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Luís Nuno Rodrigues 1

A Revolução Americana
(1763-1787)

Comunicação apresentada ao XII Curso de Verão do Instituto de


História Contemporânea da FCSH da Universidade Nova de Lisboa,
«As Revoluções Contemporâneas», Lisboa, Setembro de 2002.

Introdução

A Revolução norte-americana do final do século XVIII tem sido um dos

eventos históricos que mais interpretações e leituras tem suscitado. Os

acontecimentos que acabaram por conduzir à declaração de independência

dos Estados Unidos da América, em 1776, e à elaboração da sua Constituição,

em 1787, têm sido alvo de entendimentos diversos, desde as interpretações

de cariz económico e social até às que procuram traçar as suas origens

ideológicas e salientar o carácter "revolucionário" da "constelação" de ideias

que determinou o rumo dos acontecimentos nas colónias britânicas da costa

leste do continente norte-americano.

Neste texto adopta-se uma perspectiva essencialmente narrativa do

fenómeno, com o objectivo de reconstituir o filme cronológico dos

acontecimentos e de salientar os momentos fundamentais ao longo do

processo. Simultaneamente, procura-se proceder ao necessário

enquadramento internacional dos acontecimentos relatados entrando, por

esta via, no campo da história diplomática e das relações internacionais.

Num primeiro momento, a que se chamou "Resistência e Revolta", dar-se-á

conta de uma questão essencial que importa entender para poder apreender a

1
Departamento de História e CEHCP do ISCTE
Revolução Americana em todo o seu significado: é que a Revolução Americana

foi, na sua origem, um movimento de resistência e de revolta contra o domínio

britânico, mais concretamente contra a forma como esse mesmo domínio foi

exercido nas colónias norte-americanas no período que se seguiu à Guerra dos

Sete Anos, terminada em 1763. Num segundo momento, estará em foco a

guerra da independência das colónias norte-americanas, iniciada em 1775, não

tanto para salientar os seus aspectos militares, mas os seus aspectos

diplomáticos e sobretudo o modo como os resultados finais deste conflito

proporcionaram à nova nação tornada independente a posse de uma extensão

territorial muito além da que tinha sido conquistada no terreno. Por fim, será

abordada outra das facetas mais "revolucionárias" de todo este processo que

ficou conhecido como a Revolução Americana: a construção da nova nação e

em particular do seu edifício constitucional.

Ou seja, na impossibilidade de proceder aqui a uma "história total" da

Revolução Americana, adopta-se a perspectiva de que esta foi, primeiro que

tudo, um processo de emancipação política ou de auto-determinação em

relação ao domínio colonial britânico; foi, depois, um evento militar, uma

guerra, cuja dimensão, quer militar, quer diplomática, urge não desprezar,

uma vez que, como se verá, veio a assumir uma feição decisiva em momentos

determinantes deste processo; foi, por fim, uma verdadeira revolução política

que implantou um novo tipo de governo e de modelo político, consubstanciado

na Constituição de 1787.

1. Resistência e Revolta

Na sua origem, a Revolução Americana foi, como se referiu atrás, um

movimento de resistência e de revolta contra o domínio britânico, mais

concretamente contra a forma como esse mesmo domínio foi exercido nas

colónias norte-americanas no período que se seguiu à Guerra dos Sete Anos e

ao triunfo da Inglaterra sobre a França, cuja presença no continente

americano se tornou então praticamente inexistente. A França foi obrigada,

pelo Tratado de Paris de 1763, a ceder vastas porções dos territórios que

controlava nesse continente à Inglaterra – nomeadamente o Canadá e toda a

2
região do vale do Rio Ohio – que se torna assim a potência dominante na

América do Norte, adquirindo inclusivamente a Florida, que anteriormente

pertencia à Espanha2. Espanha que, em compensação, acabou também por

receber vastos territórios outrora na posse dos franceses – a chamada

Louisiana. Por conseguinte, a Inglaterra tornara-se a potência europeia com

domínio incontestável no continente norte-americano e constituira-se no

"maior e mais rico império desde a queda de Roma", estendendo-se desde a

Índia até ao Rio Mississippi3.

Em grande parte como consequência do resultado da Guerra dos Sete

Anos, ocorreu na faixa oriental do continente norte-americano, onde os

colonos britânicos se iam instalando, um triplo fenómeno que é necessário

salientar: crescimento demográfico, expansão territorial e desenvolvimento

económico. Eram realidades que se podiam já verificar no período anterior à

Guerra dos Sete Anos mas que, a partir de 1763, ganham nova acuidade.

Em termos demográficos, note-se que os colonos norte-americanos se

multiplicavam nesta altura muito mais rapidamente do que qualquer outro povo

no hemisfério ocidental. Entre 1750 e 1770 os habitantes das colónias

britânicas duplicaram, de um para dois milhões, tornando-se uma componente

do império britânico cada vez mais importante. Para as colónias britânicas na

América emigravam cada vez mais súbditos de Sua Magestade. A emigração

de protestantes irlandeses e escoceses, que tinha começado no início do

século, aumentou muito significativamente após a guerra dos sete anos. Só

entre 1764 e 1776 calcula-se que 125 mil pessoas terão partido das ilhas

britânicas para as colónias americanas. Assim, no início do século XVIII, a

população americana representava apenas um vigésimo da população britânica

e irlandesa tomadas em conjunto, enquanto que, em 1770, representava já um

quinto. Colonos britânicos como Benjamin Franklin previam já que, mais tarde

ou mais cedo, a América acabaria por tornar-se no próprio centro do império

britânico4.

2
"The definitive Treaty of Peace and Friendship between his Britannick Majesty, the Most
Christian King, and the King of Spain. Concluded at Paris the 10th day of February, 1763. To
which the King of Portugal acceded on the same day", em
http://www.yale.edu/lawweb/avalon/paris763.htm.
3
Gordon Wood, The American Revolution. A History, Modern Library Edition, New York, 2002, p.
4.
4
Gordon Wood, The American Revolution. A History, p. 6.

