Você está na página 1de 13

A FAVELA QUE SE VÊ E QUE SE VENDE

Reflexões e polêmicas em torno de um


destino turístico*
Bianca Freire-Medeiros

Introdução focaliza as experiências narradas pelos turistas ou


as opiniões dos favelados, mas investiga o papel
A atividade turística dispõe-se em imbrica- desempenhado por empresários, ONGs, lideran-
ção com vários setores – econômico, social, ças comunitárias e agentes públicos no processo
ambiental, político e cultural –, porém há muito de transformação da favela carioca em atração
os cientistas sociais privilegiam o tema da acultu- turística.1
ração e das dinâmicas de recepção. Reflexões Como os promotores turísticos convencem
sobre a responsabilidade dos agentes promotores potenciais clientes a visitar um lugar associado à
pobreza – e em grande medida à violência –
na conformação de desejos e fantasias que mol-
como a favela carioca? Que mecanismos discursi-
dam o produto turístico como tal são sintomatica-
vos e práticos precisam ser acionados para viabi-
mente escassas. A contrapelo, este artigo não
lizá-la como atração turística? Como as atividades
turísticas nas favelas se relacionam com produ-
* Uma versão anterior deste artigo foi apresentada ções midiáticas e outras práticas de contato trans-
no 30º Encontro Anual da Anpocs. Aos partici- nacionais? Para responder essas questões, propo-
pantes do ST ST07 – Modernidade, cultura e entre-
nho inserir o processo de construção da favela
tenimento, em particular a Maria Celeste Mira,
agradeço os comentários e sugestões. como destino turístico em um duplo contexto: na
conjuntura de expansão dos chamados reality
tours mundo afora; e no fenômeno de circulação
Artigo recebido em outubro/2006 e consumo, em nível global, da favela como tra-
Aprovado em agosto/2007 demark, como um signo a que estão associados

RBCS Vol. 22 nº. 65 outubro/2007


62 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 22 Nº. 65

significados ambivalentes que a colocam, a um só lhes é dada a possibilidade de formular sua pró-
tempo, como território violento e local de auten- pria trajetória e a de sua sociedade, como ocorria
ticidades preservadas. durante as peregrinações do medievo: na expe-
riência turística estariam condensados, portanto,
sentidos e valores anteriormente vinculados àque-
Os chamados tours de realidade la experiência religiosa vivida como encontro
com o autêntico. Creio, porém, que no novo milê-
There are plenty of people saying “I must go to the
nio, já não se trata de uma autenticidade transcen-
Algarve”, or “to Corfu”, or “to Marbella”, places to
which every decent person […] went at least once. dental, mas outra que se inscreve em um territó-
But the tourist industry can’t settle for that. New rio colonizado por referências midiatizadas e
business must be created, and created daily. apela não para o contemplativo, mas para o inte-
And the sky is the limit once wish takes over. rativo – é o que os agentes turísticos anunciam
Z. BAUMAN2 como hands-on experiences.
Nas práticas turísticas ditas alternativas, de
Zigmunt Bauman (1997) lança mão das maneira geral, as noções de autenticidade e inte-
metáforas do “turista” e do “vagabundo” para ilus- ração reaparecem investidas de um capital sim-
trar o caráter líquido da modernidade que torna bólico ausente no turismo de massas (Carneiro e
“turística” a vida cotidiana. Quedar-se em um lugar Freire-Medeiros, 2004). No caso dos tours de rea-
temporariamente, viver a sensação de não per- lidade, esta premissa é levada ao paroxismo. A
tencimento, estabelecer laços frouxos com o ter- possibilidade de vivenciar as emoções do Outro –
ritório e encontros pontuais com outros indivídu- entidade potencialmente tão diversa quanto os
os: os sujeitos contemporâneos vivem, queiram ou aborígines da Austrália, as vítimas do Holocausto
não, a “síndrome de turista”. Quando não vivem e os favelados cariocas – é o que asseguraram os
essa síndrome, estão sob jugo de algo ainda pior: promotores. Para efeito de análise, divido os rea-
a condição de “vagabundos”. Imagens especulares lity tours em dois tipos ideais: “tours sociais” e
invertidas do turista, os exilados, os imigrantes ile- “tours sombrios”.
gais, os sem-teto, não podem e não ficam em Tendo como destino localidades em desvan-
determinado lugar o quanto desejam – apenas o tagem econômica, os “tours sociais” vendem par-
quanto ali forem desejados. ticipação e autenticidade, conformando um sub-
Se, na vida cotidiana, os sujeitos já se portam campo do turismo de realidade chamado de pro-
como turistas, viagens são empreendidas em busca poor tourism ou pitty tourism. Global Exchange,
exatamente do quê? No trecho que serve de epí- organização não-governamental sediada na Cali-
grafe, Bauman sugere que viajamos no intuito de fórnia, inaugurou a comercialização dos tours so-
nos diferenciarmos. No processo, a prática do turis- ciais em inícios da década de 1990. Em julho de
mo emerge inesperadamente em localidades que 2006, anunciava:
são reinventadas em suas premissas históricas e
estéticas: as slums de Calcutá, os campos de guerra Global Exchange convida: Venezuela – Trabalho,
no Camboja, o Ground Zero em Nova York. O que Reforma Agrária e Agricultura (Preço: U$ 1,250,00
desde Caracas). Nesse reality tour único, partici-
estas localidades, aparentemente tão díspares, têm pantes terão experiências práticas [hands-on-
em comum que as torna capazes de atrair levas de experiences] e se aproximarão das pessoas [build
turistas? Arrisco sugerir que seja a capacidade de people-to-people ties] desde Caracas até os plan-
mobilizar emoções intensas e extremas, que vão tadores de café nos Andes [...] (grifos meus).
além do contemplativo e se sustentam a partir dos
pilares da autenticidade e da auto-realização. Hoje é crescente o envolvimento estratégico
Dean MacCannell (1992 [1976]) sugere que a de organizações como The Center for Global
explosão de diferenças do mundo hodierno leva Education3 e Where there be dragons,4 entre ou-
os indivíduos a viajar para lugares idealizados co- tras. Partem da premissa de que, se é impossível
mo autênticos, pertencentes a outras culturas ou abolir o turismo, urge transformá-lo em uma
a um passado mitificado. Na condição de turistas, indústria mais justa. Previsibilidade, controle, con-
A FAVELA QUE SE VÊ E QUE SE VENDE 63

