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rssN 1415-s052

CADERNO DE
FILOSOFIA .,\

E CIENCIAS
HUMANAS
Pubiicação semastral do DepaÍtâmento de Filosofia e Ciências Humanas da Faculdade de Ciências
HUMANAS E TCITAS - FAHL - CENTRO IJNI\,ERSITÁRIO NEWTON PAIVA - I]NICENTRO

ANO VII
NTO A2
ABRIL
1999
INDICE
n? INÉDrro: rRADUçÃo DE -o ESpAÇo púBLrco'r0 ANos <O -FUr DESTERRo pARA os cuLpAt)os- tNeutsrÇÃo E
w/ DEpols DE JüRGEN HABERMAS J7 DEGREDADope,nlo snnsrl--coLôNrn
Verâ Lígia C. Westin e Lúcia Lâmounrer Ceraldo PieÍoui

ÁCI DIREITO E TRABALHo: os CoNFLIToS JURÍDICoS ENTRE


,L-'o coNsrDERÁçoEs ACERCA DO DTSCURSO ENUNCTATTvO tJO tn,qsalueooREs E EMpREGADoREs RURATs No ESTADo
N'O SOFISTA, DE PLATAO DO PARANÁ
AdÍiano Césâr da Silva Pontes Angelo Priori

F7
'' LÊ.| E SEU PÚBLICO: A EDUCAçÀO JURíDICA COM
/4r\
4I(-l SENSIBILIZAÇÀO: A ÉTICA DA AÇÀO E OI TVNUIçÀI-I / J ^
eleneNro DE pREsERvAÇÃo oô prirrnôruro oes
crisrina engetici sr t,erra CIDADES BRASILEIRAS
Astíéiâ Soares

</) SUBJETIVIDAD-E ESCLARECIDA: DO MITO COMO 7Q COMUNICAçOES:


Jé RACIoNALtzAçÃoÀ ctÊNCIA cotllo MIToLoclA /O sEMtNÁRro"puLREpuBLtcA"DEMocRActA.ELLtÇóÊsLCtDA
VeÍlaine Freitas DANIA NO ERASIL"
,,o ESPAÇO A questão desta reedlção se minha própria teoria, no entanlo, menos
colocou poÍ motivo de circunstâncias nos seus traÇos principais que no seu
PUBLICO ", exteríores. A venda da editora Luchtrhand, grau de complexidade. Após me
30 ANOS que encorajou minhas pÍimeiras obras, submeter à primeira im p ressào.
tornou necessária a troca de editor. seguramente su perÍicial, sobre os
DBPOIS- Por mais que eu tentasse, domínios pertinentes da pesquisa, eu
quando relia este livro 30 anos depois, desejaria lembrar-me das modiÍicações
Júrgen Habermas fazer modif icaÇões, apagar, reajuntar, de uma maneira pelo menos ilustrativa -
mais eu percebia a impossibilidade de tal e para estimular as pesquisas ulteÍiores.
procedimento: a primeira intervenção Eu montaria, dessa forma, a estrutura da
frudução Veê Lígia C. Westin
obrigar-me-ia a explicar porque eu não obra: eu me demoraria, a princípio, sobre
Lúcia Lamouniet
havia remanejado totalmente o conjunio a íormação histórica e sobre o conceito
Resumo: Este texto constilui o
da obra. lsso teria ultrapassado em muito de esÍera pública burguesa (l a lll), depois
prelácío, redigido pot Júryen as Íorças desse aulor que, neste meio sobre a transÍormaçáo da esÍera pública
Habemas em 1990, da 174 ediçâo tempo, dirígiu-se para oulras coisas e não sob o duplo aspecto da transÍormaÇão do
alemá de "O EspaÇo Público"
(cuja primeiÍa ediçáo data de continuou no pico da literatura de Estado do Bem EstaÍ Social e da mutação
1962). Sua publicaçao foi pesquisa da qual derivou a obra. Desde das estrutuÍas comunicacionais
aúloizada pelo aulot e sua editora o princÍpio de sua elaboraçào, meu produzidas pelas mídias (V e Vl). Eu
Suhkarnp Ve ag. A taduçáo toi
íeita poí Felipe Chanial, em trabalho repousava sobre a sínlese de discutiria, em seguida, a perspectiva
colaboração com Tobias uma Íusão, soÍridamente dominada, de teórica da análise e de suas implicaçóes
Straumann. Nós agradecemos a
Werner Ackerman, que de boa
contribuições provenientes de numerosas normativas (lV e Vll). Eu me interesaria,
vontade releu o conjunto, assím disciplinas. nesse senlido, pela contribuiçáo que o
como a Dany Trcm e Laurcnce Duas razões podem lustiÍicar a pÍesente estudo pudesse trazer às
Allard pot seus conselhas. questões atuais novamente pertinentes,
decisão de publicar uma versão inalterada
da 174 edição, hoje em dia esgotada. Por abordadas pela teoria da Democracia. É
um lado, a demanda constante de um Iivro sob esse aspecto que a obra Íoi, antes
que se introduziu em diversos ciclos de de tudo, recebida, menos quando da sua
estudo como um tipo de manual; por primeira aparição, que no contexlo da
outro, a atualidade das transÍormações revolta estudantil e da reação neocon-
estíuturais da esÍera pública oÍerecida aos servadora que ela provocou. Essa
nossos olhos, pelas "revoluções de questão foi tratada, na ocasião, de
reciclagem" na Europa Cenlral e do Leste. maneira polêmica, tanto pela esqueÍda,
Em Íavor da atualidade deste quanto pela direita.
tema - e de um lratamento do mesmo,
rico em múltiplas perspectivas - l. A Formação Histórica e o Conceito
testemunha a recepção recente da obra de EsÍera Pública Burguesa
nos EUA, que, somente no ano passado,
Íoi ob.ieto de uma tradução inglesa. 1 - Como se pode perceber no
Eu adorana aprovettar a ocasião preÍácio da primeira edição, eu me Íixei
desta reediÇão para oÍerecer comentários como primeiro objetivo entender o tipo
que deverão mais clarear do que ideal da esÍera pública burguesa a partir
ultrapassar a distância de uma geração. dos contexlos hrstóricos próprios aos
Depois do seu período de elaboração, nos d esenvo lvime ntos rnglês, Írancês e

anos 50 e início dos anos 60, pesquisas alemão no sec. XVlll e no início do XlX.
e questões teóricas ÍoÍam evidenlemente A elaboração de um conceito
modiÍicadas; modificou-se, depois do fim inscrito em um período histórico
do regime de Adenauer o contexto extra específ ico exige sublinhar, estilizando-os,
-
Com o objerivo de conie'ir núior clúczâ à
kaduçào. eú .lgúnris p.$r8e* do lexlo nos cientíÍico do horizonte da experiência cerlos traços caraclerísticos de uma,
p.nnnnnos lnzer coísrdEm p&nreses c rn\lssocs
niô eÍisrenres nô ori!inâ1. pÍincip.lment€ nos contemporânea, a Partir do qual as realidade social muito mais complexa.
p(riodoilorsosecoD.Ípftsõ.si
Ào g.sr)
eÉalàdisrâo
o aoror. que romim diaicil Mp€nsio
ciências sociais estabelecem sua Como em toda generalização sociológica,
do su Ensam€nro ( Nôrâ dâs oaduroRn perspectiva; modiÍicou-se, íinalmente, a seleção, a pertinência estatÍstica e a

cADERNo DE FrLosoFtÀ E ctÊNcrAs 7


HUMANAS - Ano vll
N' l? . Abriu99
.O ESPAçO PÚBLICO" avaliação das tendências e dos exemplos signiÍicação indicativa do Íuturo mais
30 A}IOS DEPOIS históricos constituem um problema que através de suas Íormas de organização
comporta riscos importantes, sobretudo do que pelas suas Íunções maniÍestas. As
quando não se tem como recorrer às sociedades das Luzes, os círculos de
fontes, como o historiador, e se apóia educação, as sociedades secretas dos
muilo sobre uma literatura de segunda Íranco-maçons e as ordens dos iluminados
mão. eram associaçÕes que se constituíam por
Pelo lado dos historiadores, decisós livres, quer dizer, privadas, de
reprovaram-me e com razão, as seus Íundadores e que somente
"lacunas empíricas". O julgamento recrutavam seus membros sob a base do
amigável de G. Eley me oÍerece úm voluntariado e praticavam em seu seio
ligeiro apazi-guamento. Ele constata em formas de comunicação igualitárias, a
sua contribuição, detalhada q liberdade de discussão, as decisões
pÍecisamente documentada, na majoritárias, elc... Nessas sociedades,
conÍerência men-cionada : "relendo a que se compunham com certeza,
obra... é Ílagrante ver a que ponto, sob exclusivamente de burgueses, podia-se
uma Íorma muito sólida e mesmo exercer os princípios de igualdade política
imaginativa, o argumento é dê uma sociedade Íutura.
historicamente Íundado, dando a A revolução francesa tornou-se,
dimensão do pouco valor da literatura então, catalisadora de um movimento de
então disponÍvel". politização de uma esÍera pública antes
A síntese de H. U. Wehler, que de tudo impregnada de literatura e de
se apóia sobre uma importante literatura, crítica da arle. lsto não é verdadeiro
conÍirma as teses centrais de minha somente para a França, mas, também,
análise. Na Alemanha, Íormou-se "uma igualmente para a Alemanha. Uma
esfera pública crítica de discussão de politização da vida social, a emergência
dimensão restrita'até o Íim do séc. XVlll. da imprensa de opinião, a lula contra a
Com um público generalizado de leitores, censura e pela liberdade de oprnião
composto, sobreludo, por cidadãos caracterizam a transformaÇão da íunção
burgueses, que ultrapassaram o círculo da rede de comunicação pública em plena
de eruditos e que, de tanto ler e reler expansão até meados do séc. XlX. A
intensivamente somente algumas obras política de censura, pela qual a
clássicas, adapta doravante seus hábitos ConÍederaçáo dos Estados Alemães se
de leitura às novas publicações que defende contra a instituc ionalizaÇão,
aparecem, íorma-se, quase que retardada até 1848, de uma esfera pública '
unicamenle no seio da esÍera privada política, não Íaz senão entusiasmar ainda
uma rede relativamente densa de mais a literatura e a crítica de arte na
comunicação pública. Ao crescimento contracorrente da politização. Peter U
súbito do número de leitores conesponde Hohendahl utiliza meu conceito de esfera
uma produção consideravelmente pública para rastrear este processo em
ampliada de obras, de revistas e joÍnais, detalhes; no entanto, ele já percebia, no
um aumento do número de autores, de insucesso da revolução de 1848 uma cisão
editoras e de livrarias, a criaçáo de na mutação estrutural de uma esÍera
bibliotecas de empréstimo e de cabines pública pré-liberal que começava a se
de leitura, sobretudo de sociedades de instaurar.
leitura, assim como tantos outÍos ponlos G. Eley volta sua atenÇão para
de junção social de uma nova cultura da as novas pesquisas sobre história social
leitura. Desde a publicação da obra, inglesa que se inlegra bem no quadro
aceita-se também a importância das teórico proposto na análise da esÍôra
associações que nascem na época das pública. Na verdade, elas estudam o
Luzes tardias alemãs: elas recebem uma processo de Íormaqão de classes, de