3
Por outro lado, a vitória sobre os franceses na Guerra dos Sete Anos

permitia agora uma movimentação muito mais acentuada desta população

crescente, alargando as possibilidades de expansão territorial em direcção a

Oeste. Durante mais de um século, os colonos britânicos tinham estado

confinados a uma estreita faixa de terreno ao longo da costa atlântica do

continente americano. Agora, pela primeira vez, os territórios a Oeste das

Montanhas Alleghenies até ao Rio Mississipi, pertença da coroa britânica,

abriam-se à exploração e ocupação por parte de colonos, já sem a presença

francesa e também com uma atitude mais cautelosa por parte das tribos

Índias. A título de exemplo: no Estado da Pennsylvania foram criadas 29

novas localidades entre 1756 e 1765, mais nestes anos do que em toda a

história da colónia. Um pouco por toda a parte, novas fronteiras pareciam

abrir-se aos colonos norte-americanos. Caçadores e exploradores ganharam

fama nesta época, como Daniel Boone que começou a abrir caminhos e trilhos

através dos montes apalaches em direcção ao Oeste, rapidamente seguidos

por colonos que se foram instalando em zonas anteriormente não ocupadas5.

Tudo isto encontrou correspondência numa notável expansão da economia

anglo-americana registada na segunda metade do século XVIII. Em meados

deste século, na Grã-Bretanha, as origens daquilo que se tornaria em breve a

revolução industrial britânica eram já visíveis. As exportações, importações e

a produção industrial estavam em rápido crescimento e os americanos

estavam profundamente envolvidos neste processo, prosperando também, na

década de 1760, como nunca antes se tinha registado. Desde 1745, aliás, que

o comércio colonial com a América tinha conhecido grande crescimento,

tornando-se uma parte importante das economias inglesa e escocesa. Quase

metade dos navios mercantes ingleses estavam envolvidos no comércio

americano que absorvia já 25% de todas as exportações inglesas. De acordo

com dados citados pelo historiador Gordon Wood, entre 1747 a 1765, o valor

das exportações coloniais para a Grã-Bretanha também duplicou de cerca de

700 mil libras para 1 milhão e meio, enquanto que as importações aumentaram

de 900 mil para mais de dois milhões de libras6. Os americanos exportavam

para a Grã-Bretanha quantidades crescentes de cereais, cuja procura no

5
Gordon Wood, The American Revolution. A History, pp. 7-8.
6
Gordon Wood, The American Revolution. A History, p. 13.

4
velho continente significava um aumento de preços para os exportadores

americanos. Constatando o crescimento da procura e dos preços das

exportações americanas, mais e mais proprietários americanos começaram a

apostar nos produtos agrícolas para os mercados europeus. Na década de

1760, cidades comerciais relativamente distantes da costa, tais como

Staunton, na Vírginia e Salisbury, na Carolina do Norte, enviavam já grandes

quantidades de tabaco e de cereais em direcção a Leste para portos como os

de Baltimore, Norfolk e de Alexandria cuja dimensão se multiplicava quase

diariamente. Este aumento dos preços das exportações significou uma

melhoria dos níveis de vida de mais americanos. Não eram apenas os grandes

plantadores do sul e os grandes mercadores das cidades que tinham

enriquecido. Cada vez mais americanos compravam agora produtos

tradicionalmente considerados de luxo e tradicionalmente adquiridos apenas

pela gentry ou pequena aristocracia local, e que agora cada vez mais se

tornavam produtos utilitários e de consumo generalizado, desde o linho

irlandês até às louças de cozinha. Alguns historiadores chegaram mesmo a

falar numa verdadeira "revolução do consumo" na América do século XVIII7.

Apesar de dezanove em cada vinte americanos se continuarem a dedicar à

agricultura, o aumento dos níveis de consumo nas colónias tinha já produzido

um significativo surto das actividades manufactureiras, primeiramente

sobretudo têxteis e sapatos. Ao mesmo tempo, os transportes e as

comunicações melhoraram muito rapidamente, à medida que as estradas

foram sendo construídas e que se estabeleceram horários regulares para as

carruagens e para os barcos. Em 1750, o Post Office, sob a liderança de

Benjamin Franklin, instituiu correio semanal entre Filadélfia e Boston,

reduzindo para metade o tempo gasto nas entregas. Apesar de tudo, porém, a

maioria dos americanos continuava a preferir produtos britânicos e a balança

comercial entre os dois lados do Atlântico continuava a ser desfavorável aos

americanos. Tanto mais que ingleses e escoceses continuavam também a

investir quantidades apreciáveis de capital em solo americano. Em 1760, as

dívidas coloniais para com a Grã-Bretanha totalizavam já 2 milhões de libras;

em 1772 tinham saltado para 4 milhões8.

7
Gordon Wood, The American Revolution. A History, p. 14.
8
Gordon Wood, The American Revolution. A History, pp. 14-15.

5
Por tudo isto, após a Paz de Paris de 1763, que pôs termo a Guerra dos

Sete Anos, a questão da reforma do império britânico na América do Norte

colocou-se com uma acuidade inusitada. Um dos problemas mais prementes

era o da reorganização do território que tinha sido conquistado à França e à

Espanha na sequência da Guerra. Era necessário estabelecer novas

autoridades, delimitar fronteiras, regular o comércio com as tribos nativas e,

sobretudo, fazer com que as disputas entre estas e os colonizadores

americanos não se transformassem numa verdadeira guerra.

Todas estas tarefas se afiguravam extremamente dispendiosas. No final

da Guerra dos Sete Anos, a dívida de guerra da coroa britânica era de 137

milhões de libras, com um juro anual de 5 milhões, uma quantia imensa quando

comparada com o orçamento médio em tempo de paz de 8 milhões de libras.

Lord Jeffrey Amherst, o comandante das forças britânicas na América,

julgava ser ainda necessária uma força permanente de 10 mil soldados para

conseguir manter a paz com os franceses e os Índios, bem como para lidar

com as populações locais, cada vez mais desafiantes das autoridades coloniais.

Por conseguinte, nesta década de 1760, o governo britânico acabou por tomar

uma decisão crucial que foi a da manutenção de um exército britânico

permanente em solo americano. Este exército em tempo de paz tinha uma

dimensão duas vezes maior daquele que existira nas colónias antes da Guerra

dos Sete Anos e os custos da sua manutenção ascenderam rapidamente a

mais de 300 mil libras por ano9.