forto e eficiência – pilares do turismo convencio- autênticas em destinos cujo apelo reside na antí-
nal – cedem lugar aos valores da individualidade, tese daquilo que se convencionou tratar como
da flexibilização e da auto-realização. “turístico”. Comercializada como rememorativa,
Difícil não pensar em algumas das teses de educacional e/ou de entretenimento, essa moda-
Richard Sennett (1988). Para o autor, a esfera lidade turística atrai pessoas ávidas por consumir
pública é tomada, no mundo contemporâneo, mortes, desastres e misérias espetacularizadas.
como injusta e devoradora, provocando o desejo Para este tipo de prática, Lennon e Foley (2002)
de refúgio em um espaço íntimo e acolhedor. A criaram o termo dark tourism.
valorização do espaço e da experiência da intimi- A complexidade dos tours de realidade –
dade leva a política moderna a incorporar, na quer sociais ou sombrios – deve-se, sobretudo, ao
legitimação do homem público, valores como a fato de seu objeto de consumo não ser algo óbvio
autenticidade, “resultado da superposição do ima- e tangível. Articulam-se, nos reality tours, dois
ginário privado sobre o imaginário público” domínios – dinheiro e emoções –, cuja superpo-
(1988, p. 41). Esta “fixação na autenticidade” ga- sição a moralidade ocidental define como incon-
nha impulso a partir das lutas contra a repressão gruente e agramatical. Não por acaso, provocam
e a discriminação nas décadas de 1960 e 1970, calorosos debates, em particular aquele em torno
quando o discurso político passa ser marcado da pertinência ética de se fazer da miséria alheia
pela ênfase na expressão dos sentimentos: era mercadoria.
preciso tudo dizer, em qualquer lugar, em nome Argumento que a favela comercializada co-
da autenticidade. Paralelamente, aprofunda-se um mo atração turística condensa as premissas dos
sentimento de nostalgia diante do autêntico, que dois tipos de tours de realidade: ao mesmo tempo
só pode ser recuperado a partir de um duplo em que permite engajamento altruísta e politica-
movimento: mediante interações face-a-face e a mente correto, motiva sentimentos de aventura e
revalorização das culturas “não contaminadas” deslumbramento. É a experiência do autêntico e
pelo racionalismo ocidental. do exótico, do risco e do trágico em um único
Mas se essas experiências turísticas preten- lugar. No item que se segue, examino como este
dem transformar turistas do Primeiro Mundo em território da imaginação veio a ser.
sujeitos sensíveis aos problemas da “periferia”, é
possível dizer o mesmo de outras tantas expe-
riências de contato igualmente comercializadas A circulação da favela
como reality tours? Hoje, são mais e mais fre- como trademark
qüentes os passeios a localidades trágicas rein-
Yo fui a los morros de día y de noche y solo tuve
ventadas como atrações turísticas: Sniper’s Alley que cruzarme con gentes educadas que al pasar me
em Sarajevo, os campos radioativos de Cher- saludaron amablemente.
nobyl, os túneis Viet Cong (devidamente alarga- JOSÉ CASAIS (1940, p. 14)
dos para acomodar o número crescente de visi-
tantes estrangeiros). No Parque EcoAlberto, em José Casais, embaixador espanhol em mis-
Hildago, turistas pagam U$18,00 para participar são diplomática ao Brasil na década de 1940,
do passeio “!Burla a la Migra!”, uma simulação da escreveu o trecho acima como parte de suas
travessia ilegal da fronteira México/Estados memórias de viagem. Em meados dos anos de
Unidos. Por uma quantia entre U$20,00 e 1930, outro embaixador, o norte-americano Hugh
U$35,00, turistas podem avaliar – e fotografar – os Gibson (1940), também registrou em detalhes sua
estragos provocados pelo furacão Katrina. visita a um dos morros da cidade, onde teve “a
Viajar para lugares associados ao sofrimento excitante oportunidade” de participar em um
nos remete às primeiras peregrinações religiosas, “ritual vodu”. Casais, Gibson, Marinetti, Le Corbu-
mas o que parece ser singular a respeito da expe- sier, Blaise Cendrars, Albert Camus, Orson Wells:
riência contemporânea são sua diversidade e estrangeiros à procura da excitação do “mundo
popularidade. Cada vez mais turistas procuram exótico” da favela carioca não são, portanto, uma
experiências inusitadas, interativas, aventureiras e novidade (Jaguaribe e Hetherington, 2006, p.
64 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 22 Nº. 65

