rápidas e eficazes que as soluções (ou falta

35 Acessar: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,ao-menos-45-paises-ja-adotaram-
-medidas-para-conter- impactos-da-covid-19-em-emprego-e-renda,70003244688
36 Acessar: https://nacoesunidas.org/artigo-novos-numeros-mostram-por-que-e-crucial-pro-
teger-os-mais-pobres-na- crise-da-covid-19/
37 Acessar: https://saude.abril.com.br/bem-estar/16-iniciativas-inspiradoras-contra-o-corona-
virus-que-dependem- de-doacoes/
38 Acessar: https://revistaafirmativa.com.br/covidnafavela-os-impactos-da-pandemia-e-as-re-
des-de-protecao- colaborativa-nas-periferias-de-salvador/

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 685


Artes, memória e espaços
delas) propostas pelos governantes. Foram os movimentos que impediram uma
tragédia de proporções ainda piores nas periferias das cidades pelo Brasil.

REFERÊNCIAS

CASIMIRO, Flávio Henrique Calheiros. As classes dominantes e a nova direita no Brasil


InO ódio como política: a reinvenção da direita no Brasil, Boitempo 2018.

COSTA, Graça. O desmonte do Estado InPor Que Gritamos Golpe?Para entender o im-
peachment e a crise política no Brasil, Boitempo 2016.

AUTORIA
Andaraí Ramos Cavalcante
Universidade Católica do Salvador
E-mail: andaraircavalcante@yahoo.com.br
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7789717469180516

Sheila Cavalcante dos Santos


Universidade Federal do Paraná - UFPR
E-mail: sheucavalcante@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1441-2941
Lattes:http://lattes.cnpq.br/7701704712624868

686 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
ST 20
Emancipações
e Pós-Abolição:
experiências
negras de
liberdade,
trabalho,
educação,
sociabilidade e
territorialidade
AFROEMPREENDEDORISMO FEMININO EM
CURITIBA: REFLEXÕES DE CAMPO SOBRE A
FEIRA DO AFROEMPREENDEDOR DA PRAÇA
ZUMBI DOS PALMARES
Suelen Karini Almeida de Matos

INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objetivo apresentar algumas reflexões de minha
pesquisa de mestrado em Antropologia que está em andamento. Tenho como
campo de trabalho a “Feira Cultural e do Afroempreendedorismo” que acontece
mensalmente na Praça Zumbi dos Palmares, localizada no bairro Pinheirinho na
cidade de Curitiba, Paraná. A partir desta feira, busco entender como a presença de
mulheres negras, que é a grande maioria de quem participa do evento, tanto como
afroempreendedoras, tanto quando parte da organização, neste espaço contribui
para a formação política de cada uma tendo como ponto de partida o afroempre-
endedorismo. Também trago a história do Instituo Afro-Brasil, organização que está
por trás da feira e como essas relações de estabelecem neste local.
Meu interesse pelo tema se deu antes de ingressar no mestrado, quando ainda
estava na graduação em design de moda, onde no fim do curso, resolvi levar a
temática de moda afro- brasileira como tema do trabalho final, naquele momento,
eu estava passando por um processo de auto reconhecimento como mulher negra,
fato que me fez ver me minha pesquisa a minha história, a história de minhas an-
cestrais. Nesta pesquisa eu fui atrás de algumas marcas que se posicionam no mer-
cado como afro-brasileiras, entrevistei designers de Curitiba, São Paulo e Salvador,
todas mulheres pretas. Por fazer parte do cenário de moda curitibano, percebi
um movimento muito grande de espaços de economia colaborativa, isso no ano de
2016. Começou-se a falar sobre moda local, colaborativa e slow fashion. Comecei
a frequentar essas espaços mas percebi que existiam poucas afroempreendedoras
ali, sendo que eu sabia que elas existiam. Quando questionava isso com os donos
das lojas, a resposta era sempre a mesma: “mas onde estão essas afroempreende-
doras, me diz onde elas estão, nossa loja está abertas para todos!”. Muitos fatores
faziam com que essas mulheres pretas não estivessem nesses espaços mais cen-
trais, um deles é o alto custo que é cobrado por arara ou por bancada, tornando
inviável a presença delas lá. Mas então, onde elas estão? Essa foi a pergunta que
me fez ingressar no mestrado.
Em Curitiba existem dois eventos e um espaço colaborativo voltado exclusiva-
mente para afroempreendedores, são eles: a “Feira Cultural e do Afroempreende-
dorismo” que acontece na Praça Zumbi dos Palmares, que é meu campo de pesqui-
sa; a “Feira do Afroempreendedor” que acontece esporadicamente no Memorial

688 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
de Curitiba localizando no Largo da Ordem, centro histórico e bem central; e o
espaço de economia colaborativa “Afro Mundo Mix”, localizando dentro do com-
plexo gastronômico “Mercado Sal” no bairro Portão.
Quando iniciei minhas idas a campo, em julho de 2019, não tinha previsão de
quando seria a feira no Memorial de Curitiba e o espaço Afro Mundo Mix ainda não
existia, então acabei começando pela feira da Praça Zumbi. A feira acontece um
domingo por mês, com início as 14h até as 18h, além das barracas onde cerca de
20 afroempreendedores expõem, esse número pode variar de edição para edição,
também acontecem apresentações culturais com artistas negros locais.
A feira surge no ano de 2017, antes acontecia na casa da presidente do Instituto
Afro-Brasil, onde ela alugava o salão de feitas do prédio onde vive, convidada al-
gumas afroempreendedores próximas para participar, conforme o sucesso acon-
teceu, ela resolveu migrar para a Praça, que estava abandonada desde sua inau-
guração em 1992, revitalizada em 2016, mas que acabou se tornando um espaço
ocupado por usuários de drogas. Sobre o Instituto, ele foi formado em 1996, na
época, faziam parte apenas homens negros que fazia parte de diferentes movi-
mento militantes locais, o presidente era tio da atual presidente, conforme o tempo
foi passando e a idade chegando, ele resolveu passar para a sobrinha o Instituto.
Logo que ela assumiu, a primeira coisa que fez foi instituir como mote a presen-
ça de mulheres negras na cadeiras principais, sendo assim, chamou suas primas
para ocupares os cargos de vice-presidente, coordenação, secretaria e financeiro.
Quando a feira surge, a ideia é estender essa ideia de dar prioridade para mulhe-
res pretas, logo, foi criado uma espécie de cotas para pessoas brancas, ou seja, a
maioria das vagas para expor na feira é destinada para mulheres pretas, depois,
homens pretos, e por fim, uma cota para pessoas não negras, porém elas devem
obrigatoriamente produzir peças com agenciamento da estética negra, enquanto
os afroempreendedores podem expor produtos e serviços que quiserem.
Logo na minha primeira experiência em campo percebi o grande número de
mulheres pretas expondo, assistindo as apresentações, se apresentando, partici-
pando efetivamente. Elas levavam suas irmãs, primas, mães, tias, sobrinhas, filhas,
amigas, formando pequenos grupos de mulheres ao redor das barracas se cons-
tituindo em um grande “quilombo” feminino. A partir daí, percebi que existiam
relações muito complexas e fascinantes, onde o afroempreendedorismo se esta-
belece como ponto de partida para se pensar formação política, empoderamento,
emancipação, território e resistência. Nem precisei procuras outros espaços, vi que
a Praça Zumbi dos Palmares era o meu lugar.

APORTE TEÓRICO
Quando comecei a buscar referenciais teóricos para embasar minha pesquisa,
decidi que iria dar prioridade para mulheres pretas e latino-americanas, sendo as-
sim, tenho ao meu lado LÉLIA GONZÁLEZ (1982 e 2011) com duas produções que

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 689


Artes, memória e espaços
são de extrema importância para se pensar o lugar social da mulher negra na so-
ciedade brasileiro e latino-americana. Também busquei para se entender o que é o
afroempreendedorismo e suas ramificações e contexto histórico MARIA ANGELICA
DOS SANTOS (2019) com seu livro “O Lado Negro do Empreendedorismo: Afroem-
preendedorismo e Movimento Black Money” em diálogo com JOÃO JOSÉ DOS REIS
(1993).
Parto do estudos feministas negro para compreender o processo de emancipa-
ção social e empoderamento com auxílio de JOICE BERTH (2019) e RUTE BAQUE-
RO (2012). Para pensar interseccionalidade, tenho como sabe CARLA AKOTIRENE
(2019) com suas encruzilhas indentitárias e GRADA KILOMBA (2019). Para dialogar
com gênero, raça e classe, penso status a partir de THALES DE AZEVEDO (1955) em
“Elites da Cor: um estudo de ascensão social”.
Por fim, mas não menos importante, trabalho com o conceito de quilombismo
de ABDIAS NACIMENTO (2019) em diálogo com a grande historiadora sobre quilom-
bos MARIA BEATRIZ NASCIMENTO (2006) e CLOVIS MOURA (2001), salientando que
penso esse conceito de forma utópica, afinal não se trata de um quilombo efetiva-
mente, mas uma ocupação de um espaço urbano cuja a finalidade é de se formar
uma nova existência.

PROBLEMA DE PESQUISA (E/OU HIPÓTESE E/OU OBJETIVOS)


Curitiba carrega em sua história a tradição de exclusão da população e cultura
negra como integrante da formação da cidade, comportamento que é reforçado
constantemente por parte dos governantes locais que se orgulhando em dizer que
é a “Europa Brasileira”. Diversas pesquisas já foram feitas mostrando o quanto o
movimento negro curitibano luta, sem poios do estado, por melhores condições
para aqueles que somam mais de 20% da população. SANCHES (1995) em sua dis-
sertação sobre a invisibilidade no negro em Curitiba retrata de maneira fiel o des-
caso que a comunidade sofre, mas para além disso, o que eu quero é mostrar
que “[...] a opressão forma as condições de resistência” (KILOMBA, 2019, p. 69),
trazendo a importância de se olhar para o movimento de mulheres negras e o afro-
empreendedorismo para além da invisibilidade, mas como resistência e ocupação
de espaços, tanto físicos quanto políticos.

METODOLOGIA
Realizei observação participante nas edições mensais da feira nos meses de ju-
lho, setembro, outubro, novembro e dezembro de 2019, permanecendo no local
das 14h até as 18h, No ano de 2020 havia planejando de continuar as observações
mas de forma mais próxima, acompanhando o dia de feira de algumas afroempre-
endedoras, mas por conta do isolamento social fruto da pandemia da COVID-19,
acabou não sendo possível .Quando estava em campo, anotava tudo que via, ouvia

690 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
e conversava, também tirei fotos das apresentações, estrutura da praça e feiran-
tes, fiz alguns desenhos que imagens que me marcaram. Após a feira, passei a
limpo tudo que havia escrito no diário no computador, já estabelecendo relações
com teorias que havia lido, cada relatório está salvo com as fotos que foram tiradas
no mesmo dia.
Após isso, compilei todos os relatórios de campo em um grande relatório geral de
pesquisa, já dialogando com algumas teorias, para que assim eu pudesse visualizar
o que as possíveis lacunas que ainda estivessem abertas, e claro que elas estavam.
Diante disso, até o momento, foram realizadas no início de outubro de 2020, duas
entrevistas por vídeo chamada com duas integrantes do Instituto Afro-Brasil. Uma
durou cerca de 50 minutos, enquanto a outra durou duas horas, com um roteiro
prévio, abordei algumas questões relacionadas a temáticas que havia visto em
campo mãos que gostaria de trazer a perspectiva de cada uma em relação a esses
temas. Após a realizadas das entrevistas, que foram tiveram seus áudios gravados,
iniciei o processo de transcrição literal de cada uma, onde durante o processo, fui
sinalizando falas que dialogassem com teorias e fatos presenciados em campo.

RESULTADOS E ANÁLISE
A pesquisa ainda está em andamento, então algumas questões ainda estão em
aberto, mas por hora já é possível perceber como algumas relações se estabelecem
em campo. Antes de tudo é importante trazer o significado de afroempreendedo-
rismo, segundo Maria Angélica dos Santos (2019), “afroempreendedorismo, em
sentido amplo, diz respeito ao movimento empreendedor realizado por negras e
negros”. Esses movimentos, segundo ela, pode ser focado em um negócio que pen-
se de forma ampla, como por exemplo abrir um supermercado, uma loja de roupas
ou um restaurante, mas também pode ser um modelo de negócio focado como
público alvo pessoas negras, que envolva apenas pessoas negras em todo processo
produtivo, marketing, funcionários negros, etc. Ambas modalidades autora clas-
sifica como “latu sensu (sentido amplo) (...) e (...) scricto sensu (sentido estrito)”
(SANTOS, 2019, p, 36). Mas é interessante pois quando questiono o processo de
afroempreendedorismo para minhas interlocutoras, elas trazem duas categorias
um pouco diferentes. Segundo Márcia Reis, coordenadora do Instituto Afro-brasil
e afroempreendedora na marca Negra Kaetê, os afroempreendedores no geral es-
tão ali, alguns, por necessidade e outros por militância. Ela mesma me conta que é
pedagoga e atua como diretora em um escola pública na região metropolitana de
Curitiba e que está ali na feira como parte de seu processo de militância, visando
ajudar outras pessoas negras que precisam e querem ser afroempreendedores.
Esse fator do que leva a pessoa negra a empreender é um ponto bem relevante
na pesquisa. Busquei dados que mostram, em relação a homens e mulheres, sem
recorte racial a abrirem seus próprios negócios. Segundo dados do GEM (2018),
do total de homens e mulheres que são donos de seus próprios negócios, foi pos-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 691


Artes, memória e espaços
sível perceber que cerca de 44% das mulheres se tornaram empreendedoras por
necessidade, enquanto os homens a porcentagem é de apenas 32%. Quando con-
templamos o marcador racial como fator de analise, percebemos que as questões
de desigualdade são ainda maiores quando se trata do empreendedorismo. Márcia
Reis traz uma situação que ilustra muito bem como a mulher negra é vista e tratada
pelo mercado de trabalho brasileiro e como o afroempreendedorismo surge como
uma possibilidade de subsistência, ela conta do período onde suas filhas, que tem
na faixa dos 20 anos, terminam o curso de magistério e vão em busca de emprego
em escolas particulares, depois de muitos currículos entregues, nenhuma ligação e
o motivo fica evidente para ela, o fator “boa aparência”. Após essa situação, Már-
cia diz que trouxe suas filhas para a organização da feira, onde após alguns meses
observando e aprendendo como as outras afroempreendedores se organizam, elas
resolveram abrir uma marca de brechó.
Transformando a exclusão em resistência, o afroempreendedorismo para as
mulheres que estão presentes na Feira do Afroempreendedor é muito forte. É na-
quele contexto em que elas começam a perceber a importância de aprender a va-
lorizar seu trabalho, tanto de forma monetária quanto simbólica, articulando seu
processo de empoderamento.
O empoderamento traz uma tomada de consciência, partindo do prefixo
“auto”, pois quanto ao âmbito individual, (…) é uma auto emancipação, fundada
numa compreensão individualista de empoderamento, que enfatiza a dimensão
psicossocial (BAQUERO, 2012, p. 177), pois o indivíduo começa a olhar de forma
mais crítica para o sistema pelo qual se está inserido, no que diz respeito a grupo so-
cial de mulheres negras, esse movimento tem crescido cada vez mais. BERTH (2019)
traz um precisão cirúrgica a respeito do tema, quando intersecciona com o conceito
de afroempreendedorismo dizendo como essa modalidade de negócio tem como
produto a criação de um sistema econômico, o movimento black money, que (...)
diz respeito ao potencial consumerista do capital negro, de alto e real valor que o
dinheiro do negro possui na economia (SANTOS, 2019, p. 71), atuando como uma
espécie de (…) fortalecimento social (BERTH, 2019, p. 74). Esse fortalecimento traz
uma sensação de alcance ao status social operante dentro do sistema capitalista,
mas é importante observar que o que os afroempreendedores criam se mostra ser
um sistema adverso ao capitalista, ou seja, quando a pessoa negra almeja essa as-
censão social por meio do afroempreendedorismo, ela não se dá da mesma forma
que da pessoa branca. Assim, o afroempreendedorismo fala sobre ascensão social
e mobilidade traves da ótica do empoderamento, articulando a mudança de status
dentro da sociedade na qual esse grupo está inserido.

Em princípio, qualquer indivíduo tem a possibilidade de ascen-


der socialmente por sua fortuna, por seus méritos intelectuais,
por seus títulos profissionais, por suas qualidades morais, ou
pela combinação desses elementos, de acordo com os siste-
mas de valores de uma sociedade de tipo capitalista. (AZEVEDO,
1955, p. 195)

692 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
Como falando anteriormente, o afroempreendedorismo contribui para início
do processo de empoderamento para as mulheres que estão no espaço da feira,
partindo de uma vivencia individual. Esse processo vai para além do ato de vender,
ele também tem como fundamento a formação política e educacional que estar
inserida neste grupo em específico traz. Márcia me conta sobre como muitas destas
afroempreendedoras, antes de começarem a frequentar a feira, não tinham cons-
ciência de como racismo atinge toda população negra ao redor do mundo, ela fala
sobre como os debates dentro das reuniões a respeito destas temáticas fizeram
com que essas mulheres começassem a se inserir de forma mais militante na orga-
nização da feira, e até mesmo, aplicando na vida como um todo.

Então, a gente percebeu, por exemplo que teve gente que fa-
lava: “ah, eu nem sabia dessa história que vocês falam de racis-
mo”, daí você começa a resgatar: “mas veja, isso aconteceu com
você?” “ahh aconteceu!”, então isso é o racismo. Isso que você
não viu, sabe por que você não viu? Porque eles fingem que não
é, porque o racismo é o crime perfeito, no direto a gente fala que
racismo é o crime perfeito, o louco é quem sofreu o racismo,
quem sofreu o racismo é maluco porque até remontar o nexo
do que a pessoa está dizendo pra chegar lá e bater e dizer é
racismo, entendeu?(Márcia Reis)

Trazendo esse aspecto de transformação acontecendo no âmbito coletivo,


percebe a articulação de uma união de mulheres, tendo como base a ocupação do
espaço físico da praça, que tem uma papel fundamental nas relações que estabe-
lecem neste contexto. O afroempreendedorismo cria e movimenta uma economia
especifica, denominada Black Money, um modelo que busca fortalecer a riqueza da
população negra, não sucumbindo ao sistema capitalista, este que é excludente. A
partir desta ideia, trago de forma utópica o conceito de quilombismo para pensar
essa ocupação espacial e simbólica, onde essas mulheres, como sujeitas políticas,
fortalecem o sistema de uma nova subsistência.

O quilombismo se estruturava em formas associativas que tanto


podiam estar localizadas no seio de florestas de difícil acesso,
que facilitava sua defesa e organização econômico-social pró-
pria, como também assumiram modelos de organização permi-
tidos ou tolerados, frequentemente com ostensivas finalidades
religiosas (católicas), recreativas, beneficentes, esportivas, cul-
turais ou de auxílio mútuo. Não importam as aparências e os
objetivos declarados: fundamentalmente, todas elas preenche-
ram uma importante função social para a comunidade negra,
desempenhando um papel relevante na sustentação da comu-
nidade africana. Genuínos focos de resistência física e cultural.
Objetivamente, essa rede de associações, irmandades, confra-
rias, clubes, grêmios, terreiros, centros, tendas, afoxés, escolas
de samba, gafieiras foram e são os quilombos legalizados pela
sociedade dominante; do outro lado da lei, erguem-se os qui-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 693


Artes, memória e espaços
lombos revelados que conhecemos. Porém tanto os permitidos
quanto os "ilegais" foram uma unidade, uma única afirmação
humana, étnica. (NASCIMENTO, 2019, p. 252).

Logo, dentro desta perspectiva, é possível perceber que o que a feira proporcio-
na é uma espaço de formação de identidade política coletiva através do afroem-
preendedorismo, criando assim uma rede de mulheres negras formando uma nova
pratica de existência. Ocupando e tomando para si a Praça Zumbi dos Palmares,
espaço que foi criando em homenagem a população negra de Curitiba, mas que na
verdade ficou abandonada por anos, reesignificando este espaço e transformando
todo o contexto urbano ao redor da praça.

CONCLUSÕES (OU CONSIDERAÇÕES FINAIS)


Quando iniciei minha pesquisa de campo em 2019, eu acreditava que estaria
pesquisando apenas a constituição do afroempreendedorismo por parte das mu-
lheres negras de Curitiba, mas ao iniciar de fato a convivência com elas, perce-
bi que o ato de empreender representava apenas a ponta de um grande iceberg.
Até o presente momento, foi possível perceber como a feira de constitui como uma
espaço de militância, formação de identidade de uma coletivo, empoderamento,
emancipação social e ocupação.
A partir disso, ir para além do lugar de opressão, mas trabalhar como resistên-
cia, o afroempreendedorismo feminino contribui para que a mulher negra saia do
lugar social da empregada doméstica que (...) internaliza a subordinação e infe-
rioridade (...) (GONZALÉZ, p. 1982, p. 98), para que elas possam, literalmente, dar
valor, tanto monetário quando simbólico, em sua força de trabalho, contrariando
o sistema hegemônico, pois (...)a opressão forma as condições de resistência, (KI-
LOMBA, 2019, p. 69).

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694 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


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minino no Brasil. Atualizações de dados e novas aberturas (por “gênero” e “raça/cor”).
Disponível em https://datasebrae.com.br/wp-content/uploads/2020/07/Empreendedo-
rismo-Feminino-no- Brasil-2019-agosto2019.pdf. Acesso em 02 de set. de 2020.

AUTORIA
Suelen Karini Almeida de Matos
Universidade Federal do Paraná E-mail: suelenmatos@ufpr.br
ORCID: http://orcid.org/0000-0002-1383-5950
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4133789207334242

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 695


Artes, memória e espaços
ORANIAN É PAULO DA PORTELA1: O MUNDO QUE
PAULO BENJAMIM DE OLIVEIRA FEZ CRESCER
Karen Garcia Pêgas

[...]
Toda a cidade sentiu
O tamborim parou
Quando Paulo da Portela foi embora
A União das Escolas Luto fechado votou
E Oswaldo Cruz ainda hoje
Chora, chora
( LOBO, Haroldo; OLIVEIRA, Milton de, 1949).

INTRODUÇÃO
Essa pesquisa de mestrado em andamento se configura como um amadureci-
mento do que já vinha sendo trabalhado sobre o Paulo da Portela desde do curso
de Especialização em Ensino de História da África do Colégio Pedro II cursado entre
os anos de 2017 e 2019. Nessa especialização que tinha o enfoque do trabalho final
de conclusão voltado para uma proposta de intervenção pedagógica, o fenômeno
de pesquisa da intelectualidade negra e protagonismo político de Paulo da Portela
foi abordado dentro de uma narrativa histórico biográfica com base no Ensino de
História dentro do conteúdo curricular de história da Era Vargas. Agora, no traba-
lho de mestrado em andamento, o problema de pesquisa centra-se em torno de
avaliar o impacto do papel de intelectualidade negra e de militância artístico-polí-
tica de Paulo da Portela para o mundo do samba e do carnaval. Assim, a pesquisa
busca compreender mais aprofundadamente e elucidar mais propriamente as es-
trégias que marcam o pensamento que envolve a intelectualidade orgânica negra
e a militância artística-política do sambista em defesa da institucionalização das
escolas de samba, da profissionalização dos sambistas e da integração social das
populações emprobrecidadas suburbanas cariocas de maioria negra por meio das
negociações políticas e das mediações culturais que Paulo realizou junto ao gover-
no varguista, à indústria fonográfica, com os setores brancos e mais abastados da
população e em contato com os setores negros e mais empobrecidos da população
durante as décadas de 1930 e 1940.
A pesquisa também destaca o papel de grande relevância política e social das
escolas de samba, com especial enfoque na agremiação portelense, como forma
de (re)-existência e de resistência negra no período que marca o Pós – Abolição no

1 Trecho do samba-enredo Contos de Areia do desfile carnavalesco oficial de 1984.

696 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
Brasil por meio da reconstrução e da construção simbólica de laços identitários e
comunitários que envolvem saberes que foram e são produzidos, disseminados
e atualizados na sociedade através da prática da preservação das tradições cul-
turais afro-brasileiras e de atualização destes saberes de acordo com o contexto
histórico, social, econômico, político e cultural no qual estas se situam. Ou seja, a
importância de perceber a ideia de escola de samba enquanto conceito, como um
espaço social, dinâmico e representativo de ideias e ações de acordo com o contex-
to histórico e temporal no qual se encontra (FARIA, 2008).
A escola de samba Portela por meio da liderança, intelectualidade e do ativismo
artístico- político de Paulo da Portela agiu enquanto organização de resistência po-
lítica, sobretudo negra, diante da opressão racista e classista do Estado republicano
e do cenário de exclusão social que se arrastava desde a abolição da escravidão
(1888) e se manteve inalterado com a instauração da República (1889), já que a po-
pulação afro-brasileira obteve a liberdade jurídica, mas não contou com nenhuma
política de reparação e inclusão social, ao invés disso, houve o reforço da repressão
ao exterminío físico e simbólico desta população através da implementação de po-
lítica estatal de eugenia e da implantação da Lei da Vadiagem em 1891. Destarte,
a estratégia política contra- hegemônica que Paulo da Portela realizou à frente da
agremiação portelense consistiu na construção social desta com base na subver-
são dos códigos de dominação pela via da negociação política com os setores mais
abastados de maioria branca da população, da ressignificação cultural de adapta-
ção do discurso trabalhista-varguista ao modo de ser do sambista e da ação nas
brechas da lógica mercantil da indústria fonográfica que possibilitou a integração
social das camadas empobrecidas negras e periféricas das favelas e dos subúrbios
cariocas por meio da política cultural de nacionalização das escolas de samba em
1935, através da mudança de valores e ideias das camadas negras e empobrecidas
da população em torno do samba enquanto um repertório de saberes políticos
e culturais que conferia dignidade, intelectualidade e representatividade política
para o grupo (FARIAS, 1999).
Nesse sentido, a representação mítica de Paulo da Portela como o orixá Oranian
presente no trecho do samba- enredo “Contos de Areia” do GRES Portela de 1984
, compreendendo o conceito de mito aqui como uma “história verdadeira”, pelo
seu caráter sagrado, exemplar e significativo, e não como um sinônimo de “fábu-
la”, “ficção” ou “invenção”, (ELIADE, 1972, pág. 6) também reforça essa dimensão
exemplar de conduta humana e sagrada que a figura de Paulo da Portela simboli-
zou e simboliza para o GRES Portela e que está relacionada ao papel de legado de
intelectualidade negra e de militância artística-política desempenhado por Paulo
da Portela em defesa das escolas de samba. “Bahia é um encanto a mais\ Visão
de Aquarela \ E no Abc dos Orixás\ Oranian é Paulo da Portela\ Num mundo azul
e branco \ O Deus negro fez nascer\ Paulo Benjamim de Oliveira\ Fez esse mundo
crescer ...” (SANTANA, Dedé; REIS, Norival, 1984)

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 697


Artes, memória e espaços
Assim, a comparação de Paulo da Portela com o orixá yorubano Oranian reflete
a importância das conquistas políticas, sociais e culturais que o sambista possibili-
tou ao GRES Portela através da modernização e sofisticação do carnaval da escola
de samba e da sua maior politização e cidadania por meio da sua função institucio-
nal da escola de samba enquanto Grêmio Recreativo que se tornou espelho para as
demais escolas de samba, pois, segundo a mitologia yorubana, Oranian

[...] foi aquele cuja fama era a maior em toda a nação yorubá.
Tornou-se famoso como caçador desde a juventude e, em segui-
da, pelas grandes, numerosas e proveitosas conquistas que rea-
lizou. Foi o fundador do reino de Oyó, que foi a mais importante
e poderosa cidade yorubá e pai do orixá Xangô, quem herdou do
pai o reino de Oyó e foi tido como um grande rei que manteve
a importância e a grandeza do império. Além disso, Xangô apa-
rece também na mitologia yorubana como um dos orixás mais
poderosos do panteão yorubá que é amplamente cultuado nos
terreiros do Brasil (VERGER, 1981 apud SIMAS, 2012, pág. 55).

Portanto, para a comunidade portelense, Paulo da Portela figura como Oranian.


É o “deus negro” de Madureira e de Oswaldo Cruz que foi responsável pela constru-
ção e pela grandiosidade do reino de Oyó que é representado pelo GRES Portela.
No mesmo contexto, os portelenses se percebem enquanto Xangô, que assim como
o orixá que herdou do pai Oranian a responsabilidade por defender a continuidade
do triunfo do reino de Oyó, os portelenses também assumem a posição de her-
deiros do legado de Paulo da Portela e responsáveis por preservar a tradição e
garantir a grandiosidade do “reino portelense”, ou seja, defender o pavilhão e a
comunidade portelense (SIMAS, 2012).
Assim, o presente artigo busca analisar mais aprofundadamente quais são e
qual a particularidade dessas estratégias que perpassam a intelectualidade orgâni-
ca negra e o ativismo artístico- político de Paulo da Portela, através de uma discus-
são teórica, conceitual e metodológica que possibilite mais recursos para analisar
essa especificidade da transgressão na adequação que envolve o pensamento e
o agir político do sambista dentro das brechas da realidade social de dominação
varguista-capitalista à frente da agremiação portelense e que possibilitou ganhos
sociais, políticos, econômicos e culturais para as escolas de samba e para as co-
munidades suburbanas negras frente à situação de racismo e classismo do Estado
Repulicano nos primeiros meados do século XX na cidade do Rio de Janeiro. E que
tornou Paulo uma figura célebre, sagrada e referencial de intelectualidade e prota-
gonismo político no mundo do samba e do carnaval.

APORTE TEÓRICO
Os estudos se situam em torno da história social do samba. Assim, serão utiliza-
dos para o desenvolvimento deste trabalho conceitos, como: conformação e resis-

698 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
tência que são abordados por Marilena Chauí, 2018 enquanto estratégias políticas
contra hegemônicas das classes subalternas e como por meio da cultura popular
estas respondem a classe dominante “[...] aceitando, interiorizando, reproduzindo
ou transformando a cultura dominante, buscando as formas pelas quais esta últi-
ma é recusada, negada ou afastada implícita ou explicitamente pelos dominados”
(CHAUÍ, 2018, p. 27). Assim, estes conceitos possibilitam analisar as estratégias e
ações políticas de Paulo da Portela em torno do aspecto de transgressão na ade-
quação que está relacionado à sofisticação e modernização dos desfiles carnava-
lescos das escolas de samba e à mudança de juízo de valor no modo de ser dos
sambistas. Nesse sentido, a oposição entre as duas culturas dominada e dominante
será compreendida aqui como manifestação que se realiza no interior de uma so-
ciedade autoritária em que as desigualdades entre os grupos é determinante , “[...]
leva a sentidos e finalidades diferentes para cada uma das classes sociais e marca os
processos em que as diferentes classes sociais se constituem como tais pela elabo-
ração prática e teórica, explícita e implícita, de suas divergências, de seus antago-
nismos e de suas contradições”(CHAUÍ, 2018, P.27). Assim, a diferenciação entre
a cultura dominante e a cultura popular possibilita pensar como no seio de uma
sociedade autoritária como o regime varguista (1930-1945) foram idealizadas e
executadas as estratégias e as ações políticas de transgressão na adequação de
Paulo da Portela.
O conceito de canção de Luiz Tatit , 2008 é aqui utilizado para pensar a influên-
cia do universo cancional negro na caracterização da música popular brasileira, por
meio da forma de cantar com base na empostação da sonoridade das palavras, das
improvisações e da influência rítmica dos batuques dos sambistas do morros e dos
subúrbios rurais cariocas. E também de como esses sambistas ao mesmo tempo que
marcaram a música popular brasileira dentro de uma matriz de referencial cultural
étnica negra e se profissionalizaram, estes também faziam um uso comunicacional
e informacional das músicas gravadas que traziam cosmovisões, denúncias e histó-
rias da vida cotidiana desses sujeitos. De acordo com Tatit (2008, P.42):

O grande feito – sempre intuitivo – dos sambistas , maior que


a estabilização da sonoridade, foi o encontro de um lugar ideal
para manobrar a tangente da fala. Ao mesmo tempo que atri-
buíam independência à melodia, unificando suas partes com dis-
positivos musicais, conservavam seu lastro entoativo para dar
naturalidade a elocução da letra. Desse modo preparavam suas
canções para a gravação, mas não deixavam de usá-las como veí-
culo direto de comunicação: mandavam recados aos amigos e
aos desafetos, criavam polêmicas e desafios, faziam declarações
ou reclamações amorosas, introduziam frases do dia-a-dia, pro-
duziam tiradas de humor “ dizendo” tudo isso de maneira con-
vincente , com as inflexões entoativas adequadas e, no entanto,
conservando a musicalização necessária a estabilidade do canto.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 699


Artes, memória e espaços
O conceito de identidade negra abordado por Nei Lopes, 2008 utilizado aqui
enquanto oralidade da linguagem cotidiana, pela corporalidade, pela rítmica dos
batuques africanos e pela dimensão cultural do pagode que envolve a sociabili-
dade em torno da ideia do mutirão, da alimentação e das festividades. Assim, por
meio do samba de Partido Alto é possível pensar como a cultura do pagode enquan-
to essa forte marca da cultura negro-africana bantu muito presente nas culturas
suburbanas e que se caracteriza pelos valores afro-civilizatórios da sociabilidade,
da alimentação, da corporeidade e da musicalidade em torno da ideia de mutirão,
onde tudo se constrói coletivamente desde a alimentação até mesmo as rodas de
Partido – Alto. Sendo assim, a ideia de coletivismo é a base das identidades cultu-
rais suburbanas e possibilita compreender o surgimento e o funcionamento das
escolas de samba do final da década de 1920, enquanto associações comunitárias
e territoriais de referencial étnico predominantemente negro. Além disso, permi-
te , principalmente, analisar como Paulo da Portela pensou o fortalecimento da
identidade negra dentro da agremiação portelense ao tornar a escola de samba
um movimento institucional, comunitário, representativo política e culturalmente
das camadas empobrecidas suburbanas negras, por meio da qual essas populações
teriam meios para reivindicar demandas sociais e conquistar mais participação po-
lítica, conseguindo assim, uma maior inserção social. E também reflete como Paulo
pensou a dignificação dos sambistas a partir da profissionalização que viria através
da gravação do samba e do reconhecimento da autoria da canção desses sambis-
tas, especialmente com a elevação do samba ao símbolo de identidade nacional.
Como aponta LOPES (2008, P.159):

Consolidando-se a música popular como atividade econômica,


o samba começa a atrair artistas e criadores de outros extratos
que não o dos negros e afro- mestiços deserdados da Abolição.
Assim, quase sempre como fruto da colaboração ou mesmo de
relações de exploração estabelecidas entre compositores de
estamentos sociais diferentes, incia-se, entre 1917 e 1929, na
música brasileira, o ciclo da canção carnavalesca, com o samba
se tornando principal gênero musical brasileiro.