Na sua busca de recursos financeiros para fazer face a estas novas

despesas, a Coroa britânica deparou-se com dificuldades. Na Grã-Bretanha a

população recusava-se a pagar mais impostos e a chamada "cider tax" de 1763

só tinha sido posta em vigor, na Inglaterra, com recurso à força militar. Por

outro lado, o regresso dos soldados britânicos à sua terra-mãe fazia com que

abundassem as histórias àcerca da riqueza e da prosperidade que os

americanos usufruíam no pós-guerra. Parecia, por conseguinte, óbvio, aos

olhos dos governantes britânicos, procurar novas fontes de rendimento nas

colónias para fazer face a estas novas despesas, o que implicava profundas

alterações no sistema imperial britânico.

9
Gordon Wood, The American Revolution. A History, pp. 17-18.

6
As reformas iniciaram-se com a "Proclamation of 1763". Esta

determinação régia criava três novas instâncias governamentais na América –

Florida, Florida Ocidental e Quebec – e alargava a província da Nova Escócia.

Transformava também a vasta área para além dos Montes Apalaches numa

reserva Índia, proíbindo os colonos de comprar terras índias. O objectivo

essencial era o de manter a paz no Oeste e canalizar a migração da população

para norte e para sul. Assim, as populações estariam melhor integradas no

sistema britânico e no sistema colonial e poderiam funcionar como

verdadeiros "buffers" em relação aos espanhóis na Louisiana e aos franceses

no Canadá10.

No entanto, os acontecimentos acabaram por pôr em causa estes planos

da coroa britânica. A revolta dos Índios liderados por Pontiac em 1763, no

vale do Ohio, fez com que a Proclamação de 1763 fosse implementada de

forma apressada. A linha de demarcação ao longo dos Apalaches foi traçada

com pouco rigor e alguns dos colonos viram-se, de um dia para o outro, a viver

em reservas Índias. As novas regulamentações do comércio com as tribos

nativas eram também confusas e na prática foram ignoradas. Muitos

americanos, interessados nas terras a Oeste, pressionavam o governo

britânico para que este entabulasse conversações com os Índios a fim de

possibilitar a expansão territorial para Ocidente. Os protestos aumentaram

ainda mais quando, alguns anos depois, o governo britânico promulgou o

"Quebec Act", de 1774. Esta lei transferia para a província do Quebec o

território compreendido entre os Rios Ohio e Mississippi, bem como o

controlo do comércio com os Índios na região. Ao mesmo tempo, autorizava os

habitantes franceses do Quebec a manterem a religião católica e a regerem-

se segundo as leis francesas11. A desconfiança entre os americanos aumentou:

especuladores imobiliários, colonizadores, comerciantes viram os seus

interesses feridos por esta nova medida; a alteração das fronteiras entre as

várias províncias coloniais também gerou descontentamento e incertezas; os

10
"The Royal Proclamation – October 7, 1763", em
http://www.yale.edu/lawweb/avalon/proc1763.htm. Cf. também Gordon Wood, The American
Revolution. A History, pp. 21-22.
11
"The Quebec Act, 1774 (Extract)", em
http://www.geocities.com/Yosemite/Rapids/3330/constitution/1774qact.htm.

7
protestantes americanos recearam igualmente que os britânicos apostassem

na criação e desenvolvimento de uma província católica a Noroeste12.

As modificações que os britânicos procuraram introduzir na estrutura do

comércio colonial revelaram-se igualmente prejudiciais para os interesses dos

colonos americanos. O "Sugar Act" de 1764 estabelecia uma série de

regulamentações destinadas a um controlo mais efectivo do comércio colonial

por parte das autoridades britânicas, conferindo novos poderes aos

funcionários aduaneiros e autorizando a marinha britânica a inspeccionar os

navios americanos. À tradicional lista de produtos coloniais que tinham de ser

exportados directamente para a Grã-Bretanha, como o tabaco e o açúcar,

foram acrescentados o ferro, a madeira e outros. Finalmente, os

comerciantes e navegadores americanos viram-se enredados numa complexa

teia burocrática de autorizações de navegação, licenças de comércio, etc. O

mais gravoso era, porém, a imposição de novos direitos alfandegários que

aumentavam em muito as despesas dos importadores norte-americanos. O

Sugar Act impôs novos tributos sobre o açúcar, o café, as roupas e o vinho

importados pelas colónias13.

Depois, em 1765, o governo britânico promulgou o "Stamp Act", impondo o

uso do papel selado e novos impostos sobre os jornais americanos bem como

sobre o correio14. Em 1766, através do "Declaratory Act", o parlamento

britânico reafirmou o seu poder e a sua autoridade sobre os colónias

americanas em "todas as matérias"15. No ano seguinte, foi a vez dos

"Townshend Acts", um conjunto de três leis francamente desagradáveis para

as colónias americanas. Uma delas obrigava as autoridades coloniais de Nova

Iorque a não desenvolverem qualquer tipo de actividade comercial até

abastecerem os soldados britânicos estacionados naquela colónia. Outra

criava um corpo de oficias britânicos no porto de Boston para supervisionar a

aplicação e o cumprimento das leis britânicas. Finalmente uma terceira lei

12
Gordon Wood, The American Revolution. A History, pp. 22-23.
13
"Sugar Act, 1764 (excerpts)", em
http://courses.smsu.edu/ftm922f/Documents/SugarAct.htm. Cf. também Gordon Wood, The
American Revolution. A History, p. 23.
14
"The Stamp Act, British Parliament – 1765", em
http://ahp.gatech.edu/stamp_act_bp_1765.html.
15
"The Declaratory Act, March 18, 1766", em http://www.constitution.org/bcp/decl_act.htm.

8
criava novos impostos sobre produtos importados pelas colónias,

nomeadamente vidro, chumbo, tinta, papel, chá16;

Em suma, as colónias norte-americanas estavam agora sujeitas a uma

ocupação militar permanente, a mais impostos e a limitações na sua liberdade

de comércio e também na sua expansão territorial. Foi neste contexto que se

iniciou o movimento de resistência e de revolta contra a política britânica. Em

1770 ocorre, em Boston, uma primeira revolta contra os soldados ingleses

estacionados na cidade. Três anos depois a situação tornar-se-ia explosiva,

sobretudo quando o governo britânico decidiu atribuir o monopólio do

comércio de chá na América do Norte à Companhia Inglesa das Índias

Orientais. Os colonos americanos revoltam-se contra este "Tea Act" de 1773,

no movimento que ficou conhecido como a "Boston Tea-Party"17. Colonos

americanos disfarçados de Índios, liderados por Samuel Adams, lançaram ao

mar a carga de três navios ingleses. Os ingleses, por seu turno, responderam

com os "Intolerable Acts" (assim chamados pelos próprios colonos) de 1774.