caDERNo DE FrLosofr^ E crÉNct^s


8 HUM^NAS - Aro Vll - N'll ,
^briu9,
.o r:sPÀÇo PÚBLIco" urbanização, de mobilizaÇão cultural e de esÍera pública burguesa hegemônica, se
30 ANOS DEPOIS emergência de novas estruturas de apresentam outras esferas públicas sub-
comunicaÇáo pública na linha das culturais ou particulares às classes, sob
" voluntary associations" que se premissas próprias e que nâo sáo
constituem no sec. XVlll e do "popular imediatamente susceptíveis de
liberalismo" na lnglaterra do séc. XlX. No compromisso. Eu não considerei em
que concerne às transÍormações de uma minha obra o primeiro caso e ainda que
esfeÍa pública inicialmente inÍluenciada eu tenha mencionado o segundo em meu
pela instrução burguesa e a literalura, prefácio, eu não o tratei.
exercendo sua razáo sobre a cultura, em Em referência à fase jacobina da
uma esfera dominada pelas mÍdias e a RevoluÇão Francesa e do movimento
cultura de massa, as pesquisas em chartista, euÍalei de um esboço de esÍera
sociologia da comunicação de R. Williams pública plebéia e acrêditei poder
são particularmente esclarecedoras. negligenciar esta variante da esÍera
Eley reitera, e ao mesmo tempo pública que Íoi reprimida no curso do
justifica, a obieção segundo a qual minha processo histórico. Mas, no deconer da
sistematização da noção de esÍera pública obra de E. P Thompson "A Formação da
burguesa conduziria a uma idealização Classe Operária lnglesa", que soube
injustiÍicada e, não somente, a acentuar traçar novas pistas, apareceu um
fortemente as caÍacterísticas racionais de con.iunto de pesquisas sobre os jacobinos
uma comunicação pública mediatizada Íranceses e ingleses, sobre Robert Owen,
pela leitura e orientada para a discussão. sobre a praxis dos primeiros socialistas ,
Mesmo se partimos do ponto de vista de sobre os chartistas, mas igualmente
uma certa homogeneidade do público sobre o populismo de esquerda na França
burguês (que poderia ver no interesse de no inÍcio do séc XIX que substituíram, em
classe comum - tão Íracionado ele estava uma outra perspectiva, a análise da
- o fundamenlo de um consenso mobilizaçáo política das classes inÍeriores
acessível, pelo menos em princípio, para rurais e da população operária urbana.
as lutas entre partidos), é errôneo No quadro de uma conÍrontação dirêta
empregar o têrmo públrco no singular. com meu conceilo de esfera pública,
Abstraçáo Íeita por d iÍe renciações Günlher Lottes analisou a teoria e a
internas ao público burguês que podem prática do radicalismo inglês no fim do
ser operadas no seio mesmo do meu sec. XVlll alravés do exemplo dos
modelo modificando os centros de jacobinos londrinos. Ele mostra como, a
observaÇão, se levarmos em partir da cultura popular tradicional, se
consideraçáo, desde o inÍcio, uma desenvolveu, sob a inÍluência dos
pluralidade de esferas pú blicas intelectuais radicais e sob as condiçóes
concoÍÍentes e se, além disso, levarmos da comunicação moderna, uma nova
em conta a dinâmica do processo de cultura política com suas próprias Íormas
comunicação que são exclusivos da de organização e suas próprias práticas:
êsfera pública dominante, toda uma outra "A afirmação de uma esÍera
imagem se forma. pública plebéia marca, então, uma
2 - Pode-se Íalar em exclusão no fase especÍíica no desen-
sentido de Foucault, uma vez que se trata volvimento historico de um modo
de grupos cujo papel é constitutivo na de vida comum âs c/asses
Íormação de uma esÍera pública pequeno-burguesas e populares.
especíÍica. Exclusão recebe um sentido De um lado, trata-se de uma
diÍerente, menos radical, quando várias variante da esÍera pública
arenas se Íormam ao mesmo lempo no burguesa, uma vez que ela se
seio das mesmas estruturas de orienta de acordo com este
comunicação, nas quais, ao lado da modelo. De outro, ela avança para

cÀDERNo oE FlLosoFtA E clÊNctas


HUMANAS Ano VllN' r2 . AbÍil/99 I
.O ESPAÇO PÚBLICO" I
além disso, uma vez que alarga o próprios a uma apresentaÇão de si i
30 ANOS DEPOIS potencial emancipador da esíera distanciada, impessoal e cerimoniosa.
pública burguesa em um novo Mas a entrada em cena sob máscaras, I

contexto social. A esíera pública que subtrai aos olhares os sentimenlos


plebéia é, por assim dizer, uma privados, a subjetividade, em geral,
esfera pública burguesa cujas pertencem ao quadro altamenle estilizado
t
pressuposições sociais f oram de uma esÍera pública represenlativa cujas i
suspensas". convenÇões se quebram já no sec. XVlll,
A exclusão das classes quando pessoas privadas se constiluem
I

inf eriores, mobilizadas cultural e em público, tornando-se os portadores de


politicamente, provoca uma plu ralização uma nova forma de esÍeÍa pública.
da esÍera pública em sua Íase de Foi a grande obra de M. Bakthine,
Íormação. Ao lado da esfera pública "Rabelais e seu mundo", que me abriu os
hegemônica, e entrelaçada a ela, uma olhos sobre a dinânica interna de uma
esÍera públicia plébéia se Íorma. cultura popular. Essa não constitui,
A exclusão do povo se opera de evidentemente, mais um simples bastidor,
uma outra maneira nas Íormas poÍtanto, um meio passivo para uma
tradicionais da esfera pública cultura dominante, mas muito mais a
representativa. Aí o povo se Íorma no revolta periodicamente recorrente, sob
bastidor diante do qual os delentores do uma Íorma violenta ou moderada, de um
poder, os nobres, os dignatários contra-projeto Íace ao mundo hierárquico
eclesiáslicos, os monarcas, etc, se dão do poder, de suas cerimônias e sua
em representação, eles mesmos e seus disciplina cotidiana. Essa visão simultânea
status. Por sua exclusáo do poder permite iustamente perceber como um
representativo, o povo é, dessa maneira, mecanismo de exclusão, que rechaça e
inscrito nas condições mesmas de reprime, provoca, ao mesmo tempo eíeilos
constitu ição desta esÍera pública contrários que não podemos neutralizar.
representativa. Ouando dirêcionamos o mesmo olhar
Eu penso, como antes, que esse sobÍe a esfera pública burguesa, a
tipo de esfeÍa pública (somente exclusão das mulheres deste mundo
esboçado no cap, 2) constitui o segundo dominado pelos homens, se apresenla de
plano histórico das Íormas modernas da uma maneira diÍerente daquela que eu
comunicação pública. Essa distinção havia percebido antes.
poderia ter evitado que R. Sennet 3 - O caráter patriarcal da Íamília
orientasse seu diagnóstico sobre o restrita que Íormou, por sua vez, o núcleo'
declínio da esÍera pública para um da esÍera privada da sociedade burguesa
modelo errôneo. Na verdade, Sennet e o lugar de Íormaçáo das novas
transpõe os traços da esÍera pública experiências psicológicas de uma
representativa para a esfera pública sub.jetividade centrada sobre ela mesma
burguesa clásssica; ele desconhece a não deixa dúvida. Desde então, a lileratura
dialética especiÍicamente burguesa da Íeminista emergente agudizou nossa
interioridade e da publicidade que se percepção do carácter patriarcal da própria
impôs, sob uma forma literária , a partir esÍera pública - de uma esfera pública que
do domínio privado, correlativo de um emergiu desse público de leitores, que as
público, característico da esÍera íntima mulheres ajudaram a Íorjar, logo o
burguesa no séc. XVll. E porque ele não utrapassando para responsabilizar-se poÍ
distingue suÍicientemenle os dois tipos Íunções polÍticas. Pode-se, assim, colocaÍ
de esÍera pública, que ele acredita poder a questão de saber se as mulheres Íoram
sustentar o diagnóstico do Íim da "cultura excluídas da esÍera pública da mesma
pública", reÍerindo-se ao declínio da maneira que os operários, os camponeses
Íorma dos jogos de papéis estéticos e o "baixo povo", enÍim, os "homens

I---
CÁÍ)FRto t)E ÉtLos()Ft{ F CtaNCtÁ§
10 H!ltrÁx^\ An. v| . N^ l: ahít/9S
.o r:selço núnlrco,'
dependenles". somenlê dominada pelos homens de
30 ANOS DEPOIS
A participação ativa e igual na maneira contigente, mas determinada, na
ÍormaÇão da opinião e da vontade polílica sua estrutura e na sua relação com a
eram recusadas a essas duas calegorias. esÍera privada, segundo um critério
Dessa Íorma, nas condições de uma sexual. De maneira distinta da exclusão
sociedade de classes, a democracia dos homens desÍavorecidos, a exclusão
burguesa entrou, desde o início, em das mulheres representa um papel
contradição com as premissas essenciais constitutivo na Íormação das estruturas
de sua própria compreensão de si da esÍera pública.
mesma. Essa dialética se deixava, entáo, Carol Pateman ilustra essa tese
dominaÍ, nos termos da crítica marxisla em um artigo marcante, publicado em
do poder e da ideologia. Nessa primeiro lugar em 1983. Ela descontrói
perspectiva, eu analisei como a relação as iustiÍicativas do Estado de Direito
entre esÍera pública e esfera privada se Democrático saÍdos da teoria do contrato
modiÍicou com a extensão de direitos paÍa demonstrar que o direito racional
democráticos de participação, e a critica somente o exercício paternalisla do
compensação oÍerecida pelo Estado poder a Íim de modernizar o patriarcado
Social pelos prejuízos soÍridos por cada sob a forma de um poder Íraternal: "O
classe. No entanto, essa transformaÇão patriarcado tem duas dimensoes: a
estrulural da esÍera pública política f raternal (pai/íilho) e a masculina ( marido
operou-se sem tocar na característica de /mulher). Os teóricos políticos podem
uma sociedade.marcada, em seu analisar o comeÇo desta batalha teórica
coniunto, pelo patriarcado. Certamente, como uma vitória da teoria do contrato
a emancipação civ íca, Íinalmente porque eles permanecem silenciosos
adquirida no sec. XX, abriu às mulheres, sobre o aspecto sexual e conjugal do
até às desÍavorecidas, a possibilidade de regime patriarcal, que parece não político
obter a duras penas, uma melhora de seu ou naturaf'. C. Pateman permanece
estatulo social. Mas, para as mulheres cética diante da consideração de uma
que desejassem se beneficiar, mais do integração igualitária no direito das
que da sua emancipação política, de mulheres na esÍera pública política que
melhorias da parte do Estado Social, sua até hoje ficou, em suas estruturas, atada
situaÇão desÍavorecida sustentada pela às características patriarcais de uma
marca de uma diÍerença sexual, não esfera privada subtraída à tematizaÇão
mudou - literalmente. pública:"Agora que a luta íeminista atingiu
O movimento de emancipação seu estado no qual as mulheres
que, nesse meio tempo, se expandiu de beneficiam-se quase de uma igualdade
maneira vigorosa e pela qual luta o civil formal, se impõe a oposiçáo entre
íeminismo há 2 séculos, inscreve-se como igualdade formada a partir de uma
a emancipaçáo social de trabalhadores imagem masculina e a verdadeira posiçào
assalariados, na perspectiva de socíal das mulheres enquanto mulheres."
universalização dos direitos civis. No Segu ramente, essa análise
entanto, diÍêrentemente da institucio- incontestável não desmente os direitos à
nalizaçáo do conÍlito de classes, as integração e à igualdade
ilimitada
modiÍicaçóes da relação enlre os sexos incorporadas na compreensáo que a
não intervêm somente no sistema esÍera pública liberal tem dela mesma -
econômico, mas também no núcleo ao contrário, ela os exige. Foucault
privado da esfera íntima da Íamília restrita. compreende as regras de Íormaçáo dos
Dessa Íorma, revela-se claramente o fato discursos de poder como mecanismos de
de a exclusão das mulheres ter sido um exclusão que tendem, a cada vez, seu
elemento constitutivo da esÍera pública outro. Em lais casos, não pode haver aí
política, no sentido de que esta não estava comunicação entre o de Íora e o de