156).5 Mas, segundo nossos informantes, foi ape- mostrar que favela tem valor, que a dignidade que
nas na década de 1990, com a Eco-92, que essa a gente prega existe de verdade. Não é mais ver-
prática adquiriu proporções maiores. Esse fenô- gonhoso falar de favela, favela é luxo, favela é
meno deve ser entendido como parte da popula- chic!”8
ridade alcançada pelos reality tours e mais: é Em Tóquio, o restaurante Favela segue a
igualmente tributário do fenômeno de circulação mesma lógica, atendendo aos que buscam o exo-
e consumo, em nível global, da favela como uma tismo da culinária brasileira combinada a uma
marca que condensa predicados contraditórios. Se atmosfera world style. O Favela Restaurant, em
não, vejamos. Sidney, Austrália, dispensa os quitutes brasileiros
Como argumentam Clifford (1989, 1997), e serve comida asiática. A logomarca do restau-
Urry (1990) e Hutnyk (1992), a escolha de um rante traz a favela apenas na imagem estilizada
destino dá-se inevitavelmente em diálogo com as de um menino que esconde o rosto entre as
imagens do local veiculadas em diversos produ- mãos. O Club Favela, na Alemanha, toca techno
tos. No caso da favela carioca, são muitos os pro- minimal, house e reggae, mas não se vale de
dutos em ação. Os operadores destacam unani- nenhum ritmo associado diretamente ao Brasil. A
memente o sucesso do filme Cidade de Deus:6 força da marca favela tornou-se, portanto, capaz
aclamado pela crítica internacional, o filme logrou de transcender o referente territorial, promoven-
produzir, como observou a rede de notícias CNN, do o que é brasileiro e tudo mais que pretenda
uma imagem “sexy” e “cool” de uma favela vio- ser “alternativo”, “descolado”, “reciclado”.
lenta. Cidade de Deus, contudo, não é o único Nos guias de viagens, a favela foi não ape-
responsável pela circulação dessa imagem estili- nas incorporada ao roteiro, mas apontada como
zada da favela carioca. O premiado documentário ponto de visitação obrigatório aos que queiram
Favela rising7 conta a história do Grupo Afro conhecer o “verdadeiro Rio” (Torres, 2007). O
Reggae de Vigário Geral, retomando as opções prestigiado Lonely Planet chega a criticar o que vê
estéticas do filme de Meirelles. Em várias toma- como “a glamourização das favelas”, mas não
das, uma favela não identificada, com vista para o deixa de sugerir que o passeio seja feito com em-
mar, substitui Vigário e provê a desejada imagem presas especializadas que garantam a segurança
da favela turística. do turista.
Leu (2004) analisa o processo midiático res- Além desses produtos e businesses, que se
ponsável por elevar o Brasil, e a favela em parti- valem do repertório imagético associado à favela
cular, à “sensação do momento” na Inglaterra. e que estão incorporados de maneira mais formal
Segundo a autora, presencia-se uma inesperada ao mercado, existe um corpus mais disperso de
dinâmica entre o local e o global a partir da geo- imagens que colabora na formatação da favela
grafia imaginária da favela e de uma “cultura” que turística: as fotos produzidas pelos próprios visi-
lhe seria peculiar. Essa cultura de uma favela míti- tantes. Ao analisar cinqüenta fotologs, que exi-
ca é utilizada nas campanhas publicitárias de mar- biam um volume de mais de setecentas fotogra-
cas e produtos os mais variados; produtos brasi- fias tiradas durante os passeios pela Rocinha e
leiros, por sua vez, quando comercializados in- postadas na internet, Menezes (2007) argumenta
ternacionalmente, também aderem à marca fave- que se confirma, em grande medida, o mesmo
la: “A onda atual de ‘favela chic’ tornou até a mais repertório de representações que “exotizam” a
humilde mercadoria brasileira, a sandália de bor- favela, suas habitações e seus moradores.
racha, em um objeto de fetiche” (2004, p. 17). A fixação internacional pela favela é proble-
Em Paris, Londres, Glasgow e Miami, Favela matizada por Williams (2003), que traça paralelos
Chic, club decorado com palmeiras e materiais interessantes entre a onda criada por Cidade de
reciclados, serve comida brasileira acompanhada Deus e aquela em torno do livro Quarto de des-
por uma trilha musical eclética. Quando pergun- pejo, de Carolina Maria de Jesus. Mas é Valladares
tado “por que Favela Chic”, o principal responsá- (2005) quem identifica a complexidade política
vel pelo bem-sucedido empreendimento respon- do fenômeno, apontando a responsabilidade dos
deu-nos: “Todo nosso trabalho tem a intenção de diferentes atores – ONGs, poder público, cientis-
A FAVELA QUE SE VÊ E QUE SE VENDE 65

tas sociais – na conformação de uma favela sin- A Rocinha virou bairro, cresceu muito... Você vê
gular e exótica. tanto o lado pobre quanto o mais desenvolvido....
“Favela” tornou-se um prefixo tropical capaz Então decepciona um pouco os turistas quando
você só fica naquela área comercial. Eles ficam
de incrementar e tornar “exóticos” lugares e pro-
achando que a Rocinha não é pobre o suficiente,
dutos os mais variados (Phillips, 2003). Guias de que não é pobre como essas cidades miseráveis
viagem, filmes, romances, textos acadêmicos, da África.
fotologs, souvenires etc. contribuem para a formu-
lação de uma favela que circula mundo afora e a Visitas a creches às quais os turistas são
encaixam nas narrativas mais amplas do turismo incentivados a fazer doações são prática comum,
“alternativo”. É a partir desses vários suportes que assim como o aluguel de lajes que funcionam
a constroem como um território da imaginação, e como mirantes (a R$ 1,00 “por gringo”). Uma das
em que são investidos diferentes ansiedades e agências é responsável pelo funcionamento de um
desejos, que a favela pode ser elaborada como projeto social em Vila Canoas,11 outra contribui
destino turístico. com uma creche na Roupa Suja (uma das áreas
mais precárias da Rocinha) e uma terceira desen-
volve um programa de formação de guias mirins.
Quatro favelas, quatro experiências Para as demais, sua presença na favela não parece
de turismo atrelada a nenhum tipo de obrigação financeira
com a localidade. O dono de uma das agências
Rocinha com quem conversei resume:

Pelo menos sete agências com cadastro na Eu não sou nenhum agente social da favela. Não
é essa a minha função. Minha função é mostrar o
RioTur atuam regularmente na Rocinha.9 São mais
que a favela realmente é para apagar aquela e-
de três mil turistas por mês, que podem optar por ventual imagem negativa que os turistas tenham
conhecer a localidade a pé, de van, de jipe ou de e para promover a cidade também. É uma função
moto, de dia ou à noite, com refeição incluída ou que eu olho do ponto de vista patriótico, econô-
não, ciceroneados por guias estrangeiros ou por mico para o país, porque melhora a imagem do
moradores do local. Cada agência cobra por volta país lá fora, e é um atrativo turístico para o pes-
de U$35,00 por um passeio que dura de três a soal vir mais.
quatro horas.
A Rocinha é um território disputado por O argumento de que o turismo na Rocinha
“razões óbvias”, como argumentou um de nossos tem por conseqüência desestruturar a lógica que
entrevistados. Detentora do título de “maior fa- associa favela à violência é defendido no discurso
vela da América Latina”,10 encontra-se perto dos de todos os agentes e também no projeto de lei da
principais hotéis e tem duas saídas, permitindo vereadora Lilian Sá, que inclui a Rocinha entre os
um deslocamento mais ágil em caso de deflagra- pontos turísticos oficiais da cidade. Sancionado
ção de um confronto violento. Dispõe, segundo em setembro de 2006, o projeto justificava:
um dos guias turísticos, “de uma vista de tirar o
A lei n. 4405/06 vai aumentar a integração social
fôlego” e apresenta “o contraste entre os que entre a cidade e a comunidade, já que vai ajudar
têm e os que não têm que pira a cabeça dos a desmistificar a visão de que a Rocinha é um
gringos”, numa referência à proximidade da lugar exclusivamente de violência, e assim possi-
Rocinha com dois dos bairros de IPTU mais ele- bilitar maiores investimentos tanto do setor públi-
vado. Mas este contraste também se opera den- co quanto privado.12
tro da própria Rocinha, cuja heterogeneidade
socioeconômica (Valladares, 2005) exige dos As agências evitam as ruas em que a venda
promotores do turismo contorções argumentati- de drogas é ostensiva e recomendam que não se
vas para acomodá-la às expectativas de seus fotografem pessoas armadas. Em seu material
clientes, que vêm em busca da favela paradig- publicitário, todas se responsabilizam pela segu-
mática, do lócus privilegiado da pobreza: rança de seus clientes e os incentivam a trazer
66 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 22 Nº. 65