Isto é, em vez de cederem às pretensões coloniais e negociarem com os

americanos, os britânicos vão: ordenar que as autoridades coloniais e as suas

assembleias legislativas sejam fechadas e que não se processem mais

reuniões até os representantes da Coroa darem permissão; implementar o

"Boston Port Act" que determinou o encerramento daquele porto a qualquer

navio mercante, cortando assim todo o seu comércio marítimo18; proibir o

povo da colónia de Massachusetts de organizar reuniões sem o consentimento

do governador da colónia.

A resposta dos americanos a estas medidas britânicas foi a realização em

Setembro de 1774 do primeiro Congresso Continental, em Filadélfia, com

representantes de todas as colónias americanas, à excepção da Geórgia. O

Congresso aprovou uma declaração dos direitos dos colonos e dos abusos de

que eles tinham vindo a ser vítimas por parte dos ingleses. Esta declaração

anunciava já que apenas os colonos e as suas instâncias governativas locais

tinham poder para estabelecer impostos sobre si próprios e para fazer leis

para o seu próprio governo. Os colonos deviam ter o direito de se reunir

16
Ver, por exemplo, "The T ownshend Revenue Act" de 1767 em
http://www.ushistory.org/declaration/relateds/townshend.htm.
17
"The Tea Act, British Parliament – 1773" em http://ahp.gatech.edu/tea_act_bp_1773.html.
18
"Boston Port Act" em http://www.ushistory.org/declaration/relateds/bpb.htm.

9
pacificamente, o direito de enviar petições e protestos ao governo inglês, o

direito de viverem sem a presença de um exército inglês permanente em

tempo de paz. Mais ainda, os delegados decidiram impor um boicote aos

produtos ingleses e não importar ou consumir bens e produtos ingleses até

que os "Intolerable Acts" fossem revogados19.

2. Guerra e Paz

Os confrontos militares entre as tropas inglesas e os colonos britânicos

iniciaram-se em Abril de 1775, com a batalha de Lexington. Era o começo da

Guerra da Independência contra a Inglaterra que duraria até 1782. Nesse

mesmo ano de 1775 reuniu-se em sessão contínua o segundo Congresso

Continental que, em Abril de 1776, decidiu abrir os portos norte-americanos

ao mundo e a 4 de Julho de 1776 proclamou a independência dos Estados

Unidos da América.

Na Guerra da Independência desempenhou um papel de relevo a política

externa das colónias norte-americanas, nomeadamente as relações

estabelecidas com a França e o apoio recebido deste país europeu. Pode

talvez afirmar-se que os Estados Unidos nunca se teriam tornado

independentes, pelo menos naquele período, se não tivessem recebido o

auxílio dos franceses. Por muito que os lideres coloniais se quisessem isolar

dos acontecimentos no continente europeu – das guerras e das manobras

diplomáticas das cortes europeias – a verdade é que certas decisões tomadas

na Europa acabaram por se revelar fundamentais na obtenção da

independência20.

Os interesses da França na aproximação às colónias britânicas eram

evidentes. Para além da dimensão económica e comercial desta aproximação,

é necessário entendê-la à luz da rivalidade franco-britânica e da humilhante

derrota que os franceses haviam sofrido em 1763. As elites coloniais

americanas estavam bem ao corrente desta rivalidade e procuraram utilizá-la

19
"Declaration and Resolves of the First Continental Congress", em
http://www.yale.edu/lawweb/avalon/resolves.htm.

10
a seu favor a fim de conseguir da França o dinheiro e as armas necessários à

condução da Guerra da Independência. Deste modo, logo em Setembro de

1776, o Congresso decidiu nomear uma comissão especial de enviados a

França com instruções precisas no sentido de obter ajuda militar e financeira

e de sondar o governo francês quanto à possibilidade de estabelecer uma

aliança formal. Os enviados americanos, liderados por Benjamin Franklin,

chegaram a França em Dezembro de 1776, levando consigo uma versão do

chamado "Model Treaty", aprovado pelo Congresso para servir de modelo não

só para a assinatura de um tratado com os franceses, mas também para

futuros tratados a assinar com outros países21. Na verdade, para além da

França, os Estados Unidos desdobravam-se também em contactos com a

Espanha e com a Holanda em busca de mais alianças e de mais dinheiro para

poderem continuar a sua Guerra de Independência.

Em Paris, Benjamin Franklin, na altura com setenta anos, desenvolveu

intensa actividade diplomática. No Verão de 1776, os britânicos tinham

obtido alguns sucessos militares, nomeadamente junto da zona de Nova

Iorque, o que tornou os franceses mais cautelosos em relação a qualquer

envolvimento oficial, apesar do apoio privado ou clandestino que, vindo de

França, chegava regularmente à América, com conhecimento do próprio

governo francês. Só que o reconhecimento oficial dos Estados Unidos por

parte da coroa francesa implicaria de imediato o estado de guerra com a

Inglaterra, pelo que os franceses hesitaram durante algum tempo. Em

Outubro de 1777, os Estados Unidos conseguem uma importante vitória

militar em Saratoga, facto que levou a coroa inglesa a procurar pela primeira

vez negociar com os insurgentes. Franklin não hesitou em usar este facto

como um "trunfo" diplomático em Paris. Não interessava aos franceses que os

americanos, afinal de contas, chegassem a um entendimento bilateral com a

Inglaterra22.

20
Sobre a diplomacia norte-americana e em especial as relações com a França veja-se o clássico
Thomas A. Bailey, A Diplomatic History of the American People, Appleton-Century-Crofts, Inc.,
New York, 1950, especialmente o capítulo "The Diplomacy of the French Alliance, 1775-1778",
pp. 8-22.
21
"Journal of Congress. Tuesday, September 17, 1776", em
http://www.yale.edu/lawweb/avalon/diplomacy/france/fr1778p.htm.
22
Thomas G. Paterson (ed.), American Foreign Relations. A History to 1920, Lexington,
Massachusetts, D.C. Heath and Company, 1995, p. 14.