a
S cÁDERNo DÉ FtLosoftÁ E ctÊNctAs '11
BUMAN,lS . A.o vll , N' l2 Âhril/99
I

,,o ESPAÇO PÚBLICO' dentro. Não existe linguagem comum pública liberal devem sobressair-se mais
30 ANOS DEPOIS entre os que possuem o discurso e os clâramente como pote nciais de
que o contestam. Pode-se, dessa autotransÍormaÇão. O contraste entre a ]'"

maneira, compreender a relação da primeira Íorma da esÍera pública política


esfera pública representaliva do poder até meados do sec. XIX e aquelas de
tradicional com a contracu llu ra democracia de massa do Estado Social
rechaçada do povo: o povo devia se pode, enlão, dessa maneira, atenuar essa
maniÍestar e se exprimir em um outra oposição entre um passado valorizado de
cultura. Por essa razão, a cultura e a maneira idealista e um presente
contracultura eram, aqu i, ambas, deformado pela crÍtica da cultura. Essa
absolutamente ligadas uma à outra, de clivagem normativa implÍcita desconcertou
maneira que uma obscureceu a outra. numêrosos críticos. lsso náo resulta
Contrariamente, a esÍera pública somente de uma peÍspectiva de crítica da
burguesa se articula sobre discursos aos ideologia, sobre a qual eu vollaria
quais não somente o movimento enquanto tal, mas da omissão dos
operário, mas também seu outro excluído aspectos que eu mencionei e cuja
- o movimento Íeminista - poderia aderir importância eu subestimei. Certamente,
para transÍormá-lo do interior - como uma avaliação errônea não altera as
também para transÍormar as estruturas grandes linhas do processo de
da própria esÍera pública. Os discursos transÍormação que eu descrevi.
universalistas da esfera pública burguesa
eram situados, desde a origem, sob ll. As transÍormações estruturais da
premissas auto-reÍerenciais; eles não esÍera pública: 3 revisões
podiam Íicar imunizados contra uma
crítica inteÍna, uma vez que eles se 'l - As mutações estÍuturais da
distinguem dos tipos de, discursos de esfera pública se inscrevem no processo
Foucault pelo seu potencial de auto de transÍormação do Estado e da
transÍormação. economia. Eu conceituei, nessa época,
4 - As duas lacunas lembradas esse processo num quadro teórico
por G. Eley têm conseqüências sobre a esboçado na Íilosofa do direito de Hegel,
versão ideal-típica do modelo de esÍera depois aprimorado pelo jovem Marx, e do
pública burguesa. Se a eslera pública qual Lorenza von Stein, na tradição do
moderna compreende uma pluralidade direito público alemão, Íixou a Íorma
de espaços para conÍlitos de opinião, especíÍica.
mediatizados pelos produtos da Essa constÍução constitucional dá
imprensa, (mas também pela educação, relaÇão entre uma pulsão pública
a inÍormação e o divertimento, mais ou garantindo as liberdades a uma
menos regrados discursivamente, sociedade, como esfera de trocas
espaços nos quais, não somente vários econômicas, organizada segundo o direito
partidos, compostos de pessoas privadas privado, é devedora, de uma parte, da
debilmente associados, concorrem uns teoria liberal dos direitos Íundamentais do
com os oulros, mas nos quais um público período de Vormarz (anterior à revolução
burguês dominanle, reenconlÍa, desde a de 1848), que, com uma intenção
origem, um público plebeu) e se, no mais, claÍamente política, sustêntou uma
considerarmos seriamente a dinâmica separaçáo regicida entre direito público e
Íeminista do outro excluído, então o direito privado, e, de outra parte, das
modelo da institucionalizaÇão contradi- consequências do fracasso da "dupla
tória da esÍera pública no Estado de revolução alemã de 1848/49" (Wehler),
Direito, (desenvolvido no cap..t 1), é quer dizer, do desenvolvimento de'um 1t
colocado de maneira muito rígida. As estado constitucional sem democracia. I
tensões que explodem, no seio da esÍera E. W. Bôckenfôrde sublinhou

CÁOEÂNO OE FILOSOFIA E CIÉNCIAS


12 HUMANAS . Ano vll . N' ll . Abril)99 rl

I
,,o ESPAçO PUBLTCO" esse atraso especificamente alemão na diferenciação de uma economia regulada
]() ANOS DEPOIS Íormação progressiva da igualdade cívica pelo mercado a partir dos ordenamentos
da seguinte maneira: "Com a apariçâo e pré-modernos do poder polÍtico que
a consolidação do conÍronto enlre o acompanhou, desde o início dos tempos
Estado e a Sociedade, coloca-se o modernos, a imposição gradual do modo
problema da parte à qual pode pretender de produção capitalista e a Íormação das
a sociedade no poder de decisão do burocracias estatais modernas. Na visão
Estado e seu exercício... O Estado situava retrospectiva do liberalismo, esses
os indivÍduos e a sociedade sob o regime desenvolvimentos encontram seu termo
da liberdade civil, e aí os mantinha graças na automomia de uma sociedade civil no
à criação e à gaÍantia de uma nova ordem sentido de Hegel e Marx, quer dizer, na
judicial geral, mas os indrvíduos e a auto-regulação do mercado de uma
sociedade não recebiam nenhuma esÍeÍa das trocas econômicas organizada
liberdade política, quer dizer, nenhuma pelo direito privado e garantida pelo
parte do poder de decisão política Estado contitucional. Esse modelo de
monopolizada pelo Estado, nem nenhuma diÍerenciação progressiva do Estado e da
possibilidade institucional de inÍluenciar de Sociedade como esÍera de lrocas
maneira ativa. O Estado, como econômicas que não constitui mais uma
organização da dominação, repousava, reaÉo aos desenvolvimentos especíÍicos
por assim dizer, nele mesmo, isto é, próprios aos Estados alemães do sec.
sociologicamente trazido pela Íealeza, XlX, mas, sobretudo, uma reproduçáo
pela burocracia e o exércilo, em parte do modelo de desenvolvimento inglês,
também pela nobreza, enquanto tal, ele oÍereceu-me a possibilidade de analisar,
estava separado, sobre o
plano por contraste, a reversão da tendência
organizacional e institucional, da que se opera no fim do sec. XlX. Na
sociedade represenlada pela burguesia". verdade, essa interpenetração do Estado
Esse segundo plano histórico, forma e da economia priva o modelo social do
igualmente, o contexto do interesse direito privado burguês e a compreensão
particular levado a uma esfera pública que liberal dos direitos do homem de seu
somente adquire uma Íunçáo política Íundamento. Eu conceituei a passagem
efetiva a partiÍ do momento em que ela eÍetiva da diÍerenciação tendencial enlre
transÍorma os burgueses, como agentes o Estado e a sociedade sob um ângulo
econômicos, em cidadãos, a Íim de que jurídico, como uma "socialização
eles acordem seus inleresses respectivos, neocorpoÍativista do Estado", de uma
quer dizer, os generalizem e os Íaçam paÍte, e como uma "estatização da
valeÍ eficazmente diante do poder, de tal sociedade", de oulra partê, que se opera
maneira que o poder do Estado se enr seguida às políticas intervencionistas
lransÍorme em meio de auto-orgnaizaçáo de um Estado doravante ativo.
da sociedade. E o que o jovem Marx No entanto, tudo isso foi
queria dizer com essa idéia de um retrato analisado de maneira batante precisa.
do Estado em um sociedade tornada Aqui, não se tÍata simplesmente de
política em si mesma. A idéia de uma lembrar a perspectrva teórica que se
auto-organização, canalizada pela Íorma quando se reconsrdera o sentido
comunicação pública entre os membros normativo da auto-organização de uma
livremente associados da sociedade, sociedade na qual está ultrapassada a
exige (em um primeiro sentido) que seia diferenciação entre Estado e Sociedade
ullrapassada essa divisão entre Estado ê como esÍera de trocas econômicas, em
Sociedade, esboçada por BôckenÍórde. nome de uma conceituação radical da
A essa divisão, construída na democracia, apoiando-se sobre a
perspectiva do direito público, se liga uma constatação de interpenetraÇão f uncional
outra signiÍicação mais geral, a saber, a eíetiva dos dois sistemas. Eu me deixei

C^DERNo DE FILosoFtA E ctÊNct^s


tl
íIJMaNAS - ano vtt , N' - 13
^hril/99
.O ESPAÇO PUBUCO" guiar pelo ponto de vista de um potencial sociais burgueses. O que Íoi
]O ANOS DEPOIS de auto organização social inscrito na compreendido mais tarde como uma
esÍera pública política e eu me tendência de conduziÍ à sociedade de
interessava pelas repercussóes que organizaçáo, como autonomizaÇão do
esses processos complexos, conduzindo nível organizacional Írenle aos entrelaces
ao Estado social e ao capitalismo das interações cotidianas, eu descrevi, no
organizado, haviam prod uzido nas parágraÍo 17, como uma "polarização
sociedades ocidentais no que concerne. progressiva da esÍera social e da esÍera
. à esfera privada e às bases sociais íntima". O domínio da vida Privada,
da autonomia privada(2), caractêrizado pela Íamília, as relações de
. à estrulura da esÍera pública, assim vizinhança, a sociabilrdade, em geral por
como à da composição eà do Íormas de relação iníormais, simples-
comportamenlo do público(3), e enÍim, mente não se diferencia; ao mesmo
. no processo de legitimação da tempo, ele se modiÍica de modo especÍÍico
democracia de massa ela mesma(4). por diÍerentes nichos sociais sob a
Sob esses tÍês aspectos, Íragilidades em inÍluência das tendências de longo prazo
minha análise se maniÍestam nos que constituem a urbanização, a
capítulosV Vl e Vlt. burocratizaçáo, a concentração industrial,
2 - Nas concepções modernas e enÍim, a transÍormação do consumo de
do diÍeito natural, e também nas leorias massa ligado ao desenvolvimento do
sociais da ÍilosoÍia moral escocesa, a tempo livre. Mas não são'os aspectos
sociedade civil (clrzrl socieÍy) sempre se empíricos desta reestruturação dos modos I

opôs a um domínio público ou a um de experiências e seus necessários


t
governo (government) enquanto esÍera complementos que me interessam aqui,
I
estritamente privada. Segundo a mas o ponto de vista teórico sob o qual eu
compreensão da sociedade civil própria apÍesentei naquele tempo, a mudança do
do início da modernidade, como uma eslatuto da esÍera privada. I
sociedade estratiÍicada em difeÍentes Após a un iversalização da t
proÍissões, a esÍera das trocas e do igualdade de direitos cívicos, a autonomia t
trabalho social, como também o Íoyer, privada das massas não podia mais, como I
desincumbido de suas fu nções a dessas pessoas privadas que se
produtivas, e a Íamília poderiam ser mantinham unidas ao público de cidadãos
I
adjudicados, indistintamente, à esÍera nas associações da esfera pública,
privada da sociedade civil. Ambos burguesa, enconlrar sua base social na I
estavam estruturados de maneira detenção da propriedade privada. E " I
paralela: a posição e a margem de verdade que, se o potencial de auto-,
liberdade dos proprietários privados no organização social virtualmente contido'
I
processo de produção conslituÍam a base numa esÍera pública extensa houvesse
de uma autonomia privada que tinha sua sido liberado, as massas mobilizadas nos
pendência quase psicológica na esÍera planos cultural e polÍtico teriam devido aí
íntima da Íamília restrita. Uma ÍelaÇão reivindicar de Íato seus direitos de
eslrulural táo estreita náo existiu nunca comunicação e de participaçâo. Mas,
para as classes economicamente mesmo sob condições de comunicaçã{
dependentes. Mas, é somente no início ideais, é somente na medida em que ad
da emancipação social dos nichos massas economicamente desÍavorecidal
inferiores e de uma politização de massa podiam adquirir um equivalente da
das contradições de classe no século XIX aulonomia social proporcionada pela
que essa estruturaÇão invertida dos dois propriedade privada que se teria podido
domÍnios, a esfera íntima da Íamília e a esperar deles uma contribuição à
esÍera do trabalho, Íoi levada igualmente Íormação espontânea de opiniôes e de
à consciência no mundo vivido dos nichos vontades. Sem dúvida, as massas