PROBLEMA DE PESQUISA
Assim, a partir do problema de pesquisa de qual a importância do papel de inte-
lectualidade negra e do ativismo artístico-político de Paulo da Portela para o mundo
do samba e do carnaval, foram formuladas as seguintes hipóteses:
A invisibilidade da intelectualidade de Paulo da Portela na Historiografia estaria
relacionada à dimensão racista pelo fato de Paulo ter sido um sambista-negro e com
pouca escolaridade. Dessa forma, Paulo acaba por não ser entendido enquanto um
intelectual orgânico e produtor de saberes, ainda que este tenha pensado estraté-
gias de transformação da condição de subalternidade do negro frente à realidade

700 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
de dominação social racista e classista brasileira. Assim, torna-se importante bus-
car ressaltar esse papel de intelectualidade e de protagonismo político do sambis-
ta, a fim de reforçar a figura de Paulo enquanto um produtor de saberes políticos e
culturais que se reflete fortemente no mundo do Samba e do Carnaval, na história
e na cultura suburbana dos bairros de Oswaldo Cruz e de Madureira, mas que se
difere totalmente do papel de invisibilidade que a Historiografia lhe destina, já
que mesmo obras de referência que tratam acerca da Historiografia da Era Vargas
(1930- 1945), da temática do trabalhismo e da relação de negociação política entre
as classes trabalhadoras com o governo varguista, como as obras A Invenção do
Trabalhismo e O Brasil Republicano: o tempo do nacional-estatismo, mencionam
as conquistas desses grupos em torno dos benefícios trabalhistas e sociais, das po-
líticas culturais varguistas implementadas de valorização da cultura popular, porém
sem fazer menção a Paulo da Portela que possuiu esse papel sine qua non na media-
ção política e cultural entre as camadas populares e o governo varguista.
A outra hipótese é referente à comparação de Paulo da Portela com a descrição
física do orixá Oranian, descrito como um orixá metade preto e metade branco,
sendo fruto da relação simultânea de uma escravizada negra com Ogum, um orixá
representado de pele escura e com Odudua, um orixá representado tendo a pele
clara (VERGER, 1997) estaria relacionada à estratégia política de sofitiscação e mo-
dernização que Paulo da Portela trouxe para o desfile do carnaval do GRES Portela,
mesclando elementos culturais dos Ranchos e dos blocos das camadas negras e
empobrecidas da população com os elementos culturais das Grandes Sociedades
das camadas brancas e mais elitizadas da população. Assim, indo além do que o Si-
mas (2012) pontuou enquanto comparação do reino de Oyó com a grandiosidade
portelense, esta ideia também caminha em direção ao reforço e à ênfase do di-
ferencial e da relevância da estratégia política que caracteriza o modo de pensar,
ser e agir de Paulo da Portela que perpassa pelo seu referencial enquanto mito do
GRES Portela, do mundo do samba e do carnaval e também das histórias dos bair-
ros de Oswaldo Cruz e de Madureira.

METODOLOGIA
Desenvolve-se aqui, neste presente trabalho que se configura em pesquisa ini-
cial de mestrado, com base em fontes primárias levantadas no Museu da Imagem
e do Som e nos sites do IMMUB e Youtube, como fotos de Paulo da Portela e
músicas em homenagem ao sambista cantadas por sambistas portelenses e tam-
bém de outras agremiações carnavalescas que foram reunidos durante o curso de
especialização de Ensino de História da África no Colégio Pedro II entre os anos de
2017 a 2019. Nesse sentido, o presente trabalho busca fazer uso desse repertório
documental adquirido sobre o Paulo da Portela durante o curso de especializa-
ção associado com as informações obtidas no acompanhamento das produções
de mídias realizadas pelo GRES Portela, como o canal Portela Cultural no Youtube

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 701


Artes, memória e espaços
e no Instagram, especialmente em virtude desse contexto de pandemia da Covid
19 que estamos vivenciando e também pelo fato de que durante o mês de junho,
mês de aniversário de Paulo da Portela, ter tido uma programação voltada para
homenageá-lo. Assim, a pesquisa adota uma abordagem multimétodo em busca da
associação desses dois métodos qualitativos e quantitativos a ideia é buscar mais
recursos, inclusive imagético científico, na análise para o entendimento da com-
plexidade e da potencialidade que envolve o fenômeno de intelectualidade negra
e militância artístico política de Paulo da Portela.

FIGURA 1 - PAULO DA PORTELA AO CENTRO E SUA TURMA DE SAMBISTAS

Fonte: Museu de Imagem e Som ,2020.

RESULTADOS E ANÁLISE
Em comparação às pesquisas já realizadas acerca de Paulo da Portela que tra-
tam do seu papel de intelectualidade e protagonismo político destacando os seus
feitos e inovações em defesa das escolas de samba e mostrando os ganhos sociais,
políticos e culturais que estas últimas conquistaram, os resultados alcançados pela
presente pesquisa até o momento se diferenciam por analisar mais propriamente
e aprofundadamente a elaboração dessa estratégia de mediação ambígua de Paulo
de transgressão na adequação por meio da negociação e da ressignificação entre
a cultura popular e a cultura da elite , mas que teve um forte impacto social para
as escolas de samba e para as comunidades cariocas periféricas negras. Assim, os
resultados referem -se:
Ao diferencial estratégico de Paulo da Portela no diz respeito à ambiguidade do
seu pensamento e da sua atitude de transgressão na adequação e que foi de suma
importância para a conquista dos benefícios sociais adquiridos pelas camadas em-
pobrecidas negras suburbanas e permitiu uma maior integração social desses gru-
pos, especialmente, com a lei de institucionalização das escolas de samba em 1935.
Assim, foi a atitude negociada de Paulo de adaptação do discurso trabalhista-var-
guista ao modo de ser do sambista, principalmente através da vestimenta, que se

702 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
configura em um dos maiores exemplos de confirmação e resistência ( CHAUÍ, 2018)
que embasa a estratégia política de Paulo da Portela no enfrentamento ao regime
capitalista-varguista e que o tornou um ícone do samba e uma personalidade his-
tórica negra brasileira.
Ao legado de intelectualidade orgânica popular negra e de ativismo artístico –
político de Paulo da Portela, ainda que não seja reconhecido pela Academia, tem
grande visibilidade dentro da comunidade do samba e do carnaval como um mito
do samba, já que o GRES Portela “ foi escola” para as demais escolas de samba
que se inspiraram no modelo de modernização e sofisticação que Paulo da Portela
implementou nos desfiles carnavalescos portelenses. Além disso, Paulo da Portela
inspirou também o modo de ser dos sambistas exigindo desses últimos disciplina
que começava com a declaração marcante de Paulo e da qual era exemplo: "sam-
bista para fazer parte da nossa turma tem que está de “pés e pescoços ocupados”
( SIMAS, 2012) em menção ao uso dos sapatos e da gravata. Assim , os programas
exibidos pelo canal Portela Cultural do Youtube e do Instagram reforçaram a defe-
sa de Paulo com relação à profissionalização dos sambista que passava pela cobran-
ça de melhores garantias de remuneração com relação à gravação e também em
relação à autoria das canções (TATIT, 2004) já que Paulo também era compositor.
Como afirma Sergio Procópio, presidente da Velha-Guarda do GRES Portela:

“Paulo pegou a época da Pernada, mas não era a caracacterística


dele. Era mais “pés e pescoços ocupados”. Não era rico, sem pos-
ses, vida humilde. Vida simples e dura. Sambista, negro, ainda
mais a margem. Por ele ser negro tinha que ser respeitado. Ele-
gância mais conhecimento político, respeito para o negro e para
o Samba” (Depoimento oral, Sergio Procópio, 2020).

A amplitude da intectualidade orgânica popular negra e da militância artístico-


-político de Paulo da Portela reforça a importância da compreenssão da escola de
samba simultaneamente enquanto grêmio recreativo, pois, o fundamento da escola
de samba está no seu papel institucional como organização social, política, comu-
nitária e cidadã de referencial étnico cultural predominantemente negro (LOPES,
2008) que existe em conjunto e para a sua comunidade integralmente. Assim, os
desfiles carnavalescos compreendem uma parte da escola de samba, mas não são
sua exclusividade. Como declara a diretora de Cidadania Hellen Mary da agremia-
ção:" Portela é Portela o ano todo" (Depoimento oral, Hellen Mary, 2020).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A importância desse artigo está em contribuir para os estudos na área da história
social do samba, especialmente, em torno dos intelectuais negros do samba. Nesse
sentido, a presente pesquisa ao buscar entender qual a importância do papel de
intelectualidade negra e da militância- artístico político de Paulo da Portela para

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 703


Artes, memória e espaços
o mundo do samba e do carnaval, compreende também esse novo paradigma que
Paulo da Portela criou no universo do samba e do carnaval inovando na organização
e na estruturação dos desfiles das escola de samba ao criar muitos dos critérios
que até hoje compõe os quesitos oficiais dos desfiles carnavalescos das escolas de
samba, bem como, na influência modo de ser sambista ao elaborar novas visões de
mundo acerca do samba enquanto um produto cultural e implementar mudanças
de valores e hábitos quanto à disciplina dos sambistas que foram de suma impor-
tância para a dignificação destes, para a oficialização das escolas de samba e para
a integração social das camadas negras suburbanas cariocas, especialmente no que
se refere à mudança da visão de mundo negativa de elitismo e racismo mais exa-
cerbado que os setores brancos e mais abastados da população e o Poder Público
nutriam acerca das manifestações culturais de referencial negro anteriormente
a institucionalização das escolas de samba. Logo, poder pensar nas estratégias e
ações políticas de Paulo da Portela enquanto teorizações e práticas sociais que os
sambistas como intelectuais orgânicos que são fazem em busca da transformação
social da realidade de opressão e dominação social e racista no qual se encontram
junto à classe dominada. E assim, reforçar o papel e a importância do impacto de
intelectualidade orgânica desses sujeitos históricos intelectuais negros sambistas
que pensam, agem e influenciam a história do país.

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tos de Marilena Chauí V.4. Belo Horizonte\ São Paulo: Autêntica\ Fundação Peseu Abra-
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FERREIRA, JORGE; DELGADO, Lucília de Almeida. O Brasil Republicano: o tempo do nacio-


nal- estatismo. V.2 O início da década de 1930 ao apogeu do Estado Novo – Segunda Re-

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MARY, HELLEN. Depoimento oral. Entrevistador: Ruan Lucena. Live Portela Cultural. Ins-
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LOPES, Nei. Partido Alto: samba de bamba. Rio de Janeiro: Pallas, 2008.

PROCÓPIO, Sergio. Depoimento oral. Entrevistador: Tarsilo Delphim. Live Portela Cultural
– Programa Papo Sincopado. Youtube. Data: 17.06.20. Disponível em https://www.youtu-
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ponível em https://www.gresportela.com.br/Historia/DetalhesAno?ano=1984 acesso em
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SIMAS, Luiz Antonio. Tantas Páginas Belas: História da Portela. ORG. MOTTA, Aydano An-
dré. 1ed: Rio de Janeiro: Verso Brasil Editora, 2012.

TATIT, Luiz. O Século da Canção. Cotia/SP: Ateliê Editorial, 2004.

VERGER, Pierre. Lendas Africanas dos Orixás. Trad: Maria Aparecida da Nóbrega. 4ed.
Salvador: Corrupio, 1997.

AUTORIA
Karen Garcia Pêgas
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico-Raciais do CEFET\
RJ ( PPRER\CEFET-RJ)
E-mail: kkpegas@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3085-5427
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8292410613996266

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Artes, memória e espaços
A (RE)INSERÇÃO SOCIAL DE ALFORRIADOS E
LIBERTOS NO PARANÁ NAS ÚLTIMAS DÉCADAS
DO SÉCULO XIX
Alexandre Padilha
Camile Ribeiro Texca
Fábio Lucas da Cruz

A minha história é contada


Com tintas de amargura
Um dia sob ovações e rosas de alegria
Jogaram-me de repente
Da prisão em que me achava
Para uma prisão mais ampla
Foi um cavalo de Tróia
A liberdade que me deram
Havia serpentes futuras
Sob o manto do entusiasmo
Um dia jogaram-me de repente
Como bagaços de cana
Como palhas de café
Como coisa imprestável
Que não servia mais pra nada
Um dia jogaram-me de repente
Nas sarjetas da rua do desamparo
Sob ovações e rosas de alegria

Carlos de Assumpção

INTRODUÇÃO
No final do século XIX, a abolição da escravidão em 1888 e a Proclamação da
República no ano seguinte alteraram a organização política e social dos brasilei-
ros, porém mantiveram desigualdades sob o governo de militares e da aristocracia
rural. Os ex-escravizados foram um dos grupos mais afetados nesse período de
importantes transições. A liberdade perante a lei não foi acompanhada de políticas
públicas de educação e trabalho. A partir desse contexto histórico, a pesquisa
busca entender contradições da inserção social dos ex-escravizados no modelo de
cidadania republicano.
A abolição em 1888, embora tenha diminuído a incerteza jurídica acerca da
liberdade dos já alforriados (CHALOUB, 2012), não significava a real liberdade e

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Artes, memória e espaços
autonomia dos libertos, que por muitas vezes continuavam trabalhando para os
antigos donos e em condições precárias.
Esta pesquisa justifica-se pela necessidade de compreender, dada a pouca biblio-
grafia sobre o tema, como foi o processo de pós-abolição no Paraná, 0s discursos
racistas que preponderavam e as limitações à plena cidadania impostas à popula-
ção negra. A sociedade brasileira, que cultua uma memória de esquecimento, pode
se beneficiar destas pesquisas para o debate de como funciona a atual estrutura
social e como esta é marcada pelo racismo estrutural.
Os resultados alcançados até o momento contribuem com a tese de ausência
de libertação real dos ex-escravizados. A repressão social e estatal fundamentada
nas teorias eugênicas e no racismo estrutural não possibilitou a ascensão social da
população negra. Os negros mantiveram formas de resistência política e cultural,
criando sociedades, buscando espaço na imprensa, incentivando revoltas popula-
res participando de grupos republicanos e abolicionistas.

APORTE TEÓRICO
Entre os séculos XVI e XIX, 4,9 milhões de africanos foram trazidos à força para o
Brasil para trabalharem como escravizados (GOMES, 2019). As condições de viagem
eram subumanas e aqueles que sobreviviam se encontravam em condições precá-
rias de trabalho e alimentação. A violência contra os africanos não se manifestava
apenas em castigos físicos: a imposição da religiosidade católica, as ameaças, te-
mores e tristezas criavam repressões culturais e psicológicas.
Esses homens e mulheres traficados foram essenciais para o desenvolvimento
econômico da América Portuguesa e, depois, do Brasil, com destaque em suas ati-
vidades desenvolvidas nos engenhos de açúcar, mineração e produção cafeeira.
Trouxeram técnicas e tecnologias de agricultura e mineração que dominavam no
continente africano.
O tráfico negreiro se mostrou como uma das atividades mais lucrativas desse
período, mas teve seu fim legal no Brasil em 1850, pela Lei Eusébio de Queiroz.
Isso foi quase 40 anos antes da abolição da escravidão, mas já mostrava que essa
instituição não poderia se manter por muito tempo mais diante da expansão dos
ideais liberais.
O movimento abolicionista, surgido em fins da década de 1860, definido como
o primeiro movimento social do Brasil (ALONSO, 2018), mobilizou o país todo e
marcou a década de 1880 com a sua a fase “insurrecional” que começou esponta-
neamente e acabou por tornar-se organizada (COSTA, 2008).
Costa (2008) mostra que manifestações populares que defendiam a abolição
não eram incomuns. Essas manifestações reuniam pessoas brancas e negras, liber-
tos e livres, jornalistas e militares. A Igreja Católica, que por séculos defendeu e se
beneficiou com a exploração e escravização negra, em 1887 se manifestava aber-
tamente a favor da abolição. Até alguns fazendeiros, o grupo mais dependente da

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 707


Artes, memória e espaços
mão de obra cativa, viram que o fim da instituição não tardava a chegar e tomaram
medidas em relação a isso. A Lei Áurea apenas “selou um fato consumado” (COSTA,
2008, p.125)
Os protestos populares não anulam, porém, as pressões políticas e econômicas
sofridas pelo Brasil pelo fim do regime escravocrata, pois este ia de encontro aos
interesses capitalistas da então potência mundial.
Segundo Nabuco (2000), a escravidão era a responsável pelo estancamento das
classes dos lavradores não proprietários de latifúndios e dos moradores do sertão.
Outro setor econômico que não se desenvolveu por causa da escravidão foi o in-
dustrial, assim como o comércio.
Por essa perspectiva de não desenvolvimento industrial e comercial, a escravidão
significava atraso, enquanto a abolição era sinônimo de progresso para o país; leva-
ria o Brasil a outro patamar, discurso muito recorrente entre os republicanos.
A grande mobilização ocorrida para a libertação dos afrodescendentes não
se estendeu para o período Pós-Abolição. A transição do trabalho escravo para o
trabalho livre foi controlada pelos fazendeiros, principalmente com o advento da
República, que descentralizou o poder político ao distribuí-lo para as unidades fe-
derativas (COSTA, 2008). Nesse período tornou-se preocupação das autoridades o
controle das camadas sociais subalternas, nas quais estavam os libertos, usando,
dentre outros recursos, da força policial (COSTA, 2008).
Como resposta a esse meio social hostil, “os escravos, agora libertos, não deixa-
ram nunca de criar, recriar e inventar seus espaços de liberdade” (GOMES, 2011, p.
34). Um dos principais exemplos desses modos de reafirmar e vivenciar essa liber-
dade que Costa (2008) chama de “precária” era por meio dos clubes sociais negros.
Esses clubes eram “locais de sociabilidade, resistência e resposta à sociedade [...]
que segregava os recém-libertos” (SANTOS, 2019, p.2).

MATERIAIS E MÉTODOS
O projeto caracterizou-se por pesquisas na literatura já produzida pela historio-
grafia, como livros, artigos, teses e dissertações e por pesquisas em fontes pri-
márias como jornais, documentos oficiais e relatos produzidos durante o período
histórico estudado.
A revisão bibliográfica, realizada na primeira parte da pesquisa, contou com
grandes obras como Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos e 1889,
cedidas pelo orientador, ou disponíveis na biblioteca do IFPR ou em domínio públi-
co. Esta revisão tinha como objetivo ampliar o conhecimento sobre o contexto his-
tórico e expor quais questões eram discutidas entre a historiografia que ajudariam
a definir mais precisamente o tema e quais questões específicas seriam estudadas.
Após essa revisão, foi iniciada a pesquisa em fontes primárias, começando pelos
Relatórios de Governo da Província do Paraná, disponíveis no Arquivo Público do
estado, que expunham a situação financeira da região, os planos de ação estatal

708 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
e as opiniões dos governantes. Os jornais disponíveis na Hemeroteca Digital Bra-
sileira possibilitaram entender visões de governantes, intelectuais, republicanos e
abolicionistas. principal mídia da época e uma forma de entender o pensamento
geral da população, também foram estudados, atentando-se aos mais populares
e de diferentes posicionamentos políticos. Destacamos os jornais “Dezenove de
Dezembro”, “A República” e “A Idea”.

RESULTADOS DE PESQUISA
A Lei Áurea libertou mais de 700 mil pessoas em 1880. Esse contingente não
contou com nenhuma política assistencialista. No cenário paranaense, que não di-
fere muito do nacional, a grande maioria deles não era alfabetizada; o estado não
era industrializado e o comércio possuía pequena expressão. A população negra
teve que continuar desempenhando atividades nas fazendas e casas das famílias
brancas por remunerações baixas.
Para que mudanças ocorressem nesse cenário era necessário que o governo de-
senvolvesse políticas públicas para alfabetização dos recém-libertos, medidas para
sua inserção efetiva no mercado de trabalho e políticas de redistribuição de terra.
O que ocorreu, porém, foi o inverso.

1. A QUESTÃO EDUCACIONAL
O Brasil era um país de pessoas analfabetas. No Paraná da década de 1880 es-
tavam em funcionamento as escolas nocturnas. Elas tinham como objetivo alfabe-
tizar os adultos brancos e negros (libertos e escravizados), dos quais os primeiros
eram a maioria.
Nos Relatórios de Governo foram encontrados registros acerca da relação entre
escravos e homens livres frequentando escolas. Segue a descrição:

A frequência das escolas nocturnas é regular.


Por informações ultimamente recebidas sei que regularmente
as frequentam 361 alumnos, dos quaes 71 são escravos. (Rela-
tório de Governo, 1882, p. 93)

Entretanto, essa não era uma política eficiente. As escolas eram precárias e
não ofereciam serviço de qualidade. Dessa maneira, os negros deveriam encontrar
outras maneiras de se alfabetizar e se profissionalizar, que não fosse com o apoio
estatal.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 709


Artes, memória e espaços
2. A CRIMINALIZAÇÃO E ENCARCERAMENTO DA POPULAÇÃO
NEGRA
Sabe-se que, atualmente, a população carcerária brasileira é composta majorita-
riamente por pessoas negras. Os negros são as principais vítimas de violência poli-
cial. Esse cenário é semelhante ao final do século XIX.
Estava em vigor nesse período a Lei da Vadiagem, instrumento que previa o pro-
cedimento das autoridades em relação a pessoas que não possuíam emprego e mo-
radia. Estas, se fossem vistas andando na rua, mesmo que procurando por um em-
prego, eram abordadas pela polícia e ficavam retidas por duas semanas. Passado
este tempo, elas eram obrigadas a assinar um termo no qual se responsabilizavam
a conseguir um emprego em até quinze dias. Se isso não ocorresse, elas seriam no-
vamente presas, mas, nesse caso, por até três anos. Esse mesmo texto criminaliza
a prática da capoeira, um notório elemento da cultura afro-brasileira.
No fim do século XIX, houve uma grande massa de imigrantes europeus que
chegava no porto de Paranaguá. Estes recebiam diversos tipos de auxílio do Estado,
encontrados nos relatórios de governo, que passavam por doação de terras e di-
nheiro até criação de infraestrutura para ajudar nas rotas comerciais dos produtos
que cultivassem. Este ambiente criava uma competição desleal entre os libertos e
os imigrantes dado que os primeiros não receberam nenhuma ajuda e carregavam
o passado da escravidão. Esta disparidade, junto com outras medidas como a lei da
vadiagem, criava por fim, um ciclo de desemprego, subcondições e prisões para a
população negra.
Antes da abolição, algumas pessoas negras libertas eram presas por suspeita
de serem cativos fugidos. Nesses casos, quando o “dono” do suposto escravo fugi-
do não aparecia, ele ia para leilão público, demonstrando a fragilidade jurídica da
liberdade dos negros. Mesmo que a pessoa negra tivesse nascido livre ou fosse
liberta, ela vivia com a constante possibilidade de reescravização, prática que en-
cheu os centros de detenções, principalmente nos anos 1860 e 1870, de pessoas
negras presas injustamente.
Como exemplos da perseguição policial podemos citar o caso descrito no jornal
“A república”, edição número 35 de 1888 em que o jornalista criminaliza libertos
por estarem bêbados na rua e serem simpatizantes da monarquia. Segundo o tex-
to, a polícia deveria “ficar de olho neles”.

Não podemos deixar passar, e sem censura às autoridades po-


liciaes desta cidade, as assuadas praticas na noute de 7 do cor-
rente por um grupo de libertos ebrios, que percorrem descalços
e maltrapilhos as ruas desta cidade, conduzindo a bandeira na-
cional em grande vozeria dando vivas à monarchia e morras a
republica (Jornal A Republica, 1888)

É notório o grande julgamento que se dá sobre o posicionamento dos libertos


em questão. O jornalista era defensor da república, provavelmente teve acesso a

710 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
estudos, o que não era o caso da esmagadora maioria da população negra. Estes
foram libertos durante o regime monárquico, e em muitos deles havia o sentimen-
to de gratidão criado pela expansão da propaganda da Princesa Isabel como “Re-
dentora”. Além do mais, ter um posicionamento político e mostrá-lo ao mundo é
uma coisa da qual os libertos não teriam direito. A cidadania era restrita aos brancos
e alfabetizados, controlada pelos aristocratas.
Outro exemplo aparece na edição 21 de 1882 do jornal “O Futuro: Orgam, Lit-
terario, Noticioso e Commercial”, um homem negro chamado pejorativamente de
“negrinho” estava trabalhando como auxiliar de pedreiro no centro da cidade e se
dizia “capoeira”. Para o jornalista esse homem deveria receber atenção do delega-
do da cidade por ser uma ameaça à ordem. Vale ressaltar que em 1882 ainda não
havia a lei que criminalizava a prática da capoeira.
No Relatório de Governo de 1880, o Presidente da Província mostrou sua insatis-
fação com a realização dos Sumpfs, bailes noturnos ocorridos semanalmente em
diversos pontos de Curitiba. Esses bailes reuniam, principalmente, escravizados,
libertos e estrangeiros que se reuniam para dançar e se divertir. O governo vendo
isso como um problema, responsabilizou-se por tomar medidas para erradicar os
eventos por meio de atuação policial e da regulamentação pela Câmara dos Vere-
adores.

3. RESISTÊNCIA E OCUPAÇÃO DE ESPAÇOS DE PRESTÍGIO


As estruturas e movimentos de repressão eram inúmeras, porém os movimen-
tos de resistência negra conseguiram manter espaços culturais e criar estratégias
coletivas para agir politicamente e conseguir trabalho e moradia.
Os clubes sociais negros são exemplos de instituições privadas que proporcio-
navam serviços como aulas noturnas e fundos para sócios desempregados. No Pa-
raná existiram 7 clubes dessa categoria entre os anos de 1888 e 1896 (SANTIAGO,
2015, p.20). Dentre eles, destaca-se o Clube 13 de Maio, segundo clube do gênero
no Brasil, fundado em 1888, em Curitiba, em um terreno doado pela prefeitura e
que fornecia os serviços citados acima. Esses clubes eram de extrema importância
para a socialização e organização política e social negra, além de serem um dos
únicos locais de acolhimento.
Os responsáveis pela maior obra de engenharia no Brasil do século XIX eram ne-
gros, embora este fato seja pouco lembrado pela historiografia. Os irmãos Rebou-
ças destacaram-se no meio intelectual e político em nível nacional. Ao pesquisar
por imagens do Paraná no século XIX em acervos digitais como o Instituto Moreira
Salles, os principais resultados referem-se à construção da Ferrovia Paranaguá-Cu-
ritiba idealizada e projetada pelos irmãos Rebouças. Esses acervos, em sua maioria,
não fazem menção a eles.
A imprensa do período contém muitos jornais defensores do evolucionismo so-
cial. Em relato do jornal “Sete de Março”, do ano de 1881, é mostrada a interação

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 711


Artes, memória e espaços
entre um homem negro muitíssimo bem vestido, o que indica certo prestígio social
e econômico, e um homem branco que é comendador. A conversa de ambos se ini-
cia com a fala do comendador de que todos são iguais, porém, ao ouvir do homem
negro que este gostaria de se casar com sua filha, o comendador bate nele com sua
bengala. Para se referir ao liberto, o jornal usa termos como “metido”, “creoulo”
e “pretinho”.
Os jornais que mantinham discursos racistas foram alvo de críticas de intelectu-
ais negros, Em 1885 um liberto escreveu no jornal “Dezenove de dezembro” uma
declaração apoiando o movimento monarquista, e após algumas semanas o diretor
do jornal soltou uma nota falando sobre os ataques a essa publicação e que a ofen-
sa, direcionada ao liberto, mais utilizada era “homem de cor”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A abolição da escravidão não apagou os séculos de violência contra os negros.
A maneira como ela ocorreu foi tão danosa pela ausência de políticas de inclusão e
reflete-se nos dias de hoje pelo racismo. A maneira como a escravidão se arraigou
às estruturas da sociedade brasileira fez com que o racismo, o patriarcalismo, a de-
sigualdade social e econômica permeassem todos os anos republicanos.
As teorias eugênicas sustentavam a opressão estatal e social contra os negros
e não possibilitaram as condições básicas, como acesso à educação básica e tra-
balho, para uma participação plena dentro da sociedade. Estes fatores podem ter
condenado a maior parte da população ex-escravizada a condições precárias que
impossibilitaram o progresso e emancipação através das seguintes gerações.
Pode-se concluir que a Abolição, mesmo que marcando o fim legal da escravi-
dão, não trouxe medidas para a emancipação e reparação histórica aos negros. As
teorias raciais e, depois, a ilusão de democracia racial fizeram com que os proble-
mas enfrentados historicamente pelos negros não ganhassem espaço nas discus-
sões políticas, e assim, o racismo estrutural pôde se manter por décadas seguidas,
até dos dias de hoje. A transição do regime monárquico para republicano em nada
auxiliou os libertos, pois mesmo livres eles eram proibidos de votar e ser votados,
ficando assim, a mercê de políticas elaboradas por grupos racistas.

REFERÊNCIAS

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712 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


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SANTIAGO, Fernanda Lucas. Sociedade 13 De Maio: Uma Estratégia De Sobrevivência No


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SCHWARCZ, Lilia M; Flávio Gomes (Orgs). Dicionário da Escravidão e Liberdade: 50 textos


críticos. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

AUTORIA
Alexandre Padilha
IFPR – Campus Campo Largo
E-mail: alexpadilha2083@gmail.com
ORCID: 0000-0002-8331-5133
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8508527186151799

Camile Ribeiro Texca


IFPR – Campus Campo Largo
E-mail: camiletexca1@gmail.com
ORCID: 0000-0001-7002-708X
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6051248004735351

Fábio Lucas da Cruz


IFPR – Campus Campo Largo
E-mail: fabio.cruz@ifpr.edu.br
ORCID: 0000-0003-4463-0277
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6098526188183207

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Artes, memória e espaços
RESQUÍCIOS DA ESCRAVIDÃO: (RE)PENSANDO
A CONDIÇÃO DO NEGRO NAS RELAÇÕES DE
TRABALHO ESCRAVO NO BRASIL

Alex Matos Rabelo

“Nenhuma família sem casa, nenhum camponês sem terra,


nenhum trabalhador sem direitos.”

Papa Francisco

INTRODUÇÃO
O trabalho escravo contemporâneo apresenta-se de maneira escamoteada, uti-
lizando-se de novas roupagens. “Ele se utiliza de novas formas de coerção como,
por exemplo, ameaças, violência física, exploração, cerceamento da liberdade e
escravização por dívida (COSTA, 2018, p. 12)”. Assim, na relação clássica do capi-
talismo, Rodrigues (2016, p. 42), destaca que “o uso de trabalho reprimido sob a
forma de trabalho escravo contemporâneo nos encaminha para a reflexão de que o
capitalismo utiliza formas não capitalistas para sobreviver como modo de produ-
ção hegemônico”.
Ao longo do tempo no cenário social brasileiro o trabalho escravo constitui e
se reproduz relacionado com a miserabilidade, os fluxos migratórios e a questão
agrária do território brasileiro. Diante disso, as relações de poder neocolonialista
emergida com os novos processos de adequação do capitalismo têm como ele-
mento central a lógica “salvacionista” permitindo a difusão de “progresso”. Nessa
perspectiva, Fanon (1968), nos explica que a violência advinda do colonialismo se
entranhou no “pensamento social” estimulando não somente o objetivo de garan-
tir o respeito desses homens subjulgados, procurou desumanizá-los. Contribuindo
para essa conjuntura, Nilziane Costa, identifica o trabalho escravo contemporâneo
como mecanismo de exploração econômica na modernidade fugentada pelas re-
lações capitalistas e, subsidiadas pela vulnerabilidade social que se encontram os
trabalhadores. Assim,

O trabalho escravo persiste na atualidade, não em sua forma


tradicional, legalizada [...]. Na escravidão colonial/imperial, os
escravos tinham sua liberdade cerceada, não eram donos de si, e
eram a base econômica do modo de produção no período. Os es-
cravos contemporâneos têm sua liberdade privada, não por ser
propriedade de seus patrões, mas sim por serem reféns de sua
força de trabalho e prisioneiros de dívida e da própria condição
de vida (COSTA, 2018, p. 18).

714 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
Portanto, segundo Costa (2018), é preciso destacar que “o trabalho escravo
contemporâneo no Brasil parece ser uma relação de exploração anacrônica na his-
tória do país e do desenvolvimento do modo de produção capitalista”, tanto é que,
posteriormente, ao processo legítimo de abolição da escravidão em 1888, este se
estabeleceu, desenvolveu-se e readaptou-se à nova realidade.

O TRABALHO ESCRAVO NA CONTEMPORANEIDADE

A escravidão contemporânea é caracterizada pelo trabalho força-


do, constituindo- se no absoluto controle de uma pessoa sobre
outra, ou de um grupo de pessoas sobre outro grupo social, no
qual os trabalhadores são submetidos a condições degradantes
de trabalho em um cenário de isolamento geográfico, dívidas
fraudulentas e/ou a presença de guardas armados, evidencian-
do o desrespeito e a violação aos direitos humanos (CONTRAE/
MA, 2007, p.7).

Dessa forma, para entender sobre a expressão “trabalho escravo” no Brasil, o Có-
digo Penal Brasileiro no artigo 149 o define como “reduzir alguém à condição aná-
loga à de escravo, quer submetendo-o a condições degradantes de trabalho, quer
restringindo-o, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída
com o empregador ou preposto”. Portanto, de acordo com ANTI SLAVERY INTER-
NATIONAL-ASI, algumas características distinguem a escravidão de outras formas
de violação dos direitos humanos, sendo trabalhador escravizado definido segun-
do quatro aspectos fundamentais: I) quando ele é forçado a trabalhar por meio
de opressão física ou psicológica; II) quando ele é possuído ou controlado por um
“empregador”, geralmente, através de abuso mental ou psicológico ou ameaças
de abuso; III) quando ele é desumanizado, tratado como um objeto ou comprado
e vendido como uma “propriedade” e IV) quando ele é fisicamente coagido ou
possuindo restrições no direito de ir e vir. Dessa forma, Santos (2017), esmiúça a
inserção da escravidão contemporânea como processo histórico de adaptação de
espoliações antagônicas nas relações de trabalho, no qual ressalta.

A escravidão contemporânea é fruto de um processo de adapta-


ção constante, a “profunda ambiguidade” é de fato um contexto
de disputa de interesses antagônicos, em que hora um grupo
tem a prevalência no discurso, hora outro, capitaneado pelas
elites proprietárias brasileiras (homens brancos), ainda com
seus privilégios, dos sistemas de produção históricos (racista es-
cravocrata) com a exploração máxima de grupos humanos que
aqueles desprezam (população negra) e, portanto, admitem que
sejam escravizados [...] (SANTOS, 2017, p. 55).

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 715


Artes, memória e espaços
Ainda, segundo a CONTRAE/MA (2007), há princípios fundantes que norteiam a
escravidão na contemporaneidade, sendo:

1. A pobreza como ambiente propício à escravidão


Se de um lado existe a ganância de quem quer explorar, do ou-
tro existe a vulnerabilidade de quem não tem opção para viver
dignamente.
A busca por prosperidade econômica tem sido na história do
capitalismo um dos principais motivos que leva as pessoas a se
submeterem à superexploração.

2. Trabalho Escravo: fruto do modelo econômico excludente


A vulnerabilidade dos trabalhadores ao aliciamento para o traba-
lho escravo se dá principalmente pela precariedade dos sistemas
produtivos locais em gerar trabalhos dignos para a população, e
se sustenta no modelo de desenvolvimento [...] que privilegiou
os grandes projetos em detrimento da criação de alternativas
sustentáveis, a partir das potencialidades locais.

3. Impunidade: fator de injustiças sociais e econômicas


[...] A legislação penal caracteriza o trabalho escravo pelo uso
da coação e/ou privação da liberdade. A pena é aumentada de
metade se for cometida contra criança ou adolescente ou por
motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem. [...]
Ainda o artigo 207 do Código Penal determina a detenção de um
a três anos e multa para quem aliciar trabalhadores, com o fim
de leva-los de uma para outra localidade do território nacional.
Portanto, o trabalho escravo configura um crime de lesa huma-
nidade (CONTRAE/MA, 2007, p. 7).

No entanto, na sociedade contemporânea, o temor do desemprego e a pre-


carização das relações trabalhistas, têm resultado no processo de terceirização e
atividades informais, que têm gerado incertezas, exploração, inconsistências e in-
constâncias no mundo do trabalho.
O trabalho escravo e a exploração das relações trabalhistas não fogem à ótica
da realidade global. “A escravidão contemporânea se estrutura em torno de orga-
nizações isoladas do Estado: fazendas em regiões muito afastadas dos núcleos ur-
banos ou, nas cidades, em casas de prostituição e no trabalho doméstico abusivo”
(FIGUEIRA, 2001). Diante desse aspecto, Santos (2017), descreve que no “processo
de transição/continuidade com o modelo da escravidão “legalizada” a elite econô-
mica também busca manter poder político”. Com isso, a predominância do traba-
lho escravo contemporâneo no território brasileiro repercute nos entraves sociais
do meio rural, especialmente, no campesinato contribuindo para o fenômeno da
desterritorialização, este por vez, reflete, consideravelmente, na economia (estar
ou mantém-se) “sustentada” nas relações de exploração de trabalho. Com isso,
Jesus (2005), enfatiza as condições dos sujeitos submetidos a esses violentos pro-

716 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
cessos de “marginalização”, acometidos pela estrutura da objetividade do sistema
capitalista. Dessa forma, é cabível ressaltar que “o trabalho escravo contemporâ-
neo não pode ser analisado apenas como mais um crime, ou uma prática isolada,
mas é parte de um problema estrutural da questão agrária brasileira que persiste
do próprio capital, que demonstra, constantemente, como pode utilizar-se de rela-
ções não capitalistas de produção para se reproduzir” (GIRARDI, 2003, p. 3).