11
No ano seguinte, em Fevereiro, os Estados Unidos e a França chegam a

acordo para a celebração de dois tratados: um tratado de comércio e

amizade, centrado sobretudo nas relações económicas entre os dois países,

através do qual o Estados Unidos obtêm privilégio de "nação-mais-

favorecida"; um tratado de aliança entre os dois países que marcava

oficialmente a entrada dos franceses na Guerra da Independência americana.

Através deste tratado, os Estados Unidos – tal como a França –

comprometiam-se a não assinar uma paz separada com a Inglaterra, sem

obter primeiramente o consentimento do seu aliado. Apesar da oposição dos

franceses, Franklin conseguiu manter no texto do tratado uma cláusula que

proibia os ganhos territoriais da França no continente norte-americano. No

entanto, os Estados Unidos concordavam em reconhecer futuras conquistas

francesas na região do Caribe e em garantir a permanência das possessões

francesas já existentes. No artigo segundo do tratado podia ler-se: "o fim

essencial e directo da presente aliança defensiva é a manutenção efectiva da

liberdade, soberania e independência absoluta e ilimitada dos ditos Estados

Unidos, tanto em matérias de governo como em matérias de comércio". Os

franceses também garantiam, para o futuro, o respeito pelas actuais

"possessões" americanas bem como por futuras "adições ou conquistas que a

sua Confederação possa obter durante a Guerra, de qualquer dos domínios

presentemente na posse da Grã-Bretanha"23.

Com a Espanha, as negociações americanas foram também difíceis. Apesar

do relacionamento estreito entre a França e a Espanha, o governo de Carlos

III não teve grande pressa em levantar armas contra a Inglaterra,

especialmente porque um dos grandes objectivos territoriais dos espanhóis

era o domínio sobre Gibraltar. Por outro lado, devido ao seu extensíssimo

império colonial, a Espanha estava bastante mais relutante do que a França

em fomentar a eclosão de revoluções e de independências de territórios

coloniais. Não só a emancipação colonial se podia revelar uma "doença" de

contágio fácil, como a existência de uma poderosa república americana

poderia ameaçar as próprias possessões espanholas, a sul. Só pelo Tratado de

Aranjuez, assinado a 12 de Abril de 1779, a Espanha aceitou entrar em

23
Cf. Thomas G. Paterson (ed.), American Foreign Relations. A History to 1920, p. 14. Textos dos
tratados em http://www.yale.edu/lawweb/avalon/diplomacy/france/fr1778m.htm

12
guerra com a Inglaterra e, mesmo assim, a sua aliança era com a França e não

directamente com os Estados Unidos. A França teve de se comprometer a

continuar a luta contra os ingleses até que Gilbraltar fosse conquistado. Em

Setembro de 1779, o Congresso norte-americano enviou o diplomata John Jay

a Madrid com o objectivo de assinar uma aliança formal com a Espanha, mas

os seus esforços não obtiveram qualquer êxito24.

No entanto, a aliança franco-espanhola foi essencial para o triunfo militar

norte-americano, uma vez que o apoio da frota espanhola permitiu a

americanos e franceses estabelecer uma superioridade naval sobre a

Inglaterra e vencer a batalha decisiva de Yorktown, em Outubro de 1781.

Após esta vitória americana, os ingleses procuraram entabular negociações

directas com os americanos, enviando um emissário a Paris em Abril de 1782

para conversações com Franklin. Desrespeitando as cláusulas da aliança com a

França, os diplomatas americanos negociaram separadamente com os ingleses

e prepararam-se para assinar uma paz separada.

A paz separada com a Inglaterra foi assinada em Novembro de 1782. O

Tratado de Paz reconheceu a independência dos Estados Unidos da América e

estabeleceu fronteiras extremamente generosas para o novo país: os Grandes

Lagos e o Rio de São Lourenço a norte, o rio Mississippi a Oeste e o paralelo

31 a sul, ultrapassando em muito aquilo que os americanos tinham conquistado

militarmente. Outras das reivindicações fundamentais dos norte-americanos

foi também reconhecida: a liberdade de pesca na Terra Nova. Os ingleses

procediam deste modo não apenas devido à deterioração da sua situação

militar, mas também com o desejo de afastar os americanos da sua aliança

com a França e de estabeçecer relações privilegiadas em novos moldes entre

a Inglaterra e os Estados Unidos25.

No entanto, a reacção do governo francês não foi de grande indignação.

Apesar de uma troca de missivas menos amigáveis entre o Conde de

Vergennes – chefe da diplomacia francesa – e Benjamin Franklin, os franceses

acabaram por conceder aos Estados Unidos um empréstimo adicional nesse

final de 1782. Vergennes teria estado sempre ao corrente das negociações

24
As instruções para John Jay podem ser lidas em "Instructions to John Jay, September 28,
1779", reproduzidas em http://www.skidmore.edu/~tkuroda/gh322/Conginst1779.htm. Ver
também Thomas G. Paterson (ed.), American Foreign Relations. A History to 1920, pp. 17-18.

13
entre Franklin e os ingleses – que aliás decorreram em Paris – e

compreendera que um dos objectivos essenciais da Inglaterra era pôr um fim

à aliança Franco-Americana. Aos franceses, pelo contrário, interessaria

manter uma relação privilegiada com o novo país. Por outro lado, a paz

separada dos americanos era também um bom pretexto para os franceses

abandonarem o seu compromisso com os espanhóis relativo a Gibraltar26.

As negociações de paz entre Estados Unidos, a Inglaterra, a França e a

Espanha demoraram vários meses. Só a 3 de Setembro de 1783 foi assinado,

em Paris, o tratado de paz final reiterando praticamente os mesmos termos

do tratado de 1782 com a Inglaterra27. Os Estados Unidos eram, doravante,

uma nação independente. Em termos de política externa, a sua diplomacia

tinha-se comportado de forma hábil, jogando, por assim dizer, com as

rivalidades entre as várias potências europeias. Os americanos souberam, num

primeiro momento, cortejar os franceses e aliar-se à França, uma vez que a

sua independência seria um rude golpe na Inglaterra. Souberam depois

assustar a Inglaterra com a sua proximidade com a França, para convencer os

ingleses a assinar uma paz separada com linhas de fronteira muito generosas

para os Estados Unidos.