câmeras. Mas, em maior ou menor medida, as a- 2005) e, como não há nenhum tipo de distribui-
gências capitalizam a ansiedade contemporânea ção dos lucros, os capitais suscitados pelo turismo
entre liberdade e segurança tão propriamente são reinvestidos apenas minoritariamente na fave-
descrita por autores como Bauman (2001) e la e sempre pela via da caridade.
Giddens (1991). A segurança é garantida, mas
nem por isso o tráfico de drogas e suas práticas Morro da Babilônia
violentas deixam de ser tema durante os passeios.
Os guias recomendam que os turistas não A vista deslumbrante do Morro da Babilônia
respondam a eventuais provocações, que não foi apresentada ao mundo por intermédio de
interrompam a passagem nas ruazinhas estreitas e Orfeu Negro13, filme de Marcel Camus, responsá-
que não dêem esmola – isto porque “a gente não vel por produzir na consciência internacional uma
quer estimular a profissionalização da miséria co- poderosa associação entre quatro conceitos corre-
mo instrumento de trabalho”. Não deixa de ser latos: brasilidade, negritude, favela e carnaval
um tanto irônico que aqueles que fazem da (Stam, 1993).
pobreza mercadoria sejam os mesmos que denun- Desde então, Babilônia vem esporadicamen-
ciam o efeito perverso da prática da esmola e da te atraindo visitantes em busca, talvez, das cores
caridade direta. exuberantes e das criaturas graciosas que sobejam
Há pelo menos quatro pontos de vendas de no filme francês. Alguns residentes locais, ao per-
produtos “by Rocinha”: camisetas, quadros, bol- ceber a presença algo freqüente dos turistas, pas-
sas, porta-retratos, bordados, esculturas, CDs. Um saram a especular sobre os potenciais benefícios
souvenir em particular chamou-me atenção: uma que o turismo poderia trazer-lhes.
placa com os dizeres “Rocinha: a Peaceful and Enquanto na Rocinha atuam apenas agentes
Beautiful Place – Copacabana – Rio de Janeiro”. A externos, no Morro da Babilônia são os residen-
Rocinha é promovida como um local “pacífico” e tes, organizados em torno da CoopBabilônia, os
“belo”, assim como Copacabana, cartão-postal há responsáveis pela organização dos passeios. De
muito legitimado. As cores escolhidas – verde e acordo com as lideranças, muitos guias e agências
amarelo – sugerem, ainda, um outro plano de de turismo têm insistido em atuar no morro, mas
identificação, em que a Rocinha se apresenta há resistência por conta daquilo que consideram
como parte da nação brasileira a despeito das “uma visão unicamente comercial” de agências
representações hegemônicas que a excluem. De que não teriam qualquer compromisso com a
presença marginal, a favela é transformada dis- favela.
cursivamente em parte central da sociedade bra- Os visitantes percorrem uma trilha que da-
sileira. Essa mesma lógica aparece na fala de um ta do período colonial levados por jovens locais
dos agentes promotores: que contam a história da favela e explicam como
se deu o reflorestamento da área. Minha equipe
É um passeio para a partir da favela você ter um de pesquisa e eu participamos pela primeira vez
entendimento muito mais profundo da sociedade. desses passeios na primavera de 2005.
A sociedade do Rio envolve favelas, a sociedade
Patrocinado em parte pela prefeitura e pela
do Brasil envolve favelas, então a gente vai pas-
sar sobre esses vários assuntos: política, condi-
Brascan, o passeio contou majoritariamente com
ções de trabalho, saúde pública, arquitetura, residentes de Babilônia, Chapéu Mangueira, Co-
Carnaval, futebol, posse de terreno público, edu- pacabana e Leme. Após três horas de caminhada,
cação... É um passeio muito sociológico. ao chegar no topo da montanha, as quase cem
pessoas demos as mãos para “abraçar o meio-
Sociológicos ou não, mais engajados em ambiente” e rezar pela paz. Diferente do que
projetos sociais ou avessos a tais iniciativas, o fato ocorre na Rocinha, o passeio logra, portanto, rea-
é que os passeios não oferecem à Rocinha a lizar a interação, certamente pontual, entre favela
chance de usufruir em pé de igualdade os bene- e segmentos da classe média que, no mais das
fícios econômicos gerados com o turismo. Os tu- vezes, vêem o turismo na Rocinha como uma
ristas gastam muito pouco durante a visita (Carter, excentricidade dos estrangeiros.
A FAVELA QUE SE VÊ E QUE SE VENDE 67

