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ANAIS da

XV Semana de História
VIII Seminário de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em História Social
III Encontro das Especializações em História
I Encontro Estadual da ABED (Assoc. Brasileira de Estudos de Defesa – PR)

Francisco César Alves Ferraz


Cláudia Eliane Parreiras M. Martinez
André Luiz Marcondes Pelegrinelli
Organizadores
Francisco César Alves Ferraz
Cláudia Eliane Parreira Marques Martinez
André Luiz Marcondes Pelegrinelli
(orgs.)

Anais da

XV Semana de História
VIII Seminário de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em História Social

III Encontro das Especializações em História


I Encontro Estadual da ABED (Assoc. Brasileira de Estudos de Defesa – PR)

UEL
Londrina
2016
Edição: André Luiz Marcondes Pelegrinelli.
Diagramação: André Luiz Marcondes Pelegrinelli.

Catalogação na publicação elaborada pela Divisão de Processos Técnicos da


Biblioteca Central da Universidade Estadual de Londrina

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)


S471a Semana de História (15. : 2015 : Londrina, PR)
Anais da XV Semana de História, [do] VIII Seminário de Pesquisa do
Programa de Pós-Graduação em História Social, [do] III Encontro das
Especializações em História [e do] I Encontro Estadual da ABED (Assoc.
Brasileira de Estudos de Defesa - PR) [livro eletrônico] / Francisco César
Alves Ferraz, Cláudia Eliane Parreira Marques Martinez, André Luiz
Marcondes Pelegrinelli (orgs.). – Londrina : Universidade Estadual de
Londrina, 2016.
1 Livro digital : il.

Inclui bibliografia.
Disponível em: http://www.seminariodoppghs.wix.com/historia
ISBN 978-85-7846-361-8

1. História – Congressos. I. Ferraz, Francisco César Alves. II. Martinez,


Cláudia Eliane Parreira Marques. III. Pelegrinelli, André Luiz Marcondes.
IV. niversidade Estadual de Londrina. V. Associação Brasileira de Estudos
de Defesa (Paraná). VI. Seminário de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação
em História Social (8. : 2015 : Londrina, PR). VII. Encontro das Especializações
em História (3. : 2015 : Londrina, PR). VIII. Encontro Estadual da ABED
(1. : 2015 : Londrina, PR). IX. Título. X. Título: Anais [do] VIII Seminário de
Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em História Social. XI. Título: Anais
[do] III Encontro das Especializações em História. XII. Título: Anais [do] I
Encontro Estadual da ABED.
CDU 93
Reitora
Prof. ª Dr.ª Berenice Quinzani Jordão

Vice-Reitor
Prof.º Dr.º Ludoviko Carnasciali dos Santos

Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação


Prof.º Dr.º Amauri Alcindo Alfieri

Pró-Reitor de Extensão
Prof.º Dr.º Sérgio de Melo Arruda

Diretor do Centro de Letras e Ciências Humanas


Prof.º Dr.º Ronaldo Baltar

Chefe do Departamento de História


Prof.ª Dr.ª Angelita Marques Visalli

Coordenador do Programa de Pós-Graduação em História Social


Prof.º Dr.º Francisco César Alves Ferraz

Coordenador do Colegiado de História


Prof.º Dr.º Marco Antonio Neves Soares

Coordenadora da Especialização em Patrimônio e História


Prof.ª Dr.ª Cláudia Eliane Parreiras Marques Martinez

Coordenador da Especialização em Religiões e Religiosidades


Prof.º Dr.º Richard Gonçalves André

Associação Brasileira de Estudos de Defesa – Seção Paraná


Prof. Dr. Francisco César Alves Ferraz
Prof. Dr. José Miguel Arias Neto
XV Semana de História
VIII Seminário de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em História Social

III Encontro das Especializações em História


I Encontro Estadual da ABED (Assoc. Brasileira de Estudos de Defesa – PR)

COMISSÃO ORGANIZADORA:

Profa. Dra. Angelita Marques Visalli


Profa. Dra. Cláudia Eliane Parreira Marques Martinez
Prof. Dr. Francisco César Alves Ferraz
Prof. Dr. José Miguel Arias Neto
André Luiz Marcondes Pelegrinelli

COMISSÃO CIENTÍFICA:

Profa. Dra. Angelita Marques Visalli


Prof. Dr. Alfredo dos Santos Oliva
Profa. Dra. Cláudia Eliane Parreiras Marques Martinez
Prof. Dr. Francisco César Alves Ferraz
Prof. Dr. Gilmar Arruda
Profa. Dra. Marcia Elisa Teté Ramos
Profa. Dra. Margaret Marchiori Bakos
Profa. Dra. Marlene Rosa Cainelli
Profa. Dra. Miliandre Garcia Souza
Profa. Dra. Monica Selvatici
Prof. Dr. Richard Gonçalves André
Profa. Dra. Silvia Cristina Martins de Souza e Silva

PROMOÇÃO:
- Universidade Estadual de Londrina.
- Centro de Letras e Ciências Humanas.
- Departamento de História.
- Programa de Pós-Graduação em História Social.
- Especializações em História.
- Colegiado de História.
- Associação Brasileira de Estudos de Defesa – Seção Paraná.
ÍNDICE
APRESENTAÇÃO................................................................................................. 9

TERRITÓRIOS DO POLÍTICO ............................................................................ 10


AS APROPRIAÇÕES SUBVERSIVAS DE JESUS CRISTO NOS JORNAIS ANARQUISTAS LA
PROTESTA HUMANA E A LANTERNA (1897-1904) .................................................. 11
André Rodrigues ............................................................................................................................................................ 11
OS INQUÉRITOS POLICIAIS MILITARES E O DISCURSO ANTICOMUNISTA NO NORTE
DO PARANÁ (1964) .............................................................................................. 24
Angélica Ramos Alvares ............................................................................................................................................. 24
A HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA DE 1980: PERSPECTIVAS SOBRE A CLASSE OPERÁRIA
........................................................................................................................... 35
Angelita Cristina Maquera......................................................................................................................................... 35
A CRÍTICA A IMIGRAÇÂO CHINESA NO BOLETIM “A IMMIGRAÇÂO” E A DISCUSSÃO
DO IMIGRANTE IDEAL .......................................................................................... 46
Arthur Daltin Carrega.................................................................................................................................................. 46
A ECONOMIA COLONIAL BRASILEIRA E SEUS INTÉRPRETES .................................... 56
Caio Cobianchi da Silva ............................................................................................................................................... 56
Denis Carlos Moser Ieni.............................................................................................................................................. 56
O QUE O BRASIL CANTAVA DURANTE A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL? ................. 68
Ester Gonçalves da Silva............................................................................................................................................. 68
A ELEVAÇÃO DO FUNK CARIOCA A “PATRIMÔNIO CULTURAL”: COTIDIANO E
EMBATES SOCIOPOLÍTICOS EM TORNO DA IMPLEMENTAÇÃO DA LEI 5543/2009 DO
ESTADO DO RIO DE JANEIRO ................................................................................ 77
Reginaldo Aparecido Coutinho ............................................................................................................................... 77
DITADURA MILITAR E A AÇÃO DOS INFORMANTES (PARANÁ, 1964-1985) .............. 88
Rodrigo Pereira da Silva............................................................................................................................................. 88
TEMPESTADE NO DESERTO: UMA ANÁLISE COMPARATIVA DA GUERRA DO GOLFO
SOB A ÓTICA DOS JORNAIS “FOLHA DE SÃO PAULO” E “O ESTADO DE SÃO PAULO”
(1990-1991) ........................................................................................................ 95
Sandro Heleno Morais Zarpelão ............................................................................................................................. 95
A NOVA HISTÓRIA E O TEMPO HISTÓRICO: O REGIME ANTROPOLÓGICO DE
HISTORICIDADE. ................................................................................................ 108
Thiago Granja Belieiro ............................................................................................................................................. 108

HISTÓRIA E LINGUAGENS....................................................................... 120


O CLUBE DOS ARTISTAS MODERNOS (CAM): FLÁVIO DE CARVALHO, UM ANIMADOR
CULTURAL EM SÃO PAULO (1932-34) ................................................................. 121
Daniel Alves Azevedo ............................................................................................................................................... 121
HISTÓRIA E QUADRINHOS: REFLEXÕES SOBRE A RELEVÂNCIA DA ARTE SEQUENCIAL
......................................................................................................................... 130
Danilo Pontes Rodrigues......................................................................................................................................... 130
“UMA COISA PUXA A OUTRA”: IDENTIDADE, HUMOR E OS TRÊS EIXOS DA VIDA
CAIPIRA EM UM PAGODE DE VIOLA .................................................................... 142
Diogo Silva Manoel .................................................................................................................................................... 142
NOTÍCIAS DE ESPORTE NA CIDADE DE LONDRINA: JORNAL PARANÁ-NORTE (1934-
1953) ................................................................................................................ 154
Gabriel da Costa Modenuti ..................................................................................................................................... 154
RELAÇÕES DE GÊNERO EM O ASNO DE OURO DE APULEIO: REPRESENTAÇÕES NA
LITERATURA LATINA DO SÉCULO II D.C................................................................ 162
Lahís Moreno Gibelato ............................................................................................................................................. 162
PERIÓDICOS ILUSTRADOS LUSO-BRASILEIROS DO SÉCULO XIX: A ILLUSTRAÇÃO LUSO-
BRAZILEIRA (1856; 1858-1859). .......................................................................... 173
Lucas Schuab Vieira .................................................................................................................................................. 173
A LITERATURA SADEANA NA FRANÇA DO SÉCULO XX: DISCURSOS CONFLITANTES EM
RELAÇÃO ÀS EDIÇÕES DAS OBRAS DO MARQUÊS DE SADE (1955 a 1957) ............. 185
Sara Vicelli de Carvalho ........................................................................................................................................... 185
A EXPOSIÇÃO INTERNACIONAL DE ARTES E TÉCNICAS DA VIDA MODERNA – PARIS
1937 ................................................................................................................. 195
Wellington Durães Dias ........................................................................................................................................... 195

PRÁTICAS CULTURAIS, MEMÓRIA E IMAGEM ................................ 205


CRISTOCENTRISMO E FRANCISCO DE ASSIS NA CENA DO ENCONTRO EM SÃO
DAMIÃO, GIOTTO: SOBRE O DIRECIONAMENTO DE OLHAR DO OBSERVADOR A
PARTIR DE UM AFRESCO DA BASÍLICA DE SÃO FRANCISCO, ASSIS ........................ 206
André Luiz Marcondes Pelegrinelli .................................................................................................................... 206
OBJETO MUSEOLÓGICO COMO FONTE DE REFLEXÃO: LOCOMOTIVA BALDWIN 840
EXPOSTA NO MUSEU HISTÓRICO DE LONDRINA .................................................. 216
Aryane Kovacs Fernandes ...................................................................................................................................... 216
QUEM OU O QUÊ É O DIABO AFINAL? CONSTRUINDO PARA SI O IMAGINÁRIO DE
UMA ÉPOCA. ..................................................................................................... 228
Crislayne Fátima dos Anjos ................................................................................................................................... 228
O IMAGINÁRIO DO MEDO NUCLEAR SOBRE AS USINAS DE ANGRA DOS REIS – RJ . 239
Cristiano Aparecido do Nascimento .................................................................................................................. 239
A COMUNIDADE UCRANIANA NO MUNICÍPIO DE MALLET – PARANÁ: IDENTIDADE E
RELIGIOSIDADE (1897 – 2007) ............................................................................ 252
Darlan Damasceno ..................................................................................................................................................... 252
REFLEXÕES SOBRE A MEMÓRIA E A ETNICIDADE EM NIPO-BRASILEIROS NA CIDADE
DE URAÍ-PR ....................................................................................................... 265
José Junio da Silva ...................................................................................................................................................... 265
MÍDIA E CAMPO SIMBÓLICO; UMA ANÁLISE DE PALESTINE, DE JOE SACCO (1991-
1992) ................................................................................................................ 277
José Rodolfo Vieira .................................................................................................................................................... 277
PATRIMÔNIO E ELEMENTO URBANO NA CONSTRUÇÃO ....................................... 293
E MANUTENÇÃO DA MEMÓRIA SOCIAL .............................................................. 293
Kawanni S. Gonçalves ............................................................................................................................................... 293
Pedro Henrique Cezar .............................................................................................................................................. 293
ASPECTOS CULTURAIS LUVITAS NO BRONZE TARDIO ........................................... 298
Leonardo Candido Batista ...................................................................................................................................... 298
DOS AGRICULTORES-CERAMISTAS ITARARÉ-TAQUARA E TUPIGUARANI AOS
INDÍGENAS KAINGANG E GUARANI: OCUPAÇÃO, TRANSFORMAÇÕES E RESISTÊNCIA
INDÍGENA EM LONDRINA, PR ............................................................................. 306
Maquieli Elisabete Menegusso ............................................................................................................................. 306
HISTÓRIA E MEMÓRIA DA COMUNIDADE ISLÂMICA EM LONDRINA (1968 – 2015):
APONTAMENTOS DE PESQUISA .......................................................................... 317
Paola Barbosa Oliveira Franco ............................................................................................................................. 317
ARQUEOLOGIA, E O ENTRELAÇAMENTO ENTRE TEMPO, HISTÓRIA E DISCURSO
Pedro Ragusa .................................................................................................... 328
O SURGIMENTO DO SAGRADO NA CIDADE DE FAXINAL COM A CAPELINHA DE JOÃO
MARIA............................................................................................................... 337
Rodrigo Correa Barboza História........................................................................................................................ 337
Thiago Caetano Custódio História ...................................................................................................................... 337
CAMPO, PODER SIMBÓLICO E REPRESENTAÇÃO: NOÇÕES CONCEITUAIS PARA UMA
ANÁLISE CULTURAL DO NEOPENTECOSTALISMO BRASILEIRO. ............................. 345
Tábata Ane Capelari .................................................................................................................................................. 345
A CONDENAÇÃO DA “RELIGIOSIDADE POPULAR” EXPRESSA NO 13° SERMÃO DE
CESÁRIO DE ARLES (SÉCULO VI) .......................................................................... 353
Thiago Fernando Dias .............................................................................................................................................. 353
IRINEU DE LION E A FORMAÇÃO DO NOVO TESTAMENTO: ANÁLISE SOBRE A
CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE CRISTÃ NO SÉCULO II D.C. . ......................... 362
Willian Fernandes Garcia ....................................................................................................................................... 362
PROGNÓSTICO DA MORTE: MODERNIDADE, RELIGIÃO E A SOCIOLOGIA DO CORPO
......................................................................................................................... 374
Yohan Ise Leon ............................................................................................................................................................ 374

HISTÓRIA E ENSINO.................................................................................. 382


A APRENDIZAGEM HISTÓRICA PENSADA A PARTIR DO USO DO JORNAL “LA
PROVINCIA DI BOLZANO” ................................................................................... 383
Ana Paula Rodrigues Carvalho ............................................................................................................................. 383
AS PRÁTICAS DE LEITURA ENTRE OS JOVENS: PENSANDO NOVOS CAMINHOS E
POSSIBILIDADES PARA O ENSINO DE HISTÓRIA.................................................... 392
Ana Beatriz Accorsi Thomson .............................................................................................................................. 392
CURRÍCULO E DISCIPLINA ESCOLAR: INVESTIGAÇÕES ACERCA DO CÓDIGO
DISCIPLINAR DA HISTÓRIA NO BRASIL ................................................................. 403
Arthur Henrique Lux Lobo ..................................................................................................................................... 403
A EDUCAÇÃO DO CAMPO NO ESTADO DO PARANÁ: UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA
......................................................................................................................... 412
Camilla Samira de Simoni Bolonhezi ................................................................................................................. 412
LINGUAGENS ALTERNATIVAS NO ENSINO DE HISTÓRIA ....................................... 421
Alef Guilherme Zangari da Silva .......................................................................................................................... 421
Emerson Silva de Sousa ........................................................................................................................................... 421
O NEGRO NA HISTÓRIA DE LONDRINA: ANÁLISE DE FONTES FOTOGRÁFICAS (1940-
1950) ................................................................................................................ 429
Diego Barbosa Alves de Oliveira.......................................................................................................................... 429
Fabíola Ferro da Silva............................................................................................................................................... 429
A HISTÓRIA DO PIONEIRO EM LONDRINA POR ALUNOS DO ENSINO MÉDIO ......... 441
Gabriela Ferreira Horvatich Beffa ...................................................................................................................... 441
Guilherme Luis Pampu ............................................................................................................................................ 441
LEVANTAMENTO E ORGANIZAÇÃO DE ACERVO RELATIVO A HISTÓRIA DO PARANÁ
EM TEXTOS DIDÁTICOS DA EDUCAÇÃO BÁSICA. .................................................. 450
Gabriela Eguedis Rolinho ....................................................................................................................................... 450
LIVROS DIDÁTICOS E PARADIDÁTICOS COMO FONTE DE PESQUISA EM HISTÓRIA:
APONTAMENTOS DE PESQUISA .......................................................................... 462
Heloisa Pires Fazion .................................................................................................................................................. 462
IDENTIDADE, CIDADANIA E CONSCIÊNCIA HISTÓRICA: DESAFIOS PARA O ENSINO DE
HISTÓRIA........................................................................................................... 473
Jéssica Christina de Moura ..................................................................................................................................... 473
LUGARES E COTIDIANO: ANÁLISE DE MAPA ELABORADO NO PROJETO
CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS DO NORTE DO PARANÁ (2013-2014) ........... 481
Juliana Souza Belasqui ............................................................................................................................................. 481
O USO DA SÉRIE GAME OF THRONES COMO FONTE HISTÓRICA NO ENSINO DE
HISTÓRIA........................................................................................................... 493
Kauana Candido Romeiro ....................................................................................................................................... 493
Kettuly F. S. Nascimento dos Santos ................................................................................................................. 493
O CONHECIMENTO HISTÓRICO PRODUZIDO POR NÃO HISTORIADORES: ANÁLISE DA
OBRA “MEMÓRIAS FOTOGRÁFICAS: A FOTOGRAFIA E FRAGMENTOS DA HISTÓRIA DE
LONDRINA” ....................................................................................................... 503
Paulo Sérgio Micali Junior ...................................................................................................................................... 504
Taiane Vanessa da Silva .......................................................................................................................................... 504
NOVOS TEMAS E ABORDAGENS NAS AULAS DE HISTÓRIA .................................... 513
Rebecca Carolline Moraes da Silva ..................................................................................................................... 513
9

APRESENTAÇÃO

É com grande satisfação que apresentamos ao leitor os Anais da XV Semana de


História, VIII Seminário de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em História
Social, III Encontro das Especializações em História e I Encontro Estadual da Associação
Brasileira de Estudos da Defesa/PR realizado no período de 28 a 30 de outubro de 2015, no
Centro de Letras e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Londrina.
O evento conjunto teve como objetivo principal integrar, consolidar e divulgar os trabalhos
desenvolvidos no âmbito dos três níveis de formação dos alunos e profissionais de História – a
pós-graduação stricto sensu, a pós-graduação lato sensu e a graduação. Além das palestras e
mesas redondas, proferidas por professores e especialistas desta e de outras Universidades do
estado do Paraná contamos, também, com várias sessões de comunicações.
As mesas de comunicações foram organizadas segundo as quatro linhas de pesquisa
desenvolvidas no Programa de Pós-graduação em História Social: Territórios do Político; Práticas
Culturais, memória e imagens; História e Linguagens; História e Ensino. A partir dos artigos
publicados nesses Anais é possível constatar a diversidade temática e a pluralidade de
abordagens desenvolvidas e apresentadas durante os três dias de seminário.
É preciso deixar registrado que o referido evento não teria sido realizado sem a
participação dos membros da Comissão Organizadora e da Comissão Científica; dos professores
e alunos do Departamento de História e da Pós-graduação que contribuíram de diferentes formas
para sua realização. Não podemos esquecer, também, do apoio institucional da Universidade
Estadual de Londrina e do apoio financeiro e material concedidos pela Fundação Araucária.
Sem a colaboração e o trabalho conjunto e coordenado de todos não teríamos concluído com
êxito essa empreitada.
Gostaríamos de dizer, ainda, que a realização de mais uma edição desse seminário,
integrando graduação e pós-graduação, atesta sua relevância acadêmica e científica. Do mesmo
modo, sinaliza a necessidade de prosseguir, realizando e dando continuidade às atividades em
futuros encontros.
Por fim, desejamos a todos uma boa leitura e terminamos essa breve apresentação na
esperança de encontrá-lo, em breve, na próxima Semana de História!

Prof. Dr. Francisco César Alves Ferraz


a a
Prof . Dr . Cláudia Eliane P. Marques Martinez
Coordenação Geral do Evento

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XV Semana de História
VIII Seminário de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em História
Social
III Encontro das Especializações em História
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TERRITÓRIOS DO
POLÍTICO

Jacques Louis David. La Mort de Marat. 1793.


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AS APROPRIAÇÕES SUBVERSIVAS DE JESUS CRISTO NOS


JORNAIS ANARQUISTAS LA PROTESTA HUMANA E A
LANTERNA (1897-1904)
André Rodrigues (Mestrando em História - UEM)
Orientador: Prof. Dr. João Fábio Bertonha (PPH-UEM)
PALAVRAS-CHAVES: JORNAIS ANARQUISTAS; ANTICLERICALISMO; APROPRIAÇÕES.

O anticlericalismo anarquista no Brasil e na Argentina entre o findar do século


XIX e início do XX
O presente artigo apresenta uma análise do anticlericalismo anarquista brasileiro
em comparação com o argentino, através do estudo dos jornais A Lanterna e La
Protesta Humana, publicados respectivamente em São Paulo e Buenos Aires, no
período compreendido entre 1897 e 1904. Embora os dois jornais tenham sido
publicados por um período maior, optamos por trabalhar apenas com o período
compreendido pela primeira fase do jornal A Lanterna (1901 a 1904), tendo em vista a
quantidade de artigos de caráter anticlerical localizados nos dois jornais nessa época.
A crítica anticlerical é um dos pontos centrais da doutrina anarquista e, por isso,
torna-se um aspecto interessante a ser comparado em diferentes contextos nacionais. No
caso da comparação entre Brasil e Argentina, estamos de acordo Maria Lígia Coelho
Prado quando afirma que analisar de forma comparado o Brasil com outros países da
América Latina pode ser um desafio estimulante, na medida em que esses países
passaram por situações parecidas ao longo da História (PRADO, 2005, p. 12).
Consideramos que a entrada massiva de imigrantes europeus e a influência do
anarquismo em ambos os países no período abordado são grandes exemplos dessas
semelhanças históricas.
Também levamos em consideração as conclusões de Francisco Foot Hardman
(2002) sobre a importância de analisarmos de forma comparada o movimento anarquista
brasileiro com o argentino. Esse pesquisador nota, por exemplo, que é incrível a
semelhança entre o padrão das festas libertárias e piqueniques operários anunciados pela
imprensa operária argentina e brasileira. Foot Hardmam também percebe uma estreita
semelhança, sobre o aspecto de relação entre Estado e classe operária, justamente pelo

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caráter comum de repressão e exclusão que predominou em ambos os casos


(HARDMAN, 2002, p. 293).
O tema do anticlericalismo teve uma grande importância nos discursos
propagados pelos jornais analisados. Por um lado, isso se explica pela própria
centralidade conferida à luta contra a Igreja dentro da ideologia anarquista. Por outro
lado, temos que levar em conta que a crítica anticlerical nesses jornais também tem
relação com a força do catolicismo na América Latina, tanto no âmbito público como no
privado. Todavia, também devemos destacar as respectivas singularidades dos países
pesquisadas no que tange à relação entre política e religião.
No caso do Brasil, onde o regime republicano e o Estado laico eram recentes,
entre no fim do século XIX e o início do XX, o anticlericalismo tornou-se uma bandeira
comum a grupos identificados aos mais diversos matizes políticos, mas que
compartilhavam a defesa de uma sociedade laica cuja base era a existência e
desenvolvimento do indivíduo racional: liberais, maçons e agnósticos, bem como
socialistas e anarquistas, além de livres-pensadores em geral (VALLADARES, 2000, p.
11).
Na Argentina, onde a República já havia sido instaurada desde a Independência,
houve importantes reformas laicas no final do século XIX, como a instauração do
matrimônio civil, em 1888, e a lei de educação comum, em 1883-1884, que instaurou a
secularização da educação na Capital Federal, sendo que em outras partes do território
argentino seguiu-se ensinando religião nas escolas. Apesar desses avanços na
laicização, Roberto Di Stefano salienta, em seu estudo sobre a história do
anticlericalismo na Argentina, que entre o findar do século XIX e início do século XX
começaram a existir grupos das mais diversos matizes políticas que, imbuídos da
ideologia do progresso e da ciência, buscavam criar uma sociedade totalmente
despojada da intervenção da Igreja tanto no âmbito político, educacional e familiar. Os
grupos anticlericais passaram, então, a ser diversos; anarquistas, espiritas, socialistas,
maçons, livre pensadores, feministas e evolucionistas (DI STEFANO, 2010, p. 254).
Ao se trabalhar com anticlericalismo deve-se levar em consideração que esse é
um fenômeno plural, apresentando as mais diversas variações ao longo da história. O
historiador argentino Roberto di Stefano, em estudo sobre o desenvolvimento histórico
anticlerical em seu país, constatou entre as manifestações anticlericais as seguintes

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tendências: um anticlericalismo que busca atingir o clero em seu conjunto, outro que
visa unicamente atacar figuras específicas de padres e/ou o Papa; existe um
anticlericalismo antirreligioso, que ataca a fé religiosa, não se limitando às instituições
ou figuras representativas do clero; há ainda uma postura anticlerical interna à própria
Igreja, representada por sacerdotes críticos às condutas da instituição. Deve-se salientar,
ainda, que determinados anticlericais que atacam com veemência as instituições
religiosas podem ser pessoas extremamente religiosas (DI STEFANO, 2010, p. 254).
Mas, apesar da existência de um amplo espectro de posturas anticlericais,
acreditamos que é possível se falar em um anticlericalismo anarquista de forma mais
específica. O anticlericalismo típico dos anarquistas tem uma relação intrínseca com a
concepção libertária de poder, que abrange muito mais que o campo da política
institucional. Margareth Rago, partindo do pensamento foulcaltiano, observa que os
libertários possuíam uma compreensão do poder mais abrangente que a dos socialistas,
por exemplo, se recusando a percebê-lo somente no campo da política institucional. A
autora destaca que, essa concepção de poder levou os libertários a “desenvolve[re]m
intensa atividade de crítica da cultura e das instituições e formula[re]m todo um projeto
de mudança social que engloba os pequenos territórios da vida cotidiana” (RAGO,
1985, p. 14).
No período estudado, outra característica importante do anticlericalismo
anarquista foi uma dura crítica ao catolicismo, ao percebê-lo agindo de maneira
disciplinar na vida cotidiana das classes populares em diversos aspectos: no controle
sobre a consciência das pessoas (nas confissões aos padres, por exemplo), na criação
dos sindicatos católicos, na educação, na obrigatoriedade do casamento religioso, etc.

As apropriações subversivas da figura de Jesus Cristo nos discursos anticlericais


dos jornais La Protesta Humana e A Lanterna

O presente estudo analisa comparativamente dois jornais anarquistas, o


brasileiro A Lanterna e o argentino La Protesta Humana. Em nossa análise buscamos
compreender como se configurou as apropriações da figura de Jesus Cristo nos
discursos anticlericais dos dois jornais analisados, tendo em vista que essa era uma

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prática recorrente em suas críticas a Igreja Católica, que era interpretada enquanto
deturpadora dos reais ensinamentos cristãos.
O jornal A Lanterna surgiu ligado à Liga Anticlerical, que financiava suas
impressões e possibilitava a distribuição gratuita do periódico, cujos custos também
eram pagos por auxílios via subscrição voluntária e anúncios comerciais, que apareciam
na quarta e última página do periódico. A publicidade incluía diversos produtos e
serviços, como farmácias, remédios e dentistas, advogados, tipografias e loterias.
As oito primeiras edições de A Lanterna, todas do ano de 1901, foram
distribuídas gratuitamente; houve mais uma edição nesse mesmo ano, mas já paga,
custando 100 réis.
No ano de 1902, A Lanterna publicou apenas um suplemento especial de natal,
em 20 de dezembro, sendo que suas edições somente foram retomadas em junho de
1903, ano em que o jornal deixou de ser publicado pela Liga Anticlerical, tornando-se
uma propriedade da empresa Souza, Vieira e Comp. A partir de então, passou a ser
publicado semanalmente, sempre aos sábados.
Em novembro de 1903 A Lanterna anunciou sua fusão com os outros dois
jornais anticlericais publicados em São Paulo, O Livre Pensador e o L’Asino. Com a
fusão, A Lanterna tornou-se um jornal diário, enquanto os outros dois periódicos
passaram a ser publicada aos sábados, como suplementos da folha diária. AL passou a
ser editado, então, como “diário da noite anticlerical - independente”. No início de
1904, A Lanterna passou a ser anunciado como “diário da manhã anticlerical –
independente”, mantendo-se com essa denominação até o fim de fevereiro do mesmo
ano, quando deixou de ser editado, por motivos de conflito dentro do grupo editorial.
Em seus dois primeiros números, A Lanterna foi editada em 10.000 mil
exemplares e já na terceira edição esse número chegou a 15.000. Da quinta até a sétima
edição, quando o jornal ainda era gratuito, a tiragem chegou a 20 mil exemplares. A
partir da oitava edição, de 24/06/1901, esse número aumentou e o jornal passou a ser
vendido. Os editores justificaram a mudança afirmando que as listas de subscrição
voluntária e auxílios espontâneos estavam chegando com irregularidade. Mas é
interessante observar que, mesmo o jornal deixando de ser distribuída gratuitamente,
sua tiragem não caiu imediatamente, mas em alguns momentos até aumentou,
alcançando a cifra de 26.000 exemplares em 15/11/1901. Mesmo assim, a quantidade de

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exemplares impressos sofreu fortes oscilações, variando da cassa dos 20.000 mil e
chegando a 6.000 exemplares como quantidade mínima, o que ocorreu no ano de 1903.
O jornal anarquista La Protesta Humana surgiu na cidade de Buenos Aires em
13 de junho de 1897, mantendo suas publicações até os dias atuais. Como ressalta
Caroline Poletto (2011), La Protesta pode ser considerado como um caso raro no que
tange as publicações libertárias, tendo em vista que são raros os jornais anarquistas que
duraram um longo período, não superando muitas vezes apenas alguns anos de
publicação.
La Protesta Humana surge como periódico quinzenal, sendo vendido a cinco
centavos o número solto, contando com auxílio via subscrição permanente semestral ou
anual. Já em 01/10/1897, em sua décima edição, passa a aparecer semanalmente,
todavia, por falta de recursos financeiros volta a ser quinzenal em janeiro de 1898. Volta
a ser semanal em novembro de 1900, indicando que “sale todos sábados”, até que, em
meados de 1904, passa a sair diariamente. No período aqui analisado, La Protesta
Humana não oferece dados de suas tiragens.
Ambos os jornais analisados acreditavam que o Catolicismo deveria ser
eliminado para o pleno desenvolvimento da sociedade, entretanto, tinham uma
orientação diferente quanto à posição anticlerical. La Protesta Humana defendia um
anticlericalismo ateu partindo do pressuposto de que os novos tempos eliminariam a
crença em Deus por completo, “con el libre examem planteado frente á la tolerancia
religiosa impuesta á viva fuerza, se han negado todas las creencias por absurdas. La
negación fué tan lejos que se excluio á Dios por completo, sin que hubiera mayores
aspavientos assombrosos” (La Protesta Humana, 05 de jan. 1901, p. 1).
Em A Lanterna não encontramos um anticlericalismo ateu. De acordo com os
redatores do jornal, desde que a religião não funcionasse como entrave à racionalidade,
podia-se ser religioso e bom. A luta do jornal era mais diretamente travada contra o
catolicismo e o grande objetivo era concretizar a laicização do Brasil. Era claramente
contrário à intromissão desmedida da Igreja na vida pública e privada, o que não
envolvia a eliminação da religião em si e nem a contraposição aos “verdadeiros
cristãos”. Assim explicam seus editores:

Diversas versões correm sobre a índole d'este jornal, quando é bem


fácil de acertar com a causa que lhe deu origem. Não foi fundado para

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combater a crença dos verdadeiros cristãos, dos que sentem no


coração os impulsos da generosidade e da honra, — veio á luz para
desmantelar a denegrida barreira do jesuitismo, para combater a
pérfida mentira religiosa, e para levar ao pelourinho do castigo os
roubadores das famílias e do lar (A Lanterna, 06 de abr. 1901, p. 2).

Apesar dessas diferentes perspectivas frente à questão religiosa, os dois jornais


fizeram uma apropriação positiva de Jesus Cristo. Sendo assim, para analisar como a
figura de Cristo, um dos principais personagens do catolicismo, foi apropriada pelos
jornais, partimos da proposta de Certeau que entende o consumo como espaço de
criação, e não de simples reprodução, ao envolver um novo “contexto de uso” do objeto
“apropriado” (CERTEAU, 1994, p. 96).
Mesmo La Protesta Humana, que defendia o ateísmo, procurou diferenciar a
imagem de Cristo, visto de forma positiva, da atuação da Igreja Católica como
instituição:

Jesus, derribó todas las absurdas creencias y disipó las supersticiones


de aquella época, iluminando asi los pobres discípulos suyos, los
cuales eran todos los rudos pescadores y campesinos. – El clero ha
traducido sus frases em fábulas absurdas combinadas habilmente para
adormecer el entendimento humano y hacerle vasallo de la Santa
Iglesia, gangrena de la Sociedad (La Protesta Humana, 01 de jan.
1899, p. 3).

Já A Lanterna, em diversos momentos realizou uma apropriação do cristianismo


e da figura de Cristo de forma a transformá-los em parte de sua crítica à Igreja
enquanto instituição. A denúncia da avareza dos clérigos e sua crítica como algo
contrário ao que seria realmente “a religião de Cristo” foram uma constante no jornal.
Em um artigo que trazia exatamente esse título, os editores apresentaram o cristianismo
do escritor russo Leon Tolstói, identificado como o “verdadeiro cristianismo” em
contraposição ao daquele que acreditavam ser o do Papa Leão XIII. Tolstói foi
representado como “o velho venerado de longas barbas brancas, que lhe dão o aspecto

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de um patriarca, pregando a renúncia das riquezas, com a palavra e com o exemplo”. Já


o Papa Leão XIII, foi descrito como:

o velho avaro do Vaticano, acumulando riquezas, explorando a


humanidade com a venda de bênçãos; protegendo todos os torpes
contos do vigário criados pelos dogmas da Imaculada Conceição, do
Coração de Maria, do Coração de Jesus, e quejandas [sic] explorações
da crendice e da imbecilidade (A Lanterna, 19 de mai. 1901. P. 1).

Dessa forma, o anticlericalismo de A Lanterna se baseou não em uma crítica à


religião em si, mas basicamente numa leitura específica do próprio cristianismo. Os
editores do jornal demonstram ter consciência de que estavam travando uma guerra
ideológica contra um discurso social hegemônico e institucionalizado, contra o qual se
encontravam em grande desvantagem. Dessa forma, dificilmente teria sucesso uma
crítica direta à própria religiosidade, que era um elemento fortemente enraizado na
sociedade brasileira. Assim, a solução encontrada para a construção e difusão de um
discurso anticlerical contundente e ao menos parcialmente eficaz, foi uma apropriação
subversiva dos próprios elementos religiosos, de forma a transformá-los em parte do
arsenal discursivo anticlerical.
Nesse sentido, pensamos que o discurso do jornal pode ser descrito como um
“anticlericalismo tático”, empregando a noção de “tática” no sentido de Michel de
Certeau, como recurso do “fraco” frente às “estratégias” consolidadas por grupos ou
discursos socialmente dominantes. Conforme aponta esse autor:

a tática não tem por lugar senão o do outro. E por isso deve jogar com
o terreno que lhe é imposto tal como organiza a lei de uma força
estranha. Não tem meios para se manter em si mesmo, à distância,
numa posição de previsão e de convocação própria, a tática é
movimento “dentro do campo de visão do inimigo”, como dizia Von
Bullow, e no espaço por ele controlado (CERTEAU, 1994, p. 100).

Certeau utilizou-se da metáfora bélica para desenvolver a noção de “tática” e


enfatizou a importância das “astúcias”, dos “gestos hábeis do ‘fraco’” para conseguir

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desferir seus “golpes” dentro “da ordem estabelecida pelo ‘forte” (CERTEAU, 1994, p.
104). Ao analisar o periódico A Lanterna, percebemos que a forma como os editores do
jornal entendiam a “guerra” ideológica que travavam contra a Igreja Católica e sua
própria participação nela apresenta semelhanças com a metáfora bélica utilizada por
Certeau para abordar o tema das táticas.
No editorial que apresentou o jornal aos leitores, em seu primeiro
número, os editores explicitaram a posição em que se encontravam os
anticlericais no Brasil naquele momento da seguinte forma:

Formidáveis exércitos invasores, armados com as mais aperfeiçoadas


máquinas de guerra fabricadas pela nossa falsa civilização para
semear a morte nos campos verdejantes do trabalho, são muitas vezes
repelidos por um pequeno grupo de homens, munidos de armas de
defesa mais baratas e até mais frágeis, mas que só batem com mais
arrojo do que as tropas mercenárias do invasor.
É poderoso, é formidável o exército clerical que se pôs em marcha [...]
e que já está alvejando-nos com os seus golpes. São terríveis as suas
armas: o dinheiro e a hipocrisia.
Nós somos apenas um punhado de homens.
Somos dez? Somos vinte?
Que importa? Seremos legião amanhã, quando todos que sabem
quanto o clericalismo é prejudicial [...] decidirem-se a vir engrossar as
nossas fileiras, fortalecendo o nosso campo.
Somos poucos, mas anima-nos o mesmo amor pela verdade e o
mesmo horror pela hipocrisia e pela mentira; anima-nos para a luta a
confiança, na nossa causa, que é a do progresso e da civilização [...] (A
Lanterna, 07 de mar. 1901, p. 1).

Na luta contra as “hostes clericais”, os editores de A Lanterna representavam a si


próprios como soldados de uma “cruzada laica”, partindo, portanto, da concepção cristã
de cruzada para construir e legitimar uma imagem de sua própria atuação. Esse
“punhado” de anticlericais demonstrava grande esperança de que seriam vitoriosos e a
base dessa visão otimista do futuro encontrava-se na crença de que eles carregavam a
semente da nova sociedade, enquanto que a Igreja era reacionária e vivia em luta contra

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a sociedade moderna, “a fim de fazer voltar os povos a era que precedeu a Renascença”,
como afirmavam (A Lanterna, 07 de mar. 1901, p. 1).
A apropriação de Cristo em A Lanterna também foi usada como forma de
demonstrar o distanciamento da “verdadeira filosofia cristã”, tida como progressista,
frente ao catolicismo, que era representado como portador de ideais que impediam o
pleno desenvolvimento humano, não só sobre o conhecimento cientifico e filosófico,
mas também sobre os direitos políticos e sociais. Afirmam, por exemplo, que, “quando
a França proclamou os direitos do homem, a Igreja católica considerou essa
proclamação como subversiva e satânica”.
Para os editores de A Lanterna a religiosidade compatível com o mundo
contemporâneo seria aquela que Cristo pregou e não uma organização institucional
gigantesca e complexa como era a Igreja Católica:

A verdadeira religião, a que satisfaria a consciência moderna, é a que


Cristo pregou sem padres e sem altares, aquela em que o homem não
precisa de dogmas e de superstições para se apaixonar por um ideal, e
para adorar o bom, o belo, o verdadeiro, o justo, aquela que o
encaminha para todas as formas da perfeição do espírito, aquela que
não reconhece senão a verdade demonstrável, científica (A Lanterna,
18 de jan. 1904, p. 1).

Em La Protesta Humana a apropriação de Jesus Cristo se deu basicamente a


partir da aproximação entre a filosofia cristã e o pensamento anarquista. Os editores do
periódico argentino chegaram mesmo a identificar em Cristo as raízes do anarquismo
contemporâneo, daí aparecerem no jornal uma série de artigos com títulos como: “El
primer anarquista: Jesus Cristo” e “El evangelio y la anarquia comunista”, por
exemplo. Aproximaram o anarquismo a “Jesús y su doctrina”, afirmando que “lo que
hoy llamamos Anarquia no es otra cosa que Doctrina Cristiana, con la sola diferencia
de haber modernizado la palavra” (La Protesta Humana, 01 de jan. 1899, p. 3).
La Protesta Humana usa essa aproximação entre o anarquismo e o “verdadeiro
cristianismo” para deslegitimar os padres e a Igreja Católica enquanto deturpadores da
nobre filosofia de Cristo, assim como no A Lanterna, são atacados por difundirem
superstições totalmente alheias à verdadeira filosofia cristã. La Protesta Humana ataca

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a religião católica por ter enchido a humanidade de superstições para manter seu
domínio sobre as mentes dos fiéis, sendo a sua arma mais poderosa o confessionário,
que se configura como o principal meio de saber o que se passa em cada lugar e
também a ferramenta mais poderosa de controle sobre a mente de cada indivíduo.

La religión Católica, há llenado á la humanidad, de supersticiones, las


cuales han sido el factor principal que ha mantenido su dominación.
La confessión es una arma poderosisima para saber lo que pasa en
cada hogar, lo que piensa cada indivíduo; pero me inspira tanto
desprecio que no quiero ocuparme de ella (La Protesta Humana, 01 de
jan. 1899, p. 3).

No discurso de La Protesta Humana, Jesus foi representado como um homem


humilde que, nascido em uma sociedade violenta e rancorosa, conseguiu levantar voz
contra os horrores da sua época, pregando o perdão e o “sacrossanto” amor ao próximo,
também era visto como aquele que: “dió libre vuelo al pensamento, y murió dando un
abrazo á la humanidad, diciéndole: no dejo ricos ni pobres, senõres ni servos, sino
hermanos. Nunca en su vida habló de patrias y guerras, razas ni estirpes, glórias ni
honores” (La Protesta Humana, 01 de jan. 1899, p. 3).
Dessa forma, na leitura do cristianismo feita por La Protesta Humana, a doutrina
cristã era identificada com o que se concebia ser a Anarquia Comunista, “Jesus era
comunista y usa su ardiente proselitismo em propagar al comunismo, igual como
actualmente lo hacen los anarquistas” (La Protesta Humana, 09 de jul. 1899, p. 3).
Indicam que até mesmo os padres em seus discursos evidenciam a relação entre
cristianismo e a Anarquia Comunista, o jornal cita inclusive uma frase de São Ambrósio
a título de exemplificação: “La naturaleza há hecho, pues, el derecho de la comunidad;
la usurpácion há hecho el derecho privado. La tierra há sido dada em común á todos los
hombres” (La Protesta Humana, 09 de jul. 1899, p. 3).
Na perspectiva de La Protesta Humana a grande discordância ideológica entre
os expoentes de pensamento anarco-comunista – como Jean Grave, Malatesta e
Kropotkin – e a pregação de Jesus Cristo e os demais pregadores da “verdadeira
filosofia cristã” era apenas relativa ao uso ou não da violência para a transformação da
sociedade, pois os anarquistas pregavam a revolução violenta para dar fim à sociedade

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capitalista, enquanto que Cristo aconselhava a doçura: “Pero yo, yo no os digo no


resistir al que hace mal; sino, si alguno, te pega en la mejilla derecha, preséntale
también la outra; y si alguno quiere quitarte tu ropa, dejále tambíen el saco: y si alguno
te quiere obligar á ir una legua con el, anda dos” (La Protesta Humana, 09 de jul. 1899,
p. 3). Todavia, para La Protesta Humana, essa distinção não era encontrada no
pensamento libertário de Tolstói que, como Jesus Cristo, pregava a doçura. Constata-se
que para o jornal, existia mais de uma posição anarquista, destacam que o anarquismo
pregado por eles era ateu e pretendia dar cabo a sociedade burguesa por meio da ação
violenta, todavia, também havia o anarquismo vinculado ao pensamento de Tolstoi, que
era pacifista e cristão.
Sendo assim, podemos concluir que os discursos anticlericais de La Protesta
Humana e A Lanterna fizeram apropriações subversivas do próprio cristianismo. Os
periódicos aqui analisados buscaram deslegitimar o discurso social hegemônico da
Igreja Católica a partir de uma apropriação específica da figura de Jesus Cristo, que se
tornou, ele próprio, uma de suas principais ferramentas de crítica ao clericalismo. Como
mostramos ao longo do artigo, os jornais fizeram um “uso” ou “consumo” bastante
original de certos elementos da religião católica – principalmente da figura de Jesus
Cristo, principal ícone do cristianismo – de maneira que esses elementos foram
contextualizados dentro de uma “tática” discursiva crítica que visava deslegitimar a
“estratégia” clerical, ou seja, de seu discurso hegemônico sobre a religião.

Conclusões

Como observamos, o anticlericalismo é um dos pontos centrais da doutrina


anarquista e, por isso, torna-se um aspecto interessante a ser comparado em diferentes
contextos nacionais, principalmente entre os países latino-americanos, que tiveram uma
forte influência do anarquismo no movimento operário do início do século passado.
Dessa forma, em nossa pesquisa analisamos comparativamente dois jornais
anarquistas, o brasileiro A Lanterna e o argentino La Protesta Humana. Em nosso
estudo buscamos compreender como se configurou as apropriações de Jesus Cristo nos
discursos anticlericais dos dois jornais analisados, tendo em vista que essa era uma
prática recorrente em suas críticas a Igreja Católica.

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Os jornais analisados fizeram apropriações positivas de Cristo, utilizando-o


como forma de demonstrar o distanciamento daquilo que entendiam como “verdadeira
filosofia cristã”, humildade e fraternidade, tida como progressista, frente ao
Catolicismo, que era representado como portador de ideais absolutamente contrárias a
essas, tais como a avareza e a promiscuidade.
A Lanterna e La Protesta Humana fizeram uma “apropriação subversiva” da
figura de Cristo, por meio da qual denunciara a riqueza dos clérigos e sua posição
arrogante como elementos contrapostos ao próprio Jesus Cristo, que foi representado
nos jornais anarquistas como uma pessoa “humilde”, de “pés descalços”, e como
alguém que deu “livre voz ao pensamento” contra as instituições clericais de sua época.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: Artes de fazer. 2. ed. Tradução de
Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1994.
DI STEFANO, Roberto. Ovejas negras: história de los anticlericales argentinos. 1 ed.
Buenos Aires: Sudamerica, 2010.
FOOT HARDMAN, Francisco. Nem pátria, nem patrão!: memória operária, cultura e
literatura no Brasil. São Paulo: Editora Unesp, 2002.
POLETTO, Caroline. Tão perto ou tan lejos?: Caricaturas e contos na imprensa
libertária e anticlerical de Porto Alegre e de Buenos Aires (1897-1916). São Leopoldo:
UNISINOS, 2011.
PRADO, Maria Lígia Coelho. “Repensando a história comparada da América Latina”.
In: Revista de História, São Paulo: FFLCH-USP, nº 153, 2005.
RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: A utopia da cidade disciplinar. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1985.
VALLADARES, Eduardo. Anarquismo e anticlericalismo. São Paulo: Imaginário,
2000.

FONTES
Jornal A Lanterna (edições do período 1901 a 1904). Localizado no Arquivo Edgard
Leuenroth (AEL) da UNICAMP.

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Jornal La Protesta Humana (edições do período 1897 a 1903), foi utilizado às edições
que se encontram disponíveis na Web, no site da Universidade de Los Angeles,
Califórnia (http://digital.library.ucla.edu/newspaper/librarian?LANGUAGE=spanish).

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OS INQUÉRITOS POLICIAIS MILITARES E O DISCURSO


ANTICOMUNISTA NO NORTE DO PARANÁ (1964)
Angélica Ramos Alvares (Mestranda em História - Bolsista DS/CAPES)
(Universidade Estadual de Maringá- UEM)
Ângelo Aparecido Priori (Orientador)
(Universidade Estadual de Maringá-UEM)
PALAVRAS – CHAVE: ANTICOMUNISMO; REGIME MILITAR; NORTE DO PARANÁ;

Introdução
Embora não se possa afirmar especificamente quando o imaginário anticomunista é
formado no Brasil, é possível assegurar que o anticomunismo marcou presença nas várias
disputas políticas brasileiras desempenhando papel crucial em diversas conjunturas sociais ao
longo do século XX, período o qual, se forja os “inimigos da nação” como sendo os comunistas.
Pode-se dizer que o anticomunismo se cristaliza principalmente após a Revolução Russa
de 1917, momento o qual, o comunismo entra no drama mundial como uma vicissitude política
real em relação às políticas habituais. A partir dai “revolução” passou a ser antônimo de
anticomunismo. O anticomunismo surgiu como movimento articulado a partir do momento em
que conservadores e reacionários, em especial, se colocaram contra o perigo da Revolução
Comunista. Dessa forma começaram a aparecer inúmeras manifestações contra o comunismo.
O anticomunismo sempre serviu como justificativa à regimes autoritários. Lembrando
que, durante regimes autoritários os “opositores”, “inimigos da ordem” ficam a mercê da polícia
política que buscam reprimir os “subversivos” mantendo-os sob controle. Ao longo de sua
história, a polícia política observou no anticomunismo referencial importante para construção de
valores e para nortear sua ação. Embora as Delegacias de Ordem Política e Social (DOPS) não
tenham sido criadas apenas para combater o comunismo e seus inimigos variaram ao longo do
tempo, (anarquistas, socialistas, trabalhistas, sindicalistas; fascistas, nazistas e integralistas),
esta, conferiu lugar de destaque para os comunistas, que no jargão policial serviram de
designação genérica para toda a esquerda. Os comunistas eram considerados os inimigos mais
temíveis, pois, colocavam em risco o status quo político, além de, serem adversários da ordem
social tradicional, já que “seriam contra a família, a religião, a propriedade, etc” 1
O Estado do Paraná e o anticomunismo
Desde a década de 1920, se afunilando da década de 1930 em diante, o discurso
anticomunista indicava que o “perigo vermelho” estava à dominar o Brasil. No Estado do
1
MOTTA, Rodrigo Pato Sá. Comunismo e anticomunismo sob o olhar da polícia política. In: Locus:
Revista de história, Juiz de Fora, v. 30, n.1, 2010, p. 21.

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Paraná não foi diferente, e em inícios da década de 1950, principalmente com a atuação do PCB
nesse Estado, emergiram discursos anticomunistas por toda parte, de modo a alertar a sociedade
paranaense do “perigo eminente”, disseminando meio ao imaginário paranaense a representação
do militante comunista como “inimigo social” 2.
O Estado do Paraná, ao longo da década de 1950 era visto como a terra da prosperidade,
atraindo diversos imigrantes de vários cantos do Brasil e do mundo. Diante desse cenário,
atravessado por tensões sociais, o poder público busca desenvolver inúmeras práticas que
assegurassem a ordem. Dentre essas práticas, o aparato policial aparece como uma instância
privilegiada para garantir a tranquilidade social, pois somente essa instituição poderia fazer
frente aos desajustados sociais, mendigos, criminosos comuns, infratores 3 e comunistas.
Inúmeras delegacias especializadas foram criadas em várias cidades paranaenses visando
garantir a ordem. O aparato policial paranaense é ampliado já visando manter sobre controle os
“inimigos sociais” que estariam por vir. Tratava-se de uma precaução contra “desordens”
futuras.
Concomitante a esse contexto, o Paraná, e em especifico o norte do Estado, foi cenário
de uma grande mobilização dos trabalhadores rurais, que em busca de melhores condições de
vida e trabalho, reivindicavam seus direitos trabalhistas por meio de greves, associações e
sindicatos rurais. Vários sindicatos e associações rurais foram fundados no Paraná nesse período
de modo a amparar os trabalhadores rurais em busca de seus direitos. Mas, na visão dos grandes
proprietários rurais o objetivo central dos sindicatos era a implantação do regime sindicalista e
comunista no Estado.
Os comunistas tiveram papel ativo na organização dos trabalhadores rurais no período
pré-64. Muito embora, uma questão não exclui a outra. Tinham-se objetivos comunistas por
detrás de organizações como associações e sindicatos rurais, porém, devemos observar que
nesse cenário os patrões raramente respeitavam a já precária lei que regia os direitos dos
trabalhadores rurais, logo, a luta das associações e sindicatos se davam contra os patrões,
visando fazer com que eles respeitassem a lei trabalhista no campo o que garantiria aos
trabalhadores melhores condições de vida. Ademais, por vezes, entre os trabalhadores,
comunismo era uma palavra difícil de pronunciar, pois causava espanto e despertava
desconfiança. Nazareno Ciavatta, membro do Partido Comunista, se refere a barreira de alguns
trabalhadores aos ideias comunistas. Segundo ele, certo dia escutou de um trabalhador rural “se

2
OLIVEIRA, Silvio José de. Imagens construídas no imaginário social: “esses vermelhos, inimigos de
nossa terra”. In: Revista interdisciplinar, 2009, p. 3.
3
ROLIM, Rivail Carvalho. A reorganização da polícia no estado do Paraná nos anos de 1950. Revista de
História Regional, v. 5, n. 1, 2000, p.153.

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nós não temos força para obrigar os fazendeiros a pagar os salários e cumprir as leis trabalhistas,
que dirá tomar a fazenda dele [ou seja, fazer uma revolução e a reforma agrária a força]”4.
No discurso anticomunista, com a movimentação dos trabalhadores surge a necessidade
de “esclarecer” à sociedade que aquilo se tratava de “subversão comunista”. No Paraná um dos
espaços mais comuns para a divulgação da “ameaça vermelha” foram os jornais, em especial o
Folha de Londrina, um dos mais importantes da região. Foi criada até mesmo uma “Campanha
de Educação cívica e democrática” no Paraná, na cidade de Londrina, em 1951, cuja finalidade
era distribuir e fixar em locais públicos panfletos, livretos e cartazes convidando a sociedade
para o combate à “doutrina vermelha”. “O objetivo era realizar uma espécie de conscientização
a fim de sedimentar representações negativas do comunismo” remetendo a “preservação dos
valores religiosos, morais, patrióticos e democráticos, ameaçados pelo bolchevismo” 5.
Caminhando além, a perseguição aos comunistas, ou, supostos comunistas no Paraná se
manteve firme e se aflorou em inícios da década de 1960 desembocando na chamada por
Rodrigo Patto de segunda “grande onda anticomunista brasileira” - o Golpe Militar de 1964.
Nesse cenário, o anticomunismo torna-se ordem do dia.
O discurso anticomunista no BNM 238
Durante o regime militar a primeira fase de repressão no Paraná se iniciou momentos
após o golpe, quando inúmeros cidadãos são presos e outras centenas suspeitos ao novo regime
tiveram seus direitos políticos cassados por dez anos. Nesse cenário surgem os primeiros
instrumentos de coerção aos opositores do regime, dentre eles, destaca-se os Inquéritos Policiais
Militares (IPMs) que tinham como principal objetivo calar a oposição norte-paranaense.
Almejavam atingir, em uma primeira instância como inimigos da Segurança Nacional, todos os
indivíduos suspeitos, os que foram inimigos do Golpe Militar, aqueles que ofereceram
resistência a ele, aliados ao governo deposto, e em especial políticos e sindicalistas – setores
descritos pelo discurso anticomunista como “agitadores vermelhos”, “arruaceiros” e
“subversores da ordem”.
Os inquéritos dos anos de 1960 se direcionam, principalmente, à punir e vigiar os
setores sociais anteriormente mobilizados 6. E no norte do Paraná, região eminentemente
agrícola, um dos principais setores mirados pelo regime foram os líderes de sindicatos e
associações rurais.

4
COSTA, Luiz Flávio Carvalho. Sindicalismo rural brasileiro, em construção. Rio de janeiro:
Florence Universitária: UFRRJ, 1996, p. 58-59.
5
IPÓLITO, Verônica Karina. O mito da conspiração vermelha. DOPS no rastro de suspeitos comunistas
no Paraná. In: PRIORI, Angelo (et al) (org). A História do Paraná Revisitada. Maringá: Eduem, 2014.
p. 118.
6
STEIN, Leila de Menezes. Inquéritos Policiais Militares, Questão Agrária e Sindicatos de
Trabalhadores Rurais: Anos 60 e 70. Estudos de Sociologia. Araraquara, SP: Universidade Estadual
Paulista (UNESP), 1998. nº5. p.101-113.

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27

No norte do Paraná foram instaurados vários inquéritos policiais que eram justificados
pelo discurso anticomunista de bloquear os “vermelhos”. Destaca-se um conjunto de IPMs que
posteriormente ficou conhecido como IPMs Zona Norte do Paraná que denunciava atividades
subversivas em várias cidades norte paranaenses 7.
Esse conjunto de processos foi instaurado com o intuito primordial de “conter “agitação
subversiva”; fundação de Sindicatos; agitação esquerdista e comunista; estabelecimento no
Brasil da “Republica Sindicalista”; incitação de trabalhadores contra seus patrões por meio de
meios violentos; incitação de greves; formação do “Grupo dos Onze”; divulgação de ideologia
comunista; propaganda subversiva; alinhamento á Goulart; formação de Ligas Camponesas”.
Ao longo dos inquéritos todas essas denúncias eram atreladas ao “credo vermelho” que
subvertia a ordem do Estado.

[...] Fundaram várias associações de trabalhadores rurais, com


finalidade de encobrir as atividades do Partido Comunista [...] e assim
poderem tentar subverter a ordem política e social do país,
promovendo agitações com a ajuda de organização internacional [...]
com a finalidade de conseguirem a comunização dos associados dos
sindicatos, [...] tentaram aliciar os municípios vizinhos 8.

Os partidários do regime deposto e os Sindicatos e Associações de Trabalhadores, eram


sinônimos de “subversão” e deveriam ser barrados. Apontam que os sindicalistas e líderes de
associações “apoiaram com certeza absoluta uma CONTRA - REVOLUÇÃO de tendência
esquerdista” 9. Assinalavam o movimento sindical, edificando-o como uma séria ameaça à
Segurança Nacional, pautados na ideia de que no Estado do Paraná havia uma conspiração
comunista, que poderia a qualquer momento tomar o poder, através do movimento de
sindicalização. Muito embora, devemos observar que, por vezes, “há uma relação
desproporcional entre a força efetiva dos revolucionários e o medo neles inspirado” 10.
O imaginário anticomunista herdado por várias regiões brasileiras tomou conta da
sociedade norte-paranaense ao ponto que, com a eclosão do golpe militar de 1964, surgissem

7
Tratam-se dos IPMs instaurados entre os anos de 1964 e 1965, já nos primeiros momentos do regime.
São eles: IPM 489 ou BNM 69, IPM 406 ou BNM 139, IPM 384 ou BNM 238, IPM 391 ou BNM 240,
IPM 272 ou BNM 292, IPM 381 ou BNM 312, IPM 385 ou BNM 315, IPM 382 ou BNM 385, IPM 390
ou BNM 495, os quais totalizam 6,114 páginas. Eles também são conhecidos por BNMs, ou seja, os
processos que foram recolhidos pela Arquidiocese de São Paulo, naquilo que ficou conhecido como o
projeto Brasil: Nunca Mais (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO 1985).
8
BNM nº 238, p.444.
9
BNM nº 238, p.108
10
MOTTA, 2010, p. 20

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várias declarações e telegramas direcionados aos órgãos policiais e governamentais


denunciando os supostos comunistas. Em uma declaração enviada à DOPS de Curitiba, em maio
de 1964, é possível perceber o fenômeno do anticomunismo incutido no imaginário dos
denunciantes.

Sabemos que os mais altos objetivos das autoridades emanadas da


Revolução vitoriosa em 1º de abril passado, é o firme proposito de
extirpar do organismo nacional toda a influencia maléfica produzida
pela sutil infiltração dos ideiais comunistas que ameaçam a integração
e a soberania de nossa pátria; que implicava na escravização de todos
os brasileiros ao Bolchevismo Russo-Soviético [...] Reconhecemos
que é DEVER de todos os bons brasileiros, apontar para as
autoridades de nosso Exercito os nomes dos maus brasileiros que
[ilegível] adeptos das expurias doutrinas anti-cristãs e comunistas. –
Nesta cidade [ilégivel] público e notório que existe alguns comunistas
atuantes, liderados pelos irmãos Bonesso [...] esperamos de que as
medidas de repressão virão da parte de V.Excia [...] esperamos, que
seja feito Justiça, uma Justiça humana e Cristã. [...] Não a justiça do
“Paredon” como fariam eles, se não fosse o elevado grao de
patriotismo, de elevado conceito humano e Cristão de nosso valoroso
Exercito Brasileiro comandado por homens [...] que souberam honrar
as tradições de brasilidade e humanismo, dando ao mundo de hoje
uma lição histórica de elevado gráo de civilidade cristã 11.

Nessa declaração de denúncia, bem como em todos os IPMs Zona Norte do Paraná,
encontramos proeminentemente o discurso anticomunista impregnado no Brasil as vésperas do
golpe de 1964. Esse discurso delimita o “nós”, brasileiros e democratas, e o “eles” – os
comunistas - o perigo que paira sobre o “nós”. Esse discurso pregava que a índole comunista era
ameaçadora. Por um lado, para o governo, por exemplo, o comunismo representava uma ameaça
a ordem estabelecida, a democracia, o patriotismo, por outro, para a sociedade representava o
ataque aos valores cristãos ocidentais – no entendimento de muitos “a moral e aos bons
costumes dos brasileiros”.
Essa divisão entre bons e maus cidadãos é verificável em vários contextos históricos,
pois a figura do inimigo é essencial e “serve para fornecer ao povo a consciência de sua

11
BNM 238, 1964, p. 13 à 15, grifos nossos.

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unidade, e ao poder que conduz o combate, a legitimidade. Afinal a campanha contra o inimigo
é febril [...] é o sinal, na sociedade, do mal a combater” 12.
Em meio aos discursos anticomunistas, produzidos pelos vários setores da sociedade,
surgem apelos ao combate comunista. Exemplo destes, é o discurso da brasilidade, para o qual,
“brasileiro, que é brasileiro, jamais seria comunista”. Por brasileiro entendia-se o público
conservador, bom, sensato, amigo, temente a Deus, defensor da pátria, já os comunistas, os
“maus brasileiros”, contrário à isso, seriam os ferozes, destruidores da pátria, ladrões de
propriedade, descrentes. “A luta contra o comunismo no Brasil é também a luta pela construção
dos sentidos de brasilidade” 13.
Para o discurso anticomunista presente nesses inquéritos, todos que não compartilhavam
das ideias do regime eram designados comunistas, simpatizantes e aliados dos comunistas que
buscavam instaurar no Brasil o comunismo ao modelo do Bolchevismo Russo-Soviético. Suas
ideias, articuladas por meio dos Sindicados, Associações e Congressos eram vistas pelo regime
vigente como fachadas para encobrir o movimento comunista no norte do Estado.
Nas várias circunstâncias em que o discurso anticomunista foi posto a baila, o
comunismo, enquanto projeto político, era considerado uma ameaça à ordem estabelecida.
Nesse sentido, o anticomunismo atuava para a manutenção do Estado estabelecido. Uma prática
comum nesse período foi a utilização do termo “comunista” como qualquer oposição ao sistema
– a “ameaça vermelha”. E “mesmo que os acusados não [tivessem] nada de “comunistas”, o fato
14
de estarem fazendo algo contrário a ordem estabelecida levava a essa acusação” , pois, a
palavra comunista causava repulsa.
Nos processos que tratamos aqui, em todas as denúncias pode-se perceber o uso
indiscriminado e abusivo da qualificação comunista quando da apresentação dos réus nas peças
de acusação. No entanto, muitas outras denominações pejorativas e estereotipadas eram
largamente utilizadas no discurso anticomunista dos inquéritos para designar comunista e
comunismo.
Para “comunista”, nos IPMs, são dadas denominações como: subversivos adeptos do
comunismo; agentes do comunismo, agentes da desordem; agitadores comunistas; vermelhos;
elementos de agitação esquerdista; elementos comunistas; empreiteiros da desordem; inimigos
da ordem; maus elementos; praticantes do credo vermelho; promotores do projeto subversivo;
subversores da ordem; vermelhos, etc. “Comunismo” nesses IPMs seriam: ameaça vermelha;

12
DUTRA, Eliana de Freitas. O ardil totalitário: imaginário politico no Brasil nos anos 1930. 2ºed. –
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012, pag. 46.
13
MARIANI, Bethania Sampaio Corrêa. O comunismo imaginário: Práticas discursivas da imprensa
sobre o PCB (1922 -1989). Unicamp. 1996, p. 241.
14
SILVA, Carla Luciana. Onda vermelha: imaginários anticomunistas brasileiros (1931-1934). Porto
Alegre: EDIPUCRS. 2001. p. 27.

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barbárie; credo vermelho; crime; degradação dos valores morais da sociedade; ditadura
comunista; ditadura do proletariado; ditadura vermelha; ideologia totalitária; infiltração
vermelha; infiltração comunista; infiltração esquerdista; movimento subversivo; perigo
comunista; perigo vermelho; processo violento e subversivo da ordem social; subversão social.
Outra palavra que faz parte do vocabulário anticomunista nesses processos e a
“subversão”. A instauração desses IPMs era justificada em tudo que se englobasse no amplo e
duvidoso conceito de “subversão”. Subversão era denominada qualquer ato que ia de encontro à
ordem vigente. “O subversivo era qualquer pessoa partidária, simpatizante, aliada ou militante
comunista, contrária a ordem estabelecida”. O subversivo, sempre comunista, é caracterizado
com qualidades que o julgam do “mal”, e ao mesmo tempo “espertos”, como: “sagaz”,
“inteligente”, “frio”, “premeditado”, “calculista”, “perigoso”, “convicto”, “violento”, “agitado”
e “inconstante” 15.
No IPM 384 ou BNM 238, o Procurador Militar, capitão André Luiz dos Santos, afirma
que os irmãos Bonesso “são COMUNISTAS melitantes, sendo EDMUNDO BONESSO
secretário do PCB em ANDIRÁ”. Ademais, fundaram e organizaram a Associação dos
Trabalhadores Rurais de Andirá com o objetivo de “servir aos seus desígnios de SUBVERSÃO
da ordem e AGITAÇÃO, com farta distribuição entre os trabalhadores de propaganda
SUBVERSIVA e COMUNISTA provinda de CUBA e da CHINA VERMELHA”. Tentaram
ainda a “COMUNIZAÇÃO progressiva dos Associados e posteriormente dos Sindicalizados e
incitaram os trabalhadores rurais, a greve e a AGITAÇÃO contra os PATRÕES, fomentando a
luta de classes” (BNM 238, 1964, p. 108). Não tinham conhecimento da legislação trabalhista
“exigindo e vantagens descabidos, intimando e pressionando, usando como meio de coação [...]
ameaças veladas até ostensivas de sabotagem contra as plantações e propriedades”, instigando
os trabalhadores “a não recorrer a Justiça para resolução de seus problemas trabalhistas,
procurando resolve-los por meio da coação física e moral contra os patrões” 16.
Pautado nas falas de algumas poucas testemunhas o procurador militar tece a acusação
de que os irmãos Bonesso “tentaram nos primeiros dias da REVOLUÇÃO agir em ANDIRÁ
[...] Tendo como plano, a prisão das autoridades e tomada dos pontos críticos da cidade, pelos
filiados do SINDICATO, só não realizando isso devido ação inesperada das autoridades
policiais e resistência do Presidente do SINDICATO em aderir” 17. Posto isto, afirma a comissão
de IPM que “EDMUNDO BONESSO e ALCIDES BONESSO, são elementos de alta

15
ASSUNÇÃO, Rosangela Pereira de Abreu. DOPS/MG: Imaginário anticomunista e policiamento
político (1935-1964). (Dissertação de Mestrado). Programa de Pós-Graduação do Departamento de
História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Federal de Minas Gerais, 2006,
p.107 grifos nossos.
16
BNM 238, 1964 p. 107-108.
17
BNM 238, 1964 p. 108.

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periculosidade, rancorosos, maquiavélicos e sem escrúpulos tendo capacidade de organizar e


liderar até certo ponto elementos das classes mais humildes e sofredoras e tendo oportunidade
apoiaram com certeza absoluta uma CONTRA-REVOLUÇÃO de tendência esquerdista” 18.
O discurso anticomunista, para se manter elabora argumentos que fundam o
“comunismo” como “inimigo social”, “inimigo da Pátria”, remetendo ao comunista um caráter
não-social. Nesse discurso “o inimigo é, pois, o comunista a serviço de uma ideologia de fora, o
credo russo, é o invasor que rouba com violência e tudo destrói. Por isso mesmo é expressão do
mal e do ódio” 19.
Cria-se uma linha imaginária maniqueísta, a qual, de um lado se coloca o “bem”
caracterizado pela civilização ocidental e seus valores morais, cristãos e conservadores, e do
outro a encarnação do “mal” representado pelos “inimigos da nação” – os comunistas, isentos
de valores: “inimigos jurados da ordem, das instituições e da família brasileira” que professam
do “credo vermelho” “um abismo da escravização, uma barbárie, [...] crime, praga sinistra. [...]
violência, processo violento e subversivo da ordem social, [...] ditadura, ideologia totalitária,
fantasia econômica delirante, materialismo histórico, nefasta doutrina” 20.
Há um caso em que a testemunha de acusação salienta que “tem conhecimento que
JORGE HADDAD, SALIM HADDAD, BONIFÁCIO MARTINS são elementos radicados a
ideologia comunista embora o mesmo não saiba sua definição” 21. As próprias testemunhas de
acusação denunciavam os indivíduos como sendo “comunistas” sem mesmo saber o real
significado do termo, apenas por estarem fazendo oposição ao governo, até mesmo por próprias
rixas individuais, por saber que comunista era antônimo do regime vigente, ou mesmo por
serem obrigados. Comunista era um termo forte – o imaginário anticomunista parecia tão
enraizado no seio da sociedade que acusar de “comunista” se tornou uma forma de punir e se
vingar do inimigo.
Já nos primeiros anos do regime, tornou-se tão corriqueiro a instauração de IPMs, ao
ponto de estes servirem até mesmo á interesses políticos locais e rixas políticas, como é o caso
de muitos dos IPMs Zona Norte do Paraná. Em declaração ao Ministério do Trabalho e
Previdência Social, em outubro de 1963, um candidato ao PTB, Euclides Teixeira, denuncia seu
opositor do PSD acusando-o de comunista. Segundo ele, após ouvir o discurso de seu adversário
Mauro Cardoso de Oliveira candidato a prefeito pela legenda do PSD, aos associados do
sindicato, argumenta que “a pregação foi de acentuado fundo comunista” e depois das eleições
conclui dizendo que seu adversário “foi eleito com apoio decisivo dos comunistas Bonesso e de

18
BNM 238, 1964 p. 108.
19
DUTRA, 2012, p. 45.
20
MARIANI, 1996. p.144.
21
BNM 69, 1964, p. 21 grifos nossos.

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grande parte dos eleitores sindicalizados”. Afirma que “se isso for verdade, estou prevendo de
que é a prefeitura quem vai pagar, com dinheiro do povo!.. – Será que comprou o apoio
comunista para eleger um prefeito comunista? O futuro nos dirá...” 22.
Para atingir a oposição o candidato apela ao medo e a periculosidade que o comunismo
representava para vários setores da sociedade naquele momento. Ademais, o declarante atrela
automaticamente o sindicato ao comunismo.

Derrotou-nos a traição ou medo, dos elementos do “Sindicato dos


trabalhadores na Lavoura de Andirá”. – Até fins de setembro
estávamos certos do apoio total destes aos nossos candidatos, depois
aconteceu algo que veio mu [ilegivel] o panorama ou perspectiva de
nossa vitória [...] estou certo de que foi a intromissão astuta e
altamente nociva [ilegível] acirrados elementos comunistas no
“Sindicato dos trabalhadores Rurais 23.

Percebemos na fala do candidato uma tentativa de transmitir para o destinatário de sua


declaração o amedrontamento e o quão perigoso era o comunismo. “Se as evoluções dos factos
no setor político-social no Brasil não tomar outro rumo por parte dos homens que dirige os
destinos desta grande nação como é o Brasil [...] podemos prever o que acontecerá [...] o
24
comunismo” . Nesse sentido, o candidato clama por alguma saída que pudesse bloquear o
comunismo que se fixava em terra brasileira. Naturalmente uma das primeiras medidas, na visão
do candidato, naquele momento, para barrar o comunismo seria a cassação do mandato de seu
adversário.
Simplesmente os políticos que perdiam as eleições locais valiam-se do discurso
anticomunista através do recurso de acusar seus adversários políticos de “subversivos” e
“comunistas” envolvendo-os em algum IPM, para eliminar a concorrência. Tal prática se
mostrava, na maioria das vezes, infalível nesse período, pois, se o indivíduo era comunista
deveria ser impedido de governar o bem público.
O anticomunismo justificava qualquer que fosse o ato impetrado pelo regime militar.
Para os militares os “subversivos” buscavam tomar o poder pela violência e instalar a barbárie, e
nesse sentido, se colocavam como “defensores da ordem”. Isso é o que permitiu “à ditadura

22
BNM 238, 1964, p. 16
23
BNM nº 238, 1964, p.16.
24
BNM 238, 1964, p. 16

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justificar a sua própria violência”, constituindo “o lugar de uma 'violência democrática' por
oposição à 'violência comunista'” 25.
Considerações finais
Na década de 1950 o discurso anticomunista se afunila e já se inicia o trabalho de
fichamento dos comunistas na sociedade paranaense, acompanhado de campanhas de
“esclarecimentos” indicando que os comunistas eram perigosos. Com o regime militar em 1964
o imaginário anticomunista paranaense se aflora, se tornando ordem do dia.
Esse discurso anticomunista, já desenvolvido, e fortemente utilizado no imediato pós-
golpe militar, para o regime, era urgente e eficaz para silenciar toda e qualquer forma de
oposição, personificada primordialmente no comunista, o “inimigo da nação”, e enquadrar a
sociedade à nova “ordem” estabelecida. Como vimos, para além de manter em seu cerne o
discurso anticomunista, os IPMs instaurados já nos primeiros instantes do regime militar foram
justificados pelo próprio discurso anticomunista.
Nessa perspectiva, o comunismo é visto como a encarnação do mal. Faz-se uma
separação maniqueísta que delimita os “bons brasileiros” e os “maus brasileiros”. Como
dissemos, o discurso da brasilidade se faz presente e “brasileiro bom, que é brasileiro bom,
jamais seria comunista”. Por “bom brasileiro” entendia-se o público conservador, sensato,
temente a Deus, defensor da pátria; já os “maus brasileiros”, seriam os comunistas, inimigos da
democracia, destruidores da pátria e descrentes.
Para concluir, peço emprestada uma indagação de Bethania Mariani que faz-nos refletir
sobre a questão do anticomunismo: a eficácia do sentido “ameaça vermelha” de fato teria
chegado ao fim, ou se transformado, no imaginário brasileiro atual? Há inúmeras circunstancias
indicativas de que o imaginário anticomunista ainda continua presente em alguns círculos
sociais.
REFERÊNCIAS
AEL – Arquivo Edgar Leuenroth. Projeto BNM. Processo nº 69.
AEL – Arquivo Edgar Leuenroth. Projeto BNM. Processo nº 238.
ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil: nunca mais. Petrópolis, Vozes, 1985.
ASSUNÇÃO, Rosangela Pereira de Abreu. DOPS/MG: Imaginário anticomunista e
policiamento político (1935-1964). (Dissertação de Mestrado). Programa de Pós-Graduação do
Departamento de História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Federal
de Minas Gerais, 2006.
COSTA, Luiz Flávio Carvalho. Sindicalismo rural brasileiro, em construção. Rio de janeiro:
Florence Universitária: UFRRJ, 1996.

25
MARIANI, 1996, p. 229

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DUTRA, Eliana de Freitas. O ardil totalitário: imaginário politico no Brasil nos anos
1930. 2ºed. – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. Pag. 359.
IPÓLITO, Verônica Karina. O mito da conspiração vermelha. DOPS no rastro de suspeitos
comunistas no Paraná. In: PRIORI, Angelo (et al) (org). A História do Paraná Revisitada.
Maringá: Eduem, 2014. P. 91- 127.
MARIANI, Bethania Sampaio Corrêa. O comunismo imaginário: Práticas discursivas da
imprensa sobre o PCB (1922 -1989). Unicamp. 1996.
MOTTA, Rodrigo P.S. Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil
(1917-1964). Tese de doutorado. 2000.
MOTTA, Rodrigo Pato Sá. Comunismo e anticomunismo sob o olhar da polícia
política. In: Locus: Revista de história, Juiz de Fora, v. 30, n.1, 2010, p. 17-27.
OLIVEIRA, Silvio José de. Imagens construídas no imaginário social: “esses vermelhos,
inimigos de nossa terra”. In: Revista interdisciplinar, p. 1-16, 2009.
ROLIM, Rivail Carvalho. A reorganização da polícia no estado do Paraná nos anos de 1950.
Revista de História Regional, v. 5, n. 1, s/p., 2000.
SILVA, Carla Luciana. Onda vermelha: imaginários anticomunistas brasileiros (1931-1934).
Porto Alegre: EDIPUCRS. 2001. 254 p.
STEIN, Leila de Menezes. Inquéritos Policiais Militares, Questão Agrária e
Sindicatos de Trabalhadores Rurais: Anos 60 e 70. Estudos de Sociologia.
Araraquara, SP: Universidade Estadual Paulista (UNESP), 1998. nº5. p.101-113.

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A HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA DE 1980: PERSPECTIVAS


SOBRE A CLASSE OPERÁRIA
Angelita Cristina Maquera – mestranda/CAPES
Dr. Sidnei J. Munhoz (orientador)/ Dr. Reginaldo Benedito Dias (coorientador)
Universidade Estadual de Maringá – PPH/UEM
PALAVRAS-CHAVE: HISTORIOGRAFIA; GREVE DE 1917, BRASIL.

Introdução e justificativa
Tendo em vista os debates atuais nesse ano de 2015 que, aparecem nas
diferentes mídias mostrando novas configurações da classe operária por meio de
manifestações, assembleias que discutem o projeto de terceirização (PL 4.330)26,
destacando ainda, a ameaça de greve geral feita pela Central Única dos Trabalhadores
(CUT) no mês de abril deste ano. Traz à luz debates longínquos sobre a situação da
classe operária brasileira, debates que antes questionavam a limitação da Consolidação
das Leis de Trabalho (CLT), hoje configurados em uma necessária defesa destes direitos
já há muito, adquiridos.
A partir dessas premissas, este trabalho busca apresentar uma análise de
como a historiografia dos anos de 1980 abordou, uma greve geral já quase centenária,
ocorrida em diferentes partes do país em 1917, sob liderança anarquista que levou
multidões as ruas.

Resultados
Essa produção historiográfica de 1980 abordou mais criteriosamente o
período Republicano no Brasil, a maioria dos recortes destacam os anos de 1889 à
1930.Os autores e trabalhos que analisamos se remetem às greves ocorridas em 1917 no
Brasil, de modos diferentes, entretanto, alguns apontamentos são comuns e ao mesmo
tempo, trazem novas perspectivas. O que gostaríamos de apresentar aqui é o aspecto
positivo desses trabalhos ao abordarem os fatores específicos da sociedade brasileira

26
As empresas podem contratar trabalhadores terceirizados em qualquer ramo de atividade para execução
de qualquer tarefa, seja em atividade-fim ou meio. Atualmente, a terceirização é permitida somente em
atividades de suporte, como limpeza, segurança e conservação, nos termos da Súmula 331, do Tribunal
Superior do Trabalho (TST). (Disponível no site do Senado Federal).

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naquele período, invalidando os “mitos” de que os movimentos operários eram apenas


fundamentados pela importação de ideias.
Percebemos que, ao descartarem as análises partidárias ou sindicalistas
da história operária, os autores analisados, ressaltaram o anarquismo como um dos
elementos essenciais nas manifestações da 1917. Maria Célia Paoli apontou que sob
essa atmosfera de novos debates na história; “é nesse plano exclusivamente ideológico e
doutrinário, que os historiadores e sociólogos sentiram-se mais à vontade para analisar a
experiência anarquista [..]” (PAOLI, M. 1982, pág.23). A autora ainda aponta que;
O insucesso destas “pequenas lutas”, certamente mais frequente, dada
a espantosa violência da repressão, não anula a enorme importância
deste campo de luta no engendramento histórico da luta de classe.
Estas lutas, organizada ou não pelos anarquistas, formam uma prática
política que tenta ser expressão do existir cotidiano de uma classe e
propõem, simultaneamente, a dimensão do próprio significado das
experiências comuns e do reconhecimento mútuo; isto é, propõe a
interpretação de sua própria dominação (PAOLI, M. 1982, pág. 24).
Assim, a autora traz uma perspectiva importante ao ressaltar que a
organização anarquista difusa em ligas de bairro, por exemplo, contribuíram para a
construção do “tempo coletivo” por meio das experiências em comum, o que ocasionou
em uma das características das manifestações daquele período.
Entretanto, a autora não afirma que essas organizações, posteriormente,
deram “origem” aos sindicatos (como se apenas os sindicatos ou as organizações
“oficiais” devam ser consideradas). De um ponto de vista divergente do que era comum
à época, a autora demonstra que havia uma forma de organização diferenciada e
autêntica antes de 1930, e que por intermédio de suas possíveis “falhas” e em um outro
contexto, formaram outros tipos de organização. Segundo Paoli;
[..] a partir da greve de 1917 em São Paulo, quando a ação do
movimento operário, no próprio desenvolvimento de sua prática,
desdobra suas comissões e grupos de fábrica para além do lugar onde
elas tinham se desenvolvido: forma-se um comitê amplo, sediado em
bairro, elegem-se delegados, negocia-se com patrões e com o governo
estadual (PAOLI, M. 1982, pág.27).

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Desse modo, a autora destaca que o desenvolvimento do movimento


operário foi “espontâneo” no que se refere à uma organização não institucionalizada,
que por muito tempo era o foco de muitas análises historiográficas e militantes.
Cristina Campos Hebling trabalha exatamente com essa perspectiva
difusa e heterogênea das organizações operárias. A autora prioriza o anarquismo,
entretanto, ela explica que não era uma forma homogênea, pois em São Paulo e no Rio
de Janeiro, tiveram diferentes modos de atuação, devido ao “cenário” diferente das duas
cidades (HEBLING, C. 1988). Destacamos que a autora faz uma contribuição positiva
ao apresentar que essas diferenças ocorriam em toda a classe operária brasileira, pois há
diferença nas relações de trabalho, diferença sexual, diferentes setores econômicos, etc.
Hebling afirma, que o Rio de Janeiro possuía uma organização especifica
da sociedade, uma maior diversidade cultural e populacional, além de um grande
número de funcionários públicos, o que influenciou o surgimento do anarquismo em
bases de organização sindical, considerando que o número de sindicatos ditos
“amarelos”, era grande, ou seja, já havia uma tendência à organização sindical
(HEBLING, C. 1988, pág.24).
Em São Paulo, as características eram diferentes, devido à forte
imigração, uma outra estrutura econômica, e como aponta Hebling, uma maior
repressão se deu na cidade decorrente de uma maior aproximação entre o empresariado
e o Estado. Campos destaca, que nessa cidade se desenvolveram mais ligas de bairro,
tipicamente anarquistas e com influências estrangeiras, a eficiência da repressão policial
dificultou as organizações sindicais.
É importante ressaltar, que a autora trabalha com jornais de vertente
anarquista para trazer esses resultados. Assim, as greves podem ser compreendidas para
além do econômico, mas também como um projeto utópico da sociedade como resposta
aos desmandos do Estado e dos industriais.
Entretanto, os autores estão de acordo sobre tais fatores econômicos,
retratam a partir dos jornais operários que as condições de trabalho e de moradia eram
precárias, portanto, em julho de 1917 a greve se inicia no setor têxtil (o maior setor
industrial do Brasil), exigindo a jornada de oito horas, a regulamentação do trabalho
feminino e infantil e também aumento salarial (HEBLING, C. 1988). Essas greves são
difusas, não acontecem ao mesmo tempo, devido às reuniões e acordos que acontecem,

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assim, teve-se uma das maiores greves da história brasileira, mas deve-se salientar seu
caráter disperso e espontâneo (HEBLING, C. 1988).
Essas manifestações que se iniciam em 1917 são recorrentes até,
aproximadamente, 1921, com menos intensidade. A autora entende que o declínio
ocorre devido à repressão e também às mudanças nas práticas operárias, considerando a
fundação do Partido Comunista em 1922, o que leva-se à outras estratégias de luta e não
mais a ação direta anarquista e também o forte discurso nacionalista e patriótico
empregado como meio de sanar os problemas sociais. Hebling afirma que;
Creio que este final de conjuntura marcou os limites do sonhar
libertário. Ele foi provado pelos valores religiosos, pelo nacionalismo,
pelo pragmatismo, o reformismo, por uma política de corrupção que
sustentava amarelos e coronéis marítimos, pelo gerenciamento
cientifico, etc. (HEBLING, C. 1988, pág.178).
Entretanto, assim como De Decca também salientou (DECCA Edgar, S.
1981), a autora afirma que é errôneo usar a palavra “insucesso” para a experiência
anarquista desses anos, pois os anarquistas não queriam participar do poder, não se viam
nessa lógica. Ainda, ela afirma que não se pode criticar essa falta de representatividade
política do operariado sendo que a burguesia em si, também demorou para se constituir
como força política e eleitoral (HEBLING, C. 1988). Assim, acreditamos que esse
aspecto de compreender essas greves como difusas e sob múltiplos fatores, é a principal
colaboração da autora sobre a data.
É importante ressaltar que os ganhos dessas greves foram relativos,
dependendo de cada setor e cada região. Entretanto, os autores concordam que essas
manifestações de 1917 trouxeram à tona a “questão social”, que se anteriormente
tentava ocultar.
Margareth Rago afirma que esse foi um dos maiores ganhos de tais
manifestações e também ressalta que foi importante para o fortalecimento do
movimento operário e também do patronal, por intermédio da criação de diversas
associações (RAGO, M. 1985). Entretanto, vale ressaltar que essa obra apresenta um
outro aspecto da repressão a essas manifestações, a moral, segundo ela; “a imagem da
família, utilizada para pensar a fábrica, cumpre função explicita de negar a existência do
conflito capital/trabalho, sugerindo a ideia de uma harmoniosa cooperação entre pessoas
identificadas” (RAGO, M. 1985, pág.34).

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No entanto, Rago, ao analisar os jornais anarquistas do período, ressalta a


presença feminina na organização e no discurso operário. Essa presença que autora
aponta não é só na resistência explicita (as trabalhadoras têxtis que foram às ruas em
1917), mas a resistência cotidiana, lembrando que os questionamento dessas mulheres
ultrapassam a condição de trabalho, questiona-se a própria construção da mulher
(RAGO, M.1985).
Percebemos que encontrar um fio único para as manifestações é
impossível, pois elas se constituíram de fatores diferenciados e difusos. A colaboração
de Margareth Rago foi importante por destacar que as estratégias anarquistas buscavam
intervir em problemas que iam para além do campo econômico (o que, regra geral, não
era muito não valorizado pelas análises marxistas de orientação ortodoxa), eles
questionavam toda a estrutura burguesa, inclusive a moral familiar, como sabiamente
destacou Rago.
Kazumi Munakata também salienta a intensa influência anarquista nas
greves de 1917, desde sua proliferação anterior (1904). O autor se destaca ao
estabelecer uma relação entre o anarquismo e o liberalismo, como já visto, ele afirma
que ambos não queriam a intervenção do Estado nas relações de trabalho, entendiam, o
trabalho como acordos privados. Assim, Munakata ressalta a importância dessas
ideologias libertárias nas greves e principalmente, estabelece os ganhos dessas
manifestações.
O autor afirma que um dos principais ganhos dessas grandes greves foi o
maior controle das relações de trabalho, o exemplo disso foi a criação das tabelas e
regulamentos que muitos trabalhadores estabeleceram (MUNAKATA, K. 1984). A
estratégia desses trabalhadores, segundo Munakata, era de criar associações de
trabalhadores, de determinado oficio e estabelecerem normas e regras a serem seguidas
pelas empresas, naquele determinado trabalho (MUNAKATA, K. 1984). A principal
regra estabelecida por essas associações/comissões operárias estava relacionada ao
salário e às condições de trabalho.
Essas associações eram responsáveis principalmente pelo mercado de
trabalho, pois eles mediavam as contratações, assim, se um patrão não cumprisse as
normas daquele sindicato de oficio, dificilmente ele conseguiria contratar mão de obra
(MUNAKATA, K. 1984, pág.19).

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Assim, Munakata afirma que o sindicato é de certo modo aceito pelos


patrões, e esse sucesso se deve à organização e mobilização constante dos trabalhadores,
além de resolverem os conflitos sem a intervenção do Estado (anarquistas e sua
resistência ao Estado), e também os modos de assistência social, como as caixas de
auxilio em caso de acidentes, atraíram os trabalhadores (MUNAKATA, K. 1984).
Desse modo, o autor também desconstrói o mito da “infantilidade” da
classe operária antes de 1930, ao apresentar os diversos modos de resistência implícitos
e explícitos, que garantiram alguns ganhos para os trabalhadores, principalmente, após
as grandes manifestações de 1917.
Acreditamos que uma das fontes que mais contribuiu aqui para ressaltar
os próprios aspectos nacionais nessas grandes greves, foi o trabalho de Silvia Magnani
(MAGNANI, S. 1982). Como já enfatizado, o trabalho da autora ainda retrata uma
tendência teórica dos anos anteriores à década de 1980.
A autora ao apresentar a teoria da “planta exótica”, visa desconstruir a
ideia da resistência operária como importada. Essa teoria muito difundida pela elite
republicana, entendia que o anarquismo veio totalmente de fora, pois o brasileiro é
“cordial”, os estrangeiros são os “culpados” (MAGNANI, S. 1982, pág.17). O trabalho
de Magnani é fundamentado em destruir esse mito e provar que a situação econômica e
política do Brasil daquele período era fértil às ideias libertárias. A autora ressalta que;
[..] os comportamentos políticos do operariado, ainda que
contraditórios entre si ou ambíguos, seriam explicitados pela
configuração social; o anarquismo teria correspondido a certos
aspectos da configuração social, não permanecendo a transposição de
um ideário político-ideológico europeu (MAGNANI, S. 1982,
pág.29).
A autora entende, desse modo, que no período da Primeira República os
trabalhadores não tinham nenhum tipo de representação (em um sentido
institucionalizado, como já nos habituamos atualmente), e aceitaram as lideranças
anarquistas, principalmente, por serem operários também, diferentemente de muitos
líderes socialistas, que não eram operários.
Essas organizações operárias, segundo Magnani eram difusas, como se
evidenciou nas greves, devido, como já abordamos ás diferenças entre os setores
econômicos e regiões, entretanto, a autora salienta um aspecto novo ao estabelecer o

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paternalismo oligárquico como uma das causas da debilidade operária naquele período
(MAGNANI, S. 1982, pág.31).
Entretanto, ela salienta eu os industriais também eram subordinados as
oligarquias, ou seja, também não possuíam forte representatividade, sendo assim, a
autora aponta que a classe operária na Primeira República era débil, mas os industriais
também não se constituíam em uma força política representativa (MAGNANI, S. 1982).
Magnani se aproxima de Kazumi Munakata ao afirmar que estes
anarquistas aceitavam a constituição liberal dos direitos individuais e, desse modo,
lutavam contra o patronato e não contra o Estado. Destaca-se que, a autora não entende
isso como algo negativo, mas como parte daquele processo histórico, a especificidade
do Brasil, devido às políticas oligárquicas e ao preconceito com os imigrantes, fizeram
com que tais anarquistas lutassem mais por direitos e reformas do que a própria
destruição do Estado, como na Espanha e na Itália (MAGNANI, S. 1982).
A autora descreve que a organização anarquista já influenciava as greves
de 1907 em São Paulo, por meio da ação direta e não havia intervenção do Estado para
o diálogo, somente uma intervenção repressiva. Essas manifestações já exigiam a
jornada de oito horas. Essa exigência além de dar o tempo do lazer aos trabalhadores,
também diminuiria o desemprego, já que aumentariam os turnos. No entanto, os
industriais alegaram que os países desenvolvidos ainda não tinham aprovado essa
jornada, e também isso aumentaria os preços dos produtos, recusando as exigências, que
seriam retomada mais tarde em 1917.
Desse modo, Magnani conclui em seu trabalho que teoria anarquista
encontrava confirmação na organização estatal brasileira, principalmente, por meio das
políticas oligárquicas e repressivas que não permitiam a participação operária na
política institucional. Magnani ressalta que não se deve invalidar a influência
anarquista, afirmando ser ela uma mera importação de ideias, pois a exclusão política,
social e cultural dos trabalhadores lhes proporcionaram a difusão de ideais libertários. E
também, seguindo o raciocínio de De Decca (DECCA Edgar, S. 1979), não se pode
considerar esses anarquistas como “vencidos” ou “perdedores” já que não almejavam
participar das relações políticas institucionalizadas, mas, destruí-las.
O historiador Francisco Foot Hardman (HARDMAN, F. 1984), ao focar
seus estudos sobre a cultura da classe operária, entende que concomitante as práticas de

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resistência anarquista, a burguesia também criou estratégias de controle, portanto, o


autor, assim como Magnani, também ressalta os aspectos específicos da sociedade
brasileira, segundo ele;
O mutualismo foi virtualmente soterrado pela luta de classes: a classe
operária, sob a influência anarco-sindicalista, desenvolveu as ligas de
resistência e sindicatos de ofícios vários; a burguesia, através do
Estado e da Igreja, tomava iniciativas no campo da filantropia e do
paternalismo assistencialista (HARDMAN, F. 1984, pág.33).
Assim, ele entende que a própria classe é definida em determinado
sentido histórico, e possui formas nacionais especificas, e como veremos, isso não
significa que as relações com o “internacional” seja descartada.
Hardman, assim como Magnani ressalta que o anarquismo era uma
ideologia que se reafirmava na realidade brasileira, principalmente, devido à segregação
social, cultural e até geográfica dos operários, ou seja, não havia nenhum tipo de
representatividade reconhecida pelos patrões (HARDMAN, F. 1984, pág.60).
Entretanto, diferentemente de Silvia Magnani, Hardman destaca as vilas operárias como
parte desse isolamento e segregação dos trabalhadores, sendo assim, os trabalhadores
rurais vivenciavam a dominação estratégica das oligarquias, e os trabalhadores urbanos,
também vivenciavam diferentes estratégias de controle da burguesia, entre elas, as vilas
operárias. Entende-se a vila operária como estratégia de controle tendo que ela segrega
o operário, já que ela se localiza no mesmo local de trabalho, a distribuição dos
trabalhadores nesses espaços também supõe uma lógica disciplinar (a igreja, a escola e o
mercado, tudo no mesmo local, evitando que o operário tenha que sair de sua vila).
A contribuição de Francisco Hardman é notável, pois o autor
diferentemente dos demais aqui apresentados, estuda as práticas culturais de resistência,
entendendo que a cultura está intrínseca as resistências políticas e sociais. O autor para
exemplificar isso se utiliza dos exemplos das festas e festivais organizados pelos
operários, que tinham o propósito de propaganda, arrecadação de fundos para a
manutenção dos jornais e escolas e claro, para ressaltar os vínculos e práticas culturais
(HARDMAN, F. 1984).
Entretanto, o autor problematiza esses aspectos culturais e afirma que
essa “cultura” anarquista não pode ser entendida como algo puro e próprio da classe,
pois é notável seu paradoxo entre o separatismo e a assimilação. Sendo que, ao mesmo

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tempo que se diferenciavam por meio do teatro e das publicações em jornais, essas
festas foram se tornando populares, não apenas anarquistas, desse modo, o autor
entende que mesmo sendo contraditória, é importante reconhecer a influência dessas
tendências na formação e construção das manifestações que ocorreram durante toda a
Primeira República.
Assim, percebemos que a classe, como já afirmou Thompson, não é algo
estável ou imóvel, ela se estabelece no processo de luta, e a cultura, muito criticada e
desvalorizada por análises marxistas, está intrínseca as organizações de resistência, se
relacionando com os fatores econômicos, sociais e políticos, ele ainda afirma que, como
dizia Michelle Perrot, “a greve é também uma festa” (HARDMAN, F. 1984, pág.193).
Acreditamos que a principal contribuição de Francisco Hardman para a
compreensão das manifestações de 1917, está em entender essas greves para o além do
econômico e do político, mas também atentar para o cotidiano e as práticas culturais dos
trabalhadores, ou seja, uma gama de fatores inter-relacionados. Portanto, a partir das
vilas operárias, por exemplo, se consolidava as experiências em comum e estabeleciam
diferentes relações, tanto de resistência, quanto as de sujeição à classe dominante.
Entendemos que a organização documental feita pelos professores Paulo
Sérgio Pinheiro e Michael Hall (PINHEIRO, P. & HALL, M. 1981), constitui um
importante acervo para o estudo do período e possibilita aos pesquisadores do tema,
uma melhor compreensão do período estudado e, inclusive, a melhor percepção dos
motivos que levaram estes trabalhadores a desencadearem as maiores greves do Brasil.
Os autores, como já mencionados, apresentam farta documentação sobre as condições
de vida, as organizações, a resistência e sobre as greves que ocorreram durante todo o
período recortado, demonstrando o caráter espontâneo 27 de algumas greves e outras
mais organizadas e planejadas, pois a organização operária não é homogênea.
A organização documental demonstra, na maior parte, as denúncias de
exploração e os modos de vida dos trabalhadores rurais e urbanos. As denúncias mais
frequentes são principalmente em relação a habitação e a falta de direitos em relação aos
salários, pois não há ninguém que garanta o cumprimento das garantias básicas dos
trabalhadores (PINHEIRO, P. & HALL, M. 1981).

27
Utilizo o termo espontâneo para referenciar estes movimentos em sua especificidade de organização –
dispersa-, pois era um período de construção de um movimento, não acabado.

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Os autores apresentam um artigo que relata justamente isso que estamos


afirmando, é um artigo do anarquista Gigi Damiani publicado em 1920 em São Paulo;
Mas não há juízes ali? Existem sim, e até demais; mas eles são
simples empregados do Estado e o cargo que ocupam é dado a eles de
presente pela oligarquia que domina, ou pelos fazendeiros que os
investiram do poder de dar ordens ao carcereiro, justamente para
mandar na prisão os próprios inimigos, os próprios adversários e os
colonos que não achassem do seu próprio agrado os usos e os
costumes medievais da fazenda; usos e costumes que vão da jus
cosciandi, à compensação negada, às chicotadas e ao tiro de carabina
que alcança os que desertam do feudo (PINHEIRO, P. & HALL, M.
1981, pág.294).
Esse artigo apresentado pelos autores, exemplifica uma parte das revoltas
dos trabalhadores na Primeira República, nesse caso, especificamente, dos anarquistas
que tecem críticas e fortes denúncias em seus jornais.
Assim, as relações de trabalho especificas da sociedade brasileira que se
destacava pela forte produção agrícola e pelo nascimento do capitalismo industrial,
proporcionaram modos singulares de exploração, como já bem falamos das relações
oligárquicas.
Desse modo, os autores apresentam discursos que se contrapõem,
contribuindo assim para uma compreensão mais ampla das relações e fatores que se
relacionam.

Considerações finais
Esses autores, como já afirmamos, buscaram demonstrar que as
manifestações ocorridas em 1917 e que continuaram até 1921, foram frutos de
problemas específicos da sociedade brasileira daquele período, não significando que,
deve-se excluir a influência internacional do bolchevismo (posterior a 1917), mas sim,
reconhecer que não foram apenas importações de ideias, sejam elas anarquistas ou
socialistas, mas todo o complexo político, econômico, social e cultural brasileiro deu
“vida” a esses pensamentos e utopias.

REFERÊNCIAS:

Anais da
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DECCA, Edgar Salvadori De. 1930: O silêncio dos vencidos. Editora Brasiliense, São
Paulo, 1981.
HARDMAN, Francisco Foot. Nem Pátria, Nem Patrão! Vida operária e cultura
anarquista no Brasil. Brasiliense, São Paulo, 1984.
HEBLING, Cristina Campos. O sonhar libertário: movimento operário nos anos
1917 a 1921. Editora Pontes (Unicamp), São Paulo, 1988.
MAGNANI, Sylvia Lang. O movimento anarquista em São Paulo (1906-1917). São
Paulo, Brasiliense, 1982.
MUNAKATA, Kazumi. A legislação trabalhista no Brasil. Editora Brasiliense, São
Paulo, 1984 (Coleção Tudo é história).
PAOLI, Maria Célia. Os trabalhadores urbanos na fala dos outros: tempo, espaço e
classe na história operária brasileira. Encontro da Associação Brasileira de
Antropologia, Rio de Janeiro (UFRJ), 07/10/1982.
PINHEIRO, Paulo S. & HALL, Michael M. A classe operária no Brasil. Condições de
vida e de trabalho, relações com os empresários e o Estado (1889-1930),Vol.II.
Brasiliense, São Paulo, 1981.
RAGO, Margareth L. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar, Brasil 1890-
1930. Editora Paz e Terra, São Paulo, 1985.

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A CRÍTICA A IMIGRAÇÂO CHINESA NO BOLETIM “A


IMMIGRAÇÂO” E A DISCUSSÃO DO IMIGRANTE IDEAL
Arthur Daltin Carrega (Mestrando no Progr. de pós-grad. em História. UNESP/
Assis)
Orientador: Prof. Dr. Paulo Cesar Gonçalves
PALAVRAS-CHAVE: IMIGRAÇÃO CHINESA – SOCIEDADE CENTRAL DE IMIGRAÇÃO – IMIGRANTE IDEAL.

A Sociedade Central de Immigração (SCI) foi fundada no Rio de Janeiro,


em outubro de 1883 motivada pela iminente transição da mão de obra nos latifúndios,
decorrente do processo de abolição da escravidão, e pela grande quantidade de terras
devolutas ou improdutivas ainda encontradas no país. Foi fundada por três importantes
imigrantes germânicos, os alemães Carl von Koseritz (1830 – 1890) e Herman Otto
Blumenau (1819 – 1899) e ainda o austríaco Hugo Grubber. Fundaram a Sociedade sob
o discurso de que os estadistas, capitalista e proprietários brasileiros desconheciam as
vantagens da imigração europeia e as desvantagens do latifúndio, assim se dispuseram a
28
lutar para que esta tese se formasse em todo país.
O projeto imigrantista da SCI tinha duas etapas bem definidas. (1)
transformar o Brasil para que o país tivesse condições de receber imigrantes europeus e
garantir a eles a possibilidade do progresso exclusivamente por meio de seu trabalho.
(2) Convencer os europeus por meio da propaganda a escolher o Brasil como sua nova
pátria.
Para os integrantes da Central o desejo de emigrar estava ligado a uma crise
econômica e social na Europa, a qual não permitia que os camponeses e trabalhadores
rurais realizassem o sonho de adquirir uma pequena propriedade e retirar dela seu
próprio sustento. Assim defendiam a tese de que para garantir o fluxo imigratório
espontâneo e constante, e por consequência a ocupação dos territórios devolutos no
Brasil, seria necessário garantir aos imigrantes o acesso à pequena propriedade e as
condições politicas e jurídicas para que este obtivesse o progresso.
O projeto descrito acabou derrotado e não teve força suficiente para alterar a
lei de terras de 1850 que permitia a concentração fundiária e continuou sendo um
28
HALL, Michael M. “Reformadores de classe média no Império Brasileiro: A Sociedade Central de
Imigração”. Revista de História. São Paulo, ano XXVII, v. LIII, 1976. p. 148.

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obstáculo à obtenção de terras a baixo custo. 29 No entanto as discussões e reflexões da


SCI a respeito da formação da nação chamam a atenção pela presença de importantes
homens do período e pela discussão em torno do progresso e da nação, ainda em
formação.
Foi composta principalmente por profissionais liberais urbanos da cidade do
Rio de Janeiro, mas atuou através de sociedades filiais em outras províncias do Brasil
com destaque para o Paraná e o Rio Grande do Sul. Os principais líderes eram: O
escritor Alfredo Maria Adriano d'Escragnolle Taunay, ou Visconde de Taunay (1843 –
1899), respeitado escritor e politico influente, ocupou cargos parlamentares e chegou a
ser presidente de província no Paraná, onde procurou valorizar a politica de fundação de
núcleos coloniais defendidas pela SCI. André Pinto Rebouças (1848 – 1898), já muito
conhecido por opiniões radicais dentro do movimento abolicionista e devido às
retaliações que sofreu de senhores de escravos, antes mesmo da fundação da Sociedade.
Henrique Beaurepaire Rohan (1812 – 1894), primo de Taunay e primeiro presidente da
SCI, conhecido pelo trabalho como militar. 30 Podemos destacar ainda José Américo dos
Santos, também engenheiro. Ferreira de Araújo, que era jornalista e Wenceslau de
Souza Guimaraes, presidente do gabinete português de Leitura e diretor da SCI.
Eram influenciados por teses científicas ligadas ao positivismo de Augusto
Comte (1798 – 1857), o qual acreditava no progresso da humanidade dependia da
evolução das ciências. Eram influenciados ainda pelo darwinismo social e pelo
evolucionismo de Hebert Spencer (1820 - 1903), que aplicou teorias naturais de Charles
Darwin (1809 – 1862) a análises da sociedade e pelo determinismo de Henry Thomas
Buckle (1821 – 1862), historiador britânico autor de Historia da Civilização Inglesa
(1857), que propôs uma analise histórica com atenção exclusiva para dados estatísticos.
As influências intelectuais e a grande presença de estrangeiros europeus, ou
filhos de europeus, no quadro de membros da SCI permitem mostrar que a Sociedade
corroborou com o discurso mais conhecido do período de que a civilização estaria mais
desenvolvida do outro lado do atlântico. Acreditavam que se fosse desencadeado um

29
MESQUITA, Sergio Luiz Monteiro. A Sociedade Central De Imigração E A Política Imigratória
Brasileira (1883-1910). Dissertação de Mestrado de programa de pós-graduação em História da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro, setembro de 2000. p. 175.
30
HALL, Michael M. “Reformadores de classe média no Império Brasileiro: A Sociedade Central de
Imigração”. p.148.

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processo de imigração europeia para o Brasil o desenvolvimento material, social e


cultural seria atingido naturalmente, pois o gosto pelo trabalho na lavoura e o desejo
garantir sustento a família já seriam parte da cultura dos imigrantes.
Nesse sentido é possível identificar quem a Sociedade Central de
Immigração considerava como “imigrante ideal” para o desenvolvimento do seu
projeto, ou seja, para a formação da “grande nação” brasileira, desenvolvida material,
cultural, econômica e socialmente. Apostavam no imigrante europeu, que conhecesse o
trabalho na lavoura e migrasse espontaneamente, para isso deveria ser atraído ao país
pelas condições de prosperidade oferecidas.
Para atrair esse imigrante a SCI propunha uma serie de mudanças nas leis e
nas estruturas do país, que podemos dividir em dois grandes campos de discussão: O
acesso à propriedade privada e as garantias das liberdades individuais. No primeiro
campo temos a proposição de alterações na lei de terras de 1850, que seria responsável
por aumentar o acesso a pequena propriedade e desestimular a posse de grandes
propriedades. Para a Central as terras deveriam ser loteadas e vendidas a preços
acessíveis e os impostos deveriam ser cobrados de acordo com o tamanho da terra. É
interessante ressaltar que a terra para a SCI deveria ser transformada em um atrativo
para os imigrantes europeus, que já cruzaram o atlântico em busca de melhores
condições de vida.
O segundo campo seria responsável por garantir ao imigrante as liberdades
individuais para ser aceito socialmente no Brasil e assim compor a sonhada nação
proposta. Temos que lembrar que o país estava em um período de transição da mão de
obra escrava para a livre, e ainda eram muito destacados na sociedade os valores morais
dos tempos de colônia. Assim era necessário transformar as leis de forma que elas
também atendessem a esse novo elemento identificado: o trabalhador livre.
Sobre este tema a SCI propôs um projeto que garantisse aos imigrantes a
liberdade religiosa, propondo a promulgação da lei do casamento civil e da
secularização dos cemitérios. A revogação da lei de locação de serviços de 1871, que
avaliavam permitir muitas arbitrariedades ao senhor de terras. Para a SCI o imigrante
deveria ter garantido ainda a escolha do lote que seria comprado, a província e a cultura
que decidisse plantar.

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Nesse sentido fica clara a importância que teria a propaganda a ser


desenvolvida internamente e externamente. A primeira responsável por desenvolver a
discussão a respeito da figura do imigrante, do trabalho livre e dos problemas nas leis
do país que pudessem ser obstáculos para a imigração espontânea. A segunda,
desenvolvida na Europa, deveria ser fiel e bem desenvolvida, buscando valorizar a
produtividade do solo, o clima favorável, a receptividade do povo, e as normas jurídicas
liberais. Evidentemente que esta segunda etapa só seria possível caso as transformações
politicas propostas fossem atendidas. No primeiro boletim publicado este projeto fica
claro no estatuto:

“ Art. 2.° A medida que os seus meios o permittirem, encarregar-se-ha a


sociedade:
§ 1° De fundar e manter nesta corte um escriptorio de informações aos
immigrantes, que os aconselhará e guiará na escolha do seu destino,
fornecendo-lhes todos os esclarecimentos necessários e fiscalisando também
por parte da sociedade o tratamento que os colonos recebam a bordo dos
navios que os conduzem ao paiz, a sua accommodação e tratamento na
hospedaria official desta corte, seu transporte para as provincias, collocação,
etc.
§ 2.° De influir, quer pelo uso do direito de petição, quer pela imprensa, quer
finalmente pelas relações e posição dos seus membros, afim de serem
decretadas todas as reformas necessárias para que o estrangeiro ache uma
verdadeira pátria no Brazil, sendo tomadas todas as medidas precisas para a
recepção e collocação de immigrantes, medindo-se terras em extensão
sufficiente, etc.
[...]
§ 4.o De crear, logo que for possível, um grande órgão de propaganda nesta
corte, para formar opinião no paiz e exercer conveniente influencia sobre a
marcha das cousas publicas em relação á immigração européa.
§ 5.° De, finalmente, quando houver meios para isso, promover propaganda
31
directa nos paizes da Europa, que melhores immigrantes forneçam.”

Sobre as principais transformações politicas propostas pela SCI destacam-


se: A mudança na lei de terras, já citada. O latifúndio é inclusive considerado pela
Central como um dos símbolos do atraso brasileiro. A revogação da lei de locação de
31
A immigração. Reimpressão dos boletins nº 1 ao nº 4. p. 1.

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serviços de 1871, que era considerada em alguns casos uma “escravidão branca”. A
promulgação da lei do casamento civil, ainda inexistente no Brasil poderia afastar os
imigrantes não católicos que pretendiam emigrar e pelo mesmo motivo religioso a
secularização dos cemitérios.
As transformações propostas e os serviços de imigração que seriam
disponibilizados teriam a função de atrair esse imigrante ideal o qual a sociedade se
interessava. É importante notar que o imigrante ideal não é apenas o europeu, mas
aquele que estaria disposto a contribuir para a formação da nação brasileira.
Acreditavam que os europeus teriam um perfil mais próximo ao que
procuravam. É importante perceber ainda que os imigrantes pretendidos seriam os que
chegassem de maneira espontânea e que migrassem com a família, pois esta seria a
garantia do trabalho e das intenções de permanência.
A SCI em muitos casos buscava debater a figura desse imigrante nas
paginas do boletim. Tentavam mostrar a ideia do imigrante que chegava com intenções
de formar no Brasil sua nova residência, contrariando a visão majoritária de políticos e
de latifundiários brasileiros que acreditavam que os imigrantes chegavam com intenções
de enriquecer e voltar à terra de origem. Taunay, em discursos na câmara dos deputados
e posteriormente no senado do império defendia a tese de que se fossem garantidas as
condições de progresso do imigrante, ele não teria mais vontade de deixar o país, teria
aqui justamente o que procurava quando emigrou. Em discurso na assembleia do
deputados publicado no boletim numero 6 em outubro de 1884 Taunay afirmou:

“Si esse homem vem da Europa, foi pela esperança das vantagens que
poderia auferir, em vista dos salários promettidos, que lhe pareceram
sufficicntes em relação ao pouco que recebia no seu paiz.
Uma vez aqui, verificado o seu engano, quer o nobre deputado que elle ou
siga para a cadeia, ou então desembolso dinheiro, cousa que do certo não
32
possue, pois que si emigrou foi para ganhar aquillo que não tinha?”

Através deste discurso a SCI considerava seu projeto verdadeiramente


patriótico e as ideias receosas quanto à dignidade do imigrante europeu e suas
pretensões no Brasil chamavam de “nativismo”, que podemos entender como uma

32
A Immigração. Boletim número 6. pag. 2.

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acusação de falso patriotismo, sobre as diferenças entre os termos Taunay refletiu no


boletim numero 10, de abril de 1885.

“Nada mais contrario ao progresso real das novas nações americanas do que
o sentimento tamanho e pernicioso, que os pensadores do século
denominaram nativismo e muitos ainda confundem com patriotismo [...]
O nativismo o a mescla de obsoletos e ridículos preconceitos dos tempos
passados e bárbaros e da ignorância dos factos de hoje; o patriotismo, ao
envez traz a consideração sensata o justa das necessidades da terra natal, quer
33
sejam de ordem material, quer moral.”

É interessante pensar ainda que a SCI não pretendia separar as nações


europeias que migrassem, apesar de reconhecer as diferenças entre elas, tinham a
intenção de ocupar os núcleos coloniais fundados de maneira aleatória e promovendo a
propaganda de todos em todos os países europeus que disponibilizassem imigrantes. A
formação da nação aqui seria desenvolvida pelo ensino do português e pela integração
entre esses povos que aconteceria de maneira natural e em longo prazo.
Nesse sentido a SCI criticou duramente a proposta da imigração chinesa,
que também surgiu no contexto de debates para a solução do problema da mão de obra.
Homens importantes do período chegaram a discutir a hipótese e considerar como um
meio eficaz e barato, como Quintino Bocaiúva (1836 – 1912), conhecido jornalista que
atuou posteriormente no processo de proclamação da republica de 1889. Para Bocaiuva,
os imigrantes asiáticos tinham contribuído significativamente para o progresso de
colônias da Inglaterra e da França, chamava a atenção ainda para regiões do Peru, Nova
Granada e União Americana 34.
No entanto, mesmo aqueles que consideravam os “chins” como opção para
ocupar o trabalho deixado pelos escravos temiam as divergências culturais. Os chineses
eram considerados “pior que os negros”, “sem amor ao trabalho”, “entregues ao vicio
do ópio”, “atrasados intelectualmente”, “cultivavam hábitos anti-europeus” 35.

33
A Immigração. Boletim número 10. pag. 2.
34
COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. 5º edição. São Paulo: UNESP, 2010. p. 181
35
GONÇALVES. Mercadores de Braços: Riqueza e Acumulação na Organização da Emigração
Européia ao o novo mundo. 2008.p. 162.

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As propostas de imigração chinesa podem ser entendidas como intermediaria


entre a manutenção da escravidão e o trabalho livre, já que aceitariam salários mais
baixos. Maria José Elias, em comunicação citou varias experiências com a introdução
de trabalhadores chineses no país, que acabaram sendo consideradas pouco satisfatórias,
36
o que também foi usado como argumentos contra esta opção.
Integrantes da SCI estão entre os principais opositores ao projeto da imigração
chinesa, acreditavam que os asiáticos eram de natureza “corrupta e débil” e que apesar
de parecer uma opção viável aos grandes produtores de café devido ao baixo custo de
sua contratação, em longo prazo seria responsável por afastar o imigrante europeu, pois
reduziria consideravelmente os salários, que estariam entre os principais objetivos dos
37
imigrantes europeus.

“Teria ainda muito que dizer, mais precisa ser breve. Aliás o assumpto
interessa de perto o fim principal da reunião, pois o contraria de frente.
Bastará, com effeito, o simples annuncio de que os chins vão ser importados
para o Brazil, para que a Europa cesse qualquer movimento emigralorio. É
preciso contar com isto. Uma cousa exclue radicalmente a outra, de maneira
que, enquanto a Republica Argentina, como muito bem ponderou o Sr. Carlos
do Koseritz, estiver innoculado em suas veias sangue generoso, forte, vivo,
enérgico, receberemos nós para companheiros da grande obra nacional os
decrépitos fiilhos do Celeste Império!
Já o disse, mas repetirá : o chim afugenta irremediavelmente o immigrante
europeu, o aniquilla, do mesmo modo que a moeda fraca expulsa a forte e a
faz desapparecer. Em outra ordem de considerações, mas no
desenvolvimento da sua these, prova o Sr. Escragnolle Taunay que o
exemplo dos Estados Unido tem servido no espirito daquelles que nos
dirigem, para medidas precipitadas e quasi absurdas em alguns dos seus
38
resultados.”

36
ELIAS, Maria José. Os debates sobre o trabalho dos chins e o problema da mão de obra no Brasil
durante o século XIX.p. 698.
37
A immigração. Reimpressão dos boletins nº 1 ao nº 4. p. 4.
38
A immigração. Reimpressão dos boletins nº 1 ao nº 4. p. 4.

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No trecho é possível identificar ainda a origem dos argumentos de Taunay.


Ele se baseia em exemplos dos Estados Unidos, que são citados muitas vezes nas
paginas do boletim estudado. Para a SCI a imigração europeia foi a principal
responsável pelo desenvolvimento nacional que o país norte americano teve ao longo do
século XIX.
Em um texto publicado no boletim numero 3, Taunay apoia sua
argumentação em um relatório do estado da Califórnia e em um comentário do então
senador, Frank Morrison Pixley (1825 – 1895):

“Leam-se os relatórios do Rev. Otis Gibson, do Dr. II. Poland, de David


Woods; lea-se o pro-cesso da commissão nomeada no Congresso Americano
e apresentado a 17 de Fevereiro de 1876, e ficar-se-ha horrorisado da
possibilidade de abrir-se o Brazil a semelhante gente, qualquer que seja o
caracter em que venha, já simples e miseráveis coolies. sujeitos a castigos
corporaes, já imigrantes livres, como pomposamente querem agoru desfarçar
aquelles mesmos coolies.
De 40.000 chins, disse o senador Pixley que ha em S. Francisco, 10.000 são
39
vagabundos e criminosos e 10.000 entregam-se á prostituição.”

No texto Taunay faz um apelo aos senhores terras que procuravam


alternativas para a solução da escassez na demanda da mão de obra, para que não
optassem pelo chinês, que seriam facilmente contratados e não gerariam altos custos.
Para Taunay a imigração chinesa acabaria por destruir o projeto principal da SCI ao
afastar o imigrante europeu e assim a possibilidade de formar uma “grande nação”.
Outras criticas, como a de Enês de Souza, denunciavam o caráter semi-
servil do projeto da imigração chinesa, usando termos como “segunda escravidão” ou
“escravidão disfarçada”, afirmava ainda que os chineses representariam “machinas
vivas de trabalho”, logo não teriam intenções de progresso e seriam facilmente
explorados pelos proprietários das terras. Em ata o autor propõem “repelir a praga”, pois
“Na obra da regeneração nacional o chim é um mal, um grande mal, pois continua uma
40
viciosíssima disposição que cumpre combaterá todo o transe”.

39
A immigração. Reimpressão dos boletins nº 1 ao nº 4. p. 9.
40
A immigração. Reimpressão dos boletins nº 1 ao nº 4. p. 3.

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A imigração chinesa acabou fracassando e a partir de meados dos anos 80


do século XIX as referencias aos trabalhadores asiáticos diminuíram nos boletins da
SCI. Ganharam muito mais destaque as questões referentes aos problemas decorrente
das formas de contratação pelos produtores paulistas e os problemas decorrentes as
condições jurídicas e politicas a que os imigrantes estariam sujeitos.
Apesar de não ser o principal problema debatido pela Sociedade Central de
Immigração no boletim A Immigração, as reflexões sobre os trabalhadores chineses e
sobre a cultura chinesa merecem alguma atenção. Para Taunay e outros escritores do
boletim os chineses não seriam capazes de conduzir a nação ao projeto patriótico e
progressista que tinham em mente. Pautados de teorias cientificas classificavam a
humanidade em raças e colocavam os europeus em uma condição de superioridade.
Assim concluímos que os europeus eram preferidos pela Sociedade, graças a
uma condição natural e cultural favorável. Esse estrangeiro, já teria o desejo de
enriquecimento e do progresso pessoal. Se colocado em condições adequadas,
conduziria o Brasil ao progresso material e social assistido nos Estados Unidos nas
décadas anteriores.

REFERÊNCIAS:
Boletim A Immigração. (1883 a 1891). Periódico. Disponível em:
<http://bndigital.bn.br>
COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. 5º edição. São Paulo: UNESP, 2010
ELIAS, Maria José. Os debates sobre o trabalho dos chins e o problema da mão de
obra no Brasil durante o século XIX. In. Anais do VI simpósio nacional dos professores
universitários de história: Trabalho livre e trabalho escravo. Goiânia. 1971. Euripes
Simões de Paula (org.). ANPUH. São Paulo 1973. pp. 697 – 715.
GONÇALVES, Paulo Cesar. Mercadores de Braços: Riqueza e Acumulação na
Organização da Emigração Européia ao o novo mundo. Tese de doutoramento. São
Paulo: FFLCH/USP, 2008.
HALL, Michael M. Reformadores de classe média no Império Brasileiro: A Sociedade
Central de Imigração. Revista de História. São Paulo, ano XXVII, v. LIII, 1976. pp.
147 – 171.

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MESQUITA, Sergio Luiz Monteiro. A Sociedade Central De Imigração E A Política


Imigratória Brasileira (1883-1910). Dissertação de Mestrado de programa de pós-
graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro,
setembro de 2000.

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A ECONOMIA COLONIAL BRASILEIRA E SEUS INTÉRPRETES


Caio Cobianchi da Silva (História – UEM)
Denis Carlos Moser Ieni (História – UEM)
PALAVRAS-CHAVE: BRASIL COLONIAL. CAIO PRADO JÚNIOR. JOÃO LUÍS FRAGOSO.

INTRODUÇÃO
Este artigo tem como proposta, para além de realizar uma discussão
bibliográfica referente ao Brasil colônia, analisar alguns pensadores do período colonial.
Buscaremos entender como, a partir de variados pressupostos – políticos e/ou teóricos –
esses pensadores caracterizam seu modelo econômico. Dentre os autores escolhidos
para análise estão Caio Prado Júnior, por oferecer uma visão que foi predominante e
pouco contestada pelo menos até a década de 1980, e também João Luís Fragoso,
expoente de um historiografia que vem repensando as perspectivas mais tradicionais.
Além disso, trouxemos para o debate a interpretação de Laurêncio de Jesus, por
considerarmos dissonante das anteriores.
Enquanto analisamos a perspectiva de Caio Prado Júnior a partir de sua relação
com o posicionamento político do autor, optamos por analisar os demais autores a partir
de suas bases teórico-metodológicas. O resultado é o de três propostas diferentes entre
si. Por vezes, a colônia é inserida em um regime capitalista, por vezes, em uma
economia pré-capitalista, ou então considerada simplesmente como economia colonial.
Tais considerações refletem contradições empíricas, mas também teórico-metodológicas
e políticas. Objetivamos assim demonstrar como o período colonial vem sendo pensado
e repensado e como o trabalho historiográfico é construído no trato dessa temática.

CAIO PRADO JÚNIOR


O historiador Claudinei Magno Mendes (online) procura examinar como a
historiografia brasileira tratou do debate entre Caio Prado Júnior e o Partido Comunista
Brasileiro (PCB) acerca das relações de natureza feudal e semifeudal na América
portuguesa. Ao trabalhar com essa questão, o autor fornece certo procedimento para se
entender a interpretação caiopradiana da história do Brasil.
Caio Prado Júnior questionava a interpretação dos comunistas, segunda a qual o
Brasil da segunda metade do século XX se encontrava em fase de superação das

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relações de natureza feudal ou semifeudal, rumo ao capitalismo. Tal ideia decorria da


noção de que todos os países atravessariam as etapas formuladas por Karl Marx:
comunidade primitiva, escravidão, feudalismo, capitalismo e socialismo. Para Prado Jr.,
a economia brasileira era essencialmente mercantil e voltada para o mercado externo,
portanto, sendo totalmente o inverso de uma economia feudal, que teve sua decadência
justamente quando neste tipo de economia introduziu-se o comércio (MENDES,
online).
Segundo Mendes, a historiografia utilizou do antagonismo entre Caio Prado
Júnior e o PCB para inseri-los em posições totalmente opostas. Enquanto o intelectual
paulista é visto de um prisma positivo do qual concebeu o marxismo de uma forma
criativa, adaptando-o às condições brasileiras, o Partido Comunista, por sua vez,
inserido em um quadro inverso ao caiopradiano, é apresentado de uma forma negativa,
pelo fato de conter uma concepção dogmática do marxismo, “que resultou na
formulação de uma interpretação esquemática e mecanicista da história do Brasil”
(online, p. 200).
Mendes ao analisar a historiografia indica “que seus procedimentos impedem a
compreensão das razões que levaram tanto o Partido Comunista como Caio Prado
formular suas interpretações” (online, p. 201). Tais interpretações não teriam emanado
de suas concepções de marxismo, mas da maneira como encaravam o capitalismo.
Enquanto o Partido Comunista considerava o capitalismo uma etapa necessária para o
desenvolvimento das forças produtivas e, por isso mesmo, considerava-o de uma
perspectiva positiva, Caio Prado acreditava que “era necessário reformar o capitalismo
e, com isso, impedir ou atenuar os conflitos para que não descambassem para a luta de
classes e para a radicalização, o que beneficiariam apenas os setores dos revolucionários
do movimento operário (MENDES, online, p. 209-10).
Percebe-se, assim, que a afirmação da existência, ou inexistência, de uma
natureza feudal no Brasil decorria da forma com que seus intérpretes se posicionavam
politicamente diante de questões contemporâneas. Todavia, a aparente contraposição
não pode esconder a proximidade de seus postulados. Junto à noção de feudalismo no
Brasil está implícito que o mesmo não poderia encaminhar-se diretamente para o
socialismo, “postulava-se a necessidade de uma revolução democrático-burguesa para
remover os obstáculos que impediam o desenvolvimento do capitalismo, para, aí sim,

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num futuro mais ou menos remoto, propor a revolução socialista”. Também Caio Prado
Júnior elaborou uma interpretação na qual se consubstanciava a ideia de que era preciso,
antes de propor o socialismo, cumprir uma etapa intermediária (MENDES, 2013, p.
208).
Desta forma, para compreendermos a interpretação caiopradiana acerca da
história brasileira, acreditamos ser necessário refletir sobre sua postura política diante
dos eventos presentes. Na obra Formação do Brasil contemporâneo, o historiador
encontra no período colonial o ponto chave para a sustentação de sua argumentação.
Para Prado Jr. (1961), seria preciso entender o período colonial e o que dele resultou
para se compreender a formação do Brasil contemporâneo (do século XX).
Já nos primeiros parágrafos da obra (1961, pg. 5-6), Caio Prado assinala que o
início do século XIX representava o resultado da colonização e início de um processo
essencial para se entender o Brasil contemporâneo. Um processo de renovação, que
significava os primeiros passos para o estabelecimento de uma economia autônoma.
Vale notar que, para o historiador, o processo de transformação ainda não havia se
completado em seus dias, ou seja, não houve uma ruptura brusca com o passado
colonial. Exemplo disso é que instituições que se constituíram no período de
colonização, como o trabalho forçado, a produção extensiva destinada ao mercado
externo, consequentemente, um mercado interno deficiente e as relações de classe de
cunho colonial, ainda estavam presentes em sua época (1961, pg. 6-7). Com isso, o
autor expõe elementos que permitem caracterizar o molde Brasil colônia pensando no
que devia ser superado e nas transformações desejadas.
Para Caio Prado (1961) a história do Brasil possuía um sentido, consequência
dos desdobramentos da história europeia, que era atender às necessidades comerciais
externas ao próprio país. O comércio, portanto, era visto como eixo central da história
colonial. Atentemos-nos ao excerto a seguir, onde o historiador expõe sua concepção:

As colônias existem e são estabelecidas em benefício exclusivo da


metrópole; êste benefício se realiza pela produção e exportação, para
ela, de gêneros de que necessita, não só para si própria, mas para
comerciar com o supérfluo no estrangeiro; que, finalmente, o
povoamento e organização das colônias deve subordinar-se a tais
objetivos, e não lhes compete se ocuparem em atividades que não
interessam o comércio metropolitano. Admite no máximo, mas como
exceção apenas, a produção de certos gêneros estritamente necessários

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à subsistência da população e que seria impraticável trazer de fora


(PRADO JR., 1961, pg. 120).

Desta forma, teria se estabelecido no Brasil um ambiente voltado às


necessidades alheias. Caio Prado o caracteriza, sobretudo a partir da efetiva
escravização negra, como formado em larga escala por grandes unidades produtoras
com muitos trabalhadores subordinados a ela (1961, pg. 23). Grande propriedade,
monocultivo e trabalho escravo eram as instituições que melhor caracterizavam o
período colonial.
Concluímos que o ponto de partida da análise de Caio Prado é a relação
conflituosa entre Metrópole e colônia; a divergência de interesses entre os agentes dos
dois lados do Atlântico; a ideia de exploração da colônia; a ênfase na produção voltada
para fora e na dependência do mercado externo. Essa análise assume um caráter de
denúncia na medida em que o historiador defendia a consolidação do mercado interno
brasileiro via intervenção estatal. O passado colonial era visto como sinônimo de atraso
e precisava ser superado, portanto, seu posicionamento político de conflito com o
capitalismo liberal, ou mesmo com o socialismo, o levou a compreender a história do
Brasil de uma forma específica, que era a da transição de uma economia colonial para
uma economia autônoma.

LAURÊNCIO DE JESUS
Laurêncio de Jesus critica as interpretações de autores como Caio Prado Júnior,
Gilberto Freire, Sérgio Buarque de Holanda, Roberto Simonsen e, sobretudo, Celso
Furtado, as quais, em suas palavras “são trabalhos de natureza historiográfica, nos quais
se verifica que os homens, que são a própria essência da história, não se fazem
presente” (1994, p.14).
Para entendermos essa afirmação é preciso verificar os pressupostos sobre os
quais o autor aborda a própria história. Apoiando-se em Aristóteles, parte da premissa
de que “existe adequação do homem ao mundo e este (mundo) concretiza-se pelas reais
necessidades da existência dos próprios homens” (1994, p. 98). Se pensarmos na já
mencionada análise de Caio Prado, veremos que ao trabalhar com o sentido da
colonização, o historiador está considerando que a economia brasileira ao voltar-se ao

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mercado externo não atende às reais necessidades do homem colonial, ou seja, não há
uma adequação do homem à sua realidade, contrariando os postulados de Aristóteles.
Tais críticas tomam mais corpo ao se direcionarem a Celso Furtado. Para Jesus,
Celso Furtado, em razão de seu posicionamento político, considerou que a economia
agrário-exportadora brasileira era responsável pelo atraso do país em relação aos
demais. Isso porque, dada as relações econômicas desiguais estabelecidas entre os
polos, a Metrópole enriquecia a custa da colônia. Desta forma, o historiador teria
subordinado o processo histórico à sua concepção política e econômica de
desenvolvimento, considerando que a economia brasileira transitaria de um capitalismo
incipiente para um capitalismo industrial, o qual o próprio Furtado buscava fomentar.
Analisando teóricos liberais como Adam Smith, John Locke entre outros, Jesus
procura demonstrar que seus valores estavam presentes no Brasil e que, portanto, a
colônia estava alinhada aos países europeus, comercializando de igual para igual.
Observa-se que tanto para Furtado quanto para Jesus, o Brasil estava inserido em um
contexto capitalista, contudo, se para o primeiro o progresso da nação só ocorreria
quando a economia se voltasse para dentro, para o segundo, os homens coloniais já
atendiam, ou buscavam atender, suas reais necessidades de vida.
O capitalismo, para Jesus, seria a forma de produção que se erguia contra a
anterior - feudal -, questionando a relação entre poder e improdutividade mantida pela
nobreza. A riqueza e a posse de terras agora provinham do trabalho e não mais do
direito divino. Uma vez que o trabalhador conseguiu acumular riqueza, não mais
produzindo para a subsistência, pôde iniciar relações de troca com seus iguais. Assim,
“compreende-se como sendo uma forma social nova essa sociedade na qual os homens
produzem e trocam livremente suas mercadorias. A necessidade dessa nova forma de
trabalho e da troca identifica-se como sendo o modo pelo qual a existência humana se
realiza” (1994, p. 92). Jesus reconhece que tal ordem não surgiu de forma homogênea
por toda parte, vejamos:

Na metade do século XVI já estão maduras as condições para que o


capital mercantil se imiscua na produção. As relações de produção
metropolitanas não deixavam grande margem à sua ação. Dentro do
território nacional português, a aristocracia dividia o poder com a
burguesia mercantil, gerando uma conciliação que impedia a
renovação no campo e o desabrochar de relações capitalistas de
produção. Entretanto, a burguesia tinha as mãos livres para agir fora
de Portugal. O mundo colonial seria seu campo de ação. Neste espaço

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econômico a burguesia estaria livre das interferências políticas e


sociais das outras classes existentes no território metropolitano
(FIGUEIRA; MENDES apud JESUS, 1994, p 146).

Observa-se, assim, que o autor considera a colônia como o espaço encontrado


pela burguesia para cumprir sua função, local onde pôde atender suas exigências
históricas e suprir suas necessidades por meio das relações capitalistas (1994. 146-7).
Disso decorre que os sujeitos históricos residentes na colônia expressavam a
mentalidade capitalista, como se vê, por exemplo, em Antonil, para quem o ser
reconhecido como senhor do engenho na sociedade burguesa requeria cabedal (capital).

O ser senhor de engenho é título a que muitos aspiram, porque traz


consigo o ser servido, obedecido e respeitado de muitos. E se for, qual
deve ser, homem de cabedal e governo, bem se pode estimar no Brasil
o ser senhor de engenho, quanto proporcionalmente se estime os
títulos entre os fidalgos do Reino (ANTONIL apud JESUS, 1994, p.
147).

Contudo, apesar de comparação entre a estima em ser senhor de engenho na


colônia com a de ser nobre em Portugal, ambas as posições não eram equalizadas,
“porquanto a nobreza permanece em Portugal sob a inércia e a burguesia mercantil
completa a transformação da sociedade em sociedade capitalista ao constituir a classe
dos senhores de engenho”, cuja função seria extrair sobretrabalho e trocar o açúcar por
mercadorias do mercado mundial (1994, p. 147-8). Nota-se ainda que “Antonil procura
incutir no senhor de engenho os hábitos de moderação, economia, dedicação à
produção, tratamento igualitário em relação aos vizinhos e outros homens livres a ele
ligados, etc., que são os hábitos da burguesia laboriosa e não os da nobreza ociosa”.
(1994, p. 148-9).
Outros indícios de que o senhor de engenho era reflexo da sociedade capitalista
seria o fato de que, se o nobre se caracteriza pela sua hereditariedade e considera o
trabalho degradante, o senhor de engenho vivifica suas forças através do trabalho (1994,
p. 149). Gorender elucida ainda melhor essa diferenciação:

O senhorio de engenho no Brasil não equivalia à nobreza feudal do


Reino. Em primeiro lugar, não haveria barreiras jurídicas de qualquer
espécie que impedissem o plebeu de ascender à posição de senhor de
engenho. Para tanto, bastava dispor de uns tantos milhares de
cruzados, próprios ou emprestados. Em consequência, o status
senhorial dispensava a origem nobre e tampouco requeria a concessão

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formal de um título de nobreza. Por último, a condição estamental


estava sempre marcada pela ambiguidade, pois o senhor de engenho
não passava, afinal, de proprietário de um estabelecimento dependente
de resultados mercantis. Com a perda do engenho – ocorrência nada
incomum -, perdia-se a equívoca condição estamental (GORENDER,
apud JESUS, 1994, p. 149).

A crítica maior de Jesus em relação à interpretação de Celso Furtado é a de que


o Brasil se via prejudicado pela deterioração dos termos de troca e, portanto, atrasado
em relação aos demais países. Em sua perspectiva o Brasil teria entrado no mercado
mundial em termos de igualdade. Contudo, não é o propósito deste trabalho analisar a
validade das teorias econômicas de um ou outro autor. O que se buscou foi entender
como a partir das mesmas foram construídas as interpretações acerca da história do
Brasil. Jesus ao considerar que “a colonização foi uma saída para aqueles que,
desejando se afirmar na nova ordem social, não conseguiram fazê-lo em seus países”,
entendeu a colônia como capitalista e seus sujeitos históricos como expressão desse
modelo econômico (1994, p. 154).

JOÃO LUÍS FRAGOSO


Para compreendermos a interpretação de Caio Prado Júnior foi preciso nos
atentar às formas com quais o mesmo se posicionava politicamente perante questões de
sua época. No caso de João Luís Fragoso, porém, devido à pequena produção
historiográfica a seu respeito e ao fato de não encontrarmos um projeto político
implícito ou explícito, insistiremos em outros aspectos.
Observamos que as críticas de Laurêncio de Jesus a Celso Furtado foram
pautadas não só em questões de ordem empírica, mas também na sua concepção de
história, que se baseia em postulados aristotélicos. Por isso, para entendermos a
interpretação de Fragoso acerca da realidade colonial acreditamos que também seja
preciso recorrer aos seus aportes teórico-metodológicos.
A historiografia brasileira acerca do período colonial, influenciada por um
vocabulário de cunho marxista e neodependentista, se concentrou por muito tempo em
temas de estrutura econômica, de classe e de raça. Segundo Schwartz,
independentemente dos posicionamentos políticos e metodológicos, os pesquisadores
chegaram a um consenso “quanto à ideia do Brasil como uma colônia mercantilista cuja
economia se estruturava no latifúndio escravista orientado para exportação, liderada por

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uma aristocracia de fazendeiros que determinava de várias formas sua vida social”
(1999, p. 129).
Porém, a partir das décadas de 80 e 90, a denominada Escola do Rio, da qual faz
parte João Luís Fragoso, começou a fazer críticas incisivas no intuito de romper com
antigas abordagens, com a noção de que a economia colonial era um mero apêndice da
economia europeia. Segundo Maria Linhares, buscava-se por à prova esquemas
explicativos clássicos, sobretudo, no que concerne à dependência estrutural da colônia
em relação ao mercado internacional, de forma que “o sentido da colonização, na
expressão de Caio Prado Júnior, perdeu a sua significação teleológica de mão única – a
situação do colono e suas determinações externas – para ganhar novas dimensões”. A
preocupação dos novos pesquisadores foi buscar novas fontes, novas perspectivas
teóricas e substituir uma visão generalizante, por uma mais localizada, enfocando as
estruturas internas da colônia. “O quadro apontado é o da colônia que se move, com
seus comerciantes e sua lógica própria, forjando mecanismos de acumulação
compatíveis com seu universo” 41 (LINHARES, 1998, p. 12).
Schwartz considera que o ataque de historiadores aos modelos clássicos vem
tanto daqueles que privilegiam temas marxistas de estrutura econômica e suas relações
com a organização da sociedade como objetos de análise, entre os quais podemos
colocar João Fragoso, quanto de estudiosos mais interessados nas atitudes e ideias que
se formaram em meio a estas estruturas e relações 42 (1999, p. 29). Neste artigo
analisaremos os estudos de Fragoso justamente por ter sido uma das bases para as novas
pesquisas e por entrar em contraste com as perspectivas historiográficas analisadas em
capítulos anteriores 43.

41
Apesar da preferência por estudos mais localizados, em contraposição aos estudos de Caio Prado
Júnior, por exemplo, Schwartz aponta que Fragoso acabou fazendo generalizações, ao invés de destacar
“aspectos cronologicamente limitados a uma conjuntura histórica, deixa um tanto implícita sua percepção
de que seriam características estruturais do Brasil colonial” (1999, p. 131).
42
Nas palavras de Schwartz, “por mais que as críticas colocadas pela escola do ‘Pequeno Brasil’ tenham
questionado a natureza da economia colonial, um ataque potencialmente mais radical à historiografia
tradicional partiu da mudança de foco das questões socioeconômicas para o estudo das ideias e atitudes
que informavam as relações sociais e de gênero dentro de uma sociedade escravistas multirracial. A
tendência dos estudos históricos para examinarem as estruturas mentais, a cultura popular e a esfera
doméstica passou a ter um impacto profundo na maneira com que os estudiosos do passado brasileiro
agora pensam a histórica colonial” (1999, p. 135).
43
Schwartz aponta que Homens de Grossa Aventura, principal obra de João Luís Fragoso, não constituiu
material absolutamente novo. Trabalhos de autores como Russel-Wood, Pierre Verger, Roberto do
Amaral Lapa e outros já haviam analisado algumas questões presentes na obra. Contudo, o historiador
teve o mérito de prestar mais atenção às implicações teóricas que os demais (1999, p. 130).