PROCESSOS MASCARADOS: RACISMO, EXPLORAÇÃO E


EXCLUSÃO DA MÃO- DE-OBRA NEGRA NO TRABALHO
Segundo Almeida (2018), a sociedade contemporânea não pode ser compreen-
dida sem os conceitos de raça e racismo, sendo, desta maneira o racismo um meca-
nismo que regula a organização econômica e política da sociedade. Assim, no pro-
cesso de globalização, o ápice da lógica desenvolvimentista de internacionalização
capitalista, poder-se-á dizer que o racismo norteia e naturaliza a superexploração
do negro no trabalho escravo contemporâneo. Ademais, o termo raça configura-se
como agente determinante na compreensão da desigualdade econômica, corro-
borando para a precarização do trabalho e impossibilitando a maximização do
lucro e da produtividade. Diante disso, David Harvey (2001), é enfático ressaltan-
do que “na produção, o lucro se origina da exploração do trabalho vivo”, assim, a
existência de escravidão ou formas cruéis de exploração do trabalho não é algo
estranho ao capitalismo, mesmo nos ditos países desenvolvidos onde predomina
o trabalho assalariado. Dessa forma, numa sociedade capitalista, as relações mer-
cantis perpassam por uma construção econômico-estrutural que legitima a estrati-
ficação social, a alienação, os estereótipos e a impotência, instalados sob a lógica
e perspectiva colonial de acumulação de capital. Assim, alçado nessa perspectiva,
Hegel, solidifica seu pensamento na acumulação crescente de riqueza, quanto na
expansão massiva de trabalhadores empobrecidos, essa dinâmica acarreta contra-
dições severas no sentido da transformação e reestruturação das necessidades so-
ciais, que basear-se-ão no individualismo universal fundamentado criteriosamente
a partir da arrecadação do lucro. Desta forma, o mesmo expressivamente diz que:

A acumulação de riqueza se intensifica por generalizar (a) a li-


gação dos homens pelas suas necessidades, e (b) os métodos de
preparação e distribuição dos meios para satisfazer essas neces-
sidades, pois é a partir desse processo duplo de generalização
que se obtêm os maiores lucros. Esse é um lado da situação. O
outro lado é a subdivisão e a restrição de determinados traba-
lhos. Isso resulta na dependência e na desgraça da classe asso-
ciada a trabalhos desse tipo (HEGEL, 1967, p.149-50).

De acordo com David Harvey, compreender a expansão da produção, portanto,


coincide com o declínio no padrão de vida da massa abaixo de “um certo nível de

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 717


Artes, memória e espaços
subsistência” e na sua privação relativa, até um ponto que são incapazes de “sentir
e desfrutar as liberdades mais amplas e, especialmente, os benefícios intelectuais
da sociedade civil”. Assim, a “concentração de riqueza em poucas mãos” se associa
“à criação de uma turba de pobres” (HARVEY, 2001, p. 98). Ainda, seguindo essa
mesma linha de raciocínio, Hegel estabelece que a pobreza em si não qualifica/
transforma os homens em ralé, assim, contra a natureza o homem não pode reivin-
dicar direito algum, porém, no que tange à sociedade, a pobreza, instantaneamen-
te, (re)assume a forma de uma má ação de uma classe contra a outra. Nesse sen-
tido, considerando a circulação do capital como mecanismo que regula as relações
de inferiorização e subalternidade dos negros no processo de trabalho, a classe tra-
balhadora é inserida, concomitantemente, a uma relação de dependência entre o
trabalho e o capital, propagados pela manutenção e reprodução de uma lógica de
“reconversão” dos meios subsistências moldados pelos mecanismos de produção
e reprodução capitalista. “Esse processo traz consigo o símbolo de modernidade,
mas por detrás, de maneira camuflada desenvolve “práticas retrógradas”, como é
o caso do trabalho escravo contemporâneo” (COSTA, 2018, p.34). Para essa pers-
pectiva, Benton, associando as análises acerca das transformações no mundo do
trabalho, identifica as alterações que ocorrem na dinâmica da produção capitalista
construído a partir de fenômenos mutáveis, suscetíveis interferidos/alterados por
diferentes sujeitos políticos e sociais, onde diz:

Em sociedades marcadas por profundas desigualdades de poder


político, de riqueza econômica, de posição social e de realizações
culturais, a promessa de direitos iguais é ilusória, disso resultan-
do que, para a maioria, direitos são apenas atributos meramente
abstratos e formais com pouco ou nenhum valor de facto no âm-
bito das realidades da vida social. Na medida em que a vida social
é regulada por esses princípios abstratos e na medida em que a
promessa é tomada por sua realização, o discurso do direito e da
justiça é uma ideologia, uma forma de mistificação que tem um
papal causal no aprisionamento dos indivíduos nas próprias
condições de dependência e empobrecimento de que pretende
oferecer emancipação (BENTON, 1993, p. 114).

Diante disso, segundo a observação de Marx (1976), estabelece que “o trabalho


não será livre na pele branca enquanto for marcado a ferro quente na pele ne-
gra”, ou seja, o racismo imperante nas relações de trabalho “objetifica”, “coisifica”
e “descartabiliza” o corpo negro. Tendo em vista, que “o Brasil é o país de maior
convivência com a escravização “moderna” de todo o mundo, onde o cativeiro
vigorou mais de três séculos” (GILROY, 2012). Segundo ressalta Said (1993), em
uma relação de dominância imperialista, o discurso do poder emerge sustentado
por uma lógica falaciosa de benevolência, na qual o colonizador desempenha uma
espécie de “boa ação” ao tornar outros povos subalternos à sua própria cultura.

718 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
O ALICIAMENTO COMO REFORÇADOR DO TRABALHO
ESCRAVO CONTEMPORÂNEO
Os grandes projetos desenvolvimentistas fundamentados numa lógica “salva-
cionista”, ou, “milagre econômico”, têm, expressivamente, manifestado na ex-
propriação como também na desterritorialização do trabalhador de suas áreas de
produção. Estes contribuem para o favorecimento da escassez de renda, terras,
trabalho e etc.; tanto quanto a ascensão da pobreza – fatores fundantes para o ali-
ciamento no trabalho escravo. Nesse aspecto, Nilziane Costa (2018, p. 44), destaca
que “diante das condições de vulnerabilidade, trabalhadores são ludibriados por
falsas promessas de trabalho”. “[...] Desta forma, as questões socioeconômicas são
reforçadas por questões familiares e influenciam a saída desses trabalhadores em
busca de melhores condições de vida e sua necessidade premente os fazem aceitar
qualquer tipo de emprego”.
Ademais, com base na análise de Sávio José Dias Rodrigues acerca das relações
capitalistas na dinâmica neoliberal podemos perceber as desigualdades sociais e
econômicas associadas, percebidas e compreendidas em um notório conjunto pro-
cessual de concentração de terras, riquezas e produção. Assim, a realidade expres-
sa e evidencia a violência, o retrocesso e o assistencialismo com que o Estado vem
retratando/tratando às condições de vida de negros e negras nas últimas décadas.
Diante disso, a consequência é a maior pobreza para a população já vulnerável,
assim como, a precarização de suas vidas.
O quadro de vulnerabilidade social contribui por vezes para que os trabalhado-
res naturalizem a precariedade no trabalho. Dessa forma, cada vez mais se percebe
a participação do trabalho escravo contemporâneo no âmbito da produção capi-
talista no Brasil e em sua modernização (RODRIGUES, 2019). Segundo Filho (2011,
p. 21), “a miséria produzida por um sistema de concentração de renda é condição
propícia para a escravidão, criando vários personagens: os peões “escravizados”,
o patrão “proprietários de terras” e o gato “aliciador”, sendo estas três figuras im-
portantes nesse processo”. As condições socioeconômicas nas regiões de origem
desses trabalhadores migrantes desencadeiam composições específicas para en-
tendermos a dualidade trabalho/exploração na relação empregador/emprega-
do. Nesse contexto, ressaltando a precariedade de forma a sintetizar a condição
submissa do trabalhador, Vieira e Bruno (2011), ressaltam que os trabalhadores
que se encontram em situação de trabalho escravo são movidos pela necessidade
premente para aceitar ofertas de emprego, tendo em vista sua posição desfavorável
no mercado de trabalho (baixa qualificação, baixa escolaridade, pobreza, desempre-
go e etc.). Diante disso, Costa e Rodrigues (2017), enfatizam que os trabalhadores
movidos pela necessidade estimulam a migração desenfreada aceitando qualquer
oferta, seja ela degradante, forçada ou exaustiva, caracterizando desta manei-
ra o trabalho escravo contemporâneo. Dessa forma, o perfil dos trabalhadores
escravizados é esculpido – das zonas rurais, muitas vezes analfabetos e sem
oportunidades – assim, nesse cenário o trabalho escravo é contínuo e se reproduz

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 719


Artes, memória e espaços
alimentando-se da vulnerabilidade social de determinadas regiões e determinados
sujeitos.
Assim, fica entendido que a susceptibilidade do trabalhador ao aliciamento,
correlacionado está à lógica de modernização do território, atrelado na produção
do espaço geográfico, econômico e social brasileiro. Partindo desse pressuposto,
Leonardo Sakamoto (2011), diz que “a exploração e o trabalho escravo estão vin-
culados a um cálculo racional realizado pelo empregador, buscando uma lógica da
acumulação”. Dessa forma, com base na continuidade do trabalho escravo na con-
temporaneidade, Martins (1997), evidencia as conflituosidades no Brasil moderno
denominando de arcaico, além disso, identifica a manutenção do trabalho escravo
no século XXI enquanto um fenômeno social e econômico de barbarização da vida
social.
Assim, diante da conjuntura de distribuição de acessibilidade a terra, renda e
trabalho mediados pela condição de sobreviver, a busca incessante por um espaço
(lugar) que os garanta condições básicas de sobrevivência, acabam os direcionando
e condicionando aos fluxos migratórios. Portanto, fica visível que a modernização
dos modos de produção desde sempre, atrelados foram, pela exploração do traba-
lho e implicações advindas da superexploração dos trabalhadores (em sua maioria
negros/as).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
No processo de exploração do trabalho, a mesma surge como fator determi-
nante para compreender as relações desiguais na dinâmica social, econômica e cul-
tural da sociedade. Assim, a reprodução do trabalho escravo contemporâneo não
se configura apenas como resquício histórico, mas, também como produto de um
sistema que se reproduz aliciando e escravizando trabalhadores, degradação física
dos postos/espaços de trabalho, desumanização do trabalhador, o cerceamento da
liberdade e outros. Dessa forma, enquadrados sob a lógica da subalternidade, os
trabalhadores são reconvertidos a meros objetos de trabalho.
Diante disso, a escravidão (relações de trabalho) subsistiu toda a história da hu-
manidade, com rupturas, mas, sempre permanecendo nas estruturas hierárquicas
de poder. Isso nos remonta a superexploração transatlântica da mão-de-obra de
negros africanos, sustentando o sistema econômico colonial.
Portanto, a classificação dos seres humanos em categorias é um pressuposto
relevante ao funcionamento e perpetuação do trabalho escravo que o estabeleceu
como questão fundamental para a inserção do negro nas degradantes relações e
compreensões de trabalho.
Desta forma, é visível a protagonização linear do capitalismo nas dinâmicas es-
paciais e temporais adaptando-se e solidificando-se sob a exploração, fragmen-
tação e complexificação degenerada do trabalho escravo na contemporaneidade,
alçado numa perspectiva estruturada de modernidade “desenvolvimentista” e

720 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
“salvacionista”. Portanto, (re)compreender tais transformações sociais, econô-
micas e trabalhistas experienciadas em mais de três séculos de escravidão, sem
ponderar a cor dos sujeitos sociais e suas conflituosidades históricas, é submeter
os mesmos sujeitos sociais a um violento processo dinâmico de silenciamento ins-
titucional e estrutural.

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AUTORIA
Alex Matos Rabelo
Graduando em Estudos Africanos e Afro-Brasileiros pela Universidade Federal do
Maranhão-UFMA
E-mail: alexrabellos@hotmail.com

722 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
ABOLICIONISMO EM DIAMANTINA,
MINAS GERAIS (1880-1888)
Higor Carvalho

INTRODUÇÃO
A abolição da escravidão no Brasil, em 1888, deu-se a partir de transformações
ocorridas na base do Império ao longo de todo o século XIX. O abolicionismo en-
quanto movimento social e político no país teve participação de diversos grupos da
sociedade como senhores de escravos que buscavam indenização, alguns poucos
levados pelo movimento republicano da década de 1870, os abolicionistas e os
próprios escravizados em forma de resistência à instituição escravista.
A escravidão enquanto instituição consolidou-se junto ao Estado imperial.¹1 Ain-
da no período colonial brasileiro a mesma política de domínio régio português era
a seguida no território brasileiro até sua separação política da metrópole, em 1822.
Naquele período, entre os séculos XVI e XVIII, a escravidão já estava em funcio-
namento, contudo, seu enraizamento no cotidiano dos centros urbanos e demais
partes do Império deu-se após a vinda da família real, em 1808.2
A partir da queda do protagonismo no mercado ultramar, o Império português
preocupou- se em modernizar sua política e dar mais atenção a suas colônias. Nes-
se sentido, o setor escravista também sofreria mudanças, sobretudo, quando fo-
ram propostos projetos por José de Carvalho e Melo, conhecido como Marquês de
Pombal.3 As mudanças promovidas pelo Marquês de Pombal pretendiam reorgani-
zar o Estado português, o mesmo regido no Brasil, porém de forma que reafirmas-
se e defendesse o absolutismo como principal saída.
Especificamente sobre a reorganização dos negócios sobre a escravidão, a pri-
meira ação foi sobre os cuidados que receberiam os traficados durante a travessia
atlântica com a finalidade de melhorar os rendimentos sobre a venda dos escravi-
zados. A melhoria no tratamento dos cativos, nas diferentes etapas do comércio
de escravos, desde sua captura à travessia atlântica, resultaria na elevação de seu
valor nos portos. Essas mudanças obedeciam a alguns pontos, como organizar um
menor número de escravos nos navios e levar uma maior quantidade e qualidade
de mantimentos.

1 SODRÉ, Elaine. A disputa pelo monopólio de uma força (i)legítima: Estado e administração
judiciária no Brasil Imperial (Rio Grande do Sul, 1833-1871). 2009. 415 f. Tese (Doutorado em História)
– Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, 2009.
2 MARQUESE, Rafael. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o con-
trole de escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
3 GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 6ª ed. São Paulo. Expressão Popular: Perseu Abra-
mo, 2016.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 723


Artes, memória e espaços
Esses passos reduziriam, também, o quantitativo de mortes durante os trans-
portes. A grosso modo, os intelectuais do Império português objetivavam fortale-
cer e estabelecer de vez a dinâmica da economia escravista no Brasil.4
O tráfico de africanos só passou a ser questionado por outras nações no século
XIX, sendo, no Brasil, pouco discutido devido aos interesses econômicos. Conforme
escreveu Emília Viotti da Costa, a escolha por interromper o tráfico e abolir a escra-
vidão, adotando o trabalho livre, era inviável, pois o escravizado trazia altos valores
para os traficantes e para as fazendas cafeeiras e zonas de mineração onde eram
forçados a trabalhar. Sob a perspectiva do tráfico, a autora aponta que a produção
do café, desde o período colonial, como o setor que mais demandou o número de
escravizados.5
Após o fim do tráfico transatlântico de africanos para o Império brasileiro, em
1850, números populacionais seriam tabulados num recenseamento ocorrido no
país, em 1872. Não há como considerar o referido censo como exato, pois, mesmo
após a Lei de 1850 (Lei Eusébio de Queirós),6 embora diminuído, o tráfico de afri-
canos para o Brasil permaneceu ativo.7 O resultado do referido censo nos informa
haver 9.930.478 pessoas (8.419.672 livres e 1.510.806 escravas), sendo que pretos
e pardos somavam 57,9% do total. Excluídos do censo aqueles de condição escra-
va, a população do Império contava com 4.245.428 habitantes, sendo 42,7% de
habitantes livres de cor, ou seja, os egressos da escravidão.8
Dos quantitativos trazidos acima, entre as dez províncias com maior população
escrava a partir do censo de 1872, a província de Minas Gerais estava em primeiro
lugar, contando com 370.459 pessoas escravas (uma para cada 4,51 pessoas livres).
Tais dados inferem que nas províncias cujo número de escravos era menor, a luta
pela emancipação deu-se de forma menos conflituosas, como foi o caso do Ceará,
que extingue a escravidão em 1884, mesmo ano em que a província do Amazo-
nas também se viu emancipada da escravidão.9 A província de Minas Gerais, nesse
sentido, cujo número de escravos era maior, teve dificuldade em emancipar os es-
cravos, sobretudo, pela atividade de mineração, economia principal no período.10
Dados referentes à população de Diamantina, interior da província de Minas
Gerais, também são incertos. No jornal Sete de Setembro, em 1887, foi anunciado
dois censos: o primeiro organizado em 1872, informou haver um total de 8.005
escravos, enquanto o segundo censo de 1885, mostrou 2.605 escravos e somando

4 MARQUESE, Rafael. Feitores do corpo, missionários da mente...


5 COSTA, Emília. A abolição. 9ª ed. São Paulo: UNESP, 2010.
6 Regula a execução da Lei que estabelece medidas para a repressão do tráfico de africanos
no Império brasileiro.
7 COUCEIRO, Luiz. Acusações atlânticas: o caso dos escravos num navio fantasma – Rio de
Janeiro, 1861. Revista de História. n. 1. 2005.
8 CARVALHO, José. A construção nacional 1830-1889. v. 2. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.
9 CARVALHO, José. A construção nacional 1830-1889...
10 10 MARTINS, Marcos. Breviário de Diamantina: uma história do garimpo de diamantes nas
Minas Gerais (século XIX). 1. ed. Belo Horizonte: Fino Traço, 2014.

724 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
mais 89 sexagenários. Sobre a população total de livres e escravos, o jornal não
mostrou os dados.11 Por outro lado, Marcos Lobato traz um levantamento mais
completo desses dados. Segundo o autor, a população geral de Diamantina totali-
zava, no ano de 1858, 10.000 habitantes. Em 1872, 19.910 habitantes e, em 1899,
8.277 habitantes. Ainda segundo o autor, essa oscilação no quantitativo popula-
cional justifica-se pela atividade do garimpo na região, o que proporcionou o cres-
cimento dos núcleos urbanos na década de 1870. Nesse sentido, as atividades de
mineração, comércio e indústria têxtil requereriam um quantitativo considerável
de escravos.12
A atuação da escravidão nas províncias do Império contou com vários entraves,
sobretudo, pela resistência que os escravizados tinham ao trabalho forçado fazen-
do eclodir em grande escala muitas revoltas. As resistências englobavam fugas em
massa, compras de cartas de alforria por escravos, livres e demais simpatizantes
da causa abolicionista.
Embora consideremos a ação de diversos agentes da sociedade na promoção da
liberdade dos negros, Emília Viotti escreve que só se pode propriamente falar em
movimento abolicionista na segunda metade do século XIX, pois as críticas sobre
a escravidão não encontravam o apoio desejado quando lançadas em projetos de
emancipação gradual e total.13 Não houve consciência ideológica sobre o assunto
e tratava-se, na primeira metade do século XIX, de insurreições e conflitos sociais
mais pontuais, porém sempre preocupantes para as elites. Foi a partir da segunda
metade do XIX que projetos de lei sobre o fim da escravidão ganharam atenção e
passaram a ser votados.
Dentre os projetos apresentados, o projeto de Lei do Ventre Livre foi levado à
Câmara no ano de 1871.14 Tal projeto contou com calorosas discussões, contrárias
e favoráveis, vindas de ambos partidos políticos, conservadores e liberais, tendo a
questão econômica se misturado constantemente às opiniões políticas e sociais.
Outra lei gradualista sancionada foi a Lei dos Sexagenários, em 1885. Essa tam-
bém contribuiu nos debates políticos para a abolição nos anos finais do Império,
pois, novamente, atacava bases dos senhores de escravos, a economia – embora
essa lei não tenha sido bem repercutida, pois era aplicada a escravizados cuja força
de trabalho já se mostrava vencida.15 Ainda assim, a luta pela indenização foi algo
cada vez mais colocado pelos requerentes. Ao mesmo tempo, abolicionistas ga-

11 Noticiário. Sete de Setembro. Diamantina, ano 1, n. 30, p. 2, 02 abr.1887.


12 MARTINS, Marcos. Breviário de Diamantina...
13 COSTA, Emília. A abolição...
14 Apresentado por Barão do Rio Branco, “o projeto oferecia grandes vantagens aos proprie-
tários: condenava a escravidão a desaparecer a longo prazo, sem abalo para a economia, dando aos
proprietários bastante tempo para se acomodarem sem dificuldades à nova situação. E o que era
ainda mais importante: respeitava o direito de propriedade”. COSTA, Emília. A abolição... p. 54.
15 15 Pela lei, era conferia a liberdade aos escravos acima dos 60 anos de idade. Lei nº 3.270,
de 28 de setembro de 1885.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 725


Artes, memória e espaços
nhavam força com seus projetos de emancipação, propagando tal sentimento até
as senzalas.16 De tal modo, o fim da escravidão já se mostrava não muito distante.
Até a década de 1880, os grupos de elite burguesa, que buscavam uma reforma
política, e abolicionistas, pelo fim da escravidão, não se viam mais distantes entre
si. Naquela década, sua mistura passaria a ser benéfica para ambos e necessária
para atingir seus objetivos: o fim da escravidão, a queda da monarquia e a imple-
mentação da República.17
Os abalos sofridos pelo Estado brasileiro ao longo do século XIX, como as tro-
cas de gabinetes feitas pela princesa Isabel, somado ao histórico de instabilidade
sociopolítica do Império ao longo do Primeiro e Segundo Reinado, foram as chaves
explicativas para o fim da escravidão e da própria monarquia. Eleições ganhas pe-
los conservadores, em especial o gabinete de Cotegipe, entre 1885 e 1886, mos-
traram que as questões da escravidão e crise política do Estado imperial estavam
próximas de seu estopim. Abolicionistas, republicanos e militares, grupos contrá-
rios em algum grau ao Império, organizaram-se e contribuíram com as revoltas
em São Paulo, Minas Gerais e na sede da Corte, colocando em queda os gabinetes
ultraconservadores que fossem pró- escravidão, em 1888.18
Entre 1887 e 1889, a questão abolicionista foi resolvida de forma atropelada
pela princesa Isabel, com sua assinatura que marcou a data de 13 de maio de 1888,
contribuição direta da troca de gabinete, Cotegipe por João Alfredo, o qual enca-
minhou o projeto Lei Áurea. A pauta que entrava a partir dali passava a ser quais
os caminhos que o Estado brasileiro tomaria e o que fazer com a população negra
liberta.19
Este trabalho tem por objetivo geral trazer algumas matérias sob a participação
política e social de um jornal de Diamantina, Minas Gerais, no processo de abolição
local da escravidão na segunda metade do século XIX. Pretende-se apresentar dis-
cussões teóricas e metodológicas, ainda que muito brevemente, sobre a imprensa
e, por meio de uma revisão bibliográfica, trabalhos que a tem como fonte científica
para leituras abolicionistas para outras regiões do Brasil. Neste texto, privilegiamos
o recorte temporal de 1880 a 1888.

A IMPRENSA COMO FONTE DE PESQUISA


A imprensa como fonte e objeto de pesquisa é um campo interessante para
reconstrução do passado, mas também, o meio pelo qual diferentes áreas das Ci-

16 SABA, Roberto. A Lei dos Sexagenários e a derrota política dos abolicionistas no Brasil Impé-
rio. História Social. n. 14/15. São Paulo, 2008.
17 ALONSO, Angela. Crítica e contestação: o movimento reformista da geração de 1870. Revis-
ta Brasileira de Ciências Sociais, vol. 15, n. 44. 2000.
18 RODERICK, Barman. A mão do destino, 1887-1889. In: Imperador cidadão. São Paulo: Ed.
Unesp, 2012.
19 LEMOS, R. A alternativa republicana e o fim da monarquia. In: GRINBERG, Keila et al. O
Brasil Imperial, vol. III: 1870-1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

726 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
ências Humanas e Sociais utilizaram para entender dinâmicas diversas do mundo
moderno, do ambiente urbano, do trabalho e das relações estabelecidas entre so-
ciedade e política. A importância da imprensa aqui reside no fato de sua evolução
ter acompanhado a história do Brasil oitocentista, por expressar as transformações
do Estado e cotidiano em suas páginas.20
Rodrigo Santos de Oliveira escreve que “a utilização da imprensa como fonte
de pesquisa para o ofício do historiador [e, também, para profissionais das ciên-
cias humanas] é um fenômeno recente”.21 Sobretudo para a área da História, o
autor sugere que tal movimento se encaixa no que entendemos por rebelião, pois
a ação de privilegiar a imprensa nas investigações históricas “buscou não apenas
uma nova interpretação do conhecimento histórico, mas também novas fontes de
pesquisa”.22
Os jornais se desenvolveram ao passo das transformações ocorridas no Brasil.
Os impressos acompanharam mudanças nas esferas econômica (industrialização
e urbanização), social (escravidão e abolição) e política (queda do Império e insta-
lação da República) ao longo do século XIX. Devido a essa cobertura nacional que
a imprensa fez parte, como aponta Maria Helena Capelato, dois lados entraram
em choque: um que acreditava que os jornais se rendiam às empresas comerciais,
sofrendo perda em espaços opinativos; e outro que esperava menos envolvimento
do jornalismo com a política.23
O interesse pela política não impediu que crescesse o número de anúncios e
matéria paga nos jornais. Prova disso são os diversos anúncios de fuga, venda e
captura de escravos que se destacam no século XIX, como outras propagandas de
utilidade pública, a saber, vendas e serviços relacionados ao cotidiano.
Tania Regina de Luca é uma das estudiosas da história da imprensa brasileira, ao
lado de Maria Helena Capelato, que contribui nas reflexões sobre o uso de jornais
como um espaço privilegiado para as observações e indagações sobre o passado. A
autora afirma que, até a década de 1970, era pequeno o número de trabalhos que
se valia de jornais e revistas como fontes para conhecimento da história do Brasil.
Isso porque se tratava de uma fonte questionável aos olhos daqueles que optavam
ainda por escrever uma história positivista, sem questionamentos ou desconstru-
ção dos fatos. Todavia, a autora destaca a importância dos impressos e não era

20 BEZERRILL, Simone. Imprensa e política: jornais como fontes e objetos de pesquisa para
estudos sobre abolição da escravidão. In: II Simpósio de História do Maranhão Oitocentista. Universi-
dade Estadual do Maranhão - UEMA. São Luís, 2011.
21 OLIVEIRA, Rodrigo. A relação entre a História e a Imprensa, breve história da imprensa e as
origens da imprensa no Brasil (1808-1930). Historiae, Rio Grande, v. 2, n. 3, p. 125, 2011.
22 OLIVEIRA, Rodrigo. A relação entre a História e a Imprensa, breve história da imprensa e as
origens da imprensa no Brasil (1808-1930). Historiae, Rio Grande, v. 2, n. 3, p. 126, 2011.
23 CAPELATO, Maria. A imprensa como fonte e objeto de estudo para o historiador. In: VILLA-
ÇA, Mariana; PRADO, Maria Ligia Coelho (Org). História das Américas: Fontes e abordagens historio-
gráficas. São Paulo, Humanitas: CAPES, 2015.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 727


Artes, memória e espaços
nova a preocupação “de se escrever a história da imprensa, mas relutava-se em
mobilizá-los para a escrita da história por meio da imprensa”.24

O ABOLICIONISMO NA IMPRENSA
A partir de 1880, a escravidão no Brasil já era questionada em vários cantos.
Foram votados e aprovados projetos políticos sobre o assunto apenas a partir do
Segundo Reinado, mas a discussão sempre esteve presente na imprensa e nos
espaços políticos desde a Independência, em 1822, e a outorga da carta Consti-
tucional de 1824. A década de 1880 reuniu importantes marcos para a política
antiescravista. Em 1850 já se tinha derrubado o tráfico transatlântico de africanos
para o Brasil. Em 1871, a libertação do Ventre Livre e, em 1885, a liberdade aos
Sexagenários. Todos esses processos culminaram na abolição da escravidão em
1888. Aqui são trazidos dois trabalhos a título de exemplo para mostrar como se
tem feito pesquisas sobre abolicionismo na imprensa.
Na província do Espírito Santo, especificamente em Cachoeiro de Itapemirim,
os senhores de escravos mostraram-se cientes do processo que estava correndo
no Império sobre a liberdade dos cativos e as consequências para sua economia,
como aponta Robson Martins em “Atos dignos de louvor”: imprensa, alforrias e
abolição no Sul do Espírito Santo, 1885-1888.25 Os próprios senhores se somavam
em prol de libertar gradativamente seus escravos e promover uma mudança no
campo do trabalho. Os jornais que circulavam em Cachoeiro de Itapemirim – O
Constitucional e O Cachoeirano, um conservador e outro liberal, respectivamente
– publicaram sobre o assunto. Apenas o segundo jornal publicou mais anúncios
referentes à escravidão, sobretudo as alforrias concedidas pelos senhores. Para
a região foi mostrado que sua imprensa buscou fortalecer a autonomia de ação
dos donos de escravos na província quando eles buscaram resolver o problema da
abolição sem a intervenção do Estado. Nesse sentido, quando chegada, a abolição
pouco afetou a sociedade, que já vinha se informando pela imprensa cachoeirana.
A partir da análise de conteúdo sobre a escravidão na imprensa mineira, espe-
cificamente pela busca do termo “elemento servil” em diversos títulos na seção
de “jornais avulsos” do Arquivo Público Mineiro, Liana Reis mostra a possibilidade
de reconstruir a trajetória vivida pelos escravizados. Para se chegar a esse resul-
tado, um dos caminhos de análise foi a tabulação de dados referentes aos conte-
údos encontrados, como “anúncios de fugas, venda, compra, aluguel de escravos,
agressões, crimes; informações sobre alforrias, censos de população, e associações

24 LUCA, Tânia., et al. Fontes Históricas: Fontes Impressas. História dos, nos e por meio dos
periódicos. São Paulo: Contexto, 2015, p. 112.
25 MARTINS, Robson. “Atos dignos de louvor”: Imprensa, Alforrias e Abolição no Sul do Espíri-
to Santo, 1885-1888.
Afro-Ásia, n. 27, 2002.

728 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
abolicionistas”.26 Esse método mostrou-se positivo por os anúncios de fugas, como
exemplo, trazerem diversas informações pertinentes sobre o escravo, como sua
descrição física, vícios e costumes, localização etc. E esse estudo justificou-se por
considerar a atuação dos escravos como sujeitos no processo abolicionista da his-
tória da escravidão, por meio da resistência por fugas.

EMANCIPAÇÃO GRADUAL DE ESCRAVOS EM DIAMANTINA


O jornal 17º Districto: órgão político, noticioso e comercial, fundado em 1885
pelo partido político liberal em Diamantina, Minas Gerais, funcionou até o ano de
1886. Ele se localizava à Rua Tiradentes, nº 35, bairro Vila Operária, em Diamanti-
na. O jornal tinha como editor chefe Luiz Antônio dos Reis, além de proprietários
e diretores diversos do Partido Liberal. A proposta do jornal era de levar os proje-
tos políticos liberais a Diamantina e ao Norte da província de Minas Gerais. Suas
principais campanhas envolviam a questão da escravidão, projetos abolicionistas
e desenvolvimento regional. Sua publicação era semanal e a venda era por assina-
turas anuais a 6$000, e bimestral por 3$000, sem anúncios publicitários, mas com
noticiários. O jornal era direcionado a toda sociedade diamantinense e do Norte da
província, com foco aos grupos eleitores e políticos de ideologia liberal.
Luis Antônio dos Reis defendia seu partido político ativamente. Ele escreveu
em 12 de julho de 1885, que Diamantina, nesta parte do Norte de Minas, tinha um
partido liberal forte e que carregava abundante vitalidade. Em seguida, lamentou
que seu partido tenha sofrido uma crise. Essa crise deu-se após o ministro de rela-
ções Exteriores, o conselheiro Mata Machado, a quem o editor tinha proximidade,
perdeu em eleição para o político conservador Antonio Felício dos Santos.
O ministro Mata Machado, político liberal e diamantinense, era eleito em dis-
putas anteriores ao de 1885. Embora tenha perdido a eleição política, continuou
a carregar o título de excelência tanto em Diamantina, como nos arredores. Esse
político proferia ávido discurso abolicionista, algo que o próprio Luis Antônio dos
Reis, redator do jornal 17º Districto, reafirmava quando fosse promover o papel
social do partido liberal na região. Diversas alforrias foram dadas aos escravizados
da cidade e por onde o ministro Mata Machado passava.

Em homenagem ao povo diamantinense, que tão grandes pro-


vas de simpatia e adesão lhe tem dado, o conselheiro Mata Ma-
chado, no dia seguinte a sua chegada a esta cidade, restituiu,
comprando por não pequena quantia a liberdade ao escravizado
Luiz, que era, até então, propriedade do Sr. Manoel Procopio Al-
ves Pereira. Já um pouco antes, ao passar pela cidade do Serro,
também em demonstração de agradecimento pela esplêndida
recepção que mereceu dos dignos serranos, o Exm. conselheiro
havia restituído a pátria, um outro desgraçado brasileiro escravi-

26 REIS, Liana. Escravos e Abolicionismo na Imprensa Mineira (1850-1888). Estudos Ibero-A-


mericanos. PUCRS, XVI, 1990, p. 290.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 729


Artes, memória e espaços
zado, que, no momento de sua entrada naquela cidade, de gan-
cho ao pescoço e algemas nos punhos, era com geral indigna-
ção, arrastado pelas ruas ao estalo dos açoites manejados pelas
mãos de infames capitães do mato. Atos como estes, se muito
honram ao ilustre conselheiro, enchem-nos do maior orgulho e
levam-nos ao espírito a mais grata consolação, pois vêm clara-
mente demonstrar - que, louvado seja Deus, nem todos os filhos
da nobre e generosa Diamantina rezam pela mesma cartilha de
um ou outro representante do pavilhão negro, que procuram,
ao longe, nos fazer passar por guardas avançadas das senzalas,
protetores convictos do tronco e do bacalháu.27

Em Diamantina, atuou também o Club Abolicionista composto por um núme-


ro próximo de 25 sócios políticos. Em 16 de julho de 1885, os sócios do Club se
reuniram a chamado de Correa Rabelo para tratar de uma pauta específica da Lei
Sexagenários, que o jornal atribuía de Lei Saraiva, enviando o convite da reunião
não só para o Conselheiro Saraiva, que estava na Corte discutindo o projeto, mas
para Ruy Barbosa, Joaquim Nabuco e Dantas Souza. A pauta girou em torno de um
artigo específico da Lei gradualista que tratava da formação do fundo de emanci-
pação e da redução do preço dos escravos. Reduzindo o valor do escravizado, parte
da sociedade acreditava que a escravidão gradualmente fosse se extinguir. Porém,
os abolicionistas da cidade não aceitaram a ideia do projeto e por isso se reuniram,
pedindo que abolisse a escravidão naquele mesmo ano. Algo que não ocorreu, mas
que veio se concretizou em 1888.28

CONSIDERAÇÕES FINAIS
As leituras inicias do jornal 17º Districto nos abre caminho para mostrar como a
questão da liberdade foi assumindo um discurso pautado em interesses políticos,
sobretudo, pelos liberais e abolicionistas na cidade de Diamantina, Minas Gerais.
Tratou-se em trazer, de modo muito reduzido e pouco aprofundado, a presença de
um movimento abolicionista no interior de Minas Gerais, na segunda metade do
século XIX. Este estudo merece maior afinco e as análises do conteúdo do jornal
uma maior preocupação. Contudo, é importante apontar que a discussão sobre a
escravidão e abolição estiveram presentes na imprensa oitocentista. Diversos são
os sujeitos políticos por trás de um discurso abolicionista florescente na década de
1880, que de um modo ou de outro contribuíram diretamente com a aprovação e
as disputas por projetos emancipacionistas que direcionaria o caminho que o Im-
pério brasileiro seguiria nos anos sequentes.