Na avaliação das lideranças, o turismo deve o pedido foi aceito. Um acordo verbal teria sido
ser encarado como uma possibilidade de desen- estabelecido entre a agência e a Associação de
volvimento sustentável. Investirão no turismo Moradores, à qual caberia intermediar a relação
desde que os lucros gerados revertam para a loca- com o tráfico de drogas.
lidade e que os recursos ecológicos, foco do pas- O desenho original previa que, em cada pas-
seio, não sejam ameaçados. Pretendem fazer do seio, estariam um guia e um morador da favela,
turismo mais que uma experiência visual, encora- oferecendo legitimidade a um empreendimento
jando a interação entre visitantes e moradores, o turístico que se pretendia “o mais autêntico possí-
aprendizado sobre a história local e o encontro vel”. A busca pela autenticidade, como discutido
“ecologicamente correto” com a natureza. acima, é parte constitutiva da experiência dos rea-
Desde o início de 2007, os passeios ocorrem lity tours, mas seus significados podem variar. No
uma vez por mês, mas a intenção é atuar de acor- Morro dos Prazeres, autenticidade significa tradi-
do com a demanda dos turistas, sobretudo os ção reinventada por narrativas romantizadas sobre
estrangeiros. A estrutura física e de pessoal que o passado da favela e a vocação artística de Santa
possuem, contudo, não comporta tal expectativa. Tereza. A tradição é estrategicamente mobilizada
Resistir a parcerias com o capital privado significa como bem simbólico à disposição do visitante.
ficar sem recursos financeiros cruciais. Apesar de O projeto começava a vingar quando, em
os jovens da localidade terem recebido treina- 2004, o “dono do morro” teria telefonado de
mento sobre a história do Morro, ainda não foram Bangu I e mandado interromper os passeios pela
creditados como guias. Aos desafios colocados a favela. Não disseram sob quais argumentos, mas
qualquer experiência de eco-turismo – a eterna o fato é que os passeios ficaram suspensos por
tensão entre explorar e preservar os recursos cerca de um ano até que uma nova tentativa foi
naturais que singularizam a localidade –, somam- levada a cabo, porém sem a participação da Asso-
se os problemas próprios de uma favela em que ciação de Moradores.
o tráfico de drogas é presença constante. Em 2005, foi promovido um concurso entre
jovens de Santa Teresa para eleger o melhor rotei-
Morro dos Prazeres ro turístico para a região. O projeto vencedor ori-
ginalmente não incluía a favela, mas o coordena-
Com cerca de 10 mil habitantes, o Morro dos dor do concurso fez questão de inseri-la porque o
Prazeres é uma das várias favelas de Santa Teresa, turismo “trabalha não só com a geração de renda,
bairro cuja identidade se refere a recursos históri- mas também é um trabalho maior de geração de
cos e artísticos. Há décadas, Santa Teresa é vista auto-estima”. Foram incluídas visitas ao Casarão
como contraponto a Copacabana, atraindo um dos Prazeres14 e aos projetos Vai pra Galera15 e
turista mais “alternativo” e “boêmio”. Morrinho,16 este último localizado no Morro
A experiência do turismo no Morro dos Pereira da Silva, onde funciona a Pousada
Prazeres representa um caso intermediário entre Favelinha (iniciativa da curitibana Andreia da Silva
Rocinha e Babilônia, uma vez que lideranças lo- Martins, que tem parentes na localidade, e de seu
cais e agentes externos têm estabelecido parcerias ex-marido, o alemão Holger Zimmermann).17
para promover o turismo na área. Trata-se, na ver- Algumas lideranças do Morro dos Prazeres,
dade, de uma colaboração e de uma disputa, com porém, não acreditam que esses agentes externos
agentes internos e externos trazendo para a cena desejem que os próprios moradores sejam os pro-
expectativas bastante diferentes. tagonistas da transformação da favela em destino
Inicialmente, os passeios eram comercializa- turístico: “Eles não querem que a gente tenha
dos por uma agência turística de Santa Tereza. De liberdade para planejar e tentar implementar, sem
acordo com o dono da agência, os tours começa- a interferência de ninguém, o projeto turístico que
ram em 2003, após alguns moradores da favela o a gente julga como sendo melhor para o Morro
terem procurado para organizar o projeto. Porque dos Prazeres”.
era sua intenção “promover laços de solidarieda- Se ONG e lideranças do Morro discordam
de e qualificação profissional para os favelados”, sobre o protagonismo do projeto, concordam
68 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 22 Nº. 65

sobre a eficácia do turismo na dissolução de pre- Ao final da escadaria, o visitante encontra a


conceitos e estereótipos. Para além dos benefícios igreja de Nossa Senhora da Penha, construída em
econômicos, as lideranças acreditam que, por 1865. Outros pontos de referência incorporados
intermédio dos turistas, é possível construir uma ao Museu foram a Capela do Cruzeiro e o
narrativa paralela sobre a vida no Morro capaz de Reservatório de Água da primeira década do sécu-
disputar visibilidade com as representações lo XX, que será convertido em “Reservatório de
midiáticas. Lembranças”, onde o visitante poderá ouvir de-
poimentos e ler a história da favela. Dodô da
Morro da Providência Portela, porta-estandarte campeã do primeiro des-
file oficial de escolas de samba em 1937, ganhou
O Museu a Céu Aberto do Morro da uma casa nova com dupla função: moradia e
Providência foi idealizado por Maria Lúcia Peter- museu. Ali estão expostos fantasias, fotografias,
sen,18 no contexto do Favela-Bairro e do Projeto adereços e outros objetos carnavalescos reunidos
Célula Urbana, como parte da revitalização da área por Dodô.
portuária que, além do Museu, inclui a Cidade do Foram construídos três mirantes com estru-
Samba e a Vila Olímpica da Gamboa. Trata-se, na tura de madeira e grade de ferro, nos quais se
definição de Petersen,19 “de uma área de alta dete- prevê a colocação de dois telescópios e de um
rioração urbana, que já teve seus dias de glória”, mapa fixo circularmente em 360 graus que possi-
dias em que a Providência era visitada por figuras bilitarão uma perspectiva comparada do cresci-
ilustres, como Tarsila Amaral e Portinari. mento da cidade. Retângulos de metal compõem
Mundo afora, museus a céu aberto – tam- uma espécie de trilho que marca todo o trajeto,
bém chamados de ecomuseus ou museus-vivos – também composto por placas indicativas.
mesclam características dos museus convencio- Emoldura-se a pluralidade empírica que constitui
nais com espaços abertos e vêm se tornando a favela e se direciona o olhar do turista: edifica-
lugares de memória reconhecidos por sua capaci- ções “relevantes” são “etiquetadas” com placas da
dade de ampliar o repertório de atribuição de prefeitura; as casas mais antigas não recebem pla-
valor no campo cultural (Freire-Medeiros, 2006). cas, mas são “apresentadas” aos turistas pelos
A fonte de inspiração de Petersen, contudo, não guias; as construções destituídas de “potencial
teria vindo desses museus, mas, curiosamente, de turístico” seguem convivendo com o lixo e o es-
outro que jamais chegou a se realizar: goto não-tratado.
Até meados de 2006, o projeto do Museu
Nas suas origens, a concepção do museu estava
vinculada ao Guggenheim. O arquiteto Jean enfrentou seríssimas dificuldades, com as visita-
Nouvel estruturou o museu dentro d’água em ções comprometidas pelos constantes conflitos
função do perfil montanhoso da cidade. Na entre policiais e narcotraficantes do Morro. A par-
minha cabeça, a Providência deveria ser a antíte- tir do final daquele ano, contudo, foram agrega-
se do museu já que, nesse caso, o morro é a edi- dos quatro fatores que são vistos por Petersen
ficação, com suas fachadas de pedreiras que como fundamentais à viabilização do Museu:
serão iluminadas à noite, e a favela, um museu
vivo interativo. Em primeiro lugar, o funcionamento da Cidade
do Samba, que é um sucesso. Em segundo, a ini-
O roteiro do museu inicia-se na Praça Brum, ciativa do Comandante do Grupamento de
que limita a Providência com o Morro do Policiamento em Áreas Especiais/GPAE, que ins-
Livramento e que foi transformada em quadra talou o GPAE na Providência e reduziu os confli-
tos. Em terceiro, a eleição organizada e transpa-
multifuncional coberta. Tem como “porta de entra-
rente da Diretoria da Associação de Moradores,
da” uma escadaria do século XIX. Está prevista a que elegeu a Verinha, uma rara liderança que dia-
construção de um centro de informações e venda loga com todos e tem uma certa independência.
do museu na base da escadaria e, ao longo de sua E, finalmente, a Secretaria de Turismo que fechou
extensão, de “estações de descanso” com peque- parceria com o Célula Urbana.
nas galerias de arte, cafés e livrarias temáticas.
A FAVELA QUE SE VÊ E QUE SE VENDE 69