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Observamos que para Laurêncio de Jesus alguns atores históricos do período


colonial expressavam valores capitalistas, o que era reflexo da posição de igualdade (em
termos de mercado) alcançada pela colônia em relação às demais regiões do mundo.
Apesar de não coincidir com esta interpretação, Fernando Novais apregoava que a
transferência de renda gerada nas terras brasileiras para a Metrópole correspondia às
necessidades históricas de transição de uma economia feudal para uma economia
capitalista na Europa (1969, p. 52). A análise de Fragoso vai à contramão de ambas as
perspectivas.
O ponto de partida para entendermos a realidade econômica da colônia em
Fragoso é voltarmos os olhos para a situação da Metrópole portuguesa. Questionando as
análises que colocam o capitalismo como destino manifesto proporcionado pela
experiência colonial, observou que a sociedade lusa era essencialmente agrária e
aristocrática e que a absorção da renda colonial tinha por objetivo manter a classe de
privilegiados no poder, portanto, manter as estruturas e seguir para o não capitalismo. O
Estado, que sobrevivia graças aos rendimentos ultramarinos, ocupou um espaço
privilegiado na atividade comercial, como armador, mercador, explorando monopólios e
etc. Desta forma, ao atuar como empresário “não realizando investimentos produtivos –
pelo contrário, incentivando o crescimento da burocracia e do consumo conspícuo -, o
Estado surge como variável fundamental para a própria reprodução da sociedade pré-
capitalista” (FRAGOSO, 1998, p. 81).
Fragoso ressalta ainda que o Estado buscou fazer alianças com frações
dominantes agrárias, que encontraram nos investimentos ultramarinos uma saída para a
crise do campo, e com os mercadores. Estes ao invés de criarem uma nova mentalidade
que os afastasse da classe dominante, tenderam à aristocratização. Uma vez que
perceberam que por meio do comércio ultramarino podiam acumular riquezas e alcançar
uma posição privilegiada na sociedade, canalizaram pesados recursos adquiridos na
esfera mercantil para atividade de cunho senhorial (1998, p. 82).
Ao reinterpretar a história da sociedade lusa, Fragoso proporcionou aos
pesquisadores novos caminhos para se pensar a colônia, já que a “reinterpretação do
comércio português atlântico implica a necessidade de se revisitar o funcionamento da
economia colonial por ele gerada” (FRAGOSO, 1998, p. 86). Desde então muitas
pesquisas vem sendo realizadas com a premissa de que os homens que se dirigiam para

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a colônia levavam consigo valores de uma sociedade bastante hierarquizada, que


primava pela aquisição de status por meio da aristocratização.
Voltando os olhos para a caracterização do modelo econômico adotado na
colônia, Fragoso apoia-se em Karl Marx, segundo o qual o que distingue as diferentes
formações econômicas é a forma pela qual se extrai o sobretrabalho. Diferentemente do
capitalismo, onde a produção é autodeterminada, no escravismo colonial a produção e a
apropriação do trabalho não remunerado não seriam as únicas condições para a
reiteração do sistema. A extração do sobretrabalho na colônia era, por vezes, desviada
da produção e destinada a investimentos que garantiam a reprodução de uma sociedade
hierarquizada. Deparamos-nos com uma sociedade onde a produção e o uso mercantil
do sobretrabalho não eram fins em si mesmos. Fragoso esclarece a questão referindo-se,
por exemplo, ao “progressivo abandono dos grandes senhores de terras e de escravos do
mundo dos negócios, ou seja, a sua não-preocupação – a partir de um certo patamar de
riqueza e poder – em ampliar indefinidamente os seus bens econômicos” (FRAGOSO,
1998, p. 33).
Fragoso também demonstra uma não preocupação de negociantes quanto à
reiteração de seus negócios, afinal, os mesmos, após enriquecerem, abandonavam o
trato mercantil, mesmo sendo mais lucrativo, e reinvestiam na aquisição de terras e
escravos. Portanto, “nota-se que a reiteração da produção no escravismo colonial (a sua
forma de produzir sobretrabalho) confunde-se com a recorrência de sua hierarquia
social fundada no status” (1998, p. 35).
Podemos destacar então duas contribuições de pesquisa oferecidas por Fragoso
para se pensar a América portuguesa: primeiramente, a análise de mecanismos internos
da sociedade colonial, buscando entender como os homens que para cá vieram
desenvolveram mecanismos e instituições que estavam de acordo com suas reais
necessidades; por segundo, refletir sobre como as práticas e costumes oriundas da
Metrópole refletiram na sociedade colonial e a configuraram.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Deparamos-nos no decorrer deste artigo com três perspectivas, embasadas em
variados pressupostos, que permitiram aos pesquisadores lidarem com a realidade
econômica colonial de modo a concebê-la sobre diferentes prismas.

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Caio Prado Júnior refuta a interpretação do Partido Comunista, rejeitando os


conceitos de modo de produção – seja feudal ou capitalista – para o entendimento da
História do Brasil. O historiador, por opor-se ao socialismo e ao capitalismo em sua
forma liberal, apregoa a necessidade de uma economia voltada para o mercado interno e
sua interpretação do passado é resultado deste posicionamento, de forma que a teoria de
sentido da colonização refere-se justamente à transição de uma economia colonial para
uma economia autônoma.
Em Laurêncio de Jesus, fundamentado em Aristóteles, observamos críticas às
interpretações de Caio Prado Júnior e Celso Furtado. Pois para ele, os homens, que são
os agentes da própria história, estavam configurando a economia colonial de acordo
com suas reais necessidades de vida. Em outras palavras, a colônia seria o espaço
privilegiado para a burguesia cumprir sua função histórica, realizando suas atividades
por meio do trabalho e da troca. Para Jesus o Brasil fazia parte de uma economia
capitalista.
João Luís Fragoso, por sua vez, também acredita que os atores históricos da
América portuguesa agiam de acordo com suas necessidades, algo que só pôde ser
observado a partir de uma metodologia voltada para uma história local, em
contraposição ao estudo generalista de Caio Prado. Contudo, reconhece que os homens
que se dirigiam para a colônia estavam imbuídos de ideais aristocratizantes, passando
longe do característico de uma sociedade capitalista, voltada para o lucro.
Não esperamos com este trabalho esgotar as análises dos autores em questão,
mas apenas demonstrar como a economia colonial pode ser pensada e como os
pressupostos – teóricos, metodológicos e políticos -, que são uma escolha consciente ou
inconsciente de cada pesquisador, se inserem e modificam os resultados da pesquisa.

REFERÊNCIAS
LINHARES, Maria Y. L. Prefácio. In: FRAGOSO, João L. R. Homens de Grossa
Aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830).
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, p. 9-13.
FRAGOSO, João L. R. Homens de Grossa Aventura: acumulação e hierarquia na
praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1998.

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JESUS, Laurêncio de. Duas concepções do desenvolvimento do Brasil. Dissertação


(mestrado). Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Programa de Pós-Graduação
em Ciências Sociais, 1994.
MENDES, Claudinei M. M. A questão do Feudalismo no Brasil: um debate político.
Disponível em: <http://www.hottopos.com/notand32/12claudinei.pdf>. Acesso e:
10/05/2015
NOVAIS, Fernando A. O Brasil nos quadros do Antigo Sistema Colonial. In: Brasil em
Perspectiva. São Paulo: DIFEL, 1969.
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. 6. ed. São
Paulo: Brasiliense, 1961.
SCHWARTZ, Stuart. Mentalidades e estruturas sociais no Brasil colonial: uma
resenha coletiva. Economia e Sociedade, n. 13, Campinas, 1999.

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O QUE O BRASIL CANTAVA DURANTE A SEGUNDA GUERRA


MUNDIAL?
Ester Gonçalves da Silva (Graduação em História, Universidade Estadual de Londrina)
Francisco César Alves Ferraz (Orientador, Iniciação Científica)
PALAVRAS-CHAVE: SEGUNDA GUERRA MUNDIAL, MÚSICA, RÁDIO.

INTRODUÇÃO
O que os brasileiros cantavam? É provável que houvesse uma variedade de
gêneros musicais e temas. Mas, é impossível esgotar toda essa diversidade musical em
apenas um artigo. Aqui, pretende-se analisar, com a pequena bibliografia pesquisada,
alguns aspectos do Rádio, da censura, das músicas ouvidas e/ou cantadas até 1945.
A FEB vai para a Itália em início de 1944 e, segundo a historiadora Maria Elisa
Pereira, os meios de comunicação estavam sob censura do Departamento de Imprensa e
Propaganda (DIP) 44 principalmente após 1942, por causa da guerra.
Desse modo, os programas de rádio e os jornais que, aliás, também eram
censurados, estavam contribuindo para divulgar um patriotismo e justificar a entrada do
Brasil na guerra.
Os meios de comunicação começaram a ser utilizados para a consolidação do
governo de Vargas, por meio de propagandas, principalmente após 1934, pois, segundo
o historiador Orlando de Barros, em seu livro A guerra dos artistas, “na data referida, e
um ano depois da ascensão do nazismo, Simões Lopes 45 viajou à Alemanha para
observar o funcionamento do Ministério da Propaganda que Goebbels 46 dirigia”, e o
mesmo se entusiasmou com o sistema nacional-socialista, a sistematização da
propaganda e a metodização do governo. O estudioso mostra que “o conselho foi, em
parte, aceito e posto em prática, contudo parcialmente, pela limitação imposta pelos

44
O DIP, segundo Francisco José Paschoal, foi instituído em 1939, embora fosse precedido por outros
órgãos que tinham funções parecidas, como por exemplo, o Departamento Oficial de Publicidade (DOP)
em 1931 e o Departamento de Propaganda e Difusão Cultural (DPDC) em 1934. Esses órgãos tinham
como função regulamentar os meios de comunicação, principalmente o rádio, cuidando da ‘imagem’ que
se passava do Brasil tanto no interior do país quanto no exterior.
45
Este era o então oficial-de-gabinete (correspondente ao atual Gabinete Civil) da Secretaria da
Presidência da República.
46
Joseph Goebbels foi Ministro da Propaganda na Alemanha Nazista, de 1933 a 1945.

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interesses privados, e, mais adiante, condicionado pela aliança com os Estados Unidos.
(...)” (p.70).

1 - O RÁDIO

Em 1940, a Rádio Nacional, cuja sede se situava no Rio de Janeiro, foi


incorporada ao Estado e, para Barros, a partir desse ano e até 1955 foi o período
considerado como o apogeu do rádio, pois houve uma grande expansão pelo país (p.66).
Além disso, durante a guerra, o rádio teve papel fundamental para a divulgação dos
acontecimentos nos campos de batalha, além da produção cultural de escape, ou seja,
programas com temas alheios ao conflito, para que a população suportasse as privações
do período; além de ajudar na promoção da política de boa-vizinhança e pan-
americanismo 47 dos Estados Unidos.
Segundo Pereira, os principais tipos de música na época eram canções
patrióticas, marchas e hinos, tendo a predominância da paródia. Mas a autora deixa
claro que as músicas não tinham somente características da ideologia do governo
Vargas, porém, incluíam também valores do cotidiano da população.
Além disso, a canção estava presente nos jingles, nos concursos musicais e
programas de rádio que tinham duração de vários dias. Um exemplo é o programa
“Canção do Expedicionário”, no qual “se escolheria “o melhor canto de guerra”, para o
qual Guilherme de Almeida escreveu a letra padrão a ser musicada pelos candidatos”.
(PEREIRA, p. 26, 2008) A melodia de Spartaco Rossi foi vencedora.
Porém, foi cunhada também uma paródia da Canção do expedicionário que,
segundo Pereira, foi proibida, pelo DIP, de ser cantada. Parece ter sido criada por várias
pessoas, provavelmente soldados, e, em vez de versos que idealizavam o soldado
brasileiro e a nação, possuía um caráter mais realista, ou seja, mostrando como antes
vivia ou de onde vinha o soldado que seguia para a guerra, como por exemplo, nessa
estrofe:

47
A política de boa-vizinhança foi implementada durante o governo de Franklin Delano Roosevelt nos
Estados Unidos (1933 a 1945), e era uma estratégia dos E.U.A. para se relacionar com os países da
América Latina, para isso foi adotada “a negociação diplomática e a colaboração econômica e militar com
o objetivo de impedir a influência européia na região, manter a estabilidade política no continente e
assegurar a liderança norte-americana no hemisfério ocidental”. Pan-americanismo é uma doutrina
estadunidense que defende uma aliança entre os países do continente americano.

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Não venho da “Pátria Amada”,


Não venho do “Céu de Anil”,
Vim do sertão, da queimada,
Do verdadeiro Brasil.
Vim dos brejos e dos rios.
De cercanias agrestes
Eu venho do casarão
De horrores, misérias, pestes
Que é a casa de Correção. 48
Diferente da imagem que a canção “oficial” parece passar:
Venho do além desse monte
Que ainda azula o horizonte,
Onde o nosso amor nasceu;
Do rancho que tinha ao lado
Um coqueiro que, coitado,
De saudade já morreu.
Venho do verde mais belo,
Do mais dourado amarelo,
Do azul mais cheio de luz,
Cheio de estrelas prateadas
Que se ajoelham deslumbradas,
Fazendo o sinal da Cruz ! 49

A canção de Guilherme de Almeida e Spartaco Rossi parece ter sido concebida


para ser cantada na Itália, mas, Maria Elisa Pereira nos fala que o disco com a mesma
só foi lançado em outubro de 1944, sendo que os embarques ocorreram de julho de 44
a fevereiro de 45, o que deixa pouco provável que tenha sido cantada nos campos de
batalha. Portanto, essa canção foi imposta como “um marco musical do conflito”, mas
pouco significou aos soldados durante a guerra. (PEREIRA, p. 4, 2008)

48
Trecho da Canção proibida do expedicionário (Raridade). Disponível em:
<https://poemia.wordpress.com/2008/05/06/cancao-proibida-do-expedicionario-raridade/> Acesso em 22
out 2015.
49
Trecho da Canção do Expedicionário – Exército Brasileiro. Disponível em: <
http://www.vagalume.com.br/exercito-brasileiro/cancao-do-expedicionario.html > Acesso em 23 out
2015.

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Assim, havia aquelas canções que eram veiculadas na mídia comercialmente e


outras que tinham um cunho mais popular ou até mesmo aquelas cantadas e/ou
elaboradas pelos combatentes na Itália.

2 - “MANTER A ORDEM”

Quanto às músicas populares é indispensável considerar a discussão da


historiadora Maria Ângela Borges Salvadori, que nos traz questões a respeito das
manifestações culturais vistas como sendo da população menos abastada e que acabam
50
se tornando uma “cultura popular” . Em seu artigo “Malandras canções brasileiras”
(1986), a autora inicia-o resgatando aspectos do início do século XX quando, com os
processos de urbanização e industrialização, a desigualdade se torna cada vez maior e aí
surge a necessidade de “manter a ordem”.
Assim, a partir de propagandas do seu governo, Getúlio Vargas procura impor
valores por meio místico, ou seja, criando heróis, ‘exaltando’ culturas – como a
indígena, a caipira, os que moram nos morros – colocando-as como amantes do trabalho
e que ajudam no crescimento da nação. Além das propagandas, por meio de cartilhas,
filmes escolares e programas de rádio, costumava-se também buscar elementos da
cultura popular, das classes menos favorecidas, para “legitimá-los”, ou melhor, ter o
controle dessa cultura em suas mãos e fazer com que ela se molde aos ideais do
governo; para isso, Vargas se mostra de caráter populista, ou melhor, tenta agradar o
povo por meio de pequenas benfeitorias.
Um exemplo disso, já que é o tema trabalhado aqui, é a música. O Estado
percebendo que esta é uma ‘boa ideia’ para pacificar o indivíduo pobre vai também,
com certeza, utilizá-la para esse fim. Barros, concordando com Antônio Pedro diz que

O governo se valia da inconsistência ideológica das massas, em


grande parte formada por camponeses recentemente emigrados para as
cidades. Serviam bem a esse propósito as canções exaltadoras, pois

50
Utilizamos aqui a definição ‘cultura popular’ do antropólogo e sociólogo Denys Cuche que a define
como “culturas de grupos sociais subalternos” e são construídas “numa situação de dominação”,
considerando que são “nem por completo dependentes nem por completo autónomas, nem de pura
imitação nem de criação pura.” No caso do governo Vargas, há a tentativa de inserir alguns valores de
exaltação do trabalho, da nação nas várias formas de expressão da cultura popular.

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comunicavam a crença num progresso sem obstáculos, e sempre


julgando positivos os resultados do esforço produtivo de toda a
sociedade. (p.80)

Salvadori coloca bem essa questão no que diz respeito principalmente ao samba.
Segundo a estudiosa, havia três tipos de samba: o lírico-amoroso, sem compromisso
com a política; o apologético nacionalista, provavelmente que estava no rádio e exaltava
a nação; e o samba malandro, aquele que ironizava o trabalho e brincava com a ordem
que estava sendo imposta.
De início, considerando a análise da autora que faz um recorte temporal de
1930-50, tínhamos as criações daqueles indivíduos chamados malandros, os quais
faziam músicas que muitas vezes exaltava mais a vida rural do que a vida urbana que se
instalava cada vez com mais vigor, criticava o trabalho das cidades e cantava o que
achavam mais conveniente com a sua situação atual. Essa era a forma, segundo a
historiadora, dos trabalhadores manterem suas identidades, como se fosse uma
resistência ao que vinha se impondo na sociedade capitalista.
O governo, percebendo essa resistência como ameaça, procura oficializar essa
música; isso é conseguido através do paternalismo, presente claramente no governo de
Vargas, ou por meio de repressão. O rádio foi uma via importante para essa
oficialização já que, por meio dele, o samba passa também a ser comercializado; mas,
nesse meio provavelmente as músicas tocadas não iam contra o sistema do país, afinal o
DIP estava presente como mediador do que seria transmitido á população.
Porém, Orlando Barros, citando a opinião do historiador Antônio Pedro, contida
em sua dissertação de mestrado Samba da legitimidade, comenta que apesar da censura
do DIP, e da preocupação do governo com o conteúdo das músicas,

não é demais supor que a canção possa conter (...) uma oposição à
seriedade do trabalho, afinal tão caro à ideologia oficial.
Mas Getúlio Vargas, embora com o mesmo risco, poderia se
aproveitar do samba de exaltação, pois, de fato, lá se apresenta o
Brasil como abrigo de classes pacificadas e construtoras do bem
comum (...). Entretanto, o tema do trabalho conota, em qualquer caso
a realidade subjacente da divisão social em classes, trazendo à audição
o terreno movediço das diferenças sociais. A temática do trabalho foi,

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assim, o ponto mais (...) sensível e pronto a colidir com a visão oficial,
o mais suscetível à paródia (...), mas não se poderia deter a canção,
pois não podia faltar insumo ao rádio e à indústria do entretenimento
em geral. (p. 79)

É necessário ainda salientar “a importância ideológica das canções da época


enquanto expressões de seus autores”, considerando também os cantores,
programadores, técnicos, e “a canção popular dependia da gravação em disco e as
gravadoras eram empreendimentos privados (...) ficando fora do controle do Estado”.
Todavia, é provável que as gravadoras procurassem controlar as suas produções com o
intuito de evitar prejuízos. Mesmo assim, “algumas gravações “comprometedoras”
vieram a público, sem contar as versões populares das paródias de rua (...)” (BARROS,
p. 83).

3 - A MÚSICA NO CARNAVAL

Por falar em samba, entramos também na questão do Carnaval: sendo de início


um divertimento popular passa também a ser ‘oficializado’, segundo Monique Augras, a
ponto de ser objeto de interesse do Estado, ou seja, de patrocinar desfiles, e garantir
prêmios aos vencedores. Para isso, havia a comissão julgadora e depois também a
criação de organizações de escolas de samba, o que “obrigava” os participantes a
manterem certa ordem, pois, caso contrário, nunca conseguiriam vencer o concurso. Ou
seja, ninguém ousaria cantar um samba que, por exemplo, denegrisse a imagem do
presidente.
Havia a liberdade na escolha do tema, que poderia ser tanto nacional quanto
estrangeiro, o que foi constatado por meio dos regulamentos que eram postados em
jornais nos dias precedentes ao evento carnavalesco (AUGRAS, 1998, p. 43). Mas
houve uma predisposição das escolas de samba em preferir temas nacionais, porém, não
porque era obrigado, mas para garantir o reconhecimento por parte das autoridades. Isso
pode ter induzido alguns estudiosos àquela ideia de que havia alguma norma oficial que
impunha temas nacionais. Além disso, em 1939, ano da criação do DIP, diz-se que a
escola de samba Vizinha Faladeira foi desclassificada por não se utilizar de tema

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nacional; porém isso não pode ter ocorrido, ou seja, o DIP não foi responsável por esse
feito, já que o órgão foi criado meses depois do carnaval.
Já a partir de 1942, quando o Brasil entra na Segunda Guerra Mundial, embora
não haja ainda uma norma oficial para a obrigatoriedade de temas pátrios, o desfile
passa a ser patrocinado pela Liga de Defesa Nacional e da União Nacional dos
Estudantes, que estipula de antemão o tema: “Carnaval da Vitória”. Aliás, talvez se
possa dizer que por trás disso o governo forçava essa obrigatoriedade, mesmo que seja
por meio do apoio governamental aos organizadores do evento, já que o carnaval
ajudava também a criar uma identidade para o povo brasileiro e, dessa maneira, a
manter a ‘ordem’, porém de forma indireta.

4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Finalmente, voltando à questão do contexto musical é válido acrescentar a


consideração de Pereira, de que as canções criadas não eram somente sobre a guerra –
embora, segundo Barros, no período de 1939 a 1945 tenha predominado a canção de
exaltação - mas também abordavam temas como, o cotidiano, o trabalho, a mulher
submissa ou não ao homem, o casamento e, em épocas de eleição, as mudanças
esperadas, o queremismo getulista. Além do mais, “no mesmo tempo da guerra deu-se
uma invasão avassaladora dos gêneros americanos, adensando um processo que já vinha
de longe”, além da “forte presença do marketing e das gravadoras daquele país, já
dominantes do mercado brasileiro (...)” (BARROS, p. 92)
Portanto, além das músicas que eram divulgadas nos meios de comunicação ou
em comemorações e espetáculos, que tinham um cunho mais idealista exaltando a
nação, o presidente e até mesmo o soldado e o trabalhador; temos também canções que
eram criadas pela população, e eram ouvidas em seu cotidiano, ficando geralmente
restritas a meios específicos. Orlando de Barros nos lembra de que

o pessoal do rádio não considerava missão bastante a tarefa


de estabelecer um rádio combatente. Aquele foi também um
tempo indicado para o apaziguamento e a sedação dos
sentidos, necessários para temperar a índole guerreira. Foi
uma época de predomínio da canção sentimental, das

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novelas, das pelejas futebolísticas e dos programas de


auditórios. (p.77)

Por conseguinte, os gêneros que predominam no período de guerra,


principalmente após 1942, são “as marchas, posto que elas, tendo origem militar, bem
se prestam à ocasião”, além das “marchinhas de carnaval que, pela tradição
carnavalesca, sempre serviram para parodiar (...)” ou as que “sugerem um gênero vago,
como “marcha patriótica” ou “marcha cívica””; não esquecendo também de hinos,
sambas e canções. (IDEM, p. 86). Portanto, “nem só de guerra vivia a música”.
Finalizando, é importante ressaltar que na década de 40 o Brasil passava por um
período de transição: havia o interesse do governo de Getúlio Vargas em “manter a
ordem” e o regime já não estava tão forte no fim da conflito, ao mesmo tempo em que o
rádio estava no seu auge e passava a abranger um maior número de pessoas. Além
disso, algumas empresas de gravação norte-americanas já estavam presentes e novos
estilos musicais começaram a ser tocados. Não é à toa que após o fim do Estado Novo
vieram à tona várias canções anônimas nas quais Vargas era criticado impiedosamente
(BARROS, p. 94), apesar de estas já estarem presentes nos anos precedentes de maneira
menos intensa.

BIBLIOGRAFIA
A Era Vargas: dos anos 20 a 1945. Disponível em:
<http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/anos30-
7/RelacoesInternacionais/BoaVizinhanca > Acesso em 23 out 2015.
AUGRAS, Monique. O Brasil do samba-enredo. Rio de Janeiro: Editora Fundação
Getúlio Vargas, 1998.
BARROS, Orlando de. A guerra dos artistas: dois episódios da história brasileira
durante a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: E-papers, 2010.
Canção do Expedicionário – Exército Brasileiro. Disponível em: <
http://www.vagalume.com.br/exercito-brasileiro/cancao-do-expedicionario.html >
Acesso em 23 out 2015.
Canção Proibida do Expedicionário (Raridade). Disponível em:
<https://poemia.wordpress.com/2008/05/06/cancao-proibida-do-expedicionario-
raridade/> Acesso em 22 out 2015.

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Luís Simões Lopes/CPDOC – Fundação Getúlio Vargas. Disponível em <


http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas2/biografias/luis_simoes_lopes >
Acesso em 23 out 2015.
PEREIRA, M. E. Você sabe de onde eu venho? O Brasil dos cantos de guerra (1942 –
1945). 2009. 148 f. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2009.
SALVADORI, M. A. B. Malandras canções brasileiras. In: Revista Brasileira de
História, São Paulo, v.7 n°13, pp. 103-124, set. 86/ fev.87.
SAROLDI, L. C.; MOREIRA, S. V. Rádio Nacional: o Brasil em sintonia. 3.ed. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
TUPY, D. Carnavais de guerra – o nacionalismo no samba. Rio de Janeiro, ASB, 1985.

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A ELEVAÇÃO DO FUNK CARIOCA A “PATRIMÔNIO


CULTURAL”: COTIDIANO E EMBATES SOCIOPOLÍTICOS
EM TORNO DA IMPLEMENTAÇÃO DA LEI 5543/2009 DO
ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Reginaldo Aparecido Coutinho (Mestrando em História Social – UEL)
Profª Drª Silvia Cristina Martins de Souza (Orientadora - UEL)
PALAVRAS-CHAVE: LEGISLAÇÃO. FUNK. PATRIMÔNIO.
O termo “funk”, no Brasil, não tem significado similar ao do funk estadunidense, gênero
este que surgiu no ano de 1967 com James Brown. No entanto, não devemos negar a influência
da música afroestadunidense na origem do funk carioca, tendo em vista que “o ritmo
contagiante terminou sendo incorporado e recriado por cantores e compositores negros
brasileiros como Genival Cassiano, Toni Tornado, [...] Tim Maia” (ALBUQUERQUE, FRAGA
FILHO, 2006: 279-305), dentre outros, que embalavam as discotecas do início dos anos 1970 e
acabaram por contribuir para a criação do funk de nacionalidade brasileira. 51
Só a partir da década de 1980, com a influência de um novo ritmo proveniente da Flórida,
o Miami Bass, que apresentava uma batida mais acelerada e músicas mais erotizadas, que se
começa a reconhecer a emergência do chamado Funk no Brasil, isto é, de um gênero musical
que se apropria de outras batidas e técnicas para a formação de um novo ritmo, recortado e
mixado.
Estas mudanças no ritmo se fazem devido à atenção que os organizadores dos bailes dão
para uma produção nacional, visando a expansão do funk, que foi aos poucos “conquistando
espaços radiofônicos e televisivos (como Furacão 2000 e Xuxa Park)” (ARCE, 1997: 157). Isto
fez com que o funk alcançasse projeção nacional nos anos de 1990 e passasse a ser identificado
como veículo de divulgação de visões de problemas sociais vivenciados pelos seus adeptos.
Os adeptos do movimento funk, também conhecidos como funkeiros, fizeram tentativas
bem sucedidas de divulgar seus bailes durante os anos 1990 e com isto se inseriram no cenário
musical brasileiro. Todavia, o funk, assim como o hip-hop 52, com a dimensão que começou a
ganhar na década de 1990, foi duramente atacado e classificado pela crítica como instrumento
utilizado pelos grandes traficantes de drogas para recrutarem jovens para a vida do crime e do

51
É importante que destaquemos aqui que este movimento “peristáltico” da música é reconhecida por
seus maiores divulgadores, como DJ Malboro em entrevista para o artigo de José M. Vaenzuela Arce nos
ressalta que “As melodias, compassos do funk, não têm compromissos com nenhum tipo de música.
Podem ser melodias de samba, de forró ou de macumba. A batida tem de ser forte, o ritmo tem de ser
frenético, mas a melodia é o que se mentaliza para aquele que faz música. A influência das raízes é
espontânea, não existe consciência.” (ARCE, 1997: 152)
52
O Hip-hop é um movimento cultural também ligado as periferias das cidades. Este movimento irá
integrar o RAP (ritmos e poesia) um ritmo com batidas mais pesadas e vocal quase falado carregado de
poesia, o break [dança] e o grafitti [arte plástica].

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vício. Isso se deu, em parte, pela grande aceitação que o funk começou a ter entre diferentes
segmentos sociais da juventude da cidade, e também porque ele, assim como outras
manifestações artísticas de caráter popular no Brasil, como por exemplo o samba, carregou o
estigma de manifestação cultural ligada às populações pobres e de periferia.
Em 2000, após o governo de Marcello Alencar (1995-1998) que já não disponibilizava
recursos públicos (como transporte e policiamento) para realizações dos bailes funk, além de
dificultar a liberação de alvarás para que eles pudessem acontecer, o quadro de dificuldades para
a expressão do funk no Rio de Janeiro foi agravado quando criada a Lei nº 3410, em 29 de maio
daquele ano. Esta lei delimitou as condições em que poderiam ser realizados os bailes funk, que
são o principal meio de divulgação dos artistas deste movimento. Em 2008, a Lei Álvaro Lins
(Lei nº 5.265/2008) enrijeceu a lei de 2000, impondo uma série de restrições às realizações de
bailes funk e raves 53 no Rio de Janeiro.
Em 1º de setembro de 2009, foi promulgada a lei que alçou o funk a Movimento Cultural
e Musical de caráter popular do Rio de Janeiro, e no mesmo dia revogou-se a Lei Álvaro Lins.
Como entender tamanha mudança no quadro que viemos traçando? Este reconhecimento do
funk é, segundo os estudiosos do tema, fruto de uma luta travada pelos funkeiros contra o
preconceito e a discriminação ao ritmo que veio da periferia. Em outras palavras, o funk é assim
entendido como um mecanismo de resistência.
No entanto, este reconhecimento oficial não veio acompanhado de atitudes semelhantes
na prática. Com a instalação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) nas comunidades em
situação de vulnerabilidade do Rio de Janeiro, criadas com o intuito de pacificar e combater o
crime organizado, o preconceito ao funk permaneceu, como MC 54 Leonardo observou ao
comentar a revogação da Lei Álvaro Lins. Segundo ele,

A lei é um pedaço de papel. É um instrumento de mudança e precisa ser


usada, mas sozinha não garante nada. A primeira coisa apreendida no Morro
Santa Marta quando a UPP chegou lá, foi uma equipe de som (SALLES,
2011: 37).

53
Rave é um festival de música eletrônica que acontece longe dos centros urbanos, em sítios e galpões
por exemplo. É um evento no qual DJs e artistas plásticos, visuais e performáticos apresentam seus
trabalhos, interagindo com o público e tem um tempo de duração longo e ininterrupto, por vezes,
integrando dias.
54
O MC na música é um artista ou cantor que, normalmente, compõe e canta seu material próprio e
original, e que, por sua vez, não deve ser confundido com DJ, o qual interpreta a música e a ressignifica
criando mixagens. Shock G do Digital Underground, no livro How to Rap: The Art & Science of the Hip-
Hop MC (EDWARDS, 2009: 12) nota que o termo "MC" no hip hop, "vem da frase mestre de
cerimônias", o que explica "o motivo da maioria dos rappers utilizarem o prefixo MC". Sabendo que o
funk e o Rap se confundiram por muito tempo como sendo pertencentes de uma mesma cultura no Brasil,
e por isso funks com títulos de raps, tais como o Rap da Felicidade, Rap das Armas, dentre outros, os
funkeiros também adotaram o termo MC e DJ, cada qual na sua categoria, para se apresentarem.

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O que chama atenção na fala do MC Leonardo é algo a que o historiador inglês Edward
Palmer Thompson denominou experiência. No seu livro, A Miséria da Teoria ou um planetário
de erros uma crítica ao pensamento de Althusser, editado no Brasil em 1981, Thompson irá
propor a utilização que o conceito de experiência seja tomado pelos historiadores como modelo
catalisador de ação social. 55 Para este historiador, através da experiência é possível elaborar
teoricamente uma explicação racional das mudanças históricas sendo no campo da cultura que a
experiência é elaborada e dada a ver ao historiador.
Com base nesta perspectiva que valoriza a experiência das pessoas comuns a partir de
suas próprias visões, podemos sugerir que a fala do MC Leonardo aponta para uma distância
entre o que foi decidido no âmbito da política judiciária e o que ocorre na experiência vivida. O
propósito deste artigo é fazer uma análise que se volte para o texto da Lei 5543/2009 colocando-
a em diálogo com a experiência vivida no cotidiano por aqueles sobre quem ela incide.

A Lei de 2009 e as tensões sócio-culturais num embate com as leis de 2000 e 2008

Embora não seja explicitado em nenhum momento do Projeto ou do texto final da


lei o reconhecimento do funk como patrimônio imaterial 56, o sentimento provocado no
Movimento Funk foi o de “patrimonialização”, como podemos observar em várias
entrevistas de integrantes do movimento a diferentes meios de comunicação, e nas
comemorações posteriores à sanção. No artigo segundo da Lei 5543 de 2009, que
definiu o funk como Movimento Cultural e Musical de caráter popular, lê-se:

Compete ao poder público assegurar a esse movimento a realização de suas


manifestações próprias, como festas, bailes, reuniões, sem quaisquer regras
discriminatórias e nem diferentes das que regem outras manifestações da
mesma natureza. (ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO
DE JANEIRO. Lei nº 5.543/2009, 2009)

55
Ao fazer a análise da classe trabalhadora, Thompson sugere que os operários são sujeitos da história e
não somente vítimas passivas do poder a que estão submetidos e nos mostra que estes sujeitos formam
um conjunto de indivíduos que partilham experiências construídas historicamente, herdadas e/ou
partilhadas e articuladas em torno a sistemas de valores, tradições, sentimentos identitários,
reivindicações, projetos, formas de subsistir, linguagens, crenças, dentre outras coisas. É a partir da
consciência de uma identidade partilhada que os indivíduos se relacionam entre si com o político, o social
e o econômico, transformando-os e também sendo transformados por eles. (THOMPSON, 1981: 15-18)
56
Segundo o manual intitulado Patrimônio Cultural Imaterial: Para saber mais do Instituto de Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), produzido em 2007 por Natália Guerra Brayner, o conceito de
Patrimônio Imaterial atravessa a ideia de identidade cultural, diversidade cultural e tudo aquilo que é
considerado valioso para um grupo, mesmo que isso não tenha valor para outros grupos sociais ou valor
de mercado.

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Esta determinação é, sem dúvida, o reconhecimento da necessidade de redefinir


os parâmetros presentes nas leis anteriores que tentaram inibir a existência e
proliferação do Movimento Funk, em prol de um tipo de conduta que deveria ser
adotada pelas pessoas das comunidades carentes que “diverge” do que se tem em outros
espaços da cidade compartilhado por outros estratos sociais de poder aquisitivo maior.
Neste caso, chama atenção a diferença do que previa esta lei e a Lei Estadual 3410 de
2000, que em seus oito artigos dispôs sobre as condições legais para a realização das
práticas do Movimento Cultural Funk. Dentre elas, uma que dizia que só seria permitida
a realização de bailes funk com a presença do início ao fim do evento de policiais
militares destacados para tal, demonstrando assim uma atenção com o controle dos
mesmos e seu e seu tratamento como um caso de polícia.
Estas disposições com relação à segurança pública passaram a ser mais duras com
a Lei nº 5265 de junho de 2008, a Lei Álvaro Lins. Nela, o artigo terceiro dispunha que
para a realização de qualquer evento do tipo funk e festas raves, deveria ser autorizado
pela Secretaria de Segurança – SESEG, com antecedência mínima de 30 dias, e
apresentava uma lista de itens que deveriam ser contemplados pelos solicitantes, que
deveriam ser avaliados pela Delegacia Policial, pelo Batalhão da Polícia Militar, do
Corpo de Bombeiros e do Juizado de Menores da respectiva Comarca. O referido artigo
segue transcrito na íntegra abaixo:

Art. 3º Os interessados em realizar os eventos de que trata esta Lei deverão


solicitar a respectiva autorização à Secretaria de Estado de Segurança -
SESEG, com antecedência mínima de 30 (trinta) dias úteis, mediante a
apresentação dos seguintes documentos:
I - Em se tratando de pessoa jurídica:
a) contrato social e suas alterações;
b) CNPJ emitido pela Receita Federal;
c) comprovante de tratamento acústico na hipótese de o evento ser realizado
em ambiente fechado;
d) anotação de responsabilidade técnica - ART das instalações de infra-
estrutura do evento, expedido pela autoridade municipal local;
e) contrato da empresa de segurança autorizada a funcionar pela Polícia
Federal, encarregada pela segurança interna do evento;
f) comprovante de instalação de detectores de metal, câmeras e dispositivos
de gravação de imagens;
g) comprovante de previsão de atendimento médico de emergência, com, no
mínimo, um médico socorrista, um enfermeiro e um técnico de enfermagem;
h) nada a opor da Delegacia Policial, do Batalhão da Polícia Militar, do
Corpo de Bombeiros, todos da área do evento, e do Juizado de Menores da
respectiva Comarca.
II - Em se tratando de pessoa física:
a) cópia da carteira de identidade;

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b) cópia do CPF;
c) os documentos elencados no inciso anterior entre as alíneas c e h.
Parágrafo único - O pedido de autorização para a realização do evento
deverá informar:
I - expectativa de público;
II- em caso de venda de ingressos o número colocado à disposição;
III - nome do responsável pelo evento;
IV - área para estacionamento, de maneira a não atrapalhar o trânsito das vias
públicas, bem como a sua capacidade;
V - previsão de horário de início e término;
Art. 4º - A autoridade responsável pela concessão da autorização poderá
limitar o horário de duração do evento, que não excederá a 12 (doze) horas,
de forma a não perturbar o sossego público, podendo ser revisto a pedido do
interessado ou para a preservação da ordem pública. (ASSEMBLÉIA
LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Lei nº Lei nº
5.265/2008, 2008)

É explicito, neste artigo, a tentativa de controle de manifestações artísticas


públicas, pois os orgãos de controle as via como “perigosas”, baseados num preconceito
em relação a elas que decorria do seu público participante, do local em que ocorria e da
proximidade com o tráfico de drogas. Afinal ,eram bailes que ocorriam, e ocorrem na
periferia da cidade do Rio de Janeiro, e não podemos ignorar que,em algumas ocasiões,
eles foram utilizados por traficantes, visto que muitas vezes eram eles os promotores
destes bailes (RUSSANO, 2006: 9).
A mídia também contribuiu para a construção da imagem de ligação dos funkeiros
com o tráfico. O Jornal do Brasil, em 5 de junho de 1995, noticiou que “Não há
distinção entre funk, favela e tráfico de drogas no Rio” (Jornal do Brasil, 5 de junho de
1995, p. 11. Apud. Herschmann, 2000: p.92).
Foi esta proximidade que constituiu a justificativa de endurecimento do
tratamento dado ao funk. Se outros eventos que envolvem uma quantidade significativa
de participantes, como por exemplo o Rock in Rio, tem também que atender exigências
de segurança para sua realização, no caso do funk, a questão passava pelo controle e
tratamento mais rigoroso dado a ele em função desta ligação, que era em parte (mas
não necessariamente uma regra), da proximidade que em algumas situações ele manteve
com o trafico de drogas e traficantes.
Segundo MC Leonardo, na já aqui citada entrevista ao Le Monde Diplomatique
Brasil, ao falar dos pedidos de apoio de deputados estaduais para que revogassem a Lei
5265 de 2008 e tornassem o funk uma atividade cultural no Rio de Janeiro, estes
argumentavam “que nenhuma atividade cultual precisa de lei”, e em resposta o MC

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diziam que “nenhuma foi tão criminalizada e perseguida quanto o funk”. Podemos
percerber na fala do MC que o sentimento para com o funk, por parte dos funkeiros era,
e é, o de movimento ligado a cultura, enquanto este não era o tratamento dado no
ambito público como tal, o que fez com que houvesse a necessidade de criar uma lei que
pudesse dar amparo do poder legislativo e das competências adimistrativas para que
legitimasse a existência do funk como Movimento Cutural e Musical. Vê-se, com isto
que, se comparada às leis anteriores a Lei 5543 de 2009 representou um avanço, por
reconhecer a legitimidade do funk e por garantir a ele um espaço no rol das
manifestações culturais da sociedade brasileira, embora vários problemas
permanecessem na prática mesmo após sua aprovação.
No entanto, o parágrafo único, também acrescentado por uma Emenda a pedido da
Comissão de Constituição e Justiça e reiterada pela Comissão de Orçamento, Finanças,
Fiscalização Financeira e Controle, no artigo primeiro, dispõe que “não se enquadra na
regra prevista neste artigo conteúdos que façam apologia ao crime.” Esta Emenda
tomou como base o fato de que os compositores de funk no final da década de 1980
(conhecida como “era das melôs”) 57, têm como prática compor duas versões para uma
mesma canção, sendo uma versão elaborada de forma que a letra seja, por assim dizer,
mais suave, tratando do cotidiano das favelas e visa uma veiculação pelas estações de
rádios, e uma outra versão, com uma letra mais crua, agressiva, fortemente erotizada e
que muitas vezes também pode trazer apologia à violência e exaltação de líderes de
facções do crime organizado, denominadas Proibidão 58, compostas para consumo
doméstico, ou seja, para bailes dentro das comunidades dos compositores (RUSSANO,
2006: 11-12), e “que tem como principal característica o alinhamento com as facções do
‘crime organizado’. (RUSSANO, 2006: 8). Um bom exemplo deste tipo de produção é
o funk A firma é forte, de autoria dos MCs Tikão e Frank. A sua letra, segundo o
escritor Julio Ludemir, no livro 101 funks que você tem que ouvir antes de morrer,

57
Os melôs surgiram como uma forma de dialogo entre os DJs, e o público, tendo em vista a dificuldade
dos participantes do movimento em pronunciar o nome de muitas músicas que eram executadas nos
bailes, pois a maior parte delas era em língua inglesa. Ainda na década de 1980, os melôs receberam
versões nacionais, fazendo-se necessária a composição em português, num primeiro momento
parodiandouma música estrangeira, e posteriormente criando novas músicas. Fonte Marcia Fonseca de
Amorim (2009).
58
Termo descritivo que denota que o produto é ilegal. Para saber mais leia RUSSANO, Rodrigo. “Bota o
fuzil pra cantar!”: o funk proibido no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Dissertação (Mestrado)

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“cantada principalmente nas favelas dominadas pelo Comando Vermelho 59, faz um
desabrido elogio aos soldados do tráfico da Vila Kennedy, mais conhecida como VK.
De acordo com a letra, a VK tem fuzil, AR-15 e várias pistolas.”
Em resposta ao Le Monde Diplomatique Brasil, quando perguntado se
enquadraria na “perseguição ao funk” as prisões de alguns funkeiros realizadas em
dezembro de 2010 por apologia ao tráfico de drogas, MC Leonardo respondeu que se
enquadraria, e completou dizendo que “a linguagem dos garotos está certa? Não. Mas a
realidade dos garotos dentro da favela também não é correta” (SALLES, 2011: 37).
Com esta fala podemos perceber que as letras, por vezes, de caráter violento, o são
porque seus criadores muitas vezes falam da realidade que vivenciam nas suas
comunidades, e isto é um dado que dever ser levado em consideração, pois reveste o
funk do papel de instrumento de crítica nas mãos dos que o compõem e entre aqueles
que os cantam e dançam, além de evidenciar suas experiências cotidianas.
A associação do funk com a suposta criminalidade de seus adeptos foi tão forte que as
portas que os funkeiros haviam aberto para o movimento foram se fechando na década de 1990,
como podemos ver no trecho da entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil do MC Leonardo
ao dizer que “em menos de dois anos, todas as gravadoras que tinham artistas do funk fizeram
um acordão para todo mundo sair das companhias” (SALLES, 2011: 37). Para esta situação,
MC Leonardo apresenta uma explicação:

Lá atrás, nos bailes black, era o polícia da esquina que não gostava do funk.
O governo Marcello Alencar (1995-1998) começou, então, a dificultar os
alvarás das casas que tocavam funk. Não colocavam policiamento nem
transporte público em festa com mais de 3 mil pessoas e não queriam que
tivesse confusão? O ritmo é jovem, a batida é eletrizante, tem álcool. Vai
fazer o que numa noite em que não tem como voltar para casa? Vai quebrar
tudo. Onde falta alguma coisa sempre vai ter o caos. Não foi feita uma
política para preservar o baile funk. Se o governo quisesse fazer alguma coisa
pelas classes menos favorecidas, teriam entupido de informação secretários
de Educação, para saber que tipo de linguagem era aquela e, principalmente,
a Secretaria da Cultura, para começar uma aproximação. Mas não. Eles
preferiram proibir. O filho do rico vai esquiar, vai pegar onda de 15 metros,
vai andar a 320 por hora. É adrenalina. E o filho do pobre não pode ter
adrenalina? E ainda dá uma televisão a ele para dizer que tem que ter um
celular de R$ 3 mil. (SALLES, 2011: 37)

59
Comando Vermelho Rogério Lemgruber, mais conhecido como Comando Vermelho, ou pelas siglas
CV e CVRL, é uma das maiores organizações criminosas do Brasil de controle do tráfico.

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Em outros termos, o entrevistado procura deixar claro que para ele, e provavelmente para
outros adeptos do funk, “a perseguição ao funk não tem nada a ver com o que ele fala, e sim de
onde ele vem” (SALLES, 2011: 36). Vê-se, assim, que a interpretação de alguém envolvido
com o mundo do funk, é diametralmente oposta às justificativas da polícia e das leis que
procuraram cercear esta prática, pois aponta para questões de diferentes experiências sociais e
para o tratamento dado a indivíduos que fazem parte de pedaços pobres ou elitizados. A
questão, posta desta maneira, não é de caso de polícia, mas de desigualdade social.
Estes preconceito e desigualdade, para os quais aponta a fala deste personagem, podem
ser perceptíveis em outras esferas como, por exemplo, desde a ausência de políticas públicas e
perspectivas para as comunidades de morros, implícitas na pergunta “e o filho do pobre não
pode ter adrenalina?” (SALLES, 2011: 37) e na justificativa do Projeto no uso por ele feito de
expressões excludentes tais como “asfalto e favela”, mesmo que o autor do Projeto quisesse
com ele dizer que o funk promoveria há uma aproximação entre as diferentes classes sociais no
Rio de Janeiro:

[...] o funk promove algo raro em nossa sociedade atualmente que é a


aproximação entre classes sociais diferentes, entre asfalto e favela,
estabelecendo vínculos culturais muito importantes, sobretudo em tempos de
criminalização da pobreza. (ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO
DO RIO DE JANEIRO. Projeto de Lei nº 1671/2008, 2008)

Na experiência vivida pelos personagens das favelas do Rio, esta aproximação que o
Projeto sugere, não é harmoniosa, pois como o próprio Projeto coloca, há uma “criminalização
da pobreza”. Segundo MC Leonardo: “A questão do funk é classista e, pior, racista. O funk é
perseguido por racismo. O Funk é preto! Tem em sua historia a negritude dos bailes black do
passado. O funk é democrático e, por isso, perigoso” (SALLES, 2011: 37). Fica evidente na
expressão – “é democrático e, por isso, perigoso”, que esta aproximação não é vista por alguns
com bons olhos. Se pensarmos que, segundo MC Leonardo, “A primeira coisa apreendida no
Morro Santa Marta quando a UPP 60 chegou lá, foi uma equipe de som” (SALLES, 2011: 37),
ficam evidentes os embates sociopolíticos 61 que emergiram com a implementação da Lei
5543/2009, pois se, de um lado, há a necessidade de pacificar os morros cariocas que estavam, e
em alguns casos ainda estão, nas mãos de organizações criminosas, por outro lado há, no meio
deste fogo cruzado, personagens que não estão diretamente ligados as facções criminosas, e que
por vezes são adeptas do Movimento Funk e de outros movimentos culturais da periferia.

60
Unidade de Polícia Pacificadora
61
Entendemos por embates sociopolíticos, as tensões geradas entre o âmbito social e o âmbito
Institucional.

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Este embate se dá na tentativa que estes personagens fazem, através da lei, em se valer
dela para assegurar o direito de livre expressão do seu movimento que, no entanto, em prol de
um bem maior, os aparelhos Institucionais os reprimem, muitas vezes se utilizando do parágrafo
único do artigo primeiro da Lei 5543/2009, já aqui mencionado. Isto fica explícito na fala do
Mc, quando ele diz que:

[...]vivemos num país onde um apresentador de televisão faz apologia à


tortura, mandando a polícia fazer “um carinho no preso para ele falar”. Nós
vivemos num país onde o capitão Nascimento, em uma cena só do filme,
comete uns quatro ou cinco crimes, as pessoas aplaudem e ninguém manda
prender o diretor. Nós vivemos num mundo onde GTA, que é o jogo de
violência mais jogado do planeta, não tem opção de ser o policial, só
bandido. A missão do boneco do GTA é matar, roubar, traficar.
Se eu fizer uma música falando que a polícia tem que meter o pé na porta dos
outros, vou estar fazendo apologia ao crime. Mas não vou ser censurado.
Porque esse crime é o que o governo está cometendo, e o crime do governo
todo mundo pode aplaudir. Eu até aceito o argumento de apologia ao crime,
mas a delegada enquadrou os garotos [funkeiros presos em dezembro de
2010] também como traficantes de drogas, formação de quadrilha, incitação à
violência e associação ao tráfico. Isso porque ela sabe que só apologia ao
crime não vai prender os garotos. A prisão deles fere a Constituição do país.
(SALLES, 2011: 37)

Na fala do MC podemos perceber que, ao dizer que a prisão dos funkeiros fere a
Constituição do país, ele aponta que a lei que serviria para proteger o Movimento Funk é
utilizada, também por órgãos e agentes Institucionais, como por exemplo a delegada e as UPPs,
para criminaliza-lo, mesmo que isto fira a Constituição que determina a cultura como um direito
do cidadão, sem contar que ele ainda aponta que o funk é tratado como cultura menor, diante de
outras formas de culturas.
Podemos perceber também nesta fala do MC Leonardo, que a violência não é exclusiva
das comunidades carentes do Rio, e não é tratada unicamente no Movimento Funk, mas também
está presente em outros setores sociais, assim como em outras manifestações culturais, como a
TV, o cinema e até mesmo os jogos de videogame.

Considerações finais
Do que foi dito cremos ser possível concluir dizendo que se a Lei 5543/2009 pode não ter
atendido a todas as demandas envolvidas no Movimento, e que por vezes foi utilizada em
desfavor dos funkeiros. Todavia, ela trouxe um ganho concreto ao funk, que emerge do
sentimento de alguns de que esta lei, ao procurar “patrimonializa-lo”, alçou-o a um patamar

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antes desconhecido e reconhece naqueles que são seus adeptos uma legitimidade antes não
ignorada.
Ao assim proceder, esta lei reconheceu as experiências dos adeptos do funk, e estes
parece que se vêm nela representados e reconhecidos como sujeitos construtores da sua história
e do seu pedaço.
Diante disto, pode-se concluir dizendo que o processo que levou à aprovação da Lei nº
5543/2009 foi fruto de uma luta que foi travada pelos funkeiros contra o preconceito e a
discriminação ao ritmo que veio da periferia, em outras palavras, é um mecanismo de resistência
e defesa. Neste processo, o apoio de pessoas de fora do mundo do funk foi também
representativo, pois contribuiu para abrir espaços em locais tradicionalmente vedados aos
funkeiros. No entanto, como sugere MC Leonardo, não é o fim da batalha, pois existe um
embate sociopolítico delimitado pela implantação da referida lei, que por sua vez sugere uma
continuidade de “perseguição” ao funk.

REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE, Wlamyra Ribeiro de; FRAGA FILHO, Walter. O Movimento Negro
no Brasil contemporâneo. In.: Uma história do negro no Brasil. Salvador: Centro de
Estudos Afro-Orientais; Brasília: Cultura Palmares, 2006.
AMORIM, Márcia Fonseca de. O discurso da e sobre a mulher no funk brasileiro de
cunho erótico: uma proposta de análise do universo feminino. Campinas: [s.n.], 2009.
ARCE, José M. Valenzuela. O Funk Carioca. In.: HERSCHMANN, Micael (org.).
Abalando os anos 90: funk e hip-hop: globalização violência e estilo cultural. Rio de
Janeiro: Rocco, 1997.
ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Lei nº 3.410, de
29 de maio de 2000. Dispõe sobre a realização de Bailes tipo Funk no território do
Estado do Rio de Janeiro e dá outras providências. Disponível em: http://gov-
rj.jusbrasil.com.br/legislacao/203029/lei-3410-00. Acesso em 22/08/2013.
___________. Lei nº 5.265, de 18 de junho de 2008. Dispõe sobre a regulamentação
para a realização de eventos de música eletrônica (Festas Raves), Bailes do tipo Funk, e
dá outras povidências. Disponível em: http://gov-
rj.jusbrasil.com.br/legislacao/87716/lei-5265-08. Acesso em 22/08/2013.
___________. Lei nº 5.543, de 22 de setembro de 2009. Define o Funk como
Movimento Cultural e Musical de caráter popular. Disponível em: http://gov-
rj.jusbrasil.com.br/legislacao/819271/lei-5543-09. Acesso em 26/07/2013.
___________. Projeto de Lei nº 1671/2008, de 05 de Agosto de 2008. Define o Funk
como Movimento Cultural e Musical de caráter popular. Disponível em:
http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/scpro0711.nsf/1061f759d97a6b24832566ec0018d832/ae88
d8dccb16fe7a8325749b005fc8a8?OpenDocument. Acesso em 26/07/2013.
BRAYNER, Natália Guerra. Patrimônio cultural imaterial: para saber mais, Brasília,
DF: IPHAN, 2007, 32 p., disponível em
http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do;jsessionid=43DB35719DC21EB948
08B5E43C3C0329?id=3172, acesso em 15 de julho de 2013.
HERSCHMANN, M. O funk e o hip-hop invadem a cena. Rio de Janeiro: UFRJ. 2000.

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RUSSANO, Rodrigo. “Bota o fuzil pra cantar!”: o funk proibido no Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro: Dissertação (Mestrado) Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro. Centro de Letras e Artes, 2006.
SALLES, Marcelo. O funk é democrático e, por isso, perigoso. Le Monde Diplomatique
Brasil. São Paulo: ano quatro, n. 42, jan, 2011.

THOMPSON, Edward Palmer. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao


pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

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DITADURA MILITAR E A AÇÃO DOS INFORMANTES (PARANÁ,


1964-1985)
Rodrigo Pereira da Silva. (Mestrando em História/Bolsista DS/ CAPES - UEM)
Orientador: Prof.Dr. Ângelo Aparecido Priori (PPH-UEM)
PALAVRAS- CHAVES: DITADURA CIVIL-MILITAR; INFORMANTES; ANTICOMUNISMO.

Introdução
Ao longo das últimas décadas, uma série de autores se lançou em busca de uma
explicação plausível para um período que marcou significativamente a sociedade
brasileira, a saber, o do regime militar, que perdurou durante vinte e um anos (1964-
1985), e cuja marca se fez sentir por meio das práticas repressivas adotadas por aqueles
que estavam à frente do poder. Dentro da historiografia, essa temática por vezes, foi
analisada a partir de uma visão que privilegiava determinados aspectos, ao passo que se
negligenciava outros.
Costumeiramente quando observamos o processo que se delineou a partir de
1964, assuntos como tortura, subversão e censura, ganhou espaços nos estudos
acadêmicos, na medida em que chamaram, à primeira vista, mais atenção do público
pesquisador. Entretanto ao longo dos últimos anos, em certa medida graças à
disponibilização de arquivos até então sigilosos, uma gama considerável de questões
silenciadas, vieram à tona. Questões como a participação da sociedade civil na
implantação do golpe militar e debates sobre possíveis grupos de legitimação a
ditadura, começaram a fazer parte das pautas historiográficas.
A partir desse novo cenário que se descortinou, nosso trabalho busca analisar a
ação dos informantes no Estado do Paraná em meio ao regime militar, a partir da
62
documentação arquivada pela Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS) . Tais
informantes, por sua vez, sejam por interesses econômicos ou mesmo pessoais,
acabaram por vezes legitimando as práticas de repressão que se efetuavam contra
aqueles grupos e indivíduos que se enquadravam em um perfil subversista e um perigo
para a harmonia social.

Organização dos Serviços de Informação


62
Tal documentação se encontra arquivada no Departamento Estadual de Arquivo Público no Estado do
Paraná, na cidade de Curitiba.

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A representação dada aos chamados subversivos, pela policia política fez com
que uma significativa parcela fosse vista como uma ameaça à instabilidade do país,
haja vista “o perigo que representavam a segurança do país e, por conseqüência, ao seu
desenvolvimento político, econômico e social” 63. Nesse contexto, a segurança nacional
passou a se constituir na ordem do dia na vida do país, visando à sustentação da
revolução de março de 1964 ocorrida sob o comando dos militares.
Como forma de garantir tal segurança, uma das principais medidas foi o forte
investimento, sob o comando dos militares, nos setores da informação e de repressão
em prol da segurança interna. Segundo Ayrton Baffa, o numero de pessoas que
trabalhavam para o sistema de informações sempre se constituiu um segredo de Estado.
Em 1964, o Serviço Nacional de Informação (SNI), criado em 1964, começava a operar
com Cr$ 200 milhões. Segundo o Jornal da Tarde, em 1988 a verba atingia a soma de
Cr$ 2,3 bilhões (1989, p. 16).
As informações dentro desse contexto desempenharam um papel fundamental
para o exercício do aparato repressivo. De acordo com o Manual Básico da Escola
Superior de Guerra, elas [as informações] se faziam necessárias para identificar
‘antagonismos e pressões’ e manter sob vigilância as atividades de oposição ao regime.

O papel das informações de Segurança é essencial para esclarecer o governo


quanto á realidade da situação, à verdade dos fatos e as características e
intensidade das manifestações e dos efeitos dos antagonismos e pressões,
bem como à estimativa dos acontecimentos futuros. (Manual Básico da
Escola Superior de Guerra apud ALVES, 1984, p. 72)

Segundo Maria Helena Moreira Alves, o SNI se apresentou desde o início como
“um eficiente órgão de coleta de informações e controle político”. (1984, p. 73). No
entanto, a criação do SNI não foi suficiente para a realização de todas as atividades
previstas pelo governo militar, de modo que em curto prazo, foram se multiplicando as
instituições de caráter repressivo e informativo, que juntamente com a contribuição dos
seus braços repressivos em cada estado brasileiro (as Delegacias de Ordem Política e
Social – DOPS) formavam uma gigantesca comunidade de informação 64, que procurou

63
BORGES, Nilson. A Doutrina de Segurança Nacional e os governos militares. In: DELGADO, Lucília
de Almeida Neves; FERREIRA, Jorge (Org.). O Brasil Republicano: O tempo da Ditadura. 3º ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p.37.
64
Em 1967, criou-se o Centro de Informação do Exercito (CIE). Posteriormente foram criados o Centro
de Informação da Aeronáutica (CISA), em 1970 e, no ano seguinte o Centro de Informações da Marinha –
Cenimar que já existia, mas passou por um processo de reestruturação que acompanhou a modernização

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estar vigilante a tudo e a todos cujo perfil se enquadrasse - dentro dos parâmetros
estabelecidos pelo governo militar - como subversivo.
Toda e qualquer informação coletada era merecedora de ser arquivada e
posteriormente investigada sua veracidade por meio de um exame de um analista de
informações. Como forma de distinguir “fontes verdadeiras” daquelas consideradas
oportunistas, a polícia política formulou uma classificação segundo uma escala de seis
níveis.

Há seis níveis de fontes e seis graus de veracidade do informe: A, B, C, D, E,


F e 1, 2, 3, 4, 5,6. Um informante A1 é um informe de uma fonte sempre
idônea e com grande probabilidade de verdade. Então guarda-se e classifica-
se: A-1. Se o informe é F6, significa que não pode se saber a idoneidade da
fonte pode ser de um maluco qualquer e a probabilidade de ser verídico é
muito reduzida. Mas tem-se que se arquivá-lo. (...). O grosso caía no C. Quer
dizer, fonte razoavelmente idônea e o informe têm possibilidades de ser
verídico. O trabalho do analista é juntar tudo numa pasta ou, agora, num
computador, e fazer uma análise (...) o que ele dá ao chefe do escalão e com o
máximo que pode alcançar de precisão 65.

Quando já processadas estas informações, os agentes e os aparatos de repressão


as utilizavam para orientar suas ações no combate a subversão.

A ação dos Informantes no Paraná

O trabalho exercido pelos informantes teve uma importante contribuição em


direcionar as ações tanto da polícia política, quanto do próprio regime militar em
diversos estados do Brasil. O Estado do Paraná, também teve a participação e a
colaboração dos informantes no combate a subversão.
No entanto, embora a documentação referente ao assunto seja pequena em
relação a aquela produzida nos grandes centros, ainda assim nos permite observar o
modo de atuação desses colaborados do regime, que por vezes defendiam abertamente
as políticas adotadas pelos militares. Como aponta um informante, em carta enviada ao

do serviço de informações do regime dos generais- presidentes. (BRUNELO, 2009, p. 63). Foram ainda
criados a Operação Bandeirantes, em São Paulo em 1969, e seguindo o seu modelo organizacional, em
1970, os Centros de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) e os Destacamentos de Operações de
Informação.
65
Adyr Fiúza de Castro. In: D’ ARÁUJO, Maria Celina et all. Os anos de Chumbo. Rio de Janeiro:
Relume- Dumará, 1994, p. 47.

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Delegado de Ordem Política e Social de Curitiba, Miguel Zacarias, “é obrigação de


todos os cidadãos colaborarem na tarefa de reprimir o comunismo” 66.
Em abril de 1964, após o golpe dos militares, o cidadão Antonio Fontana,
encaminha ao então governador do Estado do Paraná, Ney Braga, uma carta, na qual
demonstra total apoio a vitória dos militares, e aproveita o ensejo para colaborar com a
“operação limpeza”, por meio de informações que orientavam os agentes da policia
política na localização de alguns indivíduos, cujo perfil era visto como subversista. No
documento constam as seguintes declarações:

Não sabe V. Exa. quão grande é minha satisfação pela estrondosa e


retumbante vitória alcançada pelos Democratas Cristãos contra o Peleguismo,
janguismo, sindicalismo, cegetecismo e, principalmente, COMUNISMO. O
nome de V. Exa. já entrou na História como sendo uma das vigas mestras da
revolução vitoriosa. Queira, Sr. Governador, aceitar minhas congratulações e
meus agradecimentos por tudo aquilo que fez por nós brasileiros e por estes
torrão querido, nosso BRASIL 67.

Embora estas palavras, grosso modo representem o pensamento daqueles que


coadunavam ou mesmo defendiam a intervenção dos militares, e válido ressaltar a
diversidade de elementos que tais declarações podem nos fornecer. Inicialmente o
trecho acima nos trás de forma clara os principais grupos, que continham algum tipo de
relação direta ou indiretamente com a esquerda, e que eram vistos como um problema
que a ser resolvido.
Para, além disso, outro fator que se visualiza é a questão religiosa, presente na
afirmação ‘Democratas cristãos’. O medo de que tais grupos pudessem de alguma
maneira corromper ou mesmo destruir os valores cristãos, contribuiu significativamente
para que determinados indivíduos cooperasse com os aparatos de repressão, bem como
os órgãos de informação, no combate a articulação desses grupos. Nesse sentido, da
mesma forma que demonstrou seu apoio ao golpe dos militares, Antonio Fontana
forneceu também informações sobre dois indivíduos, potencialmente comunistas. De
acordo com ele:

66
DEAP/PR - Departamento Estadual de Arquivo Público do Paraná. Arquivos DOPS/PR – Dossiê:
Informantes. Pasta Nº 01951.p. 86.
67
DEAP/PR - Departamento Estadual de Arquivo Público do Paraná. Arquivos DOPS/PR – Dossiê:
Informantes. Pasta Nº 01951.p. 87.

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Colaborando com V. Exa, na “OPERAÇÃO LIMPEZA”, denuncio como


Comunistas e delapidadores do patrimônio do Paraná, os seguintes
funcionários do Estado:
PROTÁSIO DE CARVALHO – Comunista fichado em São Paulo, Minas
Gerais e Rio de Janeiro; Agitador profissional, disfarçado sob o manto de
‘jornalista’; homem da cozinha do famigerado LUPION DE TROIA; Protásio
de Carvalho, além de agitador, é altamente versado em “fabricar” títulos de
Domínio Pleno de Terra. Protásio de Carvalho – O GRANDE
DELAPIDADOR DO PATRIMONIO DO ESTADO DO PARANÁ.
JOSÉ BUKOWSKI – Funcionário do DGTC do Estado do Paraná: agitador,
dado a valentias, conforme consta dos assentamentos da Polícia do Paraná;
elemento de alta periculosidade e, o que é pior, elemento fomentador do
credo vermelho 68.

Embora, não seja possível verificar, até o presente momento, como se


desenrolou este processo, é possível observar que tais informações retrata claramente
como o imaginário anticomunista esteve presente no pensamento da parte da
população.
Outro caso, que nos mostra a atuação de um informante ocorreu em 18 de
novembro de 1975, um informante [que preferiu ficar no anonimato] indignado com a
atuação, não percebida pela policia política, de um grupo comunista na cidade
Londrina, envia uma carta a Delegacia de Ordem Política, pedindo que a mesma fizesse
justiça. Na carta o informante faz uma crítica ao serviço dos agentes policiais, que se
preocupavam em prender todas as pessoas acusadas de serem comunistas subversivos,
mas não se atentavam em prender o líder do grupo. De modo a facilitar a prisão de tais
elementos o informante apresenta com detalhes algumas informações.

Eu vou citar o nome de uns que eu conheço. Ele se chama Amadeu Siverino
Diazzi. Este tal de Amadeu tem até um comitê aqui em Londrina e vocês nem
percebe pô? Ou melhor, ele tinha comitê aqui em Londrina, porque agora que
começaram as prisões aqui no Paraná, ele se finge de santo. Amadeu de tanto
medo que está de ser preso, no começo das prisões ele nem em sua casa não
dormia. Ele ia dormir na casa de seu pai lá na água das pedras 69.

Para complementar a delação, o informante acusa ainda Amadeu e sua esposa


Laura de oferecerem sua casa para outros elementos comunistas dormirem e comerem.
De acordo com ele, Amadeu era responsável em fazer reuniões com os homens

68
DEAP/PR - Departamento Estadual de Arquivo Público do Paraná. Arquivos DOPS/PR – Dossiê:
Informantes. Pasta Nº 01951.p. 87.
69
DEAP/PR - Departamento Estadual de Arquivo Público do Paraná. Arquivos DOPS/PR – Dossiê:
Informantes. Pasta Nº 01951.p. 152.

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enquanto Laura sua esposa, se encarregava de fazer reuniões com as mulheres. Laura
chegava até a fazer comida para eles poderem ficar discutindo a noite inteira 70. Para os
funcionários ou colaboradores da repressão, o inimigo é apresentado, cotidianamente,
como dotado de uma força demoníaca, contra quem não adianta querer ou controlar,
mas impõe - se destruir, para que assim, e só assim, seja garantido o bem-estar da
sociedade (MAGALHÃES, 1997, p. 08).
Nesse contexto é possível verificar que o temor de que a ideologia comunista
alcançasse seus fins, tomou conta do imaginário político e social da época, fazendo
com que o medo se alastrasse pelos mais diversos setores da sociedade. Dessa forma a
permanência do regime militar por tantos anos não se explicaria, exclusiva nem
fundamentalmente, devido à repressão, à tortura, à censura, ao arbítrio, etc., e sim por
relações de identidade, afinidade, consenso, e consentimento – de variados matizes e
que se alteraram ao longo do tempo – de parcelas expressivas da sociedade com idéias,
valores e propostas ao regime 71.

Considerações Finais

No período da ditadura militar no Brasil, mais do que em qualquer outro, o


comunista representou um elemento perigoso e nocivo; no limite, alguém possuído por
forças malignas e incontroláveis. (MAGALHÃES, 1997, p.212). Este temor traduz a
propagação de um imaginário anticomunista bastante disseminado ao longo desse
período. Nesse sentido, buscamos mostrar, seja por meio das fontes das quais
utilizamos, seja por meio da historiografia, como a partir da década de 1960 se
fortificou um medo compartilhado por diversos setores da população de que o
comunismo pudesse destruir a família, a pátria e a Igreja, e dessa forma deveria ser
visto como um elemento a quem se devia temer, e para, além disso, ser eliminado da
sociedade.
Dessa forma, podemos verificar que ao fabricar um medo, de uma possível
comunização da sociedade brasileira, os militares transformaram o imaginário social
em um importante instrumento para exercer o poder e se legitimar nele, contanto em

70
Ibid, p. 152.
71
ROLLEMBERG, Denise. Prefácio. In: CORDEIRO, Janaina Martins. Direitas em movimento: A
campanha da mulher pela Democracia e a ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2009.

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Social
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alguns momentos com a contribuição de parte da sociedade brasileira, que por vezes
cooperou, por meio das delações, com o ideário militar de preservar a ordem pública
em perfeita harmonia.

FONTES
DEAP/PR - Departamento Estadual de Arquivo Público do Paraná. Arquivos
DOPS/PR – Dossiê: Informantes. Pasta Nº 01951.

REFERÊNCIAS
ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição: 1964-1984. Bauru: Edusc, 1984.
BORGES, Nilson. A Doutrina de Segurança Nacional e os governos militares. In:
DELGADO, Lucília de Almeida Neves; FERREIRA, Jorge (Org.). O Brasil
Republicano: O tempo da Ditadura. 3º ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009,
p.37.
BRUNELO, Leandro. Repressão política durante o regime militar no Paraná: o caso
da Operação Marumbi na Terra das Araucárias. – Maringá: Ed. Eduem, 2009. 154 p.

BAFFA, Ayrton. Nos porões do SNI: o retrato do monstro de cabeça oca. Rio de
Janeiro - Editora Objetiva, 1989.
CORDEIRO, Janaina Martins. Direitas em movimento: A campanha da mulher pela
Democracia e a ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2009.

MAGALHÃES, Marionilde Dias Brepohl de. A lógica da suspeição: sobre os aparelhos


repressivos à época da ditadura militar no Brasil. In: Revista Brasileira de História.
[online] vol.17, n.34, pp. 203-220. São Paulo. 1997.

XAVIER, Marília. Da policia política. In: ARQUIVO PÚBLICO DO RIO DE


JANEIRO. DOPS: A lógica da desconfiança. Rio de Janeiro: Secretaria de Estado da
Justiça/ Arquivo Público do Estado do Paraná, 1993.

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TEMPESTADE NO DESERTO: UMA ANÁLISE COMPARATIVA


DA GUERRA DO GOLFO SOB A ÓTICA DOS JORNAIS
“FOLHA DE SÃO PAULO” E “O ESTADO DE SÃO PAULO”
(1990-1991)
Sandro Heleno Morais Zarpelão (Doutorando em História Social, USP).
Orientador: Prof. Dr. Francisco Assis de Queiroz (USP).
PALAVRAS-CHAVE: GUERRA DO GOLFO; ESTADOS UNIDOS; JORNAIS.

Introdução
A Guerra do Golfo, para melhor ser compreendida, pode também ser analisada
sob a ótica da imprensa. Foi a CNN como canal de notícias de televisão que noticiou, ao
vivo, as principais notícias e fatos da guerra.
Assim, tornou-se imperativo também compreender como parcela da imprensa
escrita brasileira cobriu a Guerra do Golfo. O objetivo é demonstrar brevemente, através
dos editoriais, qual foi a posição e a imagem construída pelos jornais “O Estado de São
Paulo” e “Folha de São Paulo”, acerca do conflito.
Desse modo, o presente artigo tratará, de forma geral como os editoriais dos
jornais “O Estado de São Paulo” e “Folha de São Paulo”, observaram e verificaram a
Crise e a Guerra do Golfo, entre os meses de julho de 1990 e março de 1991. Tal
temática é oriunda da dissertação de mestrado, que foi realizada, na Universidade
Estadual de Maringá (UEM), sobre a Guerra do Golfo cujo tema foi “Tempestade no
Iraque: a Guerra do Golfo, a Política Externa dos Estados Unidos, a Historiografia
Militar e a Imprensa Escrita Brasileira (1991)”, defendida em 2008, e da pesquisa que
ainda está sendo feita no âmbito do desenvolvimento do Curso de Doutorado em
História Social, da Universidade de São Paulo (USP), desde o ano de 2012.

A Guerra do Golfo nos jornais “O Estado de São Paulo” e na “Folha de São


Paulo”
Dia 2 de agosto de 1990, era ainda madrugada nas areias do deserto onde se
localizava a fronteira entre Iraque e Kuwait, quando as tropas iraquianas cruzaram-na e
invadiram o pequeno território do Kuwait.

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Mais de cinco meses depois, no dia 17 de janeiro de 1991, já era noite em


Bagdá, quando os primeiros mísseis estadunidenses cruzaram os céus da cidade das mil
e uma noites. Começava, então, a Guerra do Golfo, com o bombardeio maciço dos
aviões aliados sobre as principais cidades iraquianas e sobre o Kuwait ocupado pelas
tropas do Iraque.
O mundo todo, por meio da da CNN (canal exclusivo de notícias dos Estados
Unidos), viu em tempo real, instantaneamente, a guerra, as bombas “inteligentes”, os
bombardeios cirúrgicos e todo o incrível aparato tecnológico estadunidense e seus
aliados. Uma guerra que ficou conhecida muito mais pelas imagens que pareciam ser de
computador, do que pelas vítimas, destruição e mortes.
Assim, foram analisadas as reportagens, artigos e principalmente editoriais dos
jornais “O Estado de São Paulo” e “Folha de São Paulo”, entre o período de julho de
1990 e março de 1991. Como o foco principal foram os editoriais, então, cabe ressaltar
que no caso do jornal “O Estado de São Paulo”, foram consultados 17 editoriais
relativos à crise e à Guerra do Golfo, entre os dias 8 de janeiro de 1991 e 8 de março de
1991. Também foi consultado um editorial do jornal Folha da Tarde, do mesmo grupo
empresarial que o jornal “O Estado de São Paulo pertence, do dia 15 de janeiro de 1991.
Já com relação à “Folha de São Paulo” foram consultados ao todo 20 editoriais relativos
à crise e à Guerra do Golfo, entre os dias 9 de agosto de 1990 e 10 de março de 1991.
Notou-se, em linhas gerais que ao todo seis temáticas que perpassam os editoriais dos
jornais “O Estado de São Paulo” e “Folha de São Paulo”: o petróleo, as armas
sofisticadas, a guerra como irracionalidade e a sua necessidade, os interesses dos
Estados Unidos e a visão sobre Saddam Hussein, a atuação das Nações Unidas e a
censura à imprensa.
O primeiro aspecto se refere ao uso de tecnologia, de armas sofisticadas, a
crença de que se tratava de uma guerra high tech, com pouco derramamento de sangue.
A imprensa, televisiva e também escrita, transformou as armas e a alta tecnologia bélica
nos principais protagonistas da guerra, numa incrível inversão de papéis, em que o
homem, o horror, a destruição e a ferocidade da guerra foram deixadas em segundo
plano. Nesse sentido, o editorial do “Jornal da Tarde”, de 15 de janeiro de 1991,
pertencente à família Mesquita, que também controla o jornal “O Estado de São Paulo”
informou:

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[...] Hoje, terça-feira, 15 de janeiro de 1991, às 24 horas (hora da ONU, duas horas da
manhã de quarta-feira no Brasil), estará se iniciando oficialmente a ofensiva do mais
poderoso e tecnologicamente mais sofisticado dispositivo militar jamais conhecido
pelos homens contra um exército que, sendo o mais poderoso do mundo árabe, já
demonstrou, em oito anos de guerra com os desorganizados exércitos do ayatolah
Khomeini, que não tem a menor condição de oferecer às tropas aliadas uma resistência
maior do que a oferecida pelas tropas dos general Galtieri ao pequeno exército de
Margaret Tachter na Guerra das Malvinas. 72
Essa informação é confirmada em artigo publicado por Roberto Godoy, no
jornal “O Estado de São Paulo”, de 15 de janeiro de 1991:
No ar, entretanto, nada supera os fascínio do avião invisível F-117ª, provavelmente o
protagonista da primeira hora de luta. Pequeno, com uma aparência incomum, marcada
pelos ângulos exóticos que o tornam indetectável nas telas dos radares, ele está pronto
para decolar esta noite, ao abrigo da escuridão. 73
Percebe-se que as armas foram alçadas à condição de protagonistas da guerra,
desconsiderando, de certa forma, a dimensão humana que a guerra possui. O Editorial
da “Folha de São Paulo” segue essa linha de pensamento:
Mesmo descontando o triunfalismo sinistro dos briefings do Pentágono, a
colossal investida aérea norte-americana, o poder mortífero dos bombardeios e a
fantástica precisão da parafernália posta em marcha parecem ir dissipando até os
temores quando a um choque excessivamente prolongado. 74
Não se pode esquecer de que, nesse momento, o mundo estava presenciando o
emergir de uma era de incertezas, com a crise da Guerra Fria, do socialismo real e da
União Soviética, com o advento de inúmeros conflitos étnicos, religiosos e nacionalistas
e a formação e expansão de muitos blocos econômicos.
A Guerra do Golfo, em 1991, foi o conflito que ocorreu dentro de grandes
transformações verificadas nas relações internacionais no ano de 1991, no caso a crise
do socialismo real, o fim da Guerra Fria e o consenso, nunca dantes existido, na atuação
da ONU, durante o citado conflito. Aqui surge a segunda temática relativa ao conflito, a
atuação das Nações Unidas antes e durante a guerra. O jornal “Folha de São Paulo”, de
1º de dezembro de 1990:

72
Editorial do Jornal da Tarde “O petróleo é de Saddam”, São Paulo, 15 de janeiro de 1991.
73
GODOY, Roberto. “Armas sofisticadas estreiam no Golfo”. O Estado de São Paulo, São Paulo, de 15
de janeiro de 1991.
74
Editorial/Opinião da Folha de São Paulo “Riscos do monopólio”, São Paulo, 18 de janeiro de 1991, p.
A-2.

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[...] De todo o modo, a decisão da ONU parece indicar que finalmente a entidade
resolveu assumir uma posição de árbitro internacional. Já não era sem tempo. Resta
esperar esse papel seja reforçado e ampliado, seja quais forem os conflitos, os interesses
em jogo e o peso específico dos países cujas dissenções as Nações Unidas venham
futuramente a examinar. 75
Percebe-se, uma valorosa crença do grupo Folhas na atuação das Nações Unidas
e no comportamento, por consequência, dos Estados Unidos no conflito. Contudo, tal
percepção foi se diluindo com o tempo devido ao desenrolar da guerra:

Conforme Cuéllar, o Conselho é informado das ações militares apenas depois de


realizadas; não há envolvimento algum da ONU, nem por meio da coordenação das
forças anti-Iraque, nem pela intervenção direta. Inexistem, portanto, garantias de que
certos requisitos estejam sendo efetivamente respeitados; há dúvidas se os ataques
maciços a cidades iraquianas são mesmo para libertar o Kuwait – objetivo teórico da
guerra. 76
O que se viu no conflito foi que a Organização das Nações Unidas não teve o
comando das ações militares, controladas pelos Estados Unidos. Nesse sentido, o jornal
“O Estado de São Paulo” apontou as deficiências da ONU:
O fiasco de Perez de Cuéllar revela as deficiências mais graves da estrutura e da praxe
da Organização das Nações Unidas. (...) Sem um secretário-geral que se conduza acima
de tudo pelos ditames e espírito da Carta de São Francisco, a ONU corre o risco de
transoformar-se ora num certame de retórica estéril, ora num jogo de forças que se
anulam na projeção de interesses nacionais soberanos e contrários.[...]. 77
Mais uma vez as Nações Unidas foram utilizadas, de certa forma, para atender
aos interesses das grandes potências, principalmente os Estados Unidos. O jornal “O
Estado de São Paulo” esboçou uma análise mais crítica e mais aprofundada das razões
da ineficiência das Nações Unidas do que a “Folha de São Paulo”, em seu editorial.
A terceira temática foi a questão do petróleo e o possível choque que a guerra
poderia causar nos preços a guerra, além da dependência do mundo com relação ao
Petróleo. O “Jornal da Tarde” em seu editorial de 15 de janeiro de 1991 defendeu:

75
Editorial/Opinião da Folha de São Paulo “Ultimato da ONU”, São Paulo, 1º de dezembro de 1990, p.
A-2.
76
Editorial/Opinião da Folha de São Paulo “Guerra sem ONU”, São Paulo, 13 de fevereiro de 1990, p. A-
2.
77
Editorial/Notas e Informações do O Estado de São Paulo “Encontro em Bagdá”, São Paulo, 15 de
fevereiro, p. 03.

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Insensatez maior ainda foi a ausência de qualquer esforço sério para livrar o mundo da
dependência energética – 70% das reservas conhecidas do petróleo consumido na Terra
estão situadas lá – do Oriente Médio, uma região explosiva e instável politicamente
[...]. 78
O Jornal da Tarde critica duramente a dependência do mundo com relação ao
petróleo do Oriente Médio e a letargia do Ocidente em buscar resolver seus problemas
de fontes de energia.
J á a “Folha de São Paulo”, insistiu várias vezes com a questão do petróleo. No
entanto, diferentemente do “Jornal da Tarde”, dedicou alguns editoriais para expressar
sua preocupação com um eventual novo choque do petróleo e o seu impacto sobre o
Brasil. Porém, em nenhum momento procurou analisar a real dimensão do petróleo para
o Iraque e para os Estados Unidos. O Editorial de nove de agosto de 1990 noticia:
A eclosão da crise Iraque-Kuwait repercutiu imediatamente sobre o preço do petróleo
causando um aumento de 40% na cotação do produto no mercado internacional. A
despeito da dificuldade natural em avaliar, na sua plenitude, as consequências do
conflito, urge adotar medidas preventivas e advertir a sociedade para os custos daí
decorrentes. 79
Como se sabe o tão temido choque do petróleo acabou não ocorrendo. Os preços
do barril permaneceram ligeiramente estáveis durante a Guerra do Golfo.
A quarta temática foi a censura à imprensa. Ocorre que a Guerra do Golfo é
colocada pela imprensa como sendo uma guerra sem grande importância histórica,
apenas conhecida pelas armas inteligentes, bombardeios cirúrgicos de alta tecnologia,
desconhecendo talvez a sua real dimensão. A própria historiografia também não trata a
Guerra do Golfo como um fato histórico de grande relevância no cenário internacional.
É bem verdade que não se deve superdimensioná-la, carregando-a de um peso histórico
que não possui, mas também não se pode relegá-la ao esquecimento.
As agências de notícias internacionais que cobriram a guerra, além da própria
CNN, são em sua maioria de origem estadunidense e assim, os jornais brasileiros como
“Folha de São Paulo” e “O Estado de São Paulo”, adquiriram notícias da Guerra do
Golfo, principalmente da imprensa estadunidense 80.

78
Editorial do Jornal da Tarde “O petróleo é de Saddam”, São Paulo, 15 de janeiro de 1991.
79
Editorial/Opinião da Folha de São Paulo “Choque do petróleo”, 9 de agosto de 1990, p. A-2.
80
SILVA, Aline Cáceres Dutra da. A Hegemonia da Informação: Estudo sobre ética em jornalismo
internacional com base na cobertura americana e brasileira da Guerra ao Terror. Trabalho de Conclusão

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Desse modo, o jornal “O Estado de São Paulo” em editorial de 23 de janeiro de


1991 criticou o monopólio da notícia exercido pela CNN, durante a guerra, que
caracterizava, de certa forma uma censura e colocava em risco o acesso às notícias:

Não é de hoje que os mais atentos observadores da guerra sustentam a idéia de que a
primeira vítima de um conflito bélico é sempre a verdade. Especialmente nestes nossos
tempos em que a tecnologia e a eletrônica passaram a ser o oxigênio vital dos exércitos
e construir a ‘nossa’ verdade, ou pelo menos a que mais nos interessa, no coração e nas
mentes do inimigo é essencial para a vitória. A exclusividade de transmissão ao vivo,
docemente oferecida pelos iraquianos a um tipo específico de rede de televisão norte-
americana, a CNN, merece atenção. Durante toda a primeira madrugada a guerra foi
transformada em um fantástico espetáculo de um dono só. A novidade foi outorgada por
Bagdá a um único privilegiado.[...]. 81
O periódico “Folha de São Paulo” preferiu criticar a censura à imprensa imposta
pelas partes beligerantes do conflito:
O véu de censura que encobre a guerra no golfo Pérsico como que tornou a
opinião pública mundial refém das conveniências fardadas de Washington, Bagdá e dos
demais países envolvidos no conflito. O único front cujos canais seguem abertos é o dos
porta-vozes militares, que despejam informes de conteúdo sempre mais contraditório e
inexpressivo.
Destaca-se o paradoxo: embora a imprensa hoje disponha de instrumentos
avançadíssimos, malgrado a televisão realize uma cobertura intermitente, sabe-se menos
sobre esta guerra do que acerca das anteriores; o imenso aparato tecnológico da
comunicação, com censura, acaba servindo para generalizar a desinformação. 82
A questão da censura e do acesso às informações durante a Guerra do Golfo foi
bastante importante para criar uma imagem de guerra limpa, com o uso de armas
inteligentes e bombardeios cirúrgicos. Contudo, ao final da guerra isso foi desmentido
pelos fatos, pois ocorreram vários bombardeios em alvos errados, como em locais
habitados por civis. Como por exemplo: “Bombardeios dos Estados Unidos e seus

de Curso apresentado à disciplina Projetos Experimentais em Jornalismo, do Departamento de


Comunicação do Centro de Educação Comunicação e Artes, da Universidade Estadual de Londrina, 2003.
81
Editorial/Notas e Informações do O Estado de São Paulo “Guerra e Verdade”, São Paulo, 23 de
fevereiro de 1991, p. 03.
82
Editorial/Opinião da Folha de São Paulo “Guerra à censura”, São Paulo, 30 de janeiro de 1991, p. A-2.

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aliados mataram centenas de pessoas em um abrigo antiaéreo no bairro Al Amriya, na


periferia de Bagdá. (...).” 83
A quinta temática se relaciona com a defesa pelos jornais de negociações e a
crítica à necessidade de guerra. Ambos os jornais, como já foi discutido anteriormente,
tratam a guerra como uma solução irracional. Então se critica que a diplomacia foi
preterida pela opção da guerra:
Hoje, é a vontade política de Bush e de Saddam que se impõe ao desejo de
retardar a ação de parte do Estado-Maior Combinado norte-americano. Como a
guerra fundamentalmente, é um fato político com um objetivo político, é de
temer que a opinião dos profissionais, que sabem o que significa a guerra, não
seja acatada.[...]. 84
O jornal “Folha de São Paulo” defendeu, por sua vez, o embargo econômico ao
invés da solução da guerra:
Todas essa evidência convergem inevitavelmente para tornar mais
desconcertante a indagação: por que não se insistiu no embargo econômico em vez de se
apresentar como exclusiva nesta altura a saída militar? Pressionado por um bloqueio
verdadeiro, parece óbvio que cedo ou tarde não restaria alternativa a Saddam se não a
do recuo; sequer poderia contar com o espantalho de uma crise de fornecimento do
petróleo – a ausência dos estoques do Iraque e do Kuwait não impediu a normalização
da oferta do produto. 85
O que o editorial acima não depreendeu é que os Estados Unidos e o Iraque
desejavam a guerra e não poderiam recuar de suas posições.
A sexta e última temática é a relativa aos interesses dos Estados Unidos na
guerra e a imagem de Saddam Hussein. Enquanto a imprensa e o próprio governo
estadunidense representavam o líder iraquiano como sendo um déspota, guiado por uma
lógica alucinada e até mesmo “louco” e a reencarnação do “mal”, pouco se discutia nos
editoriais as implícitas razões que levaram os Estados Unidos a participarem da guerra.
Como se sabe o petróleo e a retirada de Saddam do poder eram alguns dos objetivos.
Saddam Hussein e o Iraque foram integralmente responsabilizados pela ocorrência da
guerra. Já os Estados Unidos de George Bush aparecem como baluartes do sistema

83
Reportagem das agências internacionais republicada pela Folha de São Paulo com o título “Bombardeio
mata centenas em abrigo de Bagdá", São Paulo, 14 de fevereiro de 1991, p. A-10.
84
Editorial/Notas e Informações do O Estado de São Paulo “Que virá depois?”, São Paulo, 15 de janeiro
de 1991, p. 03.
85
Editorial/Opinião da Folha de São Paulo “Guerra”, São Paulo, 17 de janeiro de 1991, p. A-02.

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internacional, defensores do direito internacional e das Nações Unidas. O Iraque, não se


pode esquecer, foi armado pelo próprio Ocidente. O editorial da “Folha de São Paulo”:
De toda maneira, a ação contra Israel não deixa de confirmar – de modo dramático,
ignominioso e estarrecedor – o caráter repulsivo da investida de Saddam Hussein. Não
há qualquer chance de vitória; mas o ditador insiste em sacrificar a população de seu
país. É praticamente inevitável que ocorram pesadas baixas civis, diante das maciças
incursões aéreas norte-americanas. Nos cálculos sinistros do tirano; pouco importa – sua
arrogância retórica se intensifica. 86
O jornal “O Estado de São Paulo” compara de certa forma, Bush a Franklin
Delano Roosevelt e a Winston Churchill, e condena o Iraque como o grande causador
da guerra em seu editorial do dia18 de janeiro de 1991:
O discurso com que o presidente George Bush informou os Estados Unidos de que as
hostilidades haviam sido iniciadas no Golfo Pérsico não tem a grandeza literária e a
dramaticidade de algumas peças de F. D. Roosevelt ou então, de Winston Churchill.
Marca no entanto, apesar disso, momento seguramente tão importante para a história
das relações internacionais quanto qualquer das orações com que os dois grandes
estadistas deste século fixaram os pontos de inflexão da Segunda Guerra Mundial e da
História Contemporânea.(...) Irredutível em sua posição, buscando unir os povos árabes
em torno da bandeira da “Guerra Santa”, Saddam Hussein conduziu a ONU a adotar a
resolução autorizando os estados-membros a usar todos os meios para levar o Iraque a
retirar-se do Kuwait. Todos os meios – o derradeiro deles, a guerra. 87
Então, de acordo com os editoriais citados, a imagem que ficou da guerra foi o
governo dos Estados Unidos, na época presidido pelo presidente George Bush, do
Partido Republicano, que passou e defendeu que a Guerra do Golfo foi um conflito com
bombardeios cirúrgicos, feitos com armas inteligentes, em que as mortes seriam em
quantidade mínima. Como se sabe, não foi bem assim que aconteceu. Nesse sentido, a
pesquisa do mestrado em questão objetiva mostrar como a imprensa escrita brasileira,
no caso os jornais “Folha de São Paulo” e “O Estado de São Paulo”, seguiram tal
discurso, sem discuti-lo de forma profunda.
Nesse sentido, de que a imprensa teve uma grande participação na guerra, pois
de acordo com José Arbex Júnior, em sua obra “Showrnalismo: a notícia como
espetáculo”, a Guerra do Golfo pode ser considerada como um grande divisor de águas,
porque a imprensa enfatizou muito mais as armas, o show de imagens, as batalhas
86
Editorial/Opinião da Folha de São Paulo “Lógica alucinada”, São Paulo, 19 de janeiro de 1991, p. A-2.
87
Editorial/Notas e Informações do O Estado de São Paulo “O futuro de cem anos”, São Paulo, 18 de
janeiro de 1991, p. 03.

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noturnas que pareciam de vídeo game, os bombardeios cirúrgicos, as armas inteligentes


e a tecnologia do que o horror, o homem, a vida, as vítimas e a destruição. Arbex
afirma:
A Guerra do Golfo serviu como um divisor de águas nessa longa história. Pela primeira
vez, uma guerra era transmitida ‘ao vivo’, em tempo real, por uma rede de alcance
planetário (a Cable News Network, CNN) (...). E – outro fato inédito – a grande
personagem da guerra, ao contrário daquilo que, apenas em certa medida, havia
caracterizado a cobertura da Guerra do Vietnã, nos anos 60, não foi o homem, os
horrores, ódios e esperanças provocadas pela destruição, mas a tecnologia, as armas
‘inteligentes’, as operações ‘cirúrgicas’ [...]. 88
Vale lembrar que para Arbex, a Guerra do Golfo chegou a ser vista como um
“choque civilizatório”. Na verdade, ocorreu uma construção de uma retórica e uma
metáfora interpretativa entre os Estados Unidos da América, representante da
civilização ocidental – detentor de valores cristãos, democráticos, capitalistas, do livre
mercado e pluralista – e o Iraque, representante da civilização muçulmana – portador de
intolerância, atraso, avesso à democracia e ao livre mercado.
Obviamente não se devem desprezar as diferenças culturais e históricas entre o
Ocidente Cristão e o Islã, para se entender a Guerra do Golfo. Nesse sentido, há uma
discordância com relação ao jornalista José Arbex Júnior, pois tal conflito não pode ser
entendido apenas pelas diferenças culturais. Não é segredo que o Ocidente compreende
com os seus “olhos” as estruturas culturais e o pensamento da civilização muçulmana.
Dessa maneira, há uma concordância parcial com os argumentos do autor Samuel
Huntington 89. Não que o mundo deva ser entendido como um mero choque de linhas
culturais civilizatórias. Contudo, as ações dos países dentro do âmbito das relações
internacionais devem ser entendidas também pelo viés das questões políticas,
geopolíticas, econômicas e das relações internacionais.
Por outro lado, o jornalista José Arbex tem razão quando fala que houve uma
construção metafórica, retórica teórica por parte da imprensa ao apresentar o Iraque e o
mundo árabe-muçulmano como sendo um conceito ameaçador e ruim ao Ocidente, por
parte da imprensa e dos países envolvidos, principalmente pelos governos dos Estados
Unidos e do Reino Unido. Vale ressaltar que o próprio José Arbex Junior foi
88
ARBEX JÚNIOR, José. Showrnalismo: a notícia como espetáculo. São Paulo: Casa Amarela, 2001.
pp. 30-31.
89
HUNTINGTON, Samuel. O choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial. Rio de
Janeiro: Objetiva, 1997.

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correspondente na Guerra do Golfo, tendo permanecido no Kuwait para cobrir a guerra


para o jornal “Folha de São Paulo”.
A imprensa escrita, televisiva e de rádio construiu a imagem de que a Guerra do
Golfo seria uma luta do “bem” contra o “mal”, isto é, dos Estados Unidos e o Ocidente,
contra o Iraque o Islã. Isso foi reproduzido reiteradas vezes pelos noticiários escritos em
escala internacional e nacional.
Assim, pode-se refletir sobre a validade de Armand Mattelart ao afirmar:
O Século XIX inventa a news e, com ela, o ideal da informação instantânea. Entre 1830
e 1850 criam-se as grandes agências. A partir de 1875, começam a formar-se os grupos
de imprensa. Surgem os primeiros gêneros escritos da produção cultural de massa. 90
O próprio Arbex também corrobora esse pensamento ao mostrar como a
informação está cada vez mais rápida quando escreve Do início do século XIX até os
nossos dias, a história tecnológica da mídia pode ser resumida como a história da
fabricação e instalação de meios cada vez mais rápidos de propagar a informação. 91
Dessa forma, para atender os seus anseios de lucros e interesses de corporações
privadas e até públicas, a imprensa atua como uma empresa que aparentemente é
guardiã da verdade e da imparcialidade, como afirma o jornalista Carlos Dorneles:
A imprensa somente revela fatos, não toma partido; não é responsável por
acontecimentos, apenas os registra. Esse dogma jornalístico jamais soou tão irreal como
depois do 11 de setembro. Muitos episódios, como a própria guerra no Afeganistão,
tiveram participação ativa da imprensa. É impossível, hoje, separar o que foi apenas a
intenção pura e simples do governo Bush e o que foi facilitado, possibilitado pela
influência da mídia. (...) O trabalho da mídia só reforçou a sua capacidade de ditar
rumos. Por cumplicidade ou por omissão, mas sem inocência. 92
Seguindo essa linha de raciocínio, a Guerra do Golfo foi um marco importante
na cobertura da imprensa e o seu tratamento para com as notícias. A cobertura ao vivo
transformou veículos como a CNN, fazendo-a uma grande potência nos meios de
comunicação jornalísticos, um referencial para o jornalismo 24 (vinte e quatro) horas e
para a cobertura de guerras.

90
MATTELART, Armand. A globalização da comunicação. PELEGRIN, Laureano (trad.). Bauru:
EDUSC, 2000. p. 47.
91
ARBEX JÚNIOR, José. Showrnalismo: a notícia como espetáculo. São Paulo: Casa Amarela, 2001. p.
59.
92
DORNELES, Carlos. Deus é inocente: a imprensa, não. São Paulo: Globo, 2003. pp. 270-271.

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A obra de Arbex vai ao encontro com essa linha de pensamento, pois esteve no aludido
conflito, a serviço do jornal “Folha de São Paulo”, no qual trabalhou no período de
1990-1991.

Considerações Finais

Percebe-se, pelo que foi discutido, que a imprensa escrita brasileira, leiam-se os
jornais “Folha de São Paulo” e “O Estado de São Paulo”, fizeram algumas críticas e
análises em seus editoriais, mas reproduziram na sua maior parte a versão de que
Saddam Hussein era um sanguinário, os Estados Unidos estavam lutando em prol do
cumprimento do direito internacional, a guerra foi tecnológica e com armas inteligentes,
e a imprensa foi censurada e comprometida em sua cobertura.
Não se pode esquecer que a imprensa estadunidense, fonte das informações
internacionais para os mencionados jornais brasileiros, seguia a Doutrina Powell do
governo dos Estados Unidos. Tal doutrina é baseada na ideia de uma guerra segura, sem
mortes, com o uso de armas inteligentes e bombardeios cirúrgicos. Daí nasceu a
imagem sobre a Guerra do Golfo de ser uma guerra limpa, quase sem mortes.
Desse modo, nota-se que a cobertura da imprensa escrita brasileira, no caso, os
jornais “O Estado de São Paulo” e “Folha de São Paulo”, por meio de uma análise dos
seus editoriais sobre a crise e a Guerra do Golfo, reproduziu várias “verdades” e visões
sobre tal conflito, defendidas por agências de notícias internacionais e pela CNN. Pouco
se preocuparam em aprofundar e discutir os interesses infiltrados e escondidos dos
Estados Unidos e do Iraque na guerra, bem como a real dimensão que ela teve para o
Oriente Médio e para o mundo em termos geopolíticos, militares e econômicos.
Pensar a cobertura de uma guerra, como a do Golfo, de 1991, pela imprensa
escrita brasileira, é fundamental para compreender como ela foi vista no Brasil e como
nossa imprensa depende e reproduz muitas notícias e visões sobre questões
internacionais, por depender de agências como a Reuters, Associated Press e France
Press. Seriam interessante países como o Brasil, por meio de sua imprensa, construir
mecanismos que possam garantir também a produção de notícias e de material sobre
questões internacionais.

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FONTES

Editorial/Opinião da Folha de São Paulo “Choque do petróleo”, nove de agosto de 1990,


p. A-2.
Editorial/Opinião da Folha de São Paulo “Ultimato da ONU”, São Paulo, 1º de
dezembro de 1990, p. A-2.
Editorial do Jornal da Tarde “O petróleo é de Saddam”, São Paulo, 15 de janeiro de
1991.
Editorial/Notas e Informações do O Estado de São Paulo “Que virá depois?”, São Paulo,
15 de janeiro de 1991, p. 03.
Editorial/Opinião da Folha de São Paulo “Guerra”, São Paulo, 17 de janeiro de 1991, p.
A-02.
Editorial/Notas e Informações do O Estado de São Paulo “O futuro de cem anos”, São
Paulo, 18 de janeiro de 1991, p. 03.
Editorial/Opinião da Folha de São Paulo “Riscos do monopólio”, São Paulo, 18 de
janeiro de 1991, p. A-2.
Editorial/Opinião da Folha de São Paulo “Lógica alucinada”, São Paulo, 19 de janeiro
de 1991, p. A-2.
Editorial/Opinião da Folha de São Paulo “Guerra à censura”, São Paulo, 30 de janeiro
de 1991, p. A-2.
Editorial/Opinião da Folha de São Paulo “Guerra sem ONU”, São Paulo, 13 de
fevereiro de 1990, p. A-2.
Reportagem das agências internacionais republicada pela Folha de São Paulo com o
título “Bombardeio mata centenas em abrigo de Bagdá", São Paulo, 14 de fevereiro de
1991, p. A-10.
Editorial/Notas e Informações do O Estado de São Paulo “Encontro em Bagdá”, São
Paulo, 15 de fevereiro, p. 03.
Editorial/Notas e Informações do O Estado de São Paulo “Guerra e Verdade”, São
Paulo, 23 de fevereiro de 1991, p. 03.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ARBEX JÚNIOR, José. Showrnalismo: a notícia como espetáculo. São Paulo: Casa
Amarela, 2001.
CAPELATO, Maria Helena; PRADO, Maria Ligia. O Bravo Matutino. Imprensa e
Ideologia: o jornal O Estado de São Paulo. São Paulo: Editora Alfa Ômega, 1980.
DORNELES, Carlos. Deus é inocente: a imprensa, não. São Paulo: Globo, 2003.
FONTENELLE, Paula. Iraque: a guerra pelas mentes. São Paulo: Editora Sapienza,
2004.
GODOY, Roberto. “Armas sofisticadas estreiam no Golfo”. O Estado de São Paulo,
São Paulo, de 15 de janeiro de 1991.
HUNTINGTON, Samuel. O choque de civilizações e a recomposição da ordem
mundial. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997.
MATTELART, Armand. A globalização da comunicação. PELEGRIN, Laureano
(trad.). Bauru: EDUSC, 2000.
SILVA, Aline Cáceres Dutra da. A Hegemonia da Informação: Estudo sobre ética em
jornalismo internacional com base na cobertura americana e brasileira da Guerra ao
Terror. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à disciplina Projetos
Experimentais em Jornalismo, do Departamento de Comunicação do Centro de
Educação Comunicação e Artes, da Universidade Estadual de Londrina, 2003.
TASCHNER, Gisela. “Folhas ao Vento. Análise de um conglomerado jornalístico no
Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
ZARPELÃO, Sandro Heleno Morais. A Crise no Oriente Médio: a Guerra do Golfo, as
Discussões Historiográficas e as Relações Internacionais (1990-1991). Monografia de
Especialização apresentada Curso de Especialização em História Social e Ensino de
História, do Departamento de História do Centro de Letras e Ciências Humanas, da
Universidade Estadual de Londrina (UEL), 2006.
_________. Tempestade no Iraque: a Guerra do Golfo, a Política Externa dos Estados
Unidos, a Historiografia Militar e a Imprensa Escrita Brasileira (1990-1991).
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História, da
Universidade Estadual de Maringá (UEM), 2008.

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A NOVA HISTÓRIA E O TEMPO HISTÓRICO: O REGIME


ANTROPOLÓGICO DE HISTORICIDADE.
Thiago Granja Belieiro (História – Unesp/Assis)
Hélio Rebello Cardoso Junior
PALAVRAS-CHAVE: HISTÓRIA, ANTROPOLOGIA, TEMPO.

A ideia principal a qual o presente texto se atém, é a de que o profundo diálogo


que a Nova História estabelece com as Ciências Sociais, principalmente na terceira
geração dos Annales, entre as décadas de 60 e 70 do século XX, levou a uma
antropologização da História. Esse fenômeno epistemológico não significa, contudo, a
transformação da História ou a perda de sua identidade, mas significa mudanças
importantes em algumas de suas bases temáticas, teóricas e metodológicas. Dessa
maneira, o que se advoga aqui é que uma parte significativa dos trabalhos da Nova
História pode ser caracterizada por esse processo de antropologização.
Com isso, se essa geração inaugura um novo modo de fazer história, se
constituem um novo modelo na produção de conhecimento histórico, tal modelo se
configura no intenso diálogo com as ciências sociais, notadamente com a
93
antropologia. Com efeito, esta será a grande interlocutora dos trabalhos da Nova
História, tanto na abertura de novos problemas, novos objetos e novas abordagens
quanto na reconfiguração teórica do tempo histórico, reconfiguração essa fundamental
para que ocorresse a apropriação de temas, objetos e metodologias de pesquisas
oriundas da antropologia e que se farão presentes em grande parte dos caminhos
historiográficos abertos por esses historiadores. Contudo, como apontado acima, para
que essa operação historiográfica possa se realizar, ou seja, para que o historiador possa
efetivamente utilizar os conceitos das Ciências Sociais e da antropologia em especial,
ele tem que historicizá-los, inseri-los na temporalidade.
Para que a história, ou melhor, para que a terceira geração dos Annales pudesse
utilizar-se das contribuições antropológicas, para que pudesse inserir seus conceitos na
temporalidade, e mesmo e justamente, pudesse incorporar suas temáticas, apropriando-
se assim das contribuições não só da etnologia, mas também da etnografia, acreditamos
que, hipoteticamente, a Nova História procedeu a uma reconcepção do tempo histórico,

93
REIS, José Carlos. A história entre a filosofia e a ciência. 3.ed., 1 reimp. Belo Horizonte: Autêntica,
2006. p. 54-64.

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a uma reconfiguração da ideia de tempo que permite aos historiadores, tornarem-se


etnógrafos do passado, ou que a história pudesse passar por um processo epistemológico
de antropologização.
Com isso, para que possamos compreender como esse processo pode vir à tona,
temos que apontar as questões que opõem História e Ciências Sociais, tendo a
preocupação de perceber como essas concebem o tempo e como essa concepção pôde
acarretar aos historiadores uma nova concepção de tempo histórico. Com efeito, as
Ciências Sociais, e a Antropologia em especial, erigem-se negando o tempo eventos dos
historiadores. Para esses, é preciso negar a concepção do tempo teleológico, a sucessão
dos eventos em direção ao progresso, pois desse modo a realidade histórica sempre será
resistente ao conhecimento, à conceitualização, à objetividade. Com isso, para serem
efetivamente ciências, elas tem de neutralizar o tempo, entender a realidade social e
histórica como “coisa, estrutura, como permanência, como continuidade inerte, como
repetição constante do mesmo, como tendência à rotina e ao repouso do
cotidiano”. 94Desse modo, essa recusa e limitação da passagem do devir histórico, que
nega o evento e a história dão às Ciências Sociais um pouco da sua cientificidade.
Com esse ataque ao cerne daquilo que era o conhecimento histórico de fins do
século XIX, a história dos Annales, ligada de forma intrínseca às contribuições teóricas
das Ciências Sociais procedem a uma negação do tempo evento, e isso implicou em
mudanças nas suas temáticas, nos seus métodos e sobretudo na concepção do tempo.
Com isso, a história econômico social, apresenta ao historiador o não-acontecimental,
pois revela um tempo histórico marcado pela permanência, constância, resistência. Para
José Carlos Reis, essa história mostra efetivamente os limites estruturais da realidade,
que circunscreve empiricamente e conceitualmente essa realidade, enfim, a explica, e a
apreende conceitualmente. Se não fosse pela permanência da dimensão temporal, a
história econômico-social colocaria a História no mesmo lugar que as Ciências Sociais.
A par disso, nesse momento o que nos interessa, é principalmente a reconcepção
do tempo histórico. Para José Carlos Reis, a característica central e definidora das várias
gerações dos Annales, é justamente a primazia do tempo longo, que embora assuma
matizes variadas ao longo de sua historicidade, é marca fundamental a todo o conjunto.
Diz o autor:

94
REIS, José Carlos. Tempo, História e Evasão. Op. Cit. p. 122.

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O que têm em comum é a construção da pesquisa histórica dentro do


tempo longo, que consiste em um esforço de superação do evento e
seus corolários: a história contínua, progressiva e irreversível da
realização de uma consciência humana capaz de uma reflexão total. E
é essa toda a influência das ciências sociais sobre a história nova. No
tempo histórico da nouvelle historie, há uma consciência opaca, uma
consciência natural, uma consciência inconsciente, que possui
algumas das características do tempo natural: constância,
regularidade, repetição, ciclos, homogeneidade, comparatividade,
quantidade. Enfim, o tempo histórico incorpora as qualidades da
consideração da simultaneidade. (...) Se os Annales incorporaram a
simultaneidade, eles não abrem mão da sucessão (...). 95
O que se vê é que, o tempo histórico agora é visto como bastante próximo do
tempo natural, o tempo da natureza, marcado pela regularidade, pela constância, pelos
ciclos, pela homogeneidade e pela incorporação da simultaneidade.
Com isso, novas ideias sobre o tempo podem então ser pensadas. Se o tempo não
é mais linear, cumulativo, com um fim conhecido, o que é o tempo para a Nova
História? Ele é plural, múltiplo, descontínuo e assimétrico, mostra toda a sua
diversidade. Desse modo, o historiador irá pensar o tempo e sua periodização a partir
dos problemas colocados ao passado, pois se os objetos são múltiplos, também serão o
tempo a que se relacionam, com cada processo histórico relevando uma temporalidade
específica, o tempo é uma construção do historiador, pois a “sucessão e a
simultaneidade de processos divergentes será o historiador que irá coordená-los em seu
modelo” 96
Mas o que realmente nos interessa, é a relação que essa nova ideia de tempo
estabelece entre o passado e o presente. Com efeito, na história preocupada com
eventos, o passado e o presente estão diferenciados, mas na perspectiva do tempo
histórico dos Annales, “essa sucessão do tempo histórico se torna secundaria em relação
a um tempo lógico, marcado pela simultaneidade”. Nos Annales, a partir dessa
concepção, o passado não esta isolado do presente, eles estão intimamente ligados, pois
é a partir do presente que as questões são colocadas ao passado, e esse passado é que
ilumina e explica o presente. Com isso, pode haver um diálogo entre passado e presente,
uma reflexão recíproca entre essas categorias, não significando porém que sejam iguais,
pelo contrário, o diálogo entre passado e presente deixarão claro aos historiadores a sua
diferença, por isso que se pode conhecer um e outro. Nos Annales, conclui José Carlos

95
REIS, José Carlos. Tempo, História e Evasão. Op. Cit, p. 127.
96
Idem, p. 129.

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Reis, o “conhecimento histórico não é conhecimento do mesmo, pois seu tempo não
contínuo, mas da diferença, da alteridade, pois suas estruturas são descontinuas”. 97
Desta forma, o historiador dos Annales pode perceber o passado a partir da
diferença, da alteridade, como fazem os antropólogos com relação as sociedade
primitivas, pois agora o historiadores conseguem ver o passado na diferença mas
também na simultaneidade, e o que antes era impensável na História, pode então tornar-
se objeto para o historiador, ou seja, a repetição, a constância, a regularidade ou as
estruturas que se encontram na longa duração. O devir continua no horizonte do
historiador, mas agora ele não pode apreender apenas a mudança, ele pode também
vislumbrar a permanência, a regularidade. A história pode enfim, tornar-se estrutural,
pois mesmo considerando a temporalidade ela buscas estruturas permanentes na longa
duração. Com isso, o tempo histórico passa por uma desaceleração, pois passou a
considerar também a não mudança.
Do ponto de vista hipotético o que gostaríamos de apontar é que o tempo histórico
dos Annales, o tempo estrutural, que busca regularidades, permanências e ritmos lentos
de mudança, o tempo que procura simultaneidade no não simultâneo, pode enfim,
promover a união da diacronia com a sincronia. O que defendemos é que, o que permite
à Nova História apropriar-se de conceitos etnológicos, e de metodologias da etnografia,
é justamente um tempo histórico novo, estrutural, que consegue criar uma união teórica
entre a simultaneidade (sincronia) do não simultâneo (diacronia), consegue ao mesmo
tempo perceber o passado como diferente do presente, e percebê-lo como igual. O que
acontece então, teoricamente, é que o historiador ainda que perceba o passado como
diferente, buscando nele a alteridade, a diferença, para que ele realize tal procedimento,
ele precisa também abolir a diferença, ele precisa ver o passado e o presente como
intrinsecamente ligados, é isso que permite ver o passado como mudança e como
permanência. É isso enfim, que possibilita ao historiador realizar uma história
etnológica ou mesmo etnográfica. O passado agora está próximo, e o historiador pode
viajar até ele como fazem os antropólogos, com a ajuda das fontes de que dispõe o
historiador pode realizar a etnografia e a etnologia, ou seja, pode descrever e explicar o
passado.

97
REIS, José Carlos. Tempo, História e Evasão. Op. Cit, p. 134.

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É isso que a nosso ver constitui a antropologização da Nova História, ou seja, a


criação de uma relação de simultaneidade no não simultâneo, a percepção da diferença e
da permanência. Por alguns instantes de seu trabalho, o historiador abole o tempo, e
quando o faz comporta-se como os antropólogos, ora etnografando, ora
conceitualizando o passado como os etnólogos. Na primeira etapa do seu trabalho, o
historiador estabelece a sincronia e, criando uma simultaneidade entre o passado e o
presente, ele pode fazer um trabalho de campo, naturalmente realizado com suas fontes
ampliadas e massivas. Na etapa seguinte, quando narra o seu objeto, ele o coloca
novamente na temporalidade, o reinsere no tempo, o reinsere na diacronia. Esse tempo
novo, essa concepção estrutural do tempo é o que permite ao historiador tornar-se um
antropólogo do passado. Dessa forma, hipoteticamente, o historiador pode realizar uma
história da alteridade, pode emprestar conceitos antropológicos, pode tomar de
empréstimo procedimentos etnográficos de pesquisa, e pode principalmente, se
apropriar de objetos antes vistos como concernentes exclusivamente aos antropólogos.
Em análise semelhante a realizada nesse texto, o historiador Antonio Paulo
Benatte corrobora nossa hipótese, vendo a relação da História com a Antropologia criar,
nessa dicotomia entre sincronia e diacronia, uma união entre esses termos vistos até
então como opostos, que por fim levaria à criação de um novo regime de historicidade.
Diz o autor:
A principal hipótese que aventamos é a seguinte: o privilégio
conferido a um princípio de simultaneidade (de sincronicidade), em
detrimento de um princípio de sucessão (de diacronia), esse primado
não coloca em xeque a noção mesma de historicidade — como
afirmam apressadamente os seus críticos —, mas sim altera-lhe o
estatuto. A chamada história estrutural, não sem tensões e paradoxos
que cumpririam examinar mais detidamente, combina e concilia, no
trabalho de representação inteligível do passado, o enfoque sincrônico
típico da antropologia com a abordagem diacrônica característica da
racionalidade historiadora. Vemos nascer assim, dos rebentos desse
enamoramento instável, um novo regime de historicidade que, embora
carente de elucidação teórica, parece que veio para ficar. 98

Na continuação de sua explanação, o autor então acredita que essa história estrutural não
é imóvel, como diria Ladurie, ou mesmo reveladora da inércia da civilização ocidental, na
acepção de Dosse, mas antes é reveladora de novas concepções acerca do tempo, que indicam
mudanças mais lentas, em ritmos diferenciados conforme o objeto perseguido pelo historiador,

98
BENATTE, Antonio Paulo. História e Antropologia no Campo da Nova História. Revista História em
Reflexão. UFGD Dourados, Vol 1, nº 1, p. 1-25, jan/jun 2007. p. 15-16.

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indicam enfim uma dialética do tempo, uma dialética diferenciada dos ritmos de mudança
histórica.
Para Jacques Le Goff, a história do cotidiano, uma das vertentes assumidas pela
Nova História, representa uma aproximação com a etnologia, um retorno à Heródoto, na
medida em que une o interesse pela cultura e pelo tradicional com as mudanças
históricas, ainda que vistas de forma lenta na longa duração. Para ele, tal interesse por
tais questões só pode vir a tona pela aproximação da História com a Etnologia e
principalmente, pela reconfiguração do tempo histórico, obra sobretudo da dialética do
tempo histórico de Braudel, que “conseguiu fazer a história subtrair ao fascínio dos
acontecimentos e do seu ritmo trepidante, da cronologia com datas tão fixas como um
calendário” 99Para Le Goff, tal procedimento, tal noção do tempo histórico é a que
promove efetivamente o casamento da História com a Etnologia, naquilo que foi
chamado de Etno-história ou Antropologia Histórica.
Michel de Certeau, em debate promovido pelo Magazine Literárie, discute como o
presente pode colocar questões sempre novas à história. Para Certeau, existe naquele
momento, (anos 70) uma consciência antropológica e psicanalítica, sobretudo em
França, que mostra que a tradição e as permanências estão mais vivas do que nunca. “O
morto continua assolapado na atuaclidade, assedia-a e a determina-a”. Para o autor:
Semelhante verificação, ligada à desmistificação da ideia de
progresso, engendra uma antropologização da História e uma
recrudescência do interesse por aquilo a que ontem se chamava as
“resistências” ao progresso. Daí uma análise com vista a detectar a
relação dos acontecimentos com as constâncias estruturais, as
permanências nos modelos de sociabilidade, de festa, de exclusão, etc.
A Antropologia insinua na História uma outra relação com o tempo: já
não se trata de um tempo voluntarista, progressista e nítido, que
continua sempre avançar apesar das resistências, mas sim de um
tempo que se repete, que evolui em espiral, que tem nós e voltas atrás,
um tempo manhoso, enganador e cheio de sinuosidade. 100
Michel de Certeau, nessa pequena fala num debate rico com os grandes
historiadores do seu tempo, nos esclarece questão fundamental. A França, apesar de
progressista e moderna, ainda mantém em muitas de suas questões tradições e formas de
sociabilidade que relevam antes a permanência do que a mudança, mais a sincronia do
que a diacronia. Tais fatos a fazem aproximarem-se da Antropologia, e essa não só

99
LE GOFF, Jacques. A História do Cotidiano. In:DUBY, Georges. et al. História e Nova História.
Lisboa: Editorial Teorema, 1986. p. 76.
100
LE GOFF, Jacques. et AL. A Nova História. Lisboa: Edições 70, 1991. p. 28. Publicado
originalmente pela revista Magazine Littéraire, em abril de 1977.

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ensina aos historiadores uma nova ideia de tempo histórico, como releva a eles novos
temas, antes exclusivos a antropólogos. Com isso, o interesse sempre renovado da
História, daí sua constante reescrita de acordo com novas questões de cada presente
singular coloca ao passado. A nova concepção do tempo histórico, agora manhoso,
cheio de sinuosidades, que vai e volta, que evolui em espiral é a pedra de toque das
relações entre a Antropologia e a História.
Se os historiadores dos Annales recriam suas concepções do tempo histórico a
partir do diálogo com a antropologia, se passam a contemplar a possibilidade de uma
temporalidade estrutural, que consegue conciliar a sincronia com a diacronia, conforme
apontamos, esta claro então que novas relações entre o presente e o passado passam a
ser articuladas nessa problemática do tempo histórico. Com isso, pensamos,
hipoteticamente, que o tempo estrutural dos Annales cria um novo regime de
historicidade, ou seja, o tempo histórico dos Annales estabelece então, como hipótese
mais uma vez, um regime antropológico de historicidade.
Para esclarecermos nossa hipótese, precisamos então definir como François
Hartog pensa o conceito de regime de historicidade, e com tal definição refletir sobre
como o momento histórico vivido pela terceira geração dos Annales os aproxima do
estruturalismo, e portanto da Antropologia, fazendo com que um novo tempo histórico
possa daí surgir; contribuindo então para que se estabeleça entre esses historiadores um
regime de historicidade que concilia sincronia e diacronia, marcado então pelo viés
antropológico, que nomeamos de regime antropológico de historicidade.
Para François Hartog, o regime de historicidade configura-se como uma categoria
heurística, isto é, uma forma de compreender, como, em determinado momento, a
sociedade em geral, e especificamente os historiadores compreendem o tempo e como
estabelecem a partir dessa compreensão uma relação entre o presente, o passado e
futuro. Segundo o autor, cada momento histórico específico, cada sociedade em um
tempo e lugar, constrói relações e articulações diferenciadas entre passado, presente e
mesmo futuro. Com isso, importa apreender como determinados grupos humanos
concebem sua noção de presente, de passado e de futuro, sendo que a característica
fundamental dos regimes de historicidade é sua extrema diversidade. Segundo Hartog, a
noção de regime de historicidade permite enfim, que questionemos como determinados
historiadores articularam e articulam tais categorias do tempo, indicando a partir daí

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como concebem a própria noção de história, tornando o regime de historicidade uma


categoria de compreensão da própria historiografia. Para o autor:
Com o regime de historicidade, tocamos, dessa forma, em uma das
condições de possibilidade de produção de histórias: de acordo com as
relações respectivas do presente, do passado e do futuro, determinados
tipos de história são possíveis e outros não. 101

Vê-se então que, na articulação teórica entre o presente, o passado e o futuro, que
a categoria heurística do regime de historicidade revela, alguns tipos de história são
possíveis e outros não. É nesse ponto que já podemos fazer a primeira reivindicação do
conceito de regime de historicidade aos nossos propósitos. Pois se a terceira geração dos
Annales conseguiu erigir um novo conceito de tempo histórico, um tempo mais lento e
estrutural, que une a sincronia com a diacronia, um tempo que permite ver a mudança e
a permanência, claro está que tais historiadores estão rearticulando as categorias de
presente e passado. O que apontamos acima é que, nessa nova rearticulação, proposta
pelo tempo estrutural dos Annales, a distancia temporal do presente com relação ao
passado é hipoteticamente abolida, para que com isso, os historiadores possam inserir as
sociedades do passado numa proximidade tal que permite a eles dar um tratamento a
seus objetos de forma semelhante ao tratamento que os antropólogos dão as suas
sociedades primitivas.
Ora, se tais historiadores estão rearticulando as noções de passado e presente, se
estão efetivamente articulando num processo dinâmico e mesmo dialético as
tradicionais categorias do tempo histórico, como demonstrado, podemos então dizer que
estão inseridos num novo regime de historicidade, que nomeamos de regime
antropológico de historicidade. A nosso ver, parafraseando Hartog na citação acima, é
esse regime antropológico de historicidade que permite à Nova História passar pelo
processo epistemológico de antropologização, incorporando as contribuições teóricas da
Antropologia nos estudos históricos, conseguindo então produzir uma outra história a
partir desse novo regime de historicidade.
Um segundo ponto de reflexão da obra de Hartog que reinvidicamos aos nossos
propósitos, é aquele que busca a articulação entre um determinado momento histórico e
o regime de historicidade daí originado e mesmo condicionado. Para o autor, vive-se,

101
HARTOG, François. Regimes de Historicidade: Presentismo e experiências do tempo. São Paulo:
Autêntica, 2003. p. 39.

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116

hoje, (2014) um regime de historicidade que o autor nomeia de presentismo. Nesse


regime de historicidade, é como se o tempo estivesse suspenso, pois não se percebe
mais no cotidiano da maioria dos homens e da sociedade francesa em especial, a
presença do passado, suas marcas e mesmo permanências; ao mesmo tempo, não se
articula mais um futuro, não se pensa nele, não se projeta mudanças revolucionárias e
históricas para um futuro nem próximo e nem distante. Com isso, vive-se num presente
eterno, um presente desarticulado entre o passado e o futuro, é o que Hartog denomina
de presentismo. Para o autor, tal regime de historicidade é o que abriu para a
historiografia as possibilidades dos estudos da memória, e mesmo de uma história do
tempo presente. 102 Para Hartog, tal regime presentista de historicidade fora sendo
processado e originado desde fins da segunda guerra mundial, a partir de inúmeras e
complexas questões políticas, econômicas, culturais e sociais.
Sendo assim, o que nos interessa nesse ponto da obra de Hartog, é a referida
articulação entre determinado momento histórico e a configuração de um regime de
historicidade daí condicionado. Assim, as perguntas que podemos fazer com relação ao
regime antropológico de historicidade são: Quais questões estão colocadas para que os
historiadores franceses dos anos 60 e 70 se aproximem do estruturalismo, e partir daí
rearticulem suas noções de tempo histórico? Quais são as questões políticas e culturais
que dão origem a esse regime antropológico de historicidade? Como tal regime pôde
enfim permitir o surgimento de uma História Nova, notadamente antropologizada?
Vejamos.
Para articular algumas respostas a tais questionamentos, sigamos François Furet.
Para o autor, uma primeira questão a ser pensada para se compreender a sedução do
estruturalismo no campo intelectual Francês dos anos 60 e 70 é precisamente o
desengajamento de muitos desses intelectuais com relação ao marxismo, fruto de todas
as questões que envolveram o projeto revolucionário de Marx ao longo do século XX,
como a guerra fria, o stalinismo, a revolução chinesa, a descolonização, as crises do
terceiro mundo. Para Furet:
Uma esquerda intelectual desiludida, desmoralizada pela história,
virou-se para o homem primitivo, já não tanto para decifrar a infância
do homem --- o que o conduziria à história ---, mas para nele
encontrar a verdade do homem; (...) Foi necessária a deslocação do

102
HARTOG, François. Regimes de Historicidade: Presentismo e experiências do tempo. Op. Cit. p. 37.

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dogmatismo marxista, nos anos 1955-1960, para que a etnologia


viesse preencher uma expectativa social, uma situação história.103

Sem projeto revolucionário em mente, sem a possibilidade de um futuro embebido


de marxismo, a intelectualidade francesa se afasta da história e se aproxima da
etnologia, a grande baluarte do estruturalismo desses anos. Esse modelo teórico oferecia
a tais intelectuais uma evasão não só do passado, já que se coloca como modelo teórico
anti-histórico, como também oferece uma saída do futuro revolucionário, desacreditado
naquele momento.
Ao mesmo tempo, o passado recente da França, marcado pela derrota na segunda
guerra mundial, marcado ainda pela perda das suas colônias e o decrescimento do
império francês fez com que os intelectuais franceses quisessem sair da história, “esta
104
França, expulsa da história, aceita tanto melhor expulsar a história”. Para Furet, tais
fenômenos serão fundamentais para um questionamento da história, antes mestra, e
seria a explicação mais plausível para a repercussão da obra anti-histórica de Lévi-
Strauss. Ora, o que se vê então é tal aproximação da intelectualidade francesa com
relação ao estruturalismo ocorreu na medida em que tanto o futuro é colocado em
suspenso, com o passado é colocado em xeque. Assim, tal processo pôde acarretar, por
parte dos intelectuais franceses em geral, e dos historiadores em especial, novas
articulações entre presente, passado e futuro, ou seja, podem fazer surgir uma nova
reflexão sobre o tempo e, portanto, um novo regime de historicidade.
Para François Furet, essa reconcepção do tempo histórico que aproxima a História
da Antropologia, esta ligada ainda à integração mundial no pós guerra, que coloca em
pauta formas de historicidade distintas, modelos de organização social e cultural
heterogêneos, o que de alguma maneira põe em xeque uma ideia de história global, com
níveis evolutivos homogêneos, com uma temporalidade homogênea. Para o autor, tais
fatores explicam a dissolução das fronteiras entre a História e Antropologia, pois “o
espaço humano tornou-se homogêneo no momento em que o tempo deixou de o ser”. 105
Para Furet, a integração mundial, econômica, mas também política e cultural, do
período pós-descolonização, faz com que todas as sociedades passassem a perceber suas

103
FURET, François. A Oficina da História. Lisboa: Gradiva, 1986. p. 45.
104
FURET, François. A Oficina da História. Op. Cit. p. 46.
105
Idem, p. 48.

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diferenças em termos de história, já que em termos espaciais veem-se inseridos numa


homogeneidade. Para o autor:
O espaço é historizado; mas é-o à custa de uma segmentação do
tempo. Com efeito, à medida em que vai integrando toda a
humanidade e se torna menos eurocêntrica, a história tem de encarar o
desafio etnológico da pluralidade das sociedades e das culturas, que
decompõe a ideia de um tempo homogêneo: não apenas as sociedades
não evoluem a um mesmo ritmo, como no interior de cada uma dessas
sociedades os diferentes níveis de realidade que a constituem não
obedecem a uma temporalidade global e homogênea. A “mudança”
tornou-se um conceito mensurável em termos econômicos, nos seus
vários aspectos; mas descobre ao mesmo tempo as resistências à
mudança. O “arranque”. A “modernização”, a universalização do
progresso material e do crescimento econômico são pensados como o
sentido fundamental da história contemporânea; mas esbarram nas
tradições, nas heranças, no conjunto das inércias socioculturais.
Assim, a história, estendendo-se ao mundo humano, descobre que é
igualmente não-história; a mudança revela o imóvel. 106

Portanto, notamos na fala de Furet que as questões colocadas pelo momento


histórico pelo qual a sociedade mundial e a francesa em especial vivem, irão também
contribuir no interesse crescente dos historiadores pelas contribuições da Antropologia.
Em caminho semelhante àquele apontado por Certeau, Furet nos mostra que a
integração mundial no período pós guerra e pós descolonização relevam ao historiador
não só temporalidades e ritmos de mudanças diferenciados, bem como relevam aos
historiadores que a realidade sócio-cultural pode estar prenhe mais de permanências, de
estruturas, de regularidades, de resistências do que propriamente de mudanças. Com
efeito, tão constatação não apenas indica o interesse crescente dos historiadores pela
Antropologia, como seria uma das responsáveis pela antropologização da História, pela
temporalidade estrutural, mas também pela incorporação de temáticas, conceitos e
práticas de pesquisa da Antropologia que passarão a ser vistas na historiografia
francesa.

BIBLIOGRAFIA:
BENATTE, Antonio Paulo. História e Antropologia no Campo da Nova História.
Revista História em Reflexão. UFGD Dourados, Vol 1, nº 1, p. 1-25, jan/jun 2007.
DUBY, Georges. et al. História e Nova História. Lisboa: Editorial Teorema, 1986.
FURET, François. A Oficina da História. Lisboa: Gradiva, 1986.

106
FURET, François. A Oficina da História. Op. Cit. p. 103.

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HARTOG, François. Regimes de Historicidade: Presentismo e experiências do tempo.


São Paulo: Autêntica, 2003.
LE GOFF, Jacques. et AL. A Nova História. Lisboa: Edições 70, 1991.
REIS, José Carlos. A história entre a filosofia e a ciência. 3.ed., 1 reimp. Belo
Horizonte: Autêntica, 2006.

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HISTÓRIA
E LINGUAGENS

Fábio Mendonça. Harpas também fazem parte da música de “O Ouro do Reno”. 2013.
121

O CLUBE DOS ARTISTAS MODERNOS (CAM): FLÁVIO DE


CARVALHO, UM ANIMADOR CULTURAL EM SÃO PAULO
(1932-34)
Daniel Alves Azevedo (História, FCL-UNESP/Assis) 107
Orientador: Carlos Eduardo Jordão Machado
PALAVRAS-CHAVE: MODERNISMO PAULISTANO; FLÁVIO DE CARVALHO; CLUBE DOS ARTISTAS
MODERNOS.

INTRODUÇÃO
Esta comunicação tem a intenção de apresentar um pequeno recorte da pesquisa
de mestrado A trajetória cultural de Flávio de Carvalho durante os anos 1930:
Experiências de vanguarda no Modernismo em São Paulo (1931-1939). Flávio de
Carvalho (1899-1973) atuou como animador cultural 108 principalmente a partir da
fundação do Clube dos Artistas Modernos em 1932, destacar sua presença na direção da
agremiação é fundamental para compreender o seu papel como artista e intelectual na
organização da cultura em São Paulo. Sua defesa pela arte moderna no país na década
de 1930 já se apresentava no final dos anos 1920, momento em que o artista se integrou
ao grupo dos modernistas por meio da afinidade com a corrente Antropofagia
arquitetada por Oswald de Andrade, Raul Bopp, Oswaldo Costa, entre outros. Foi em
meio à fragmentação do Movimento Antropofágico que Flávio passou a expandir suas
manifestações artísticas no espaço sociocultural paulistano mobilizando outras diversas
intervenções que ocorreriam durante sua trajetória. A tomada de posição do artista
enquanto teórico do modernismo paulistano possibilitou à sua experiência intelectual a
elaboração de reflexões sobre o desenvolvimento do movimento no Brasil, a crítica à
arte acadêmica e aos aspectos conservadores da tradição cristã na sociedade do seu
tempo, além das polêmicas intervenções artísticas que faziam uso da experimentação
das artes plásticas, teatro, psicanálise, etc. Tema pouco explorado pela historiografia do

107
Graduado e Mestrando em História pela FCL-UNESP Assis, bolsista pela Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
108
Termo utilizado por Rui Moreira Leite para definir o papel de Flávio de Carvalho no campo da cultura
em São Paulo. O artista deve ser entendido enquanto animador cultural, na medida em que atuou
ativamente em diversos segmentos para a promoção e divulgação da arte moderna no país.

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modernismo, esta abordagem é devedora de dois trabalhos acadêmicos sobre o artista,


as pesquisas de Rui Moreira Leite e Graziela Naclério Forte 109.

FLÁVIO DE CARVALHO, O ANIMADOR DO CLUBE DOS ARTISTAS


MODERNOS
O Clube dos Artistas Modernos (CAM) foi fundando em novembro 1932 por
artistas e intelectuais ligados ao movimento modernista em São Paulo. A associação foi
idealizada e administrada pela iniciativa de Antonio Gomide, Di Cavalcanti, Carlos
Prado e Flávio de Carvalho. Com o intuito de formar uma agremiação para os
associados que contribuíssem financeiramente com as despesas, o Clube propôs a
organização de um espaço cultural em benefício dos modernos, mas que atendia
também a um público mais amplo, em diálogo com a sociedade do período. Esta breve
reflexão procura destacar a atuação do artista Flávio de Carvalho nesse espaço,
justamente por ser considerado um dos principais animadores culturais de São Paulo
durante a década de 1930. Conhecido pelas polêmicas intervenções e experiências
contra os setores conservadores da sociedade do seu tempo foi figura de proa na
organização desta associação, responsável pela intensa atividade do grupo e pela
condução da variada programação semanal que agitou os primeiros anos dessa década.
No final de 1932 duas associações começaram a mobilizar o cenário artístico e
intelectual de São Paulo, a Sociedade Pró-Arte Moderna (SPAM) liderada e dirigida por
Lasar Segall (1891-1957) e o citado Clube dos Artistas Modernos (CAM), juntas, elas
podem ser compreendidas com grande importância, pois ofereceram espaços para a
sociabilidade modernista no cenário cultural do período. Embora ambas atuassem em
prol da arte moderna no país, há uma distinção clara entre os projetos de cada uma, o
CAM “[...] surgiu como uma dissidência da Sociedade Pró-Arte Moderna, antes mesmo
de ela existir” (FORTE, 2014, p. 87). Diferentemente do CAM, o grupo que atuou na
SPAM, muitas vezes, se apresentou de forma elitizada, preservando a relação de
dependência com seus patrocinadores (mecenas), políticos e membros da elite que

109
Respectivamente: MOREIRA LEITE, R. Flávio de Carvalho (1899-1973): entre a experiência e a
experimentação, v.1 e v.2.Tese (Doutorado Artes). Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São
Paulo USP: São Paulo, 1994 e FORTE, Graziela Naclério. Diversão e Arte no Clube dos Artistas
Modernos (São Paulo, 1933), 1ª. Ed. São Paulo, 2014.

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financiavam o desenvolvimento artístico e cultural em círculos sociais fechados.


Segundo Graziela Naclério Forte, diferente da Sociedade Pro-Arte Moderna, não havia
no CAM:
[...] mecenas e nem sócios-doadores; vivia-se do valor arrecadado com
as mensalidades mais a soma da bilheteria de alguns eventos abertos a
todos os interessados. Para que a arte vivesse autônoma e
independente dos mecenas, o novo público deveria ser formado por
um grupo de pessoas (não necessariamente da elite) capazes de
entender e consumir a arte moderna, garantindo assim, a autonomia
ideológica e financeira dos artistas. (FORTE, 2014, p. 444)

A continuidade do projeto vislumbrado pela Semana de Arte Moderna em 1922


e a atuação de um grande número de artistas e intelectuais definiu os contornos dessa
segunda geração de modernistas que, em grande medida, puderam ampliar suas
manifestações artísticas. Na cidade paulistana, o CAM, muitas vezes deu abertura para
temas e discussões políticas e estéticas que a SPAM não considerava, promovendo
diversos ciclos de palestras e conferências para os seus agremiados (MOREIRA LEITE,
1987).
A atuação de Flávio de Carvalho no Clube nos apresenta a importância de sua
produção em parceria com outros artistas. O arquiteto, artistas plástico, dramaturgo,
etnólogo e crítico de vários aspectos da cultura, etc., manteve durante a sua trajetória
artística e intelectual o engajamento pela arte moderna. Guiado por sua personalidade
excêntrica, Flávio foi, muitas vezes, definido por suas polêmicas intervenções públicas e
o seu ataque a religião. De família abastada, concluiu seus estudos na França e na
Inglaterra, retornando ao Brasil em 1922, contudo, somente na década seguinte
assumiria sua identidade modernista, passando assim, a atuar ativamente como
animador cultural.
Para Rui Moreira Leite (1987), a associação marcou um novo tipo de interação
entre diversos grupos, consolidando em São Paulo, um ambiente de efervescência
artística, muito mobilizado pelo diálogo de diversas tendências políticas e
socioculturais. Tais aspectos coincidem com a atuação de Flávio na direção da
agremiação em parceria com outros artistas, estabelecendo um espaço original para as
atividades e manifestações artísticas.

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Para compreender a importância do papel desempenhado pela


associação é preciso remontar à cidade provinciana de São Paulo de
então, com poucos lugares de reunião, além das redações de jornais,
cafés e restaurantes. Se excluirmos os anarquistas que promoviam
encontros em clubes operários, animados por representações teatrais e
edição de jornais de circulação dirigida, os demais grupos políticos
organizados limitavam sua atuação aos canais tradicionais. O Clube
dos Artistas Modernos veio propiciar não só a alteração deste quadro,
mas o encontro das diversas tendências em um espaço comum”
(MOREIRA LEITE, 1987, p. 32).