REFERÊNCIAS

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do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009.

AUTORIA
Higor Natanael Azevedo Carvalho
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri
E-mail: carvalhoufvjm@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7036-4537
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0165754856895070

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Artes, memória e espaços
CAMINHOS QUE SE CRUZAM: MERENCIANA
E MARIA IGNACIA, MULHERES LIBERTAS EM
PALMAS/PR, 1880-1900
Renilda Vicenzi
Thalia Faller

Seu nome era dor


Seu sorriso dilaceração
Seus braços e pernas, asas
Seu sexo seu escudo
Sua mente libertação
Nada satisfaz seu impulso
De mergulhar em prazer
Contra todas as correntes
Em uma só correnteza
Quem faz rolar quem tu és?
Mulher!...
(Beatriz Nascimento, Sonho)

INTRODUÇÃO
Este artigo possuiu a intenção de trazer ao debate da história social da escravi-
dão e pós- abolição fragmentos da vida de duas mulheres negras libertas, Meren-
ciana e Maria Ignacia, que viveram no Sul do Brasil. Percorremos suas vidas duran-
te a década de 1880. O presente trabalho é um dos resultados, um pequeno tópico,
desenvolvido para o trabalho de conclusão de curso da graduanda que assina este
texto intitulado “Merenciana e a liberdade negra: raça e gênero nos campos de
Palmas (1880-1900)”. A janela que abriu a possibilidade de conhecer Maria Ignacia
Theodora foi a trajetória de Merenciana Prestes do Santos, lavadeira, natural de
Lapa/PR, liberta em 1860 em Guarapuava/PR e moradora de Palmas/PR1 a partir
do ano de 18852, protagonista de nossa pesquisa. Assim, dedicamos mais tempo
pensando sobre Merenciana, investigando seus passos e imaginando seus olha-
res em outro trabalho. Nas buscas foram desarrolhando diferentes pessoas que

1 A fim de que a leitora/or se familiarize com o lugar em que Merenciana e Maria firmaram
em algum momento seus corpos pés, façamos um breve comentário sobre os campos de Palmas. De
acordo com Ana Paula Pruner de Siqueira (2010), no final do século XIX abrangia o atual Sudoeste
do Paraná e Oeste de Santa Catarina. Nesse espaço, com grandes áreas ainda não destruídas pelo
colonialismo, habitavam indígenas, escravizados/as e seus descendentes, assim como imigrantes eu-
ropeus e seus descendentes. Sua economia, que se utilizou da escravidão negra, estava voltada para a
criação e comercialização de gado, tropeirismo, agricultura de subsistência e cultivo de erva-mate.
2 Arquivo da Comarca de Palmas/PR. Petição de queixa de Merenciana Prestes do Santos.
Palmas, 1886.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 733


Artes, memória e espaços
conviveram com ela e compartilharam experiências. Maria foi uma dessas pessoas
e visualizamos a potência de sua companhia. Tanto para Merenciana como para
nós historiadoras com olhares interseccionais, atentas e envolvidas pelo sentido
de se fazer uma História diversa, longe de aparentar neutralidade, mas sim, ser
mais uma ferramenta possível para entendermos a realidade com suas violências e
desigualdades, mas também resistências, potências e forças que existem em cada
encruzilhada.
As questões sobre as experiências da liberdade da mulher negra nos campos de
Palmas, Paraná, são analisadas através da intersecção entre raça e gênero a partir
de um processo crime desenvolvido na vila de Palmas entre de julho de 1889 e ou-
tubro de 1890. Dessa maneira, juntamos olhares que se complementam e auxiliam
para complexificar nossas Histórias: a historiografia sobre a escravidão e pós-abo-
lição e o feminismo negro em um espaço-tempo3 estruturado na colonização dos
corpos e outros seres da natureza, com diversas lacunas e oportunidades de pes-
quisas sobre as experiências da população não-branca longe das capitais. Os pe-
quenos suspiros que se seguem também se configuram como um manifesto para
que vejamos a região do atual Sudoeste do Paraná e Oeste de Santa Catarina por
meio da raça e de seus significados, sentidos e expressões materiais e simbólicos
nas relações sociais e suas diferentes dimensões. Ademais, deixamos a conversa
de historiadoras com as fontes históricas, que mais do que papéis, são a marca da
passagem de mulheres libertas no Brasil Meridional.
Acontece que no final do oitocentos, Merenciana e Maria iam a bailes e gosta-
vam de dançar...

OS LUGARES DE MERENCIANA E MARIA


Consta no inquérito policial do processo crime do réu Olegario Rodrigues Car-
neiro, fabricado na vila de Palmas, Paraná, o seguinte testemunho de Merenciana
Prestes dos Santos sobre o ocorrido na madrugada do dia 20 de maio de 1889:

(...) indo de um baile que houve na casa do negociante Victorino


José da Roza, para sua casa, e lá chegando se deu um princípio
de dúvida entre Galdino José Ricardo, Olegario e João Ricardo,
nesse ensejo ela respondente retirou-se para casa de seu vizi-
nho Joaquim Passarinho, que logo depois dali saindo encontrou-
-se com Olegario que lhe disse fosse tomar conta da sua casa
porque ele estava desgraçado.4

3 Um conjunto de pesquisadoras/es, intelectuais e artistas componham as bases teóricas e


metodológicas da pesquisa. Em suma, a interseccionalidade entre raça e gênero, assim como a preca-
riedade estrutural da liberdade no sistema escravista e no pós-abolição dão o Sul. (AKOTIRENE, 2018;
COLLINS, 2015; KILOMBA, 2019; CHALHOUB, 2010)
4 Arquivo da Comarca de Palmas/PR. Processo Crime do réu Olegário Rodrigues Carneiro,
1890, p. 15.

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Artes, memória e espaços
Pelo rol de testemunhas arroladas foi público e notório que Olegario, 25 anos,
casado, lavrador, natural de Lapa e residente em Palmas, agrediu Galdino com uma
arma branca, causando ferimentos. Público e notório também foi que o aconteci-
mento ocorreu na casa de Merenciana5. Sem constar no processo crime esta clas-
sificação, com o cruzamento de informações pessoais que constam no documen-
to e fontes eclesiásticas como registro de batismo6 e casamento verificamos que
Olegario era um homem liberto, morador há doze anos em Palmas e casado com
Diolinda Amalia Ferreira, natural de Palmas7. Quando absolvido pelo primeiro júri
por legítima defesa, após ter ficado preso na cadeia da vila de maio a dezembro de
1889, foi apontado pela apelação, como prova de que poderia ter fugido sem ferir
Galdino, que frequentava a casa de Merenciana e conheceria todas as saídas possí-
veis além da porta principal. Como resposta, Olegario afirmou que não tinha conta-
to com Merenciana e apenas a acompanhou a pedido dela, que se encontrava em-
briagada8. Deste modo, em sua defesa utilizou de um discurso de desmoralização
da mulher que, ao contrário da apelação, não o aproximava dela, mas acentuava
suas diferenças e distanciamentos: se Merenciana o convidava para acompanha-la,
por seus motivos menos honrosos, Olegario cumpria um papel de proteção frente
a uma mulher e a conduzia com segurança até sua casa. Desse modo, intencionou
culpabilizá-la e ao mesmo tempo usar de seu lugar de homem para julgar os hábi-
tos e a moral de mesma.
É possível com as trajetórias de Olegario e Merenciana, que se iniciam em Lapa
como escravizados e chegam até Palmas libertos, pensar em ligações mais longín-
quas do que um acompanhar após um baile. Pela proposta do texto, não iremos
nos aprofundar nessa relação. Contudo, deixa-se alguns questionamentos: por que
Olegario negou ligações com Merenciana? Por quais motivos o contato com Me-
renciana era um argumento tão potente a ponto de ser usado para procurar deses-
tabilizar uma sentença? Quais insinuações estavam atreladas e o que isso nos diz
sobre raça e gênero?
Para entender o lugar de Merenciana e Maria Ignacia, voltamos ao início do pro-
cesso. Aqueles e aquelas que prestaram testemunhos eram pessoas que estavam
no círculo de convivência de nossa personagem histórica, seja nos encontros pelas
ruas, nas relações de vizinhanças ou em convivências mais próximas e suposta-
mente recíprocas.
Na leitura do processo crime encontram-se diferentes posicionamentos fren-
te ao acontecimento. Alguns sujeitos procuraram estabelecer distância, relatando
que apenas ficaram sabendo da briga porque estavam pelas redondezas ou foram

5 Arquivo da Comarca de Palmas/PR. Processo Crime do réu Olegário Rodrigues Carneiro,


1890.
6 Paróquia Santo Antônio da Lapa. Livro de batismos, nº 7, 8 e 9, 1858-1867, p. 88.
7 Cúria Diocesana de Palmas/PR. Livro de matrimônios nº 2, 1887, p. 39.
8 Arquivo da Comarca de Palmas/PR. Processo Crime do réu Olegário Rodrigues Carneiro,
1890, p. 61.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 735


Artes, memória e espaços
atualizados/as no outro dia pelo falatório da vila; outros/as confessaram sua pro-
ximidade com os envolvidos. Assim, Joaquim Antonio Passarinho, 35 anos, casado,
carpinteiro e natural de Morretes, citado por Merenciana, contou que sabia do
acontecimento porque sua vizinha correu para sua casa quando os homens inicia-
ram as agressões. Segundo o relato de Antonio Felix Martins de Mattos, 53 anos,
casado, lavrador e natural de Palmas, Merenciana pediu para ele e Theophilo Peres
da Silva, 22 anos, casado, negociante e carpinteiro, natural do Rio Grande do Sul,
que estavam na janela de Passarinho, erguerem a porta de sua casa após os ho-
mens a deixarem9. Podemos inferir uma relação de vizinhança que poderia signifi-
car para Merenciana amparo e proteção. Avancemos no campo das sociabilidades
das mulheres negras, por meio do depoimento de Maria Ignacia Theodora.
No momento da briga, depois de terem ido ao um baile na casa do negociante
Victorino José da Roza, Merenciana estava acompanhada com Olegario e Maria
Ignacia, possivelmente dentro de sua casa, quando os irmãos Galdino e João, o
último dizendo não saber “(...)o motivo pelo qual se deu essa dúvida visto que
Galdino e Olegario tinham íntima amizade”10, arrombaram a porta e começaram-se
os atritos. As duas mulheres apresentaram a mesma atitude de deixar os homens
brigando e procurar um local seguro. Merenciana foi até a casa de Passarinho; Ma-
ria possivelmente voltou para casa. De acordo com ela, “(...) estando em casa de
Merenciana, presenciou que ali se originou uma dúvida entre Galdino e Olegario,
que alteraram vozes e parecia- lhe que brigavam, nesse ensejo retirou-se para o
rocio não vendo o resultado da referida dúvida”11.
Maria Ignacia era solteira, arrolada como ex-escrava de Antonio Joaquim de
Amaral Cruz12, 35 anos, natural de Ponta Grossa13. No processo crime duas pistas
que levam a analisá-la como uma mulher negra são registradas em diferentes mo-
mentos pelo poder público existente em Palmas: sua condição de ex-escravizada e
o lugar em que frequentava. Em distintas oportunidades, o costume de marcar os
espaços sociais da população negra apareceu nas linhas do cotidiano legalmente
sem escravidão do interior do Paraná.
No primeiro momento em que foi anotado o nome da testemunha Maria Ignacia
Theodora, na delegacia da vila de Palmas, entre parênteses se incluiu a informação
do nome do seu ex-senhor. De acordo com Walter Fraga (2014) muitas/os libertas/
os escondiam seu passado da escravidão. Os registros aconteceram porque o es-

9 Arquivo da Comarca de Palmas/PR. Processo Crime do réu Olegário Rodrigues Carneiro,


1890, p. 24-26.
10 Arquivo da Comarca de Palmas/PR. Processo Crime do réu Olegário Rodrigues Carneiro,
1890, p. 18
11 Arquivo da Comarca de Palmas/PR. Processo Crime do réu Olegário Rodrigues Carneiro,
1890, p. 17.
12 Conforme Maria Claudia Martins (2017, p. 61) “[...] Antonio Joaquim do Amaral Cruz (o
coletor de impostos da cidade e que era igualmente proprietário de escravos)”.
13 Arquivo da Comarca de Palmas/PR. Processo Crime do réu Olegário Rodrigues Carneiro,
1890, p. 9; p. 17.

736 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
crivão a conhecia. Além disso, sua categorização, relacionando-a a escravidão, em
1889, pode indicar que recebera a liberdade há pouco tempo.
A resistência para o fim da escravidão fez com que as mentalidades escravocra-
tas fabricassem justificativas para o processo gradual da abolição brasileira. Uma
delas era a impossibilidade das/os libertas/os de viver em liberdade, fora da supos-
ta proteção dos seus senhores e senhoras. Com a oficialização da liberdade negra,
a condição de escravizada/o passava a não existir juridicamente, desmontando es-
truturas sociais baseadas na escravidão. No entanto, segundo Hebe Mattos (2013),
as/aos recém-libertas/os a cidadania não era vista como um direito, já que as/os
senhores/as as/os entendiam como despreparadas/os, tornando-se apenas liber-
tas/os. Do medo do abandono do trabalho e de suas relações escravistas, reforçou-
-se ideias da necessidade de dependência e gratidão para com aquelas/es que as/
os escravizaram. Maria, pela sua mobilidade espacial, não vivia próximo a Antonio,
porém ele fora usado como referência para dizer quem era ela. Era Maria, ex-es-
cravizada. Seu passado era definidor, aos olhares do poder repreensivo de Palmas,
para conhecê-la e daí pensar generalizações ao seu respeito. No lugar denomina-
do “rocio” quem sabe encontrou um espaço para ser a própria referência de si,
rodeando- se por relações entre libertas/os, construindo redes de acolhimento,
proteção e inserção social.
O entendimento anterior vem do exercício de aproximar o olhar para o lugar
em que Maria possivelmente morava ou entendia encontrar proteção. O rocio da
vila, nomeado no tempo presente como bairro São Sebastião do Rocio e quilombo
Adelaide Maria Trindade, possui uma história narrada através das memórias de
moradoras e moradores negros da comunidade14. O que se tem até o momento
são diversas informações, relatos, fotografias e narrativas, que remetem ao final
do século XIX e início do século XX, que não foram reunidas e analisadas pela histo-
riografia social da escravidão e do pós-abolição15.
Maria Arlete Ferreira da Silva, moradora negra do bairro São Sebastião, em seu
livro Da África ao Rocio São Sebastião- Quilombo de Palmas- Paraná (2018), narra
por meio de suas memórias a história do local. Segundo a autora, a ocupação da re-
gião iniciou por meio de libertos/as e escravizados/as fugidos/as que construíram
um espaço de sociabilidade e resistência negra em um local que, de acordo com a

14 As memórias dos/as moradores/as estão registradas dentro da produção acadêmica por


meio do trabalho Pedagogia do estar junto: éticas e estéticas no bairro de São Sebastião do Rocio, da
pesquisadora Sônia Maria dos Santos Marques. Ver: MARQUES, Sônia Maria dos Santos. Pedagogia
do estar junto: éticas e estéticas no bairro de São Sebastião do Rocio. 2007. 206 f. Tese (Doutorado)-
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Educação. Programa de Pós-Graduação em
Educação, Porto Alegre, 2007.
15 Podemos aprofundar o entendimento sobre o significado de “rocio” no extremo Sul
paranaense observando estudos sobre Guarapuava. De acordo com Fábio Pontarolo (2019), rocios
fizerem parte das vilas paranaenses. Segundo o historiador, era denominado de rocio de Guarapuava
sesmarias que foram direcionadas, através da Carta Régia de 1809, a ocupação de lavradores pobres,
tornando-se esse o centro com moradias e a sede do povoamento. Nas redondezas do rocio formou-
-se o Campo da Pobreza na qual os/as lavradores/as trabalhavam para a subsistência e comércio.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 737


Artes, memória e espaços
historiadora Janete Chaves Carlin (2019), em 1904 localizava-se a 4km de distância
do centro urbano de Palmas.
O Rocio geograficamente estabeleceu-se em uma região que tendeu a expandir
para os limites da vila de Palmas, podendo ser compreendido como um local que
próximo ao centro urbano, estava à margem dele. Habitado por uma população
negra liberta e seus descendentes, seu registro no processo pode estar relacionado
a marcação e controle do trânsito desses indivíduos fora das divisas da localidade.
Sidney Chalhoub (2018), aponta, através dos cortiços da cidade do Rio de Janeiro
do início de século XX, para a construção de espaços povoados por mulheres e ho-
mens negros e pobres como um processo de exclusão da população negra, ligado
também a higienização dos espaços urbanos. Dessa maneira, é possível perceber
que na vila, um pequeno núcleo urbano dos campos de Palmas, se deu o curso de
uma divisão e afastamento social que integrou a liberdade negra na região.
Merenciana, 29 anos, e Maria Ignacia, 35 anos, não dividiam o mesmo teto. Por
outro lado, compartilhavam passados e presentes lado a lado. Seus corpos transi-
tavam entre o centro e o Rocio, quem sabe compartilhando espaços de trabalho
como de lavadeiras, vivendo com outras mulheres negras a percepção e experiên-
cia de terem nascidas como uma mulher escravizada do ventre de outra mulher
que sobreviveu às dores e alegrias da concepção, gestação e cuidados de filhos e
filhas dentro de espaços gestados pela violência física, psicológica e geracional da
escravidão. Ambas também sobreviveram à infância, vingando para conquistarem
suas liberdades. Neste momento surge a dúvida: como elas agiram frente a realida-
de social de valorização da maternidade, dos cuidados domésticos, apontada pela
historiadora Maria Helena Pereira Toledo Machado (2018), e, acrescentemos, a
presença de uma representação masculina para validar sua existência?
Ao estudar a representação das mulheres no Paraná oitocentista, Graciele
Dellalibera de Mello (2018) salienta que o interior paranaense possuiu dinâmicas
específicas para responder ao modelo de mulher do final do século XIX. Espelhan-
do-se na Europa, a mulher deveria desempenhar papeis restritos ao âmbito do-
méstico que também envolviam a maternidade. Por outro lado, não era possível
para todas as mulheres viverem apenas para a manutenção interna de seus lares.
Através de relatos de viajantes, de acordo com a autora, percebe-se que as mulhe-
res que compunham as elites paranaenses não se comportavam exatamente como
as regras sociais almejavam. Transitavam pelas estradas, muitas a cavalo, recebiam
visitas e conversam com elas mesmo na presença de seus maridos. Á vista disso,
o ideal de feminino foi reorganizado para valorizar, e impor, comportamentos vol-
tados para o casamento, manutenção e trabalho de cuidado doméstico e atuação
religiosa, elementos essenciais para a reprodução de vínculos de poder.
As vivências que se cruzaram entre Merenciana e Maria elencam inquietações
que envolvem o contexto nacional do fim da escravidão em que se acionaram dis-
cursos sobre a incapacidade da população negra de viver em liberdade, seguindo
reformulações sobre raça e cidadania que envolveram generalizações excluden-

738 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
tes, preconceitos, ideias de lugares sociais e espaciais que limitaram e forçaram a
criação de diferentes estratégias por parte de mulheres e homens negros (ALBUR-
QUERQUE, 2004). Os campos de Palmas, caracterizado pela produção pecuária,
agricultura de subsistência e por fazendas com pequeno número de escravizadas/
os, não se absteve de perceber e organizar hierarquias sociais a partir da raciali-
zação de mulheres e homens, entrando também em jogo os imaginários de ser
mulher.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo do processo crime, como exposto, surgem traços que se referem as
mulheres negras aqui abordadas e que podem ser alargados para fora do docu-
mento. Ao se ver diante da briga Maria correu para o Rocio da vila, possivelmente
um espaço de sociabilidade negra. O lugar foi apontado não somente para dizer
o que ela fez, mas para afirmar qual lugar ela frequentava. Dessa maneira, os ho-
mens responsáveis pela ordem e controle de Palmas, além daqueles com quem
compartilhavam momentos, procuraram dizer como Maria Ignacia e Merenciana
eram entendidas e utilizar disso para marcar distanciamentos, lugares e tratamen-
tos. Apesar e a partir disso, ao estarem em perigo sabiam o que fazer. Para não
serem envolvidas na briga, Maria Ignacia correu para o Rocio e Merenciana para a
casa de seu vizinho.
Merenciana e Maria Ignacia não performaram o lugar social definido idealmen-
te para mulheres. Como mulheres pobres, trabalharam para garantir a manuten-
ção de suas vidas. Suas autonomias podiam causar uma certa desordem em um
imaginário que organizou as mulheres para responderem aos poderes masculinos.
Eram trabalhadoras negras e solteiras, se divertindo e voltando para suas casas,
escolhendo suas companhias. Assim, percorreram espacialmente e simbolicamen-
te ambientes nos quais buscavam as suas próprias maneiras de negociar proteções
para se estabelecerem ativas no jogo social.

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740 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
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XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 741


Artes, memória e espaços
ST 13
Corpos Negros:
experiências
sociais de
escravizados/
as e libertos/as,
africanos/as e
crioulos/as na
escravidão e na pós
emancipação no
Brasil
O PENSAMENTO PROJETUAL ESPONTÂNEO:
RESISTÊNCIA NEGRA NO PERÍODO
ESCRAVOCRATA BRASILEIRO ATRAVÉS DA SUA
PRODUÇÃO DE IMAGENS E ARTEFATOS
Hugo Horácio Duarte

INTRODUÇÃO
Banzo. Essa foi uma das primeiras formas da resistência negra durante a escra-
vidão no Brasil e consistia em: suicídio; algo desconhecido no continente africano
até então, segundo Gennari (2011).
O Brasil foi o último país do mundo a abolir a escravidão e um ano depois era
proclamada a república. Com isso, também veio a tentativa de apagamento histó-
rico, como se pode ver no seguinte trecho do Hino da Proclamação da República:
“Nós nem cremos que escravos outrora tenha havido em tão nobre país”.
Muitos dos problemas que se vive hoje em dia em terras brasileiras se deve a
esse fator histórico. Segundo o censo de 2015 do IBGE, 54% da população se decla-
ra preta, parda ou indígena e apenas 17,4% da parcela mais rica do Brasil é negra.
Já quando se vê a parcela mais pobre da sociedade, os negros são majoritários com
uma porcentagem de 73,2%. Fora outras questões como o genocídio de jovens
negros, feminicídio de mulheres negras, pouca oportunidade de trabalho em car-
gos considerados mais altos e um sistema penitenciário que reproduz o racismo
estrutural.
Para começar a refletir sobre esses problemas de forma efetiva, deve-se olhar
para o passado e entender o que foi a escravidão e as feridas deixadas por ela na
sociedade, bem como os fatos sociais atuais que estão imbricados ao período es-
cravocrata brasileiro.
Neste sentido, a presente pesquisa, por ser interdisciplinar, foi divida em dois
artigos. O primeiro, “A Construção de um Sentimento: a reformulação do termo
resistência negra no período escravocrata brasileiro”, ressignifica o termo “resis-
tência” para a expressão de um sentimento socialmente construído. E este que
tem como objetivo principal fazer um inventário de caráter exploratório e apontar
ícones da resistência negra ao longo do período escravocrata brasileiro, como for-
ma de reconhecer e valorizar a história e as estratégias de luta dos povos negros
que constituem a formação sócio-cultural-racial nacional.
A aproximação entre o campo do Design e a temática da "Negritude" exige o
esforço de abordagem crítica sobre o racismo brasileiro. Um ideário racista bastan-
te presente se relaciona à um dos vários estereótipos históricos criados de que o
negro foi passível à escravidão, por serem preguiçosos e ignorantes. Este trabalho

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 741


Artes, memória e espaços
vem na contramão, trazendo a perspectiva negra sobre o assunto e mostrando que
houve resistência e pensamento projetual - seja ele espontâneo ou estratégico.
Além disso, este trabalho acaba sendo um fomento à lei 10.639/2003 que torna
obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira, africana e indígena.

APORTE TEÓRICO
A presente pesquisa é interdisciplinar envolvendo áreas como design, antro-
pologia e história. Abaixo está um esquema visual trazendo as principais áreas e
depois é explicado brevemente sobre algumas delas:

FIGURA 1 - DIAGRAMA DOS CONCEITOS NORTEADORES E


ÁREAS DE CONHECIMENTO QUE A PESQUISA ABORDA

Fonte: Elaborado pelo próprio autor, 2019

ESCRAVIDÃO
Assim como a Europa ou a Ásia, o continente africano tem uma longa história
que começa bem antes da escravidão, na realidade antes mesmo da existência de
civilização em outros continentes. Por exemplo, existiam povos que dominavam
o artesanato em vidro, fabricação de bronze pelo processo de cera perdida, arte
cerâmica e até tinham conhecimento de como se pegar pérolas em profundidade
sem o auxílio de máquinas, segundo a antropóloga Sheila Walker em entrevista ao
Geledés - Instituto da Mulher Negra (2019).
Além de dominarem a fabricação da matéria-prima para geração de objetos, a
espiritualidade era de extrema importância e muitas vezes se personificava através
de artefatos.Inclusive, o profissional que transformava o minério em metal era tido
como mágico e espiritualmente elevado (FACTUM, p.68).
Com a escravidão negra, as condições de trabalho eram horríveis, os escraviza-
dos chegavam a trabalhar 15 horas por dia, com descanso em apenas cinco dias do
ano: Natal, Epifania, Páscoa, Ascensão e Pentecostes (GENNARI, p.22).
Os escravizados viviam em senzalas, eram torturados com vários tipos de equi-
pamentos, sendo o mais utilizado o tronco, o chicote e o vira-mundo. Eram mer-
cadorias que podiam ser vendidas, alugadas, penhoradas ou mortas - mesmo que
a lei vigente não admitisse o direito de vida ou morte dos africanos, não havia
nenhuma fiscalização (GENNARI, p.22).
O caminho para abolição foi tortuoso. Em 1850 o Brasil extinguiu o tráfico ne-
greiro por pura pressão da Inglaterra (ALONSO, p.358). Depois disso, os processos
abolicionistas só se intensificaram com o fim da Guerra do Paraguai, onde os es-
cravizados participantes foram alforriados. Após esse fato, foram criadas algumas
leis como a Lei do Ventre Livre e dos Sexagenários. Porém, o assunto só foi levado
a sério quando se instaurou um medo de uma guerra civil aos moldes da América
do norte.
Com isso, em 1888 a escravidão era abolida do Brasil, o último país a fazer isso.
Contudo, os negros não tiveram direito a nada - nem trabalho remunerado, escola,
votao, casa, etc, gerando a desigualdade que temos hoje em dia no país (ALONSO,
p. 364).

DESIGN ANTHROPOLOGY
Design anthropology1 é uma área de estudos nova que faz parte de uma apro-
ximação entre o design e as ciências humanas - já que o objeto de estudo da an-
tropologia é a humanidade em sua totalidade, a partir de sua formação cultural,
considerando todas as dimensões sociais possíveis (ANASTASSAKIS, 2014).
É importante apontar que para Zoy Anastassakis (2014), a importância de ter
mais estudos na área é benéfica para as duas partes: tanto para a antropologia,
quanto para o design - não só na teoria como também a prática.

1 É um termo horizontal, ou seja sem tradução. Não tem como falar design antropológico ou
antropologia do design, já que assim mostraria hierarquia entre as áreas.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 743


Artes, memória e espaços
DESIGN ESPONTÂNEO
Design vernacular, espontâneo, não-profissional, cultural, popular ou pré-de-
sign são conceitos que mudam de nome conforme o autor, mas entram em consen-
so em sua definição: é quando “não profissionais” ou uma comunidade se utiliza
do pensamento projetual para resolver problemas do seu cotidiano mesmo não
sabendo o que necessariamente é “design”. O fato de ser feito por pessoas sem
conhecimento na área, não deslegitima ou inferioriza o design espontâneo.
Vale ressaltar o quão importante para a presente pesquisa é o fato de que o
chamado design espontâneo não precisa ser algo “planejado”, o uso espontâneo
também entra no campo de estudos. Um exemplo disso, são os corrimãos de esca-
da, que foram feitos para garantir maior segurança, mas acabaram sendo usados
pelos skatistas para fazerem suas manobras (IBARRA, p.171).
No entanto, não se tem muitas bibliografias que trazem a resistência negra
como um campo de estudo no design. Bem como que vincule o design espontâneo
com as lutas da população negra ao decorrer da história.

PROBLEMA DE PESQUISA
Como pessoas negras se utilizaram do design espontâneo para criar ícones de
resistência durante o período escravocrata brasileiro?

METODOLOGIA
Nas buscas realizadas, não foi encontrado pesquisas sobre design espontâneo
envolvendo fatos históricos, segundo um levantamento feito pela dupla Maria Cris-
tina Ibarra e Rita Ribeiro (2014). Sendo que o único trabalho de design que envolve
o período escravocrata encontrado é a tese de doutorado de Ana Beatriz Simon
Factum (2009) onde a própria teve que criar os seus métodos de pesquisa expli-
cando o contexto de onde aquele objeto surgiu - caminho que será seguido aqui
também.
O design anthropology, campo de estudos maior onde se está inserido o design
espontâneo, determina que haja estudos que vão além do design e antropologia
- englobando história, sociologia, economia, legislação, etc, segundo Anastassakis
(2014).
Por isso, a primeira coisa a ser feita foi um levantamento bibliográfico e audio-
visual sobre a história da escravatura brasileira, resultando em uma linha de tempo
com os principais fatos ocorridos na época, tanto na monarquia portuguesa quanto
os que refere-se aos escravizados.
Para o levantamento bibliográfico foram feitos fichamentos de leitura. Além dis-
so, foram investigadas pinturas, ilustrações e fotografias feitas durante a escravi-
dão brasileira ou de artefatos encontrados em escavações arqueológicas. Como se

744 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
tem poucos registros dos próprios negros sobre suas condições, foram estudados
bibliograficamente testemunhos de ex-escravizados e seus descendentes diretos.

RESULTADOS E ANÁLISE
Como resistência, na reformulação do termo explicado melhor no artigo “A
Construção de um Sentimento: a reformulação do termo resistência negra no pe-
ríodo escravocrata brasileiro”, é a expressão planejada ou não de um sentimento
(chamado de La-aye), toda produção feita por pessoas negras nessa época vão
ter um caráter de resistência. Porém, continua sendo importante elencar símbolos
para serem melhor estudados em outras pesquisas como a reformulação imagé-
tica e pedagógica de livros didáticos onde os artefatos trazidos são apenas os de
tortura. Então esses símbolos foram agrupados em cinco sessões chamadas aqui
de “os cinco para”: para morrer, para viver, para espiritualizar, para trabalhar e
para comunicar. Isso não quer dizer que sejam categorias enrijecidas, já que vários
elementos vão transitar entre duas ou mais sessões, mas simplesmente explica-
tivas, no sentido de explicitar a função principal no uso do respectivo artefato ou
imagem.

PARA MORRER
Assassinatos poderiam ser planejados ou não. Quando arquitetados eram usa-
dos armas como faca, punhal e foice e tinham como razão uma vingança a maus-
-tratos, podendo ser feito em grupos de poucas pessoas ou apenas em um. Porém,
muitos não conseguiam conter a fúria quando eram alvos de algum tipo de vio-
lência. Por isso era comum que objetos como mão-de-pilão, enxada e machado
(GOULART, p.142), fossem usados para matar no ato que o escravizado sofresse
algum tipo de agressão.
Além disso, existiam rituais fúnebres com costumes oriundos do continente
africano. Estes eram, principalmente, para reis e rainhas africanos e seus descen-
dentes (mesmo sendo cativos, a relação imperial se mantinha entre eles). Os ritu-
ais continham diversos elementos africanos, sendo o principal deles o predomínio
da cor branca nas mortalhas fúnebres, assim como as vestimentas feitas especial-
mente para o enterro do morto (RODRIGUES, p. 327). Também entram nesse grupo
objetos utilizados para suícidio e arquiteturas para proteção como os quilombos.

PARA VIVER
Para os escravizados viver era uma resistência e o principal palco disso eram
as ruas. Nas ruas e em locais públicos como os chafarizes onde eram lavadas as
roupas, que encontramos a capoeira, festas, vestuários, e rituais fúnebres como

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 745


Artes, memória e espaços
formas de recriar laços e reconstruir identidades (AGOSTINI, p.127). Cachimbos,
jóias crioulas, e instrumentos musicais como tambores também traziam herança
africana, se tornando uma resistência cultural. Destaque-se o caso de Xica Mani-
congo, que através da suas vestes, é considerada a primeira travesti não-indígena
no Brasil (JESUS, p.254).

PARA ESPIRITUALIZAR
Todos os objetos religiosos utilizados nos calundus coloniais, incluindo vestu-
ário e instrumentos musicais. Destaque importante para os amuletos como figa,
bolsas de mandinga e pencas de balangandans. O sincretismo também entra aqui
como uma resistência imagética.
Além dos calundus, tem os escravizados mulçumanos que orquestraram a Re-
volta dos Malês indo a batalha vestindo abadás brancos, com colares de búzios,
corais, miçangas, anéis brancos e amuletos como um livro de bolso que tinha rezas
e passagens do Alcorão (REIS, p.06).
Por último, destaque-se um artefato encontrado recentemente em solo brasi-
leiro da deusa Nimba - é a primeira peça desse nicho a ser encontrada no conti-
nente americano, o que indica que havia rituais religiosos africanos autênticos em
terras brasileiras e como estamos longe de saber a totalidade das produções feitas
por escravizados (PUCRS, 2018) .

PARA TRABALHAR
A escravidão vai obrigar as pessoas negras a trabalhar por quase 15 horas,
quanto menos esforço elas fizeram, melhor seria. Logo o melhoramento das fer-
ramentas de trabalho feitas por eles não só diminui o cansaço até um certo grau
(lembrando que o pensamento projetual se não resolve, ameniza problemas) como
contribuiu tecnologicamente para o avanço da sociedade. “Temos na agricultura
brasileira três gerações de enxadas, duas com tecnologias africanas e uma com
tecnologia inglesa” (JÚNIOR, p.47). Foi desenvolvido uma complexa engenharia
de fornos “com a possibilidade de altas temperaturas obtidas pelos processos de
sopro do ar na parte interna do sistema e formas de obtenção de ligas de grande
qualidade se aproximaram da têmpera do aço” (JÚNIOR, p.47).

PARA COMUNICAR
No período estudado, a comunicação entre as pessoas negras teve que ser rein-
ventada até que conseguissem ter voz em meios midiáticos como o jornal impres-
so. Um dos primeiros símbolos para se articularem entre si foi o medalhão com a

746 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
foto de Jean-Jacques Dessalines, um dos líderes da Revolução Haitiana (REIS, p.5).
Ao decorrer da história outros broches foram usados, como a flor camélia.
Por mais que ainda sejam desconhecidos, as escarificações ganharam uma res-
significação em terras brasileiras: “Em outras palavras, algumas nações africanas
podiam ser identificadas pelas suas escarificações, como parece ter acontecido
com os jejes, sobretudo no início do tráfico desses povos” (SILVA JR., p.10).
A imprensa negra, cujo precursor foi Paula Brito, também tornou-se uma im-
portante voz política para as pessoas negras. E um último exemplo é a descoberta
recente, em Ouro Preto (MG), onde foi encontrado desenhos deixados por um ou
mais escravizados que viviam ali - são registros da vida antes da escravidão em
África e depois no Brasil sendo escravizado (Jornal Estado de Minas, 2019).