Em janeiro de 2007, o prefeito César Maia musgo com minha equipe de jovens pesquisado-
incluiu a promoção de visitas sistemáticas ao res,21 que lugar quero ocupar ali? Como não pre-
Museu na lista de prioridades do ano. Com isso, julgar turistas e guias, como estabelecer uma rela-
a Providência passou a receber recursos para que ção de simpatia, sem me deixar invadir pelo
sejam realizadas, sob a coordenação da ONG desejo voyeurístico que parece animá-los? Por
Novo Horizonte, oficinas de dança, capoeira e que acusá-los de explorar os favelados quando há
artesanato. O investimento da prefeitura nessas muito nós, cientistas sociais, usamos a favela
oficinas está diretamente vinculado ao projeto do como um campo de experimentações para o nos-
turismo: espera-se que venham a apresentar-se so intelecto?
para os turistas os que estiverem freqüentando as Entre a esfera pública como espaço de críti-
oficinas de capoeira e dança, assim como os que ca livre dos constrangimentos da igreja e da corte,
participam da oficina de artesanatos já vêm pro- descrita por Habermas (2003), e a opressão com-
duzindo souvenirs adequados ao “gosto do pleta e brutal da voz subalterna, há as “zona de
estrangeiro”. contato” de que nos fala Mary Louise Pratt (1992).
As “zonas de contato” são “espaços sociais onde
culturas díspares se encontram, se chocam, se
Para concluir entrelaçam uma com a outra, freqüentemente em
relações extremamente assimétricas de domina-
Rotular o turismo na favela como “zoológico ção e subordinação”, de onde paradoxalmente
de pobre” é tomar sua complexidade conceitual emergem possibilidades outras de representação
como algo falsamente redutível. É preciso obser- de si e do outro. Pensar a favela que o turismo
var todas as ambigüidades que envolve – que não inventa como uma zona de contato permite-nos
são poucas. Tomemos, por exemplo, a relação entendê-la como território físico e simbólico no
dos promotores do turismo com o tráfico de dro- qual camadas discursivas se acomodam em múlti-
gas: enquanto na Rocinha não há evidências de plas representações: representações sobre a fave-
que os traficantes exerçam influência no busi- la e seus habitantes formuladas pelos turistas,
ness,20 nos Prazeres o “dono do morro” teria inter- representações dos turistas formuladas pelos
rompido os passeios com um único telefonema. moradores, representações da favela formuladas
No que concerne à “mercadologização da pobre- pelos moradores para os turistas – numa espiral
za”, a tensão parece residir não tanto nas ques- contínua de representações.
tões morais aí inscritas, mas a quem é dado o pro-
tagonismo nesse processo de venda e consumo.
A fala de uma das lideranças da Rocinha, envol- Nota
vida em um projeto de turismo que não vingou,
resume: “A presença dos turistas não incomoda 1 Esta pesquisa vem se desdobrando em duas ou-
de forma alguma. Pode fotografar, filmar, fazer tras etapas, em que são contempladas as impres-
aquilo que deseja. A gente quer saber é quem tem sões dos usuários e dos moradores. Porém defen-
o direito autoral, quem ganha com isso”. É impos- do, enfaticamente, a necessidade de se investigar
as dinâmicas de produção dos destinos turísticos
sível negar a relação de iniqüidade estabelecida,
como tais, e é este propósito que anima o pre-
mas é importante perceber que os favelados não sente artigo.
são elementos passivos nesse processo. Muitas
vezes, a vitrine se inverte e os moradores lançam 2 Entrevista a Adrian Franklin em agosto de 2003.
Disponível no site http://www.intothepill.net
seu olhar investigativo aos turistas, fazendo co- /itp/texts_theory/Bauman,%20Zygmunt%20-
mentários jocosos a seu respeito, criticando o que %20The%20Tourist%20Syndrome.rtf.
percebem como posturas intrusivas.
3 “Os nossos seminários levam os participantes a
Mas é preciso refletir não apenas sobre o
um encontro face- a- face com pessoas de outras
alcance ético do empreendimento turístico nas culturas. Por intermédio de encontros em primei-
favelas, mas sobre a minha própria identidade no ra mão, você […] alargará seus horizontes, desa-
campo. Quando subo a Rocinha num jipe verde- fiará suas percepções e expandirá sua visão de
70 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 22 Nº. 65