Com a função de divulgar pela imprensa as atividades do grupo, Flávio era


figura recorrente nos principais periódicos da época, se posicionando e divulgando a
programação semanal que por pouco mais de um ano atendeu a cidade de São Paulo.
Outro aspecto, muito importante que marcou a atuação do artista no CAM foi a criação
do Teatro da Experiência. Para além das comissões responsáveis pelas atividades de
Pintura; Escultura; Arquitetura; Literatura; Imprensa; Estudos Gerais; Festa e Música, o
Teatro ganhou destaque ao propor um “centro de experimentação da linguagem cênica”
(MOREIRA LEITE, 2008, p. 120), assim, em 1933, o artista se debruçou na
organização de um espaço apropriado onde, segundo ele, “[...] seria um laboratório e
funcionaria com o espírito imparcial da pesquisa [...]” (MOREIRA LEITE, 1987, p. 48).
Entretanto, o Bailado do Deus Morto, uma peça redigida e dirigida por Flávio que
combinava a dança, o canto, efeitos e iluminação sobre figurinos e mascaras de
alumínio, chocou a sociedade de São Paulo por expor à crítica a religião. Recebida
negativamente pelos setores católicos de São Paulo, a peça sofreu censura pela
delegacia dos costumes que considerou ofensiva a experiência estética que tinha a
intenção de encenar um ritual com a morte do Deus cristão.
Nesse momento, nos meses finais de 1933, a agremiação já apresentava um
nítido desgaste interno e em fevereiro de 1934 se dissolveu com o último baile de
Carnaval organizado pela equipe diretora.
“[...] tornou-se evidente que não havia mais condições de
sobrevivência para uma associação como aquela. As facções se
degladiavam (sic) pelo controle do espaço, a polícia - em especial a

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partir do episódio do Teatro da Experiência – passou a acompanhar de


perto o desenrolar das atividades” (MOREIRA LEITE, 1987, p. 33)

A PROGRAMAÇÃO DO CAM:
As atividades semanais proposta pela direção do Clube que foram oferecidas
durante todo o ano de 1933 tiveram, segundo Moreira Leite, três momentos:
No primeiro, dominaram os eventos musicais combinados a
espetáculos de dança e humor. A este seguiu-se o período das
exposições de Kaethe Kollwitz, de cartazes e de desenhos de loucos e
crianças às quais já se intercalavam as conferencias , que marcaram o
último período, reinando absolutas até o fim do anos (MOREIRA
LEITE, 1987, p.39)
A programação inicial que possuía um viés artístico, expresso pelos painéis
pintados nas paredes do salão por Antonio Gomide, Di Cavalcanti, Carlos Prado e
Flávio de Carvalho; por apresentações musicais e espetáculos de dança, gradativamente
assumiu um caráter político. Segundo Graziela Naclério Forte,
Assim como o debate estético marcou o inicio do projeto de
vanguarda brasileira e a década seguinte caracterizou-se como uma
fase política, a mesma tendência foi por nós detectada dentro da
programação do Clube de Artistas Modernos: ela começou voltada,
quase exclusivamente, às atividades artísticas de afirmação da
produção modernista e no semestre seguinte, a agenda abriu espaço
para os temas políticos, de esclarecimento e divulgação da união
soviética.(FORTE, 2014, p. 219-220)

A abertura para discussões políticas marcou as atividades no CAM e envolveu


militantes em suas reuniões e debates,
[...] reunindo em grupo mais diversificado pôde cobrir áreas
negligenciadas pela SPAM, - realizando um ciclo de conferencias que
contou inclusive com a participação dos agrupamentos de esquerda –
dos anarquistas aos stalinistas do Partido Comunista –, passando pelos
trotsquistas e membros da esquerda independente. (MOREIRA
LEITE, 1987, p. 32)

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Esta aproximação com temas políticos se deu, em grande medida, pela


recorrente presença de intelectuais e artistas militantes, tais como Caio Prado Jr. e
Mario Pedrosa que, inclusive, apresentaram conferenciais no Clube. Tal fato, “despertou
não somente a atenção dos comunistas, dos marxistas e dos socialistas, bem como da
polícia política e de integralistas interessados em combatê-los” (FORTE, 2014, p. 220).
A programação do ano de 1933 contou ainda com expressões do folclore
brasileiro, assim como espetáculos de danças e humor, eventos musicais que
transitavam com facilidade entre a música erudita moderna e popular, apresentações de
canções,
[...] de sambas e músicas populares em voga, difundidas pelo
recém-criado rádio, o qual recebia investimentos da indústria
discográfica e vinha agradando as camadas médias e baixas da
população (FORTE, 2014, p.441)

No segundo semestre, um ciclo de exposições sobre a União Soviética com as


palestras de Mario Pedrosa e Tarsila do Amaral também foi realizado. Merece destaque
também a exposição intitulada “Mês das Crianças e dos Loucos”, evento organizado por
Flávio em parceria com o psiquiatra Osório Cesar no dia 28 de agosto de 1933. Esta
intervenção artística coletiva realizada por crianças de escolas públicas e por internos do
Hospital Psiquiátrico do Juqueri em São Paulo foi um marco no reconhecimento do
valor estético do desenho da criança e da produção expressiva de pacientes com
problemas psiquiátricos no Brasil: uma das mais importantes iniciativas sociais do
Clube dos Artistas Modernos (CAM), que teve relevantes repercussões entre
profissionais envolvidas no campo das artes, do ensino de arte e da psicologia e
psiquiatria.
Conforme visão dos modernistas, os loucos e as crianças, assim como
os índios, têm suas consciências livres, não presas aos condicionantes
da sociedade burguesa. Eram as manifestações utópicas do projeto
modernista e representavam a consciência do homem novo, segundo a
ideologia de esquerda. Podemos encontrar no movimento surrealista, a
origem para este complexo debate, o qual propunha a transformação
do homem através da libertação das forças do inconsciente (FORTE,
2014, p. 163)

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A exposição de desenhos e pinturas se somou a uma série de conferências sobre


o tema. A programação do CAM se justifica, ainda segundo Naclério Forte pela
intenção
[...] de buscar a adequação de tendências culturais pertinentes ao
inicio da década, isto é, não bastava simplesmente promover a
divulgação da arte, tinha de atrair interessados pela arte
moderna. Para tanto, foi criado um projeto cultural amplo,
abrangendo sessões musicais, danças, bailes de carnaval,
conferencias, apresentações teatrais, jantares de homenagem e
exposições em menores proporções (FORTE, 2014, p.70)
Outro aspecto importante da programação do Clube foi a organização dos bailes
de Carnaval de 1933 e 1934 que procuraram atrair a sociedade paulistana para as
atividades da agremiação, com o objetivo de “[...] arrecadar recursos financeiros que
seriam revertidos nas despesas de aluguel ou no inicio de novas atividades como o
Teatro da Experiência.” (FORTE, 2014, p. 122).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
É indissociável a atuação de Flávio de Carvalho da importância que Clube dos
Artistas Modernos adquiriu para modernismo em São Paulo. Problematizar a atuação do
polêmico artista paulistano na agremiação é compreender parte de sua complexa trajetória.
Flávio se manteve movido pelos aspectos de sua excêntrica personalidade, se destacando
entre os modernistas brasileiros durante a década de 1930. De fato, com uma trajetória
compreendida em diversos episódios, momentos de profundo engajamento no campo da
cultura em São Paulo, seja interagindo com segmentos da sociedade da época ou em
controversas intervenções ou ainda em contato com uma rede de artistas e intelectuais no
Brasil e na Europa, o artista sempre procurou atuar na organização da cultura – que tinha o
modernismo como elemento central – de forma experimental e polêmica em diálogo com a
sociedade.
Ao fim do seu primeiro ano de atividades, o Clube podia contabilizar
feitos inegáveis. Primeiro, apresentara à cidade uma nova forma de
associação de artistas e intelectuais, descontraída e propícia a aceitar
as colaborações mais diversas. Segundo, por realizar mostras não

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convencionais, que não teriam encontrado espaço em qualquer outra


instituição. Firmara-se exatamente nesse sentido - era um espaço
alternativo (MOREIRA LEITE, p. 47)
O espaço para experimentação exigido pelo artista possibilitou a constituição de
uma agremiação que gradativamente se distanciou dos círculos fechados do mecenato
paulista, “foi uma tentativa de se criar um tipo novo de sociabilidade, que não fosse o
modelo de mecenato burguês” (FORTE, 2008, p. 12) que sustentou o projeto da
primeira geração de modernistas. Ampliando as possibilidades de diálogo entre artistas
modernos e a sociedade do período,
[...] o CAM foi um tentativa de espaço cultural, sem depender do
apoio ou subsídio financeiro dos mecenas pertencentes à oligarquia
falida devido à crise dos preços do café, em 1929, ou das novas forças
do poder instituídas pelo novo governo. Foi uma alternativa para os
sócios-fundadores – Flávio de Carvalho, Di Cavalcanti, Carlos Prado
e Antônio Gomide – saírem do antigo esquema dos mecenatos diretos,
com vistas a uma independência organizativa justamente na transição
entre o fim do mecenato privado e início da política cultural estatal,
determinando, assim, o rompimento com a ideologia de dominação.
(FORTE, 2014, p. 443-444)

Essa proposta empreendida pelo Clube dos Artistas Modernos mobilizou um


novo ritmo cultural muito relevante para a continuidade dos projetos modernistas em
São Paulo na referida década. Manifestações como as de Flávio de Carvalho devem ser
entendidas dentro de uma proposta abrangente para o desenvolvimento da arte moderna
no país, estimulando e organizando a cultura moderna de acordo com os interesses
mobilizados por artistas e intelectuais para a sociedade do período. A isso se deve,
muitas vezes, o caráter experimental proposto pelo artista, uma tentativa de promover
meios para o desenvolvimento do modernismo no país.

BIBLIOGRAFIA
NACLÉRIO FORTE, Graziela. CAM e SPAM: arte, política e sociabilidade na São
Paulo moderna, do início dos anos 1930. 2008. Dissertação (Mestrado em História

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129

Social). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São


Paulo: São Paulo, 2008.
__________. Diversão e Arte no Clube dos Artistas Modernos (São Paulo, 1933), 1ª. Ed. São
Paulo, 2014.
MOREIRA LEITE, Rui. A experiência sem número, uma década marcada pela atuação
deFlávio de Carvalho. 1987. Dissertação (Mestrado em Artes Plásticas). Escola de
Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo USP: São Paulo, 1987.
__________. Flávio de Carvalho (1899-1973): entre a experiência e a experimentação, v.1 e
v.2.Tese (Doutorado Artes). Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo USP:
São Paulo, 1994.

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HISTÓRIA E QUADRINHOS: REFLEXÕES SOBRE A


RELEVÂNCIA DA ARTE SEQUENCIAL
Danilo Pontes Rodrigues (Mestrando do PPGHS/UEL).
Orientador Dr. José Miguel Arias Neto UEL).
PALAVRAS-CHAVE: HISTÓRIA EM QUADRINHOS. ARTE SEQUENCIAL. INDÚSTRIA CULTURAL.

HISTÓRIAS EM QUADRINHOS
As histórias em quadrinhos são um produto midiático que tem sua origem no
final do século XIX, produto este que possui uma linguagem própria e tem sua
expressão em diversos países, seja pela produção de material ou pela redistribuição
através da aquisição dos direitos de publicação de conteúdos de outras nacionalidades.
Em sua criação as HQs 110 tiveram sua publicação em jornais periódicos com um tom
humorístico, entretanto durante todo o século XX as HQs sofreram adaptações e pode-
se observar os mais variados temas abordados em suas páginas, ampliando bastante o
quadro de possibilidades, tanto no que se diz sobre o enredo da história quanto na sua
linguagem, em seu formato e também na sua mídia física, de uma forma geral.
A história como ciência está em constante discussão quanto as suas abordagens e
campo de atuação. Durante o século XX houve grandes mudanças nesse sentido. Elias
Thomé Saliba faz uma análise da História, tida como metódica, que a partir da obra de
Langlois e Seignobos que ressaltavam a importância de uma série de análises de
documentos. Abordagem esta que:
[...]supunha uma não explicitada teoria do conhecimento que mantinha o
sujeito cognitivo (o historiador) como neutro e ausente – quase que um mero
copista idôneo ou compilador disciplinado de grandes conjuntos documentais
e arquivos praticando aquele “grandioso e épico esquecimento de si próprio”.
(SALIBA, 2009, p.312).
Assim, o historiador se tornaria um analista distante dos acontecimentos,
focando o seu interesse para os acontecimentos, em busca da verdade, se afastando de
sua sociedade e focando os seus estudos no passado.
Além deste caráter impessoal na abordagem histórica, outra crítica apontada é a
limitação documental. Ora, a preferência se dava para as fontes escritas, documentos
tais como: tratados governamentais, manuscritos, documentos autógrafos, papéis
110
A partir deste momento utilizo a abreviação HQ para me referir ao termo História em Quadrinhos.

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diplomáticos. Todos estes documentos que deveriam passar por uma série de
questionamentos a fim de checar a veracidade do documento, além de compreender
quem o produziu e quais eram os seus interesses ao fazê-lo. Apesar de todas as críticas
posteriores, no tocante à seleção de documentos e a investigação a ser feita nos
documentos, são grandes contribuições da História metódica para o campo
historiográfico.
Nos anos 1930 a denominada escola dos Annales vão criticar a historia factual,
historicizante que pregava um fetichismo dos fatos. Tendo por fundadores Marc Bloch e
Lucien Febvre, os Annales buscavam a problematização da história, onde hipóteses
serviriam como norteador da pesquisa. Atuando, então, em busca de uma história total,
onde pudessem abordar todas as atividades pertinentes ao seres humanos.
No tocante aos documentos há grande expansão das possibilidades documentais,
tanto na seleção quanto à utilização. Para Bloch:
[...] o documento seria não apenas um resto, um vestígio do passado, mas um
produto do passado, ou seja, produzido por relações de forças assimétricas,
desiguais sempre, de um passado agônico, irregular e contingente. Bruto,
isolado, dificilmente o documento escaparia à síndrome da Biblioteca de
Babel: para uma linha razoável ou afirmação direta, aparecem léguas de
cacofonias insensatas, confusões verbais e incoerências [...] todo documento
contém, em si mesmo, um componente de distorção da realidade, mas, como
dizia o percuciente Marc Bloch, “a intencionalidade do erro pode ser uma
impressionante fonte de verdade para o historiador. (Ibid., p.317-318).
Ou seja, todo documento tem algo a dizer para o historiador, mesmo que este
documento seja falso ou conduza o leitor de forma capciosa, há um motivo pelo qual ele
foi elaborado de tal forma e isto pode se mostrar de grande proveito ao historiador,
desde que seja feita um trabalho de questionamento feito de forma coerente e consciente
por parte do historiador ao documento.
Anos mais tarde outros nomes da escola dos Annales, tais como Georges Duby e
Jacques Le Goff, analisaram e ampliaram o próprio conceito de fonte histórica. A partir
de então a distinção entre fontes primárias e fontes secundárias se torna ineficientes,
ora, o que teria maior importância para quem estava analisando a fonte, a procedência
ou a sua relevância para o tema investigado? Além de a própria abertura novos tipos de
documentos, até então ignorados pelos historiadores, como registros judiciais, registros
fiscais e contábeis de empresas e também papéis notariais. Criando inclusive uma

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hierarquia entre documentos seriáveis, não seriáveis e os documentos que poderiam


passar uma seriação.
O objetivo de uma serialização de fontes é constatar, certo padrão, repetições ou
recorrências que se encontram na série, assim como variações que apontam tendências,
os fluxos e refluxos que podem caracterizar um ciclo, para um determinado processo
historiográfico.
Já em relação à intencionalidade:
Não existe um documento objetivo, inócuo, primário. [...] O documento não é
qualquer coisa que fica por conta do passado; é um produto da sociedade que
fabricou segundo as relações de forças que detinham o poder. Só a análise de
documento enquanto monumento permite à memória coletiva recuperá-lo e
ao historiador usá-lo cientificamente, isto é, com pleno conhecimento de
causa. (LE GOFF, apud Ibid., p. 318-319) 111.
Ou seja, para Le Goff, o que transforma o documento em monumento são as
relações de poder que vão interferir diretamente nos mecanismos de produção deste
documento. Criando a distinção entre documentos voluntários (testemunhais) e
involuntários (não-testemunhais). Assim, com a ampliação de fontes, seria muito
complicado determinar onde começa e onde termina o documento.
Nesse sentido algumas reflexões podem ser levantadas no tocante à utilização de
HQs como fonte histórica. Temos diversas pesquisas com a utilização de obras
cinematográficas, literárias e fotográficas, contudo a utilização de HQs por mais que
tenha aumentado a sua incidência nos últimos anos, não observamos grandes
quantidades de pesquisas, em comparação com outras fontes. Mas afinal o que são as
HQs? O que elas representam para nossa sociedade? Pode-se considerar uma
modalidade de arte ou não? E como utilizar as HQs como fonte de pesquisa histórica?
Conforme aponta Santiago García:
[...] a definição de quadrinhos dada por Kunzle se baseia em quatro
condições que servem para definir uma HQ [...] 1) Deve haver uma sequência
de imagens separadas; 2) Deve haver uma preponderância da imagem sobre o
texto; 3) O meio em que a história em quadrinhos aparece e para qual está
originalmente destinada tem que ser reprodutivo, ou seja, em forma impressa,
um meio de comunicação de massas; 4) A sequência deve contar uma história
que seja tanto moral quanto tópica. (GARCÍA, 2012, p. 43).

111
Citação original indicada como: LE GOFF, Jacques, Documento e monumento in História e memória,
trad. Bernardo Leitão. Campinas: Ed. Unicamp, 1990.

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Embora esta definição seja bastante questionada, conforme o próprio Santiago


García aponta, algumas considerações são bastante pertinentes, principalmente no que
se refere à terceira condição.
Partindo de sua gênese nas tiras de jornal estadunidenses, observando o aumento
das vendas, e também o interesse do público pelas tiras, os jornais começam a investir
mais neste ramo para arrematar o público, surgindo diversas novas tiras. Consolida-se
um mercado consumidor, e a nova mídia se torna um sucesso em poucos anos de
existência.
Junto a esta evidência na sociedade, o preconceito e reprovação das HQs por
parte da sociedade Norte Americana mostraram-se presentes. Havia o questionamento
dos desenhos que estruturam as HQs, uma vez que não eram considerados “Arte”, havia
também o questionamento da gramática presente nos textos das HQs, os leitores de HQs
eram considerados incultos, além de haver a preocupação dos leitores se prenderem a
uma “literatura barata e pobre” e não se interessarem e contato com as grandes obras da
literatura. Essas críticas às HQs ganham força com o lançamento do livro intitulado
Sedução dos Inocentes (Sedution of the innocent), escrito pelo psiquiatra Frederic
Wetham no ano de 1954.
Muitas vezes partindo de certa interpretação dos escritos da Escola de
Frankfurt 112, em especial, de Adorno e Horkheimer, alguns teóricos entendiam que pelo
consumo estético massificado, as pessoas tenderiam a aderir acriticamente a valores que
são impostos de forma repetida e sedutora, incapacitando-se para superar a alienação,
desta forma contribuindo para reproduzir e perpetuar a ideologia dominante, e por
consequência, a própria estrutura social. Para Adorno, a cultura de massa seria na
verdade uma cultura imposta às massas (ADORNO, 2002, p. 11-13) e o efeito da
indústria cultural seria o de um antiesclarecimento, de um “engodo das massas” que
“impede a formação de indivíduos autônomos, independentes, capazes de julgar e de
decidir conscientemente” (Ibid., p. 17-22).
Contudo este caráter dominador e alienante da indústria cultural, podendo
englobar as HQs, é contestado pelo Umberto Eco em seu livro Apocalípticos e

112
Escola de Frankfurt (em alemão: Frankfurter Schule) refere-se a uma escola de teoria social
interdisciplinar neo-marxista, particularmente associada com o Instituto para Pesquisa Social da
Universidade de Frankfurt. Muitos desses teóricos desta escola entendiam que a tradicional teoria
marxista não poderia explicar adequadamente o desenvolvimento de sociedades capitalistas no século xx.

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Integrados, ele analisa alguns teóricos que discutem sobre mídia de massa. O que ele
aponta como apocalípticos, que são inspirados pela escola de Frankfurt, vão elencar três
estirpes de cultura: a “alta” cultura, consumida pela alta burguesia; a média consumida
por médios ou pequenos burgueses; e a cultura da massa que englobaria os piores
filmes, as HQs e músicas acusadas de serem de baixa qualidade consumidas pelas
classes baixas, como exemplo o rock’n’roll. (ECO, 2006, p. 37). Assim, a cultura de
massas serviria para homogeneizar os seus consumidores uma vez que apresentavam
materiais de fácil compreensão com o intuito de criar cidadãos sem uma visão crítica da
sociedade.
Em contraponto, o que o autor sustenta como os integrados, que enxergariam a
cultura de massas como “um mascaramento ideológico de uma estrutura econômica
(Ibid., p. 43), esses teóricos iriam defender que a cultura de massas não seria típica de
uma sociedade capitalista com cunho dominador, mas um meio democrático onde há a
massificação que teria um poder de alcance maior e não excludente e alienante.
Uma vez apresentado ambos pontos de vista, Eco tenta apontar uma nova
interpretação. O equivoco dos apocalípticos estaria em “pensar que a cultura de massa
seja radicalmente má, justamente por ser um fato industrial, e que hoje se possa
ministrar uma cultura subtraída ao condicionamento industrial” (Ibid., p. 49). Já os
integrados estariam em “afirmar que a multiplicação dos produtos da indústria seja boa
em si, segundo um ideal homeostático do livre mercado, e não deva submeter-se a uma
crítica e a novas orientações” (Ibid., p. 49).
Assim o autor para compreender esta relação parte da seguinte questão,
considerando a estrutura intrínseca da nossa sociedade industrial com a mídia de massa,
qual seria o meio que poderia ser transmitido valores culturais nestes meios de massa?
(Ibid., p. 50).
Assim, para Umberto eco, por mais que os burgueses administrem os meios de
produção dos produtos de massa, não são eles quem idealizam tais produtos, aí então o
papel dos diretores e roteiristas de filmes, romancistas e no caso das HQs os desenhistas
e roteiristas, podendo criar materiais críticos representando o interesse dos membros
desta sociedade. Desta forma é criada uma cadeia de eventos que os grupos econômicos
que a iniciaram não têm mais pleno controle. (Ibid., p. 52).

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Outra crítica que observamos à escola de Frankfurt é a de Habermas, para


compreendermos os apontamentos que o autor faz no tocante aos filósofos alemães
teóricos da indústria cultural, faz-se necessário alguns apontamentos no tocante a sua
teoria da modernidade e como ele enxerga a estruturação social.
Com o intuito de criar uma teoria com finalidade de compreender a sociedade
moderna ocidental, Habermas parte do conceito de descentrações introduzida por Piaget
no contexto educacional de crianças, indicando no sentido de que as sociedades
poderiam ter a capacidade de aprendizado:
[...] superando princípios de organização mais simples e menos eficazes em
favor de princípios novos mais universais, mediantes sucessivas
descentrações [...] A divisão local e internacional do trabalho impõe novas
descentrações, que resultam no planejamento dos processos societários [...] a
consequência dessas permanentes descentrações é um aprendizado coletivo
que traduz em uma capacidade de manejo e direcionamento maior das
formações societárias, em maior diferenciação e autonomização de certas
“esferas” ou subsistemas. (FREITAG, 1995, p. 139-140).
Como indica Bárbara Freitag, para Habermas a “modernidade” tem seu começo
marcado por três episódios históricos sucedidos na Europa: a Reforma Protestante, o
Iluminismo e a Revolução Francesa. Eventos estes que tiveram início na Eupora, mas
exerceram influência em todo mundo abrangendo os séculos XVIII, XIX e XX (Ibid., p.
140).
Além de fazer uma diferenciação importante entre os processos de modernização
e a modernidade cultural, sendo que o primeiro salienta os processos de racionalização
pertinentes aos subsistemas econômicos e políticos, enquanto a segunda enfoca a
autonomização, dentro do denominado “mundo vivido”, ou seja: a moral, a ciência e a
arte (Ibid., p. 140-141).
Ora, o denominado “mundo vivido” engloba todos os integrantes da sociedade,
inclui as suas relações, códigos comunicativos e a cultura em comum. Já que os
sistemas não fazem parte do cotidiano dos integrantes da sociedade, uma vez que é parte
do “mundo vivido”, mas de certa forma os completam, como os exemplos já citados.
No tocante à modernidade cultural, que vai lidar das transformações dentro do
subsistema cultural, havendo “uma diferenciação em três esferas: a científica, a ética e a
estética, e depois a autonomização de cada uma delas; isto é, cada uma passa a
funcionar segundo princípios próprios (Ibid., p.142-143).

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Sendo que na modernidade cada uma dessas esferas sofrem uma especificação
interna. No tocante à arte :
[...] Associações de escritores, feiras de livro, galerias, mercado de arte,
orquestras sinfônicas, etc, coexistem com teorias estéticas de um Walter
Benjamin, Theodor Adorno ou Peter Bürger, que interpretam o fenômeno
artístico da poesia, literatura, escultura, música, etc, desprendidas da lógica
intrínseca das instituições artísticas. (Ibid.,p. 143).
Sendo assim, a autonomização da arte possibilita este desprendimento parcial
gerando o funcionamento com regras autônomas, adaptadas para a sua realidade e suas
necessidades.
Quanto à sua crítica estética da modernidade, Habermas irá entender que no
contexto estético a modernidade estaria superada uma vez que passa a ter um sentido de
moda, que por essência é efêmera. Cria-se então um culto ao novo que “significam em
verdade a idolatração de uma atualidade, que constantemente gera passados
subjetivamente projetados” (HABERMAS, 1984, p. 447 Apud. Ibid., p. 156) 113.
Além de apontar a teoria do Habermas como elitista e conservadora, sendo que
caí no erro de se afastar da realidade que tenta criticar e assim transformar, ora, tem a
intenção de reservar o contato da arte para uma minoria mais erudita, inibindo o contato
das massas já que a transformariam em indústria cultural. E conversadora por tentar
manter a arte autônoma, em sua concepção burguesa de arte pela, impossibilitando a sua
incorporação pela vida das pessoas.
Habermas apresentará maior simpatia pela teoria do Walter Benjamin que irá
denotar um caráter transformador na reprodução técnica da arte, uma vez que a maior
reprodução de materiais culturais, as massas teriam maior acesso às obras de arte
atingindo assim o seu caráter transformador. Transformação esta que não se dá
exclusivamente no contexto fabril, mas também no âmbito da produção artística,
alterando o próprio conceito de obra de arte. Contudo Benjamin ao ver através desse
modo de pensar a estética da modernidade, tem como efeito de seu ponto de vista a
espera de uma salvação messiânica.
Assim, tanto Benjamin quanto Adorno em suas análises irão enxergar a
modernidade como um todo, não dissociando o mundo vivido e sistema da modernidade

113
Citação original indicada como: HABERMAS, Jurgen. 1973 Vorstudien und Erganzungen pur
theorie des kommunikativen Handelns. Frankfurt/M, Suhrkamp Verlag. Teoria de laccióon
comunicativa: complementos y estúdios prévios. Madrid; Cátedra, 1989. (Edição espanhola).

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estética de uma forma geral. Como se o campo estético, o estado e a economia não
funcionassem de forma independente.
No tocante às HQs, o que Habermas indica em relação à arte é pertinente no
sentido de que esta autonomização ocorre, seja por meios de uma linguagem específica
para os quadrinhos, ou na especificação interna: convenções de quadrinhos, prêmios
exclusivos à indústria das HQs, cursos voltados à formações de novos profissionais da
área. E por mais que sempre haja o risco de uma instrumentalização dos conteúdos, até
porque os produtos culturais veiculados através da mídia não negam o seu caráter
comercial, ainda há a produção com caráter crítico a sociedade.
Alguns autores vão defender os quadrinhos como uma forma de literatura, no
intuito de exaltar o potencial artístico dos quadrinhos como obra de arte, será inclusive
criado uma nova modalidade de HQ as Graphic Novels, modalidade inaugurada com
Um contrato com Deus de Will Eisner, lançada no ano de 1978. Que o próprio autor faz
comparação com as HQ’s mais antigas:
[...]Para uma geração mais antiga, os quadrinhos estavam limitados a
narrativas breves ou a episódios de curta duração, mas de muita ação. Na
verdade, supunha-se que oi leitor buscava nas histórias em quadrinhos
informações visuais instantâneas, como nas tiras de jornais, ou experiência
visual de natureza sensorial, como nos quadrinhos de fantasia. Entre 1940 e
início de 1960, a indústria achava que o perfil do leitor de história em
quadrinhos era o de uma “criança de 10 anos, do interior”. Um adulto ler
histórias em quadrinhos era considerado sinal de pouca inteligência. As
editoras não estimulavam nem apoiavam nada que fugisse a essa visão
estereotipada do leitor [...] em meados do século XX, os artistas seqüenciais
se voltaram para as obras longas genericamente chamadas de graphic novels
(um termo que pode abarcar tanto livros de não ficção como obras
genuinamente romanescas) [...] tanto o mercado como a postura de autores e
leitores mudaram bastante desde o final dos anos 1970. O crescimento e a
aceitação cada vez maiores das graphic novels podem ser atribuídos à opção
dos criadores por temas abrangentes e relevantes e à constante inovação em
sua abordagem. (EISNER, 2010 p. 148-149).
Will Eisner que além de ser famoso pela sua publicação autoral nos quadrinhos,
foi uma dos maiores defensores dos quadrinhos como forma de arte, além de seus
trabalhos teóricos sobre produção de HQs. As Hqs, para o autor seria a principal forma

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de arte sequencial, que existiria desde as pinturas nas cavernas mas contemplaria,
também, a fotografia, a animação e o cinema.
O autor destaca que em comparação às outras formas de arte sequenciais, as Hqs
sofreriam uma desvantagem, uma vez que não contempla a ação transmitida de forma
plena, como acontece no cinema ou animação, por exemplo. Assim, o leitor tem de
fazer o preenchimento das lacunas criadas entre um quadro e outro, além de exercitar
suas capacidades interpretativas e verbais, já que o leitor se depara com imagens e texto
e precisa utilizar de conhecimentos prévios para poder realizar uma leitura plena da HQ
(Ibid., p. 20).
Além de argumentar a importância do controle pelo autor da HQ tanto do roteiro
quanto da arte, desta forma o autor tem pleno domínio da produção, evitando ecos de
comunicação (Id., 2008, p.159). Contudo esta perspectiva, apesar de fornecer uma
possibilidade mais autoral na produção de HQs, e criticar o modelo de produção das
grandes editoras estadunidenses 114, ela acaba por excluir roteiristas que não tem
domínio técnico para desenhar os quadrinhos.
Outro teórico das Hqs com trabalho bastante emblemático no âmbito dos
quadrinhos é o Scott McCloud que em Desvendando os quadrinhos (MCCLOUD,
2005) vai expressar um caráter inovador, uma vez que ele introduz ao leitor conceito
sobre HQs utilizando a linguagem dos quadrinhos para refletir sobre enquadramento,
passagem de tempo, estilos gráficos, conceito de arte, utilização das cores e como o
autor pode utilizar destes elementos para trabalhar suas histórias. Irá também apontar
uma definição para as HQs “imagens pictóricas e outras justapostas em seqüência
deliberada destinadas a transmitir informações e/ou a produzir uma resposta no
espectador” (McCLOUD: 2005, P. 9). Definindo, então a diferença dos quadrinhos com
outros produtos gráficos, como os desenhos animados e as charges, por exemplo.
Em “A Novela Gráfica” Santiago Garcia (GARCIA, op. Cit.), argumenta que
nos últimos 20 anos o termo graphic novel tem sido utilizado pelos autores e pelas
editoras para dar uma distinção aos seus produtos, denominando então um determinado
grupo de trabalho, concepção e abordagem que já existiam nas HQs. Segregando
inclusive o mercado editorial, no qual as Comic books (no Brasil tem o título de revistas

114
Modelo de produção que acaba dividindo as funções na produção das HQs, delimitando o espaço para
cada profissional: um responsável pelo roteiro, arte, arte final, cores, arte da capa, o editor, etc. Isso só no
tocante à idealização da HQ, sem contar a impressão distribuição, etc.

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em quadrinhos, ou o popular termo “gibi” 115) tem sua venda mais direcionada para as
bancas de jornal enquanto as Graphic Novels tem sua venda direcionada para livrarias,
já acabam tendo uma quantidade de páginas superior e também acabamento da edição
melhor trabalhado, e assim automaticamente tem preços mais elevados do que as HQs
tradicionais que não possuem este tratamento editorial, o que acaba diferenciando o
público consumidor uma vez que por questões econômicas e sociais ambos espaços,
geralmente, são freqüentados por públicos distintos.
Tal posicionamento tem maior repercussão depois que Neil Gaiman e Charles
Vess Ganharam o World Fantasy Award no ano de 1991 116 na categoria de short
story 117 por uma edição de “Sandman” denominada “A Midsummer Night’s Dream”. E
também Art Spielgman ganhou em 1992 118 o prêmio Pulitzer por sua obra “Maus”,
publicado entre 1980 e 1991, HQ biográfica que narra a luta de seu pai para sobreviver
o Holocausto. Prêmios estes que até então eram destinados exclusivamente às obras
literárias.
Tal diferenciação entre modelos de HQs não se dá somente no tocante à formato,
locais de vendas e materiais de impressão, é criado assim um nicho consumidor
diferenciado. Assim, nos últimos vinte anos devido a essas alterações na forma a qual as
pessoas enxergam as HQs, para muitos elas deixam de ser uma expressão cultural
inferior, sendo elevada, no caso de algumas obras, ao status de Arte. Arte aqui
representando não somente como atividades humanas em um sentido mais amplo, mas
sim Arte no sentido mais exaltado, que podemos ver o ápice desta expressão a partir do
momento que alguns museus começam a expor HQs em suas galerias. Tal qualificação
se dá não somente pelo caráter estético das obras, mas também pela transmissão dos
pensamentos ou críticas à uma época ou sociedade.
As HQs, assim como outras formas de representações culturais, acabam
expressando visões de mundo e mensagens ao seu leitor. Portanto, as HQs podem ser de

115
Em “A Guerra dos Gibis” Gonçalo Junior esclarece que o termo Gibi é popularizado por causa de
uma famosa revista semanal criada por Roberto Marinho e 1939. Nesse trabalho faz uma pesquisa
jornalística narrando os conflitos, dificuldades e estratégias políticas que resultaram da formação do
mercado editorial brasileiro de HQ’s em 1933, além de relatar a censura e preconceito que as HQ’s
sofreram até o ano de 1964.
116
Como pode-se averiguar em: 1991 Winners and Nominees. World Fantasy Awards. Disponível em: <
http://www.worldfantasy.org/awards/1991.html >. Acesso em: 20. Ago.2015.
117
Tradução livre: história curta ou conto.
118
Conforme pode-se constatar em: 1992 The Winners and Finalists. The Pulitzer. Disponível em:<
http://www.pulitzer.org/awards/1992 >. Acesso em: 20 ago. 2015.

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140

grande valia para os historiadores, e outros pesquisadores, que queiram compreender


determinadas relações sociais e culturais de um determinado período histórico. HQs que
em um primeiro olhar não pareçam tão eficientes nessa função, como as HQs de ficção
científica, terror, super heróis ou mesmo tiras cômicas, podem ser utilizadas como
objeto de pesquisa, e através de uma pesquisa contendo os métodos apropriados, pode-
se conseguir resultados expressivos.
Mas como utilizar HQs como documento histórico? Alguns historiadores já
fazem das HQs como documento de análise, uma exemplo é o caso de Carlos André
Krakhecke que utiliza de HQs, Watchmen e Batman o Cavaleiro das Trevas para
compreender o contexto da guerra fria nos anos de 1980 (KRAKHECKE, 2007, p. 02) e
consegue demonstrar como o contexto social da época influenciou e é refletido nas
páginas dos quadrinhos. Contudo, como aponta Marcos Saliba ao discorrer sobre a
utilização de fontes audiovisuais e fônicas:
[...]Todo documento, incluindo os documentos de natureza audiovisual, deve
ser analisado a partir de uma crítica sistemática que dê conta de seu
estabelecimento como gente histórica (datação, autoria, condições de
elaboração, condições histórica do seu “testemunho” e do seu conteúdo
(potencial informativo sobre um evento ou um processo histórico) [...] o caso
do documento audiovisual, essa é uma questão-chave. Nesse tipo de fonte
histórica, sua linguagem não-escrita foi vista inicialmente como “objetiva” ou
neutra” (NAPOLITANO In: PINSKY, 2005, p. 266).
Mesmo não se tratando do mesmo tipo de fonte, que é retratado neste trabalho,
as reflexões do Marcos Napolitano se mostram relevantes, desde que com a devida
adaptação, pois além de ser classificado junto ao cinema como narrativa gráfica, tanto
HQ quanto o cinema vão trabalhar com imagens e palavras em sua linguagem. Tendo
também em comum a ambientação, angulação e enquadramento da imagem expressada
além da expressão dos personagens pertencentes à narrativa.
Nesse sentido há a indicação por parte do autor em identificar os elementos
narrativos ou alegóricos, fazendo uma descrição ampla dos planos e das cenas. Além da
análise das escolhas do diretor, tanto no que foi escolhido quanto o que ficou fora da
obra (Ibid., p. 274-275). Procedimentos estse que podem ser adequados às HQs, uma
vez que tais análises além de importantes se fazem necessárias no contexto de avaliação.
Além de tais levantamentos e questionamentos há a interpretação do formato e
da linguagem escolhidos pelo autor para retratar a narração intencionada. Ora, quem

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produziu, para quem produziu, em que ano produziu, quem era o público alvo, como o
autor contou sua narração, o que o autor queria dizer e o que ele queria alcançar com
sua a sua obra e também qual a recepção dos leitores? Todas estas questões são
importantes para a análise histórica de uma HQ.
Sendo assim, além da compreensão do que representam as HQs para a
sociedade, e da sua linguagem, o contexto sociopolítico em que a HQ foi produzida se
faz necessária para sua análise e compreensão, uma vez que se trata de um material com
forte posicionamento político contra o governo vigente na época de sua produção e
publicação.

BIBLIOGRAFIA
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“UMA COISA PUXA A OUTRA”: IDENTIDADE, HUMOR E OS


TRÊS EIXOS DA VIDA CAIPIRA EM UM PAGODE DE VIOLA
Diogo Silva Manoel (Mestrando em História – Unesp/Assis) 119
Orientador: Dra. Fabiana Lopes da Cunha (Unesp/Assis/Ourinhos)
PALAVRAS-CHAVE: IDENTIDADE CULTURAL; MÚSICA POPULAR; CULTURA CAIPIRA

Iniciar um discurso com intuito de privilegiar a relação entre conhecimento


histórico e conhecimento musical não é uma missão simples. É um trajeto permeado por
contingências; uma incursão recheada de percalços teórico-metodológicos já que se trata
de um campo de pesquisa que neste momento ainda pode ser classificado como
incipiente. Talvez tal argumento venha ser refutado por procedentes da área. Porém,
qualquer estudioso debruçado em fonogramas, utilizando-os como fonte documental e
objeto de estudo tem noção de que ainda estamos no início de uma trajetória acadêmica
no Brasil.
Muito se tem feito nos últimos anos e a década de 1990 foi fecunda para
historiografia que entrelaça esses dois campos. Na história da música popular, parte
integrante da história social, um elemento figura como gema do trabalho do historiador:
a canção. Verso e música fazem da canção um documento notável.
Edgard Morin 120 (2003), em um de seus precisos ensaios, refere-se à canção como uma
tal desconhecida. Mas desconhecida de quem? Dos seus receptores? Pois não. A
provocação do autor é referente a utilização da canção como objeto de pesquisa para as
ciências humanas e sociais. Sendo assim, o pesquisador que iniciar um itinerário,
certamente perceberá que há um campo de estudo em pleno processo de maturação.
No ensaio em questão datado no ano 1965, Morin incita o estudo da canção como
fenômeno das ciências sociais. Percebendo a falta de olhares para tal elemento, o autor
justificava a não apropriação desse fenômeno devido características frívolas 121
apontadas por acadêmicos da época. No mesmo texto, o autor aponta a ausência de
historiadores da canção. Vale ressaltar que estamos falando de questões pertinentes ao

119
Mestrando no programa de pós-graduação em História e Sociedade da Unesp campus Assis. Membro
do grupo de pesquisa científica História e Música da Unesp campus Franca.
120
Morin, E. “ Canção, essa desconhecida”.
121
Idem, p. 135.

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início da segunda metade do século passado que não deixam de ser atuais dadas as
devidas proporções e avanços no campo científico até o momento.
Há um vertiginoso crescimento da produção acadêmica relativa ao enlace entre
história e música em dias atuais. Apesar de recente e de certo modo incipiente, a
produção científica na área está permitindo a consolidação do ramo. Conforme a
pesquisa de Silvano Baia (2011), 122 é no início da década de 1970 que temos os
primeiros estudos provenientes de programas de pós-graduação que priorizam a música
popular como objeto de pesquisa principal. Baia constata o continuo avanço dessa
produção até o fim da década de 1990, indicando que auge desta produção científica
ocorrera durante a primeira década do século XXI. Em linhas gerais, no início dos anos
1970 ocorre a instauração do campo de estudo no Brasil, campo esse que se consolida
na década 1990 e está chegando à sua plenitude. Temos na obra “Música popular: um
tema em debate” de José Ramos Tinhorão, 123 lançada editorialmente em 1966
simbolizada como marco inicial de uma produção sobre música popular amparada em
bases científicas. 124
Luiz Tatit (2003) assevera que a canção popular se configura como a maior
expressão cultural brasileira. Afirmação veemente de fato. De maneira mais enfática e
até ousada, Marcos Napolitano (2005) aponta que o Brasil é uma das maiores usinas
sonoras no planeta. Sabe-se que isso é plenamente possível.
Num país com grande produção, disseminação e recepção do elemento canção
como bem cultural simbólico, a história social volta seu olhar para esse distinto objeto.
Para esta exposição não convém traçar um longo relato da história da canção popular no
Brasil. Inicia-se partindo das premissas que a canção é fonte passível de análise na
tentativa de elucidar processos pouco recorrentes que nem sempre são levantados pela
historiografia. 125 A inserção no campo de estudo e o acompanhamento da produção
científica decorrente dele corrobora mais ainda com o fato de que a canção transparece
mudanças sociais e culturais. Explorar a canção proporcionou novos olhares para
fenômenos sociais. 126 O que se pretende para essa explanação é demonstrar de forma
analítica como um uma única canção exprime e retrata a nuances da vida em sociedade

122
A historiografia da música popular no Brasil (1971‐1999), p.15
123
TINHORÃO, 2002
124
BAIA, 2011
125
MORAES, 2000
126
NAPOLITANO, 2005

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em determinado espaço e lugar no tempo. Para tanto, a aproximação científica que


possuímos com a “civilização caipira” e sua música, tendo como pano de fundo o Brasil
rural do século XX será o ponto de partida. Antes disso, convém citar uma “escola”
científica que norteia nosso trabalho e fomenta apropriação do universo sonoro-musical
como objeto de estudo: os Estudos Culturais. De prelúdio sociológico, cultural studies
“discutiu e desenvolveu teorias exclusivamente em torno da música popular, deixando
marcas importantes nos estudos musicais”. 127 O diálogo das questões multiculturais
durante o século XX focaliza a preocupação em elucidar questões referentes as posições
de sujeito ou identidades engendradas nos ajustes sociais. Os Estudos Culturais, área
interdisciplinar de pesquisa científica que possui berço britânico é decorrência da
chamada pós-modernidade para Ciências. Um dos grandes objetivos dessa escola foi o
de pensar as posições de sujeito na considerada pós-modernidade.
Pós-modernidade é um conceito que não pode ser aplicado efetivamente na
conjuntura do Brasil no século XX. Entende-se que no Brasil do século XX ainda está-
se vivendo aspectos da Modernidade. A condição de colônia, o processo de
independência tardio e a República proclamada no fim do século XIX faz do Brasil do
século XX um Estado onde a tríade característica da modernidade está em
desenvolvimento; ou seja, a concepção de nação, democracia e avanços tecnológicos
ainda estão em processo maturação. Exemplo deste processo seria o fato de
apresentarmos uma canção como fonte/objeto que fora veiculada no ano de 1979,
período em que vigorava a ditadura militar no país. Em linhas gerais, o Brasil ainda está
em processo de democratização. Desde 1889, alternamos governos militares, ditaduras,
um breve período democrático e o recorte histórico que nossa fonte/objeto proporciona
remonta aos últimos anos do governo autoritário militar.
Conforme aponta José de Souza Martins (2010) em um importante estudo feito
sobre a sociedade brasileira, nossa modernidade fora condenada pela escravização da
terra. “O cativeiro da terra é a matriz estrutural e histórica da sociedade que somos hoje”
(MARTINS, 2010, p.10). A união entre terra e capital atrasou nossa entrada no mundo
capitalista e essa transição ocorrera de forma diferente de outras sociedades. É claro que
a terra é o elemento principal na vida de homens livres, assim como é a sociedade rural.

127
MORAES, 2013, p. 17.

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Também se compreende que o campo é o cerne da cultura caipira e isso transparece no


cancioneiro caipira e sertanejo desde seus primeiros registros fonográficos. 128
Somado a isso, também nos interessa as posições de sujeito que se formaram em
circunstância sociais, econômicas e políticas no cenário brasileiro durante a década de
1970 para essa análise. Sendo mais preciso, interessa-nos uma identidade rural,
vinculada ao interior do país que popularmente é conhecida como identidade caipira.
A produção acadêmica sobre a temática rural e seus habitantes é extensa e significativa.
Dentre elas, temos no estudo sociológico sobre o caipira paulista de Antonio Candido
um grande paradigma. No clássico “Os Parceiros do Rio Bonito”, Candido faz um
seminal estudo sobre agrupamentos de caipiras no interior do estado de São Paulo no
século XX. Através de uma investigação pautada por meio de métodos antropológicos e
sociológicos, seu objetivo foi o de examinar a cultura tradicional paulista, seus modos
de vida e suas relações com o meio onde vivem. Precisamente, o autor fez um estudo na
região do município de Bofete-SP. A imersão nos modos de vida dessa "civilização
caipira”, ou como define Candido, “civilização rústica” faz de suas inferências uma
fonte cabal nos estudos pertinentes ao caipira e ruralidade. Candido constata algo que
define como sobrevivência dentro dos “mínimos vitais”. Os sustentáculos básicos da
vida do homem rural são pautados por três eixos: trabalho, religião e lazer. Tal relação
do habitante do campo com essas bases é decisiva para compreender as posições de
sujeitos constituídas na conjuntura de um Brasil rural no período histórico em questão.
Inseridos nesses eixos principais, encontramos a característica essencial da cultura
caipira e “suas identidades”: a noção de pertencimento. 129 Candido pontua que “esta é a
estrutura fundamental da sociabilidade caipira, consistindo no agrupamento de algumas
ou muitas famílias, mais ou menos vinculadas pelo sentimento de localidade, pela
convivência, práticas de auxílio mútuo e pelas atividades lúdico-religiosas”
(CANDIDO, 2010, p.76). Por meio de sua pesquisa, o autor sugere que pensar através
desses três eixos é uma melhor maneira de compreender a vida dos habitantes do
interior nas configurações sociais, políticas e econômicas do período. Óbvio que são
premissas pertinentemente adotadas ao revisitar o Brasil rural e a cultura paulista

128
Para mais informações sobre a atividade fonográfica no Brasil, verificar a tese de Eduardo Vicente,
“Da vitrola ao iPod” que fora recentemente publicada editorialmente.
129
HALL,2013

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Após ponderar tais questões, cabe agora acrescentar o elemento documental que
vem congregar os componentes dessa análise. Mas antes de falar da canção em si, temos
que falar de quem a compôs e quem a interpreta. José Dias Nunes, ou como foi
perpetuamente conhecido: Tião Carreiro, foi um artista representativo, interlocutor da
vida de uma população rural e urbana. Tião possui números expressivos para um artista
brasileiro. Dono de uma produção de 70 álbuns incluindo 78 e 45 rotações, lançados no
período que se estende entre 1956 até 1996. 130 Uma carreira longa certamente
viabilizada por notório talento e criatividade.
Conforme suas próprias palavras, Tião afirmava saber executar oitocentas modas
de violas por meio apenas da memória 131. Ele é a grande personificação do músico
caipira do século XX apesar de durante toda sua carreira ter se auto intitulado como
músico sertanejo. Tião é mineiro de nascimento, mas foi criado no interior do estado de
São Paulo. Autêntico trabalhador rural, desenvolveu aptidão inata para música,
especialmente para tocar a viola. É atribuída a Tião Carreiro a criação de um
“subgênero”, o conhecido pagode caipira ou pagode de viola. Em linhas gerais, o
pagode de viola é uma variante mais refinada dentro dos gêneros caipiras executados na
viola. Com propriedade de violeiro e pesquisador, Ivan Vilela discorre sobre o pagode:

Tião carreiro, a partir da síntese de dois ritmos caipiras, o cururu e o


recortado, criou uma nova batida, o pagode caipira. Há controvérsias quanto
à sua criação, mas nossas pesquisas e depoimentos de músicos da época nos
levam a crer que Tião Carreiro foi o primeiro a utilizá-la. (VILELA, 2011, p
95)

De maneira técnica, Ivan Vilela ilustra a criação do músico. Considera-se Tião


Carreiro como a expressão máxima, o ícone maior da música caipira e sertaneja. O mais
notável até então. Antes de expor aqui a poesia do pagode de viola que será analisado,
convém explanar de maneira sucinta questões sobre o método aplicado.
Sobre a aplicação de tais métodos, é pertinente ressaltar a afirmação de Vinci de
Moraes, que confere ao pesquisador deste campo a possibilidade de “criar seus próprios

130
Dicionário Cravo Albin de música da música popular brasileira. Acessado em 03/03/2015.
http://www.dicionariompb.com.br/tiao-carreiro/discografia
131
Entrevista com Tião Carreiro na TV CULTURA. Acessado em 07/03/2015.
https://www.youtube.com/watch?v=MXySsRzq4xA

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critérios, balizas e limites na manipulação da documentação” (MORAES, 2000, p. 210).


Durante um tempo, a preocupação inicial dos pesquisadores da área pairava
primeiramente sobre a biografia do artista. Outro foco comum era concentrar as
atenções apenas na obra musical em si.
Dentre outras possibilidades de análise, opta-se por pensar um Brasil que está na
transição do rural para o urbano, onde a modernidade está se estabelecendo para
entrelaçar o verso do cancioneiro caipira com o tempo histórico em que fora veiculado.
Por termos como preocupação questões como a identidade cultural, etnicidade e
movimentos sociais, temas que interessam aos pesquisadores oriundos do campo, opta-
se por interrogar a letra da canção somada a sua audição na tentativa de desvelar as
nuances da cultura caipira por meio do documento sonoro. Todo esse percurso delineia-
se ao relacionar os conceitos mencionados ao nosso objeto/fonte. O método aqui é
essencial. Após a audição analisa-se a letra da canção. É o verso que interrogamos.
Apesar da aparente clareza que transmite o objeto canção como bem simbólico é
necessário saber questiona-la. Em se tratando de música sertaneja de raiz de origem
caipira, é claro que não podemos no restringir apenas ao método de pesquisa
mencionado acima e se faz necessário que questões musicológicas também sejam
salientadas. Nesse caso, trata-se deu genuíno pagode caipira, acompanhado de viola,
violão e dueto e vozes figurando como elementos centrais. Dada essas noções
introdutórias, ponderaremos o que o texto literário do documento abaixo nos revela:

O machado sem o cabo não bota mata no chão


Comandante sem soldado não forma seu batalhão
Sem bagunça sem baderna, quero ver minha nação
Uma coisa puxa outra, vai aqui minha opinião
Traidor da minha pátria, não merece meu perdão
Sem o Policial na rua, não trabalha o escrivão
Sem Juiz sem Delegado, não existe a prisão
O Juiz e o Delegado faz a lei entrar em ação
Uma coisa puxa outra, vai aqui minha opinião
O malandro vira santo, quando o advogado é bom
Sem o animal de raça não existe exposição
Sem disputa e sem torneio, não existe campeão
Sem boiada e sem tropa, não tem festa do peão

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Uma coisa puxa outra, vai aqui minha opinião


O rodeio de Barretos dá um show de tradição
Sem o braço do caboclo, não existe produção
Não tem soja não tem trigo, nem arroz e nem feijão
Sem auxílio da lavoura, não vai nada pro fogão
Uma coisa puxa outra, vai aqui minha opinião
Que seria da cidade sem ajuda do sertão?
Sem trabalho e sem luta, a gente não ganha o pão
Sem preguiça e sem moleza, a gente vira patrão
Pra quem gosta de moleza, eu dou sopa de algodão
Uma coisa puxa outra, vai aqui minha opinião
Todos que vivem na sombra, derramam o suor no chão

Pagode de viola veiculado em fonograma no ano de 1979, composição de Tião


Carreiro, Lourival dos Santos e Claudio Balestro, retirado do álbum “Pagodes vol 2”,
interpretado por Tião Carreiro e Pardinho. O ideal é fazer uma prévia audição da canção
para que o som aguce os sentidos e a experiência interpretativa possa ser ampla.
Após fazer a audição, nota-se que os vocábulos possuem acentuado “erre”
retroflexo, sotaque típico das populações habitantes do interior paulista. Essa
característica de pronúncia é evidente em toda sua obra fonográfica. É uma
característica étnica influente pois se apresenta de fácil reconhecimento, proporcionando
identificação imediata com os receptores. Unido a este elemento, a aliteração é
empregada no poema em versos que retratam coisas da vida e do cotidiano. O modo de
falar próprio do caipira é um dos elementos por onde se estabelece a identificação. O
idioma 132 se apresenta como um dos componentes principais para o desenvolvimento de
uma identidade que em nosso caso se trata de uma questão regional/local. Essa variação
regional da língua portuguesa falada entre os habitantes rurais e do interior do estado é
uma das certidões da cultura caipira.
Indo adiante, pautar-nos-emos por meio da proposta evidenciada por Antonio
Candido e vamos indagar o documento partindo dos eixos da vida caipira. A
identificação de questões pertinentes ao trabalho rural é bem clara na composição. A
menção aqui é feita utilizando um arquétipo do mundo rural brasileiro: o caboclo. Focar
na terminologia geraria um trabalho a parte, porém, importa-nos compreender o caboclo

132
Benedict Anderson constata isso em seu clássico estudo “Comunidades imaginas”.

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como o sinônimo de caipira e de trabalhador rural desde os tempos do Brasil colonial. A


menção ao caboclo está diretamente ligada a questão do trabalho na lavoura. Dentro dos
mínimos vitais, o amanho da terra representa o eixo de maior importância devido a
questão da sobrevivência. Carlos Brandão, estudioso do caipira paulista, pontua que:
“ciclos agrícolas entremeia outros: o das festas religiosas do campesinato e de sua vida
social dentro e fora do âmbito da comunidade [...]” (BRANDÃO, 1983, p. 77). Ainda
no eixo do trabalho rural, um verso da canção faz menção a boiada e a tropa. Esses
termos se conectam diretamente com outra figura importante do universo rural: o
tropeiro. Responsável pela criação e doma de animais selvagens, os tropeiros são figuras
fundamentais no universo rural principalmente pela sua atividade mercantil. 133 A
criação de mulas foi severamente importante para o escoamento da produção no campo
até fim da primeira metade do século passado. Com a escassez de caminhos transitáveis,
as mulas e cavalos eram as únicas formas de deslocamento no Brasil rural.
Adiante, temos o eixo da religiosidade como elemento de grande significação
para as populações do interior. A fé cristã é protagonista. Porém, mediante a análise
feita, há menção na obra musical de Tião que associam outras religiões ao universo
sertanejo como é o caso de cultos afrodescendentes. Para essa análise, é oportuno
pontuar o cristianismo de orientação católica como um dos componentes que vai gerir a
vida caipira. A fé sempre fora um conforto e seu apego ajudava a suportar a dificuldade
da vida no campo. Outro fator importante destacar e a relação do eixo religião com o
eixo lazer. Ambos se confundem pois na vida caipira, todo ritual religioso e
acompanhado de uma celebração, ou seja, uma festa. A cada dia santo, há um ritual
religioso que na sequência é acompanhado por festejos com teor profano animadas pelo
violeiro. É nas festas de bairros rurais 134 do interior do estado que o lazer do caipira
aflora.
No exemplo dessa canção, o lazer está mais claro que a questão da religiosidade.
Especificamente, a menção feita ao tradicional rodeio da cidade Barretos relaciona-se
com diversão e entretenimento, sendo a festa do peão um símbolo do lazer e da vida
interiorana. Não convém para este trabalho aprofundar na questão dos rodeios. O que

133
FRANCO, 2012.
134
O conceito de bairro rural foi salientado primeiramente por Antonio Candido. Posteriormente, Maria
Isaura Pereira de Queiroz desenvolveu um estudo importante sobre o tema na obra “Bairros Rurais
Paulista ”.

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tem se notado recentemente é uma ligação muito forte entre os rodeios e as exposições
agropecuárias. 135 É recorrente associar rodeios com exposições agropecuárias pois elas
unem o lazer com a tecnologia empregada na atividade agrícola e pecuária,
consequência da expansão econômica dos grandes proprietários de terras. De fato, sabe-
se que as festas do peão têm uma ligação com esse tipo evento. O que tange nossa
análise é especificamente a concepção de festa popular. Ela congrega em si os eixos da
vida caipira - celebração do trabalho, convívio social e evocação de elementos
religiosos. Em uma festa do peão, o evento principal está na doma de animais, ou seja,
no rodeio. Ocorre que a união do rodeio com apresentações musicais em torno de uma
exposição agropecuária voltada para o universo rural configura-se em um momento de
lazer para as populações do interior do Estado de São Paulo. Isso é evidenciado na
canção com a simples referência feita no verso acima. Retomando ao eixo religiosidade
caipira é preciso descortinar uma importante menção feita e que está implícita no
documento. Sabe-se que os peões de rodeio são devotos da santa Nossa Senhora
Aparecida, considerada padroeira do Brasil e protetora dos domadores de animais.
Usualmente, durante a abertura dos rodeios são prestadas homenagens à santa e há um
momento destinado à prece em que os peões fazem pedidos de proteção na competição
que ocorre durante o evento. Afinal, domar bois de quase uma tonelada é um tanto
quanto arriscado e perigoso.
Por fim, de modo conciso discorreremos sobre uma característica identitária
muito recorrente no cancioneiro caipira e sertanejo: o humor. Pensar o humor como uma
invenção histórica em conjunção com processos sociais e políticos no Brasil é o
caminho apontado por Elias Thomé Saliba (2002). A relação entre a comicidade e o
universo caipira remonta o encadeamento entre Modernidade num ambiente rural em
transição para o urbano. A figura do caipira como sujeito matuto, xucro e desprovido de
civilidade fora extremamente explorada com tom de zombaria. O personagem criado
por Monteiro Lobato 136 para retratar o trabalhador rural paulista conotou para o escárnio
simbólico e estigmatizou o habitante do sertão. Independente do contexto discutido,
observa-se o humor como um traço da identidade do povo brasileiro em si. Talvez seja

135
Para aprofundamento no tema, verificar o artigo “A festa na exposição agropecuária de Araçatuba/SP”,
trabalho decorrente da dissertação de mestrado intitulada “As Exposições Agropecuárias e o Poder Local
em Araçatuba/SP” de autoria do pesquisador César Gomes Silva.
136
LOBATO, 2005

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uma forma de ruptura mediante a dificuldade da vida em um país agrário, de longa


extensão territorial com modernização tardia.
Cornélio Pires, personagem importante para cultura caipira por se tratar de um
grande explorador e divulgador do universo rural, foi o artífice do humor caipira no
modo que se conhece atualmente. Pires fora então “o primeiro a demonstrar interesse
prático na divulgação do caipira e sua criatividade autêntica[...]”. 137 Ele foi o
responsável por mostrar para a capital da província quem era seu habitante do interior.
Percebendo a satirização que fora acometido o caipira, Pires enaltece as qualidades e
defeitos do matuto recorrendo a comicidade, notabilizando assim a importância dessa
cultura. Com as apresentações de sua “Turma Caipira”, suas anedotas e músicas
entretinham plateias na capital paulista. Os lançamentos dos discos caipiras por ele
concebidos contribuíram para endossar o elo do risível com a cultura rural.Na canção
aqui apresentada podemos descortinar elementos que proporcionam o teor cômico. O
tom do humor apresentado é singelo e até pode ser considerado virtuoso. O sotaque
caipira e seu acentuado “erre” retroflexo já mencionado em conjunção com elementos
básicos do cotidiano proporcionam o riso valendo-se de aliterações abrangidas nos
versos da canção. O estribilho repetitivo reforça o teor anedótico. Grosso modo, a letra
da canção parece-nos um chiste que fora musicado.
Após sucintas considerações partindo da relação científica entre história e
música, procuramos desvelar a aplicabilidade da canção com objetivos científicos. A
música materializada em fonograma apresentou-se como notável recurso para revisitar o
passado. A ampliação do horizonte historiográfico deste campo desde meados da década
de 1990 possibilitou a elaboração da reflexão aqui apresentada. A interpretação da
extensa obra fonográfica de Tião Carreiro que figura como nossa fonte documental e
objeto de estudo é o maior desafio investigativo proposto. Crê-se que Tião Carreiro
musicalizou os modos e os meios da vida caipira ao longo de seus mais de 40 anos de
carreira e por isso a investigação de sua obra se faz tão oportuna. Ele possui índices
excepcionais para um artista brasileiro mediante a extensa produção veiculada pela
atividade fonográfica no país.
Fundamentando-se pelo cânone estudo de Antonio Candido, pesquisa atemporal e
paradigmática que esmiuçou a cultura das populações do interior paulista, partimos de

137
FERRETE, 1985, p.30.

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152

suas inferências para perscrutar o que as canções caipiras/sertanejas revelam sobre a


importante cultura dos habitantes dos rincões de nossa província. Os vínculos afetivos
com o ambiente rural transparecem nas canções do referido artista. Constata-se no
pagode caipira escolhido a subsistência do vínculo étnico que representa uma identidade
regional ligada à atividade laboral, religiosidade e lazer. Como já fora citado no
presente trabalho, Candido indica que pensar os três eixos citados é a melhor maneira de
captar a essência do caipira. Essa comunhão de elementos reforça uma identidade
assumida como caipira mesmo em meados da década de 1970. Utilizando apenas uma
canção, de forma concisa, tencionou-se pensar a identidade cultural caipira e paulista
indagando este bem cultural para legitimar o atrelamento de ambas. O proposto aqui foi
demonstrar como estão evidenciados elementos identitários que retratam os modos de
vida do caipira paulista pautado pela conceituação referida. Portando, nos eixos
trabalho, religião e lazer, “uma coisa puxa a outra” de forma cíclica. Tal conceito
permite a ilustração da cultura caipira recorrendo à música popular em fonograma,
valendo-se dela como maior expressão cultural nacional, expressão essa que
proporcionou uma profusa rede de sociabilidades afim de compreender as
transformações sociais se aplicadas com fins científicos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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2011.
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1983.
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a transformação dos seus meios de vida. 11ª ed. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul,
2010.
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Instituto Nacional de Música, Divisão de Música Popular, 1985
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. 4. Ed.
São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1997.
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DP&A Editora, 2011.

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Horizonte: Editora UFMG, 2013
HALL, Stuart. Quem precisa da identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). In:
Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Traduções: Tomaz
Tadeu da Silva. 5ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2000.
LOBATO, Monteiro. Urupês. São Paulo: Brasiliense, 2005.
MARTINS, José de Souza. Capitalismo e tradicionalismo: estudos sobres as
contradições da sociedade agrária no Brasil. São Paulo: Pioneira, 1975
MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. São Paulo: Contexto, 2010.
MORAES, J. G. Vinci. “História e Música: a canção popular e o conhecimento
histórico”. IN: Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 20, n. 39, 2000, p. 203-
221
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edição. São Paulo: Cortez, 2003.
NAPOLITANO, Marcos. História e Música. São Paulo, Ed. Autêntica, 2001.
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bairro rural – cidade. São Paulo: Liv. Duas Cidades, 1973
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brasileira: da Belle Époque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo: Companhia
das Letras, 2002.
TATIT, Luiz. O século da canção. Cotia: Ateliê Editorial, 2008
TINHORÃO, José Ramos. Música popular: um tema em debate. 3. ed. São Paulo:
Ed. 34, 1997.
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Brasil. 1. Ed. São Paulo: Alameda, 2014.
VILELA, Ivan. Cantando a própria história. Tese de Doutorado. São Paulo, Instituto
de Psicologia da Universidade de São Paulo, 2011
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SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). In: Identidade e diferença: a perspectiva dos
estudos culturais. Traduções: Tomaz Tadeu da Silva. 5ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2000.

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NOTÍCIAS DE ESPORTE NA CIDADE DE LONDRINA: JORNAL


PARANÁ-NORTE (1934-1953)
Gabriel da Costa Modenuti(PROIC/UEL)
Tony Honorato (UEL)
PALAVRAS-CHAVE: HISTÓRIA. LONDRINA. JORNAL. ESPORTE.

INTRODUÇÃO

O município de Londrina, emancipado politicamente em 1934, sofreu diversas


modificações de cunho estrutural, econômico e sociocultural durante sua história que,
em dezembro de 2014, completou 80 anos. Um elemento de sua realidade se dá quando
analisamos as estatísticas de crescimento demográfico 138 da cidade que, na década de
1940, contava apenas com alguns milhares de moradores, geralmente vindos de Minas
Gerais ou São Paulo e alguns imigrantes (japoneses, italianos, ingleses, alemães) e que,
oitenta anos depois, aglomera aproximadamente 550 mil habitantes. A partir disso,
supomos que a cidade atraiu pessoas em busca da riqueza de terras férteis, trazendo
consigo aspectos da cultura de seus estados/países de origem, passando a influenciar a
construção de uma identidade local e a serem influenciados pela cidade, em constante
crescimento.
Nas décadas iniciais, a população de Londrina contou com o Jornal Paraná-
Norte, que propagandeava as potencialidades das terras para a agricultura na região,
com o intuito de atrair compradores, sobretudo para o cultivo da cafeicultura.
O Paraná-Norte foi um dos primeiros jornais a circular na cidade de Londrina,
representando importante meio de comunicação local. Entrou em circulação em 1934,
sendo publicado o primeiro exemplar em 10 de outubro, deixou de ser editado em 1953.
No início sua periodicidade era semanal e a impressão era elaborada pelo Sr. Isolírio
Correia Oliveira, com tiragem de 500 exemplares. Já nos últimos anos, passou a uma
periodicidade diária. (CUNHA & HADDAD, 1997)
Segundo Boni (2006), o Paraná-Norte atuou fortemente na cidade de Londrina,
tendo influenciado importantes obras como a construção da Santa Casa de Misericórdia

138
Prefeitura de Londrina – IBGE.

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de Londrina e servido como veículo de propaganda das terras londrinenses em estados


como Minas Gerais e São Paulo.
Embora imbricado por essa questão da propaganda de terras férteis, no Paraná-
Norte também circulavam notíciais relacionadas às praticas culturais, entre elas os
festejos voltados ao lazer, os cultos religiosos e as manifestações esportivas, que são o
tema desta pesquisa. Portanto, temos como propósito identificar, por meio do Jornal
Paraná-Norte (1934-1953), quais foram as atividades esportivas praticadas na cidade.
No que tange ao conceito de esporte utilizado para reconhecer as notícias
relacionadas ao esporte, tomamos como inspiração os constructos de Norbert Elias e
Eric Dunning em seu livro A busca da excitação (1992). Segundo Elias & Dunning
(1992), a gênese do Esporte moderno se deu na Inglaterra, país que deu origem a
maioria dos esportes como são conhecidos no mundo contemporâneo, se deu entre as
elites sociais e, paulatinamente, se propagou por toda a Europa. O esporte mais
popularizado, na perspectiva de Norbert Elias, foi o futebol, por conta de sua
característica essencialmente popular, sem a necessidade de grandes ferramenteas para
sua realização, o que fez com que passasse a ser praticado ao redor do mundo.
Para que possamos entender melhor o conceito de esporte moderno, Elias &
Dunning (1992) buscaram diferenciá-lo do esporte dito tradicional, pontuando algumas
diferenças, que são: o fato de que, para o moderno, foram estabelecidos locais próprios
para a prática, como estádios, ginásios, entre outros e, no segundo, a prática era
realizada em locais de atividades cotidianas que, por um determinado período de tempo,
eram destituídos de suas funções primárias. Nesse sentido, um trecho do livro torna-se
pertinente:
O desporto – qualquer que seja – é uma actividade de grupo
organizada, centrada num confronto entre, pelo menos, duas partes.
Exige um certo tipo de esforço físico. Realiza-se de acordo com regras
conhecidas, que definem os limites da violência que são autorizados,
incluindo aqueles que definem se a força física pode ser totalmente
aplicada. (ELIAS & DUNNING, 1992; p.230)

MÉTODO
A escolha de um períodico impresso como fonte de nossa pesquisa se deu
através de leituras prévias, nas quais os autores buscavam legitimar o uso desse tipo

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específico de fonte para a pesquisa histórica. Nesse sentido, sob a influência, em


especial, dos franceses da terceira geração da Escola dos Annales, como Jacques Le
Goff, houve a proposição de um novo conceito de pesquisa no que diz respeito às
diferentes fontes, entre elas a imprensa periódica, que fornece informações acerca de
atividades cotidianas e corriqueiras. Neste contexto, os historiadores almejaram,
sobretudo, reconstituir histórias por meio da perspectiva dos “vencidos”, das práticas
cotidianas, das “migalhas”, da microcultura e, também, a partir da perspectiva inglesa
denominada History from below. (LUCA, 2006; p.113)
Já enquanto fonte de pesquisa histórica, os jornais fornecem subsídios para
análise de temáticas diferenciadas, entre elas as relacionadas à política, ao cotidiano, ao
social, ao cultural (CRUZ & PEIXOTO, 2007), bem como ao esporte e outras práticas
culturais.
Segundo Cruz & Peixoto (2007), alguns cuidados devem ser tomados no
processo de pesquisa histórica utilizando a imprensa como fonte, dentre eles, estão a
preocupação em contextualizar o entendimento das notícias e informações fornecidas
pela imprensa, a busca em compreender a imprensa como linguagem constitutiva do
social, ou seja, como força ativa na sociedade, capaz de moldar pensamentos de acordo
com intenções de cunho político e/ou comercial.
Cruz & Peixoto (2007) propõem também que a imprensa possui uma
historicidade com articulações amplas, ou seja, a imprensa não se situa acima do mundo
ao falar dele, e, a partir daí, torna-se necessária a presença de pesquisadores com
elevado senso crítico a fim de contextualizar e perceber possíveis intenções que mudem
o foco principal do acontecimento narrado nas páginas.
Sendo assim, “É preciso pensar sua inserção histórica enquanto força ativa da
vida moderna, muito mais ingrediente do processo do que registro dos acontecimentos,
atuando na constituição dos nossos modos de vida, perspectivas e consciência
histórica.” (CRUZ & PEIXOTO, 2007, p. 257)
Quanto a análise do Jornal, durante a pesquisa, observando fragmentos da
história do periódico, logo sua participação na (in)formação do homem londrinense,
pudemos perceber suas potencialidades de pesquisa em temas diversos, entre eles o de
colonização de terras, política, progresso da cidade, instalação de instituições públicas e
práticas socioculturais. (TRIGUEIROS FILHO & TRIGUEIROS NETO, 1991)

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Circularam 1.154 edições do Jornal Paraná-Norte no período entre 1934 e 1953.


Entretanto, somente 1.028 estão disponíveis para consulta. O Jornal está acondicionado
no arquivo da Biblioteca do Museu Histórico de Londrina “Pe. Carlos Weiss” e no
Centro de Documentação e Pesquisa Histórica da Universidade Estadual de Londrina
(CDPH/UEL). No primeiro os exemplares estão disponíveis no formato impresso e
digital. No CDPH os exemplares estão microfilmados. A coleção totaliza 1.154
exemplares a serem consultados.
Quanto aos procedimentos metodológicos, nossa pesquisa se desenvolveu em
quatro momentos distintos e interligados, a saber:
1º) Mapeamento das referências e leitura analítica: foram realizadas leituras
acerca do tema, constituindo uma fundamentação teórico-metodológica para a
pesquisa;
2º) Coleta das notícias: foram realizadas leituras de cada edição do Jornal, na
íntegra, visou-se delinear as notícias relacionadas ao tema esporte;
3º) Registro dos dados: foram realizadas as transcrições das notícias para uma
ficha catalográfica (HONORATO & PIRES, 2014);
4º) Análise dos dados: momento de reflexão sobre as notícias encontradas, na
tentativa de sistematizar as práticas esportivas na cidade de Londrina.

RESULTADOS E DISCUSSÕES
Durante a análise do Jornal, nos deparamos com diversas notícias que, embora
esparsas, nos demonstraram a prática de diversas atividades esportivas no contexto da
cidade, entre 1934 e 1953. Foram catalogadas 84 notícias sobre manifestações de
esporte na cidade de Londrina, divididas entre as relacionadas ao futebol, que totalizam
52 notícias; às agremiações Esportivas, que totalizam 12 notícias; ao cestobol
(basquete), que totalizam 11 notícias e às modalidades individuais, que totalizam 12
notícias.
Nesse sentido, optamos por pontuar, inicialmente, as principais agremiações
esportivas, que surgiram nas páginas do Jornal, e que possivelmente podem ter tido
relação com o desenvolvimento do esporte – amador e profissional – na localidade.
Desde 1934, podemos destacar o Esporte Clube Londrina e, em 1941, o primeiro
estádio da cidade, conhecido como “Vitorino Gonçalves Dias”, muito embora não

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possamos desenvolver uma análise sistemática sobre as agremiações responsáveis pelo


desenvolvemento do esporte em Londrina.
A partir desse primeiro delineamento metodológico, optamos por subdividir as
modalidades encontradas no decorrer das pesquisas em categorias, tornando mais
objetiva e específica a percepção das práticas esportivas.
Sendo assim, começaremos dissertando sobre as notícias encontradas que
envolvem o futebol. Desde o início da análise, o futebol foi recorrente entre os
jornalistas. Pudemos perceber, além da realização de partidas, entre clubes locais ou
não, notícias que diziam respeito à criação de ligas, federações e clubes.
As primeiras notícias geralmente tratavam de jogos amistosos entre equipes de
Londrina e região e, posteriormente, começam a surgir novas equipes, ligadas ao
surgimento das partidas profissionais. Nesse excerto, observamos como o Jornal
retratou uma pratida ocorrida em 11 de novembro de 1934, em Sertanópolis:

“FUTEBOL – Conforme fora noticiado dias atráz, deverá


realisar-se hoje na próxima villa de Sertanopolis, um encontro
amistoso de futebol, entre as turmas de Londrina e Sertanopolis.
Em torno desse encontro, existe uma grande espectativa entre o
mundo esportivo interessado.” (Paraná-Norte, 11/11/1934; p.1)

Os primeiros times da região a surgirem nas páginas do Jornal foram o Londrina,


a equipe de Nova Dantzig (atual Cambé), Sertanópolis, Bandeirantes e Jatahy. Somente
a partir de 1938 temos a notícias da vinda de quadros de cidades distantes para disputar
partidas contra o E.C. Londrina, como a vinda do C.A. Ferroviário, de Curitiba, em 20
de fevereiro de 1938, para participar de um evento esportivo que contou com diversas
modalidades e o Clube Atlético Ourinhense, em uma partida futebolística de caráter
comemorativo que aconteceu no dia 28 de Abril de 1940. Vale ressaltar que, nesse
momento da pesquisa, nenhuma notícia tratava das características inerentes à prática
esportiva, ou seja, em momento algum foi publicado no Jornal se os jogadores eram
amadores ou profissionais.
Embora não possamos estabelecer um padrão, pudemos perceber ao longo da
pesquisa que, de alguma maneira, dirigentes dos clubes da região incentivavam a
participação popular nos jogos, como exemplo o caso um jogo realizado no dia 18 de

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agosto de 1940 em que as mulheres obtiveram entrada franca e das modificações


estruturais no campo local, o “Vitorino Gonçalves Dias”, promovidas pelos próprios
integrantes do Clube, que sempre convidavam quadros de cidades próximas para
partidas amistosas.
Partindo da premissa que os periódicos existem para satisfazer os interesses dos
leitores, podemos deduzir que o interesse popular em torno do futebol era uma
crescente. Exemplo dessa possibilidade é o fato de terem divulgado, em 18 de janeiro de
1942, os resultados do Campeonato Sul-Americano de Futebol, cujo objetivo era
informar os londrinenses sobre os resultados de um evento de caráter internacional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sobre o Futebol na cidade de Londrina, pudemos perceber que, em constante
crescimento, ele foi se tornando cada vez mais popular, na cidade. Londrina, nesse
sentido, seguiu o caminho de inúmeras outras cidades do nosso país, na época, e o
futebol continua sendo, até hoje, o esporte mais popular da nossa região, vide a atenção
dada pela sociedade ao certame de 18 de outubro de 2015, quando o Londrina Esporte
Clube (LEC) conseguiu novamente o acesso a Série B do Campeonato Brasileiro de
Futebol.
Temos também o basquete, que se tornou relevante, para os Jornalistas, a partir
de 1941, surgindo como um elemento diversificado para a prática esportiva,
constituindo uma nova opção para os moradores, ideia muito bem retratada pelo Jornal,
que diversas vezes veiculou notícias sobre a criação de quadras e divulgou as regras do
esporte, com o intuito de formar os citadinos para essa nova prática.
Um acontecimento que nos chamou atenção foi que, em 05 de abril de 1942, o
Jornal publicou uma reportagem grande com as regras do jogo de basquete. A seguir,
um fragmento da notícia:
“Sendo o esporte de bola ao cesto o mais disseminado em nossa
cidade, com real aceitação por parte dos nossos esportistas,
julguei conveniente transcrever as regras sob as quaes deve ser
praticado, devendo os meus caros leitores ir acompanhando a
sua publicação aos domingos, nesta secção do Paraná-Norte”
(Paraná-Norte, 05/04/1942; p.4)

A partir desse momento, as notícias envolvendo o basquete se tornaram um

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pouco mais frequentes no Jornal. Mesmo o futebol, por via de regra, constituíndo a
modalidade mais retratada nas páginas do Jornal e, possivelmente, mais praticada pelos
moradores da cidade de Londrina, outras modalidades também tinham seu espaço.
Além do basquete e do futebol, outras modalidades surgiram, pontualmente, no
noticiário, entre elas estão o Tênis, o Turfe, o Boliche, o Pingue-ponge, o Boxe e o
Atletismo. Vale ressaltar que, apesar de terem aparecido nas páginas do Jornal, apenas a
análise desse periódico não nos permite maiores informações acerca da prática dessas
modalidades no contexto de Londrina.
Em suma, as práticas esportivas podem ter representado uma opção de modo de
vida polido para os citadinos, nos anos iniciais do Município de Londrina. No entanto,
considerando a perda de algumas edições do Jornal, além de sua periodicidade semanal,
torna-se difícil estabelecer alguma conclusão com determinada rigidez metodológica.

REFERÊNCIAS

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Norte na construção da Santa Casa e o esporte nas ondas do rádio: duas
experiências históricas da imprensa londrinense. Londrina: Planográfica, 2010.
CRUZ, H. F.; PEIXOTO, M. R. C. Na oficina do historiador: conversar sobre história e
imprensa. Projeto História, São Paulo, n. 35, p. 253-270, 2007. Disponível em:
http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/2221. Acesso em: 06 de dez. 2010.
DE LUCA, T. R. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, C. B.
Fontes Impressas. São Paulo: Contexto 2006. p. 111-154.
ELIAS, N; DUNNING, E. A busca da Excitação. Lisboa: Difel, 1992.
GEBARA, A. Sociologia configuracional: as emoções e o lazer. In: BRUNHNS, H. T.
(Org.). Lazer e ciências sociais: diálogos pertinentes. São Paulo: Chronos, 2002. p.75-
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HONORATO, T ; PIRES, A. G. M. G. . Prácticas y representaciones del deporte y del
ocio según el periódico Paraná Norte (1934-1937). Educacion Fisica y Deporte, v. 33,
p. 15-30, 2014. Disponível em:
http://aprendeenlinea.udea.edu.co/revistas/index.php/educacionfisicaydeporte/article/vie
w/16157 . Acesso em: 18 de out. 2015.

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JORNAL Paraná-Norte (1934 a 1953). Localizado no acervo do CDPH (Centro de


Documentação e Pesquisa Histórica) da Universidade Estadual de Londrina e no Museu
Histórico de Londrina “Pe. Carlos Weiss”.
TRIGUEIROS FILHO, M.; TRIGUEIROS NETO, M. História da Imprensa de
Londrina: do baú do jornalista.1ª Edição. Londrina: 1991.
CUNHA, C. M; HADDAD, R.R. Catálogo da coleção do Jornal “Paraná-Norte”.
Londrina: Editora UEL, 1997.
MELO, V.A (Org.). Os sports e as cidades brasileiras: transição dos séculos XIX e
XX. Rio de Janeiro: Apicuri, 2010.
LUCENA, R. F. O esporte na cidade. Campinas: Editora autores associados, 2001.

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RELAÇÕES DE GÊNERO EM O ASNO DE OURO DE APULEIO:


REPRESENTAÇÕES NA LITERATURA LATINA DO SÉCULO
II D.C.
Lahís Moreno Gibelato - Mestranda em História (Unesp-Assis)
Orientadora: Dra. Andrea Lúcia Dorini de Oliveira Rossi
PALAVRAS-CHAVE: ANTIGUIDADE; LITERATURA, RELAÇÕES DE GÊNERO

O texto que se segue visa apresentar algumas questões que permeiam uma
pesquisa a nível de mestrado que está sendo desenvolvida e resultados parciais
adquiridos a partir de análise das representações de relações de gênero na obra O Asno
de Ouro de Apuleio. A pesquisa se desenvolve acerca do segundo século, entre os anos
de 125 e 170 d.C. período aproximado em que Apuleio viveu e publicou suas obras.
Com base nas histórias contadas pelo protagonista da obra e pelos personagens aos
quais dá voz é possível encontrar representações da sociedade antiga a que o autor
pertence. Compreende-se que o potencial de pesquisa das representações vai muito além
de apenas figuras e personagens individualizadas, mas integram um complexo campo de
relações observado e representado pelo autor da narrativa.
Uma profunda renovação em relação à questionamentos teóricos das pesquisas
da História se iniciou a partir do final do século XX (LE GOFF, 2001, p. 25). Antigos
paradigmas, bem como os fundamentos epistemológicos da historiografia tradicional
começam a receber críticas de teorias emergentes que propõe novas forma de conceber
o estudo do passado – como a Escola dos Annales, a Teoria Crítica Marxista, a corrente
do Desconstrutivismo. Os novos modelos de interpretação não mais enfatizam a
reprodução e a homogeneidade das sociedades, enquanto que a subjetividade se torna
uma preocupação, em detrimento das pretensas visões imparciais e objetivas, ou de
narrativas neutras.
Apuleio viveu em um período que é marcado por uma sociedade extremamente
diversificada (PARRA, 2010), em que o Império Romano ainda passava por mudanças
políticas, econômicas e que chegou a alcançar a constituição da família e a condição da
mulher (CARVALHO; GONÇALVES, 1993). As transformações se iniciaram desde o
século III a.C., quando o Império entrou em contanto com a cultura helenística e teve
um desenvolvimento ainda maior pelas expansões territoriais dos séculos II e I a.C.

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(GRIMAL, 1995). É possível conjeturar que esse autor romano-africano não estava
alheio ao processo de transformações cujo Império passava, e muitas das
transformações podem ser encontradas de forma crítica em seus escritos, especialmente
em O Asno de Ouro.
Entre as mudanças sociais que podem sem encontradas na narrativa satírica de
Apuleio, alguns temas ganham destaque, como questões sobre a religião, as leis
romanas, tanto no âmbito criminal, quanto do matrimônio e divórcio. É extenso o
número de estudos que se voltam às questões religiosas da obra, especialmente ao culto
de Isis, essa deusa egípcia que chega ao mundo romano já helenizada, mas que assume
uma conotação mistérica apenas a partir do primeiro século d.C., como apresentado no
trabalho do historiador italiano Ennio Sanzi (2006), que apresenta uma visão geral da
presença dos cultos orientais e da magia no mundo helenístico-romano, bem como, o
culto mistérico de Isis em O Asno de Ouro. A brasileira Vanessa Fantacussi (2006),
também se volta para a narrativa apuleiana a fim de estudar a transformação do culto
isíaco a partir da sua entrada no universo romano, segundo a autora, é importante o
estudo desta obra, especialmente pelo fato de ser uma narrativa a partir da visão de um
provinciano, o que difere das principais fontes escritas existentes. Segundo Fidel
Pascua Vílchez (2011) as obras de Apuleio são de extrema importância para a
compreensão dos cultos mistéricos antigos e de práticas consideradas mágicas, pois
trazem possibilidades de estudos de cultos e práticas que eram secretas e restritas apenas
aos praticantes iniciados. Vincent Hunink (2000) defende que a forte apologia à religião
mistérica de Isis da obra O Asno de Ouro seria uma reação ao crescimento do
Cristianismo no norte da África no início do segundo século. Apuleio usaria de
terminologias comuns em confrontos religiosos entre cristãos e pagãos naquele período,
e que indicariam uma reação ao Cristianismo (HUNINK, 2000, p. 80). O autor examina
os traços anti-cristãos em todos os tratados filosóficos e discursos de Apuleio, e conclui
que seriam melhor vistos como “pró-religião romana”.
Estudiosos como Robert Karl Bohm (1973) e Brigitte B. Libby (2011), se
debruçam acerca da “conversão” do protagonista no último livro. Os dez primeiros
livros de O asno de Ouro são cheios de aventuras pitorescas de cunho sexual, mágico e
violência, que incluem feitiçaria, necromancia, banditismo, comédia divina, assassinato,
incesto, adultério e monstruosas bestialidades; enquanto que, no livro XI Apuleio deixa

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de apresentar todos esses assuntos polêmicos e de usar o tom cômico de até então
(LIBBY, 2011, p. 301). Apesar de ambos discordarem de estudiosos que
tradicionalmente defendem uma mudança abrupta a partir da conversão do protagonista
no livro XI – visto quase como uma reflexão póstuma, ou seja, sem estar ligado à
proposta da narrativa e possivelmente anexada tardiamente (BOHM, 1973, p. 228) –
também não chegam a uma conclusão em comum. Enquanto Bohm (1973) acredita que
seja uma narrativa completamente voltada à religiosidade e que apresentada de forma
séria e devotadamente religiosa uma conversão a cultos mistéricos que Apuleio tinha
conhecimento; Libby (2011, 301) defende uma interpretação que prefere enxergar a
própria conversão de Lúcio como satírica.
Estudos sobre a temática do casamento também pode ter nas obras de Apuleio
riquíssimas fontes, já que a obra O Asno de Ouro representa diversos casais em
diferentes histórias. Segundo Josiah Osgood (2006, p. 416) o complexo campo de
referências no contexto do Império Romano em expansão do século II d. C. propicia a
compreensão de como as províncias estavam se adaptando aos costumes tradicionais
romanos, enquanto os cidadãos estavam em busca da retomada dos costumes e
moralidade da antiga Roma. Segundo sua análise o casamento cum manus – forma mais
tradicional de casamento em que a guarda da esposa passava do pater famílias para o
marido – estava se tornando menos frequente em sua sociedade, em comparação a
modelos mais simples – sine manus – que se proliferavam. As críticas de Apuleio ficam
evidentes, segundo Osgood (2006), nas formas de representação de matrimônio e do
divórcio, ao apresentar indícios das leis matrimoniais nas passagens da obra. Ao final
conclui a representação satírica de Apuleio indica a sua reprovação diante da
diminuição da prática do modelo cum manu, que consideraria o mais correto.
Não apenas o campo das leis matrimoniais que se estudiosos encontraram
possibilidades na obra O Asno de Ouro. Richard Summers (1970) busca estudar o
sistema de justiça romana a partir da análise desta obra específica de Apuleio. Segundo
o autor, os exemplos de atividades criminosas e de punição não aparecem ao acaso na
história, apenas no intuito de divertir o leitor, mas pelo contrário, se estabelecem como
uma sutil acusação de Apuleio ao sistema de justiça existe nas províncias do Império
Romano em seu período (SUMMERS, 1970, p. 511). Summers apresenta o autor
romano-africano como um profundo conhecedor das técnicas e leis romanas e do

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sistema criminal (SUMMERS, 1970, p. 514, 516-517), bem como o contexto por ele
vivenciado sendo marcado por uma profunda centralização do poder, tanto na mão dos
princepis, no centro do império, quanto de seus subordinados escolhidos nas províncias
(SUMMERS, 1970, p. 511-512). Em sua análise, destaca pequenos “erros de lógica”
presentes nas passagens que fazem referência às leis ou ao sistema jurídico, e que
seriam, além de intencionais, objetos da sátira do autor. Apuleio apresentaria aos seus
leitores que as injustiças na narrativa, assim como em sua sociedade, não precisariam
durar para sempre. O problema central, e as críticas, não seriam destinados à legislação
em si, mas na sua aplicação na sociedade que o envolve, isto é, na província, através de
indivíduos designados pelo centro do império e que estariam mais passíveis seus
interesses. As sátiras dos casos apresentados na obra seriam, portanto, uma defesa do
retorno da prática da mos maiorum dos tempos passados, quando os próprios
provincianos, e não magistrados romanos tinham competência sobre seus cidadãos e
sobre os crimes cometidos dentro dos limites territoriais (SUMMERS, 1970, p. 530).
Ou seja, Apuleio estaria defendendo que a justiça nas províncias só poderia ser obtida se
retornassem à administração da justiça criminal às mãos de responsáveis municipais, ao
invés de insistir em um papel primário do governador provincial com o suporte da
autoridade do imperador. Isto significa que além de críticas a práticas sociais, é possível
verificar a crítica da aplicação das próprias leis romanas e o sistema jurídico do contexto
a que é contemporâneo.
Fica evidente a diversidade de possibilidades que essa narrativa da obra O Asno
de Ouro dispõe a cerca das representações da Antiguidade no contexto do autor.
Entretanto, grande parte dos estudos encontradas estão em um âmbito internacional.
Ainda é pouco o número de pesquisas no Brasil, na área de História, sobre as obras de
Apuleio em geral, e especialmente sobre O Asno de Ouro. Semíramis Corsi Silva, em
sua dissertação de mestrado, posteriormente publicado no livro Magia Poder no
Império Romano: a Apologia de Apuleio (2012), desenvolve um estudo sobre o
processo jurídico após a acusação do uso de práticas mágicas cujo o próprio Apuleio
passou, através do discurso de autodefesa que fora publicado posteriormente. Em seu
livro, a autora analisa as acusações e os argumentos de Apuleio diante de um
julgamento que poderia leva-lo a morte se condenado, segundo às leis locais.

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As novas abordagens dos estudos da História Antiga não estão desvencilhadas


das transformações que as Ciências Humanas em geral estão passando. Os
questionamentos sociais e culturais no mundo todo foram impulsionados pelo
aparecimento de novas vozes que denunciam desigualdades sociais e começam a
problematizar os modelos tradicionais de dominação de toda a sociedade
contemporânea. Dentre as novas abordagens da historiografia, encontra-se os estudos de
gênero emergindo nas décadas de 1960 e 1970, posterior as buscas feministas e da
História das Mulheres em colocar a mulher enquanto sujeito histórico (SCOTT, 1992, p.
75). A década de 1980 foi a vez dos estudos brasileiros se voltarem também a essa
temática.
Apesar da História das Mulheres questionar a hierarquia de gênero na
historiografia enquanto priorizava a “história do homem”, em oposição à “história da
mulher”, Joan Scott (1994) afirma que essa tendência analítica acabou gerando um
efeito contrário ao esperado, quando tratava da história das mulheres em separado, já
que apenas confirmava a presença feminina na história, sem alterar a sua importância.
Diante dessas dificuldades que o conceito de gênero foi criado. Para Maria
Izilda Matos (1998, p. 68), o gênero como categoria analítica ajuda a superar a
dicotomia entre a “vitimização” e a “heroicização”, que de qualquer modo incorporava
as mulheres no interior de uma narrativa pronta. É necessário superar a dicotomia pré-
estabelecida que deixa de lado a composição histórico-social dos gêneros masculino e
feminino. Portanto, as análises das relações de gênero e das questões que concernem o
feminino e o masculino devem discutidas em confronto uma com a outra (FEITOSA,
2005).
O conceito de gênero é tratado como “[...] o saber a respeito das diferenças
sexuais” por Scott (1994, p. 12). Dessa forma, o termo não deve ser usado de forma
simplista, apenas como sinônimo de “mulheres”, pois esse saber constitui-se como
relativo, isto é, construído a partir das relações de poder entre os gêneros, e que podem
ser histórica e socialmente mutáveis, não sendo, nunca, homogêneas.
Neste estudo, o gênero é utilizado enquanto categoria de análise de modo a
examinar as representações que Apuleio faz das relações de homens e mulheres pela
veia satírica da obra. Esse tema é importante, pois os modelos femininos e masculinos
apresentados em O Asno de Ouro foram escritos por um homem que pertence a um

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contexto específico e não podem ser considerados como uma descrição real do século II
d. C. no Império Romano, mas muito mais como indicativos da visão de mundo de
Apuleio.
Nascido em Madaura (atual Argélia), cidade do norte da África sob o domínio
romano, por volta de 114 e 125 d.C., Apuleio teria morrido no ano 170. Viveu então,
entre os governos dos Imperadores Adriano (117-138 d.C.) e Marco Aurélio (161-180
d.C.). Pertencente à família a de dirigentes de sua cidade, chegou a alcançar o cargo de
seu pai de duúnviro - decurião na cúria (LA ROCCA, 2005, p. 14). Foi educado em
Madaura e a sua alta condição social possibilitou viagens a diversos lugares para
completar sua instrução. Apuleio é, ao lado de Petrônio, um dos mais conhecidos
autores de romance antigo em língua latina, e, infelizmente, sua obra O Asno de Ouro é
o único romance latino que chegou integralmente à atualidade (PARATORE, 1987, p.
815).
O livro trata da história de Lúcio, um moço viajante de alta condição social,
de boa família e de curiosidade infinita, que ao se envolver com a escrava de uma
feiticeira se transforma em um burro e acaba por ser levado por bandidos que faziam um
assalto à casa de seu anfitrião. Ao longo da história o burro Lúcio viaja para várias
cidades, e encontra-se envolto dos mais variados grupos sociais, desde bandidos
salteadores até riquíssimos comerciantes. São narradas muitas histórias, algumas pelo
próprio Lúcio, outras pelos personagens observados pelo protagonista.
A partir dessas histórias é possível analisar as representações feitas pelo autor
sobre o mundo antigo. Leva-se em conta que esses fatos e histórias, assim como as
relações sociais representadas nessa obra, são narrados a partir de uma visão masculina
de um autor de classe social elevada. Entretanto, a obra literária pode ser um
instrumento de grande importância para o estudo das relações sociais no universo da
Antiguidade, pois mesmo sendo de ficção, carregam indícios que permitem a
reconstrução de aspectos culturais dessa sociedade.
A sátira latina surge em um período de mudanças políticas, Segundo Vanessa
Fantacussi (2006, p. 46), ocasionando transformações culturais. Com objetivo ironizar a
sociedade e as mudanças da época, combinam diversos fatores – de cunho político,
econômico, ético, religioso, ideológico entre outros – que compõem e justificam o
produto literário final. Apuleio, sendo “filho de seu século”, como designa Parattore

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(1987, p. 820), não está imune a esse contexto de crítica. Nesse sentido, mesmo que a
história original seja de um autor grego, como destacado por Fergus Millar (1981), o
autor latino compõe sua narrativa e insere personagens e contos a partir de temas e
situações que estão presentes ao seu cotidiano ou que são indicativos de sua visão de
mundo.
Se a narrativa satírica “brinca com os costumes” (SILVA, 2001, p. 52), e
usa o exagero e o estereótipo para criticar características consideradas próprias do
gênero feminino, é possível relacionar estas sátiras aos valores sociais cujo autor
pertence, e que provavelmente são compartilhados com seu público – já que para
garantir o diálogo do autor com seus leitores é preciso que compartilhem os mesmos
conceitos, ao menos parcialmente (SILVA, 2001, p. 40).
Em um dos trechos de O Asno de Ouro, em que é narrada a história da
esposa de um moleiro que tinha comprado o protagonista Lúcio já metamorfoseado em
asno. O protagonista descreve a esposa como detentora de todos os defeitos possíveis:
[...] Pode-se dizer que nenhum vício faltava a essa infame criatura;
pelo contrário, estavam todos reunidos na sua alma, como numa
latrina emporcalhada: ela era cruel e mesquinha, bruta, bêbada,
rebelde, teimosa, avara nas suas torpes rapinas, pródiga nos seus
gastos vergonhosos, inimiga da fé, hostil ao pudor. [...] Sob a
aparência de observâncias vãs, enganava a toda a gente,
principalmente ao mísero marido. Bebia de manhã à noite, e se
prostituía durante o dia (APULEIO, O Asno de Ouro. IX, 14).

Em uma noite em que a mulher havia escondido um amante em casa, o


marido chegou mais cedo ironicamente relatando o adultério que a mulher de um amigo
tinha cometido. Lúcio-asno apresenta seu julgamento sobre a ignorância do moleiro:
“[...] narrou o infortúnio da casa do outro, inconsciente do que se passava na sua”
(APULEIO, O Asno de Ouro. IX, 23). Sendo assim, apesar da esposa ser muito criticada
pela sua má conduta matrimonial, o marido não deixa de criticado por falta de vigilância
quando deixa o adultério florescer.
Lúcio-asno decide, então, interferir nos acontecimentos da casa. Ao ver os
dedos do amante para fora de seu esconderijo, os esmaga com um duro golpe de seu
casco fazendo o jovem ser descoberto ao gritar de dor. Ao descobrir o adultério em sua
própria casa, o moleiro decide vinga-se do amante:
[...] Depois de ter trancado sua mulher em outro cômodo, deitou
sozinho com o jovem e gozou plenamente a doçura de vingar o seu

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himeneu profanado [...] acompanhada de um corretivo cuidadoso,


laçou-o porta a fora O rei dos sedutores, fora do negócio, sem
esperança, com as brancas nádegas magoadas no tratamento suportado
durante a noite, e depois de dia, fugiu acabranhado. O padeiro impôs
logo o divórcio à mulher e expulso-a imediatamente de casa
(APULEIO, O Asno de Ouro. IX, 28).

A escolha do marido traído em subjugar o amante da esposa ao força-lo ao


ato sexual, demonstra uma busca em reestabelecer sua virilidade e honra, assim como
em expulsar a mulher de casa depois de implica-lhe o divórcio, deixando-a sem os
privilégios de um bom casamento.
Segundo Margarida Maria de Carvalho e Ana Tereza Marques Gonçanves
(1993, p. 118), a autonomia feminina não era bem vista por alguns autores do
Principado – como Sêneca, Tácito e Tito Lívio – que criticavam em seus escritos
mulheres que estariam “incontroláveis”, comparando-as e contrapondo-as com esposas
idealizadas dos primeiros tempos de Roma. Essas críticas e as comparações com
modelos de mulheres ideais eram uma tentativa de “moralização da sociedade”, o que
seria visível também em outras leis criadas durante o período do Imperador Augusto (27
a.C.-14 d.C.) que, por sua vez, tinham por finalidade reprimir o adultério, dificultar o
divórcio, favorecer matrimônios entre pessoas do mesmo segmento social e aumentar a
natalidade (CARVALHO; GONÇALVES, 1993, p. 117-118).
Presume-se que Apuleio também partilhava da moral tradicional. Mesmo que
essas mudanças tenham tido início em séculos anteriores, as suas consequências ainda
eram sentidas e criticadas no segundo século. Ainda há uma busca da “moralização” da
sociedade e as virtudes femininas são valorizadas enquanto estereótipos negativos são
exacerbados.
As representações de Apuleio são construídas para condenar
comportamentos que o autor julgava inadequados e que refletem seus “temores”. Isto é,
as representações exageradas dos vícios considerados próprios das mulheres, como o
adultério, a dissimulação, a ganância e a vingança que fazem parte da “perversidade”
feminina destacada, bem como da falta de governo dos homens em relação a essas
mulheres, que são representados como sendo frequente e facilmente manipulados pelas
esposas, pode ser um indício do temor ou incômodo do autor frente às buscas femininas
por uma maior autonomia, sem que fossem constantemente controladas por seus
maridos. A ironia se faz presenta na degradação dos personagens masculinos que não

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enxergam a perversão de suas esposas, como no trecho em que o marido critica a


mulher do vizinho enquanto ainda ignora que passa pela mesma situação. Nesse sentido,
o autor demonstra a necessidade de que homens reestabeleçam a virilidade que lhes é
devida.
Segundo Glaydson J. da Silva (2001, p. 40), “[...] o exagero e a caricatura
denunciam nos textos as intenções dos autores, cujos discursos paródicos são
indicadores de suas visões sobre o mundo”. Entretanto, estes discursos não podem ser
levados a compreensão de um retrato da realidade no mundo antigo, pois não são relatos
fieis da vida cotidiana, e mesmo que haja entre os autores e leitores uma cumplicidade,
que se concretiza no humor (SILVA, 2001, p. 40), a narrativa cômica reflete, apenas, as
preocupações do autor da obra.

REFERÊNCIAS:
FONTE:
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Hanson. London: Loeb classical Library, 2001.
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PERIÓDICOS ILUSTRADOS LUSO-BRASILEIROS DO SÉCULO


XIX: A ILLUSTRAÇÃO LUSO-BRAZILEIRA (1856; 1858-1859).
Lucas Schuab Vieira (Mestrando em História na FCL-UNESP/Assis)
Orientador: José Carlos Barreiro
PALAVRAS CHAVE: HISTÓRIA – IMPRENSA - A ILLUSTRAÇÃO LUSO-BRAZILEIRA

A revista A Illustração Luso-Brazileira publicou 156 exemplares ao longo dos


seus três anos de circulação e foi a primeira de uma série de outras nove publicações
periódicas ilustradas que, também, possuíam o objetivo de serem voltadas para Portugal
e o Brasil. Essas nove publicações possuem em seus títulos esse objetivo de buscar, de
alguma forma, ser para ambos os países, para tanto contaram com a colaboração de
escritores brasileiros (poucos) e portugueses (a maioria). Segundo Mauro Nicola
Póvoas, esses periódicos: “São empreendimentos que abarcam os dois lados do Oceano
Atlântico, numa tentativa de ‘panlusismo’ nem sempre levada a cabo com sucesso”. 139
Serão apresentadas neste texto as publicações periódicas ilustradas feitas para Portugal e
Brasil, com ênfase na revista A Illustração Luso-brazileira. Apresentaremos agora, de
forma sintetizada, um pouco sobre cada um desses empreendimentos periódicos, a
começar pela Revista da Instrução Pública para Portugal e Brasil.
A Revista da Instrução Pública para Portugal e Brasil (1857-1858) teve como
redatores Antonio Feliciano de Castilho (1800-1875) e Luis Felippe Leite. Foi
publicada de julho de 1857 a abril de 1858, em Lisboa. Sua impressão se deu pela
140
Imprensa União Typográphica e media aproximadamente 33 centímetros.
O periódico Revista contemporânea de Portugal e Brasil (1859-1864) foi
fundado por Ernesto Biester (1829-1880), António Xavier de Brederode (1835-1867) e
José Maria de Andrade Ferreira (1823-1875), e, publicado de abril de 1859 a abril de
1864, em Lisboa, pela Typographia do Futuro e media 24 centímetros. Foi uma

139
Nessa afirmação Mauro Nicola Póvoas não se referiu as publicações: Revista de Portugal e Brasil
(1873-1874); Revista da Instrução Pública para Portugal e Brasil (1857-1858); o periódico Brasil-
Portugal (1899-1914); e da Revista contemporânea de Portugal e Brasil (1859-1864). O autor trabalhou
apenas com as outras 05 revistas. PÓVOAS, Mauro Nicola. Um projeto para dois mundos: as ilustrações
luso-brasileiras. In: JUNIOR, Alvaro Santos Simões; CAIRO, Luiz Roberto; RAPUCCI, Cleide Antonia.
(orgs.) Intelectuais e imprensa: aspectos de uma complexa relação. São Paulo: Nankin, 2009. pp. 53- 75.
p. 54.
140
SANTOS, Manuela; RAFAEL, Gina Guedes. (orgs.) Jornais e revistas portugueses do século XIX.
Portugal: Biblioteca Nacional, 1998. V. II.

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174

publicação mensal, inspirou-se na francesa Revue des Deux Mondes e contou com a
colaboração de diversos escritores que já haviam colaborado com a revista A Illustração
Luso-Brazileira. 141
A Revista de Portugal e Brasil foi publicada de outubro de 1873 a setembro de
1874, em Lisboa, pela Imprensa de J. G. Souza Neves, sob a direção de Luciano
Cordeiro e Rodrigo Afonso Pequita e media 29 centímetros. 142
O periódico Brasil-Portugal foi uma publicação quinzenal, publicada em Lisboa,
de fevereiro de 1899 a agosto de 1914 e simpática a causa monárquica. Os diretores
eram Augusto Castilho, Jayme Victor e Lorjó Tavares. Essa publicação divulgou
assuntos diversos e dirigiu-se as elites, sobretudo as residentes no Brasil e nas
colônias. 143
O periódico Os dois mundos: Ilustração para Portugal e Brasil (1877-1881) era
uma revista mensal editada e impressa em Paris e a cada número publicou 16 páginas,
trazendo nelas textos, gravuras 144 e propagandas. Seu proprietário-gerente era Salomão
Sáraga. E sua impressão dava-se na Tipografia Charles Unsinger, 145 com papel de
qualidade. O número avulso era vendido a 300 réis. A revista publicou três volumes, o
primeiro foi publicado de 31 de agosto de 1877 a 31 de julho de 1878, o segundo foi
publicado de maio de 1879 a abril de 1880, o terceiro volume foi publicado de maio de
1880 a abril de 1881. Os três volumes publicaram 12 números por ano. Houve uma
interrupção na publicação de agosto de 1878 a abril de 1879. Os agentes do periódico
foram, para o Brasil, Francisco Gonçalves de Queirós 146 e David Corazzi, 147 para
Portugal. 148
Diversos escritores portugueses colaboraram publicando textos na revista Os
dois mundos: Ilustração para Portugal e Brasil, dentre eles, destacam-se: Antero de
Quental, Guiomar Torresão, Fausto de Azevedo, Almeida d’Eça, Fialho de Almeida,

141
MESQUITA, Pedro Teixeira. Revista Contemporânea de Portugal e Brasil. Hemeroteca Digital.
Lisboa, 2013. Disponível em: <http://hemerotecadigital.cm-
lisboa.pt/FichasHistoricas/RevistaContemporaneadePortugaleBrasil.pdf>. Acesso em: 01 out. 2015.
142
SANTOS, Manuela; RAFAEL, Gina Guedes. op. cit. p. 245.
143
CORREA, Rita. Brasil-Portugal. Hemeroteca Digital. Lisboa, 2009. Disponível em:
<http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/FichasHistoricas/BrasilPortugal.pdf>. Acesso em 12 out. 2015.
144
As gravuras eram litografias e traziam retratos de diversas personalidades, dentre outros temas.
145
Localizada na Rua du Bac, número 83, em Paris.
146
Localizada na Rua da Quitanda, número 78, Rio de Janeiro e, durante um período, Rua da Alfândega,
número 41.
147
Localizada na rua da Atalaia, número 42, em Lisboa.
148
PÓVOAS, Mauro Nicola. Op. cit. p. 59-60, 2009.

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XV Semana de História
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Social
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175

Xavier da Cunha, Mendes Leal, Gervásio Lobato, Joaquim de Araújo, João de Deus,
Bento Morena, Oliveira Martins, Bulhão Pato, Júlio César Machado e Ramalho Ortigão.
Os textos publicados foram de gêneros diversos, como, por exemplo, textos literários,
noticiosos, variedades, comentários de fatos recentes e curiosidades. Essa revista, assim
como A Illustração Luso-brazileira, ambas apresentaram uma proposta, aparentemente
bem definida em termos de ser um empreendimento voltado para Brasil e Portugal,
porém, publicaram poucos textos com a colaboração de escritores brasileiros ou textos
que aludiram diretamente ao Brasil e a realidade do que se passara nesse país. 149
O periódico A Ilustração: Revista Quinzenal para Portugal e Brasil (1884-1892)
era uma revista de alta qualidade gráfica que foi publicada de 05 de maio de 1884 a 1º
de fevereiro de 1892. Das cinco revistas para Portugal e Brasil mencionadas acima, essa
é a que trouxe em suas páginas o maior número de contribuições de escritores
brasileiros. Ao todo a revista publicou 184 exemplares. Essa publicação possui diversas
semelhanças com a revista Os dois mundos: Ilustração para Portugal e Brasil, que se
dão com relação ao local de impressão, as publicidades, o tamanho (40 cm. X 29 cm.), a
parte gráfica, os colaboradores e agentes. Publicou 16 páginas em cada número
contando com diversas ilustrações. Seu diretor era Mariano Pina (1860-1899). Publicou
uma ampla gama temática variando entre textos literários, fatos da atualidade,
biografias, curiosidades, crônicas, etc. Dentre os temas presentes nas gravuras
publicadas (cerca de 10 por número), estão: fotografias, retratos de personalidades,
cenas cotidianas (sobretudo de Paris), desenhos relacionados com fatos da atualidade e
reproduções de quadros diversos. Dentre os escritores portugueses que contribuíram
com a revista encontram-se: Eça de Queirós, Ramalho Ortigão, Antero de Quental,
Eugênio de Castro, dentre outros. Do estrangeiro, sobressaem-se nomes como o francês
Émile Zola e americano Edgar Allan Poe e, dentre os brasileiros sobressaem-se Olavo
Bilac, Luís Murat, Alberto Oliveira, B. Lopes, Luís Guimarães, Raimundo Corrêa,
Medeiros e Albuquerque, que publicaram, em geral, contos, críticas e poemas diversos.
Haviam sido publicadas nessa revista referências diretas a personalidades brasileiras e
homenagens em forma de poemas e dedicatórias a diversos brasileiros. O fim da
publicação ocorreu no dia 1º de fevereiro de 1892 por motivos econômicos como, por

149
Ibidem. p. 60-62, 2009.

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176

exemplo, as diferenças do cambio e a elevação dos direitos pautais sobre trabalhos


tipográficos importados. 150
O periódico A Ilustração de Portugal e Brasil: Semanário Científico, Literário e
Artístico (1885) era uma revista continuadora direta da Ilustracion Ibérica, de
Barcelona. A revista Ilustracion Ibérica foi publicada de 1883 a 1898, era um
semanário literário, científico e artístico editado por Juan Ramón Molinas 151 e dirigida
pelo escritor e crítico de arte Alfredo Opisso i Vynias 152. Devido ao acolhimento desse
periódico espanhol em Portugal a intenção com a criação da revista A Ilustração de
Portugal e Brasil: Semanário Científico, Literário e Artístico 153 foi fazer um periódico
com as mesmas características da publicação espanhola e que alcançasse o mundo
lusófono. O número avulso dessa publicação, vendido em Lisboa, era de 50 réis
enquanto que a assinatura anual (52 números) saia por 2.600 réis. No Brasil o preço
dessa publicação era o dobro do valor cobrado em Portugal. O diretor da revista era o
Gervásio Gonçalves Lobato (1850-1895); o administrador da revista era D. José
154
Sambruno; e o editor, Romão Molinas (1875-1908).
A revista A Ilustração de Portugal e Brasil: Semanário Científico, Literário e
Artístico foi publicada de 03 de janeiro a 28 de março de 1885, medindo 34 por 24
centímetros, totalizou ao longo de toda sua publicação 13 números, todos contendo 16
páginas, em numeração contínua. Dentre os colaboradores portugueses sobressaem-se:
Manuel Barradas, Guiomar Torresão, Júlio César Machado, E. A. Vidal, Eugenio de
Castro, Pedro Vidoeira, Fernando Caldeira, Maximiliano de Azevedo, Augusto
Brochado, Gomes Leal, Jaime Vítor, Alfredo Galis, Abel Acácio, Júlio de Matos,
Gabriel Cláudio, e António da Cunha. E, dentre os brasileiros, sobressai-se Luís
155
Guimarães.
Dessas revistas ilustradas para Portugal e Brasil, A Revista Ilustração Luso-
brasileira (1893) foi a de vida mais curta, tendo circulado apenas 06 números desse
periódico. Seu escritório era localizado na Rua de Maubeuge, número 29, em Paris. Em
150
Ibidem. p. 62-68, 2009.
151
Nascido em 17 de abril de 1875 em Comayagüela, Honduras, e faleceu em 02 de novembro de 1908
em San Salvador, El Salvador.
152
Nascido Tarragona no ano de 1847 e faleceu em Barcelona, em 1924.
153
A revista foi dirigida e administrada em dois endereços, na Rua do Ouro, número 210, 2º, em Lisboa e
no estabelecimento tipográfico de Barnabé Baseda na rua de Villarroel, número 17, em Barcelona
(Espanha).
154
PÓVOAS, Mauro Nicola. Op. cit. p. 68-69, 2009.
155
Ibidem. p. 69-70, 2009.

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177

Portugal sua agência ficava na livraria Ferin, localizada na Rua Nova do Almada,
números 70 e 74, em Lisboa. Foram dois os diretores dessa publicação: o artístico, Jorge
Colaço; e o literário, José Barbosa. 156 Os dois números dessa publicação que podem ser
consultados apresentam textos literários. Dentre seus colaboradores sobressaem-se: Luís
Murat, Manuel de Moura e Urbano Duarte. Valemtim Magalhães era o correspondente
literário brasileiro. A revista objetivava o progresso cultural do Brasil e de Portugal,
tendo em vista ser um periódico ilustrado para ambos os países e prometeu
colaborações, literárias e artísticas, realizadas originalmente por brasileiros e
157
portugueses.
Um fato importante com relação à essas publicações é que, exceto as revistas: A
Illustração Luso-Brazileira (1856-1859); Revista de Portugal e Brasil (1873-1874);
Revista da Instrução Pública para Portugal e Brasil (1857-1858); o periódico Brasil-
Portugal (1899-1914); e da Revista contemporânea de Portugal e Brasil (1859-1864).
As demais, apesar de tratarem, sobretudo, de autores, temas e obras diretamente
vinculados à Portugal não podem ser vistas como publicações “portuguesas” ou
“lisboetas”, pois eram impressas ou mantinham seus escritórios em cidades como
Barcelona e Paris. O que, segundo Póvoas, é indicativo, por um lado, da falta de
estrutura e condições técnicas de produção vigentes em Portugal que possibilitassem a
manutenção do padrão gráfico desses periódicos, e, por outro, sinaliza para interferência
de culturas diversificadas no diálogo entre Portugal e Brasil, assim como o fato de
serem impressas em cidades estrangeiras e distantes o que encareciam e dificultavam
ainda mais a vida dessas publicações, o que pode ter influenciado diretamente na pouca
158
duração dessas revistas.
Se considerarmos que o surto de revistas e jornais ilustrados do século XIX
deveu-se à questão da ‘moda’ das gravuras e dos retratos adornando as revistas, para
atingir um público maior, quais foram as preocupações e motivos para a união entre
Portugal e Brasil no título? Tal indagação também fora feita por Mauro Nicola Póvoas,

156
Apenas dois números dessa revista estão disponíveis para pesquisa na BNP (Ano, 1, número 1, 05 de
Jun. d 1893 e o ano 1, número 06, 05 de Out. de 1893) os outros números da revista A Revista Ilustração
Luso-brasileira não podem ser consultados por estarem em mau estado. O exemplar de número 06 tem,
12 páginas e está sob a administração da Sociedade dos Grandes Jornais Ilustrados, localizado na Rua de
Provence, número 40, em Paris e nesse número o diretor literário é Xavier de Carvalho. (PÓVOAS,
Mauro Nicola. Op. cit. p. 71, 2009.)
157
PÓVOAS, Mauro Nicola. Op. cit. p. 71-73, 2009.
158
Ibidem, p. 74, 2009.

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178

o qual apontou alguns questionamentos acerca da referência direta estampada nos títulos
das revistas à Portugal e Brasil e quais teriam sido as motivações que levaram esses
sujeitos a investirem nessas publicações voltadas para os dois países. Dentre os
questionamentos elencados encontram-se: Saudades, sendo assim, do Império que
começava, ao longo do século XIX, lentamente a desmoronar? Nostalgia, por parte de
Portugal, da relação de dominação que mantinha com o Brasil? Tentativa, do outrora
colonizador, de auxiliar a nação aparentemente mais fraca e despreparada, o recém-
criado Brasil? Ou, então, inspiração na união entre duas culturas, entre o ‘antigo’ (o
europeu) e o ‘recente’ (o americano), na direção do que fazia a Revue des Deux
Mondes? 159 Talvez uma, outra, todas ou nenhuma das alternativas. O que de fato
aconteceu foi que o projeto das ‘ilustrações’, assim como de outras publicações
periódicas similares, que trouxeram estampados em seus títulos ‘Brasil’ e ‘Portugal’,
“(...) para os portugueses, se tinha ainda algum ranço político-ideológico, intencionava
levar informação e cultura brasileiras para o leitor português, numa tentativa de
integração (...)”. Essa tentativa de conexão entre ambos os países não obteve fruto ao
longo do século XX, pois o Brasil se afirmou cada vez mais como nação independente e
160
com diversas especialidades.
Essa junção entre as três palavras chaves (Brasil – Portugal – Ilustração) presentes
no cabeçalho dos periódicos, revela-se repleta de significados, no instante em que
evoca, a um só tempo, os inovadores recursos da ilustração, que se espalhavam pelo
mercado editorial europeu, nesse período, e a revista conservadora Revue des Deux
Mondes (1829 e circula até hoje). As novidades introduzidas pelas gravuras e
ilustrações presentes nas publicações em meados do século XIX atraíram “(...) um
público que não era, num primeiro momento, identificado com as práticas de leitura
‘tradicionais’, isto é, aquela que se restringe à decodificação de letras emparelhadas em
linhas e parágrafos”. A Revue des Deux Mondes trazia estampado em seu título a
intermediação entre dois mundos diferentes, o “novo” e o “velho”, o “selvagem” e o
“civilizado”, “(...) de modo que ambos se entendessem mutuamente, sendo sem dúvida

159
Revue des Deux Mondes (Revista dos Dois Mundos) é uma revista francesa sendo uma das mais
antigas a circular pela Europa. Essa revista foi Fundada por Prosper Maurois e Ségur-Dupeyron, seu
primeiro número foi publicado no primeiro dia de agosto de 1829. Charles Buloz comprou a revista em
1831. A revista mudou de título em 1945 e em 1956 ela fundiu-se com a Hommes et Mondes e foi
transformada em uma revista mensal em 1969, diferente de antes quando era bimestral. A publicação
retornou ao seu título original e a ser bimestral em 1982.
160
PÓVOAS, Mauro Nicola. Op. cit. p. 74, 2009.

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uma inspiração para os empreendimentos lusitanos (...)” como, por exemplo, A


Illustração Luso-brazileira, dentre outros. 161 Até porque o que se guardou da revista
francesa é, segundo Ana Luiza Martins: “(...) uma memória que a consagrou como
periódico de superior qualidade, representativo do que havia de melhor no gênero”. 162
Segundo Tania Regina de Luca no século XIX multiplicaram-se, sob diferentes
idiomas, publicações periódicas que se utilizavam em seus títulos do termo “ilustração”
ou “ilustrado”. O progresso da comunicação que se encontrava em curso no século XIX
abriu possibilidades para o desenvolvimento da produção cultural e para o confronto de
saberes. Nesse contexto a produção de revistas e jornais impressos tornava-se uma
possibilidade acessível para os intelectuais, e, segundo a pesquisadora: “(...) o termo
ilustração, também remetia para o ideal, herdado dos filósofos iluministas, de livrar a
humanidade da ignorância e difundir o saber, para o que se contava com a imagem,
arma poderosa propiciada pelo progresso da indústria gráfica”. Nessa conjuntura, a
aproximação entre Portugal e Brasil tornou-se necessária. 163
Fernanda Muller, amparada nos estudos de Pierre Bourdieu, afirma que os
periódicos com essas características, como as apresentadas pelas publicações luso-
brasileiras, foram transformados em veículos de disseminação de ideias nacionalistas e
dirigiam-se, sobretudo, para o Brasil na busca de cumprir com sua função de imprensa,
no sentido em que Pierre Bourdieu a define, isto é:
“(...) travando, sobretudo, uma luta política através da produção do
conhecimento; buscando o reconhecimento pela produção e
reprodução de capital simbólico que expressam notoriedade e
respeitabilidade, afirmando sua autoridade e, por conseguinte,
impondo ou criando condições para difundir e impor o conhecimento
considerado legítimo e verdadeiro do sentido do mundo social, da sua
significação atual e da direção em que vai e deve ir”. 164
Os periódicos sempre desempenharam um papel fundamental na organização de
grupos de intelectuais, na divulgação de ideias, nos combates políticos e literários e na
atuação político-social. Independentemente do tipo de publicação, as quais podiam ser:
revistas ilustradas luxuosas ou não, jornais artesanais, jornais diários de organização

161
PÓVOAS, Mauro Nicola. Op. cit. p. 54, 2009.
162
MARTINS, Ana Luiza. Revistas em revista: imprensa e práticas culturais em tempos de república, São
Paulo (1890-1922). São Paulo: Edusp/Fapesp/Imprensa Oficial do Estado, 2001. p.77.
163
LUCA, Tania Regina de. Revista Ilustração (1884-1892): Notas iniciais de pesquisa. In: BARBOSA,
Socorro de Fatima P. Livros e periódicos nos séculos XVIII e XIX. João Pessoa: Editora da UFPB, 2014,
pp. 209-232. p. 209-210.
164
BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. Oieiras: Celta editora, 1998, p. 165. [Apud.] MÜLLER,
Fernanda. op. cit. p. 257.

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empresarial ou política, suplementos literários ou revistas culturais, dentre outros,


funcionaram como veículos privilegiados por meio dos quais os intelectuais do século
XIX e XX se utilizaram amplamente como arma para vencer as disputas e batalhas nas
quais se encontravam. 165
Essa importância e centralidade do papel desempenhado pelos intelectuais em
seus trabalhos como jornalistas, não era, naturalmente, peculiar do mundo português.
Segundo Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke, os jornalistas, como escritores, e o
jornalismo, como gênero, adquiriram no século XVIII, “(...) uma dignidade que havia
sido prerrogativa dos livros e de seus autores”, a função dos periódicos não era só
informar e entreter, mas também educar atuando com uma função pedagógica no
sentido de suprir a carência de escolas e a falta de livros, ou seja, “difundir as luzes”.166
Se isso era importante na Europa, no Brasil foi ainda mais significativo. A esse respeito
John Armitage ao descrever a imprensa que ressurgira com a reabertura dos trabalhos
legislativos, em 1826, no Brasil, escreveu o seguinte:

“Se na Europa, onde há tantos e tão variados meios para se adquirir


instrução, a ascendência da imprensa é em toda a parte sentida e
reconhecida, com maior razão sua influência no Brasil é mais
preponderante, visto que nele os periódicos são os únicos veículos de
instrução que existem” 167

No século XIX os intelectuais brasileiros se viam engajados na difícil missão de


criação da nação e, para esse fim, envolviam se em debates acerca da constituição da
nacionalidade. Os intelectuais portugueses, cuja formação advinham da cultura política
nacionalista, buscaram na imprensa criar projetos educacionais unificadores, padronizar
tradições, criar valores e memórias, assim como propor formas unificadas de ler e
interpretar o passado como mecanismo estratégico de construção de sujeitos
pertencentes à um país territorial e linguisticamente definido. Segundo Hélio Sérpa
estes intelectuais que escreviam na imprensa “(...) investiram na possibilidade de
intervir na política cultural encetada pelo Estado para que esta pudesse atingir a elite e o

165
JUNIOR, Alvaro Santos Simões; CAIRO, Luiz Roberto; RAPUCCI, Cleide Antonia. (orgs.)
Intelectuais e imprensa: aspectos de uma complexa relação. São Paulo: Nankin, 2009.
166
PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. The espectator: o teatro das luzes – Diálogo e imprensa no
século XVIII. São Paulo: Hucitec, 1995. p. 15.
167
ARMITAGE, John. História do Brasil. (Tradutor não identificado). 3. ed. Brasileira com notas de
Eugênio Egas e Garcia Junior. Rio de Janeiro: Zelio Valverde, 1943. p. 235.

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cidadão comum, sendo que tal política tinha sempre uma dimensão nacional e
homogeneizadora”. “Estado, nação e sociedade deveriam ser convergentes”. 168
Ou seja, a revista A Illustração Luso-brazileira por ser luso brasileira, mas ter
dedicado pouco espaço para a publicação de textos sobre a cultura brasileira e
produzidos por intelectuais brasileiros, pode ter atuado no sentido de manutenção do
status quo cultural e intelectual português. Apesar dos diversos pontos de ligação entre
Portugal e Brasil, como, por exemplo, a utilização da mesma língua, e o fato de
partilharem de uma cultura, história e passado em comum, 169 é, nesse contexto, que
observamos no Brasil a tentativa de uma ruptura, de um distanciamento das influências
portuguesas e a busca da formação de uma identidade própria, de uma nação recém
independente e que havia se separado de Portugal há poucas décadas. Características
que, dentre outras, singularizam o romantismo brasileiro.
A revista A Illustração Luso-brazileira, sobretudo, e os demais periódicos
portugueses apresentados acima, que buscavam realizar a divulgação da literatura e
cultura dos dois países e para ambos, apesar de denominarem-se “luso-brasileiros”,
utilizavam-se dos textos impressos e das gravuras, para, principalmente, divulgarem as
produções culturais e literárias portuguesas no Brasil, atuando, portanto, dentro desse
espaço de luta de produção e afirmação do conhecimento, transmitindo assim, os
valores, imaginários, e pensamentos dos portugueses no Brasil.
Os estudos de Fernanda Muller sobre o periódico Ilustração Portuguesa (1903-
1930) e Hélio Serpa caminham nesse sentido, enquanto que os pesquisadores João
Alves das Neves e Arnaldo Saraiva defendem que houveram diálogos muito profícuos
entre as intelectualidades brasileiras e portuguesas da época, que se deu, principalmente,
por meio da imprensa periódica especializada. 170 Segundo Hélio Serpa esses intelectuais
que travaram essas batalhas na imprensa em meados do século XIX foram forjados no
interior de uma cultura política nacionalista, eurocêntrica e colonialista. 171 João Alves

168
SÉRPA, Hélio. Portugal no Brasil: a escrita dos irmãos desavindos. Revista Brasileira de História
[online]. São Pulo, v. 20, nº 39, p. 81-114, 2000. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/rbh/v20n39/2982.pdf>. Acesso em: 20 set. 2015. p. 70-71.
169
CERVO, Amado Luiz; MAGALHÃES, José Calvet de. Depois das caravelas: as relações entre
Portugal e Brasil: 1808-2000. Organização e apresentação de Dário Moreira de Castro Alves. Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 2000. p. 12.
170
Cf. Fernanda Muller, op. cit.; Cf. Arnaldo Saraiva. O modernismo brasileiro e português: subsídios
para o seu estudo e para a história de suas relações. Campinas, SP: UNICAMP, 2004; João Alves das
Neves. As relações literárias de Portugal com o Brasil. Lisboa Icalp, 1992.
171
SÉRPA, Hélio. Op. Cit. p. 70, 2000.

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182

das Neves é um pesquisador que tem se dedicado ao estudo do relacionamento cultural


luso-brasileiro, em seu livro As relações literárias de Portugal com o Brasil (Instituto
de Cultura e Língua Portuguesa, Lisboa, 1992) o autor demostrou que existiram intensa
e fecunda cooperação de escritores e jornalistas portugueses nos periódicos brasileiros a
partir sobretudo da independência e acentuando-se nas últimas décadas do século XIX e
que, tal colaboração, embora tenha diminuído ao longo do tempo, teve expressão até
meados do século XX. A colaboração de jornalistas portugueses teve ampla repercussão
nos periódicos brasileiros. Dentre esses jornalistas podemos citar: Eça de Queirós,
Guilherme de Azevedo, Mariano Pina, Pinheiro Chagas, Ramalho Ortigão, visconde de
Santo Thyrso, Maria Amália Vaz de Carvalho, dentre outros. Quanto à participação de
brasileiros na imprensa portuguesa não existe nenhum estudo sistemático, sabe-se
apenas que essa foi muito menor do que a participação de portuguesas na imprensa
172
brasileira.
Essas revistas ilustradas voltadas para a veiculação de informações instrutivas,
culturais, sociais, históricas e literárias buscaram estabelecer uma “ponte” entre Brasil e
Portugal, dois países que haviam se separado não fazia muito tempo, e, por meio da
utilização da gravura, recurso que estava se popularizando, buscaram difundir a leitura e
facilitar o acesso as produções artísticas e literárias de brasileiros e, sobretudo,
portugueses, assim como facilitar o acesso às notícias.
Existiram por parte desses empreendimentos que surgiram e circularam na
segunda metade do século XIX tentativas, em maiores ou menores graus, de integração
entre Portugal e o Brasil, duas nações que comungavam de uma história conjunta de
mais de três séculos, encontravam-se separadas há algumas décadas somente, e
possuíam diversas semelhanças como, por exemplo, o fato de partilharem da mesma
língua, cultura e passado comuns. Essas publicações contribuíram, em alguma medida,
para a formatação do imaginário de uma identidade brasileira em Portugal, pelo filtro de
editores, escritores e periodistas lusitanos, os quais fizeram suas seleções, recortes e
escolhas de textos, autores, regiões e expressões culturais que julgaram representativos
da cultura das diferentes regiões do Brasil da época. O mesmo pode ser dito, e com
ainda mais ênfase, com relação à formatação de uma identidade portuguesa no Brasil.

172
NEVES, João Alves das. As relações literárias de Portugal com o Brasil. Lisboa: Instituto de Cultura
e Língua Portuguesa, 1992.

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183

Nem todas as tentativas obtiveram êxitos, não havendo de fato, um trabalho concreto no
sentido de estabelecer vínculos estreitos entre os dois países.

REFERÊNCIAS:
A Illustração Luso-Brasileira, jornal universal. Lisboa: Tipografia de A. J. F. Lopes,
Travessa da Vitória, 52. Volume I. 1856; Volume II. 1858; Volume III. 1859.
Bibliografia:
ARMITAGE, John. História do Brasil. (Tradutor não identificado). 3. ed. Brasileira
com notas de Eugênio Egas e Garcia Junior. Rio de Janeiro: Zelio Valverde, 1943.
BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. Oieiras: Celta editora, 1998.
CERVO, Amado Luiz; MAGALHÃES, José Calvet de. Depois das caravelas: as relações entre
Portugal e Brasil: 1808-2000. Organização e apresentação de Dário Moreira de Castro Alves.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000.
• CORREA, Rita. Brasil-Portugal. Hemeroteca Digital. Lisboa, 2009. Disponível em:
<http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/FichasHistoricas/BrasilPortugal.pdf>. Acesso em
12 out. 2015.
• JUNIOR, Alvaro Santos Simões; CAIRO, Luiz Roberto; RAPUCCI, Cleide Antonia.
(orgs.) Intelectuais e imprensa: aspectos de uma complexa relação. São Paulo: Nankin,
2009.
• LUCA, Tania Regina de. Revista Ilustração (1884-1892): Notas iniciais de pesquisa. In:
BARBOSA, Socorro de Fatima P. Livros e periódicos nos séculos XVIII e XIX. João
Pessoa: Editora da UFPB, 2014, pp. 209-232.
• MARTINS, Ana Luiza. Revistas em revista: imprensa e práticas culturais em tempos de
república, São Paulo (1890-1922). São Paulo: Edusp/Fapesp/Imprensa Oficial do
Estado, 2001.
• MESQUITA, Pedro Teixeira. Revista Contemporânea de Portugal e Brasil.
Hemeroteca Digital. Lisboa, 2013. Disponível em: <http://hemerotecadigital.cm-
lisboa.pt/FichasHistoricas/RevistaContemporaneadePortugaleBrasil.pdf>. Acesso em:
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A LITERATURA SADEANA NA FRANÇA DO SÉCULO XX:


DISCURSOS CONFLITANTES EM RELAÇÃO ÀS EDIÇÕES
DAS OBRAS DO MARQUÊS DE SADE (1955 A 1957)
Sara Vicelli de Carvalho (História Social - UEL)
Orientador: Gabriel Giannattasio
PALAVRAS-CHAVE: LITERATURA SADEANA; APROPRIAÇÃO; ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS.

Nos séculos posteriores a Sade, sua literatura ganhou força, sendo cada vez
mais republicada, lida e explorada, mesmo quando condenada aos “infernos” das
bibliotecas. A imagem que se fazia do Marquês ganhou novos contornos, passou a ser
visto com admiração e até com reverência pelas novas gerações de intelectuais
franceses. Passando de maldito a aclamado, de pornógrafo vil a gênio injustiçado, Sade
tornou-se um ídolo, símbolo de rebeldia, segundo Guillaume Apollinaire, o espírito
mais livre que já existiu. Ele ascendeu aos céus, de maléfico a divino! 173
Pode-se debitar essa transformação a um movimento que se inicia com o
empenho do poeta Apollinaire (1880-1918) e do crítico Maurice Heine (1884-1949),
culminado com os surrealistas, uma vez que o legado sadeano se fazia

[...] presente nos manifestos do movimento, nos ensaios dos poetas Paul
Eluard, René Char, na produção de Aragon, Artaud, na pintura de André
Masson, no trabalho de Man Ray, de Salvador Dali e na filmografia de Luis
Buñuel [...] adquire maior nitidez através dos cuidadosos estudos biográficos
produzidos por Gilbert Lély [...] (GIANNATTASIO, 2000, p.42)

De 1920 a 1968 não se encontra sequer um exemplar de qualquer uma das


revistas do grupo surrealista que não tenha ao menos uma nota sobre o “Divino
Marquês” (MORAES, 2006, p. 116). No Manifest du surrealismo (1924), está inscrita a
frase “Sade é surrealista no sadismo”, e com isso consagrou-se a imagem “Divina do
Marquês”.
Seus escritos tornaram-se referência no cenário do século XX. Simone
Beauvoir (1961) localiza os traços de uma filosofia radical de liberdade nos escritos de
Sade, a qual teria precedido o existencialismo moderno. Octavio Paz (1999) o vê como

173
A expressão “divino Marquês” surgiu com os surrealistas. Para saber mais ver BRETON, André.
Manifestos do surrealismo. Brasiliense, 1985, editado no Brasil 61 após a publicação original do
Primeiro Manifesto em 1924.

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um precursor de Freud, por seus escritos focarem a sexualidade como uma força motriz.
Para André Breton, no Segund manifest du surrealismo (1988), Sade forneceria uma das
visões mais lúcidas sobre as forças que agem intimamente no homem e que estão na
origem dos seus atos de violência. Georges Bataille (1989) afirma que sem a crueldade
de Sade não teríamos sido capazes de abordar de forma tão serena o domínio que expõe
nossa unidade profunda.
Contudo, apesar dessa admiração e maiores possibilidades de usos, análises e
pensamentos sobre os escritos e filosofia sadeana no século XX, ainda não era
totalmente bem quista e havia os que continuavam a condenar as obras. O editor Jean-
Jacques Pauvert quando ousou dispor a público a edição das obras completas do
Marquês de Sade, vivenciou ações de censura na 17ª Câmara Correcional de Paris no
ano de 1956, no qual foi acusado de publicar livros imorais que se enquadravam na
qualidade de perigosos de acordo com a Comissão Nacional do Livro, em Parecer
emitido em 1955 174.
Seu empreendimento, teve início no ano de 1947 e antes da iniciativa de Pauvert,
os textos de Sade ainda não haviam sido reunidos. 175 Em 1947, só estavam disponíveis
em livrarias: Justine, Contos e historietas, Zoloé e uma edição muito simples do
Diálogo entre um Padre e um moribundo. O objetivo da edição era disponibilizar o
acesso ao maior número de intelectuais e apreciadores, uma vez que as obras se
176
encontravam exiladas no Enfer da Biblioteca Nacional da França – local este que se
destinava a armazenar livros que por desventura fossem considerados perigosos – e
aqueles que possuíam algum dos textos de Sade nesse contexto consistia somente em
alguns colecionadores milionários.
Os volumes editados por Jacques Pauvert eram simples, não continham
ilustrações, somente prefácio e bibliografia e a tiragem foi de 2.000 exemplares.
Entretanto, para a Comissão do Livro – que desde 1947 começou a se opor a publicação
174
Entre os volumes que mais incomodaram a Comissão do Livro estavam A filosofia na alcova, A nova
Justine, Juliette e Os 120 dias de Sodoma.
175
O livro Os crimes de amor teve uma edição em 1800, Aline e Valcour duas, em 1793 e 1883, Juliette,
A Nova Justine e A Filosofia na Alcova não tinham saído da clandestinidade. Os 120 dias de Sodoma saiu
em edição limitada, em 1931.
176
Tal nomenclatura foi criada na França do século XIX e era uma, dentre outros nomes ou códigos dados
aos locais nas bibliotecas, existentes em várias partes do mundo, reservados para guardar obras proibidas,
os também chamados romances negros. Os “Infernos” faziam parte de um movimento de silenciamento,
visto que por obrigação de preservar o maior acervo possível da palavra impressa, lacravam as obras em
um local, onde leitores normais não pudessem alcança-los, para que assim não se corrompessem pelo
contato com maus livros. Ver (DARNTON, 1996, pp. 21-42).

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– essa “discrição” não importava e durante 1954/55 continuou a censura e o processo foi
aberto em 15 de dezembro de 1956.
Segundo o Parecer, as obras de Sade representavam uma ameaça, um perigo
iminente à sociedade, aos bons costumes. A literatura do Marquês, considerada
infecciosa, traria um veneno potencial para o sistema imunológico da sociedade
francesa. Os pareceristas consideraram que os volumes propunham:

[...] misturar à sociedade deste tempo, descrições de cenas de orgia, de


crueldades das mais repugnantes e perversões das mais variadas e contendo
intrinsecamente um fermento detestável e condenável aos bons costumes.
(PAUVERT, 1957, p. 9) [tradução livre]

No decorrer do processo, o promotor no ato de acusação levanta a questão de


quem poderia ler Sade. Para ele seriam poucos, restringindo-os a “espíritos prevenidos e
sábios”, que saberiam utilizar as obras para fins intelectuais, uma vez que pessoas
despreparadas estariam sujeitas à influência malévola de tais romances. Todavia,
quando o promotor adverte sobre leitores qualificados, não determina quem seriam os
espíritos sábios e prevenidos e quem não, tampouco uma forma, um método para
distinguir uns dos outros, e deste modo, como não é possível saber quem lerá as obras e
como se apropriarão dela, a medida tomada para sanar o possível mal acabou sendo a
censura.
Na primeira parte do processo de J.-J. Pauvert, o advogado Maurice Garçon
afirma que (BEUCHOT & PAUVERT, 1999, p. 80) Sade está morto há 142 anos, que a
moral social evoluiu, mas ainda assim a justiça de 1957 não poderia se mostrar mais
severa que os juízes da Primeira República, quando as obras de Sade no ano de 1801 (A
História de Juliette, A Filosofia na alcova e alguns outras) foram condenadas,
apreendidas e sua destruição ordenada.
177
As formas de apropriação das obras do Marquês de Sade no século XX eram
múltiplas, muitas vezes antagônicas. Sobre a apropriação das obras de Sade feita pelo
Estado francês, sobretudo por parte da Comissão Nacional do Livro, entendemos que no

177
O conceito de apropriação de Roger Chartier, busca dar conta dos processos, em suas condições
sociais, institucionais e culturais concretas e inscritas em práticas específicas e localizadas, pelos quais
são construídos novos sentidos, sobretudo por meio das práticas de leituras. Para o autor a liberdade
leitora não é absoluta, é cercada de limitações derivadas das capacidades, convenções e hábitos que a
caracterizam em suas diferenças. Sua noção de “[...] apropriação [...] tem por objectivo uma história
social das interpretações, remetidas para suas determinações fundamentais (que são sociais, institucionais,
culturais) e inscritas nas práticas específicas que as produzem [...]” (CHARTIER, 1990, p. 26).