I
14 cattERNo DE FlLosoFtA E ctÉNct c
HUM^N^S - Arô vll - N' ll - H
^b.il
,,o ÍrsPAÇo PUBLTCO" desÍavorecidas não podiam mais lomar desenvolvida pelo Estado constitucional,
30 ANOS DEPOIS em suas mãos as condiÇôes sociais de isto é, em primeiro lugar, a estender, no
sua existência pÍlvada por sua espírito de uma autodeterm inação, o
participaÇão nas trocas, reguladas pelo princípio de igualdade ê a articulação
direito privado, das mercadorias ê dos desse princípio à idéia de participação nas
capitais. A consolidação de sua ordens econômica e social" (O Espaço
autonomia privada dependia de garantias Público, Payot, 1978: 236, tÍadução
estatutárias oÍerecidas pelo Estado- modiÍicada, citada logo após E.P.). Nessa
Social. Mas essa autonomia privada perspectiva, a esfera pública se reduziu,
derivada não teria podido constituir o é verdade, à ante-sala de um legislador
equivalente da autonomia privada original que se estima, de um ponto de vista tanto
fundada sobre a propriedade privada, a teórico quanto jurÍdico, capaz de saber,
não ser na medida em que os cidadãos, em primeira mão, de qual maneira o
enquanto clientes do Estado-Social, Estado democrático deve preencher sua
haviam-se beneÍiciado de suas garantias vocação consistente em "determinar o
estatutárias como garantias que eles conteúdo da ordem social" pela
próprios teriam acordado enquanto "intervenção do Estado nesse regime de
cidadãos de um Estado democrático. Ora, propriedade... que permite ao poder
isso não parecia, entáo, possível, senão dispor, a tÍlulo privado, de importantes
com a condição de que o controle meios de produção e, assim, exerceÍ uma
democrático pudesse se estender ao dominação sobre posições de poder
processo econômico no seu conjunto. econômicas ou sociais que nào são
Essa reÍlexão se inscrevia no legitimadas democraticamente".
contexto de uma larga controvérsia nos Tanto a obstinaÇão da dogmática
anos 50 a respeito do direito público, cujos liberal do Estado constitucional levava em
prolagonistas eram Ernsl ForsthofÍ e conta as modiÍicações das condições
WolÍang Abendroth. Do ponto de vista da sociais, como o pÍojeto Íascinante de
dogmatização jurídica, essa controvérsia Abendroth revelava do mesmo modo as
concernia à incorporação do princÍpio do Íragilidades do pensamento hegeliano-
Estado-Social na arquitetura tradicional do marxista no seu conceito de totalidade.
Estado constitucional. Ao mesmo tempo Se eu nesse meio tempo tomei distância
que a escola de Carl Schmitt considerava Írente a essa concepçáo, isto não poderia
que era preciso presevaÍ a estrutura do me conduziÍ a recolocar em causa minha
Estado conslilucional, aÍirmando a dúvida intelectual e pessoal a respeito de
primazia incondicional da proteção de Wolfang Abendroth, tal como ela era
direitos e liberdades clássicas conlra as expressa na dedicatória. Eu devo
pretensões do Estado-Social, Abrendoth simplesmente constatar que uma
compreêndia o princípio do Estado ao sociedade diÍerenciada funcionalmente
mesmo tempo como um máximo de escapa aos conceitos sociais holistas. A
explicação prioÍi1ária para a interpretação falência do socialismo de Estado que nós
da constituição e como um máximo de observamos hoje conÍirmou de novo que
aÇão para o legislador. Esse pensamento um sistema econômico moderno regulado
) do Estado-Social deveria servir de pelo mercado não pode ser à vontade
j alavanca para um reÍormismo transÍerido do polo do dinheiro ao do
j democrático radical que deixava, pelo poder administrativo e da Íormação
t menos, aberta a perspectiva de uma democrática da vontade sem que sua
1 transiÇão para um socialismo demo- eÍicácia seja posta em perigo. Além disso,
) crático. A constituição da República as experiências de um Estado social
à Federal da Alemanha, como o pensava levado ao seu Iimite nos tornaram
2 Abendroth, visa, assim, "a estender o sensíveis aos ÍenÔmenos de buro-
conteúdo da concepção da democracia cratizaÇão e de jurisdicização. Esses

a
c^DERNo DÉ FtLosoFtÁ E ctÉNct^s
15
IIIJMANAS. Ano vll -N'll- Abril/99
t

,,o EsPÂÇO PÚBLICO" eÍeitos patológicos se apresentam como eÍicazes. I

30 ANOS DEPOIS consequências de inteÍvenção do Estado E verdade que uma descriçáo e i


I

nas esÍeras de ação estruturadas de tal uma análise realista desse espaço público
maneira que eles se opõem ao modo de vassalizado pelo poder interdita a
regulamenteção,urídico-administÍativa. introduçáo de julgamentos de valor
3 - O tema centÍal da segunda incontrolados; mas ela deve-se operar não
metade da obra é consagrado às mais ao preço de uma reduçáo de
transÍormações eslruluÍais da própria diÍerenÇas empÍricas importantes. E por
esÍera pública, ao Íato da interpenetração essa razão que eu distingui entre, de uma
do Estado e da sociedade. A parte, as Íunções críticas dos processos
inÍraeslrutura da esfera pública se comunicacionais auto-Íegulados, sus-
transÍormou com as formas de tentados por instituições lassas,
organização, de distribuiçáo e de inte rd epende nles horizontalmente, de
consumo de uma produção de livros que natureza mais inclusiva e de Íorma mais
cresceu, se proÍissionalizou e se adaptou ou menos discursiva; e de outía parte,
às novas categorias de leitores e pela aquelas Íunçôes de inÍluência sobre as
publicação de lornais e revisias que decisões dos consumidores, dos eleitores
mudaram igualmente em seus e dos clientes das administrações, saídos
conteúdos. Ela de novo se transformou de organizações que intervêm em um
com o desenvolvimento dos meios espaço público dominado pelas mÍdias de
eletrônicos de massa, com a importância massa a Íim de mobilizar o poder de
recente da publicidade, a assimilaÇão compra, a lealdade ou a boa conduta.
crescente da inÍormação, a centralização Esses mecanismos de extoÍsáo exercidos
reforçada em todos os domínios, o sobre um espaço público percêbido como
declínio da vida associativa liberal, dos simples ambiente de sistemas particulaÍes
espaÇos públicos locais, etc... Essas encontra uma comunicaÇão pública que
tendências Íoram compreendidas se regenera espontaneamenle às custas
corretamente, mesmo que tenha havido, do mundo vivido. E o que significava a tese
nesse meio tempo, pesquisas mais segundo a qual a esÍera pública não pode
detalhadas. Com a comercialização e a se constituir no quadro do estado social a
condensação da rede comunicacional, o não ser obedecendo a um processo de
crescimento dos investimenlos e do grau autocriação: é somente passo a passo que
de organização das instituições ela se restabelecerá, e em concorrência
mediáticas, as vias de comunicação obrigatória com aquela outra tendência
Íoram mais Íortemente canalizadas e as que, no seio de um espaço público'
chances de acesso à comunicação desmesu radamente alargado e
pública Íoram submetidas a retornando contra si próprio o princípio de
constrangimentos de seleção sempre publicidade, procura desmobilizar seu
mais poderosos. Disso resultou uma potencial cr ílico (ÊP :2421.
nova categoria de inÍluência, o poder Mesmo que eu mantenha em
miediático, que, utilizado de maneira suas linhas gerais a descrição das
manipuladora, roubou a inocência do transformações da inÍraestrutura de um
princípio de publicidade. O espaço espaço público vassalizado pelo poder,
público, que é, ao mesmo tempo, pré- algumas revisóes devem ser trazidas à
estruturado e dominado pelos mrdia de minha análise e, sobretudo, à minha
massa, tornou-se uma verdadeira arena avaliação da mudança de comportamento
vassalizada pelo poder, no seio da qual do público. Fletrospeclivamente, eu vejo
se luta por temas, por contribuiÇões, não muitas razões para isso. A sociologia
somente para a inÍluência, como também eleitoral estava, ainda, na Alemanha,
para um controle (tão dissimulado quanlo apenas em seu começo. Nessa época, eu
possível) dos Íluxos de comunicação conÍrontei minhas primeiras experiências