mundo” (cf. site http://www.augsburg.edu/glo- 17 Com cinco suítes e vista da Baía de Guanabara, a
bal/its.html) [grifos meus]. Pousada está em funcionamento desde o réveil-
lon de 2005. Andréia concedeu-nos uma entrevis-
4 “Where There Be Dragons oferece […] inesquecí-
ta longa em março de 2005 e recebeu a pesqui-
veis oportunidades de aprendizado por meio de
sadora Juliana Farias durante a Semana Santa
caminhos jamais trilhados, de excursões com
daquele mesmo ano. Farias observou que, con-
grupos pequenos e intimistas [...] As viagens são
trariando as expectativas de que a “mulher negra
jornadas vigorosas, criativas e sedutoras [...] (cf.
e favelada” assumiria uma atitude servil, Andreia
site www.wheretherebedragons.com) [grifos
gerencia o empreendimento com determinação,
meus].
marcando fronteiras e regras a serem seguidas
5 Em 1884, o Dicionário Oxford definia o verbo to por todos os hóspedes.
slum como a tendência de se visitar as áreas mais
18 Mais conhecida como Lu Petersen, a arquiteta e
pobres de diferentes cidades com o propósito de
urbanista atuou no Projeto Mutirão Remunerado,
fazer filantropia ou mesmo por curiosidade, prá-
no Programa de Favelas da Cedae-Proface e no
tica comum entre os membros da elite londrina
Programa Favela-Bairro. Desde 2001, coordena o
(cf. Koven, 2004).
projeto experimental Célula Urbana, definido por
6 Direção de Fernando Meirelles, Brasil, 2002. ela como um “pós-favela-bairro”.
7 Direção de Jeff Zimbalist e Matt Mochary, Estados 19 Américo Freire e eu gravamos seis longos depoi-
Unidos, 2005. mentos com Lu Petersen no segundo semestre de
2006, como parte do projeto Memória do Urba-
8 Entrevista gravada por Juliana Farias e Palloma
nismo Carioca (CPDOC/FGV). Agradeço a Lu a
Menezes em fevereiro de 2006.
disposição bem-humorada para o debate.
9 Be a Local, Don’t Be a Gringo; Exotic Tours; Favela
Tour; Jeep Tour; Indiana Jungle Tour; Private 20 Todos foram categóricos: nenhuma agência é
Tours; Rio Adventures. Há um circuito bastante coagida a dar qualquer quantia para os trafican-
intenso, porém informal, de turistas ciceroneados tes. Como resumiu um dos entrevistados: “a Ro-
por taxistas e guias particulares, cujo número não cinha é uma favela aberta, com gente entrando e
foi possível precisar. Apesar de uma resistência ini- saindo o tempo todo. A minha relação com o
cial, todos operadores cederam entrevistas e con- movimento é a mesma que a sua: eles sabem que
vidaram-nos a participar de seus tours. Marcelo você está aqui e você fica ligada porque sabe que
Armstrong disponibilizou também material biblio- eles estão de olho”.
gráfico. Agradeço a todos pela cooperação. 21 Alexandre Magalhães, André Salata, Andréia
10 Oficialmente a Rocinha deixou de ser favela para Santos, Cesar Teixeira, Fernanda Nunes, Flávia
ser bairro em 18 de junho de 1993. dos Santos, Joni Magalhães, Lidia Medeiros e Syl-
via Leandro participaram, em diferentes momen-
11 Pequena favela vizinha à Rocinha, Vila Canoas é tos, desta pesquisa. Sem o entusiasmo e a com-
cenário do Projeto Favela Receptiva, que tem petência de Palloma Menezes
como proposta fazer das residências locais – as
mais confortáveis e com “o melhor visual” – pon-
tos de hospedagem. Em atuação desde 2005, já
recebeu centenas de turistas.
BIBLIOGRAFIA
12 Cf. site http://www.camara.rj.gov.br/noti- BAUMAN, Z. (1997), “Turistas e vagabundos: os
cias/2006/ 10/04.htm.
heróis e as vítimas da modernidade”, in
13 Direção de Marcel Camus, França, 1959. Zigmunt Bauman, O mal-estar da pós-
14 Edificação em estilo arquitetônico eclético do iní- modernidade. Jorge Zahar Editor.
cio do século passado que funciona como centro
___________(2001), Community: seeking safety in
cultural.
an insecure world. Londres, Polity
15 Em atividade desde maio de 2002, o projeto tra- Press.
balha com adolescentes do Morro dos Prazeres e
de outras favelas vizinhas. CARNEIRO, S. & FREIRE-MEDEIROS, B. (2004),
16 O premiado Projeto Morrinho agrega crianças e “Antropologia, religião e turismo: múlti-
jovens em torno de uma miniatura da favela cria- plas interfaces”. Religião & Sociedade,
da a partir de materiais reciclados. 24 (2): 100-125.
A FAVELA QUE SE VÊ E QUE SE VENDE 71

CARTER, J. (2005), An outsider’s view of Rocinha KOVEN, Keth. (2004), Slumming: sexual and
and its people. Austin, M.A., dissertation, social politics in Victorian London.
University of Texas. Princeton/Oxford, Princeton University
CASAIS, J. (1940), Un turista en el Brasil. Rio de Press.
Janeiro, Livraria Kosmos. LEA, J. P. (1988), Tourism and development in the
CLIFFORD, J. (1989), “Notes on travel and theo- Third World. Londres/Nova York,
ry”. Inscriptions, 5: 177-185. Routledge.

_________. (1997), Routes: travel and translation LENNON, J. e FOLEY, P. (2002), Dark Tourism –
in late Twentieth Century. Harvard, The Attraction of Death and Disaster.
Harvard University Press. London: Continuum.