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discurso de acusação encontramos dois segmentos principais, um que diz respeito à


Comissão Nacional do Livro e seus integrantes com seu parecer legitimado pelo poder
institucional, parecer este de cunho fundamentalmente moral, o que nos leva ao segundo
178
segmento, que diz respeito ao discurso, estratégias utilizados pelo promotor. Esses
segmentos encontram-se emaranhados, misturando pressupostos legais a valores
morais/tradicionais. O discurso do promotor é jurídico e se apoia na “legalidade”
argumentativa, todavia tal “legalidade discursiva” serve a interesses, opiniões, etc. Em
nosso caso tais interesses e opiniões expressos pelos integrantes da Comissão Nacional
do Livro.
Em dado momento Pauvert e seu advogado Maurice Garçon apelam à Câmara
de Paris, sob uma das alegações de que a Comissão do livro que condenou a obra em
questão não foi devidamente composta pelos membros previstos pelo legislador.
Incluíam o representante da Sociedade de homens de letras e das Associações de
Família. (BECHOUT & PAUVERT, 1999, p. 80).
O promotor quando inquere Jean Paulhan diz: “Nós nos encontramos sobre o
domínio de tamanha ferocidade que se resume em destruir tudo, tudo que se refere à
honra da família, ao respeito, à moral. E o senhor acha que não há perigo em tornar
público?” 179 (PAUVERT, 1957, p. 50) [tradução livre]
É importante ressaltar que não só no contexto temporal em que ocorre o
processo, mas no caso vivido por Jean Pauvert, uma das vozes mais evidentes se
expressa pelos surrealistas, uma vez que constituem as testemunhas de defesa do
falecido Marquês o escritor Georges Bataille, um dos fundadores do movimento
surrealista André Breton, o cineasta e escritor Jean Cocteau e o escritor e editor Jean
Paulhan.
Tais pensadores eram figuras determinantes na cultura francesa no período, de
grande repercussão e representatividade no que se refere à transformação do
pensamento, o que os configura como um movimento que pode ser entendido como
180
vanguarda. Podemos dizer que os surrealistas são responsáveis pelo resgate de

178
Estratégia no sentido de forma escolhida para argumentar e no que se apoia.
179
Si nous plaçons dans le domine courant cette férocité [...] que se résume em détruisant tout, tout ce
qu’il peut y avoir d’honorabilité dans la famille, de respect de la morale, vous trouvez qu’il n’y a pas de
danger à la rendre publique?
180
Nesse sentido o conceito de vanguarda está ligado ao expresso por Peter Bürguer em seu livro a
Teoria de Vanguarda, escrito em 1974 com várias edições até 2008 no Brasil, no qual explora e analisa o

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grande parte das literaturas entendidas como libertinas, que traziam à tona
181
manifestações intelectuais e culturais do período iluminista , repensando-as e as
tornando passíveis de pensamentos e discussões propostas mais abertamente, inclusive
ao que se refere ao Marquês de Sade.
Jean Paulhan alega que “[...] Sade veio numa época em que um tipo de
filosofia um pouco branda afirmava sem reservas que o homem era bom, e era o
182
suficiente para fazer a sua natureza para que tudo se passe bem”. (PAUVERT, 1957,
p. 48) [tradução livre]
Entendemos que o julgamento de Pauvert constituiu um conflito de interesses e
pensamentos entre o que almejavam certas parcelas da sociedade francesa e aquilo que
uma instituição – a Comissão Nacional do Livro – definiu e impôs.
Maurice Garçon advogado de defesa no caso, em 15 de dezembro de 1956 na
XVIIª Câmara Correcional de Paris, afirma sobre Sade:

Se ele é um autor condenado por excelência, é por ironia, chamado de Divino


Marquês. E é uma verdade certamente, que a obra do Marquês de Sade
é decididamente pornográfica. Mas, não deve ser confundido com os
profissionais de obscenidades, e para compreendê-lo deve inseri-lo em
seu tempo, no século XVIII, quando filósofos procuraram deixar o
cristão convencional para estudar o homem lliberto de suas
preocupações metafísicas. Nos tempos de Crebillon filho, Diderot, de
Choderlos de Laclos... 183 (PAUVERT, 1999, p. 26) [tradução livre]

O Parecer da Comissão enquadrou as obras de Sade na condição de perigosas


como tentativa de silenciamento e, sob essa determinação, Jean Pauvert foi condenado

movimento surrealista como revolucionário pelos elementos que o constituem e fazem abalar a realidade.
Para o autor existem elementos fundamentais na base de uma vanguarda e no movimento surrealista
podemos encontrar vários deles, como por exemplo, radicalidade, estranhamento, inovação, sejam elas
conceituais e/ou artísticas, e alguns outros pontos que estão especificados no livro.
181
Compete acrescentar que no século XX houve um aumento progressivo no número de obras ilegais do
Antigo Regime sendo republicadas, a maior parte correspondente à proliferação de publicações de cunho
sexual, erótico, libertino – mesmo que majoritariamente clandestinas – ocorrida no período que antecedeu
à Revolução Francesa e que se diferenciavam das obras produzidas até então por remeter-se ao corpo
como objeto de conhecimento.
182
Fala extraída do testemunho de Jean Paulhan no julgamento de Pauvert: « [...] Sade est venu à une
époque où une sorte de philosophie un peu molle admettait sans réserve que l’homme était bon, et qu’il
suffisait de le rendre à sa nature pour que tout se passe bien ».
183
S’il est un auteur réprouvé par excellence, c’est bien celui que, par ironie, on appelle le Divin Marquis.
Et s’il est une vérité certaine, c’est que l’oeuvre du marquis de Sade est résolument pornographique. Mais
pour ne pas la confondre avec celle des professionnels de l’obscénité, et por la comprendre, il faut
d’abord la replacer dans son temps, dans ce XVIII siècle où les philosophes cherchaient à sortir du
conventionel chrétien pour étudier l’homme débarrassé de ses préoccupations métaphysiques. L’époque
de Crébillon fils, de Diderot, de Choderlos de Laclos...

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por ultrajar os bons costumes e obrigado em primeiro momento a pagar multa num total
184
de 200 000 francos . Todavia, as multas eram só parte do processo contra os atos de
Jean-Jacques Pauvert, de maneira que a literatura do Marquês ainda necessitava de
investigação e, assim, um debate em torno da utilização das obras se desenvolveu.
O advogado de defesa Maurice Garçon, afirma que a opinião comum é que o
Marquês de Sade deve ser condenado sem discussão. No entanto, poucos dos que leram
suas obras falam. Pronunciar sem saber, somente de acordo com o que se ouve dizer, é o
mais perigoso de todos os métodos para os juízes. E ainda diz que pouco importa o que
foi acurado [pelos pareceristas e/ou juízes]: "Todas as tendências de opinião devem ser
representadas." (BECHOUT & PAUVERT, 1999, p. 26; 81).
Como uma de suas estratégias argumentativas, Garçon enfatizou o aspecto
filosófico e científico das obras condenadas e alegou que essa literatura estaria limitada
a alguns "intelectuais", que possuíam obras semelhantes à Filosofia na alcova ou Os
cento e vinte dias de Sodoma. Afirmou ainda que os trabalhos se destinam à
especialistas em psicoterapia.
Nunca antes dele, alguém ousara considerar o problema do estudo da
loucura para uma revisão sistemática da depravação. Aprofunda o
monstruoso para descobrir o normal.... Compreende-se, portanto, a
necessidade que se encontrava para descrever as piores anomalias.
Mas, para aqueles que procuram na pornografia alusões obscenas e
evocações libidinosas de devassidão, Sade descreveu como um
médico, não tenta seduzir, nem fazer gracinhas, nenhum detalhe é
ignorado. Impiedoso e frio dissecador de paixões para chegar ao
sofismo anarquista [...] 185 (BEUCHOT & PAUVERT, 1999, p.79)
[tradução livre]

Georges Bataille em testemunho no julgamento de Pauvert em 1956, afirmou


que
O Marquês de Sade foi pioneiro, porque ninguém havia feito antes
dele, o homem que encontra satisfação na contemplação da morte e da
dor. Isto pode ser considerado repreensível e eu me posiciono nesse
sentido... Mas se levarmos em conta a realidade, percebemos que por
condenável que seja esta contemplação, sempre desempenhou um

184
Foram 80 000 fr. pelas publicações de Juliette ou Prosperidade do vício, e 120 000 fr. pelas obras Os
cento e vinte dias de Sodoma, Justine ou os Males da virtude e a Filosofia na Alcova.
185
Extraído do discurso do advogado Maurice Garçon no Julgamento de apelação de Jean-Jacques
Pauvert: Jamais, avant lui, on n’avait osé envisager ainsi le problème dont il poussa l’étude jusqu’au
délire par un examen systématique des dépravation. Il approfondit le monstreux pour découvrir le
normal... On comprend, dès lors, la nécessité où il s’est trouvé de décrire les pires anomalies. Mais tandis
que chez ceux qui ne recherchent dans la pornographie qu’allusions obscènes et évocations libidineuses
de débauches, Sade, lui, décrit comme un clinicien, ne cherchant pas à séduire, ne faisant grâce d’aucun
détail ignoble, impitoyable et froid dissecteur de passions, pour aboutir à ce sophisme anarchique [...]

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papel histórico considerável... Eu acredito que o julgamento como


mera pornografia, que somos tentados a atribuir de primeira à sua obra
é ainda menos justificável, qualquer um depois de ler Sade relata
bastante horror... Para Sade, temos de manter a capacidade de descer
em um abismo de horror, espécie de abismo que devemos conhecer,
que é também o dever em particular da filosofia, a de apresentar,
esclarecer e comunicar, de fazer consciente. 186 (BEUCHOT &
PAUVERT, 1999, pp. 79 -81) [tradução livre]

Jean Paulhan, em testemunho no julgamento de apelação no caso Jean-Jacques


Pauvert, também no ano de 1956, declarou:
Escrevi uma tese sobre o Marquês para a Sorbonne. Sendo assim, conheço
bem sua obra. Ela me parece bastante importante e histórica. Porque todos os
escritores, ou quase todos os escritores do século XIX, aqueles que são
representativos, se inspiraram no Marquês de Sade. Desde Lamartine, que
reconheceu que sem a leitura das obras de Sade, aos 19 anos, jamais teria
escrito seus poemas. O mesmo aconteceu com Baudelaire e muitos filósofos
estrangeiros, como Nietzsche.
[...] Sade foi conduzido pelo contraste, para demonstrar que o homem
era mau, e para demonstrar em detalhes, em todos os sentidos, que a
maldade se baseia em primeiro na sexualidade, o que Freud e outros
irão retomar mais tarde. 187 (PAUVERT, 1957, p. 48) [tradução livre]

O tribunal respondeu que o lançamento destas edições não se restringiria a


revistas especializadas, e que J. - J. Pauvert queria simplesmente vender seus livros e,
em relação ao que se diz aspectos filosóficos das obras de Sade, na verdade, constituíam
a negação sistemática da moral.
Vale dizer que a maneira que se desenrolou o processo, expressa a
heterogeneidade de pensamentos em torno da literatura do Marquês de Sade e sua
significância. O resultado da apelação da primeira parte do processo foi o de

186 Extraído do testemunho no julgamento de Pauvert em 1956. Ce qu’a innové le marquis de Sade,
parce que personne ne l’avait fait avant lui, c’est que l’homme trouvait une satisfaction dans la
contemplation de la mort et la douleur. Cela peut être considéré comme condamnable, et je m’inscris dans
ce sens... Mais si nous tenons compte de la réalité, nous nous apercevons que, si condamnable que soit
cette contemplation, elle a toujours joué un rôle historique considérable... Je crois que le jugement de
simple pornographie qu ‘on serait tenté d’attribuer au premier abord à son oeuvre est d’autant moins
justifié que la plupart du temps, n’importe qui s’essayant à la lecture de Sade se trouve plutôt soulevé
d’horreur... Par Sade, nous ne devons retenir que la possibilité de descendre dans une espèce d’abîme
d’horreur, abîme d’horreur que nous devons connaître, qu’il est en outre du devoir en particulier de la
philosophie, de mettre en avant, d’éclairer et de faire connaître.
187
J’ai eu à écrire pour la Sorbonne une petite thèse sur le Marquis de Sade, de sorte que je connais assez
bien son ouvre. Elle me paraît assez importante, et historique, puisque tous les écrivains, ou presque tous
les écrivains du XIX siècle, ceux qui sont représentatifs, sont sortis du marquis de Sade, à partir de
Lamartine, qui reconaît que sans la lecture du Marquis de Sade à dix-neuf ans, il n’aurait jamais écrit ses
poèmes, en continuant évidemment par Baudelaire et par des philosophes étrangers comme Nietzsche.
[...] Sade été conduit, par contraste, à démontrer que l’homme était méchant, et à démontrer dans le détail,
de toutes les façons, cette méchanceté qu’il a fait reposer le premier dans la sexualité, ce que Freud et
d’autres reprendront plus tarde.

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condenação das obras e absolvição do acusado. Enquanto no segundo caso, o tribunal


condenou as passagens pornográficas das obras como ofensivas, mas se recusou, ao
contrário dos primeiros juízes, a criticar a filosofia de Sade, por respeito ao princípio de
liberdade de expressão.
Com isso entendemos que o discurso jurídico, bem como a apropriação que
fizeram das obras do Marquês de Sade, do significado da edição e publicação das
mesmas naquele contexto representavam os interesses de uma parcela da população
francesa, o que nos faz indagar qual parcela? O fato de existir uma Comissão Nacional
do Livro para analisar as literaturas e atribuir significados e direcionamento de como
tratá-las – composta inclusive por membros representantes da Associação de Família –
já nos informa algo sobre esse contexto/interesses em que ocorreu o processo de
Pauvert.
Jean-Jacques Pauvert em meio a essa empreitada declara ao presidente da
Comissão do Livro a importância da literatura sadeana como patrimônio da literatura
francesa, havendo traduções das obras de Sade em todas as línguas, sendo um dos
autores franceses mais republicados no exterior e aponta ainda que os pedidos dos
exemplares a sua editora são em sua maioria das universidades, estrangeiras e francesas.
Desde modo, questiona a posição da Comissão Francesa frente às obras, uma vez que a
querem manter calada, isolada, quando ela deve ser lida, pesquisada, disposta ao
público. Declara ainda que por conta da hipocrisia do “pensar direito”, do moralmente
correto, essa literatura já ficou muito tempo enterrada. (PAUVERT, 1957, p. 16)
Há muitas especulações e tentativas de rotular as obras de Sade, ou seja, as
apropriações de sua literatura são dúbias, muitas vezes dicotômicas. Assim como já
afirmou Giannattasio, se Sade chegou ao século XX de forma mais consistente e
intelectualizada devemos interrogar qual Sade? Entendemos que por meio da escrita a
imaginação ganha vida e ao disponibilizá-la ao público deixa de ser criação individual
para se tornar infinita, desta forma, os efeitos da literatura são imensuráveis, uma vez
188
que aderem a novas e múltiplas apropriações .

188
Em relação às possibilidades de compreensão da repercussão e apropriação da obra sadeana, deve-se
considerar que a recepção desta literatura, como qualquer outra, está aberta a múltiplas possibilidades de
leitura/apropriação e de acordo com Chartier (1998, p. 77) “A leitura é sempre apropriação, invenção,
produção de significados”, por esta constatação (1998, p. 18) é preciso vincular em um mesmo projeto o
estudo da produção, transmissão e da apropriação dos textos. O que quer dizer manejar
concomitantemente a crítica textual, a história do livro e a história do público e da recepção. Para isso

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Sabe-se que, sobretudo com a articulação dos surrealistas, Sade ganhou


destaque, transitando do inferno ao paraíso. E se neste contexto há o discurso que o
admira, há também, entre outros, o que o toma como um perigo. Seja no discurso de
repúdio ou de sua canonização, todos esses apontamentos nos fazem indagar: será que
há coisas que não devem ser ditas? Há obras que não devem ser lidas?
Se partíssemos da apropriação dos pareceristas da Comissão do Livro, caberia
perguntar: existe alguma solução sem esbarrar na censura? O poder dos juízes em julgar
as obras de Sade lhes permite a construção de um saber sobre as obras e este saber
legitima outro poder, o de controlar a leitura da obra, surgindo assim outras leituras,
outros saberes, outras apropriações, outras competências e assim por diante 189.
Lembrando que ao determinar em Parecer que as obras do Marquês seriam
perigosas, “um fermento para atitudes atrozes, que leitores despreparados estariam
sujeitos à influência malévola de tais romances”, a Comissão Nacional do Livro se
deparou com o problema de qual seria o leitor preparado para ler Sade. E como seria a
identificação desse leitor?

Certa vez, foi perguntado a um estudioso da obra do libertino francês: ‘Há


um leitor ideal de Sade?’ Pergunta, num só tempo, decisiva e difícil de ser
respondida. Muitas foram as passagens em que o próprio Sade, através de
seus escritos, se dirigiu ao leitor de sua obra. E as recomendações, os
conselhos, as instruções que ele formulou a quem o lia são tão diversos e
contraditórios, que chegamos a por em dúvida se eles foram escritos pela
mesma mão! [...] Do mesmo modo que o autor, o leitor também é um homem
dotado de distintas disposições fisiológicas e sem identidade fixa [...]
(GIANNATTASIO, 2014. p.12)

deve-se levar em conta que, de um lado, cada leitor, espectador, ouvinte produz uma apropriação
inventiva da obra ou do texto que recebe. “[...] De outro, deve-se considerar o conjunto dos
condicionamentos que derivam das formas particulares nas quais o texto é posto diante do olhar, da
leitura ou da audição, ou das competências, convenções, códigos próprios à comunidade à qual pertence
cada espectador ou cada leitor singular” (CHARTIER, 1998, p. 19) E é neste diagnóstico que nos
apoiamos, não esquecendo o conceito de práticas de leitura, que nos chama a atenção às limitações e
liberdades dos leitores, uma vez que, segundo o autor, os leitores estão sujeitos às práticas de leitura, ao
mesmo tempo em que as fazem. Isto é, apreendido pela leitura, o texto não tem necessariamente o sentido
que lhe atribui seu autor, seu editor ou seus comentadores.
189
Sobre os vários discursos encontrados nesse processo em relação a literatura do Marquês de Sade,
editada e publicada por J. J Pauvert, devemos buscar em que se apoia o discurso da Comissão Nacional
do Livro para legitimar sua faceta e, verificar o lugar discursivo da defesa, representado pelo acusado e
seu advogado, uma vez que se expressa no transito do discurso legal (com suas devidas legitimações e
justificativas) e o discurso intelectual de caráter mais filosófico representado, sobretudo, por membros do
movimento surrealista (que também se ampara em legitimidade, só que ligado a um universo filosófico,
literário e artístico).

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194

Sendo assim, ressaltamos – ao que se refere a estudos sobre a literatura do


Marquês – que podemos e/ ou devemos observar que: [...] temos uma versão de Sade
para cada ocasião e uma versão da ocasião para cada Sade. (GIANNATTASIO, 2014. p.
12), Sabe-se que no caso de Sade em particular não há uma recepção autorizada de seu
pensamento, e deste modo, o que nos resta é analisar as formas de se pensar e de fazer
valer as concepções de bem e mal, virtude e vício, atrocidades e civilidade, bons
costumes e assim por diante. E indagar, principalmente, de que forma uma literatura
pode ser perigosa.

BIBLIOGRAFIA:
APOLLINAIRE, Guillaume. L’oeuvre du Marquis de Sade. Paris: Bibliothèque des
Curieux, 1912.
BATAILLE, Georges. A Literatura e o mal. Porto Alegre: L&PM, 1989.
BEAUVOIR, Simone de. Deve-se queimar Sade? In. Novelas do Marquês de Sade e um estudo
de Simone Beauvoir. São Paulo: DIFEL, 1961, pp. 05 – 63.
BEUCHOT, Pierre & PAUVERT, Jean-Jacques. Sade en procès. Turin: Éditions Mille et une
nuits, 1999.
BRETON, André. Manifestos do surrealismo, Brasiliense, 1985.
BÜRGER, Peter. Teoria de Vanguarda. São Paulo: Cosacnaify, 2008.
CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa:
Difel, 1990.
______. A aventura do livro: do leitor ao navegador: conversações com Jean Lebrun.
São Paulo: Unesp, 1998.
DARNTON, Robert. Edição e sedição: o universo da literatura clandestina no século XVIII.
São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
______. Sexo dá o que pensar. In. NOVAES. Adauto. (org.). Libertinos/ Libertários. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996, pp. 21- 42.
GIANNATTASIO, Gabriel. Sade: um anjo negro da modernidade. São Paulo: Imaginário, 2000.
______. Prefácio. In. TONUSSI, Hilton de Oliveira. O Marquês de Sade no Brasil nos
anos 1960: o mercado editorial. Rio de Janeiro: Multifoco, 2014.
MORAES, Eliane Robert. Lições de Sade: ensaios sobre a imaginação libertina. São Paulo:
Iluminuras, 2006.
______. Marquês de Sade: um libertino no salão dos filósofos. São Paulo: EDUC, 1992.
PAUVERT, Jean-Jacques. (org.) L’affaire Sade. Paris: Pauvert, 1957.
PAZ, Octavio. Um mais além erótico: Sade. São Paulo: Editora Mandarim, 1999.

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195

A EXPOSIÇÃO INTERNACIONAL DE ARTES E TÉCNICAS DA


VIDA MODERNA – PARIS 1937
Wellington Durães Dias 190(PPGH FCL-UNESP/Assis)
Carlos Eduardo Jordão Machado (Orientador)
PALAVRAS-CHAVE: EXPOSIÇÕES UNIVERSAIS; MODERNIDADE; REPÚBLICA FRANCESA.

Introdução: O que foram as exposições universais?


Planejadas por cientistas, políticos e empresários como feiras para a exibição
pública de novidades, as exposições universais foram fenômenos urbanos ocorridos
sazonalmente nos epicentros do capitalismo industrial a partir da segunda metade do
século XIX 191. Primeiras amostras bem-sucedidas de cultura de massa da História,
recebendo milhões de visitantes e expositores a cada edição, as exposições universais
foram espetáculos da modernidade, onde se alternavam fascinantemente a festa popular,
os mistérios de territórios exóticos, as representações do orgulho nacional e o encanto
do fetichismo das mercadorias 192. Eram exibidos em stands, vitrines, pavilhões e
galerias desde a agricultura e mineração, a indústria e as máquinas mostradas em
funcionamento, até as matérias-primas, o material manufaturado, as obras de arte e o
artesanato. Seus mostruários pretendiam representar todas as regiões do globo e todas as
épocas da história, consolidando uma visão linear, progressiva, vazia e homogênea da
História. Portanto, segundo Lilian Schwarcz, “compactuando com um ideário
evolucionista, nas feiras se realizavam imensos exercícios de classificação e catalogação
da humanidade, em que o mundo Ocidental representava o topo da civilização, e as
culturas indígenas o passado da humanidade” 193.
As Exposições Universais apresentavam a síntese prematura de um mundo
unificado pela primeira vez com o triunfo do capital – inaugurando um novo cosmos

190
Mestrado na linha de Cultura, Historiografia e Patrimônio. Membro do grupo de estudos Experiência
Intelectual Brasileira. Esta comunicação é resultado do desenvolvimento do projeto de pesquisa
intitulado A participação brasileira na Exposição Internacional de Artes e Técnicas da Vida Moderna
em 1937, financiado pela FAPESP e pela CNPq-CAPESP.
191
As maiores e mais relevantes Exposições Universais ocorreram nas cidades de Londres (1851, 1862),
Paris (1855, 1867, 1878, 1889, 1900, e 1937), Viena (1873), Filadélfia (1876), Chicago (1893, 1933),
Saint-Louis (1904), San Francisco (1915), Bruxelas (1935), Barcelona (1929) e Nova York (1939).
192
Cf. HARDMAN, Francisco Foot. TREM FANTASMA: a modernidade na selva. São Paulo: Companhia
das Letras, 1988. p.50
193
SCHWARCZ, Lilia Moritz. AS BARBAS DO IMPERADOR: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998. p.574.

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196

regido pelo movimento das mercadorias. Segundo o historiador inglês Eric Hobsbawm,
em sua obra a Era do Capital:
“A Era dessa vitória global [do capital] foi iniciada e pontilhada pelos
gigantescos novos rituais de autocongratulação, as Grandes
Exposições Universais, cada uma delas encaixada num principesco
monumento à riqueza e ao progresso técnico – o Palácio de Cristal em
Londres (1851), a Rotunda (“maior que São Pedro de Roma”) em
Viena, cada qual exibindo o número crescente e variado de
manufaturas, cada uma delas atraindo turistas nacionais e estrangeiros
em quantidades astronômicas. Catorze mil firmas exibiram em
Londres em 1851 (a moda tinha sido condignamente inaugurada no lar
do capitalismo); 24 mil em Paris em 1855; 29 mil em Londres, em
1862; 50 mil em Paris, 1867. 194

Podemos concluir que esses eventos foram uma das expressões culturais da expansão a
nível global do sistema capitalista – o motor dinâmico que engendrou as intensas
transformações sociais, econômicas e culturais que se operaram naquele período. As
aparições das exposições universais coincidem diretamente com o crescimento das
metrópoles e a ascensão das massas, com a progressiva industrialização e com a
proletarização dos trabalhadores, com os avanços científicos e tecnológicos, com a
ampliação vertiginosa da velocidade de deslocamento e comunicação. Estas festas do
trabalho e do progresso eram produtos de um mundo industrial em formação.

Paris, a capital das Exposições Universais:


Conforme expressou Lilia Schwarcz, “a cada edição da feira, reascendia-se uma
nova competição entre as nações participantes, e, acima de tudo, entre aquelas que
195
sediavam os eventos” . Tudo visava à ostentação no concurso das nações: o tamanho
da área construída da feira, o estilo arquitetônico dos prédios, a variedade dos pavilhões
e produtos. A França foi dentre todas as nações a organizar Exposições Universais a que
sediou o maior número, sobretudo em Paris, e por consequência a maior vitoriosa destas
“arenas pacíficas”, superando por ampla vantagem suas rivais Grã-Bretanha e EUA.
Segundo o historiador Pascal Ory, “Paris é a capital das Exposições Universais, pois ela
foi a única cidade do mundo na qual ocorreram tantas, não menos de seis” 196, e por isso
a mais visivelmente marcada em seus espaços públicos por essas ocorrências, cujo
194
HOBSBAWM, Eric J.. A ERA DO CAPITAL: 1848 - 1875. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013. P.64-65.
195
SCHWARCZ, Lilia Moritz. OP.CIT. P.574
196
ORY, Pascal. Paris, capitale des exposition universelles. In: NATIONAUX, Centre Des Monuments.
PARIS ET SES EXPOSITION UNIVERSELLES: architectures, 1855 - 1937. Paris: Éditions Du Patrimoine,
2009. p.8

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197

legado arquitetônico pode ser testemunhado ainda hoje nos Champs-Élysées, na colina
Chaillot e nos Champ-de-Mars – principalmente por meio de duas monumentais
construções, a Torrei Eiffel e o palais Chaillot.
De acordo com Pascal Ory, as cinco primeiras feiras foram realizadas na
segunda metade do século XIX, em intervalos regulares de doze anos - duas durante o
Segundo Império, em 1855 e 1867 e três durante a Terceira República, em 1878, 1889 e
1900. Tal regularidade foi rompida um pouco depois com a eclosão da Primeira Guerra
Mundial em 1914, encerrando o ciclo destes eventos em Paris por mais de 30 anos. A
última feira, realizada em 1937, pretendeu retomar a tradição de grandiosidade e glória
das Exposições Universais da Belle Époque, mas acabou por marcar o fim destes
eventos na França, que não voltaram a ocorrer depois da eclosão da Segunda Guerra
Mundial em 1939 197. Apesar das descontinuidades, das rupturas e das transformações
que ocorreram tanto na sociedade francesa e quanto no resto do mundo ao longo do
ciclo das exposições universais parisienses (iniciado na segunda metade do século XIX
e encerrado na primeira metade do século XX), Pascal Ory chamou a atenção para oito
funções perceptíveis em cada uma de suas ocorrências, características que lhes
conferiram certa continuidade enquanto fenômeno histórico: “eram exibições
tecnológicas, feiras comerciais, salões de Belas-Artes, exposições de arquitetura, planos
aplicados de urbanismo, Government’s garden-party, encontros da sociedade das
nações e festas populares” 198.
O objeto deste estudo foi Exposição Internacional de Artes e Técnica da Vida
Moderna, o último evento deste tipo realizado em Paris. O cenário do período entre
guerras na qual ela foi realizada foi marcado por incertezas e inseguranças – pela
ruptura da crença absoluta no progresso; pelo pavor do retorno ao estado de Guerra
Total instaurado em 1914; pelo assombro com o fantasma do comunismo atualizado
pela Revolução Russa; pelo medo permanente de levante das massas; pela queda do
liberalismo; pela crise sem paralelo do sistema capitalista; pela ascensão do nazi-
fascismo e pela procura de novas formas de controle social e manutenção do status quo.
Sobretudo, pela importância crescente do Estado-Nação diante das sociedades ao redor
do globo e pelo poder de penetração dos discursos nacionalistas na vida dos cidadãos –
ampliado pelo poder dos novos meios de comunicação de massa, como o rádio, o
197
Cf. Idem. p. 9.
198
Idem, p.9.

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198

cinema e a televisão. Neste sentido, é de grande relevância o estudo de eventos


contemporâneos ao entre guerras como chave para a compreensão do papel estabelecido
entre política e cultura de massas, especificamente para o hospedeiro do evento – a
França na véspera da Segunda Guerra Mundial.

A França no Entre Guerras - Crise demográfica, econômica, política e de


identidade:
O plano de preparação da exposição internacional de 1937 ocorreu não apenas
em uma atmosfera de tensão internacional, mas, sobretudo, em um ambiente
profundamente conflituoso no interior da própria França. A nação sofria com as
consequências de sua participação na Primeira Guerra Mundial, pois sangrara até quase
morrer ao longo do conflito, que se estendeu de 1914 a 1918. Segundo Eric Hobsbawm:
“os franceses perderam mais de 20% de seus homens em idade militar,
e se incluirmos os prisioneiros de guerra, os feridos e os
permanentemente estropiados – os “gueules cassés [“caras
quebradas”] que se tornaram parte tão vívida da imagem posterior da
guerra – não muito mais que um terço dos soldados franceses saiu da
guerra incólume” 199.

Tal mortandade foi o estopim não apenas de uma crise demográfica, mas também de
uma crise de identidade, que foi muito mais profunda que a crise econômica e política
que se instauraram ao longo dos anos 30, pois ela tocou em questões chave como a
diversidade étnica e o real significado do se compreendia na época como Identidade
Nacional Francesa.
Segundo o historiador Ihor Junyk, “a crise demográfica incitou ansiedades
francesas de longa data sobre degeneração e emasculação” 200, pois a solução adotada
pelo governo foi o recrutamento de trabalhadores das colônias africanas e asiáticas para
setores como a agricultura e indústria. “Depois da Primeira Guerra Mundial, mais de
300.000 trabalhadores estrangeiros estavam empregados na França, a maioria deles não
201
brancos da África do Norte, Indochina, China e Madagascar” . O exército colonial
estacionado na capital desde o armistício era composto por um considerável contingente

199
HOBSBAWM, Eric J.. ERA DOS EXTREMOS: o breve século XX: 1914 - 1991. São Paulo: Companhia
das Letras, 1995. p.33.
200
JUNYK, Ihor. The face of the Nation: State Fetishim and Métissage at the Exposition Internationale,
Paris 1937. GREY ROOM: MASSACHUSETTS INSTITUTE OF TECHNOLOGY, Massachusetts, v. 1, n. 23,
p.96-120, jun. 2006. Trimestral. p.103.
201
Idem, p. 103.

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199

de soldados argelinos, marroquinos e senegaleses. Uma porção da população da


metrópole demonstrava publicamente sua preocupação com a influência que estes
imigrantes poderiam ter sobre a “pureza” do sangue francês e sobre a identidade
nacional. Eugène Apert, membro fundador da Sociedade Eugenista Francesa invocava
a imagem da maré da miscigenação a qual ele projetou naqueles soldados africanos que
202
em suas palavras “semeavam pequenos mestiços ao longo da zona rural” .
Manifestações racistas como estas se tornaram mais difundidas e virulentas ao longo
dos anos 30, agravadas pela crise econômica e política que se seguiram.
Conclusivamente, o que nos é perceptível com relação a recepção dos imigrantes na
França é a sistemática escolha de minorias étnicas como bode expiatório para o
justificar a sensação de colapso do corpo social experimentado na época.
Dessa forma, pressionado por setores conservadores da sociedade francesa, o
governo deportou muitos imigrantes das colônias após a Guerra, preferindo recrutar
trabalhadores brancos da Itália, Espanha e Polônia, “nações cujo sangue era considerado
mais compatível com a transfusão necessária para uma França anêmica” 203. No entanto,
vários imigrantes resistiram a pressão e permaneceram. Em 1926 mais de 1500
trabalhadores africanos residiam em Paris. O número era maior entre o exército
colonial, continuamente mobilizado na metrópole, graças ao medo crescente do vizinho
alemão, que continuava a assombrar os governantes franceses, a ponto de estes
sancionarem em 1929 a criação de uma linha fortificada na fronteira germânica – a ligne
maginot e a evacuação da Renânia. Uma porção da população parisiense, sobretudo os
intelectuais, respondia positivamente a presença dos imigrantes africanos na cidade –
que enriqueceram com sua presença a cultura literária e musical da capital, a tornando
uma metrópole cosmopolita e diversa 204 – um verdadeiro porto dos povos.
A quebra da bolsa de Wall-Street em 1929 foi um vergalhão que apenas atingiu a
França tardiamente, em 1932. No entanto, levou a nação tanto a uma severa depressão
econômica quanto a desestabilização política. Segundo Ihor Junyk:
“Incapazes de controlar a situação econômica, entre 1932 e 1934
cinco gabinetes duraram menos que vinte semanas cada, ocasionando
em uma crise de confiança no sistema parlamentar e ao aumento da
popularidade das brutais políticas de rua de grupos de extrema-direita,
como a croix de feu e a jeunesse patriotes. O medo do fascismo que

202
Idem, p.103.
203
Idem. p.103
204
Cf. Idem. p.103

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200

estava tendo lugar na França levou socialistas, comunistas e radicais


centristas a formar um front unificado de esquerda em 1935”. 205

Assim foi formado o partido de centro-esquerda Front populaire, que venceu as


eleições legislativas em 1936, assumindo o poder em momento no qual a França estava
em uma situação de literal guerra civil psicológica e moral – tendo testemunhado até
aquele momento, a contar a partir de Fevereiro de 1934, a mais de 1063 manifestações
de desordem pública, dentre assembleias, procissões, protestos e confrontos. O
presidente socialista León Blum tentou utilizar o plano da futura exposição universal de
Paris, engavetada desde 1929, como um instrumento para a reconciliação nacional, uma
tábua salvadora para a crise econômica e uma plataforma para angariar popularidade a
seu governo.

A Exposição Internacional de Artes e Técnicas da Vida Moderna:


A exposição de 1937 foi primeiramente proposta em 1929 por Julien Durand,
um político radical da região de Doubs. Na concepção original de Durand, no entanto, a
feira seria essencialmente estética por natureza: uma exibição de artes decorativas
baseada na “exposition de arts decoratifs et industriales” de 1925. Mas com a quebra
da bolsa de Wall Street e a subsequente depressão global, o foco da exposição da
exposição deslocou-se para tratar dos desafios da economia internacional e da ordem
social. Em 1933, sob o governo do radical Edouard Daladier, foi anunciada sua intenção
de sedia uma feira concentrada nos temas da indústria e das artes decorativas, na vida
dos trabalhadores e camponeses e na cooperação intelectual. No ano seguinte, no
entanto, a crise econômica tinha levado a uma mudança no caráter da exibição que
ocasionou em seu cancelamento completo. Em tempos de austeridade econômica e
depressão, nem o governo central nem a cidade de Paris sentiram que podiam justificar
tal esforço dispendioso. Mas o destino da exposição seria em breve revertido. Sob
pressão tanto das empresas, quanto da comunidade artística, em 1934 o recém nomeado
presidente conservador Gaston Doumergue tentou empregar a exposição como um
instrumento financeiro para engatar a moribunda economia francesa. O projeto
prosseguiu até se tornar o carro chefe do governo do Front Populaire em 1937. O
projeto do recém-eleito governo de centro-esquerda era empregar a exposição como um

205
Idem. p.103

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instrumento formador de uma identidade nacional coesa e auxiliar uma geração de


jovens franceses a livrar-se dos deletérios efeitos de uma modernidade em crise.
Dessa forma, foi marcada para 1° de maio daquele ano, dia do trabalho, a
inauguração na cidade de Paris de sua sexta e última Exposição Universal. O projeto foi
finalmente levado a cabo, mas não o fez sem muitos percalços. Segundo Sylvain
Ageorges, as tensões entre os patrões e o governo em relação ao estabelecimento da
semana de 40 horas de trabalho para os operários atrasaram as obras de construção dos
pavilhões 206. A elevação do nível do rio Sena provocou inundações ao longo de todo o
canteiro de obras da exposição, prejudicando o progresso dos trabalhos.Ocorreram
frequentes ameaças de completa paralização do setor hoteleiro parisiense por parte de
seus proprietários, em resposta a lei que proibia a gorjeta e estabelecia salários regulares
aos empregados do ramo. Segundo Volker Barth e Bertrand Lemoine, os numerosos
adversários de direita do Front Populaire passaram a mobilizar-se, formando dois
partidos de oposição principais – Le Parti Social Français e Le Parti Populaire
Français, cuja coalizão política acabou levando o presidente francês Léon Blun a
paralisar e recrudescer com as reformas trabalhistas em nome da governabilidade,
levando a greves generalizadas em todo o país 207. Logo, adiamentos frequentes
ocorreram na inauguração da Exposição, transferida por fim para 25 de maio.
Agravada pela retração econômica consequência da grande depressão, pela
consolidação do nazi-fascismo na Europa central e meridional, pela crise do liberalismo
e da democracia, pelo medo do bolchevismo e pela inépcia da Liga das Nações em
mediar conflitos, a beligerância aumentava ao redor do globo. A ocupação e
militarização da Renânia por parte da Alemanha (1936), a invasão italiana da Etiópia
(1935-36), o início da guerra civil espanhola (1936-39), a escalada da violência entre
Japão e China (1937-45) e os expurgos na União Soviética (1933 – 1939) são apenas
exemplos de como as saídas diplomáticas para impasses políticos estavam saindo do
repertório de muitos países. Diante desse quadro sombrio, o governo francês esforçou-
se em organizar e estruturar um evento internacional marcado pelo pacifismo. Esperava

206
Cf. AGEORGES, Sylvain. Sur les traces des Expositions universelles - 1855 Paris 1937: à la
recherché des pavillons et des monuments oubliés. Paris: Parigramme, 2006. p.164.
207
Cf. BARTH, Volker; LEMOINE, Bertrand. Paris 1937: Exposition international des arts et techinques
das la vie moderne In CENTRE DES MONUMENTS NATIONAUX. (Org.). Paris et ses expositions
universelles: architectures, 1855 - 1937. Paris: Éditions Du Patrimoine, 2009. p.71.

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assim criar um encontro harmonioso entre as nações, no qual seriam apresentados os


mais novos produtos, técnicas, ciências e expressões artísticas, em nome da cooperação
intelectual e da compreensão recíproca entre os povos, com o objetivo de deter a
escalada da violência. Na prática, a Exposição de 1937 foi uma demonstração fugaz do
poder econômico, político e cultural francês - naquele momento apenas uma sombra do
que fora antes de 1914. Uma imensa festa de celebração da paz e do progresso
capitalista sob um céu carregado de tempestade.
Outro fato desfavorável para a organização da exposição que deve ser aventado
foi o empasse jurídico-burocrático com o BIE (Bureau International des Expositions)
durante a homologação da feira em 1937. O BIE foi fundado em após a assinatura por
parte de diversos países da convenção de 1928. Tal convenção orientou a formação de
um órgão internacional cujo principal objetivo era regular a frequência e a qualidade das
exposições, aplicando regras rigorosas para preservar a qualidade de eventos dessa
natureza. Segundo Fabiano Scherer, um mal entendido provocou a classificação da
exposição parisiense pelo órgão regulador como internacional contra a vontade de seus
organizadores, categoria de segunda ordem na hierarquia de grandeza e prestígio destas
feiras. A França desejava por sua vez a classificação do evento como universal,
categoria de primeira ordem e de maior repercussão 208. “A solução para o Front
Popular foi realizar a Exposição Internacional conceitualmente enquanto uma
Universal. Para tanto, aumentou em um terço o tamanho da feira e ampliou os
investimentos” 209.
Apesar do clima cada vez menos receptivo a manifestações pacifistas e dos
diversos contratempos, a Exposição Internacional de Artes e Técnicas da Vida Moderna
foi um sucesso de crítica e público, significando uma importante vitória política para o
Front Populaire. “Ocupou 105 hectares, recebeu 44 nações participantes e 31 milhões
de visitantes até a data de seu encerramento, em 25 de novembro. Empregou, segundo
Eduardo Morettin “464 artistas plásticos, 271 escultores e 269 artistes décorateurs 210”.
O tema da Exposição de 1937, como seu próprio título indica, foi a conjunção entre arte

208
SCHERER, Fabiano de Vargas. Expondo os planos: as exposições universais do séc. XX e seus
planos urbanísticos. 2002. 267 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Arquitetura, Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 202. p. 121-122.
209
Idem. p.123.
210
MORETTIN, Eduardo Victorio. Uma construção luminosa: o cinema e a Exposição Internacional de
1937. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 26, n. 51, p.73-93, jun. 2013. Semestral. p.76

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203

e técnica, o que lhe conferiu um recorte mais específico se comparada as suas


antecessoras do século XIX e princípio do XX 211. De acordo com Fabiano Scherer, a
feira foi organizada da seguinte forma:
“[...] três temáticas propostas terão representatividade na exposição de
1937, ainda que de maneira desigual. A primeira no tema geral – artes
e técnicas; a segunda – civilização, através de uma exposição temática
sobre o pensamento e na confluência universal para a paz; a terceira –
vida operária e camponesa, através do centro rural”. 212

A direita francesa concentrou-se politicamente em torno tanto do Centro


Regional e seus 24 pavilhões (com suas expressões pitorescas e folclóricas
correspondentes a cada região da França), quanto dos 15 pavilhões representantes das
diversas partes do império colonial francês, da Argélia até Annan. A esquerda
aglutinou-se ao redor do Pavilhão do Trabalho e do Centro Rural. Apesar do Front
Populaire procurar ressaltar a modernidade artística, ao conferir a pinturas de murais a
Robert e Sonia Delaunay, para a ornamentação do Pavilhão do Ar e entregar o projeto
do pavilhão dos tempos modernos a Le Corbusier, segundo Eduardo Morettin “a falta
de uma concepção artística única tornaria o ecletismo a marca da Exposição, pois o
objetivo era conferir emprego ao máximo de artistas possível” 213.
A construção e inauguração do Palais Chaillot foi outro fato notável, pois
passou a abrigar o Musée de l'Homme, detentor da maior coleção etnográfica do mundo.
Simultaneamente foi inaugurado o Palais de la Découverte, museu vulgarização
científica de conceitos da ótica, física, genética, astronomia, química, medicina,
botânica e microbiologia Apesar de cada nação convidada construir um pavilhão,
dificilmente a maior parte deles chamasse tanto a atenção quanto os monumentais
pavilhões soviético e alemão, alinhados frente a frente no plano arquitetônico da
exposição. O pavilhão da União Soviética, expressão do realismo socialista, de
responsabilidade do arquiteto Iofan, adornado pela colossal estátua de 65 toneladas
intitulada O Trabalhador e a Mulher Kolkhoziana, realizada em aço-inoxidável por
Véra Moukhina, alegoria das realizações da indústria e agricultura do regime de Stalin.
Do outro, o pavilhão da Alemanha, concebido pelo arquiteto Albert Speer como
contraponto a construção soviética – uma torre retangular maciça adornada por uma

211
Idem, p.76.
212
SCHERER, Fabiano de Vargas. Op. cit. p.120.
213
MORETTIN, Eduardo Victorio. Op. Cit. p.76

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204

águia de metal, cuja estabilidade fazia frente a marcha da dupla proletária, representava
um “santuário do Estado”, edificado para valorizar a morte e o sacrifício necessários
para à consolidação da Nação.
Conclusão:
A importância da Exposição Internacional de 1937 se resume em ter sido uma
das expressões culturais do espetacular embate entre os antagonismos que mais
dividiram a humanidade ao longo do século XX. As mais divergentes posições políticas,
econômicas, sociais e culturais foram representadas materialmente nesta exposição,
tornando-a de acordo com Sylvain Ageorges, mais do que todas as suas antecessoras, a
“exposição do afrontamento das ideologias” 214. Nela, digladiaram-se o pacifismo e a
beligerância, a provincianismo e o cosmopolitismo, a colônia e a metrópole, as artes e
as técnicas, o fascismo e a democracia, o comunismo e o capitalismo, o arcaico e o
moderno, o ocidente e o oriente, o centro e a periferia do capital, o nacional e o
internacional.

214
AGEORGES, Sylvain. Op. Cit. p. 163.

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PRÁTICAS CULTURAIS,
MEMÓRIA E
IMAGEM

Mestre Georges Jacob. Cadeira de Braços. 1785-6


206

CRISTOCENTRISMO E FRANCISCO DE ASSIS NA CENA DO


ENCONTRO EM SÃO DAMIÃO, GIOTTO: SOBRE O
DIRECIONAMENTO DE OLHAR DO OBSERVADOR A
PARTIR DE UM AFRESCO DA BASÍLICA DE SÃO
FRANCISCO, ASSIS
André Luiz Marcondes Pelegrinelli 215 DHI-UEL
Profa. Dra. Angelita Marques Visalli (Orientadora) DHI-UEL
PALAVRAS-CHAVE: FRANCISCANISMO – GIOTTO – IMAGEM MEDIEVAL

Francisco de Assis (1182 – 1226), fundador da Ordem dos Frades Menores, teve
sua imagem e obra interpretada e reinterpretada centenas de vezes pela historiografia, a
tal ponto de Jacques Dalarun (2002, p. 15-16) chamar a atenção para um “círculo
mágico” em torno dessas questões e da chamada “questão franciscana”, sobre as quais,
por um lado surgiram estudos que buscaram analisar criticamente as fontes primeiras da
ordem, suas datações, aspectos técnicos, etc., e, por outro, estudos que jogaram mais luz
sobre determinadas passagens da vida de Francisco, em detrimento de outras, a fim de
moldar o santo sob suas intenções, “santificando-o”, de fato, ou diminuindo sua
influência. Importante perceber que estes dois lados do círculo mágico se encontram e,
em muitos desses trabalhos, aspectos heurísticos e hermenêuticos se combinam para
aumentar ou diminuir a influência do assisense sobre a cultura e a história do Ocidente.
No que tange às artes, durante os últimos anos do século XIX e a primeira
metade do XX, intensificaram-se estudos que pretendiam compreender a influência de
Francisco de Assis sobre a mesma. Henry Thode, em 1885, publicou uma imensa obra
insistindo sobre a influência determinante de Francisco na arte de seu tempo (THODE:
1885 apud RUSSO: 1984, p. 647), para ele, o santo assisense possibilitou uma abertura
da arte para o mundo exterior, a natureza e as formas sensíveis; o seguiram debatendo o
papel de Francisco nas artes, H. Focillon, 1926, e E. Delaruelle, 1955. Pierre Francastel,
em 1956, refutava a posição dos anteriores, diminuindo a suposta influência do santo
sobre as artes (FRANCASTEL: 1956). Para além dessas questões, que correm o risco de
cair na “circularidade mágica” de Dalarun, nos preocupa o cuidado e lugar dado às

215
E-mail: andrepelegrinelli@gmail.com .

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imagens – ou arte, de acordo com o conceito escolhido pelos estudiosos anteriores – na


Ordem Franciscana, e não apenas na figura de Francisco.
Aqui teceremos um estudo sobre o local da imagem religiosa dentro da Ordem e,
mais especificamente no contexto da criação do “Ciclo da Vida de Francisco”, a partir
de um afresco de Giotto (1266-1337), que fazia parte do ciclo supracitado e que figura
Francisco de Assis no emblemático momento em que ouve um chamado vindo de um
crucifixo na pequena Igreja de São Damião. Nela, o observador tem seu olhar
direcionado para dois protagonistas da cena: o jovem assisense e a imagem do crucifixo,
revelando dois caráteres importantes do lugar das imagens nessa obra: o cristocentrismo
que passa, necessariamente, por Francisco.
A Ordem dos Frades Menores alcançou grande proporção e influência em pouco
tempo, Francisco foi canonizado apenas dois anos após sua morte. A insistência no
discurso da Ordem sobre a obediência, a castidade e a pobreza ajudaram a remodelar a
prática religiosa no Baixo Medievo. No mesmo ano da canonização do santo fundador,
a construção de uma majestosa Basílica para abrigar seu corpo e ser igreja-mãe da
Ordem foi iniciada, a Basílica Papal de São Francisco de Assis, com duas igrejas que,
em seu primeiro momento deveriam ser, uma dedicada a receber os fiéis e as grandes
celebrações e, a outra, de uso interno dos frades.
No que se refere à presença de imagens nesta igreja, um antigo ciclo de afrescos
com as vidas de Cristo e de Francisco, em paralelismo, ocupava as paredes da Igreja
Inferior, provavelmente tenha sido o primeiro grande esforço de dar à Basílica a
característica de edifício dominado por imagens. Os especialistas estão de acordo em
data-lo entre 1260-70 (NESSI: 1994, p. 213). Esse antigo ciclo tinha uma clara
intenção: ao apresentar as imagens das vidas de Cristo e de Francisco em paralelo, umas
diante das outras, em paredes contrárias, apresentava-se Francisco como alter christus.
Entretanto, ainda no século XIII o projeto arquitetônico da Igreja Inferior foi
alterado para permitir que se abrissem capelas ao longo das paredes laterais e, embora
não destruído completamente, este primeiro ciclo foi danificado consideravelmente:
algum outro projeto pictórico precisaria apresentar o santo fundador em sua Basílica.
Quanto à abertura de capelas laterais, não se tratava apenas de possibilitar a fiéis
específicos demonstrarem sua piedade, homenagearem seus santos ou enterrar seus
mortos. Várias dessas construções acompanhavam generosas doações para a Basílica, o

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Sacro Convento e a Ordem. Um testamento de 1263, por exemplo, de certo Angelo di


Ranuccio dizia que se o mesmo fosse morto, por qualquer motivo, todos os seus bens
deveriam ser vendidos e doados para a Basílica, especificamente para ser usado “in
ornamenti e restauri di esse” (Archivo S. Conv. Istr. apud NESSI: 1994, p. 57).
Essa preocupação com as imagens e ornamentos, não exclusivamente por parte
dos internos da Ordem, em parte explica o porquê de, ao momento da abertura das
capelas laterais, um outro ciclo da Vida de Francisco começar a ganhar corpo na Igreja
Superior (NESSI: 1994, p. 249). Para este ciclo, um artista com ainda mais prestígio que
o “Mestre de São Francisco”, mais caro e com um espaço muito maior: tratava-se de
Giotto.
Vinte e oito grandes afrescos, distribuídos nas paredes laterais da Igreja
Superior, apresentam episódios da vida de Francisco a partir da hagiografia de
Boaventura (1221-1274), única hagiografia oficial após o Capítulo Geral de Paris, 1266.
Em geral, os estudiosos estão de acordo com a intervenção direta de Giotto sob as vinte
e cinco primeiras cenas, as outras podem ter sido encarregadas a seu ateliê ou a um
outro artista com estilo semelhante. O Francisco de Giotto precisava atender as
demandas da Ordem no fim do século XIII, uma ordem já fortemente hierarquizada,
com grande número de teólogos, estudiosos. Francisco nele recebe grande atenção por
seus milagres e, em especial pelo episódio dos estigmas e tem, entre outras, sua função
de pregador esvaziada (FRUGONI:2011, p. 15).
Angelita Visalli (2013) demonstrou como o episódio do encontro de Francisco
com o Crucifixo de São Damião, na igrejinha de mesmo nome, é valioso para pensar o
local da imagem devocional na Ordem. Os dois hagiógrafos principais da vida de
Francisco, Tomás de Celano (1220 – 1270) e Boaventura destoam ao narrar esse
episódio. Ao descrever a ordem para que Francisco “reconstruísse a Igreja”, enquanto o
primeiro hagiógrafo narra que o crucifixo mexeu os lábios (2Cel, 6, 10-11), para o
segundo a voz apenas vinha do objeto (LM, II, 2, 3). Insistiu-se que a manifestação
transcendental através da imagem foi privilégio do santo fundador e, considerando a
disparidade entre as narrativas dos hagiógrafos, percebe-se certa cautela no trato com a
imagem através desse episódio (VISALLI: 2013, p. 99).
Apresentamos a imagem produzida por Giotto, quarta cena do ciclo de Assis
(Fig. 1):

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Fig. 1 – Giotto e ateliê – O Crucifixo de São Damião fala a Francisco – c. 1295-1299 – Basílica Superior
de Assis
Giotto pinta uma pequena igreja, com teto, paredes laterais e nave destruídas,
alguns detalhes arquitetônicos e ornamentais que são característicos de seu estilo e do
ciclo de Assis, dois personagens chamam a atenção e atraem o olhar, da esquerda para a
direita, Francisco, ajoelhado e em oração e o Crucifixo de São Damião.
Francisco de Assis está no centro da cena. Aureolado, mantém essa característica
em todas as cenas, mesmo naquelas antes de sua conversão. Duas características de sua
imagem no ciclo de Assis representam sua conversão: os sapatos e as vestes.
Na cena de Giotto, Francisco usa sapatos, e essa, tal como as vestimentas azuis,
é a última cena em que são figurados, a cena posterior, é aquela em que Francisco
renuncia aos bens paternos. Nela, o assisense aparece nu, encoberto apenas pelo bispo e
descalço, nas outras cenas Francisco seria sempre figurado com o hábito Franciscano e

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descalço ou com sandálias. Tomás de Celano e Boaventura ao narrar o episódio


concordam que Francisco já havia se convertido, não tendo “nenhum mestre a não ser
Cristo” (LM, II, 1, 1) e “já transformado perfeitamente no coração” (2Cel, 6, 10, 1),
sendo assim, calçados e vestes não se transformam com sua conversão interior, mas
com a renúncia dos bens na cena seguinte.
Quanto à sua roupa, Francisco, tal como nas cenas anteriores, usa azul,
infelizmente danificado pelo tempo, preservando apenas poucos resquícios, pois a
coloração rosa, em realidade, e comparando com as imagens anteriores, é a base sob a
qual se sobrepunha a coloração azulada.
O azul, a partir do século XI passa a marcar fortemente a figuração da nobreza.
No brasão do rei francês – d’azur semé de fleurs de lis d’or -, por exemplo, o azul
marca a distância e revela o que é nobre, o mesmo acontece com a Virgem que,
fortemente valorizada no baixo medievo, ganha a mesma coloração. Michel Pastoreau
identifica um crescimento da frequência do azul em brasões, após o século XI, de mais
de trinta por cento. (PASTOREAU: 2000, p. 49). Francisco, figurado em azul
contrastava com o Francisco vestido com o marrom do hábito nas cenas seguintes, que
evoca a sujeira, pobreza e rusticidade (PASTOREAU; SIMONNET: 2005, p. 115).
O gesto de Francisco também chama a atenção: ajoelhado, prostra-se a rezar,
mas suas mãos não realizam o gesto de oração. Em cinco cenas do ciclo, Francisco
aparece em oração: 1) Francisco e o Crucifixo de São Damião; 2) Renúncia aos bens
paternos; 3) Visão da carruagem de fogo; 4) A Visão do trono reservado a Francisco no
Céu; 5) A Confissão de uma mulher próxima a morte. Nas imagens 2, 3, 4 e 5,
Francisco tem as mãos unidas e o braço levemente dobrado, em posição de oração. Na
imagem que estudamos, Francisco, embora nas narrativas e mesmo na apresentação das
cenas, em postura de oração, não mantém as mãos unidas, estas estão afastadas
levemente uma da outra, com a palma para frente, na mesma posição em que estão na
cena da Estigmatização, assim, Giotto estabelece um paralelo entre o episódio em que
Francisco ouve o Crucificado e aquele em que, próximo ao fim de sua vida, recebe, em
seu próprio corpo, as marcas da crucificação.
Em frente a Francisco, um pequenino altar sustenta um grandioso crucifixo, o
chamado Crucifixo de São Damião. Francisco encontrou-se com aquela imagem e, na
mesma igreja, o crucifixo permaneceu até 1257, quando foi transferido para a Basílica

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de Santa Clara, ainda em construção, a peça permaneceu todos estes séculos guardada e
foi exposta ao público apenas no século XX.
Pintada sobre madeira, a imagem tem cerca de 2m x 1,30m. Trata-se da imagem
do Christus triumphans, vivo, não está pregado na cruz, emerge do túmulo e paira sobre
ela(VISALLI: 2013, p. 90). A iconografia cristã escolheu até o século XIII figurar
principalmente um Cristo que, quando na cruz, não sofria (BOESPFLUG: 2010, p. 126).
É a partir do século XIII que modelos de crucifixos com o Christus patiens, em
sofrimento, tendem a crescer. Figurar Cristo dessa forma implica um aumento da
percepção da face humana frente a face divina da ambivalente figura de Cristo.
A imagem do Christus patiens fazia parte do arsenal de figurações de Giotto,
além de muito mais comum em seu período que as figurações anteriores, o próprio
Giotto pintou vários destes crucifixos, é o caso, por exemplo, do Crucifixo pintado para
Santa Maria Novella, em Florença. (Fig. 2)

Fig. 2 – Giotto e ateliê – Crucifixo – c. 1290-1300 – Santa Maria Novella, Florença.


Entretanto, ao observar atentamente o crucifixo representado no afresco, ele se
aproxima muito mais do modelo de São Damião do que aqueles que Giotto produzira:
não há, na figuração do afresco, ícones laterais, por outro lado há um ícone acima da

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cabeça de Cristo; a base para os pés se repete nas duas mas não havia no crucifixo de
São Damião; João e Maria, que na imagem de São Damião estavam ao lado esquerdo de
Cristo, na imagem do afresco estão um de cada lado e todos os outros personagens do
Crucifixo saem de cena. Mais importante: a cabeça de Cristo não está inclinada: o
Crucifixo de São Damião de Giotto também é um Cristhus triumphans. Não sabemos
precisar se Giotto teve contato com a imagem, que já estava na Basílica de Santa Clara.
Para Daniel Russo, a imagem do Cristo sob a cruz é uma imagem imediata
(1984, p. 649), que não demanda muitos conhecimentos específicos do observador e de
fácil reconhecimento. A altura em que se encontram os afrescos e a distância daquele
que os observa não parece ter facilitado a observação de características pequenas como
as que elencamos: diante de uma basílica repleta de imagens, as características dessa
pequena imagem eram diminuídas e, apesar do acúmulo de informações imagéticas aos
quais era submetido o observador, a presença do crucifixo por si bastava para dar pleno
funcionamento à figuração.
A cena do encontro de Francisco de Assis com o Crucifixo de São Damião não
foi muito reproduzida na iconografia franciscana: segundo levantamento realizado por
Scarpellini, encontramos registro apenas de uma imagem antes de Giotto, produzida por
um seguidor de Guido de Siena em 1270 (SCARPELLINI: 1982, p. 121), tratava-se de
um painel com Francisco no centro, rodeado por oito cenas de sua vida e sete anjos
(Fig. 3). Em contraponto, a figuração de Giotto, aqui Francisco está calçado e com o
hábito, as mãos em posição análoga; o Crucifixo não é o de São Damião, ao contrário, é
o Cristo mesmo quem está figurado e preso a uma Cruz, e um raio de luz liga as visões
de Francisco e de Cristo. Além disso, Francisco não está dentro de uma igreja, se não
fosse pela existência de uma outra cena que se refere à estigmatização, essa cena
poderia ser tomada como referência a esse momento.

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Fig. 3 – Seguidor de Guido da Siena – São Francisco, oito cenas de sua vida e sete anjos (detalhe) – c.
1270 – Pinacoteca de Siena.
O enquadramento proposto por Giotto, utilizando as linhas horizontais da Igreja
de São Damião, direcionam o olhar do observador, da esquerda, para a direita,
afunilando-o, primeiro em Francisco e, somando as linhas horizontais, o olhar de
Francisco e a sua posição de mãos, ao Cristo. (Fig. 4)

Fig. 4 – Modificação do autor.

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A disposição das linhas e dos personagens segue uma intenção daquele que as
dispõe: Francisco, na lógica do ciclo de Assis se apresenta como já citado como um
alter christus, mas, além disso, direciona a Cristo.
Ao pensar um painel que trazia a imagem de Francisco no centro e ao redor
episódios de sua vida, Daniel Russo percebia dois níveis de apreciação possíveis a
imagem: imanência, ao direcionar o observador sob si própria e ao personagem em
destaque e, por outro lado, a um nível de transcendência, ao direcionar o observador às
cenas narrativas que legitimavam a imanência do personagem em destaque (RUSSO:
1996, p. 138). Percebemos os dois níveis de apreciação no afresco de Giotto, imanência
ao direcionar a visão e pensamento, em um primeiro momento ao santo que dá nome à
Basílica e, a partir da disposição deste e das linhas horizontais, um nível transcendental
ao Crucifixo, permitindo ao observador a experiência de Francisco, não por si, mas
guiado pelo santo na lógica flexível da imago medieval (SCHMITT: 1996).
Francisco e Cristo dividem e co-protagonizam a cena, o primeiro direcionando o
olhar sob o segundo e, por sua vez, este legitimando o primeiro. Lógica parecida é
aquela das imagens da Virgem com o Menino em que, em um primeiro momento Maria
ganha destaque e seus braços direcionam o olhar sobre o menino que está entre eles.
Não se trata de uma diminuição da importância da imagem do Cristo, mas um
preencher de sentido: num ciclo dedicado à vida de um santo, a visão última é Cristo,
mas que demanda necessariamente pelo passar de olhos sob o santo.
Angelita Visalli (2013, p. 99) insiste sobre o privilégio e exclusividade da
experiência de São Damião que pertence, em primeiro lugar, a Francisco. Roland Recht:
(1999, p. 103) considera que a centralidade da experiência visual da espiritualidade de
Francisco de Assis apurou a experiência imagética do período. Embora inalcançável ao
fiel, o discurso sobre a visão, potencialidade e local das imagens na vida de Francisco,
somado a potencialidade de percepção e sensibilidade aumentada pela naturalidade e
insistência no detalhamento das imagens (RECHT: 1999, p. 109-12) colaborou para a
construção do campo e pensamento sobre a imagem nestes espaços. Talvez, ouvir a voz
vinda do Crucifixo, não fosse possível, mas ver essa experiência, sim.

REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS:

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BOESPFLUG, François. Le Dieu des peintres et des sculpteurs. Paris : Hazan ; Paris :
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FRANCASTEL, Pierre. L’art italien et le rôle personnel de saint François. Reflexions
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VISALLI, Angelita Marques. O Crucifixo de São Damião: assim Cristo se manifesta a
Francisco de Assis. Notandum, 32, 85-100, maio-ago 2013.

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OBJETO MUSEOLÓGICO COMO FONTE DE REFLEXÃO:


LOCOMOTIVA BALDWIN 840 EXPOSTA NO MUSEU
HISTÓRICO DE LONDRINA
Aryane Kovacs Fernandes (Especialização em Patrimônio e História; UEL)
Richard Gonçalves André (Orientador)

O presente artigo tem como intuito principal identificar a Locomotiva Baldwin


840, exposta na plataforma do Museu Histórico de Londrina (MHL) desde abril de
2014, como fonte de reflexão sobre o patrimônio cultural. Patrimônio possui possíveis
ramificações, como: museus, coleções, identidade, casas de cultura, território
(ambiental), memória, arte, nação, ações educativas, cultura material e acervos. A
locomotiva em questão é acervo ferroviário do MHL e pode ser considerada como
patrimônio histórico. É um objeto museal identificado como importante para um grupo
de pessoas, sendo resultado de um processo de disputa de diferentes identidades sociais.
Os estudos de cultura material fornecem base às relações de sobrevivência da
humanidade, ainda, por meio deles se entende a forma como os objetos suscitam
inteligibilidade à sociedade. Seguindo esta perspectiva, introduz-se a narrativa sobre a
locomotiva a vapor construída pela The Baldwin Locomotive Works, na Filadélfia
(EUA) em 1910. O número de fabricação é 34.883, pesa 32 toneladas e o tender 10
toneladas. Percorreram cerca de sessenta anos em trilhos paulistas, ficaram expostos no
Parque da Uva, em Jundiaí, por aproximadamente vinte e cinco anos, e três anos
estacionados nas oficinas da antiga FEPASA. Depois, em 1999, foram cedidos pela
Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFFSA) à Universidade Estadual de
Londrina (UEL). Restaurados entre 2013 e 2014 para exposição na plataforma do MHL.
Embora não tenham andado em trilhos paranaenses, sua importância histórica
permanece. Também pode remeter à memória ferroviária e despertar outras memórias
sobre a região do norte do Paraná, pois foram locomotivas como esta que transportaram
muitos migrantes e também produtos da região, como o café, para os portos de Santos (SP) e
de Paranaguá (PR). Além disso, auxiliou no transporte de passageiros e de produtos
cafeeiros, da mesma maneira como locomotivas a vapor semelhantes a ela o realizavam
nesta região. Segundo Ulpiano Bezerra de Meneses (1998), “[...] a simples durabilidade
do artefato, que em princípio costuma ultrapassar a vida de seus produtores e usuários

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originais, já o torna apto a expressar o passado de forma profunda e sensorialmente


convincente.” (MENESES, 1998, p.90) Neste sentido, para o museólogo Mario Chagas
(1985), sua importância implica na relação com o humano e na valorização decorrente
dessa relação. Desta maneira, o objeto é analisado com significado cultural e social.
De acordo com Francisco Régis Lopes Ramos (2004), quando um objeto é
inserido no acervo de uma instituição museal, o mesmo perde suas características
anteriores. Um relógio não serviria mais para marcar as horas. Sendo assim, encerra-se a
utilidade prática desempenhada no cotidiano e adquire diferentes significados de acordo
com a exposição em que estará inserido, estabelecendo diálogos com seu entorno. No
museu, o público visitante observa a cultura material e percebe, cada um à sua maneira,
um significado produzido. Para Meneses:
No museu nos defrontamos com objetos enquanto objetos, em suas
múltiplas significações e funções – ao contrário, por exemplo, do que
ocorre num supermercado. Objetos de nosso cotidiano (mas fora desse
contexto e, portanto, capazes de atrair a observação) ou estranhos à
vida corrente (capazes, por isso, de incorporar à minha as experiências
alheias). Doutra parte, é a função documental do museu (por via de
um acervo, completado por bancos de dados) que garante não só a
democratização da experiência e do conhecimento humanos e da
fruição diferencial de bens, como, ainda, a possibilidade de fazer com
que a mudança - atributo capital de toda realidade humana - deixe de
ser um salto do escuro para o vazio e passe a ser inteligível.
(MENESES, 1994, p.12)
Myrian Sepúlveda dos Santos se aproxima desta percepção ao citar a arma, a
qual, ao ser extraída “[...] do seu contexto original, morre e perde seu significado, e
sobre esta morte é que se constrói a possibilidade de contato com o passado.”
(SANTOS, 2006, p.37) Segundo Ramos, “[...] é preciso lidar com a história do objeto
antes e depois de sua entrada no espaço museológico.” (2004, p.139) No museu, este
objeto se torna objeto recolocado, perde a vivência no cotidiano e passa a ser espaço de
pesquisa histórica, com recortes e problemáticas. Portanto, não necessariamente se
coloca o objeto na condição de imitação à sua existência anterior, uma vez que na
exposição adquire nova existência transformando-se em objeto de estudo. Para Ramos,

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este pode ser chamado de “objeto de passagem”, o qual desperta reflexões sobre o
tempo. De acordo com o autor:
Aí, o museu transforma-se em lugar onde o tempo é visto, não como
reflexo, representação ou resgate do passado, mas como experiência
de múltiplas sensações e reflexões que se constituem a partir dos
objetos e sobretudo a partir do modo pelo qual os objetos estão
dispostos. Ver o tempo não significa ver o passado, mas visualizar na
materialidade do que é exibido a presença do tempo [...], passar pelo
objeto, imaginando, sentindo o que o objeto pode ter sido e por que foi
parar no museu, reformulando a separação entre ficção e realidade.
(RAMOS, 2004, p.151)
Deste modo, é necessário compreender o local onde a Locomotiva Baldwin 840
foi inserida. O MHL foi fundado em 1970, no porão do Colégio Hugo Simas, a antiga
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Em 1974 se tornou órgão suplementar da
UEL, dirigido por professores do Departamento de História. Em 1986 foi instalado no
prédio da segunda estação ferroviária de Londrina, localizado ao centro da cidade com
destacada arquitetura em comparação às de seu entorno. E, posteriormente como
Museu, visualiza-se um jardim com diferentes tipos de árvores, inclusive pés de café. O
Museu é um dos maiores núcleos de preservação da história local, em vista de seu
acervo.
O Museu funciona no edifício da antiga Estação Ferroviária. Esta iniciou seu
funcionamento em 1950 e em 1982 foi desativada. Deste modo, ainda permanecem
alguns elementos ferroviários como a bilheteria, onde eram comprados os bilhetes de
primeira e segunda classe, carimbados os bilhetes de volta, sendo também espaço para
fornecer informações. Em seu interior continua o piso avermelhado da Estação
Ferroviária. Na plataforma, local em que passageiros chegavam de viagem ou
esperavam para embarcar nos trens, encontra-se o sino cujo barulho emitido despertava
a atenção dos viajantes. Ainda, há exposição de fotografias representativas da formação
do aspecto ferroviário da região. Um dos cenários que compõem a exposição de longa
duração é o escritório da estação que ficava no segundo andar do prédio. Próxima à
plataforma está estacionado o objeto de estudo deste artigo, a Locomotiva Baldwin 840
e seu tender de abastecimento, engatados ao carro pagador e ao carro de passageiros.

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Sua exposição de longa duração foi inaugurada em 2000, e desde então não foi
reformulada. É compreendida por uma antesala e mais três salas. Nestas, encontram-se
principalmente objetos que revelam a periodização de 1929 ao final da década de
1970 216. O objetivo consiste em evidenciar algumas formas de trabalho desenvolvidas
neste espaço e tempo. Além desse há outro local dedicado a exposições temporárias, nas
quais são aprofundados os temas representados de maneira geral na de longa duração.
Então, são três salas em que se problematiza especificamente determinada temática.
Como exemplo, no ano passado, ocorreu a exposição denominada “Café e Ferrovia”.
Esta propunha reflexões sobre o cotidiano nas colônias das fazendas de café, o modo de
produção e de preparo do produto até ser transportado, e por meio de imagens do
fotógrafo Armínio Kaiser os descuidos com a terra, as erosões, as geadas e o êxodo
rural.
É possível comparar a suntuosidade do edifício do MHL com a citação de
Ramos (2004) quando menciona as características de monumentalidade do Museu do
Ceará, considerando-o uma “máquina de sedução” que leva a imaginação a tempos do
passado. Trata-se de um envolvimento entre o fascínio e a reflexão que resulta no
conhecimento sobre a própria historicidade de quem o observa. Segundo Ramos, “É a
partir dessa visão generosa e admirada que se pode pensar sobre as próprias razões do
edifício, perguntar-se sobre sua história, suas intenções originais... Indagar-se sobre os
usos da construção no decorrer do tempo.” (RAMOS, 2004, p.46)
Para Ramos (2004), o museu não se limita ao lugar de guardar e expor artefatos,
neste espaço ocorre “[...] a metamorfose dos objetos, em simbiose com o poder da
memória e a memória do poder, nas suas mais variadas manifestações.” (RAMOS,
2004, p.114) Segundo o autor, o próprio museu deve ser considerado como objeto de
exposição.
Ainda a respeito do processo curatorial para tornar o objeto musealizado,
segundo Marília Xavier Cury, “O objeto é adquirido, estudado, conservado,
documentado e comunicado.” (2005, p.14) Cabe à ação cultural educativa do Museu
potencializar a comunicação destes objetos com o visitante, por outro lado, os objetos
sempre comunicam algo ao visitante espontâneo dependendo de sua experiência de
vida. Para Meneses (1994), a exposição museológica possui caráter de convenção
216
Contudo, é importante ressaltar que também há objetos que indicam a presença de indígenas em
datação anterior a 1929.

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visual, em que a organização dos objetos visam produção de sentidos. E para Ramos
(2004), qualquer exposição possui um ato comunicativo, e quanto à ação educativa, “O
monitor não deve expor a exposição e sim provocar, nos visitantes, a vontade de ver
objetos.” (RAMOS, 2004, p.27). Deste modo, “Se aprendemos a ler palavras, é preciso
exercitar o ato de ler objetos, de observar a história que há na materialidade das coisas.”
(RAMOS, 2004, p.21)
De acordo com Cury, “O museu formula e comunica sentidos a partir do seu
acervo.” (2005, p.23). Além disso, considera-o como a única instituição responsável
pela preservação do objeto e comunicação de seus significados nos âmbitos cultural,
social e educacional a fim de construir valores patrimoniais. Para a autora,
[...] o museu propõe um processo de (re)significação do objeto que se
realiza no bojo da cultura material por meio da comunicação
museológica, processo consciente para os participantes que aceitam,
rejeitam, propõem, negociam o bem ressignificado. O próprio ato de
musealizar - retirada do circuito comercial e inserção no circuito
museal - é (re)significação cultural e é discutido com o público.
(CURY, 2005, p.14 e 15)
Ramos realiza uma crítica sobre a falta de reflexão sobre os objetos que nos
cercam no dia a dia, e se isso acontece cotidianamente, a percepção sobre os objetos
expostos no museu também fica limitada. Costume construído pela sociedade de
consumo que vê de maneira rápida o nascimento e a morte dos objetos, observando o
mundo ao ser redor apenas como uma vitrine, olhando-a desapercebidamente. Assim,
“As vitrines do museu não podem ficar submetidas aos padrões de visibilidade das
vitrines do comércio.” (RAMOS, 2004, p.76) Para o autor, é necessário pensar sobre o
próprio presente, sendo a única maneira de construir conhecimento sobre o passado. A
respeito de como lidar com o objeto exposto, segundo Santos:
Os museus procuraram criticar a fetichização dos objetos, como se
eles tivessem um significado único e mágico. Entretanto, ao se
afastarem da concepção que vê o objeto como objeto, ao tentarem
dessacralizá-lo, pois objetos não são portadores de uma verdade
contida neles próprios, muitas vezes os profissionais dos museus
foram vítimas de outro erro, já que transformaram os objetos em
simples mercadorias, um recipiente vazio, pronto a servir de exemplo
a qualquer interpretação ou representação da história. Uma atitude

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mais criteriosa em relação aos objetos seria vê-los e apresentá-los


levando em consideração seu passado, sua historicidade e, na medida
do possível, remetendo-os a seu lugar de origem, onde, sem dúvida,
serão mais ricos de significado. (SANTOS, 2006, p.81)
Ramos identifica o objeto gerador, como possibilidade para potencializar a
reflexão a partir da cultura material por meio de perguntas. Não é preciso negar a
historicidade do objeto, porém em uma visita mediada pela ação educativa se faz
necessário primeiramente explorar o presente vivido e depois relacioná-lo ao objeto do
passado, o qual perdeu seu valor de uso naquele espaço museal. Realizar comparações
entre estes objetos de diferentes tempos históricos faz o visitante construir noções de
historicidade sobre os mesmos, como nascimento, morte e transformação.
Desta maneira se desenvolve o saber histórico dos objetos, cria-se condição para
problematizações a partir do cotidiano, aplica-se uma pedagogia dos objetos. De acordo
com Ramos, a partir deste diálogo com a materialidade o sujeito pode se compreender,
identificando o que o ser humano fez, refez e destruiu, usa e deixou de usar. Assim,
percebe-se o objeto em suas peculiaridades e múltiplas ligações com a sociedade, não
apenas como construção humana. Portanto, este objeto passa a ser visto como
documento histórico, logo a Locomotiva Baldwin 840 é considerada aqui como tal.
Ramos demonstra insatisfação com o desejo compulsivo de ser cada vez mais
moderno, conservar menos e destruir mais, o que agrava a situação dos patrimônios
edificados. O patrimônio passou a ser visto como bem de consumo e não preservação de
documentos históricos. Transformam-se locais com densidade histórica, como o
Pelourinho, em Salvador, em passeio turístico a fim de impulsionar vendas de produtos,
de imagens e de paisagens. Desta maneira, “Aquilo que era marca do tempo, vestígio de
muitos pretéritos, tornou-se um shopping Center no estilo colonial. [...].” (RAMOS,
2004, p.79) Segundo Ramos:
Afinal, como interpretar o desprezo pelo passado? Como estudar a
falta de afetividade diante do chamado patrimônio histórico? Como
ficam as políticas públicas de preservação? O que colocar no lugar
daquela política autoritária e excludente que caracterizou, por muito
tempo, as ações do IPHAN? Bem, uma coisa é certa: o desafio não foi
enfrentado de modo mais incisivo, porque o que ainda predomina é a

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urgência do salvamento, espremida pela falta de recursos e mão-de-


obra especializada. (RAMOS, 2004, p.78)
Tal desprezo foi bastante evidenciado no início do segundo semestre deste ano
quando o superintendente do IPHAN (PR), José Pastina Filho, e outros dirigentes,
manifestaram ações para retirada da locomotiva manobreira belga La Meuse 101 da
frente do Pronto Atendimento Infantil (PAI), abrindo precedente para Londrina também
perder a Baldwin 840. A repercussão negativa de autoridades políticas e nas redes
sociais foi intensa. De acordo com a matéria de Marcelo Frazão no Jornal de Londrina
(JL), no dia 22 de agosto, “Para o Iphan, a única forma de preservar o patrimônio
ferroviário é mantê-lo rodando – o que só seria possível, neste momento, em Curitiba. É
lá onde a ABPF mantém circuitos turísticos com trens recuperados e planeja ver a
manobreira em atividade.” (FRAZÃO, 2015)
Estudantes do curso de História da UEL organizaram manifestação por rede
social e se encontraram no dia 12 de setembro no Calçadão de Londrina com cartazes e
coleta de assinaturas contra a retirada das locomotivas. Na página do MHL, na rede,
encontram-se muitos comentários em relação ao assunto, em geral no sentido negativo à
decisão do superintendente, na publicação daquela matéria no JL. A seguir dois
comentários que se posicionaram contra à atitude do IPHAN do Paraná:
Enquanto pesquisadora, defendo o retorno às ideias e palavras ditas
por Alísio Magalhães, ‘a comunidade é a melhor guardiã de seu
patrimônio’. De outro lado, a decisão imposta pelo Iphan do Paraná
vai contra todo esse debate. Lembremos que, ao dizer estas palavras,
Aloísio Magalhães reconheceu que o patrimônio poderia ser fonte de
desenvolvimento local, que as pessoas são detentoras e produtoras de
referências culturais e que, quando tratamos sobre o tema patrimônio,
processos horizontais e mais democráticos são absolutamente
necessários.
A UEL solicitou a vinda da locomotiva manobreira para o pátio do
Museu Histórico após o restauro da Baldwin. Aguardou por meses
sem reposta do IPHAN. A UEL não pode competir com a OSCIP
ABPF. O Museu não pode cobrar ingressos. Eu li o projeto de restauro
da manobreira que a ABPF apresentou ao IPHAN. Ela vai ser
explorada em passeios turísticos. A ABPF mantém parceria com a
Serra Verde Express. Segundo a ABPF, em apenas 1 dia desses

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passeios turísticos eles venderam 840 bilhetes... isso sim é


conservação do patrimônio histórico para o IPHAN do Paraná... Para a
ABPF, no projeto de restauro, ‘Se os mini-passeios já são um sucesso
com a Francesa, imagine-se, então, com uma pequena e vistosa
locomotiva a vapor, como a 101!” Vivam os negócios, que se danem
as instituições públicas, as teorias sobre a fruição do patrimônio, que
se dane o povo de Londrina! (https://www.facebook.com/Museu-
Hist%C3%B3rico-de-Londrina-382821251811508/)
A seguir um comentário que se posicionou a favor à atitude do IPHAN do
Paraná:
Ironicamente, sou um douradense que adotou Londrina para viver e
estudar. Essa locomotiva como outras abandonadas em SP,
pertenceram originalmente a Cia. Douradense de Estradas de Ferro.
Hoje Dourado é uma pequena cidade interiorana estagnada
demograficamente, lhe restando apenas a memória dos tempos áureos
da ferrovia. De outra sorte, Londrina em menos de 100 anos se tornou
a terceira maior cidade do sul, sede de uma região metropolitana
própria. Entendo o apego com a Baldwin e a Le Meuse (e o trabalho
de restauro merece elogios), porém essas locomotivas jamais
cruzaram o norte do Paraná! Se existem propostas de reativá-las em
seus logradouros originários, qual o problema? Já passou da hora do
MHL, da PML e do IPHAN localizarem as locomotivas que
trouxeram os pioneiros londrinenses e que cortaram o ‘sertão’ norte
paranaense (e caso não sejam localizadas, cabe a sociedade
londrinense reconhecer que não conservou seu patrimônio
ferroviário). A própria ACIL poderia ser mais ativa na implementação
de uma linha turística. Isso seria a construção do patrimônio histórico
londrinense... e não simplesmente importar objetos, seja de Curitiba,
seja de SP. (https://www.facebook.com/Museu-Hist%C3%B3rico-de-
Londrina-382821251811508/)
Seguindo esta percepção, parece que a única maneira de se preservar o
patrimônio é fazendo o mesmo se movimentar, como se o turismo fosse a única forma
de se preservar o patrimônio. Perspectiva que confirma a crítica de Ramos há mais de
dez anos. Como visto em toda a discussão deste trabalho, a locomotiva Baldwin passou
a ser um objeto museológico perdendo sua função primeira.

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Além disso, apresenta-se aqui o estudo piloto da pesquisa para a monografia da


especialização em Patrimônio e História, isto é, o questionário dirigido a cinco
visitantes espontâneos de diferentes idades do MHL. O questionário possui perguntas
mistas, isto é, duas perguntas fechadas e cinco abertas.
A primeira fechada consiste em marca um x na faixa etária em que se inseria:
18-30 anos; 31-50 anos; 51-70 anos; 71 ou mais. A idade mínima foi indicada pela
idade legal para atingir maioridade. Pretende-se, assim, perceber como analisam a
Locomotiva e a relação estabelecida com o espaço onde está inserida tendo em vista que
as gerações de londrinenses e de novos moradores, a partir do início da década de 1980,
nunca testemunharam o funcionamento da estação. E a segunda pergunta fechada é se a
pessoa mora em Londrina. As próximas são abertas, sendo: Se sim, há quanto tempo?;
Se não, onde mora?; O que lhe motivou a visitar o Museu Histórico de Londrina?; Qual
a importância, para Londrina, desta Locomotiva estar exposta neste Museu?; Qual a
importância desta Locomotiva para você?
Os questionários foram aplicados na manhã do dia 25 de outubro deste ano, era
um domingo de manhã e chuvoso, e direcionados a duas famílias. A chuva é um fator
importante, pois limita a realização de passeios para a maioria das pessoas, e se
acontecem deve haver algum motivo forte. Além disso, eram solicitados ao término da
visitação após as reflexões terem sido construídas. Ao conversar com os visitantes
percebi informações que não constavam no questionário, mas que foram anotadas por
mim ao final. Identificou-se a reflexão sobre o objeto por meio da comparação entre a
lembrança do passado e as diferenças com o tempo atual. Ademais, percebeu-se a
necessidade de mais um pergunta para os próximos questionários: Qual a sua opinião a
respeito da polêmica das locomotivas?
Nos dois casos se encontrou três gerações nas famílias. O primeiro era composto
pelo pai, sua filha e seus dois netos (um de seis anos e outro de dois anos). E o segundo
pela avó, um casal e o filho adolescente. Nas respostas das personalidades mais velhas
apareceu um aspecto semelhante sobre contar para os netos como era Londrina e as
locomotivas.
No primeiro caso, um dos netos estava fazendo trabalho na escola sobre pontos
turísticos da cidade e sobre museus. Sendo assim, sua mãe convidou o avô para ajudar
realizando a visita antes de a escola visitar o Museu. O mesmo escreveu no questionário

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a importância de lembrar os tempos de sua juventude. Dentre todas as memórias se


recordou de uma em específico ao observar os objetos ferroviários, isto é, sobre sua
viagem a Curitiba em um trem, por volta de 1961, a qual demorou 36 horas com
constantes paradas, inclusive uma de 4 horas devido à chuva forte. Quando os netos e a
filha entraram no trem, ele disse não já com lágrimas nos olhos porque se entrasse iria
chorar pelas recordações. Depois, em conversa informal, estabeleceu relação com o
presente, uma vez que uma viagem a Curitiba atualmente pode demorar 40 minutos de
avião. Sua filha considerou importante escrever no questionário que seus avós foram
pioneiros da cidade que moraram na cidade e a ajudaram a construir. Talvez desta forma
a mesma se sinta parte da história de Londrina, e escreveu que a importância pessoal é
saber como esses parentes viviam.
No segundo caso, o casal, cada um em seu questionário, relacionou a locomotiva
à história do café em Londrina, mesmo não conversando no momento da escrita.
Provavelmente por ter sido a reflexão que realizaram em conjunto antes da aplicação do
questionário. O homem vivenciou o funcionamento da estação e relatou o desejo de
lembrar desse passado por meio da visita ao Museu, ainda: “[...] conhecer melhor a
história da minha querida Londrina e mostrar aos filhos como era Londrina e das
minhas lembranças.” Percebe-se através do adjetivo utilizado a relação de afetividade
para com a cidade. As outras integrantes da família escreveram aspectos semelhantes
sobre conhecer Londrina. Em conversa informal, aquele contou algumas de suas
lembranças sobre o barulho da Locomotiva, em como pulava os vagões para atravessar
de um lado para o outro, sobre colocar o ouvido no trilho para saber se estava vindo o
trem, enfim. Possivelmente estas são as “[...] lembranças que nunca podemos esquecer.”
que escreveu no questionário. Alegou, desta forma, um descontentamento em
decorrência das ferrovias não terem se desenvolvido no Brasil como em países de
primeiro mundo. Esta reflexão, a repetição sobre as lembranças e o olhar e satisfação ao
contá-las demonstram grande vontade de retorno a esta época.
Por meio da experiência com o estudo piloto se aumenta a expectativa com os
próximos questionários sobre a importância da presença da Locomotiva Baldwin 840 na
plataforma do Museu Histórico de Londrina. Não foi o caso de lembranças ruins ou de
desapego aos anos anteriores, mas se aparecerem também serão importantes. De acordo
com Michael Pollack (1989), não existe memória no silêncio, a mesma existe quando

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deixa de fazer parte apenas do indivíduo, vencendo o esquecimento e sendo transmitida


pela fala, a qual reforça a memória. Esta é o que sobrevive aos controles externos, sendo
resultado de um processo de disputa sobre qual memória é válida para ser lembrada.
Portanto, este artigo compreendeu a identificação da Locomotiva Baldwin 840
como fonte de reflexão sobre o patrimônio cultura, atrelada aos outros objetos
museológicos ferroviários, ao espaço em que está inserida e às pessoas que a observam
e analisam. Desta maneira, considerou-se a comunicação realizada entre objeto
observado e observador por meio de suas experiências vividas e as ressignificações
construídas. Além disso, apresentou-se a aplicação de cinco questionários que fizeram
parte de um estudo piloto para a pesquisa da especialização em Patrimônio e História.

REFERÊNCIAS
CHAGAS, Mario de Souza. Um novo (velho) conceito de museu. Cadernos de Estudos
Sociais (FUNDAJ), Recife, v. 1, n.2, p. 183-192, 1985.
CURY, Marília Xavier. Comunicação Museológica: uma perspectiva teórica e
metodolófica de recepção (tese). São Paulo: USP, 2005.
FRAZÃO, Marcelo. Depois da La Meuse, Londrina também pode perder a locomotiva
Baldwin. 22 Ago 2015. Disponível em:
http://www.jornaldelondrina.com.br/londrina/conteudo.phtml?tl=1&id=1544481&tit=D
epois-da-La-Meuse-Londrina-tambem-pode-perder-a-locomotiva-Baldwin. Acesso em:
23 Out 2015.
MENESES, Ulpiano Toledo B. de. Do teatro da memória ao laboratório da História: a
exposição museológica e o conhecimento histórico. Anais do Museu Paulista. Nova
Série, vol. 2. São Paulo, p.9-42, 1994.
________. Memória e cultura material: documentos pessoais no espaço público.
Estudos históricos, Rio de Janeiro, n. 21, p. 1-20, 1998.
Museu Histórico de Londrina. Disponível em: https://www.facebook.com/Museu-
Hist%C3%B3rico-de-Londrina-382821251811508/. Acesso em: 23 Out 2015.
POLLACK, Michael. Memória, esquecimento, silencio. Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, vol. 2, n.3, 1989, p.3-15.
RAMOS, Francisco Régis Lopes. A danação do objeto: o museu no ensino de história.
Chapecó: Argos, 2004.

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SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. A Escrita do Passado em Museus Históricos. Rio de


Janeiro: Garamond/Minc, Iphan, Demu, 2006.

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QUEM OU O QUÊ É O DIABO AFINAL? CONSTRUINDO PARA SI


O IMAGINÁRIO DE UMA ÉPOCA.
Crislayne Fátima dos Anjos (História – UEL)
Orientador: Prof. Dr. Marco Antônio Neves Soares.
PALAVRAS-CHAVE: IMAGINÁRIO, CULTURA, MALLEUS MALEFICARUM.

O Imaginário do Diabo na Sociedade Europeia no século XV.


O vocábulo “medieval” e “moderno”, além de expressarem dois distintos momentos
da História, simbolizava uma significativa dicotomia: a definição de medieval
apresentava-se como um longo período de estagnação e obscuridade; o “moderno”
visualizava-se o progresso, o renascer do conhecimento, a luz depois das trevas. Essa
oposta visão de mundo, preceituada pelos humanistas no século XVI e reafirmada no
século XVIII, apresentava uma ideia de que, ao vivenciarem a Idade Média, deixando
seus princípios e suas convicções, as sociedades ascendiam ao amanhã de um modo
mais democrático, adentrando a um novo momento histórico que seria intitulado de
Idade Moderna. Jean Delumeau, em seu A Civilização do Renascimento 217 aborda que,
se fossem suprimidos dos livros de História os termos Idade Média e Idade Moderna,
considerados pelo autor como inexatos, ficar-se-ia liberto dos pré-conceitos
estabelecidos de que houvesse ocorrido uma brusca interrupção de um período de trevas
para um florescimento das luzes.
O período que chamamos de Idade Média, enquanto recorte histórico e
cronológico, momento bastante heterogêneo. Os séculos XIV e XV, conhecido como “o
outono da Idade Média” 218 assinala intensas crises que assolaram a sociedade europeia,
depois de um momento em que tudo florescia e atingia a sua plena maturidade. Segundo
Jacques Le Goff 219, o século XIV e XV são períodos de transformações e perturbações
em relação a relativa estabilidade dos séculos anteriores. Para Jean Delumeau:
[...] de 1348 a 1660 – no decorrer da qual as desgraças se acumularam
particularmente na Europa, aí despertando um abalo duradouro nos
espíritos: a Peste Negra que marca em 1348 o retorno ofensivo das
epidemias mortais, [...], a interminável Guerra dos Cem Anos, o

217
DELUMEAU, Jean. A Civilização do Renascimento. Lisboa: Editora Estampa, 1994, p. 19.
218
Ver HUIZINGA, Johan. O outono na Idade Média. São Paulo: Cosac & Naify, 2010.
219
Ver LE GOFF, Jacques. As Raízes Medievais da Europa. Petrópolis: Vozes, 2010, p.220.

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avanço turco inquietante a partir das derrotas de Kosovo (1389) e


Nicópolis (1396) e alarmante do século XVI, o Grande Cisma –
“escândalos dos escândalos” -, as cruzadas contra os hussitas, a
decadência moral do papado antes do reerguimento operado pela
Reforma católica, a secessão protestante com todas as suas sequelas –
excomunhões recíprocas, massacres e guerras. (DELUMEAU, 1996,
p.205).
Tais fatores colaboraram para o crescimento do medo-pânico na população. O
medo escatológico 220 generalizado pela ira divina que parecia se abater, instalou-se na
visão da época sobre aqueles que se colocavam em desobediência aos princípios da
fé. 221 “A existência do Diabo é boa, sua maldade resulta do mau uso, ignorante, de seu
livre-arbítrio. [...]. O Diabo não força alguém para o pecado. Pecamos por nossa própria
vontade, [...]” (RUSSEL, 2003, p. 33).
Não apenas como fonte de abordagem acerca do fenômeno das caças as bruxas,
o Malleus Maleficarum pode ser analisado principalmente como fonte para a
compreensão do medo da ira divina que permeava o cotidiano da população e se
materializava na figura do Diabo. Uma das teses centrais da obra é que o Diabo, com
permissão de Deus, procura subverter o maior numero de almas; Jeoffrey Burton Russel
discorre sobre as ideias a respeito do Diabo, enfatizando o pensamento cristão ocidental,
no qual o Diabo tem mais “direitos”. A importância de se apresentar o Diabo inserido
no cotidiano tornou inúmeros casos exemplos de como sua figura passou a representar-
se a partir do século XV.
As sociedades que presenciaram a formação e publicação do Malleus
Maleficarum eram sociedades que acreditava no sobrenatural, nas ações e no poder do
Diabo e de seus agentes. A sociedade que recepcionou a obra de Kramer e Sprenger
vivenciou transformações profundas que atingiram precisamente seu imaginário social
e, sem uma cultura voltada para a construção dos poderes de Satã, as incidências do
medo não tomariam proporções consideráveis como ocorreu na Europa.

220
Escatologia: doutrina relativa ao destino ultimo do homem no universo. No Cristianismo, é a doutrina
do final dos tempos: Juízo Final, fim do mundo, Céu e Inferno. As expectativas e especulações sobre esse
fato explicam a imensa atenção medieval dada ao livro bíblico do Apocalipse, que profeticamente
descreve este momento.
221
DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente: 1300-1800. São Paulo: Companhia das Letras,
1996.

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230

O manual dos inquisidores dominicanos destaca por definir o que Satã seria
capaz de fazer contra os homens. Dentre as grandes teses do Malleus Maleficarum, em
primeiro lugar consta a propriedade do Diabo em, com a permissão de Deus, provocar o
mal aos homens a fim de apropriar-se de suas almas. O imaginário deixa de ser abstrato
e se materializa; o Diabo é real e consistente a partir de seus agentes, não sendo fruto
meramente do ilusório.

Enganem-se portanto os que afirmam não existirem coisas como


bruxaria ou feitiçaria, ou os que professam tais coisas serem
imaginárias ou existirem demônios só na imaginação de ignorantes e
de populares, e também os que declaram ser equivoco atribuir a
demônios certos fenômenos naturais que acontecem aos homens.
(KRAMER & SPRENGER, 1993, p.51)

A partir desta perspectiva, as feiticeiras e o Diabo tornam-se um mecanismo de


interpretação do mundo, identificando o principio do mal, ou seja, o Diabo, e as causas
de todas as disfunções da ordem natural e social.

[...] a feitiçaria oferece toda uma explicação dos acontecimentos e dos


meios de agir sobre eles configuram como inteiramente “simbólicos”,
isto é, relacionam-se a influência dos poderes sobrenaturais e ao poder
oculto que “feiticeiros” ou “feiticeiras” possuiriam e usariam contra
seu próximo [...]. (SCHMITT, 2002, p.423).

O Malleus Maleficarum foi produto do trabalho de dois inquisidores que haviam


conduzido “incansavelmente” a caça às bruxas em regiões da Alemanha e Áustria.
Publicado em 1486 o volumoso compêndio reúne todo o saber demonológico
acumulado por séculos, além de descrever as práticas e os malefícios praticados pelas
feiticeiras, apresentando as medidas das quais é necessário para suprimir este, que é
considerado o mal da época. Em meados do século XV produziu - se, além de
incontáveis publicações de manuais destinados aos inquisidores, outras formas de
violência, dentre elas, a repressão à bruxaria. Entretanto, até então elas haviam sido
resignadas ao segundo plano frente à heresia. Com o adormecimento das heresias, a

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231

bruxaria se torna um alvo privilegiado, passando para o primeiro lugar dos interesses
inquisitoriais.
Os escritos de Kramer e Sprenger remetem a sua posição estabelecida enquanto
representantes da Igreja Católica e, portanto, indicadora da formação ideológica
predominante, transformando-se no apogeu ideológico e pragmático da Inquisição. Salta
aos olhos uma característica marcante do documento, seu caráter de massificação e
sistematização, que o torna um verdadeiro conjunto escolástico sobre feitiçaria.

Ademais, é inútil argumentar que todo o efeito das bruxarias é


fantástico ou irreal, pois não poderia ser realizado sem que se
recorresse aos poderes do diabo: é necessário, para tal, que se faça um
pacto com ele, pelo qual a bruxa de fato e verdadeiramente se torna
sua serva e a ele se devota – o que não é feito em estado onírico ou
ilusório, mas sim concretamente: a bruxa passa a cooperar com o
diabo e a ele se une. Pois que aí reside toda a finalidade da bruxaria;
se os malefícios são infligidos por mau-olhado, por fórmulas mágicas
ou por algum outro encantamento, tudo se faz através do diabo, [...]
(KRAMER & SPRENGER, 1993, p.57).

O Diabo tem poderes extraordinários sobre as consciências, pois é capaz de


produzir um imaginário que lhes aconteça concretamente. É interessante notar-se que,
ao longo de toda a obra, os autores reforçam a argumentação da presença real de
feiticeiros e bruxas, todavia, dão maior notoriedade aos perigos da bruxaria, pois
identificam a bruxaria frontalmente aos impulsos carnais, alegando que “toda bruxaria
tem origem na cobiça carnal, insaciável nas mulheres” (KRAMER & SPRENGER,
1993, p.121). O fato primordial é que este pensamento não é incomum para a época,
trata-se da visão “oficial” do gênero feminino e a ideia de inferioridade perpetuada
consequentemente pelo Pecado Original e de Eva, a proposta dos autores concerne em
vincular essa inerente fraqueza feminina com os males me permeiam o seu cotidiano, “é
um fato que o maior número de praticantes de bruxaria é encontrado no sexo feminino”
(KRAMER & SPRENGER, 1993, p.112).

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É preciso observar especialmente que essa heresia – a da bruxaria –


difere de todas as demais porque nela não se faz apenas um pacto
tácito com diabo, e sim um pacto perfeitamente definido e explicito
que ultraja o Criador e que tem por meta profana-lo ao extremo e
atingir suas criaturas. (KRAMER & SPRENGER, 1993, p.77).

Isso reflete a desconfiança frente às mulheres como parte integrante da cultura.


Os exercícios das bruxas que, pelo intermédio do diabo, provocam maléficos para com
o próximo, exercem a violência física, como a castração, por exemplo, “são
consequências daquilo que na origem nada mais é do que na realidade imaginário”
(SCHMITT, 2002, p.424).
Sob suas diversas denominações, o Diabo é sem duvida um das figuras mais
intrigantes do cristianismo. Os homens dos séculos XIV – XVI são dominados por sua
existência e vivem subjugados por sua presença constante no cotidiano. Enquanto
espirito, não possui aspecto corpóreo, submergido nas culturas e mentalidades
especificas de cada momento, que o delineiam com estas ou aquelas cores.

Não se deve considerar o Diabo de modo isolado; é preciso, ao


contrário, levar em conta seu lugar no sistema religioso global e
portanto descrever as redes de relações às quais está integrado. Além
disso, é preciso explorar o âmago da consciência, onde a angústia do
Diabo e suas múltiplas manifestações mergulham suas raízes e, por
outro lado, relacionar a figura do Diabo com o conjunto das realidades
sociais e politicas, em particular com os conflitos que agitam as
sociedades medievais e nos quais o Diabo desempenha seu papel.
(BASCHET, 2002, p.320).

De um lado as instituições, primeiramente a Igreja e depois o Estado, do outro os


personagens do Diabo e da feiticeira constituem o encontro primordial do fenômeno de
caça as bruxas que se desencadeou na Europa entre os séculos XV até meados do século
XVIII. Favorecido e muito pela invenção da tipografia, que colaborou
significativamente para que a obra torna-se o livro de cabeceira de muitos inquisidores
em todo o território europeu, “quinze edições entre 1486 e 1520, dezesseis entre 1574 e
1610, e três entre 1660 e 1669” (SCHMITT, 2002, p.434).

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A propaganda contínua sobre o perigo, enraizada como estava


em imagens e ideias que podiam ser reconhecidas, penetrou na
consciência popular até gerar frutos pavorosos nas caças as
bruxas dos séculos XVI e XVII, quando grande massa das
comunidades aceitava e incentivava as caças aos servos de Satã.
(RICHARDS, 1993, p.94).

A crença nas bruxas pode ser considerada um exemplo extraordinário de


interação entre a tradição erudita e a popular. Como cita Peter Burke (1989), pesquisas
recentes sugerem que a imagem da bruxa que se estabeleceu nos séculos XVI e XVII
envolvia elementos populares, como a crença de que pessoas tinham o poder de voar ou
de imputar o mal para o próximo através de poderes sobrenaturais, e os elementos
eruditos se fundiam a esta construção, agregando a ideia de um pacto com o diabo.
O cristianismo há muito tempo vinha convertendo a cultura 222 europeia num
conjunto unitário. Identificavam todas às praticas magicas com o paganismo e as
condenava. Neste caldeirão cultural, as expressões folclóricas foram inseridas na
satanização progressiva, transformadas num processo de distorções intrínsecas e má
compreensão. O processo foi lento, mas a partir de quatro pilares distintos; folclore,
bruxaria, magia ritual e adoração ao Diabo, ergueu-se o estereótipo sustentáculo da caça
as bruxas.

Desde os tempos romanos, já existiam histórias de mulheres que eram


capazes de voar, bruxas noturnas (strigae), que eram capazes de se
transformar em pássaros e se dedicavam ao sexo, canibalismo e
assassinatos. Havia uma crença popular há muito estabelecida nas
“damas da noite”, espíritos femininos protetores e benéficos, para
quem os camponeses deixavam comida e bebida. Formavam um grupo
organizado, uma hoste com uma líder sobrenatural, conhecidas sob
nomes variados de Diana, Herodias e Holda. Até o século XIII, a elite
222
Para definição de cultura, utiliza- se os conceitos de Peter Burke, onde o mesmo diz que “[...] cultura
com ênfase na mentalidade como “um sistema de significados, atitudes e valores compartilhados, e as
formas simbólicas (apresentações, artefatos) nas quais eles se expressam ou se incorporam.” (BURKE,
Peter. Cultura Popular na Idade Moderna. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989, p.21.

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educada considerava esses fenômenos como ilusões. Mas, no final da


Idade Média, os intelectuais passaram a acreditar que as histórias eram
literalmente verdadeiras, e Kramer e Sprenger atacaram a ideia de que
elas poderiam ser ilusões. Estas histórias, então, foram misturadas à
bruxaria, magia ritual e ao ingrediente inteiramente mítico da
adoração do Diabo para criar o novo estereótipo familiar da bruxa.
(RICHARDS, 1993, p. 97).

Necessita-se reconhecer e identificar o inimigo na luta entre a matéria e o


espirito na imaginação popular. A presença real e continua em todos os instantes da
existência humana, articulam de maneira eficaz o imaginado e a realidade,
estabelecendo o Diabo em um personagem concreto e familiar em um mundo de
desiquilíbrio, onde o homem é o personagem principal da trágica dicotomia entre o
representado e o vivido.

Porém, quis a Divina Providencia que pelo exemplo de Jó os poderes


do diabo se manifestassem, mesmo sobre os bons homens, de sorte a
aprendermos a nos guardar contra Satã, e que, pelo exemplo desse
santo patriarca, a glória de Deus se manifestasse em seu esplendor,
porquanto nada acontece sem a permissão do Todo-Poderoso.
(KRAMER & SPRENGER 1993, p.68).

Espalhando na atmosfera do período, a diversidade e as peculiaridades


aterrorizantes dos tormentos que prenunciam sobre os indivíduos, o teatro religioso e os
sermões difundiram e implantaram o discurso teológico 223 que, acarretou em uma
condição dicotômica fomentando uma comoção na sensibilidade e na imaginação
coletiva, não podendo se pensar o Bem sem pensar no Mal, “[...], o diabo prefere operar
por intermédio de bruxas e realizar tais prodígios em seu próprio proveito, ou seja,
visando a perda das almas” (KRAMER & SPRENGER, 1993, p.54).

223
O teatro religioso mobilizava um numero importante de espectadores, enquanto os sermões difundiam
o medo desmesurado do Diabo, causando grande comoção na mentalidade popular, que atingindo
proporções significativas, foi proibido em um concilio em 1516.

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Em Ratisbon, um homem vinha sendo tentado pelo demônio em forma


de mulher a copular, e começou a ficar desesperado quando viu que o
demônio não desistia. Veio-lhe, porém, a ideia de comer Sal
Consagrado para se defender, conforme já ouvira num sermão. E
assim fez: ao entrar no banheiro, comeu do Sal, e a mulher, olhando-o
ameaçadoramente, amaldiçoou-o com todas as imprecações que o
diabo lhe ensinara e, subitamente, desapareceu. (KRAMER &
SPRENGER, 1993, p.201-202).

A presença do Diabo era extremamente necessária, a partir do momento em que


sua existência servia de substrato ideológico para justificar os intensos esforços
missionários e suas medidas repressivas e violentas administradas na luta contra o mal e
suas articulações. O verdadeiro medo está no que não se vê ou no que pensa em ter se
visto.
As cidades abrigavam em seus seios minorias étnicas, que ao partilharem de uma
cultura os excluía para as margens socioculturais, no âmago do funcionamento das
tênues relações sociais em uma micro sociedade. A apropriação do sabá judaico para
designar as reuniões dos servos do Diabo é um exemplo dos mecanismos utilizados em
relação à cultura do outro, “a emergência do sabá pressupõe a crise da sociedade
europeia no século XIV e as carestias, a peste, a segregação ou expulsão dos grupos
marginais que acompanharam.” (GINZBURG, 2012, p.103). As sobrevivências dos
estrados profundos das crenças populares deram molde a interpretações religiosas
desenfreadas.

De posse da pomada voadora, que, como dissemos, tem fórmula


definida pelas instruções do diabo e é feita dos membros das crianças,
sobretudo daquelas mortas antes do batismo, ungem com ela uma
cadeira ou um cabo de vassoura; depois do que são imediatamente
elevadas aos ares, de dia ou de noite, na visibilidade ou, se desejarem,
na invisibilidade; pois o diabo é capaz de ocultar um corpo pela
interposição de alguma outra substância, [...]. E não obstante o diabo
realize tal prodígio em grande parte através da pomada – para que as
crianças se vejam privadas da graça do batismo e da salvação -, [...].

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Já que, vez ou outra, transporta as bruxas em animais, que não são de


fato animais mas demônios naquela forma; e noutras ocasiões, mesmo
sem qualquer auxílio exterior, elas são visivelmente transportadas
exclusivamente para força dos demônios. (KRAMER & SPRENGER,
1993, p.228).

É passível de interpretação que, tais fenômenos aéreos podem remeter ao


folclore milenar camponês de crenças populares e sobrevivências míticas de espíritos
benéficos que sobrevoavam as colheitas para a proteção das mesmas, que se
transformou em um discurso fantasioso desenfreado por parte dos teólogos. Este
testemunho elencado pelos inquisidores dominicanos “é apenas um dentre inúmeros
testemunhos da lenta demonização, levada adiante durante séculos, de um estrato de
crenças que chegou até nós de maneira fragmentária, por intermédio de textos
produzidos por canonistas, inquisidores e juízes.” (GINZBURG, 2012, p.119). As
incrustações diabólicas que envolvem esses substratos culturais foram difundidas com a
contribuição da circulação dos tratados de demonologia pela Europa.

A obra que orquestraria essa perseguição das bruxas foi o Malleus


Maleficarum, [...]. Os dois autores situam o combate contra as
feiticeiras numa visão dramática e apaixonada de sua época. Eles
veem tomadas de desordens de todo o tipo, em particular de desordens
sexuais, e em posse de um diabo desacorrentado. O martelo das
bruxas é um produto e um instrumento do que Jean Delumeau chamou
de “cristianismo do medo”. No interior dessa nova intolerância, a
crença aterrorizada numa alucinante pratica de bruxaria, o Sabat,
introduziu uma nota tão espetacular porque inspirava facilmente a
iconografia. Uma Europa da perseguição às bruxas, uma Europa do
Sabat tinha nascido. (LE GOFF, 2007, p.235).

A caça as bruxas foi um dos episódios mais impressionante da historia do Diabo,


e o sermão era o difusor substancial para aproximar a elite com a cultura popular, em
uma sociedade onde cerca de 80% a 90% era composta por camponeses, portanto, pode-
se pensar a bruxaria como um fenômeno do campo? Teoricamente sim, dado que a
heterogeneidade no ambiente físico acarretam diferenças na cultura e as florestas, assim

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como as montanhas são obstáculos eficientes contra a difusão de novas crenças e


costumes.

[...] as imagens, estórias ou ideias, [...] são modificadas ou


transformadas, num processo que, de cima , parece ser distorção
ou má compressão, e, de baixo, parece adaptação a necessidades
especificas. As mentes das pessoas comuns não são como folha
de papel branco, mas estão abastecidas de ideias e imagens;
[...]. (BURKE, 1989, p.86).

Em 1968 em uma famosa conferência sobre “Heresias e Sociedades 224” o


historiador francês George Duby recomendou a necessidade de se observar o herético
no seu processo histórico, ou seja, o papel do herético e sua função na sociedade. Duby
salienta a importância do historiador em estar atento aos meios de produção e aos
ambientes de recepção da doutrina herética, pois para ele “todo herético torna-se tal por
decisão das autoridades ortodoxas. Ele é, antes de tudo, e com frequência assim
permanece sempre, um herético aos olhos dos outros. Esclareçamos: aos olhos da Igreja,
aos olhos de uma Igreja” (DUBY, 2011, p.209).
Fora, portanto, na aurora dos tempos modernos que concepções do Inferno, do
Diabo e dos seus agentes povoaram de modo substancial a imaginação do Ocidente. A
caça as bruxas não foi um evento medieval, do período das “trevas”, desencadeou-se
paralelamente a difusão do livro impresso, do Renascimento cultural, das grandes
navegações. Obra após obra, as experiências dos eclesiásticos e inquisidores foi se
estendendo por diferentes países, acrescentando a cada publicação explicações
minuciosas de particularidades que um imaginário sem barreiras fomentou sobre a
personificação, a personalidade e os poderes do inimigo cristão.

O mal domina consciências. O homem moderno sente-se inseguro,


insegurança baseada na crença de um Satã todo-poderoso,
identificando a todas as desgraças e azares que ocorriam o mundo.
Crença que serve de suporte a toda série de violências que

224
DUBY, George. “Heresias e Sociedades na Europa Pré-Industrial, nos séculos XI e XVIII.” In: Idade
Média, Idade dos Homens: do amor e outros ensaios; tradução Jônatas Batista Neto. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011.

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ensanguentam a Europa moderna, transformadas em lutas contra o


Diabo, seus agentes e seus estrategemas. [...]. Em outras palavras, as
Reformas conferiram ao Inimigo o direito de existir em toda sua
potencia, em toda a sua nobreza. (NOGUERIA, 2000, p.101).

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
BASCHET, J. “Diabo”. In: LE GOFF, J. & SCHMITT, J. C. Dicionário temático do
Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC, 2002
BURKE, Peter. Cultura Popular na Idade Média. Tradução Denise Bottmann. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989.
DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente: 1300 – 1800. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.
DUBY, George. Heresias e Sociedades na Europa Pré-Industrial, nos séculos XI e
XVIII. In: Idade Média, Idade dos Homens: do amor e outros ensaios; tradução
Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
GINZBURG, Carlo. Histórias Noturnas: decifrando o sabá. São Paulo: Companhia das
Letras, 2012.
KRAMER, Heinrich, SPRENGER, James. Malleus Maleficarum: o martelo das
feiticeiras. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2010.
LE GOFF, Jacques. Outono da Idade Média ou Primavera dos Novos Tempos. In: As
raízes medievais da Europa. Tradução Jaime A. Clasen. Petrópolis: Vozes, 2007.
NOGUEIRA, Carlos Roberto F. O Diabo no imaginário cristão. Bauru; São Paulo:
Edusc, 2000.
RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação: as minorias na Idade Média; tradução
Marco Antônio Esteves da Rocha e Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed;
1993.
RUSSEL, Jeffrey Burton. Lúcifer: O Diabo na Idade Média. São Paulo: Madras, 2003.
SCHMITT, J. C. “Feitiçaria”. In: LE GOFF, J. & SCHMITT, J. C. Dicionário temático
do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC, 2002.

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O IMAGINÁRIO DO MEDO NUCLEAR SOBRE AS USINAS DE


ANGRA DOS REIS – RJ
Cristiano Aparecido do Nascimento (História UEL)

É importante destacr a importância do estudo da história do imaginário por meio


duas metodologias distintas referente a dois tipos de fontes: a imagem e a canção. Os
recursos audiovisuais atualmente permite os individuos interagir cada vez mais com as
fontes audiovisuais, no caso a canção, a fotografia e o videoclipe a ser abordado neste
trabalho.
Boris Kossoy (2009) destaca a importância da fotgrafia para a história por
registrar lugares, situações e cenas proporcionando ao leitor um amplo olhar sobre o
passado representado na composição fotografia, consciente e/ou inconsciente de quem
registra essas imagens em relação as fontes escritas, ou seja, as fotografias e imagens
em geral são fontes documentais tão relevantes quanto ao documento escrito, cada com
sua peculiariedade. Como o autor mesmo destaca, as imagens são vistas com
preconceito e descaso pelo fato de fornecer ao leitor uma gama de possiblilidade
observar a realidade retrada despertando diversos sentimentos: paixões ; lembranças e
experiências, o que retira do foco, a objetividade da pesquisa histórica, do ponto de vista
da história tradicional.
Embora a fotografia tenha surgido no século XIX, só ganha força ao longo do
século XX , sobretudo pela imprensa, pela ampla e rápida disseminação da noticia e
facilidade de composição discursiva reforçado pelo discurso escrito e oral dos jornais
(KOSSOY,2009).Nesse contexto , as duas fotgrafias do greempeace e da folha do Vale
estão inseridas na globalização informacional-tecnologica e o advento dos recursos
audiovisuais emergentes no século XX.
Marcos Napolitano (2011) ao trabalhar de forma metodologica a música ressalta
que deve ser levado em conta a estrutura da letra; figuras de linguagem, a licença
póética e o contexto sociocultural do autor da letra e canção; outros aspéctos como a
criação,a produção,circulação e recpção dessas músicas pelas sociedades em diversas
temporalidades. O videoclipe de Angra dos Reis vincula o imaginario do medo de um
desatre nuclear expressado nas influências culturais da Legião Urbana - o punk,pós
punk e o rock progressivo - ao olharem para os desdobramentos sociais e políticos

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240

através do conflito existêncial dos sujeitos presentes no local das Usinas de Angra dos
Reis ,em 1987, numa representação da mesma época em que as Usinas estavam em
pleno funcionamento e foram ,gradativamente, desativadas devido as pressões
ambientalistas e aos antecdentes acidentais, aspectos contextuais implicitos nas letras
das músicas a seram anlisadas, no caso do videoclipe desta música esclarece
caracteristicas metafóricas da canção na qual reforçam o imaginario do medo nuclear
presente em Rosa de Hiroshima gravada 13 anos antes, em 1973.
A historia do imaginário tem por finalidade, analisar a maneira como as
sociedades pensava e compreendiam o mundo e o espaço social na qual vivem em
diversas temporalidades através de dialogos interdisciplinares com outras areas do
conhecimento, entre elas a sociologia; a antrpologia; a pscicologia e a literatura.
(PATLAGLEAN,1988). É importante lembrar que as imagens são utilizadas como
fontes para a pesquisa histórica desde dos séculos XV e XVI com as pinturas e
esculturas com a expansão da escrita , através da invenção da imprensa e,
principalmente, no século XIX com advento da fotografia e a ordenação das ciências,
entre elas a historiografia, e o quanto as imagens são importantes para ampliamento do
conhecimento histórico(BURKE,2004).
Nesse sentido, compreender o imaginário do medo nuclear da sociedade
Brasileira,entre 1950 a 2012, por meio das canções e fotografias, produtos de
diferentes momentos da história contemporênea do Brasil em que refletem os as
angustias e os temores sociais em contrapartida as necessidades das autoiridades
políticas em desenvolver o Brasil economico e tecnologicamente a partir da ótica dos
artistas e jornalistas, ambos possuem concepções e formas diferentes de retratar a
realidade sobre um objeto de pesquisa em comum, proposto neste artigo.
O governo brasileiro passou a investir em energia nuclear a partir de 1956, no
governo de Juscelino Kubitscheck com o plano de metas cujo um dos objetivos foi
investir nos setores base como automobilística, siderurgia, integração rodoviária e
energética. Neste período foram construídos apenas reatores nucleares experimentais
nas margens do rio Macamba, que divide os municípios de Campos e Angra dos Reis,
no estado do Rio de Janeiro. Somente em 1971 no auge da ditadura militar, com os
empréstimos contraídos do FMI o governo brasileiro resolve criar um plano de
desenvolvimento econômico no qual visava o crescimento do país, que não foi

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alcançado pelos governos Vargas e JK (AZEVEDO; ESTRADA; KNÖFEL; RECIO &


ALVES, não consta ano). O milagre econômico Brasileiro, de acordo com Luiz Prado e
Fábio Earp, ocorreu com:

O I Plano Nacional de desenvolvimento (I PND) foi publicado em


dezembro de 1971e prometia transformar o Brasil em uma “nação
desenvolvida”[...] dando prioridade a grandes programas de
investimento: siderúrgico, petroquímico, transportes ,construção
naval, energia elétrica (inclusive nuclear) [...]( PRADO &
EARP,2008,p.221).

Tanto os militares quanto dos ativistas do Greenpeace (e de outros grupos


contrários a energia nuclear) havia um sentimento de pertencimento a nação, a pátria
Brasileira. O primeiro acredita e orienta seu discurso em torno das potencialidades
energéticas naturais do Brasil com o argumento de uso para “fins pacíficos” enquanto o
segundo orienta sua ação em defesa do Brasil através da preservação do meio ambiente,
ambos fazem sua construção indenitária em suas ações discursivas e praticas, conforme
pode ser observado na imagem da fonte 2.

Fonte 1 : Secos e molhados - Rosa de Hiroshima(Gerson Conrado e Vinicius de


Moraes)
Pensem nas crianças mudas, telepáticas
Pensem nas meninas cegas, inexatas
Pensem nas mulheres, rotas alteradas
Pensem nas feridas como rosas cálidas
Ma, oh! não se esqueçam da rosa, da rosa
Da rosa de Hiroshima, a rosa hereditária
A rosa radioativa, estúpida inválida
A rosa com cirrose a antirosa atômica
Sem cor, sem perfume, sem rosa
Sem nada.

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242

A canção foi elaborada por Geraldo Conrado a letra é uma adaptação do poema
de Vinicius de Moraes, composto em 1948. A música foi gravada e publicada em 1973,
no período da ditadura militar no governo de Emilio Garrastazu Médici, como forma de
protesto a política Brasileira de energia nuclear com a construção das usinas de Angra I
e II ao fazer alusão aos impactos das bombas nucleares lançadas pelos Estados Unidos
nas cidade de Hiroshima, quando a guerra estava praticamente vencida pelos aliados em
1945.
A música chama atenção pela apropriação de um poema feito, num intervalo de
28 anos (1945-1973) período que o mundo passava por um profundo processo de
restruturação e surge um sentimento de insegurança e de uma possível “terceira guerra
mundial” quando se fala da utilização da energia atômica como meio de energia
alternativa em contrapartida do discurso sobre os benefícios deste tipo de energia, que
não podemos negar os seus benefícios na medicina, por exemplo, nas áreas da medicina;
radioterapia, exames radiológicos entre outros fins (ALMEIDA; NASCIMENTO;
SOPRESO, 2007).
Outros aspectos na estrutura da música são interessantes para a compreensão
desta canção, como a melodia do vocalista Ney Matogrosso de voz aguda , que remete
a melancolia pelos mortos pelo ataque nuclear a cidades japonesas de Hiroshima e
Nagazaki , a guerra do Vietnã (HOBSBAWM,2007), esta guerra ocorriam quando a
canção foi elaborada e publicada, e também é uma crítica implícita as mortes
promovidas pelos regime militar no auge da repressão, reforçados pela melodia da
flauta e a base de violão que denotam um sentimento de saudade dos que se foram de
frente a uma situação de tragédias impactantes que acontecidas no passado e no presente
contexto de produção musical da banda Secos e Molhados.
Rosa de Hiroshima é uma canção de protesto que busca no passado uma resposta
ao presente através da apropriação de um texto literário musicalizado por Secos e
Molhados de forma que o poema musicalizado tornou – se dialético ao questionar as
guerras, em suas dimensões, por seu teor lírico e intimista.

Fonte 2 : Protesto de ativistas do Geenpeace,em 1982.

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< http://www.greenpeace.org/brasil/pt/Blog/custo-em-real-x-custo-real/blog/26572/ >


Acesso em 14 Out. 2011.

A Fotografia registra o momento em que os ativistas do Greenpeace pregam


estacas para a fixação das faixas de protesto contra a operação da usina de Angra I,
inaugurada no período em questão, pois estes e qualquer outro grupo contrariam aos
interesses do regime militar poderiam sofrer repressões dos militares com risco
eminente de serem mortos, embora o regime militar estivesse em um processo “lento,
seguro e gradual”, conhecida como política de distensão, no governo dos generais
Ernesto Geisel (1974-1978) e João Figueiredo (1979-1984) marcado por mudanças no
cenário político do país, instabilidades econômicas e sociais contribuíram para o
processo de redemocratização do país até 1984, quando ocorre a diretas
já.(FAUSTO,2006).Outro ponto importante de observar na imagem é foco central da
composição da fotografia com destaque para as encostas e o mar em predominância a
Usina no lado direito da fotografia, o que denota conscientização da proteção ambiental
diante das recém políticas internacionais de preservação do meio ambiente, tendo em
vista a conferencia de Estocolmo, na Suécia, em 1972 e o acidente nuclear da Usina
nuclear de Three Mile Island no estado do Texas - Estados Unidos, em 1979.

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O medo nuclear agrava-se com os acidentes nas usinas de Chernobyl na Ucrânia,


em 1986, e o acidente radiológico de Goiânia, capital do estado de Goiás, em 1987 com
profundos impactos ambientas e alterações genéticas em suas respectivas populações e a
constante “assombração” internacional de um ataque das potências nucleares que
perpetuou até a queda do muro de Berlin, em 1989, e o fim oficial da União Soviética
,em 1991(HOBSBAWM,2007).

Fonte 3: Legião Urbana - Angra dos Reis (Renato Russo e Marcelo Bonfá)
Deixa, se fosse sempre assim
Quente, deita aqui perto de mim
Tem dias, que tudo está em paz
E agora os dias são iguais..

Se fosse só sentir saudade


Mas tem sempre algo mais
Seja como for
É uma dor que dói no peito
Pode rir agora
Que estou sozinho
Mas não venha me roubar...
Vamos brincar perto da usina
Deixa pra lá
A Angra é dos Reis
Por que se explicar
Se não existe perigo...

Senti teu coração perfeito


Batendo à toa e isso dói
Seja como for
É uma dor que dói no peito
Pode rir agora

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Que estou sozinho


Mas não venha me roubar
Uh! Uh! Uh! Uh!...

Vai ver que não é nada disso


Vai ver que já não sei quem sou
Vai ver que nunca fui o mesmo
A culpa é toda sua e nunca foi... Mesmo se as estrelas
Começassem a cair A luz queimasse tudo ao redor
E fosse o fim chegando cedo
Você visse o nosso corpo
Em chamas!
Deixa, pra lá...

Quando as estrelas
Começarem a cair Me diz, me diz
Pr'onde é Que a gente vai fugir?

A canção Angra dos Reis da banda Legião Urbana, composta em 1986,


publicada em 1987 e o vídeo clipe neste mesmo ano 225, trata–se do indivíduo com
sentimento, deprimido, confuso em seus sentimentos no qual leva a uma crise
existencial ao temer os impactos de um ataque nuclear, influenciado pelos contextos
internacionais do acidente nuclear de Chernobyl e o acidente radiológico, mencionado
anteriormente.
O videoclipe foi ambientado nas intermediações das usinas de Angra dos Reis,
cenas que remetem ao clima reflexivo com as imagens das paisagens de Angra em
contraposição com a imagem das usinas. A expressão melancólica e apreensiva dos
músicos da banda Dado Villa Lobos, Marcelo Bonfá e Renato Rocha, sobretudo a
melodia melancólica e sofrimento que Renato Russo transmite na música, em sua
entonação de voz, o que evidencia o teor do imaginário popular do medo energia

225
Ver videoclipe: Legião Urbana-Angra dos Reis. Disponível em
<http://www.youtube.com/watch?v=khcbLyNStqo >Acesso em 15. Jul. 2012.

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nuclear em contraste com as belezas naturas de cidade Fluminense. Os efeitos


marcantes da bateria e a predominância do teclado na mixagem da música indicam a
seriedade do tema da letra e o tom reflexivo – existencial da canção.
A diferença entre a música e o videoclipe é a frase final do videoclipe na voz de
uma jornalista na televisão: “o perigo já passou, os técnicos foram chamados, não há
motivo para alarme. Tomaremos as medidas necessárias, estamos do lado de vocês” 226
nesta fala percebe - se os perigos reais da possiblidade de um acidente radioativo e
evitar o desespero da população ao demonstrar solidariedade ao grande público, assim,
a mensagem da banda é de esperança em meio ao desespero e confusão existencial
perante a uma crise global.
As décadas de 1990 e 2000 foram marcadas por um aumento da consciência
ambiental que refletiu em políticas de preservação ao meio ambiente como destinação
correta dos produtos descartáveis, o desenvolvimento de fontes renováveis de energia o
que hostil qualquer tipo de favorecimento ao uso de energia nuclear, sustentado pelo
jargão, de “fins pacíficos”.Com o fim da guerra-fria o discurso político internacional
relativo a energia nuclear é de desarmamento continuo deste tipo de arsenal
fisioquímico com finalidade manutenção do setor energético de cada país e no Brasil
não foi muito diferente, entretanto os protestos contra os impactos tornaram – se cada
vez mais fortes diante dessas mudanças ocorridas desde entre as décadas de 1980-1990,
bem como a Eco rio(1987); Rio Eco1992; Protocolo de Kyoto, no Japão,(1997) e Rio +
20 (2012) 227.
As professoras Maria José M. Pereira de Almeida, Silvania Sousa do
Nascimento e Thirza Pavan Sopreso (2007) faz analise discursiva sobre os boletins das
agências nacionais de física nuclear, Furnas e fragmentos de jornal sobre as usinas de
Angra 1,entre as décadas de 1970/1980 e 2012; com a finalidade de mostrar
contrapontos o discurso positivo cientifico e discurso construído social e historicamente,
durante este período, pela mídia criando um imaginário do medo popular com relação a
este tipo de matriz energética e como a temática pode ser trabalhada em sala de aula no
ensino médio, para melhor desenvolver questões de cidadania propostas pelas leis de
diretrizes e bases de 1996, referentes as políticas de energia nuclear com objetivo de

227
Conferencias relacionadas ao meio ambiente, ver página do Greenpeace. Disponível em :
<http://www.greenpeace.org.br/clima/pdf/protocolo_kyoto.pdf >Acesso em 04 de Jan.2013

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conscientizar os alunos sobre tal forma de energia, frente as representações do


imaginário social do medo nuclear.
As autoras chamam atenção para a perspectiva política e científica - física e
química - “otimista”, no sentido do progresso tecnológico neste setor energético para
atender a demanda do desenvolvimento econômico e tecnológico do Brasil na segunda
metade do século XX do Brasil, o que vai de encontro com os impactos ambientais,
segundo os ambientalistas do greempeace e adeptos a causa ambiental, tanto dos
discursos analisado pelas autoras, quanto pelas imagens vinculado ao grupo
ambientalista de 1982 e 2012 (fontes 2 e 4) e o imaginário social das canções Rosa de
Hiroshima e Angra dos Reis, situação na qual desperta, de alguma forma, nas pessoas a
angustia existencial.

Fonte 4 : Protesto de ativistas do Greenpeace contra a construção da Usina de


Angra III

< http://diariodovale.uol.com.br/noticias/0,53599,Protesto-contra-usinas-nucleares-acontecera-
em-Angra.html#axzz29JKQPlIV > Acesso em 13 Out. 2012.

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A imagem registra o protesto dos ativistas do Greenpeace bloqueando a


passagem de veiculos na BR 101(Rio-Santos)em Angra dos Reis contrarios a retomada
das construções da usina nuclear de Angra III.Em 2011 foram realizados simulações de
eveacuação em caso de acidente pela Eletronuclear,empresa responsavel pelas Usinas
de Angra I e II, inclusa no progama de aceleração do crescimento - PAC, no governo do
presidente Luiz Ignácio Lula da Silva e continuados pelo governo da presidente Dilma
Housseff. Esse protesto ocorreu em março de 2012 quando completou 30 anos da
inauguração das usinas de Angra I e II motivados pelo acidente nas usinas nucleares de
Fukushima,no Japão 228.
A foto representa o imaginario popular por meio do discurso de grupos
organizados sobre os efeitos negativos da energia nuclear chmando a atenção do leitor
para o triplo contraponto entre o pouco espaço verde da natureza verde em destaque,
com jogo conflituoso entre a presença da polícia federal e os manifestantes contrários a
construção da Usina nuclear de Angra III e a sustentabilidade do planeta,de maneira na
qual podemos inferir que a ameça de um acidente e/ou ataque sonda o imaginario da
maioria da população Brasileira em um contexto difrente dos anos 1970 e 1980.
Nas fontes pode-se perceber que as identidades e realidades são contruidas de
forma dinâmica, mediante aos diferntes contextos com algumas caracteristicas em
comum ao defender o espaço no qual os indíviduos (organizados em grupos)diante de
uma possivel ameaça a partir do principio natural da autoconservação, como é o caso
dos protestos do Greenpeace nas duas fotos acima e no olhar lirico-artistico em
contraposição ao discurso científico e político favoravel a energia nuclear e silenciar os
traumas sociais das falhas técnicas na utilização desse tipo de matriz energética e seus
efeitoa nocivos ao meio ambiente e a sociedade.
Ao analisar o imagináio, é possivel notar o quanto se aproxima da alteridade,que
fundamenta-se na familiariedade que os indivíduos,os grupos sociais e políticos
encontram ao atribuir significados ao espaço no qual ocupam ao tomar conhecimento
recursos naturais e atribuir sinificados as valorações simbólicas, de ordem economica

228
Ver Diário do Vale do Rio Paraiba on Line. Disponível em
<http://diariodovale.uol.com.br/noticias/0,53599,Protesto-contra-usinas-nucleares-acontecera-em-
Angra.html#axzz29JKQPlIV > Acesso em 13 Out 2012.

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e,principalmente, cultural para melhor compreender a realidade do ouutro, além da


Hiastória política e simultaneamente fazer roptura com a História tradicional.
Estas concepções são frutos da História nova,que surgiu nas décadas de 1960 e
1970, em que visa a construção do discurso historiográfico a partir da análise de outros
tipologias documetais: como canções,poemas,músicas,images em geral,materias
audiovisuais, (LE GOFF,1986) estabelecendo dialogos entre os conceitos da História e
da Antropologia para o aprimorarmento do trablho de ambas as disciplinas,que ficou
conhecido no campo da teoria da História como Virada Antropologica que nas:

[...] relações interdisciplinares da história com as ciências sociais pode


ser lido, entre outras razões, como um descontentamento com os
determinismos monocausais [...], em que a cultura ou a ideologia, as
mentalidades, o simbólico, as representações coletivas ou ainda o
imaginário apareciam como reflexos [...] da realidade material, numa
abordagem bastante reducionista e mecanicista.(BENATTE,2007,p 9).

Na pesquisa histórica o que pode – se perceber nestas fontes são as


reprentações populares e política sobre a energia nuclear e a variação das concepções
construidas,dos de 1956 até a contemporaneidade a relação de alteridade ao analisarmos
a História de Angra dos Reis sob o ollhar e ação de grupos ditos “minoritarios” as
margens da história tradicional eletizada como o Greenpeace e as canções da legião
Urbana e do Secos e Molhados, sob de um visão culturalista da sociedade sulscitando
questões relativas a realidade e alteridade da população Brasileira em relação a energia
nuclear.
Ao analisar a música, em seu conjunto, pode- se inferrir que os músicos das duas
bandas, Secos e Molhados e Legião Urbana, são de classe média alta,por ser pessoas de
nível de instrução relativamente elevados (ensino médio e formação universitaria) e por
ter contato com os meios culturais elitizados nas cidades de Brasilia e Rio de
Janeiro(Legião Urbana) e São Paulo(Secos e Molhados),a banda Secos e
Molhados,surgiu em 1970 e fazem parte do movimento tropicalha com influências da
Glan rock, MPB e da poesia literairia Brasileira,como pode ser notado em Rosa de
Hiroshima.

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A Legião Urbana surge em Brasilia em 1982 com influências do punk,pós-punk


e rock progerssivo, influênciada da cultura Estadunidense e Inglesa nas grandes cidades
do Brasil nos anos 1970 e 1980.Outro aspécto é o teor polítco,social e lirico de ambas
as canções, ao expor um conteúdo polêmico em produções artisticas pela metáfora das
duas canções,em Rosa de Hiroshima foi elaborada no auge da repressão da ditadura
militar,enquanto Angra dos Reis estava no processo de reestruturação política-
economica do Brasil (MARCELO,2012).
As canções, as fotografias demonstram o imaginario do medo popular da
energia nuclear-atômica a partir de visões subjetivas sobre o mesma problematica em
diferntes contextos com mobilizações semelhantes em si e uma relação de,respectiva,
alteridade expressa nessas fontes,o que mostra o outro lado da História não contado pela
História tradicional na qual narrra a “grandeza” dos recursos naturais do Brasil sob um
discurso nacionalista mostrando apenas os beneficios da energia nuclear na produção de
energia eletrica e na utlização técnica pela medidcina. Em linhas gerais, é uma forma de
explicitar o imaginario do medo nuclear presente na atualidade.

REFERENCIAS
ALMEIDA, Maria José M. Pereira de; NASCIMENTO; Silvania Sousa do ; SOPRESO,
Thirza Pavan. A energia nuclear no Brasil e a polêmica sobre as usinas de Angra1.
Núcleo de Estudos de Ciências Sociais da UFRJ, 2007.Disponível em:
<www.necso.ufrj.br/esocite2008/trabalhos/36351.doc > Acesso em 12 Dez 2015.
ALVES Rex N; AZEVEDO, Eduardo M; ESTRADA Julio J. S; KNÖFEL, Tom M. J &
RÉCIO, João C. A. A Saga Das Emergências Nucleares e Radiológicas No Brasil
Comissão Nacional de Energia Nuclear do Rio de Janeiro: (não consta ano). Disponível
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BENATTE, Antônio Paulo. História e Antropologia no campo da Nova História.
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DIARIO DO VALE ON LINE


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A COMUNIDADE UCRANIANA NO MUNICÍPIO DE MALLET –


PARANÁ: IDENTIDADE E RELIGIOSIDADE (1897 – 2007)
Darlan Damasceno (História / UEL)
Wander de Lara Proença (Orientador)
PALAVRAS-CHAVE: HISTORIA REGIONAL. RELIGIOSIDADE UCRANIANA. IDENTIDADE.

Introdução
Ao pensarmos em conceitos como cultura e identidade, nos deparamos com
paradigmas que compõem um amplo horizonte teórico que passam a integrar o campo
historiográfico a partir das décadas de 1970 e 1980. Nesse contexto, vemos o
surgimento da Nova História Cultural e sua aproximação com outras áreas do saber, tais
como a Antropologia e a Sociologia, assim como novos métodos e fontes dos quais o
historiador poderá utilizar em seu ofício como identificado por Peter Burke: “Certas
teorias culturais fizeram com que os historiadores tomassem consciência de problemas
novos ou até então ignorados, e, ao mesmo tempo, criassem por sua vez novos
problemas que lhes são próprios.” (BURKE, 2005, p.70). O presente trabalho insere-se
dentro desses novos paradigmas, uma vez que, ao se definir como objeto dessa pesquisa
o grupo étnico ucraniano alocado em uma colônia na região centro sul do Estado do
Paraná, durante o processo imigratório ocorrido no Brasil nos finais do século XIX e
início do XX, temos a introdução de uma cultura em um novo espaço social.
Dentre os aspectos que compõem a questão cultural, destacamos a religião de
tais imigrantes como um fator essencial à nossa pesquisa, cujo objetivo principal reside
na análise da religiosidade dessa comunidade inserida onde hoje situa-se o município de
Mallet, entre os anos de 1897 a 2007, e como a partir desta e de seus ritos e
representações, os imigrantes ucranianos irão construir sua identidade nesse novo
mundo.
Os ucranianos são um grupo étnico eslavo oriundos da região da Galícia
localizada na porção ocidental da atual Ucrânia. O processo de migração de tal grupo
para o Brasil, ocorre em três períodos, os quais respectivamente abrangem os finais de
século XIX, o período entre guerras e após a Segunda Guerra Mundial com o maior
número de imigrantes como mostra Oksana Boruszenko. (BORUSZENKO, 1969) Tais
imigrantes foram alocados em diversas colônias, situadas majoritariamente nas regiões

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centro-sul do Paraná e ao norte de Santa Catarina, ali fixaram suas moradias e voltaram-
se ao trabalho no campo. Dentre tais colônias, destacamos a Colônia 5 situada nas
proximidades de Rio Claro, onde posteriormente em 1912 se tornaria o município de
Mallet. Vale ressaltar que, junto com os imigrantes, a igreja católica ucraniana de rito
bizantino veio se fixar em tais colônias como uma espécie de auxílio à comunidade.
Esta deu um apoio especial na manutenção das tradições culturais desta população
(BORUSZENKO, 1969). Ao dialogarmos com a identidade deste povo, iremos ressaltar
os conflitos existentes entre os ucranianos e os poloneses, outro grupo de imigrantes
fixados anteriormente nas mesmas localidades, assim discute-se a questão da alteridade
e a construção de fronteiras de identidade, as quais a religiosidade exercerá grande
influência.
Justifica-se a escolha do campo religioso ucraniano como o objeto desse estudo
devido à presença que tal rito tem na região centro sul do Paraná e como marcou
historicamente os costumes e tradições da etnia ucraíno-brasileira, como afirma Paulo
Renato Guérios:

Nos relatos dos migrantes, suas reconstruções da decisão de partir da Galícia,


da viagem de vinda ao Brasil e dos primeiros anos vividos nas colônias
paranaenses não deixavam dúvidas acerca da centralidade de referência à
religião na percepção dos eventos, nas decisões tomadas, no modo peculiar
pelo qual eles construíram um novo universo social no Brasil. A esses relatos
somavam-se outras fontes históricas que apontavam no mesmo sentido:
aquilo que padres e intelectuais leigos de origem ucraniana contavam em
seus livros acerca do devir histórico das colônias de ucranianos e das disputas
pelas posições de liderança frente a esses camponeses indicava que a
centralidade da referência à religião não esmoreceu ao longo do século XX.
(GUÉRIOS, 2012, p.23)

As peculiaridades do rito católico ucraniano, e como este veio a se estabelecer


em território brasileiro junto com o processo imigratório, nos fornecem uma série de
questionamentos a serem trabalhados. Dentre eles ressaltamos a seguinte questão: como
a religiosidade deste grupo contribuiu para a construção e manutenção de sua
identidade? Para responder a essa pergunta, buscamos trabalhar com o conceito de
representação, proposto por Roger Chartier, que consistiria na “análise das práticas que,

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diversamente, se apreendem dos bens simbólicos, produzindo assim usos e significações


diferençadas.” (CHARTIER, 2002, p.178), aliado ao conceito de habitus, definido por
Pierre Bourdieu. Assim, pretendemos efetuar um diálogo entre tais conceitos
apresentados que compõem a história cultural, e a partir deles, compreender a formação
da identidade do grupo ucraniano através dos aspectos religiosos. Ao conceituarmos que
a identidade é uma construção social, iremos analisá-la partindo dos questionamentos
acerca da religiosidade ucraniana, assim ao problematizar as representações temos que:

As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem a


universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas
pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário
relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza.
(CHARTIER, 2002, p.17)

Com relação aos ritos propriamente ditos, nossa análise será delimitada no
estudo e observação das celebrações de páscoa e de natal, assim como um debate sobre
os rituais funerários. Propomos esses aspectos em nossa pesquisa pois, eles assumem
um caráter particular relacionado à identidade do grupo, assim como, expressam uma
maior visibilidade no contexto social onde inserem-se. Além do mais, são compostos de
uma grande quantidade de bens simbólicos próprios do rito ucraniano, através da análise
destes, podemos compreender melhor as representações coletivas que compõem o grupo
a ser pesquisado. Nesse aspecto, justificamos nosso recorte temporal de 1897 a 2007,
devido à necessidade de analisar ressignificações que tais ritos, mas sobretudo,
representações e práticas sofreram dentro deste eixo temporal.
O debate historiográfico em que o tema está envolto toma características mais
relacionadas à uma percepção econômica e materialista em torno da História – nas obras
mais clássicas – assim como há uma perspectiva voltada à história social principalmente
no que se refere aos debates entorno de imigração e população. Somente nas obras mais
recentes vemos uma abordagem preocupada com o cultural, identidades e
representações no que tange a população ucraniana. Assim, dentro desta nova
perspectiva histórica, vemos a análise dos novos objetos e métodos mencionados no
início deste capítulo, mesmo assim, os trabalhos voltados à religiosidade e aos ritos
propriamente ditos ainda são escassos, no que tange ao locus desta pesquisa os trabalhos

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ainda são ausentes, embora aja um grande número que delimitam o município de
Prudentópolis como foco de análise.

Religiosidade e representações

Considerando os apontamentos até aqui descritos, justificamos a escolha do tema


em foco através do pressuposto de que a História, enquanto uma área do conhecimento
humano, pauta suas questões através da problematização do presente. Assim, a escolha
de pesquisar sobre o grupo étnico aqui retratado, refere-se especialmente à questão da
cultura e seu diálogo na construção da identidade. Sobre a cultura, Chartier a entende
como “um conjunto de significados partilhados e construídos pelos homens para
explicar o mundo” (CHARTIER, 1990, p.183), dentro desse conceito faz-se presente
uma série de bens simbólicos que são constantemente apropriados e ressignificados
através das representações na construção de uma realidade social. Aliado a isso, insere-
se a construção da identidade de determinado grupo que através de seu cotidiano, de seu
imaginário e de suas ações frente ao outro, tornam-se perceptíveis para nós. Sobre esta
justificativa citamos a abordagem de Maria Inêz Skavronski e Edson Armando Silva:

Ao considerarmos que a realidade é socialmente construída e que a


identidade também é uma construção social a partir da relação com o outro,
encontrar-se com a alteridade é uma maneira de se posicionar diante dos
sentidos, do imaginário e das representações de um mundo de fenômenos que
nem sempre se apresentam semelhantes para os indivíduos. Mas, mais do que
conhecer a cultura e a história do outro, é necessário percebermos que, antes
de tudo, através da convivência, também fazemos parte dela. (SILVA &
SKAVRONSKI, 2013, p.281)

Assim, nossa escolha sobre a temática desta pesquisa deve-se em especial, nos aspectos
da continuidade e ressignificações dos bens simbólicos ligados ao rito católico-
ucraniano e como este, ainda se faz presente nas comunidades ucranianas.
Vale ressaltar que este trabalho volta seu olhar a um aspecto ainda pouco
explorado pela historiografia. Como já ressaltamos, as abordagens sobre este tema
através da visão cultural vêm ganhando espaço somente recentemente. Além disso, o

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espaço da colônia de Rio Claro (Mallet) ainda foi pouco explorado, uma vez que, a
maioria dos trabalhos tem seu foco dirigido a Prudentópolis.