!
c
'16 cÂDERNo DE FlLosoar E c,É\ctAl
llUMÂNÂS An. Vll §" l: AhÍ'l/99

---,
.o r:-selço eúruco,, pessoais com as primeiras campanhas culluÍa a um consumo da cultura", é muito
30 ANOS DEPOIS
eleitorais conduzidas à base de reducionista. Eu avaliei de maneira muito
sondagens, segundo estratégias de pessimista a capacidade de resistência
marketing. A populaÇão da BDA acaba e, sobretudo, o potencial crítico de um
sem dúvida de conhecer experiências público de massa pluralista e laÍgamente
desagradáveis semêlhantes à campanha diÍerenciado, que tranborda as fronteiras
eleitoral dos partidos polÍticos do oeste de classe em seus hábitos culturais. A
que invadiram seu território. Da mesma partir do Íato da permeabilidade crescente
Íorma, a televisão tinha apenas tomado de ÍronteiÍas entre cultura ordinária e alta
pé na República Federal. Eu aprendi a cultura, e da "nova intimidade entre
conhecê-la pela primeira vez apenas polÍtica e cultura" ela própria ambivalente,
vários anos mais tarde nos Estados e nâo assimilando a inÍormação
Unidos. Eu não podia então conÍronlar simplesmente para distração. os próprios
minhas leituras a experiências de primeira critérios de julgamento mudaram.
mão. Além disso, não é difÍcil de Eu não saberia dar referências
reconhecer a forte inÍluência exercida sobre a literatura, muito abundante,
pela teoria de massa de Adorno. Ademais, consagrada à socioiogia do
os resultados deprimentes de minhas comportamento político, pois eu a segui
pesquisas empíricas sobre 'os estudantes apenas esporadicamente. A pesquisa
e a política", que acabavam de ser sobre as mÍdias e, sobretudo, as análises
concluídos naquele momento, poderiam da sociologia da comunicação sobÍe os
constituir uma razáo suplementar para eÍeitos sociais da televisão são também
subestimaÍ a inÍluência do desen- importantes paÍa o estudo das
volvimento da Íormação escolar, primária transÍormações estruturais do espaÇo
e, sobretudo, secundária, sobre a público. A época, eu estava sob a
mobilização cultural e o desenvolvimento inÍluência das conclusões da tradiçáo da
da crítica. A bem dizer, na Bepública pesquisa Íundada por LazarsÍeld, tradição
Federal, o processo que Parsons nomeou que era criticada violentamente nos anos
mais tarde a'?evolução da educação" náo 70, em razão da sua concepção
tinha ainda se colocado em marcha. individualista e behaviorista, reduzida à
Finalmenle, é surpreendente que Íalte a psicologia dos pequenos grupos. No outro
tudo isso uma dimensão, aquela que, campo, a abordagem crítica se
nesse meio tempo, reteve a atenção sobre desenvolveu numa perspectiva mais
o termo "cultura cÍvica". Ainda em 1963, Íorlemente empírica e a pesquisa em
G. A. Almond e S.Verba não quiseram comunicaçáo transportou sua atenção, de
apreender a cultura cívica, a não ser um lado, sobre o contexto institucional
apoiando-se sobre um número limitado de das mídias e, de outro lado, sobre o
variáveis de atitudes. Mesmo as contexto cultural da recepçáo. A distinção
pesquisas mais amplas sobre a de S. Hall entÍe três diÍerentes estratégias
1
transÍormação de valores, que inspiravam de inteÍpretação de receptores, seja
as análises de Bonald lnglehart em Á submetendo-se à sua estrutura de oÍerta,
1
revolução silenciosa (Princeton, 1977), seja opondo-lhes suas próP rias
não se estendiam ainda em toda a sua interpretaçóes, seja adiculando uma à
i amplitude às mentalidades polÍticas, outra, ilustra bem a mudança de
ligadas a evidências culturais, nas quais peÍspectiva em relação aos modelos mais
I
l o potencial de reação de um público de antigos de explicação, que se baseavam,
3 massa está enraizado historicamente. ainda, sobre um encadeamenlo linear de
a Numa palavra, meu diagnóstico eÍeilos.
t, de uma evolução linear de um público 4 - No último capítulo do livro, eu

u
politicamente ativo a um público havia tentado reunir os dois aspectos: o
"privatista", de uma "racionalização da diagnóstico empírico do declínio da esÍera

a
CÀDERNo oE FtLosoFtA E crÊNclÂs
,5 17
)9
!L\lÂNAs . Áno v N" tt Áb.it/99
I'
I
*o ESPAçO PUBLICO" pública liberal e o ponto de vista representar o ponto de junção virtual para
]O ÀNOS DEPOIS normativo de uma reciclagem uma comunicaçáo pública ainda suscetível
democrática radical e de uma de ser regenerada. Essa conseqüência
reconversão da interpenetração funcional resultava da passagem a uma sociedade
do Estado e da sociedade, que se de organização, na qual não são mais os
desenrola objetivamente quase abaixo indivíduos livremenle associados, mas os
das cabeças dos participantes. Esses membros de grupos coletivos organizados
dois aspectos se reÍletem, no seio de um espaço público policênlrico,
respectivamente, nas conceituações que entram em concorrência PaÍa
opostas de opinião pública. Na teoria obtenção do consentimenlo de massas
normaliva da democracia, a opiniáo passivas, que lutam, tanlo entre si, como,
pública, como ficçáo do Estado sobretudo, contra o complexo massivo das
constitucional, conserva seu aspecto de burocracias estatais com vistas a
unicidade na sua dimensão contrafactual. estabelecer compromissos de interêsses
Pelo conÍário, nas análises empíricas da e de poder. E sob premissas semelhanles
pesquisa sobre as mídias e da sociologia que Norberto Bobbio, nos anos 80,
da comunicaÇão, essa entidade se concebeu sua leoria da democracia.
dissolveu desde muito tempo. Mas se se Bem ente ndido que, nesse
quer compreender o modo de legitimação modelo, reÍlete-se esse pluralismo de
eÍetivamente estabelecido nas interesses irreconciliávêis que já tinha sido
democracias de massa do Estado Social, objeto da objeção dos teóricos liberais
é preciso ler em conta esses dois contra a tirania da maioria. Tocqueville e
aspectos sem sacriÍicar a distinção entre J. Sl. Mill talvez não tivessem culpa,
processos de comunicação pública inteiramente quando eles acreditavam
aulônomos e aqueles que são reconhecer, nessa noÇáo primeira do
vassalizarlos pelo poder. liberalismo, uma Íormaçáo discursiva da
E nessa perspectiva que se opinião e da vontade, nada mais que poder
explica o modelo, provisoriamente disÍarçado da maioria. De um ponto de
esboçado no Íim do livro, de uma arena vista normativo, a opinião pública era
dominada pelos mass-midia, na qual se tolerada por eles, quando muito, como
chocam tendências contraditórias. O uma instância de limitação do poder, mas
nível de vassalizaçáo do poder devia-se de nenhuma maneira como um meio de
medir em Íunção do grau segundo o qual uma racionalização possível do poder em ,

as opiniões inÍormais, não públicas (e, geral. Se se veriÍicava eÍetivamente "que


pois, essas evidências culturais, que um anlagonismo de interesses, se ele,
constituem o conlexto do mundo vivido permanece Íu ndame nta lm e nte irredulí-
eo fundamento da comunicação vel,... impõe limiles estreitos a uma esÍera
pública), são curto-circuitadas pelo fluxo pública cuja Íunção crítica se transformou"
de opiniões Íormais, quase públicas, (EP: 2a3), náo era, de Íorma nenhuma,,
produzidas para os mass-midia, sobre as suÍiciente levar em conta simplesmente,r
quais a economia e o Estado tendem a como eu o fiz no parágrafo 15, o caráter
agir como sobre elementos do ambiente ambivalente da concepção liberal da
do sistema, ou melhor, na medida em esÍera pública.
que esses dois domínios são
mediatizados por uma publicidade crítica. lll. Um Quadro Teórico ModiÍicado
Eu considerava, então, que essa 1

publicidade crítica não podia ser levada Eu conservo, agora como antes,l
senão pelos partidos e pelas associações a intenção que guiou o conjunto da
democratizadas do interior. Os espaços pesquisa. As democracias de massa do
públicos conslituídos no seio dos partidos Estado Social não. podem ser
e das associações me pareciam apreendidas, segundo uma compreensão

18 cADER\O 0[ FTLOSOFTÀ E CtÉNCtAs

-----
tlU!lANÁS À r. vll N' : - Ahr l/99
,,o ESPAÇO PUBLTCO" normaliva delas mesmas, numa potencial utópico. A dinâmica do
30 ANOS DEPOIS continuidade com os princÍpios do Estado desenvolvimento h istórico deve ria
constilucional liberal tanto tempo guanto igualmênlê se nutrir dessa lensão entre
elas levem a sério as exrgências de um ldéia e Realidade.
espaço público exercêndo uma Íunção Essa Íorma de pensamento náo
política. Mas, neste caso, é preciso conduziu, no entanto, somente de
demonstrar como é possÍvel, em maneira enganosa, a uma idealização da
sociedades como as nossas, que "o esÍera pública burguesa, que ultrapassa
público, através dessas oÍganizações que o senso metodológico de idealização
o vassalizam, deflagre um processo crÍtico inscÍito na Íormação ideal típica desses
de comunicação pública". (8.P.: 241). Foi termos; ela se apóia, ao menos
só no fim da obra que me conÍrontei com implicitamente, sobre pressuposições
esse problema, que eu apenas Íiz aÍloÊÍ, íundamentais da Íilosofia da história que
é verdade, sem o tralar de Íorma Íoram desmentidas pelas barbáries
satisÍatória. A contribuição de O Espaço civilizadas do século XX. Ouando os
Público a uma leoria contemporânea da ideais burgueses sáo suprimidos, quando
democracia deve ter parecido ambígua, a consciência se torna cínica, essas
"se a multiplicidade não reduzida de normas e essas orientações normativas,
interesses em conÍlito... faz realmente sobre as quais a crítica ideológica deve
duvidar que dela pudesse algum dia surgir supor a concordância, se se quer a elas
o interesse geral ao qual a opinião pública Íazer reÍerência, desabam. Por essa
poderia se reÍerir como um cÍitério" (EP.: razão, eu propus colocar os Íundamentos
243). Com os instrumenlos leóricos que normatrvos de uma teoria crÍtica da
estavam, então, à minha disposição, eu sociedade a um nível mais proÍundo. A
náo podia resolver o problema. A teoria do agir comunicativo deve soltar um
constituição do quadro teórico no qual eu potencial de racionalidade inscÍito na
posso, hoje, reÍormular a questáo e ao própria prática comunicativa cotidiana.
menos esboçar uma resposta necessita De certa maneira, esta teoria aplaina o
de avanços suplementares. Eu gostaria lerreno para uma ciência social que
de lembrar brevemente as etapas desse procede de maneira reconstrutiva,
peÍcurso. identif icando pÍocessos gerais de
1- Uma primeira impressão pode racionaliza@o cultural e social e reÍletindo
Íazer crer que O Espaço Público Íoi escrito sobre os que se desdobÍam do lado de
num estilo de história social descritiva, na cá das sociedades modernas. Assim, não
perspectiva de Max Weber; mas a se trata mais de pesquisar potenciais
dialética da eslera pública burguesa, que normativos exclusivamente na Íormação
determina a estrutura da obra, trai da esfera pública que se maniÍesta no
imediatamentê uma perspectiva própria quadro de uma época especíÍica. O
à crítica das ideologias. Os ideais do conslrangimento de estilização dos traços
humanismo burguês - que marcam como típicos especíÍicos de uma racionalidade
Í a esÍera íntima e a esÍera pública estão comunicacional encarnada nas
I compreendidas nelas mesmas e se instituições é descartada em pÍoveito de
articulam com os conceitos-chave de uma preocupação empírica que dilui a
subjetividade, dê realizaÇão de si, de tensão instaurada no contraste abstrato
Íormação racional da vontade e de opiniáo entre norma e realidade. Além disso, de
assim como de autodeterminação uma maneira distinta das suposições
i, individual e política - impregnaram de tal clássicas do materialismo histórico, a
a maneira as instituições do estado significação estrutural especíÍica e a.
0 constitucional que eles Íoram remetidos história interna dos sistemas culturais de
Í para além da realidade constitucional que interpretaçáo e de tÍadiÇÕes, podem
0 os contradizem, ao mesmo tempo, como assim, ser postas em dia.

a
\5 cÁDERl.io D€ trtLosoFIÂ E crÊNcr^s
liúM^N^s Áno vlt . N. tt . Abnr/99 19
I
I

.O I
ESPAÇO PUBLICO" A perspectiva de uma teoria da mundo vivido e sistema na Theorie de i
30 ANOS DEPOIS democracia, a partir da qual eu analisei l'ag ir com mun ication nel (1981, trad.
a transformação estrutural da esÍera Írancesa, Fayard, 1987). lsso comporta I