ANÁLISE GERAL
Para morrer. É normal que em um sistema que tenta privar o sentir, os escravi-
zados vão acabar assassinando seus feitores, senhores de engenho, etc. Além da
produção de artefatos feitos justamente para isso, como arco e flecha, espada ou
da compra de outros, como armas de fogo; vão existir casos onde um objeto que
foi feito para outra finalidade é usado como uma arma.
O objeto passa a carregar o sentimento de revolta do escravizado. Por isso,
instrumentos como a corrente e instrumentos de trabalho como mão de pilão,
enxada e machete vão virar verdadeiras armas em momentos de fúria. Mas tem
uma boa explicação para que ferramentas de trabalho se tornem armas: nos assas-
sinatos planejados, essas ferramentas eram as únicas que tinham disponíveis para
os escravizados e muitos dos assassinatos não planejados vão ocorrer enquanto o
escravizado trabalha e é atormentado pelo seu feitor.
Como os negros eram vistos como objeto, o próprio enterro foi algo negado a
eles durante um bom tempo no período escravocrata brasileiro. Mas os desfiles
que levavam o morto até a cova, com vários elementos culturais, fez da rua um
importante palco para a humanização do negro perante o sistema opressor.
Para Viver. A rua também era palco do viver dos negros e onde se tem mais
exemplos da resistência espontânea. Das festas, da capoeira, batucadas e do lazer
de um modo geral. É onde se via a ostentação das joias crioulas que reivindicavam
a auto-estima e ascensão social das mulheres. Onde em cachimbos, cerâmicas e
vestuário via-se o elo cultural africano que não conseguia ser apagado totalmente
pelo sistema devido a resistência cultural - que dentro da definição aqui apresen-
tada, é espontânea.
Se existia violência por ser negro, dentro desse grupo também a existência vio-
lência contra o gênero e a preferência afetiva-sexual. E através do vestuário sa-
be-se, nos dias de hoje, da existência e da luta de nomes como Xica Manicongo e
João Paulo.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 747


Artes, memória e espaços
Para espiritualizar. A vida espiritualizada era de extrema importância para as
civilizações africanas. A cultura material dentro das práticas religiosas ganharam
conotações transi únicas. Porém, inseridas no Brasil, com a imposição católica, aca-
bou sendo uma reivindicação do negro de ter um espaço seguro não só para pôr
em prática sua religiosidade e cultura, mas também uma forma de apaziguar má-
goas ou até mesmo remediá-las - como as bolsas de mandinga que serviam, dentre
outras coisas, como um “feitiço para amansar a fúria do senhor”.
Até mesmo nas revoltas, os calundus tem grande importância. No caso dos Ma-
lês, mesmo sendo estratégicos, sempre recorriam a sua religião e até foram para a
batalha munido de artefatos religiosos. Transformando em uma reivindicação não
só do ser e de ser liberto, mas também do direito de ter suas próprias crenças.
O sincretismo, por exemplo, mostra uma grande resistência imagética que per-
meia os campos mentais - onde os escravizados oraram a santos do catolicismo,
mas na realidade estavam rezando para as suas divindades. Isso sem falar em ou-
tras religiões ainda não detectadas pela nossa história, como mostra o artefato da
deusa Nimba.
Para trabalhar. Até mesmo para trabalhar houve a necessidade de pôr em práti-
ca fórmulas para tornarem sua vida mais fácil, onde o aperfeiçoamento da enxada
teve contribuição africana, assim como fornos que beiram ao início da fase indus-
trial (JÚNIOR p.47). Essa contribuição vem de um sentimento de facilitar o trabalho
que eram obrigados a fazer por quase
15 horas por dia. Uma resistência planejada, mas a enxada, por exemplo, quan-
do vira uma arma para matar os senhores que atormentam os escravizados en-
quanto trabalham essa resistência é espontânea - ou seja, um objeto/imagem po-
dem denotar os dois tipos de resistência dependendo do contexto inserido.
Para comunicar. A consciência política das pessoas negras era notória, pelo me-
nos nos últimos cem anos do período escravocrata. Um ótimo exemplo disso é
utilização por parte de alguns negros brasileiros do broche de Jean-Jacques Dessa-
lines, um dos precursores da revolução haitiana. Essa consciência aumentou com
o surgimento da Imprensa Negra, onde foi utilizado do jornal - um meio de comu-
nicação predominante e que se tratava de um artefato - para dar voz às reivindica-
ções políticas da comunidade negra.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar de se ter concluído que toda a cultura material pela comunidade negra
vai se tornar uma resistência dentro do período escravocrata, é necessário elencar
símbolos. O levantamento da produção desses símbolos, por ser o primeiro que faz
isso, é importante para outras pesquisa como: a reformulação imagética e peda-
gógica de livros didáticos que contam a história da escravidão, onde os artefatos
trazidos são apenas os de tortura e a possível contribuição negra para a Revolução
Industrial. Além do fato que precisa-se de símbolos brasileiros de lutas por igual-

748 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
dade racial, ao invés de reproduzir símbolos que não foram criados em contexto
nacional - como a pantera negra dos Black Panther.

REFERÊNCIAS

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247. In: Anais do Fourth International Forum of Design as a Process. Barbacena: Editora
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joias brasileiro. São Paulo, 2009.

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IBARRA, Maria Cristina; RIBEIRO, A.C Rita. O design e a valorização do vernacular ou de


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mento em design, 2014. Disponível em:<http://www.ufrgs.br/ped2014/trabalhos/traba-
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JÚNIOR, Henrique Cunha.Tecnologia e fazer artístico do tempo do escravismo. Arte, de-


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Nimba, a deusa da fertilidade: estátua de arte secular produzida por afrodescendentes no


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REIS, João José. A Revolta dos Malês em 1835. Disponível em: <http://smec.salvador.ba.
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RODRIGUES, Cláudia. Morte e rituais fúnebres. Dicionário da Escravidão e Liberdade. São


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SILVA Jr., Carlos da. Ardras, minas e jejes, ou escravos de “primeira reputação”: políticas
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XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 749


Artes, memória e espaços
WALKER, Sheila; MELLO, Katia. Precisamos repensar a escravidão, porque o que aprende-
mos nos livros são mentiras. Disponível em: <https://www.geledes.org.br/precisamos-re-
pensar-a-escravidao-porque-o-que-aprendemos-nos- livros-sao-mentiras/>. Acesso em:
27 mai 2019.

750 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
06 DE FEVEREIRO – 326 ANOS DE LUTA E
RESISTÊNCIA DA POPULAÇÃO NEGRA:
REVERENCIANDO PALMARES

Cláudia Cristina Rezende Puentes


Igor Luiz Rodrigues da Silva

INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo avaliar o processo da vigília na Serra da
Barriga, a partir de nossa observação durante o dia 06 de Fevereiro, nos anos de
2017, 2018 e 2019, considerando algumas questões que nos inquietaram sobre-
maneira, dentre elas, o fato gerador da atividade, que começa a despontar como
um movimento de vigília, aos moldes do que acontece com santos da igreja católi-
ca. Honra e Reverência aos antepassados – Vigília ao extermínio do Quilombo dos
Palmares é um evento cultural que remete os participantes a uma imersão in loco,
vivenciando os passos históricos dos antepassados que constituíram o mocambo
dos Macacos.
Mencionaremos alguns aspectos históricos que temos estudado buscando elu-
cidar a criação, a perpetuação e a extinção daquele que foi o maior quilombo das
Américas. Iniciamos nosso estudo a partir da pesquisa bibliográfica acerca das et-
nias que aportaram no nordeste, onde encontramos vários fatos sobre o fluxo e
refluxo do escravismo negro em Alagoas.
Passamos para a pesquisa de campo a fim de mostrar como os fatos passados
ainda estão presentes em nossa sociedade e como são tratadas as questões relati-
vas à religiosidade em nosso estado, avaliando e trazendo para a academia aspec-
tos que estão, ainda, submersos no universo da militância política. A derrubada do
maior quilombo das Américas, para além do patrimônio material, contribuições
para minimizar os conflitos existentes no estado que avança no genocídio negro.

OBJETIVO DA PESQUISA
Avaliar o processo da vigília na Serra da Barriga, a partir de nossa observação
durante o dia 06 de Fevereiro, nos anos de 2017, 2018 e 2019, considerando algu-
mas questões que nos inquietaram sobremaneira, dentre elas, o fato gerador da
atividade, que começa a despontar como um movimento de vigília, aos moldes do
que acontece com santos da igreja católica. Honra e Reverência aos antepassados
– Vigília ao extermínio do Quilombo dos Palmares é um movimento cultural que
remete os participantes à uma imersão in loco, vivenciando os passos históricos
dos antepassados que constituíram o mocambo dos Macacos.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 751


Artes, memória e espaços
Mencionaremos alguns aspectos históricos que temos estudado buscando elu-
cidar a criação, a perpetuação e a extinção daquele que foi o maior quilombo das
Américas. Iniciamos nosso estudo a partir da pesquisa bibliográfica acerca das et-
nias que aportaram no nordeste, onde encontramos vários fatos sobre o fluxo e
refluxo do escravismo negro em Alagoas.
Passamos para a pesquisa de campo a fim de mostrar como os fatos passados
ainda estão presentes em nossa sociedade e como são tratadas as questões relati-
vas à religiosidade em nosso estado, avaliando e trazendo para a academia aspec-
tos que estão, ainda, submersos no universo da militância política. A derrubada do
maior quilombo das Américas, para além do patrimônio material, contribuições
para minimizar os conflitos existentes no estado que avança no genocídio negro.

LOCALIZAÇÃO DO QUILOMBO DOS PALMARES


O principal mocambo do Quilombo dos Palmares, ou Quilombo do Macaco, ou
Cerca Real dos Macacos ou ainda Cidade Real dos Macacos, capital da República de
Palmares foi localizado no cume da Serra da Barriga, junto ao conjunto de matas
atlânticas próximas ao litoral do nordeste brasileiro, na conformação da Serra da
Borborema, sendo uma parte da serra no atual município de União dos Palmares,
no Estado de Alagoas. Ocupando uma área de aproximadamente 27,92 km², dis-
tanciada da Capital do Estado de Alagoas – Maceió, por 73Km e de Recife – Capital
do Estado Pernambuco por 237 Km, o complexo geográfico, onde se localiza o Par-
que Memorial Quilombo dos Palmares, sede do Mocambo dos Macacos foi palco
de lutas que marcaram a resistência do povo negro escravizado no nordeste. Trata-
-se de um platô com elevada altimetria territorial, chegando a 485 metros de altitu-
de, com lados íngremes e escarpados. Compreende paisagem natural e edificada,
observando-se ainda grande quantidade de palmeiras que segundo historiadores,
deram origem ao nome Palmares. Além da vegetação e dos recursos naturais pre-
dominantes à paisagem da Serra, principalmente recursos hídricos compostos de
nascentes que alimentam um açude e uma lagoa.
A Serra da Barriga – parte mais alcantilada, foi acautelada no ano de 1986 pela
legislação Federal de tombamento – Decreto-Lei 25 de 1937 que organiza a prote-
ção do patrimônio cultural brasileiro: Natureza da obra: Conjunto Histórico – Pai-
sagístico Nacional com inscrição no Livro do Tombo Histórico: Processo nº 1069 – T
82, às folhas de número 91 a 92, sob a inscrição de número 501 em 31/01/1986 e
Inscrição no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico: Processo nº
1069 – T 82, às folhas de número 42, sob a inscrição de número 90 em 31/01/1986.
O bem em questão pertencente ao Governo Federal, após processo de desapropria-
ção, com posse repassada pela Secretaria de Patrimônio da União, em 07/04/1998
para a Fundação Cultural Palmares, através de Certidão nº 047/98, com o objetivo
de gerir ações para a sua manutenção e preservação.

752 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
A partir de então, foi elaborado um projeto de parceria entre o IPHAN e a Fun-
dação Cultural Palmares para a materialização de um espaço que possibilitasse
um maior processo de pertencimento da sociedade, promovendo a valorização
histórica e simbólica da Serra da Barriga. A Serra é composta por casas simples,
ocupadas por moradores remanescentes do período anterior à desapropriação da
área pela União, quando as terras pertenciam a particulares, além das estruturas
cenográficas do “Parque Memorial Quilombo dos Palmares - PMQP”, inaugurado
em 2007 com o intuito de promover os valores históricos e simbólicos do lugar.
As edificações do PMQP buscaram, com liberdade poética contemporânea, através
de relatos históricos ou referenciados por arquiteturas africanas, reproduzir uma
tipologia construtiva que poderia por equipamentos expográficos representar as-
pectos construtivos do “Quilombo dos Palmares”, com paredes de taipa, cobertura
em palha e piso de terra batida, além da implantação de ocas indígenas, reforçan-
do os referenciais multiculturais de Palmares, como a ancestralidade de ocupação
territorial pelos povos indígenas.

ASPECTOS DA CONSTITUIÇÃO DE PALMARES


Nos quilombos que compunham Palmares, a base de construção era formada
por escravos fugidos tanto da zona rural, a exemplo da congolesa Aqualtune que
fugiu da região de Porto Calvo em Alagoas, quanto da zona urbana e constituíram
formações sociais complexas, como em teias que acabaram se interseccionando. O
sistema organizacional dos quilombos estava fundamentado na hierarquia e exerci-
tava dentro da mesma relações externas, até com a mesma sociedade escravista da
qual os escravos haviam fugido. De acordo com Clóvis Moura, mesmo tendo supri-
mido parcialmente as diferenças étnicas ante à antinomia do senhorio de escravos,
as identidades étnicas formaram a base da hierarquia e as relações de força dentro
dos quilombos. (MOURA, 2014).
Palmares enquanto república, mantinha nos séculos XVI e XVII, suas fronteiras
em relações diretas com os núcleos urbanos, possibilitando o comércio, através
do qual escoava sua produção agrícola, artefatos de uso cotidiano e vários conhe-
cimentos em técnicas agrícolas, olarias, manejos das ervas medicinais. As relações
eram mantidas entre escravos, sesmeiros e até mesmo com as autoridades colo-
niais.
Eram núcleos que acabavam formando um estado paralelo, pois a República
Palmarina compreendia terras entre o sul, norte e interiores da Capitania de Per-
nambuco como Itamaracá, Igaraçú, Olinda, Porto Calvo, Santa Maria Madalena do
Sul (atual Marechal Deodoro), Penedo, Laranjeiras e São Cristóvão em Sergipe. Es-
tes quilombos obtiveram destaque e mesmo com as invasão holandesa em 1630, a
população palmarina transformou-se em, “um verdadeiro estado negro no Brasil”
em pleno século XVII (LARA, 2010). A República de Palmares cresceu de tal modo,
que se tornou um centro de desejo para todos os negros e negras que não se sub-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 753


Artes, memória e espaços
metiam à escravidão, tornando-se importante referencial de liberdade e autono-
mia para os africanos escravizados, em contraponto crescia o incômodo para a
administração colonial.
A Cerca Real dos Macacos foi reduto para negros e negras formarem os quilom-
bos, sendo Palmares o de maior simbolismo para a luta dos oprimidos, a maior par-
te deles vindos de Angola e do Congo, que obtinham larga experiência em batalhas
e, trouxeram seus costumes e organização que possibilitou aos fugitivos resistirem
por mais de 64 anos. Os negros fugitivos tinham organização econômica, domina-
vam a agricultura, o gado e tinham domínio da metalurgia.
As lideranças palmarinas constituíam-se em larga escala e cada negro fugido
das fazendas, a exemplo de Aqualtune, princesa congolesa que, em 1665 liderou
mais de 10 mil homens na Batalha de Mbwila, na qual saiu derrotada e tece seu pai
morto e decapitado, sendo presa e vendida como escreva para Gana e, na sequen-
cia enviada para Recife como escrava reprodutora. Foi torturada e, rebelou-se,
aproximadamente em meados de 1666 destruiu a casa grande e fugiu para Palma-
res. Os registros contam que, mais de 200 homens e mulheres foram para Palma-
res sob o comando de Aqualtune, instalando-se na área hoje compreendida como
Porto Calvo, a princesa congolesa constituiu o Quilombo Aqualtune, no complexo
da Cerca Real dos Macacos, ainda existiam os Quilombos de Amaro, Quilombo de
Dambaranga e de Tabocas.

DAS LUTAS E QUEDA DO QUILOMBO


A República dos Palmares teve ao longo de sua existência algumas lideranças
mas, a mais longa e emblemática foi a de Zumbi dos Palmares que sucedeu Ganga
Zumba, que por motivos de interesse político queria aceitar as condições impostas
pela colônia e foi derrubado por todos os que não queriam ceder aos desmandos
da coroa portuguesa. Desgastados com as diversas investidas em forma de entra-
das que, estavam diretamente ligadas à economia, pois como já foi dito anterior-
mente, as terras ocupadas pela República dos Palmares era a mais rica e produtiva
da capitania.
Como relata Edison Carneiro, o motivo das entradas parece estar mais na con-
quista de novas terras do que mesmo na recaptura de escravos e na redução dos
quilombos.

Era voz corrente que as terras dos Palmares eram as melhores de


toda a capitania de Pernambuco – e a guerra de palavras pela
sua posse só não foi menor, nem mais suave do que a guerra con-
tra o Zumbi. O quilombo do rio das Mortes ficava exatamente no
caminho dos abastecimentos para as lavras de Minas Gerais, o
que pode dar uma ideia do valor das suas terras e da riqueza
econômica que representavam, e é nessa circunstância que se
encontra a razão da crueldade de Bartolomeu Bueno do Prado,

754 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
que de volta a Vila Rica trouxe 3900 pares de orelhas de quilom-
bolas. (CARNEIRO, 1947)

A população total chegou a 30.000 pessoas, agrupadas em povoados, em torno


de cada um deles existia uma área de agricultura e pecuária onde todos trabalha-
vam com suor e amor mas, muitas lutas foram travadas para a manutenção dessa
República Palmarina. A primeira investida feita pelos holandeses ocorreu em 1644,
comandada por Rodolfo Baro, mas a chamada “Expedição Baro” foi logo percebida
por sentinelas palmarinos que, soaram o alarme e bloquearam a passagem dos ho-
landeses com árvores cortadas, atirando flechas em direção à expedição que partiu
em retirada ante à iminente derrota. A segunda ocorreu em 1645, novamente co-
mandada por um holandês, João Blaer, ficou conhecida como a “Guerra do Mato”,
pois a tática utilizada pelos palmarinos foi a de recuar quando eles atacavam e
quando os holandeses paravam para descansar, os palmarinos atacavam com sa-
ques relâmpagos. Esta tática de guerrilha durou aproximadamente três meses e,
apesar de ter apenas um pequeno grupo destruído, os holandeses estavam muito
desgastados e Blaer resolveu desistir.
Mais tarde, em 1667 foi organizada uma grande expedição para exterminar Pal-
mares, sob o comando de Zenóbio Accioly de Vasconcelos, financiada pelo governo
de Pernambuco que começava a sentir os reflexos da crise açucareira em decorrên-
cia das trocas comerciais entre Palmares e as vilas em seus arredores. A República
teve sua primeira derrota, com a destruição do Mocambo de Aqualtune, a princesa
congolesa foi dada como morta mas, reapareceu em Palmares. A liderança do qui-
lombo, Ganga Zumba foi até Recife para tentar um acordo com o então governador
Aires de Sousa e Castro, a proposta do governo foi a de que os negros teriam direito
a uma área para viver livremente e continuariam a plantar e comercializar com
os brancos mas, deveriam desfazer-se de todo o equipamento militar que possuí-
am. Mas esse acordo não agradava a maioria dos negros. Enquanto isso, Zumbi dos
Palmares investia em libertar mais negros escravos e foi aclamado o novo líder da
República.
Em 1692 os pernambucanos contrataram o paulista Domingos Jorge Velho, que
tinha um histórico de massacre e submissão de grupos étnicos inferiorizados pelo
colonialismo, suas tropas eram compostas majoritariamente por indígenas. Ele fa-
zia o “sertanismo de contrato”, juntava seus capangas para lutar pela causa de ou-
tros sob preço determinado previamente. Com cerca de 800 indios e 200 brancos,
dentre estes moradores alagoanos, Domingos Jorge Velho investiu contra o qui-
lombo em dezembro do mesmo ano mas, não obteve sucesso.
Com o reforço recebido em janeiro de 1694, Jorge Velho e seus homens avan-
çaram contra Palmares, 22 dias consecutivos os palmarinos lutaram até o dia 06
de fevereiro, quando o forte armamento das tropas matou mais de 400 homens
e aprisionou muitos, selando a derrubada do Mocambo do Macaco, dizimando o
Quilombo dos Palmares. No dia 06 de fevereiro de 1694 podia ser avistado de longe
o céu avermelhado do fogo que queimava o Mocambo do Macaco, enquanto o san-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 755


Artes, memória e espaços
gue escorria pela terra, como forma de simbolizar, por porte do governo a extinção
da confederação dos rebelados. Mas eles não foram extintos apesar de muitos
terem morrido e sido capturados de forma violenta, a resistência estava dissolvida
mas não extinta pois, o líder Zumbi e outros negros conseguiram fugir pela região
das serras. Zumbi, o último líder de Palmares, sobreviveu à queda de Macaco, mas
foi emboscado e assassinado em 20 de novembro de 1695.

HONRA E REVERÊNCIA – A VIGÍLIA


Em artigo publicado há alguns anos, sobre os caminhos de Santiago de Compos-
tela no Brasil, foi apresentado um retrato interessante sobre a multiplicação das
peregrinações no Brasil. Estes caminhos percorridos são treinamentos para poste-
rior realização fora do Brasil. São rotas recentemente inventadas, ressignificadas e
motivados pelas narrativas da Nova Era sob o suporte dos mercado turísticos como
a instalação de polos de atração que atraem visitantes, e também com o suporte do
Estado através de ações que promovem infraestrutura e logística das áreas.
Todavia, existem viajantes turistas e peregrinos que podem investir em cami-
nhos que não são necessariamente os caminhos religiosos ou turísticos, embora,
estes aspectos possam se embaralhar entre os demais. E, de certo modo, há, ainda,
um outro elemento motivador que é o aspecto político-militante como fazem os
muçulmanos em suas idas à Meca, ou os judeus e cristãos (católicos e evangélicos)
à Jerusalém.
Sabe-se, contudo, que, os indivíduos que se submetem a esses deslocamentos
voluntários atravessam experiências novas a partir das paisagens, da mobilidade,
do local e das associações ao supralocal que são realizadas durante o percorrer da
caminhada. Mas, sobretudo, rompem suas rotinas para emergirem em atividades
laborais que os fazem viver contextos e ambientes comunicativos diversos daque-
les a que ordinariamente estão submetidos.
Captamos que os significados motivadores e, que atribuem relevância ao pe-
regrinar sejam múltiplos e estes se entrelaçam, e se interpenetram de acordo com
o passar do tempo e com o grau de amadurecimento da própria experiência. A
peregrinação que acompanhamos, é uma celebração marcada pela subida ao platô
da Serra da Barrica, localidade histórica do extinto quartel general da República de
Palmares, se encaixa perfeitamente neste conjunto de vinhetas, sendo ela própria
uma alusão sintética àquelas atividades mentais e corporais imanentes em uma
peregrinação.
Especificamente honra e reverência aos guerreiros Quilombolas, é fruto de ini-
ciativa local, mas precisamente de decisões de Mãe Neide, que, em persistência e
resistência à pressões, há anos luta pela importância deste evento. Potencializando
como ela mesma diz a necessidade de lembrarmos da resistência ancestral, a der-
rota quilombola tem que estar na memória de todos e precisamos observar o dia
de luto anualmente para ter forças para lutar diariamente.

756 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
E é no fluxo da subida da Serra, marcada por um roteiro repleto de paradas e
celebrações, articuladas em vários pontos diferentes, que remetem às marcantes
situações no território Palmarino e, a específicas vivências naquela comunidade, é
neste caminhar que se reitera a experiência pessoal naquela celebração coletiva.
Articulada à movimentação, a ação e a percepção do ambiente, aquele que faz
parte da subida, o peregrino, se vê diante da lembrança da resistência e do luto da
derrota genocida de Palmares. A percepção dos participantes que entrevistamos
conduz a emoção e à elevação da força individual e responsabilidade coletiva.
Embora não possua um santuário, relíquias ou um santo a se reverenciar, esta
subida ao topo da Serra da Barriga é uma travessia no tempo histórico, travessia
pelos marcos de um saber etéreo e imaterial que lá fora instalado como algo sagra-
do que é o próprio dia 6 de Fevereiro, no qual se celebra o dia do massacre.

Neste contexto, entendemos que, cada vez mais a perspectiva da transmissão


e da aprendizagem de uma determinada experiência nos salta como crucial, há,
por isso mesmo, que se destacar um viés de pedagogia política nas experiências
da peregrinação palmarina. Este aspecto requer a importante valorização da con-
dição de se produzir a presença humana, bem como, a aquisição de noções espe-
cificamente concernentes com o crescente estado de consciência da busca de uma
maior humanidade e espiritualidade por intermédio da caminhada que a peregrina-
ção exige. Adicionalmente, constatamos a permanência de outras experiências
que transformam a caminhada e o peregrinar em ato iniciático com a consolida-
ção, no mundo pessoal e interior do peregrino, daquela sombra de experiência
apresentada como disponível pela vivência corporal daquele espaço que se tra-
duz no trauma vivido pelos ancestral e perpetuado pela comunidade. Há, ainda, a
consolidação da resistência da ancestralidade e sua consequente inspiração para a
atualidade onde negros e negras são massacrados no estado que tem um dos pio-
res índices de mortalidade da população negra no país. Ratificados por uma ne-
cropolítica, onde alagoanos e alagoanas lutam cotidianamente contra os diversos
tipos de racismo, o que se espera é um modus vivendi que permita a inclusão no
dia-a-dia da reflexão sobre a dor, o sofrimento e humilhação daqueles que são
reverenciados, tomando-os como exemplo de garra e enfrentamento.
Evidenciamos neste caminhar um exercício corporal e até mesmo sacrificial no
qual os significados dos mesmos são entendidos como lugar explicativo, campo
semântico nos quais os corpos em movimento realizam a sensação e a reflexão
que se transformam em experiências. Sem que a possibilidade de explicação da
experiência, no sentido causa e efeito, ou, dito de outra maneira, a perspectiva da
corporeidade instala um ponto de vista que reforça a experiência corporal como a
base existencial da cultura e do ‘EU’ da pessoa que com aquela pratica se consti-
tuindo (CSORDAS, 1994).

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 757


Artes, memória e espaços
FIGURA 1: CAPOEIRISTAS NO ESPAÇO NAVIZALA,
PONTO DE PARADA PARA REVERÊNCIAS - 2020

FIGURA 2: RELIGIOSOS/AS E PEREGRINOS SUBINDO A SERRA - 2019

Fonte: Acervo Igor Luiz Rodrigues da Silva.


CONSIDERAÇÕES FINAIS
O dia 06 de fevereiro não é só a data da derrubada do Quilombo, para a Yalorixá
Mãe Neide Oyá D’Oxum, o dia representa a resistência de anos dos irmãos e irmãs
que sofreram e, ainda assim resistiram, criaram uma república, constituíram uma
economia sustentável e atravessaram muitas dificuldades. O sentimento da reli-
giosa está emanado nos demais presentes, com os quais tivemos oportunidade de
partilhar momentos ímpares, honra e reverência - luta e resistência – sentimentos
e ações históricas e cotidianas.
Acreditamos, desde a nossa participação em 2017 que, a representação da vigí-
lia está enraizada na contemporaneidade exemplificando aos negros e negras que,
apesar das dificuldades, lutar é necessário e possível. A nossa ancestralidade que
veio escravizada conseguiu lutar anos a fio, até a morte, lembrando que segundo
relatos, muitos se atiraram do alto da Serra da Barriga para não se render aos co-
lonizadores. Os descendentes, nós que reclamamos e abaixamos nossas cabeças
ante às mazelas sociais que nos assolam, podemos e devemos nos aquilombar,
ocupando espaços públicos e privados, mostrando a força que corre em nossas
veias.
Percebemos que os jogos de poderes como velhas práticas políticas ainda per-
manecem fortes em Alagoas, não há como negar que a derrubada do quilombo, as-
sim como o Quebra dos Xangôs em 1912, têm a mesma base. A segregação da po-
pulação afro-brasileira permanece como no século XV, a economia está nas mãos
de um pequeno grupo, contudo o movimento negro continua crescendo e firme,
assim como a conquista da Serra da Barriga como Patrimônio, outros avanços fo-
ram conquistados. Mas a luta é árdua e cotidiana.
Consideramos que além da preservação da Serra da Barriga, como bem material,
os saberes e fazeres que a compõem, os bens imateriais, vêm ganhando uma di-
mensão de respeitabilidade às custas da movimentação e articulação da sociedade.
Precisamos elevar a nossa cultura, mesmo com momentos que não são festivos,
como esse que fizemos parte, pois a complexidade da nossa existência está em
mantermos acesa a chama do conhecimento sem, perder a raiz que nos mantem
de pé e na eterna observância e militância.

REFERÊNCIAS

CARNEIRO, Edison. O Quilombo dos Palmares. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1947.

CSORDAS, Thomas. Introduction: the body as representation and being-in-the-world. In:


T. Csordas (ed.). Embodiment and Experience: the existential ground of culture and self.
Cambridge: Cambridge University Press, 1994.

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Artes, memória e espaços
CSORDAS, Thomas. (1996), "Religion in Postmodern condition". In: Language, Charisma
and Creativity. Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 1996.

LARA, Silvia Hunold, Com fé, lei e rei: um sobado africano em Pernambuco no século XVII,
In: GOMES, Flávio (org.). Mocambos de Palmares: histórias e fontes (séc. XVI – XIX). Rio de
Janeiro, 2010.

MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala. São Paulo: Anita Garibaldi, 2014.

IPHAN. Serra da barriga, Parte mais Alcantilada – Quilombo dos Palmares. Dossiê patrimô-
nio Cultural do MERCOSUL

SODRÉ, M. Claros e Escuros: identidade, povo e mídia no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1999.

AUTORIA
Cláudia Cristina Rezende Puentes
Mestranda em Antropologia Social pela Universidade Federal de Alagoas
E-mail: claupuentesmestrado@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br//8689587204964699

Igor Luiz Rodrigues da Silva


Doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina
E-mail: igorluizcso@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br//4021704672489422

760 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
SOCIABILIDADES NEGRAS: EM MEIO ÀS
SOCIEDADES OPERÁRIAS DE CURITIBA

Fernanda Lucas Santiago

INTRODUÇÃO
Este artigo está inserido no campo do pós-abolição e busca investigar a rede de
relações estabelecidas entre a Sociedade Operária Beneficente 13 de Maio (S.O.B.
13 de Maio) com outras associações negras, sociedades operárias e associações
femininas da cidade de Curitiba, região sul do Brasil e outras regiões do país na dé-
cada de 1940, com o intuito de verificar se havia segregação racial e se sim, como
ela se manifestava?
Durante a década de 1940 a S.O.B. 13 de Maio estabeleceu relações com mais
de 20 associações, dos mais variados segmentos: de caráter racial, beneficente,
operário, recreativo, literário, esportivo, feminino e caritativo. Centrarei o foco da
análise entre as associações negras, sociedades operárias e associações femininas
mais citadas no livro de atas de reunião.

ENTRE NEGROS: AS INTERAÇÕES DA S.O.B. 13 DE MAIO COM


OUTRAS ASSOCIAÇÕES NEGRAS
Nesse item do artigo buscarei investigar a interação da Sociedade Operária Be-
neficente 13 de Maio com outros clubes sociais negros da cidade e de outras loca-
lidades. É comum encontrar em pesquisas sobre clubes sociais negros da região sul
do Brasil um contexto de segregação racial1, por conta desse paradigma, procuro
investigar se os sócios da S.O.B. 13 de Maio vivenciaram essa segregação racial?
Se vivenciaram, com quais associações estabeleceram parceria? Além da S.O.B. 13
de Maio havia outros clubes sociais negros e associações negras em Curitiba na
década de 1940?
A S.O.B. 13 de Maio fundou-se em 06 de junho de 1888 e ao longo de sua his-
tória estabeleceu parcerias com diversas associações, as chamadas Sociedade Co-
-irmãs por seus diretores. Através do livro ata de reuniões é possível observar que
na década de 1940 a S.O.B. 13 de Maio estabeleceu relações com outras duas as-
sociações negras:

1 MARIA, 2013; SILVA, 2003; SILVA, 2014.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 761


Artes, memória e espaços
TABELA 1: ASSOCIAÇÕES NEGRAS COM QUEM
A S.O.B. 13 DE MAIO ESTABELECEU RELAÇÕES NA DÉCADA DE 1940

ASSOCIAÇÕES NEGRAS FUNDAÇÃO CIDADE

1- Clube Literário Recreativo


13/05/1889 Ponta Grossa
13 de Maio

2- União dos Homens de Cor 03/01/1943 Porto Alegre

Fonte: produzida pela a autora, 2020.

Essas duas associações além de terem uma identidade racial negra também
buscavam agregar pessoas de uma mesma classe social. Os sócios do Clube Lite-
rário Recreativo 13 de Maio se identificavam como operários negros2, que tinham
um compromisso com a questão da instrução, alfabetização, o gosto pela leitura
e escrita e por isso fizeram questão de manter em seu nome o adjetivo Literário,
assim como o adjetivo Recreativo, para que as famílias negras de Ponta Grossa e
região pudessem buscar essa Sociedade sabendo previamente os centros de in-
teresses dos associados. Já a União dos Homens de Cor era formada por negros
de classe média e operários. Além dessas duas associações negras a S.O.B. 13 de
Maio abrigou algumas agremiações femininas negras em sua sede e estabeleceu
parcerias com a Sociedade Operária Beneficente 28 de Setembro (S.O.B. 28 de Se-
tembro), Sociedade composta majoritariamente por mulheres negras, assunto que
trataremos adiante.
Tanto o Clube Literário Recreativo 13 de Maio, como a União dos Homens de
Cor são referidos apenas uma vez pela diretoria da S.O.B. 13 de Maio, em ambas
ocasiões a data 13 de maio, dia da Sessão Magna foi pensada como um momento
de convergência e propício para articular o encontro entre as diretorias dessas
associações. No caso do Clube Literário Recreativo 13 de Maio a tentativa de apro-
ximação ocorreu na iminência da Sessão Magna de 1941:

Expediente – constou da leitura de um officio, enunciado pelo


Club Recreativo de Ponta Grossa, communicando a eleição da
sua nova directoria, e ao mesmo tempo convida a esta Socieda-
de para se fazer representar no proximo dia 13 de Maio as 21
horas por occasião da posse de directoria, e a inauguração do
retrato da sua Ex. Snr. Getulio Vargas. Posto em discuzão e apro-
vação esta parte, ficou resolvido que em vista da imposibilidade
de ir um director aquella cidade, por quanto sendo também o
dia da posse da nova directoria desta Sociedade, que se passava
um telegramma aquella entidade, agradecendo o convite; e ao
mesmo tempo felicitando os novos directores.”3

2 BAN, 2018.
3 Mantive a grafia utilizada pelos sócios na documentação da Sociedade. Livro de atas da

762 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
Nesse mesmo ano segundo Joselina da Silva (2003, p. 219) a Associação José do
Patrocínio de São Paulo encaminho ao Presidente Vargas um pedido para proibir
anúncios discriminatórios contra os negros. Além de ser o presidente, Getúlio Var-
gas mobilizava uma política de conciliação racial e de classes que poderia sugerir
para esses grupos que o líder da nação preocupava-se com o impacto do racismo
sobre a população negra, por isso seria de bom tom prestar-lhe homenagens du-
rante a Sessão Magna.
No Estatuto da S.O.B. 13 de Maio de 1896 estava expresso a vontade de pro-
mover “a união dos descendentes da raça Africana, residentes nesta Capital e rela-
cional-os com os seus companheiros residentes em outras localidade do Estado”4.
Já no estatuto de 1929 foi retirado do texto menção a descendência africana e a
vontade de reuni-la.
Quando a liderança nacional da União dos Homens de Cor (U.H.C.) tentou uma
aproximação com a diretoria da S.O.B. 13 de Maio, esse contato, pode ter sido
percebido como uma possibilidade de restaurar aquele objetivo inicial de união
racial. Assim como, significava a ampliação da rede da U.H.C. e o cumprimento de
mais uma etapa para alcançar o objetivo final de reunir “todas as pessoas de cor
do Brasil”. Até 1946 a U.H.C. estava instalada em 14 Estados do Brasil e ainda não
havia uma organização no Paraná, por esse motivo o Chefe Nacional João Cabral de
Alves convocou os paranaenses a filiarem-se para que o programa beneficente
da U.H.C. se estendesse também por este Estado.5
A U.H.C. entendia-se como uma Sociedade Beneficente, cujo objetivo principal
era reunir “todas as pessoas de cor do Brasil”, oferecer auxílio material, assistência
médica, odontológica, asilo para os velhos e necessitados, construção de casas. E
ainda mostrava-se comprometida com a “elevação de nível cultural da raça pre-
ta”, a U.H.C. pretendia investir na elevação do nível de instrução de seus filiados,
para que os mesmos conseguissem inserção nos espaços de poder. Esse objetivo
é evidenciado no artigo 1º do estatuto da UHC “para torná-las aptas a ingressarem
na vida social e administrativa do País, em todos os setores de suas atividades.6
Tanto a S.O.B. 13 de Maio, quanto a U.H.C. procuravam mostrar estarem abertas
a acolherem um amplo segmento social, evitavam posicionar-se como só para ne-
gros apesar dos nomes “13 de Maio”7 e “homens de cor” explicitarem realmente a
quem pretendiam acolher. “Os diversos documentos e estatutos diziam estar aber-
tos a “negros, brancos e pardos”, ressaltando o espírito “humano, democrático e

S.O.B. 13 de Maio, 11/05/1941, fl. 16-17.