Seria fascinante enfocar o devir histórico de cada grupo de migrantes e, a


partir da comparação de materiais empíricos provenientes de cidades como
Itaiópolis, Mallet e Prudentópolis, observar os mecanismos de diferenciação
social envolvidos em cada caso. No entanto, para realizar um tal trabalho,
seria necessário que houvesse pesquisas consistentes acerca do
desenvolvimento próprio de cada uma dessas localidades. (GUÉRIOS, 2012,
p.229)

Pretendemos com esse trabalho, colaborar, assim como tentar fomentar o debate
acerca de tais grupos étnicos por um viés cultural. Aqui em especial analisando questões
referentes à religiosidade.
Para discutirmos as concepções metodológicas deste estudo, primeiramente
partimos de uma definição geral sobre o que é a História. Compreende-se portanto a
História, através do conceito proposto por Marc Bloch como sendo a “ciência que
estuda os homens no tempo” (BLOCH, 2001, p.55) pois, dialogamos constantemente
com as ações humanas em determinados espaços, situados em tempos distintos. Para
ressaltarmos ainda mais, a questão temporal se faz presente através da formulação do
problema, como já dito por Lucien Febvre: “Sem problema não há história” (FEBVRE
apud BARROS, 2011), o lugar onde os problemas são formulados seria o tempo
presente. Com isso, compreendemos a História como esse fluxo das ações humanas no
espaço e no tempo que chegam até nós através das fontes e, a partir delas, formulamos
nossa problemática.
Dentro de toda a concepção desse campo de saber chamado História, nos
situamos no domínio da História Cultural, segundo Roger Chartier: “A história cultural,
tal como a entendemos, tem por principal objeto identificar o modo como em diferentes
lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a
ler.” (CHARTIER, 2002, p.17). Pretende-se com isso dirigir o nosso olhar para o
imaginário social, as práticas e representações pelas quais determinado grupo constrói o
seu real e sua identidade, tal abordagem será efetuada no âmbito do campo religioso e
para isso utilizaremos o conceito de representação. Assim, segundo Wander de Lara

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Proença “Um dos conceitos fundamentais para a análise e compreensão do universo


religioso é o de ‘representação’. Roger Chartier refere-se à ‘representação’ como ‘a
pedra angular de uma abordagem em nível da história cultural”. (PROENÇA, 2006, p.
52). A abordagem assumida por Chartier no uso desse conceito leva-nos a pensar a
realidade não como um dado objetivo, mas sim algo socialmente construído. Aqui
problematizamos a contribuição da religião na produção de tais representações pois esta,
estaria inserida em um campo de disputas simbólicas onde a acumulação de capital
simbólico possibilitaria a legitimidade de um discurso referente a identidade, tradição,
costumes, etc. Sobre isso Chartier nos mostra:

Por isso esta investigação sobre as representações supõe-nas como estando


sempre colocadas num campo de concorrências e de competições cujos
desafios se enunciam em termos de poder e de dominação. As lutas de
representações têm tanta importância como as lutas econômicas para
compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a
sua concepção de mundo social, os valores que são seus, e o seu domínio.
(CHARTIER, 2002, p.17)

Para a abordagem de nossos questionamentos dentro da história cultural é


importante relacionarmos as contribuições de Chartier juntos às de Bourdieu. A
aproximação da ideia de ambos nos mostra um expoente em foco do caráter
multidisciplinar da nova história cultural, especialmente de sua aproximação da
sociologia e da antropologia. As abordagens destes dois pesquisadores se
complementam, e para a pesquisa aqui proposta, ressaltamos a importância do conceito
de campo definido por Bourdieu,

Chamo campo, o universo no qual estão inseridos os agentes e as instituições


que produzem, reproduzem ou difundem a arte, a literatura, a ciência, os bens
simbólicos. Esse universo é um mundo social como os outros, mas que
obedece a leis sociais mais ou menos específicas. (...) A noção de campo está
aí para designar esse espaço relativamente autônomo, esse microcosmo
dotado de suas leis próprias. (BOURDIEU, 2004, p.20)

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Observamos que ao se trabalhar com o conceito de campo, ou campo religioso,


pautamos nossa análise no rito ucraniano, tanto nas celebrações na igreja, assim como,
na religiosidade vivida no cotidiano da comunidade.
Um outro ponto primordial para nossa pesquisa e a relação entre o conceito de
prática, proposto por Chartier, e o conceito de habitus, proposto por Bourdieu.
Novamente o diálogo proporcionado por ambos nos fornecem ferramentas para
pensarmos a identidade de um grupo, aqui em especial. A prática para Chartier estaria
relacionada à representação e, partir desta, seria possível articular relações com o
mundo social onde estão inseridas.

(...) as práticas que visam fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma
maneira própria de estar no mundo, significar simbolicamente um estatuto e
uma posição; por fim, as formas institucionalizadas e objectivadas graças às
quais uns ‘representantes’ (instâncias colectivas ou pessoas singulares)
marcam de forma visível e perpetuada a existência do grupo, da classe ou da
comunidade. (CHARTIER, 2002, p.23)

A prática em Chartier relaciona-se dessa forma com o conceito de habitus. Para


Bourdieu o habitus seria “como estrutura, estruturada e estruturante, que engaja, nas
práticas e nas ideias, esquemas práticos de construção oriundos da incorporação de
estruturas sociais oriundas, elas próprias, do trabalho histórico de gerações sucessivas.”
(BOURDIEU, 1996, p.158). Para explicar tal afirmação Proença nos mostra que: “A
partir desse elemento são identificados os esquemas geradores das práticas, os quais
podem ser chamados de cultura, competência cultural, ou seja, habitus.” (PROENÇA,
2006, p.57). O habitus, em nosso estudo, teria sua importância justificada através da
presença do campo religioso de rito ucraniano pois, o habitus é constituído também,
pela “socialização das práticas” dentro do campo, e dessa maneira produziria ações
dentro desse mesmo campo, modificando-o ou sendo modificado por ele (PROENÇA,
2006, p.59).
Outro domínio que cabe ao nosso estudo seria o da História Regional. No
entanto não pensamos na delimitação da análise de “região” como um aspecto físico ou
politicamente construído, ressaltamos isso com o intuito de manter uma distância de
discursos dominantes ou que possam serem usados como tal. Pretendemos utilizar uma

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reflexão crítica sobre tal domínio, reconhecendo assim que uma definição política de
região congrega em si uma série de silêncios e exclusões. Conceituamos nossa
abordagem através das palavras de José D`Assunção Barros:

Também a História Regional poderia ser classificada como modalidade


historiográfica ligada a uma abordagem, no sentido de que elege um campo
de observação específico para a construção da sua reflexão ao construir ou
encontrar historiograficamente uma ‘região’. Examinando um espaço de
atuação no qual os homens desenvolvem suas relações sociais, políticas e
culturais, a História Regional viabiliza, através de sua abordagem, um tipo de
saber historiográfico que permite estudar uma ou mais dimensões nessa
região que pode ser analisada tanto no que concerne a desenvolvimentos
internos, como no que s refere à inserção em universos mais amplos.
(BARROS, 2011, p.198)

Com relação às nossas fontes utilizadas nessa pesquisa, escolhemos dois relatos
de imigrantes que residiram na colônia de Rio Claro. O primeiro relato é uma carta
escrita por Teodoro Pototskei, destinada à direção de um jornal de imigrantes
ucranianos no Estados Unidos chamado “Svoboda”. Consta na fonte que no início das
colônias era comum a correspondência entre grupos de imigrantes no Brasil e na
América do Norte, assim como correspondências destinadas a região da Galícia. A fonte
foi produzida em setembro de 1897 na colônia de Rio Claro, dentre o contexto de sua
produção destacamos a presença das salas de leitura, chamadas pelos imigrantes de
“tchetalhny”. Tais salas, como aponta Andreazza (2011), seriam um costume trazidos da
Galícia onde o clero atuava na alfabetização dos camponeses. As salas como são
retratadas na fonte, ficavam em um anexo da igreja. Essa fonte foi escolhida
especialmente pela descrição que faz do cotidiano do imigrante recém chegado à
colônia mas, sobretudo, por ressaltar a importância da religiosidade para o grupo.
Ressalta-se expressivamente como a comunidade ucraniana mobilizou-se para a
construção de seu templo, e como a influência do padre Nikon era exercida sobre o
grupo. Outra questão importante refere-se à construção da identidade e alteridade pois,
como já citamos, os imigrantes poloneses já estavam presentes nessa colônia e
contavam com um sacerdote e uma capela, entretanto, a comunidade ucraniana tem
como por necessidade estabelecer o seu próprio campo religioso assim, nas palavras de

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Teodoro Pototskei: “Muitos de nós, nem pensávamos em ver uma igreja de rito
ucraniano no Brasil e ouvir a liturgia ucraniana...”. A carta fora publicada
posteriormente no jornal dos seminaristas basilianos, intitulado Tzvirkun - “O Grilo”.
A segunda fonte a ser utilizada é um relato de um outro imigrante que se
estabeleceu na colônia de Rio Claro, seu nome é Ivan Pasevich. Esse depoimento foi
publicado inicialmente no jornal Pracia, de Prudentópolis em 12 de Dezembro de 1951.
É composto de uma memória sobre a vinda deste imigrante e sua família para o Brasil e
de como ocorreu seu estabelecimento na colônia. O que nos interessa nesse relato é a
descrição que Pasevich faz do cotidiano de sua família nos primeiros anos em que
estavam na colônia, mas especialmente, quando diz:

No começo nos sentíamos muito estranhos, porque ficamos por 3 anos em


ambiente puramente polonês. Só após três anos chegaram à colônia Rio Claro
os primeiros ucranianos (8 famílias), a família dos Povidaiko, Scheremeta,
Bilenkyi, Pasko, Koszan, Krassovskyi, Maruschka, Justechen. Quando
soubemos que eles chegaram a Rio Claro, nós todos de casa fomos visitá-los
e saudá-los com o nosso pão. (PASEVICH, 1951)

Novamente, o apreço com relação ao “polonês” aparece, nesse aspecto podemos


identificar um forte indício da presença de uma fronteira de identidade que seria ressalta
com a presença da igreja. Notamos também, ao comparar os dois relatos, que mesmo
levando em consideração os anos de produção de cada um (1897 e 1951) ainda
percebemos uma luta de representações, esta seria pois, uma outra justificativa para
nosso recorte temporal. Pasevich ainda apresenta evidências do início da construção da
primeira igreja na colônia e assim, a criação de um campo religioso, segundo ele:

Igreja, no começo nós não tínhamos nenhuma. O Natal e a Páscoa nós


comemorávamos em casa. Meu pai benzia a ‘paska’ com água benta e nós
todos juntos rezávamos o Pai-Nosso “Otche Násch’, e isso era toda a nossa
cerimônia de comemoração. Só em 1897, com a vinda do Padre Rosdolskyi,
na Colônia 5 foi construída a primeira Igreja. Duas ou três vezes ao ano nós
íamos a pé pelas picadas até à Igreja na Colônia 5. Geralmente
caminhávamos dois dias. No ano de 1899 começamos a construir a Igreja na
Serra do Tigre. (PASEVICH, 1951).

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Como podemos ver, tal relato expressa também palavras referentes às práticas culturais
de tais imigrantes relacionadas aos rituais natalinos, os quais são objeto de análise nesta
pesquisa.
Em ambos os relatos, observamos um tom pejorativo frente ao imigrante
polonês, uma necessidade de ressaltar as diferenças entre “eles” e “nós”. Nessa questão
optamos pelo uso do conceito de representação pois, ao emprega-lo, Chartier irá
explicar que ele nós possibilita visualizar a construção de uma realidade de um grupo;
perceber como as ressignificações simbólicas são realizadas por meio da prática.
Aspecto este já apresentado, tal conceito aproxima-se muito do habitus de Bourdieu, a
afirmação da identidade frente ao outro grupo pode nos revelar os esquemas de
percepções e comportamentos produzidos pelos agentes através de uma estrutura
histórica. Tais agentes aqui são figurados pelos sacerdotes e pela própria instituição
religiosa que reforçariam o habitus seja por meio da criação de salas de leitura, o que os
diferenciava dos poloneses através de uma espécie de capital simbólico relacionado à
educação; seja pelo discurso do casamento endogâmico, relacionando somente entre as
pessoas do próprio grupo ucraniano; seja pelo apego ao rito propriamente dito, ficando
evidente nos relatos a importância destas práticas religiosas na vida moral dos
imigrantes.
Uma terceira fonte a ser utilizada, consiste na produção de uma fonte oral,
através da entrevista com o atual diácono da paróquia Sagrado Coração de Jesus, o Sr.
João Basniak. Justifica-se essa opção, pois a pessoa em questão, atua a vários anos
dentro do campo religioso. Pretende-se com essa entrevista, identificar aspectos da
religiosidade que sofreram ressignificação e como as representações presentes no campo
religioso atual dialogam com a identidade do grupo.

Considerações Finais

Tendo apresentado esta primeira etapa de nossa pesquisa, ressaltamos que ainda
nos resta realizar uma abordagem através da história oral para analisarmos as memórias
dos descendentes desses imigrantes objetivando identificar em sua vivência religiosa
elementos que contribuam para nossa hipótese inicial. Certamente não pretendemos
levantar nenhuma concepção totalizante, do ponto de vista da religiosidade, de que o

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rito católico ucraniano seja o elemento único ou principal na construção de uma


identidade rutena no Paraná. A proposta tende a identificar em especial, como essa
prática religiosa atuou na formação da identidade, entretanto ressaltamos que outras
matrizes religiosas também podem ter influenciado o grupo de maneiras muito
particulares que necessitam ser examinadas mais detalhadamente.
As entrevistas estão em andamento, assim como um novo levantamento de
relatos das primeiras famílias rutenas a se estabelecerem nas colônias paranaenses.
Dado este primeiro momento, podemos ressaltar uma certa importância a esse rito
praticado pela grande parte destes colonos, como um agente que auxiliou na construção
da realidade social do imigrante nas terras do “novo mundo”, no entanto, evitamos
tomar qualquer afirmação mais densa para não cairmos em um reducionismo sobre o
fenômeno da construção dessa identidade ucraíno-brasileira, pois, ressaltamos que há
outros fatores a serem pensados em conjunto com a religiosidade. A análise desse
campo de disputas deve ser pensada com cuidado, sobretudo ao se recortar uma região
específica para o estudo, lembramos que o devir histórico destes imigrantes deve ser
pensado especificamente em cada região em que eles se estabeleceram.

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REFLEXÕES SOBRE A MEMÓRIA E A ETNICIDADE EM NIPO-


BRASILEIROS NA CIDADE DE URAÍ-PR
José Junio da Silva (História – UFPR) 229
Dr. Sérgio Odilon Nadalin (Orientador)
PALAVRAS-CHAVE: MEMÓRIA COLETIVA; IDENTIDADES CULTURAIS; NIPO-BRASILEIROS

1- Núcleo familiar: construção e reprodução da cultura coletiva

“Cada filho e sua conta, em cada conta,


seu débito que um dia tem que ser
pago”.
(Carlos Drumond de Andrade)

A cultura japonesa tem consagrado valores fundamentais, por sua vez, capazes de
explicar a construção de sentidos de sua tradição e pertencimento. Pátria, família e trabalho
compõem o amálgama desta cultura. O sentido de "pátria" está ligado ao nacionalismo do povo
japonês: cada cidadão é parte de um povo, de uma nação. A sua vida só tem razão de ser quando
está ligado aos destinos da pátria. O perfil básico do modelo ideal de japonês foi forjado na era
Meiji para a construção da nação moderna e reforçado ao longo dos anos 1930, com forte ênfase
na lealdade ao Imperador, visando à mobilização da nação para a expansão ultramarina. O preço
deste processo foi à repressão ao individualismo, a perda de comunidades tradicionais e do
particularismo.
O conceito de família é decorrente do primeiro valor: a pátria só será permanente
através da família. Este conceito milenar atravessa a história do povo japonês por meio dos clãs,
base da pátria. Na família japonesa, cada pessoa tem um papel determinado, e nas demais
famílias e na sociedade reside à expectativa que cada um cumpra seu papel.
O trabalho é o terceiro valor cultural e liga os dois primeiros valores - pátria e família.
Se a família é que vai garantir a perenidade da pátria, o trabalho é o que sustentará
economicamente a família. Este caráter simbólico permite compreender a construção da
configuração familiar japonesa, o sentido de pertencimento, responsável pela integração do
indivíduo e representação simbólica de cada membro.

*
doutorando em História pela Universidade Federal do Paraná, bolsista pela Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

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As famílias japonesas que emigraram para o Brasil estavam constituídas segundo os


princípios do Código Civil Japonês, de 1896, e atribuía ao homem autoridade superior na
direção familiar. Entre as atribuições deste chefe estavam: escolha do substituto da chefia
familiar, a escolha dos casamentos dos filhos e a dominação sobre a mulher. O Código Civil
disciplinava, ainda, a formação hierárquica da família japonesa, tendo o pai como chefe,
seguido pelos filhos, de sexo masculino por ordem de nascimento, e, posteriormente, as filhas.
Assim, além de produzir a hierarquização das famílias japonesas, montou uma organização
coesa e de difícil fragmentação. As famílias nipônicas trouxeram para o Brasil os princípios
instituídos por este Código.

Vemos, portanto, que a organização da família vai ser de importância crucial


no processo de absorção dos japoneses, no sentido de manter o grupo étnico
coeso e com uma solidariedade que se expressará no índice de etnocentrismo
e nos contatos com a sociedade brasileira, mais ou menos, limitados, as
relações adaptativas e econômicas 230.

A maior ênfase do sistema familiar tradicional japonês não estava na continuidade


consanguínea, mas na sua perpetuação enquanto grupo corporativo. Assim, a existência da regra
de adoção de um filho garantia um encarregado pela administração dos negócios e perpetuação
do grupo, em que pese o sacrifício da linhagem consanguínea 231. O poder principal do iê 232
residia no chefe da casa, que representava o sucessor da linhagem ancestral, a quem todos os
seus membros deviam respeito e obediência.
No sistema familiar japonês a sucessão do iê baseava-se na primogenitura patrilinear.
Era ao filho mais velho (chonan) que cabia assumir o status de chefe de família por morte ou
afastamento (inkyo) do pai, bem como a ele eram atribuídos os bens familiares. Entretanto,
Vieira destaca que a regra de descendência patrilinear e primogenitural requer em determinadas
situações arranjos particulares 233. Tratando-se de uma sociedade que passara a privilegiar a
primogenitura masculina na sucessão do iê e herança dos bens, a ausência de um varão era
quase sempre resolvida com o recurso à adoção, dentro ou fora do grupo de parentesco. Além de
assegurar a perpetuação do iê, era uma prática privilegiada para o estabelecimento de alianças
político-militares. A adoção estabelece um vínculo de filiação fictício e era uma estratégia

230
VIEIRA, Francisca Isabel Schurig. O Japonês na frente de expansão paulista. O Processo de absorção
do japonês em Marília, São Paulo. São Paulo: EDUSP/Pioneira, 1973. p. 113.
231
BEILLEVAIRE, Patrick. “O Japão, uma sociedade do lar”, p. 189-224, p. 204. In: BURGUÈRE,
André (org.). História da família, v.2. Lisboa: Terramar, 1997.
232
De forma bastante simples podemos traduzir como “casa”.
233
VIEIRA, Francisca Isabel Schurig, O Japonês na frente de expansão paulista. O Processo de absorção
do japonês em Marília. op. cit. p.116.

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hereditária alternativa frequente no Japão. Neste caso, a escolha recaía, em geral, em um adulto
jovem, que renunciava à sua origem e nome para identificar-se com a casa adotiva e a sua
proveniência. Geralmente a adoção era consolidada com o casamento de uma filha com o
indivíduo.

2- Relação estreita entre tradição e a lealdade aos valores do núcleo familiar

O culto aos antepassados limitava-se aos falecidos mais recentes e por meio da
inscrição de um nome póstumo no ihai (pedaço de madeira com a inscrição do nome, colocado
sobre o altar (butsudan)) para serem recordados na casa. A cerimônia do Bon, comemorado em
meados de agosto, é o culto de veneração por todos os mortos do iê, as almas errantes e os
anciãos, considerados antepassados vivos 234. O-Bon (O-bon お盆 ou simplesmente Bon 盆,) é
um festival de tradição budista, típico do verão, realizado sempre após o pôr do sol. Segundo a
crença, quando se comemora o Obon, os espíritos dos antepassados retornam a este mundo, a
fim de reencontrar seus familiares. Durante o Obon celebram-se as almas dos antepassados com
danças em grupo (bon odori), lanternas (mukaebi) acesas são penduradas em frente das casas
para guiar os espíritos, túmulos são visitados e oferendas de alimentos são feitas nos altares
domésticos e nos templos. São tocadas músicas tradicionais alegres e impera um clima de
jovialidade, gratidão e participação geral. No encerramento, lanternas flutuantes são colocadas
em rios, lagos e mares para que possam guiar as almas de volta ao mundo espiritual. Contudo,
tais celebrações variam, fortemente, de região para região. Os festejos são uma oportunidade
para o reencontro de famílias, de retorno aos lugares de origem.
A família japonesa abarca valores da cultura de origem, que perpassam o
conjunto das relações sociais, e são reinterpretados por cada indivíduo nas vivências
cotidianas. A honra, a lealdade (giri) para com o Imperador e a família ou com o
superior, o sentimento de dívida impagável (on) em relação aos pais, o respeito aos mais
velhos, a perseverança, o gambarê são representações de comportamentos orientados
pelos códigos da cultura nipônica.
O código de respeito e lealdade assume um caráter de obrigação individual e o seu
desrespeito caracteriza a perda da honra, ou seja, da posição que ocupa na rede de relações. De
um lado, o sujeito portador da obrigação e encarregado da retribuição dos débitos para com os
superiores, de outro, os credores, a quem se deve respeito, amor e lealdade. O pagamento do on
a um superior representa a objetivação da virtude que simboliza a gratidão pelo crédito

234
OKAMOTO, Mary Yoko. “Dekassegui e família: encontros e desencontros.” Tese de Doutorado
(PUC-SP). São Paulo, 2007, p. 52.

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recebido 235. Obrigação, gratidão e devoção é o sentido do on para com o Imperador. Fidelidade
e devoção dos filhos em relação aos pais são sinônimo do afeto do on recebido, do
reconhecimento do empenho e sacrifício dos pais, e a retribuição deste débito é o amor filial.
Uma forma concreta do pagamento do on está na educação dos descendentes, de modo que ela
seja igual ou, melhor daquela recebida 236.

3- As associações japonesas – lugar de (re)produção da cultura e solidariedade étnica

Michiko Ribaroto, nascida em Hiroshima, aportou no Brasil em 1928, com 3 anos de


idade. Seus pais tornaram-se arrendatários de algodão no interior do estado de São Paulo e, em
1936, transferiram-se para Pirianito. Depois da união conjugal, Michiko tornou-se a senhora
Sugahara, engrossou a força de trabalho familiar junto a um balcão de bar ao longo de 44 anos.
“Dona Maria”, como era conhecida, presenciou a labuta materna na máquina de costura,
preparando trajes para os peões, sentiu a ausência do pai, morto em 1942, enfrentou a maleita,
as viagens a Londrina para o abastecimento do estoque do bar, por meio de salvo-conduto, e
conheceu tempos de repressão e censura imposta aos japoneses durante o período da Guerra.
Juntamente, com a mãe e o marido, esteve à frente de um dos principais estabelecimentos locais,
ao lado de outros imigrantes que se dedicaram a outros ramos do comércio. No seu relato de
vida, pouco espaço é reservado ao marido. Sua memória é habitada por mulheres: a mãe, a irmã
e as filhas. Além disso, ela enfatiza a presença da Associação Japonesa no interior das colônias.
“Tinha e ainda tem associação”. “Todo lugar tem, toda cidade que tem bastante japonês, tem
associação”. “Aqui se chama Shimboku-kai. Em cada cidade tem um nome diferente.”
Pausadamente, ela passa a relatar a função da associação. “Quando alguém precisa de ajuda, ela
ajuda. Diversos tipos de ajuda, por exemplo, se eu estou passando fome, eles ajudam com
237
comida. Se a gente precisa de alguma coisa por doença, a gente corre e é atendido” . De todos
os aspectos mencionados acerca do papel das associações nipônicas, a solidariedade étnica foi
marcante.
Segundo depoimento coletado em entrevistas, desde o início, a associação foi o
principal refúgio para os imigrantes. No princípio a aceitação de brasileiros ou indivíduos de
outras nacionalidades não era permitida.

235
BENEDICT, Ruth. O crisântemo e a espada. Padrões da cultura japonesa. op. cit. p.88.
236
Idem. p.89.
237
Entrevista inédita com Michiko Sugahara, realizada em 18 de abril
de 1985, em Uraí, cedida pela professora Dra. Evandir Codato.

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No início, 100% dos membros da associação eram de origem japonesa.


Atualmente se aceitam membros de nacionalidade brasileira, mesmo os que
não possuem nenhuma relação com os japoneses, mas, o que se percebe é
que quando o membro brasileiro procura a associação para se afiliar, ele
possui alguma relação com a cultura japonesa, no caso os casamentos
interétnicos 238.

Não havia caráter discriminatório, segundo relato do Sr. J. T. T. - oriundo do interior


do estado de São Paulo e residente na Colônia Pirianito desde o início da década de 1940. No
início, a associação japonesa não possuía propósito para não japoneses. O objetivo principal da
associação era a união do grupo em torno da cultura, da ajuda mútua, do assistencialismo
comunitário.

Nos primeiros anos não existia motivo para o brasileiro se juntar ao grupo
japonês por meio da associação. A associação, além de relembrar nossa
cultura, nos aproxima, nos protege, nos dá segurança. Por exemplo: como
um brasileiro poderia entender a ajuda financeira para a família de um
membro que viesse a morrer? Não tinha sentido! 239.

Complementarmente, o Sr. J. T. T., assegura que a associação já não agrega somente


indivíduos de origem japonesa e seus descendentes, muitos brasileiros são associados. Neste
sentido a associação funciona como meio aglutinador na sociedade de Uraí. Reúne e estabelece
contato entre indivíduos diferentes.

Não existe nada que proíba que indivíduos que não tenham nenhuma relação
com os japoneses frequentem a associação, criou-se até uma lista telefônica
própria, onde estão registrados nomes de alguns brasileiros. Não é uma
regra, mas na maior parte das vezes os brasileiros que fazem parte da
associação são casados com japoneses 240.

238
Segundo os estatutos das associações não está vedada a
participação de brasileiros, mas existe um padrão de exclusão que, em
várias ocasiões, é expresso verbalmente. Por outro lado, o uso da
língua japonesa, os padrões de comportamento e os símbolos
particulares, afastam qualquer indivíduo que não for japonês.
239
Entrevista concedida a José Junio da Silva em Uraí em 21 de maio
de 2009, duração de 1 hora e 30 minutos.
240
Entrevista concedida a José Junio da Silva em Uraí em 21 de maio de 2009, duração de 1hora e 30
minutos.

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270

A fala dos entrevistados demonstra a necessidade de união em torno dos aspectos


culturais do grupo. Mais uma vez a ideia de coletivo se torna essencial para a manutenção das
tradições.

4- Sucessão familiar e a tradição

A preferência pelo primogênito de sexo masculino ocorreu na maior parte das famílias
dos indivíduos entrevistados. A exceção ocorria quando o primogênito estava impossibilitado de
assumir a direção familiar. Neste sentido, ficava a cargo do patriarca, ou da própria família, a
escolha de outro filho, e até mesmo a escolha de um indivíduo de fora da família, no caso, um
genro.
A maioria dos japoneses e nipo-brasileiros entrevistados manifestou aprovação da
primogenitura na sucessão, alegando que os pais estavam observando a tradição nipônica. Os
não primogênitos consideram ser legítimo este princípio de sucessão em função da experiência
acumulada pelos mais velhos no trabalho ao lado dos pais. Pesa sobre esta argumentação o fato
de a família ser um conjunto, o trabalho ser coletivo, e a união, portanto, era um requisito. Vale
lembrar que, mesmo no Japão, a partir de 1947, o Código Civil reconhece iguais direitos a todos
os filhos, independentemente de sexo ou idade. Contudo, as antigas práticas de sucessão
familiar estavam cristalizadas na colônia, indicando o longo percurso rumo às mudanças 241.
Constatamos corrente a prática do chonan nas famílias, alguns casos com sucesso,
outros nem tanto. A exceção foi observada na família de uma entrevistada de terceira geração –
Sra. A.P.M.W. - de 28 anos, mestiça, psicóloga, casada com brasileiro, servidora municipal. Ela
afirma que sua família era proprietária de muitos bens e após a morte do patriarca, cuja prole era
de três filhos, os bens foram divididos igualmente entre os descendentes. Externa, também, que
o modelo de sucessão e o culto aos antepassados foram suprimidos após a morte do avô.

Desde pequena minha avó ensinava algumas palavras em japonês em casa.


Meu pai e tios falavam em japonês com meus avôs, mas era só isso. Minha
educação em japonês se restringia a algumas palavras em japonês, na
maioria das vezes se resumia a palavrões. Talvez meu pai não se
preocupasse em manter a tradição japonesa em nossa casa por que minha
mãe era brasileira e não queria filhos educados na tradição japonesa 242.

241
CARDOSO, Ruth Corrêa Leite. Estrutura familiar e mobilidade social: estudo dos japoneses no
Estado de São Paulo. op. cit. p. 84.
242
Entrevista concedida a José Junio da Silva em Uraí em 16 de junho de 2009, duração de 55 minutos.

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Ainda que não houvesse ocorrido o chonan na família, a Sra. A.P.M.W. salienta que o
avô manifestara preferência pelo filho mais velho. Enfatiza que o avô proporcionou condições
de estudo aos filhos e, embora, seu pai tivesse concluído o curso de agronomia, optara pela
propriedade de um bar na cidade, em detrimento do exercício da profissão de nível superior.
Quando interrogada sobre a família e a sucessão familiar, a entrevistada responde:

Meu pai estudou agronomia, uma das melhores faculdades do Paraná. Meu
avô tinha terras, casas na cidade e dinheiro guardado, mas meu pai não era
bom para cuidar dessas coisas. Meu pai era o filho mais velho, pela tradição
o escolhido para continuar com os bens da família, mas ele sempre bebeu.
Deve ser por isso que meu pai não aumentou o patrimônio que meu avô
deixou. Ele nunca exerceu a função de agrônomo, enquanto meu avô tinha
dinheiro ele nem trabalhava, agora tem um bar, faz o que gosta 243.

A exceção da sucessão familiar pela primogenitura masculina entre os entrevistados


foi um caso de opção pela filha. Nesta ocorrência, o genro assumiu as funções, juntamente, com
a escolhida, pois a partir do casamento o marido passava a ser o responsável pelo patrimônio da
família dela. A escolha para a sucessão recaiu na Sra. I.I.R., nissei, de 56 anos, a mais velha de
um conjunto de seis herdeiros. Diz ela que, após tentativas mal sucedidas na indicação de
sucessores na linhagem masculina, o pai opta por ela e seu marido, um brasileiro, para
administrar os bens familiares.

Meu pai até tentou passar os bens e a administração dos negócios da família
para meus dois irmãos, mas não deu certo. Meu pai, hoje com 91 anos, é
muito mandão, não admite perder o controle da família. Ele queria um
sucessor submisso a sua autoridade. Com meus irmãos não deu certo. Já no
meu caso, por eu ser mulher e ser casada com brasileiro, ficou mais fácil.
Então hoje, nós, eu e meu marido, cuidamos das fazendas da família, mas
meu pai está por dentro de todos os negócios, a sua palavra é sempre a
última 244.

O episódio envolvendo a Sra. I.I.R. não caracteriza o mukoyoshi, pois o marido não
era japonês, sequer descendente, nem adotou o sobrenome da família da mulher. Há que
observarem-se as restrições a esta prática no Brasil, em função de dispositivos do Código Civil

243
Entrevista concedida a José Junio da Silva em Uraí em 16 de junho de 2009, duração de 55 minutos.
244
Entrevista concedida a José Junio da Silva em Uraí em 16 de junho de 2009, duração de 1hora e 45
minutos.

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nacional. Na realidade, o evento consumou um casamento interétnico. Os casamentos


interétnicos não eram aceitos pelos imigrantes que inicialmente formaram Pirianito, pois
poderiam comprometer a organização do modelo familiar, cujos alicerces estavam inseridos em
padrões tradicionais de ordem, dever e interesses presentes em todo o grupo. A escolha de um
casamento nestes moldes atribuía ao indivíduo à negação de solidariedade grupal, renunciando a
valores essenciais e à orientação tradicional 245.
Cabe aqui salientar que o chonan é o sucessor imediato do iê, é o responsável pela
tradição e manutenção das tradições do grupo. O culto aos antepassados acaba sendo
responsabilidade também do chonan, sendo essencial que a responsabilidade do mesmo em
relação à tradição seja colocada em prática. No caso descrito nas entrevistas percebe-se a
relação de atrito familiar em relação a sucessão. No primeiro caso o chonan era inapto a ocupar
a função devido ao vício que o mesmo tinha em relação à bebida. No segundo caso também há a
incapacidade do filho mais velho do sexo masculino ocupar a função de chonan, principalmente
pela falta de responsabilidade que o mesmo tinha com as questões que envolvem o grupo.
Percebemos a importância que o grupo tem em preservar suas particularidades, seus valores e
seu capital cultural.
O modelo de organização familiar trazido do Japão acompanhou os indivíduos que
passaram a fazer parte da sociedade nacional. Foram acrescidos a esta organização valores
culturais novos. Neste sentido, a cultura pode ser entendida como dinâmica, que busca
atualização no tempo e no espaço, que a representação necessita da inserção de novos elementos
que a atualizem, sendo as mudanças corriqueiras e necessárias.
Os distintos procedimentos observados na sucessão familiar na Colônia Pirianito
levam-nos a considerar que os sujeitos constituem seu modo de ser no mundo através de suas
culturas e que o mesmo movimento dialético que as reproduz também as inova. A cultura
enquanto fonte de sociabilidade reside na concepção dos interesses culturais “como interesses
comuns de conversa sociável”. Ao ser tema de conversa, aproxima ou afasta as pessoas, forma
círculos de sociabilidade mais ou menos restritos, estimula a constituição de mercados
matrimoniais, facilita ou dificulta projetos de mobilidade social. Assim, grupos sociais com
menos redes de sociabilidades concentram, quase que exclusivamente, as suas práticas nas
modalidades domésticas receptivas, demarcando redes de relacionamento circunscritas a
parentesco e vizinhança. De outro modo, a emergência de relações sociais, cujas formas
tradicionais de organização cedem espaço a círculos de interação, grupos de convívio flexíveis e
descontínuos, acaba por não proporcionar aos indivíduos uma identificação sólida, consoante

245
WAWZYNIAK, Sidinalva Maria. A “colônia” como representação: imigração japonesa no Brasil. In:
Cem anos da imigração japonesa: história, memória e arte. São Paulo: Editora UNESP, 2008. p.172-173.

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proposições de Hall. Padrões e formas de relacionamento social de nipo-brasileiros em


contextos de interação e convívio social da colônia estão a evidenciar novas sociabilidades,
indicando que os lugares da construção de identidade social passam a se diluir em um cotidiano
complexo, com fronteiras menos definidas 246.
As experiências na coleta de entrevistas em Uraí permitiram a visualização de
aspectos próprios da cultura nipônica referente ao culto aos antepassados. Nas residências
podemos perceber a existência de altares (butsudan), em locais privilegiados das casas e
também fotos do próprio imperador japonês. Na residência do senhor J.T.T. a foto do imperador
estava bem visível próxima a entrada da sala de visitas. Quando indagado o “por que” da foto, o
mesmo produz uma fala que deixa claro o princípio coletivo ao qual o grupo desde o princípio
se propôs a seguir.
O imperador também é considerado um ancestral. Nós somos todos viemos
de um mesmo lugar, filhos de uma mesma mãe e de um mesmo pai. O
imperador tem a função de zelar por nós. Somos todos da mesma família.
Você na sua casa não coloca fotos dos seus parentes na estante, então, aqui
também. Temos orgulho dos nossos antepassados, estamos aqui por causa
deles, seria injusto esquecer de onde viemos 247.

Percebemos a preocupação em fazer parte do grupo, não se isolar da grande família


japonesa. O senhor J.T.T. diz que a foto foi comprada em São Paulo, no Bairro da liberdade e
que quase todos os japoneses utilizam as mesmas em suas residências.
Não lembro quanto paguei, acho que deveria ser de graça (risos). Comprei
quando fui pra São Paulo, não lembro o ano, mas faz mais de 10 anos, com
certeza. Trouxe um pro meu filho e outro pra minha filha, ela usa ele nem sei
onde guardou (risos). As novas gerações não pensam como eu. Tentei cobrar,
mas depois que cresce fica difícil 248.

Quando questionado sobre a atitude dos filhos em relação aos seus antepassados o
senhor J.T.T. demonstra preocupação, e não esconde a felicidade em ter os filhos cultuando e
vivendo a cultura assim como fazia. Fica claro que o princípio norteador do grupo ainda
permanece importante para o mesmo. Quando questionado sobre o culto aos antepassados diz:

246
HALL, Stuart. Quem precisa da identidade? In: SILVA, Tomaz
Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos
culturais. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 103-133.
247
Entrevista concedida a José Junio da Silva em Uraí em 16 de junho
de 2009, duração de 55 minutos.
248
Entrevista concedida a José Junio da Silva em Uraí em 16 de junho
de 2009, duração de 55 minutos.

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Passei para meu filho mais velho, o L. e ensinei que a família é importante e
que nunca deve ser esquecida, mesmo aquele que nunca viu. O parente é
aquele que está pronto pra te ajudar. Não sei se ele pensa assim, acho que
não. O altar budista, ele disse que não tem onde colocar, ele não mora aqui,
mora em Londrina, o apartamento não é grande. Então não sei, enquanto tiver
vivo eu cuido, depois.... 249

A sansei, Sra. A.P.M.W. possui discurso diferenciado em relação aos seus


antepassados. De forma geral, a tradição do grupo não é vivenciada de forma semelhante
quando comparado a outros entrevistados. Mesmo não tendo as práticas voltadas
especificamente para o grupo japonês, vê a necessidade de manter a família reunida em valores
próximos.
Eu sou casada com brasileiro, quase não vejo diferenças entre eu e ele.
Quando era pequena, na casa da minha avó, via a tradição ser colocada em
prática. Minha avó tinha altar em casa, a foto de uns japoneses que eu não
conhecia, meu próprio avô. Meu pai, não sei se foi por causa da bebida, ou da
vida que vivia, nunca se preocupou com os antepassados, pelo menos acho.
Eu não herdei nada dele, nem dinheiro nem antepassados (risos) 250.

Neste sentido, buscamos por meio das entrevistas frisar a importância do grupo para a
organização social dos japoneses de Uraí.

5- Considerações finais

A busca por dados em entrevistas com descendentes de japoneses em Uraí mostrou


características próprias da cultura local. As entrevistas abordaram assuntos ligados à família, a
coletividade, a transmissão e configuração de aspectos da cultura produzidos localmente. De
uma forma geral, o assunto que se destaca na memória dos entrevistados permeia sobre o
coletivo, a importância do grupo. São destacadas a função da associação, onde aspectos da
tradição e da solidariedade do grupo parecem bem nítidas. Apesar da associação da cidade não

249
Entrevista concedida a José Junio da Silva em Uraí em 16 de junho de 2009, duração de 55 minutos.
250
Entrevista concedida a José Junio da Silva em Uraí em 16 de junho de 2009, duração de 55 minutos.

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mais agrupar somente indivíduos do grupo, ainda existe a união, tendo em vista que grande
parte daqueles que procuram a associação, estão direta ou indiretamente ligados ao grupo
japonês.
A família é o principal grupo difusor da cultura, bem como instituição de produção e
reprodução da cultura geral. Nela percebemos a base para a produção da cultura. O que chama a
atenção é a grande hierarquização nos lares dessas famílias. O papel de cada membro está
definido, sendo essencial sua execução para o bem de todos. Quando alguma eventualidade
venha acontecer que abale ou interrompa a estrutura hierárquica vigente, atitudes são tomadas
com o objetivo de restaurar a ordem e mais uma vez a organização do grupo.
O culto aos antepassados foi percebido como um mecanismo de preservação dos laços
do grupo. A tradição e a solidariedade também foram destacadas pelos entrevistados. De forma
ampla percebemos novamente relações de coletividade.

REFERÊNCIAS
BEILLEVAIRE, Patrick. “O Japão, uma sociedade do lar”, p. 189-224, p. 204. In:
BURGUÈRE, André (org.). História da família, v.2. Lisboa: Terramar, 1997.
BENEDICT, Ruth. O crisântemo e a espada. Padrões da cultura japonesa. São Paulo:
Perspectiva, 1997.
CARDOSO, Ruth Corrêa Leite. ESTRUTURA FAMILIAR E MOBILIDADE SOCIAL: ESTUDO DOS
JAPONESES NO ESTADO DE SÃO PAULO. Tradução para japonês de Masato Ninomiya. São
Paulo: Primus - Comunicação, 1995.
HALL, Stuart. Quem precisa da identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.).
Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000.

HASHIMOTO, Francisco. Sol nascente no Brasil: cultura e mentalidade. São Paulo:


HVF Arte e Cultura, 1995.
HASHIMOTO, Francisco; TEIXEIRA, Marco Antonio Rotta. “Um olhar sobre a
velhice: um estudo com os imigrantes japoneses”. In: HASHIMOTO, Francisco;
TANNO, Janete Leiko e OKAMOTO, Monica Setuyo (org.). Cem anos da imigração
japonesa. História, memória e arte. São Paulo: Editora UNESP, 2008.
OKAMOTO, Mary Yoko. “Dekassegui e família: encontros e desencontros.” Tese de
Doutorado (PUC-SP). São Paulo, 2007.

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SILVA, José Junio da. Configurações de identidades culturais de imigrantes japoneses.


(Colônia Pirianito: 1936 – 1956). Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Maringá, 2009.
VIEIRA, Francisca Isabel Schurig. O Japonês na frente de expansão paulista. O Processo de
absorção do japonês em Marília, São Paulo. São Paulo: EDUSP/Pioneira, 1973.
WAWZYNIAK, Sidinalva Maria. A “colônia” como representação: imigração japonesa no
Brasil. In: Cem anos da imigração japonesa: história, memória e arte. São Paulo: Editora
UNESP, 2008.

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MÍDIA E CAMPO SIMBÓLICO; UMA ANÁLISE DE PALESTINE,


DE JOE SACCO (1991-1992)
José Rodolfo Vieira (UEL/CAPES)
Prof. Dr. Richard Gonçalves André (Orientador)
PALAVRAS-CHAVE: MÍDIA, CAMPO SIMBÓLICO, FOTOJORNALISMO, HISTÓRIA EM QUADRINHOS

Apresentação

Em 1991, Joe Sacco, jornalista formado pela Universidade do Óregon em 1981,


maltês de nascença e acolhido nos Estados Unidos como sua casa, desperta em si a
necessidade de cobrir o episódio chamado de Intifada nos territórios ocupados em
Palestina por Israel após a guerra de 1967. Segundo próprio Sacco, tal necessidade de
sair da Alemanha, onde desenhava cartazes para bandas, para cobrir jornalisticamente o
levante popular palestino advém de uma necessidade “biológica” (SACCO, 2011 p.xvi)
em compreender os ditames que permeavam a disputa entre israelenses e palestino. Para
isso, observemos suas palavras ao que refere sua necessidade “biológica” (SACCO,
2011 p.xvi):
Sim, já me disseram, há outros lugares no mundo com maiores injustiças e
pilhas de cadáveres mais altas. Mas, além do nebuloso dever de compadecer-
me com o sofrimento de um povo distante, a situação me incomodava em
outros dois níveis como americano pagador de impostos, cujo dinheiro – meu
dinheiro – estava sendo empregado para perpetuar uma ocupação e como
graduado em jornalismo pela Universidade do Oregon, pois estava abismado
com a fraca – terrível seria mais adequado – cobertura que os jornalistas
norte-americanos estavam dando a questão.
Estas são as próprias palavras de Sacco no prefácio da edição brasileira de
Palestine. Por meio de suas palavras, observamos que sua necessidade “biológica”
advém de dois fatores distintos, mas que nos possibilita compreender as causas que o
levaram a “compadecer-se com o sofrimento de um povo distante”. A primeira está no
fato de compreender, como estadunidense, onde e como seu dinheiro, como pagador de
impostos, estava sendo investido na ocupação.
A relação entre Estados Unidos e Israel é intensa dentro do contexto que permeia
o conflito no Oriente Médio. Tal relação entre Estados Unidos e os sionistas começou a

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ser desenhado com o fim do Mandato Britânico na Palestina (1922 – 1945). Conforme
André Gattaz, (2003 p.77) “Em outro front, os sionistas buscavam obter apoio do
governo norte-americano, uma vez que os interesses britânicos e sionistas pareciam
começar a divergir. Não coincidentemente, a liderança sionistas escolheu a cidade de
Nova York para tornar pública suas novas políticas”. Nem sempre foi uma relação tão
intensa, pois, com o fim do Mandato dos britânicos sobre a Palestina, os sionistas
encontraram uma nova aliança, que após alguns anos, se tornava lucrativa. Ou seja, os
sionistas viram nos Estados Unidos uma influência muito maior que o Império Britânico
proporcionava (GATTAZ, 2003, p.77).
A segunda causa marcante para a viagem de Sacco aos territórios ocupados é sua
formação em jornalismo, e possivelmente, daí que surge de forma mais intensa a
necessidade “biológica”. Inserido dentro do campo jornalístico, e tendo aprendido os
métodos, técnicas e teorias que abarcam seu campo de formação, abre um leque de
possibilidades e de questionamentos que permeiam o conflito. No entanto, não podemos
levantar a hipótese de que tais questionamentos são inatos somente a sua formação
jornalística, ou somente por meio da leitura de periódicos que tinha à sua disposição.
Tentaremos observar também a possibilidade de leitura de Edward Said e Noam
Chomsky que possam ter influenciado Sacco em seu interesse à causa palestina. Não
podemos afirmar ou apontar os trabalhos exatos que o jornalista possa ter contato com
estes dois autores, não obstante, buscaremos compreender a essência de ambos para
entendermos as apropriações realizadas por Sacco.
A escolha por Chomsky e Said devem ser apresentadas. Segundo o jornalista e
professor de Comunicação Social da PUC/SP José Arbex Jr., no prefácio de Palestina, -
resultado da viagem de Sacco para a Palestina – comenta que Sacco é leitor de
Chomsky, que, após o ataque de Israel, comandadas por Ariel Sharon, ao Líbano em
1981, seu interesse se tornou indignação após a morte de mais de cinco mil palestinos.
Deste evento, ainda, segundo Arbex, também surge a suspeita de Sacco sobre a
cobertura midiática sobre o conflito (SACCO, 2011 p.xii).
Já Edward Said, palestino, professor de linguística e defensor da
autodeterminação palestina, é citada pelo próprio Sacco em seu trabalho. Ao contrário
de Chomsky, a influência de Said se torna um pouco mais fácil de se deduzir, visto que
o jornalista cita sua obra preferida, A questão da Palestina, e, auto desenha-se lendo-o

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em uma noite, na casa de um palestino que o acomoda em sua casa. Ao contrário do


caso de Chomsky que em nenhum momento é citado por Sacco.
Assim, deduzimos que, como jornalista por formação, Sacco tenha
conhecimento e até utilize no decorrer do seu trabalho procedimentos referente à
maneira de se fazer “mídia”. Portanto, por meio do fotojornalismo, poderemos traçar
nosso foco em também observar tais técnicas dispostas em seu trabalho que sentiram
influência do fotojornalismo, tanto de sua época, como no surgimento do fotojornalismo
início no século XX.
Portanto, nossa análise aqui tenta observar todo esse campo simbólico que
configura a viagem de Joe Sacco à Palestina. Tal viagem resulta em seu trabalho,
escolhido aqui como fonte de pesquisa para nossas observações, intitulada Palestine.

Uma boa oportunidade de emprego


Primeiramente, temos que entender quais são os elementos que compõem a
atmosfera dentro de um recorte temporal ao qual Sacco se insere. Se pudéssemos
observar de forma panorâmica todos os elementos e agentes que circulam o processo de
produção de seu trabalho, quais seriam, entre tantos, os dispositivos mais marcantes
para seus questionamentos e suas problemáticas? O universo de possibilidades são
imensas, portanto, tentaremos aqui observar dois momentos distintos.
O primeiro, quais as circunstâncias que possibilitaram sua viagem, como por
exemplo, o contexto da Intifada e sua localização geográfica (Alemanha) em referência
ao Oriente Médio. O segundo momento, é compreender uma de suas maiores críticas, a
mídia estadunidense. Quais os elementos que constituem a microscópica luta simbólica,
para assim, entendermos como, por meio de elementos desta mesma mídia, ou seja, um
ser rebelde dentro do campo.
I
Assim sendo, comecemos entendendo o contexto histórico de sua produção.
Entender o conflito entre israelenses e palestinos demanda um enorme contexto.
Poderíamos voltar à Antiguidade e discutir a Diáspora judaica, ou simplesmente
remontar no século XX e entender a partilha de terras realizada pela ONU em 1947. No
entanto, a inserção de Sacco ao conflito ocorre pouco mais de quarenta anos após a

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discussão sobre a partilha. Seu contexto de produção está intimamente ligada à Primeira
Intifada palestina. Conforme Mustafá Yazbek (1995, p.51):
A partir de 1987 um levante popular – a Intifada – ou ‘revolta das pedras’
atormentaria a vida dos soldados israelenses nos territórios ocupados e se
transformaria em importante passo político na luta palestina. De início
adolescentes, e depois civis de todas as idades, armados apenas com paus e
pedras, passaram a atacar os soldados das tropas de ocupação, a qualquer
hora, sob qualquer pretexto.
O recorte temporal que dispensa atenção para nossa análise é a denominada
Intifada Palestina de 1987. A Intifada foi um levante de caráter popular dentro dos
territórios ocupados por Israel após a guerra de 1967. A revolta popular começou,
especificamente, em Gaza e Cisjordânia, e posteriormente estendendo-se para os outros
territórios. Um fato marcante na Intifada foi a grande atuação da população civil
desarmada contra os soldados israelenses. Tal ação gerou uma reação com grandes
consequências, pois, na tentativa de “esfriar” os ânimos da população palestina, uma
forte repressão pelas Forças de Defesa de Israel foram deferidas contra várias aldeias
palestinas.
Se, conforme o jornalista e professor Arbex ao afirma que desde 1981, Sacco já
demonstra interesse pelo assunto, 1987 foi então o ano decisivo para sua viagem.
Decisivo, pois, após o ataque ao Líbano em 1981, a Intifada é um grande momento
histórico, e possivelmente, um grande “furo” jornalístico a ser coberto. Outro fator que
pode ter facilitado sua ida a Palestina em 1991, é a proximidade de se viajar da
Alemanha (local no qual se encontrava no final da década de 1980) para o Oriente
Médio. Sacco aponta seu leitor a todo momento ao pequeno orçamento que dispunha
para viajar, portanto, será que a proximidade, e a possibilidade dos custos de viagem
serem muito mais baixos para viajar da Alemanha para o Cairo, do que dos Estados
Unidos ao Cairo, não influenciaram sua viajem?
Conforme figura 1, podemos observar que o tempo de viagem não parece ser tão
cansativa, ou custosa demais para Sacco. Neste caso, estamos observando a viagem
aérea, a que poderia dispensar maiores gastos. No entanto, se observarmos, nada
impediria que ele viajasse por meio de trem ou outro transporte público, visto que, de
Berlim (local supostamente ao qual Sacco poderia estar) até a Grécia, a viajem poderia
ser feita de trem. Não podemos esquecer, que estamos a pensar em países que são

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signatários a União Europeia, e que, possibilita a livre circulação de pessoas pelas


alfandegas, caso estejam legalizados na Europa. O ponto de chegada de Sacco é o Cairo,
no Egito, ponto de início de Palestine, no qual o jornalista explica que esperava pelo
visto para entrar de ônibus em Israel.

Figura 1: Google Mpas

Pensando por esta lógica, podemos nos perguntar se a viagem foi realmente
programada, ou se tornou uma grande oportunidade para se realizar um bom trabalho
jornalístico. Não queremos aqui em nenhum momento desmerecer o conjunto da obra
em si, mas, se a Intifada começa a se desenhar nos dias finais de dezembro de 1987,
porquê Sacco só chega em Palestina quase três anos depois? Outra questão interessante
a se levantar, por qual motivo resolve sair da Palestina e ir cobrir logo em seguida o
conflito na Bósnia ao invés de iniciar a projeção e os desenhos que resultariam em
Palestine? – visto que tal situação só começa a ser desenvolvida no final de 1992 e só
termina em 1996. São questões que estão fora de nosso alcance neste momento para
serem respondidas. No entanto, sendo um trabalho independente, sem patrocínio ou
cobertura de custos algum para sua viagem, sem um cronograma definido ou um
programa bem estabelecido dos locais a serem visitados, o interesse que começa em

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1981, se torna uma possível realidade de ser observada de perto, ou seja, pela boa
localização geográfica que se encontrava no momento.

O campus que habitu 251


Este interesse a causa palestina que surge em 1981, e que em dez anos nasce
uma necessidade “biológica” em cobrir os acontecimentos que ocorreram na Palestina
devem ser entendidas dentro de um contexto de acontecimentos no qual Sacco está
inserido. Dentro deste contexto existem campos simbólicos que lutam entre si pelo
poder simbólico de suas legitimidades por meio de campos de produção simbólicos.
Entendemos como campo, a noção de campo simbólico do sociólogo Pierre Bourdieu
(2000). Segundo Bourdieu (2000, p.12) “O campo de produção simbólica é um
microcosmos da luta simbólica entre as classes: é ao servirem os seus interesses na luta
interna do campo de produção (e só nesta medida) que os produtores servem os
interesses dos grupos exteriores ao campo de produção”.
Portanto, vamos compreender primeiramente quais são as classes que participam
desta luta simbólica no caso palestino. De um lado, temos um Estado judeu que busca
legitimar constantemente as razões aos quais lhe dão o poder de ocupar e policiar
territórios destinados aos árabes palestinos. Do outro, temos palestinos que buscam sua
autodeterminação e a legitimidade de poderem instituir um Estado legítimo e a
retomada de suas terras. No entanto, entendemos que estes Estados não constituem em
si estas classes, para isso, precisamos compreender que dentro destes Estados existem
grupos organizados, que de alguma forma, estão em litígio simbólico. Por exemplo, os
sionistas dentro da Israel, e a Organização pela Libertação da Palestina dentro dos
territórios ocupados. Ambas, não constituem a vontade geral de seus Estados, porém,
são grupos organizados, constituídos de estratégias e táticas que utilizam para legitimar
seus interesses.
Entre essas duas classes, que por vezes extrapolam a questão da luta simbólica e
a tornam uma luta belicosa, existem os produtores de interesses, que servem como
ferramenta de produção a uma classe, que, intencionalmente, a torna um dos lados,
como dominante na luta simbólica. Neste caso, a mídia concentra em si a função de
produtora de interesse, um interesse israelense.
251
Trocadilho com o nome do filme “A pele que habito” lançado em 2011, com as noções de campus e
habitus de Pierre Bourdie

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Segundo o dicionário Michelis do portal UOL, mídia significa “Seção ou


departamento de uma agência de propaganda, que faz as recomendações, estudos,
distribuições de anúncios e contato com os veículos (jornais, revistas, rádio, televisão
etc.)” 252. Assim, devemos entender como mídia um corpo estruturado, hierarquizado,
que de certa forma, recomenda e distribui informações entre os veículos de
comunicação. Esta estrutura midiática é alvo de críticas de Sacco (2011, p.xvii), pois,
segundo ele:
A mais séria crítica à Palestina foi de que contei apenas um lado do conflito
palestino-israelense. Este é um juízo correto sobre o livro, mas ele não me
afeta. Minha posição foi e ainda é que a visão do governo israelense já está
bem representada pela grande mídia norte-americana, e é calorosamente
defendida por quase todo político eleito para altos cargos nos Estados
Unidos.
Neste ponto, podemos observar duas características importantes no trabalho de
Sacco; primeiro, seu trabalho não possui nenhuma intenção com a objetividade em
representar o conflito entre palestinos e israelenses, o segundo, é a crítica realizada a
mídia nos Estados Unidos, que, segundo ele, já representa muito bem a causa israelense.
Portanto, Sacco acredita veemente que seu trabalho seja o contrapeso de uma estrutura
estruturada que tem a mídia como campo de produção.
As críticas aos métodos de construção da mídia estadunidense não param em
Sacco. Como citamos anteriormente, devemos entender Sacco por meio da apropriação
de uma hipótese de suas leituras, entre elas, Said (2012, p.VIII) que reflete a situação
dos palestinos na visão do Ocidente, especialmente nos Estados Unidos; “Muitas vezes,
no Ocidente e nos Estados Unidos como em nenhum outro lugar, os palestinos pareciam
falar contra o vento, quer por suas próprias falhas, quer por falta de ouvidos que os
quisessem escutar”. Assim, podemos entender essa opção subjetiva de Sacco ao focar
seu trabalho na causa palestina.
Ao considerarmos como campo de produção simbólica, e, a favor de uma classe
dominante nesta luta simbólica por legitimidade, devemos observar o funcionamento
em si da mídia dentro dos Estados Unidos. Portanto, devemos entender qual a finalidade
que a mídia exerce dentro de uma determinada sociedade, e onde ela quer chegar a isso.
Sendo um meio de comunicação, entendemos que a mídia, conforme entendemos aqui
252
Consultado em http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-
portugues&palavra=m%EDdia

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como uma estrutura estruturada e produtora simbólica, dentro de um campo simbólico,


sua função caberia dar um “sentido imediato do mundo” (BOURDIE, 2000 p.9). Ou
seja, não apresentar os fatos ocorridos, a perda de capital humano, os custos reais de
uma intervenção indireta militar, mas, representar um mundo conforme a necessidade
requer.
Ao mencionar que, como estadunidense, gostaria de saber onde seu dinheiro é
investido, Sacco levanta aqui a questão da opinião pública nos Estados Unidos. Uma
intervenção militar no qual um alto capital econômico é investido, no mínimo deve
repercutir socialmente dentro de uma sociedade democrática. Então, aqui, a função
como produtora de poder simbólico exercido pela mídia pode ser entendido. Sobre isso,
Chomsky (2013, p.14-15) dia que “Ele defendia (Walter Lippmann) que aquilo que
denominava ‘revolução na arte da democracia’ podia ser usado para ‘construir o
consenso’ isto é, obter a concordância do povo a respeito de assuntos sobre os quais ele
não estava de acordo por meio das novas técnicas de propaganda política”
Se considerarmos a mídia estadunidense como referência mundial para
disseminação aos meios de comunicação, podemos pensar aqui em duas problemáticas.
A primeira, a construção do consenso não se estende somente aos Estados Unidos, e
assim, dissemina o imaginário de um Oriente distorcido, no qual, não estaríamos
levantando nossas próprias questões sobre o conflito entre israelenses e palestinos, mas,
tomaríamos como nosso consumo, o mesmo produto oferecido nos Estados Unidos,
uma luta entre judeus e “terroristas”. Se pensarmos na mesma linha de pensamento de
Chomsky, tendo a mídia como construtora de consenso, a função da mídia nos Estados
Unidos é construir consensos que legitimem a intervenção estadunidense no conflito.
Portanto, começa-se a desenhar a segunda problemática; a construção do consenso
dentro do Estados Unidos, é o mesmo consenso distribuído para uma infinidade de
pessoas no mundo, ou seja, a deslegitimação do território por parte dos palestinos e a
afirmação do terrorismo. Assim sendo, a noção de violência simbólica (BOURDIE,
2000 p.11) se constitui, domesticando os dominados por meio da construção do
consenso. Conforme Bourdie (2000, p.11):
É enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de
conhecimento que os ‘poderes simbólicos’ cumprem a sua função política de
instrumentos de imposição ou legitimação da dominação de uma classe sobre
a outra (violência simbólica) dando o reforço da sua própria força às relações

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de força que as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de


Weber, para a ‘domesticação dos dominados’.
Neste caso, os dominados não são somente os palestinos que não conseguem dar
voz a sua causa, mas, o consumidor midiático, que, sem saber, sofre grande violência
simbólica por meio de noções de “terrorismo” e uma noção distorcida de jihad. Não
obstante, não podemos ser anacrônicos e, interpretarmos que não existiam outras fontes
que pudessem contrapor as intenções da mídia estadunidense. Mesmo um recorte
temporal muito próximo ao nosso, estamos à discutir um período pré-internet ou de
internet primitiva, no início dos seus moldes, ou seja, meios de comunicação que
diferissem do consenso construído pela mídia nos Estados Unidos. É possível que
existiam outros meios de comunicação que diferissem do produto pronto e disseminado
pela mídia estadunidense, no entanto, seria um universo de pesquisa muito menor do
que possuímos nos dias atuais.

II
Outra questão que não podemos deixar de discutir é a recepção, ou a mudança
dela, para Sacco. Recepção desta mídia criadora de consensos. Ao partirmos do
pressuposto que existe uma crítica densa do jornalista sobre o poder simbólico
ocasionado pelos meios de comunicação, concordamos em observar que tais meios, de
alguma forma, foram recebidas por ele.
Não obstante, os efeitos da função ao qual a mídia está incumbida não foram os
esperados em sua escatologia. Portanto, o discurso em si não se torna uma matriz real
das práticas de um campo simbólico. Ao contrário, possibilita observamos que os
agentes históricos não são meros executantes, ou, consumidores inconscientes e
negligentes. Assim, reduziríamos a análise do campo a uma essência de seus aparelhos,
sem ao menos nos depararmos com as práticas de seus agentes. Conforme as palavras
de Bourdieu (2000 p.77) ao que refere a essência dos aparelhos:
Reduzir os agentes ao papel de executantes, vítimas ou cúmplices, de uma
política inscrita na Essência dos aparelhos, é permitirmo-nos deduzir a
existência da Essência, ler as condutas na descrição dos Aparelhos e, ao
mesmo tempo, fugir à observação das práticas e identificar a pesquisa com a
leitura de discursos encarados como matrizes reais das práticas.

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Portanto, a partir de agora, analisaremos de certa forma o trabalho de Sacco,


Palestine, como prática fora da essência do campo de poder simbólico. Mesmo
compreendendo que Sacco poderia não ter previsto realizar sua viagem para Palestina,
conforme discutimos acima, não podemos negar que seu trabalho figura fora do circuito
midiático estadunidense. Além disso, como Sacco apropria-se dos mesmos métodos da
mídia, especialmente o fotojornalismo, para criar um campo de produção antagônico ao
discurso estabelecido.
Palestine, não é uma revista em quadrinhos qualquer. Não pelo menos como as
clássicas revistas das grandes editoras DC Comics e Marvel. Primeiramente, ela não
pertence nem aos quadrinhos mainstream 253 e nem aos quadrinhos undergrounds254.
Para tanto, Sacco denominou seu trabalho de “jornalismo em quadrinhos” (SACCO,
2011, p.xvii). O que seria então um jornalismo em quadrinhos? Como a titulação já diz,
é fazer jornalismo em forma de quadrinhos, conforme Sacco (2011, p.xviii):
Registrei os eventos de minha breve estadia entre os palestinos de diversas
maneiras, Realizei muitas entrevistas formais, em clássico estilo jornalístico
– o que quer dizer que fazia perguntas e anotava as respostas em um caderno.
Também mantive um diário, no qual, em meu tempo livre e em geral à noite,
religiosamente descrevia todos aqueles episódios que não eram entrevistas –
ou seja, acontecimentos impressões, encontros e conversas passageiras
daquele dia.
Portanto, as técnicas jornalísticas são aplicadas como método para seu trabalho.
A construção de um diário de campo, que, posteriormente, serviria para colocar suas
ideias em forma de linguagem jornalística. No entanto, sua abordagem jornalística para
a confecção de uma história em quadrinhos não para por aqui. Possivelmente, por ser
jornalista, Sacco confecciona seus desenhos por meio das técnicas de fotojornalismo.
Não somente técnicas, mas Sacco também empreende um olhar fotográfico
sobre seus desenhos. Só para nos situarmos, sobre este olhar fotográfico, e todo
processo social que ela demanda, lembremos do trabalho da fotografa Diane Arbus, que,
conforme Susan Sontage (2004, p.44), que, em 1972 expos no Museu de Arte Moderna

253
Histórias em quadrinhos que possuem uma estrutura de produção, tal como roteirista, desenhista,
editor, produtor. Ver MAZUR, Dan & DANNER, Alexander. Quadrinhos: História moderna de uma arte
global. Editora WMF Martins Fontes, 2014.
254
Tendência que surgiu nos Estados Unidos na década de 1960. Meio alternativa que desenhistas
encontraram para figurarem fora dos quadrinhos mainstream. Ver MAZUR, Dan & DANNER,
Alexander. Quadrinhos: História moderna de uma arte global. Editora WMF Martins Fontes, 2014.

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de Nova York sua exposição com 112 fotos sobre uma sociedade não una nos Estados
Unidos. Porém, o que seria essa sociedade não una? Arbus fotografa o horrível, as
pessoas desprezadas diante da sociedade estadunidense. Seu trabalho visava contrapor a
exposição fotográfica de Edward Steichen, que poucos anos antes havia exposto sua
exposição cuja finalidade era apresentar a unidade da sociedade estadunidense.
É interessante notarmos a semelhança entre o trabalho de Arbus e Sacco. Não
sabemos se o segundo conhecia ou teve algum contato com o trabalho de Arbus, no
entanto, esta visão de apresentar o horrível, o contrário, aquilo que não queremos ver
estão presente nos dois trabalhos. Se pensarmos que Sacco retorna aos Estados Unidos
para publicar sua obra, qual seriam as possibilidade que ele teria, em um país em que o
consenso sobre seu tema abordado estaria bem solidificado, publicar sua história? Não
seria as mesmas críticas que Arbus possivelmente recebeu sobre seu trabalho?
Para Sontage (2004, p.53), o trabalho de Arbus é uma tendência dominante na
arte em países capitalistas como os Estados Unidos, pois, representar o horrível tem a
finalidade de suprimir o mal-estar moral que permeia a sociedade. Portanto, é nesta
tendência e nesta prática que Sacco se vincula. É trazer ao conhecido o desconhecido,
apresentar os rostos daqueles que não tinham rostos. Ou, como diria Sontage (2004,
p.54) “O fotógrafo é um superturista, uma extensão do antropólogo, que visita nativos e
traz de volta consigo informações sobre o comportamento exótico e os acessórios
estranhos deles.” Assim, é apresentar aos seus leitores o comportamento, os costumes e
a cultura de seus ‘inimigos’.
Porém, não podemos nos esquecer que Sacco não faz um trabalho fotográfico,
somente se apoia na fotografia para desenhar seu quadrinho. Base de apoio que também
tem suas tendências no fotojornalismo. O fotojornalismo surge inicialmente na
Alemanha, porém, é nos campos de batalha que se torna tema privilegiado. Os avanços
tecnológicos e químicos, possibilitaram que a arte de fotografar estivesse em locais não
imagináveis para boa parte de seu público. Para Jorge Prado Souza (2000, p.33)
Por um lado, a herança cultural consagrava-lhe atenção artística, pois a
guerra sempre foi o tema sedutor e de sucesso junto das pessoas, por um lado,
na segunda metade do século passado, ocorreram numerosos conflitos em
que se viram envolvidas as potências mais industrializadas. Há ainda a
acrescentar que se ia formando um público para a ‘reportagem-ilustrada’

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Porém, todo um cuidado era necessário na entrada da fotografia na guerra. Não


era possível ainda fotografar cenas fortes e chocantes, como cenas de soldados mortos
ou mutilados. O retrato duro e cruel dessa realidade surge somente em uma fase
posterior, quando os editores perceberam que o público necessitava de notícias factuais
sobre o que realmente acontecia com os combatentes (SOUZA, 2000 p.37).
É dentro do campo do fotojornalismo que Sacco produz seu trabalho. Mesmo
não tendo êxito ao conseguir encontrar várias situações favoráveis para seus desenhos –
Sacco chega à Palestina depois anos depois do início da Intifada, e fica pouco mais que
dois meses nos territórios ocupados – ele tem disponível uma ferramenta que nenhuma
câmera fotográfica poderia possibilitar, o desenho.
Só para nos situarmos sobre a vantagem que o desenho traz para Sacco,
comparemos as palavras de Gisele Freund (1995, p.117), no que diz respeito ao ofício
do repórter jornalista “Antes de tudo o mais, um repórter fotográfico deve ter uma
paciência infinita, e não se enervar nunca; deve estar ao corrente dos acontecimentos e
saber a tempo e horas onde é que irão desenrolar-se”. Esta paciência é dispensada por
Sacco, pois, por meio do desenho, Sacco tem onipresença sobre vários acontecimentos
que o fotografo repórter deve ter à disposição. Para ele, qualquer relato pode ser
“fotografado” por meio de sua lente, ou seja, por seu lápis. Qualquer momento, é o
instante decisivo e a influência que sua imagem pode reproduzir. Sobre o instante
decisivo, observemos as palavras de Souza (2000, p.90).
O olhar fotográfico de Henri Cartier-Bresson é algo vago, sutil, talvez mesmo
metafórico, mas ambiciosamente centrado no real. É um olhar que revela a
responsabilidade de um fotografo consciente em relação à influência que as
suas imagens podem adquirir. Na sua essência encontra-se uma brilhante
seleção dos locais onde o fotografo se posiciona, uma atenção extrema ao
enquadramento e a à composição, bem como, evidentemente, a concentração
em torno do momento da exposição, visando o ‘instante decisivo’
Por ter ao seu lado a linguagem das histórias em quadrinhos, a manipulação da
imagem torna-se favorável para seu criador. Por exemplo, toda a preparação que o
fotografo deve ter ao seu lado, como a paciência para o “instante decisivo” podem ser
facilmente controlados pelo método de composição do quadrinho. Antes de iniciarmos
nossa análise, vejamos o que Will Eisner (2010, p.90) nos diz sobre a composição do
quadrinho; “Funcionando como um palco, o quadrinho controla o ponto de vista do

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leitor; o contorno do quadrinho torna-se o campo de visão do leitor e estabelece a


perspectiva a partir do qual o local de ação é visto. Essa manipulação permite ao artista
esclarecer a atividade, orientar o leitor a estimular a emoção”. Portanto, as linhas de
contorno estão totalmente ligadas a imaginação de seu criador, como um palco está para
uma encenação teatral.
Observemos a figura 2. Nela, Sacco está inserido dentro de uma multidão de
palestinos que protestam contra a morte de um de seus conterrâneos assassinado pelas
Forças de Defesa de Israel. Podemos observar o poder de onipresença de Sacco na
situação, pois, dentro de uma mesma página de seu trabalho, é possível ao seu leitor
perceber a cena da martirizarão do palestino assassinado em dois ângulos diferentes, e
ainda, uma terceira imagem que representa jovens palestinos à erguerem uma bandeira
palestina do alto da mesquita de Al-Aqsa.
Tanto a onipresença como a composição dos quadrinhos corroboram que todos
os momentos, vivenciados ou não por Sacco, sejam seu instante decisivo. Além disso, o
empreendimento de outros métodos dos quadrinhos se valem para valorizar seu
trabalho. Entre tantos, esta página nos possibilita analisar o uso da câmera subjetiva.
Segundo Umberto Eco ([s.d] p.131) “Em termos cinematográficos podemos defini-o
como um enquadramento ‘subjetivo’, como se a câmera estivesse colocada sobre os
ombros do protagonista. Os objetos aparecem como vistos por uma pessoa só e –
suposto que a pessoa deva mover-se para frente – vêm ao encontro do espectador”. Esta
técnica pode ser vista no requadro superior da figura 2. Nela, Sacco insere seu leitor
para dentro do acontecimento. Seu leitor não é meramente um observador da cena, mas,
indiretamente torna-se também agente do acontecimento. Tal método não é aplicado de
forma inocente. Como diria Peter Burke (2004, p.24), não podemos aceitar o papel
destes agentes, neste caso Sacco, como possuidores de um “olhar inocente”.
Inserir seu leitor para dentro da cena, é também inseri-lo dentro de emoções e
experiências aos quais somente por meio das imagens os leitores terão possibilidade de
vivencia-la. Portanto, a falta de alguns elementos tornam-se de certa forma o trunfo de
Sacco. Pois, caso tivesse escolhido escrever um livro em linguagem escrita, surtiria o
mesmo efeito do que representar sua experiência na Palestina em forma de quadrinhos?
Segundo Eisner (2013, p.73), faria toda a diferença, pois, para o desenhista, os
quadrinhos já fornecem ao seu leitor a linguagem escrita e imagética, o que se espera, é

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que seu leitor forneça a sonoplastia e as ações necessárias para a continuação de sua
leitura. Aqui observamos outra vantagem de seu trabalho, pois, enquanto ao leitor de
um livro, seria necessário que, além da sonoplastia e da ação, o mesmo deve ainda
fornecer a idealização das imagens dos acontecimentos para se construir a ação. A
fotografia, como linguagem imagética, fornece a leitura visual, não obstante, faltaria a
ela a linguagem escrita para dar continuidade a ação do acontecimento fotografado.

Figura 2: SACCO, 2011 p.100

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Considerações Finais
No decorrer de nossa pesquisa, podemos observar o contexto e algumas das
possibilidades de leituras que influenciaram Sacco a viajar para a Palestina. Observamos
que, vários fatos são determinantes em sua escolha pela Palestina. Entre elas, seu
contato com Noam Chomsky e Edward Said, além de estar geograficamente perto dos
territórios ocupados.
Isso se dá, também, devido à má cobertura realizada pelos meios de
comunicação nos Estados Unidos. Fato que, o próprio Sacco discute no prefácio de seu
trabalho. Portanto, compreender a função da mídia dentro de sua esfera de influências é
compreender parcialmente o imaginário que o permeava. Dentro deste contexto,
verifica-se que Sacco torna-se um agente rebelde a função da mídia, e por isso, além de
outros fatores mencionados acima, constituem momento favorável para sua cobertura
jornalística.
Por fim, também verificamos as vantagens de Sacco em escolher desenhar seu
trabalho de campo ao invés de simplesmente fotografa-los. Ao analisarmos que, mesmo
tendo utilizado algumas técnicas do fotojornalismo, Sacco tem vantagem em poder ser
onipresente em todas as cenas que considera o “momento decisivo” para desenhar suas
imagens.

BIBLIOGRAFIA
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2000.
BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem – Bauru, SP:EDUSC, 2004.
CHOMSKY, Noam. Mídia: propaganda política e manipulação. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2013.
ECO, Umberto. Apocalipticos e Integrados. São Paulo: Editora Perspectiva, [s.d].
EISNER, Will; Quadrinhos Arte Sequencial princípios básicos e práticos do lendário
cartunista. 4.ed. São Paulo, SP; Editora WMF Martins Fontes, 2010.
__________, Will. Narrativas Gráficas de Will Eisner. São Paulo: Devir, 2013.
FREUND, Gisele. Fotografia e Sociedade. Lisboa: Grafibastos, 1995
GATTAZ, André Castanheira. A guerra da Palestina: da criação do Estado de Israel à
Nova Intifada. São Paulo: Usina do Livro, 2003.
SACCO, Joe. Palestina. São Paulo, Conrad Editora do Brasil, 2011

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SAID, Edward W. A questão da Palestina. São Paulo, SP: Unesp, 2012.


SONTAGE, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
SOUZA, Jorge Prado. Uma história crítica do fotojornalismo Ocidental.
Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2000
YAZBEK, Mustafa. Palestinos em busca da pátria. São Paulo, Editora Ática, 1995.

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PATRIMÔNIO E ELEMENTO URBANO NA CONSTRUÇÃO


E MANUTENÇÃO DA MEMÓRIA SOCIAL

Kawanni S. Gonçalves
Pedro Henrique Cezar (História-UEL)
Cláudia Eliane P. M. Martinez (Orientadora)
PALAVRAS-CHAVE: MEMÓRIA; PATRIMÔNIO; IMAGINÁRIO.

Em 2007, conforme matéria publicada no Jornal de Londrina, foram inaugurados nessa


cidade, em frente à praça 1º de maio (região central de Londrina), totens que fazem referência
aos índios cainguangues e às pessoas que aqui se encontravam anteriormente à chegada da
Companhia de Terras do Norte do Paraná. O fato é significativo, pois – apesar do nome do
conjunto, “Memorial do Pioneiro” - há poucos elementos na estrutura urbana londrinense que
remetem à memória indígena:
“Ao contrário de outros monumentos históricos da cidade de
Londrina, [...] considera-se que o Memorial do Pioneiro possui um
caráter democratizante, uma vez que amplia e diversifica a noção de
pioneiro em Londrina[...]. Assim, diferindo dos outros monumentos
da cidade, o Memorial do Pioneiro não reproduz o efeito
homogeneizador e de “enquadramento” da memória coletiva sobre a
cidade e região, uma vez que não notabiliza preferencialmente o
agente colonizador, a Companhia de Terras Norte do Paraná e agentes
e instituições a ela ligados.” (FERREIRA, 2010, p. 2)
Os totens, desse modo, não excluem o indígena da história da cidade - ao contrário,
mostram que eles já habitavam essa região e que ainda o fazem. Nas bacias do rio Tibagi,
atualmente, residem grupos Kaingang, Guarani, Xetá e Xokleng. Tais etnias descendem de
grupos humanos que, conforme as evidências arqueológicas atestam, habitavam o atual estado
do Paraná há cerca de 10 mil anos. Logo, esses grupos - presentes aqui há tantos milênios - não
devem ter sua presença, memória e/ou história negligenciadas. Nosso projeto no Museu
Histórico de Londrina (MHL) visa, assim, resgatar a memória dos referidos grupos sociais por
meio do estudo da coleção etnográfica adquirida pela instituição museal citada acima. A partir
disso, pensamos o presente artigo no intuito de discutir a respeito do estereótipo indígena,
enraizado no imaginário social, e o modo como o patrimônio histórico e as edificações urbanas,
em Londrina, atuam na construção e na manutenção de uma determinada memória coletiva.
A história indígena, conforme veremos, é poucas vezes reconhecida e raramente com a
devida valorização. O memorial abordado no início deste artigo – que referencia os povos
indígenas – é, como mencionamos, uma exceção entre os elementos urbanos de nosso
município. Há na cidade várias outras construções, em contrapartida, que nos remetem à figura

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do colonizador inglês e do pioneiro “tradicional”. As cabines telefônicas presentes no Calçadão


de Londrina e o Shopping Boulevard, recentemente construído, com toda sua temática inglesa
são exemplos claros da tentativa de produzir elementos urbanos que representem nossa
identidade londrinense. A História é imprescindível nesse caso e, embora haja poucos
descendentes de ingleses na região – inclusive esse grupo nunca foi maioritário aqui -, a
memória da cidade permanece nos remetendo aos ingleses que chegaram no século XX e, por
conseguinte, à Companhia de Terras do Norte do Paraná, enfatizando esses grupos como nossos
principais colonizadores.
Em reportagem à Folha de Londrina (04/05/2013) – “Novo shopping chega com a cara
de Londres” -, um dos responsáveis pelo empreendimento do Shopping Boulevard na cidade
declarou que o design dessas construções – shoppings temáticos da Sonae – se alia àquilo que é
característico do local. Nesse caso, “à ligação com a Inglaterra”, além do fato de que “Londres
seria algo que distinguiria a cidade”. Conforme nossas considerações anteriores, há poucos
descentes de ingleses aqui e sempre representaram um pequeno grupo na região. Por que, então,
essa memória do pioneiro inglês permanece e se sobressai às demais? Não temos, afinal, muitas
construções que remetam aos paulistas ou mineiros - grandes grupos de imigrantes do século
passado. Segundo POLLACK (1992, p.03),
“Quais são, portanto, os elementos constitutivos da memória,
individual ou coletiva? Em primeiro lugar, são os acontecimentos vividos
pessoalmente. Em segundo lugar, são os acontecimentos que eu chamaria de
“vividos por tabela”, ou seja, acontecimentos vividos pelo grupo ou pela
coletividade à qual a pessoa se sente pertencer. São acontecimentos dos quais
a pessoa nem sempre participou mas que, no imaginário, tomaram tamanho
relevo que, no fim das contas, é quase impossível que ela consiga saber se
participou ou não. Se formos mais longe, a esses acontecimentos vividos por
tabela vêm se juntar todos os eventos que não se situam dentro do espaço-
tempo de uma pessoa ou de um grupo. É perfeitamente possível que, por
meio da socialização política, ou da socialização histórica, ocorra um
fenômeno de projeção ou de identificação com determinado passado, tão
forte que podemos falar numa memória quase herdada.”

Fatos que, novamente, “obscurecem” a memória do indígena - aquele que foi expulso de
seu local para permitir os planos de colonização dos “idealizadores” de Londrina. Mesmo na
255
Universidade Estadual de Londrina, temos a “Casa do Pioneiro” - construída em 1946,
buscando representar a vida cotidiana nas décadas de 30 e 40 do século XX -, mas não temos

255
Atualmente, sedia o “Inventário e Proteção do Acervo Cultural de Londrina – IPAC/LDA”.

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referências materiais ou visuais ligados à cultura dos índios que aqui habitavam. O silêncio e o
esquecimento acerca das culturas e populações indígenas ainda se faz muito presente – apenas
raramente lembradas, como no exemplo da Praça 1º de Maior citado acima. Em consequência
desse “silenciamento”, se concretizam na sociedade visões homogeneizadoras e estereotipadas
sobre os indígenas - muitas vezes colocando-os ainda na condição de “selvagens”, ignorando-se
os processos de integração e/ou trocas culturais. Tal perspectiva, presente no imaginário
coletivo da população, pode ser constatada mediante análise de representações feitas por alunos
de sexto ano do Colégio Estadual Dr. Gabriel Martins. Em atividade proposta na aula-oficina
“Os indígenas na região do Paraná” - como parte do estágio no Programa Institucional de Bolsa
de Iniciação à Docência, PIBID -, foi solicitado aos alunos que desenhassem a figura de um
índio, conforme a primeira imagem em seu pensamento. A vantagem do desenho é que,
“Segundo Affonso e Souza (2007, p. 11) é através do desenho que a
criança pode demonstrar o que sente e como enxerga o mundo a sua volta.
Quando ela entra na escola, leva consigo informações e impressões do
mundo, que deveriam ser consideradas e orientadas pelo professor, pois ao
desenhar a criança inter-relaciona seu objetivo e seu conhecimento
imaginativo.
De acordo com isso, tal ferramenta pode ser vista como uma
linguagem visual privilegiada porque permite o exercício relativamente mais
livre e construção da forma, estabelecendo relação entre significado e
significante de modo mais elementar, em comparação à linguagem verbal
(PEREIRA, 2006, p. 18).” (LIMA, 2014, p. 108).

Os resultados mostraram desenhos em que temos indígenas vestindo poucas roupas,


usando cocar, morando numa oca, com fogueiras ardendo pela tribo, além de mostrá-los
integrados à fauna e à flora. Sabemos que os índios Kaingang da reserva Apucaraninha, por
exemplo, em nossa região, assimilaram e assimilam os meios e os fazeres do ambiente em que
estão inseridos – como qualquer outro indivíduo social. Logo, uma representação do indígena
semi-nu não deixa de ser equivocada, uma vez que hoje – e já mesmo no início de nossa
colonização - os índios se vestem como “brancos”, e os cocares e trajes típicos são usados, -
junto à pintura corporal -, quase que exclusivamente em cerimônias festivas. O pensamento da
casa de palha como sendo a única moradia do índio também é bastante equivocado. Atualmente,
com variados tipos de habitações, o que impediria alguns grupos de viverem em casa de
alvenaria, como vários o fazem? E a fogueira? Acaso não tem o indígena acesso à luz elétrica
para iluminação ou ao fogão para se alimentar? E por que pensar o índio vivendo
exclusivamente em meio à mata, rodeado por animais? Nem todos vivem dessa forma. Por que
não pensar no indígena usufruindo dos avanços tecnológicos? O índio, portanto, ainda é
imaginado como uma figura exótica e não integrada ao nosso meio:

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“Os índios são um grupo minoritário que ocupa uma posição específica em
nossa sociedade, algo que se reflete na formação da imagem sobre eles. Esta
posição relaciona-se, certamente, com suas caracterizações históricas,
construídas pelos grupos detentores do poder político-econômico. Pode-se
dizer que as atuais representações sociais dos índios foram construídas pelos
não índios ao longo da história de contato que se inicia com o descobrimento
do Brasil e se estende com a colonização a que eles foram submetidos e que
culmina, nos dias de hoje, com a sua invisibilização e exclusão moral e
social. Um processo marcado pela dominação, assimilação cultural forçada,
violência, desapropriação de terras, expulsão e genocídio.” (LIMA;
ALMEIDA, 2010, p. 17-18).

A imagem estereotipada e preconceituosa do índio decorre de uma compreensão


histórica (e atual) equivocada de outros grupos – criando, assim, um imaginário social acerca
daqueles -, e segue ao encontro do interesse de grupos dominantes, que desse modo legitimaram
suas ações e impuseram seus valores e ideologias. Por exemplo, no processo de colonização de
Londrina, na década de 30 do século passado, criaram-se discursos que defendiam – ora de
maneira implícita ora explícita – a ideia de um “vazio demográfico” nessa região,
negligenciando a presença de povos indígenas ou quaisquer moradores aqui. Sabemos, por meio
das ciências arqueológicas, que grupos humanos habitavam o atual Estado paranaense há cerca
de 10 mil anos. Nos dias de hoje, ainda vivem nas bacias do Tibagi grupos Kaingang, Guarani,
sobreviventes Xetá e Xokleng. De que modo, assim, podemos considerar – como tais discursos
o fizeram/fazem - a região enquanto “vazio demográfico” no começo do século XX? Há, sem
dúvida, um hiato nesse aspecto da história...
“Para o pensador Bronislaw Baczko, o imaginário assume vital relevância
nas análises dos comportamentos políticos e sociais. [...] O filósofo polonês
nos faz refletir sobre a associação do imaginário social com o poder, nos
revelando que a esfera política utiliza-se das representações coletivas
almejando se legitimar. A utilização do imaginário também se daria em
momentos de enfrentamentos entre poderes concorrentes, levando os
indivíduos a produzirem novos mecanismos de combate, no plano do
imaginário, para atingir seus objetivos. Logo, os concorrentes construiriam
uma imagem negativa de seu opositor perante o meio social ou uma imagem
positiva visando à conquista da legitimação.” (CAMPOS, 2011, p. 03).

Uma vez estabelecidas essas considerações, nos reportando ao campo patrimonial, o


estudo das coleções etnográficas presentes nos museus se mostra necessário para a
desconstrução de uma imagem equivocada que a sociedade apresenta a respeito dos indígenas.
A partir da década de sessenta, os museus receberam inúmeras críticas por suas exposições
obsoletas em relação ao que a historiografia e à própria sociedade vinham propondo no período.
Essas instituições eram consideradas elitizadas, caracterizadas por uma perspectiva histórica
centrada em fatos e personagens “heroicos”, enquanto o contexto social exigia, por exemplo, o

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reconhecimento das minorias sociais, e a escrita da História se preocupava acentuadamente com


a cultura, com a diversidade e com novas interpretações - relativizando o “positivismo” em suas
considerações. Desse modo, os museus passaram a reformular suas estruturas, se preocupando
mais com o cotidiano das comunidades, como as questões relativas ao meio ambiente e à
memória de determinados grupos sociais – como a indígena:
“Nos anos setenta intensificaram-se os debates em torno do papel
dos museus nas sociedades contemporâneas. [...] Novas práticas e teorias
sinalizam a função social do museu, se contrapondo a museologia tradicional
que elege o acervo como um valor em si mesmo e administra o patrimônio na
perspectiva de uma conservação que se processa independente do seu uso
social. Tratava-se de redefinir o papel do museu tendo como objetivo maior o
público usuário, imprimindo-lhe uma função crítica e transformadora na
sociedade.” (JULIÃO, 2006, p. 27).

Observa-se, assim, uma readequação dos museus às necessidades vigentes no período – há


maior aproximação desses espaços com as comunidades sociais. Em nível nacional, conforme a
historiadora Letícia Julião (2006, p. 28), esse processo ocorre da seguinte maneira:
“O movimento de renovação dos museus repercutiu no Brasil, nos
anos setenta e oitenta, com iniciativas que buscaram revitalizar várias
instituições, adequando-as aos parâmetros da nova museologia. Em linhas
gerias, promoveram-se a reformulação de espaços físicos e de exposições, a
adoção de critérios e procedimentos adequados de conservação e segurança
dos acervos, e, sobretudo, a implantação de serviços educativos,
referenciados no princípio da participação do público na construção de
relações culturais. [...] Seguindo a tendência internacional, o país viveu um
verdadeiro boom de museus, na década de oitenta. A ampliação da noção de
patrimônio e o processo de globalização, em escala mundial, e o movimento
de redemocratização do país contribuem para que diferentes movimentos da
sociedade passassem a se ocupar da questão do patrimônio, identificado
como campo propício à afirmação de novas identidades coletivas. Resultado
de uma crescente segmentação da sociedade, os museus se especializaram, se
tornaram temáticos e biográficos, atendendo à demanda progressiva de
segmentos e grupos sociais – indígenas, negros, imigrantes, ambientalistas,
moradores de bairros, etc. – que reivindicam o direito à memória.”

A memória coletiva desses grupos, portanto, encontra respaldo no patrimônio histórico,


que necessita ser estudado e melhor trabalhado. É necessário descontruirmos impressões
equivocadas que derivam de décadas, séculos de perspectivas estereotipadas, fruto mesmo da
ignorância ou de propósitos escusos. Daí a importância de incentivarmos trabalhos nessa área!
Os museus, então, assumem um papel fundamental nesse projeto de redefinição ou revitalização
da memória e da identidade dessas comunidades. Esse é nosso principal objetivo!
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REFERÊNCIAS

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CAMPOS, Carlos Eduardo da Costa. As reflexões sobre o Imaginário Social. História e-


História, v. 1, p. 1-1, 2011.
JULIÃO, Letícia. Apontamentos sobre a História do Museu. In: Caderno de Diretrizes
Museológicas I. Brasília: Ministério da Cultura/Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional/Departamento de Museus e Centros Culturais, Belo Horizonte: Secretaria de Estado da
Cultura/Superintendência de Museus, 2006. 2° Edição.
LIMA, Leilane Patricia de. A Arqueologia e os indígenas na escola: um estudo de público em
Londrina-PR. 2014. 266 f. Tese (Doutorado em Arqueologia) – Museu de Arqueologia e
Etnologia, USP. São Paulo, 2014.
LIMA, Marcus Eugênio Oliveira; ALMEIDA, Alan Magno Matos de. Representações sociais
construídas sobre os índios em Sergipe: ausência e invisibilização. São Cristóvão - SE: Paideia,
jan-abr, 2010, vol. 20, No. 45, 17-27.
FERREIRA, Suzana da Silva Ferreira. Os sentidos do trabalho nos totens do memorial do
pioneiro. Guarapuava: XIX Encontro Anual de Iniciação Científica, 2010.
POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Rio de Janeiro: Estudos Históricos, 1992.
ASPECTOS CULTURAIS LUVITAS NO BRONZE TARDIO
Leonardo Candido Batista (PPGHS-UEL)
Orientadora Monica Selvatici
PALAVRAS-CHAVE: LUVITAS, ANATÓLIA, HITITAS

Quando falamos sobre a Anatólia hitita é importante começarmos sobre a sua


formação, compreender que era um povo híbrido, formado por elementos indo-
europeus, hurritas, hattian, sírios e mesopotâmicos. A região da Anatólia foi onde os
hititas se estabeleceram e fundaram o seu reino. Como destaca James Macqueen (1986,
p.11) a Anatólia era uma terra cheia de possibilidades, grandes fontes de matérias
primas, sendo esse um fator importante para as migrações indo-europeias na região. Por
volta de 2300 a.C. tem-se evidências de grandes mudanças em algumas regiões da
Anatólia, particularmente no oeste e no sul, e os estudiosos associam esse período com
a incursão dos indo-europeus na região. James Mellaart (1971, p.681) fala que os
recém-chegados falavam uma variedade de línguas indo-europeias e tinham uma
cultura, religião e economia um pouco parecidas com a da população local. Acredita-se
que no final do terceiro milênio havia três grupos de povos na Anatólia que falavam as
línguas indoeuropeias: os luvitas no oeste, os palaicos no norte e os nesitas no centro e
no leste. Não se sabe ao certo de onde vieram esses invasores, ou se ao menos eles
estiveram na Anatólia. Como explica Melchert (2011, p. 705), não há uma pretensão de
um verdadeiro consenso sobre se os indo-europeus estiveram na Anatólia, esses
esforços aparecem para distinguir o que é uma opinião puramente pessoal na qual se
reflete pela maioria dos pontos de vista, sendo assim essa discussão deve ser vista com
algumas ressalvas em mente. Embora essa discussão seja complexa é importante
ressaltar que uma cidade do começo do segundo milênio parece conter elementos indo-
europeus, essa cidade era conhecida como Nesa, que foi um dos importantes centros de
troca na época das colônias assírias. Nesa vem de nesita que eram uma das línguas indo-

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europeias. Aparentemente nesse período o nesita tornou-se a língua da Anatólia para a


escrita.
É importante destacar os povos vizinhos aos hititas, porque eles transmitiram
características culturais na qual foram reformuladas na terra de Hatti, é o caso dos
luvitas, importantes principalmente na língua. Ilya Yakubovich (2011, p.534) fala que
apesar dos luvitas terem tido um papel importante na história da Anatólia assim como
os hititas, o estudo desse povo foi considerado um apêndice insignificante na hititologia,
sendo que a razão para esse interesse seria a estrutura dos estudos do antigo Oriente que
focam em comunidades com estados bem definidos ou com a tradições religiosa.
Trevor Bryce (2003, p.44-45) comenta que uma tentativa de reconstruir uma
história dos luvitas do bronze tardio é preciso ter em mente uma importante limitação.
Em contraste com textos religiosos luvitas, nos quais foram inseridos nos textos hititas
mostrando algumas visões da cultura luvita, não existem textos de origem luvita na qual
forneça informações históricas desse mundo. Quase o corpo inteiro do existente material
luvitas, derivam das fontes hititas. Existem um punhado de exceções: Como pedaços de
correspondência entra Arzawa e o Egito durante o reino de Amenhotep III, uma
correspondência se referindo a terra Lukka, entre o rei de Alasyia e o faraó Amenhotep
IV/Akhenaton. Os povos que supostamente se chamavam luvitas, segundo a maioria dos
especialistas vieram em ondas de invasões no terceiro milênio e se estabeleceram na
região oeste da Anatólia, nos textos hititas essa terra era também chamada de Arzawa.
Os povos que supostamente se chamavam luvitas, segundo a maioria dos
especialistas apareceram em ondas de invasões no terceiro milênio e se estabeleceram
na região oeste da Anatólia, nos textos hititas essa terra era chamada de Luwiya e mais
tarde Arzawa. Como explica Craig Melchert (2003, p.2) A definição do que é “luvita” e
“luvitas” prova ser impraticável, porque temos uma ideia imperfeita da noção e da
extensão territorial. Uma razão para isso é que não existe evidências de que havia um
estado ou política luvita unificada – não tendo reis ou uma capital. Para Gilan (2008, p.
108) a cultura hitita é bricolagem de elementos entrelaçados em um processo de
transculturação demorado, a formação política e a consolidação do reino hitita ao longo
da história foi executada por uma surpreendente distinção de grupo de autores. Ainda
nesse contexto é importante destacar que não eram povos com um estado centralizado
igual o Hatti, o que complica muito qualquer abordagem para uma reflexão mais ampla
de sua história:

Estritamente falando, uma pré-história dos luvitas deveria incluir um traçado


de fontes de todos os fios que unem e levam o que é o “luvita” sociedades do
segundo milênio antes da era comum. Tal empreitada vai além de nossas
capacidades, e somos outra vez forçados a sua pré-história linguística. As
discussões que seguem são limitadas para esse grupo de falantes cujo o
dialeto pré-histórico indo-europeu levou a atestar essa língua que chamamos
de luvita. Embora essa iniciativa seja carregada de sérios problemas, não há
uma nítida correlação entre a difusão da língua e es movimentos
populacionais. A difusão da linguagem pode resultar de migrações em massa,
podendo incluir uma série de tomadas hostis de terras que justifiquem o uso
dos termos “invasão” e “conquista”. Contudo, infiltrações pacíficas de

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número relativamente pequenos de falantes pode também eventualmente


levar a uma adoção muito difundida de sua linguagem na nova área. O
alcance de possíveis cenários torna muito dificultoso para correlacionar
momentos putativos dos falantes pré-históricos com mudanças observadas
nos registros arqueológicos de sítios com temporalidade anterior aos registros
escritos. Antes de tentar qualquer correlação, devemos derivar o muito que
podemos da puramente data linguística (MELCHERT, 2003. p.8),

David Hawkins (2014, p.31) explica que o termo “Terra de Luwiya” parece ser
um termo étnico linguístico do Velho hitita referindo-se as terras onde se falavam o
luvita, assim como a Terra de Pala, onde a língua era o palaico. Esses dois termos
aparecem juntos nas Velhas leis hititas, opostos a “Terra de Hatti”.

“If a Luwian abducts a free person man or woman, from the land of Hatti,
and leads him away to the land of Luwiya/Arzawa, and subsequently the
abducted person´s owner recognizes him, the abductor shall bring (forfeit) his
entire house. If a Hittite abducts a Luwian man in the land of Hatti itself, and
leads him away to the land of Luwiya, formerly they gave 12 persons, but
now he shall give 6 persons. He shall look to his house of it. If a Hittite man
abducts a Hittite male slave from the land of Luwiya, and leads him here to
the land of Hatti, and subsequently the abducted person´s owner recognizes
him, the abductor shall pay 12 shekels of silver. He shall look to his house of
it” (Hittite Laws 19-20) 256.

Ao observar os parágrafos 19-21 das leis hititas, que falam do sequestro de pessoas e
escravos da Terra de Hatti para Luwiya, sendo que se fosse um luvita que sequestrasse
um hitita, seria a perca total de seus bens, se fosse ao contrário pagaria por seis pessoas.
Craig Melchert (p.1-2) comenta que essa e outras desigualdades nas leis, sugere que os
hititas viam os luvitas como o “estrangeiro” pertencendo “ao outro” não ao mesmo
grupo social. Trevor Bryce (2003, p.29-30) comenta que as penalidades para as ofensas
luvitas pareciam ser mais duras paras as prescritas para os, hititas nas cláusulas, porém
sem saber o contexto na qual essas penalidades, ou os pagamentos compensatórios que
foram formulados, ou de fato se elas foram classificadas conscientemente em relação de
um para o outro, sendo assim não podendo determinar quais significados devem ligados
nas diferenças entre eles.
Craig Melchert (2003, p. 3-4) fala que nossa informação sobre os luvitas vem de textos
variados, e cita quatro exemplos de documentos onde eles aparecem: 1. Referências
diretas da terra de Luwiya e seus habitantes, como as Leis hititas e os textos das
colônias assírias. Sendo essas identificações importantes para estabelecer a presença dos
luvitas no sul central da Anatólia, já no começo do segundo milênio. 2. Aparecimento

256
Se um luvita sequestrar um homem ou uma mulher livre da terra de Hatti, e leva-los para longe da
terra de Luwiya/Arzawa, e subsequentemente o dono da pessoa sequestrada reconhecer o sequestrador,
sua casa inteira deverá ser confiscada. Se um hitita sequestrar um homem luvita na terra de Hatti em si, e
leva-lo para longe da terra de Luwiya, anteriormente eles dariam 12 pessoas, mas agora devem dar 6
pessoas. Ele deve olhar para sua casa. Se um homem hitita sequestrar um escravo hitita homem da terra
de Luwiya, e leva-lo aqui para a terra de Hatti, e subsequentemente o dono da pessoa sequestrada o
reconhecer, o sequestrador deve pagar 12 shekels de prata. Ele deve olhar para sua casa (Leis hititas 19-
20).

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de nomes pessoais luvitas nos textos das colônias assírias e em outros lugares no século
XX e XVIII antes da nossa era, nos textos hititas e em outros lugares do século XVI a
XIII antes da nossa era, nos textos assírios do século IX e VII, e nos textos gregos da
Anatólia do primeiro milênio. 3. Menção de lugares associados em textos luvitas e em
portadores de nomes pessoais luvitas (sendo importante sublinhar que não temos
segurança se na maioria dos casos os próprios nomes dos lugares são linguisticamente
luvitas. 4. Textos de linguagem luvita.
Como vimos as leis hititas destacam regiões diversas a terra de Hatti, como Luwiya e
Pala, como explica Trevor Bryce (2003, p.28-29) essas regiões são reconhecidas como
entidades distintas e separadas de Hatti, mas de alguma forma conectada com ela como
nenhuma outra região da Anatólia fora, embora Pala aparece nas leis, ela é vista apenas
como um território e não e não aparece nas clausulas como os luvitas, sendo que Pala
pode ter perdido sua independência por uma razão ou outra logo no começo da história
hitita. Referências aos luvitas continuaram aparecendo, e apesar das implicações nas leis
na qual referiam a isso não estão inteiramente claras, existem evidencias de algumas
afinidades nesse tempo entre Hatti e Luwiya. Mercadores hititas operavam em Luwiya,
outras pessoas se moviam livremente entre essas terras, e superficialmente, pelo menos
parece que os habitantes de Luwiya, assim como os de Hatti eram sujeitados as
provisões das Leis hititas.
É intrigante como o luvita teve uma influência tão ampla no mundo hitita, e o palaico
ficou apenas restrito a um aspecto litúrgico. É claro que no quadro linguístico de Hatti
existem evidências de várias línguas e costumes literários mesopotâmicos, mas o luvita
teve um papel de destaque em todo esse emaranhado literário, e além disso:
Além do mais, existia uma relação especial logo cedo no reino hitita entre
Hatti e Luwiya, uma aparentemente não dividida com os povos da Anatólia.
Isso é mostrado na clausula 23 das Leis que diferenciavam Luwiya do
inimigo: “Se um escravo fugir e for para Luwiya, seu dono deve pagar seis
shekels de prata para quem quer que o traga de volta” (23 a). “Se um escravo
homem fugir e for para um território inimigo, quem traze-lo de volta, deve
mantê-lo para si mesmo” (23 b). A relação entre Hatti e Luwiya, pode ter tido
suas origens em um período anterior ao surgimento do Velho Reino hitita. É
tentador assumir que um cenário étnico comum desempenhou algum papel
nisso, particularmente se a dispersão dos grupos indo-europeus que foram
para a Anatólia ocorreram depois de sua chegada. E de fato as afinidades
linguísticas entre o nesita e o luvita parecem ser bem próxima para permitir a
possibilidade que os falantes dessas línguas entrassem na Anatólia em ondas
diferentes alguns séculos separados (BRYCE, 2003, p.30).

Se partirmos da ideia que em algum momento dessa imigração indo-europeia


para a Anatólia tanto os povos que falavam o nesita e o luvita partilhassem de uma valia
simbólica semelhante, o que Isaac Harolds (1975, p.31) chama de legados, sendo que
uma identidade básica de grupos se consiste em uma já pronta construção desses
legados e nas identificações na qual cada indivíduo divide com o outro no momento de
seu nascimento pela possibilidade da família na qual ele nasce naquele dado tempo e
lugar. Assim quando ela esboça seu primeiro suspiro, ouve o primeiro som, sente o
primeiro toque, a nova criança começa a ser legada com tudo o que há espera na família

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no tempo e no lugar. Esses são os pertences comuns do grupo na qual a criança se torna
um membro, as características sociais a “divisão de semelhança” que entra em todo o
seu complexo caminhos para o fazer da identidade do ego individual. Muito de um
suporte de legados.
Esses legados étnicos podem em algum momento ter sido compartilhados
quando os falantes de nesita e luvita ainda eram tribos que partilhavam se algumas
semelhanças, mas que ao longo da dispersão causada pelas imigrações se perderam, mas
com algumas considerações.
Os luvitas podem ter sido vistos como “outros” criando assim uma alteridade,
mas como coloca Trevor Bryce (2014, p.140) descriminações na esfera étnica nunca
foram utilizados em Hatti. Para ser um hitita, bastava ser um habitante de Terra de
Hatti, essa sujeição ao ocupante do trono real de Hattusa dava o senso de identidade e
coerência a todos os habitantes. No último século do império, uma população que falava
o luvita constituía a maior e mais difusa parte de todos os componentes. Sua língua e
inscritos hieróglifos foram adotados pelos seus senhores para monumentos públicos,
proclamando suas conquistas militares, e honrando seus deuses. A difusão do luvita foi
tão grande, que no final do império hitita, esse poderia muito bem ter sido a língua mais
difundida, formando uma elite bilíngue bem ciente, é o que Ilya Yakubovich (2011,
p.535) observa no lado sociolinguístico, sendo que os mesmos reis hititas do século XIII
a.C foram encarregados das inscrições monumentais hieroglíficas e textos cuneiformes
hititas com numerosos códigos lúvitas, sendo que em adição ao hitita, eles usavam duas
outras línguas anatolianas na qual não se pode ver diferença.
Em suma o que chamamos de “civilização hititia”, pelo menos em seu começo,
seria uma camada de senhores falando e empregando a língua nesita, nas características
mesopotâmicas, ao estilo cuneiforme, controlando uma maioria que falavam dispersavas
línguas, como já comentado, mas não existiam nenhuma separação ou casta, já que
todos que habitavam a Terra de Hatti seriam abençoados pelas mesmas divindades. E
existiam outras línguas na Anatólia do bronze tardio, como o palaico, o hurrita, o
hattian, sumério, acádio e etc. Línguas de toda a extensão do Oriente próximo, mas o
luvita para ter sido a mais difundida delas:

A maioria da população na Anatólia provavelmente falava alguma forma de


luvita, uma linguagem relacionada com o hitita que desenvolveu sua própria
que desenvolveu sua própria escrita, os chamados hieróglifos luvitas. Esse
sistema de escrita é atestado do século XV a.C em diante, mas provavelmente
há precursores que datam da primeira metade do segundo milênio. Essa
escrita foi em grande parte e cada vez mais silábica, mas oposto ao altamente
abstrato cuneiforme usado pela administração era – pelo menos no segundo
milênio – ainda muito pictográfica ou logogrífica, com muitos sinais
referindo-se a coisas animadas ou partes do corpo e objetos do dia-a-dia.
Enquanto a língua hitita em seu cuneiforme era usada para a administração,
desejada a ser colocada dentro da escrita para seus próprios círculos e
propósitos, se voltou para o luvita e sua escrita hieroglífica para as largas
inscrições em rocha, ser significativa para exibição pública, não somente pela
capital, mas pera a difusão de todo o império. As vezes o caráter de
exclusividade logogrífica dessa escrita elevou-se além do nível de uma
linguagem específica, fazendo assim mais adequada para atingir a grande

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massa. Outro uso atestado dos hieróglifos era em selos dos reis hititas,
registros oficiais, seus nomes e geralmente títulos. À parte de uma razão
possível razão, a escolha da escrita hieroglífica aqui pode ter sido o uso dos
selos além dos círculos onde o cuneiforme hitita era o principal meio de
comunicação (HOUT, 2011, p.48).

Craig Melchert (2003, p.12) faz uma observação sobre essa visão que
eventualmente se lê que o hitita era puramente uma escrita de “chancelaria”, enquanto o
luvita era a língua falada de Hattusa, não existindo base sólida para essa afirmação,
tendo em vista que devemos estar bem claros em um ponto: não temos conhecimentos
diretos de qualquer forma falada das línguas indo-europeias da Anatólia, incluindo o
luvita. O egiptólogo John Baines (1996, p.341) faz uma crítica de como observar os
documentos da antiguidade, argumentando que o estudo do gênero e da natureza da
fonte contribuiu essencialmente para o entendimento da ideologia sendo uma alternativa
para focar em questões ideológicas. O uso dessa aplicação vai além das próprias fontes
para as sociedades que as criaram. A premissa básica é que o grupo para que os
documentos antigos, monumentos e trabalhos de artes foram produzidos e geralmente
não integrados com a sociedade. Em várias sociedades os governantes falavam uma
língua diferente dos governados. Os usos na qual a escrita foi posta eram especializados;
antigos gêneros escritos, tinham sua própria organização e caráter, na qual devem ser
compreendidos. Expandindo para o assunto e o alcance e o uso da arte e da escrita
representacional eram graduais. Ele não deveria ser dado como certo de que qualquer
gênero aparece em uma cultura, simplesmente porque aparece em muitas outras.
Interpretações precisam ser modeladas nos contextos sociais e orais na qual o material
originalmente pertence, em acréscimos para fixar o material dentro de gêneros. Apesar
de antigas fontes apresentar-se como únicas, poucas terão sido na antiguidade.
As colônias assírias trouxeram para a região na Anatólia no século XIX antes na
nossa era os primeiros registros escritos, esses em moldes cuneiformes, na qual os reis
hititas irão mais tarde adaptar para seus registros, e como coloca Gary Beckman (1983,
p. 98) a adoção do cuneiforme implicou em um empréstimo de uma inteira tradição
cultural, e nisso, reciprocamente, a educação do escriba era o meio pela qual a tradição
era transmitida, ambas para os nativos mesopotâmicos ou estrangeiros. E como vimos,
não só o cuneiforme, mas o hieróglifo luvita estavam de formas monumentais
espalhados na época do império, porém a questão não pode ser tomada tão
superficialmente monocromática de duas línguas que eram faladas no mesmo lugar:

O fato que os últimos reis hititas escreveram suas monumentais inscrições


públicas em Hluvita é irrelevante para a questão do luvita como língua falada
em Hattusa Esse uso pode ser culturalmente determinado (observações de
Hawkins 2000 2f). Para inferir tal prática que a população de Hattusa falasse
o luvita seria comparável a dizer que os cidadãos de Washington D.C falem
latim por causa do uso do mesmo em inscrições monumentais da cidade.
Muito mais significativo são os efeitos do luvita no hitita. Como mostrado
por Starke 1990, que a influência do luvita no hitita começou na pré-história.
Palavras emprestadas do luvita são presentes do mais velho atestado hitita,
tais palavras de qualquer modo, foram totalmente adaptadas nos padrões

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hititas. Até aqui não existe evidência de palavras luvitas com inflexões
luvitas no contexto hitita antes do Médio período hitita, e tais formas se
tornaram comuns somente no reinado de Mursilli II em direção do fim do
século XIV a.C (MELCHERT, 2003. P. 13).

Os escribas tanto no Mesopotâmia quanto no Egito eram pessoas eruditas, treinadas


desde cedo nessa arte, em Hatti não era diferente como destaca Annick Payne (2010. p.
182), sendo essa ocupação herdade de pai para filho. Dentro do contexto de uma
sociedade iletrada, era uma profissão de hierarquia e especializada. Sabemos, por
exemplo, que escribas de nível baixo recebiam ditados de colegas mais elevados.
Existiam pelo menos quatro aspectos distintos do dever de escriba, presumidamente
feita por escribas treinados para esses propósitos. Existia o arquivista que cuidava das
coleções reais de tabletes, o escriba legal, que cuidava dos registros da corte e
reformulava as leis, o escriba diplomata, que cuidava da correspondência externa, e
finalmente o assessor bem informado do rei e seu conselho. Se existia uma justaposição
ou não desses deveres, não sabemos, mas existem evidencias adicionais de
especialização dentro do oficio de escriba.
Sabemos que os luvitas tiveram um papel importante na formação cultural dos hititas, e
foram influências em todos os aspectos sociais. E estiveram sempre em contato com a
terra de Hatti, seja em contatos pacíficos de transculturação, ou seja, na guerra por
territórios, essa coletividade étnica, forma termos de valores tangíveis. Como destaca
Eriksen (1993, p.49) explica que em outras palavras, a filiação de categoria étnica
ensina o comportamento individual apropriado vis-à-vis para os outros, passa
conhecimento sobre ele ou ela (imputa) origens e legitima a existência da categoria
étnica. Em um sistema de interação onde associação étnica não existe, mas onde a
categorização étnica é usada, a etnicidade pode ainda de grande importância para um
guia de princípio de interação. Nisso vemos como os hititas foram pouco a pouco
aderindo mais e mais, principalmente em relação a escrita os caracteres luvitas como
explica Annick Payne (2010, p.182) as mudanças trazidas pelo final do império hitita e
sua larga administração palaciana afetaram a profissão de escriba também. Mais
proeminentemente, a escrita cuneiforme veio ao fim nos velhos territórios hititas,
enquanto as inscrições do monumental hieróglifo luvita começavam a florescer.

REFERÊNCIAS

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DOS AGRICULTORES-CERAMISTAS ITARARÉ-TAQUARA E


TUPIGUARANI AOS INDÍGENAS KAINGANG E GUARANI:
OCUPAÇÃO, TRANSFORMAÇÕES E RESISTÊNCIA
INDÍGENA EM LONDRINA, PR
Maquieli Elisabete Menegusso - Mestranda em História Social (UEL)
Orientadora: Profª Drª. Cláudia Eliane P. Marques Martinez
PALAVRAS-CHAVE: HISTÓRIA INDÍGENA; CULTURA; RESISTÊNCIA.

Após a Constituição Federal de 1988, a qual garantiu vários direitos aos povos
indígenas, especialmente o direito a seus territórios nacionais, é que a história indígena
teve espaço no Brasil, gerando grande demanda e valorização de pesquisas na área. De
acordo com Cavalcante (2011) já é muito conhecida a clássica e aparentemente
superada dicotomia entre antropologia e história que, no século XIX se definiam a partir
de seus objetos de estudo. A primeira se dedicava ao estudo das culturas nativas não-
ocidentais, consideradas inferiores e estáticas. Já a história devia se preocupar com as
culturas de origem europeia ávidas pela mudança e especialmente letradas, o que
permitia produzir e deixar muitos documentos escritos sobre o próprio passado. Essa
distinção entre as duas disciplinas estava, sem dúvida, ligada aos ideais expansionistas e
racistas presentes nas ciências sociais.
A famosa frase de Francisco Adolfo Varnhagen, escrita em sua obra “História
Geral do Brasil”, de 1854, segundo a qual para os índios “[...] não há história, há apenas
etnografia” (VARNHAGEN apud CAVALCANTE, 2011, p.07), ilustra bem esse
pensamento. Como afirma Manuela Carneiro da Cunha (1998) durante muito tempo, os
indígenas não foram vítimas apenas da eliminação física, mas também da eliminação
enquanto sujeitos históricos. Essa imagem dos “índios sem história” percorreu durante
décadas a historiografia brasileira.
Falando de história indígena no Estado do Paraná, podemos dizer que tal
presença foi deslegitimada por muitos anos pelos inúmeros discursos que afirmavam e
reafirmam a ideia das terras desprovidas de população, principalmente na região

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norte 257, onde o discurso fala sobre progresso, civilização, pioneirismo e cafeicultura,
conjunto de ideias que promoveram alguns silêncios e um deles foi o da ocupação da
região metropolitana de Londrina por sociedades indígenas.
Como observa (DE CERTAU, 2002 apud OLIVEIRA, 2010, p. 31), o exercício
do direito e da palavra, é um privilégio dos europeus durante o processo de escrita da
história. Isto afeta não só as grandes interpretações, mas também a produção mesma das
fontes documentais, o que torna bastante difícil escapar do esquematismo da história
oficial e vir a reconstituir o cotidiano das relações entre indígenas e colonizadores.
Em “As Guerras dos Índios Kaingang”, Lucio Tadeu Mota mostra como a
história da região norte paranaense foi construída a partir do vazio demográfico criado
pelos geógrafos entre as décadas de 30 a 50 do século XX, interpretada pela sociologia e
historiografia e reafirmada nos livros didáticos. Uma interpretação que simplesmente
desconsiderou os povos indígenas, ao contrário do que apontam as pesquisas
arqueológicas, fontes e estudos históricos mais recentes.
Para (NOELLI, 1999-2000, p.26), não existem terras na região sul do país que
não tenham sido ocupadas sistemática ou ocasionalmente por populações indígenas em
momentos distintos e em todos seus espaços.
Os indícios arqueológicos comprovam essa presença no que é hoje território
paranaense a aproximadamente 10.000 anos A.P e revelam sociedades complexas, cujas
culturas materiais resistiram ao tempo e são objetos de estudo de diversas áreas, como a
arqueologia, antropologia e história. Para Parellada (2007, p. 163) esses vestígios estão
relacionados a distintos grupos: caçadores-coletores, denominados Paleoíndios,
pertencentes às tradições Umbu e Humaitá; agricultores-ceramistas, pertencentes às
tradições Itararé-Taquara e Tupiguarani; coleta litorânea, representada pelos sambaquis
e para as pinturas e gravuras rupestres, representações simbólicas, têm-se as tradições
Planalto e Geométrica.

257
Do ponto de vista histórico, a colonização do norte paranaense é apresentada pela divisão desse
território em três partes: norte velho ou norte pioneiro, localizado no nordeste do estado, que se estende
do rio Itararé até a margem direita do rio Tibagi, cujo a ocupação foi iniciada em meados do século XIX,
desenvolvendo-se nas primeiras décadas do século XX. O norte novo, região que vai desde o rio Tibagi
até as proximidades de Maringá. Por fim, o norte novíssimo, que compreende a região que se estende das
proximidades de Maringá, até o curso do rio Paraná, ultrapassa o rio Ivaí e abarca toda margem direita do
Piquiri, colonizada desde 1940 até 1960. (CARDOSO apud LIMA, 2014, p.84)

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No início do século XVI, quando chegaram os primeiros europeus, já se


encontravam na região as populações indígenas conhecidas hoje como históricas. São
elas: Os Guarani e Xetá do tronco linguístico Tupi, e os Kaingang e Xokleng do tronco
linguístico Macro-Jê (MOTA, 2008, p. 81).
O contato dessas populações tradicionais com os novos ocupantes, ocasionou
uma rápida transformação em seus modos de vida, onde foram drasticamente reduzidas
pelos confrontos armados por posse de terras, escravização e doenças contagiosas. Os
que sobreviveram foram obrigados a viver em espaços menores e sob o domínio dos
novos padrões culturais trazidos pelos invasores.
No Paraná existem atualmente três etnias indígenas: Guarani, Kaingang e Xetá.
Antes detentores de praticamente todas as terras do estado, hoje vivem em pequenas
áreas demarcadas pelo Governo Federal. Etnias que muitas vezes no passado figuravam
como inimigas (Guaranis e Kaingang), acabaram sendo aldeadas em um mesmo espaço,
como é o caso das terras indígenas de São Jerônimo, município de São Jerônimo da
Serra; Laranjinha, município de Abatiá; Mangueirinha, município de Chopinzinho e Rio
das Cobras, município de Nova Laranjeiras 258.
Diante de tal cenário, entende-se que trazer à tona alguma dessas vozes para a
história de Londrina, redimensionando o estudo dos povos para além das sociedades
europeias é de suma importância para o bom entendimento do processo de povoamento
da região.
Desenvolvendo um diálogo com a arqueologia e a etno-história, a presente
pesquisa tem como objetivo desconstruir o discurso do vazio demográfico e mostrar que
essas terras vêm sendo ocupadas por populações indígenas há milhares de anos. Será
dada ênfase às transformações culturais ocorridos nessas sociedades ao longo do tempo,
principalmente na transição do pré-contato para o pós-contato.
O estudo será limitado às tradições arqueológicas Tupiguarani e Itararé-Taquara
e aos indígenas conhecidos historicamente como Kaingang e Guarani, estes porque a
presença está marcada nos sítios arqueológicos, museus e terras indígenas da região em
estudo.
Pretende-se oferecer aqui uma síntese dos dados levantados até o momento, a
partir das pesquisas bibliográficas e consultas ao banco de dados do IPHAN.
258
Dados sobre as etnias e terras indígenas extraídos do site www.funai.gov.br com acesso em 15 de
outubro de 2015.

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Apresentar-se-á algumas das características culturais das tradições em estudo, o contato,


a ideia do vazio demográfico e a presença indígena.
Dentro dessa orientação iniciamos com as tradições arqueológicas e suas
principais características culturais. Para Parellada (2006) os primeiros agricultores-
ceramistas chegaram ao Paraná vindos do planalto central brasileiro, denominados de
Itararé-Taquara. Pesquisas arqueológicas colocam essa tradição como portadora de uma
das primeiras ocorrências de cerâmica no Brasil meridional. A quase totalidade dos
achados se integra em três conjuntos que seus criadores chamaram de tradição Taquara
(E. Miller) e tradição Itararé e Casa de Pedra (I. Chmyz).
Podemos agrupar essas três tradições, como mostra Araújo (2007) sob um
mesmo rótulo, devido as diferenças mínimas entre elas, assim como, Miller (1971) apud
Parellada (2008) sugere essa unificação, correspondendo a tradição Itararé-Taquara que
adotarei aqui.
Essa tradição está associada a grupos distintos dos Guarani, falantes de idioma
Jê e representados atualmente pelos Kaingang e Xokleng. Evidências arqueológicas
fortalecem a hipótese a respeito. Um exemplo é a pesquisa de Miller (1978) apud
Araújo (2007) que compara fragmentos provenientes de sítios arqueológicos,
fragmentos de locais historicamente conhecidos como de ocupação Kaingang e
vasilhames feitos por duas informantes Kaingang dos P.I Icatu e Vanuire (SP),
evidenciando muitas semelhanças no método de manufatura.
Em relação aos vestígios materiais, Parellada (2007) os descreve da seguinte
forma: A cerâmica caracteriza-se pelo pequeno volume e a espessura fina, com eventual
engobo negro ou vermelho, e em alguns casos marcada com impressão de tecido ou
malha, ou mesmo carimbada e incisa, na face externa dos vasilhames. As ferramentas
líticas, ou seja, de pedra, eram polidas ou lascadas. Usavam-nas como raspadores,
plainas, machados, pilões e mãos de pilão, além de bigornas e batedores. Também
confeccionavam cestos, principalmente em taquara, alguns impermeabilizados com cera
de abelha para armazenar líquidos e também usavam porongos como vasilhas.
Caracterizam-se principalmente pela sua engenharia de terra, para construção de
casas poços ou casas subterrâneas, conhecidas pela população como casas de bugre.
Eram construídas nas regiões mais altas de campo aberto, submetidas a geada e ao
vento frio, instalando-se nos capões de araucárias do Paraná.

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[...] são caracterizadas por covas profundas de 3 m até 18 m de diâmetro e


com profundidade de 1 m até 6m, cavadas com picões de pedra no piso de
alteração do arenito. A terra escavada era disposta em anel ao redor do
buraco para desviar as águas da enxurrada, e um poste central com cerca de
15 cm de diâmetro levantava um teto de folhas, cujos caibros, calçados com
pedras, se apoiavam ao redor da depressão. Nas casas mais profundas, uma
banqueta corria ao longo da base da parede; uma rampa ou algumas lajes
fincadas na parede à guisa de escada permitiam o acesso. Uma fogueira era
instalada perto do centro da estrutura, alimentada por nós de pinhão – ótimo
combustível [...] (PROUS, 2006, p. 49 - 50).
P.I Schimitz(2003) e Prous (2006) colocam que nos mesmos espaços junto as
casas, geralmente aparecem aterros com cerca de 1m de altura que aparentam ter sido
usados para sepultamentos. Segundo P.I Schimitz centenas de sítios dessa natureza
foram localizados no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo e alguns até
nas terras altas de Minas Gerais.
Numerosos trabalhos já foram escritos sobre os “buracos”, os arqueólogos
ocupam-se do assunto a décadas, mas o que esses buracos, de fato representam e que
utilidade teriam?
Para Parellada (2007) teriam usos variados: Sepultamentos, habitações ou
armazenagem de alimentos. Prous (2006) não descarta a possibilidade de algumas das
casas terem sido usadas para armazenar pinhões, relatando que infelizmente vestígios
alimentares não são preservados nos sedimentos ácidos das casas subterrâneas.
Lançando mão a tradição Tupiguarani 259, Prous (2006) coloca que os vestígios
desses povos são encontrados desde as missões e o rio da Prata, ao sul, até o Nordeste,
com algumas ocorrências no sul da Amazônia. A leste ocupam toda faixa litorânea,
desde o Rio Grande do Sul até o Maranhão. A oeste, aparecem (no rio da Prata) no
Paraguai e nas terras baixas da Bolívia e marcaram sua presença discretamente nos
cerrados do Brasil central. Ocuparam de preferência as regiões de floresta tropical e
subtropical, sendo grande a densidade de sítios arqueológicos ao longo da faixa de Mata
Atlântica e ao longo dos rios da bacia do Prata.
Pode-se afirmar que o elemento mais característico dessa cultura é a cerâmica,
devido a produção em larga escala e diversificação na decoração, o que a difere da
tradição Itararé-Taquara onde a cerâmica era simples, com raras decorações.
Estas peças eram decoradas com padrões característicos dos Guaranis: as
utilitárias, de todo dia, tinham a superfície externa coberta com impressões

259
Existe uma série de atributos ligados a grafia Guarani: Utiliza-se Tupi para se referir ao tronco
linguístico; Tupi-Guarani para se referir a família linguística; Tupiguarani para a tradição arqueológica e
Guarani para identidade étnica (CEREZER, 2011, p. 13)

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regulares da polpa do dedo, da borda da unha, da ponta de um estilete, ou


eram lisas; um outro conjunto, melhor trabalhado, era pintado, às vezes com
um vermelho uniforme, mas geralmente com desenhos geométricos variados
em vermelho ou preto sobre uma base branca. Especialmente a pintura dava
um aspecto agradável ao vasilhame e mostrava que o grupo tinha vencido a
mera subsistência e investia algum tempo em arte. (SCHMITZ, 2006, p. 41)
Os ceramistas Tupiguarani eram grandes agricultores, plantando principalmente
a mandioca e o milho. Moravam em aldeias circundadas por roças, geralmente com
quatro a seis habitações retangulares cobertas por palhas. No interior das habitações
costumavam sepultar os mortos em grandes vasilhames cerâmicos onde também eram
inseridos seus objetos principais, como lâminas de machado e pequenas vasilhas. Os
instrumentos de pedra mais comuns são lâminas de machado polidas ou lascadas,
adornos labiais em forma de “T” (tembetás), lascas, raspadores, bifaces, polidores em
canaletas e pingentes polidos perfurados (PARELLADA, 2007, p.166).
Com o passar do tempo grande parte da cultura desses povos foi se modificando,
mas foi a partir do contato com os não-índios que o processo de mudança ocorreu de
uma maneira mais acelerada. Foi alterado grande parte da vida tradicional das
populações nativas, modificando as bases estruturais dos grupos, provocando a
diminuição territorial e populacional e o abandono de algumas práticas milenares, a
exemplo da produção cerâmica.
Partindo então, para o contato, Shmys, e Sauner, apud Becker (1999) afirmam
que a ocupação colonizadora paranaense se deu devido a agricultura, pecuária e a
mineração, que foi a principal atração. O processo minerador possibilitou a abertura de
estradas vicinais, municipais e interestaduais que cortaram as concentrações indígenas.
O estado também foi palco das reduções jesuíticas espanholas do século XVI e
da primeira metade do século XVII. Para Motta (2008), em seu apogeu, o Guayrá de
1620-1630, chegou a contar com 17 reduções 260, abrigando mais de 200 mil índios
Guaranis.
O que restou das reduções jesuíticas são apenas alguns vestígios materiais que
ainda estão presentes em sítios arqueológicos e museus, outros recobertos pela mata, ou
simplesmente destruídos pela construção civil ou pela ação de agricultores no processo
do plantio.

260
Para Mota (2008) destacaram-se duas cidades: Ciudad Real del Guayrá nas margens do Rio Paraná na
confluência do Piquiri, e Villa Rica del Espírito Sancto, na junção dos rios Ivaí e Corumbataí, está última
mais ou menos a 100km ao sul de onde é hoje Maringá.

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Um exemplo de vestígios dessas missões é o da redução jesuítica de San Joseph


fundada em 1625 e destruída pelos bandeirantes em 1631. Foi instalada no local onde
atualmente existe o Sítio Arqueológico da Fazenda Santa Dalmácia, ao norte do
município de Cambé (região metropolitana de Londrina). No local foram evidenciados
inúmeros fragmentos cerâmicos da cultura Guarani, o que indica uma forte atividade da
produção oleira. A arqueóloga do Museu Paranaense Cláudia Inês Parellada fez o
anúncio oficial do sítio arqueológico em 2011 durante a 9º Reunião de Antropologia do
Mercosul em Curitiba 261.
A partir do século XVII, a região foi marcada por intensas lutas entre os
Guaranis e os bandeirantes paulistas que buscavam índios para escravização, índios e
espanhóis e também confrontos entre jesuítas e tribos que não estavam dispostas a
evangelização. Dessa forma os Guaranis misturaram-se intensamente com outros povos
e foram dizimados.
Quanto aos Kaingang, parece que não despertaram o interesse dos bandeirantes
como mão-de-obra escrava:
[...] talvez por serem mais aguerridos e pouco numerosos em relação aos
grandes estoques humanos mais dóceis que existiam mais a oeste ou talvez
porque, como gente de língua travada e que só conhecia uma agricultura
muito primitiva, não dessem escravos de qualidade. Esses índios que viviam
no recesso das matas, em São Paulo, Paraná e Santa Catarina, eram
conhecidos como Coroados, Guainá, Bugres ou Botocudos, de língua
Kaingang. (Ribeiro apud Mota, 2008, p.91)
Podemos dizer que foram os principais personagens de resistência contra a
penetração dos novos ocupantes, sendo a presença mais antiga ainda viva, de povos que
ocupavam a região em estudo 262.
Quando se fala especificamente de Londrina que surgiu no ano de 1934, por
conta da produção cafeeira e colonizada pela Companhia de Terras Norte do Paraná
(CTNP), podemos dizer que essa história foi construída sob o grande silenciamento do
“vazio demográfico” que tratava a área como um sertão longínquo e completamente
desabitado, até a década de 30 quando então começa a ser colonizada. Mota (2008)
afirma que a expressão pode ter sido usada como uma forma de ocultar os conflitos
indígenas da época, segundo o autor o vazio foi criado pela expulsão ou eliminação das
populações indígenas no norte do Estado.
261
Dados extraídos do site da Prefeitura Municipal de Cambé www.cambe.pr.gov.br/site/areanoticia/862-
missao-jesuitica-esteve-em-cambe-em-1625.html com acesso em junho de 2015.
262
Para mais informações sobre a resistência Kaingang consultar MOTA, 2008.

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Contrariando a ideia do vazio demográfico, menciono o relado do engenheiro


Gordon Fox Rule, empregado da CTNP e responsável pela colonização de grandes áreas
entre os rios Tibagi e Ivaí, que fala da presença indígena em 1930, nas imediações do
Patrimônio Três Bocas, o primeiro nome de Londrina:
Certa vez paramos na estrada para encher de agua o radiador de nosso
fordeco e de repente ouvimos de todos os lados, vindo da mata, o som de
paus batendo nas arvores. Eram os índios que então existiam nos arredores do
que viria a ser a progressista Londrina de hoje. Isso foi em 1930. Lembro-me
bem que todos queriam correr, mas eu os acalmei e disse que fizessem tudo
com naturalidade. Ouviamos os índios mas não podiamos vê-los. Pouco a
pouco nos aproximamos do automóvel, sempre ao som das batidas nas
arvores, enchemos de agua o radiador e zarpamos a toda velocidade
(Depoimento de Gordon Fox Ruleapud Mota 2008, p.109).
Assim como o relato do engenheiro, ainda se tem Lévi-Strauss e Pierre Monbeig
citados por Mota (2008) que falam sobre populações indígenas que viviam nas florestas
do norte paranaense.
A presença dessas sociedades na região metropolitana de Londrina também pode
ser comprovada através dos sítios arqueológicos cadastrados no CNSA, além da
presença de seus remanescentes que vivem nas terras indígenas de Apucaraninha,
município de Londrina, com a presença da etnia Kaingang e próximo a região, no
município de São Jerônimo da Serra, temos a Terra Indígena de Barão de Antonina,
etnia Kaingang e a de São Jerônimo com a presença Kaingang, Guarani e Xetá (Figura
01).
Figura 01 – Mapa ilustrativo com a distribuição de sítios arqueológicos e terras
indígenas do local de estudo.

Fontes: Elaborado pelo próprio autor no software Quantum Gis 1.7.3 software (QGIS Development
Team 2014). Dados extraídos do CNSA, disponível em www.iphan.gov.br e Terras Indígenas em
www.funai.gov.br

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As tradições Tupiguarani e Itararé-taquara são representadas hoje, por povos


com uma história para contar, uma perspectiva para revelar e uma imagem para
transmitir, mostrando quem realmente, de fato, são.
Descrever essas culturas, selecionando alguns trechos de modo a caber na
narrativa, não mostra quem eles foram, muito menos quem são, mas abre espaço para
questões que serão contempladas por meio do contato direto com seus remanescentes e
sua cultura material, bem como com uma maior aproximação entre os dados
arqueológicos e etnográficos.
A pesquisa ainda se encontra em fase inicial, por essa razão os resultados são
preliminares e carecem de mais estudos.

Considerações finais
Não há dúvidas de que a presença do branco modificou profundamente as
sociedades indígenas, destruindo seu modo de vida tradicional e os varrendo pelas
doenças contagiosas e confrontos armados. Mas se o contato tivesse sido ordenado e
pacífico, a cultura desses povos indígenas teria permanecido sem alteração ou teria se
alterado de uma maneira mais branda e menos impositiva? Até que ponto as sociedades
indígenas atuais se parecem com seus antepassados de antes das invasões europeias?
Sabe-se que os aspectos da cultura indígena podem variar bastante entre os
povos, ou até mesmo dentro de uma mesma comunidade ao longo do tempo. A língua, a
forma de organização social e política, os rituais, os mitos, as formas de expressão
artística, as habitações e a maneira de se relacionar com o meio ambiente são exemplos
de fatores que se diferenciam.
Levando em consideração essa grande diversidade cultural e as mudanças
culturais que ocorrem constantemente nessas sociedades, impostas ou naturais, devemos
nos atentar para uma compreensão da existência de diferenças entre os próprios grupos
indígenas, evitando criar a imagem do índio como povo único, lembrando que com o
passar do tempo os padrões culturais, não só dessas sociedades, mas de toda
humanidade sofrem alterações, devido a diversos fatores. Alguns são inerentes à própria
cultura, que com o passar do tempo se auto-recicla, outros devido as influências
externas oriundas de outros grupos humanos.

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E.P Thompson (1989) não acredita na definição de que existem culturas


totalmente autônomas umas das outras. É difícil pensar que uma determinada cultura
possa permanecer imune às influências de outras formações culturais. Sendo assim,
pode-se dizer que as culturas mudam constantemente, muitas vezes devido as
necessidades de cada uma. Cultura não é uma coisa tão tradicional que não possa ser
superada.
Entende-se que a história cultural dessas sociedades não pode ser definida como
uma fórmula limitante, mas como uma massa de perspectivas, conceitos e metodologias
que nos ajudam a observar a sociedade e sua produção cultural, trabalhando na
construção de identidades e consciência histórica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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algumas hipóteses sobre a expansão dos grupos Jê no sudeste do Brasil. Revista de
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CEREZER, Jedson Francisco. Cerâmica Guarani: manual de experimentação
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<http://www.funai.gov.br>. Acessado em 15 out. 2015.
LIMA, Leilane Patricia. A arqueologia e os indígenas na escola: um estudo de
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Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2014.
MOTA, Lúcio Tadeu. As guerras dos índios Kaingang: a história épica dos índios
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NOELLI, Francisco Silva. A ocupação humana na região sul do Brasil: arqueologia,
debates e perspectivas 1872-2000. Revista USP, São Paulo, n 44, 1999-2000.
OLIVEIRA, João Pacheco. O nascimento do Brasil: revisão de um paradigma
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________ Tecnologia e estética da cerâmica Itararé-Taquara: dados etno-


históricos e o acervo do Museu Paranaense. Revista Arqueologia, 21:97-111, 2008.

Prefeitura de Cambé Notícias. Missão Jesuítica esteve em Cambé em 1625.


Disponível em <http://www.cambé.gov.br>. Acessado em 25 de jun. 2015.

PROUS, André. O Brasil antes dos brasileiros: a pré-história do nosso país. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.

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SCHMITZ, P.I., et al. Os índios engenheiros e suas estranhas casas subterrâneas In:
Anais do I Colóquio sobre Sítios Construídos - Casas Subterrâneas. Santa Maria:
UFSM/LEPA, 2003.

THOMPSON, Edward P. Costumes em Comum. São Paulo: Companhia das Letras,


1989.

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DA COMUNIDADE ISLÂMICA EM


LONDRINA (1968 – 2015): APONTAMENTOS DE PESQUISA
Paola Barbosa Oliveira Franco
Orientador: Profº Dr. Wander de Lara Proença¹
PALAVRAS-CHAVE: ISLAMISMO; LONDRINA; MESQUITA REI FAIÇAL.

Na primeira década do presente século foi estimado 1,3 bilhões de seguidores do


Islã pelo mundo (PROENÇA, 2002, p.11). Todavia, mais do que pelos números, o
destaque nos meios de comunicação de massa se faz pelos recorrentes conflitos em
regiões onde o Islã é a religião predominante e também por atos de violência
envolvendo fiéis em outras partes do globo. O episódio contemporâneo mais conhecido
é o atentado às torres do World Trade Center, nos Estados Unidos, no dia 11 de
setembro de 2001 – quando um grupo extremista islâmico sequestrou aeronaves e,
dentre elas, duas colidiram intencionalmente com os prédios, matando milhares de
pessoas. Esse fato aterrorizou a população mundial, gerando o senso de que todos os
muçulmanos são terroristas, aflorando assim o interesse de estudiosos ao
desenvolvimento de pesquisas voltadas para o mundo mulçumano, tão diverso e
desconhecido pelo Ocidente. Outro fator - anterior ao incidente de 2001 - que levou a
emergência de pesquisas sobre crenças foram mudanças no campo historiográfico,
valorizando os estudos voltados para as religiões e religiosidades. No livro “Domínios
da História” Jacqueline Hermann frisa que “na medida em que as categorias ‘social’ e
‘sociedade’ encontram espaço como objetos de estudo, seus diversos elementos
constitutivos – entre eles a religião – passaram a merecer maior atenção e estudos mais
objetivos e sistemáticos” (1997, p.477).
Apesar do Oriente Médio ser um tema debatido, o Brasil ainda necessita de
produções acadêmicas incluindo as comunidades muçulmanas existentes em nosso país.
Pensando nisso, surgiu o interesse no desenvolvimento desse trabalho, porém o maior
obstáculo é a inexistência de estudos voltados para a comunidade local. Almejamos
compreender questões históricas, culturais e religiosas. Inserimos esse trabalho no
campo da História Cultural, e usaremos conceitos de história e memória do historiador
francês Jacques Le Goff, assim como o conceito de Memória Coletiva de dois
sociólogos, o também francês, Maurice Halbwachs e o austríaco Michael Pollak, que

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faz uma leitura do anterior, mas classifica os tipos de memória existente. Destacaremos
aspectos históricos gerais do Islã como suas origens, a tipologia religiosa e sua inserção
no Brasil.

APONTAMENTOS CONCEITUAIS
Na primeira metade do século XX, surge a Escola dos Annales, abrindo novos
horizontes e possibilitando que a História dialogasse com conceitos e métodos de outros
saberes, entre eles a Antropologia e a Sociologia. Marc Bloch e Lucien Febvre são
considerados os pais da Nova História, sendo notória a preocupação em seus estudos,
mesmo os anteriores ao movimento historiográfico, com os “modos de sentir e pensar”.
Hermann acrescenta que Bloch e Febvre, eram:

Defensores de uma história abrangente e totalizante, rejeitaram as


premissas de uma história política marcada pelos feitos dos grandes
homens em momentos de guerra ou decisões político-institucionais.
Ao redescobrirem o “homem comum” como elemento fundamental no
desencadeamento de transformações históricas, tanto na curta quanto
na longa duração, propuseram uma abordagem problematizada dos
processos históricos globais. Foi nessa perspectiva que o estudo das
crenças, percebidas na sua dupla determinação — religiosa e política
—, recebeu a atenção de Febvre e Bloch, autores de estudos que se
mantiveram como referencias obrigatórias para a compreensão e
análise das crenças coletivas, embora tenham permanecido durante
muito tempo como iniciativas isoladas, já que só muito recentemente
esta temática foi retomada pela historiografia contemporânea (1997,
p.490-491).