3. A Construção de uma Nação

Restava agora às colónias norte-americanas tornadas independentes,

"construir uma nação". Tratava-se de tarefa complexa, desde logo porque não

existia unanimidade das colónias em torno deste objectivo. Muitas das

colónias agora tornadas independentes não estavam seguras da necessidade

de criação de um estado único e federal, preferindo a manutenção da fórmula

entretanto adoptada em 1781, a da criação de uma confederação de estados

independentes.

25
Cf. "Preliminary Articles of Peace: November 30, 1782", em
http://www.yale.edu/lawweb/avalon/diplomacy/britain/prel1782.htm.
26
Thomas G. Paterson (ed.), American Foreign Relations. A History to 1920, p. 23.
27
Cf. "The Paris Peace Treaty of September 3, 1783", em
http://www.yale.edu/lawweb/avalon/diplomacy/britain/paris.htm.

14
Por conseguinte, correndo o risco de uma simplificação grosseira, pode

dizer-se que o grande debate que se travou nos Estados Unidos, a partir de

meados da década de 1780, foi o debate entre federalistas e anti-

federalistas, entre aqueles para quem o caminho a seguir, e inclusivamente a

própria manutenção da independencia, passava necessariamente pela

construção de um estado federal mais forte que congregasse os vários

estados independentes, e os que defendiam a manutenção da independência

dos respectivos estados, ainda que aliados numa confederação que

configurasse a existência de um poder central bastante mais diminuto.

Uma vez obtida a independência das colónias vieram ao de cima

determinadas diferenças entre os seus projectos políticos e económicos. Por

exemplo, as colónias do Nordeste, junto ao Atlântico, estavam mais viradas

para o exterior e interessava-lhes sobretudo a recuperação do velho sistema

de trocas com a Grã Bretanha. Era disso que viviam os mercadores destas

cidades. Neste sentido, defendiam o restabelecimento de relações

privilegiadas com os ingleses e um sistema de governo relativamente

autónomo para os diversos estados. Já as colónias do Sul e do Oeste se

mostravam muito mais interessadas na expansão territorial para o oeste do

continente americano, onde através da anexação de novos territórios

pudessem alargar as suas plantações de algodão e de tabaco, principais

actividades dessas colónias. Para isso era necessário um poder mais forte e

centralizado que pudesse fazer face às tropas inglesas, acantonadas ainda no

Canadá, bem como às tribos nativas, e que pudesse desenvolver caminhos e

vias de comunicação com o Oeste. Estas divisões foram acentuadas por uma

crise económica grave, sentida logo após a independência e resultante, em

grande parte, das desigualdades do comércio norte-americano com a

Inglaterra. O governo britânico tinha entretanto feito aprovar determinadas

medidas discriminatórias em termos comerciais que configuravam uma

espécie de "neo-colonialismo" comercial. Os Estados Unidos continuavam a

exportar matérias primas e produtos alimentares para o Reino Unido e em

troca recebiam produtos manufacturados, bastante mais caros, criando uma

balança de pagamentos permanentemente deficitária e causando uma

profunda depressão económica nos Estados Unidos que atinge o seu auge em

1784.

15
Determinados sectores das elites políticas norte-americanas tomam

então consciência de que era necessário consolidar politicamente a sua União.

As antigas colónias, como foi dito, ainda se regulavam politicamente pelos

chamados Artigos da Confederação, aprovados em 1781, cujo artigo segundo

estabelecia que cada estado mantinha a sua soberania, a sua liberdade e a sua

independência, bem como todos o poderes, jurisdições e direitos que não

fossem expressamente delegados nos "estados unidos" reunidos em

Congresso28. A questão da soberania permanecia, quanto ao essencial,

inamovível e os Artigos deixavam uma fatia muito considerável de poder e de

autonomia aos vários estados, nomeadamente no que dizia respeito à política

económica e à política externa. Para os habitantes dos diversos estados

norte-americanos, a sua nação continuava a ser o respectivo estado. Muitos

norte-americanos tinham lido Emmerich de Vattel, que afirmara que vários

estados independentes e soberanos se podiam unir numa confederação

"perpétua" sem que nenhum em particular deixasse de ser um "estado

perfeito"29. Outros receavam as palavras de Montesquieu que avisara que

apenas uma sociedade pequena e homógenea, cujos interesses fossem

essencialmente similares, poderia sustentar devidamente um governo

republicano30. Ora, os anti-federalistas tinham a perfeita noção da

diversidade dos interesses sociais e económicos dos vários estados e da

vastidão do território constituido pelas antigas colónias e por conseguinte

duvidavam da possibilidade do estabelecimento de um governo único que não

implicasse um regresso à monarquia e à tirania, de que as antigas colónias há

tão pouco tempo se tinham libertado. De alguma maneira, havia uma certa

aversão por parte dos anti-federalistas à ideia de um governo forte e

centralizado. As colónias, que há tão pouco tempo se haviam libertado do jugo

britânico, alegando sobretudo a forma centralizadora como os ingleses as

governavam, receavam que um estado federal forte pudesse, de modo

idêntico, contrariar os seus interesses e as suas ambições locais.

Apesar de tudo, a adopção dos Artigos da Confederação tinha consistido,

em si mesma, num avanço nesse sentido de unificação. Mas os artigos tinham

28
"Articles of Confederation", em http://www.yale.edu/lawweb/avalon/artconf.htm.
29
Cit. por Gordon Wood, The Creation of the American Republic, 1776-1787, New York, W.W.
Norton & Company, 1969, p. 355.
30
Cit. por Gordon Wood, The Creation of the American Republic, 1776-1787, p. 356.