4 A República, 26/08/1896, fl. 2.
5 Diário do Paraná, 08/11/1946, fl.8.
6 União 27/03/1948, fl. 3.
7 Segundo Jesus (2018) ser chamado de “13 de maio”, poderia ser um xingamento, uma
forma de ridicularizar um liberto, um ex-cativo “uma pessoa de cor”, alguém com uma “cidadania de
segunda classe”, que foi integrado a sociedade brasileira tardiamente.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 763


Artes, memória e espaços
universalista” das organizações negras que procuravam evitar represálias diante de
suas demandas reivindicativas em favor dos negros nacionais.8
O programa de benefícios da U.H.C. contemplava áreas que a S.O.B. 13 de Maio
não se propunha, como auxílio odontológico e construção de casas para seus asso-
ciados. A S.O.B. 13 de Maio ofertava o auxílio saúde, auxílio velório, pensão para os
herdeiros (viúvas e filhos) e creche, além das atividades de lazer. Filiar-se a U.H.C.
colocava os filiados em uma rede de apoio entre “homens de cor” em dimensão
nacional e possibilitava o acesso aos benefícios supracitados. A mensalidade de um
cruzeiro só começariam a ser cobrada após haver um núcleo estadual organizado.
A organização também aceitava donativos espontâneos de quem estivesse em me-
lhores condições, sendo contemplado com diploma de “benfeitor dos Homens de
cor” aqueles que fizessem “donativos apreciáveis”.9 Na época a mensalidade da
S.O.B. 13 de Maio era de dois cruzeiros e os diretores consideravam reprovável a
ideia de realizar lista de arrecadação entre membros externos, por acreditar que
isso poderia gerar uma má reputação de relacionar a S.O.B. 13 de Maio a uma
instituição de caridade.
Durante a década de 1940 pelo menos dois sócios da S.O.B. 13 de Maio também
fizeram parte da U.H.C. Mário Moreira de Freitas era sócio da S.O.B. 13 de Maio, da
Sociedade Operária 27 de Janeiro, da Sociedade dos Trabalhadores na Herva Matte
e da União dos Homens de Cor, por sua liderança junto às Sociedades Operárias foi
indicado a presidência do núcleo estadual da U.H.C. embora, não tenha aceito o
cargo continuou fazendo parte da organização, inclusive discursou em nome dela
na Sessão Magna de 1948 na sede da S.O.B. 13 de Maio. João Tavares Santana
exercia o cargo de 2º orador da S.O.B. 13 de Maio e fazia parte da diretoria da Fe-
deração das Sociedades Operárias do Paraná, além de estar filiado a U.H.C.
Assim como a S.O.B. 13 de Maio e outros clubes sociais negros, aproveitavam
a data 13 de Maio para realizar a Sessão Magna composta pela comemoração da
abolição, aniversário da Sociedade, posse da nova diretoria e baile, a U.H.C. tam-
bém organizava nessa data sua Convenção Nacional, onde era comemorado a abo-
lição e empossada a nova diretoria nacional e as estaduais. Na Sessão Magna de
1948 a S.O.B. 13 de Maio recebeu o presidente nacional da UHC:

Pede a palavra o snr. João Cabral Alves, Presidente Nacional dos


Homens de Cor do Brazil, que proferiu uma bella oração, descre-
vendo de um modo elogiavel a data de 13 de Maio e a Princeza
Izabel, com relação a escravidão, o orador ao terminar foi bas-
tante aplaudido pela assistencia.10

8 SILVA, 2003, p. 223-224.


9 União 27/03/1948, fl. 3.
10 Livro ata de reunião S.OB. 13 de Maio, 13/05/1948, fl. 119.

764 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
Em 1948 o Paraná constava entre os Estados brasileiros que possuía uma célula
da U.H.C., entre eles: MG, SC, CE, MA BA, RS, PR, PI, ES, SP.11 Naquele mesmo ano a
União tinha representantes em mais de 20 municípios do Estado do Paraná.12

ASSOCIAÇÕES FEMININAS NEGRAS


As associações de mulheres negras eram o segmento social com quem a dire-
toria da S.O.B. 13 de Maio estabeleceu relações mais constantes. Em outros traba-
lhos analisei também os Grêmios das Camélias e o Grêmio 13 de Maio que eram fi-
liados a S.O.B. 13 de Maio e funcionaram num período anterior a década de 1940.13

TABELA 2: ASSOCIAÇÕES FEMININAS NEGRAS


RELACIONADAS COM A S.O.B. 13 DE MAIO NA DÉCADA DE 1940

NÚMERO DE VEZES
ASSOCIAÇÕES
QUE FOI CITADA
FEMININAS FUNDAÇÃO FILIAÇÃO
NO LIVRO ATA NO
NEGRAS
PERÍODO

1- S.O.B. 28 de
22/09/1895 5 vezes independente14
Setembro

2- Grêmio Flor de
17/11/1922 12 vezes S.O.B. 13 de Maio
Maio

3- Grêmio Princesa
12/02/1924 5 vezes S.O.B. 13 de Maio
Isabel

Fonte: produzida pela a autora, 2020

Dessa três associações femininas acima a Sociedade Operária Beneficente 28


de Setembro era a única independente, ou seja, ela tinha estatuto e diretoria pró-
pria, as demais estavam filiadas a S.O.B. 13 de Maio, apesar das sócias formarem
sua própria diretoria necessitavam submeter suas propostas de ação a aprovação
da diretoria masculina. Só poderiam utilizar a sede mediante autorização dos se-
nhores estavam submetidas ao mesmo estatuto dos sócios, ainda que no texto do
estatuto houvesse condicionantes de gênero.

11 Joselina Silva (2003) citou Nosso Jornal, Curitiba, ano II, nº 75, março, 1948. Acredito que a
autora refere-se ao nome do jornal. União, Curitiba, ano II, nº 75, 27/03, 1948, fl.3.
12 União 27/03/1948, fl. 3 e 4.
13 SANTIAGO, 2019. O Grêmio das Camélias (1899-1927) e o Grêmio 13 de Maio (1912-1919).
14 A S.O.B. 28 de Setembro era independente, não estava filiada a outra Sociedade, diferente
das agremiações femininas. Dessa forma, dividimos em duas categorias: as associações femininas
(independentes) e as agremiações femininas (filiadas).

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 765


Artes, memória e espaços
A S.O.B. 28 de Setembro possuía diretoria e estatuto próprio mas ainda, faltava
lhe uma sede própria, então sua presidente solicitou a diretoria da S.O.B. 13 de
Maio para realizar uma festa em benefício da conclusão da construção da sede,
“posto em discussão o assunto, ficou deliberado que esta Sociedade promoverá um
baile na próxima Quarta-Feira, dia 17 do corrente; remetendo o liquido deste baile
em benefício a Sociedade Operária Beneficente 28 de Setembro.15 No mês seguinte
a presidente da S.O.B. 28 de Setembro Eliza do Rozario solicitou novamente utilizar
os salões para realizar a festa de aniversário daquela Sociedade nos dias 27 e 28 de
setembro, o que foi aprovado sem nenhum custo de aluguel.16
Além dos discursos proferidos em festas as diretoras do Grêmio Flor de Maio
são referidas negociando o valor do aluguel do salão e as condições administrativas
para a realização de festas. Na sessão do dia 8 de março de 1942, alguns diretores
argumentaram que deveriam aumentar o valor da anuidade de 40 mil réis:

O Snr Lucio de Freitas levou ao conhecimento da meza, que está


sendo muito comentado os bailes promovidos pelo Gremio Flor
de Maio em nome da Sociedade 13 de Maio, porque havendo
uma fiscalização esta Sociedade estava sujeita passar por algu-
mas penas impostas pela Prefeitura Municipal. O Snr. Presidente
levando em consideração tal parecer, pois em discussão o pa-
recer do Snr. Lucio de Freitas, que depois de bem estudado e
discutido ficou aprovado da maneira seguinte. O Gremio Recrea-
tivo Operario Flor de Maio podera promover suas festividades
nesta sede em nome da Sociedade Operaria 13 de Maio, porem
ficando sua administração á cargo da diretoria desta Sociedade
e sendo o producto da renda dividido com a Sociedade 13 de
Maio em beneficio dos seus cofres de beneficencia. Artigo 2º.
Fica também estabelecido que o 1º Thezoureiro da Sociedade
13 de Maio acumulará também o cargo de Thezoureiro do Gre-
mio Flor de Maio.17

Naquele mesmo ano, ocorreram outras negociações para utilizar os salões, era
importante negociar a melhor data, valor e o direito de administrar a festa, ten-
tando encontrar um meio termo para ambas diretorias. Apesar das disputas entre
as diretorias, os diretores da S.O.B. 13 de Maio não admitiram que o membro do
Conselho Fiscal João Evangelista de Camargo falasse em nome da Presidente do
Grêmio Operário Flor de Maio sem por ela estar autorizado, “ficou deliberado que
o Gremio Flor de Maio nas pessoas de suas dirigentes devem officiar a directoria
da Sociedade 13 de Maio, fazendo suas propostas.”18 Devidamente autorizado pela
diretoria do Grêmio Flor de Maio, Therezio Pacheco Barbosa Lima Diretor Fiscal do
Grêmio e 2º secretário da S.O.B. 13 de Maio pediu para que a Sociedade cedesse

15 Livro de ata de reuniões da S.O.B. 13 de Maio, 06/08/1949, fl. 130.


16 Livro de ata de reuniões da S.O.B. 13 de Maio, 03/09/1949, fl. 134-135.
17 Livro de ata de reuniões da S.O.B. 13 de Maio, 08/03/1942, fl. 32-33.
18 Livro de ata de reuniões da S.O.B. 13 de Maio, 16/12/1942, fl. 46.

766 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
o salão duas vezes ao mês, uma num sábado e outra num domingo, alternadamen-
te, sendo autorizado o 3º sábado de cada mês e um domingo à escolha do Grêmio
desde que não trouxesse inconveniências e devendo ser cobrada a taxa de 40%
do lucro de cada festa.19 Também em nome da presidente do Grêmio Flor de Maio
Adelaide de Souza Paula Roza, o 1º tesoureiro Francisco Eugênio Gomes Pereira
pediu para que a Sociedade abonasse a dívida e entregue o título de sócia remida
para Adelaide “que muito tem contribuído para o engrandecimento desta Socieda-
de.”20 Maria (2013) também fala dos conflitos de gênero e a participação ativa das
mulheres no âmbito das associações negras de Florianópolis, União Recreativa 25
de Dezembro e Clube Recreativo Concórdia.
As menções ao Grêmio Princesa Isabel também foram além dos discursos pro-
feridos em comemoração a abolição, a princesa Isabel e ao aniversário da S.O.B 13
de Maio, o Grêmio Operário Princesa Isabel foi mencionado em duas negociações
sobre o aluguel dos salões e demais recursos da sede da S.O.B. 13 para as sócias e
dirigentes da agremiação. A presidente pediu para que os bailes organizados pelo
Grêmio Princesa Isabel ficasse sob a administração das diretoras e não dos direto-
res. Esse direito não foi reconhecido sob três argumentos:

1º O Gremio Princeza Izabel não esta completamente registrado


seus Estatutos.

2º Não goza das insenções Estadual e Municipal.

3º As suas licenças para bailes e matines são tiradas em nome


desta Sociedade.21

Quase dois anos após o caso acima, em que a autonomia administrativa das
diretoras estava sendo posta em cheque, novamente a presidente do Grêmio Prin-
cesa Isabel, Adelaide de Paula Rosa pediu os salões, a churrasqueira e o botequim
para realizar uma matiné dançante, com direito a “churrascada” e “exploração do
botequim”, a diretoria da S.O.B. 13 de Maio aprovou esse pedido, sem estipular
quem ficaria encarregado da administração da festa, sendo neste caso o valor do
aluguel de Cr$ 500,00 (quinhentos cruzeiros)o único critério.22 Tanto com as asso-
ciações femininas negras como com as Sociedade Operárias as relações ocorriam
durante os discursos proferidos em festas, ou nas negociações de empréstimo ou
aluguel dos salões.

19 Livro de ata de reuniões da S.O.B. 13 de Maio, 03/03/1945, fl. 70-71.


20 Livro de ata de reuniões da S.O.B. 13 de Maio, 24/03/1946, fl. 85.
21 11/08/1946, fl. 94-95.
22 Livro de ata de reuniões da S.O.B. 13 de Maio, 31/10/1948, fl. 122.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 767


Artes, memória e espaços
SOCIEDADES OPERÁRIAS: AS SOCIEDADES CO-IRMÃS
Durante a década de 1940 a S.O.B. 13 de Maio estabeleceu parcerias com pelo
menos 15 Sociedades Operárias, abaixo segue uma tabela com as 3 Sociedades
mais citadas no livro ata:

TABELA 3: SOCIEDADES OPERÁRIAS CO-IRMÃS


DA SOCIEDADE OPERÁRIA BENEFICENTE 13 DE MAIO

NÚMERO DE VEZES
SOCIEDADES SÓCIOS FILIADOS A AMBAS
FUNDAÇÃO QUE FOI CITADA NO
OPERÁRIAS SOCIEDADES
LIVRO ATA

1 - Sociedade Ignacio Iguaçu Franco, Lúcio


Protetora dos 28/01/1883 11 vezes Freitas, João Tavares Santana,
Operários Joaquim Monteiro Bittencourt

Raymundo Fernandes da
2 - Sociedade Cruz, Zeferino Manoel de
Operária 27 de 21/04/1927 8 vezes Carvalho, Mário Miranda,
Janeiro Lúcio Freitas, Mário
Moreira de Freitas,

3 - Federação
João Tavares Santana e
das Sociedades 8 vezes
Alfredo Santana Ribeiro
Operárias do Paraná

Fonte: produzida pela a autora, 2020

Assim como o Clube Literário Recreativo 13 de Maio anteriormente menciona-


do, a fundação da Sociedade Protetora dos Operários e sua relação com a S.O.B. 13
de Maio se estabeleceu desde o século XIX. Alguns sócios fundadores da S.O.B. 13
de Maio também compuseram a diretoria da Sociedade Protetora dos Operários,
naturalmente por esse longo histórico e intensa interação essas Sociedades consi-
deravam-se co-irmãs. Ainda na década de 1940 alguns sócios fundadores estavam
a frente da diretoria, como por exemplo, Benedicto Candido sócio veterano e be-
nemérito.
A maioria das referências feitas a essas Sociedades aconteceram durante a Ses-
são Magna mas, não se limitaram a elas. Em certa ocasião o 1º orador da S.O.B. 13
de Maio, Lúcio Freitas sugeriu presentear com o título de sócio benemérito os pre-
sidentes das co-irmãs Ignácio Iguassu Franco pela Sociedades Protetora dos Operá-
rios, João Messias de Paula pela Sociedade Beneficente dos Padeiros, José Joaquim
pela Sociedade dos Trabalhadores na Herva Matte, Raymundo Fernandes da Cruz
pela Sociedade 27 de Janeiro, Lúcio Rinaldi pela Sociedade Santa Cecília e o vice
presidente da S.O.B. 13 de Maio Manoel da Silva Lopes em sinal de agradecimento

768 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
aos relevantes serviços prestados a S.O.B. 13 de Maio.23 Esse títulos foram entre-
gues pelo sócio veterano e benemérito Benedicto Candido 2º orador, sócio que viu
a mesma Sociedade superar diversas crises financeira, talvez, fosse a pessoa mais
conscientes da importância da rede de apoio entre as Sociedades Operárias para a
continuidade do grupo.
Os auxílios prestados acima referem-se ao empréstimo dos salões dessas outras
Sociedades para realizar festas em benefício total ou parcial das despesas da S.O.B.
13 de Maio. Mas, o que significava ser um sócio benemérito? Quais os benefícios?

Art.7 § 2. - Beneméritos, são aqueles que tenham prestado re-


levantes serviços ao Club, já com atos filantrópicos esforços e
reconhecido os seus trabalhos, for apresentado por uma assi-
natura de sócios quites em assembléia geral, demonstrando os
seus feitos. O Club em sinal de gratidão concederá o título; terão
também o mesmo direito os que durante 20 anos contribuirem
sem receber auxílio.24

A S.O.B. 13 de Maio emprestou a quantia de Cr$2.351,10 (dois mil trezentos e


cinquenta e um cruzeiros e dez centavos) da Sociedade Protetora dos Operários,
a S.O.B. 13 de Maio efetuou o pagamento de maneira parcelada e também propôs
realizar festas na sede da Protetora para saldar o empréstimo.25 Levou quase um
ano para a S.O.B. 13 de Maio saldar o empréstimo, sendo paga em 4 parcelas: 1ª
Cr$ 1.000,00 em 6 de fevereiro de 1945; 2ª Cr$ 500,00 em 5 de julho de 1945; 3ª
Cr$ 500,00 em 15 de julho de 1945; 4ª Cr$ 351,10 em 10 de agosto de 1945.26
Com a Sociedade Operária Beneficente 27 de Janeiro a diretoria da S.O.B. 13 de
Maio estabeleceu uma relação de parceria, com relação ao empréstimo do salão
para realizar festas. Os sócios Raimundo Fernandes da Cruz e Zeferino Manoel de
Carvalho, presidente e secretário da S.O.B. 27 de Janeiro receberam um voto de
louvor por terem intermediado o empréstimo do salão para a S.O.B. 13 de Maio re-
alizar uma matiné dançante.27 Devido a vistoria policial ao prédio social a prefeitura
de Curitiba oficiou os diretores da S.O.B. 13 de Maio sobre o risco de perderem o
alvará de funcionamento. No início do ano de 1943 a reforma e regularização da
sede, tornaram-se pauta prioritária, os direitos sociais ficariam suspensos. E
o presidente da S.O.B. 27 de Janeiro Raimundo Cruz tornou a oferecer seus prés-
timos.28
E com a Federação das Sociedade Operárias do Paraná a relação era da tenta-
tiva de fazer a S.O.B. 13 de Maio filiar-se a Federação. Na Sessão de aniversário da
S.O.B 13 de Maio o 1º orador da Federação das Sociedades Operárias do Paraná

23 Livro de ata de reuniões da S.O.B. 13 de Maio, 08/12/1940, fl. 5-6.


24 Estatuto da S.O.B. 13 de Maio, 1929, fl. 4.
25 Livro de ata de reuniões da S.O.B. 13 de Maio, 03/10/1944, fl. 63.
26 Livro de ata de reuniões da S.O.B. 13 de Maio, 16/09/1945, fl. 81.
27 Livro de ata de reuniões da S.O.B. 13 de Maio, 06/04/1941, fl. 15.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 769


Artes, memória e espaços
Atílio Bório fez um discurso inflamado convocando todas as Sociedades presente
dizendo “que a união faz a força”. O presidente Demétrio da Costa falou sobre a
29

“proposta da União das Sociedades Beneficentes do Paraná, para esta Sociedade


filiar a mesma Federação, posta em discussão e aprovação, a Assembléa deliberou
que ficasse para outra oportunidade”.30

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se considerarmos por segregação racial a impossibilidade de pessoas de raça
diferentes conviverem e partilharem projetos, podemos considerar que esse não
foi o caso da S.O.B. 13 de Maio na década de 1940 embora, inicialmente a S.O.B. 13
de Maio tivesse o objetivo de “reunir os descendentes da raça africana” esse obje-
tivo foi escamoteado. Desde sua origem alguns sócio da S.O.B. 13 de Maio faziam
parte da diretoria de outras Sociedade Operária não negra, ainda que possamos
questionar com que frequência isso acontecia? E quais as limitações da entrada e
permanência dos sócios e diretores negros em meio ao operariado branco curitiba-
no. Os diretores da S.O.B. 13 de Maio durante a década de 1940 registraram pou-
ca interação com outros clubes sociais negros, ao que consta não estabeleceram
qualquer relação com outro clube negro da cidade. Não mencionar a identidade
racial própria e dos grupos parceiros também pode ser visto como tática para evitar
represálias. Embora, o estatuto da S.O.B. 13 de Maio estipulasse alguns critérios de
gênero que impediam as sócias de fazerem parte da diretoria, as mulheres filiadas
a está Sociedade viram nela uma possibilidade de construir sua própria diretoria.
Se no período a diretoria da S.O.B. 13 de Maio não conseguiu estabelecer relações
tão constantes com outros clubes sociais negros, com as associações negras filiadas
a ela e a Sociedade 28 de Setembro conseguiram realisar trocas constantes.

REFERÊNCIAS

BAN, Gustavo Yoshio. Clube Literário e Recreativo Treze de Maio. In: JOVINO, Ione da
Silva; SANTOS, Merylin R. dos. Clubes em memórias: Sociabilidades Negras nos Campos
Gerais. Curitiba: Editora CRV, 2018.

JESUS, Matheus Gato de. Ninguém quer ser um treze de maio. Novos Estudos. CEBRAP,
São Paulo, V. 37, nº 1, pp.117-140, jan.-abr. 2018.

MARIA, Maria das Graças. Clubes e associações de afrodescendentes na Florianópolis na


década de 1930-1940. In: MAMIGONIAN, Beatriz G.; VIDAL, Joseane Z. (org.). Histórias
diversas. Africanos e afrodescendentes na Ilha de Santa Catarina. Editora da UFSC: Flo-

29 Livro de ata de reuniões da S.O.B. 13 de Maio, 06/06/1941, fl. 26-27.


30 24/01/1948 fl. 110.

770 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
rianópolis. 2013. Disponível em: <https://moodle.ufsc.br/pluginfile.php/545546/mod_re-
source/content/1/B12%20Clubes%20 pdf.pdf> Acesso em: 15 jun. 2020.

SANTIAGO, Fernanda Lucas. O Associativismo feminino negro em Curitiba. In: SANTOS;


BRAGA; PINHEIRO. Dos traços aos trajetos: A Curitiba negra entre os séculos XIX e XX.
Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba. Boletim Casa Romário Martins. v. 37, n. 149, p.
58-75, 2019.

SILVA, Fernanda Oliveira da. A racialização observada pela ótica da experiência dos clubes
e centros culturais negros na diáspora negra ao sul do Atlântico (Brasil-Uruguai) - Notas
de Pesquisa como forma de iluminar a nova história do trabalho. Cadernos do LEPAARQ
(UFPEL), v. 11, p.525-533, 2014.

SILVA, Joselina da. A União dos Homens de Cor: aspectos do movimento negro dos anos
40 e 50. Estudos Afro-Asiáticos, ano 25, nº 2, 2003, pp.215-235.

AUTORIA
Fernanda Lucas Santiago
Mestra em História pelo PPGH-UDESC, pesquisadora associada ao Aya Laboratório
de Estudos Pós-Coloniais e Decoloniais. Professora de História no Curso Pré-Vestibu-
lar Popular Ubuntu. Membro Consultora da Comissão da Verdade sobre a Escravi-
dão Negra do Paraná OAB-PR. Integrante da Rede Mulheres Negras-PR.
E-mail: flucasantiago@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7769469811615233

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 771


Artes, memória e espaços
AS MÚLTIPLAS TEMPORALIDADES DO SUBÚRBIO
CARIOCA: DA “CLARA DOS ANJOS” DE
LIMA BARRETO AS NARRATIVAS HISTÓRICAS
NAS SALAS DE AULA
Barbara Cristina Soares Pessanha

Nesse artigo, pretendo refletir como a literatura, em especial a de Lima Barreto


em seu romance “Clara dos Anjos” e a história podem caminhar juntas no processo
do ensino de história, destacando a narrativa como um campo potente no pensar e
viver outras temporalidades na sociedade, especialmente no espaço escolar.
Na minha análise diálogo com o conceito defendido pelo importante historiador
francês François Hartog (2013) chamado de regime de historicidade, assim como as
análises desenvolvidas por Albuquerque (2016) que também utiliza como arcabou-
ço teórico o conceito citado, com uma reflexão mais aproximada com o campo do
ensino de história, destacando a importância da narrativa na produção do conheci-
mento histórico e suas especificidades na sala de aula.
A relação da literatura e da história no processo de se refletir sobre as histori-
cidades e temporalidades presentes na narrativa, tanto histórica quanto literária,
se apresenta como uma destacada ferramenta analítica, que apesar de se constitu-
írem campos epistemológicos distintos, de possuírem suas específicas operações
constitutivas ambas se utilizam da narrativa. A estrutura desta categoria de análise
no campo do ensino de história pode permitir a construção de “um espaço de se-
leção de entidades e de sua conexão narrativa, visando um efeito e um afeto nos
alunos que a frequentam. (...)”
A obra de Lima Barreto caracterizada como uma literatura marcada por descre-
ver e refletir sobre a realidade de uma sociedade, no caso a do Rio de Janeiro no
início do século XX, que exercia um papel denunciatório e crítico as mudanças que
a capital e em especial o subúrbio vinha passando, com uma narrativa que encarna
personagens, ruas, práticas sociais e políticas muito próximas da realidade que o
autor vivenciou, pode possibilitar aos alunos a vivência de uma outra historicidade.
A experiência do tempo se destaca na literatura de Lima Barreto, onde o diálogo
com a literatura e a narrativa histórica se encontram, diante desta análise entendo
a relevância da narrativa literária como um dos elementos constitutivos de uma
cultura histórica na sociedade e em especial na cultura escolar.
No início do seu texto, Ordens do tempo e regimes de historicidade, Hartog afir-
ma a existência de ordens do tempo, discutindo a forma como as sociedades lida-
ram com o tempo, onde este passou a ser uma preocupação, uma questão por si
só de análise e propõe uma ferramenta para a operação historiográfica chamada
de regimes de historicidade, onde o historiador deve refletir sobre as relações com
o tempo e perceber as multiplicidades de ordens que podemos encontrar em nos-

772 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
sos trabalhos ao analisar um determinado tema ou sociedade. Entende essa fer-
ramenta como uma destacada chave interpretativa sobre como o tempo passado,
presente e futuro dialoga, e também quando não há, ou fica mais difícil o diálogo
entre essas ordens, essa situação Hartog define como crise do tempo. Nesta tensão
onde o passado não serve mais de exemplo para o presente, e o futuro parece cada
vez mais desconhecido, nessa seara que o regime de historicidade pretende agir,
dando um sentido para uma possível narrativa histórica.
Nesse artigo tenho a obra literária, “Clara dos Anjos”, como um importante eixo
analítico, e entendo que Lima Barreto, em seu trabalho, buscou registrar suas ex-
periências com o tempo, evidentemente que a sua escrita se pauta numa narrativa
literária, onde não pretendia fazer uma história do subúrbio. No entanto ao des-
crever, analisar, testemunhar esse outro tempo, Lima Barreto desloca seus leitores
para outra temporalidade.
Suas críticas à cidade do Rio de Janeiro e o subúrbio carioca destacam-se em di-
versas obras. No romance lamenta o passado que se esvaía, e do qual parecia para
o autor mais próximo de uma essência e harmonizado com a sociedade carioca e
suburbana. Percebia um futuro cada vez mais distante das tradições identitárias e
alinhado à uma modernidade artificial e autoritária imposta nestes novos tempos.
Considero relevante perceber essa relação com o tempo e a obra de Lima Barreto
através da sua própria escrita, vejamos o trecho do romance que ele descreve a
rua da Clara e fala de uma chácara que estava em ruínas, assim como me parece, a
própria cidade, por isso o seu lamento:

Os muros que cercavam a casa, a razoável distância, e mesmo


aquela em que se apoiava o gradil de ferro da frente do imóvel,
estavam cobertos de hera, que os envolvia em todo ou em par-
te, não como um sudário, mas como um severo, cerimonioso
e vivo manto de outras épocas e de outras gentes, a provocar
saudades e evocações animando a ruína. Hoje, é raro ver-se, no
Rio de Janeiro, um muro coberto de hera; (...)

Para Lima Barreto, não só as chácaras com os muros de hera estavam se apa-
gando da sua paisagem, mas também as práticas tradicionais do subúrbio que ele
vivia, as vielas da cidade portuguesa que vinha se transformando em largas aveni-
das. Um passado que o autor entendia como num processo irremediável de desa-
parecimento, mas que na sua literatura seria eterno.
O lugar do subúrbio em seu romance se estabelece como mais um personagem
e ao mesmo tempo exerce um forte papel na formação da identidade das pessoas
que lá viviam, diante da minha proposta de refletir o romance de Lima Barreto
no ensino de história, considero relevante o artigo de Joaquim J.M. dos Santos,
História do lugar: um método de ensino e pesquisa para as escolas de nível médio
e fundamental (2002). No texto, o autor destaca a relevância do desenvolvimento
de um método de ensino, amparado no conhecimento histórico, que se embasa na
história do lugar, onde o espaço de pertencimento dos alunos seja parte integrante

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 773


Artes, memória e espaços
e protagonista na história produzida no âmbito escolar. A sua pesquisa e o seu ar-
tigo apresentam o método, propostas e resultados desenvolvidos pelo autor neste
trabalho que desenvolveu entre a década de 1990 e o início dos anos 2000.
Diante desta temática, a história do lugar, a sua relação com o ensino e por
se aventurar no subúrbio carioca, compreendo esta metodologia como uma im-
portante abordagem, ao possibilitar a reflexão sobre as múltiplas temporalidades
desenvolvidas pelo autor acerca do subúrbio carioca, numa historicidade distinta
da literatura de Lima Barreto e construída no espaço escolar. O texto de Joaquim
Justino M. dos Santos destaca a relevância da população do subúrbio conhecer a
sua história, pois na sua interpretação:

(...)essa região e toda riqueza cultural embutida na música, nas


festas, nos hábitos e costumes populares, caracterizadores do
dia-a-dia e do modo de ser típico das populações suburbanas
cariocas até pelo menos as décadas de 1950 e 1960, vêem hoje
essas práticas particulares postas como ultrapassadas e/ou de
importância menor. 1

O autor preocupa-se com o galopante processo de globalização que também


altera o cenário e as práticas sociais e culturais da região, onde uma possível iden-
tidade suburbana carioca pautada em suas festas populares, brincadeiras de rua,
conversas nas calçadas estão cada vez mais sendo abandonadas e esquecidas pelas
novas gerações, influenciadas por um escopo cultural completamente distinto do
subúrbio de um passado, que se torna cada vez mais sem sentido nesta temporali-
dade do subúrbio do presente.
Diante destas transformações que o subúrbio carioca vem passando, o autor
no seu artigo destaca a importância dos moradores da região conhecerem suas
origens e valorizarem suas práticas tradicionais de outros tempos, para o processo
de construção e/ou manutenção de uma identidade local, e de um pleno exercício
da sua cidadania onde “afirma acredito ser possível as populações locais recuperá-
-los e preservá-los ao identificarem papéis que desempenham na história do lugar
onde residem e convivem, conhecendo-a com suas especificidades e formas de ser
particulares”.2
O pressuposto metodológico de Joaquim J.M. dos Santos defende que o lugar
possui sua historicidade, representada nas práticas econômicas, políticas, culturais
do cotidiano daqueles moradores, e ao seu contexto sócio-histórico, sendo assim
não é possível pensar o subúrbio carioca do final do século XX analisado pelo autor,
sem levar em consideração as mudanças, que a cidade do Rio de Janeiro, o estado,
o país e o mundo também experimentaram.
Desta forma, o método de pesquisa proposto no seu trabalho possui como
perspectiva de construção do conhecimento histórico entre os alunos das escolas

1 SANTOS, 2002, p107


2 SANTOS, 2002, p:110

774 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
fundamental e médio, a história do seu lugar, de entender a origem do seu bairro,
reconhecer suas marcas históricas, compreender os sinais do tempo no seu en-
torno, o mais próximo e significativo da sua realidade. Propondo uma aula de his-
tória pautada na pesquisa, com o uso de múltiplas fontes, tais como documentos
oficiais, fotos e testemunhos dos mais antigos moradores, do patrimônio no seu
entorno, desta forma promovendo uma maior experimentação do tempo, passado
e presente, de toda a comunidade escolar. O lugar se apresenta como mais um
elemento que nos permite ter acesso a informações sobre como as pessoas da-
quele lugar viviam, perceber as possíveis permanências e com certeza destacar as
mudanças e rupturas promovidas no tempo naquele espaço.
O romance “Clara dos Anjos” de Lima Barreto, o mais suburbano de todos,
como afirmam alguns analistas3 de sua obra também pode ser utilizado como uma
fonte de pesquisa para o ensino de história, em especial nas salas de aula do atual
subúrbio carioca. A história do autor não se restringiu em narrar as agruras vivida
pela personagem do título, como em outras obras suas, o autor descrevia e de-
nunciava as mudanças que a cidade do Rio de Janeiro passava, criticava a moder-
nização imposta pelas elites dirigentes que embevecidos pela noção de progresso,
não respeitava o passado e as tradições, e pouco se importavam com as demandas
das populações mais pobres do subúrbio, lugar que ele afirmou ser o “refúgio dos
infelizes”4 .
O Rio cosmopolita, capital da recém-república era alvo de desdém do autor, que
denunciava a falta de políticas públicas voltadas para uma região carente de vias
urbanizadas, de transporte público, de eletrificação, mas que também começava
a ser influenciado por novas “modas”, estrangeirismos, como o futebol, abando-
nando práticas de outro tempo, tradições que iam desde os bailes, e as músicas
executadas, até na arquitetura das casas da região.5
A modernidade que se impunha mantinha práticas racistas, onde homens e
mulheres negras eram vistas e tratadas como inferiores, agora legitimados pelo
discurso cientificista do período, independentemente de sua formação e talento,
os pretos, crioulos, cor azeitonada, utilizando os termos do autor, eram rechaçados
pelos setores sociais e econômicos mais elevados da sociedade do período no Rio
de Janeiro.
O subúrbio de Lima Barreto e de seus personagens, como a Clara dos Anjos, o
seu pai Joaquim dos Anjos, entre outros, são construções da narrativa literária,
mas a verossimilhança em seu texto o torna uma importante narrativa acerca do
passado do Rio de Janeiro e de seu subúrbio. O autor que foi morador por décadas
da região, flanava pelas ruas da cidade e seus muitos bairros, do início do século
XX, definido como um hábito na sua vida, acabou por construir uma literatura en-
tendida como uma ferramenta política, de mobilização e denúncia.