Combatiam a história preocupada apenas com aos grandes acontecimentos e a


pretensão de se chegar à verdade dos fatos através de documentação histórica. A Nova
História seria o instrumento para problematização do social, se preocupando com as
massas e seus modos de sentir, pensar e viver. (VAINFAS, 1997; p. 193 - 194). As
contribuições foram tamanhas, que Peter Burke chama o movimento de “A Revolução
Francesa da Historiografia”. Proença afirma que a Nova História Cultural constituída na
década de 1980, deu maior projeção aos temas ligados a cultura popular, entre eles a
religiosidade, mostrando que não podemos separar a religião da cultura onde estão
inseridas, pois “Descrever uma cultura seria então compreender as relações que nela se

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encontram entrelaçadas, o conjunto das práticas que nela exprimem as representações


do mundo, do social ou do sagrado” (2006, p.44).
Conforme Jacques Le Goff, em seu livro “História e Memória”, define História
como “a ciência dos homens no tempo” (BLOCH apud LE GOFF, 2003; p. 23), e
considera que “a história não só deve permitir compreender o ‘presente pelo passado’ – atitude
tradicional -, mas também compreender o ‘passado pelo presente’, confirmando o caráter
científico e abstrato do trabalho histórico.” (BLOCH apud LE GOFF, 2003; p.24).
Pela possibilidade de ser ensinada, por seu caráter metodológico e técnico, o
fazer história é colocado, pelo autor, como prova de sua cientificidade e cita que
“Lucien Febvre, restringindo disse: Qualifico a história de estudo cientificamente
orientado e não de ciência” (p. 105). Membro da Escola dos Annales, Le Goff concorda
com a grande extensão da documentação que o historiador pode usar em sua pesquisa,
afinal tudo que é produzido pelo homem (fala, escrita, toca) diz algo a respeito dele. (p.
107).
Ainda usando os argumentos de Le Goff, entretanto sobre o conceito de
Memória, inicia a definição como fenômeno individual e psicológico: “A memória,
como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um
conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou
informações passadas, ou que ele representa como passadas” (p. 423). Entretanto,
salienta que assim como o passado, a memória não é a história propriamente dita, mas
sim um de seus objetos. Além disso, a memória passada oralmente se dinamiza e muda
com o passar do tempo, cita Pierre Janet alegando que o comportamento narrativo (ato
mnemônico) é caracterizado pela função social. (p.424). Ou seja, como considerou
Maurice Halbwachs (1990), criador do conceito de memória coletiva, que identificou
em seus estudos que a memória é essencialmente coletiva, pois constatou que “o
homem se caracteriza por seu grau de interação no tecido das relações sociais. [...] Se o
social se confunde com o consciente, deve confundir-se também com a rememoração”
(p. 21 e 22). Mesmo que a rememoração ocorra de maneira individual, lembramos
apenas o que foi vivenciado coletivamente, ou seja, o individual é reforçado pelo
coletivo. Assim sendo, a Memória Coletiva:

[...] foi posta em jogo de forma importante na luta das forças sociais
pelo poder. Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é

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uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos
que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os
esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses
mecanismos de manipulação da memória coletiva. O estudo da
memória social é um dos meios fundamentais de abordar os problemas
do tempo e da história, relativamente aos quais a memória está
ora em retraimento, ora em transbordamento (LE GOFF, 1996,
p. 426).

A memória coletiva, das sociedades sem escrita, revestiu os mitos de origem


com fundamentos aparentemente históricos (p. 428), algo que ocorre dentro das
religiões com suas narrativas de surgimento e em explicações de pertencimento a
determinados grupos. Outro autor importante ao se pensar em assuntos ligados a
memória é Michael Pollak. Ele usa os conceitos do autor anterior, entretanto reconhece
que a memória é um campo de disputas pelo espaço social, por envolver a identidade de
grupos construindo um passado, reduzindo distâncias e resignificando sentimentos em
prol de uma memória em comum, o que ele chama de enquadramento (p.9). Destaca a
história oral como importante ferramenta para registrar a memória das consideradas
minorias, categorizando os tipos de memórias existentes.

APONTAMENTOS HISTÓRICOS SOBRE O SURGIMENTO DO ISLÃ


No artigo “A Terra Santa e o Histórico conflito entre as religiões monoteístas”,
Proença menciona que Muhammad ibn Abdallah, conhecido em português como
Maomé, nasceu na cidade de Meca, no ano de 570 d.C. Meca fica localizada na Arábia
Saudita, é considerada lugar sagrado para os muçulmanos. Nas orações diárias o fiel se
volta na direção de Meca e um dos pilares da religião é a peregrinação dos devotos –
que possuam condições financeiras e circunstancias – para a cidade em questão, pois é
lá que se encontra a Caaba, prédio quadrado que abriga a pedra negra, supostamente
parte do primeiro templo a Deus, (DEMANT, 2013; p. 393) descrita como o local de
adoração.
Sobre o período anterior ao Islã, Denis Ricardo Carloto, em sua dissertação de
mestrado “O espaço de representação da comunidade árabe-muçulmana de Foz do
Iguaçu-Pr e Londrina-Pr: da Diáspora à Multiterritorialidade”, afirma que Meca, era um
centro comercial conturbado pela diversidade étnica e religiosa “O centro do mundo
para seus cidadãos, um centro sagrado para toda a Arábia pagã; entreposto central para

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as caravanas que cruzam a Arábia com os lucros do comércio, assim como uma feira
movimentada pelos comerciantes locais.” (ROGERSON apud CARLOTO, 2007, p.68).
Proença (2002) mostra que o termo islam pode ser traduzido como “submissão”
e está associado à vontade de entregar-se do devoto, decisão de submeter-se à vontade
divina. Sabe-se pouco sobre a vida de Maomé antes da revelação em 610 d.C.; as
informações encontradas são que ficou órfão ainda criança e que foi criado por seu tio,
tendo uma vida cheia de privações. Começou a trabalhar como administrador dos bens
de uma rica viúva chamada Khadija, com quem se casou em 595, tendo vinte e cinco
anos de idade. Khadija tinha quarenta e cinco anos de idade e sobre a união é relatado
pelos religiosos islâmicos que:

Foi um casamento por amor desde o início. Maomé não fez uso da
riqueza de Khadija (a não ser para alimentar os pobres) e continuou
com sua vida simples e sua atividade de mercador. Sua esposa era
também sua confidente e amiga mais íntima, e compartilhava seus
anseios espirituais. Em tempos difíceis ou de ansiedade, Maomé
voltava-se primeiro para Khadija em busca de apoio (ROGERSON
apud CARLOTO, 2007, p.72).

Após se tornar mercador viajou até a Síria, onde conheceu e sofreu influencia do
monoteísmo - crença em um único Deus - (PROENÇA; 2002). O historiador Peter
Demant (2013) afirma que tribos judaicas e cristãs eram encontradas ao norte da
Península Arábica, mais próximas da Síria e á Palestina. Por volta dos 40 anos de
idade, Maomé afirmou ter tido uma visão do anjo Gabriel, transmitindo-lhe um recado
de Deus, começando a receber a partir daí uma série de revelações, que vão de 610 a
632 d.C. No islã, Maomé é considerado o Profeta ou Mensageiro de Deus e essas
revelações deram origem ao Al-quran ou Quran (Alcorão ou Corão) que significa
“Recitação”, considerado o livro sagrado da religião, que para os muçulmanos
simboliza a manifestação da vontade de Allah (Deus) para o povo árabe. O livro é o
manual de vida muçulmana.
Demant aponta que a compilação das revelações aconteceu trinta anos após a
morte do profeta, devido à grande expansão da religião no período. Em sua cidade natal
houve resistência por parte da elite comercial aos seus ensinamentos monoteístas, pois a
mesma tinha como fonte de renda o turismo religioso, levando a perseguição do

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pequeno grupo de seguidores. Isto ocasionou o deslocamento para a antiga Yathrib ou


Iatreb, que passou a ser conhecida como al-Medina (a cidade), localizada a 300
quilômetros ao norte de Meca. A fuga deu início ao calendário muçulmano e é chamada
de hijra (migração). Em Medina, continuou sua missão e conquistou muitos seguidores,
conforme apontado:

Em Medina, Maomé ainda teve de enfrentar forte oposição, que


resultou em algumas lutas ferozes. Porém, com o tempo, os seguidores
de Maomé, os muslimin (submetidos, origem da palavra muçulmanos)
impuseram sua superioridade militar. O Profeta pôde então
reorganizar Medina como a primeira comunidade a viver sob as leis
muçulmanas. De fato, seria o primeiro Estado muçulmano, ainda que
pequeno. Os derrotados foram expulsos, exterminados ou convertidos,
enquanto os novos fiéis se comprometeram a realizar uma guerra de
expansão do islã. Desse modo, a maioria das tribos foi devidamente
integrada à comunidade muçulmana, ainda durante a vida do Profeta,
que insistiu em substituir as tradicionais solidariedades tribais por
religiosas. Assim, Maomé transformou-se de pregador desprezado, em
líder político e militar. Seu poder crescente levou um número cada vez
maior de tribos a se aliar a ele e a aceitar a nova fé. Logo os
muçulmanos derrotaram os coraixitas de Meca, que abriram as portas
da cidade para o filho rejeitado. Maomé limpou a Caaba de todas as
deidades pagãs, mas não afastou a posição central de sua cidade natal
(outorgando inclusive altas posições a recém-convertidos da elite
coraixita, o que desconcertou alguns seguidores veteranos). Pouco
antes de morrer, o Profeta ainda fez uma peregrinação a Meca, lugar
doravante dedicado ao Deus único (DEMANT, 2013, p. 26).

Proença (2002) afirma que a fuga para Medina, em 622, foi impulsionada por
conflitos econômicos. Muhammad tinha convicção de que havia sido escolhido para
restaurar a fé do povo muçulmano e pouco depois de terminar o registro da revelação
em 632, ele morre, mas antes, Meca e grande parte da Arábia haviam sido convertidas.
Após sua morte, o islã passa a ser liderado pelos khalifas, que significa “deputado” ou
“sucessor”, tendo como principal objetivo fazer com que os homens conhecessem a
mensagem inspirada e reconhecessem que Allah é o único Deus e que Muhammad é seu
profeta, para alcançar esse objetivo:

(...) formaram-se exércitos árabes, pois a verdade do Islã deveria ser


propagada, ainda que para isto fosse preciso o auxílio da espada.

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Iniciava-se, desta forma, o que viria a se configurar em guerra santa.


Em pouco mais de um século de existência, o Islamismo já havia feito
grandes conquistas religiosas e territoriais. Uma delas foi Jerusalém,
com seus lugares sagrados, invadida e dominada pelos árabes no ano
638, sob a liderança religiosa do califa Omar. Dois anos depois, com a
conquista de Cesaréia e Gaza, toda a região estava sob o domínio do
Islã. No início, não houve perseguição nem a cristãos nem a judeus
que habitavam a Terra Santa pelo fato de serem também monoteístas
(PROENÇA; 2002, p.7).

Como não houve indicação feita por Maomé de quem o sucederia, durante o
califado surgiu duas tendências: a minoritária considerava que a linhagem profética
deveria ser mantida entre familiares do profeta, no caso seu genro chamado Ali ibn Abi
Talib. A outra vertente defendia que qualquer fiel poderia assumir o posto, desde que a
comunidade o aceitasse. Entre os anos de 632 e 661 ocorreram várias sucessões e a
conquista de diversos territórios, inclusive alguns localizados fora da península. Com a
expansão e consequente exploração desses locais ocupados pelo islã, alguns clãs árabes
passaram a deter essas riquezas, acarretando diferenças de renda cada vez maiores e
competições pelo controle do despojo (DEMANT, 2013; p.38). Das disputas surgem
duas ramificações principais – e delas outras subdivisões - a xia (shi’a) que defende a
sucessão hereditária, que se opuseram durante o califado de Mu’awiyya, sucedido por
seu filho, fazendo eclodir uma rebelião dos xiitas, que por sua vez foram vencidos,
sendo então consolidada a supremacia dos omíadas que reestabeleceram a tradição, ou
sunna, fazendo do sunismo a ortodoxia conformista.
Durante o século XIV o Oriente Médio é castigado por guerras civis e
pandemias, inclusive pela peste negra, ocorre declínio demográfico maior que o sofrido
na Europa. No século seguinte há o ressurgimento desse mundo muçulmano, mas com a
rigidez marcada do Islã. O império Otomano – 1281 a 1924 – implanta a supremacia
sunita, tendência predominante atualmente, foi esse poder não árabe que unificou o
Oriente Médio e devido a fatores econômicos declina após a Primeira Guerra Mundial
(DEMANT, p.55-57).
Carloto (2007) descreve que a diáspora dessa população é um princípio de sua
própria constituição e discorre sobre as imigrações muçulmanas ocorridas para Europa e
para o continente Americano. Afirma também que mesmo com a vinda dos negros que
professavam a fé islâmica, devido o regime escravocrata decorrente, é apenas no século

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XX que a história do Islã começa nas Américas. Mesmo não havendo um censo oficial,
o autor apresenta uma estimativa de libaneses que residem no Líbano em comparação
aos outros países/continentes, é notório que vivem mais libaneses na América do Sul do
que no próprio país, segundo informações coletadas pela Câmara de Comércio Brasil-
Líbano no início de 2007 e disponibiliza a tabela com o número de libaneses residentes
no Líbano e demais países/continentes, observamos que:

O ISLÃ NO BRASIL
No Brasil, vale ressaltar que no século XIX - durante o Período Regencial - mais
especificamente em 1835, ocorreu o Levante do Malês, na cidade de Salvador, que
mobilizou negros islamizados, que foram escravizados. Conforme estudos feitos pelo
historiador João José Reis, em sua obra O levante dos Malês em 1835, o episódio
ocorreu na madrugada de 25 de janeiro, quando cerca de 600 homens, oriundos da
África, organizaram a revolta como movimento político, pois o grupo desejava tomar o
governo baiano. Entretanto, o plano rebelde foi delatado antes de ser colocado em
prática. Os malês (a expressão malê deriva da língua ioruba e significa muçulmano)
insatisfeitos com a imposição do culto católico, desejavam estabelecer uma monarquia
na Bahia. O autor informa que esses homens, por medo dos castigos que sofriam,
“aceitavam” o catolicismo e o batismo, porém secretamente praticavam ritos e costumes
islâmicos. A revolta seria uma tentativa de resistir à Igreja Católica e o governo, que
após perceber a capacidade de organização desse grupo proibiu a manifestação de
qualquer fé que não fosse o catolicismo. Um dos fatores que facilitou a organização do
grupo rebelde foi o fato de falarem a língua árabe.
Luiza Horn Iotti, no artigo “Imigração e Colonização”, fala sobre a política
imigratória e colonizadora adotada pelo governo brasileiro e rio-grandense entre os anos

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de 1822 a 1915. Nesse período foram concedidas autorizações e facilidades para o


processo, com intuito de que os estrangeiros escolhessem o Brasil a outros países. Seus
registros apontam que os anos de 1911 e 1913 tiveram maior fluxo imigratório e que
uma queda considerável ocorre no ano seguinte por causa da guerra. Nas tabelas de
imigração apresentadas por Carloto (2007), percebemos que inicialmente não há
diversificação da origem desses muçulmanos, todos são classificados como turcos, mas
em 1908 surge classificação especifica dos imigrantes procedentes da Síria e para os
vindos do Líbano a atribuição aparece apenas em 1926, então podemos considerar que:

(...) parte descende dos imigrantes árabes vindos particularmente do


Líbano e da Síria no primeiro terço do século XX. Distribuídos em
todo o território nacional, estes têm forte presença em São Paulo.
Detalhe: o Brasil acolhe a maior comunidade de descendentes
libaneses no mundo – existem hoje mais libaneses no Brasil do que no
Líbano, alias majoritariamente cristão, mas há entre eles também
muitos muçulmanos (DEMANT, 2013, p. 188).

Peter Demant aponta que atualmente a comunidade muçulmana brasileira pode


chegar a um milhão de fiéis. Estima-se que metade esteja situada em São Paulo e o
restante se concentre no Paraná, Rio de Janeiro e Santa Catarina. No estado do Paraná
as cidades que possuem as comunidades Islâmicas de maior destaque, são as cidades de
Foz do Iguaçu, Curitiba, Maringá e Londrina. A primeira tem uma das maiores e mais
representativas comunidades do país, além de abrigar a maior mesquita da América
Latina.
O desenvolvimento econômico do Sudeste com ciclo da borracha e o cafeeiro,
entre os anos de 1918 a 1950, leva os libaneses a se estabelecerem nessa região
(EMBAIXADA DO LÍBANO NO BRASIL, 2014). Uma exposição comemorativa do
aniversário da cidade de Londrina, chamada “O povo que fez e faz Londrina” (2004),
organizada e catalogada pelo Museu Histórico Pe. Carlos Weiss informa que a
contribuição do imigrante libanês, no então Patrimônio Três Bocas, começa em 1933,
quando José Jorge Chedid abre um açougue na região, depois que foi contratado para
fornecer carne bovina aos trabalhadores da construção do trecho da ferrovia entre
Cornélio Procópio - Jataí – Londrina.
Concluindo este artigo, acreditamos na relevância de trabalhos como esse para a
historiografia local, pois podem contribuir para a inserção dos diversos agentes que

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participam da constituição do cenário londrinense. Entretanto como se trata de um


trabalho em andamento, as questões específicas estão sendo desenvolvidas através do
acompanhamento dos rituais e de entrevistas realizadas com membros da diretoria e da
comunidade da Mesquita Rei Faiçal, construída em 1968. Vale ressaltar que a mesquita
em Londrina foi a segunda construída em território brasileiro, fato que denota sua
relevância histórica. Outras fontes que serão usadas no trabalho, ainda em andamento,
são dois Estatutos da Sociedade Muçulmana de Londrina e Norte do Paraná, o primeiro
documento criado no dia 11 de julho de 1968 e vigorou até 2006, ano em que foi
constituído o novo documento em vigor até o momento.
Ao final, desejamos identificar as memórias em disputa dentro da comunidade
islâmica, assim como articulam sua história e as memórias existentes para firmar sua
identidade.
REFERÊNICIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANNADUY, Abul Hassam O islam e o mundo. São Bernardo do Campo: Centro de
Divulgação do Islam para a America Latina, 1990.
DELUMEAU, Jean. As grandes religiões do mundo. Lisboa: Editorial Presença, 1999.
DEMANT, Peter. O mundo muçulmano. São Paulo: Contexto, 3ª ed. 2013.
EMBAIXADA DO LÍBANO NO BRASIL. Disponível em
<http://www.libano.org.br/olibano_hist_migracao.html>. Acessado em Nov de
2014.
GORDON, Matthew S. Conhecendo o Islamismo: origens, crenças, práticas, textos
sagrados, lugares sagrados. Tradução Gentil Avelino Titton. Petrópolis, RJ: Vozes,
2009.
HERMANN, Jacqueline, História das Religiões e Religiosidades; In: Domínios da
História: ensaios de teoria e metodologia - Rio de Janeiro: Campus, 1997.
IOTTI, Luiza Horn (org.) Imigração e colonização: legislação de 1747-1915. Porto
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LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas, SP: Ed. Unicamp, 4ª Ed. 1996.
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08 de Ago. 2013
PROENÇA, Wander de Lara. Terra Santa: O histórico conflito entre as religiões
monoteístas. Revista Voz no Deserto. Londrina, Dez., 2002.

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________. Sindicato de mágicos: uma história cultural da Igreja Universal do Reino de


Deus. São Paulo: Editora Unesp, 2011.
REIS, João José. A Revolta dos Malês em 1835. Disponível
em: http://www.educacao.salvador.ba.gov.br/documentos/a-revolta-dos-males.pdf>
Acesso em Maio de 2015.
SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. História oral. In: Dicionário de
Conceitos Históricos. São Paulo: Contexto, 2006.
VAINFAS, Ronaldo. História das Mentalidades e História Cultural. In: Domínios da
História: ensaios de teoria e metodologia - Rio de Janeiro: Campus, 1997.

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ARQUEOLOGIA, E O ENTRELAÇAMENTO ENTRE TEMPO,


HISTÓRIA E DISCURSO
Ms: Pedro Ragusa 263.
Orientador: Dr: Hélio Rebello Cardoso Junior.
Unesp-Assis.

PALAVRAS-CHAVE: TEORIA DA HISTÓRIA, ARQUEOLOGIA DO SABER, METODOLOGIA

Uma retomada de Michel Foucault com um retorno á A Arqueologia do Saber


(FOUCAULT, 2007) seria parte de um anacronismo? Creio que não. Primeiro, porque esse
retorno significa vencer uma postura acadêmica, para não falar em modismo, que os estudos
genealógicos suscitaram na academia. Outra dificuldade é o próprio entendimento em conjunto
da obra arqueológica, que em certa medida foi ofuscado pela rapidez de produção e divulgação
dos trabalhos genealógicos posteriores a 1969 (ano de publicação da Arqueologia do saber) e
que talvez tenham provocado algum certo atropelo e desinteresse a compreensão da fase
anterior.
O objetivo deste texto é retomar a interpretação foucaultiana sobre a história a partir da
arqueologia e assim propor um estudo sobre a constituição e o funcionamento da pesquisa
arqueológica de Michel Foucault no campo da história a partir das noções de tempo e
descontinuidade, tendo como principal fonte para esse estudo seu último trabalho da “fase”
arqueológica intitulado: A Arqueologia do saber.
Podemos de saída afirmar que a posição de Foucault diante da história é muito variável.
Isso em função de este ser um filósofo da história que estabelece uma nova relação com a
história. Mas como assim? É pensamento corrente entre os comentadores da obra de Foucault, e
aqui podemos citar a título de exemplo Roberto Machado 264, que o pensador francês vai na
contra-mão das tradições filosóficas e historiográficas de seu tempo com sua pesquisa
arqueológica pela seguinte situação; Nas histórias arqueológicas encontramos uma importante
novidade metodológica, sendo esta novidade a fusão entre a ontologia (campo da filosofia
preocupado com a discussão sobre o ser e essência da realidade, ou seja, aquilo que não se
transforma, a identidade verdadeira dos objetos, o imutável) e a história (como narrativa da
transformação temporal do real a partir da descontinuidade). Pode-se notar a contradição que se

263
Doutorando na UNESP-ASSIS. Anteriormente fez graduação, especialização e mestrado na
Universidade Estadual de Londrina. Bolsista CAPES-CNPq.
pedroragusa@yahoo.com.br. : http://lattes.cnpq.br/9409263650994048
264
Roberto Machado é professor no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS/UFRJ), no Brasil
possui diversas publicações sobre a obra de autores como Michel Foucault, Gilles Deleuze e Friedrich
Nietzsche, entre eles: Foucault a filosofia e a literatura; O nascimento do trágico; Zaratustra, tragédia
nietzschiana; Foucault a Ciência e o Saber, todos publicados por Jorge Zahar Editor.

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manifesta, temos um curto-circuito filosófico, pois ontologia e história são discursos que a
princípio se manifestam de forma excludente, o que oferece a pesquisa arqueológica um caráter
singular. Nesse sentido ao pensarmos na arqueologia foucaultiana como prática historiográfica –
filosófica já devemos ter em mente que o método arqueológico não é fixo, e que também não
procura estabelecer ou iluminar os acontecimentos discursivos como verdades para além dos
tempos, encontrando no passado uma realidade objetiva, que possa ser plasmada em uma
narrativa.
A partir disso podemos entender que as histórias arqueológicas não possuem algo como
um método unitário ou uma prática operacional homogênea que se possa traduzir sob a condição
de uma unidade metodológica de pesquisa, mas ao contrário disso, a arqueologia em sua
trajetória estabelece filiações com áreas díspares tal qual o estruturalismo e a hermenêutica.
Torna-se importante logo de início deixar claro que quando falamos sobre a arqueologia
nesse momento estamos usando como fio condutor o livro A Arqueologia do Saber, isso
significa que estamos tomando por referência justamente o último trabalho de Foucault nessa
fase, assim, estamos deixando de lado toda uma trajetória dessa pesquisa que pode ser
encontrada em outros trabalhos do autor.
Para Roberto Machado a arqueologia não procura descrever os discursos das disciplinas
científicas em sua relação com as verdades que estes discursos podem revelar, mas procura
descrever seus limiares, suas rupturas, seus limites e pontos de cruzamento, o que Foucault
chama de um “emaranhado de interpositividades” (FOUCAULT, 2007, p. 182). Dessa forma
podemos aceitar que na prática operada por Foucault a arqueologia estaria em uma nova região
do conhecimento, e não compreender isso como ponto de partida é arriscar ao erro qualquer
investigação sobre a arqueologia.
Roberto Machado comenta sobre isso contrapondo à história arqueológica a história
epistemológica, escrevendo que a arqueologia seria um deslocamento da ciência para o saber em
relação à epistemologia, que se situaria na descrição das ciências e suas verdades.

[...] A arqueologia, reivindicando sua independência em relação a


qualquer ciência, pretende ser uma crítica da própria idéia de racionalidade;
enquanto a história epistemológica, situada basicamente no nível dos
conceitos científicos, investiga a produção de verdade pela ciência, que ela
considera como processo histórico que define e aperfeiçoa a própria
racionalidade, a história arqueológica, que estabelece inter-relações
conceituais no nível do saber, nem privilegia questão normativa da verdade,
nem estabelece uma ordem temporal de recorrências a partir da racionalidade
científica atual (MACHADO, 2006, p. 9.)

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Então a “singularidade” do método arqueológico estaria em ser este um contra-


método histórico e científico? Não podemos afirmar se Foucault tinha tal esta pretensão, mas é
possível pensarmos que quando foram realizadas as pesquisas arqueológicas, Foucault não
procurava definir um novo “estatuto” ou um “espaço” para uma nova ciência. A arqueologia
percorre os limites entre as ciências do homem justamente para problematizar a pretensão à
verdade do discurso científico moderno.

Arqueologia, Tempo e História

A partir dessa breve introdução sobre o tema do texto, vamos entrar em nosso primeiro
problema, no momento discutir a ideia de tempo para Foucault. Podemos partir de uma
afirmação básica, a de que o filósofo possui uma interpretação singular sobre o tempo. Para ele
o tempo não possui um sentido com fim destinado, também não é uma unidade com um fim
programado a se resolver numa continuidade progressiva, mas ao contrário, o tempo pode ser
conceituado como uma categoria de caráter múltiplo, isso significa que não existe somente um
regime de percepção temporal para expressar experiência humana, como também um único
esquema temporal para definir a organização de uma ciência como no caso da história.
A noção de tempo para uma história arqueológica pode ser representado como a
metáfora de uma sopa fervendo num caldeirão, nunca saberemos onde irá emergir a próxima
bolha, não há inteligibilidade que possa fazer um diagnóstico sobre uma suposta ordem ou razão
dos acontecimentos a partir de uma sucessão cronológica. Assim como não há inteligibilidade
para os acontecimentos, não existe uma continuidade lógica na emergência de bolhas a ferver,
assim como não há uma lógica temporal na vida humana, na história e no sentido do tempo seja
linear ou cíclico. Essa noção de tempo enquanto descontinuidade desdobra-se na idéia de
história que é tão cara para os trabalhos de Foucault na arqueologia.
Pois a história está em “camadas sedimentares”, estratos ou formações discursivas,
feitas de coisas e palavras, (enunciados) daquilo que se vê e que se fala. E essas camadas são
caracterizadas pela ruptura, pela disjunção e pela diferença. Agora temos um problema, falamos
sobre palavras novas, que atuam como conceitos muito precisos que acabam por compor a
maquinaria conceitual na linguagem empregada por Foucault. Mas então, o que são formações
discursivas e enunciados?
Para melhor entendermos a noção de tempo, história e descontinuidade na arqueologia
se faz necessário conhecer com maior precisão esses dois conceitos que foram apresentados e
discutidos pelo próprio autor na Arqueologia do Saber, depois desse esclarecimento retornarmos
ao debate entre arqueologia e história.

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Vamos começar pelo conceito de enunciado. O enunciado é uma função, então, qual sua
condição de existência? Em seu modo de ser singular (nem inteiramente linguístico, nem
inteiramente material), para a arqueologia trata-se de entender a função enunciativa. A
arqueologia possui já no início de sua prática uma tarefa “negativa”, ou melhor, precisa
distanciar-se de certas categorias tradicionais com as quais a literatura e a história das ideias tem
seu fundamento, como nas categorias de autor, obra, comentário, livro e sujeito.
Isso significa estabelecer as condições segundo as quais essa função pode aparecer nas
diversas unidades do discurso, como a ciência, literatura e ou economia, (quando essas unidades
existem). Assim o método arqueológico procura conhecer e descrever o exercício dessa função,
as condições, regras de controle e formação, e o espaço no qual ela pode existir. O enunciado
pode ser entendido como a unidade elementar do discurso, constituído por uma singularidade
que o individualiza temporalmente, também constituído por sua repetição (sentido), o enunciado
assume a condição de função dentro da estrutura discursiva. O enunciado pode ser descrito a
partir de oposições com outras modalidades de unidades discursivas, como proposição, frase e
atos de fala.
O enunciado torna-se uma frase, uma proposição e ou um ato de fala, justamente por
existir enquanto função enunciativa, assim o fato do enunciado ser produzido por um “sujeito”
em um lugar institucional e contextualizado por regras sócio – históricas que o definem e
tornam possível que o enunciado seja “enunciado”. Então a descrição arqueológica pode
analisar o exercício da função enunciativa a partir de suas regras de controle e de suas condições
de produção e exclusão de enunciados. Mas esse problema desdobra-se em outro mais
fundamental ainda para a arqueologia.
O problema não é somente identificar quais as regras que possibilitaram a formação de
enunciados, mas o como aconteceu (enunciado enquanto acontecimento discursivo) de
determinado enunciado ter aparecido e nenhum outro em seu lugar. A arqueologia não vai
procurar o sentido, ou a intenção do “sujeito” falante, a análise arqueológica não remete os
enunciados a uma instância fundadora e original para seu sentido, significação e inteligibilidade.
Neste momento a descrição arqueológica remete os enunciados analisados a outros enunciados
para demonstrar suas correlações, exclusões e transformações.
Nos escritos foucaltianos o conceito de formações discursivas aparece pela primeira vez
no artigo “Sur l’archeoologie dês sciences. Response au Cercle d’Epistemologie” de 1968, mas
foi na Arqueologia do saber, que o autor explorou com precisão esse conceito. O conceito de
formação discursiva refere-se a um conjunto de enunciados, todavia não se trata de qualquer
enunciado, são considerados os atos discursivos sérios, isto é, aqueles que manifestam uma
vontade de verdade. Toda formação discursiva constitui-se por grupos de enunciados, que

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tornam possível a formação de um conjunto composto por performaces verbais (espécie de


estrutura discursiva), que relacionam-se e estão ligadas ao nível dos próprios enunciados.
A análise arqueológica ao analisar os enunciados deve necessariamente levar em conta a
dispersão (singularidade, raridade) e a regularidade (repetição), em que se produzem os
enunciados dentro de uma formação discursiva, simplesmente pelo fato do enunciado existir
nessa relação que constitui sua “ontologia”.
Se aceitarmos isso como válido podemos fazer uma curva e desdobrar nosso estudo em
um paradoxo. Quando a arqueologia descreve um conjunto de enunciados no espaço do qual ele
habita (formações discursivas), o que esta sendo feito é demonstrar uma dispersão de sentidos
que é produzida a partir de regularidades discursivas, que Foucault chamou de “regras de
formação”. As regras de formação (veremos adiante com maior fôlego seu funcionamento)
referem-se a uma “ordem” que torna possível o aparecimento de determinado enunciado e de
nenhum outro em seu lugar, estabelecendo correlações, posições, funcionamento e
transformações discursivas. Os enunciados existem como “formas de repartição e sistemas de
dispersão”.
Esses enunciados não se reduzem a objetos lingüísticos, tal como proposições, atos de
fala e frases, mas sim a enunciados singulares e submetidos a uma mesma forma de regularidade
e dispersão de elementos enunciativos, como por exemplo, uma ciência, uma teoria, documentos
jurídicos etc. Quando esses enunciados sérios estabelecem uma rede de relações com
enunciados de outros tipos e são condicionados por um conjunto de regularidades internas,
constitui-se um sistema relativamente autônomo que Foucault denominou de formação
discursiva.
Isso se torna possível quando descrever um conjunto de enunciados no que eles
possuem de singular é também descrever a dispersão desses sentidos, demonstrando haver uma
ordem uma suposta regularidade em seu aparecimento, funcionamento, correlação e
transformação. E internamente neste sistema é produzido um conjunto de regras, as quais
definem o exercício e o sentido dos enunciados que o constituem. Podemos então afirmar que é
a formação discursiva em si mesmo que funciona como uma lei de série, princípios de dispersão
e de repartição de enunciados que possibilitam definir as regularidades que validam os
enunciados que a constituem.
Para Maria do Rosário Gregolin em seu livro “Foucault e Pechaux na análise do
discurso; diálogos e duelos”, essas regularidades por sua vez, instauram os próprios objetos
sobre os quais discursam, oficializam os sujeitos legítimos para enunciarem sobre esses objetos,
e definem os conceitos com os quais funcionará os jogos e estratégias para formação de
verdades.

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O que ele descreve como formação discursiva constitui grupos de


enunciados, isto é, um conjunto de performaces verbais que estão ligadas no
nível do enunciado. Isso supõe que se possa definir o regime geral a que
obedecem seus objetos, a forma de dispersão que reparte regularmente aquilo
de que falam, o sistema de seus referenciais; supõem, também, que se defina
o regime geral ao qual obedecem os diferentes modos de enunciação, a
distribuição possível das posições subjetivas e os sistema que os define e os
prescreve. (GREGOLIN, 2006, p. 90.)

O que significa dizer que para o filósofo o que permite a garantia de uma suposta
unidade para o discurso sobre a loucura, por exemplo, não corresponde a uma linearidade
formal, semântica e sintática. Pois a suposta unidade do discurso somente pode existir na
condição da diversidade e de dispersão de instancias enunciativas simultâneas, como
documentos de protocolos experimentais, regulamentos administrativos, políticas públicas de
saúde de controle patológico.
A noção de formação discursiva permite então fazermos uma ponte entre o problema do
tempo e da descontinuidade na história com a noção de singularidade do enunciado. Podemos
perceber que o método arqueológico encontrou no “território” da história o lugar para a
existência das formações discursivas, pois nelas se encontram o discurso, o sujeito, sentido e as
práticas. Se encararmos o problema da descontinuidade histórica iremos logo perceber que esta
noção é ao mesmo tempo para o método arqueológico um conceito, uma pratica operacional e o
resultado da descrição, assumindo o papel de objeto e instrumento para a pesquisa.
A descontinuidade histórica permite a anulação da categoria do sujeito universal, que
teve todo seu passado devolvido a sua consciência presente por meio da busca da identidade
histórica, com ela é possível ir além, e rejeitar os objetos históricos e naturais que atravessam o
tempo contínuo. Essa noção de tempo submete o homem a multiplicidades temporais que o
impedem de ser sujeito, pois essas diversas temporalidades escapam ao controle do homem,
tornando-o objeto de acontecimentos que lhe são exteriores.
A idéia de sujeito permite a consciência do homem que lhe seja recomposto todo um
passado continuo (consciência história) na relação passado – presente. Então consciência do
sujeito moderno necessita do tempo continuo para possuir existência e funcionar, mas não a
História nas palavras de Foucault.

A história contínua é o correlato indispensável a função fundadora


do sujeito: a garantia de que tudo que lhe escapou poderá ser devolvido; a
certeza de que o tempo nada dispensará sem reconstituí-lo em uma unidade
recomposta; a promessa de que o sujeito poderá, um dia – sob a forma de
consciência histórica -, se apropriar, novamente, de todas essas coisas

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mantidas a distancia pela diferença, restaurar seu domínio sobre elas e


encontrar o que se pode chamar sua morada. Fazer da analise histórica o
discurso do continuo e fazer da consciência humana o sujeito originário de
todo o devir e de toda prática são as duas faces de um mesmo sistema de
pensamento. O tempo é ai concebido como sistema de totalização, onde as
revoluções jamais passam de tomada de consciência. Sob formas diferentes,
esse tema representou um papel constante desde o século XIX: proteger,
contra todas as descentralizações, a soberania do sujeito e as figuras gêmeas
da antropologia e do humanismo. (FOUCAULT, p, 14. 2007)

Esse descentramento do sujeito (homem), com o seu fim anunciado em As Palavras e as


Coisas como a dissolução de um rosto na areia, possibilita a nós estabelecermos essa relação
com a temporalidade. Uma história que é plural e múltipla por suas rupturas, mas que também é
sempre singular em seus acontecimentos que envolvem o homem e possibilitam suas praticas
por condições exteriores.

A unidade temporal então é apenas ficcional: não obedece a


necessidade alguma história pertence apenas ao registro do aleatório, da
contingência, como em Levi Strauss; ela é ao mesmo tempo inevitável e
insignificante. No entanto, ao contrário do estruturalismo de Levi Strauss,
Foucault não se esquiva da historicidade, chega a considerá-la campo
privilegiado de analise, lugar por excelência de sua pesquisa arqueológica,
mas para detectar as descontinuidades que a elaboram a partir de grandes
fraturas que justapõem cortes sincrônicos coerentes. (DOSSE, p, 208. 2001)

A desnaturalização dos objetos históricos pode ser demonstrada com o fim das unidades
temporais. A arqueologia opera essas análises sobre a prisão, o corpo e a medicina, na intenção
de demonstrar que essas palavras não cobrem realidades existentes para além dos tempos sob a
forma de essências.
E quando a narrativa é escrita na perspectiva da reconstituição das continuidades, a
narrativa histórica tem como “missão”, tapar os buracos e dar sentido as lacunas documentais e
temporais (criando uma unidade elementar na relação passado – presente, esse elemento pode
ser político, social, militar, demográfico, etc.) obturando as rupturas, e apontando as
transformações históricas dentro de um quadro de causalidades. Enquanto que as histórias
arqueológicas, escritas a luz da descontinuidade tornam possível traçar os limites do objeto de
estudo descrevendo-o a partir de seus pontos de ruptura, de seus limiares. Esses objetos não
possuem funções a priori, ou que sejam legadas do exterior das práticas sociais que os
constituem. Cada instituição (objeto) deve ser sempre interpretada em sua singularidade de
acontecimento histórico.

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Em primeiro lugar são as praticas que definem as diferenças


históricas que geralmente aparecem reificadas, como o Estado ou a Ideologia.
Em segundo lugar, as praticas são descrições de configurações históricas
determinadas, ou seja, não são uma instancia a parte que seja explicada de
maneira diversa da de suas objetivações. (CARDOSO JUNIOR, 2003, p.20)

O discurso sobre a história torna-se então o resultado de lutas, embates, arbitrariedades


e multiplicidades para sua condição enquanto história no tempo. Por isso se tornou lugar
comum dizer na historiografia atual, que o pensamento de Foucault provocou um abalo
significativo sobre os métodos de se praticar a escrita da história. Pois ao contrário da história
tradicional a arqueologia, convém lembrar, distancia-se radicalmente das histórias que
conhecemos na cultura ocidental 265. Isso se deve ao fato de Foucault ser tributário de uma
herança teórica sobre o tempo e a história que, desde as primeiras décadas do século XX vem
contestando certa forma de história, sendo essas críticas direcionadas principalmente a história
das ciências. Dessa forma Foucault se insere em certa tradição histórico – filosófica que vai de
Heráclito 266 a Bachelard e Canguilhem. 267
A história arqueológica procura descrever a emergência do discurso em sua dimensão
de acontecimento, ou seja, por mais que sejam semelhantes, cada texto, cada fala, cada palavra
por mais que se aproximem e se pareçam de outras palavras e textos, nunca são idênticos aos
que o precedem, daí a singularidade dos acontecimentos discursivos na história. A arqueologia
torna possível compreender a emergência dos acontecimentos discursivos, investigando as
condições sociais e históricas que contextualizaram e possibilitaram sua existência material.
Assim investiga-se por que determinado enunciado foi enunciado, e nenhum outro em seu lugar,
o que possibilitou um enunciado ter correspondência com a verdade e se instituir como tal
dentro das relações discursivas que o possibilitam.
Mas devemos ter cuidado com a palavra verdade. A arqueologia não reivindica para si a
condição de disciplina científica e autônoma, dessa maneira, entendemos que Foucault não
procurou aplicar nenhuma forma de positividade objetiva para a história ao modo científico.
Mas o que interessa a arqueologia são as descontinuidades temporais, evidenciando as
mudanças e deslocamentos que regulam as produções de verdades no jogo das práticas
discursivas.

265
É recomendável a esse respeito à leitura do texto de Paul Veyne, Foucault Revoluciona a história,
publicado no Brasil pela editora da UNB
266
Infelizmente por uma questão de fôlego para a escrita desse artigo não poderemos nos aprofundar
nesse debate sobre a filiação do pensamento de Foucault sobre o tempo a partir da influência de Heráclito.
267
Sobre esse tema também recomendamos a leitura do texto de Roberto Machado, Foucault a Ciência e
o saber, publicado pela editora Jorge Zahar.

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Ainda podemos pontuar que a análise arqueológica quando trabalha como descrição dos
discursos não deve se fechar no interior do próprio discurso, mas ao contrário deve articular o
acontecimento discursivo com o acontecimento não discursivo, dessa forma não se fica somente
no nível do discurso mesmo sendo este o objeto de análise da arqueologia, deve-se buscar
estabelecer uma relação com acontecimentos de outras ordens sejam elas sociais política,
econômica e técnicas. Estamos então diante da conclusão que a análise arqueológica tematiza os
discursos pelas suas regras de formação demonstrando a formação discursiva e definindo o
discurso como um conjunto de enunciados, portanto é nesse sentido que a análise arqueológica é
uma descrição dos enunciados.
Portanto consideramos que a pesquisa arqueológica foucaultiana situa-se na definição
dos enunciados discursivos em suas especificidades temporais, demonstrando assim, como os
discursos sobre os objetos se transformam temporalmente de acordo com a vontade de saber do
período localizado. Finalmente podemos afirmar que a arqueologia não procura por se constituir
como uma ciência, ou propriamente, num campo específico da história, mas sim como um
instrumento de análise histórico discursiva que possa ser operado nas diferentes dimensões da
história, obtendo-se as regras de formação e execução dos discursos do saber de uma
determinada época.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
CARDOSO JUNIOR, Helio Rebello. Enredos de Clio, pensar e escrever a história com Paul
Veyne. São Paulo. Unesp, 2003.
DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2005.
DREYFUS, Hubert L. RABINOW, Paul Michel. Foucault: uma trajetória filosófica:
para alem do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1995.
DOSSE, François. A História a Prova do Tempo. São Paulo. Unesp, 2001.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2007.
______. História da loucura na idade clássica. São Paulo: Perspectiva, 2005.
______. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
______. História da loucura. São Paulo: Perspectiva, 2007.
GREGOLIN, Maria do Rosário. Foucault e Pecheux na análise do discurso: diálogos e duelos.
São Carlos: Claraluz, 2006.
MACHADO, Roberto. Foucault, a Ciência e o Saber. Rio de Janeiro: JZE, 2006.
______. Foucault, a filosofia e a literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.
VEYNE, Paul. Como se escreve a história e Foucault revoluciona a história. Brasília:
UNB, 1998.
VEYNE, Paul. Foucault, Seu Pensamento, Sua Pessoa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2011.

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O SURGIMENTO DO SAGRADO NA CIDADE DE FAXINAL COM


A CAPELINHA DE JOÃO MARIA.
Rodrigo Correa Barboza História.
Thiago Caetano Custódio História
(UEM).
PALAVRAS-CHAVE: CULTURA; MONGE; SAGRADO.

Nesse artigo abordaremos o universo das crenças e religiosidades, presentes na


cultura da cidade de Faxinal-PR para ser mais específico em uma capelinha que leva o
nome de João Maria de Jesus, da qual esse é um religioso que contribuiu
gradativamente para a sociedade e a cultura paranaense, observaremos também o
contexto da Guerra do Pré-Contestado, onde surge a figura de João Maria de Jesus
como monge sendo ele uma pessoa que levava a palavra de Deus ao povo sertanejo,
pois havia uma grande necessidade de evangelização, e sua passagem pela cidade no
final do século XVIII e início do XIX foi importante para esses povos.
A religião é campo de vasto conhecimento nessas práticas religiosas não
reconhecidas pela doutrina católica está nossa fonte de pesquisa. A doutrina dos
Monges no Pré-Contestado é nossa indagação precisamente a do Monge João Maria na
cidade de Faxinal-PR, buscamos entender as práticas e as relações existentes nesta
sociedade principalmente as que ligariam a manifestação da fé em algo que era uma
prática religiosa não institucionalizada pelo catolicismo oficial.
Existia toda uma maneira de pertencer a doutrina do monge, as próprias pessoas
eram dotadas de características peculiares. Os humildes seriam os escolhidos pelo
monge, lembro que sua doutrina tinha como princípio acolher os desprezados pela
população. Assim os sertanejos nesse contexto do Contestado foram às pessoas que
seriam atingidas por essa doutrina do catolicismo rústico.

A perenidade de João Maria no imaginário popular e sua influencia na Guerra


do Contestado estão relacionadas às repetidas aparições deste personagem em
uma extensa região a partir de meados do século XIX. Diferentes indivíduos
assumiram a identidade, criando uma tradição religiosa profunda desde essa
época ao longo do antigo caminho das tropas. (THOMÉ, 2012, pag.26.)

No final do século XVIII, o monge João Maria de Jesus passava pelo Vale do
Ivaí, na cidade de Faxinal-PR para ser específico em uma pequena vila de nome
“Bufadeira da Fonte” que se encontrava na rota do comércio que ligava o norte e o sul

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do Paraná, lugar esse que servia de descanso para aqueles que utilizavam da mesma
estrada. Sabemos que essa região sofria uma escassez de padres pela questão do lugar e
também ser de difícil acesso, desse modo João Maria de Jesus levava a palavra de Deus
e ensinava o povo como deveria de se feito e seguido.

O João Maria “genérico”, encarnado por vários homens era descrito como um
rezador andarilho magro, de barbas brancas, que portava um cajado de
madeira e usava um gorro de pele de jaguatirica. Aconselhava as pessoas a
levar uma vida de correção e justiça e recomendava a proteção de vertentes
de “água santas”. (THOMÉ, 2012, pag.26.)

Segundo o que sabemos quando se passou pela Bufadeira da Fonte, realizou


milagres e curas também fez com que nascesse água e profetizou todos aqueles que
acreditassem na água e tivesse uma prece, ela seria realizada seja ela espiritual ou física,
desse modo ele pediu que levantassem em seu nome uma capelinha, para que o povo
realizasse suas orações. Local esse que atrai pessoas de vários lugares e regiões em
busca de alguma causa e também pagando promessas, levando fotos de familiares e até
mesmo cartas de pedido para o monge.
Diante esse contexto de pré-contestado nos direcionamos pela imagem do
Monge João Maria assim pode-se reconhecer como ele era acolhido pela população
humilde. O fato de sua doutrina despertar o acolhimento desta parte da população
menos favorecida, nos garante uma característica presente nos franciscanos, mas não
devemos confundir o Monge João Maria como um franciscano, ele não tinha nenhum
vínculo com a igreja católica que inclusive condenava sua doutrina.
No nosso contexto de análise podemos notar o papel da qual essa figura popular
exercia na cidade de Faxinal, existe uma forma religiosa manifestada na sua capela. As
contribuições do historiador francês Roger Chartier são essências para entendermos,
essas relações entre o Monge e a comunidade. A devoção que passou a se ter nesse
religioso redefine a produção de meios de fé entorno a figura do Monge João Maria.
É de suma importância também compreender os conceitos presentes na obra: “O
Sagrado e o Profano” do historiador Mircea Eliade, com esse conceito de sagrado nos
direcionamos no meio popular faxinalense. Entender essa sagrado presente nessa
comunidade fez nos pensarmos como o povo cultuava o Monge João Maria, existia uma
conduta que eles utilizavam nessa capela a crença nesse sagrado ainda não
institucionalizado pela doutrina católica é algo encontrado nessa pesquisa.

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Como podemos entender esse choque entre o catolicismo ortodoxo e o


catolicismo rústico utilizado pelo Monge, essa oposição é encontrada nas doutrinas. O
catolicismo oficial cultivava as doutrinas institucionalizadas no Vaticano, já o rústico
utilizava uma doutrina que se voltaria no acolhimento dos humildes aqueles
menosprezados pela população que detinha posses.
Deixamos bem claro aqui as diferenças entre catolicismo oficial e o catolicismo
rústico, o primeiro condenava esse catolicismo dos Monges, tanto que até hoje não
reconheceu o Monge João Maria como santo. Já o catolicismo rústico praticado pelos
monges exercia um papel diferenciado, além de acolher os humildes os Monges não
cobravam nada por suas missas, batizados ou casamentos eles diziam que era dever
deles anunciar a palavra de Deus, para isso não cobrariam nada pelo que faziam.
O Monge acolheria essa parte da população humilde sua doutrina era comum
entre os camponeses, sua missa era rezada em português ao contrário dos freis que ainda
rezavam em latim dificultando o entendimento de todos, havia toda uma maneira de
incluir a população simples em sua doutrina. Essa população se sentia acolhida neste
campo, assim eles passaram a cultivar um afeto pela figura do Monge João Maria.
É importante entender que a igreja católica não reconhecia a doutrina do Monge,
porque diferentemente dos padres que rezavam as missas em latim o Monge não fazia o
mesmo. Com isso a própria população conseguia acompanhar o então catolicismo
rústico do Monge, outra característica desse catolicismo é que ele também não cobrava
qualquer valor algum para realizar batizados e casamentos como já disse anteriormente.
Com isso suas celebrações eram bem aceitas por boa parte da população
humilde, esses mesmo que buscavam curas na figura dele, tudo era bem estruturado os
desprezados eram as pessoas que sempre ficavam ao seu lado. Ele sempre priorizou esse
apego aos que eram deixados de lado pela população.
O contato com a cultura faxinalense possibilitou um ganho gradativo, pois nessa
importante busca na temática da história cultural conseguimos entender as
representações nessa sociedade. Os devotos de Monge João Maria acreditam que sua
doutrina e os seus mecanismos, a água e argila possibilitam a cura á males que afetam a
saúde humana, por isso conseguimos entender a busca por milagres nesses religiosos.
Buscamos a história cultural como alicerce para se entender essas relações e
representações na cidade de Faxinal. A rotina dos moradores mudou, eles começaram a

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expressar sua fé no Monge João Maria havia uma peregrinação dos concebidos como
desprezados na capela do Monge, tanto que na Guerra do Contestado os camponeses
viam ele como um auxiliador.
Outro ponto que chama atenção é o ex-voto, onde umas grandes partes de
pessoas levam algum objeto, agradecendo por alguma cura recebida em sua família, os
mais comuns são quadros e pequenas imagens do próprio João de Maria. Esses ex-votos
são os objetos que são levados pelas pessoas á pedido de uma graça, ou então de algo
que lhe foi concebido.
Os ex-votos ofertados mostram os modos de construção das subjetividades,
visto que os devotos encomendam o objeto de acordo com suas
características particulares, enfatizando os traços próprios do seu sofrimento
e da graça alcançada, realçando aspectos culturais norteadores das
representações sociais de saúde, sofrimento, fé, religião e sociedade
(Benjamin, 2002.)

Há uma grande quantidade de pessoas vinda de outras cidades, que procuram a


capela do monge para realizar o batismo que foi deixado por ele devido à necessidade
do povo. Já que ele estava em contato direto com os sertanejos, vivia no meio deles
desse modo tendo até mesmo uma linguagem voltada para eles, dava seus conselhos e
não cobrava nada por isso, diferente da igreja católica do período, que cobrava o
batismo, percebemos que a figura do monge tem um papel equivalente a de um padre.

É bom acrescentar ainda que os padres cobravam para rezar missas, fazia
batizados etc., enquanto o “monge” fazia suas orações curas e dava seus
conselhos gratuitamente. Saliente-se também que a mensagem do “monge”
era facilmente compreendida pelos sertanejos, o que na maioria das vezes não
ocorria com o discurso do padre. (MOCELLIN. 1958, pag13.)

Nota se também que no período havia uma oposição entre o catolicismo oficial e
o catolicismo rústico, onde podemos ver em um diálogo entre o monge João Maria de
Jesus e o frei Rogério Neuhaus, o frei queria trazer os sertanejos de volta a ortodoxia
católica, do mesmo modo o povo acabava tomando ao lado do monge. As pessoas
estavam passando a participar da doutrina do Monge João Maria o que deixou os freis
preocupados com a perda de fiéis, eles até tentaram um diálogo com o Monge.
Tanto que o Monge dizia que sua reza também detinha um poder religioso, as
pessoas o procuravam para conseguir graças. Esse campo religioso é bastante
diversificado porque existia uma forte doutrina do catolicismo oficial, que condenava
esses ritos considerados anormais diante a doutrina do Vaticano.

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“João de Maria exclamou:


– A minha reza vale tanto quanto uma missa!
– Impossível! – repliquei. – nem as orações de Nossa Senhora têm o valor de
uma missa, pois nesta, Jesus Cristo vem descendo sobre o altar.
João Maria, apontando para a caixinha respondeu:
- Para aqui também vem.” (NEUHAUS apud MOCELLIN.1958, pag13.)

Esse modo vê que se tem uma grande necessidade em abordar mais temas
regionais para explorar messianismo e a religiosidade popular para uma herança cultural
de figura de João de Maria. O caráter popular é fundamental nessa necessidade da qual
o Monge tinha em suas missões, sua busca por acolher os humildes era tanta que ele
sempre dizia em suas orações que essas pessoas marginalizadas deveriam ser acolhidas
e não condenadas pela população.

Invocando a necessidade de se vir a discutir mais os temas regionais do


misticismo, do messianismo e da religiosidade popular, para que a herança
cultural de “João Maria” não se perca no terceiro milênio; ao contrario que
ganhe novos subsídios e que entre no século XXI mais enriquecida, pois
ainda há muito que descobrir e achar sobre os personagens aqui enfocadas.
(THOMÉ, 1997, pag.13.)

O interesse em se estudar essa relações de crenças em religiosidades em


Faxinal, nos ajudou a conceber como seria e ainda como é a imagem do Monge para
essa população. Assim conseguimos discernir nossas dúvidas, entendemos a sua figura
perante aos milagres das quais o Monge fez. As relações das quais a população está
inserida, diversificando a conjuntura da qual o Monge se diferencia do catolicismo
ortodoxo.
Faz se necessário entender o papel que o Monge exerce sobre esses povos, eles
buscam na sua capela água e barro para a cura de males. Há toda uma apropriação nessa
busca pela cura, o barro e a água representam o próprio Monge a pessoa que utiliza
esses elementos sente-se tocada pelo poder do Monge. Nessa mesma linha existem
pedidos da qual a própria população faz ao Monge.
Nossa pesquisa possibilita o entendimento da relação do catolicismo praticado
pelos Monges, tanto que nossa metodologia utilizada para analisar a cultura proposta
por Chartier ajudou-nos a entender essas práticas religiosas manifestadas no estado do
Paraná. É de suma importância entender de que forma se iniciou essa produção da fé em
um religioso não institucionalizado pela igreja católica.

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As práticas religiosas diferem daquilo que o catolicismo oficial defende, os


Monges se utilizam de um caminho fácil para que todos entendam o que eles queriam
dizer em suas missas. Esse fato era uma diferença crucial destas formas religiosas, as
pessoas buscavam o apoio do Monge para cura de males que afetavam sua saúde.
Essa então busca pela cura foi outro fator encontrado nessa religião dos Monges
no período do Pré-Contestado, eles utilizavam de uma doutrina própria de fácil
entendimento priorizavam os humildes os desprezados pela população. A capela
construída como uma forma de representar a devoção pelo Monge João Maria nos
mostra realmente essa situação que se encontra em Faxinal, há um diferença dentro
daquilo que Chartier nos fala o que representado é a figura do Monge João Maria e o
que representa é a capela que seus devotos construíram para manifestar sua fé.

No primeiro sentido, a representação é instrumento de conhecimento mediato


que faz ver um objeto ausente através de sua substituição por uma “imagem”
capaz de reconstruir em memória e de o figurar tal como ele é. (CHARTIER,
2002, p. 20.)

É importante distinguir a relação que Chartier nos fala dessa então representação
da fé que as pessoas adquiriram no Monge João Maria é uma prática religiosa, mas
como entender essa prática religiosa que não era reconhecida pela igreja católica. Bem
devemos lembrar que foram as pessoas em si os devotos do Monge que instituíram essa
relação a figura do Monge, essa mesma figura que acolheu muita gente entre esses os
camponeses que sofriam as consequências neste período do Pré-Contestado eles
mesmos aderiram a doutrina do Monge.
Pelo que pesquisamos podemos notar que a igreja católica até tentou acabar
coma doutrina do Monge João Maria, principalmente quando era notou a proporção que
essa doutrina tomou. Mas os freis que condenavam essas práticas que usurpavam o
cristianismo segundo eles, já o Monge João Maria sempre dizia que sua reza varia tanto
como uma missa, ele utiliza métodos diferentes para levar a palavra de Deus, mas
sempre cultivava o apego aos mais necessitados.
Na perspectiva de Eliade podemos sintetizar a propagação desse sagrado em
Faxinal-PR lembramos novamente que ainda é um sagrado não institucionalizado, essa
composição do sagrado não se altera por não ser institucionalizado. Porém nós
identificamos um sagrado que segundo a doutrina católica não passava de algo profano,
mas como entender uma prática que se torna sagrado e profano continuamente. Bem

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devemos entender que a religião do Monge era vista como profana pela igreja católica,
já a população via aquela religião simples como sagrada.
Essa forma prática de uma religião que se tornou sagrada pela mente popular é
inquestionável, quem poderia dizer que sua doutrina não consistia fatores que a
tornassem sagrada. Bem a igreja católica foi a que mais se preocupou com a propagação
dessa doutrina que se voltava para os humildes, já os Monges diziam que se as pessoas
não se sentiam acolhidas pelo catolicismo ortodoxo estavam livres para buscar outra
forma de mostrar a sua fé.
Com isso se deparamos com a capela construída para que as pessoas
manifestassem sua fé nesta doutrina, lá existem imagens de santos católicos tanto
porque o Monge João Maria não condenava a doutrina católica. Mas condenava o apego
nas coisas materiais o luxo que era explícito entre os freis principalmente a forma como
eles conduziam suas missas, proferiam as missas no latim o que dificultava o
entendimento de todos, já os Monges pelo contrário usavam a língua portuguesa
facilitando o entendimento das pessoas.
Por fim nossa pesquisa ainda está em andamento há muito campo há ser
explorada muita coisa a ser esclarecida, para isso precisamos de mais tempo para
apresentar os resultados, mas acessíveis. Mesmo assim priorizamos esta vertente
cultural manifestada em forma de uma crença religiosa na cidade de Faxinal-PR,
buscamos entender como esse catolicismo rústico que se apresentou de que uma forma
que foi aderido pela população.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BENJAMIN, R. (2002). Devoções populares não-canônicas na América Latina: uma
proposta de pesquisa. Trabalho apresentado no VI Congresso Latino-americano de
Ciências da Comunicação. Ciência, Filosofia e Religião. Acesso em 20 de setembro,
2006, em www.cafeesaude.com.br/cafeesaude/ ciencia_filosofia_religiao.htm.

CHARTIER, Roger. A História Cultural: Entre Práticas e Representações. Rio de


Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 2002.

ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

MOCELLIN, Renato. Os Guerrilheiros do contestado. São Paulo: Editora do Brasil,


1958.

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THOMÉ, Nilson. São João Maria na História do contestado. Unc/Universal: livraria


Arte Viva, 1997.

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CAMPO, PODER SIMBÓLICO E REPRESENTAÇÃO: NOÇÕES


CONCEITUAIS PARA UMA ANÁLISE CULTURAL DO
NEOPENTECOSTALISMO BRASILEIRO.
Tábata Ane Capelari (História-UEL)
Orientador: Profº. Dr. Wander de Lara Proença 268
PALAVRAS-CHAVE: NEOPENTECOSTALISMO; CAMPO; REPRESENTAÇÃO.

Ao longo dos séculos o campo historiográfico passou por diversas


transformações, e permanece em movimento contínuo até os dias atuais, neste processo
ocorreram muitas mudanças que possibilitam novas e diferentes abordagens para
recentes e antigas temáticas. Partindo dessa premissa optamos pela abordagem da Nova
História Cultural, para uma possível análise do neopentecostalismo brasileiro usando os
conceitos de campo, poder simbólico e representação.
Principiamos pelo surgimento da Nova História Cultural. Segundo Wander de
Lara Proença (2006) as décadas de 60 e 70 do século passado foram marcadas por um
aumento na ênfase da História Social, e foi a partir de então que os historiadores
aproximaram seus estudos com outras áreas do conhecimento como a Antropologia e a
Sociologia, estabelecendo ligação e apropriando-se de seus conceitos e métodos. Mas
foi nos anos 80 que ocorreu a consolidação dessas trocas interdisciplinares, vindo a
surgir à Nova História Cultural, onde estudos de cunho mais populares foram
enfatizados. Uma das abordagens dessa nova perspectiva histórica colocou em destaque
temas voltados para a religiosidade de caráter popular, tendo em vista esta característica
e o alcance do neopentecostalismo brasileiro, é que optamos por este campo da História.
Os historiadores Peter Burke e Roger Chartier e o sociólogo Pierre Bourdieu, são
exponenciais dentro da Nova História Cultural, suas pesquisas contribuíram para o
desenvolvimento desses estudos e os conceitos por eles desenvolvidos propiciaram um
aprofundamento das análises neste campo. Como assinalado acima, a aproximação da
História com outros campos do saber foi o que possibilitou contribuições importantes
para o viés cultural de autores que não tem formação histórica, como é o caso de
Bourdieu.

268
Este trabalho tem como orientador o Prof. Dr. Wander de Lara Proença da Universidade Estadual de
Londrina.

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No livro “O que é História Cultural? ”, Burke diz que essa pergunta, que dá
nome ao seu livro, ainda não foi respondida de maneira satisfatória. Em “Variedades da
História Cultural” que tem por objetivo, como o próprio título sugere discutir algumas
das diversas variedades de História Cultural, o autor ressalta que o termo “cultura” pode
variar de acordo com o local e período, sendo difícil uma definição ou conceituação do
mesmo. Além disso, pontua que a conceituação cultural clássica não serve de modelo
para a História Social de hoje, principalmente por não fornecer suporte satisfatório à
algumas questões. Proença destaca cinco objeções feitas por Burke quanto ao uso dos
parâmetros clássicos:
Primeiro, tende a ignorar a sociedade ou dar pouca ênfase a ela,
demonstrando uma ausência de fundamentos quanto à infra-estrutura
econômica, estrutura política e social na maneira como é postulada. Segundo,
apresenta dependência do conceito de unidade ou consenso cultural. (...)
Terceiro, havia a ideia de herança ou legado cultural pela tradição,
pressupondo que a recepção do que fora dado não sofria variações. Pondera-
se que a cultura é marcada por variações, transformações, modificações.
Quarto, adota a ideia de cultura implícita, convencionando-se estabelecer
como cultura a “alta cultura”; por isso, atualmente, os historiadores devem,
segundo ele, buscar recuperar a história da cultura das pessoas chamadas
comuns. E por último, a História Cultural clássica foi escrita pelas elites
europeias a respeito de si mesmas. Não pode haver uma única grande
tradição, um monopólio de legitimidade cultural. (...) Hoje, o apelo da
História Cultural é mais amplo e diversificado em termos geográficos e
sociais. A história precisa ser reescrita a cada geração a fim de que o passado
continue a ser inteligível para um presente modificado. (PROENÇA, 2006,
pp. 39-40)

Prosseguindo com as considerações de Proença, o autor cita Burke que, além de


não recomendar o uso dos parâmetros clássicos, estabelece cinco aspectos que marcam
esse novo viés historiográfico da cultura:

Primeiro, ao se tornar bastante tributária da Antropologia, a Nova História


Cultural promove uma redescoberta da importância dos símbolos na história,
o que costuma ser chamado de “antropologia simbólica”. (...) Segundo,
possibilita uma redefinição de cultura em relação ao modelo clássico,
ampliando o seu sentido: não apenas o escrito, mas o oral; não apenas o
drama, mas o ritual; não apenas a filosofia, mas as mentalidades das pessoas
chamadas comuns. Em terceiro lugar, compreende que as tradições não
persistem automaticamente. (...) Um quarto aspecto é que passa a haver um
interesse cada vez maior pela história das “representações”, da construção,
invenção e imaginação coletiva, desenvolvida a partir da história das
mentalidades. E, finalmente, aponta para o fato de que é preciso que se tenha
o devido cuidado no emprego do termo “sincretismo”, o qual tem sido
bastante utilizado por especialistas da religião, pressupondo hibridismo ou
fusão cultural, em mão dupla. No caso do Brasil, por exemplo, “pluralismo”
ou “hibridismo” talvez seja melhor que sincretismo, pois “as mesmas pessoas
podem participar das práticas de mais de um culto religioso” – lembra esse
autor. Ressalta ainda Peter Burke ser uma das vocações da História Cultural

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voltar-se para a investigação das crenças e práticas religiosas cotidianas, dos


rituais e das orações dos “leigos”, dos desvios à ortodoxia, dos aspectos não-
oficiais e informais. (PROENÇA, 2006, pp. 40-41)

Ainda sobre a História Cultural, não podemos deixar de citar Pierre Bourdieu do
qual nos apropriaremos dos conceitos de campo, bem simbólico e capital simbólico.
Autores da área afirmam que são grandes as contribuições de Bourdieu para a Nova
História Cultural:
Os conceitos e teorias que [Bourdieu] produziu em seus estudos, primeiro
sobre os berberes e depois sobre os franceses, são de grande relevância para
os historiadores culturais. Incluem o conceito de “campo”, a teoria da prática,
a ideia de reprodução cultural e a noção de “distinção”. (...) Suas expressões
“capital cultural” e “capital simbólico” entraram na linguagem cotidiana de
sociólogos, antropólogos e de pelo menos alguns historiadores. (BURKE,
apud, PROENÇA, 2006. p. 49)

É interessante ressaltar que Chartier também faz considerações às contribuições


de Bourdieu e o uso de seu método na história:
Bourdieu ajudou os historiadores a se distanciarem da herança da história das
mentalidades para refletirem de uma maneira mais complexa, ou mais sutil
sobre a relação entre as de terminações externas, a incorporação destas
determinações e, finalmente, as ações. (CHARTIER, apud, PROENÇA,
2006, p.49).
Mas o mais importante é trabalhar com Bourdieu (...). Trabalhar os seus
conceitos, mas ir além, trabalhar com as suas perspectivas, com a ideia de um
pensamento relacional e a repulsa à projeção universal de categorias
historicamente definidas. (...) Existe a possibilidade de um trabalho com
Bourdieu que não é simplesmente a reprodução de sua teoria, mas a
capacidade de uma inovação proposta por seus instrumentos teóricos,
analíticos e críticos. (CHARTIER, apud, PROENÇA, 2006, p.49).

Fechando a questão, Roger Chartier considera que a história cultural tal como
conhecemos tem por objetivo principal “identificar como que em diferentes lugares e
momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler”
(CHARTIER, 2002, p. 16-17).
Nesse viés de pesquisa da Nova História Cultural, onde a atenção dos
historiadores passou a ser mais abrangente e voltada para o popular precisamos situar o
lugar que o sagrado ocupa nesse cenário. Proença destaca que “O fenômeno religioso
passou a ganhar, assim, espaço privilegiado para a investigação historiográfica pelo viés
cultural”, completando sua colocação Ronaldo Vainfas aponta que:
Múltipla, densa e instigante, a teia que liga as diversas religiões às diferentes
formas de religiosidades tem demonstrado ser um campo fértil para
continuadas reflexões teórico metodológicas e investigações historiográficas.
(VAINFAS, apud, PROENÇA, 2006, p. 41)

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É importante, para analisar e compreender esse universo da religião, nos


apropriarmos de alguns conceitos formulados pelos teóricos da área, dentre eles o da
representação. Segundo Chartier para a compreensão das construções destas realidades
sociais são sugeridos diversos caminhos, sendo um deles ligados as classificações,
delimitações e divisões que organizam a apreensão do mundo social, e a apreciação do
real. Neste sentido:
As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à
universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas
pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário
relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza.
(CHARTIER, 2008, p. 17).

As representações estão sempre colocadas em um campo de concorrência e de


competição, pelo grupo que procura impor seus valores e seu domínio. As lutas de
representação, segundo Chartier, são tão importantes quanto às lutas econômicas na
compreensão da maneira pelo qual um grupo se impõe. Devemos, portanto, pensar uma
História Cultural que tenha por objetivo a compreensão das representações do mundo
social. As representações apresentam ligações com a questão do “imaginário”, e “por
“imaginário” entendemos um conjunto de imagens visuais e verbais gerado por uma
sociedade (ou parcela desta) na sua relação consigo mesma, com outros grupos
humanos e com o universo em geral” (JUNIOR, apud, PROENÇA, 2006). Segundo
Proença uma das definições de representação apresentada por Chartier se aproxima do
conceito de habitus:
A noção de “representação coletiva” (...) permite conciliar as imagens
mentais claras (...) com esquemas interiorizados, as categorias incorporadas,
que as geram e a estruturam. (...) Desta forma, pode pensar-se uma história
cultural do social que tome por objeto a compreensão das formas e dos
motivos – ou, por outras palavras, das representações do mundo social – que,
à revelia dos atores sociais, traduzem as suas posições e interesses
objetivamente confrontados e que, paralelamente, descrevam a sociedade tal
como pensam que ela é, ou como gostariam que fosse. (PROENÇA, 2006, p.
57)

Em relação ao habitus, Chartier chama a atenção para o fato de que os agentes


possuem uma história, são produtos de uma história e ao mesmo tempo em que as
experiências que o agente sofre tende a confirmar seu habitus ele também é aberto,
passível de mudanças frente a uma nova experiência, ou seja, o habitus ao mesmo
tempo que regula o agente, é por ele regulado e ambos se modificam mutuamente. Ele
está inserido no campo, desta forma:

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Enquanto produto da incorporação das estruturas objetivas, o habitus cria “as


disposições”, que estão em tensão com o campo que as solicita, estimula e
justifica, dando-lhes razões de crer, razões de pensar, congregando, dessa
forma, os que participam dos mesmos desafios e anseios. Também se torna
responsável por orientar o comportamento ou as práticas coletivas na
produção e apropriação do capital simbólico dentro do campo. Assim, o
habitus dirige as práticas e os pensamentos à maneira de uma força, mas sem
constranger mecanicamente; ele também guia sua ação ao modo de uma
necessidade lógica, mas sem se impor a ele como se aplicasse uma regra ou
se submetesse ao veredito de uma espécie de cálculo racional (PROENÇA,
2011, p.12)

O conceito de campo provém do trabalho de Bourdieu, e é por ele defino como:


Chamo campo, o universo no qual estão inseridos os agentes e as instituições
que produzem, reproduzem ou difundem a arte, a literatura, a ciência, os bens
simbólicos. Esse universo é um mundo social como os outros, mas que
obedece a leis sociais mais ou menos específicas. (...) A noção de campo está
aí para designar esse espaço relativamente autônomo, esse microcosmo
dotado de suas leis próprias. (BOURDIEU, apud, PROENÇA, 2011, p. 11)

Os campos são espaços em parte autônomos que possuem suas próprias regras,
não são estáticos, e como a “representação”, são lugares de disputas constantes, o
campo apresenta-se como um lugar de produção coletiva, alteram os indivíduos e é por
eles alterado, da mesma maneira que o habitus. Chartier afirma que:
Os campos, segundo Bourdieu, têm suas próprias regras, princípios e
hierarquias. São definidos a partir dos conflitos e das tensões no que diz
respeito à sua própria delimitação e construídos por redes de relações ou de
oposições entre os atores sociais que são seus membros. (CHARTIER, 2002.
p. 140)

Segundo Bourdieu compreender o campo enquanto uma constituição histórica


forjada nas relações de poder estabelecidas entre agentes, e no volume e estrutura dos
capitais simbólicos que estes possuem, auxilia na compreensão dos anacronismos
históricos, o conceito de campo busca compreender a formação do tecido social e por
isso possibilita historicizar o fazer histórico.
[campo] são definidos a partir de conflitos e das tensões no que diz respeito a
sua própria delimitação e constituídos por redes de relações ou de posições
entre os atores sociais que são seus membros. (CHARTIER, 2002, p. 140)

Existem forças que atuam nas disputas ocorridas dentro do campo. Levando em
conta que o trabalho de Bourdieu não contempla apenas um campo, mas fala a respeito
de diversos campos que constituem a sociedade e se relacionam entre si apesar de sua
relativa autonomia, era necessário explicar essas forças, ou esses meios de controle e

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coerção dentro dos campos. Essas forças são caracterizadas como poder simbólico e são
determinadas por Bourdieu como:
O poder simbólico, poder subordinado, é uma forma transformada, quer
dizer, irreconhecível, transfigurada e legitimada, das outras formas de poder:
só se pode passar para além da alternativa dos modelos energéticos que
descrevem as relações sociais como relações de força e dos modelos
cibernéticos que fazem delas relações de comunicação, na condição de se
descreverem as leis de transformação que regem a transmutação das
diferentes espécies de capital em capital simbólico e, em especial, o trabalho
de dissimulação e transfiguração (numa palavra, de eufemização) que garante
uma verdadeira transubstanciação das relações de força fazendo ignorar-
reconhecer a violência que elas encerram objectivamente e transformando-as
assim em poder simbólico, capaz de produzir efeitos reais sem dispêndio
aparente de energia. (BOURDIEU, 2012, p. 15).

Tendo realizado de maneira breve alguns esclarecimentos sobre representação,


campo e poder simbólico, partiremos agora para uma análise do que Bourdieu define
como campo religioso e suas implicações. Pedro A. Ribeiro de Oliveira produziu o
artigo “A teoria do trabalho religioso em Pierre Bourdieu”, onde esclarece os conceitos
de campo religioso, trabalho religioso, religião entre outros.
Segundo esse autor Bourdieu trata a religião como “sistema simbólico de
comunicação e pensamento” e “enquanto sistema simbólico, a religião é estruturada na
medida em que seus elementos internos relacionam-se entre si, formando uma totalidade
coerente, capaz de construir a experiência”. Apresenta a noção de trabalho religioso que
seria a produção e objetivação de práticas e discursos revestidos do sagrado, mas ele só
é completo quando essas crenças sugeridas por uma pessoa socializam-se entre um
grupo. O trabalho religioso pode ser de cunho anônimo e coletivo ou estar concentrado
nas mãos de produtores especializados. Um dos princípios que constitui campo
religioso é a compreensão do conjunto de relações mantidas entre os agentes religiosos
no atendimento as necessidades dos “leigos”.
Dentro do campo religioso as disputas se dão pelo controle/domínio do trabalho
religioso, isso se dá em parte pelo fato de que os agentes religiosos que provêem
sustento espiritual ao “leigo” são por ele sustentados (pois é o “leigo” que executa o
trabalho material. Dessa maneira os agentes especializados buscam através do trabalho
espiritual assegurar sua existência material. Os agentes religiosos são denominados por
Bourdieu como sacerdotes, profetas e magos e disputam entre eles a hegemonia do
campo religioso, para isso eles precisam dominar o capital simbólico do campo, e estão
o tempo todo buscando legitimar seu domínio.

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Constatamos, portanto que, devido à forte presença de simbolismos e


representações e a constante disputa pelo domínio do capital simbólico dentro do
subcampo neopentecostal é possível realizar uma análise apoiada nestes conceitos.
Como exemplo podemos pensar o ato de santa ceia praticado nas igrejas
neopentecostais (ou em igrejas de confissão cristã em geral), nesta cerimônia o pão e o
vinho (ou em alguns casos o suco de uva) passam a ter uma representação específica,
esses alimentos deixam de ter o objetivo de alimentar o corpo físico e passam a
representar o corpo e o sangue de Jesus, e esse ato alimenta o espírito, é um ato que
demostra a aliança entre o homem e Cristo. Esse rito também é um capital simbólico e
vale como tal apenas para o grupo que partilha da mesma fé, da mesma crença. É capital
simbólico ainda, pois participam do ato apenas aqueles que são aptos, na maioria das
igrejas neopentecostais (mas nas não pentecostais também) o indivíduo antes de
participar da santa ceia precisa ter passado também pelo rito de batismo, pois é o
batismo que confirma que este indivíduo faz parte do corpo de Cristo, ou seja, da igreja.
Esse capital simbólico embora possa chegar a todos os membros de uma igreja é
manuseado e dominado, ou seja, oficializado, pelos agentes especializados que pode ser
o pastor, o diácono ou um líder de uma área dentro desse grupo. Nestas primeiras
linhas, realizamos apenas alguns apontamentos e uma breve análise dos conceitos,
compreendemos que é possível aprofundar esse tema com riqueza de possibilidades e
exemplos.
Um dos caminhos possíveis para análise do campo religioso brasileiro, em
especial do subcampo neopentecostal, é por meio da literatura produzida pelos
representantes desse movimento. É necessário levar em conta que esse campo é fluído e
está em constante movimento e por isso possui diversas vertentes que interpretam à sua
maneira os conceitos inerentes do campo, mas apesar disso há semelhanças entre eles,
ou seja, alguns padrões que se mantém e a eles são ligadas novas interpretações ou
novas regras dependendo da visão de mundo de um grupo específico.
Como dissemos existe uma produção vasta de literatura neopentecostal onde
aparecem às ênfases e diretrizes do que esse movimento crê e propõe aos seus fiéis ou
seguidores como prática religiosa. Em meio às transformações ocorridas no campo
religioso brasileiro a partir da década de 80, surge dentro da tipologia neopentecostal
uma linha específica que trata principalmente sobre batalha espiritual – enfatizando ritos

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de exorcismo e outras práticas para enfrentamento, do que entendem ser representações


do mal – assim como a ênfase na teologia da prosperidade – que pressupõe a projeção
financeira e social dos adeptos, representando dessa forma o dinheiro como um sinal da
bênção divina, antecipando para o tempo presente as benesses do paraíso que
determinados grupos pentecostais clássicos projetavam para o além, pós-morte. Estas
práticas, portanto, possuem pilares no neopentecostalismo, no movimento G12, e
também em uma vertente do neopentecostalismo conhecida como Movimento
Apostólico, que teve seu início no ano de 2001 e conta com um conselho nacional
fundado em 2005; entre seus integrantes estão líderes como Neuza Itioka, Mike Shea e
Valnice Milhomens, esta última, recebeu o título apostólico já em 2001, pelas mãos do
apóstolo Rony Chaves, da Costa Rica. Com isso se observa que o segmento do G12 se
tipifica com características neopentecostais, mas, ao mesmo tempo, apresenta
inovações, ocasionando disputas no campo religioso brasileiro.

BIBLIOGRAFIA

BOURDIEU, Pierre. Gênese e estrutura do campo religioso. In: _______.Economia


das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1999.

______. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel,


1990.

______. Pierre Bourdieu e a história. Topoi, Rio de Janeiro, URFJ, n. 4, 2002.

OLIVEIRA, Pedro A. R. de. A teoria do trabalho religioso em Pierre Bourdieu. In:


TEIXEIRA, Faustino (Org.). Sociologia da religião. Enfoques teóricos. Petrópolis:
Vozes, 2003.

PROENÇA, Wander de Lara. Parâmetros teórico-metodológicos para uma história


cultural da Igreja Universal do Reino de Deus. In: Sindicato de mágicos: uma história
cultural da Igreja Universal do Reino de Deus. São Paulo: Editora Unesp, 2011.

______. Conversão do olhar: Contribuições da História Cultural para análise do campo


religioso brasileiro. Revista Brasileira de História das Religiões, Ano I, no. 2, jul/set
2006.

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A CONDENAÇÃO DA “RELIGIOSIDADE POPULAR” EXPRESSA


NO 13° SERMÃO DE CESÁRIO DE ARLES (SÉCULO VI)
THIAGO FERNANDO DIAS (NEAM /História, UNESP –Assis/CNPQ)
Orientador: Ruy de Oliveira Andrade Filho
PALAVRAS-CHAVE: RELIGIÃO; RELIGIOSIDADE; CESÁRIO; SERMÃO.

Considerações Iniciais:
Os constantes fluxos migratórios dos germânicos e a recente reestruturação
geopolítica do vasto território anteriormente dominado pelo Império Romano,
provocaram diversas alterações na estrutura da sociedade Ocidental que,
consequentemente, obrigou a Igreja a elaborar novas formas de se solidificar e propagar
suas diretrizes de uma ortodoxia religiosa 269.
Sem o apoio direto do Império e em uma sociedade que cada vez mais se
alocava no campo e em regiões de difícil acesso, a Igreja do século VI enfrentou certa
dificuldade em combater as práticas populares, na maioria das vezes, não condizentes
com seus preceitos. Essa dificuldade ficou evidente, não apenas no sul da Gália como
em todo Ocidente Medível, através do combate intensivo dessas atividades
recalcitrantes.
Na primeira Idade Média 270, sobretudo a partir do século IV, houve uma
tentativa constante de diálogo do setor eclesiástico com a população, tanto nos meios
urbanos quanto rurais. Esse processo ficou marcado pela produção constante de novos
elementos, além da ressignificação e destruição de outros que já existiam, configurando-
se um método que procurava trazer novos fiéis e combater as condutas divergentes.

269
A definição de Ortodoxia Cristã aqui empregada, será a do Cristianismo elaborado e defendido a partir
do Concílio de Nicéia (325) e dos Concílios subsequentes, sobretudo, de Éfeso (431) e Calcedônia (451).
De acordo com a definição deles, o cristianismo niceano seria a crença num deus único manifestado em
três pessoas – o Pai, o Filho e o Espírito Santo – e na redenção de mundo pela Encarnação, Paixão e
Ressureição de Jesus Cristo. O Filho, que é o Verbo Divino, foi verdadeiramente encarnado pelo Espírito
Santo na carne da Virgem Maria, e que ele combina em si próprio, sem distinção de pessoas, as naturezas
perfeitas e completas de Deus e do homem. LOYN, H. R. Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1990, p. 107.
270
Utilizamos a proposta de divisão da Idade Média de Hilário Franco Júnior, o historiador demarca
como “Primeira Idade Média” a fase que se estendeu de princípios do século IV a meados do século VII,
reservando “Alta Idade Média” para meados do século VIII a fins do X. FRANCO JÚNIOR, Hilário. Por
uma outra Alta Idade Média. In: ANDRADE FILHO, Ruy de Oliveira. (org.) Relação de poder, educação
e cultura na Antiguidade e Idade Média. Santana de Parnaíba: Solis, 2005. P. 28.

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Este processo de interlocução foi longo e, para ser empreendido, a Igreja


necessitou do auxílio de figuras importantes e, muitas das vezes, considerados homens
santos, como padres, monges e bispos. Para desenvolver suas tarefas, esses personagens
do clero, utilizaram vários instrumentos literários, entre eles, o sermão e as hagiografias.
Segundo Hillgart (2004:21): ambos mecanismos são as principais formas de
cristianização do período e começaram a ser utilizados durante os ritos litúrgicos.
Tornando-se assim, uma profícua fonte de estudo para análise do momento de sua
produção.
Tomando este tipo de documento como fonte para nossa análise, podemos afirmar
que, de modo geral, não apenas os sermões como toda literatura eclesiástica, fizeram
relativamente poucas referências diretas sobre a realidade da comunidade, principalmente
quando comparada ao que diz sobre temas particulares da vida eclesiástica como, por
exemplo, a ascese, orações e normas. Não obstante, mesmo com essa evidente lacuna,
permanece o fato de que esses textos procuram transmitir e articular um ideal concernente
às aspirações cristãs do contexto de sua elaboração. Deste modo, enquanto os escritos
eclesiásticos não podem responder e resolver todas, ou mesmo à maioria das questões e
problemas enfrentados pela comunidade cristã na Primeira Idade Média, eles possibilitam
uma compreensão de como os primeiros bispos, no nosso caso Cesário, pensavam a vida
cristã e, sobretudo, permitem observar um contexto comum inferindo quais as
dificuldades que os mesmos encontraram no momento.
Assim, partimos do pressuposto de que esses textos, aqui observados, não
evidenciam apenas elementos eclesiásticos. Eles transmitem informações de um mundo
cristão, dessa forma, permanecem relevantes e profícuos, não tanto porque são
eclesiásticos, mas, acima de tudo, porque são cristãos.
Neste trabalho, primeiramente apresentaremos algumas características que
distinguem o sermão como gênero literário, produtor de um discurso religioso cuja
finalidade didática, exegética e/ou moralizadora que, segundo as normas do próprio
gênero, buscava alcançar principalmente o “coração do fieis e não exatamente a mente”
(KLINGSHIRN, 2004: 14). Em seguida, apresentaremos o que entendemos por
religiosidade popular e iremos observar as suas principais características condenadas
pela Igreja Cristã. O que significa que pretendemos definir sua identidade – mesmo
sendo um grupo disperso e não coeso – por meio da alteridade, ou seja, procuraremos

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entender o que a igreja renega e diz não ser, para entender o que esses excluídos eram.
Por fim, mas não menos importante, observaremos a tentativa de cristianização da
população rural da Provença através do 13° sermão de Cesário, que procurou condenar
os atos dessa religiosidade popular e impor, segundo o bispo, uma verdadeira ortodoxia.

Os sermões como gênero literário


Antes de iniciarmos a análise da condenação da religiosidade popular no sermão
de Cesário, faz-se pertinente oferecer uma breve observação sobre este tipo de fonte, que
no período, configurou-se como um instrumento de uso constante no combate de práticas
não condizentes com o cristianismo.
De modo geral, os sermões, distinguia os ad popular e ad coléricos. Eles eram
redigidos pelos patronus; normalmente eram personagens influentes junto ao clero e a
população. Para serem escritos, a Bíblia era o grande modelo, principalmente, as palavras
dos profetas e dos apóstolos (HILLGARTH, 2004: 21). Em uma sociedade de illitterati –
que a partir do século V se alfabetizava cada vez menos, devido ao fechamento da maioria
das escolas públicas – os sermões foram previamente preparados e copiados para serem
disseminados por diferentes regiões.
Na sua elaboração, era comum o uso do latim simples, ou mesmo as línguas
vulgares, de tal modo que os sermões circulavam e eram lidos ao pé da letra como se
intencionava que fossem (HILLGARTH, 2004: 21). Assim, eles ofereciam a possibilidade
para o alto clero, o clero inferior e também para seus colegas menos brilhantes (SC. 6.2),
de pregarem e propagarem a doutrina niceana (HILLGARTH, 2004: 21). Com tal
característica, o intuito de sua produção, era a de serem lidos em público na procura de
abranger um número maior de pessoas, visto que a difícil e vagarosa disseminação da
escrita ficou evidente no período (ANDRADE in: ANDRADE FILHO, 2005: 48). Em
suas prédicas, Cesário defendia tal prerrogativa, característica que vinha desde Agostinho
(Dout. Crist. IV. X. 24) e condenava o uso de da literatura/filosofia clássica na
elaboração dos sermões (SC 99. 2, 3; 100. 3; 163. 1).
Com a prerrogativa de disseminar seus sermões e consolidar sua pregação,
Cesário procurou garantir pessoalmente a circulação de suas palavras, ele fornecia uma
cópia de seus sermões para qualquer um que passasse por Arles e tivesse interesse em
seus textos (VC, I. 55). Procurando amenizar o problema do analfabetismo, o bispo

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procurou propagar seus ensinamentos, não apenas de forma escrita, como também pelo
boca a boca. Em um de seus sermões, ele argumenta que, certamente, em qualquer grupo,
haveria ao menos uma pessoa que pudesse ler para os demais (SC. 6.2). Ele fez o possível
para que seu publico memorizasse suas predicas, se uma pessoa não se lembrasse do
sermão todo, cada um deveria lembrar-se de uma parte. Assim, juntos seriam capazes de
reconstruir o sermão por completo:

“Alguém deveria dizer: ‘Eu ouvi meu bispo falando sobre a castidade’. O outro
deveria declarar: ‘Eu me recordo que ele disse que deveríamos cultivar nossas
almas assim como cultivamos nossos campos'. Ainda outro deveria dizer,
‘Lembro-me que meu bispo disse que quem consegue ler deve fazer um esforço
e ler a Sagrada Escritura; quem não sabe, deve encontrar alguém que possa’.
Ao mesmo tempo, eles recordam um ao outro o que ouviram. Assim, eles não
são capazes apenas de lembrarem as palavras do sermão, mas, com a ajuda de
Cristo, cumpri-las” (SC. 6.8).

Dessa forma, os sermões tornaram-se uma espécie de folheto previamente


preparado que procuravam, de alguma forma, chegar a uma parcela da população mais
diversificada, para divulgar os preceitos cristãos e mudar os hábitos comuns que não eram
condizentes com a nova ortodoxia e, além de tudo, tornaram-se o meio básico de
instrução dos leigos no período.
Contudo, o problema mais grave com o uso de sermões como fontes históricas,
parece residir, mais precisamente, no caráter normativo do próprio gênero. Na verdade,
Cesário, como outros bispos, utilizavam os sermões para instruir e convencer seu
público do que eles deveriam ser, não para descrever o que eram (KLINGSHIRN, 2004:
14). No entanto, se é praticamente impossível tomar o sermão pelo seu valor explícito,
podemos observá-los, como o próprio bispo evidência: “como um espelho”, que
revelava ao seu povo os detalhes de seu comportamento pecaminoso (SC. 42. 6).
Assim sendo, é aceitável que, os sermões, em sintonia com o período, produziram
um diálogo intenso com as ações populares e revelam que nem sempre a grande parte da
população esteve passiva diante a Igreja. Portanto, essa adequação e difusão do discurso
cristão de Nicéia, presente nos sermões, revelam um conteúdo importante como dados e
relatos que normalmente fazem menção a fatos e personagens legítimos. Antes de
qualquer coisa, eles evidenciam profundamente, a sua maneira, um ponto de vista e um

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sentido de mundo de um determinado momento e sociedade. Tornando-se assim uma


profícua fonte de estudo.

A Religiosidade Popular condenada por Cesário


Na Primeira Idade Média, o constante embate entre a religião oficial e a
religiosidade popular foi evidente. Por parte do clero, as recorrentes condenações das
práticas populares através dos diversos escritos, sobretudo os sermões e as hagiografias,
procuravam impor uma ortodoxia cristã que marginalizava as práticas não condizentes
com seus princípios. Por outro lado, para a população, a manutenção de tais atos e a
dificuldade de assimilar esses novos preceitos e mesmo a distinção de tais condutas
religiosas, configurou-se como algo complexo e difícil de ser seguido, sobretudo, no
campo.
Procurando observar os elementos divergentes da religiosidade popular com a
religião cristã, entendemos a primeira mais como uma prática cotidiana do indivíduo e
que, consequentemente, implica a crença em garantia do sobrenatural, porém, é “uma
atitude religiosa fundamental e que pode ser simplesmente interior e pessoal”
(ANDRADE FILHO, 1997: 11), tornando-se assim, difícil de analisar e, principalmente,
definir. Desse modo, sabemos que a religiosidade popular foi muito diversificada em sua
realização e é conhecida apenas indiretamente através da análise dos documentos
produzidos pela cultura clerical.
Assim sendo, definimos religiosidade popular como um conjunto de crenças e
práticas, do período, cujo significado é abrangente e assimila elementos de diversos
cultos religiosos, tanto o complexo mitológico greco-romano, cultos orientais,
superstições, entre outros hábitos da população não concernentes a Fé estabelecida pelos
preceitos Cristãos de Nicéia. Ainda, sobre a ritualização da religiosidade popular, segundo
Ruy de Oliveira Andrade Filho: “a ‘religiosidade popular’ também não se apresenta
enquanto uma simples redução, um resumo ou mesmo um empobrecimento da
religiosidade ‘erudita e/ou oficial’. Tinha também as suas fontes, as suas estruturas, a sua
criatividade e elasticidade” (ANDRADE FILHO, 1997: 135). Era praticada e propagada
pela população em diversos níveis, sua manutenção esteve sempre ligada a laços
familiares, passando por gerações, até mesmo após a cristianização (KLINGSHIRN,
2004: 209). Ela tinha o poder de recusar ou assimilar elementos de outras religiosidades,

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até mesmo da Religião Oficial que, por sua vez, a modificou por meio de um intenso
embate.
Segundo Jacques Le Goff, o combate dessas práticas eram constantes, o
historiador define três maneiras pelas quais a cultura clerical defrontou a religiosidade
popular: a destruição que tinha como primazia extinguir os templos e ídolos pagãos; a
obliteração ou sobreposição dos temas, das práticas, dos monumentos e das personagens
cristãs a antecessores pagãos. Não é uma sucessão, mas uma abolição. Por fim a
desnaturação que, segundo o autor, é o elemento mais importante na luta contra a cultura
folclórica, pois, nesta medida, os temas pagãos mudam radicalmente de significado para
um tema cristão (LE GOFF, 1980: 212-213).
Estas medidas acabaram por gerar um sentido ambíguo e até mesmo equivocado
do culto ao sagrado, gerando uma nova religiosidade, especialmente no mundo rural
emergente no momento, pois, as velhas crenças ancestrais de longa duração, pouco ou
nada tocadas pela culturas antigas como a romana, viam-se alheias aos avanços do
cristianismo (ANDRADE FILHO, 1997: 113).
No geral, dentro da população rural, a maior parte dos cultos e das divindades
veneradas, não apenas na Provença, estavam relacionados com os elementos da natureza.
Esses elementos permitiam que essa população conseguisse ver uma realidade onde a
variação errática dos elementos do cotidiano era algo palpável e absolvido no mundo
essencial (BROWN, 1999: 114), especialmente a relação com a fertilidade e a produção.
Muitas vezes, as divindades desse mundo palpável eram representadas por
árvores, rios e rochas que ganhavam altares ou até mesmo santuários para serem
homenageados. Por sua vez, Cesário exortava-os a destruir todos os templos desse
universo natural, onde quer que os encontrasse (V.C. 14.1). Ao estudar a trajetória de
Cesário de Arles, Peter Brown coaduna com os preceitos de Le Goff, o historiador
irlandês afirma que o bispo utilizou-se das maneiras supracitadas para desenvolver suas
prédicas e ainda, Brown delibera que, para o bispo, o paganismo não era um conjunto de
práticas independentes, elas:

“reluziam ainda através do mundo físico recheado de poderes misteriosos e não cristãos.
Em vez disso, apresentava o paganismo como uma simples coleção de ‘tradições
fragmentárias’ de ‘hábitos sacrílegos’, ‘costumes inertes’, ‘imundices dos gentios’ e que
deveriam ser encobertos pelo cristianismo” (BROWN, 1999: 117).

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Contudo, devido à proximidade que o cristianismo muitas vezes teve com os


fenômenos naturais, especialmente devido a desnaturação de seus temas para elementos
cristãos, grande parte da população ficou confusa e não os entendia como tal, a
insegurança e o desejo de explica-los ou controla-los esteve na base de seu imaginário 271.
Neste momento, a tênue fronteira entre o a religião oficial – o cristianismo como um
plano doutrinário em construção – e o pagão – ou considerados como, com suas práticas
romana ou pré-romana – não foi evidente, principalmente, nos meios rurais, sobretudo por
ambos serem tomados como sagrado. E a não distinção do sagrado caracterizou
profundamente suas atitudes, o que acarretou, sem dúvida, uma difícil percepção e
distinção do que era real e o que fazia parte do imaginário a esta sociedade.
Como acima referido, para uma tentativa de recusa à religiosidade popular,
Cesário insistiu em disseminar seus sermões e suas práticas. Por meio de sua retórica e de
seus sermões simples, ele exortou seus fiéis a seguirem as normas cristãs e condenar as
práticas pagãs e heréticas. No seu 13° sermão, o bispo condena o equívoco de sua
assembleia na distinção de suas práticas, em sua pregação, o prelado argumenta:

“Vede, irmãos, aquele que recorre à Igreja em sua enfermidade obtém, se for
digno, a saúde do corpo e a remissão dos pecados. Uma vez que só na Igreja é
possível, pois, encontrar este duplo benefício. E por que há infelizes que se
dedicam em causar mal a si mesmos, procurando os mais variados sortilégios:
buscando em encantos e feitiços diabólicos em fontes e árvores, feitos por
videntes e adivinhos charlatões?” (SC. 13.3).

Este trecho ilustra claramente o evidente equívoco por parte da população em


discernir o que realmente poderia ou não ser praticado segundo o bispo. E ainda, nesse
trecho do 13° sermão de Cesário, fica visível que os preceitos cristãos tornaram-se
elementos complementares para o indivíduo que mesmo frequentando ritos cristãos,
ainda mantinha os cultos pagãos. Na sequencia, o bispo o condena:
“E agora, dizei-me, que tipo de cristão é esse que veio à igreja para orar, mas
se esquece da oração e não se envergonha de proferir cânticos sacrílegos dos
pagãos. Pensei, pois, irmãos, se é justo que a boca cristã, que recebe o próprio
corpo de Cristo, profira cânticos impudicos, uma espécie de veneno do diabo”
(S. 13.4).

271
Por Imaginário entendemos: “um conjunto de imagens visuais e verbais gerado por uma sociedade (ou
parcela desta) na sua relação consigo mesma, com os outros grupos humanos e com o universo em geral”.
FRANCO JÚNIOR, Hilário. Cocanha: a história de um país imaginário. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998. p. 16. & FRANCO JÚNIOR, Hilário. Os três dedos de Adão: Ensaios de Mitologia Medieval.
São Paulo: Edusp, 2010. p. 70.

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Assim, observando os exemplos acima citados e levando-se em conta o que


Klingshirn defende, a tentativa missionária de Cesário ficou aquém de seus objetivos
pois, suas condenações são recorrentes e ainda, a total cristianização da população
pretendida pelo bispo, foi algo que dificilmente conseguiria realizar, pois: as
comunidades camponesas, literalmente não têm tempo, nem compreensão total de seus
argumentos para se dedicar ao regime devocional pedido pelo bispo (KLINGSHIRN,
2004: 242-43).

Considerações finais:
Verifica-se assim, com a análise desenvolvida, que a presença do considerado
“pagão” era constante entre a população. E ainda, a tentativa de embate das práticas da
religiosidade popular, por meio da pregação, foi insistente durante toda Primeira Idade
Média. Porém, é difícil medir os efeitos da pregação, e ainda, o período em que sua
assimilação foi maior, ou menor, mas, podemos levar em conta o que Hillgarth adverte:
“levou-se alguns séculos para que o Cristianismo realmente penetrasse na vasta massa da
população da Europa Ocidental, e ainda, para a maior parte da população rural até o
século VIII (e frequentemente muito depois), certa forma de paganismo continuava pelo
menos tão atraente quanto o Cristianismo” (HILLGARTH, 2004: 16). Deste modo, esta
abordagem rápida sobre a condenação da religiosidade popular expressa no 13° sermão
de Cesário, deixa visível a tentativa de elaboração de uma nova realidade através da
pregação que, de fato, procurou definir os contornos da verdadeira religião diante do
paganismo e da superstição, e propor (até mesmo impor) um modelo de cristianismo
(POLO DE BEAULIEU in: LE GOFF & SCHIMITT, 2002: 367).

ABREVIATURAS E SIGLAS:
VC. Vita Caesari Episcopi Arelatensis
SC. Sermo Caesarii
Dout. Crist. De doctrina Christiana
DOCUMENTOS MEDIEVAIS:

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CESAIRE D’ARLES. Sermons au Peuple. Ed. bilíngue (Texto bilíngue Latim-Francês) de


Marie-José Delage. 3v. Sources Chrétiennes 1975; 243; 330. Paris: Les Éditions du Cerf,
1971 – 1978 – 1986.
Vitae Caesarii Episcopi Arelatensis Libri Duo I, 28. In: MGH. S.S. R.M. t. III, Hannover
1896, pp. 433-501.
AGOSTINHO DE HIPONA De doctrina Christiana. Ed. bilíngue (latim-espanhol) de
B.
Matín. Madrid: BAC, 1957.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ANDRADE FILHO, Ruy de Oliveira. Imagem e Reflexo. Religiosidade e Monarquia
no Reino Visigodo de Toledo (séculos VI e VII). Tese de doutorado. Universidade de
São Paulo. 1997.
_____. (org.) Relação de poder, educação e cultura na Antiguidade e Idade Média.
Santana de Parnaíba: Solis, 2005.
ANDRADE, Maria Lúcia da C. V. de. O. História e Linguística. Oralidade e escrita no
discurso religioso Medieval. In: ANDRADE FILHO, Ruy de Oliveira. (org.) Relação
de poder, educação e cultura na Antiguidade e Idade Média. Santana de Parnaíba:
Solis, 2005.
BROWN, Peter. A Ascensão do Cristianismo no Ocidente. Lisboa: Presença, 1999.
FRANCO JÚNIOR, Hilário. Cocanha: a história de um país imaginário. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
_____. Os três dedos de Adão: Ensaios de Mitologia Medieval. São Paulo: Edusp, 2010.
_____. Por uma outra Alta Idade Média. In: ANDRADE FILHO, Ruy de Oliveira. (org.)
Relação de poder, educação e cultura na Antiguidade e Idade Média. Santana de
Parnaíba: Solis, 2005.
HILLGARTH, J. N. Cristianismo e paganismo 350-750: a conversão da Europa
Ocidental. São Paulo: Madras, 2004.
KLINGSHIRN, W. Caesarius of Arles: the making of a Christian community in late
antique Gaul. Cambridge: Cambridge University, 2004.
LE GOFF, Jacques. Cultura clerical e tradições folclóricas na civilização merovíngia.
In: Para um novo conceito de Idade Média. Lisboa: Estampa, 1980, p. 214.
LOYN, H. R. Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990, p. 107.
POLO DE BEAULIEU, Marie-Anne. Pregação. In: LE GOFF, Jacques. & SCHIMITT,
Jean-Claude. (coord.) Dicionário temático do Ocidente Medieval. Bauru: Edusc,
2002.

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IRINEU DE LION E A FORMAÇÃO DO NOVO TESTAMENTO:


ANÁLISE SOBRE A CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE
CRISTÃ NO SÉCULO II D.C. .
Willian Fernandes Garcia 272
PALAVRAS-CHAVE: HISTÓRIA DO NOVO TESTAMENTO. IDENTIDADE CRISTÃ. PATRÍSTICA.
Em busca de um único Cristianismo: O desenvolvimento de uma ortodoxia Cristã no mundo
Romano ao longo dos primeiros séculos.
Os Pais da Igreja 273, principalmente Irineu, combatiam fortemente através de
seus escritos aqueles que eles consideravam intérpretes errôneos da fé cristã (ou seja,
hereges) e, neste sentido foram desde cedo grandes defensores de uma ortodoxia274
vinculada ao cristianismo paulino 275. Irineu foi bispo de Lyon, na Gália, ele viveu entre
os anos 140 e 220. Sua principal obra, Contra as Heresias, foi escrita por volta da
última década do segundo século em grego. Nesta obra Irineu busca defender a fé
apostólica evocando a relação de sua concepção teológica com as obras deixadas pelos
apóstolos, principalmente aquelas produzidas ainda no primeiro século (e justamente
por isso consideradas à época mais autênticas), em contraposição a uma das principais
influências da religiosidade popular que se manifestavam nas comunidades cristãs, que
era a influência gnóstica. Os cristianismos de influência gnóstica eram a julgar pela
preocupação dos bispos, o principal inimigo a ser combatido pelos líderes das igrejas
vinculadas à tradição apostólica, pois estas expressões cristãs arrebanhavam muitos
fiéis, ou seja, desencaminhavam muitos fiéis da verdade apostólica, segundo o
entendimento dessas lideranças cristãs. Dessa forma a obra Contra as Heresias é um

272
Graduado em História pela Universidade Estadual de Londrina. Atualmente é mestrando do programa
de Pós Graduação em História Social da UEL. Orientado pela Profª. Drª. Monica Selvatici.
273
Pais da Igreja é uma expressão comumente utilizada para se referir aos Bispos da Igreja da era pós-
Apostólica que se tornaram lideranças no âmbito doutrinal e, portanto, eram os representantes e
responsáveis pela construção de uma ortodoxia oficial cristã.
274
O termo Ortodoxia pode ser explicado etimologicamente por: Orthos (certo, correto, verdadeiro) +
Doxa (opinião), ou seja, opinião correta ou verdadeira. Nesse sentido, a construção de uma Ortodoxia é a
construção de um discurso que visa normatizar uma ideia como a única correta ou verdadeira.
275
Paulo pode ser considerado o principal apóstolo para as Igrejas do Ocidente, uma vez que foi por seu
intermédio que boa parte das principais igrejas foram fundadas em meados do primeiro século. Raymond
Brown aponta que Paulo era um “pregador ambulante”, que viajava o mundo fundando igrejas e pregando
suas convicções religiosas. São dele a grande maioria dos primeiros escritos cristãos e justamente por seu
papel de liderança e autoridade dentro do cristianismo primitivo é que seus escritos logo foram os
primeiros a ser aceitos como escrituras sagradas para os cristãos. Isto implica que a teologia de Paulo foi
fundamental para a formação de uma ortodoxia oficial cristã, haja vista que a principal autoridade para os
cristãos em geral eram seus escritos, os ensinamentos neles contidos e suas interpretações. (BROWN,
2003, p.58-59)

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fundamental trabalho de delimitação do que é ortodoxia e daquilo que é heresia dentro


de uma perspectiva das autoridades da Igreja, pois Irineu retrata nesta obra com muita
clareza todo o sistema de crenças dos cristianismos de influência gnóstica e prossegue
com uma extensa refutação dos mesmos evocando a tradição apostólica, ou seja, os
escritos que os bispos acreditavam ter sido deixados pelos apóstolos ou pessoas
próximas a eles e seus respectivos ensinamentos para defender a sua, assim considerada,
norma de fé, isto é, sua ortodoxia.
No que diz respeito à formação do cânon cristão, ou seja, de quais seriam os
livros desta tradição apostólica e que consequentemente seriam elevados à posição de
Escritura dos Cristãos, Irineu dá um passo fundamental, pois é um dos primeiros
representantes da Igreja que trata do assunto (KUMMEL, 1982, p.646-647). Na sua
necessidade de refutar um importante líder religioso cristão de influência gnóstica,
chamado Marcião, que foi o primeiro cristão a propor um cânon para os cristãos, Irineu
acaba por defender um corpus de textos apostólicos que iriam pouco a pouco se
tornando o Novo Testamento para os cristãos (KUMMEL, 1982, p.642). Marcião foi
um importante líder cristão de ascendência gnóstica que viveu na primeira metade do
segundo século, e foi tão influente que fundou uma igreja própria que perdurou por mais
de 300 anos após sua morte. Ele rejeitava fortemente a origem judaica do movimento,
negando tudo o que fosse judeu, inclusive o Deus da Bíblia hebraica. Aliás, negava a
própria Bíblia hebraica que, segundo ele, contava a história de um Deus menor e
diferente do Deus de Jesus Cristo (CATHOLIC ENCYCLOPEDIA, Marcion. 2014).
Kummel ainda reitera o quanto Marcião foi duramente atacado pelos Pais da Igreja por
haver rejeitado o Antigo Testamento:

Bem pouco tempo antes disso, Marcião, que em sua permanência na Ásia
Menor foi duramente atacado por haver rejeitado o AT, veio a Roma e, aí
também, foi excluído da Igreja (cerca de 144 d.C.). Foi então que ele
organizou sua própria Igreja, e como se recusasse totalmente a aceitar o AT,
deu à sua Igreja uma nova Sagrada Escritura, formada por Lc e pelas dez
epístolas de Paulo (sem as Pastorais). Avisando tratar-se de uma restauração
do texto original, Marcião reduziu consideravelmente o texto destes onze
escritos, que ele encontrara no texto da tradição “ocidental”. Além destes,
ele alterou muitos textos partindo de uma perspectiva antijudaica.
(KUMMEL, 1982, p.640)

É em reação à brusca negativa da herança fundamentalmente judaica do

movimento que Irineu escreve:

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Agora eu simplesmente devo dizer, em oposição a todos os hereges, e


principalmente contra os seguidores de Marcião, e contra aqueles que como
estes, mantêm que os profetas pertenciam a outro Deus [que não Ele que é
anunciado nos Evangelhos], leiam com zelosa atenção o Evangelho que tem
sido transmitido a nós pelos apóstolos, e leiam com zelosa atenção os
profetas, e vocês irão ver que toda a conduta, e toda a doutrina, e todos os
sofrimentos de nosso Senhor, foram preditos através deles. (IRENAEUS,
Against Haeresis. 2014. Livro IV, cap. 34. Tradução nossa)

Irineu faz questão de lembrar que a Igreja mantém o evangelho deixado pelos
apóstolos, no plural, e isso é importante, pois Marcião negava a mensagem de todos os
apóstolos com exceção de Paulo (KUMMEL, 1982, p.640). Além disso, ele reforça a
ideia bastante disseminada por toda sua obra de que a tradição apostólica foi mantida na
Igreja da qual ele faz parte e este é argumento de autoridade para ele, aliás, um dos
principais para a formulação de um cânon cristão de textos considerados sagrados.
Como salienta Kummel:

O critério para incluir-se um texto não é seu conteúdo mais o fato de ter sido
escrito por um apóstolo. É por isso que os autores de Lc e Mc são tidos como
autorizados: autorizados em virtude de haverem usufruído do
relacionamento com um dos apóstolos, na qualidade de discípulos.
(KUMMEL, 1982, p. 651)

Além disso, Irineu faz questão de reforçar a ideia de que toda a doutrina cristã
percorre um fio condutor que é o Antigo Testamento, aqui representado pelos
“Profetas”. É uma importante demonstração de proximidade com o judaísmo. O
Evangelho de Cristo é em parte o cumprimento das profecias ligadas à tradição judaica.
Irineu, ainda no terceiro livro de Contra as Heresias, deixa claro a seu leitor que a
“heresia” marcionita ao pretender negar o Deus de Israel se contradiz fortemente
quando elege o apóstolo Paulo como seu único mentor, pois, segundo o próprio Paulo,
como Irineu enfatiza, o Deus de Pedro é o mesmo que Paulo anuncia. Como podemos
ver abaixo:

Com respeito aqueles (os Marcionitas) que alegam que somente Paulo sabia
a verdade, e que para ele o mistério foi manifestado por revelação, deixemos
o próprio Paulo condená-los, quando ele diz, “porque aquele cuja ação fez de
Pedro o apóstolo dos circuncisos, fez também de mim o dos pagãos”
(Gálatas 2:8). Pedro, portanto, era um apóstolo do mesmo Deus de que era
também Paulo; e Ele para quem Pedro anunciou como Deus entre os

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circuncidados, e da mesma forma o Filho de Deus, foi por Paulo [declarado]


também entre os Gentios. Pois nosso Senhor nunca veio para salvar somente
a Paulo, nem é Deus tão limitado em meios, que Ele deveria ter apenas um
apóstolo que conhecesse o suplício do Seu Filho. (IRENAEUS, Against
Haeresis. Livro III. Cap. 13. tradução nossa)

A importância desta afirmação reside no fato de o apóstolo Pedro ser uma


espécie de representação do cristão judaizante na mentalidade de Marcião, ou seja, para
os marcionitas, Pedro e os outros apóstolos, seus seguidores, são pró-judeus. Por causa
de uma célebre discussão retratada no livro de Atos dos Apóstolos entre Pedro e Paulo e
do famoso concílio de Jerusalém, os marcionitas pregavam que a Igreja havia se
dividido entre os que se apegavam fortemente às tradições judaicas e não apenas não as
negavam como as reiteravam, e os que, liderados por Paulo, haviam aberto mão da
antiga Lei e dos profetas. Era claro então que o verdadeiro cristianismo era o paulino
para eles. Pois só Paulo conhecia a verdade da fé. Mas Irineu procura então refutar estas
ideias citando o próprio apóstolo Paulo para frisar que o mesmo Deus dos circuncidados
é o Deus dos Gentios que veio para salvar não somente a Paulo, mas a todos. O que
indica que os judaizantes não estavam excluídos da salvação.
A Gnose, tal como mencionada por Irineu, foi um movimento de várias vertentes
que se desenvolveu ao longo dos primeiros séculos e que tinha por base uma forte
influência das filosofias helênicas que mantiveram contato com a filosofia e a
espiritualidade oriental. Esses intercâmbios culturais possibilitaram, entre outras coisas,
o surgimento do gnosticismo (MATIAS, 2013). Dessa forma, o gnóstico pode ser
caracterizado em linhas gerais como aquele que professa a fé em um mundo onde a
Gnose, ou seja, o conhecimento é o centro da vida religiosa. Segundo Matias, o
gnosticismo pode ser definido assim:

O termo grego “gnose” geralmente é traduzido como conhecimento e é


diretamente relacionado com os diversos grupos chamados pelos Padres da
Igreja de gnósticos aos quais atuavam nos séculos II e III d.C.... O termo
gnose quando utilizado para refletir sobre os vários grupos religiosos que
atuavam nos séculos II e III, perde o seu caráter genérico de um
conhecimento racional e passa a se referir a um conhecimento interior, a um
conhecimento das coisas divinas. Em suma, nessa perspectiva religiosa,
gnosis passa a ser considerado um conhecimento da condição humana e
quem tem esse conhecimento terá sua salvação garantida pelo fato de ter
consciência de sua condição e assim transcendê-la. (MATIAS, 2013, p.9)
Marcião, como o próprio Irineu nos apresenta, era um destes cristãos cuja

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teologia havia sofrido influência do pensamento gnóstico. Alguns de seus aspectos em


comum residem no fato de que pregavam o dualismo entre o Demiurgo, ou seja, o Deus
que criou este mundo e o verdadeiro Deus do qual Jesus Cristo é representante e veio
nos pregar para levar-nos ao conhecimento que leva à perfeição do homem e possibilita
ao homem alcançar a Deus. Portanto, Marcião pregava que o Deus de Israel do qual
davam testemunho as Escrituras hebraicas não era nada mais do que um falso e pequeno
Deus que havia criado este mundo corruptível e cheio de defeitos no qual vivemos.
Apenas Jesus Cristo, segundo Marcião, nos revela a Gnose perfeita do verdadeiro Deus
que possibilita ao homem a vida eterna e a perfeição (IRENAEUS, Contra as Heresias.
Livro I. p.29-123).
Irineu após expor o sistema de crença dos cristianismos de influência gnóstica
em seu livro faz questão de ressaltar a desconexão de seus ensinamentos em relação à fé
dos profetas, ou seja, a tradição judaica, e a fé dos apóstolos, ou seja, a tradição
apostólica. Para ele tudo era fruto simplesmente de uma péssima ou maliciosa
interpretação de textos escriturísticos e por vezes de outros textos considerados
apócrifos que apenas eram úteis aos gnósticos para fundamentar suas “fantasias”, como
podemos ver abaixo:

Esta é, portanto, a teoria deles, que nem os profetas pregaram, nem o Senhor
ensinou, nem os apóstolos transmitiram e pela qual se gloriam de ter
conhecimentos melhores e mais abundantes do que os outros. Leem coisas
que não foram escritas e, como se costuma dizer, trançando cordas com
areia, procuram acrescentar às suas palavras outras dignas de fé, como as
parábolas do Senhor ou os oráculos dos profetas ou as palavras dos
apóstolos, para que as suas fantasias não se apresentem sem fundamento.
Descuidam a ordem e o texto das Escrituras e enquanto lhes é possível
dissolvem os membros da verdade. Transferem, transformam e fazendo de
uma coisa outra seduzem a muitos com as palavras do Senhor atribuídas
indevidamente a fantasias inventadas. (IRENAEUS, Contra as Heresias.
Livro I. p.33.)

Assim, Marcião, que pregava uma ruptura total com o judaísmo, negava as
Escrituras hebraicas, pois afirmava que elas davam testemunho do Demiurgo, do falso
Deus. Desenvolveu um cânon próprio de escrituras que considerava a verdadeira
palavra de Jesus Cristo. Neste sentido, Marcião foi o primeiro homem a propor uma
seleção e padronização de uma lista de livros para os cristãos, formando assim o
primeiro cânon cristão, por volta do ano 144 d.C. (CATHOLIC ENCYCLOPEDIA,

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Marcion. 2015). Dessa forma, Marcião precisou selecionar cuidadosamente os escritos


que, segundo ele, davam respaldo a sua fé. Marcião basicamente selecionou apenas os
escritos de tradição paulina. Algumas cartas de Paulo que já eram bastante conhecidas e
lidas nas comunidades cristãs, e uma parte, na verdade uma versão adaptada, do
Evangelho de Lucas. Este corpus documental passou por uma espécie de adaptação, foi
feita uma tradução própria e, principalmente, vários recortes de partes que não se
encontravam de acordo com as ideias que Marcião pregava. Evidentemente esta prática
dos gnósticos e, em especial de Marcião, não passaria despercebida por Irineu, como
podemos ver:

Além disso apresentam interminável multidão de escritos apócrifos e falsos


que eles mesmo compuseram para causar impressão aos simples e aos que
não conhecem as letras da verdade... Retorcem também algumas frases do
Evangelho para que possam ter este sentido. (IRENAEUS, Contra as
Heresias. Livro I. p.92)

Ao falar especificamente de Marcião, as críticas de Irineu são muito mais


agressivas, o que indica o quanto Marcião escandalizou os bispos da Igreja com suas
ideias. Vejamos a seguir:

Sucedeu-lhe Marcião, originário do Ponto, ampliou a doutrina, blasfemando


despudoradamente o Deus da Lei e dos Profetas, chamando-o autor do mal,
desejoso de guerras, inconstante nos sentimentos e em contradição consigo
mesmo... Além disso, Marcião mutilou o evangelho segundo Lucas,
eliminando tudo o que se refere à geração do Senhor e expungindo muitas
passagens dos ensinamentos do Senhor na qual este reconhece abertamente
como seu Pai o criador do universo. Fez crer aos seus discípulos ser ele mais
verídico do que os apóstolos que transmitiram o evangelho, entregando-lhes
nas mãos não o evangelho mas uma parte do evangelho. Da mesma forma
mutila as cartas do Apóstolo Paulo eliminando todos os textos em que se
afirma claramente que o Deus que criou o mundo é o Pai de Nosso Senhor
Jesus Cristo e também as passagens nas quais o Apóstolo lembra as
profecias que prenunciavam a vinda do Senhor. (IRENAEUS, Contra as
Heresias. Livro I. p.109)

É importante destacar como Irineu critica muito Marcião por negar a tradição
judaica do movimento. As “mutilações” de Marcião, segundo Irineu, foram tão
chocantes que o bispo ainda continua:

A este que foi o único a ter a ousadia de mutilar abertamente as Escrituras e


de ultrajar a Deus despudoradamente mais do que os outros responderemos a
parte, com base nos seus escritos, e com a ajuda de Deus o refutaremos

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usando as palavras do Senhor e do Apóstolo que conservou e que usa.


(IRENAEUS, Contra as Heresias. Livro I. p.110)

Já no III livro Irineu retoma a crítica à maneira de agir daqueles que ele chama
“Hereges”. A crítica novamente recai sobre a questão das escrituras o que só nos mostra
a importância desta questão naquele momento. Irineu relembra que a Igreja segue a
tradição dos apóstolos enquanto os “hereges” dizem que a verdade não necessariamente
foi transmitida por escrito, como podemos observar:

Assim Mateus publicou entre os Judeus, na língua deles, o escrito dos


evangelhos, quando Pedro e Paulo evangelizavam em Roma e aí fundavam a
Igreja. Depois da morte deles, também Marcos, o discípulo e interprete de
Pedro nos transmitiu por escrito o que Pedro anunciava. Por sua parte Lucas,
o companheiro de Paulo, punha num livro o evangelho pregado por ele. E
depois João o discípulo do Senhor, aquele que recostara a cabeça ao peito
dele, também publicou o seu evangelho. Quando morava em Éfeso na Ásia.
Eles todos nos transmitiram que há um só Deus, criador do Céu e da Terra,
anunciado pela Lei e pelos profetas, e um só Cristo, filho de Deus. E se não
acreditam neles desprezam os que tiveram parte com o Senhor...
(IRENAEUS, Contra as Heresias. Livro III. p.247)

Esta primeira parte é importante, pois Irineu estabelece o seu discurso de


autoridade, ou seja, ele traça a sua Igreja e a sua Fé desde os apóstolos, lançando mão da
tradição apostólica que, como vimos, é o principal argumento para a formação do
cânon. Seu discurso contra os “Hereges” segue:

Quando são vencidos pelos argumentos tirados das Escrituras, retorcem a


acusação contra as próprias Escrituras, dizendo que é texto corrompido, que
não tem autoridade, que serve de expressões equivocadas e que não podem
encontrar a verdade nele os que desconhecem a Tradição. (IRENAEUS,
Contra as Heresias. Livro III. p.248)

A ousadia em negar as Escrituras hebraicas, negar a origem judaica do


cristianismo e, principalmente, propor uma nova Sagrada Escritura Cristã, da forma
como o fez, acabou por causar um escândalo na comunidade cristã, principalmente nas
comunidades apostólicas, ou seja, nas comunidades ligadas aos bispos da Igreja. Os
bispos que já estavam combatendo o que eles consideravam uma série de heresias,
inclusive heresias gnósticas, agora viam em Marcião mais um grande inimigo, um
blasfemador que precisava ser combatido, sua “heresia” necessitava de resposta por

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parte da Igreja.
É neste clima que o bispo Irineu em Lyon resolve escrever Contra as Heresias,
sua grande obra de refutação da falsa Gnose onde, além de expor a crença dos
gnósticos, ainda ensina a contestá-la e a defender a fé da Igreja. Neste contexto, surgem
as primeiras discussões dentro da Igreja sobre a questão do cânon, ou seja, da formação
de uma Sagrada Escritura Cristã que se contrapunha ao cânon de Marcião.
É importante ressaltar que nas entrelinhas estava em jogo um processo de
formação de uma identidade cristã oficial que de início tem muita relação com a
aproximação ou total negação do judaísmo. Um movimento dialético que culminará
mais para o final do século III com a progressiva formação de uma identidade cristã que
assegura a continuidade da mensagem judaica renovada e repensada em Jesus Cristo
para todos os povos. Izidoro nos ajuda a compreender este processo quando resume a
maneira como as identidades são construídas historicamente, para ele, apropriando-se
do conceito de outros autores:

É no contexto do movimento das culturas e da história que as identidades


vão se definindo. A busca do eu se realiza dentro do processo dialético da
interação sociocultural. Para Adam Kuper, identidade não é um assunto
pessoal. Ela precisa ser vivida no mundo, num diálogo com outros. É nesse
diálogo que a identidade é formada. O eu interior descobre seu lugar no
mundo ao participar da identidade de uma coletividade. Ao falarmos de
cultura e identidade no plano das relações e interações étnicas, sociais e
culturais, estamos considerando essa realidade como uma construção social.
E, sendo assim, estamos diante de fenômenos resultantes da polarização e da
dialética social presente no dinamismo da história e localizados nos variados
âmbitos sociais. Segundo Denys Cuche, a identidade social de um indivíduo
se caracteriza pelo conjunto de suas vinculações em um sistema social:
vinculação a uma classe sexual, a uma classe de idade, a uma classe social, a
uma nação etc. A identidade permite que o indivíduo se localize em um
sistema social e seja localizado socialmente. (IZIDORO, 2007, p.80)

Ou seja, o processo de definição de uma identidade, como pudemos observar no


caso do cristianismo, é um processo dinâmico de interação sociocultural, por exemplo,
neste caso a interação entre os adeptos da fé em Jesus, sua herança judaica e o
pensamento do mundo helênico e também oriental (em razão dos desenvolvimentos
gnósticos que observamos acima).
Entre os processos sociais e culturais envolvidos na construção da identidade

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cristã, A literatura cristã aparece como objeto de construção de um discurso oficial (na
medida em que é delimitada pelos bispos da Igreja). O papel dos textos como discursos
normatizadores pode ser entendido, de acordo com Judith Lieu, a partir da ideia de que
“os textos têm a capacidade de se imprimir como realidade”. (LIEU, 2002. Apud
SELVATICI, 2014, p.1). Ou seja, segundo Selvatici, os textos conseguem moldar as
práticas dos cristãos. (SELVATICI, 2014, p.1). Segundo Lieu, “O que nós entendemos
como ‘literatura cristã antiga’... constrói para nós, e suspeitamos para seus leitores, uma
identidade” (LIEU, 2002. Apud SELVATICI, 2014, p.1). É claro que, como salienta
Selvatici, o discurso oficial em si é apenas um dos aspectos de análise, tendo em vista
que no campo da práxis pode-se observar que o cristianismo se expressa em várias
vertentes que não seguem o discurso oficial. (SELVATICI, 2014, p.2.) Importante é
entender que através da formação do Cânon do Novo Testamento os bispos da Igreja
procuraram criar um discurso oficial cristão que se legitimava pela autoridade
concedida aos autores de cada um dos livros e assim possibilitaram classificar tudo o
que não seguisse esta ortodoxia como heresia e criar uma norma a ser seguida pelos
cristãos, que, como vimos, constrói uma identidade, mesmo que esta seja uma
identidade oficial.

Considerações finais
Os embates teológicos entre os líderes das principais correntes do cristianismo
no mundo antigo acabaram ao longo do tempo por moldar uma ortodoxia, tanto no
campo das ideias quanto no campo da práxis social (SELVATICI, 2013, p.196-208.).
Ou seja, o confronto dos vários cristianismos que existiam no campo teológico acabou
ao longo dos séculos por fortalecer uma corrente em especial que é o cristianismo
paulino, vinculado à tradição apostólica dos Pais da Igreja (GABEL; WHEELER, 1993,
p. 80-82). Expressões de influência gnóstica terminaram por perder espaço no campo
das ideias e foram dando lugar a uma teologia mais erudita e desenvolvida aos poucos
pelos Pais da Igreja. Em meio a estes embates estava a questão central do Cânon, afinal
de contas com o afastamento temporal gradual dos primeiros líderes cristãos, qual seria
a verdadeira fé? Como ter certeza de que o que estava sendo ensinado pelas várias
comunidades cristãs era de fato a “verdade” de Cristo? Se haviam tantos
“cristianismos”, vários líderes com pensamentos por vezes díspares, onde encontrar a

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“verdade”? Qual era a identidade cristã? É desse modo que as principais lideranças dos
cristãos começam a se voltar para os escritos que, segundo a tradição, supostamente
seriam dos próprios apóstolos ou no mínimo de seguidores muito próximos aos
apóstolos em si. (BROWN, 2004, p. 63-65)
Havia uma vasta literatura apostólica que circulava nas comunidades cristãs a
partir do final da segunda metade do primeiro século e inicio do segundo, boa parte
destas obras eram do apostolo Paulo, ele foi um importante pregador cristão que
percorreu o mundo Gentio levando suas crenças. Por isso seus escritos, assim como o de
outros apóstolos, eram muito respeitados no meio cristão e passaram a servir de guia
para a considerada verdadeira fé. Segundo Kummel:

Uma vez que, desde os primórdios do período pós-apostólico, as palavras do


Senhor e o testemunho vivo dos apóstolos são citados de modo semelhante
como normas divinas, a emergência de uma “Escritura” em duas partes
transformou-se em uma necessidade intrínseca na medida em que aumentava
a distância que separava os cristãos do período apostólico. (KUMMEL,
1982, p.638)

A formação do Cânon e os embates envolvidos revelam a construção e


definição gradual de uma identidade oficial cristã, baseada em uma ortodoxia definida
pelas autoridades da Igreja – ortodoxia esta auxiliada pela definição do cânon dos textos
sagrados para os cristãos. O movimento cristão se originou como uma seita dentro do
judaísmo que ganhou o mundo gentio. Estes embates nos revelam que muito do que
estava em jogo era o afastamento ou não da identidade judaica do movimento. Os
“hereges”, tais como Marcião, que buscavam se afastar e até negar a origem judaica do
movimento eram fortemente combatidos pelos Pais da Igreja, tais como Irineu, que
defendiam a unidade do Deus de Israel e a mensagem de Cristo, tornando-as uma
demonstração perfeita da revelação lenta e gradual de Deus que agora havia feito uma
nova aliança também com os gentios. Dessa forma as discussões iniciais sobre a
formação do Cânon podem nos revelar uma intensa disputa no campo social.
Portanto, podemos perceber como eram tênues as linhas que margeavam a
identidade cristã que aos poucos ia se formando, de uma recusa total das origens
judaicas aos judaizantes que pregavam uma reiteração das crenças puramente judias,
aos, por vezes, mais equilibrados Pais da Igreja, que ressaltavam a importância da fé dos
antigos israelitas, mas também deixavam clara a novidade do evangelho de Cristo que

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agora ganhava o mundo e se abria para todos. A salvação não era mais exclusividade de
Israel, a mensagem do antigo Deus de Abraão havia agora sido renovada e ia, aos
poucos, se adaptando à nova realidade.

REFERÊNCIAS
FONTES
BÍBLIA DE JERUSALEM. São Paulo. Paulus, 2002.
IRENAEUS. Contra as heresias: Denúncias e refutação da falsa gnose. 2. Ed. São
Paulo: Paulus. 1995.
_________. Against Haeresis. 2015. Disponível em:
<http://www.newadvent.org/fathers/> . Acesso em: 30 de Maio de 2015.
BIBLIOGRAFIA
BROWN, Peter. A Ascensão do Cristianismo no Ocidente. Lisboa: Presença, 1999.
BROWN, Raymond. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 2004.
CATHOLIC ENCYCLOPEDIA. Marcion. 2015. Disponível em:
http://www.newadvent.org/cathen/14520c.htm
GABEL, John; WHEELER, Charles B. A Bíblia como literatura. São Paulo: Loyola,
1993.
ISIDORO, José Luiz. Contribuição da antropologia como instrumental teórico na pesquisa
bíblica. Revista Oracula, São Bernardo do Campo. 3.5, 2007. ISSN 1807-8222.p. 73- 88.
ISIDORO, José Luiz. Interação, conflitos e desafios na identidade do cristianismo primitivo.
Revista Brasileira de História das Religiões – Ano I, no. 1 – Dossiê Identidades Religiosas e
História. Maio, 2008. p.64- 75.
KÜMMEL, Werner G. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulus, 1982.
MATIAS, Carlos Almir. A participação de mulheres nos círculos Gnósticos Cristãos nos
séculos II e III. Dissertação (Mestrado em História Social). Universidade Estadual de
Londrina, Centro de Letras e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História
Social, 2013.
SELVATICI, Monica. A formação do cânon do Novo Testamento no mundo romano:
Atos dos Apóstolos e a construção de uma unidade cristã. In: Gilvan Ventura da Silva;
Leni Ribeiro Leite. (Org.). As Múltiplas faces do discurso em Roma: textos,
inscrições, imagens. 1ed. Vitória: EDUFES, 2013, v.1, p. 196-208.

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SELVATICI, Monica. Cristianismo Antigo e Rituais Judaicos: Uma análise sobre a


relação entre discursos e práticas na formação da identidade cristã. Comunicação
apresentada no Seminário Oracula – Martírio no cristianismo primitivo: discursos e
práticas, ocorrido entre 3 e 5 de junho de 2014 no campus da Universidade Metodista de
São Paulo. Texto ainda não publicado.

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PROGNÓSTICO DA MORTE: MODERNIDADE, RELIGIÃO E A


SOCIOLOGIA DO CORPO
Yohan Ise Leon
Orientador: Prof. Dr. Emerson César de Campos
História (Mestrando - PPGH/UDESC)
PALAVRAS-CHAVES: REVISTA INFANTIL O BEIJA-FLOR; RELIGIOSIDADES; REPRESENTAÇÃO DO
MEDO.

Os sentimentos e os prognósticos parecem estar interligados, mas,


evidentemente, podem ser examinados de maneira distintas. Estudos sobre a filosofia da
história ou sentimentos do pós-guerra, servem como exemplo. Aqui, no entanto, busca-
se compreendê-los de maneira conjugada, em suas conexões no sentido emocional e
teleológico.
A proposta articulada caminha por pressupostos que concernem as considerações
de Hartog 276 e Koselleck, sobretudo nas Obras “Regimes de historicidades” e “Estratos
do tempo”, respectivamente. Os limites normativos, entretanto, não permite-nos
abordar, diretamente, os conceitos dispostos nas obras. Caso fosse feito, pouco restaria
para o exame do caso.
De modo a apresentar as conjunturas sobre o tempo, Koselleck argumenta:

Assim como o presente pode ser dissolvido entre o passado e o


futuro, esse extremo mental também pode ser invertido: todo tempo é
presente num sentido específico. Pois o futuro ainda não é, e o passado já não
é mais. O futuro só existe como futuro presente; o passado, só como passado
presente. As três dimensões temporais se conjugam na presencialidade da
existência humana. (2014:231)

Nosso percurso, portanto, tem como pressupostos essas categorias para pensar a
relação da cosmogonia religiosa católica do início do século XX, sua relação com a
percepção da morte e com sua própria filosofia da história. Trata-se de investigar,
especificamente, um conto da revista infantil e católica O Beija-Flor.
Iniciaremos introduzindo o periódico no seio dos impressos, em uma categoria
(literatura utilitária) da literatura, utilizada para definir uma narrativa na qual a

276
Especificamente sobre Hartog, pensemos em suas considerações acerca dos regimes de historicidade.
O trabalho em questão não articula especificamente o conceito, mas inferi-o. Segundo sua interpretação:
“Ninguém duvida de haja uma ordem do tempo, mais precisamente, ordens que variam de acordo com os
lugares e as épocas. Ordens tão imperiosas, em todo caso, que nos submetemos a elas sem nem mesmo
perceber: sem querer ou até não querendo, sem saber ou sabendo, tanto elas são naturais. Ordens com as
quais entramos em choque, caso nos esforcemos para contradizê-las ” (2011:17).

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preocupação principal não é estética 277. Por conseguinte, pensaremos no contexto dos
impressos. A parte final dedicar-se-á ao exame da fonte, os pressupostos da sociologia
do corpo e os paradoxos da modernidade.
O final do século XIX e início do XX é palco da produção em massa da
literatura infantil. A evolução das técnicas de impressão possibilitou o surgimento das
revistas para o público em geral. As mudanças na percepção da função da literatura
infantil, entretanto, não mudaram do mesmo modo que as técnicas do impresso. Desde o
século XVIII até meados do século XX, a literatura infantil possuía função
predominantemente pedagógica, como salienta Perrotti:

Hoje, já se tronou lugar-comum reconhecer que a literatura para


crianças e jovens tem desempenhado um papel predominantemente
pedagógico, desde o século XVIII, quando da sua constituição em forma de
comunicação escrita dirigida por um adulto a uma criança (1986:27).

Esse tipo de literatura, salienta o autor, é caracterizada pela falta de preocupação


estética em prol do objetivo didático, ou seja, a produção é pensada para comunicar
determinada mensagem, independente das consequências estéticas.
No início do século XX, a literatura infantil ainda possui este caráter
pedagógico, no entanto, as concepções pedagógicas e políticas do período, como
destaca Aries 278, objetivam a criança como objeto passível de determinada construção,
como prognóstico. Neste momento, é comum encontrar literatura infantil com propostas
que visam à construção do valor cívico em busca do progresso da nação. Os contos que
serão examinados estão inseridos neste contexto.
Buscar-se-á as características que, de uma maneira ou de outra, permite enxergar
determinado horizonte do futuro. Para isso, algumas questões paralelas devem ser
consideradas, visto que a revista faz parte de uma investida católica no seio dos
impressos em um período que este meio comunicativo mostrou-se de grande valor
social.

277
De acordo com Perrotti, “Visto isso, o problema que nos fica é o de que a literatura para crianças e
jovens não se satisfez com a tradição da arte concebida enquanto instrumento apenas em um de seus
níveis, mas, exagerando a tradição, reduziu-se a isso, fazendo do contingencial, estrutural e da literatura,
propaganda, ao buscar apenas o exortativo, o edificante, o didático [...]. ” (1986:38).
278
Segundo Aries, a literatura infantil surgiu no século XVI, mas é somente a partir do século XVIII que
é pensada diretamente para o público infantil, em consonância com o maior grau de distinção entre
infância e a vida adulta, que vai ficando mais claro a partir deste período. Sobre o tema, ver:
(ARIES,1978).

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376

Uma dessas questões é a investigação do universo simbólico da igreja católica


brasileira do início do século XX e do próprio meio editorial do qual faz parte. Para tal,
utilizaremos, principalmente, os estudos de Martins e Manoel 279. As obras circundam a
área do impresso, a relação com a política do período e os pressupostos do pensamento
católico do início do século. Além desses estudos, cabe salientar que os pressupostos
que concernem à concepção de representação e práticas compartilham das conclusões
de Roger Chartier, que considera a leitura como “prática criadora e produtora de
sentidos singulares ” (2002:123).
Segundo Ivan Manoel, que analisa aspectos da teoria teleológica católica:

A filosofia da história elaborada pelo catolicismo ultramontano do


século XIX e primeira metade do século XX, coerente com seus
pressupostos, seguirá um trajeto diferente, oposto [a filosofia racionalista da
história][...] enquanto os teóricos do catolicismo ultramontano se
lamentavam, no século XIX pela consolidação do mundo moderno, chegando
o papa Pio IX a excomungar a modernidade, conforme se verá adiante, os
pensadores leigos racionalistas se felicitavam por essa mesma consolidação,
exatamente porque, pensavam eles, o movimento histórico, produzido pelo
próprio homem, seria o construtor da perfeição humana [...] (2003:105).

Estas questões possuem importância vital para a análise proposta neste trabalho.
Uma vez que é necessário delimitar os referenciais simbólicos da igreja católica e a
partir disso, considerar de que modo o prognóstico da morte pode dialogar com a
literatura dispostas na revista.
Este exame propõe, portanto, a partir dos contos publicados pela revista O Beija-
Flor, indicar a relação do universo simbólico da igreja católica brasileira do início do
século XX, com as possibilidades de “futuros” da Belle Époque, ou, de maneira geral,
do próprio progresso da modernidade.
Ao que concerne ao medo, baseamo-nos na sociologia do risco, mais
especificamente em Lupton, na Obra Risk (1999). De acordo com a autora, o medo
possui característica criadora, uma vez que busca evitar uma situação de risco.

Consequências que antes apenas afetavam o indivíduo tornam-se


‘riscos’, sistematicamente causados, estatisticamente descritíveis e, nesse
sentido, tipos de evento ‘previsíveis’, que podem também ser sujeitos a
normas supra individuais e políticas de reconhecimento, de compensação e
outras para os evitar [...] (1999:6)

279
MARTINS, Ana Luiza. Revistas em revistas. SP: Edusp, 2008 e MANOEL, Ivan A. O pêndulo da
História: Tempo e eternidade no pensamento Católico (1800-1960). Maringá: Eduem, 2004.

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Assim, certos “medos”, no período moderno, são vistos como previsíveis,


diferenciando-os da concepção medieval, na qual, em síntese, as adversidades estão
relacionadas às causas divinas e naturais que fogem a qualquer possibilidade de
prevenção ou controle. Especificamente, neste exame, o “medo” da laicização da
sociedade, por parte da igreja católica brasileira, torna necessário a ação eclesiástica de
divulgar um conteúdo destinado a prevenir essa mudança. As narrativas analisadas,
portanto, estão inseridas neste contexto.
Para delimitarmos contextualmente o período e o espaço que cerceia nosso
exame, utilizaremos, principalmente, o livro História do Brasil na imprensa de Martins
e Luca (2008) que investiga a evolução técnica do impresso, os incentivos a aquisição
de papel e a alfabetização.
Segundo as autoras, as mudanças sociais decorrentes da sociabilidade moderna e
a disponibilidade tecnológica do período, possibilitaram a produção de um novo
formato de periódicos. Portanto, é no início do século XX que ocorre o “nascimento”
desse tipo midiático destinado a um público específico.
Este período, denominado de Belle Époque (1900-1920) 280, tem como
característica as revistas especializadas. Convém, uma vez que nosso objeto é um
periódico que se encaixa na classificação supracitada, determinar as características das
revistas ditas modernas. Estas revistas possuíam ilustrações coloridas com qualidade e
tratavam de assuntos variados de maneira breve. As ilustrações visavam garantir que
mesmo os analfabetos pudessem consumir as informações. Como descreve de Luca:

As inovações não se limitaram às mudanças na estrutura de


produção, organização, direção e financiamento, mas atingiram também o
conteúdo dos jornais e sua ordenação interna, que começou a exigir uma
gama variada de competências, fruto da divisão do trabalho e da
especialização. Este, por sua vez, não se circunscreveu à composição e a
impressão propriamente ditas, mas redatores, articulistas, críticos, repórteres,
revisores, desenhistas, fotógrafos, além de empregados administrativos e de
operários encarregados de dar materialidade aos textos. (2008:152)

Antes de iniciar a relação do paradoxo moderno e o prognóstico da morte. É


conveniente entendermos o adjetivo moderno. A palavra, a qual o século XIX divulgou
como novo e o futuro é oriunda de “modo”, ou seja, designa o que é presente, o agora; o
instante que logo não existirá. Segundo Compagnon:

280
Esta delimitação temporal, do período denominado de “belle époque”, segue a considerada em:
(NOVAIS,1998).

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[...] o adjetivo moderno, por outro lado, é muito mais antigo,


segundo Hans Robert Jauss, que retraçou sua História; modernus aparece, em
latim vulgar, no fim do século V, oriundo de modo. [...]. Toda história da
palavra e de sua evolução semântica será, como Jauss sugere, a da redução do
lapso do tempo que separa o presente do passado, ou seja, a da aceleração da
História (1999:17).