CRAWSHAW, C. & URRY, J. (1997), “Tourism and LEU, L. (2004), “Fantasia e fetiche: consumindo o
the photographic eye”, in Chris Rojek e Brasil na Inglaterra”. Eco-Pos, 7 (2): 13-
John Urry (eds.), Touring cultures: 72.
transformations of travel and theory, MAcCANNEL, D. (1992 [1976]), The tourist: a new
Londres/Nova York, Routledge. theory of the leisure class. Nova York,
FREIRE-MEDEIROS, B. (2006), “Favela como Shocken.
patrimônio da cidade? Reflexões e polê- MENEZES, P. (2007), Gringos e câmeras na favela
micas acerca de dois museus”. Estudos
da Rocinha. Rio de Janeiro, monografia
Históricos, 38: 49-66.
(bacharelado), Departamento de Ciên-
_________. (2007), “And the favela went global: the cias Sociais, Universidade do Estado do
invention of a trademark and a tourist Rio de Janeiro.
destination”, in Marcio M. Valenca,
PETERSEN, Lu. (2006). “Depoimentos ao CPDOC/
Etienne Nel, Walter Leimgruber (orgs.),
FGV”. Rio de Janeiro.
The global challenge and marginaliza-
tion, Nova York, Nova Science Publishers. PHILLIPS, T. (2003), “Brazil: how favelas went
chic”. Consultado no site ww.brazzil.
GIBSON, H. (1940), Rio. Nova York, Double-
com/2003/html/news/articles/dec03/p1
day/Doran.
05dec03.htm.
GIDDENS, A. (1991), The consequences of moder-
nity. Stanford, Stanford University Press. PRATT, M. L. (1992), Imperial eyes. Londres/Nova
York, Routledge.
HABERMAS, J. (2003), Mudança estrutural da
esfera pública: investigações quanto a PRENTICE, R. (2001), “Experiential cultural tou-
uma categoria da sociedade burguesa. rism: museums and the marketing of the
Rio de Janeiro, Biblioteca Tempo new romanticism of evoked authentici-
Brasileiro. ty”. Museum Management and Curator-
ship, 19 (1): 5-26.
HUTNYK, J. (1996), The rumour of Calcutta: tou-
rism, charity and the poverty of repre- SECRETARIA ESPECIAL DE COMUNICAÇÃO
sentation. Londres/New Jersey, Zed SOCIAL da Prefeitura do Rio de Janeiro.
Books. (2003), Das remoções à célula urbana:
evolução urbano-social das favelas do
JAGUARIBE, B. & HETHERINGTON, K. (2006),
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Prefeitura
“Favela tours: indistinct and maples
do Rio de Janeiro.
representations of the real in Rio de
Janeiro”, in M. Sheller e J. Urry (eds.), TAYLOR, J. (2000), “Authenticity and sincerity in
Mobile technologies of the city, tourism”. Annals of Tourism Research,
Londres/Nova York, Routledge. 28 (1): 7-26.
72 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 22 Nº. 65

TORRES, M. (2007), Turismo e meios de comuni-


cação: representações do Rio de Janeiro
nos guias de viagem. Rio de Janeiro, dis-
sertação de mestrado, Universidade
Federal do Rio de Janeiro.
SENNETT, R. (1988), O declínio do homem públi-
co: as tiranias da intimidade. São
Paulo, Companhia das Letras.
STAM, D.C. (1993), “The informed muse: the
implications of the new museology”.
Museum Management and Curatorship,
12: 267-283.
TARLOW, P. (2005), “Dark tourism: the appealing
‘dark’ side of tourism and more”, in M.
Novelli (ed.), Niche tourism: contempo-
rary issues, trends, and cases, Amster-
dam, Elsevier.
URRY, J. (1990), The tourist gaze: leisure and tra-
vel in contemporary societies. Londres,
Sage Publications.
VALLADARES, L. (2005), A invenção da favela: do
mito de origem a favela.com. Rio de
Janeiro, FGV Editora.
WILLIAMS, C. (2003), “From Quarto do Despejo
to Favela Chic: the fascination of the
favela”. Paper presented at ILAS confe-
rence.
RESUMOS / ABSTRACTS / RÉSUMÉS 165

A FAVELA QUE SE VÊ E QUE SE SELLING THE FAVELA: THOU- LA FAVELA QUE L’ON VOIT ET
VENDE: REFLEXÕES E POLÊ- GHTS AND POLEMICS ABOUT A CELLE QUE L’ON VEND : RÉ-
MICAS EM TORNO DE UM DES- TOURIST DESTINATION FLEXIONS ET POLÉMIQUES À
TINO TURÍSTICO PROPOS D’UNE DESTINATION
TOURISTIQUE

Bianca Freire-Medeiros Bianca Freire-Medeiros Bianca Freire-Medeiros

Palavras-chave: Turismo; Favela; Keywords: Tourism; Favela; Globa- Mots-clés: Tourisme; Favela; Mon-
Globalização; Rio de Janeiro; Po- lization; Rio de Janeiro; Poverty. dialisation; Rio de Janeiro; Pauvreté.
breza.

Neste artigo examino a elaboração The article discusses the develop- Dans cet article nous abordons le
da favela carioca como atração turís- ment of the favela into a tourist thème de la favela carioca conçue en
tica, focalizando o papel desempe- attraction, examining how promo- tant qu’attraction touristique, en
nhado por empresários, ONGs e ters in four different favelas have nous attachant, dans ce processus,
agentes locais nesse processo. A been attempting to actually place au rôle joué par les hommes d’af-
metodologia envolveu entrevistas them in a tourist market. The deve- faires, les ONGs et les agents locaux.
em profundidade com informantes lopment of the favela into a tourist La méthodologie employée a inclus
qualificados de quatro localidades destination is seen as part of the so- des interviews en profondeur avec
(Rocinha, Morro da Babilônia, Morro called reality tours phenomenon des informateurs qualifiés de quatre
dos Prazeres e Morro da Provi- and of the global circulation of the localités (Rocinha, Morro da Ba-
dência) e observações de campo, favela as a trademark. The methodo- bilônia, Morro dos Prazeres et Morro
que incluíram participação recorren- logy included different strategies: da Providência) et des observations
te nos tours. Postulo que a invenção long interviews with qualified sur place, avec la participation
desse destino turístico deve ser informants, field observation, and récurente à des visites guidées. Nous
entendida, de um lado, no contexto participant observation in different soutenons que l’invention de ce des-
de expansão dos chamados reality tours. The article concludes with tin touristique doit être comprise,
tours e, de outro, como parte do some thoughts on my own research d’une part, dans le contexte de l’ex-
fenômeno de circulação e consumo, experience on such a polemic field pansion des reality tours et, d’autre
em nível global, da favela como tra- of investigation. part, comme partie du phénomène
demark. Encerro compartilhando de circulation et de consommation,
algumas reflexões sobre a minha au niveau mondial, de la favela en
experiência de pesquisa diante de tant que trademark. Nous concluons
um objeto de estudo tão polêmico. en partageant quelques réflexions
sur notre expérience de recherche
face à un objet d’étude aussi
polémique.

Você também pode gostar