3 PRADO, 1980.
4 BARRETO, 2012, p.188
5 BARRETO, 2012, p.68, 103.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 775


Artes, memória e espaços
A denúncia contra as muitas mazelas sociais que caracterizavam o mundo do
subúrbio carioca, principalmente em relação às práticas racistas, assim como a so-
ciedade inferiorizava as mulheres, ressalta essa relação entre a ficção e a realidade
presente na obra, destacando uma possível tensão entre a literatura e a história,
no romance de “Clara dos Anjos”, como argumentam Adriana dos R. Silva e Carlos
V.T. Palhares: “Parece-nos que os fatos concretos vividos pelo autor tornam-se
nesse instante, elementos preciosos que compõem a narrativa, sob um tom de
relato, privilegiando seu leitor com representações críticas da sociedade carioca
do século passado.”6
Partindo do pressuposto teórico que defende um maior significado e sentido
para as temáticas e saberes prementes no espaço escolar, considero relevante
maior representatividade das discentes, incorporando a subjetividade, presente
nos sentimentos e nas experiências destes, tendo a literatura a função de elemento
propulsor. Alguns autores, ao analisar a obra de Lima, destacam a marca testemu-
nhal de um outro tempo nos seus textos, o que provavelmente contribuiu na sua
apropriação como fonte histórica da cidade do Rio de Janeiro, em especial sobre as
sociabilidades dos homens e mulheres pobres e negras (SCHWARCZ, 2017, p. 64).7
Além da história do lugar, o que despertou meu interesse, em relação ao ro-
mance, como um elemento fundamental da minha análise foi à multiplicidade de
temas, ainda tão relevantes, desenvolvidos pelo autor com seus personagens. A
discussão do racismo, a desigualdade social, a violência contra as mulheres, em
especial as negras, a ausência do Estado nos bairros pobres, entre tantos outros,
que a sua literatura militante (PRADO, 1988, p.100)8, ainda nos pode embasar com
reflexões sobre problemas do nosso país, assim como os de nossa cidade e do su-
búrbio carioca.
No campo do ensino historicizar o racismo, elemento institucionalmente pre-
sente no Brasil, se estabelece como um fator essencial. Uma importante discussão
acerca das diferentes práticas racistas foi discutida pelo Prof. Drº Silvio Almeida,
classificando-as como racismo individual, institucional e estrutural. O autor analisa
as relações entre essas formas de se expressar o racismo no Brasil e destaca a im-
portância de o entendermos como parte da estrutura social do nosso país. Como
ele afirma:

(...) Em uma sociedade em que o racismo está presente na vida


cotidiana, as instituições que não tratarem de maneira ativa e
como um problema a desigualdade racial irão facilmente repro-
duzir as práticas racistas já tidas como “normais” em toda a so-
ciedade. É o que geralmente acontece nos governos, empresas
e escolas em que não há espaços ou mecanismos institucionais
para tratar de conflitos raciais e de gênero. (...)

6 SILVA E PALHARES, 2009. p142


7 SCHWARCZ, 2017, P. 64.
8 PRADO, 1988, p. 100

776 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
Enfim, sem nada fazer toda instituição irá tornar-se uma correia
de transmissão de privilégios e violências racistas e sexistas (AL-
MEIDA, 2019, p:37). 9

A defesa da existência do racismo estrutural no Brasil, não significa a aceitação


de práticas racistas individuais e/ou das instituições, muito pelo contrário, ressalta
a percepção de que o racismo é resultado de um processo histórico e social, e como
tal, pode ser transformado, pois não é natural, daí a necessidade de se desenvolver
práticas antirracistas, modificando as estruturas que o mantém há séculos no país.
No alvorecer do estado republicano, Lima Barreto em Clara dos Anjos e em ou-
tras obras, já denunciava essa valorização da cultura euro descendente como sím-
bolo dos padrões civilizatórios que o país deveria seguir, em oposição às múltiplas
etnias, como os negros, vistos como inferiores e perigosos pelas elites dirigentes,
ressaltando a exclusão social e econômica dos chamados “homens de cor.”
O tema do racismo e a necessidade da sua superação se apresenta cada vez
mais, em distintos espaços sociais, nas escolas, nas universidades, nas mídias. A
própria discussão sobre essa temática, por tanto tempo ocultado da sociedade ge-
ral, nos parece ser um avanço rumo ao seu melhor entendimento e na resistência
a sua manutenção, fortalecendo a necessidade de se estabelecer uma educação
comprometida em não mais institucionalizar, naturalizar práticas racistas. A rela-
ção entre a história e literatura pode ser muito profícua no processo do ensino de
história, a importância do vivido, do testemunhado, do familiar, se destacam como
elementos significativos no processo do conhecimento, inclusive e principalmente
da narrativa histórica e dos muitos saberes que podem ser integrados no processo
de construção desse campo epistemológico próprio que se consolida, que é o en-
sino de história.

REFERÊNCIAS:

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de janeiro: Casa da Palavra, 2003.

ALBUQUERQUE Jr., Durval M. A hora da estrela: A relação entre a história e a literatura,


uma questão de gênero? ANPUH. XXIII Simpósio Nacional de História, Londrina, 2005.
P:1-9.

ALBUQUERQUE Jr., Durval M. Regimes de historicidade: como se alimentar de narrativas


temporais do ensino de História. In: MONTEIRO, Ana Maria F. C. et ali. Narrativas do Rio
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ALMEIDA, Sílvio Luiz de. O que é Racismo Estrutural? Belo Horizonte (Minas Gerais): Le-
tramento, 2018.

9 ALMEIDA, 2019. P:37

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 777


Artes, memória e espaços
BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. Coleção. 1ª ed. São Paulo: Coleção Penguim & Cia da
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HARTOG, François. Ordens do tempo, regimes de historicidade. In: Regimes de histori-


cidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013,
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LIMA, Maria. Consciência histórica e educação histórica: diferentes noções, muitos cami-
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mídia. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2014. p:53-76

MONTEIRO, A.M. Didática da História e teoria da história: produção de conhecimento na


formação de professores. DALBEN, A. et alii (orgs.) Coleção Didática e Prática de Ensino.
Convergências e tensões no campo da formação de professores e do trabalho docente.
Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

PRADO, Antônio Arnoni. Literatura comentada: Lima Barreto. Editora Abril, 1980.

SANTOS, J.J.M. DOS. “História do lugar: um método de ensino e pesquisa para as escolas
do nível médio e fundamental. História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Rio de Janeiro.
Vol. 9(1):105,24 jan-abr.2002.p:105-124.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: um triste visionário – São Paulo: Cia das Letras,
2017.

SILVA, Adriana dos Reis e PALHARES, Carlos V. Teixeira. A construção do espaço em “Clara
dos Anjos”, de Lima Barreto. Cadernos Cespuc de Pesquisa. Vol:9, 2009. P:136-144 -ISSN:
2358- 3231.

AUTORIA
Barbara Cristina Soares Pessanha
Mestranda do ProfHistória – PUC-Rio
E-mail: bc.spessanha@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0070110335761848

778 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
DESUMANIZAÇÃO DO CORPO NEGRO:
A INFLUÊNCIA DAS IMAGENS DE CONTROLE NO
PROCESSO DE SUBALTERNIZAÇÃO DA
MULHER NEGRA
Aline Alves Aleluia
Eduarda Gonçalves Marengo

Brasil, meu nego


Deixa eu te contar
A história que a história não conta
O avesso do mesmo lugar
Na luta é que a gente se encontra

Brasil, meu dengo


A Mangueira chegou
Com versos que o livro apagou
Desde 1500 Tem mais invasão do que descobrimento
Tem sangue retinto pisado
Atrás do herói emoldurado
Mulheres, tamoios, mulatos
Eu quero um país que não tá no retrato

Brasil, o teu nome é Dandara


Tua cara é de cariri
Não veio do céu
Nem das mãos de Isabel
A liberdade é um dragão no mar de Aracati

Salve os caboclos de julho


Quem foi de aço nos anos de chumbo
Brasil, chegou a vez
De ouvir as Marias,
Mahins, Marielles, malês

INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por objetivo analisar as formas de desenvolvimento e
mudança em torno do processo de desumanização dos corpos negros femininos,
que se refaz por meio das imagens de controle, tornando-se instrumento para a
subalternização de mulheres negras, o tema encontra sua importância, em com-
preender como as imagens de controle contribuem para essa subalternização.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 779


Artes, memória e espaços
A partir de uma leitura bibliográfica de marcos teóricos do feminismo negro
como Patricia Hill Collins que aduz assertivamente sobre as imagens de controle
e Gayatri Chakravorty Spivak que trata sobre a subalternidade e, ainda, trazendo
teorias metodológicas como TCR (Teoria Crítica da Raça), além de premissas basea-
das em estudos sobre Movimento Negro, buscou-se realizar a descontrução desses
esteriotipos e solucionar o impasse em torno da desumanização e subalternização
da mulher negra.

BREVE HISTÓRICO QUANTO A FIGURA DA MULHER NEGRA


ESCRAVIZADA
Não há dúvidas que o período escravagista é um período constantemente es-
tudado, porém a análise acerca das vivências e importância das mulheres escravi-
zadas começou a tomar maior proporção em meados de 1980, de forma que, só
reforça a invisibilidade das mulheres, sobretudo de mulheres escravizadas.
Não é nenhuma novidade de que esse período foi de extrema desumanização
dos corpos negros, porém a condição de mulher, conferiu as escravizadas diversas
situações e atrocidades ainda piores, como a violação de seus direitos sexuais e
reprodutivos, entre outros. Contudo, não era somente tirania e submissão que re-
gulava a vida dessas mulheres, houve insurgência e luta por parte dessas mulheres
a fim de livrarem-se das violências e opressões sofridas, há na história nomes de
grandes mulheres, como por exemplo Dandara dos Palmares, Luiza Mahin, Tereza
de Benguela, entre outras mulheres que foram símbolo de luta e irresignação, que
lutaram bravamente contra um sistema tirano.
Diante da inviabilização de mulheres negras perpassando toda a história, pre-
tende-se trazer a mulher escravizada como sujeito histórico a partir de uma refle-
xão acerca do desenvolvimento imagens de controle como meio de desumanização
das mulheres negras no período escravocrata, tornando-se ferramenta para a
subalternização no pós o abolição.

O PODER DAS IMAGENS DE CONTROLE


Analisa-se então as violações aos direitos das mulheres negras por meio desse
conceito, trazido assertivamente por um dos marcos teóricos do feminismo Patri-
cia Hill Collins, são as representações que fazem parte das relações de poder que
influenciam a forma como as mulheres são vistas e tratadas em todas as esferas
sociais (relações afetivas, no mercado de trabalho e etc.), em outras palavras, con-
tribuem para a construção ideológica do racismo e sexismo dessa forma, com a
intenção de justificar falsamente a exploração desses corpos.
Essas imagens são instrumentos utilizados pelos grupos dominantes, que atuam
em relação às mulheres negras através dos estereótipos que são regulados por
meio de raça e sexualidade, essa dominação por meio das imagens de controle tem

780 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
origem no período escravocrata. São inúmeras as influências dessas imagens tanto
em relação mulheres escravizadas e agora as mulheres negras livres, porquanto,
atuam na vida das daquelas mulheres em forma de várias violações, principalmen-
te, sexuais visto que os seus corpos eram usados de forma a satisfazer os senhores
e reprodutivos, ao passo que quando tinham filhos eram tratados como se não
fossem deles e em muitas vezes separados das mesmas; e na contemporaneidade
na vida de mulheres negras, através da forma com que elas são vistas pelo mundo,
destacando a sexualidade, a força como única possibilidade, entre outros estereó-
tipos estabelecidos à elas, como por exemplo as imagens de controle da mammy,
aduzidas por Patricia Hill Collins, que confluem com o estereótipo da “Tia Anastá-
cia”, aquela mulher negra cuida dos afazeres da casa e acaba sendo atingida pela
solidão da mulher negra.
Contudo, essa forma de dominação além de agirem sobre as mulheres negras
mais marcadamente, atuam na vida das mulheres brancas, na medida em que con-
tribuem com a rivalidade entre elas e, ainda, relacionam a pureza das mulheres
brancas à lascividade das mulheres negras.
Segundo Hill Collins as imagens de controle se relaciona com outros conceitos,
como os de “autodefinição”, “espaço seguro” e matriz de dominação”, que acabam
por não só entender a existência das mulheres negras, como também a forma com
que o Direito se amolda às vivências delas.
A seguir é essencial que entendamos, como mídia influencia a formação e de-
senvolvimento dessas imagens de controle, visto que ela de certa forma reforça
pensamentos racistas nas massas e, ainda, como se dá o processo de formação
dessas imagens.

CONTROLE E MÍDIA NO PROCESSO DE FORMAÇÃO DAS


IMAGENS DE CONTROLE
De acordo com Patrícia Hill Collins, os sistemas escravocratas apesar de conter
várias similitudes, entretanto, como ocorreram em contextos diferentes em cada
país, também tomaram rumos e perspectivas diferentes, à vista disso, acabou por
influenciar diferenças nos aspectos da vida social.
Esse mecanismo de dominação modificam-se conforme a conjuntura do sistema
de opressão também se modifica, dessa forma, o que juntamente com as vivências
particulares de casa uma, acaba levando a mudança da forma como as mulheres
enfrentam cada momento de influência das imagens de controle, para Hill Collins a
maneira como as mulheres negras resistem a elas por meio da autodefinição cons-
truída por elas nos espaços seguros. De acordo com Patricia Hill Collins:

Apesar dos desafios comuns enfrentados pelas mulheres negras


como um grupo, elas não têm experiências idênticas nem inter-
pretam experiências de maneira semelhante. A existência de te-
mas centrais não significa que elas respondam a esses temas da

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 781


Artes, memória e espaços
mesma maneira. Diferenças entre mulheres negras individuais
produzem padrões diferentes de conhecimento experiencial
que, por sua vez, moldam reações individuais aos temas cen-
trais.1

A mídia é forma de controle e reprodução de massa desse desse modo de do-


minação, através da justificação da branquitude em relação às violências e opres-
sões sofridas por muito tempo e ainda propagadas contra o povo negro, de forma
a contribuir para a manutenção dos privilegios e status quo da branquitude. Um
exemplo dessa propagação é a já citada aqui mammy “tia Anastácia” do “Sítio do
Pica Pau Amarelo”, uma das mais reproduzidas na mídia, que acaba por dar conti-
nuidade a romantização de escravas que cuidam de forma “carinhosa” da casa dos
senhores brancos, figura essa muito propagada pela mídia por meio de novelas,
filmes, series de televisão e outros meios da mídia, mostrando como as imagens de
controle atuam de forma contínua.

A CONTÍNUA DESVALORIZAÇÃO DA MULHER NEGRA


No período escravagista o meio de controle das mãos brancas sobre os corpos
negros se dava através da violência explícita e constante, onde assegurado ins-
titucionalemente, garantia o poder destes corpos àos senhores brancos e estes
faziam o que queria. Trazendo para a perspectiva que centra este trabalho, o da
mulher negra, é de amplo conhecimento que a exploração destas ia além da chiba-
ta, chegando propriamente aos seus corpos que eram violados por seus senhores
brancos. Essa política de exploração sexual sobre corpos negros perpassou o fim
da escravidão, sendo “justificado” a partir disso através de esteriótipos que desu-
manizavam estas mulheres e conferiam-nas sentidos bestiais quando se tratando
dos prazeres da carne; referiam-se a estas mulheres como mais sexualmente desi-
nibidas, estando sempre a procura de conjugação pois eram insaciáveis. Isso sem
dúvidas foi um mecanismo de mitos criados por pessoas brancas a fim de incenti-
var a exploração sexual de mulheres negras e garantir que não houvesse nenhuma
mudança no status social.
Esse processo pós escravidão resultou na desvalorização destas mulheres em
muitos campos da vida dessas, seja nos relacionamentos afetivos - mulheres negras
eram tidas como promiscuas e assim pouco confiáveis a se prender num relaciona-
mento, o que ocasiona duras consequeências no emocional e na autoestima dessas
mulheres além de ser acarretador da solidão da mulher negra - , na sua busca por
trabalho ou simplesmente na sua vida cotidiana, como por exemplo caminhar na
rua tranquilamente. A verdade é que as mulheres negras foram sujeitas a estere-

1 COLLINS, Patricia Hill; Pensamento Feminsta Negro: Conhecimento, Consciência e


a Política do Empoderamento; Tradução: Jamille Piheiro Dias; BOITEMPO; 1 Edição, 2019.
P.30.

782 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
ótipos que lhes impediram de viver normalmente por muitos anos da história e
grande parte desses estereótipos são decorridos da exploração sexual destes cor-
pos, onde as vítimas de estupro eram vistas como tendo perdido valor e dignidade
e tidas ainda como cúmplices em vez de vítimas; assim como diz Bell Hooks ([1981],
2019):

“Todos os mitos e estereótipos utilizados para caracterizar a


mulheridade negra têm origem na mitologia negativa antimu-
lher. Ainda assim, formam a base da maioria das investigações
importantes sobre a natureza da experiência da mulher negra.
Várias pessoas têm dificuldades em apreciar mulheres negras da
maneira que somos, porque querem impor uma identidade a
nós, baseada em vários estereótipos negativos. Esforços difundi-
dos para continuar a desvalorização da mulheridade negra torna
extremamente difícil, e muitas vezes impossível, para mulheres
negras, desenvolver um autoconceito positivo. Afinal somos dia-
riamente bombardeadas por imagens negativas[...]”2

Seja no contexto norte-americano em que escreve Bell Hooks ou no contexto


brasileiro de Lélia Gonzalez, fica evidente que a desumanização da mulheridade
negra foi um processo muito presente na sociedade, e ainda o é, o que causa tan-
tos efeitos na vida destas mulheres que mal conseguem sustentar o afeto por si
mesmas. Toda essa história que foi escrita por mãos brancas a fim de retirar todo
o valor dessas mulheres restando apenas a noção objetificada, ainda é sentida até
hoje nessas peles escuras, mas a inferiorização destas negras ajuda a aliviar a cons-
ciência moral dos opressores, afinal, servem como justificativa para a crueldade
infligida a estes corpos.

SUBALTERNIZAÇÃO DA MULHER NEGRA


A subalternização de mulheres negras pode ser visto aqui - depois das análises
feitas quanto às políticas de etiquetamento desses corpos como meio de desu-
manizar-los - tanto como resultado, como também meio de desumanização, afi-
nal, mesmo após o fim do período escravocrata era de extrema necessidade que
novas estruturas de poder se fizessem a fim de continuar sustentando o sistema
capitalista que se atualizava. Segundo a concepção defendida pela autora indiana
Gayatri Chakravorty Spivak em sua obra “Pode o subalterno falar?” ([1985], 2010),
o ser subalterno resume-se àquele de que a voz não pode ser ouvida, pois não está
conferido a uma posição que o permita ser ouvido; a autora enfatiza o fato de ser
subalterno em nada se liga a questão de identidade, mas sim de posição de su-
balternidade, portanto as pessoas podem deixar de ser subalternas. Trazendo isso

2 HOOKS, Bell; e eu não sou uma mulher? mulheres negras e feminismo; Rio de
Janeiro; Rosa dos tempos; trad. Bhuvi Libanio; 1 Ed. 2019. p. 144.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 783


Artes, memória e espaços
para a realidade da mulher negra, é possível dizer que esta é uma posição de tripla
subalternização - considerando que pela lógica capitalista as pessoas se classificam
entre o primeiro e o terceiro mundo - devido ao seu gênero, raça e classe.
As mulheres negras foram silenciadas por muitos anos através da exploração de
seus trabalhos braçais e de seus corpos na escravidão, mas isso perdurou mesmo
após o período escravagista através de novas políticas sociais de controle, uma
delas são as imagens de controle já citadas, que talvez sejam uma das mais efica-
zes durante todos os anos pois sempre tratada como algo natural pelos brancos
da época e assim passou a ser vista como natural no decorrer da construção da
sociedade que existe hoje.
Um dos fundamentos da subalternização é a violência epistêmica, é o projeto
hegemônico de construção do sujeito colonial como o Outro, aqui tudo se baseia
no poder de narrativa de um grupo - neste caso os brancos. Spivak vai falar da
utilização da narrativa deste grupo privilegiado em razão do Outro, criando falsa-
mente assim a ideia de “contar a história por ele” mas no fim significar apenas uma
manutenção de fatos que favoreça uma das partes, seja para a criação da imagem
de “branco salvador” ou “o Outro selvagem”; a autora fala ainda sobre dar voz ao
subalterno e não intermediar por este, fala sobre a necessidade de uma episte-
mologia do subalterno. Aproximando da realidade descrita neste artigo, é possível
aferir que a história sempre foi escrita pelos brancos, sob apenas suas perspecti-
vas, não dando oportunidade de voz alguma aos negros e negras dessa sociedade e
amenizando desta forma seus atos; além de criar a imagem destas pessoas negras
de uma forma que ainda se mantivessem as estruturas de poder sobre estes cor-
pos, no caso das mulheres negras, todo o conteúdo descrito acima neste artigo é
uma representação disto.
O intuito da população branca nunca foi verdadeiramente dar voz a estes gru-
pos, a estas mulheres, e sim fantasiar algo a fim de perpassar os anos como única
verdade, transformando pessoas em meros estereótipos e mitos e inferiorizando-
-os, o que acabou na marginalização destes corpos, impedindo por muito tempo
que esse grupo formulasse solidariedade - ou no caso dororidade - entre si e con-
solidace uma base de representatividade e voz; mas os tempos começam a mudar.
Hoje as mulheres negras lutam em busca da sua voz e se fazem ouvir, entretanto,
é importante ressaltar aqui a necessidade da autonomia destas vozes, não sendo
carregadas pela falsa representatividade do feminismo branco, mas tomadas como
próprias através do feminismo negro e do Movimento Negro em si.

O PODER DA AUTODEFINIÇÃO
Tomando como partida a necessidade das mulheres negras se fazerem livres
da posição de subalternização através da busca e expressão da própria voz quanto
um ponto de vista coletivo e autodefinido, é possível aqui entender a importância
da autodefinição para as mulheres negras diante das imagens de controle a elas

784 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
impostas, firmando assim um ato de resistência que visa substituir estas imagens
de controle pelo conhecimento autodefinido. É preciso antes de tudo, que estas
mulheres negras firmem uma relação de complacência para com elas mesmas, afir-
mando suas próprias individualidades.
Trata-se aqui do poder que elas estabelecem ao colocar o “eu” em evidência,
favorecendo suas próprias cumplicidades quanto comunidade e família, fortale-
cendo assim a unidade entre a mulheridade negra ainda que preservando a subjeti-
vidade de cada uma; desta forma a autodefinição e autovalidação tem como papel
o fortalecimento interno quanto unidade para que assim possam ser resistência às
imagens de controle impostas a si, pois é essencial que se trabalhe antes as ques-
tões que envolvam a liberdade e o respeito para com si mesmas, com seus corpos.
É preciso que se retome a confiança e a autoestima dessas mulheres, mas como
também dito anteriormente, é preciso que elas sejam sua própria representação e
consequentemente, sujeitas de si mesmas e donas de suas vozes.
Diversas estratégias de resistência têm sido formuladas e reformuladas, pen-
sando que as formas de controle também se atualizam; desta forma, podemos ver
uma destas políticas de resistência formulado como conhecimento de oposição que
consiste na organização de novas formas de expressão de fala e escrita, quais com-
binam o pensamento crítico ao pensamento convencional, sendo estas produções
de conhecimento sobre estes grupos subalternizados produzidos pelos mesmos;
desta forma é constituída a própria voz, sem intermediários. Estas e muitas outras
estratégias têm ganhado força, constituindo uma base de resistência por dentro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
As imagens de controle foram instituídas como uma nova forma de manutenção
de poder sobre os corpos negros após o fim do período escravocrata, sendo esta
uma política muito mais difundida entre a população branca como algo natural,
visto que o pensamento de que os grupos não brancos precisavam ser ensinados e
“domesticados” ainda no período de escravidão era tido como justificativa para di-
versos atos dos povos colonizadores, o que acarretou na inferiorização destes gru-
pos, principalmente a negritude escravizada. As mulheres negras foram impostas à
exploração sexual durante muitos anos mesmo após o fim da escravidão e isso foi
utilizado para a formulação da imagem da mulher negra lasciva, o que gerou gran-
des consequênicias à sua convicência perante a sociedade, afinal, eram constante-
mente lembradas de “seus lugares” quanto pessoas inferiores. Isso resultou na su-
balternização desta mulheridade, calando-as e subjugando-as à realidade descrita
como Outro numa história branca que as colocavam como corpos desumanizados.
A sobrevivência destas mulheres negras à todas as violências que silenciam suas
experiências custam estratégias de resistências, estas que se renovam ao ponto
que a matriz de dominação também se inova; desta forma, a autodefinição possui
uma grande importância, visto que essa envolve desafiar o processo de validação

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 785


Artes, memória e espaços
de conhecimento político que resultou em imagens de controle estereotipadas
da condição da mulher negra. Este processo se consolida quando estas mulheres
organizam-se nestas estratégias quanto comunidade, afinal o que busca-se aqui é
que a voz das mulheres sejam ouvidas quanto grupo pois uma falsa representação
pode ser instrumentalizada pela renovação dos meios de controle que visam man-
ter estes grupos marginalizados onde estão, sendo combustível para a máquina do
capitalismo.

REFERÊNCIAS

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ca do Empoderamento; Tradução: Jamille Piheiro Dias; BOITEMPO; 1 Edição, 2019.

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mulher negra subalterna fala: diálogos entre gayatri chakravorty spivak e carolina maria
de jesus; Instituto de Sociologia; Fundação para Ciência e Tecnologia; Agosto de 2018;
Disponível em: >http://isociologia.up.pt/pt-pt/working-paper/wp-74-quando-mulher-ne-
gra-subalterna-fala-di%C3%A1logos-entre-gayatri-chakravorty-spivak-e< acessado em
09/10/2020.

SPIVAK, Gayatri Chakra Orty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG.
2010.

AUTORIA
Aline Alves Aleluia
Graduanda em Direito na Universidade Federal do Paraná
E-mail: alvesalinelg@gmail.com

Eduarda Gonçalves Marengo


Graduanda em Direito na Universidade Federal do Paraná
E-mail: dudamarengo@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4833062327624763

786 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
“ELA FAZ O DESTINO DELA”: UMA HISTÓRIA DE
RESISTÊNCIA EM PERNAMBUCO -1854
Tatiany de Oliveira Simas

Era um desses dias em que a natureza


parece entregar-se toda a brandos folgares,
era uma manhã risonha,
e bela como um rosto de um infante,
entretanto eu tinha um peso enorme no coração.
Sim eu estava triste,
e não sabia a que atribuir essa tristeza [...]
minha filha sorria-se para mim [...]
deixei-a nos braços de minha mãe
e fui-me à roça colher milho. [...]
e logo dois homens apareceram,
e me amarraram com cordas.
Era uma prisioneira- era uma escrava!
(REIS, 2004, p. 116)

INTRODUÇÃO
Esse é o relato da preta Suzana, que conta, nesse trecho, o modo como foi
capturada e se tornou uma escrava. A preta velha africana nunca esqueceu o seu
passado de mulher livre com sua família e filha, que ficou para trás, lá no continen-
te africano de onde foi retirada à força. Suzana é uma das personagens do livro
Úrsula, escrito por Maria Firmina dos Reis1.
Ao relembrar como perdera sua liberdade, notamos que Suzana possui a consci-
ência de ser oprimida mesmo ao tempo em que havia a subserviência imposta pelo
cativeiro (PINHEIRO, 2016, p.63). A personagem, ao se ver diante da morte, tem
uma resignação sábia, em um tom meditativo que, em si mesmo, forma um ato
de resistência pois, ao ser incentivada a fugir, responde que, por ser inocente, não
fugiria (NASCIMENTO, 2009,p.78). Para Suzana, a morte seria um descanso, o único
meio de alcançar a liberdade. Reis (2004) também deu vida à escrava Joana que, no

1 Maria Firmina dos Reis, uma escritora negra que viveu durante muito tempo no ostracismo
e foi retirada da poeira da História na década 1970, momento significativo na trajetória do movi-
mento negro e do movimento feminista no Brasil. Firmina nasceu e viveu antes, durante e depois da
abolição, e, assim como algumas de suas personagens, resistiu ao regime, pois no prefácio de seu
livro, reconheceu a dificuldade para uma mulher divulgar seu trabalho, ainda assim foi audaciosa
e o publicou. Vários são os estudos a respeito da vida e da obra de Maria Firmina (MORAIS, 1975;
CUNHA, 2005; NASCIMENTO, 2009; SILVA, 2013), uma mulher negra, considerada a primeira a publi-
car um romance no Brasil, que produziu um texto no qual deixa registrado o seu caráter abolicionista
(MORAIS, 1975).

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 787


Artes, memória e espaços
conto A Escrava, narra a história da personagem: seus pais foram enganados pelo
senhor, o qual recebeu deles o dinheiro pela alforria da filha, mas entregou um do-
cumento falso. Depois da morte de seus pais, Joana foi escravizada e ainda perdeu
dois de seus três filhos que foram vendidos. Por fim, Joana morre durante uma de
suas fugas, mas consegue que seu último filho fique livre do cativeiro.
Suzana e Joana são figuras fictícias que representam cada qual à sua maneira,
a resistência das mulheres escravizadas na vida real, pesquisadas na poeira dos ar-
quivos, e que serviram de base para este estudo. É valioso que possamos pensar a
história partindo da ótica de todos os grupos que a compõe, e a mulher negra es-
cravizada faz parte de um deles. Por isso, opto por investigar o caso de Francisca, e
a partir dele, contar um pouco da história de mulheres que foram exploradas, mas
que também resistiram, contestando não apenas a partir da resistência voltada
para as desobediências cotidianas e os crimes miúdos, mas, agindo violentamente
ao praticar homicídios contra seus senhores.

AMEFRICANIDADE E RESISTÊNCIA
As mulheres negras escravizadas estiveram envolvidas nas mais diversas formas
de resistência, desse modo podemos considerá-las agentes de suas próprias histó-
rias mesmo diante de um quadro de repressão constante. E para alicerçar essa afir-
mativa me apoiei na perspectiva de Lélia Gonzales. Mulher negra e intelectual que
se tornou agente de sua própria história, e conseguiu romper com a lógica brasileira
que negava o acesso de pessoas negras à universidade. Gonzales analisou com
profundidade as vivências das mulheres negras, observando e refletindo sobre
suas realidades, exclusões e resistências. Foi pioneira ao questionar o classismo e
o racismo no feminismo hegemônico e seus efeitos na vida de mulheres negras, a
ponto de criar a categoria Amefricanidade. Amefricanidade é uma concepção que
representa a ancestralidade dos povos nativos da América, os indígenas, e os po-
vos vindos da África, que durante o processo de colonização sofreram uma brutal
tentativa de apagamento e silenciamento. Entretanto, esses grupos são principais
constituintes do território da América e mais ainda, da América Latina. Recuperar
esse conceito produzido por Lélia é trazer à luz uma narrativa de histórias de luta
dos povos indígenas e africanos, é retomar nossa ancestralidade que mesmo tendo
sido reprimida pelo colonizador, sempre esteve presente nos diversos modos de
resistir, nas inúmeras estratégias e táticas de sobrevivências de indígenas e afri-
canos.

Para além do seu caráter puramente geográfico, a categoria de


amefricanidade incorpora todo um processo histórico de inten-
sa dinâmica cultural (adaptação, resistência, reinterpretação e
criação de novas formas) que é afrocentrada,... isto é, referen-
ciada em modelos como : a Jamaica e o akan, seu modelo do-
minante, o Brasil e seus modelos yorubá, banto e ewe-fon. Em

788 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
consequência ela nos encaminhas no sentido da construção de
toda uma identidade étnica e ao mesmo tempo particulares.(
GONZALEZ, 1988,p.76-77)

Ou seja, pensar de forma amefricanista é também centralizar, tornar primária


as existências e resistências de mulheres e homens colonizadas(os). Gonzales nos
permite pensar a partir da realidade do indivíduo e ou do grupo indígena e negro.
Além disso, ela não pensa apenas o Brasil, mas também a cruzada diaspórica, as
semelhanças com contextos de populações negras de outros lugares da Améri-
ca Latina e do Caribe, América do Norte e de países africanos. A professora Lélia
também propõe olhar para as mulheres negras, para dentro das vivências dessas
personagens. Desse modo, o pensamento de Lélia Gonzales fundamenta esta pro-
posta de refletir, permitindo entender o incômodo advindo do exercício de estudar
e conhecer a realidade de uma mulher negra, que em pleno século XIX responde
de maneira violenta a um regime escravista que tenta retirar a sua humanidade.

OBJETIVOS
O objetivo desse estudo é reforçar a compreensão a respeito das resistências de
mulheres escravizadas a partir do crime perpetrado por Francisca. Compreender
como essas mulheres reagiram frente a um regime que usurpava a sua liberdade
e as exploravam de todas as formas possíveis durante a escravidão no século XIX
(1854). Desse modo, procurei analisar a rebeldia de Francisca no âmbito do crime
como forma de resistência a alguns dos componentes do sistema escravista, den-
tre eles: trabalho compulsório, submissão, castigos violentos e humilhações. Além
disso, busquei entender quais as motivações e as circunstâncias que levaram Fran-
cisca a praticar infrações contra o regime opressor escravista.

METODOLOGIA
A base primordial do estudo é a pesquisa documental. O documento analisado
é uma petição de graça, que é o mesmo que solicitar o perdão da pena. Foi extraído
do arquivo da Biblioteca Nacional e é sobre o crime cometido por Francisca e seus
companheiros que também eram escravizados durante o século XIX em Pernambu-
co (1854). A pesquisa bibliográfica também fez parte deste estudo.

“A BARRA É PESADA”: FRANCISCA X FRANCISCO


A história de Francisca2 se passa no Sítio da Boa Vista em Goiana, o ano era 1854.
Francisca era escrava de Francisco Cavalcante da Cunha Vasconcelos, que morava

2 O documento que trata do caso de Francisca é uma solicitação de comutação de pena dos

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 789


Artes, memória e espaços
sozinho. Ela era responsável pelos afazeres domésticos e era casada com o africano
Thomaz, que também era cativo do mesmo senhor, porém ele trabalhava na lavou-
ra.
Francisca tinha “[...]ódio de seu senhor[...]”, pois era tratada com dureza. Pou-
co antes do crime ocorrido, ele a havia açoitado, atando-a a um carro e, um mês
antes, havia feito o mesmo com Thomaz, o qual, ainda se encontrava doente em
virtude dos castigos sofridos. A cativa tinha em mente fugir ou dar cabo da vida de
seu senhor, assim, contou sobre seus planos a seu compadre e amigo Ignacio. Este
se colocou contra a fuga, mas a favor do assassinato e ainda convidou seu irmão,
Luiz, que hesitou no início, mas, depois aceitou.
No dia combinado, os dois escravos trocaram de roupa para se disfarçarem,
e Francisca vestiu um paletó preto. Ela entregou um cacete aos dois e ficou com a
mão de pilão, a qual, utilizou para dar o primeiro golpe contra Francisco, que estava
jantando sentado à mesa. Os três entraram de súbito.
Francisca havia se preparado com cuidado para o crime, varreu a sala para que
não fossem ouvidos os passos durante a execução. A vítima, depois de ser golpeada,
levantou-se, mas logo caiu de bruços no chão. Ignacio e Luiz continuaram as agres-
sões, e por fim, Luiz cravou uma faca no pescoço de Francisco. Concluído o plano,
Francisca deu aos seus comparsas um “[...]relógio com corrente de ouro, um pu-
nhal aparelhado de prata e uma peça de madapolão[...]” tecido de algodão branco,
todos pertencentes à vítima, e em seguida, Ignacio e Luiz se retiram para a casa de
seu senhor. Foram todos presos. Ignacio e Luiz confessaram o crime, mas Francisca
se recusou a admitir sua culpa e, em 20 de abril do mesmo ano, foi decretada a
pena de morte para os três. Levando sempre em consideração que se trata de um
documento oficial, ou seja, produzido pelas autoridades da época, é importante
que fiquemos atentos para as informações nele contidas. Analisemos o caso.
A descoberta de Francisca, nesse documento, foi um acaso, pois, se trata de
uma petição de graça, solicitação de comutação de pena do réu Ignacio, ou seja,
não é o processo do crime em si, mas, a partir desse pedido, conseguimos conhe-
cer a história de Francisca. Trago aqui a liderança de Francisca nesse episódio. Ela
premeditou todo o crime, limpou a casa para que Francisco não ouvisse o barulho
das pisadas, planejou dia e hora, armou os comparsas, se disfarçou, pagou pelos
serviços prestados e mais, negou a sua participação até o fim, apesar de ter sido
descoberta junto com seus cúmplices.
A atitude de Francisca revela a liderança feminina no modo de resistência veri-
ficado nesse caso. Francisca foi protagonista de um crime o qual ela planejou passo
a passo: começo, meio e fim da execução. Entretanto, não foi conferida a ela a
agencia do crime, pois, no documento pesquisado, Francisca aparece de maneira
secundária. Esse mesmo documento foi detectado por Ribeiro (2005), mas ele não
cita o nome de Francisca. Ribeiro (2005) afirma que era raro a presença de mulheres

escravos: Ignacio e Luiz. Foi encontrado no Arquivo Nacional. Fundo do Ministério da Justiça. GIFI;
Prisões, anistia, perdão, comutação de penas e petições de graça (1822-1888) série 5H108.