I
pública, devia muito à concepçâo finalmente consequências decisivas para
proposta por Abendroth de uma evolução o conceito de Democracia.
do Estado constitucional democrático e Eu considero, desde então, a
social para uma democracia socialista. economia e o aparelho de Estado como I
Ela permanece atracada, de maneira domínios de aÇão integ rados I

geral, a uma concepção totalizante da sistemicamente e que não podem ser I

sociedade e da auto organização social, transformados do interior, isto é,


concepção tornada, entretanto, bêm tÍanspostos de um modo político de
duvidosa. Administrando-se a si mesma, integÍaçáo, sem que sua signiÍicação I

programando todos os domínios da vida, sistêmica própria não seja daniÍicada e sua I
aí compreendida sua reprodução capacidade Íuncional contrariada. A
econômica, graças a uma legislação Íalência do socialrsmo de estado a
planiÍicada, a sociedade devia ser conÍirmou. O horizonte de uma I
integÍada pela vontade política do povo democratizaÇão radical se caracteriza,
soberano. Mas a suposição segundo a doravante, também na perspectiva de um
qual a sociedade poderia ser concebida deslocamento de Íorças no seio de uma l
por atacado, na sua totalidade, como divisão dos poderes mantida por princÍpio.
uma associaçáo que age sobre ela Assim, não é mais entre os poderes de
mesma por me[o do direito e do poder Estado, mas entre diÍerentes recursos de
político, perdeu toda plausibilidade em integração social que um novo equlÍbrio
vista do grau de complexidade atingido deve ser estabelecido. O objetivo não é
pelas sociedades Íu ncionalme nte mais simplesmente a aboliçáo de um i l
diÍerenciadas. Em particular, a noção sistema econômico tornado autônomo sob
holística de uma totalidade social à qual sua Íorma capitalista e um sistema de I
pertenceriam indivÍduos socializados dominação tornado autônomo sob sua I
como membros de uma organizaçáo que Íorma burocrática, mas, antes, a
os englobaria, se choca com as domesticaÇão democrática do processo
realidades de um sistema econômico de colonização dos domínios do mundo
regulado pelo mercado e de um sislema vivido pelos imperativos do sistema.
administrativo regulado pelo poder. Em Dessa maneira, a representaÇão, própria
A Técnica e a Ciência como ldeologia à ÍilosoÍia da práxis, da alienação e da I
(1968, trad. Írancesa, Gallimard, 1 973), apropriação de Íorças objetivadas, pode '' I
eu ainda tentei distinguir os sistemas de ser dispensada. Uma mudança,
ação do Estado e da Economia no seio democrática Íadical do processo de,
t
de uma teoria da ação, através da Iegitimação visa um novo equilíbrio entre'
oposiçáo entre, de uma parte, o agir com diÍerentes poderes e o princÍpio del
Íinalidade ou orientado para o sucesso integraÇão da sôciedade, a Íim de que ai
e, de outra, o agir comunicacional. Esse Íorça de integraÇão social da solidariedade'
paralelo simplista dos sistemas de ação - "a Íorça produtiva de comunicação" -l

e dos tipos de ação conduzia a duas possa se impor contra os poderes de dois'
inépcias. Essas já me haviam conduzido, outros recursos reguladores, o dinheiro e
em Raison et Legitimité (1973, trad. o poder administrativo, e, assim, ÍazeÍ"
francesa, Payot, 1978), a reunir o valerem as pretensões do mundo vivido'
conceito de mundo vivido, introduzido em orientadas pelo valor de uso.
Logique des Sciences Sociales (1967, 3 - A Íorça de lntegração socia{
trad. Írancesa, PUF, 1987), com aquele do agir comunicativo tem como lugar antes
que mantém suas Íronteiras. Daí surgiu de tudo essas formas de vida e mundos
a dupla conceituaçáo da sociedade como vividos particulares entrelaçados a

cADERNo DE FtLosoHA E ctÊNc cÁD


20 HUMAN^S . Áno Vli N' l: . Hu
^bra
"o ESPAÇO PÚBLrCO. tradiçôes e interesses sempre concretos
30 ANOS DEPOIS
burocracias do Estado-providência se
- o que Hegel chama a esfera Sittlichkeit.
sobrepÕem: "A democracia de massa do
Mas o poder de ação que Íunda a Estado -Providência produziu a categoria
solidariedade desses modos de vida não paradoxal de pessoa privada socializada,
se trasmite imediatamente ao nível polÍtico que nós designamos comumente como
do comportamento democÍático de cliente e que se unlveÍsaliza socialmente
regulação do poder e de inteÍesses. E na medida em que se Íunde com o papel
ainda menos o caso nas sociedades pós- de cidadão". O universalismo democrático
tradicionais, onde nenhuma homoge- se tornou um "particularismo gene-
neidade de convicções de pano de Íundo ralizado".
pode ser suposta, e onde a presunção de No parágrafo 12, eu já critiquei
um interesse de classe comum cede lugar a "Democracia de opinião não-pública"
ao pluralismo não totalizável de Íormas de Rouseau, pela razão de que ele
de vida concorrentes e iguais em direito. concebia a vontade geral antes como um
Certamente, na Íormulação intersubjetiva "consenso de corações que como
do conceito de solidariedade - que religa consenso de argumentos". No lugar
a compreensão a pretensões de validade disso, a moral, que Rouseau exige dos
criticável e à possibilidade, para suieitos cidadãos e que ele Íaz repousar sobre
responsáveis e autônomos por seus alos, as motivações e as virtudes dos
de responder negativamente as - indivíduos, deve ser ancorada no
conotaçÕes usuais de unidade e de pÍocesso mesmo de comun icaçâo
totalidade desaparecem. pública. Esse ponto capital foi
Entretanto, nessa versão conceituado por B. Manin:
abstrata, o termo "solidariedade" não teria "E necessário modif icar radi-
condições de sugerir o modelo errôneo calmemte a perspectiva ao mesmo
da Íormação da vontade de Rousseau, tempo comum às teorias liberais e
segundo o qual deviam ser determinadas ao pensamento democrático: a
as condições sob as quais a vontade fonte de legilimidade náo é a
empÍrica dos cidadãos singulares poderia vontade pré-determinada dos
se lransÍormar imedialamente em indivíduos, mas antes o processo
vontade racional de cidadãos morais de sua tormaçào, isto é, a própria
orientados para o bem público. delibe ração... Uma decisão leg ítima
I Rouseau Íundava essa exigência não representa a vontade de todos,
t de virtude (sempre ilusória) sobre uma mas constitue o resultado de uma
divisão de papéis de "bourgeois" (em deliberaçáo de todos. E o processo
francês no texlo) e de "citoyen" (idem), pelo qual se constitui a vontade de
que Íazia da independência econômica e cada um que conÍere sua
da iguáldade de oportunidades as legitimidade ao resultado antes que
e condições de um estatuto de cidadão a soma das vontades já
cl autônomo. O Estado-Social põe em determinadas. O princípio deli-
e questão essa divisáo de papéis: "Nas berativo é ao mesmo tempo
democracias ocidêntais modernas, essa individualista e demo-crático...Nós
relaçáo se inverteu: a
Íormação devemos aíirmar, com o risco de
e democrática da vontade tornou-se um contradizer uma longa tradição,
)l instrumenlo de desenvolvimento da que a lei legítima é o resultado da
l0 igualdade social no sentido de uma delibetaçào geral e nào a
repartição a mais homogênea possível expressáo da vontade geral".
al dos bens sociais aos indvíduos". U. Dessa maneira, o Íardo da Prova
Preuss sublinha, com razáo, que hoje, no se desloca da moral dos cidadãos para
)5 processo político, o papel público do os comportamentos de Íormação da
a cidadão e o papel privado do cliente das moral democrática da vontade e da

l-
ú CADERNo oE ÊtlosoFla E c'ÊNctÁs 21
9, HuM,\NÁs . atrô vt, N" t? . abrit/9g
..o ESPAÇO PÚBLICO'' opinião, que devem justiÍicar a presunÇao Ora, dePois de vinte anos,
30 ÀNOS DEPOIS de obtenção possível de resultados J.Bawls e R. Dworkin, B Ackermann, P'
racionais. Lorenzen e K. O. Apel apresentaram a
4 - Por essa razão, o espaço esse respeito argumenlos segundo os
público político, exprimindo a própria quais as questÕes prático-políticas,:
quintessência dessas condições de enquanto de natureza moral, podem serl
comunicação pelas quais uma Íormação resolvidas de maneira racional. Esses
discursiva da opinião e da vontade de um autores explicitaram o "ponto de vista
público de cidadãos pode ser realizada, moral", em Íunçáo do qual Pode ser
constitui o conceito Íundamental de uma avaliado de maneira imparcial o que
teoria normativa da democracia. Nesse constitui a cada vez o interesse geral.
sentido, J. Cohen define o conceito de Como esse último é, igualmente,
"democracia deliberativa" da seguinte constantemente Íormulado e Íundado
maneira: racionalmente as máximas de
"a noçào de democracia universalização e os princípios morais,
deliberativa se enraíza no ideal tornou-se claro nessas importantes
intuitivo de uma associaçao discussões que uma generalização dos
democrática, no seio da qual a inteÍesses - e uma aplicação adequada
justificação dos termos e das das normas que represenlam tais I

condições de associação procede interesses gerais - pode se apoiar em boas r


1

de uma argumentação e de uma razões. Eu também desenvolvi coml


racionalizaçáo pública de cidadãos O. Apel uma concepção de ética de I

iguais. Os cidadáos, numa tal discussão que caÍacleÍiza a,


i
ordem, paftilham um engajamento argumentaÇão como o comportamento dei t.

comum írente à resolução de regulamentação dos queslões morais-.


problemas de escolha coletiva práticas. Assim, uma resposta é oÍerecidar
através de uma racionalização à segunda das duas questôes
pública, e consideram suas mencionadas.
instituições de base legítimas na A élica da discussào não visa. i
medida em que elas estabelecem somente obter, de maneira geral, a partirl
um quadro Íavorável a uma do conteúdo normativo das pressu-
deliberação pública livre". posiçoes pragmáticas da argumentação,
Esta concepção discursiva da um princípio moral universal. Esse própriol
democracia repousa sobre a mobilização princípio se relaciona, anles, com al I
coletiva e a utilização da Íorça produtiva elucidação das pretensões normativas à_ I
constitui a comunicação. Nesse caso, é validade, pois liga a validade das normasj
t
preciso, entretanto, demonstrar, de um à possrbilidade de um acordo justiÍicado,
lado, que as questões sociais das pessoas concernidas, enquanto: I
controversas podem ser regu ladas pessoas que assumem o papel del
gêralmente de maneira racional, isto é, participantes na argumentaÇào. Nessa' I

no interesse comum das pessoas a elas variante, a clarificação de questõesl


concernidas; de outro é preciso explicar políticas, ênquanto concernenle ao ,l
por que o meio da argumentaÇão e da seu núcleo ético, depende doi
negociação públicas se presta a uma tal estabelecimento de uma prática pública
forma raclonal de Íormação da vontade. de argúmentação. !