16
fraquezas em alguns pontos fundamentais. Desde logo, não previam a

existência da figura de um Presidente, ou seja, de uma autoridade executiva

que pudesse implementar as decisões do Congresso nos vários estados que

compunham a Nação. Depois, porque de acordo com os Artigos da

Confederação, o Congresso representava os Estados e não os cidadãos

directamente. Cada Estado dispunha apenas de um voto no Congresso, apesar

de enviar delegados em número variável. Por exemplo, o pequeno estado de

Delaware tinha tanto peso político no Congresso como o importante estado da

Virgínia. Por outro lado, os poderes do próprio Congresso eram bastante

limitados. Não só não tinha poder para cobrar impostos directamente, como

não podia obrigar um cidadão a servir num exército nacional. Além disso, o

Congresso não tinha poderes para regulamentar o comércio entre os diversos

estados e com os países estrangeiros. As actividades comerciais, mercantis e

industriais estavam à mercê dos governos estaduais e também das imposições

dos países estrangeiros, como por exemplo a Inglaterra, em relação aos quais

o Congresso não podia, de uma maneira única, representar os interesses dos

Estados Unidos. As resoluções do Congresso continuavam a ser, em última

análise, recomendações cuja execução era deixada à decisão dos estados.

Note-se, por fim, que os Artigos da Confederação não proibiam os estados de

emitir papel moeda e nem sequer se referiam aos Estados Unidos com letras

maiúsculas, mas sim como "estados unidos", deste modo enfatizando a

soberania dos diversos estados31.

Os federalistas pretendiam, contudo, a edificação de um estado federal

com uma configuração de poderes substancialmente diferente. O perigo era

agora, avisavam os federalistas, o da ditadura dos orgãos legislativos locais

cujo "egoísmo" só poderia conduzir à perda da independência tão dificilmente

conquistada. As elites políticas norte-americanas empenhadas na construção

do novo estado e na consolidação da sua independência começaram então a

exigir uma profunda reforma dos Artigos da Confederação. Entre os grupos

ou sectores políticos, sociais e económicos que mais se destacaram neste

processo, salientam-se sobretudo aqueles que se dedicavam à manufactura e

à indústria. Estes sectores pretendiam a imposição de taxas aduaneiras

fortes aos produtos importados de países estrangeiros, nomeadamente da

31
"Articles of Confederation", em http://www.yale.edu/lawweb/avalon/artconf.htm.

17
Inglaterra, de modo a que eles não fossem vendidos na América a preços mais

baratos do que aqueles que eles conseguiam apresentar. Defendiam, em suma,

uma política proteccionista, que pusesse termo a uma espécie de neo-

colonialismo comercial que a Inglaterra havia entretanto conseguido

estabelecer nas suas relações com as ex-colónias norte-americanas. A

imposição e o desenvolvimento desta política proteccionista exigia, contudo,

uma autoridade central com poderes consideravelmente mais vastos do que o

existente Congresso.

Como referi atrás, esta situação havia resultado, para os recém criados

estados, numa balança de pagamentos permanentemente deficitária,

acabando por conduzir a uma profunda depressão económica que atingiu o seu

auge em 1784. Os diversos estados, para fazer face às suas dificuldades

económicas e financeiras, tinham entretanto seguido o caminho mais fácil que

lhes era autorizado pelos Artigos da Confederação: emitir mais moeda e mais

notas. O dinheiro no continente norte-americano desvalorizou-se

profundamente, os bancos locais decidiram não aceitar mais hipotecas e

começaram a confiscar propriedades para executar as dívidas. Alguns

proprietários do estado de Massachusetts, liderados por Daniel Shays,

iniciaram uma revolta em 1786 que quase derrubava o governo estadual e que

preocupou profundamentre os representantes dos diversos estados,

entretanto reunidas numa nova Convenção para discutirem a reforma dos

Artigos da Confederação32.

Alguns autores salientam inclusivamente que o caminho no sentido da

criação da federação norte-americana se terá iniciado não "de cima para

baixo" mas de "baixo para cima". Ou seja, terá sido o receio de desagregação

interna que muitos dos estados norte-americanos sentiram em meados dos

anos 80 que os terá conduzido, em parte, a aceitarem a necessidade da

criação de uma unidade política mais forte e centralizada. Foram as

tendências descentralizadoras que se sentiram no interior de alguns estados,

o medo que a própria organização estadual fosse posta em causa que terá

vencido a relutância de certos sectores das elites políticas norte-americanas

a aceitar o caminho federalista. Autores como Gordon Wood consideram

32
Paul Boyer et allia, The Enduring Vision. A History of the American People, Volume I: To 1877,
Houghton Mifflin Company, Boston, 2000, pp. 171-172.

18
assim que os acontecimentos políticos mais significativos que acabaram por

conduzir à criação da federação não foram "as tentativas de uma dinâmica

maioria de nacionalistas para enfraquecer a ideia da soberania dos estados a

partir de cima, ou seja, acrecentando mais poderes ao Congresso", mas antes

"os vastos ataques à ideia de soberania dos estados, vindos de baixo, ou seja,

pela negação repetida e crescente por parte de vários grupos de que as

legislaturas estaduais representariam adequadamente os interesses

sobreanos do povo"33.

A luta pela criação de uma federação e pela aprovação de uma nova

constituição federal que substituisse os velhos artigos da confederação foi

então liderada por homens como James Madison, federalista convicto, ou

George Washington, futuro primeiro presidente americano, ou ainda pelo

"mago das finanças", o ultra-federalista Alexander Hamilton. O processo

acabou por resultar na aprovação da Constituição Americana de 1787. Para os

Federalistas não era suficiente uma mera reforma dos Artigos da

Confederação. Pretendiam, pelo contrário, o estabelecimento de um sistema

totalmente novo, de uma Federação por oposição a uma Confederação de

repúblicas independentes. Este seria o derradeiro acto da Revolução

Americana. A Constituição representaria, no dizer do historiador Bernard

Bailyn, "a expressão final e culminante da ideologia da Revolução

Americana"34. Era para alguns – os federalistas – uma evolução de sentido

progressista, uma vez que procurava salvar o que restava da Revolução em

face do seu fracasso iminente; para outros – os anti-federalistas – uma

tentativa reaccionária de restringir os excessos desse mesmo processo

revolucionário35.