790 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
envolvidas em crimes sanguinários, e mais ainda, dificilmente eram enforcadas,
independentemente de serem livres ou escravas. Seria o fato delas serem minoria
na prática de homicídios a razão de serem apresentadas de modo secundário nos
estudos sobre essa temática?
Ao se verificar nos autos como era a relação entre Francisca e seu senhor, per-
cebeu-se que ele a havia castigado recentemente e, além disso, também açoitou o
seu marido, que se encontrava enfermo devido aos castigos sofridos, ou seja, a vio-
lência física fazia parte do cotidiano da escravizada. Está registrado na declaração
dos réus, que “[...]Francisca não podia mais suportar o senhor, porque a castigava
constantemente[...]”3. Dessa forma, não aguentando mais os maus tratos, decidiu
pelo assassinato.
Foram identificadas também as relações familiares, de compadrio e de amizade
entre os envolvidos, as testemunhas e as redes de sociabilidade dos(as) escraviza-
dos(as). Francisca era casada com Thomaz, mas não há registros sobre a união en-
tre Francisca e Thomaz. Não sabemos se era legítimo, ou seja, realizado na igreja.
Conforme Rocha (2007), os casamentos entre pessoas negras na orientação cristã,
foram poucos, fossem elas escravas ou não, e normalmente, se casavam com pesso-
as do mesmo grupo social. Entretanto, esse fato não os impedia de viver consen-
sualmente em família.
Ignacio e Luiz eram irmãos, e amigos de Francisca. Maria, uma das testemunhas
que suspeitava que eles tivessem praticado o homicídio, era irmã dos réus Ignacio e
Luiz. A testemunha Antônia, também escrava da vítima, informou desconfiar que
Francisca estivesse envolvida no assassinato do senhor. Ela era amiga de Thomaz
e os dois já haviam conversado sobre a raiva que Francisca tinha de seu senhor.
Ou seja, mesmo as(os) escravizadas(os) trabalhando em espaços diferentes, existia
um vínculo entre eles, uma rede de comunicação. Ignacio e Luiz eram escravos de
Manoel Bezerra Cavalcante Jardim. Os dois saíram dizendo que iam ao “[...]Enge-
nho São Sebastião e voltaram alta noite[...]”, todavia, “[...]apareceram umas pretas
perguntando por Ignacio, e dizendo que não tinha ele ido ao São Sebastião4[...]”
. Como vemos, parecia ser comum as(os) escravizadas(os) se deslocarem de um
engenho a outro, mantendo contato com outras(os) cativas(os) e estabelecendo
vínculos. Podemos imaginar que esses laços eram também firmados com livres e
libertos.

Enquanto estratégia de sobrevivência, a família escrava, mesmo


quando se mostrou fraca perante o poder dos senhores, per-
sistiu como uma instituição fortemente arraigada entre os cati-
vos, permitindo que, nela amparados, mantivessem-se sempre

3 Fundo do Ministério da Justiça. GIFI; Prisões, anistia, perdão, comutação de penas e peti-
ções de graça (1822- 1888) série 5H108.
4 Fundo do Ministério da Justiça. GIFI; Prisões, anistia, perdão, comutação de penas
e petições de graça (1822-1888) série 5H108

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 791


Artes, memória e espaços
os elementos de uma cultura escrava própria, e evitando que os
escravos perdessem sua personalidade (MOTTA, 1999, p. 209).

As relações afetivas constituídas pelas(os) escravizadas(os) eram uma forma de


suavizar o cativeiro, na tentativa de sobreviver com o mínimo de dignidade. Para
Slenes (1999), a formação familiar e a criação de laços de parentesco colaboravam
com a conservação das heranças culturais africanas, caracterizando formas de re-
sistência. É o que afirma Gonzales:

A experiência histórica da escravização negra, por exemplo, foi


terrível e sofridamente vivida por homens e mulheres, fossem
crianças, adultos ou velhos. E foi dentro dessa comunidade es-
cravizada que se desenvolveram formas políticos-culturais de
resistências(...)(GONZALEZ,2011,p.18) .

Talvez para Francisca, quando seu senhor castigava Thomaz, estava de alguma
maneira desrespeitando a sua relação, gerando, assim, mais revolta na escraviza-
da. As relações estrategicamente construídas pelas(os) escravas(os) merecem ser
observadas, pois, por muito tempo, foi afirmada a inexistência de uma constituição
de laços afetivos entre as(os) cativas(os).
Para todos os efeitos, as histórias propagadas pelos viajantes, estrangeiros e
brasileiros, eram de que as(os) escravizadas(os) viviam de forma desregrada, em
devassidão sexual e instabilidade familiar. Pesquisadores como Bastide e Fernan-
des (1971) acreditavam que não foi possível a existência de uma família escrava,
entretanto, estudos vêm evidenciando a constituição da família escrava e de rela-
ções de compadrio que vigoraram e gozaram de vínculos estáveis (FLORENTINO;
GOÉS, 1997; SLENES, 2000; REIS, 2007; ROCHA, 2007).
Para Reis (2007), uma união matrimonial legítima ou consensual fazia muita dife-
rença, pois, significava ser amparado em momentos difíceis. Sobre isso, Florentino e
Goés (1997) afirmam que a formação da família estimulada pelos senhores era uma
forma de instaurar a “[...]paz nas senzalas[...]”. O parentesco entre as(os) escra-
vizadas(os)s era um componente que aliviava a violência do escravismo “[...]pois
favorecia uma solidariedade entre eles, podendo pacificar conflitos [...]” e mais
ainda, é considerado uma forma de resistir à escravidão.

[...] constatamos que o descontentamento do escravo, diante da


impossibilidade de cultivar suas relações familiares, de preservar
seus laços afetivos, foi demonstrado em circunstâncias as mais
variadas, a exemplo das fugas em família ou em busca da famí-
lia, dos crimes contra os proprietários de escravos, do suicídio
de escravas juntamente com o assassinato de seus filhos [...] a
luta pela preservação da família e a solidariedade entre parentes
constituíram-se em mais uma forma de resistência escrava, de
resistência à coisificação e a desumanização (REIS, 2007, p.50).

792 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
Essa afirmação me leva a pensa que quando Francisca consulta seu compadre
Ignacio para saber qual rumo tomar no seu plano, revela a relação de confiança
existente entre os dois. Nos autos, a cativa se refere ao escravizado como amigo ín-
timo, ou seja, havia um vínculo de amizade entre eles, visto que ele não só a ajudou
a se decidir, como também se tornou cúmplice na execução do plano. Aqui, perce-
bemos o estabelecimento de laços de amizade e parentesco que também eram uma
maneira de sobreviver ao escravismo.
Thomaz também aparentava ter uma relação de simpatia com Antônia, a quem
confidenciou sobre os planos de sua esposa. Luiz, de alguma forma, demonstra
empatia por Francisca ou pelo menos apreço, pois, também foi comparsa no crime.
Percebemos assim, uma solidariedade entre eles. As escravizadas(os) se apoiavam,
criando laços como uma maneira de se fortalecerem diante das agruras da escra-
vidão. Ao que parece, não foi somente pelos castigos que Francisca teria tirado a
vida de seu senhor, pois, além da relação de violência que existia, os maus- tratos
ameaçavam a sua relação com Thomas. Afinal, o marido havia ficado doente de-
pois de ter sido açoitado.
No entanto, nem só de parceria e amizade eram constituídas as relações, tendo
em vista, que Antônia parecia não demonstrar estima por Francisca, tendo tes-
temunhado contra ela. Teria Antônia algum interesse em Thomaz? Afinal, existia
uma amizade entre eles. Muitas vezes, na hora de garantir a sobrevivência valia até
denunciar o outro que podia ser um igual.
Nesse sentido, é importante pensarmos que tínhamos no Brasil um espaço re-
pleto de pessoas escravizadas de variadas partes do continente africano, assim
como também já existia um número expressivo de crioulos, aqueles escravizados
que por aqui nasceram. Esses dois grupos, levando em consideração a diversidade
africana, provavelmente tinham experiências diferentes. O crioulo, de alguma ma-
neira, estava mais adaptado à realidade local e o africano era um recém- chegado,
ou não, mas que, provavelmente, ainda tinha um forte apego às suas raízes.
Em algumas situações, uma escravizada(o) poderia possuir certos ganhos que
a(o) colocava em melhores condições que a de outros, como por exemplo, a pro-
messa de uma alforria, o que poderia fazer com que a(o) cativa(o) estivesse muito
mais interessado em garantir seus interesses a proteger os demais. Logo, nem sem-
pre havia uma relação de cumplicidade. Talvez, Antônia tivesse motivos particulares
que a levaram a delatar Francisca. Os envolvidos no crime, Francisca, Ignácio e Luiz
foram apenados em maio de 1854 de acordo com a Lei de 10 de junho de 1835 e
ficaram aguardando o cumprimento da sentença na cadeia.
A pena de morte não foi aplicada e, em 1881, Ignacio entrou com um pedido de
comutação de pena. Foi atendido sendo aplicada a galés perpétua, isto é, pena de
trabalho forçado. O Código Criminal de 1830 adotou esse tipo de sanção, determi-
nando no artigo 44 os réus a andarem com calcetas nos pés, correntes de ferro e a
empregarem-se nos trabalhos públicos da província onde ocorrera o delito, fican-
do assim, à disposição do governo. Mas, em 1888, Ignacio entrou com novo pedido

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 793


Artes, memória e espaços
solicitando o perdão. Ele argumentou que já tinha mais de 70 anos e que o tempo
que ele esteve preso foi suficiente para pagar pelo crime que cometeu, além disso,
tinha bom comportamento e não possuía instinto perverso e sanguinário5.
Esse argumento remete à perspectiva apresentada por Macedo (1991), que
trata da escravidão como capaz de corromper o negro, pervertendo sua moral e
fazendo deles vítimas algozes, de forma a comprometer a estabilidade social como
um todo, e mais ainda, desagregando a família do senhor. Existe um ponto inte-
ressante nessa exposição de Macedo, no sentido de que a escravidão deteriora-
ria o escravizado, afinal, não lhes foram deixadas muitas escolhas. Era necessário
lutar com o que se tinha ao alcance. Não estou aqui querendo concordar com a
concepção de um escravo violento, truculento ou pavoroso. Hoje, as pesquisas de-
monstram que quando se trata de relações escravistas havia muita diversidade,
não se pode reduzir a(o) escravizada(o) a uma ingênua(o) ou a um heroína/herói,
mas quando Ignacio argumenta que não tinha instinto perverso e sanguinário, de
alguma forma, ele está explicando que o ato praticado não se deu por ele ser cruel,
desumano, mas sim, porque foi colocado em circunstâncias que favoreceram uma
ação violenta.

(...) não se pode deixar de levar em conta a heroica resistência e


criatividade na luta contra a escravização, o extermínio, a explo-
ração, a opressão e a humilhação. Justamente porque, enquan-
to descendentes de africanos, a herança africana, sempre foi a
grande fonte revificadora de nossas forças (GONZALES, 1988,
p..78).

Era comum as(os) cativas(os) agirem de acordo com as circunstâncias. Cada


uma luta com as armas que tem e muitos fugiam, se suicidavam, furtavam, faziam
intrigas, algazarras, bebiam ou simplesmente não reagiam. Outros praticaram ho-
micídios como forma de defesa, de se ver livre do cativeiro ou mesmo numa ten-
tativa de sobreviver com o mínimo de dignidade. Cada um enfrentava as privações
do regime escravista com que lhe era disponível e /ou que estava ao seu alcance.
No recurso para a permuta da condenação, consta que Francisca veio a falecer,
porém, não são explicadas as condições em que ocorreu a morte. Luiz havia fugido.
Quanto a Ignacio, está escrito na página primeira do processo: “[...]Ignacio foi per-
doado por decreto de 19 de abril de 1889 (Semana Santa)”[...]6, isto é, quase um
ano após a abolição da escravatura.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Entendo que foi possível compreender a partir da história de Francisca, um pou-
co das vivências de cativas envolvidas em ações de resistência. Sem generaliza-

6 Fundo do Ministério da Justiça. GIFI; Prisões, anistia, perdão, comutação de penas e peti-
ções de graça (1822- 1888) série 5H108

794 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
ções, pois, a conjuntura do Brasil colônia, seja em Pernambuco, ou em qualquer
parte do país no século XIX era bastante diversificada, as relações não foram sin-
gulares, muito pelo contrário. Francisca encontrou cumplicidade em Ignácio e Luiz
para perpetrar um assassinato contra o senhor que costumava castigar a ela e ao
marido. Acompanhar o comportamento de contestação de Francisca é compreen-
der que certamente houveram diversas Franciscas e que essas mulheres não eram
coisas, elas sofriam, choravam, sentiam medo, morriam, lutavam desobedeciam,
desacatavam. Ademais também foi possível refletir as articulações, os meios de so-
ciabilidade e organização familiar que se constituiu nas relações de Francisca e ao
redor dela. presentes nos autos do processo.

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AUTORIA
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Professora do ensino básico na rede estadual da Paraíba.
E-mail: Tatiany_simas@hotmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4703-756X
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1771818570145322

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Artes, memória e espaços
ST 62
Temas e debates
em História da
África
ÁFRICA, NEGRO E RAÇA DEBATE PROPOSTO POR
ACHILLE MBEMBE A PARTIR DA OBRA A CRÍTICA
DA RAZÃO NEGRA

Bianca Lopes Brites

INTRODUÇÃO
Intrigantemente, a própria ideia de certeza, ou, por assim dizer, a verdade, en-
tão preceito que garante fidedignidade a algo, especialmente que se refere ao ato
de conhecer, está entre as questões que poderiam ser classificadas enquanto te-
mas perenes da filosofia e, por conseguinte, das ciências humanas e a própria ciên-
cia em absoluto, em termos de formação disciplinar ocidental. Entre tantos outros
assuntos pertinentes a este tema, no que tange às relações humanas e seus múl-
tiplos ramos, cujos desdobramentos em torno de agrupamentos tornaram-se so-
ciedades, culturas, organizações políticas e manifestações cunhadas a partir destas
que enlaçaram os mais profundos questionamentos. O bem e o mal são definidos
segundo parâmetros do pensamento tido como ocidental europeu como aquilo
que é considerado bom e passível de ser reproduzido e o que é considerado mal,
de ser eliminado. As definições de certo e o errado em grande medida associa-
das as primeiras dicotomias morais como aquilo que deve perpetuar-se enquanto
agência humana e o que deve ser modificado a fim de alinhar-se ao primeiro são
disposições que compõem o campo da ética, da moral, respectivamente.
Tais atributos passar a constituir o regimento de como “deve” ser o convívio
do indivíduo associado a outro indivíduo, do Eu e do Outro e da própria gênese
da diferença que diferencia o Ser de um Outro, ligada a ideia de sobrevivência,
manutenção da existência, bem-estar, dignidade, alteridade, preocupações pro-
fundamente políticas, por excelência. De tal maneira, o próprio estatuto do Ser en-
quanto Humano, em estabelecer o que é idêntico a si e ao que denomina enquanto
Outro. E, ademais, o que é suficiente para denominar o ente que não é idêntico a
si enquanto um Outro? O mais pertinente em inquirir acerca desses tópicos seja
no que implica essa classificação de Outro a partir da diferenciação no que tange a
qualidade atribuída a este. A qualidade, em questão, está associada a uma forma
de subclassificação de grupos, culturas e maneiras de se comportar que formam
status baseados em ideias e ideais alocados para o que, em um determinado arran-
jo populacional, sejam o fundamento do que este deve ou não deve fazer. Aquele
que se difere pode, em muitos casos, ser classificado como inferior àquele que
cumpre o andamento, por assim dizer, do que fora instituído como a Verdade1.

1 Observação posta neste ponto incide justamente nas reflexões que as teorias, sobretudo
da filosofia da linguagem ou que articulam esta dimensão, como aspectos cruciais para o debate
epistêmico, opondo-se completamente às concepções objetivistas que assegurariam uma natureza do

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Artes, memória e espaços
De tal maneira, o debate engendrado a partir da obra “A Crítica da Razão par-
te de questionamentos nesse sentido uma vez que, ao tratar da problemática do
racismo, percorre os caminhos da produção intelectual ocidental europeia e do
pensamento negro contemporâneo. Reflexões sobre a África, o Negro e a Raça
permeiam a própria definição de Ser, Mundo e Civilização a medida que as dinâmi-
cas de identidade e diferença que ensejam a noção de pertencimento, similitude
e elementos de classificação consoante a um pensamento fundamentalmente te-
leológico abrem as chaves para as minúcias supracitadas. No contexto contempo-
râneo, os movimentos políticos e discursivos a partir de uma ética que clama pela
igualdade dos seres urge que estas mistificações sejam cada vez mais revisitadas.

CONSIDERAÇÕES SOBRE ASPECTOS DO PENSAMENTO


EUROPEU
Introdutoriamente, pensar sobre determinadas cronologias categorizadas en-
quanto “Antiguidade”, “Medievo” e “Modernidade”, ainda que se esteja experen-
ciando um confrontamento de paradigmas com relação a própria ordenação do
tempo histórico, pode-se aproveitá-las enquanto “peças-chave” para mapearmos
problemas fundamentais da ética contemporânea. Diante de certas constatações
que se referem sobretudo a dinâmicas discursivas e políticas formalizadas como a
unidade do ocidente europeu percebe-se a existência de antinomias de definição
classificatória de frente as definições de Eu e Outro, identidade e diferença. Do
contexto greco-romano a cristandade europeia há definições como bárbaro e civi-
lizado, cristão e não cristão, esta última mais destacada enquanto “herege”, que já
estabelecem relações significativas de poder hierarquizante devido as assimetrias
as quais foram cunhadas. O pretenso “inimigo herege” carrega as determinações
de um caráter pecaminoso atribuído a escuridão epidérmica como protótipo de
indivíduo. Sequencialmente, no resplandecer das grandes navegações e a introdu-
ção das práticas coloniais em solos americanos, concebido como “Novo Mundo”
pelos protagonistas colonizadores, valem-se destes marcadores religiosos para dar
seguimento ao seu intento.2
A chamada “Modernidade”, marcado por tais eventos, segue-se como a mudan-
ça paradigmática do território supracitado que caminha descolando-se mais e mais

conhecimento científico em funcionalidades específicas que não levam em consideração o processo


de construção do mesmo. Seguindo-se do aporte desenvolvido por Mbembe (2014), ressalta-se de
sobremaneira as dimensões do poder e saber na formulação da ideia de raça a partir de sua genealo-
gia.
2 Tal debate articula diretamente às reflexões sobre as concepções de identidade e diferença,
estabelecendo problemáticas que vem desde a antiguidade greco-romana para a definição dos seres
e classificação enquanto tais. Questiona-se aqui,a partir da contribuição de Mbembe (2014) a ideia de
fixação de atributos que visam a formulação de uma suposta diferenciação, crucial para fundamentar
a nível de pensamento racional formas políticas de espoliação, dominação, entre outras práticas de
violência, que vem a ferir a ideia de Ser caso fossem praticadas contra integrantes de sua definição a
priori.

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Artes, memória e espaços
da exclusividade cristã como forma unilateral de conhecer e entender o mundo.
O Iluminismo constitui-se como movimento característico deste período cujo em-
preendimento que buscou resgatar os preceitos da antiguidade greco-romana. Tais
preceitos almejam um retorno ao estudo de obras consideradas clássicas para o
cânone ocidental, como obras de Aristóteles e Platão, entre outros conhecimentos
que reivindicam um novo pensar sobre os fenômenos e a própria definição de um
método científico. Similarmente, o humanismo marca um pouco de passagem em
que o centro das questões não subsiste unicamente na metafísica do Deus cristão,
passando a existência humana em matéria um foco de preocupação saliente. Intro-
duz-se a secularização do modo de entender a Natureza e tudo o que dela vem: as
propriedades, mecanismos, operações, as sistematizações numéricas que permiti-
riam compreende-la, assim como a observação e o experimento para comprovar
essa compreensão. É válido ressaltar que o contato com povos árabes muçulmanos
e outros povos não declarados está ocultado como referencias fundamentais para
este novo processo naquele local e, como consequência, os novos conhecimentos
passam a ser identificados como descobertas de intelectuais precisamente locali-
zados nessa particular região do globo.
De tal maneira, a divindade monoteísta ainda se faz presente, como que seden-
ta pela culpabilização e estigmatização na sua eterna cruzada, cuja capa de seus
peregrinos revela o véu de almas dependuradas em seu movimento constante, que
se justificara sob a égide de uma suposta batalha entre o bem e o mal. Naquele
período não eram somente os conflitos armados que sustentaram o intento da
sobreposição pretensiosa monopolizadora das atribuições daquilo que é o Belo, o
Sagrado, a Moral, e o Verdadeiro. Não bastasse isso, o enclausuramento de entes
da Terra tido como misteriosa, cheia de sons, tambores, pinturas e divindades múlti-
plas que divinizam aquilo que é natural como entrelaçamento de um Ser no mundo
singular e genuíno, que se deslocaram de um certo lugar nomeado como “África”.
Pensadores como Buffon, Kant, Voltaire e Montesquieu, como exemplos canônicos
da filosofia política proveniente do continente europeu afirmam em vários aspec-
tos uma suposta condição de inferioridade das populações do continente africano,
sendo algo constatado na obra de Mbembe.3 O pensamento dos referidos autores
almeja traçar os elementos fundamentais para a constituição do Ser enquanto por-
tador das maiores virtudes da moral, civilidade, estética, racionalidade, o que lhe
confere, enfim, seu estatuto enquanto humano. Todavia, justamente aí estão as
explanações estapafúrdias elaboradas a fim de, novamente, classificar entes, uma

3 “[...] A partir da vigência da racionalidade moderna em que outras formas de expressivi-


dade e modos de habitar o mundo perpassam pelas possibilidades de descrição dentro de critérios
restritos e não preocupados de fato em conhecer as coisa para além de seu cosmos , entender esse
complexo agregado e movimento de pessoas e culturas acabou por se restringir a entrada apenas
pela dança e pelo transe; dimensão onírica, lugar libertador e catártico, músicas apaziguadores entre
gestos e gritos, gestos e movimentos, a voz , o sopro, uma nova ideia de ser humano. [. ] (MBEMBE,
p. 94, 2017)

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Artes, memória e espaços
vez que, caso contrário, não há um Ser completo “ali”. O fundamento da destitui-
ção, construído por essas teorias sem sentido, é argumentado em nome da Razão.
Ademais, a abordagem pretendida pelo pensador camaronês se debruça sobre
aspectos da filosofia de Hegel, citando e analisando uma importante referência
para o pensamento europeu ocidental: a obra Razão na História.4 A Liberdade seria
o fim ser alcançado, concretizada pelo Estado-Nação ideal e este como propul-
sor, força motriz do Espírito do Mundo. Tal Espírito, ironicamente, emanado dos
gregos, cristãos medievais europeus e germânicos como os autênticos provedores
da História Mundial. A mascarada libertação é edificada enquanto clausura para
os chamados pré-políticos, em que a progressão hegeliana da dialética senhor-es-
cravo hipoteticamente se expande. Como marco do pensamento do século XIX,
concepções como o darwinismo social, evolucionismo e racismo científico dão outra
roupagem ao aclamado motor da diferença fenotípica. Neste, a ideia de raça afirma-
-se enquanto estatuto fidedigno do conhecer, consolidando-se como uma prática
discursiva de pretensa fundamentação científica, constituindo uma base para os
expansionismos imperiais em África, Ásia e Austrália.Ao final do século XIX, abole-se
o cativeiro no campo jurídico , mas não há uma completa mudança real. A segrega-
ção. Racial, exclusão e manutenção dos marcadores de diferença racializados con-
tinuam a operar enquanto mecanismos de poder sobre os corpos dos ex-escraviza-
dos. A busca era, pelos europeus, por uma consciência única, sendo esta enquanto
condição do indivíduo que está fisicamente, seu corpo, presente, nas sociedades
que passaram pelos ímpetos coloniais e que, simultaneamente, devido à sua dúbia
inserção, não as constituem no sistema sócio-político, como também cultural, das
repúblicas e democracias.

MEDITAÇÕES SOBRE O PENSAMENTO NEGRO


CONTEMPORÂNEO A PARTIR DE MBEMBE
A Razão Negra5, primordialmente, constitui-se como campo discursivo articu-
lador dos anseios de libertação dos empreendimentos coloniais. Novamente, faz-
-se necessário retomar a consolidação da diferença sobre o parâmetro racial que
subdivide indivíduos em brancos e negros, europeus e africanos como relações

4 A filosofia da história de Hegel aloca-se em torno da constituição de seu modelo de Esta-


do-Nação cuja manifestação se dá pela Ideia a qual concretiza-se a partir do movimento dialético de
tese, antítese e síntese. Além disso, a sua abordagem articula etapas específicas de um desenvol-
vimento irresistível, herdadas da teleologia de Aristóteles e Heráclito e reconfiguradas no contexto
histórico-político em que o autor está inscrito. “Razão na História” é o título de uma das obras de
Hegel a qual Mbembe faz menção na sua “Crítica da Razão Negra”, exibindo as problemáticas deste
horizonte filosófico que o primeiro almejava. O indiano Runajit Guha também realiza uma análise
que incide em direções críticas semelhantes a de Achille Mbembe, as quais foram utilizada enquanto
referência para presente escrita.
5 Parte-se, sobretudo, da 2ª tipologia de escrita que trata da “Consciência negra do Negro”,
agregando o imaginário negro moderno marcado pelo combate dos povos submetidos à colonização
e à segregação que tentaram libertar-se das hierarquias raciais. (MBEMBE,Achille, 2014, p. 63)

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Artes, memória e espaços
coprodução mútua. As antíteses assimétricas que classificam “Negro” e “África”
como símbolos de uma alteridade impossível regem a constituição psicanalítica da
figura racial negra como aquela que suscita o terror, a brutalidade, a animalidade,
o excesso, a convulsão, raiva nervosismo.6 Essa, constituinte de uma ontologia ma-
nifestada analogamente a uma chaga e uma ferida uma vez que, retomando Fanon
e Césaire, há uma construção artificial de uma denominação que agrupa seres que
habitam o mundo de uma maneira destoante do que seria o ideal eurocêntrico. O
Negro, como aquele que é o ser racializado, passa a ser de forma simultânea um
objeto, uma mercadoria e uma moeda de troca cuja construção é de autoria do
projeto do capitalismo. A ficção torna-se fato político, consagrada como forçado
determinismo servil, capitalista, escravocrata e racista.7
O Pan-africanismo é uma expressão nascente de uma contracultura política
negra frente às adversidades da violência colonial visto que se configuram como
movimento de alcance internacional pautado pela solidariedade a partir da experi-
ência negra submetida ao escravismo, conectando principalmente Estados Unidos,
Cabo Verde e países africanos como Senegal, Gana, Libéria, África do Sul, entre ou-
tros, iniciado no século XIX. Uma forma que se aproxima em grande medida desta
vertente é o nacionalismo negro cuja proposta incide em constituir uma prática de
libertação da condição imposta pelo escravismo e subjugação do sujeito negro pelo
racismo em torna da consolidação de um Estado-Nação que torne central as pro-
posições acerca da problemática racial, pensando políticas e uma forma completa
que atenda a esta população. Tal movimento deve-se particularmente a condição
da cidadania negra apresentar aspectos de dubiedade quanto à legitimação des-
tes enquanto integrantes “livres” dos regimes republicanos brancos, formulan-
do-se outros modelos de reivindicação política a partir dessa matriz estratégica.
Como exemplos destas iniciativas de libertação negra estão. Crummell, Blyden,
Dubois, Garvey, cada qual com sua experiência e seu tempo e em seu contexto de
atuação política.
Entrementes, sobre apontamentos desses autores e suas principais Achille
Mbembe e um importante interlocutor de seu pensamento, Kwame Appiah apon-
tam o forte vínculo do pan africanismo de Crummell e Blyden de aportes do cris-
tianismo como ferramentas que levariam a uma espécie de “redenção do Negro”
e, por conseguinte, a sua libertação. Libertação essa que significa equiparar-se ao
padrão de sociedade e cultura ocidentais para, enfim, gozar do estatuto de sujeito
em sua completude. Para tal, raça configura-se como conceito norteador, instituin-

6 MBEMBE, Achille, p. 119,2014.


7 Tal discussão encabeça justamente a relação do capitalismo com a gênese das práticas de
racialização uma vez que que tenha instituído a violação ilimitada que formalizam três poderes bási-
cos: Poder Predador, Poder Autoritário e Poder Polarizador para, enfim, valer-se dos subsídios raciais
para explorar o Planeta. (MBEMBE, Achille, 2014, p. 299) Além do mais, a lógica da raça é intrínseca
a constituição das próprias classes, perpassando estruturas sociais e econômicas. Os dispositivos da
dominação no período da plantação, seguido das indústrias e mesmo no pós abolição são co-produ-
toras de relações hierarquizantes que se valem de princípios da “raça”. (MBEMBE, Achille, 2014, p. 22
23)

802 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


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do a África como pátria negra por excelência, uma vez que haja um destino comum
para os povos africanos. África está como país dos negros assim como a Inglaterra
para os anglo-saxões e a Alemanha para os teutões nessa abordagem, havendo
forte correspondência com o discurso nacionalista do século XIX. Eminentemente,
parte-se uma concepção europeia de civilização, e a suposta falta desta, na África.
Nesta lógica, haveria, certamente, raças humanas e cada uma delas teria um cará-
ter e trabalho específico vinculado a uma “capacidade” hereditária.
Outro autor e militante bastante expressivo do pan africanismo é o jamaicano
Marcus Garvey, cuja prática política, segundo Mbembe, parte do este denomina
enquanto instinto de sobrevivência e preservação, colocando o Negro enquanto
empreendedor de si mesmo. Este manifesta o desejo de governar a si mesmo, ar-
ticulando um “projeto de redenção” em que admite a composição do mundo por
diferentes raças, em que todos estariam determinadas a permanecerem puras e
cada qual dentro de seu território sob a plenitude de seus direitos e sua soberania.
Aciona-se, de tal maneira, a ideia de que a história da Humanidade seria a histó-
ria da luta de raças e a percepção e África enquanto entidade mítica e abstrata,
a partir de uma essencialidade de sua constituição enquanto tal. Posto isso, os
questionamentos associados a ideia de Crummell e Blyden de cristianização como
progresso dos Negros bem como da ideia de formação de um Estado-Nação ne-
gros partem de elementos críticos apontados pelos autores que os contestam a
medida que consideram a necessidade de desconstruir a tradição nacionalista e
das premissas do progresso civilizacional, oriunda da teleologia ocidental europeia,
para que se consiga combater o racismo epistêmico, cultural e político por uma via
que contraponha o fechamento identitário e da construção de fronteiras etnicas,
raciais em um modelo convencional e problemático de formação de Estado.
Além disso, algumas gerações póstumas a esses autores supracitados do pensa-
mento negro contemporâneo, Mbembe debate acerca da africologia, tendo como
seu principal articulador Molefi Kete Asante. A Afrocentricidade, enquanto propos-
ta de paradigma para os estudos de africologia, edifica-se em torno de iniciativas
que visam investigar fenômenos, eventos, ideias e personalidades relacionadas
com África a fim de reconstruir valores africanos como uma forma de ver a si próprio
enquanto negro em busca de ascensão. A estratégia política, filosófica e epistê-
mica consiste em centrar a experiência negra partindo de África enquanto origem
primária e final, buscando práticas culturais autenticamente africanas. Atentar-se
às concepções de autenticidade, origem e pertencimento são fundamentais para
compreender o que se pretende por este caminho discursivo e político. Ao repor-
tar-se às teses de Cheikh anta Diop e Theophile Obenga, para apenas citar alguns
entre tantos que o referido pensador afro norte americano se reporta, pode-se
entender a importância de elevar o continente africano a um estatuto civilizacional
como ponto de partida de todas as sociedades do mundo. O principal exemplo é a
tese do Egito Negro de Diop assim como a reinvindicação de uma ontologia oposto
ao que é eticamente condenável ao que fora praticado pelo continente europeu,

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 803


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isto é, a colonização, predação de culturas e sociedades que possuem caracterís-
ticas diferentes das suas e da dominação e violência masculina como ápice deste
movimento. Somado a isto, o horizonte político final deste projeto almeja alcançar
a autonomia africana enquanto uma unidades cultural partilhada pelos negros de
todo o mundo a partir da formação de um Estado Negro genuíno.
De todo modo, permanece os questionamentos de Mbembe a um chamado
“nativismo” que contesta a formatação desta reivindicação de um estado de es-
sência metafísica condicionada pela raça do Negro e de África. Tal posição não
significa negar as culturas africanas que, em sua analítica, são múltiplas, não ha-
vendo um fator de unidade consoante, novamente, a objetivos de teor naciona-
lista. Entrementes, sua proposta visa reexaminar os problemas de nacionalidade,
posicionamento, identidade e memória histórica. As dimensões de formulações
culturais construídas nos fluxos e movimentos da diáspora têm prioridade a partir
de uma abordagem que considera as práticas de resistência, dinamismo e abertura
do Ser para além de fronteiras raciais ou nacionais. A experiência do Negro, para
o pensador, não se esgota somente na fatalidade da escravidão, mas nas estraté-
gias e táticas de resistência criativas a que deu vivacidade. Nesse sentido, a tragédia
da violência pode ser transmutada a partir de criações novas que minem o cam-
po raciológico endurecido e fatalista para dar margem a um liberto horizonte. As
tensões mapeadas calcam sua afirmativa a medida que considera as dimensões de
ultra brutalidade a que a experiência negra é dolorosamente marcada e busca-se
partir da ideia de que sincretismos, quando dialogados, devem estar direcionados
ao projeto de emancipação do Negro, fundamentalmente. Valendo-se de formula-
ções de Marie Louise Pratt, as chamadas zonas de contato as quais os campos de
distribuição de poder não estão necessariamente alinhados em uma ordem simé-
trica, devem ser, o máximo que puderem, ferir o núcleo duro de poder opressivo
para realizar enfrentamentos sólidos. Nesse sentido, remetendo a obra do autor
camaronês, a própria gênese da diferença com base no discurso da raça deve, en-
fim, ser superada.
Por conseguinte, a multiplicidade contida na unidade é a máxima de sua pro-
posição que é inspirada em autores com Frantz Fanon e Edouard Glissant, as teses
de Appiah e Mudimbe, nesse aspecto, convergem em uma mesma direção haja
vista à invenção do nome Negro e nome África, como entidades que se correla-
cionam e condensam a negatividade absoluta. De tal maneira, questionar a ideia
de identidade como dado natural de forma alguma significa negar os subterfúgios
das opressões cunhadas, a ferro e sangue, sobre os escravizados. As genealogias
do pensamento negro contemporâneo ofertam as possibilidades reflexivas para
que possamos mediar os ganhos, as revisões e reformulações de antigas táticas
políticas. Constatar um Devir é considerar os condicionamentos impostos e visar ir
além deles.

804 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
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Bianca Lopes Brites
Graduada em História – Licenciatura Plena pela Universidade Federal de Santa
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Universidade Federal do Rio Grande do Sul
E-mail: bi.brites@live.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7565520095931214

806 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Artes, memória e espaços
Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as

ISBN 978-65-86233-77-3

9 786586 233773 >

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