Senão, seria preciso dar raáo ao modelo Mesmo que as questões políticas
Iiberal, na sua premissa segundo a qual de princípio concernam quase sempre a
o compromisso enlre intêresses aspectos morais, é verdade que todas as.
irredutivelmemte em conÍlito não é outro questões que exigem, segundo regras
que o resultado de uma luta conduzrda institucionais, uma decisão poÍ parte das
numa peÍspecliva estratégica. instâncias polÍticas não são, de modo

I
caDÊRNo DE FrlosoFtA E clÉNcr HL
HUMÁNÁS Ano vll - N" ll - Abrilnl

l
.o ESPAÇO PÚBLrCO" algum, de natureza moral. Certas perspectiva de uma teoria normativa,
30 ANOS DEPOIS controvérsias políticas se relacionam, clarificar o conceito discursivo de
Írequentemente, a questóes empíricas, a democracia e torná-lo plausível, isso
inteÍpretação de Íatos materiais, a deixa aberta, ainda, a questão de saber
explicações, a prognósticos, etc... De como a Íormação discursiva da opinião e
outro lado, problemas de grande alcance, da vontade pode ser organizada nas
aqueles que se nomeiam como questões condições próprias às democracias
existenciais, não relevam Íreqüentemente sociais de massa, de lal manerÍa que a
questões de justiça, mas dizem respeito clivagem entre o interesse particular e a
a questóes da "boa vida", de auto orientação na direção do bem público,
compreensão ética e política, tanto a entre papel de cliente e o de cidadão seja
sociedade em seu conjunto quanto as superposto. Nas p ressu posiçôes
subculturas particulares. A maior parte comunicacionais de toda a prática
dos conflitos, enÍim, provem da colisão de argumentativa, integram-se iá a exigência
interesses de grupos e diz respeilo a de imparcialidade e a expectativa de que
problemas de partilha, que náo podem ser os participantes ponham em questão e
regulados a não ser em meio à Íormação ultrapassem suas preÍerências
de compromisso. Enlretanlo, essa particulares; a realização dessas duas
diÍerenciação no seio do domÍnio de pÍessuposiçÕes deve-se loÍnar Íotineira.
queslões relevantes da decisão política A resposta do direito natural moderno a
náo se opõe nem à primazia das esse problema consistiu em introduzir a
consideraçóes morais, nem à Íorma contÍadição legal e legítima. E o problema
argumentativa da comunicação política no conseculivo, o do domínio em nome da
seu conjunto. As questóes empíricas náo moral desse poder político necessário a
são, o mais Íreqüentemente, separáveis essa contÍadição legal, Íoi resolvido por
de questôes avaliativas e exigem. Kant pela sua noçáo de Estado de Direito.
naturalmente, um trabalho argumentativo. O desdobramento, na perspectiva da
Além disso, as compreensões ética e teoÍia da discussão, dessa idéia aponta
I
política da maneira pela qual nós, agora à noção de um direito que deve-se
I enquanlo membros de uma colelividade relacionar uma vez mais a ele mesmo:
particular, queremos vivêr, dêve ao menos ele deve, assim, garantir a modalidade
ser compatível com essas normas morais. discursiva segundo a qual a elaboração
)
Os debates devem se apoiar sobre a troca e a aplicação dos programas jurídicos
t de argumenlos: e que eles possam devem-se realizar sob as condições de
i conduzir a compromissos legais. .lsso argumentação. lsso signiÍica a
S
depende, essencialmente, das condiÇões institucionalização dos procedimentos
l comportamentais que devem ser jurídicos que asseguram uma realizaçáo
3
apreciadas de um ponto de visla moral. aproximativa das pressuposições que
A perspectiva da ética da exigem a comunicação para debates
discussão tem a vantagem de poder equ itativos e argumentações sem
a
s
especif icar os pressupostos da constrangimentos. Essas pressuposições
comunicação que devem ser satisÍatórios ideais exigem a participação de todas as
0
nas diÍerentes Íormas de argumenteção pessoas concernidas, a igualdade de
0
a e de negociação, a Íim de que os direito dos participantes, uma interaçáo
resultados de tais discussões possam sê desprovida de contradiÇões, uma boa Íé
prevalecer por eles mesmos da presunção quanto aos temas e às contribuições
rs
de racionalidade. Assim, ela abre propostas, o caráter revisável dos
a
rs
possibilidades de reatamentos empíricos resultados, etc. Nesse contexto, os
e sociológicos com as considerações procedimentos jurÍdicos seÍvem para '
IS

ls
normativas. Íazer valer os conslrangimentos
lo
5 - Oue se deva, Primeiro, na espaciais, temporais e materiais de

a cÀDERNo DE FlLosoFla E ctÊNctÀs


HLJMANAS - Aro vlt , N'tl .Abril/99

-r-
t
h

I
,,o ESPÀÇO PÚBLrCO" seleções que se maniÍestam na imediatas e o particulaÍismo generalizado "i
30 ANOS DEPOIS sociedade real no seio de uma comu- dos interesses organizados no seio das -,i
nidade de comunicação ideal. associações. A isso pertence igualmemte I

Assim, o princípio majoritário a idéia de uma ligaÇão das "ordens de I

I
deve ser c'ompreendido como um preÍerências múltiplas" com o voto dos I

d ispositivo que permite tornar eleitores. Tais sugestóes devem-se apoiar


l
compatível, tanto quanto possível, uma sobre uma análise dos obstáculos inscritos
Íormação discu rsiva da opiniáo, nos mecanismos existentes que I

orientada, em última instância, para a condicionam os cidadãos em uma


verdade, com uma Íormação da vontade disposição não-política e que os impedem
à qual é preciso pôr um termo. Na de adotar um ponto de vista reÍlexivo, para
concepção própria à ética da discussáo, além de seus interesses pessoais I

a decisáo majoritária deve manter uma imediatos. Em outros termos: a I


relação interna à pÍática argumentativa, elucidação, na perspectiva da teoria I
do que resultam outras medidas discursiva, da signiÍicaÇão democrática
inslitu cionais (por exemplo, as das instituições do Estado constitucional t;

contradições de ju stiÍicação, os deve ser completada pela análise crítica


princípios de distribuição de encargos dos mecanismos de alienação dos I
I
da prova, das leituras repetidas de cidadãos do processo político que se 1

projetos de lei, etc.). Uma decisão desenrola no seio das democracias de


I
ma.loritária não pode seÍ tomada senão massa do Estado Social. i
se seu conteúdo puder valer como o 6 - O valor normativo de uma I

t
resultado motivado racionalmente, concepção da democracia, relacionada
I
mesmo que Íalível, de uma discussáo aos processos discursivos de Íormação de
provisoriamente fechada sob a pressão valores e de normas no quadro de i
il
de uma decisão sobre a justa solução comunicações públicas, náo se esgota, no
de um problerna. E nessa mesma entanto, nos dispositivos institucionais i
perspectiva de uma institucionalização adaptados ao nÍvel do Estado consti- I

jurídica das condições comunicacionais tucional democrático. Ele remete, antes, I


gerais de uma Íormação discursiva da para além dos processos de comunicaçào i
vontade que podem ser compreendidas e de decisão constituídos Íormalmente. A I
outras instituições, como, por exemplo, Íormação da opinião organizada no seio l
a regulamentação da composição e o das assembléias legislativas, conduzindo I
método de trabalho das assembléias a decisôes responsáveis, não é adequada
legislativas, as responsabilidades e as aos objetivos de uma pesquisa I
imunidades dos representantes eleitos, cooperativa da verdade, a não ser na i
mas também o pluralismo político dos medida em que ela permaneÇa permeável
I
sistemas multipartidários, o constran- aos valores, aos temas, às contribuições
I
gimento para os partidos de massa de e aos argumentos que circulam livremente
reunir, nos seus programas, posições e no seio da comunicaçáo polílica que a I
I
interesses diferentes, etc. cerca. Essa deve ser tornada possível a I
I
A elucidação, no modelo da título de direito Íundamental, mas ela não rl
teoria da discussão, do sentido normativo pode ser totalmente organizada. A
das instituições existentes abre mais a expectativa, fundada sobre a teoria de
perspectiva de uma inlrodução e de uma resultados racionais, baseia-se mais sobre
experimentaÇão de novos dispositivos a conjunÇão enüe a Íormação política da
institucionais apropriados para se opor à vontade estabelecida institucionaimente e
clientelização do cidadáo. Esses devem os Íluxos de comunrcação espontâneos
administrar os intervalos entre esses dois não penetrados pelo poder, próprios de um
polos, interrompendo o curto-circuito espaço público que não é programado
entre as preÍerências paÍticu lares para a decisão, mas para a exploração e

r-r
24 cADERNo DE FtLosoFtA E ctÉNctas
ll
HUMANAS Ano Vll - N" - Abriu99 . HUNI
.,o usPÀÇO PUBLICO" a resolução de problemas e que é, então, o poder administratlvo. Essa inÍluência se
30 ANOS DEPOIS nesse senlido, não organizado. Se a idéia limita ao reconhecimento ou à privação
de soberania popular deve ainda de legitimidade. Esse poder comunicativo
encontrar, de maneira Íeallsta, uma não pode substituir a obstinaçáo
aplicação nas sociedades muito sistemática próp ria às burocracias
complexas, ela deve seí deslacada de públicas sobre as quais ele age "como
toda interpretação concreta, segundo a um cerco". Se a soberania popular se
qual a soberania popular estaria dissolve assim nos procedimentos, o
encarnada nos membros de uma lugar simbólico do poder que Íorma um
coletividade, fisicamente presentes, lugar vazio desde 1789, desde a abolição
participantes e cooperativos. das Íormas peternalistas de dominação,
Em certas circunstâncias, um não pode mais ser ocupado, como aÍirma
alargamento direto dos direitos Íormats de U. Ródel , em seguida a Claude LeÍort,
participação e de cogestáo conduz à por novas simbolizaçóes identitárias,
intensif icação de um "particularismo como o Povo ou a Nação.
generalizado", isto é, a essa realizaçáo
privileg iada de interesses locais lV. Sociedade Civil ou Espaço Público
particulares e especíÍicos a grupos que Político
Íorneceram, de Burke a Weber,
Shumpeter e os neoconservadores Sob premissas assim precisas e
contemporâneos, argumentos em favor modificadas, nós podemos Íinalmente
de um elitismo democrático. Uma retornar à descrição de um espaço
concepção comportamental da soberania público político, no qual se cruzam, pelo
popular como quintessência das menos, dois processos: a generalização
condições de realização de um processo comunicativa do poder legítimo de uma
discursivo de comunicação pública pode parte, e de outra, a ulilização
opor-se isso. A soberania popular manipuladora da mídia na criação de uma
totalmente dispersa não pode se encarnar lealdade das massas, de uma demanda
senão nessas Íormas de comunicação e de uma submissão em Íace dos
sem sujeilo, no entanto exigentes, que imperativos do sistema. A questão que
rêgulam o Íluxo de formação da opinião e permanece aberta, aquela do Íundamento
da vontade de tal maneira que seus e das Íontés de uma Íormação inÍormal
resultados, sempre Íalíveis, satisfaçam de opiniões no seio dos espaços públicos
essa presunção de racionalidade prática autônomos, não saberia mais ser
por si mesmos. A soberania liquidificada resolvida por um remetimento a garantias
comu nicacionalmente se Íaz valer no estatutárias do Estado Social e pela
podêr das discussões públicas que reivindicação holÍstica de uma auto or
descobrem temas pertinentes para o ganização política da sociedade. Nesse
conjunto da sociedade, interpretam ponto, Íecha-se antes, o círculo entre as
valores, contribuem para a resolução de transÍormações da esÍera pública política
problemas, produzem boas razões e e essas lendências de longo prazo que a
descartam as ruins. Essas opiniões teoria do agir comunicativo analisa como
devem, no entanto, tomar Íorma nas racionalização do mundo vivido. Um
resoluções que emanam das assembléias espaço público funcionando políticamente
constituídas democraticamente, porque a não tem necessidade de garantias
responsabilidade por rêsoluÇÕes oÍerecidas pelas instituições do Estado
entranhadas de conseqüências práticas de Direito. Ele depende, também, da
exige uma imputaÇão institucional. As sustentação de tradiçôes culturais, de
discussões não "governam". Elas geram modelos de socializaçáo, de uma cultura
um poder comunicativo que náo pode política própria a uma populaçáo
substituir, mas simplesmente inÍluenciar, habituada à liberdade.