Essa redução do lapso do tempo tem um caráter específico, sobretudo no século


XIX. O caráter linear, cumulativo e positivo do Homem Moderno, permite-lhe
vislumbrar o futuro. O prognóstico, apoiado nos saberes institucionalizados, mostra-se
atraente.

Uma concepção positiva do tempo, isto é, a de um desenvolvimento


linear, cumulativo e casual, supõe certamente o tempo cristão, irreversível e
acabado. Mas ela o abre para um futuro infinito (Idem. 19).

Um dos paradoxos da modernidade, segundo Compagnon, é a paixão pela


negação. Assim, com o título desse trabalho: “ O prognóstico da morte”, proponho
examinar, no seio da Belle Époque, a negação do futuro positivo em contraponto com o
futuro negativo baseado em uma interpretação de um conto da revista, o qual, por sua
vez, possivelmente é baseado em uma interpretação teleológica da bíblia. Assim, ao
negar o progresso, concomitantemente, deve-se considerá-lo.
A necessidade de prognosticar a morte, ironicamente, é a afirmação que o
prognóstico moderno existe em determinado horizonte de expectativa. Desta forma, o
prognóstico da morte é a própria percepção que o progresso é possível. Assim, apesar de
negar a modernidade, a revista o legitima, ao mesmo tempo que o combate por
considerá-lo falso. Esse é o paradoxo moderno oriundo de uma instituição que tem
como base a tradição.
Apoiando-nos nos pressupostos da sociologia do corpo, no que cerceia,
especificamente, a expressão dos sentidos, entendemo-os como produtos de um grupo
social determinado espacial e temporalmente. Afastando-se da concepção, sobretudo da
ciência biológica, que busca universalizar as emoções. De acordo com David Le Braton:

Os sentimentos que vivenciamos, a maneira como repercutem e são


expressos fisicamente em nós, estão enraizados em normas coletivas
implícitas. Não são espontâneos, mas ritualmente organizados e significados
visando os outros. Eles inscrevem-se no rosto, no corpo, nos gestos, nas
posturas, etc. O amor, a amizade, o sofrimento, a humilhação, a alegria, a
raiva, etc. não são realidades em si, indiferentemente transponíveis de um

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grupo social a outro. As condições de seu surgimento e a maneira como são


simbolizados aos outros implica uma mediação significante (2007:52).

Deste modo, pretendemos investigar a atitude diante do prognóstico da morte,


quais os possíveis sentimentos que a possibilidade da morte pode gerar em um
indivíduo e como isso é materializado no conto.
A narrativa que analisar-se-á adiante, denomina-se “ Um pequeno heroe ” [sic] e
foi publicada em novembro de 1916, pela revista infantil e católica O Beija-Flor. O
conto narra uma história “bem triste, meus caros amiguinhos” (1918:349), de um
menino que vendia jornais denominado “O Progresso”. O conto inicia com o garoto
contando sua história e sua entrada no comércio da venda de jornais.

Foi ali onde começaram os meus sofrimentos. Um senhor muito


rico, cá desta cidade, onde desembarquei sozinho, me ofereceu o posto de
vendedor de jornaes e revistas, que tinha grande massa. Acceitei. Mas, o meu
patrão era muito cruel para commigo. Si eu não conseguia vender todas as
folhas, oh! Então me ralhava, batia-me e ameaçava botar-me na rua. [sic]
(1916:350).

Valério Neves, o garoto, após descobrir que “ O Progresso” não consistia em


coisa boa, enfrentou seu patrão e parou de vendê-lo. Mesmo assim, ficou receoso pelo
pecado cometido. Seu amigo, que escutava tudo, tranquilizou-o:

Socega, Valério – tranquilozei-o. – muito tens sofrido; mas, de hoje


em diante, passarpas bem em nossa casa. Nem foi pecado o que fizeste. Pois,
si tu não sabias que o tal Progresso era máo...
Ficou mais calmo. Conversámos ainda por algum tempo. Um não sei
quê de mysterioso e irresstivel me attrahia a essa almasinha tão cândida e tão
dolorida. [sic] (idem:351)

No final do inverno, Valério está enfermo “deitava sague pela boca” (idem).
Nesse momento, sob os cuidados médicos, queria receber a comunhão e “pelas sete
horas”.

Quando o padre pronunciou as palavras: “o corpo de N. Senhor


Jesus Christo guarde a tua alma para a vida eterna”, então o rostinho de
Valério iluminou-se como si nelle se reflectisse um raio dos resplendores
celestes. Momento depois, o pequeno heroe abrigava no seu peito Aquelle
por quem se sujeitára de bom grado a tantas misérias e privações. Quedou-se
todo immmovel. [sic] (Idem)

Antes da morte, portanto, Valério redimiu-se de seus pecados e garantiu sua ida
ao reino divino “quando o relógio deu oito horas, já nosso “heroesinho exhalára a sua

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alma immaculada”[sic] (idem).


Nota-se a existência de dois prognósticos da morte, o primeiro tem um caráter
teleológico e é exterior a própria narrativa, é o progresso que leva Valério à morte; vive-
se na Belle Époque que é a experiência do próprio progresso. Portanto, podemos
considerar que é o progresso - no âmbito social - o prognóstico da própria morte da
sociedade.
Outra questão relevante é a constituição dos sentimentos de Valério sobre a
própria morte. Tudo dialoga com aspectos da cosmogonia católica. Portanto, há dois
prognósticos paralelos: o progresso enquanto horizonte futuro da sociedade e o
prognóstico do fim da vida de Valério.
A breve análise teve como objetivo apresentar considerações sobre o trabalho
que é fruto das pesquisas para a constituição da dissertação de mestrado. As questões,
além de divulgar resultados parciais, possibilita-nos debater os pontos articulados sobre
a pesquisa, suas metodologias e teorias, assim como as articulações entre as diversas
áreas da ciência humana.

Referências
ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1978.
BRENTON, David Le. A sociologia do corpo. Rio de Janeiro: Vozes, 2007.
CHARTIER, Roger. História Cultural: entre práticas e representações. 2°edição,
Lisboa: Difel, p. 123, 2002.
COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade, Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 1999.
HARTOG, François. "Regimes de Historicidade. Presentismo e Experiências do
Tempo". Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2013.
LUPTON, Déborah. Risk. Routledge. 29 West 35 th Street, New York, NY 10001,
1999.
MANOEL, Ivan A. O pêndulo da História: Tempo e eternidade no pensamento
Católico (1800-1960). Maringá: Eduem, 2004.
MARTINS, Ana Luiza. Revistas em revistas. SP: Edusp, 2008
MARTINS, Ana Luiza & LUCA, Tânia Regina. História da imprensa no Brasil. SP:
Editor Contexto, 2008.

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________, Ana Luiza & LUCA, Tânia Regina. Imprensa e Cidade. SP: Editora UNESP,
2006.
NOVAIS, Fernando (coord.) -História da vida privada no Brasil. República: da Belle
Époque à era do rádio (v.3). São Paulo: Cia das letras, 1998.
PERROTTI, E. O texto sedutor na literatura infantil. São Paulo: Ícone, 1986.
ROHDEN, H. “Um pequeno heroe”. In: Revista infantil O Beija Flor. Rio de Janeiro,
N. 2, nov. 1916, p. 349-351.

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HISTÓRIA E
ENSINO

Buddhashri Sanggye Pal. 1339-1419


383

A APRENDIZAGEM HISTÓRICA PENSADA A PARTIR DO USO


DO JORNAL “LA PROVINCIA DI BOLZANO”
Ana Paula Rodrigues Carvalho (UEL – PPG História Social/ CAPES)
Orientadora: Márcia Elisa Tetê Ramos
PALAVRAS CHAVE: APRENDIZAGEM HISTÓRICA; ENSINO DE HISTÓRIA; JORNAL; FASCISMO.

INTRODUÇÃO
Este trabalho propõe como tema analisar de que forma ocorre a aprendizagem
histórica nos alunos a partir do uso da fonte histórica, o jornal fascista, La Provincia di
Bolzano em sala de aula. Desta forma, a partir da problematização do jornal serão
trabalhados o conteúdo substantivo 281 fascismo e os conceitos de segunda ordem
evidência e empatia. Em seguida as narrativas produzidas pelos aluno serão
categorizadas e analisadas com o objetivo de compreender de que forma eles relacionam
o que foi aprendido com questões ou situações que envolvem sua própria realidade.
O jornal La Provincia di Bolzano não se prefigura como a fonte que será
analisada na pesquisa. O objetivo deste trabalho não é analisar o jornal em si, mas
entender de que forma seu uso em sala de aula pode colaborar para o desenvolvimento
da aprendizagem histórica nos alunos. Logo, é por meio do seu uso em sala de aula que
será possível alcançar os objetivos propostos aqui. Desta forma, é importante
problematizar a utilização do jornal, pois este norteará a produção das narrativas dos
alunos. Neste sentido, é de vital importância que no seu manuseio em sala de aula o
jornal seja devidamente ponderado enquanto fonte histórica. Portanto, faz-se necessário
questionamentos acerca do seu lugar social, cultural e institucional, assim como sua
inserção no debate teórico- metodológico.
O uso de periódicos enquanto objeto que possibilita o conhecimento sobre o
passado não deve ser entendido como material neutro e objetivo. Conforme Capelato e
Prado, o historiador ao se debruçar sobre periódicos esta cônscio de que se trata de um
“instrumento de manipulação de interesses e de intervenção na vida social” e não de

281
Segundo Peter Lee (2001): “Conceitos substantivos são os que se referem a conteúdos da História,
como por exemplo, o conceito de indústria. Conceitos de segunda ordem são os que se referem à natureza
da História, como por exemplo, explicação, interpretação, compreensão” (LEE, 2001, p.20).

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“mero veículo de informações, transmissor imparcial e neutro dos acontecimentos”. 282


A subjetividade e os interesses que envolvem a realização de um jornal não o torna uma
fonte desprezível para História, mas traz em pauta as atenções necessárias que devem
ser seguidas no manuseio desta fonte.
Levando em consideração que “os discursos adquirem significados de muitas
formas, inclusive pelos procedimentos tipográficos e de ilustração que os cercam. A
ênfase em certos temas, a linguagem e a natureza do conteúdo tampouco se dissociam
do público que o jornal ou revista pretende atingir”. 283 A análise do jornal vai além do
conteúdo propalado; aspectos como o formato, sua organização, o corpo editorial, o
público alvo, a sua área de alcance, a sua relação com o mercado e outros poderes faz
com o a imprensa perca sua áurea de neutralidade.

O JORNAL LA PROVINCIA DI BOLZANO


O jornal La Provincia di Bolzano foi publicado pela primeira vez em março de
1927 e circulou pela cidade de Bolzano e Merano até setembro de 1943. Por se tratar de
um diário, era publicado todos os dias da semana, exceto nas segundas-feiras. A tiragem
do jornal era de 2.300 copias em 1929 284 e era vendido pelo preço de £ 0,25 (vinte cinco
centavos de liras italianas). 285 Durante os dezesseis anos do seu funcionamento, o jornal
passou por várias alterações em sua direção: L Negrelli, 1927; A. Giarratana, 1927-28;
S. Maurano, 1931-33; M. Ferrandi, 1934-42. 286 A quantidade de páginas do jornal
variava de 4 a 8. De acordo com o decreto de julho de 1926, Mussolini determinou que
o número máximo para as páginas dos jornais deveria ser seis, no entanto por três dias
na semana este número poderia ser superado.
Este diário encontra-se em versão digitalizada e disponibilizada no site da
Biblioteca Provinciale Italiana Claudia Augusta de Bolzano. Os números
disponibilizados do jornal La Provincia di Bolzano vão desde o ano de 1927 a 1941.287

282
LUCA, T. Regina. História dos, nos e por meio dos periódicos. In. PINSKY, Carla Bassanezi
(Org.). Fontes históricas. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2010. p.140.
283
Idem, p.140.
284
FORNO, Mauro. La Stampa Del Ventennio: Strutture e trasformazioni nello stato autoritário. Soveria
Mannelli: Rubbettino Editore, 2005.
285
La Provincia di Bolzano. Bolzano, p.1, 10 jan 1929.
286
MURIALDI, Paolo. La Stampa del Regime Fascista. 3 ed. – Roma- Bari: Editori Laterza, 2008. p.223.
287
Os números disponíveis são os que seguem: 1927 n.001 - n.218; 1928 n.001 - n.310; 1929 n.001 -
n.311; 1931 n.001 - n.310; 1932 n.001 - n.312; 1933 n.001 - n.309; 1934 n.155 - n.309; 1935 n.001 -

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Graças a este expediente o jornal hoje faz parte do meu acervo documental o que
viabiliza a sua utilização nesta pesquisa. O trabalho de tradução necessário para a
preparação do material para elaboração da aula e dos textos que serão disponibilizados
para os alunos será realizado por mim.
O jornal La Provincia di Bolzano foi o primeiro diário em língua italiana na
região do Trentino Alto Adige - Itália. Esta região, que antes pertencia ao Império
Austro- Húngaro, foi anexada ao território italiano após a primeira Grande Guerra
Mundial pelo Tratado de Saint Germain em 1919. Segundo Faustini, este jornal foi “[...]
288
o órgão oficial do fascismo altoatesino”. Desta forma, enquanto órgão oficial do
partido fascista estava vinculado ao dever de “instruir, educar, orientar, tranqüilizar,
incutir orgulho” nas massas. 289
Para David Forgacs, o fato que a imprensa italiana passou por um processo de
fascistizzazione 290 já nos primeiros anos do regime indica a influência da precedente
experiência jornalística de Mussolini no jornal Avanti. Mussolini, enquanto jornalista,
assim come seus colaboradores, “entendiam os jornais; sabiam como funcionavam e
compreendiam a importância e influência política”. 291 Por mais que em 1931 o
analfabetismo na Itália em geral superasse o 20% da população e em algumas regiões
alcançasse quase o 50 %, o jornal ainda era o meio de comunicação mais difuso na
Itália. 292
Desta forma, a imprensa resulta determinante para manutenção do consenso
entre as massas: “[...] para tornar aceitáveis à opinião pública as suas batalhas, os seus
desenhos hegemônicos e as suas guerras, para suscitar no país um espírito “nacional” e
“fascista”, no qual cada cidadão poderia identificar-se”. 293 Devido à influência exercida
pela imprensa perante a opinião pública o controle e a censura eram constantemente

n.311; 1936 n.001 - n.310; 1937 n.001 - n.311; 1938 n.001 - n.311; 1939 n.001 - n.310; 1940 n.001
- n.311; 1941 n.001 - n.61.
288
Também autor da obra Storia dell’autonomia del Trentino - Alto Adige, Publilux, Trento 1995.
289
FORNO, 2005. p.123.
290
Por fascitizzazione se entende o processo de controle e censura pelo qual os jornais italianos foram
submetidos durante o vinteno fascista. Segundo Forgacs, “se tratava de uma reorganização do staff
editorial e de controle político de todos os artigos; em alguns casos significou também alteração do
proprietário do jornal” (FORGACS, 2000, p.108).
291
FORGACS, David. L’industrializzazione della Cultura Italiana (1880 - 2000). Bologna: Il Mulino,
2000. p.108.
292
FORGACS, 2000, p.89.
293
FORNO, Mauro. La Stampa Del Ventennio: Strutture e trasformazioni nello stato autoritário. Soveria
Mannelli: Rubbettino Editore, 2005.

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exercidos. Por exemplo, Mussolini em uma reunião para tratar acordos com o Vaticano
em 1929 lança uma advertência:

O regime está em alerta – disse o duce – e nada passa despercebido.


Que ninguém pense que o insignificante panfleto que sai da anódina
paróquia não seja, a um certo ponto, notório para Mussolini. Não
permitiremos ressurreições de partidos e de organizações que
destruímos para sempre. 294

O jornal fascista La Provincia di Bolzano além de procurar consenso entre a


comunidade de Bolzano tinha como particularidade o objetivo de infundir a italianità
entre um grupo que não se reconhecia como tal. A maioria da população de Bolzano era
de origem eslava ou germânica, no entanto com a entrada em vigor do regime fascista
em 1922 a vida destas pessoas sofreu grandes alterações. A imposição da língua
italiana, a mudança dos sobrenomes estrangeiros para o italiano, a proibição da
circulação da imprensa estrangeira na cidade, a proibição de se ensinar outra língua nas
escolas além do italiano, a migração de milhares de italianos do sul para povoar a região
entre outras coisas podem ser apreendidas por meio do jornal.

LA PROVINCIA DI BOLZANO EM SALA DE AULA


A proposta de trabalhar o jornal La Provincia di Bolzano como fonte em sala
não se limita a aquisição cumulativa de conhecimento substantivo acerca do fascismo.
A proposta é analisar de que forma é possível desenvolver a aprendizagem histórica a
partir de conceitos metahistóricos como narrativa histórica, evidência e empatia
histórica.
Para Rüsen, a narrativa histórica é a forma pela qual a consciência histórica
organiza a experiência do tempo; seria a habilidade de dar sentido ao passado através da
competência narrativa. Conforme Gago, a competência narrativa é “a capacidade de
narrar uma narrativa pelos sentidos/significados, através dos quais e com os quais se dá
à vida prática um locus orientacional de tempo”. 295 Este trabalho se volta para a
categorização das narrativas dos alunos por acreditar que as narrativas são artefatos do
294
MUSSOLINI apud MURIALDI Paolo. La Stampa del Regime Fascista. 3 ed. – Roma- Bari: Editori
Laterza, 2008. p.69.
295
GAGO, Marília. “Uso (s)” e “unitidade (s)” da narrativa histórica na aula: Um olhar de professores
acerca da aprendizagem dos alunos. In. SCHIMDT, M. Auxiliadora; BARCA, Isabel. Aprender história:
perspectivas da educação histórica. Ijuí: Ed. Unijuí, 2009. p.181.

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pensamento histórico e, portanto instrumentos centrais para se pensar a aprendizagem


histórica.
Esta pesquisa está sendo atuada em dois colégios estaduais de Guarapuava em 4
turmas do ensino médio. Em uma escola as turmas participantes são do 1º e 3º ano. Na
outra escola as turmas são do 2º e 3º ano. O crivo de seleção das turmas foi determinado
pelo fato que eles já havia estudado fascismo durante o ensino fundamental.
Foram aplicados os questionários sócio econômico e cultural e o questionário
para mapear as ideias prévias dos alunos. O fato de se conhecer as idéias tácitas dos
alunos permite organizar as tarefas necessárias para estimular o contato entre as idéias
prévias com o conhecimento científico. Somente após o mapeamento dos
conhecimentos prévios dos alunos será possível a elaboração do segundo questionário
do estudo principal.
O uso da evidência histórica é fundamental para se pensar o ensino de História,
pois permite aos alunos a compreensão da investigação histórica e assim a reconstrução
de eventos do passado por meio das fontes. As fontes, a partir do momento que são
interrogadas com o intuito de responder a questões relativas aos objetivos propostos
pelo professor, se tornam ferramentas úteis para a construção do conhecimento histórico
na sala de aula, pois revelam evidências do passado a partir do presente. Segundo
Ashby, “[...] a evidência histórica existe quando uma afirmação ou hipótese histórica
fundamenta-se em vestígios ou fontes plausíveis em relação a determinado tema
histórico”. 296
Conforme Lee, o uso de evidências na sala de aula auxilia na compreensão da
disciplina História, mas com algumas ressalvas, pois:

Só quando as crianças compreendem os vestígios do passado como


evidência no seu mais profundo sentido – ou seja, como algo que deve
ser tratado não como mera informação, mas como algo de onde se
possam retirar respostas a questões que nunca se pensou colocar – é
que a história se alicerça razoavelmente nas mentes dos alunos
enquanto atividade com algumas hipóteses de sucesso. 297

296
SOBANSKI, Adriande de Quadros, CHAVES, Edilson Aparecido, BERTOLINI, João Luis da Silva e
FRONZA, Marcelo. Ensinar e Aprender História: Histórias em Quadrinhos e Canções. Curitiba: Base
Editorial, 2010. p.40.
297
LEE, Peter. Nós fabricamos carros e eles tinham que andar a pé”: compreensão das pessoas do
passado. In. BARCA, Isabel. Educação histórica e museus. Actas das Segundas Jornadas
Internacionais de Educação Histórica. Braga: Lusografe, 2003. p.25.

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Desta forma, as evidências não devem ser percebidas como mera ilustração, mas
devem estimular questionamentos a respeito do contexto social que as produziu, da sua
autoria, das suas intencionalidades e das suas finalidades. Conforme, Abud:

A produção cultural, que se expressa por meio de diferentes


linguagens, transforma-se em evidência quando, de material original,
isto é, de produção não-intencional para finalidades pedagógicas,
passa a ser um instrumento para o desenvolvimento de conceitos na
aula de história. 298

O jornal, além de possibilitar o levantamento de evidências, permite o contato


entre o contexto social vivido pelas pessoas durante o regime fascista e os alunos. O
outro aspecto que será desenvolvido a partir do jornal é a empatia histórica. Conforme
Peter Lee, ela é fundamental para que os alunos compreendam porque as pessoas no
passado pensaram e agiram de uma determinada maneira. Neste sentido, o uso da
evidência, possibilita a ligação entre “[...] o passado e interpretação que dele é feita no
esforço de o conhecer”. 299
O jornal fascista La Provincia di Bolzano, enquanto reflexo plausível do vivido
da comunidade de Bolzano sob o fascismo, torna-se ferramenta para formação de
empatia nos alunos por os colocarem em contato com as tramas cotidianas relatadas
pelo jornal. O uso de trechos do jornal tem como escopo possibilitar a investigação
sobre as formas como o fascismo foi colocado em ação na região de Bolzano e o que
significou para aquelas pessoas viverem sob o regime.
Entretanto, quando se fala de empatia histórica não se espera que os alunos
pensem e sintam exatamente o que os habitantes da cidade de Bolzano sentiram. De
acordo com Clarisse Ferreira,

Empatizar historicamente é compreender os motivos e explicar as


acções dos homens no passado, de modo a torná-las inteligíveis às
mentes contemporâneas. Tal implica um amplo conhecimento do
respectivo contexto histórico e a interpretação da evidencia histórica

298
ABUD, Kátia Maria. Registro e representação do cotidiano: a música popular na aula de
história. Caderno Cedes, Campinas, v. 25, n. 67, p. 309-317, 2005. p.312.
299
SIMÃO, A. Catarina. A construção de evidência histórica: concepções de alunos do 3.° ciclo
secundário. In. Actas das 7.as Jornadas Internacionais de Educação Histórica. Braga: Minhografe-
Artes Gráficas, 2008. p.75.

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389

diversificada e / ou contempladora de diferentes perspectivas, estando


também vinculado o uso da imaginação histórica. 300

Sendo assim, a empatia histórica mais do que compartilhamento dos mesmos


sentimentos das pessoas do passado significa compreender dadas práticas considerando
o contexto na qual se inseriram.
A atividade avaliativa que será proposta após a análise e categorização dos
primeiros questionários tem como objetivo verificar os níveis de explicação histórica
contida nas narrativas produzida pelos alunos. Segundo Gago, “[...] estes momentos de
avaliação visam compreender o pensamento do estudante que evolui de um
conhecimento informal para um conhecimento formal- científico”. 301 A categorização
das narrativas tem como finalidade compreender de que forma se dá a construção e a
aplicação do pensamento histórico nos alunos. Pois, acredita-se que a “história não é o
estudo do passado, nem como ciência nem como ensino. A história é um nexo
significativo entre passado, presente e futuro”. 302

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa se encontra em fase inicial e portanto não é possível discutir sobre
os possíveis resultados. No entanto, com esta pesquisa espera-se superar as dificuldades
específicas ligadas ao ensino de história, aproximar os alunos do processo de construção
do saber histórico através de fontes históricas possibilitando uma compreensão mais
concreta acerca da História. Sabe-se que não existe uma metodologia única e eficiente
para que ocorra uma aprendizagem de qualidade. Espera-se com esta pesquisa poder
explicitar e pensar as possibilidades necessárias para que as aulas se tornem realmente
um lugar de interação dialógica que possibilite o desenvolvimento de uma consciência
genético- crítica que comporta a autonomia dos alunos como cidadãos conscientes do
seu papel de sujeitos históricos na sociedade.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

300
FERREIRA, Clarisse. O papel da empatia histórica na compreensão do outro. In. BARCA, Isabel;
SCHMIDT, M. Auxiliadora. Educação Histórica: Investigação em Portugal e no Brasil. Actas das quintas
jornadas internacionais de Educação Histórica, 2009. p.117.
301
GAGO, 2009, p.177.
302
CERRI, 2011, p. 120.

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AS PRÁTICAS DE LEITURA ENTRE OS JOVENS: PENSANDO


NOVOS CAMINHOS E POSSIBILIDADES PARA O ENSINO DE
HISTÓRIA
Ana Beatriz Accorsi Thomson (Mestranda em História Social – UEL).
Orientador: Prof. Dr. Marlene Cainelli
PALAVRAS-CHAVE: PARADIDÁTICOS; LITERATURA; ENSINO DE HISTÓRIA.

[...] trabalhar com a literatura infantil representa,


simultaneamente, contribuir para a formação
integral da criança e inseri-la na alteridade, isto
é, no contato com o que é diferente dela [...].
(COSTA, 2007, p. 33).

Acreditamos ser cada vez mais necessária a reflexão acerca das práticas de leitura entre
os jovens na atualidade. Segundo Coelho (2000), o contexto cultural de transformações
tecnológicas e comunicativas, estabelecido no final do século XX, vem influenciando debates e
reformulações no âmbito da Literatura voltada ao público adolescente. A autora aponta uma das
inquietações vivenciadas na atualidade: qual seria o lugar da literatura em um mundo cada vez
mais tecnológico?
Concordamos com a resposta dada por essa mesma autora à sua própria inquietação.
Segundo ela, “[...] a literatura, e em especial a infantil, tem uma tarefa fundamental a cumprir
nesta sociedade em transformação: a de servir como agente de formação, seja no espontâneo
convívio leitor/livro, seja no diálogo leitor/texto estimulado pela escola” (COELHO, 2000, p.
15).
Assim, para que possamos compreender como vem se estruturando o meio literário
voltado aos jovens e quais os papeis que ele tem assumido na atualidade, buscaremos verificar
brevemente como se deu o surgimento desse tipo de recurso no contexto brasileiro. Foi
principalmente a partir da década de 1980 que o mercado literário voltado ao público jovem
passou a se expandir em larga escala. Nessa época, já existiam as chamadas obras “pioneiras”,
como aquelas de Monteiro Lobato, por exemplo. No entanto, foi no final do século XX que o
campo realmente se expandiu massivamente.
A partir de meados dos anos 80, a produção de Literatura Infantil/Juvenil
‘explode’ no mercado editorial, tornando-se quase impossível, ao analista, o
registro global das centenas de títulos publicados e o crescente número de

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novos escritores e ilustradores que surgem no rastro dos pioneiros.


(COELHO, 2010, p. 287).

Mas afinal, como são caracterizadas essas obras literárias voltadas ao público jovem,
que têm surgido nos últimos anos? Com a expansão da produção desses materiais, foi necessário
estabelecer algumas vertentes principais de caracterização. Coelho (2010) define as atuais
tendências da literatura infantil/juvenil em três categorias principais. A primeira categoria,
chamada Realista, é formada por obras que buscam retratar o cotidiano típico de uma criança,
costumes, pequenos mistérios e aventuras, problemas sociais e reflexões psicológicas. A
segunda categoria, intitulada Fantástica, envolve o universo do imaginário e da fantasia. Já a
terceira categoria é chamada Híbrida, pois parte de um contexto considerado realista e
incorpora elementos do fantástico também.
É evidente que, ao estabelecer essas classificações, a autora não pretende engessar e
propor uma divisão única entre as obras, mas apenas delimitar e, de certa forma, mapear as
tendências atuais desse universo literário infantil/juvenil.

Vista em conjunto, a atual produção de Literatura destinada a crianças e


jovens, entre nós, apresenta uma crescente diversidade de opções temáticas e
estilísticas, sintonizadas com a multiplicidade de visões de mundo que se
superpõem no emaranhado da ‘aldeia global’ em que vivemos. (COELHO,
2010, p. 289).

Os paradidáticos “clássicos”

Dentro desse campo de produção de obras literárias voltadas aos jovens, surgiram
também aqueles materiais considerados paradidáticos “clássicos” – que, além estabelecerem
relações diretas com a escola e com o processo de aprendizagem, foram produzidos
especificamente para esse fim. Segundo Laguna (2001), esses materiais surgiram a partir de
debates a respeito das práticas de leitura dos alunos.

Os livros paradidáticos nasceram das discussões sobre a necessidade de


autores brasileiros produzirem para crianças e jovens buscando formar,
através deles, o desejo, o gosto e o prazer de ler. As editoras passaram a
investir em textos alternativos, com temas e linguagem mais acessíveis, que
serviriam para introduzir o aluno no universo da leitura e prepará-lo para
obras mais complexas [...]. (LAGUNA, 2001, p. 48).

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Reconhecemos, portanto, que o material paradidático apresenta uma linguagem mais


acessível aos alunos, pois já foi produzido com o propósito de ser utilizado para uma faixa etária
direcionada. Gatti Junior (2004) traz alguns depoimentos de professores a respeito da utilização
desse tipo de material em sala de aula. Um desses professores afirma que: “enquanto o livro
didático tinha a preocupação de, por exemplo, dar uma e única versão de um acontecimento,
esses textos [paradidáticos] podem introduzir polêmicas” (NEVES apud GATTI JUNIOR,
2004, p. 210).
Nesse sentido, de acordo com Zamboni (1991), os materiais paradidáticos na forma de
uma “nova cultura livresca” teriam surgido com a “[...] finalidade de complementar o livro
didático, subsidiar o trabalho docente e oferecer ao professor e aos alunos novas abordagens a
respeito dos temas estudados e/ou propor outros” (ZAMBONI, 1991, p. 2).
A presença de materiais diversificados e complementares ao livro didático no ensino foi
ampliada principalmente devido ao anseio de grupos de professores que desejavam inovar em
suas práticas (ZAMBONI, 1991). Criou-se, então, uma demanda para os materiais
paradidáticos voltados ao ensino, com o objetivo de dar suporte ao uso do livro didático como
fascículos, revistas, textos literários, livros temáticos etc. Inclusive, de acordo com Fonseca
(2003, p. 54), muitos dos materiais paradidáticos “[...] tornaram-se um novo campo para a
publicação dos trabalhos acadêmicos”. A autora inclui esses materiais de “diferentes tipos e
enfoques” no movimento de renovação pelo qual passou o ensino de história na década de 1980,
que foi acompanhado pelas novidades que apontavam no mercado editorial.

As editoras têm organizado persistentes esquemas visando expandir o


mercado consumidor do “paradidático”. O incremento mercadológico ocorre
por meio de mudanças editoriais, abrangendo aspectos formais e de conteúdo
das publicações, em tudo quanto possa atrair o público escolar. (ZAMBONI,
1991, p. 2).

Nesse sentido, devemos procurar compreender o surgimento dos paradidáticos também


dentro do contexto mercadológico e editorial, pois compreende-se que “[...] os paradidáticos não
são tão inocentes, pois sua tessitura é montada com o objetivo de consumo imediato e massivo,
semelhante a qualquer tipo de mercadoria vendável” (ZAMBONI, 1991, p. 4,5). Dessa forma,
Zamboni (1991) afirma que a educação, no final do século XX, passou a abarcar também o setor
privado e passou a ser concebida como um “investimento comercial”. Ainda segundo a autora, a
demanda cada vez mais crescente da ampliação da escolaridade fez com que o Estado não desse
mais conta de atender a toda a sociedade e a educação passou a ser considerada uma
“mercadoria cultural de massa”. Nesse sentido, visando preencher esse espaço que só vinha se

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ampliando, Zamboni (1991) afirma que as editoras ligadas ao mercado educacional passaram a
pensar em alternativas além dos livros didáticos e a partir desse “flanco aberto” investiram na
produção dos paradidáticos, que segundo a autora se configuraram como o “novo filão
lucrativo”.

A denominação paradidático, em catálogos editoriais, apareceu no final da


década de 1970. Foi lançada numa política de “marketing” com finalidade
comercial por Giro Takashi, que na época trabalhava para a Editora Ática.
(ZAMBONI, 1991, p. 11).

Outro fator relevante a ser considerado também é que durante a década de 1980 houve
uma crise editorial no Brasil, estimulada pelos altos índices inflacionários. Isso fez com que
algumas editoras vendessem até 60% a menos de um ano para o outro, como exemplifica
Zamboni (1991, p. 10). Nesse contexto, os livros com conteúdos didáticos e voltados aos
estudantes se mantiveram como esperança e “retaguarda” econômica de muitas editoras.

O filão de ouro para o comércio do livro desloca-se para a juventude. Os


editores investem em livros didáticos, literatura infanto-juvenil e agora nos
denominados paradidáticos, que começam a entrar fortemente no mercado
desde a década de 1980. (ZAMBONI, 1991, p. 11).

Assim, nas últimas décadas do século XX esse tipo específico de material passou a se
apresentar como uma rentável alternativa às editoras, configurando também uma nova forma de
encararmos o ensino de história, afinal:

[...] a ampliação do mercado de paradidáticos nos [leva] a concluir que as


empresas editoriais tornaram-se, nas últimas duas décadas, agentes poderosos
na definição de o que ensinar em história e como ensiná-la na escola
fundamental. (FONSECA, 2003, p. 56).

Zamboni (1991) afirma que esses recursos passaram a ser considerados por muitos
como a “[...] panaceia de todos os problemas do ensino” (ZAMBONI, 1991, p. 47). No entanto,
segundo a autora, muitos deles inovaram apenas no aspecto da linguagem e nas novas formas de
apresentação estética, pois seu conteúdo continuava tradicional e os níveis de recortes temáticos
também continuavam os mesmos daqueles materiais institucionalizados.
Essa autora realizou uma análise de livros paradidáticos voltados ao público do Ensino
Fundamental, publicados principalmente durante a década de 1980. Em seu trabalho ela mapeou

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os principais paradidáticos do mercado, segundo cada editora e coleção. Ela verificou três
coleções em particular: A História em Documentos (Editora Atual), Redescobrindo o Brasil
(Editora Brasiliense) e O Cotidiano da História (Editora Ática). Primeiramente, ela verificou as
inovações nos formatos e, depois, buscou sistematizar as inovações “conteudísticas”. Alguns
fatores foram priorizados na análise como: apresentação gráfica, jogos de cores, tipo de letras,
ilustrações, vocabulário, papel, páginas, linguagem, recursos narrativos, apresentação da história
em quadrinhos, da narrativa ficcional, emprego de documentos, contexto social, sujeitos
históricos, relações sociais.
A autora em sua pesquisa pretendeu ainda analisar como se expressava a dinâmica do
poder nos materiais. Os níveis de manifestação de poder que foram analisados por Zamboni
(1991) são: a organização política (instituições, leis, Igreja, nobreza, etc.) e a interação social
(dia a dia, diálogos, posturas, etc.).
Após a análise, Zamboni (1991) concluiu que a relação entre paradidático e inovação
pedagógica não se concretizava em termos reais, pois nem sempre esses materiais atendiam aos
novos recortes temáticos, ao desenvolvimento de um pensamento crítico, à interpretação de
fontes históricas e ao questionamento de algumas visões tradicionais da historiografia.

Portanto, o emprego da forma isolada, por mais inovadora que seja,


impossibilita o alcance de inovações que apontem para a transformação, que
somente será alcançada com mudanças substanciais nas abordagens do
conteúdo proposto. E isto, como acreditamos ter explicitado, não ocorreu,
pois, no final a história veiculada continuou sendo aquela exaltadora de
heróis, excludente das minorias, reforçadora dos laços de dominação.
(ZAMBONI, 1991, p. 200).

Para que a utilização desses materiais pudesse ser realmente significativa, segundo
Zamboni (1991), eles deveriam ser agregados a uma abordagem consciente por parte do
professor.

Os professores, na procura do novo, buscam nos filmes, nas revistas, nos


jornais, recursos que possam lançar mão para inovar em sua prática docente.
Entretanto, a sua precária formação, acrescida pela falta de informações a
respeito das diferentes linguagens, impede-os de explorar de modo
satisfatório todas as possíveis dimensões existentes nestes veículos de
comunicação. (ZAMBONI, 1991, p. 76, 77).

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As obras literárias vistas como paradidáticos

Ao consideramos nessa pesquisa os materiais paradidáticos como aqueles que


pretendem estabelecer relações diretas com a escola e com o processo de aprendizagem,
englobamos também as obras literárias infantil/juvenil de forma geral (e não apenas aquelas
produzidas especificamente para serem utilizadas na escola). Como esses materiais podem
exercer o papel de “agentes de formação”?
Em primeiro lugar, é necessário compreender que as obras literárias são formadas por
determinada representação da realidade. Mesmo que algumas apresentem temas fantásticos, por
exemplo, elas são baseadas em certo conjunto de valores e ideias que fazem parte do mundo
vivido e representam o universo do qual o jovem faz parte.

Considerada enquanto criação na linguagem, a literatura tem por natureza


uma profunda característica social. A linguagem pressupõe sempre o contato
e a interação entre o criador e produtor do texto e os receptores. Além dessa
natureza linguística, a literatura trata de assuntos e temas humanos, isto é,
que têm relação com a vida humana (sentimentos, afetos, temores, desejos,
vivências), mesmo que apresente personagens sob forma de animais ou
objetos, pois eles representam sempre a compreensão do ser humano sobre a
realidade. (COSTA, 2007, p. 23).

Assim, compreendemos que a leitura de uma obra literária não se mostra como a
simples absorção de uma mensagem ou experiência simplesmente estética, mas sim uma
“convivência particular com o mundo criado através do imaginário” (ZILBERMAN, 1985, p.
24). Concordamos, portanto, com De Certeau (1998, p. 266) que “[...] o texto só tem sentido
graças a seus leitores; muda com eles; ordena-se conforme códigos de percepção que lhe
escapam. Torna-se texto somente na relação à exterioridade do leitor [...]”. De acordo com esse
autor,

[Pesquisas] mostram que a criança escolarizada aprende a ler paralelamente à


sua aprendizagem da decifração e não graças a ela: ler o sentido e decifrar as
letras correspondem a duas atividades diversas, mesmo que se cruzem.
Noutras palavras, somente uma memória cultural adquirida de ouvido, por
tradição oral, permite e enriquece aos poucos as estratégias de interrogação
semântica cujas expectativas a decifração de um escrito afina, precisa ou
corrige. Desde a leitura da criança até a do cientista, ela é precedida e

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possibilitada pela comunicação oral, inumerável “autoridade” que os textos


não citam quase nunca. (DE CERTEAU, 1998, p. 263).

Ou seja, a leitura se configura como um processo de intercâmbio entre as experiências


vividas pelo leitor com aquele universo simbólico presente na arte literária. Nesse sentido, a
obra literária no universo infantil/juvenil “não se reduz a um determinado conteúdo reificado,
mas depende da assimilação individual da realidade que recria” (ZILBERMAN, 1985, p. 24).

Da mesma forma, toda leitura que, conscientemente ou inconscientemente, se


faça em sintonia com a essencialidade do texto lido, resultara na formação de
determinada consciência de mundo no espírito do leitor; resultará na
representação de determinada realidade ou valores que tomam corpo em sua
mente. Daí se deduz o poder de fecundação e de propagação de ideias,
padrões ou valores que é inerente ao fenômeno literário, e que através dos
tempos tem servido à humanidade engajada no infindável processo de
evolução que a faz avançar sempre e sempre.... (COELHO, 2000, p. 50).

Dessa maneira, entendemos que muito mais do que uma função pedagógica de
compreensão “conteudística” as obras literárias para os jovens constituem uma possibilidade
para a formação do pensamento crítico e da interpretação da realidade em que vivem. Ao se
inspirar em elementos do real e apresentar uma característica dita social, evocando ideias e
valores próximos aos leitores, a literatura possibilita o desenvolvimento da capacidade de
compreensão de mundo.

Como procede a literatura? Ela sintetiza, por meio dos recursos da ficção,
uma realidade, que tem amplos pontos de contato com o que o leitor vive
cotidianamente. Assim, por mais exacerbada que seja a fantasia do escritor
ou mais distante e diferentes as circunstâncias de espaço e tempo dentro das
quais uma obra é concebida, o sintoma de sua sobrevivência é o fato de que
ela continua a se comunicar com o destinatário atual, porque ainda fala de seu
mundo, com suas dificuldades e soluções, ajudando-o, pois, a conhecê-lo
melhor. (ZILBERMAN, 1985, p. 22).

E qual é o papel da escola nesse processo? Como a instituição pode influenciar na


formação de alunos-leitores críticos? Compreendemos que na atualidade o espaço da escola é
fundamental para efetivar o acesso de muitos jovens às obras literárias. De acordo com a 3ª

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edição da pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil” 303, realizada pelo Instituto Pró-Livro em
2011, entre os jovens de 11 a 13 anos, 47% afirmaram que sua principal forma de acesso a
livros é por meio da biblioteca escolar. Entre os jovens de 14 a 17 anos esse número é ainda
maior: 48% deles tem na escola a referência principal para acesso a livros. Outra questão
relevante é o papel dos professores como fomentadores da prática da leitura. Ainda de acordo
com a pesquisa citada, em 2011, ao responderem a seguinte pergunta: “Qual é a pessoa que mais
influenciou ou incentivou o seu gosto pela leitura?” 45% dos entrevistados responderam que
foram seus professores.
Reconhecemos, dessa forma, o importante papel assumido pela escola e pelos
professores no incentivo à prática da leitura no contexto atual e concordamos, portanto, com
Costa (2007, p. 10), que “[...] cabe à escola promover o crescimento do leitor, seja pelo contato
com muitos e variados temas de leitura, seja quanto ao formato da escrita literária, seja, ainda,
pelo compartilhamento e pela discussão de ideias com o uso de argumentação sólida e
coerente”.

A justificativa que legitima o uso do livro na escola nasce, de um lado, da


relação que estabelece com seu leitor, convertendo-o num ser crítico perante
sua circunstância; e, de outro, do papel transformador que pode exercer
dentro do ensino, trazendo-o para a realidade do estudante e não submetendo
este último a um ambiente rarefeito do qual foi suprimida toda a referência
concreta. (ZILBERMAN, 1985, p. 26).

No entanto, é importante destacar que a prática de leitura na escola, ou incentivada por


esse meio, deve ser realizada com a mediação dos professores. É consenso entre pesquisadores e
estudiosos que o trabalho com obras literárias deve ser intermediado por profissionais, não
apenas encaminhando os conteúdos e as possíveis aprendizagens desse processo, mas também
evidenciando aos alunos o prazer da leitura e as sensibilidades que envolvem tal atividade.
(COSTA, 2007, p. 20).

De forma geral, existe uma grande distância entre o discurso sobre a


importância da leitura e sua prática. As nossas bibliotecas escolares muitas
vezes servem como lugar de castigo, para serviços de utilidade escolar e
guarda-volumes, mas raramente são um espaço de fruição da leitura, de
dinamização e consolidação da prática leitora como prazer e emancipação.

303
Pesquisa com amostra de 5012 entrevistas, realizada em 315 municípios de todos os estados e distritos
brasileiros. Disponível em: <http://prolivro.org.br/home/>. Acesso em: 20 set. 2015.

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Estou certa de que nossas crianças gostam, sim, de ler [...]. O que lhes falta,
muitas vezes, é o estímulo, é o acesso a um material mais literário e menos
didático. (BRETAS, 2012, p. 63).

Nesse sentido, questionamos: quais professores devem ser responsáveis pela “tarefa” de
incentivar a leitura nos jovens? De acordo com Bretas (2012) nos últimos anos, a
responsabilidade de formar alunos-leitores tem sido exigida em grande parte apenas daqueles
professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental e daqueles especializados em Literatura ou
Língua Portuguesa. Contudo, sabe-se que “aprender a ler” deve ser uma discussão que permeie
todos os campos do saber.

Ainda existe na comunidade escolar a cultura de que a formação do aluno


leitor é de responsabilidade dos professores das séries iniciais e de Língua
Portuguesa e Literatura, quando, na realidade, os níveis e os processos de
leitura não caminham em uma só direção, nem para uma só área do saber.
(BRETAS, 2012, p. 25).

As possibilidades de articulação com o ensino de história

Assim, reconhecemos que faz parte da disciplina de história contribuir para a formação
do leitor crítico, capaz de interpretar textos literários e articulá-los de forma coerente com o
campo do saber histórico. Portanto, compreendemos que o procedimento de leitura é muito mais
do que realizar uma eficiente decodificação da linguagem de um texto: é compreender seu
contexto, relacioná-lo com seu cotidiano, criticá-lo segundo métodos definidos e, até mesmo,
surpreender-se com suas possibilidades.

Como não usar a literatura infantil como meros complementos ou ilustração?


Acreditamos que a literatura infantil constitui uma fonte extremamente rica a
ser problematizada pelo professor, que, por meio de um trabalho
interdisciplinar, promoverá o acesso do aluno a outras linguagens, outras
histórias, e o desenvolvimento de posturas críticas e criativas. Acreditamos
que podemos enriquecer o processo de alfabetização e ampliar a
aprendizagem histórica num processo de diálogo, aberto, livre e sensível
entre memória, tempo, história. (ZAMBONI; FONSECA, 2010, p. 351).

Na atualidade, é bastante amplo o conjunto de obras que apresenta a potencialidade de


ser abordado na aprendizagem histórica, configurando-se como paradidáticos. No entanto, uma

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nova tendência em particular do mercado literário brasileiro é digna de maior atenção pelos
historiadores: as narrativas envolvendo aspectos relacionados aos indígenas e aos africanos.
Coelho (2010) aponta que a maioria dessas obras se configura como uma “busca/afirmação da
identidade cultural brasílica”. Para a autora,

Ainda na esfera da ‘literatura híbrida’, destacamos duas correntes que dia a


dia vêm crescendo em valor literário e importância histórica. Ambas vêm
‘escavando’ nossas origens de povo: a corrente das narrativas indígenas e a
das narrativas africanas. De maneira comovente ou divertida ou fantástica, as
histórias/estórias recuperadas/reinventadas de um passado remoto vão
revelando aos pequenos leitores peculiaridades de dois povos, tão diferentes
entre si e que, por artes do destino (ou de Portugal?), acabaram fazendo parte
das raízes da nossa brasilidade. (COELHO, 2010, p. 291).

Os paradidáticos voltados aos temas da história da África, da cultura afro-brasileira e


dos povos indígenas constituem, portanto, uma das mais recentes tendências do mercado
editorial e apresentam-se como um possível recurso à discussão identitária nas aulas de história.
Consideramos tal abordagem como necessária, pois

Na era da globalização, crescem as redes comunicativas e, ao mesmo tempo,


os potenciais de agressão oculto nos encontros, nas sobreposições e mesclas
de tradições, pertenças e delimitações culturais. Ao mesmo tempo aumenta
também a necessidade de lançar um olhar retrospectivo sobre a história da
própria cultura, para avaliar as possibilidades e os limites do entendimento
intercultural e explorar os potenciais das ações de reconhecimento mútuo em
face da alteridade e da diferença. (RÜSEN, 2014, p. 17, 18).

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CURRÍCULO E DISCIPLINA ESCOLAR: INVESTIGAÇÕES


ACERCA DO CÓDIGO DISCIPLINAR DA HISTÓRIA NO
BRASIL
Arthur Henrique Lux Lobo (Mestrando do PPGHS/UEL)
PALAVRAS-CHAVE: DISCIPLINA ESCOLAR; CÓDIGO DISCIPLINAR DA HISTÓRIA; CURRÍCULO.

(Re)Pensar: essa tem sido uma das principais ações mobilizadoras de


historiadores, professores e pesquisadores atualmente ligados ao ensino de História.
Particularmente falando da realidade brasileira, advêm das últimas décadas o florescer
dos primeiros e essenciais frutos de uma reflexão ainda bastante desafiadora e
inquestionavelmente parcial. Seja em qualquer campo ou categoria de análise, os
questionamentos pertinentes ao ensino de História têm sido intensificados. Partindo da
categoria de análise das “disciplinas escolares” existentes no campo educacional e da
simples constatação de um espaço destinado a História enquanto tal, já devidamente
sustentado e contemplado no cotidiano de milhares de estudantes do Brasil, nos é
coerente alertar: as disciplinas escolares são eficazmente capazes de regular valores para
manter determinados padrões e privilégios dentro de determinada sociedade ou ao
mesmo tempo ser crítica, ser transformadora, compreendendo uma grande diferença
entre os resultados reais obtidos em sua prática (BITTERNCOUT, 2008; CHERVEL,
1990). E destas capacidades relacionadas às disciplinas escolares é sensato compreender
um campo mais amplo e profundo: são evidencias de pertencimento, de mentalidade e
das necessidades de cada contexto histórico delimitado em suas finalidades de acordo
com as negociações de determinados grupos. Goodson, partindo de Bourdieu, afirma
que uma disciplina escolar traz componentes de transformação e de permanências, de
enfrentamentos e de compromissos, sob os quais pesam os propósitos pedagógicos e
utilitários, os laços com a disciplina acadêmica e os conflitos relativos a status, recursos
e território (1995, p. 35). Historicamente, uma disciplina vai se consolidando como um
“campo”, ou seja, um espaço simbólico, no qual as lutas dos agentes determinam,
validam, legitimam representações, mas também um espaço onde práticas legitimadoras
se realizam.
No sentido de compreender a História ensinada nas escolas do Brasil
encontramos diferentes e recentes pesquisas que retratam e contribuem para a

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visualização de determinados balanços e sentidos pautados na configuração e na


efetivação da História enquanto disciplina escolar. Importantes trabalhos como os de
Abud (1993), Nadai (1993), Guimarães Fonseca (2003), Fonseca (2006) e Schmidt
(2012), por exemplo, se engajam em observar as concepções, as transformações e a
compreender o fenômeno disciplinar durante a história do Brasil pós-independência,
período importante para a formação e origem da História enquanto disciplinar escolar
no Brasil. Quando a História surge como disciplina autônoma nos regulamentos do
Colégio D. Pedro II no ano de 1838, vivencia-se um contexto histórico de pensar e
transmitir a História nacional, focada nos grandes heróis, nas batalhas e na grandeza do
povo brasileiro. Nesse contexto do século XIX, a disciplina de História ensinada nas
escolas brasileiras vai ser instaurada com um determinado objetivo, sendo consensual o
ensino da história dos grandes heróis, das datas e dos nomes marcantes da história
nacional (GASPARELLO, 2004, 2009; SCHMIDT, 2012). A saber, nesse momento
inicial não existem discussões acerca das especificidades das disciplinas escolares. Até
o fim do século XIX a expressão disciplina escolar e o termo disciplina não representam
mais do que uma parte da educação dos alunos que contribui para a manutenção da
ordem e a repressão de condutas prejudiciais (CHERVEL, 1990, p. 178).
Recentes pesquisas acerca do ensino de História no Brasil apenas apontaram
o que diversas transformações em leis, projetos políticos, manuais, livros didáticos e nos
processos de formação docente ocorreram ora perceptíveis, ora subentendidas. Mas é a
partir dos contributos da cultura escolar e da cognição histórica que podemos direcionar
outras pesquisas.
Até meados dos anos 90 do século passado eram raras as preocupações de
pesquisadores e historiadores em relação à compreensão do fenômeno disciplinar
escolar. A consideração de que os conteúdos do ensino eram impostos à escola pelas
ciências de referências existentes fora dela tendiam a mera interpretação da necessidade
de simplificar, vulgarizar e pedagogizar esses conhecimentos para um público escolar
mais jovem. Ligavam-se unicamente às disciplinas escolares as ciências e saberes
valorizados por determinadas sociedades. Esse esquema rejeitava qualquer autonomia às
disciplinas, tratando-as como nada mais do que combinações de saberes e métodos
pedagógicos. Compreender as disciplinas escolares como transmissoras de saberes

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externos estava largamente ligada a ideia de que a escola, por excelência, era lugar das
rotinas, do conservadorismo e da inércia (CHERVEL, 1990).
Mas em relação à investigação atual das disciplinas escolares propomo-nos
a ampliar pesquisas e reflexões para outro campo que outrora não havia sido
especulado. Chervel, em artigo traduzido no Brasil em 1990, apontou uma problemática
que se distinguia de qualquer outra levantada pela história do ensino até então. Longe de
tentar ligar a escola ou o sistema escolar às categorias externas, o autor aponta a
necessidade de iniciar dentro da própria escola uma investigação específica. Uma
investigação que não deve negar a existência de uma tradição, do consolidado, de uma
cultura preexistente, mas que deve reconhecer aquilo que muda, que transgride, que
compõe uma cultura própria dentro do ambiente escolar.

Por que são criações espontâneas e originais do sistema escolar


é que as disciplinas merecem um interesse todo particular. É porque o
sistema escolar é detentor de um poder criativo insuficientemente
valorizado até aqui é que ele desempenha na sociedade atual um papel
o qual não se percebeu que era duplo: de fato ele forma não somente
os indivíduos, mas também uma cultura que vem por penetrar, moldar,
modificar a cultura da sociedade global (CHERVEL, 1990, p. 184).

A concepção de cultura(s) escolar(es) pode compreender significações


concorrentes ou divergentes, mas enquanto categoria de análise nos permite
compreender o caráter específico das disciplinas escolares e da escola em determinado
momento por possibilitar a visualização das mudanças não meramente conformistas ou
conformadoras, mas também as subversivas e rebeldes, que são resultantes das
apropriações docentes e discentes dentro do espaço escolar (FARIA FILHO et al, 2004;
VIDAL, 2004). É dentro dessas particularidades do campo escolar, ou melhor, das
relações cotidianas entre professores, alunos e todo um aparato cultural que coexistem e
moldam-se vários atores sociais.
A percepção dos acréscimos investigativos que ofereceria a periodização
sistemática do ensino de História no Brasil pós-independência até os dias atuais foi uma
das preocupações de Schmidt (2012). Em seu trabalho intitulado “História do Ensino de
História no Brasil: uma proposta de periodização”, a historiadora apresenta

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determinada proposta cronológica para a construção da História enquanto disciplina


escolar no Brasil, alertando para a necessidade da continuidade de maiores pesquisas em
relação à micro e macro manifestações do código disciplinar da História no Brasil. De
acordo com sua proposta o ensino de História nas escolas brasileiras caminhou por
quatro momentos específicos: a construção do código disciplinar da História (1838 –
1931); a consolidação do código disciplinar da História (1931 – 1971); crise do código
disciplinar da História (1971 – 1984); e reconstrução do código disciplinar da História
(1984 – ????). Baseada no campo do código disciplinar da História, a autora foca em
análises curriculares, projetos educacionais e documentos relacionados à formação de
professores, no sentido de compreender o fenômeno disciplinar dentro do contexto
brasileiro. Suas conclusões apontam para uma visível influencia do aparelho do Estado
na configuração da História ensinada.
Entretanto podemos evidenciar a necessidade de aprofundarmos orientações
mais precisas acerca das reflexões do fenômeno disciplinar supracitado para
investigarmos outras possíveis considerações. A percepção de um código disciplinar da
História deve verificar a existência de uma tradição social que se configura
historicamente e que é composta de um conjunto de ideias, valores, suposições e rotinas
que legitimam a função educativa atribuída a História dentro do ambiente escolar,
buscando regular, assim, a ordem prática de seu ensino. Não se restringindo apenas a
isso, um código disciplinar compreende o que é prescrito como valor educativo da
História, os conteúdos a serem ensinados, os arquétipos da prática docente, o que é tido
como conhecimento histórico e o que realmente ocorre e se ensina no ambiente escolar.
Dessa forma as ações dos sujeitos institucionalizados (professores) e dos receptores
sociais (alunos) formam e são capazes de apontar relações específicas em cada época
(FERNANDEZ CUESTA, 1997, p. 08-09). Assim, pesquisas que visem encontrar
indícios próprios da relação ensino e aprendizagem compõem uma nova abordagem
acerca da disciplina escolar da História, e podem apontar outras configurações que
outrora não foram especuladas ou tratadas com a devida atenção.
Para iniciarmos um diálogo mais efetivo com as pesquisas e debates mais
recentes acerca do ensino de História devemos nos atentar para mais uma das
especificidades das disciplinas que se estabelecem em um campo investigativo que
configura uma cultura escolar. Nesse ponto consideramos a disciplina escolar da

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História como um campo específico, inserido dentro de uma cultura escolar própria que
permite um código disciplinar flexível carregado tanto de aspectos tradicionais quanto
inovadores, a qual dota o espaço escolar de um campo de atuação – passível de
investigação – muito particular. Julia (2001) acrescenta que é nesse ambiente recheado
de normas, conhecimentos a serem ensinados e condutas a serem fixadas que ocorre a
transmissão de diversos conhecimentos. Conhecimentos, normas, expectativas que,
obviamente, são coordenadas por diversas finalidades que marcam uma época, mas que
não devem ser analisadas sem levar em conta o corpo profissional dos agentes que são
chamados a obedecer (ou não) determinadas prescrições. Por concluinte, esse ambiente
recheado de relações sociais é capaz de promover afastamentos em relação a
determinadas culturas dominantes pois (re)criam uma cultura particular.
Se diferentes normas, regulamentos e conhecimentos permeiam e almejam
regular o espaço escolar, devemos pensar sobre o código disciplinar da História
creditando e analisando – como expectativa sobre seu valor educativo – o próprio
currículo escolar. Em uma interpretação formal o currículo escolar é apresentado como
relativo aos conteúdos a serem ensinados, as experiências de aprendizagem escolares
vividas pelos alunos, aos planos pedagógicos elaborados pelos agentes e espaços
educacionais, aos objetivos a serem alcançados por meio do processo de ensino e pelos
processos de avaliação (MOREIRA, CANDAU, 2008).
Apresentamos o valor da análise da proposta curricular na análise do código
disciplinar da História ensinada, pois reconhecemos sua importância na composição de
uma disciplina. O próprio teórico curricular Goodson (1991, p. 10) nos alerta que o
currículo é um dos mais importantes testemunhos públicos, visíveis e alternantes que
legitimam a escolarização. Mas feitas as nossas considerações, propomo-nos a
incentivar pesquisas que se atentem e busquem fontes que não estejam explícitas nos
manuais e nas propostas, mas que se encontram/encontraram nas relações e na prática
disciplinar da História cotidiana, dentro do ambiente escolar. Observamos a necessidade
de buscarmos por elementos que nos apontem indícios da História ensinada – em prática
– dentro das salas de aula, por meio de micro e selecionáveis pesquisas, a fim de
acrescentar discussões em relação ao código disciplinar da História no Brasil. Nesse
sentido, reconhecemos a existência do currículo escrito e do currículo ativo. O primeiro
é reconhecido como prescrito, legitimado, porque é oficial, enquanto o segundo como

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prática ou (re)criação em sala de aula. O currículo escrito, portanto, está sujeito às


atividades de negociações, (re)elaborações ou mesmo resistências dos agentes escolares,
pois as práticas escolares transcendem as prescrições (GOODSON, 1991, p. 08). E é
observando os possíveis resquícios e indícios ainda alcançáveis sobre essas
transcendências que podemos ampliar pesquisas históricas que visem compreender o
fenômeno disciplinar.Muitos historiadores do currículo, alerta Goodson (1995, p. 09-
10), tenderam durante muito tempo a expressar uma crença mística de poder romper
completamente com o passado, o que seria admitir a possibilidade de transformação
radical sem o cuidado de reconhecer o peso das continuidades no movimento histórico.
Dessa forma observamos a dificuldade de rompimento dos códigos disciplinares. No
campo teórico da História, são as percepções da existência de determinadas estratégias
(o que é tido como oficial) e das táticas (apropriações dos indivíduos de determinados
grupos) – apontadas por Certeau – que podem sustentar essa nova investigação.
Recentes debates e pesquisas em relação ao ensino de História têm
movimentado o interesse de pesquisadores e professores brasileiros e fomentado outras
discussões. Não apenas voltados a relatos de experiência ou concepções didáticas sobre
quais recursos mostram-se mais interessantes, as discussões e a historiografia se voltam
para outro conjunto de debates, agora pautados na pesquisa, na valoração do que os
sujeitos (professores e alunos) pensam sobre a História, sobre o passado e sobre as
expectativas particulares acerca da História. As linhas de investigação acerca do campo
de aprendizagem histórica no Brasil se voltam para os chamados “estudos da cognição”,
que:
reúnem um conjunto de pesquisas que evidenciam preocupação com o
desenvolvimento das noções espaço-temporais das crianças e jovens,
com a construção de conceitos históricos e aprendizagem da
causalidade e da causalidade histórica (CAIMI, 2009, p. 69-70).

Essas investigações também recorrem para a investigação da vertente


chamada Educação Histórica, que buscam referenciais epistemológicos na História, mas
mantém diálogo com a metodologia das ciências socais (CAIMI, 2009). Essas
discussões firmam efetivamente o campo específico da disciplina escolar de História, ao
passo que

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Preocupações dessa natureza estão se fazendo cada vez mais presentes


e partem de uma importante definição sobre as finalidades de ensinar
e aprender história na educação básica, as quais distinguem, em
alguma medida, das finalidades de ensinar e aprender história na
formação de professores (CAIMI, 2009, p. 67).

Essa compreensão, que hoje dialoga com fundamentações diferentes entre


os estudos da cognição e das pesquisas em Educação Histórica, perpassa por um mesmo
objetivo: o de entender a disciplina da História em seu modo escolar, considerando
como os agentes escolares – professores e alunos – compreendem a História.
A última década do século XXI tem sido importante para o firmar das
pesquisas brasileiras em relação ao diálogo epistemológico da História com seu ensino.
Essa preocupação em relação aos contributos práticos da História ensinada nas escolas é
recente em relação à realidade brasileira e ainda amplamente aberta a novas
investigações – seja no que é prescrito ou efetivamente praticado. Já em outros países
essas discussões podem ser datadas anteriormente. Pesquisas como as de Barca (2001,
2012), Lee (2006) e Moreira (2000) apontam a apropriação de conceitos em relação a
pesquisas sobre o ensino de História, e também indícios investigativos sobre cognição
histórica/Educação Histórica em países como Canadá, Inglaterra e Estados Unidos
desde meados dos anos 70 do século passado.
Para além da simples preocupação, os resultados já obtidos por meio das
recentes linhas de pesquisas voltadas ao ensino de História tem sido implementados em
situações concretas de aprendizagem, disseminando resultados que podem ser ajustados
a outros ambientes educativos. É ainda sustentado em algumas destas novas linhas de
pesquisa que se a aprendizagem for explorada de forma desafiante, criativa e válida,
fortes potencialidades podem surgir no sentido de contribuir para o desenvolvimento de
competências cognitivas essenciais para a vida em nossa sociedade (BARCA, 2012, p.
37-38). Buscar recuperar possíveis fontes que sejam capazes de indicar práticas
relacionadas a um ensino de História que tenha transcendido – ou ao menos não se
adequado – as propostas, concepções curriculares e expectativas sobre seu valor
educativoseria reconhecer a existência de outros instrumentos significativos – em micro
ou macro escala - para examinarmos o código disciplinar da História no Brasil através
de outra faceta não devidamente explorada.

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A EDUCAÇÃO DO CAMPO NO ESTADO DO PARANÁ: UMA


PERSPECTIVA HISTÓRICA
Camilla Samira de Simoni Bolonhezi (Mestranda em História / UEM)
Ângelo Aparecido Priori (Orientador / UEM)
PALAVRAS – CHAVE: EDUCAÇÃO DO CAMPO; MOVIMENTOS SOCIAIS; POLÍTICAS PÚBLICAS;

Introdução
Ao longo da História do Brasil, os trabalhadores rurais e a população campesina como
um todo foram relegadas a uma posição de exclusão no âmbito das políticas públicas. Quando
pensamos na questão agrária no Brasil percebemos que a mesma é integralmente histórica e está
relacionada ao processo político, econômico e social pelo qual o país passou desde a chegada
dos europeus no continente até os dias atuais.
O processo colonialista sofrido pelos brasileiros ao longo de sua história, em diversos
períodos criou vínculos de dependências com outros países que impunham seus propósitos
lucrativos em territórios nacionais, contribuindo para uma marginalização da população do
campo, bem como uma desapropriação progressiva de seus meios e recursos de sobrevivência,
vida e desenvolvimento.
Nesse sentido, segundo Martins, “A questão agrária está no centro do processo
constitutivo do Estado republicano e oligárquico no Brasil, assim como a escravidão estava nas
próprias raízes do Estado monárquico no Brasil imperial 304”.
Quando nos debruçamos sobre a história do nosso país em relação às questões
relacionadas ao meio rural, percebe-se que segunda metade do século XX foi marcante para os
debates acerca das questões rurais. Discussões sobre a Reforma Agrária e a Legislação Social
foram de grande importância para o surgimento de políticas voltadas a população campesina.
Vale salientar que essas discussões foram reflexo das lutas dos Movimentos Sociais que se
organizaram segundo suas identificações de “classe”, as quais buscaram intensamente e, durante
todo o período republicano, o reconhecimento e criação de políticas públicas pensadas
especialmente para populações que foram vítimas históricas de um processo “colonialista”
intenso.
Nessa perspectiva, o presente texto, busca abordar a política pública educacional para o
campo, especificamente no Estado do Paraná. A mesma, sem dúvida, resultado das lutas dos
movimentos sociais articulados, é uma importante política que confere a população campesina
um direito que lhes foi negado durante séculos: o direito a permanecerem na terra e receberem

304
MARTINS, 2000, p.101.

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uma educação de qualidade sem precisarem se deslocar até a cidade e enfrentar as dificuldades
advindas desse processo e, dessa forma, terem o seu direito de decidirem pelo seu futuro a partir
da realidade a qual pertencem.
Buscar-se-á um resgate temporal sintético da História da Educação do Campo no Brasil
e no Paraná como uma política pública buscando compreender a sua constituição e
características com base em estudos interdisciplinares envolvendo áreas como educação,
ciências sociais, história, e em documentos sobre o tema, buscando apontar informações que
visam nortear educadores de um modo geral para a compreensão da Educação do Campo como
uma política pública conquistada e pensada para atender uma população que, durante a maior
parte da História do Brasil, esteve excluída do processo de ensino aprendizagem adotados pelos
planos governamentais de políticas educativas.
A metodologia utilizada foi pautada em revisões bibliográficas acerca do tema e análise
de documentos governamentais que fazem referência a política de Educação do Campo.

As Políticas Públicas para a Educação no Campo no Brasil: uma Perspectiva


Histórica
Quando pensamos na institucionalização de uma política pública educacional com
objetivos claros e definidos na construção de uma educação de âmbito global, no Brasil,
devemos considerar a criação do MEC (Ministério da Educação), em meados da década de
1930, como ponto chave para pensar em uma educação pública nacional.
A criação do Ministério da Educação vai estabelecer debates em todos os âmbitos
educacionais segundo as demandas do Estado Republicano em vias liberais.
Dessa forma, quando pensamos em uma educação com vistas para a população do
campo, percebe-se que a mesma foi se estruturando em concordância com as ideologias vigentes
ao longo dos governos que se sucederam ao longo do século XX e o que pudemos verificar é
que em todos eles houve uma preocupação em buscar adequar os modelos educacionais aos
parâmetros econômicos e planejamentos políticos para a nação. Ou seja, os governos buscaram
pensar a educação rural com vistas às expectativas das elites dominantes.
Após a criação do MEC em 1930, criou-se a Constituição de 1934 na qual, segundo
Maria do Socorro Dias Pinheiro, a mesma fazia referência a uma educação industrial, mas, ao
longo de seus artigos citava uma quota do orçamento anual da união para o ensino da população
rural. Mas, como afirma Pinheiro, a Constituição omite outras proposições para a educação do
campo que não fossem com bases fundamentadas na educação urbana. Assim, pode-se afirmar
que não houve conquistas significativas.

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Posteriormente, o ensino focado para a população rural também não se configurou na


Constituição de 1947, pois, a mesma indica que a Educação Rural seria de responsabilidade das
empresas privadas, o que explica uma educação voltada para os padrões de industrialização e
uma matriz curricular pautada pelo mesmo objetivo. O processo de industrialização e
urbanização nesse momento toma proporções nacionais inferindo no contexto educacional e nas
políticas voltadas para a educação.
Assim, pode-se concluir, a partir da análise de Pinheiro, que a educação do campo
esteve gerenciada, até meados de 1970, pelas elites brasileiras e articulada através da iniciativa
privada com vistas para um desenvolvimento industrial e urbano.
Segundo Maria do Socorro Dias Pinheiro somente:
[...] Com a Constituição de 1988, o Brasil consegue aprovar políticas
de direitos educacionais bastante significativas. Durante a gestão de
Fernando Henrique Cardoso foram elaboradas e implementadas
reformas educacionais que desencadearam em alguns documentos
fundamentais como: Nova Lei de Diretrizes e Base da Educação
Nacional, a 9394/96, o Plano Nacional da Educação de 2001, e os
Parâmetros Curriculares Nacionais.
No referente ao Plano Nacional de Educação, Saviani (1987)
argumenta que quando a Constituição Federal de 1988, em seu artigo
214 determina que “A lei estabelecerá o plano nacional de educação”
e no artigo 211 estabeleça como tarefa da União, Estados, Distrito
Federal e Municípios a organização de seus sistemas de ensino, não
significa que a origem desse pensamento tenha surgido exatamente
neste período 305.

Pode-se perceber que em períodos anteriores a 1988, a relevância das políticas


educacionais para o campo é de pouco destaque. O que irá mudar substancialmente nas décadas
posteriores.
Maria do Socorro Dias Pinheiro, em seu artigo intitulado A concepção da Educação do
campo no Cenário das Políticas Públicas da Sociedade Brasileira, afirma que o termo “Educação
do Campo” foi utilizado pela primeira vez a partir da I Conferência Nacional por uma
Educação Básica do Campo realizada na cidade de Luziânia, no Estado de Goiás, em 1998.
A Expressão “Educação do Campo” e sua estruturação teve como base os Movimentos
Sociais Articulados, entre eles o MST, UNB, entre outros. Não podemos pensar que as políticas

305
PINHEIRO, 2007, p.4.

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públicas se estabelecem independentes das demandas populares. Pensar uma educação do


campo, é pensar que a mesma foi resultado de classes organizadas com vistas a um objetivo
comum buscando uma articulação na conquista de direitos.
Em 3 de Abril de 2002, o Conselho Nacional de Educação, Câmara de Educação
Básica, institui através da Resolução CNE/CEB 1, as Diretrizes Operacionais para a Educação
Básica em Escolas do Campo. Este documento afirma reconhecer o modo próprio de vida do
camponês e a utilização de seu espaço como fundamentais para a construção de uma identidade
da população rural, tendo em vista a inserção cidadã da população camponesa em sua
diversidade. Com esse documento, uma fase da luta se configurava através do reconhecimento
do modo de vida do camponês e do respeito ao seu espaço e a identidade da população rural. A
busca de inserção educacional dessa população em sua diversidade apontava para conquistas
maiores.
Dessa forma, essa modalidade de ensino começa a se fortalecer e as instruções passaram
a normatizar as instituições que buscassem ofertar essa modalidade de ensino afirmando que as
mesmas deverão estar em conformidade com as Diretrizes Curriculares Nacionais e buscando
sua autonomia sem desprender-se do propósito educacional da Nação.
Esse documento, vem como a institucionalização de um projeto que foi pauta na luta
dos movimentos sociais articulados que nele conseguem encontrar as bases ansiadas em suas
pautas de reivindicação.
A Resolução afirma:
Art. 3º O Poder Público, considerando a magnitude da importância da
educação escolar para o exercício da cidadania plena e para o
desenvolvimento de um país cujo paradigma tenha como referências a
justiça social, a solidariedade e o diálogo entre todos, independente de
sua inserção em áreas urbanas ou rurais, deverá garantir a
universalização do acesso da população do campo à Educação Básica
e à Educação Profissional de Nível Técnico.
Art. 4° O projeto institucional das escolas do campo, expressão do
trabalho compartilhado de todos os setores comprometidos com a
universalização da educação escolar com qualidade social, constituir-
se-á num espaço público de investigação e articulação de experiências
e estudos direcionados para o mundo do trabalho, bem como para o
desenvolvimento social, economicamente justo e ecologicamente
sustentável.

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Art. 5º As propostas pedagógicas das escolas do campo, respeitadas as


diferenças e o
direito à igualdade e cumprindo imediata e plenamente o estabelecido
nos artigos 23, 26 e 28 da Lei 9.394, de 1996, contemplarão a
diversidade do campo em todos os seus aspectos: sociais, culturais,
políticos, econômicos, de gênero, geração e etnia 306.

Em um período de conquistas legais passamos a visualizar a construção de políticas


estruturadas para as demandas campesinas. Nesse texto, focaremos o Estado do Paraná e a
instituição dessa política. Para tanto, não podemos deixar de compreender que as posturas
advindas dos governos entre 2000 e 2010 se apresentaram mais receptivos às reivindicações dos
movimentos sociais articulados para uma Educação do Campo. No Paraná, vale salientar a
importância da Articulação Paranaense.
Apesar da estruturação e funcionamento das escolas do campo terem início antes, é no
ano de 2010 que essa política é instituída enquanto uma política pública. Diferentemente de
uma política de governo, que tem sua sobrevivência colocada em risco com as mudanças de
gestores, a política pública transforma a educação do campo em prioridade e uma conquista
acima das manobras políticas enquanto uma lei que deve ser amparada e cumprida.
É no ano de 2010, publicado no Diário Oficial nº. 8345 de 18 de Novembro, que ocorre
a Instituição da Educação do Campo como Política Pública Educacional com vistas à garantia e
a qualificação do atendimento escolar aos diferentes sujeitos do campo, nos diferentes níveis e
modalidades de ensino da Educação Básica.
Para tal a Secretaria de Estado da Educação, no uso de suas atribuições legais,
considerou:
- a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, n.° 9394/96, em
particular o art. 28 e seus incisos, que estabelece a oferta da Educação
Básica para a população rural;
- a Resolução CNE/CEB n.o 01/2002, que instituiu as Diretrizes para
a Educação Básica das Escolas do Campo;
- a Resolução CNE/CEB n.o 02/2008, que estabelece Diretrizes
Complementares, normas e princípios para o desenvolvimento de
políticas de atendimento da Educação Básica do Campo;
- o Parecer n.o 1011/10 – CEE-PR, que instituiu normas e princípios
para a implementação da Educação Básica do Campo;

306
RESOLUÇÃO CNE/CEB 1

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- as Diretrizes Curriculares da Educação do Campo da Rede Pública


do Paraná; e
- o protagonismo histórico dos movimentos sociais, no Estado do
Paraná 307. (PARANÁ,2010)

A partir desse momento a SEED definiu em artigos:


Art. 1.° Instituir a Educação do Campo como Política Pública
Educacional com vistas à garantia e a qualificação do atendimento
escolar aos diferentes sujeitos do campo, nos diferentes níveis e
modalidades de ensino da Educação Básica.
Art. 2.° A Educação do Campo se destina ao atendimento da
Educação Básica da população rural, identificada pela comunidade
local.
Parágrafo Único – Considera-se população rural os agricultores
familiares, os pequenos proprietários, os faxinalenses, os extrativistas,
os pescadores artesanais das ilhas, os ribeirinhos, os assentados, os
acampados e a população inserida em comunidades caracterizadas
pela especificidade de modo de vida e trabalho com a terra e a água.
Art. 3. As Escolas do Campo são aquelas inseridas em comunidades
caracterizadas pelo vínculo e trabalho com a terra, independente de
sua localização.
Art. 4.o As escolas de Educação do Campo devem ter condições de
infraestrutura, apropriadas para o funcionamento, tais como: espaços
suficientes e adequado para o processo ensino-aprendizagem.
Art. 5.° Cabe à Secretaria de Estado da Educação:
I. criar e implementar políticas públicas que garantam a existência e a
manutenção da Educação do Campo com qualidade;
II. a responsabilidade de promover, acompanhar e implementar a
gestão de Políticas Públicas Educacionais voltadas à qualificação do
atendimento escolar das populações rurais nas Escolas do Campo;
III. desenvolver políticas de formação continuada aos profissionais da
educação, de forma a garantir seu aperfeiçoamento voltado às
especificidades da cultura do campo;

307
Diário Oficial nº. 8345 de 18 de Novembro de 2010.

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IV. Projeto Pedagógico que busque à identidade cultural, o tempo e


espaço da vida no campo, traduzindo a articulação entre a comunidade
local e a sociedade no seu todo, e o necessário acesso da comunidade
à informação presente no mundo moderno;
V. o compromisso com um programa de Agroecologia sustentável
que, inserido no cotidiano da escola, alcance a promoção humana.
Rurais 308.

Esta resolução entrou em vigor dia 28 de outubro de 2010.


Em 4 de Novembro de 2010 a Presidência da República, através da Casa Civil,
Subchefia para Assuntos Jurídicos, através do Decreto de nº 7.352 Dispõe sobre a política de
educação do campo e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária - PRONERA.
Esse documento definitivamente pode ser apontado como uma conquista dos
Movimentos Sociais articulados, o mesmo vem com a definição da oferta da política de
educação do campo desde a educação básica a superior para as populações do campo, essa
oferta passa a ser desenvolvida pela União em regime de colaboração com os Estados, o Distrito
Federal e os Municípios, de acordo com as diretrizes e metas estabelecidas no Plano Nacional
de Educação.
Este documento trouxe uma definição para as populações do campo qualificando-as
como os agricultores familiares, os extrativistas, os pescadores artesanais, os ribeirinhos, os
assentados e acampados da reforma agrária, os trabalhadores assalariados rurais, os
quilombolas, os caiçaras, os povos da floresta, os caboclos e outros que produzam suas
condições materiais de existência a partir do trabalho no meio rural.
Para a definição de Escola do Campo, o decreto estabelece que seria aquela situada em
área rural, conforme definida pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística -
IBGE, ou aquela situada em área urbana, desde que atenda predominantemente a populações do
campo.
O artigo 2º também define como princípios da educação do campo:
I - respeito à diversidade do campo em seus aspectos sociais, culturais,
ambientais, políticos, econômicos, de gênero, geracional e de raça e
etnia;
II - incentivo à formulação de projetos político-pedagógicos
específicos para as escolas do campo, estimulando o desenvolvimento
das unidades escolares como espaços públicos de investigação e

308
Diário Oficial nº. 8345 de 18 de Novembro de 2010.

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articulação de experiências e estudos direcionados para o


desenvolvimento social, economicamente justo e ambientalmente
sustentável, em articulação com o mundo do trabalho;
III - desenvolvimento de políticas de formação de profissionais da
educação para o atendimento da especificidade das escolas do campo,
considerando-se as condições concretas da produção e reprodução
social da vida no campo;
IV - valorização da identidade da escola do campo por meio de
projetos pedagógicos com conteúdos curriculares e metodologias
adequadas às reais necessidades dos alunos do campo, bem como
flexibilidade na organização escolar, incluindo adequação do
calendário escolar às fases do ciclo agrícola e às condições climáticas;
e
V - controle social da qualidade da educação escolar, mediante a
efetiva participação da comunidade e dos movimentos sociais do
campo 309.

Considerações finais
Diante das abordagens e documentos acima, pudemos perceber a Educação do Campo
enquanto uma política pública institucionalizada, mas com uma institucionalização que é reflexo
e resultado de lutas contínuas. Quando pensamos nas fragilidades dessa política pública
percebemos que o trabalho dos movimentos articulados em prol de uma educação do campo se
fazem ainda necessárias mediante às nuances sofridas no poder público diante de administrações
que tentam descaracterizar essas políticas com base em dados quantitativos e visando um
trabalho de diminuição dos gastos públicos em educação. Esse contexto nos apresenta novas
preocupações como o risco de fechamento de escolas do campo no estado do Paraná. Mesmo
diante dessa situação o Paraná possui, segundo dados da Secretaria Estadual de Educação, 544
escolas regulares de campo e 24 escolas de assentamentos, atendendo mais de 100 mil alunos.
Este texto faz parte de pesquisas realizadas para a minha dissertação de mestrado que
está em fase inicial. Para a análise dessa política ainda haverá a necessidade de buscarmos as
bases para a construção dessa política, os camponeses, e compreender na perspectiva de uma
“história vista de baixo” pautada em Hobsbawm a efetivação e o funcionamento da política de
Educação do Campo com um estudo direcionado para uma escola específica do Norte do
Paraná.

309
DECRETO Nº 7.352, 4 de Novembro de 2010. Casa Civil, subchefia para assuntos jurídicos.

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REFERÊNCIAS
D. GOVERNO DO ESTADO DO PARANÁ. Diretrizes Curriculares da Educação do Campo.
Curitiba, 2002.
MARTINS, Jose Sousa. Reforma Agrária: O impossível dialoga sobre a História possível. São
Paulo: USP/FFLHC, 2000.
PINHEIRO, Maria do Socorro Dias. A concepção de educação do campo no cenário das
políticas públicas da sociedade brasileira. In: ANPAE, 2007, Rio Grande do Sul. Por
uma Educação de qualidade para todos. Rio Grande do Sul: UFRGS, 2007.
POLETTI, Ronaldo. Constituições Brasileiras, 1934. Brasília: Senado Federal e
Ministério da Ciência e Tecnologia, Centro de Estudos Etnográficos, 2001.
PRIORI, Ângelo Aparecido. O Protesto do Trabalho: História das lutas sociais dos
trabalhadores rurais do Paraná: 1954 – 1964 / Ângelo Priori. Maringá: EDUEM, 1996.
SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do trabalho científico. São Paulo: Cortez,
2002.
http://www.educacao.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=235
acessado em 18 de Outubro de 2015.

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LINGUAGENS ALTERNATIVAS NO ENSINO DE HISTÓRIA


Alef Guilherme Zangari da Silva
Emerson Silva de Sousa (História - UEM)
PALAVRAS-CHAVE: MÚSICA; PROFESSOR; ALUNO.

Introdução
Aos poucos a músicas vem ganhando espaço nas salas, principalmente nas
aulas de história. Isso proporciona que as aulas fiquem mais dinâmicas, trazendo
melhorias para o processo de aprendizagem do aluno. Através da música podemos
trabalhar o que a letra e o ritmo nos mostra, e até mesmo o contexto em que foi escrita.
Assim professores e alunos estão cada vez mais fazendo uso dessa linguagem
alternativa. Podemos perceber isso pelas nossas experiências (através do PIBID) em sala
aula, quando trabalhamos com a música como fonte histórica.

A música dentro das aulas de História


Na sociedade contemporânea na qual estamos inseridos, as chamadas
linguagens alternativas se tornam grandes aliadas no ensino de Historia, pois através
delas podemos mostrar conceitos e símbolos culturais e sociais de um contexto
histórico, representando certa imagem de mundo (FERREIRA; e PAVIANI, 2012).
Utilizar as artes visuais, o cinema, o teatro nas aulas pode proporcionar um
resultado positivo no processo de ensino-aprendizagem. A música também
pode ser utilizada com esse fim, se for apresentada com responsabilidade
pelo professor. Para que isso aconteça, é necessário que o profissional, ao
utilizar tal recurso, tenha conhecimento dos principais conceitos que
envolvem a História da Música Ocidental, e que tenha ciência de que a
música interagiu e interage com o seu momento histórico (GÓES, 2011).

Tais linguagens auxiliarão os alunos na construção do conhecimento histórico


como: transmissão de uma memória coletiva, formação da capacidade de julgar, análise
de uma situação ou acontecimento e formação da consciência política.
As chamadas linguagens alternativas para o ensino de história mobilizam
conceitos e processam símbolos culturais e sociais, mediante os quais
apresentam certa imagem do mundo. [...] as linguagens exigem uma proposta
didática adequada para sua exploração nas aulas de história (ABUD, 2005).

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Podemos entender a consciência histórica como as operações mentais que


fazem os homens interpretarem a evolução temporal do mundo e de si, podendo orientar
sua vida no tempo.
O uso da música no ensino de História no Brasil, não é algo novo nos
profissionais da área. No próprio livro didático são trazidas algumas canções e
explicações de movimentos musicais que marcaram o tempo. No entanto é preciso
aprofundar no tema para entendermos a possibilidade, a metodologia e a didática para
trabalhá-la em sala de aula.
Quando pensamos a música como fonte histórica, devemos tratá-la como
documento histórico, que pode ser explorado pelo historiador (o tratamento que se dá a
uma letra de música deve ser o mesmo que a um documento histórico). A partir do
século XX com a Escola dos Annales , há o rompimento da idéia de que documentos
históricos eram apenas escritos de cunho oficial. Assim cabe ao historiador dar vida ao
documento, fazendo perguntas e conhecendo sua origem e o contexto em que foi
produzido. O documento em sala de aula ajuda a representação do passado e do
presente, através dele aluno e professor estabelece esse dialogo entre passado e presente
(FERREIRA; e PAVIANI, 2012).
O uso de documento não pretende fazer do aluno um historiador, mas sim
impulsioná-lo para o conhecimento histórico. Mais do que entender a musica temos que
fazer o aluno pensar e interpretar.
Para serem trabalhadas nas aulas de história as letras de músicas devem ser
apresentadas como evidencias de fatos históricos, já que são representações que
mostram como em diferentes lugares em determinados tempos era construída e pensada
a realidade social. Também são de importância para a construção da representação
social do aluno, e para retratarem como vários grupos formam a realidade social.
Além de o professor trabalhar a letra da música como documento, há outros
cuidados que o professor deve tomar, um deles se refere ao professor estabelecer a
relação entre a música com o conteúdo que está sendo trabalhado em sala de aula. A
música não representa somente o momento histórico de sua criação, ela recebe outras
inúmeras influencias, é preciso aprofundar em seu estudo para entendê-la.
Ao mesmo tempo se torna necessário ir além do documento, extrapolar o
gênero musical que ela pertence, o que ele representa; avaliar a biografia do cantor e

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compositor, sua formação. São informações essenciais que podem responder o porquê
da música ser escrita.
Assim através da música podemos relacioná-la com o cotidiano das pessoas,
contexto político e econômico, enfim mostrar o que acontecia ao redor do sujeito que
escreve e interpreta a letra. Tal documento histórico possibilita o desenvolvimento de
conceitos para a formação histórica dos alunos.
Para utilizarmos adequadamente a música no ensino de História, é necessário
que o professor conheça, pelo menos, as principais características dos
períodos da história da música para que possa fazer a devida correlação com
o assunto que ele esteja ensinando. Assim, o aluno poderá entender melhor
que determinado estilo artístico fez parte da vida de um grupo de pessoas de
tal época, ou seja, que, para cada época, existiu um público específico.
Importa, também, discutir com os alunos sobre as diversas funções da
música: política, religiosa, etc (GÓES, 2011).

De acordo com Góes (2011), o professor não deve simplesmente apresentar a


música, se torna necessário todo um conhecimento a priori. Ele deve levar em
consideração o estilo musical de diferentes épocas e diferentes sociedades, pois a
música é a expressão da cultura de um povo, assim o aluno terá melhor compreensão
sobre quais estilos musicais representavam determinados povos.
Antes de se aplicar tal aula o professor deve apresentar segurança na atuação,
mas sem ser de forma autoritária. Além disso, o professor deve cuidar-se para que sua
fala não se torne uma doutrinação para os alunos.
Também se torna útil, antes de ser trabalhado tal tema, o professor organizar
um questionário pra obter informações sobre o que os alunos sabem sobre o tema ou ate
mesmo sobre a música que será trabalhada (FERREIRA; e PAVIANI, 2012).
Uma aula trabalhada com música foge daquela rotina em sala de aula. E ela
tem o propósito de que o aluno adquira conhecimento histórico através de documentos
diferentes dos que já estão acostumados, por isso ao trabalhá-los o professor terá novas
alternativas na organização de conteúdos. Pois uma única musica pode trabalhar temas
como: trabalho, disciplina, cotidiano, mentalidade, moda, etc... que sugerem ao
professor novos roteiros de conteúdos, podendo fugir das velhas propostas presentes nos
manuais didáticos (ABUD, 2005)

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O professor sabendo administrar a música na sala de aula ele terá um resultado


muito além do esperado, pois é o tipo de trabalho que cria empatia entre aluno e
professor, sem levar em conta o forma de uma referencial de memória para os
estudantes, e facilitando sua relação com o conteúdo. Para Milton Joeri Fernandes
Duarte as linguagens alternativas auxiliam no aprendizado do aluno (ABUD, 2005).
Para Duarte a música foi essencial no aprendizado de seus alunos, ele da aula
desde 1987. Sua tese de doutorado é “A música e a construção do conhecimento
histórico em aula” (2011), foi a partir de sua experiência em classe que ele resolve
aprofundar os estudos sobre a linguagem musical, e em até que ponto ela influência no
ensino de história.
Para responder tais questionamentos, o pesquisador acompanhou durante o
ano de 2007 as aulas de uma professora de história para alunos da quinta
série da rede municipal de São Paulo. No ano seguinte, ele selecionou 8 dos
alunos da turma, 4 meninos e 4 meninas. Ele os entrevistou para saber os seus
gostos musicais e, principalmente, qual era a relação que eles faziam entre o
conteúdo e as músicas apresentadas pela professora. “Nas entrevistas fiz o
procedimento contrário ao que era feito na sala de aula. Apresentava
pequenos textos que falavam sobre os conteúdos ensinados pela professora e
perguntava o que aquilo os lembrava. Todos os alunos referiram-se às
músicas ouvidas nas aulas e, de certa forma, isso os ajudava a lembrar partes
do conteúdo”, afirma. (FERREIRA abud DUARTE, 2011).

Na sala de aula, a música aproxima aluno e educador, pois o contexto musical


não é criado dentro da escola, elas vêm do cotidiano popular. Por isso o professor deve
estar apto para contextualizar as canções ao mostrar para os estudantes.
Na entrevista feita com o professor de História e Geografia Anuar Hassun
Paracat, do Colégio Estadual Barão do Cerro Azul, ele afirma que sempre utilizou a
música como ferramenta em suas aulas, já que a partir disso conseguiu interagir mais
com seus e alunos e fazer com que eles aprendessem mais. De acordo com o Anuar:
"tudo o que o professor trás para escola e para sua turma é válido e enriquece sua aula;
[...] proporcionam ao aluno e professor saírem daquela rotina de giz, quadro e livro
didático", motiva e desperta interesse nos alunos. À exemplo do que vem sendo tratado,
ele também faz um reconhecimento se a música faz relação com o conteúdo que está
sendo trabalhado antes de aplicá-la em sala de aula. Por fim ele classifica o uso da

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música como algo muito positivo para aulas de História, pois ele consegue ensinar
melhor seus alunos, além de fazer com que sintam interesse em estudar História.
Essa metodologia possibilita o aluno a elaborar conceitos e entender fatos
históricos. As letras de músicas mostram evidencias e registros de acontecimentos que
podem ser mais bem entendido pelos alunos, permitindo que ele se aproxime de pessoas
que viveram no passado, elaborando sua própria compreensão histórica.
Depois de passar a música cabe ao professor determinar a atividade a ser
trabalhada em sala de aula. No final da atividade os aplicadores estabelecem quais os
pontos positivos da proposta apresentada de início.

A música escolhida
Após o levantamento da metodologia de como trabalharmos a música em sala
de aula, através do PIBID, colocamos em prática o que foi estudado. Foi escolhida a
música Três apitos (1933) de Noel Rosa, que mostra diversos aspectos do contexto da
década de 1930 no Brasil, numa turma de 2º ano do Colégio Estadual Idália Rocha
(Ivaiporã – Pr).

Três Apitos
Noel Rosa

Quando o apito da fábrica de tecidos


Vem ferir os meus ouvidos
Eu me lembro de você
Mas você anda
Sem dúvida bem zangada
Está interessada
Em fingir que não me vê
Você que atende ao apito de uma chaminé de barro
Porque não atende ao grito
Tão aflito
Da buzina do meu carro
Você no inverno

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Sem meias vai pro trabalho


Não faz fé com agasalho
Nem no frio você crê
Mas você é mesmo artigo que não se imita
Quando a fábrica apita
Faz reclame de você
Nos meus olhos você lê
Que eu sofro cruelmente
Com ciúmes do gerente
Impertinente
Que dá ordens a você
Sou do sereno poeta muito soturno
Vou virar guarda-noturno
E você sabe por que
Mas você não sabe
Que enquanto você faz pano
Faço junto do piano
Estes versos pra você

No primeiro momentos vemos uma declaração de amor, porém ela também nos
mostra o processo de industrialização no Brasil. Após a primeira guerra e os anos 1930,
há a expansão industrial, e as fabricas que começam a aparecer nos lugar do campo,
marcando o começo do mundo urbano. Essa contradição de rural e urbano se encontra já
se encontra no próprio título, que fala do apito da fabrica, disciplina do tempo,
relacionando-o com o tempo do relógio e não mais da natureza. As fabricas de tecidos
foram as primeiras a se estabelecerem no Brasil, com operariado predominantemente
feminino, por isso a música se dirigia a moça que fazia pano.
A música também nos mostra as duas classes sociais que estavam nascendo: a
burguesia e o proletariado, que surgiram após o enfraquecimento das oligarquias rurais.
Assim como afirmam as fontes pesquisadas, trabalhar com música como fonte
histórica, fez com que alunos interagissem com o contexto e entendessem melhor como
procedeu da década de 1930 e o inicio da industrialização brasileira.

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Ao fim da aula perguntamos aos alunos se haviam dúvidas e todos


mencionaram que por o conteúdo ter sido com música foi mais fácil entender e não
houve duvidas. Deduzimos que isso aconteceu por os alunos ter criado maior
expectativa com o tema e assim prestaram mais atenção e não obtiveram duvidas.

Conclusão
O uso da música começou ganhar espaço a partir da Escola dos Annales, que
começa a tratá-la como documento histórico, então à música também engrenou em
ganhar seu espaço dentro das aulas de história, como função de trazer uma maior
dinâmica nas aulas.
De acordo com as idéias trabalhadas no texto, tais ferramentas permitem uma
aproximação entre aluno e professor, pelo fato, fazendo com o que os alunos interajam
com a aula e demonstrem um interesse pelo assunto.
Ouvir as opiniões, esclarecer duvidas e envolver os alunos em torno de um
debate sobre o material apresentado é uma experiência que demonstra o objetivo das
linguagens alternativas trabalhada em sala de aula.
As linguagens alternativas realmente propõem um aprendizado melhor para os
alunos, tivemos a experiência de trabalhar essa proposta no Colégio Estadual Idália
Rocha na cidade de Ivaiporã/PR, atividades realizadas pelo PIBID.
O fato de aliar o trabalho teórico com as linguagens alternativas na sala de aula
foi uma experiência enriquecedora, tanto pessoal como profissional.
Ainda percebemos que as aulas se tornam agradáveis devido ao grande
interesse dos alunos a respeito do tema, fazendo com que o professor se torne
estimulado a trazer outras linguagens de ensino como, música e vídeos, imagens. Em
aulas assim alunos conseguem vimos que os alunos prestam atenção e aprendem mais.
Por fim classificamos a aula trabalhada com linguagem alternativa como algo
positivo, desde que ela seja com os devidos métodos citados no texto, seguindo tais
passos, certamente professores e alunos terão os objetivos alcançados; apesar dessas
ferramentas serem pouco utilizadas esperamos, através do nosso trabalho, influenciar os
professores do colégio a adotar esses estilos de aula no seu cronograma. Essa foi nossa
primeira aula trabalhada em tal perspectiva, no entanto pretendemos, através do PIBID,
continuar trazendo metodologias novas (principalmente relacionadas a linguagens

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alternativas), que proporcionem um melhor aprendizado dos alunos nas aulas de


História.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABUD, K. M. Registro e representação do cotidiano: a música popular na aula de
história. Cad. Cedes, Campinas, vol 25. 2005
DUARTE, M. J. F. A música e a construção do conhecimento histórico em sala de
aula. Universidade de São Paulo, São Paulo. 2011.
FERREIRA, T. L; e PAVIANI, B. A música e a ditadura militar: como trabalhar
com letras de música enquanto documento histórico. História e Ensino, Londrina,
vol 18. 2012.
FERREIRA, V. F. Uso de música em sala de aula facilita o aprendizado. 2011.
Disponível em http://www.usp.br/agen/?p=66775. Acessado em 20/1015.
GÓES, P. S. A utilização das músicas nas aulas de História com os alunos do 8º
ano. São Cristovão – SE. 2011.
SOUSA, R. G. O uso de música no ensino de história. S/D. disponível em
http://educador.brasilescola.com/estrategias-ensino/o-uso-musica-no-ensino-
historia.htm. Acessado em 20/10/15.

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O NEGRO NA HISTÓRIA DE LONDRINA: ANÁLISE DE FONTES


FOTOGRÁFICAS (1940-1950) 310
Diego Barbosa Alves de Oliveira
Fabíola Ferro da Silva.
História (UEL)
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Ana Heloisa Molina.
PALAVRAS-CHAVE: HISTÓRIA; NEGROS; EDUCAÇÃO

A história da cidade de Londrina, no norte do Paraná, ao longo dos anos vem sendo
construída a partir de uma perspectiva oficial, e que provavelmente, tem como principal questão
a ser abordada a figura do “pioneiro”. No final da década de 1920, ingleses fundavam a
Companhia de Terras Norte do Paraná e, dividiam e comercializavam as terras londrinenses. A
Companhia fazia extensa propaganda sobre a região que era então conhecida como “a terra roxa
e sem saúva”, despertando interesse em brasileiros e estrangeiros que almejavam uma vida
melhor. O crescimento da cidade foi rápido nos anos que sucederam a segunda grande guerra, a
partir da década de 1950, “levando a construção das representações de Londrina e do norte do
Paraná como terra da promissão e Eldorado, ou seja, como terra do progresso e dos homens e
mulheres que para lá se dirigiam como pioneiros” (ARIAS NETO, 1995, p. 70).
Nesse discurso oficial é exaltada a figura do pioneiro, aquele que desbravou as matas e
tornou a terra apta à agricultura, em especial para a produção de café. Essa história oficial trata
como ideal de pioneiro o homem, e em geral, um homem branco (europeu), cristão, que obteve
sucesso em sua vinda a cidade; e hoje, colabora para afirmar esta perspectiva que tem como
base o trabalho e o progresso, que se mostra presente nas memórias e lugares de memórias
construídos na cidade (SILVA; MORAES, 2010, p. 321). Deve-se destacar que tal perspectiva
oficial, exclui nordestinos, negros, mulheres, índios, e outros que também estiveram presentes
na formação da região de Londrina.
Maria Nilza da Silva (2008) comenta que a trajetória dos negros é semelhante em
diversas localidades do Brasil, tendo como causa, a estratégia de branqueamento como tipo
ideal do brasileiro. Para Maria Nilza da Silva, a estratégia de branqueamento serviu para manter
um “caráter europeu” no Brasil, segregando ainda mais um número expressivo da população
brasileira; nesse sentido, a autora diz:
Se a cidade representou o locus privilegiado de oportunidades para
inúmeros migrantes e imigrantes que chegaram ao Norte do Paraná em
310
Este artigo, escrito com o graduado em História Diego Barbosa Alves de Oliveira, é resultado de um
projeto de pesquisa desenvolvido para a disciplina Metodologia e Prática de Ensino de História/Estágio
Supervisionado no ano de 2013 e orientado pela Profª Dra. Ana Heloísa Molina.

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busca de melhores condições de vida, para a maioria dos negros que


aportaram na cidade, Londrina não lhes proporcionou as
oportunidades que outros contingentes populacionais tiveram. A
exclusão do negro da própria história oficial da cidade obriga o
sociólogo e o historiador a buscá-la na memória de cada família que
ali chegou nos anos 30 e 40 do século XX e nas fotografias que não
deixam a “oficialidade” negar a existência de um povo [...] [nas] (só
para alguns, note-se) “terras vermelhas” do chamado Norte Pioneiro
do Paraná (SILVA; LARANJEIRA, 2008, P. 5).

Assim, nossa proposta é “ouvir as vozes negras silenciadas” a partir de análises de


fotografias, junto aos alunos do Ensino Médio. As fotografias se referem à AROL – Associação
de Recreação Operária de Londrina. A AROL se consolidou como um importante espaço para
inserção do negro em sociedade, de modo que procurava estabelecer um lugar de lazer e cultura
destinado a essa população, que até então, era proibida de participar dos clubes e outros meios
de recreação da cidade, espaços destinados a brancos, embora não houvesse uma segregação
oficial. Sobretudo, uma das propostas da Associação, era o combate à descriminação racial,
realizando manifestações, concursos de beleza, dentre outros, na tentativa de afirmar identidades
e cultura negra.
A AROL se inicia, em 1939, com o Clube do Quadrado, que segundo Diniz e Borgui
(2010), teria sido fundado após um protesto da comunidade negra, que solicitavam a
participação em espaços de lazer da cidade. Posteriormente, se tornou Sociedade Beneficente
Princesa Isabel. Ao unir-se com a classe operária da cidade, e sob sugestão do então prefeito,
Sobrinho (DINIZ; BORGUI, 2010), o nome é novamente alterado para “Associação de
recreação Operária de Londrina”. Deste modo, entre as décadas de 1940 e 1950, a AROL atuou
de forma ativa na cidade, buscando uma inclusão dos homens e mulheres negras na sociedade
londrinense.
O ensino de História, segundo as Orientações Curriculares para o Ensino Médio, tem
tido como objetivo: “Preparar o educando para a vida, para o exercício da cidadania, para sua
inserção qualificada no mundo do trabalho, e capacitá-lo para o aprendizado permanente e
autônomo” (BRASIL, 2006, P.67). Neste sentido, o Ensino de História, por meio de reflexões
críticas sobre o tempo e espaço, contribui para que os alunos se percebam como sujeitos de seu
tempo, que pensam criticamente sobre o passado e o presente, podendo fazer projeções de
futuro. Ao refletirmos sobre a História do Paraná e a diversidade étnica, pensando sobre o lugar
do negro na ocupação e desenvolvimento da cidade de Londrina, nos baseamos nas Diretrizes

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Curriculares para o Ensino de História na Educação Básica, elaborada em 2007, em parceria


entre o Governo do Estado do Paraná; Secretaria de Estado da Educação; e Superintendência da
Educação, que com uma perspectiva de inclusão social, estas Diretrizes consideram a
diversidade cultural. O documento prevê, para o ensino, o cumprimento das seguintes leis:
O cumprimento da Lei n. 13.381/01, que torna obrigatório, no Ensino
Fundamental e Médio da Rede Pública Estadual, os conteúdos de
História do Paraná; o cumprimento da Lei n. 10.639/03, inclui no
currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática
História e Cultura Afro-Brasileira, seguidas das Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das relações étnico-raciais e para o ensino
de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (PARANÁ, 2007, p.
11-12).

Assim, o projeto se justifica por meio das leis 13.381/01, e 10.639/03, pensando a
História da cultura afro-brasileira na construção e desenvolvimento da cidade de Londrina, no
norte do Paraná.
Neste sentido, de ouvir vozes “silenciadas” pela história tradicional, de inclusão da
história do negro no Brasil para além da escravidão, Martha Abreu e Hebe Mattos (2008),
comentam sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-
Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Segundo as autoras,
em alguns trechos o “documento esclarece que entende a noção de raça como construção social
e histórica produzida pelo advento do racismo moderno, optando por abordar historicamente a
construção da noção de identidade negra” (ABREU; MATTOS, 2008, p.9).
As “Diretrizes” trazem para o âmbito da escola, pela primeira vez, a
importante discussão das relações raciais no Brasil e o combate ao
racismo, tantas vezes silenciado ou desqualificado pelas avaliações de
que o Brasil é uma democracia racial. É importante lembrar,
entretanto, que a construção da ideia de democracia racial no Brasil se
fez, especialmente a partir das décadas de 30 e 40 do século XX, em
oposição às teorias racistas, anteriores e concorrentes, que pregavam o
“branqueamento” da população (ABREU; MATTOS, 2008, p. 09).

As tentativas de inclusão de uma história e cultura afro-brasileira e africana são


importantes porque foram vozes silenciadas na escrita da história brasileira, mesmo com o seu
papel social/cultural importante para o desenvolvimento do país.

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Em Londrina, a escrita da história oficial também os excluiu, como se não houvesse


negros, nordestinos, ou os demais que não enriqueceram com a rica terra vermelha do norte
paranaense. Mas refletir sobre o papel do negro no passado, é também importante para a
construção das identidades e culturas negras; e para que os alunos compreendam a diversidade,
preparando, então, o educando para a vida, para o exercício da cidadania. Ao pensarmos nos
homens e mulheres negros, participando ativamente da vida política, social e cultural de uma
cidade no século XX, podemos pensar em uma identidade e cultura negra, que não apenas
“contribuiu”, mas atuou para a construção de uma história para além da escravidão.
Ao apresentar aos alunos uma nova perspectiva sobre a História Local com o negro em
seu protagonismo sociocultural dentro das experiências do cotidiano, refletimos assim sobre o
negro durante a formação da cidade de Londrina; um tema pouco trabalhado no ensino médio,
mas que, possibilita que o aluno contextualize suas vivências (da história local) em uma vida em
sociedade, possibilitando a compreensão de seu entorno (BITTENCOURT, 2008, p.168). Para
desenvolver a atividade proposta, desenvolvemos uma análise de fontes fotográficas- utilizando
como fonte as fotografias da AROL- para refletir sobre o preconceito racial; problematizar a
imagem do “pioneiro” e a história oficial da cidade.
No decorrer do século XX, diversas teorias modificaram a forma com que os
historiadores escreviam a história. A ampliação de fontes (vestígios do passado) e temas
historiográficos se intensificou. A partir disto, historiadores pesquisam temas como: a vida
cotidiana, cultura material e imaterial, entre outros. Dentro dessas compreensões a história passa
a compreender a memória não só como lembrança do passado, mas como mutável, sempre em
constante transformação, o passado e o que se compreende dele não é mais estático, entende-se
que as compreensões sobre ele são moldadas no tempo presente (MENESES, 1992).
Visto isso à memória é compreendida como formadora de identidades, Michael
Pollack indaga sobre esta função dela:
Quais são, portanto, os elementos constitutivos da memória,
individual ou coletiva? Em primeiro lugar, são os acontecimentos
vividos pessoalmente. Em segundo lugar, são acontecimentos que eu
chamaria de "vividos por tabela", ou seja, acontecimentos vividos pelo
grupo ou pela coletividade à qual a pessoa se sente pertencer.
(POLLAK, 1992, P. 201)

Esses acontecimentos vivenciados pelos indivíduos sejam eles vivenciados


individualmente ou coletivamente, contribuem para suas construções identitárias; podemos
tomar como exemplo manifestações religiosas, onde acontecimentos que creem terem

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vivenciado em tabela e individualmente, geram uma união e formam a identidade social de um


grupo e/ou indivíduo. Partindo dessas compreensões, ao entrarmos em contato com os alunos,
como professores, devemos considerar o contexto social que eles estão inseridos, contexto
social carregados de memórias, sendo estas de total influência sobre as formações de suas
identidades.
Segundo Jörn Rüsen, no seu livro História Viva, o conhecimento sobre a ciência da
história é estabelecido através da prática e assim o saber histórico é gerado na pesquisa e
formatado na historiografia. O saber histórico tem como função a pratica, pois é através dela
que o indivíduo se orienta historicamente, adquiri a consciência de um ser histórico, e forma sua
identidade para viver e agir intencionalmente. O ponto central da “didática”, segundo Rüsen, é
trazer o pensamento histórico para a prática e esse pensamento auxilia na construção de
identidade. A consciência histórica é uma condição da existência do pensamento e ela não se
restringe a classes sociais, países ou períodos históricos.
Mobilizar a própria consciência histórica não é uma opção, mas uma
necessidade de atribuição de significado a um fluxo sobre o qual não
tenho controle: a transformação, através do presente, do que está por
vir no que já foi vivido, continuamente. Embora seja teoricamente
imaginável estar na corrente temporal sem atribuir sentido a ela, não é
possível agir no mundo sem essa atribuição de sentido; como deixar
de agir também parte de uma interpretação, na prática também não há
opção de atribuir ou não significado ao tempo que passamos ou que
passa por nós. (CERRI, 2001, P. 99)

O homem precisa agir intencionalmente, pois é no agir que o homem determina o que
quer e quais são as ações necessárias e porque ele as toma. Definimos a historicidade, que é
própria da nossa existência e nos constitui como espécie, como “a constituição da vida humana
(que resume mundo e tempo) pela qual ela está entre um passado já sempre pré-dado, que
continua agindo e ao mesmo tempo subtraído, e um futuro, objeto de preocupação, aberto e
vindouro, e assim realiza a si mesma e a sua essência numa tensão entre liberdade e
determinação. ” (RABUSKE, 2010, P. 161-162).
O ensino da história ou a formação histórica, segundo Rüsen, nada mais é que o
“conjunto das competências de interpretação do mundo e de si próprio”, e a partir da
coletividade e da individualidade deve-se articular o agir e o autoconhecimento; a formação une
fatores como a linguagem, o pensamento, a memória, a percepção e o raciocínio, ou seja, é a
cognição e é a expressão que é o próprio processo de aquisição do conhecimento. A “formação

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opõe-se criticamente à unilateralidade, à especialização restritiva e ao afastamento da prática do


sujeito. ” (RÜSEN, 2007, P. 95).
O currículo proposto pelas diretrizes curriculares de História busca unir as formas de
conhecimento científico, artístico e filosófico na construção de um conhecimento total e, que se
relacione com o cotidiano, ou seja, assumindo uma postura interdisciplinar. A função da
disciplina seria a produção de um conhecimento a partir de análises e interpretações do passado,
gerando uma problematização histórica que deve levar em consideração as diferentes
experiências e pré-conceitos dos alunos.
A História busca a conscientização histórica (RÜSEN, 2007) dos estudantes, na qual o
aluno seria capaz de compreender que o conhecimento histórico é resultado da investigação e
sistematização de ideias sobre o passado, com a possibilidade de inúmeras reflexões e a
ampliação do campo de visão histórico. Neste sentido, Cerri (2001), a partir de suas leituras
sobre Rüsen e Heller, diz que a historicidade é a própria condição da existência humana, e o que
varia, são as formas de apreensão dessa historicidade, “ou nos termos de Rüsen, as perspectivas
de atribuição de sentido à experiência temporal” (CERRI, 2001, p. 100).
Uma proposta que abrange tal objetivo é a aula-oficina, de Isabel Barca (2004); uma
aula que carreguem em si, materiais diversificados; que se utilize e problematize as ideias
prévias e experiências dos alunos; e que tenha uma linguagem que consiga comunicar-se de
forma direta com o estudante. Assim, para Isabel Barca (2004), é importante, ao formular uma
aula, refletir sobre o ensino de História orientado para o desenvolvimento de instrumentalização
essencial, que a autora toma como trato com a fonte, concepções, vestígios, dentre outros
(BARCA, 2004, p. 133).
Ser instrumentalizado em História passa por uma compreensão
contextualizada do passado, com base na evidência disponível, e pelo
desenvolvimento de uma orientação temporal que se traduza na
interiorização de relações entre o passado compreendido, o presente
problematizado e o futuro perspectivado (BARCA, 2004, p. 133).

Assim, Isabel Barca estrutura a aula-oficina em três pontos: o primeiro, diz respeito às
interpretações de fontes, com suportes e mensagens diversas. No segundo momento, a autora
pensa em uma compreensão contextualizada, entendendo (ou procurando entender) situações
humanas em diferentes tempos e espaços – problematizando o passado por questões do
presente. E o terceiro ponto, a comunicação, onde a autora expressa à necessidade de exprimir a
interpretação e compreensão das experiências humanas ao longo do tempo, utilizando a
diversidade dos meios de comunicação disponíveis.

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Para Circe Bittencourt (2008), é necessário que o professor/historiador pense em


métodos para desenvolver suas aulas. Nesse sentido, ao lado da aula-oficina, de Isabel Barca
(2001), estamos pensando na História local, que para Bittencourt, possibilita que o aluno
contextualize a vivência (da história local) em uma vida em sociedade, articulando a história
individual com a história coletiva “ela possibilita a compreensão do entorno do aluno”
(BITTENCOURT, 2008, p.168).
A história local geralmente se liga à história do cotidiano ao fazer das
pessoas comuns participantes de uma história aparentemente
desprovida de importância e estabelecer relações entre os grupos
sociais de condições que participam de entrecruzamentos de histórias,
tanto no presente como no passado (BITTENCOURT, 2008, p.168).

Ainda em Bittencourt, é possível relacionar a história local e a memória, visto que ela
considera que “é pela memória que se chega à história local” (BITTENCOURT, 2008, p. 169).
Entretanto, deve-se ressaltar que a história não deve ser confundida com a memória, como nos
alerta Pierre Nora,
A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que
não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo
vivido no eterno presente; a história, uma representação do passado.
Porque é afetiva e mágica, a memória não se acomoda a detalhes que a
confortam, ela se alimenta de lembranças vagas, telescópicas, globais
ou flutuantes, particulares ou simbólicas, sensível a todas as
transferências, cenas, censuras ou projeções. A história, porque
operação intelectual e laicizante demanda análise e discurso crítico.
(...) A memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na
imagem, no objeto. A história só se liga às continuidades temporais, às
evoluções e às relações das coisas (NORA, 1993, p. 09).

Deste modo, pretende-se desenvolver uma aula-oficina que, por meio da análise de
fontes fotográfica pense os homens comuns, que não foram lembrados nas narrativas oficiais
sobre a história de Londrina.
A fotografia, como apontado por Mauad (1996) deve ser pensada como
imagem/documento - marca de uma materialidade passada, na qual, objetos, pessoas, lugares,
nos informam sobre aspectos do passado, condições de vida, moda, infraestrutura urbana ou

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rural, etc. E ainda como imagem/monumento - um símbolo, que no passado, a sociedade


estabeleceu como imagem a ser eternizada para o futuro (MAUAD, 1996, p. 08).
Tomamos a fotografia como um mediador cultural, que auxilia o professor a
desenvolver suas analises junto aos alunos em sala de aula, pois,
Devido às cenas recortadas e representadas na imagem congelada que,
além de conter informações novas sobre os fatos históricos, que
auxiliam na formação de alunos capazes de raciocinar historicamente,
criticamente e com sensibilidade sobre a vida social, material e
cultural das sociedades, tem também o potencial de despertar o
interesse dos alunos, uma pré-disposição em aprender (GEJÃO;
MOLINA, 2008, p.1).

Deste modo, baseando-nos em uma aula-oficina que pense a história local por meio
das fotografias da AROL, uma associação recreativa voltada para os negros, queremos que os
alunos percebam que a história possui um caráter multiperspectivado, como sugere Isabel Barca
(2001), compreendendo que existem inúmeras maneiras de “ler” e “escrever” a história.
Pensamos a fotografia como um mediador cultural, ou seja, atua na interação entre os
conhecimentos prévios e os novos conhecimentos que serão desenvolvidas durante as aulas.
Assim, o ensino de História abarca a multiplicidade de novas fontes e linguagens de produção
do saber histórico, e incluem os significados e conhecimentos que os alunos constroem
(GEJÃO, 2009, p. 266). Para trabalharmos com fontes fotográficas em sala de aula, com base
em Mauad (1996), desenvolvemos uma tabela que serviria como base da interpretação.
Ficha de elementos da forma do conteúdo das fotografias:
Foto 01 Foto 02
Autor:

Local retratado:

Tema retratado:

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Pessoas retratadas:

Objetos retratados:

Características das pessoas:

Ano em que a foto fora


produzida:

Baseado na ficha desenvolvida pela historiadora Ana Maria Mauad, em sua pesquisa: MAUAD,
Ana M. Através da imagem: Fotografia e História interfaces. Tempo, Rio de Janeiro, vol. 1,
n °. 2, 1996, p. 73-98.

Fotografias para análise:

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Dr. Oscar Nascimento. Apresentação musical na AROL. Fotógrafo: desconhecido.


Fonte: Museu Histórico de Londrina.

Rainha e princesa da Escola de Samba da AROL. Fotógrafo: desconhecido. Fonte:


Museu Histórico de Londrina.

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Associado da AROL. Fotógrafo: Desconhecido. Fonte: Museu Histórico de Londrina

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Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Junho de 2008. NÚMERO DE


SÉRIE: 187. http://www.aps.pt/vicongresso/pdfs/187.pdf

A HISTÓRIA DO PIONEIRO EM LONDRINA POR ALUNOS DO


ENSINO MÉDIO
Gabriela Ferreira Horvatich Beffa
Guilherme Luis Pampu (História - UEL)
PALAVRAS-CHAVE: ENSINO DE HISTÓRIA; PIONEIRO; IDENTIDADE.

O presente texto tem como objetivo relatar as atividades do Programa


Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) – subprojeto História Ensino
Médio, da Universidade Estadual de Londrina, atuamos no subprojeto sob a
coordenação do Prof. Dr. Márcio Santana. O seu objetivo visa a articulação entre
pesquisa e ensino, com ênfase na construção de uma literacia histórica pautado na
temática da História Local, em especial, considerando os sujeitos que, em geral, são
excluídos das narrativas históricas que circulam na cidade. Nosso grupo de pesquisa tem
como objetivo fazer com que os alunos percebam a importância da figura do pioneiro
para o desenvolvimento da cidade de Londrina, mas tomando o cuidado de desconstruir
a imagem do herói-pioneiro, contextualizando-o como sujeito histórico.
Trabalhamos com a proposta da historiadora Isabel Barca, de criar uma aula-
oficina que busca para o campo da História uma nova abordagem de ensino, em que os
alunos são os protagonistas da construção de seus conhecimentos históricos, isto é,
desenvolvendo uma maneira especificamente histórica de interpretar a realidade, tendo
o professor como mediador, através da problematização do conteúdo exposto. Para que
tal construção aconteça, é fundamental o uso escolar das fontes históricas “que se
traduza na interiorização de relações entre o passado compreendido, o presente
problematizado e o futuro perspectivado” (BARCA, 2004, p. 132).
Pensando nessa forma de ensino, buscamos uma abordagem, através de um
questionário de conhecimentos prévios, entender a forma como os alunos interpretam a
história e concebem a imagem do pioneiro em Londrina como integrante da mesma.
Após a análise das informações levantadas, realizamos sua categorização e tabulação

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em forma de gráficos. As respostas do questionário nos serviram como fontes de


análise, como ponto de partida para entender as formas de interpretação histórica dos
alunos, para posteriormente trabalhá-las em sala de aula.
Essas interpretações que estes alunos apresentam sobre o pioneiro de Londrina,
são baseadas em como entraram em contato com essa temática, por quais canais
obtiveram contato com essa temática e com o processo de escolarização, o gráfico a
seguir mostra que o aprendizado de história, especificamente essa temática local, não se
restringe apenas a “matérias escolares”. Então pressupondo que a juventude é composta
por sujeitos que se diferenciam através de suas opiniões, seus gostos, classe social e
culturas, podemos então pensar nessas diferenças ao analisar as respostas de cada um
sobre o que entendem pelo pioneiro da região de Londrina, como era sua vida e como se
alimentavam. O adolescente aqui é pensado na sua diversidade e esta faz com que os
alunos apresentem pontos de vista diferentes sobre a história.
Há também outras questões a serem pensadas a respeito do questionário, como
por exemplo, à forma como o aluno adquire seu conhecimento. O museu seria uma
forma com a qual o estudante tem acesso ao conhecimento histórico (32% dos alunos).
Podemos pensar também a chamada sociedade da informação a qual os discentes têm
contato diariamente (18% responderam “internet”). Contudo, também se percebe que os
alunos adquirem seus conhecimentos pela narrativa de pessoas próximas, avós (6%) e
através de matérias escolares (18%).

Como conheceu a história de Londrina ?

Matérias Escolares

22% 18% Livros

6% 6% Internet

Museu
18%
32% Avós

não conhece

Essas questões devem ser pensadas e questionadas quanto o modo ao qual a


informação é passada ao ouvinte. Nosso PIBID vem trabalhando com o pioneiro em
Londrina sobre outra perspectiva. Abordando o simples trabalhador que ajudou a

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construir a cidade, levantando questões como, quem eram, como se divertiam e se


alimentavam. Pois esses tiveram a sua voz silenciada na história. Buscamos com nossa
pesquisa compreender esse pioneiro como sujeito histórico, mas excluído das narrativas,
que edificam como “pioneiros”, pessoas como Arthur Thomas, João Sampaio. Neste
sentido, optamos por apresentar um aspecto diferente sobre o pioneiro, com o intuito de
fazer com que os alunos também se entendam como sujeitos da história.
Um ponto interessante a ser salientado é como os alunos conhecem a história de
Londrina, a maioria dos alunos sinalizou que tiveram conhecimento através do Museu
Histórico de Londrina, onde a apresentação do acervo é convergente que a historiografia
tradicional, havendo a exaltação do pioneiro, como homens que prosperaram, tanto
socialmente como economicamente. Temos no museu:
[...] [o] 1º módulo: o empreendimento da colonização – apropriação e
transformação do território. Corresponde aos anos 1920 e início dos 30 e marca
as primeiras ações dos primeiros desbravadores da região, principalmente, com
a vinda dos ingleses e paulistas da CTNP e das primeiras famílias adquirentes
de lotes; 2º módulo: a emancipação de Londrina – movimentos migratórios e
constituição da cidade. Corresponde aos anos 1930 e 40 e apresenta os aspectos
políticos da cidade recém emancipada bem como a constituição de serviços
essencialmente urbanos; 3º módulo: a explosão econômica e o café –
diversidade cultural e afirmação econômica. Corresponde aos anos 1950, 60 e
70, evocando a época do “ouro verde”, afirmação da cidade como centro
produtor agropecuário e pólo cultural e educativo da região. Neste módulo
também é explorado a crise produtiva do café, principalmente cultural em toda
região, que sofria os intensos impactos da suscetibilidade do mercado
internacional. (HILDEBRANDO, 2010, p.51)
Fica evidente que a narrativa do museu dá grande destaque a vinda dos ingleses
e paulistas.
Sua exposição permanente comporta cenários como, por exemplo: “venda”,
“cozinha”, “indústria”, “imprensa” (jornal), “alfaiataria”, etc. Tais cenários
procuram reproduzir o ambiente do passado, procurando criar uma empatia no
público, o que de fato acontece. (RAMOS, 2013, p.2)
Tradicionalmente a história da cidade de Londrina, vem sendo construída em
cima da perspectiva de que os ingleses foram responsáveis pela colonização da cidade
através da Companhia de Terras Norte do Paraná. Houve grande propaganda da região,
fazendo com que houvesse um rápido desenvolvimento da cidade principalmente na

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década de 1950 “levando a construção das representações de como terra do progresso e


dos homens e mulheres que para lá se dirigiam como pioneiros” (ARIAS NETO, 1995).
Em cima dessa concepção da construção da cidade de Londrina que surge as
interpretações a respeito da figura do pioneiro, tido como o branco europeu que veio a
região como desbravador, derrubou matas, tornou a região propicia para agricultura, foi
bem-sucedido e, hoje em dia, afirma essa perspectiva.
Esta concepção é reforçada na “construção da memória” oficial da cidade, onde
em diversos pontos podemos encontrar monumentos de exaltação a figura tradicional do
pioneiro.
Em londrina a memória oficial foi construída a partir da exaltação da imagem
dos pioneiros. Essa ideia se reflete nas homenagens presentes nos monumentos
e comemorações, nomes de logradouros entre outros suportes de memória
espalhados pela cidade de Londrina. Esses personagens são tidos como
exemplos da bravura e do empreendedorismo, pois são aqueles que chegaram
primeiro e desbravaram as terras virgens. (SILVA, MORAES, 2010, p 321)
O trabalho efetuado pelo PIBID de História, coordenado pelo professor Márcio
Santana, tem a proposta de questionar essa historiografia e apresentar uma nova
perspectiva sobre a figura do pioneiro, focando no seu lado humano, não criando uma
mitificação, mas sim como um cidadão comum, que fazia coisas do cotidiano e
estiveram presentes no processo de colonização e ocupação da cidade de Londrina.
Quando indagados sobre se conhecem algum pioneiro, obtivemos os seguintes
dados:

Conhece algum pioneiro de Londrina?


Caso conheça quem?
3%

Não conhecem
6%
Arthur Thomas e
26% joão Sampaio
Guia do museu
65%
Avôs

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As respostas demonstram que a maioria dos alunos (79%) não conhecem ou não
tiveram contato com nenhum pioneiro da cidade de Londrina, dos alunos que disseram
conhecer (12%) que disseram conhecer algum pioneiro, associaram a figura de pioneiro
a figuras tradicionais e famosas aqui na região, (6%) dos alunos responderam os avôs,
classificando eles como pioneiros (3%) colocaram o guia do museu como pioneiro da
cidade de Londrina.
Um ponto interessante sobre a questão “Conhece algum pioneiro de Londrina?”
foi associação a figuras como Arthur Thomas, que recebeu a missão de Lorde Lovat de
criar uma empresa no Brasil financiada com capital inglês com o intuito de iniciar o
plantio de algodão. Concidentemente nesse mesmo período, o governo do Paraná estava
procurando investidores, pois pretendia desenvolver o Norte do Estado, uma região que
até os anos 1930 era composta majoritariamente de mata virgem.
Thomas veio para a região e assessorado pelo advogado João Sampaio, negociou
com o Paraná a concessão das terras e o seu plano de desenvolvimento do Norte do
Estado foi posto em prática. Já no ano de 1929, ele organizou uma comitiva composta
por engenheiros e começou a implantação de uma cidade.
A região norte do Paraná foi formada por diferentes povos, de diversas etnias,
regiões e nacionalidades, nosso foco, entretanto, é a cidade de Londrina. O processo de
colonização londrinense teve início com o projeto imobiliário da Companhia de Terras
Norte do Paraná (CTNP), uma empresa privada, no final da década de 1920. As terras
adquiridas pela empresa colonizadora estavam vinculadas a política do governo da
época que tinha como intuito atrair investimentos estrangeiros para o país. A CTNP
também investiu em propagandas positivas para atrais compradores de diversas partes
do Brasil e do mundo (LEME, 2013).
Foram produzidos estudos tratando o Norte do Paraná, levando-se em conta seus
critérios naturais positivos, como clima e vegetação, aspectos econômicos baseados na
expansão da cultura cafeeira e o trabalho de pioneiros que se destacaram
economicamente, como justificativa do progresso da região. Assim, a história era feita a
partir de uma perspectiva econômica, desconsiderando-se aspecto políticos e culturais.
Dentro desta perspectiva a ação da CTNP era representada de forma idealizada, pois as
ideias de Londrina enquanto terra prometida, fértil e lugar propício para o
enriquecimento eram, mais uma vez, legitimadas.

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Entre as décadas de 1930 e 1970 os textos produzidos sobre a história do norte


do Paraná tratavam a região como uma terra prometida, onde o solo era fértil e onde era
possível a todos prosperar economicamente. Dessa forma foi-se construindo uma ideia
de ocupação pacífica e necessária, encobrindo dessa forma que na região já existiam
moradores indígenas, caboclos e posseiros (ADUM, 2013). Podemos observar aqui, que
a história de uma Londrina inglesa, não está de acordo com a realidade, Londrina foi
formada por diversos povos como índios, imigrantes e migrantes diversos que já se
encontravam na região antes mesmo dos ingleses. Podemos observar na tabela abaixo
uma parte da diversidade de povos que constituíram a cidade de Londrina, através dos
lotes de terras adquiridos pelas etnias:

Relatório de 1935 da CTNP, publicado no jornal Folha de Londrina, de


29 de abril de 1975, em artigo assinado por Antônio Vilela Magalhães. Acervo: MHL.

Uma cidade formada por diversas nacionalidades reflete a existência de variadas


etnias na região do Norte do Paraná e de Londrina. Desta forma, o processo de
colonização e histórico da cidade conta com todos estes atores e não apenas com um ou
outro. Porém, os registros oficiais londrinenses dão ênfase à memória de grupos
específicos, deixando outras memórias silenciadas.
Pensando nessa diversidade de povos que formaram a cidade de Londrina, temos
que pensar na identidade desses povos, e para isso vamos focar na sua alimentação. No
seu surgimento, a cidade de Londrina resumia-se a um amontoado de ranchos. Na

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medida em que a mata fechada ia sendo destruída para dar lugar às imensas lavouras de
café, eram encontradas matérias-primas que serviam de base alimentar para os homens
que trabalhavam sem parar, bem como para imigrantes de diferentes nacionalidades. As
etnias e grupos não somente carregam seus hábitos alimentares, mas adaptam-se aos
recursos existentes no processo migratório de uma região à outra (CARVALHO, 2005).
Dos diversos grupos que construíram a cidade temos os imigrantes brasileiros,
cuja culinária damos maior destaque à mineira. É grande o número de habitantes que
vieram de Minas Gerais para o norte do Paraná, trazendo seus costumes e enriquecendo
a cultura local. Das etnias que mais contribuíram para a formação da dieta londrinense,
podemos destacar os italianos, alemães, portugueses e japoneses. A cultura alimentar da
cidade foi moldada inicialmente a partir dos recursos nativos disponíveis e plantados
(CARVALHO, 2005).
Toda identidade é fruto de uma construção histórica em contato direto com as
outras, uma identidade só existe por conta das diferenças e conflitos que se
desenvolvem por esse contato, sendo na diferença que surgem as identidades (SILVA;
SILVA, 2009).
Um dos mecanismos para a construção das identidades seria a invenção das
tradições. Tratam-se de práticas rituais ou simbólicas que buscam agregar valores pela
repetição. A continuidade dessas práticas resulta em uma tradição, ferramenta utilizada
para facilitação de identificação de um grupo. Quando repetidas ao longo dos anos,
passam a ser facilmente ligadas a uma população (HALL, 2000). Podemos aqui então
exemplificar com a nossa proposta de trabalhar com a alimentação como elemento de
identidade de um povo, sendo o modo de se alimentar uma tradição.
No terceiro gráfico verificamos que, ao serem instigados a imaginar como era o
cotidiano do pioneiro pensando especificamente na sua alimentação responderam:

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Como você acha que eles se Alimentavam?

Não sei

6%6% Caçando
29%
Produtos cultivados
35% por eles mesmo
Comendo Bacon
24%

Comidas normais

De acordo com as respostas é possível inferir que os alunos têm dificuldade de


pensar “como seria no passado”. Algumas respostas indicam que os alunos não
conseguem visualizar como seria a vida do pioneiro na formação da cidade, pois, 29%
dos alunos não souberam dizer como seria a vida do pioneiro, 24% dos alunos
acreditavam que os pioneiros se alimentavam da caça. Entretanto uma parcela
considerável dos alunos 35% consegue enxergar Londrina como uma cidade agrícola,
acreditando que as pessoas que vieram para cá, conseguiam subsistir.
Com base na explanação inicial pode-se ver que há uma dificuldade dos alunos
em enxergar a figura simples do pioneiro, a pessoa comum que veio das mais diversas
localidades do país atrás de uma perspectiva melhor. É possível notar também que a
imagem do pioneiro vinculado a historiografia tradicional é muito forte, visto que os
alunos, continuam a reproduzir esse discurso. Em cima dessa reflexão projetamos uma
aula com o objetivo de desconstruir a mitificação da cidade de Londrina ser uma
fundação inglesa, e também a desconstrução da imagem tradicional do pioneiro.
Pensamos em uma abordagem em cima do cotidiano do pioneiro, apresentando-o como
um cidadão comum, que fazia coisas comuns do cotidiano, analisando também a sua
identidade através da alimentação, salientando a pluralidade cultural da região Norte do
Paraná, e as dificuldades que os imigrantes das várias partes do Brasil e do mundo
encontraram na região. Assim, partindo das respostas dos alunos, construímos, a partir
de fontes históricas, um modo de ver a História da cidade, incluindo a atuação do
pioneiro, como um “representante” desta História.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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ADUM, Sonia Maria Sperandio Lopes. Historiografia Norte Paranaense: alguns


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LEME, Edson José Holtz. O Teatro da Memória: o Museu Histórico de Londrina: 1959-
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LEVANTAMENTO E ORGANIZAÇÃO DE ACERVO RELATIVO A


HISTÓRIA DO PARANÁ EM TEXTOS DIDÁTICOS DA
EDUCAÇÃO BÁSICA.
2001-2013
Gabriela Eguedis Rolinho (UEL)
Profª Dra. Ana Heloísa Molina
PALAVRAS CHAVES: ACERVO. LIVRO DIDÁTICO. HISTÓRIA DO PARANÁ NA EDUCAÇÃO BÁSICA.

Essa pesquisa pretende verificar a produção de livros didáticos de História do


Paraná o que significa pensar como tais livros são apresentados: sua materialidade,
autores, editores e as narrativas, visuais e textuais contidas em suas capas de
apresentação.
O recorte temporal contemplado origina-se a partir da Lei 13381/2001 que torna
obrigatório, no Ensino Fundamental e Médio da rede pública estadual de ensino,
conteúdos da disciplina História do Paraná e a atualidade, analisando nesse período, os
textos didáticos destinados à Educação Básica e que contemplem as temáticas de
História do Paraná.
Ferro (1992) já nos indicava que “(...) a imagem que temos dos outros povos ou
de nós mesmo é associada à História que nos foi contada quando nós éramos crianças”,
ou seja, contatos e conhecimentos apresentados nessa fase possuem um potencial
formador de crenças, opiniões e referenciais indenitários essenciais na constituição de
diretrizes normativas tanto para a organização do cognitivo quanto para aspectos da vida
pessoal, social e relacional do indivíduo.
A importância do contato com a história local ou do Estado que o indivíduo
nasce é crucial no tocante à constituição da identidade, do sentimento de pertença e da
observação mais atenta quanto às memórias que transitam em vários meios: escolares,
sociais, familiares, religiosos e culturais.
Definimos história local como Cerri e pensamos as dialéticas do micro e macro
contexto na pesquisa historiográfica.

“(...) Entendemos o estudo da História local, dialeticamente, como


uma busca do particular e do diferente, daquilo que diverge e

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relativiza histórias e identidades mais amplas (como a nacional),


simultaneamente com a demanda da universalidade humana naquilo
que aparentemente é particular” (CERRI, 2008, p. 33)

A investigação de histórias regionais em textos didáticos significa reorganizar os


aspectos relacionais entre história nacional e regional e perceber a construção de uma
dada memória e história recortada em lugares.
Textos didáticos são prioritariamente destinados ao público escolar, mas,
pesquisas indicam que são apropriados e lidos por um círculo maior: família, grupos
religiosos, agregados; portanto, a capacidade de leitura e significação (subjetiva,
individual, plural, diferenciada) está amplificada para outros sujeitos e públicos.
Por conta disto, esse texto é a organização e o levantamento de um acervo de
livros didáticos regionais sobre a História do Paraná, colocando dados dispostos em
tabelas de um recorte temporal de doze anos mostrando quais obras foram produzidas
no âmbito regional para o ensino, demonstrando os seus autores e analisando as ideias
que estes livros querem trazer para seus leitores inicialmente, através das ilustrações e
fotografias contidas em suas capas para reter a atenção em um primeiro olhar.

O que é o Livro Didático?


A pergunta que se faz título deste tópico parece simples, porém é mais complexo
do que se possa imaginar, pois “o “livro didático” é designado de inúmeras maneiras, e
nem sempre é possível explicar as características específicas que podem estar
relacionadas a cada uma das denominações.” (CHOPPIN, 2004 p. 549), o que acaba
tornando complexa a pesquisa nesse âmbito.
Mesmo não tendo uma designação “universal”, o livro didático tem diversas
funções, mas entre elas existem quatro que ainda segundo Choppin (2004) exercem
funções essenciais, são essas:
1. Função referencial, também chamada de curricular ou programática,
desde que existam programas de ensino: o livro didático é então apenas a fiel
tradução do programa ou, quando se exercer o livre jogo da concorrência, uma
de suas possíveis interpretações. Mas, em todo o caso, ele constitui o suporte
privilegiado dos conteúdos educativos, o depositário dos conhecimentos,

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técnicas ou habilidades que um grupo social acredita que seja necessário


transmitir às novas gerações.
2. Função instrumental, o livro didático põe em pratica métodos de
aprendizagem, propõe exercícios ou atividades que, segundo o contexto, visam a
facilitar a memorização dos conhecimentos, favorecer a aquisição de
competências disciplinares ou transversais, a apropriação de habilidades, de
métodos de análise ou de resolução de problemas, etc.
3. Função ideológica e cultural, é a função mais antiga. A partir do século
XIX, com a constituição dos Estados Nacionais e com o desenvolvimento, nesse
contexto, dos principais sistemas educativos, o livro didático se afirmou como
um dos vetores essenciais da língua, da cultura e dos valores das classes
dirigentes. Instrumento privilegiado de construção de identidade, geralmente ele
é reconhecido, assim como a moeda e a bandeira, como um símbolo da
soberania nacional e, nesse sentido, assume um importante papel político. Essa
função, que tente a aculturar – e, em certos casos, a doutrinar – as jovens
gerações, pode se exercer de maneira explicita, até mesmo sistemática e
ostensiva, ou, ainda, de maneira dissimulada, sob-reptícia, implícita, mas não
menos eficaz.
4. Função documental, acredita-se que o livro didático pode fornecer, sem
que sua leitura seja dirigida, um conjunto de documentos, textuais ou icônicos,
cuja observação ou confrontação podem vir a desenvolver o espírito crítico do
aluno. Essa função surgiu muito recentemente na literatura escolar e não é
universal: só é encontrada – afirmação que pode ser feita com muitas reservas –
em ambientes pedagógicos que privilegiam a iniciativa pessoal da criança e
visam a favorecer sua autonomia; supõe, também, um nível de formação elevado
dos professores.
Por fim, já com certa omissão de se definir objetivamente o objeto “livro
didático” por conta de ele ter tantas, podemos afirmar: é essencial no campo
educacional, através das singularidades de sua produção, organização e circulação
enquanto objeto cultural, bem como e não é nossa intenção nessa pesquisa, os usos e as
apropriações realizadas por professores e alunos em sala de aula.

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O Livro Didático no Brasil


No Brasil, após o período da ditadura militar (1964–1985), o campo de estudos
sobre o Livro Didático teve um desenvolvimento na pesquisa desse objeto e em seus
conteúdos

“[...] articulado direta ou indiretamente, a um significativo


movimento de resistência educacional, situado no final do período da
ditadura militar – relacionado a um movimento cultural mais amplo –
construído no país, sobretudo, por professores/pesquisadores em
busca de práticas alternativas de ensino.” (GALZERANI, 2013, p. 67)

As avaliações mais sistemáticas e cada vez mais aperfeiçoadas, empreendidas


pelo Ministério da Educação por meio das Universidades vêm desde meados da década
de 1990 garantindo qualidade nos livros didáticos que chegam à escola constituindo um
elemento importante nos debates e práticas dos processos de ensino e aprendizagem em
História conforme os estudos de Caimi (2013).
Com isso, houve a necessidade de um olhar mais atento para a história regional
através de escritores, pesquisadores e até mesmo dos professores para refletir sobre as
narrativas acerca da história de seu estado ou região.

Levantamento do Acervo
Nossa intenção para a abordagem do livro didático é amparada em Chartier
enquanto elemento de mediação editorial (2002) e materialidade (1999):

“(...) apreenda em conjunto, mas cada um em seu lugar, todos os


atores e todos os processos que fazem com que um texto se torne um
livro, seja qual for sua forma. Esta encarnação do texto numa
materialidade específica carrega as diferentes interpretações,
compreensões e usos de seus diferentes públicos” (CHARTIER,
1999:18).