James Madison era, sem dúvida alguma, o americano melhor preparado

para liderar este processo. Em 1785 e 1786 Madison desenvolveu um estudo

intensivo de antigas e modernas confederações e federações, em busca da

compreensão daquilo a que ele chamou "a ciência do governo federal". Os

estudos de Madison foram posteriormente publicados no jornal The

Federalist e apontavam para as fraquezas inerentes a uma mera

33
Gordon Wood, The Creation of the American Republic, 1776-1787, p. 362.
34
Bernard Bailyn, The Ideological Origins of the American Revolution (enlarged edition), The
Belknap Press of the Harvard University Press, Cambridge, 1992, p. 321.
35
Cf. Gordon Wood, The Creation of the American Republic, 1776-1787, p. 475.

19
confederação de estados independentes que constituíriam, assim, um "centro

sem nervo" constantemente ameaçado por dentro e por fora. O objectivo

último de Madison era, portanto, a constituição de um estado federal cujo

poder e autoridade se sobrepusessem ao poder e à autoridade dos estados36.

O debate culminou com a realização da chamada Convenção de Filadélfia,

em 1787, e com a aprovação da Constituição federal americana nesse mesmo

ano. Nesta Convenção, que decorreu de Maio a Setembro, foi profundo o

debate entre os defensores de um novo sistema de governo que pusesse fim à

antiga confederação e os defensores da continuidade. Os anti-federalistas

criticavam os federalistas afirmando que a nova Constituição por eles

proposta iria estabelecer um governo nacional, ao invés de um governo

estadual, iria conglomerar os antigos estados independentes em apenas um,

transferindo a soberania previamente detida pelos respectivos estados para

o novo estado nacional. Como se justificava, inquiriam os anti-federalistas,

que a nova Constituição começasse com a expressão "We, the People" em vez

de "We, the States"? A estas propostas os anti-federalistas opunham a

defesa da simples revisão dos Artigos para que a confederação continuasse a

existir.

A tendência federalista, contudo, acabou por impôr as suas ideias. Após

debates extensos entre os delegados à convenção e posterior ratificação

pelos diversos estados, acabou por ser adoptado um novo contrato social: a

Constituição dos Estados Unidos da América. Os Estados Unidos tinham agora

uma administração federal, que obedecia ao princípio da separação de

poderes (executivo, legislativo e judicial). Havia um governo presidencialista,

dirigido por um Presidente, um Congresso que legislava e um tribunal federal

para a administração da justiça. Abaixo desta ordem federal existiam ordens

estaduais, reguladas de maneira idêntica e dotadas ainda de poderes

consideráveis. Este foi, por assim dizer, um primeiro importante compromisso

da Constituição norte-americana, entre federalistas e estadualistas, criando

36
Gordon Wood, The Creation of the American Republic, 1776-1787, p. 472.

20
por um lado um estado federal dotado de certos poderes, mas ao mesmo

tempo mantendo uma ordem política estadual37.

Depois foi necessário conciliar os interesses dos diversos estados de

modo a criar a ordem federal. A solução foi, em primeiro lugar, colocar um

poder assinalável nas mãos do Congresso – onde os estados estavam

directamente representados – em detrimento dos poderes do executivo.

Depois, foi importante também dividir o Congresso em duas Câmaras: a

Câmara dos Representantes e o Senado. A Câmara dos Representantes tinha

uma representação proporcional ao número de habitantes de cada estado,

conferindo por isso mais poder aos estados mais numerosos e mais povoados.

O Senado, ao invés, garantia um equilibrio entre todos os Estados porque nele

tinham assento dois representantes de cada Estado, por igual,

independentemente da sua dimensão. Como Madison teorizou, o Senado

tornava-se um meio de impedir os estados maiores de terem "vantagens

impróprias sobre os mais pequenos". Todas as leis tinham que ser aprovadas

pelas duas câmaras.

O Congresso tinha agora poderes para regular o comércio externo e para

adoptar medidas de carácter comercial por votação maioritária. Num dos

mais importantes compromissos da Convenção Constitucional, os estados do

sul, que eram menos, concordaram que essas medidas pudessem ser tomadas

apenas por maioria e não por dois terços, como eram anteriormente sob os

artigos da confederação. Em troca, os estados do norte aceitaram a

continuação do tráfico de escravos e da escravatura, pelo menos até 1808. O

Congresso podia também regular comércio intra-estadual e cobrar impostos e

outros direitos. Ao Congresso competia também celebrar tratados com

outras nações, propostos pelo presidente e aprovados por dois terços dos

senadores. Só o Congresso poderia declarar guerra. O Congresso, tal como

ainda hoje, controlava as finanças, atribuindo ao executivo o dinheiro para

ser gasto pelo governo.

37
Uma tradução portuguesa da Constituição norte-americana pode ser consultada em Nuno
Rogeiro, Constituição dos EUA anotada e seguida de estudo sobre o sistema constitucional dos
Estados Unidos, Lisboa, USIS/Gradiva, 1993. Mais recentemente foi também publicado em
Portugal um estudos sobre o federalismo norte-americano da autoria de Viriato Soromenho
Marques, A Revolução Federal. Filosofia política e debate constitucional na fundação dos E.U.A.,
Lisboa, Edições Colibri, 2002.

21
James Madison, o grande teórico da Constituição Americana, argumentou

para os anti-federalistas que não se tratava de criar um gigantesco e

absolutista governo federal que pusesse em causa os direitos e liberdades

dos americanos. Muito pelo contrário, este novo pacto social que os

representantes do povo americano assinavam, permitia melhor assegurar as

liberdades de cada indivíduo dentro do país e, ao mesmo tempo, melhor

defender os interesses dos estados e da União em relação ao estrangeiro e

aos outros países. Esta realidade era possível, Madison argumentava, com o

sistema de "checks and balances" que a Constituição estabelecia. Assim, os

estados retinham autoridade suficiente para contrapôr à governo federal, os

três ramos do governo federal controlavam-se mutuamente, as duas partes

do Congresso também se vigiavam mutuamente. Os vários interesses

(federalistas vs anti-federalistas, norte vs sul, estados pequenos vs estados

grandes) estavam garantidos no sistema constitucional americano. Era o que

os federalistas desejavam, como argumentou Madison: a própria estrutura do

governo federal encontrava-se concebida de modo a evitar as "usurpações

que conduzem à concentração tirânica de todos os poderes do governo nas

mesmas mãos"38.

Luís Nuno Rodrigues, Janeiro de 2003

38
Gordon Wood, The Creation of the American Republic, 1776-1787, p. 550.

22

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