cADERN() DE FrLosoFtA E clÊ,\crÂs


HtjMÂNAs Àno 25
YI . N. [ . ÂbÍ;t/99
t

..O ESPAÇO PÚBLICO'' Hoje, a queslão central do livro organizações proÍissionais, partidos i
30 A\OS DEPOIS está reÍormulada sob o título de uma políticos, sindicatos e instituiçÕes
i
"redescoberta da sociedade civil". Não é alternalivas.
suÍiciente remeter simplesmente ao J. Keane atribui a essas
"encontro" de mundos vividos associaçôes a tareÍa, até mesmo a Íunção,
diÍerenciados e a seu potencial de de "manter e redefinir as Íronteiras entre
t
reÍlexão. Não é preciso somente a sociedade civil e o Estado através de ,
I

proceder a uma concretização Írente aos dois processos. interdependentes e I

I
modelos de socialização e de tradiçoes simultâneos: a extensão da igualdade
culturais. Uma cultura política liberal, social e da liberdade e a reestruturaçáo e l
nutrida de motivações e de orientaçÕes a democratização do Estado". Trata-se, i
I
normativas, constitui, seguramente, um então, de associações que contribuem
terreno Íavorável para comunicações para a Íormação de opiniÕes. Elas não :

pú blicas espontáneas. Mas, mais pertencem, então, ao sistema


r
importantes ainda são as Íormas de administrativo como os partidos políticos I

difusão e de organização, os modos de Íortemente estatizados, mas elas visam !

institucionalizaçáo dos suportes de um eÍeitos polÍticos graÇas a uma inÍluência


espaço público não investido pelo poder. pública, seja porque elas participam l
I
E sobre esse ponto que conduzem as diretamente da comunicação pública, seia I
I.

mais recentes análises de C. OfÍe, que porque elas levam uma contribuição I

utilizam o conceito de "relações de implícita ao debate público, como, por I

associação" (Assoziationsverháltnisse) exemplo, pelos proietos alternativos, em


t
a Íim de conÍrontar "as categorias globais razáo do aspecto programático de suasj
de forma de vida e de mundo vivido que atividades. Da mesma maneira, OfÍel. I
devem asseguraÍ, no social, um suporte atribui às relações de associação a Íunção,
à ética da discussão com as calegorias t
de fornecer contextos especíÍicos paral
mais sociológicas". Esse conceito vago uma comunicação pública oÍerecendo aos
de " relaçóes de associaçáo' não se liga, cidadãos argumenlos s uf icie nte m e nte' I
i
por sorte, a essas "páicas associalivas", sólidos para um "agir responsável": I
que Íormaram outrora o subslrato social "Agir de maneira responsávelt
e a esfera pública burguesa. Ele lembra, significa que aquele que age adota
igualmente, a signiÍicaÇão, tornada metodicamente, írenle a suas.
corrente desde então, do termo próprias ações. a perspectiva de. I
sociedade civil, que à diíerença da
tradução moderna, desde Hegel e Marx,
exame ao mesmo tempo do expeft,l
do outro generatizado e de si1 ,f I

& societas civilis por sociedade próprio no Íuturo próximo, e destal,


burguesa, não compreende mais a maneira, valida os critérios tactuais,l
esÍera de uma economia regulada pelos
mercados do trabalho, do capital e de A conjunlura próp ria
ao;
bens. Procura-se, no entanto, em vão, desenvolvimento desse conce ito de!
deÍinições claras nas publicaçôes que se sociedade civil deve muito à crÍtica dal
reportam ao assunto. Em todos os casos, destruição totalitária do espaço públicol
o núcleo institucional da sociedade civil político, que Íizeram sobretudo osl
é constituído por esses agÍupamentos dissidentes do socialismo de Estado. {
voluntários Íora da esÍera do Estado e conceilo de totalitarismo - desenvolvido!
da economia, que vão, para citar apenas por Hanna Arendt - na perspectiva de uma,
alguns exemplos, das igrejas, das teoria da comunicação joga, aÍ, um pape[
associações e dos círculos culturais, muito importante. Em Íace de uma tal
passando pelas mídias independentes, repulsa, pode-se compreender por que âd
associações esportivas e de lazer, clubes associações, na origem da formação de
de debate, Íóruns e iniciativas cívicas, até opiniões, em torno das quais podem se

lo cÀDEÂNo DE ftLosoFtÀ E ctêNct


HUMÂNAS Ano V - N' l] . AhÍi HU
"O ESPAÇO PÚBLICO'' cristaliza r os
espaÇos públicos A.Arato e J. Cohen, na sua lentativa de
30 ANOS DEPOIS autônomos, beneÍiciam-se de uma tornar fecundo o conceito de sociedade
posição eminente na sociedade civil. A civil para uma teoria contemporânea da
dominação totalitária submete essa democracia, submetem-se à arquitetura
prática comunícativa dos cidadãos ao conceitual de Sistema/Mundo vivido
contÍole dos aparelhos da polícia secreta. esboçado na Teoria do Agir
As subversões revolucionárias na Europa Comunicativo.
do Leste e na Europa cenÍal conÍirmaram Eu gostaria de conluir indicando
essas análises. Elas náo se deÍlagaram, um estudo original que tem por tema a
por sorte, em razão de uma política de inÍluência das mídias eletrônicas sobre a
reforma que anunciava a Glasnost em reestruração das interações ordinárias.
suas bandeiras. Como em uma Seu título No sense of place avança a
experimenteção sociológica em dimensão proposiçáo segundo a qual de
natural, o aparelho de dominaçáo Íoi dissolveriam essas estruturas graças às
quebrado, de maneira exemplar, na RDA, quais os indivíduos socia lizados
pela pressão crescenle de movimentos percebiam suas posições sociais e se
I
cívicos agindo de maneira não violenta. situavam a si mesmos. Dessa vez, Íoram
I
E, a partir desses, Íormou-se em primeiro mesmo as Íronteiras sociais que
I lugar, a inÍraestrutura de uma nova ordem constituÍram as coordenadas
)
que se desenhava já sobre as ruínas do elemenlaÍes do espaço e do tempo
r
socialismo de Estado. Os pioneiros dessa histórico do mundo vivido que Íoram
I revolução Íoram essas associações de abaladas: "Numerosas caracterÍsticas de
l voluntários nas igrejas, os comitês de nossa 'êra da informação' nos Íazem
l direitos humanos, os círculos de oposição reunir às Íormas sociais e políticas as
l de ecologistas e Íeministas, contra cuja mais primitivas: a sociedade de caça e a
inÍluência latente o espaço público de coleta. Como os povos nômades, os
S
totalitário deveria sempre se defender caÇadores e os colelores não têm
pela violência. nehuma relação legal com o teÍritório.
lsso se passa de outro modo nas Eles têm apenas um frágil 'senso de
)l sociedades de tipo ocidental. Aqui, as espaÇo'; nenhuma atividade especíÍica é
a associaçôes voluntárias se Íormam no solidamenle ligada a um dado arranio
lg
s interior do quadro institucional Íísico. A ausência de fronteiras ao mesmo
democrático. E, aqui, pôe-se uma outra tempo nas sociedades de caça e nas de
1, questão à qual não se saberia responder coleta e nas sociedades eletrônicas
s, sem um trabalho empírico: é possível, e conduz a comparaçÕes surpreendentes.
la em que medida, que um espaço público De todas as Íormas de sociedade
s, dominado pelos mass-midia possa conhecidas antes da nossa, as
conceder oportunidades aos atores da sociedades de caça e as de coleta tiveram
r0 sociedadê civil de porem em cheque, com tendência â serem as mais igualitárias do
le alguma esperança, o poder invasor das ponto de vista dos papéis respectivos dos
la mídias políticas e econômicas e, então, homens e das mulheres, das crianças e
de mudar, de reconstituir de maneira dos adultos, dos dirigentes e dos seus
inovadora e de Íiltrar de maneira crÍtica o subordinados. A dificuldade de manter
0 espectro de valores, de temas e de razões diversos lugares separados ou esÍeras
jo
canalizadas por uma inÍluência exeÍcida sociais distintas tem a tendência de
nê do exterior? Parece-me que o conceito de misturar todos nos negócios de todos os
rd um espaço público exercendo uma Íunçáo oulros". Uma comprovação imprevista
tal política, desenvolvido em "O Espaço dessa tese provocadora é oÍerecida, de
as Público", oÍerece sempre, para a novo, pelos acontecimentos revo-
.1989.
de resolução desse problema, a perspectiva lucionários do ano de A subversão
s€ analítica adequada. Por essa razão, na RDA, na Tchecoslováquia e na

íb
'l^l (^DERNo DE FlLosoFtÀ E ctÉNctAs
l/9' HUMANÁs . ÀnÕ vr N" t Àbrir/99
27
Il-

t
.O ESPAÇO PÚBLICO'' Rumênia constituiu uma reação em acompanha de uma multiPlicação de I
.10 ANOS DEPoIS cadeia que não Íoi stmplesmente papéis mais esPecíficos, de uma I
I
apresentada como um acontecimento pluralização de Íormas de vida e de uma
histórico transmitido pela televisão, mas individualização de projetos de vida. O t

que se realizou, ela própria, ao modo de desenraizamento anda a Par com a i I

retransmissão televisada. As mídias de construção de pertencimentos e de laços t


massa não Íoram somente decisivas para comunitáÍios próprios, com o processo de 1

os eíeitos de propagação dessa diÍusão equalização a par da impotência em Íace r


I
I

através do mundo. Com efeito, a da complexidade e da opacidade dos


presença Íísica das massas se sistemas. São, então, mais os
maniÍestando nas praças e nas ruas, à desenvolvimentos complemen{ares que
i
diÍeÍença do que ocorria no século XIX e se imbricam. Assim, as mídias de massa
no começo do XX, pôde desencadear têm, também, em outros níveis, eÍeitos l I
uma violência revolucionária apenas na opostos. Muitos deles levam a crer que o I
medida em que ela era transÍormada, potencial democrático do espaço público, i

pela televisão, numa presença ubíqua. cula rnÍraestrutura é marcada por esses f
Considerando a normalidade constrangimentos de seleÇão crescentes
das sociedades ocidentais, a tese produzidos pela comunicaçáo eletrônica
lt
sustentada por J. Meyrowitz de uma de massa, é repleto de ambigüidades.
desestruturação pelas mÍdia de massa Eu quero dizer, desse modo, que, 1
das fronteiras sociais é, no entanto, muito se eu empreendesse hoje, de novo, a
linear. Algumas objeções vêm logo em análise da transÍormação estrutural do i
tl
seguida à mente. Essa des-diferenciação espaço público, eu não saberia determinar tl
e esta desestruturação das quais seria suas consequências para uma teoria da :i
vítima o nosso mundo vivido, o Íato da democracia. Pode ser que essa análise Íl
onipresença generalizada de oferecesse uma avaliaÇão menos l 4
acontecimentos de temporalidades pessimista que antes e apresentasse uma I

heterogêneas têm con seq ü ências perspectiva menos triste e simplesmente ^l


consideráveis para a percepção social de r
hipotética. 4
si. Mas essa desestruturação se 4'
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