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A organização, registro e divulgação de fontes de investigação nos possibilitam


perceber como a sistematização de dados referentes a um tema enriquece e amplia os
horizontes de uma pesquisa.
As fontes de pesquisa sobre livros didáticos vêm-se transformando, nas últimas
décadas, em foco privilegiado de atenção, traduzido por inúmeras publicações que
tratam do que alguns autores denominam de novas fontes, como também de discussões
sobre as novas tecnologias utilizadas para o registro, a organização e a preservação de
documentos em banco de dados ou para a informatização de acervos documentais.
O documento escrito foi, até o fim do século XIX, o documento privilegiado
pelos historiadores. A diversificação de fontes de informação, consequência do
alargamento dos campos da História, trouxe novos objetos e a ampliação das fontes,
dinamizando o conceito de documento, que segundo BELLOTO (1991, p. 14) é
qualquer elemento gráfico, iconográfico, plástico ou fônico pelo qual o homem se
expressa.
No exame do conceito de acervo, palavra de origem latina que significa
acumulação e muitas vezes referenciada como antiquaria, temos a idéia de passado, da
acumulação de indícios, que se materializam em documentos, em bens ou em
patrimônio. A quantidade é uma das variantes a que se submete o acervo que compõe os
arquivos, as bibliotecas, os museus e os centros de documentação, onde encontramos
um conjunto desses indícios, identificado com o que denominamos fontes de pesquisa,
classificadas em primárias e secundárias.
O material desta pesquisa – livros didáticos sobre a história do Paraná no sistema
público de ensino - foram encontrados em órgãos como a Biblioteca Municipal de
Londrina e no Colégio Estadual Albino Feijó Sanches no período de agosto de 2014 a
fevereiro de 2015, sendo 6 no total entre o período de 1992 a 2010, conforme a tabela 1
podemos verificar a quantificação encontrada anualmente na pesquisa de campo:

Quantificação de Livros Didáticos sobre a História do Paraná:


Ano: Nº de livros por ano (unidade):
1992 2
1994 1
1996 1

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2001 1
2010 1
Fonte: Gabriela Eguedis

Na primeira tabela podemos observar que no ano de 1992 se tem o maior


número de livros didáticos encontrados sobre o conteúdo de história regional do Paraná
enquanto entre 1994 a 2010 se teve a mesma quantidade de livros anualmente.
Na tabela 2, podemos verificar as especificidades dos livros didáticos
encontrados enquanto objetos de cultura material como dimensões e número de páginas.
Características físicas dos Livros Didáticos
Nome: Edição: Nº de páginas Ano
Viver é descobrir: História – Geografia – Paraná 1º Edição 133 1992
Viver é descobrir: História – Geografia – Paraná 2º Edição 133 2001
Paraná – Integração Social – Estudos Sociais 1º Edição 128 1992
Conhecendo o Paraná – Estudos Sociais 7º Edição 126 1994
Meu Estado: Paraná – Estudos Sociais 2º Edição 71 1996
História – Interagindo e percebendo o Paraná 1º Edição 133 2001
História – Paraná 1º Edição 152 2010
OBS: Todos os livros contêm as dimensões físicas de 27,5 x 20,5 cm.
Fonte: Gabriela Eguedis

Na tabela 3 temos os autores dos livros didáticos regionais do Paraná, sua


formação e área de atuação.
Titulação e atuação profissional dos autores:
Autores (as): Titulação: Atuação: Atuação:
Magda Madalena Peruzin Tuma Doutora em Educação Educação
Lúcia da Silva Eitel Sem dados Sem dados
Hamilton Bettes Junior Bacharel Geografia UFPR Sem dados
Marlene Ordoñez Bacharel em Ciências Sociais PUCPS* Sem dados
Geraldo Sales Bacharel em Geografia PUCSP* Sem dados
Nilsa Alves de Melo Mestrado em Educação USP* Educação
Lilian Sourient Bacharel e Licenciatura em Ciências Sociais UFPR* Professora

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Roseni Rudek Licenciatura em Geografia UFPR * Educação


Rosiane de Camargo Licenciatura em História UFPR * Professora
Graziella Rollemberg Bacharel em Ciências Sociais* Educação à Distância
* = Dados encontrados no interior dos livros pesquisados e sem maiores informações
atuais.
Fonte: Gabriela Eguedis

Dentre os autores que se obtiveram os dados, podemos notar que há três


profissionais no campo da Educação e dois atuam nesse campo. Há também três autores
formados em Geografia e três em Ciências Sociais, mas não podemos ignorar que entre
os autores atuantes na área de educação, um deles é formado na área de Biológicas,
assim demonstrando uma expansão na área de pesquisa e escrita sobre a história
regional do Paraná.

Resultados e discussões
Análise documental das capas dos livros didáticos
O livro didático é um objeto que pode atribuir a identidade de um grupo, um
estado, uma sociedade ou até mesmo uma nação, porém até mesmo ele precisa de uma
identificação, que pode ser feita através de seu conteúdo e pelas suas ilustrações,
principalmente pela sua capa, que além de ter esse papel de identificação, tem a função
de proteção e até mesmo um apelo comercial, muitas vezes, induzindo a construção de
estereótipos de algum grupo social, por exemplo.
Catalogamos os dados levantados e estabelecemos como categorias de análise a
configuração das capas dos livros didáticos em seus itens: a) dimensões materiais; b)
elementos visuais e figurativos e c) elementos visuais do título no intuito de avaliar a
proposta visual do livro e os apelos relativos ao tema História do Paraná.
Apresentamos abaixo quatro exemplos das análises empreendidas para as capas
dos livros didáticos de História do Paraná.

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Título: Viver é descobrir: História – Geografia – Paraná – 1º Edição.


Autor: Magda Madalena Peruzin Tuma.
Número de páginas: 133.
Dimensões: 27,5 x 20,5 cm.
Capa: Figura 1.
Editora: FTD – São Paulo.
Ano: 1992.
Cores: Verde, branco, preto, amarelo, laranja, verde,
azul e rosa.

Figura 3: Fonte: Viver é descobrir: História – Elementos visuais e figurativos: Figuras


Geografia – Paraná / Ano: 1992
sobre a cultura do Paraná, incluindo a
imigração europeia, os nativos e as missões jesuítas.
Elementos visuais do título: O título está na parte superior com uma fonte preta e
legível.
Análise geral: As ilustrações tentam agregar grande parte das imigrações e influências
que o estado do Paraná sofreu no decorrer de sua formação.
Título: Meu Estado: Paraná – Estudos Sociais – 2º
Edição.
Autores: Hamilton Bettes Junior, Marlene Ordoñez,
Geraldo Sales.
Número de páginas: 71.
Dimensões: 27,5 x 20 cm.
Capa: Figura 2.
Editora: Editora Scipione – São Paulo.
Ano:1996.
Cores: Verde, amarelo, branco, azul, marrom.
Figura 4: Meu Estado: Paraná –
Estudos Sociais – 2º Edição / Ano: Elementos visuais e figurativos: A capa é toda
1996
ilustrada, na parte superior encontramos várias
bandeiras do Estado, mas a principal ilustração é o estado do Paraná e suas fronteiras, e
dentro do mapa cartográfico encontramos a vegetação nativa do Estado como a
araucária e também alguns rios. Os pontos turísticos como a ópera de arame em

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Curitiba, uma igreja em Maringá, o porto de Paranaguá e as cataratas do Iguaçu em Foz


do Iguaçu, por exemplo são destacados. Além dos elementos nativos e turísticos, se tem
também ilustrações relacionadas à agropecuária e à missão jesuíta.
Elementos visuais do título: A frase “meu estado” aparece em branco com uma borda
vermelha para o destaque na parte superior da capa, enquanto o “Paraná” é maior,
consequentemente chamando mais a atenção, e as cores se alteram para duas
tonalidades de azul remetendo a uma das cores da bandeira paranaense.
Análise geral: A capa se utiliza de elementos geográficos e históricos que grande parte
da população já conhece no senso comum e, além disso, um cabeçalho feito com
diversas bandeiras do estado seria, em nossa análise, um mecanismo para atrair a
atenção do leitor ou consumidor.

Título: História – Interagindo e percebendo


o Paraná – 1º Edição.
Autores: Lilian Sourient, Roseni Rudek,
Rosiane de Camargo.
Número de páginas: 133.
Dimensões: 27,5 x 20,5 cm.
Capa: Figura 3.
Editora: Editora do Brasil – São Paulo.
Ano: 2001.

Figura 5: História – Interagindo e


percebendo o Paraná – 1º Edição / Ano:
2001
Cores: Marrom, azul, branco, verde,
vermelho, preto e amarelo.
Elementos visuais e figurativos: Na parte superior, temos um pincel pintando uma
faixa onde se encontra o subtítulo; no centro da capa, encontramos uma ampulheta em
branco ao lado da bandeira do estado do Paraná. Há também um notebook e na tela do
mesmo, há ilustrações de vegetação, um pássaro e peixes, o planeta Terra e uma
caravela.

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Elementos visuais do título: O título apresenta um esboço na palavra “História” que se


encontra em caixa alta, negrito e com uma borda azul. O subtítulo está em negrito em
cima de uma tinta marrom passada por um pincel, que se encontra no final do subtítulo.
Análise geral: Tentando atrair a atenção para a atualidade no elemento do uso do
notebook como recurso tecnológico, a capa deste livro procura demonstrar um recorte
que começa na História (o planeta Terra; a ideia de tempo mostrada na ampulheta) do
Brasil (através da caravela) e termina na história do Paraná, com a bandeira e a
vegetação nativa.

Título: Conhecendo o Paraná – Estudos


Sociais – 7º Edição.
Autor: Lúcia da Silva Eitel.
Número de páginas: 126.
Dimensões: 27,5 x 20 cm.
Capa: Figura 4.
Editora: Editora Ática – São Paulo.
Ano: 1994.
Cores: Amarelo, azul, vermelho e
branco.
Elementos visuais e figurativos: A
fotografia do que parece o porto de

Figura 4: Conhecendo o Paraná - Estudos Paranaguá cobrindo toda a capa e sendo


Sociais - 7º Edição / Ano: 1994 o maior destaque dela.
Elementos visuais do título:
“Conhecendo o Paraná- Estudos Sociais” de forma destacada através do seu
posicionamento e com a fonte amarela e negrita, se sobrepondo da imagem do porto de
Paranaguá.
Análise geral: O livro usa as atualizações de municípios de forma chamativa, podendo
dizer que o material era o mais atualizado naquele período. Ele também tenta colocar o
porto de Paranaguá como uma “riqueza” ou algo importante, ou até mesmo chamativo
no Paraná.

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Conclusão
Mesmo não sendo único, o livro didático pode ser decisivo para a qualidade do
aprendizado resultante das atividades escolares, bem como, das concepções de história
selecionadas, hierarquizadas, classificadas e recortadas em seu interior.
É necessário afirmar que nos referimos ao livro didático enquanto um objeto
cultural, com uma dada historicidade e registro de debate social, marcado por certa
seleção de documentos, construção de enredos temáticos, narrativas, memórias e
identidades; e, nessas escolhas efetivadas, salientamos as exclusões, os silenciamentos
ou os esmaecimentos no interior do próprio texto, escrito ou visual, que provocam
leituras conformadoras de determinadas concepções de história.
A partir dessa pesquisa de campo organizando e levantando parcialmente este
acervo, auxiliado pelas discussões dos textos, obtive um novo e amplo olhar sobre o
livro didático, seu objeto, suas funções e por conta dessa tamanha importância do
mesmo, que não pensaria que teria como uma parte daqueles que formam o sistema
educacional básico.
A análise das capas indicou a relevância do uso de cores e imagens selecionadas da
História do Paraná reforçando determinadas idéias como a predominância de
determinadas paisagens, regiões, cidades e objetos (como a árvore araucária, a bandeira
do Estado) e personagens (jesuítas e imigrantes) compondo um painel dificilmente
desvinculado do senso comum.
Nesse sentido faz-se cada vez mais necessário o estudo e pesquisa sobre esse objeto
cultural livro didático de história especialmente aqueles destinados à educação básica,
mormente os indicados a educação infantil onde se reafirmam leituras visuais e textuais
organizadoras de conceitos relativos à história regional e memória muitas vezes
homogeneizadoras e que não contemplam a pluralidade e complexidade da formação do
Estado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BELLOTTO, Heloisa Liberalli. Arquivos permanentes: trabalho documental. São Paulo,
Queiroz, 1991.
BITTENCOURT,Circe. Produção didática de História: trajetórias de pesquisas. Revista
de História. USP, São Paulo. N. 164, jan./jun. 2011.

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CAIMI, F. E. O livro didático de História Regional: um convidado ausente. In:


OLIVEIRA M. M.; STAMATTO M. I. S. de (org) O livro didático de história: políticas
educacionais, pesquisas e ensino. Natal, RN: EDUFRN, 2007.
CAIMI, F. E. O que sabemos (e o que não sabemos) sobre o livro didático de História:
estado do conhecimento, tendências e perspectivas. In: GALZERANI, M. C. B.;
BUENO. J. B. G.; JÚNIOR, A. P. de (org.) Paisagens da pesquisa contemporânea
sobre o livro didático de História. Jundiaí, SP: Paco Editorial, 2013.
CERRI, Luis Fernando. Cidade e identidade. Região e ensino de História. In. ALEGRO,
Regina Célia e outros. Temas e questões para o ensino de História do Paraná.
Londrina: Eduel, 2008.
CHARTIER, Roger (Org.) Práticas de leitura. Tradução de Cristiane Nascimento. São
Paulo: Ed. Liberdade, 1999.
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Tradução:
Maria Manuela Galhardo. 2ªed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; Lisboa: Difel. 2002.
CHOPPIN, A. História dos livros e das edições didáticas: sobre o estado da arte. In:
Educação e Pesquisa. São Paulo, v.30, p 549-566, set/dez. 2004
FERRO, Marc. Comment on racont l’histoire aux enfants. Paris: Editions Payot, 1992.
GALZERANI, M. C. B. Livros Didáticos: Cenários de pesquisa e práticas de ensino no
Brasil. In: GALZERANI, M. C. B.; BUENO. J. B. G.; JÚNIOR, A. P. de (org.)
Paisagens da pesquisa contemporânea sobre o livro didático de História. Jundiaí, SP:
Paco Editorial, 2013.

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LIVROS DIDÁTICOS E PARADIDÁTICOS COMO FONTE DE


PESQUISA EM HISTÓRIA: APONTAMENTOS DE PESQUISA
Heloisa Pires Fazion (História / UEL)
Orientadora: Ana Heloisa Molina
PALAVRAS-CHAVE: LIVROS DIDÁTICOS; APRENDIZAGEM; LIVROS PARADIDÁTICOS.

O ensino possui diferentes instrumentos que possibilitam o desenvolvimento da


aprendizagem. Entretanto, pode-se destacar um dos principais materiais: o livro
didático. Este é utilizado, com maior assiduidade, por professores e alunos, seja na
preparação de atividades ou em sala de aula. É importante elucidar que o livro didático
apresenta-se como um apoio para seus leitores. Ao expor diferentes conteúdos e
sugestões de atividades auxilia na elaboração e compreensão de temas específicos.
Vale ressaltar que além do livro didático, outros recursos são utilizados com o
objetivo de tornar o aprendizado mais motivador e significativo para os alunos. Um
exemplo expressivo são os livros paradidáticos. Estes são assim chamados devido à
possibilidade de serem utilizados simultaneamente com os livros didáticos. No que se
refere ao tamanho, os livros paradidáticos são semelhantes aos didáticos; contudo, em
seu interior, nota-se que apresentam um menor número de página se comparado ao livro
didático e também, exibe uma maior quantidade de imagens.
Os livros didáticos e paradidáticos atuam como uma importante ferramenta para
o desenvolvimento da aprendizagem, sendo necessário compreender qual a importância
dessa ferramenta pedagógica, como se dá sua produção e também a utilização da mesma
pelo educador e pelos alunos. É importante destacar que os livros são diferentes entre si
e apresentam características próprias, seja por sua aparência física ou pelo conteúdo e,
dessa maneira, a tarefa de defini-los torna-se difícil.
Segundo Alain Choppin (2004) o campo de pesquisa que possui como encargo
realizar análises dos livros didáticos enfrenta uma série de dificuldades. A primeira
estaria relacionada “à própria definição do objeto” (CHOPPIN, p.549); em segundo
lugar, apresenta-se a condição recente dessa área de pesquisa; em seguida “à recente
inflação de publicações que se interessam pelos livros didáticos” (CHOPPIN, p.550); e,
por último, a dificuldade da língua, pois apesar das publicações no idioma universal
(inglês), a leitura na língua original não pode ser desconsiderada.

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Apesar destas dificuldades os livros didáticos estão presentes na sociedade,


sendo que “uma das razões essenciais é a onipresença – real ou bastante desejável – de
livros didáticos pelo mundo e, portanto, o peso considerável que o setor escolar assume
na economia editorial nesses dois últimos séculos” (CHOPPIN, 2004, p.551).
Podemos indicar as principais funções dos livros didáticos. Conforme Choppin
(2004, p. 553):
a) função referencial: o livro didático constitui a base dos conteúdos educativos, o lugar
onde os conhecimentos se encontram, métodos que um grupo social considera essencial
transmitir às novas gerações.
b) função instrumental: o livro didático proporciona técnicas de aprendizagem, “propõe
exercícios ou atividades que, segundo o contexto, visam facilitar a memorização dos
conhecimentos, a apropriação de habilidades, etc”.
c) função ideológica e cultural: nesta função mais antiga o livro didático se consolidou
como um veículo primordial “da língua, da cultura e dos valores das classes dirigentes”.
O livro didático é aqui comparado com a moeda e a bandeira, ou seja, como uma
representação da soberania nacional, assumindo assim, um importante papel político.
d) função documental: nesta função mais recente, o livro didático é capaz de
desenvolver a competência crítica do aluno, tanto por documentos textuais quanto
visuais. É importante ressaltar que esta função “só é encontrada em ambientes
pedagógicos que privilegiam a iniciativa pessoal da criança e visam fornecer sua
autonomia”.
Outro pesquisador, Circe Bittencourt (1997), considera que o livro didático
possui uma “natureza complexa”, sendo que cada profissional vê este material didático
de uma maneira, alguns pelo viés de auxiliador para proporcionar uma boa
aprendizagem, e outros como prejudicial e responsável pela condição deficitária da
educação.
É importante destacar que o livro didático não é um objeto imparcial, pois em
sua produção diferentes agentes encontram-se envolvidos e, desse modo, uma ideologia
acaba sendo transmitida. “O livro didático é, antes de tudo, uma mercadoria, um
produto do mundo da edição que obedece à evolução das técnicas de fabricação e
comercialização pertencentes à lógica do mercado” (BITTENCOURT, 1997, p.71).

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Considerando esta perspectiva nota-se que este recurso didático apresenta um


determinado discurso, privilegiando alguns conteúdos em detrimento de outros. Desse
modo, devido a alguns fatores – a intensa carga horária, por exemplo – a maioria dos
professores acaba mediando determinando discurso e não proporcionando uma
criticidade por parte do aluno.
Destarte o livro didático acaba impondo uma maneira de leitura, determinada
pelo autor e pelos profissionais que estão inseridos no processo de sua produção. O livro
didático é, portanto, um importante recurso educativo, contudo, deve-se compreender
que além dos conteúdos que se apresentam – sendo estes uma escolha de seus
produtores -, o mesmo também expressa a forma na qual o educador deve apresentar
esses conteúdos, por meio, por exemplo, de questionários e sugestões de trabalhos.
Assim os livros didáticos são instrumentos pedagógicos e também, “produtos de grupos
sociais que procuram, por intermédio deles, perpetuar suas identidades, seus valores,
suas tradições, suas culturas” (CHOPPIN apud BITTENCOURT, 1997, p. 69).
A crescente preocupação dos historiadores em estudar este material pedagógico
vêem expondo-se de forma instigante, pois ocorre a percepção de que muitas vezes os
livros didáticos acabam não apresentando alguns conteúdos e também, reproduzindo
visões específicas.
Outra característica que deve ser levada em consideração é a de que cada
educador utiliza o livro didático de acordo com suas perspectivas e concepções teórico
metodológicas de ensino, de modo que, quando bem trabalhado, transforma-se em uma
ponderosa ferramenta para a educação. É importante ressaltar que

O livro didático tem sido, desde o século XIX, o principal instrumento de


trabalho de professores e alunos, sendo utilizado nas mais variadas salas de
aulas e condições pedagógicas, servindo como mediador entre a proposta
oficial do poder expressa nos programas curriculares e o conhecimento
escolar ensinado pelo professor (BITTENCOURT, 1997, p.73).

Os livros didáticos e paradidáticos exercem imensa influência no modo como


seus leitores concebem o mundo. Os professores, por exemplo, já possuem concepções
diferenciadas acerca dos acontecimentos e uma formação com maior grau de criticidade.
Todavia, os alunos são sujeitos históricos que ainda estão no processo dessa formação, e

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assim, a maneira como estes recursos são trabalhados em sala de aula pelo professor,
podem exercer uma imensa influência durante o processo no qual o aluno irá consolidar
suas próprias percepções.
Atualmente torna-se mais evidente que além do livro didático outros
instrumentos são utilizados para que o aluno, não só compreenda determinado assunto,
mas também, desenvolva uma reflexão crítica a partir da aprendizagem. Segundo Circe
Bittencourt (2008) as imagens tecnológicas estão sendo cada vez mais utilizadas como
recurso pedagógico e é necessário que os educadores saibam como trabalhar
metodologicamente esses recursos, não os utilizando apenas como meras ilustrações.
Num mundo cada vez mais globalizado, as tecnologias apresentam-se em massa,
de maneira que os educandos se interessam por muitas coisas ao mesmo tempo e
esperam por atividades que os tirem da monotonia de uma aula expositiva. “O livro
didático não é, no entanto, o único instrumento que faz parte da educação da juventude:
a coexistência de instrumentos de ensino-aprendizagem que estabelecem com o livro
relações de concorrência ou de complementaridade” (CHOPPIN, 2004, p. 553).
Desse modo, o livro didático constitui-se como um elemento essencial para a
aprendizagem, mas também se encontra relacionado com estes outros elementos e,
segundo Choppin (2004) o livro não possui mais uma atuação independente, tornando-
se um “elemento constitutivo de um conjunto multimídia” (CHOPPIN, p.553).
Portanto, é importante ressaltar que recursos como vídeos, músicas e jogos
também são importantes de serem trabalhados com os alunos, todavia, não se deve
esquecer que “o livro didático, no entanto, continua sendo o material didático
referencial de professores, pais e alunos que, apesar do preço, consideram-no referencial
básico para o estudo” (BITTENCOURT, p.71).
Cada vez mais estudiosos vem se debruçando na análise do livro didático, sendo
este “um dos elementos fundamentais do ensino de História” (VILLALTA, 1997, p.01).
Entretanto, existe uma intensa objeção nessas análises, pois em sua maioria, os
estudiosos preocupam-se apenas em estudar o livro didático pelo conteúdo.
A partir disto não é abordado características essenciais, tais como: a influência
tanto do autor como do editor na produção do livro; a apropriação deste recurso por
alunos e professores; e, seu papel no mercado editorial. Assim “para uma proposta de
análise do livro didático (...) é necessário conceber o objeto de análise extrapolando a

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ideia de que pensar em livro didático significa pensar apenas nos conteúdos que ele
contém” (SILVA, 2011, p. 184).
Por conseguinte, compreende-se que este material didático possibilita inúmeras
reflexões. Além da análise do conteúdo, é possível, por exemplo, pensar como seus
leitores – professores e alunos – conceberam as informações ali contidas. Outra
alternativa refere-se ao papel do livro e sua relação com a editora. Nesta dimensão,
observa-se a possibilidade de visualizar se o livro foi produzido sob encomenda da
editora ou se o autor primeiramente o produziu, e a posteriori, procurou uma editora
para publicá-lo.
De acordo com Jeferson Rodrigo da Silva (2011), o livro didático pode ser
compreendido como um “documento histórico”, e devido ao seu caráter intrincado, é
necessário analisá-lo seguindo uma metodologia, de modo que

o uso de uma metodologia fundamentalmente histórica, no tempo presente, é


essencial pois torna-se possível pensar a complexidade dos livros didáticos
por diferentes abordagens que circulam entre a análise dos conteúdos, os
usos desses materiais e até o seu papel como produto do mercado editorial
(SILVA, 2011, p. 178).

Desse modo Silva (2011) propõe a análise do livro didático por meio de quatro
abordagens pensadas a partir da História da leitura; campo este que apresenta a
preocupação em conceber a pluralidade de características ligadas ao livro, “desde sua
criação, produção, comercialização e circulação e até sua apropriação, utilização e
leitura (s)” (SILVA, 2011, p.179).
A primeira abordagem é “o livro como objeto de múltiplas leituras” (p. 180). O
consumo do livro por seus leitores não ocorre de forma apática, pois os mesmos vivem
em um tempo e espaço, sendo influenciados por determinadas concepções e
proposições. É importante destacar que ao estudar como os leitores interpretaram este
recurso pedagógico, deve-se considerar às leituras precedentes desses sujeitos.
Outro aspecto refere-se aos “recursos midiáticos” (SILVA, 2011, p. 183), mais
especificamente a internet, a música e a TV. Devido aos avanços tecnológicos podemos
observar claramente as influências destes recursos nas leituras e concepções elaborados
por aqueles que utilizam o livro didático.

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Além disso, cabe também ressaltar, que as convicções de outros dois sujeitos –
do autor e do editor - estão presentes nos livros. Neste aspecto, apresentam-se os
protocolos de leitura (SILVA, 2011, p. 182); protocolos estes divididos em duas
categorias: os procedimentos de produção do texto e os procedimentos de produção do
livro. O primeiro refere-se “a maneira como um autor quer que seu livro seja lido”
(CHARTIER apud SILVA, p. 182), de maneira que este procedimento aparece
essencialmente nos conteúdos expostos no livro e nas instruções dispostas no manual do
professor. Já no segundo caso apresentam-se as determinações do editor, expressas
principalmente “na organização dos conteúdos, nas páginas, na disposição de imagens e
na qualidade do papel” (SILVA, 2011, p.182).
A segunda abordagem – “o autodidatismo e a censura” (p. 185) – reporta-se a
uma prática de leitura dos livros didáticos e paradidáticos. Haveria uma maneira correta
de professores e alunos lerem os livros de ensino? Qualquer leitura e interpretação seria
possível?
Em seguida, está a abordagem “as pesquisas ligadas à história do livro didático”
(SILVA, p.187). A partir de 1980 os estudiosos preocuparam-se em analisar esse
recurso educativo pela perspectiva ideológica, e, desse modo, o foco das pesquisas se
ampliaram, não ficando limitado apenas ao aspecto político. Em vista disso, Jeferson da
Silva (2011) ressalta que “não discutiram apenas o que os livros trazem em seus
conteúdos, mas refletem sobre a autoria, a edição, os aspectos ligados à comercialização
e à utilização por professores e alunos” (p. 188).
A quarta e última abordagem abrange o papel dos livros no mercado editorial, de
maneira que estes podem ser considerados uma mercadoria, tendo assim também a
função de gerar lucros. Portanto, de acordo com Jeferson da Silva (2011), estudiosos
também poderiam analisar as diversas estratégias que vendedores e editores assumem
com a intenção de tornar este recurso airoso aos seus consumidores.
Em vista de todas as explanações feitas acima, é importante frisar novamente
que os livros didáticos e paradidáticos apresentam diferentes possibilidades de análise.
Portanto, além dos conteúdos presentes em suas páginas, também pode-se analisar o
porquê da escolha de um livro em detrimento de outro; as influências que autores e
editores transmitem ao escrever e publicar estes livros; sua concepção como um produto
mercadológico; e, também, as leituras e apropriações contempladas por seus leitores.

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Assim cabe ressaltar o “circuito de comunicação” proposto pelo historiador


Robert Darnton (apud SILVA), de maneira que “interessa-se pelo circuito de
comunicação que vai do autor ao editor (ou ao livreiro), ao impressor, ao distribuidor,
ao vendedor e chega ao leitor, o qual encerra o circuito” (SILVA, 2011, p. 02). Portanto,
nota-se os inúmeros agentes que compõem o processo de elaboração de um livro, de
maneira que todos estes agentes deixam presente “suas marcas” e seus próprios
conceitos, e posteriormente, os leitores são influenciados por essas concepções – mesmo
que de maneira inconsciente -, de modo que elas acabam se incorporando aos
conhecimentos que os leitores já possuem, possibilitando assim, a elaboração de outros
modos de interpretação.
A interpretação dos livros didáticos, tanto por alunos quanto por professores,
pode ocorrer de diferentes formas. É necessário compreender que além das influências
dos autores e editores – que acabam impondo um modo de leitura – apresenta-se
também um termo proposto pelo historiador francês François Hartog: o regime de
historicidade. Todo indivíduo está inserido em uma sociedade e, portanto, sofre as
influências sociais, econômicas, políticas e culturais de seu tempo. Estas influências
interferem no modo de interpretação de cada sujeito histórico e cada um acaba
desenvolvendo seu próprio ponto de vista e suas proposições críticas.
De acordo com Luiz Carlos Villalta (1997) existem três aspectos referentes aos
conteúdos dos livros didáticos, que são, com maior assiduidade, analisados. O primeiro
deles refere-se à periodização e recorte espaço-temporal (p.08), em seguida os
conceitos empregados (p. 08) e o terceiro sujeitos priorizados e/ou excluídos. A partir
deles, pode-se evidenciar que a maioria dos livros didáticos apresenta a Europa no
centro de todos os acontecimentos, ou seja, para os outros espaços e povos é atribuído
um caráter secundário, de modo que “estes “outros” só entrariam na história a partir do
contato com os europeus” (VILLALTA, p. 08).
Os conteúdos que compõem os livros didáticos e paradidáticos são vistos – até
hoje – de uma maneira receosa por diversos pesquisadores. De acordo com Kazumi
Munakata (1997) nas décadas de 70 e 80, criou-se um gênero literário que ficou muito
conhecido no Brasil, intitulado “As Belas Mentiras”. Ainda segundo esta autora, “não
há dúvida de que muitas belas (e também feias) mentiras foram perpetradas em livros
didáticos (e paradidáticos)” (p. 271).

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No período da Ditadura Militar (1964-1985) os indivíduos não possuíam


liberdade de expressão e se fossem contra a ideologia do regime vigente, acabavam
sendo perseguidos, torturados e mortos. No que se refere à educação algumas
disciplinas, como História e Geografia, foram retiradas da grade curricular e, no lugar
delas, foi implantada a disciplina de Estudos Sociais. Os professores ensinavam o que
era lícito pelo governo, de modo que até os conteúdos dos materiais didáticos eram
estabelecidos pelo mesmo. Segundo Kazumi Munakata (1997) “a ideologia estava em
toda parte onde se quisesse encontrá-la”.
No decorrer deste capítulo foi apresentado que no processo de produção de um
livro didático ou paradidático estão envolvidos diferentes agentes. Neste momento, será
concedida mais ênfase ao papel da editora. É importante destacar que cada livro
produzido destina-se à um público específico, tendo por objetivo atender às demandas
do mercado. De acordo com Kazumi Munakata (1997) os leitores concebem de
diferentes maneiras um livro didático ou paradidático, pois as leituras e interpretações
feitas por cada um diferem entre si. Desse modo, sendo concebido como uma
mercadoria, “o livro precisa adaptar-se à demanda” (MUNAKATA, 1997, p.274).
Contudo, para atender ao público e à essas demandas, começou a ocorrer a
profissionalização da indústria editorial, de modo que “empresas que antes funcionavam
com três ou quatro trabalhadores capazes e dispostos a fazer todo tipo de serviço foram
recrutando mais e mais profissionais” (MUNAKATA, 1997, p. 275).
Dentro de uma editoria trabalham diversos especialistas. Kazumi Munakata
ressalta em seu texto “Histórias que os livros didáticos contam, depois que acabou a
Ditadura no Brasil” (1997), a importante função do editor de texto ou copidesque, sendo
que “não raramente, o copidesque intervém na organização do texto ou até mesmo em
seu conteúdo caso identifique incorreções ou ambiguidades” (MUNAKATA, 1997,
p.276).
É importante destacar que os que trabalham dentro de uma editora,
principalmente, aqueles que possuem um cargo mais elevado, precisam ficar atentos ao
que está acontecendo fora de seu local de trabalho, para assim, atender da melhor
maneira possível às demandas do mercado, as propostas curriculares e,
consequentemente, o público alvo. Assim, os trabalhadores das editoras não são
“alheios à produção acadêmica” (MUNAKATA, 1997, p.277) e procuram se

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profissionalizar cada vez mais. Segundo Kazumi Munakata (2012) “também os autores,
ao menos das grandes editoras, têm formação universitária e experiência no magistério”
(p.277).
Portanto
com esse grau de profissionalização, não é de estranhar que esses
trabalhadores, editores e autores, procurem sempre se atualizar em relação à
produção acadêmica, às propostas curriculares elaboradas pelos órgãos do
governo e também às demandas do público final a que seus produtos se
destinam – os alunos e, sobretudo, os professores (MUNAKATA, 2012, p.
278).

Outra estudiosa, Selva Guimarães Fonseca, aborda a relação entre as editoras e o


Estado e a demasiada adoção de livros didáticos nas instituições de ensino.Segundo esta
autora, após a implementação da Ditadura Militar no Brasil, os livros didáticos
começaram a ser produzidos e distribuídos em grandes quantidades. O primeiro motivo
para isto seria o de que o Estado estimulava as produções, pois isentava as editoras dos
impostos em todas as etapas de produção, distribuição e venda. Em seguida está o fato
de que o governo incentivava a importação de maquinários tecnológicos para o campo
editorial, não cobrando nenhum tipo de taxa ou imposto. Por último, a autora destaca a
criação do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), de maneira que “esse
programa visava a distribuição gratuita de livros didáticos às escolas primárias e
secundárias e, com descontos nos preços para às universidades” (FONSECA, 2003, p.
51).
Nota-se, portanto, que nesta época, o livro didático passou a ser o instrumento
essencial quando o assunto era a área do ensino. Este material didático passou a ser
utilizado em massa, sendo que as editoras começaram, paulatinamente, a se destacar.
Segundo Selva Guimarães Fonseca (2003) “os dados confirmam o crescente apoio do
Estado à indústria editorial e a massificação do livro didático no Brasil” (p. 51). Além
dos livros didáticos utilizados pelos alunos, as editoras passaram a produzir, em meio
aos anos 60, um manual para os professores, de maneira que muitos desses manuais, já
continham o planejamento anual da disciplina.
Assim observa-se que

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a indústria editorial brasileira, graças à produção e à venda em massa de


livros didáticos, subsidiada em grande parte pelo governo, conseguiu se
colocar entre as maiores do mundo. [...]. O livro didático de história, em
sintonia com os currículos, tornou-se o canal privilegiado para a difusão de
determinados saberes históricos (FONSECA, 2003, p. 52).

Segundo Selva Guimarães Fonseca (2003) nesta época uma das principais
preocupações do Estado era o de conceder uma educação de qualidade para o governo
brasileiro, e para isto, foi “imprescindível aprimorar a política nacional do livro
didático” (p. 55). Portanto, a editora passou a ter um papel essencial no ensino básico,
produzindo livros didáticos e paradidáticos para as instituições escolares.
Ernesta Zamboni (1998) considera o livro didático uma representação do real,
pois todos os conteúdos presentes neste material didático são representações, pois o
passado não pode ser reconstituído. Desse modo “o passado já nos chega enquanto
discurso [...] caberia indagar se os historiadores, no seu resgate ao passado podem
chegar a algo que não seja uma representação” (PESAVENTO apud ZAMBONI, 1998,
p. 02).
Em conclusão acredito que os livros didáticos não devem ser concebidos apenas
como portadores de um conhecimento pronto e fechado. Seus leitores devem questioná-
lo e investigá-lo e não admitir todos os seus conteúdos como verdadeiros. Considero
também que o uso de outros recursos (livros paradidáticos, filmes, músicas, vídeos, etc.)
é imprescindível em sala de aula e que ambos devem atuar concomitantemente.
Portanto, “o livro didático é uma fonte importante, mas não deve ser a única”.
É importante destacar também que a escola é um espaço de formação de
identidades e que o professor deve tentar conhecer o seu aluno, pois o mesmo possui
uma compreensão, fora da escola, acerca do mundo. Dessa maneira é plausível destacar
que no mundo contemporâneo a identidade híbrida dos sujeitos se torna cada vez mais
presente, de maneira que o papel da escola nesta sociedade, que apresenta sujeitos cada
vez mais díspares, é essencial. Por fim, acredito que o professor possui um papel
primordial, pois ele é o mediador entre o conhecimento que o aluno já possui e os novos
conhecimentos apresentados.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Livro didático entre textos e imagens. In:
______ (org). O saber histórico na sala de aula. 11ª ed. São Paulo: Contexto, 2006.
CHOPPIN, Alain. História dos livros e das edições didáticas: sobre o estado da arte.
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p. 549-566, set./dez. 2004.
FONSECA, Selva Guimarães. Livros didáticos e paradidáticos de História. In:
FONSECA, Selva Guimarães. Didática e prática de ensino de História. Campinas,
SP: Papirus, 2003, p. 49 – 57.
MUNAKATA, Kazumi. Histórias que os livros didáticos contam, depois que acabou a
ditadura no Brasil. In: Freitas, Marcos Cezar de (org.). Historiografia Brasileira em
Perspectiva. São Paulo: Ed. da Universidade São Francisco, 1997.
SILVA, Jeferson Rodrigo da. Livro didático como documento histórico: possibilidades,
questões e limites de abordagem. Revista de Teoria de História. Universidade Federal
de Goiás, n. 5, jun., 2011.
VILLALTA, Luiz Carlos. O Livro Didático de História do Brasil: perspectivas e
abordagem. Revista: Pós-História. Assis, SP – Brasil, v.9, p. 39-59, 2001.
ZAMBONI, Ernesta. Representações e linguagens no ensino de História. Revista
Brasileira de História. Campina, SP – Brasil, v.18, n.36. 1998.

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IDENTIDADE, CIDADANIA E CONSCIÊNCIA HISTÓRICA:


DESAFIOS PARA O ENSINO DE HISTÓRIA
Jéssica Christina de Moura (Mestranda em História Social- UEL)
Orientadora: Profª Drª Marlene Rosa Cainelli
PALAVRAS- CHAVE: ENSINO DE HISTÓRIA, CIDADANIA, CONSCIÊNCIA HISTÓRICA.

Como proposta do projeto de pós-graduação ligado a linha de Ensino de


História, este trabalho também tem como objetivo a discussão sobre a formação do
conhecimento histórico em esfera política através da consciência histórica. Por meio
disso a proposta é compreender qual a perspectiva de identidade política como sujeitos
sociais e escolares, de qual maneira o aprendizado histórico influência a partir dos
objetivos curriculares e de como a escola prepara para a participação política.
Antes mesmo de chegar à escola estes indivíduos já carregam uma formação
cultural e social, e neste espaço deixam de pertencer somente à família, são integrados
em uma comunidade mais ampla onde ocupam o mesmo lugar com indivíduos sem
parentesco ou afinidade, postos a conviver em comum. É neste lugar onde as
experiências sociais (casa, meios públicos) se confrontam com a realidade escolar,
sendo uma via mão dupla quanto às experiências vividas pelo jovem/aluno.

Escola e disciplina: A História para formação política


Quanto à formação política destes jovens em sua vida escolar, sabemos que o
currículo formalizado na disciplina de História busca desde a década de 1980 no
período da redemocratização a ideia de um cidadão participante, o qual reforça o caráter
da História na constituição da identidade, respeito e pluralidade cultural em defesa do
fortalecimento da cidadania.
O lugar e o papel ocupados pela História na educação básica brasileira, na
atualidade, derivam, pois, de transformações na política educacional e no
ensino de História, conquistadas a partir de lutas pela democracia nos anos
1980, da promulgação da Constituição Federal de 1988 e da implantação da
nova LDB. (FONSECA, 2010, p.1)

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Acerca do caráter curricular de História, construído a partir de uma realidade


social, política e cultural, a produção destes documentos como FONSECA (2010)
define:
“... são reveladoras de objetivos, posições políticas e teóricas que configuram
não apenas o papel formativo da História como disciplina escolar estratégica
para a formação do cidadão, mas também modos pensar, construir e
manipular o conhecimento histórico escolar.” (p.2)

Sabemos que na história do Ensino de História a relação com o Estado Nação


esteve sempre presente na construção do currículo. A disciplina nasce com objetivo de
formar no cidadão o sentimento de pertencimento à pátria, sua função desde o século
XIX, XX se constituiu na produção e reprodução da identidade nacional.
Esta discussão do caráter do ensino de História propõe em base uma reflexão
quanto à influência do papel do estado e em tese na educação em geral. No livro
Educar o Cidadão de Patrice Canivez, o autor fala sobre a distinção do Estado,
sociedade e comunidade política, e de como a educação do indivíduo determina em
parte a sua concepção do Estado. E de que maneira a disciplina escolar influência na
formação do aluno como cidadão ativo.
A disciplina imposta na escola é parte fundamental para compreensão de
hábitos institucionalizados, “espera-se que esta inculque nas crianças o respeito por
certa ordem, acostumá-las a se sujeitarem á autoridade” (p.33)
“Educação escolar dirige-se ás crianças e não aos adultos, quanto menos
idade tiver, menos serão capazes de compreender e julgar, o hábito de
obedecer precede necessariamente a capacidade e o gosto pela reflexão”.
(CANIVEZ, 1990, p.34)

A disciplina escolar promove a mecanização, obediência de sinais de modo


automático, “se contrair o hábito de obedecer incondicionalmente o adulto, mais tarde
ficará disposta a se sujeitar à vontade de outro sem refletir, estará disposta a submeter-se
a todas as imposições arbitrárias”.
A escola como espaço de crianças e jovens se constitui um dos primeiros
espaços de vida social, onde cada um dos sujeitos traz já uma bagagem cultural e social,
como já citado, pretende-se então colocá-los em um molde e instituir regras sem que
reflitam, enfim, todos nascem em um mundo pré-determinado de leis e costumes, e

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espera-se que neste espaço escolar todos consigam acatar de forma igual pensamentos,
posições e oportunidades.
O resultado nesta formação ainda reproduz a hierarquia de classes sociais, em
um espaço totalmente desigual, beneficia os favorecidos e prejudica aos desfavorecidos.
“Esse mecanismo tem um impacto direto sobre a participação política. O
domínio da língua conceitual é condição da capacidade para compreender
problemas políticos e tomar posição diante desses conceitos. Sem a
capacidade de perceber do que se trata, que supõe uma certa familiaridade
com a atualidade, sem a aptidão para elaborar a própria experiência em
conceitos universalmente válidos e comunicáveis, não há posição nem
opinião propriamente válidas. (CANIVEZ, p.59)

Portanto a seguinte pergunta de CANIVEZ deve gerar a reflexão sobre o


ensino de História e a própria educação em si: “Como exercer a autoridade a fim de
produzir liberdade em vez de poder? A autonomia em vez do condicionamento, a
responsabilidade em vez da submissão?”. (p. 34)
A exclusão dentro do espaço escolar inicia a partir de regras que não produzem
reflexão, e não permitem expressão de pensamentos ou ações. Entre aquilo que
aprendemos e que está institucionalizado em algumas disciplinas, principalmente a de
História, não se oferece sentido válido com sentido de criar autonomia sobre o mundo,
questionamentos para novas descobertas, pois não se cria visão sobre si ou sobre o
outro, assim é mais fácil obedecer para não ser repreendido, repetir, copiar, decorar
respostas, para perguntas que serão sempre as mesmas.

Ensino de História para formação política de quem?


A fase de construção que passou o ensino de História dos anos de 1980 e 1990
foi marcada pela tentativa dos professores de propor uma nova identidade para ser
trabalhada nos alunos, a ideia ainda estava atrelada a uma história nacional, e também
socialmente crítica como cita CERRI (2011)
“revisando a história dos vencedores e abrindo espaço para outras histórias,
como a dos vencidos; tentando trazer o homem e a mulher comuns para a sala
de aula. Foi o tempo de propostas oficiais de cunho marxista, ou inspiradas
na nouvelle histoire.” (p.107)

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Entretanto a história vivida, a elaborada pelos professores e ministrada em sala


de aula (dentro e fora da escola) é bem mais complexa do que supomos, na perspectiva
participação ativa do cidadão.
Segundo CERRI (2011) vários foram os fatores que levaram o ensino em geral
entre eles, o ensino de história, em declínio; havia uma indisposição a mensagem que
lembrava á educação cívica do regime militar, a onda neoliberal brasileira, a
globalização, o “fim da História” e o socialismo; esses fatores constituem essa crise do
ensino, principalmente na América.
“Que papel pode ter a aprendizagem escolar da história neste momento?
Como formar a autenticamente a identidade dos alunos, na ausência de uma
identidade global, sobreposta a todas as outras, como era o caso da identidade
nacional? [...] Como assumir a identidade nacional, como amar o país ao
mesmo tempo em que se compreende todo o drama, as desonestidades e as
violências que estão presentes até hoje?” (CERRI, 2011, p.109)

A proposta do um ensino de História não pudera se concretizar em âmbito


político, pois se encontra na falta de identidade global e nacional. Entretanto, trazer o
debate da questão nacional para a escola a disciplina de História tem papel fundamental
para busca e formação de identidade. “Essa identidade nos currículos aparece de forma
muito simplista, fundada na caracterização dos aspectos culturais e sociais nos seus
traços mais aparentes do grupo a que pertencemos” (p.109).
Os livros didáticos exaltam sempre os mesmo personagens, de Dom Pedro I à
Princesa Isabel, as pinturas encomendadas para sacramentar a Primeira Missa e a
Independência estão sempre lá. Pois todo ano, de série em série os mesmo
acontecimentos se fazem presente, do Descobrimento a Independência, a Lei Aurea a
República.
Por meio dessa história permanente os sujeitos não tem percepção de mudança,
representada por atores de memórias distantes dos alunos, não há espaço de ação para
novos sujeitos que possam construir saberes ou conhecimento novos, enfim diferentes
rumos para a história.
“O estudo das formas e conteúdos pelos quais o conhecimento sobre o
passado é mobilizado e manipulado publicamente para produzir tais ou quais
efeitos públicos e privados, coletivos ou individuais, envolve por completo o
estudo do ensino de história e seu aperfeiçoamento, pois, desde suas origens

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europeias no início do século XIX, nossa disciplina científica e escolar


participa intensamente desses jogos de saber-poder” (CERRI, 2011, p.16)

O maior desafio do ensino de história ainda é trazer o aluno a possibilidade de


olhar para a história e se ver nela como um sujeito, por isso o problema que
encontramos é lutar contra uma realidade escolar e pública onde a história seja espaço
de todos.

Consciência histórica e identidade


A “perspectiva da consciência histórica nos impõe um ponto de vista sobre a
nossa disciplina: o de que ela é resultado de necessidades sociais e políticas na formação
de identidade de novas gerações” (CERRI, p.17). Existe um confronto de concepções
diferentes sobre o tempo, os quais não se encontram com nenhum ponto do passado
histórico. Por isso se torna tão difícil para os alunos compreenderem porque o estudo da
história é importante para compreensão do presente, sendo o passado visitado pela
memória individual ou coletiva uma fonte de experiências.
“História como processo que se desenrola no passado, tem sentido quando é
importante e significativa para se entender e para se lidar com circunstâncias
de vida contemporâneas. Em geral, essa importância consiste no fato de que o
passado oferece a experiência de que necessita para orientar-se no presente e
desenvolver usa sólida perspectiva de futuro. Essa experiência faz sentido
quando pode ser utilizada para configuração da própria vida.” (RÜSEN,
2001, p.10)

O sentido de aprender história muda completamente quando partimos de uma


nova perspectiva de tempo, através de nossas próprias experiências. Pensar
historicamente supõe que utilizamos consciências para nos orientar a e resolver
problemas para a vida prática. Perceber-nos dentro desse processo e rememorar nosso
lugar, nossa da família, da comunidade é construir identidade, sem este processo de
constituição não é possível pensar uma cidadania ativa.
Através do conceito de consciência histórica compreendemos que a formação
do indivíduo e da coletividade é anterior a da escolarização, por isso para análise de um
pensamento político do jovem adolescente o qual reproduz um discurso em espaço

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escolar e social, dever ser levados em conta suas experiências formadas antes de estar
na escola, pois já chegam a ela como, por exemplo, com preconceitos determinados.
“[...] a formação histórica dos alunos depende apenas em parte da escola, e
precisamos considerar com interesse cada vez maior o papel dos meios de
comunicação de massa, da família e do meio imediato em que o aluno vive se
quisermos alcançar a relação entre a história ensinada e a consciência
histórica dos alunos” (CERRI, 2011, p. 44).

Entre as diversas formações e influências que recebe o jovem, seus conceitos


se expressam naquilo que vivem em casa, no trabalho, e nas experiências que
vivenciam. O papel da história escolar deve trabalhar com essas realidades, para que
ações desses sujeitos não sejam descartadas, mas que permitam orientação quando aos
problemas da vida presente, cabe à escola trabalhar com diferenças de pensamento
religioso, político e orientar essas carências.
Nisto o mais importante sobre o ensino de história não está nos conteúdos que
repetem as mesmas coisas, e sim desenvolver competências que possibilitem produzir
um julgamento para as histórias que se antecedem, posicionando-se diante de visões
críticas de mundo, ampliando formas de atribuição de sentido ao tempo que os alunos
trazem.
Para o aprendizado histórico uma das ferramentas as quais orienta RÜSEN
(2001) no processo de construção de conhecimento é a narrativa, como “um sistema de
operações mentais que define campo da consciência histórica”, o processo de
constituição de sentido da experiência do tempo. A narrativa histórica tem um papel
importante, pois, esta recorre a lembranças para interpretar as experiências do homem
no tempo. Ao mobilizar essas lembranças e tornar presente o passado, a intenção de
interpretar as experiências atuais provocou, (entre passado e presente), “uma unidade
integrada mediante a qual justamente, constituiu-se a consciência histórica”. (RÜSEN,
2001)
Neste sentido as narrativas e experiências revelam formas de compreensão e
relação com seu tempo, de maneira que seja possível entender como os jovens julgam e
fundamentam, por exemplo, suas ações políticas do presente, como expressam os
valores de identidades individuais e coletivas.

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A partir deste processo de reconhecimento de si e da coletividade em que faz


parte o sujeito, o trabalho da alteridade se mostra um os principais objetivos do ensino
de história atual.
O diálogo contra o preconceito proporciona o entendimento de diversas formas
de atuar na sociedade, sendo a intolerância é um dos grandes problemas que
encontramos nos sujeitos, pois advogam que sua religião, cultura e modo de viver é a
única aceitável no meio, gerando conflitos e revoltas.
Esse tipo de identidade “não razoável” se apropria da verdade, e disseminam
autoridade, tem por princípio que as outras identidades não são verdadeiras, neste
combate é muito difícil lidar com as diferenças, principalmente em sala de aula, pois
num espaço onde deveria dialogar com problemas reais como a sexualidade,
preconceito racial, drogas, que fazem parte de realidades que demandam compreensão,
diálogos políticos ou religiosos promovem exclusão de outros sujeitos.
Se não há unidade, como permitir haja pertencimento a um status que garante
cidadania?
A batalha travada neste processo de compressão de identidades e sentido
atribuído às experiências do indivíduo permite o ensino história participar de um
“trabalho socializador da escola”, como cita CERRI (2011), e contribuir para que os
futuros cidadãos não fiquem presos no presente contínuo, “tirando o sujeito do
egocentrismo, e introduzindo-o na vida pública, com o que nos confrontamos com o
individualismo e o esvaziamento do espaço público que vivenciamos.” (p.113)
A busca deste exercício de tolerância e convivência, concepção da diferença e
alteridade se adquirem em grande parte do conhecimento histórico, do conhecimento de
várias sociedades, que em sua grande maioria são multiculturais. A partir deste
conhecimento o ensino de história deve fornecer aos alunos bases formadas de caráter
conscientizado, crítico sensibilizado ao passado histórico.

Conclusão
Entre as pesquisas que se fazem presente no ensino de história atualmente, os
objetivos se propõem a compreender como pensam os jovens historicamente e como
narram estas histórias de acordo com suas experiências no tempo.

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Entre os objetivos da disciplina de história, a formação de um cidadão crítico


esteve presente desde processos reformadores do currículo dos anos de 1980, pensar na
formação política de nossos alunos a partir deste trabalho julga ir além da cidadania
para também compreender a identidade de nossos jovens a partir da consciência
histórica.
Através das narrativas destes sujeitos e de suas memórias coletivas e
individuais pretende-se entender como estes jovens se reconhecem na sociedade, e
como escola permite formar um cidadão que possua um poder de autônomo e não
apenas obediente sem perspectiva crítica em relação à política.
Esses desafios que englobam a política e o ensino são de grande importância
para reformular nossa escola e sociedade, assim também como promover uma história
que reitere nossos compromissos com a transmissão de conhecimento construído e
compartilhado por todos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CANIVEZ, Patrice. Educar o cidadão. Campinas, SP: Papirus, 1991.
CERRI, Luis Fernando. Ensino de história e consciência histórica. Implicações
didáticas de uma discussão contemporânea. Rio de Janeiro; Editora FGV, 2011.
FONSECA, Selva Guimarães. A HISTÓRIA NA EDUCAÇÃO BÁSICA:
CONTEÚDOS, ABORDAGENS E METODOLOGIAS. ANAIS DO I SEMINÁRIO
NACIONAL: CURRÍCULO EM MOVIMENTO – Perspectivas Atuais Belo Horizonte,
novembro de 2010.
RÜSEN, Jörn. Teoria da História I: Razão Histórica. Tradução de Estevão Rezende
Martins. Ed. UNB, 2001
_________. JÖRN Rüsen e o Ensino de História. Org: Maria Auxiliadora Schmidt;
Isabel Barca e Estevão de Rezende Martins. Ed. UFPR, 2010.

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LUGARES E COTIDIANO: ANÁLISE DE MAPA ELABORADO NO


PROJETO CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS DO NORTE DO
PARANÁ (2013-2014)
Juliana Souza Belasqui (Graduada em História – UEL)
Regina Célia Alegro (Orientadora Professora Doutora – UEL)
PALAVRAS-CHAVE: LUGAR. COTIDIANO. MAPAS ALTERNATIVOS. PROJETO CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS DO
NORTE DO PARANÁ.

O mapa utilizado como fonte desse trabalho foi elaborado por aluno do 4º ano do ensino
fundamental de escola municipal da cidade de Londrina, durante a Oficina de Mapas
Alternativos oferecida pelo Projeto Contação de Histórias Norte do Paraná. Estando esse Projeto
localizado no Museu Histórico de Londrina, essa oficina pretendeu, de modo geral, sensibilizar
o olhar dos estudantes para o seu entorno e as ações dos homens naquele lugar em tempos
diferentes. Saber olhar é uma necessidade básica para quem visita um Museu.
O principal objetivo dessa pesquisa é identificar nessa produção as idéias que sugerem
elementos de lugar e cotidiano relativos à comunidade. No campo do ensino de história os
mapas são encarados como documentos históricos, e por isso, sabe-se, são carregados de
intencionalidades. Segundo Ana Heloisa Molina (2005), o mapa é trabalhado como fonte visual,
a qual está carregada de elementos que sugerem o seu contexto histórico de produção. O Projeto
Contação de Histórias do Norte do Paraná tem como objetivo, como já foi afirmado, sensibilizar
o olhar para o lugar de vivência cotidiana e para possibilidades referentes a memória local e
ensino de história. Dessa forma busca mecanismos para trabalhar essas questões. O trabalho
realizado pelo Projeto se dá por meio de grupos de estudos, elaboração de materiais didáticos e
oficinas, oferece oficinas para alunos da rede pública de ensino de Londrina e Região. As atuais
oficinas oferecidas são: Oficina de Fotografia Documental, Oficina de Entrevistas, Oficina de
Maquete e Oficina de Mapas Alternativos. Todas as oficinas buscam possibilidades de
exploração de documentos no ensino de história e a sensibilização do olhar para o
reconhecimento das ações humanas no tempo manifestas em objetos, documentos, paisagens,
etc.
Nesse contexto insere-se a Oficina de Mapas Alternativos elaborada por professores e
alunos participantes do Projeto. Surgiu da necessidade de sensibilizar o olhar das crianças para
reconhecimento do seu lugar e narrativas que o estruturam. A proposta da oficina, que possui a
duração média de duas horas e meia, é a produção de formas alternativas de mapeamento como
mapas afetivos, mapa de cheiros, mapa de sons, entre outros. Dessa forma, os mapas

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alternativos produzidos pelos alunos da rede pública de ensino são encarados como
representações de lugares e de seu cotidiano.
Para a análise do mapa produzido alunos utilizo duas proposições: a primeira delas foi
elaborada por Humberto Yamaki, no qual o arquiteto e urbanista faz um inventário do Plano
Diretor de Preservação do Patrimônio Cultural de Londrina (PDCP), elaborado em 2003 com
apoio da Lei Municipal de Incentivo à Cultura, da Prefeitura do Município de Londrina. O
PDCP forneceu subsídios para trabalhar com a idéia de inventário como processo. Para Yamaki
(2003), o inventário é um processo, que deve ser longo e sistemático, ele ocorre por meio de
estudo, no caso do PDCP, ele é realizado por meio de entrevistas. A metodologia se dá por meio
da elaboração de fichas inventário na qual são registradas as características presentes dos
lugares que mais apareceram na pesquisa realizada.
Outro teórico que foi utilizado como metodologia foi Roque Moraes (2003), esse
propõe a análise de conteúdo como técnica para desvendar o documento valorizando todos os
elementos do conjunto da narrativa e organizando o procedimento de análise para o efetivo
reconhecimento do conteúdo do documento e, após, a sua interpretação propriamente dita. A
aplicação da técnica prevê três etapas: a primeira delas, a triagem dos materiais, foi realizada em
associação com o proposto no PDCP de Yamaki (2003). A segunda etapa de análise prevê o
estabelecimento de critérios, classificação e categorização ampara-se totalmente em Moraes,
que propõe a categorização pelo método indutivo. Já, a terceira etapa, denominada por Moraes
de análise qualitativa. A análise qualitativa, segundo Roque Moraes:
[...] pretende aprofundar a compreensão dos fenômenos que investiga a
partir de uma análise rigorosa e criteriosa desse tipo de informação, isto
é, não pretende testar hipóteses para comprová-las ou refutá-las ao final
da pesquisa; a intenção é a compreensão. [...] a análise textual
qualitativa pode ser compreendida como um processo auto-organizado
de construção de compreensão em que novos entendimentos emergem
de uma sequência recursiva de três componentes: desconstrução dos
textos o corpus, a unitarização; estabelecimento de relações entre os
elementos unitários, a categorização; o captar do novo emergente em
que a nova compreensão é comunicada e validada. (MORAES, 2003,p.
191-192)
A análise qualitativa interliga-se a elaboração das fichas de inventário, que é proposta
pelo PDCP, a elaboração das fichas de inventário possibilita a compreensão dos elementos que
compõe o cotidiano e lugar. Os mapas alternativos comunicam interpretações, através deles é
possível perceber o modo como os alunos encaram o lugar em que vivem e como esse lugar está

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relacionado ao cotidiano de cada aluno. Essa é, creio, uma questão fundamental para o ensino de
História: compreender as ideias dos alunos e como eles percebem o seu lugar. Todos os dias as
pessoas circulam por espaços diferentes que compõem cenários para as relações que se dão no
cotidiano. Nesses espaços que constituem-se como ambientes que possuem características
específicas e são marcados por mudanças ocorridas no tempo, também ocorre a transformação
do sentido do espaço.
Para buscar definição de espaço se faz necessário a utilização do conceito na
área da geografia. Várias correntes geográficas trabalham com o sentido de espaço.
Esse trabalho se apoia na corrente da geografia humanista explorada por Yi-Fu Tuan.
Optou-se por utilizar esse proposição, pois o autor levanta questões pertinentes a
História, tendo em vista que o geógrafo trabalha com os conceitos “espaço” e “lugar”
enquanto elementos intimamente relacionados do meio ambiente, e desenvolve sua
pesquisa a partir da experiência humana.
Para Yi-Fu Tuan:
O espaço é um símbolo comum da liberdade no mundo ocidental.
O espaço permanece aberto, sugere futuro e convida à ação. [...]
O espaço fechado e humanizado é lugar. [...] O espaço é, sem
dúvida, mais do que um ponto de vista ou um sentimento
complexo e fugaz. É uma condição para a sobrevivência
biológica. [...] O espaço é um recurso que produz riqueza e poder
[...] O espaço [...] é também para os seres humanos uma
necessidade psicológica, um requisito social [...]. (1983, p. 61-65)
Para Tuan, o espaço transforma-se em lugar, mudando assim o sentido atribuído ao
mesmo:
O espaço [...] Organiza as forças da natureza e da sociedade associando-
as com localidades ou lugares significantes dentro do sistema espacial.
[...] Atribui personalidade ao espaço, conseqüentemente transformando
o espaço em lugar. [...] O espaço transforma-se em lugar à medida que
adquire definição e significado. (TUAN, 1983, p. 103-151)
Seguindo essa lógica, todos os dias em diversas partes do mundo, milhares de pessoas
circulam por espaços diferentes, atribuindo-lhes significados diferentes. O movimento que cada
pessoa exercita no espaço e as experiências ali vivenciadas transformam o espaço em lugar.
Lugar, mais que espaço, é um conceito significativo para a reflexão aqui desenvolvida, pois o
conceito de lugar é compreendido como um mundo ordenado e com significados. Ou seja, o

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lugar é o espaço transformado, re-significado e (re) ordenado. Falar em lugar também implica
falar nas relações do dia-a-dia, nos sentidos e nas diversas experiências do homem ocorridas no
cotidiano.
O lugar é entendido como um tipo de objeto, para os adultos é visto de uma forma
diferente das crianças, segundo Y Tuan:
[...] Lugares e objetos definem o espaço, dando-lhe uma personalidade
geométrica [...] Objetos e lugares são núcleos de valor. [...] O lugar
pode adquirir profundo significado para o adulto através do contínuo
acréscimo de sentimento ao longo dos anos. [...] A criança não apenas
tem um passado curto, mas seus olhos, mais do que os dos adultos,
estão no presente [...] (TUAN, 1983, p. 20-37)
Entende-se que para os adultos os lugares são muito mais carregados de memórias e
lembranças do que para as crianças, que entendem o espaço quase que exclusivamente a partir
do seu presente, daquilo que é mais marcante e que faz parte do seu dia-a-dia. Por isso,
desenvolver ideias, concepções e procedimentos que lhes permitam alongar o olhar e a mente no
tempo é uma necessidade para as crianças e uma possibilidade que pode ser favorecida pelo
ensino de História. Nesse contexto, um dos objetivos dessa análise é compreender, a partir de
um mapa alternativo elaborados por um aluno do 4º ano do ensino fundamental, a relação com o
lugar e o cotidiano desse aluno.
Também, para Tuan o lugar está relacionado às experiências dos indivíduos com o
espaço:
“Sentir” um lugar leva [...] tempo isso se faz das experiências, em
sua maior parte fugazes e pouco dramáticas, repetidas dia após dia
e ao longo dos anos. É uma mistura singular de vistas, sons e
cheiros, uma harmonia ímpar de ritmos naturais e artificiais, como
a hora do Sol nascer e se pôr, de trabalhar e brincar. [...] Com o
tempo nos familiarizamos com o lugar, o que quer dizer que cada
vez mais o consideramos conhecido (TUAN, 1983, p. 224)
Dessa forma entende-se que as experiências dos indivíduos estão relacionadas aos
sentidos, sensações e emoções vividas. Essas experiências ocorrem de forma direta, e elas
determinam o modo como o sujeito vai se relacionar ao lugar, lembrando que o lugar é marcado
pelas relações de afetividade do sujeito com o meio. Nesse sentido, o lugar que interessa para
esse trabalho é a cidade, não enquanto município, mas como espaço (re)significado, que possui
elementos, símbolos que fornecem subsídios para que se estabeleçam emoções em sua maior
parte cotidianas. A cidade é um lugar, um centro de significados, por excelência. (TUAN,

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1983). Compreende-se que a nossa cidade é um lugar aonde as emoções são mais vividas, pois é
nela que enfrentamos situações como as batalhas do dia-a-dia, é nela que sentimos a sensação de
lar, de refúgio.
Cada lugar é entendido para cada um de uma forma. Isso ocorre, pois cada sujeito vive
uma experiência diferente, assim os lugares possibilitam múltiplas percepções. Essas percepções
se conformam à experiência do indivíduo no tempo. Para Tuan, as crianças percebem e
conhecem melhor o lugar através dos sentidos (TUAN, 1983).
Segundo Tuan (1983), o desenho de mapas é evidência incontestável do poder de
conceituar as relações espaciais. Assim, os mapas constituem-se como importantes evidências
históricas para compreender determinados períodos, acontecimentos.
A realização do mapeamento implica, para o sujeito, pensar nos lugares e relacioná-los
às suas experiências cotidianas. Para entender a cidade e o bairro enquanto ambientes da vida
cotidiana se faz necessário compreender a definição de cotidiano. Esse conceito é alvo de
intensos debates e originou várias vertentes que trabalham com o conceito, o que será utilizado
aqui é que diz respeito a algo que acontece todos os dias, refere-se a algo particular do dia a dia.
Em termos bem gerais, os estudos sobre cotidiano tendem a valorizar, como foco de atenção, as
ações individuais frente às circunstâncias da vida (GUARINELLO, 2004). Conforme apontado
por Norberto Luiz Guarinello:
O cotidiano, [...] como o tempo da vida, pode ser pensado como o
espaço concreto de realização da história em todas as suas dimensões, a
pública e a privada, a banal e a importante, a repetitiva e a
transformadora. O cotidiano não é uma esfera particular da vida ou da
história, ou uma espécie de massa inerte, que muda pouco ou não muda,
pois não teria em si os agentes de sua mudança: uma massa sobre a qual
os acontecimentos existiriam e atuariam de modo independente.
(GUARINELLO, 2004)
O cotidiano está intrinsecamente relacionado ao lugar, segundo Tuan (1983, p. 219), o
indivíduo está unido ao lugar fisicamente e emocionalmente. O cotidiano segundo Michel de
Certeau, é um mundo que amamos profundamente, memória olfativa, memória dos lugares da
infância, memória do corpo, dos gestos da infância, dos prazeres. (CERTEAU, 1996).
Pierre Mayol apresenta algumas problemáticas a respeito do cotidiano, segundo o autor,
a vida cotidiana é organizada segundo dois registros:
1. Os comportamentos, cujo sistema se torna visível no espaço
social da rua e que se traduz pelo vestuário, pela aplicação mais
ou menos estrita dos códigos de cortesia (saudações, palavras

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“amistosas”, pedido de “notícias”), o ritmo do autor, o modo


como se evita ou ao contrário se valoriza este ou aquele espaço
público. 2.Os benefícios simbólicos que se espera obter pela
maneira de “se portar” no espaço do bairro[...] (MAYOL, 1996, p.
38)
Os elementos citados compõem o lugar e fazem parte do cotidiano. Lembrando que o
lugar ao qual está sendo referido é o bairro. O bairro é o lugar onde vivemos a maior parte da
nossa vida, é um ambiente ao qual nos dá segurança, que nos proporciona descanso nas horas
vagas, é um ambiente em que estabelecemos profundas relações. E é nele que nos sentimos
reconhecidos, ele faz parte da nossa identidade. Segundo Mayol, sobre o bairro: [...] é como se
entrasse num espaço que contém as palavras do reconhecimento, conhecido pelo coração,
surpreendente como as coisas que amamos, como um poema, “uma música” (MAYOL, 1996, p.
156). O bairro é marcado por várias estruturas, como por exemplo: as casas, a praça, o campo de
futebol, o mercado, a padaria, a igreja, a escola, o bar. Todas essas estruturas constituem-se
como ambientes de socialização. Dessas estruturas, as casas são as únicas que representam os
lugares mais particulares, mas, quando elas viram ponto de encontro para uma reunião ou uma
festa, tornam-se, também, ambientes de sociabilidade.
O mapa produzido e que será analisado traz determinado lugar a partir da experiência
individual e também coletiva, a partir dele é possível inferir a importância atribuída ao lugar em
que vive; dessa forma é possível perceber as estruturas que fazem parte do cotidiano e que
compõe o lugar. Também é possível deduzir uma relação existente entre cotidiano e lugar e
ensino de história, pois o ensino trata de problematizar a experiência humana no tempo e no
espaço. A opção por trabalhar com mapas vem da problematização do espaço. Segundo Abud,
Alves e Silva (2010, p.97), nessa fase, os alunos já são capazes de entender e imaginar que
determinado espaço tinha outra forma no passado, e estão mais preparados para confecção de
mapas. O estudo por meio da elaboração de mapas permite ao aluno perceber as mudanças
ocorridas do espaço ao longo do tempo, compreender o mapa enquanto uma fonte histórica e
não somente instrumento da geografia. E compreender o espaço enquanto lugar, a partir das
experiências ocorridas que se dão, na maior parte dos casos, no âmbito do cotidiano.
Circe Maria Fernandes Bittencourt ao falar sobre como selecionar conteúdos históricos,
refere-se ao ensino do cotidiano e história local, sobre a história do cotidiano a autora diz:
A história do cotidiano tem se convertido em uma das correntes
assumidas por gerações de historiadores preocupados com uma história
social capaz de redimensionar a visão política. [...] A história do
cotidiano, além da história social, está intimamente ligada à história

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cultural. [...] Os autores que se ocupam da história do cotidiano, mesmo


com posturas diversas em seus fundamentos teóricos, buscam recuperar
as relações mais complexas entre os diversos grupos sociais,
estabelecendo conexões entre conflitos diários que se inserem em uma
forma de política contestatória, e identificar as lutas de resistências a
mudanças, o apego a tradições. (BITTENCOURT, 2008, p. 165-167)

Para Bittencourt, o cotidiano deve ser utilizado como objeto de estudo escolar devido às
inúmeras possibilidades que oferece, ele possibilita a visualização de transformações ocorridas
no tempo e para a autora isso ultrapassa a idéia de que a vida cotidiana é alienada. O ensino e
aprendizado tendo como objeto de estudo o espaço proporcionam pensar sobre questões que são
levantadas pelo espaço, pensar no lugar, cotidiano e também em outros conceitos, como por
exemplo, tempo e memória. O mapa enquanto fonte histórica nos permite, por exemplo,
problematizar transformações ocorridas no espaço. A análise dos mapas trazem muitas
informações sobre determinados questionamentos, e assim como a análise, a produção do mapa
como fonte histórica, possibilitam aos alunos mais do que uma orientação espacial, possibilita o
entendimento de relações complexas que se estabelecem no cotidiano, no lugar. Segundo
Patrícia Negrão:
Ao desenhar, a criança e o jovem representam seu modo de pensar o
espaço”, afirma Rosângela Doin de Almeida, professora da
Universidade Estadual Paulista em Rio Claro (SP). E continua: “O
desenho de uma criança não é só cópia de objetos, mas a interpretação
do real. O mapa também é o recorte de uma realidade (NEGRÃO, 2006,
p.01)
Os conceitos lugar e cotidiano relacionam-se à medida que ambos são frutos da
experiência humana no espaço. Utilizá-los no ensino de história implica pensar nas ações do
sujeito no cotidiano, implica em pensar em como o espaço é transformado em lugar conforme o
espaço vai ganhando (re) significação, e também implica em pensar nas ações do homem no
tempo. Levanta possibilidades para se pensar em história local, em questões sobre memória e
identidade.
Como sempre estão sendo incorporadas, refeitas, revelam determinadas maneiras de ver
o mundo. O mapas produzido é uma evidência do modo como ele ve o mundo, o que valorizam
e como organizam o lugar e o cotidiano. Já, o conceito “alternativo” corresponde a coisas entre
as quais se pode escolher a que mais convenha. Então, o mapa alternativo diz respeito a
produção que foi criada com base nas escolhas pessoais.

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A atividade também inspira-se no trabalho produzido pelo arquiteto e urbanista


Humberto Yamaki, coordenador do Plano Diretor de Preservação do Patrimônio Cultural de
Londrina (PDCP) e autor de “Guia do Patrimônio Cultural de Londrina” (2008). Neste,
apresenta novas formas alternativas de mapeamento de alguns locais da cidade de Londrina
através dos cheiros característicos da região, partindo da ideia de que é possível reconhecer as
cidades pelos cheiros.
Outro teórico que nos auxiliou para pensar no suporte para a oficina é Yi-Fu Tuan. Este
nos fez pensar na ideia de lugares significativos para o indivíduo. Tais pressupostos nos levaram
a pensar que a experiência de cada indivíduo está intrinsecamente ligada com o ambiente em
que está inserido, ou seja, com o espaço e com o lugar. Pensar na experiência do indivíduo
implica pensar em memória, já que a mesma configura-se como seletiva. Outra questão
levantada pela memória refere-se as relações entre as experiências individuais e a coletiva.
Conforme aponta o sociólogo Maurice Halbwachs:
[...] cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória
coletiva, que este ponto de vista muda segundo o lugar que ali ocupa e
que esse mesmo lugar muda segundo as relações que mantém com
outros ambientes. (HALBWACHS, 2006, p. 69)
Partindo desses pressupostos e discussões sobre o ensino de história, a oficina baseia-se
nos conceitos de memória e lugar. Deste modo, os mapas alternativos na oficina, produzidos
pelos alunos são encarados como representações de memórias e lugares. Conforme citado,
optou-se por utilizar os conceitos de cotidiano e lugar, pois os desenhos possuem grande relação
com o cotidiano e são carregados de significações que são características do lugar.
A metodologia para análise aqui utilizada corresponde à idéia de inventário como
processo, e se inspira nos procedimentos propostos pelo PDCP e nas etapas de análise de
conteúdo como foi proposta por Moraes (2003 Para análise do mapa produzido é utilizada a
ideia de inventário como processo. Segundo Azevedo,1998 apud Yamaki, 2003, junto com sua
função básica de identificação e gestão de bens de interesse cultural, o inventário tem efeito
conscientizador e legitimador muito importante (YAMAKI, 2003). Segundo Yamaki (2003, p.
48), fichar e inventariar deve ser um processo sistemático. O inventário realizado elaborou uma
listagem de “lugares” significativos para a comunidade londrinense.
Optou-se utilizar a metodologia do inventário como processo a fim de dar
suporte para a análise do desenho e de identificar como os lugares são caracterizados. E,
buscar compreender como o lugar em que vive é concebido, e também perceber como
esse lugar está relacionado ao cotidiano. Essas possibilidades dadas pelo inventário
podem ser complementadas com o auxilio dos procedimentos típicos da análise de

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conteúdo. Trata-se, como define Moraes (2003) de um método de análise textual


qualitativa, que consiste na articulação de três passos de análise: a desconstrução do
texto em questão, nesse caso, o conteúdo dos mapas analisados e o estabelecimento de
novas relações a partir das quais novas compreensões são geradas. É o que o autor
denomina “tempestade de luz”.
Nosso corpus documental é formado pelo mapa elaborado por uma criança. O que
procuramos visualizar em nossa análise do que esse mapa dize acerca do seu autor e das
possibilidades do ensino de História. Nesse processo, os procedimentos próprios do PDCP para
o inventário aproximam-se das proposições da análise de conteúdo, especialmente quanto à
necessidade de estabelecimento de critérios, classificação e categorização de elementos; análise
quantitativa e laboração de fichas de inventário como estratégia para acessar a complexidade
das narrativas do corpus documental.
Para realizá-la foi necessário priorizar uma amostragem dos materiais coletados,
visto que, no ano de 2013 e primeiro semestre de 2014, foram aplicadas várias oficinas
para escolas públicas. Nesse contexto foram recolhidos aproximadamente 400 mapas
produzidos pelos alunos e a volumosa quantidade de mapas produzidos. Dentre esse
número optou-se por utilizar para essa análise 1 mapa. Lembrando que no caso do
PDCP a análise fora realizada com base em entrevistas, no caso da análise que aqui se
realiza refere-se a mapas alternativos. A primeira etapa proposta refere-se à triagem dos
materiais. Esta teve como critério de escolha mapas produzidos pelo 4º ano do ensino
fundamental da rede municipal de Londrina.
Realizada a primeira etapa do processo, partimos para a segunda: critérios, classificação
e categorização. A segunda etapa do processo determinou as categorias em que os mapas estão
situados, são elas respectivamente: mapa da comunidade/dia do aluno; mapa de sons; mapa de
cheiro; mapa de patrimônio; mapa afetivo. A terceira etapa do processo corresponde a análise
qualitativa. Segundo Roque Moraes (2003): A análise qualitativa opera com significados
construídos a partir de um conjunto de textos. [...] Os materiais textuais constituem significantes
a que o analista precisa atribuir sentidos e significados. Lembrando que o mapa aqui utilizado
corresponde a categoria: mapa da comunidade/ dia do aluno.
A análise qualitativa realizada interliga-se a etapa da elaboração das fichas de
inventário, pois a mesma proporciona a compreensão dos elementos presentes sobre o cotidiano
e o lugar em que o aluno está inserido. Tendo como modelo a Ficha do Inventário foi elaborada
uma ficha de inventário para cada mapa produzido pelos alunos.

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Ficha 1
01. Categoria: Mapa da comunidade/ dia do aluno
02. Título do mapa: Bairro sincero Bairro legal
03. Nome da escola: Escola Municipal Professora Canhadas Bertan
04. Identificação de localização (endereço): Rua dos Assistentes Sociais, nº 60.
05. Caracterização geral (elementos): O desenho representa o bairro/ comunidade que o aluno vive. Ele
foi representado em formato de esfera, no canto superior há umas ruas, seguido de um mercado, igreja
e mais duas casas do lado esquerdo. Ao centro há uma grande árvore, ao lado direito possui duas
casas, uma pista de skate com três meninos. Embaixo há uma escola e o bazar.

06. Descrição Histórica da formação do local: Idem ao item 6 da ficha 11


07. Identificação complementar: Produzido no ano de 2013
08. Significância tais como morfológicas, tipológicas, referências paisagísticas: Presença de árvore e ruas
caracterizadas por subidas.
09. Fotos ou croquis: Categoria não preenchida
10. Fontes de consulta: IPPUL, Mapa Cidade de Londrina- Bairros e Regiões.
http://www1.londrina.pr.gov.br/dados/images/stories/Storage/ippul/mapas/mapa_bairros_regioes_lond
rina.pdf. E http://www.londrina.pr.gov.br/index

A ficha de inventário possibilitou a compreensão dos elementos que estão presentes no


cotidiano do aluno através do lugar representado. Foi possível compreender o modo como o
aluno se relaciona com a comunidade em que está inserido e, sobretudo, como se sente parte
dela. O “Bairro sincero, bairro legal”, mapa da ficha 01, apesar de estar na categoria Mapa da
comunidade/dia do aluno, possui características afetivas do aluno com a comunidade. Isso e

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possível perceber através do título que o aluno atribuiu ao seu mapa, ele sugere uma relação
próxima e de carinho do aluno com sua comunidade. Outros elementos que sugerem essa
relação são os itens que caracterizam o “Bairro sincero, bairro legal”, são eles: sua casa, a pista
de skate, o mercado, a igreja e a escola. Esses itens são representações de lugares que são
freqüentados pelo aluno, eles caracterizam na visam do aluno a comunidade em que vive e são
evidências de que o aluno reproduziu ícones que fazem parte de sua experiência concreta. O
mapa alternativo produzido possibilita várias interpretações sobre o espaço, a sua transformação
em lugar, e também como que elementos presentes no cotidiano interferem na relação do aluno
com o lugar em que vive.
O mapa analisado possibilitou essa interpretação, pois nele está representado o cenário
em que o aluno vivo. E tais elementos são configurações de situações do cotidiano. Pois, ao
representarar o bairro em que vive “Bairro sincero Bairro legal”, o aluno que o faz, já delimitam
no próprio título o espaço que está sendo representado, aquele espaço faz parte do seu convívio,
ou seja, percebe-se que o espaço representado é um espaço particular. Esse espaço que é cenário
da vida cotidiana torna-se lugar, devido às experiências nele vividas e devido as (re)
significações pelas quais o espaço passa todos os dias.
Esse trabalho também propõe uma reflexão da utilização do mapa no ensino de história,
ou seja, o mapa também entendido como fonte histórica pode trazer inúmeras informações,
como por exemplo, sobre o contexto em que fora produzido. A análise dos mapas também
possibilita a identificação de uma concepção de tempo, e insere a comunidade em que o aluno
vive nesse contexto. A partir desse processo educativo, em que através dos mapas a comunidade
em que o aluno vive passa a ser inserida é possível refletir sobre questões de memória e
identidade. O mapas elaborado também é uma evidência do rico pensamento infantil, eles
revelam o modo como a criança concebe o seu mundo. O mapa podem ser pensado no ensino de
história a partir da prática, pois o aluno quando elabora o mapa, além de desenvolver outras
habilidades, conforme citado anteriormente, passa a articular a sua vida a demais pessoas e
também passam a articular sua vida a práticas cotidianas. E é nesse sentido que o ensino de
história atua, através do diálogo, da mediação e da articulação de saberes, a produção de mapas
em sala de aula proporciona reflexões que vão além do documento histórico.

REFERÊNCIAS
BITTERNCOURT, Circe Maria Fernandes. Conteúdos históricos: como selecionar? In: Ensino
de História: fundamentos e métodos. 2ª Ed. São Paulo: Cortez, 2008. p.165-172

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BORTOLO, Carlos. O lago Igapó em Londrina-PR: Uma leitura das diferentes formas de
produção do espaço da cidade. Revista Percurso. v.2, nº 2, UEM, 2010. Disponível em
http://eduem.uem.br/ojs/index.php/Percurso/article/view/10621/6397. Acesso em agosto de
2014.
GUARINELLO, Norberto Luiz. História científica, história contemporânea e história cotidiana.
Revista Brasileira de História. vol. 24, nº 48. São Paulo: 2004. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882004000200002
HALBWACHS, M. A memória coletiva. Trad. de Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2006.
IPPUL, Mapa Cidade de Londrina- Bairros e Regiões.
http://www1.londrina.pr.gov.br/dados/images/stories/Storage/ippul/mapas/mapa_bairros_regioe
s_londrina.pdf. Acesso em agosto de2014.
MAYOL, Pierre. Morar. In: CERTEAU, M. GIARD, L. MAYOL, P. A invenção do cotidiano.
Trad. ALVES, E; ORTH, L. E. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996. p.37-165.
MOLINA, Ana Heloisa. Projeto “O Sesquicentenário do Paraná no contexto escolar”: uma
experiência com mapas históricos. Anpuh – XXII Simpósio Nacional de História. Londrina,
2005.
MORAES, Roque. Uma tempestade de luz: a compreensão possibilitada pela análise textual
discursiva. Ciência e Educação. v. 9, nº 2, p. 191-211, 2003.
NEGRÃO, Patrícia. Desenhar hoje para ler mapas no futuro. Revista Nova Escola, ed. 168, out.
2006. Disponível em: http://revistaescola.abril.com.br/geografiafundamentos/desenhar-hoje-ler-
mapas-futuro-426590.shtm. Acesso em 2012.
TUAN, Yi-Fu. Espaço e Lugar. A perspectiva da Experiência. São Paulo: DIFEL, 1983.
YAMAKI, Humbert. Guia do patrimônio histórico cultural de Londrina. Londrina: Midiograf
II, 2008.
YAMAKI, Humberto (orgs). Plano Diretor de Preservação do Patrimônio Cultural de
Londrina. Documento para discussão.Lei Municipal de Incentivo à Cultura Prefeitura
do Município de Londrina, 2003.

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O USO DA SÉRIE GAME OF THRONES COMO FONTE


HISTÓRICA NO ENSINO DE HISTÓRIA
Kauana Candido Romeiro
Kettuly F. S. Nascimento dos Santos (UEL- História)
PALAVRAS-CHAVE: ENSINO; RENASCIMENTO; HISTÓRIA.

INTRODUÇÃO
Pensar o ensino de história nos remete a ideia de oferecer aos nossos estudantes
a compreensão contextualizada do passado, com base nas fontes disponíveis e pelo
desenvolvimento de uma orientação temporal “que se traduza na interiorização de
relações entre o passado compreendido, o presente problematizado e o futuro
perspectivado” (BARCA, 2004, p. 132).
O primeiro passo seria oferecer fontes que possam ser do universo cultural dos
estudantes, e a partir disso, dialogarmos, questionarmos e problematizarmos esta fonte.
É, assim que pensamos quando selecionamos a série Game ofThrones. Uma série de
televisão norte-americana criada por David Benioff e D. B. Weiss para a HBO lançada
em 2011 e baseada na série literária de fantasia épica “As Crônicas de Gelo e Fogo” de
George R. R. Martin (2010) – escritor e produtor de séries e filmes Hollywoodianos,
durante dez anos, e hoje autor de Best-sellers nos EUA e na Europa –publicada em
1996.
A discussão desta série se encontra respaldada por outros livros e historiadores.
Utilizando recorte de episódios da primeira temporada, problematizamos uma fonte
produzida no presente, que traz reflexões sobre o passado. Temos em vista, induzir os
alunos a pensar sobre a história que a série desenvolve, relacionando-a com uma
temporalidade histórica: os reinados do século XVI.
Segundo Isabel Barca, a instrumentalização em história pode ser sintetizada
primeiramente, pela análise e interpretação das fontes, entrecruzando informações.
Posteriormente, devem-se entender as informações em seu respectivo tempo,
relacionando-as com o presente e levantando outras questões investigativas sobre a
temática. Para Laville (2005) a educação histórica deve favorecer a vivencia comum e
desenvolver o pensamento histórico- a capacidade intelectual e as atitudes frente à
produção histórica, promover o descobrimento do passado pelos próprios estudantes e

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convidá-los a produzir suas narrativas históricas- possibilitando o pensamento


autônomo e a capacidade crítica, de cada indivíduo.
Em seguida, Barca aponta a questão da comunicação dessas informações, na
aula, ou seja, o papel do professor em planejar uma aula que incentive os alunos ao
desenvolvimento cognitivo da problematização das fontes, desafiando-os no sentido de
serem críticos às informações.
Importante, na discussão sobre o uso de fontes na sala de aula é: “Justamente
quando se explora a natureza da fonte, é necessário que se examinem as questões
referentes à autoria, ao público a que se destina e a linguagem empregada” (JANOTTI,
1982, p. 4). Numa primeira etapa, seria analisada a natureza da fonte, que se baseia em
contextualiza-la, pesquisando sobre a autoria, referenciando esta fonte que carrega
ideias deste sujeito, assim como o momento na qual fora produzida. Localiza-se o autor
no tempo e espaço, possibilitando discutir alguns aspectos envoltos de sua produção.
As produções, o público e sua linguagem, imagética, segundo Jean-Claude Schmitt
(2007, p.11) “[...] elas exprimem e comunicam sentidos, estão carregadas de valores
simbólicos, cumprem funções religiosas, políticas ou ideológicas, prestam-se a usos
pedagógicos, litúrgicos e mesmo mágicos [...]”. As imagens, o visual, chamam atenção,
pois contém elementos que se relacionam, com uma temporalidade, criam estereótipos e
atingem um público muito amplo com suas produções, fato corrente até hoje,
principalmente na produção fílmica.
Ana Maria Mauad (1996, p. 73-98) nos mostra que a fotografia permite que a
imaginação seja acionada e leva os indivíduos a pensar sobre o passado no momento
que está registrado e questionar aquilo que permanece na imagem. Percebemos que o
mesmo pensamento pode ser inserido no trabalho com filmes, pois podemos levar os
alunos a questionar os interesses dos produtores de filmes e qual a sua relação com o
passado, estabelecendo diálogos com os alunos de forma a expor aos mesmo que não
são tábulas rasas, mas que possuem condições pra discutir sobre o passado.
A partir do questionamento dessas elaborações e de suas implicações simbólicas no
cotidiano das pessoas, podemos contribuir para a formação de jovens mais críticos,
ativos politicamente em seu meio de convívio e, consequentemente, menos vulneráveis
as manipulações culturais.

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O RENASCIMENTO: PROBLEMATIZAÇÕES SOBRE A FONTE

Este foi o foco quando pensamos na série: buscamos conhecer um pouco mais dos
personagens e a história da série, e a partir deles levantarmos questões sobre a forma
que os reis governavam seus reinos. Com isso em mente, procuramos outros suportes
para aprofundar a discussão e o conteúdo, entrecruzando informações, discutindo os
episódios, e os trechos dos livros pesquisados, na sala de aula.
O livro o Discurso da Servidão Voluntária (2009) de Ètienne De La Boétie, e a
obra de Peter Burke, O Renascimento Italiano (1999) nos mostra as características da
sociedade na Itália renascentista, que possuía uma configuração nos laços entre corte e
súditos: reconhecia-se os dominantes e os dominados, estes pagando altos impostos para
os dominantes, que mantinham sua vida de luxo.
Na Itália, como aponta Burke (1999), a consciência das diferenças no status
social apresentava-se bem disseminada. A visão medieval de uma sociedade composta
de três grupos – os que rezam, os que lutam e os que trabalham – não mostrava relação
com a realidade dos moradores das cidades italianas, pois na maioria das vezes, não
desempenhavam nenhuma dessas funções. O modelo de diferenciação social da Itália
deste período era definido não por funções, mas por graus, a partir da classificação dos
cidadãos entre ricos, médios e pobres, com base no pagamento de impostos.
Posteriormente, eram diferenciados também em relação a sua origem, se eram nobres ou
não; se eram cidadãos em posse de direitos políticos; ou se eram membros de guildas
maiores ou menores. Neste contexto, o poder passava a ser visto como fruto direto das
ações e das relações humanas, e não mais como detentor da vontade divina.
O indivíduo dotado de ganância vê no status, na posição que ocupará na corte, o seu
objetivo maior; ser reconhecido perante a sociedade seria algo muito valorizado e
desejado, e para isso se utilizavam uma série de artimanhas fazendo alianças para
benefício próprio. Para adquirir status em uma sociedade, o indivíduo se dispõe as
vontades de um rei tirano, se esquecendo da liberdade que um dia possuíram e
acreditando serem possuidores de uma vida invejada.
Por meio do livro Discurso da Servidão Voluntária (2009) – que seria uma pequena
obra de um conselheiro do Parlamento de Bordéus, Ètienne De La Boétie. O autor
nasceu no século XVI, na França, e fará esta obra sobre a submissão dos homens a um

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poder tirânico – poderemos ver melhor esta submissão por meio da série Game of
Thrones. Além deste tema, também pode suscitar questões sobre a ganância pelo poder.
A temática da obra de De La Boétie se funda na discussão sobre uma servidão que se
torna voluntária, à submissão a um tirano, da qual se torna aceitável e cômoda ao povo,
tomando a liberdade, que é natural ao homem. Incorporados à ideia de submissão, os
homens se submetem a obedecer ao mais forte, para protegê-los, defende-los, e
governar. Vendo neste mais forte, ousadia, prudência e previdência. Habituam-se a
obedecer-lhe e a confiar nele, concedendo vantagens.
O diálogo entre a série, a obra de Peter Burke (1999) e o Discurso da Servidão
Voluntária (2009) se fundamenta em discutir como o poder se manifesta através das
relações e ações humanas, no período do Renascimento, mas que mantém semelhanças
com o tempo presente. O status social seria a chave de relacionamentos e ações. O
indivíduo dotado de ganância pretende atingir um status para conseguir poder, posses.
Este seria o objetivo maior e, para issoo individuo faz uso de artimanhas, que o leva a
fazer alianças para seu próprio benefício.
Para adquirir um status em uma sociedade, o indivíduo se dispõe as vontades de
um rei, se esquecendo da liberdade que um dia possuíram e acreditando serem
possuidores de uma vida invejada. Com os trechos da série poderemos mostrar como o
indivíduo privado desde o seu nascimento da liberdade, vive alienado, submetido a um
governo tirano, sem reagir ás imposições do rei que os impedem de enxergar as suas
privações. Portanto, não podem sentir falta do que não possuem.
Com a série Game of Thrones e o livro o Discurso da Servidão Voluntária (2009),
podemos visualizar as ações do rei para se conseguir a submissão do povo: o rei coberto
por um manto religioso, que se valia de um discurso sagrado para reinar e para dominar.
A discussão em sala de aula, deve se pautar em refletir e identificar estes atos e
símbolos da realeza, assim como também buscar identificar quais outros elementos de
submissão podemos encontrar em nossas vidas, atualmente, frente ao governo, a
política, por exemplo.
A série Game ofThrones conta a história dos sete reinos, governadas por um único rei:
Robert. A história começa quando o ajudante do rei, chamado “A Mão do Rei” morre
assassinado na capital do reino e então ele sai em busca de um substituto. Chega a
Winterfeel para convidar Lorde EddardStark para ocupar o cargo.

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O rei Robert é um personagem descontraído, que adora festas, comer e beber e não tem
muitas preocupações com o trono, deixando o reino basicamente sob o controle e
responsabilidadesdo segundo em comando no reino conhecido como a “Mão do
Rei”.EddardStark aceita a oferta e vai para a capital‘Porto Real’, localizada no sul.
Acaba descobrindo que o filho do rei, Joffrey é na verdade um bastardo fruto de
relações incestuosas da rainha CerseiLannister com o seu irmão gêmeo Jaime Lannister
(que utilizam do discurso de que seus filhos são filhos de uma linhagem pura, pois
foram gerados por dois indivíduos que dividiram o útero ao mesmo tempo, para
justificar a relação incestuosa).
Quando Stark decide contar para o Rei Robert toda a verdade sobre as relações da
rainha com seu irmão, este de maneira inesperada acaba sofrendo um acidente durante
uma caçada na floresta e agora se encontraàbeira da morte, mudando o rumo das coisas
para EddardStark. O rei pede para que Stark escreva uma carta onde o nomeia para
ocupar o posto de rei dos sete reinos, até que o “filho”do rei (Joffrey, o primogênito que
na verdade é filho dos irmãosLannister) tenha idade para governar.
Sempre ambiciosa pelo trono, a rainha CerseiLannister rasga a carta e nomeia seu filho
Jofrey como novo rei. Eddard Starks é acusado de conspirar contra o rei para tomar o
seu cargo e acaba sendo condenado à morte pelo rei Joffrey. Podemos assistir a isso no
episódio 2, 5 e 7 da primeira temporada da série: a nomeação do rei, o jogo de poder e
de relações.O instrumento da tirania era o preço da liberdade para a servidão. Essa
servidão era conquistada com jogos, farsas, espetáculos e davam alimentos, o qual lhes
pertencia por direito, tudo isso já no mundo antigo como meio de entorpecer o povo. O
rei ainda se vestia do manto da religião para justificar o governo severo e hostil, como
um mecanismo a mais de dominação (DE LA BOÉTIE, 2009).
Etienne De La Boétie diz que muitas vezes o soberano é o mais covarde e efeminado da
nação, não acostumado à poeira das batalhas, não só incapaz de comandar os homens
pela força, mas ainda de servir de maneira indigna (2009, p. 32). Podemos observar esta
afirmação em uma das cenas de Game of Thrones, quando o personagem Joffrey
(quando ainda é um príncipe do reino), tenta mostrar sua superioridade a um filho de
um carniceiro, mas quando se vê dominado pela personagem Arya Stark (em uma
disputa de espada), mostra claramente a sua fraqueza.

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Segundo o autor De La Boétie (2009, p.40), há três tipos de tirano: Uns adquirem o
poder por eleição do povo, outros pela força das armas, e os últimos por sucessão
hereditária. Na série Game ofThrones, vemos que o personagem Robert ganha o trono
pela força das armas, através de uma luta do qual venceu o domínio do chamado “Rei
Louco” e tomou o seu trono. Já o personagem Jofrey é “filho” do Rei Robert e,portanto,
toma posse do trono por sucessão hereditária. O que pode instigar questões e opiniões
sobre qual seria o melhor reinado, ou se tal ideal não seria nem possivel de alcançar.
Na opinião de De La Boétie, os que nascem reis geralmente não são os melhores, pois
nascidos e alimentados no seio da tirania sugam com o leite a natureza do tirano e
olham os povos submetidos a eles como servos que herdaram (p.40). Em Game
ofThrones torna-se muito claro que o personagem Joffrey desde criança percebeu que
possuía poder, e ao chegar o momento de usufruir deste, o utiliza para subjulgar os seus
súditos.
Hábito, educação, o não cultivo da liberdade e a covardia, são elementos da servidão
voluntária na relação entre reis e súditos. “[...] A primeira razão pela qual os homens
servem voluntariamente é porque nascem servos e são educados como tais. [...]” (LA
BOÉTIE, 2009, p. 51).
O autor diz que o segredo da dominação do tirano é o apoio de quatro ou cinco pessoas
que o mantém no poder. Isso sempre aconteceu porque cinco ou seis obtiveram a
confiança do tirano e se aproximaram dele por conta própria, ou foram chamados por
ele para serem cúmplices de suas crueldades (DE LA BOÉTIE, 2009, p.61). Na série
podemos ver um exemplo desta citação através da família Lannister. Eles conseguem
apoio de muitos aristocratas devido ao estimulo financeiro que a família Lannister
oferece aos seus subjugados – a família financiou até mesmo as regalias do reinado do
rei Robert que não se preocupa com os gastos excessivos e acaba colocando o reino a
beira da falência financeira, recorrendo desta forma ao dinheiro dos Lannister – o que os
leva a utilizar constantemente a frase “Ouça-me rugir”, pois o brasão da família é um
leão dourado em campo carmesim, entretanto, utilizam constantemente a frase ‘Um
Lannister sempre paga suas dívidas’, como meio de reafirmar suas condições
financeiras. Assim, por meio da abordagem dos trechos se tece um quadro sobre os
reinados, os prováveis comportados da maioria dos súditos, do século XVI.

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Para o autor de o Discurso da Servidão voluntária (2009), o tirano somente prejudica os


homens cuja figura é o mal em pessoa. Uma forma de resistência a tal poder seria o uso
da razão, pois, assim, os homens não seriam subjugados a ninguém. Esquecem-se da
liberdade e, com isso, sofrem com a servidão, “um bem natural [...] perde-se quando não
cultivado, e o hábito nos conforma sempre a sua maneira, apesar da natureza [...].” (DE
LA BOÉTIE, 2009, p.43).
Nossa proposta se pauta no estabelecimento da relação passado/presente, para os
alunos desenvolverem um pensamento crítico para atuar no meio em que vivem. Desta
forma, podem constatar rupturas e permanências, semelhanças e diferenças da sociedade
em que vivem, em relação a outras do passado estudadas. Com aulas mais interativas e
que atendam as perspectivas dos alunos, podemos instigar o interesse dos estudantes
para as questões históricas na sua interação com o presente, de uma forma mais
consistente e eficaz.
Vivemos num mundo interconectado e em processo de desenvolvimento, ou
seja, temos acesso imediato a informações decorrentes de vários campos do
conhecimento, dados estatísticos, práticas culturais diversas, em virtudes da ampla rede
informativa que abrange o mundo. Dentre esse quadro informativo em constante
expansão, a escola permeia seu papel de propagadora ou incentivadora de
conhecimentos, uma vez que é o aluno que o desenvolve, em contato com ambiente e
métodos favoráveis para isso (NADAL, 2007).
Sendo assim, a perspectiva do ensino hoje se desvincula das aulas tradicionais
tendo o professor como detentor único do conhecimento e os alunos simples receptores.
A tecnologia em desenvolvimento, os meios de comunicação disponíveis devem ser
usados para ampliar o efeito da educação na vida de crianças e jovens, como meio de
desenvolverem uma visão crítica sobre a sua sociedade.
Tencionamos utilizar uma abordagem dialogada em sala de aula, tendo em vista a
importância de propor questões e diálogos com nosso interlocutor, estudante: “[...] esta
exposição consiste em fazer o aluno participar, de forma constante, da aula. Interrogado
com questões individuais ou coletivas, mobilizado no contexto de comentário de
documentos [...]” (SCHIMIDT; CAINELLI, 2004, p. 33). Esta abordagem pretende
colocar o aluno como participante do conhecimento, no qual aliado com o professor

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tecerá sentido e significado aquele documento, complementando, desconstruindo


conhecimentos prévios.

ALGUMAS QUESTÕES NORTEADORAS

Como os reis impunham seu poder? Quais os mecanismos? E, como o povo pode
resistir a tal servidão? Como o Estado, na figura do tirano é mostrado pelo autor? Como
isso se relaciona com o pensamento renascentista?
Apontemos algumas respostas para as questões: o Estado, retratado na figura de
um monarca tirano era mostrado como um “corpo” em relação com o corpo humano,
como escreve De La Boétie, (2009, p. 4):
Aquele que vos domina tanto só tem dois olhos, só tem duas mãos, só
tem um corpo, e não tem outra coisa que o que tem o menor homem
do grande e infinito número de vossas cidades, senão a vantagem que
lhe dais para destruir-vos. De onde tirou tantos olhos com os quais vos
espia, se não os colocais a serviço dele? Como tem tantas mãos para
golpear-vos, se não as toma de vós? Os pés com que espezinha vossas
cidades, de onde lhe vêm senão dos vossos? Como ele tem algum
poder sobre vós, senão por vós?

O povo que experimentou a liberdade não permitirá que um tirano domine-os


com mãos de ferro usurpando o seu bem mais precioso. A servidão ocorre por vontade
do povo, porque no momento em que se sentirem sufocado e sendo abusados pela
tirania se juntarão e lutará pela tão preciosa liberdade, pois sob uma mão de ferro o
povo se revolta e luta por melhores condições de vida. Entretanto, aqueles que nasceram
da submissão não lutarão, pois cogitam encontrar na servidão o porto seguro. Por
estarem acostumados com a servidão, não podem sentir falta de uma liberdade que
nunca a tiveram.
Levantaremos uma discussão sobre a liberdade, trazendo até o aluno a sua
importância e o seu significado; mostraremos como a servidão era algo permitido pelo
súdito enquanto houvesse um sentimento de segurança, e a partir do momento que a sua
liberdade era ameaçada a submissão chegava ao fim e iniciava um movimento de
revolta. Buscaremos desenvolver com os alunos uma reflexão para os dias atuais. É

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possível identificar alguma característica dessa submissão nos dias atuais? Se há como
elas se apresentam?

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A série seria uma fonte com o intuito de mostrar aos alunos os meios que um rei
se apropriava para conseguir de seus súditos a submissão durante o seu governo, como
os súditos se submetem as vontades do rei e como a imposição do monarca muitas vezes
é vista como um meio de se conseguir segurança ou em relação ao status como um meio
para se conseguir benefícios junto ao rei e para aqueles que desfrutam da liberdade e se
negam a servidão, vêem a submissão como um ato fraco de quem nunca teve liberdade.
Diferente do que se pensava no século XIX (a visão de que o documento como
verdade dos fatos, trazia o que realmente ocorreu), os documentos começam a ser vistos
agora (pois, desde o século XX os historiadores passaram a contestar a fonte como
documento inerte) como possibilidades para a ampliação e a familiarização do aluno
com formas de representação das realidades do passado e do presente que possibilita
associar o conceito histórico fortalecendo a capacidade de raciocinar a situação
analisada, o que permite que ocorra um diálogo do aluno com a realidade passada, assim
como também possibilita criar um sentido para a realidade do aluno.
A “formação histórica” definida por Jörn Rüsen como um processo amplo de
aprendizagem, que elenca que “[...] o ensino de história nas escolas, a influência dos
meios de comunicação de massa sobre a consciência histórica e como fator da vida
humana prática, o papel da história na formação dos adultos como influência sobre a
vida cotidiana [...]” (RUSEN, 2001, p. 48), denota que devem ser consideradas
inúmeras influências para a formação da consciência histórica, ou seja, que muitas
vezes, a perspectiva temporal dos alunos se coloca muito além das atribuições contidas
nos livros didáticos. Por isso, podemos articular esse embate com a frustração de alguns
alunos com um ensino de história sendo colocado como a tradicional ‘decoreba’ de
trechos oficiais, elencando datas e nomes, sem considerar os conhecimentos prévios e as
interferências sociais nas suas perspectivas temporais.

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A história deve ser vista como um fator de orientação cultural na vida prática
humana. (SCHMIDT, BARCA, MARTINS, 2010. p. 44). O que impulsionaria o
aprendizado histórico dos alunos seria as suas necessidades de orientação. Podendo dar
andamento ao aprendizado histórico somente a partir das experiências de ações
relevantes do presente.
Segundo Caio César Boschi, a escrita da história não pode ser isolada de sua
época. Para Boschi, tudo o que fazemos, pensamos, sentimos e produzimos, assim como
o significado que atribuímos a tudo isso, depende da época em que vivemos das
relações sociais estabelecidas e principalmente do contexto histórico. Tudo aquilo que
parece ser natural, que sempre existiu e vai continuar existindo é, na verdade fruto da
criação humana ao longo do tempo.
Muitos alunos encaram a História como uma verdade absoluta sobre o passado,
como se esta fosse uma certeza fiel de algo que se passou. Nós, como professores,
temos que deixar claro para os alunos que a história não é um conhecimento pronto,
acabado. Pelo contrário, é um conhecimento que está em permanente construção.
A ideia de que a História é uma simples sucessão de fatos interligados por uma
relação de causa e efeito, segundo Boschi, foi superada. Entretanto o que vemos na
escola e nos livros didáticos é que esta concepção de história ainda permanece.
Visando uma aula onde se poderá aplicar em sala o trabalho de análise de fontes
com os alunos; buscamos desenvolver um dialogo durante a aula para que o aluno possa
perceber que os questionamentos feitos à fonte estão ligados a um passado
desconhecido, mas que também permite estabelecer uma relação com sua bagagem – as
informações obtidas fora do espaço escolar e que não devem ser desconsiderado, pois
nos possibilita trabalhar com o aluno de maneira mais dinâmica, e interessante. A
ampliação das possibilidades de trabalho em sala de aula, tendo em vista uma
aprendizagem, para a criança e o jovem, mais efetivo, que se permita desenvolver uma
visão mais crítica sobre a sociedade a qual ele está inserido – tudo com o intuito de
melhorar a qualidade do ensino de história.
Portanto, fontes para o ensino tornam-se fundamentais para uma aula dinâmica,
pois permite que a história se torne um fator de determinação cultural da vida prática
humana.Ela terá de deixar de ser uma mera absorção de uma série de acontecimentos
que se dará a partir da elaboração de perguntas e respostas feitas aos conhecimentos

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acumulados, para iniciar a partir das questões históricas que surgem no presente, as
experiências do passado transformando-se em experiência histórica específica,
proporcionando a real efetivação do conhecimento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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<http://www.nre.seed.pr.gov.br/cascavel/arquivos/File/semana%20pedagogica%202010
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2010.
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Tese (doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008.
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histórica. Brasília: UNB, 2001.
SCHMITT, Jean-Caude. O Corpo das Imagens: ensaio sobre a cultura visual na
Idade Média. Tradução José Rivair Macedo. Bauru, SP: EDUSC, 2007.
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JörnRüsen e o ensino de história. Curitiba: Ed. UFPR, 2010.
Site Minha Série. Disponível em: <http://www.minhaserie.com.br/serie/534-game-of-
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O CONHECIMENTO HISTÓRICO PRODUZIDO POR


NÃO HISTORIADORES: ANÁLISE DA OBRA
“MEMÓRIAS FOTOGRÁFICAS: A FOTOGRAFIA E
FRAGMENTOS DA HISTÓRIA DE LONDRINA”
Paulo Sérgio Micali Junior

Taiane Vanessa da Silva (História – UEL)

PALAVRAS-CHAVE: HISTÓRIA LOCAL; CULTURA HISTÓRICA; APROPRIAÇÃO.

Introdução
Livros, programas de televisão, revistas e blogs voltados para questões
históricas, produzidos por indivíduos sem formação acadêmica em história, muitas
vezes adquirem grande popularidade. O best-seller “1808”, por exemplo, é uma obra
que aborda a vinda da família real portuguesa ao Brasil, no entanto, o autor Laurentino
Gomes não é historiador, mas sim jornalista. Há também os guias politicamente
incorretos do Brasil, América Latina e da História do Mundo, obras de Leandro
Narloch, ex-jornalista da “Revista Veja” e ex-editor das revistas “Superinteressante” e
“Aventuras na História” o qual, também sem uma formação em história, produziu
fontes de conhecimento histórico e atingiu considerável relevância em âmbito nacional.
Sob essas questões, o presente texto tem o intuito de analisar o conhecimento
histórico produzido por não historiadores, a partir da temática da história de Londrina,
cidade localizada no norte do Paraná, já que neste campo a produção de obras de
história por autores que não são historiadores também é numerosa. Para tanto,
escolhemos o livro intitulado “Memórias fotográficas: a fotografia e fragmentos da
história de Londrina”, o qual foi produzido por Paulo César Boni, Rosana Reineri
Unfried – ambos jornalistas – e Omeletino Benatto – considerado um dos pioneiros de
Londrina. Aquele livro de fotografias apresenta a história da cidade por meio de fotos
colecionadas ou fotografadas por Benatto ao longo de vários anos e textos explicativos
embasados nas anotações do pioneiro.
Apresentadas de forma didática, fluida e agradável, as questões históricas
daquela obra destoam da história acadêmica, já que as fotografias e anotações não foram
submetidas à análise histórico-crítica, exercício esse fundamental ao ofício do

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historiador, já que as fontes por si só não constituem a história propriamente dita


(ARIAS NETO, 2003).
O embasamento metodológico da análise pautar-se-á nas perspectivas de
François Hartog (1996), que sugere a viabilidade de constatar o “regime de
historicidade” – norma da escrita do tempo – que conduziu a preparação da obra, por
meio do uso de prefácios e textos de apresentação. Em linhas gerais, este método
investiga a conexão da análise interna da obra com os campos externos de sua produção,
os quais dizem respeito, por exemplo, ao contexto, finalidades e influências do lugar
social da produção.
Acerca das questões históricas explicitas na obra, desde o início da leitura, por
meio da orelha do livro, sumário e texto de apresentação, percebemos a intenção dos
autores em transmitir a ideia de trajetória percorrida pela cidade, mostrando residências
de pioneiros proeminentes, estabelecimentos comerciais que tiveram, em sua maioria,
grande evidência no centro da cidade, infraestrutura e escolas de destaque, ruas e praças
também vinculadas às áreas centrais, além de eventos, considerados como marcos
importantes. Ou seja, o percurso da história de londrina é traçado por intermédio de
monumentos arquitetônicos e marcos históricos.
Outros dados que merecem ser lembrados dizem respeito ao lançamento do livro
e a sua distribuição. A obra de Boni, Unfried e Benatto foi lançada em 25 de agosto de
2013, durante a comemoração do “Chá do Pioneiro”, ocorrida no Museu Histórico de
Londrina (MHL), organizada pela Associação dos Amigos do Museu (ASAM), a qual é
formada por
[...] pessoas da cidade, cujas famílias, em sua maioria, tinham em
comum, além de pertencerem a setores das chamadas elites locais, o
fato de terem chegado nos primeiros tempos da história da cidade.
(LEME, 2013, p.146)
A comemoração está relacionada ao “dia do pioneiro”, comemorado no dia 21
de agosto, em homenagem a chegada da primeira caravana da Companhia de Terras
Norte do Paraná (CTNP) 311. Em suma, a comemoração também está relacionada à

311
Segundo Leme (2013), em 1929, a CTNP enviou uma caravana com o intuito de demarcar terras, lotes
e levantar as primeiras edificações. A companhia colonizadora também investiu em propagandas,
retratando Londrina como a terra prometida, para atrair compradores de diversas partes do Brasil e do
mundo. É importando observar que a CTNP foi responsável pela colonização de várias outras cidades do
norte do Paraná, mas instalou sua sede em Londrina, fator que justificou seu rápido crescimento
populacional e econômico.

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história oficial da cidade e aos mitos fundadores, que trazem a elite pioneira e seu
triunfo econômico como marcos histórico.
A distribuição do livro ocorreu de forma gratuita, destinada a pioneiros,
bibliotecas de escolas das redes municipais e estaduais, bibliotecas públicas e de escolas
de nível superior (BONI, 2013), uma vez que o livro é composto por uma linguagem
didática, portanto acessível à sociedade e, também, é fruto de projetos de Iniciação
Científica do curso de Comunicação Social e Habilitação em Jornalismo da
Universidade Estadual de Londrina.
As questões implícitas, então, se relacionam com os conceitos de história e
memória, uma vez que Jacques Le Goff (2003) advoga a história enquanto a forma
científica da memória coletiva e um objeto de poder, uma vez que com o passar do
tempo o que se perpetua não é o que viveu no passado, mas sim seleções das forças que
operam no desenvolvimento do mundo. Logo, a temática do livro em questão é fruto da
seleção de memórias que dizem respeito à noção de história defendida pelos autores, a
qual interpreta e rememora parte do passado de Londrina.
Michael Pollak também aborda o mesmo assunto quando diz que não há como se
registrar tudo, pois a memória coletiva “constitui um objeto de disputa importante, e são
comuns os conflitos para determinar que datas e que acontecimentos vão ser gravados
na memória de um povo” (POLLAK, 1992, p.4). Em outras palavras, tanto a história
quanto a memória são peças de disputas que definem o que deve ser lembrado por uma
nação ou, no caso, por uma cidade.
O conhecimento histórico produzido por não historiadores
A obra “Memórias fotográficas: a fotografia e fragmentos da história de
Londrina” (2013) traz questões históricas acerca da cidade, por meio de fotografias e
textos explicativos. A organização das imagens se pautou em capítulos que, segundo os
autores, visaram uma lógica de ordem cronológica, situando as imagens histórica e
geograficamente.
Inicialmente o livro descreve, por meio do diálogo com as fotografias,
residências de pioneiros que se destacaram durante o processo de colonização como, por
exemplo, o casarão de madeira, localizado na área central, do médico alemão Kurt Peter
Müller, o qual, atraído pela propaganda da Companhia de Terra Norte do Paraná
(CTNP) e contratado pela mesma, atuou no primeiro hospital da cidade, construído pela

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companhia colonizadora. Outro casarão selecionado pertenceu a David Dequêch, um


imigrante libanês que ganhou destaque no comércio da cidade, chegando a ser um dos
fundadores da Associação Comercial de Londrina.
O segundo capítulo se pauta em estabelecimentos comerciais e serviços que
variam entre hotéis, farmácias e variados comércios, localizados, em sua maioria, na
região central da cidade. O próximo capítulo, intitulado “Estabelecimentos industriais e
serviços automotivos”, destaca estabelecimentos e sobrenomes como a “Serraria
Mortari” e a “Typographia Oliveira”, seguido de “Serviços essenciais da esfera
pública”, trazendo fotografias do aeroporto de Londrina e do Hospital da CTNP, por
exemplo.
Acerca da infraestrutura e das escolas londrinenses, o livro aborda imagens da
construção da segunda Estação Ferroviária de Londrina, da Escola Japonesa, do Grupo
Escolar Hugo Simas, dentre outros locais. O capítulo que trata de logradouros e praças
se restringiu, mais uma vez, ao centro, com fotografias da Avenida Paraná, a Praça
Rocha Pombo, dentre outros. A obra discorre também acerca de marcos e eventos
considerados importantes, como a CTNP, a Primeira Missa Campal e o Cine Teatro
Ouro Verde.
Por fim, o livro traz homenagens ao fotografo José Juliani e ao pioneiro
Omeletino Benatto. O primeiro foi, segundo os autores, um dos fotógrafos contratados
pela CTNP, responsável por registrar as benfeitorias e os eventos que o
empreendimento colonizador promovia. Atualmente, as fotografias de Juliani
contribuem para a percepção das transformações paisagísticas referentes às duas
primeiras décadas de Londrina. Logo, boa parte das fotografias presentes no livro, são
produções de Juliani, colecionadas por Benatto. O segundo, de descendência italiana,
chegou a Londrina em 1933 com sua família, ainda criança. A busca por melhores
condições de vida no norte do Paraná foi o principal motivo para a vinda. Por meio do
comércio de areia, o pai de Benatto “ganhou bastante dinheiro, não para ficar rico, mas
o suficiente para cuidar muito bem da família” 312.
Sob as questões apresentadas, é válido observar que no texto de apresentação os
autores dizem sobre seus objetivos, os quais variam entre “recuperar dados históricos e
disponibilizá-los à sociedade para que esta possa conhecer, escrever ou reescrever a

312
Idem, p.210.

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história de londrina” e colaborar com a construção da história de Londrina “como forma


de homenagem e agradecimento aos agentes construtores e transformadores dessa
história” 313.
Dessa forma, percebemos que os autores fornecem a sociedade fontes para a
interpretação do passado e, ao homenagear e agradecer determinados sujeitos históricos
– com ênfase em pioneiros proeminentes –, que contribuíram para com a construção da
história do município, dialogam de forma implícita com a história oficial de Londrina a
qual, como referencia Edson José Holtz Leme, destaca o pioneiro “que enfrentou as
adversidades dos primeiros anos de colonização e que triunfou, social e
economicamente” (LEME, 2013, p.91).
Entretanto, é importante lembrar que os autores da obra, abordaram a temática
da transformação da paisagem e se preocuparam, ao longo dos textos, em informar a
localização e as respectivas mudanças do espaço. À vista disso, cabe citar o historiador
Richard Gonçalves André (2014). De acordo com o autor, a partir das décadas de 1960
e 1970 novas modalidades historiográficas apareceram e, entre elas, a história
ambiental. Além dos historiadores, a sociedade também desenvolveu maneiras de
interagir com o mundo natural, convertendo o ambiente em paisagens humanas “como
extensões agrícolas, pontes, ferrovias e espaços urbanos” (ANDRÉ, 2014, p.22).
Enfim, analisar as questões históricas selecionadas pelos autores traz à superfície
as influências da história tradicional da cidade, com ênfase em sujeitos e lugares
cêntricos. Contudo, a temática da transformação da paisagem, por meio da fotografia,
presente também na história ambiental, indica o compasso da obra com as
transformações que o campo historiográfico sofreu a partir dos anos de 1960 e 1970.
Conforme referência Gilmar Arruda e Wander de Lara Proença (2013), essas mudanças
inauguraram práticas e possibilitaram rupturas e redefinições acerca do trabalho do
historiador – antes, limitado a fontes escritas, a história das elites políticas, dentre outras
insuficiências. De acordo com os autores, as transformações variaram entre a inserção
de novos objetos, territórios, métodos, aportes teóricos, além da diversificação de fontes
e a ligação com outras disciplinas.
A respeito do conhecimento histórico produzido por não historiadores e a
recepção do leitor para com nosso objeto de análise, utilizaremos o conceito de

313
Idem, p.19.

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apropriação, de Roger Chartier (1988), e as perspectivas de Maria Elizabeth Chaves de


Mello (2008). Logo, em sua releitura de “Escutar mortos com os olhos”, de Chartier,
Mello apresenta valiosas ideias concernentes à discutida “expropriação do passado dos
historiadores”. Segundo aquela autora:
[...] o historiador tem consciência de que a História não mais detém o
monopólio do passado [...] as seduções da ficção são suas
concorrentes. Ele [Chartier] cita Shakespeare que, em 1623, compôs
dez peças históricas, reunidas numa rubrica própria, histories. Essas
peças diziam muito mais da Inglaterra do que a história “verdadeira”,
contada pelos cronistas da época. Em 1690, Furetière aproxima, em
seu dicionário, a história verídica, da ficção verossímil, definindo
história como a narração das coisas ou das ações como elas se
passaram, ou como poderiam ter se passado. Por outro lado, as
reivindicações da memória, individual ou coletiva, também abalaram
as pretensões do saber histórico. Na verdade, é marcando sua
diferença em relação a discursos poderosos, tanto ficcionais quanto
memoriais, que a história é capaz de assumir sua função: a de tornar
inteligíveis as heranças acumuladas e as descontinuidades fundadoras
que fazem de nós o que somos. (2008, pp. 156-157).
Para ser mais claro, não mais o conhecimento do passado encontra-se
exclusivamente nas mãos dos historiadores. Exemplos disso são as ficções históricas,
como é o caso de algumas das peças de Shakespeare que, comparadas às narrativas de
cronistas contemporâneos, segundo Mello, diziam mais da Inglaterra do que a história
propriamente dita; ou mesmo a obra produzida por Boni, Unfried e Benatto, onde a
percepção de questões históricas presentes naquelas obras dar-se-á, por parte dos
leitores, como o afirma Chartier (1988), não de forma passiva e caracterizada por mera
absorção, mas de maneira ativa onde o leitor, a partir de seus subjetivismos, apropriar-
se-á daquilo que leu, (re)significando e interpretando de acordo com os seus
conhecimentos prévios.
Grosso modo, o leigo pode encontrar naquelas obras uma forma fluida e
agradável de adquirir conhecimento histórico enquanto o historiador acadêmico,
familiarizado as questões teórico-metodológicas de seu campo do conhecimento,
provavelmente questionar-se-á acerca da ausência de outras questões.
Acerca dos conhecimentos prévios, que influenciam na apropriação do objeto,
no caso, o conhecimento histórico da obra, Lana Mara de Castro Siman (2004) advoga
que a apropriação do conhecimento depende da relação entre sujeito e objeto, porém
esta só acontece se for mediada pela linguagem, signos e ferramentas. Dessa forma,
acrescenta-se ao conhecimento histórico a experiência do leitor que contribui para a

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formulação de raciocínios ligados a história. Como caracteriza Siman, é preciso levar


em conta as representações e os modos de pensar influenciados pelo ambiente familiar,
social, mídia e até mesmo pela história – os quais geram visões estereotipadas.
Dessa forma, é válido, mais uma vez, relembrar o vínculo da obra em análise
com a história oficial de Londrina e, consequentemente, a influência que isso exerce nos
conhecimentos prévios do leitor. O embasamento histórico pautados principalmente na
elite pioneira da cidade está presente, também, nos registros oficiais do município, onde
“nota-se a tendência de preservar a memória dos grupos hegemônicos” (DINIZ;
BORGHI, 2010, p.4).
Segundo Michael Pollak, existe acontecimentos regionais que traumatizaram e
“marcaram tanto uma região ou um grupo, que sua memória pode ser transmitida ao
longo dos séculos com altíssimo grau de identificação” (POLLAK, 1992, p.2). Logo, a
visão unilateral da história disseminada em diversos locais da cidade pode influenciar os
conhecimentos prévios e a apropriação da leitura, gerando a identificação do leitor.
Considerações finais
A análise interna da obra e suas influências externas permitiram a identificação
de questões históricas associadas à história tradicional de Londrina e, também,
indagações acerca da transformação da paisagem do município. Ademais, a pesquisa
viabilizou detectar a norma da escrita do tempo presente no objeto de análise, o qual não
foi produzido por profissionais da história.
Logo, segundo Jacques Le Goff, o conceito de história vai além da produção
histórica profissional, pois incorpora “todo um conjunto de fenômenos que constituem a
cultura histórica, ou melhor, a mentalidade histórica de uma época” (1994, p.48). Dessa
maneira, percebe-se que a cultura histórica não depende, especificamente, da história
científica, pois pode ser definida, de acordo com Elio Chaves Flores, como “os
enraizamentos do pensar historicamente que estão aquém e além do campo da
historiografia e do cânone historiográfico” (2007, p.95). Trata-se, portanto
[...] da intersecção entre a história científica, habilitada no mundo dos
profissionais como historiografia, dado que se trata de um saber
profissionalmente adquirido, e a história sem historiadores, feita,
apropriada e difundida por uma plêiade de intelectuais, ativistas,
editores, cineastas, documentaristas, produtores culturais,

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memorialistas e artistas que disponibilizam um saber histórico difuso


através de suportes impressos, audiovisuais e orais 314.
Em linhas gerais, o livro de Boni, Unfried e Benatto, através da problematização
da seleção das imagens, pode ser trabalhado como fruto de intencionalidades envolvidas
pela história oficial de Londrina, possibilitando a desconstrução de visões
estereotipadas, ou como meio de perceber as transformações da paisagem da cidade.

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314
Ibidem.

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NOVOS TEMAS E ABORDAGENS NAS AULAS DE HISTÓRIA


Rebecca Carolline Moraes da Silva (Graduação em História / UEL)
PALAVRAS-CHAVE: LEI 10.639/2003; ENSINO DE HISTÓRIA; MULTICULTURALISMO.

Segundo Candau (2002), a escola é o espaço da formação de identidades, no


plural, pois não é possível formar uma identidade única devido à globalização da
sociedade. Ao mesmo tempo, o currículo, conforme a autora, é um campo de batalhas
entre Estado e professor, porque tira autonomia deste face aos interesses daquele. Além
do currículo, o professor também está sumetido a várias leis que tratam do ensino e, no
fazer-se professor, tem que sempre se atualizar e identificar a melhor forma de cumprir
as leis e o currículo, não ficando somente no livro didático, mas trabalhando com os
diversos temas transversais.
A Lei 10.639/2003 fez emergir o dever de memória, ou seja, a garantia do Estado
de que certos acontecimentos nunca serão esquecidos, principalmente em relação aos
grupos que tem memória de sofrimentos, como judeus e afrodescendentes. No entanto,
não foi a primeira lei que visava promover a igualdade entre os cidadãos no Brasil. Em
1951 a ‘Lei Afonso Arinos’ declara que o racismo passa a ser considerado crime e em
1958 a ‘Lei Caó’ amplia a Lei Afonso Arinos para crimes de raça/cor, sexo e estado
civil; na Constituição Federal de 1988, considerada a “constituição cidadã”, há vários
artigos neste sentido como:
“Art. 68 das Disposições Transitórias: Aos remanescentes das comunidades
dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade
definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos;
Art. 85. O poder público reformulará, em todos os níveis, o ensino da história
do Brasil, com o objetivo de contemplar com igualdade a contribuição das
diferentes etnias para a formação multicultural e pluriétnica do povo
brasileiro;
Art.215 - § 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares,
indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo
civilizatório nacional.
Art. 216 - Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza
material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de
referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores
da sociedade brasileira; § 5º - Ficam tombados todos os documentos e os
sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos;
Art.242. O ensino de história do Brasil levará em conta as contribuições das
diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro”. (BRASIL,
CF/88)

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Nos anos 1990, houve um adensamento de ações políticas por parte do Estado e
da sociedade. Foi quando Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional incluiu
questões relativas à diversidade cultural e a pluralidade étnica e quando surgiram os
Parâmetros Curriculares Nacionais trazendo para o debate temas como: Meio Ambiente,
Sexualidade e Pluralidade Cultural. No ano de 2002 o governo lançou um programa de
ações afirmativas que teve seu pontapé inicial com a Lei 10.639 de 2003.
A Lei 10.639/2003 surgiu para ratificar essa necessidade de se trabalhar com o
pluralismo cultural. Ela denota a obrigatoriedade de se trabalhar o ensino de História da
África e da cultura afrobrasileira na educação básica. A partir desta lei, em 2004 foram
instituídas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-
Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, que, conforme
Tarso Genro (que era o ministro da educação da época e escreveu a apresentação do
MEC para o documento), é fruto do comprometimento com as políticas afirmativas que
o governo federal estava implantando com o “objetivo de corrigir injustiças, eliminar
discriminações e promover a inclusão social e a cidadania para todos no sistema
educacional brasileiro”. Essas ações afirmativas têm o objetivo de criar oportunidades
iguais para as pessoas que são alvo de discriminação, para que se crie um sentimento de
pertencimento ao ambiente (a escola) e essas pessoas tenham a possibilidade de
competir de forma igual por serviços educacionais (como graduação) e por postos no
mercado de trabalho.
Martha Abreu (2005) aborda o desafio que as ‘Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de Histórias da Cultura
Afro-Brasileira e Africana’ trouxeram aos professores e profissionais da área de
História e afirma que os debates levantados visam à educação e à transformação das
relações étnico-raciais, e criam pedagogias de combate ao racismo e às discriminações a
partir de uma valorização da história e cultura dos afro-brasileiros, convocando os
profissionais de história para uma ampla reflexão sobre a história da cultura afro-
brasileira, em suas dimensões de pesquisa e ensino (fundamental, médio ou superior).
Conforme a autora, é necessário, também, o reconhecimento, ou seja, uma valorização
das identidades e dos direitos dos afro-brasileiros, com justiça e igualdade de direitos
sociais, civis, econômicos e culturais, assim como
“a adoção de políticas educacionais e de estratégias pedagógicas que
valorizem a diversidade, visando superar a desigualdade étnico-racial

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presente na educação escolar brasileira, nos diferentes níveis de ensino. O


reconhecimento ainda exigiria o questionamento das visões sobre as relações
raciais no Brasil, assim como a valorização e o respeito à história da
resistência negra e da cultura dos africanos e seus descentes” (ABREU, 2005,
p. 424).

Nilma Gomes (2008) diz que mesmo depois de anos da sanção da lei, ainda
existem resistências por parte das escolas e de instituições vinculadas a elas. Conforme
a autora, isso acontece devido ao mito da democracia racial, que retrata o Brasil como
exemplo de democracia e inclusão racial e cultural. Para superar isso é preciso uma
reflexão profunda que mostre que a questão racial não está vinculada apenas ao negro; a
superação do racismo faz parte da luta pela cidadania. O Brasil é um país multiracial e
pluricultural que não pode pregar a democracia sem considerar a diversidade e o
tratamento desigual historicamente imposto aos grupos sociais.
Há também que se pensar as normativas no sentido de sintetizá-las, não somente
absorvê-las. Como por exemplo, Abreu (2005) critica as Diretrizes por considerar que
nela é afirmado a existência de uma cultura negra e africana e que estas estão em
oposição a um padrão cultural e estético branco e europeu. Para a autora essa visão não
pensa nas identidades culturais como construção e campos de luta historicamente
datados, como a própria utilização dos termos que fazem referência ao conceito raça. Os
processos de troca cultural e hibridização das culturas não são mencionados como
possibilidades reais de trabalho com culturas. Ou seja, para a autora deve-se pensar na
pluralidade nas permancias e também alternâncias dentro da própria cultura e
identidades, que a afro/negra pode ter se misturado com a europeia/branca, por
exemplo. Defende que as trocas culturais devem sobrepor em importância as raízes
culturais, dizendo que "não podemos criar expectativas sobre a existência de culturas
cristalizadas no tempo ou preservadas intactas ao longo de tantas gerações" (ABREU,
2005, p. 426) e que propor a ideia de que existe uma cultura afro-brasileira a partir de
resíduos africanos que permaneceram é uma forma simplista e que despreza a
criatividade e transformação que os escravos e descendentes agregaram. "A diversidade
cultural brasileira e a sua tão propalada pluriculturalidade devem ser pensadas levando-
se em consideração os intercâmbios e as trocas culturais (e não apenas raízes, blocos e
essências culturais)”. (ABREU, 2005, p. 426).
De todas as etnias que compuseram a sociedade brasileira, até hoje as que mais
sofrem preconceito e discriminação são as africanas, mesmo que a miscigenação tenha

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sido uma prática recorrente desde a colonização, de modo que as relações interétnicas
deram origem a um país mestiço. Não houve segregação positivada durante a escravidão
e nem depois da abolição, o que leva ao pensamento de que o racismo no Brasil não tem
a ver com a escravidão, mas sim com a abolição e com a política de embranquecimento.
Conforme Abreu (2005), a identidade negra foi construída historicamente e não
naturalmente.
Conforme Fernandes (2005), muitos autores concordam sobre a diversidade
cultural no Brasil, que não foram só os europeus que influenciaram o desenvolvimento
de uma cultural nacional, mas sim que o sincretismo cultural foi uma via de mão dupla,
entre todas as etnias que formaram o país. A ideia de raça não existe biologicamente,
pois neste ponto todos os seres humanos são muito parecidos. A ideia de raça que
remete à aparência física e à região de origem está na base do preconceito que deu
origem ao racismo. Porém, o autor coloca que as escolas não estão aptas a trabalhar com
esse olhar, pois a matriz europeia é dominante e quando negros e indígenas, por
exemplo, aparecem, são retratados de modo preconceituoso e estereotipado, quando a
necessidade é de se dar visibilidade à diversidade da experiência étnica antes e depois
da diáspora no Brasil, ou seja, ampliar os currículos escolares para a diversidade, como
por exemplo, destacar não apenas o negro em estado de submissão, de escravidão, mas
divulgar a participação dos negros em diferentes setores da sociedade.
“Apesar desse fato incontestável de que somos, em virtude de nossa
formação histórico-social, uma nação multirracial e pluriétnica, de notável
diversidade cultural, a escola brasileira ainda não aprendeu a conviver com
essa realidade e, por conseguinte, não sabe trabalhar com as crianças e jovens
dos estratos sociais mais pobres, constituídos, na sua grande maioria, de
negros e mestiços.” (FERNANDES, 2005, p. 379)

O estereótipo em relação aos negros é muito forte na sociedade brasileira. Na


historiografia os africanos só deixaram de ser tratados como “coisa” na década de 1980,
quando passaram a ser vistos como agentes históricos. No início do século XXI, a
África e os africanos passaram a ser objetos específicos de análise e o oceano Atlântico
passou a ser considerado um espaço geográfico e cultural, por ter permitido intensas
trocas entre os continentes americano, africano e europeu. Usando uma frase de
Chimamanda Adichie em sua conferência ao TED em 2009, pode-se resumir a
necessidade do ensino pluri-cultural na constatação de que “a cultura humana é
resultado de uma longa história de trocas”. Neste sentido, há que se valorizar as

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mudanças e sincretismos nas relações culturais e principalmente incluir modos de ser,


fazer e viver de todas as etnias e seus descendentes no cotidiano, não exclusivamente do
branco. Gomes (2008) lembra que a configuração da diversidade tem contornos
diferentes de acordo com o processo histórico. O caráter universal do discurso de uma
democracia para todos acaba homogeneizando culturas e por isso precisamos ampliar a
noção de democracia. O racismo e a desinformação são obstáculos para a construção de
uma sociedade mais justa.
No entanto, como apontado por Gomes (2008) e já mencionado, há uma grande
dificuldade na implantação destas políticas educacionais nas salas de aula, pois há a
resistência quanto aos temas e também porque os docentes na maioria das vezes não tem
formação sobre esses temas e algumas vezes tem a mesma visão do senso comum,
como, por exemplo, no caso da África: continente repleto de matas, um paraíso da vida
selvagem, os habitantes são todos negros e não se organizam socialmente (vivem em
tribos), há miséria, inexistência de centros urbanos, e quando alguns sabem da
existência de vilas e cidades, imaginam ser locais desprovidos de qualquer infra-
estrutura e desenvolvimento social e cultural, também sabem sobre a miséria da Etiópia
e as mortes por doenças (AIDS, inanição) e sobre o regime de segregação racial na
África do Sul (Apartheid). Essas são as imagens e informações que dominam os meios
de comunicação, além disso, os livros didáticos incorporam a tradição racista e
preconceituosa de estudos sobre o continente africano, de modo que se os professores
não forem atrás das informações, de cursos de formação continuada ou pós-graduação,
não estarão aptos a trabalhar com esses temas de maneira correta ou pelo menos
aceitável.
“Somente o conhecimento da história da África e do negro poderá contribuir
para se desfazer os preconceitos e estereótipos ligados ao segmento afro-
brasileiro, além de contribuir para o resgate da auto-estima de milhares de
crianças e jovens que se vêem marginalizados por uma escola de padrões
eurocêntricos, que nega a pluralidade étnico-cultural de nossa formação.”
(FERNANDES, 2005, p.382)

Gomes (2008) afirma que um maior entendimento das nossas raízes africanas e da
participação do povo negro da construção da sociedade brasileira pode ajudar a
desconstruir mitos, como o da indolência (aversão ao trabalho) do africano ou
afrodescendente escravizado. Trabalhar com a população negra brasileira no presente
também pode ajudar a superar preconceitos arraigados no imaginário social, que tendem

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a tratar a cultura negra e africana como exótica – a questão da folclorização - o que pode
gerar uma visão afirmativa da diversidade étnico racial.
Levando em consideração todo o exposto, o caso dos afrodescendentes e a
necessidade de se trabalhar com essas temáticas em sala de aula de maneira correta
(para que a discriminação e o estereótipo não sejam reforçados), pode-se trabalhar com
a cultura afrobrasileira como tema norteador de todas as disciplinas, que é o conjunto de
manifestações artísticas, religiosas, padrões de comportamento, formas de vestir e se
divertir, hábitos alimentares, relacionamento, educação das crianças, como lidar com a
morte, explicações para origem e sentido da vida, de um determinado grupo social, que
são fruto com contato dos africanos e seus descendentes com as populações locais, ou
seja, são sempre híbridas; como exemplo, pode-se trabalhar com a capoeira ou com o
samba nos seguintes eixos: história dessa herança cultural, impacto social dessas
atividades, a física dos instrumentos utilizados nessas práticas, a arte desenvolvida
nesses meios, entre outras perspectivas.
Pensando de forma exclusiva no ensino de História, desconsiderando a proposta
interdisciplinar e considerando o currículo que o professor tem que cumprir, uma
atividade interessante de se elaborar seria no recorte temático da Revolta dos Malês, no
qual é possível trabalhar o negro africano ou afrodescendente fora da escravidão, como
agente histórico e ligado à cultura muçulmana.
O islã teve um papel ambíguo na lida com a sociedade: por um lado, inspiração de
ideologia e modelo de Estados, geralmente expansionistas, aliado do poder, força
militar; por outro lado, refúgio dos humildes, força espiritual, moral e organizativa que
manteve viva a esperança de libertação de milhares de negros muçulmanos submetidos
à escravidão. Essa segunda tradição islã é que os escrvavizados na Bahia tentaram
reinventar. A definição do termo "malês" tem várias possibilidade segundo alguns
autores. Pode significar "pertencente à região do Máli, na África" segundo Nina
Rodrigues (apud REIS, 2003, p. 115). João José Reis (2003) ainda traz outras duas
possibilidades: na linguagem dos haussás significa professor e dos iorubás,
muçulmanos. O termo malê só aparece na Bahia no século XIX por causa de uma maior
presença de iorubás lá, que impuseram esse nome; mas não se referia à etnia deles
somente, mas a qualquer africano que tivesse adotado o islã. Não há dúvida de que
muitos muçulmanos participaram da rebelião de 1835. Encontraram nos mortos

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amuletos do islã e trechos do alcorão e usavam roupas que só eram usadas pelos adeptos
do islã. Essas características levaram o chefe de polícia escrever no relatório que a
Religião teve papel fundamental na revolta e todos os que escreveram sobre esta não
puderam ignorar o fator religioso.
Velhos malês procuravam malês novos – os documentos da revolta de 1835
revelam grande proselitismo por parte dos muçulmanos e conversão ao islã nos anos
1830. O islã se realizava em vários níveis de aprofundamento diferentes; eram comuns
os amuletos ou talismãs malês, eram objetos de uso obrigatório para os muçulmanos e
não-muçulmanos devido à reputação de possuírem forte poder protetor. Os negros
baianos consideravam os malês conhecedores de magia e feitiçaria, os brancos achavam
os amuletos parecidos com os escapulários católicos contendo orações. Esses amuletos
foram um forte meio de propaganda do islã na Bahia. Como os negros escravizados
geralmente só conheciam a tradição oral, a escrita dos malês era muito atrativa para
eles. Os amuletos geralmente eram constituídos por um papel no qual estava escrito
uma parte do alcorão ou rezas fortes, também sendo comum encontrar desenhos
cabalísticos. O papel era dobrado sob ritual “mágico” misturado a outras substâncias
que reafirmavam esse caráter de magia e guardado dentro de um tipo de bolsinha de
couro toda costurada, para proteger as palavras e os outros elementos protetores. A
magia desses textos e desenhos tinha fins protetores, mas os malês presos em 1835
raramente falavam sobre ela e quando falavam não diziam sobre sua relação com a
revolta, falavam somente do seu poder no dia-a-dia, por exemplo proteção durante a
viagem de um mascate. Além dessa proteção do dia-a-dia, os amuletos revelam também
um sincretismo religioso entre os africanos: eles ajudariam a controlar os astrais incertos
do mundo dos espíritos.
Com este tema e apoio do texto de João José Reis (2003) é possível abordar a
presença africana e afrodescendente na Revolta dos Malês, fora do cativeiro, levando
em consideração o cotidiano do negro escravizado na década de 1830.
Em conclusão e dialogando com Fernandes (2005), o multiculturalismo na escola
tem que ser norte para os professores em geral, não somente para o professor de
História, valorizando as diferenças socioculturais. Os silêncios nos currículos, tanto na
questão das culturas quanto nas diferenças regionais, só contribuem para o preconceito e
o fortalecimento dos estereótipos, que nada ajudam na construção de uma sociedade

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democrática; cabe aos professores driblarem esses silenciamentos e, a partir da sua


autonomia, levar para sala de aula novas possibilidades e difundir o conhecimento da
nossa diversidade cultural e de nossa pluralidade étnica. Conforme Gomes (2008),
descentrar os impactos do racismo na construção da identidade dos negros e incluir
como esse fenômeno afeta essas mesmas dimensões de outros grupos étnico-raciais é
um debate desencadeado pela criação da lei. Mas isso exige de nós um aprofundamento
teórico, a superação de preconceitos e uma visão da identidade como construção social
conflituosa. Conforme Abreu (2005), uma possibilidade seja a de focar nossa “atenção
criativa para a diversidade e não para a homogeneidade da experiência negra” (ABREU,
2005, p. 428). Somente desta forma a escola conseguirá abranger a pluralidade cultural
existente na sociedade brasileira e formar cidadãos conscientes de seu papel como
agentes históricos e de transformação social.

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