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Tradução
TOMÁS ROSA BUENO
Tradução
TOMÁS ROSA BUENO
Revisão da tradução
Certos Ednasdo Silveira Matos
Revisões gráficas
Renato da Rocha Cortos
Flora Maria de Campos Fernandes
Produção gráfica
Geraldo Alves
12·09135 COD·128
PREFÁCIO
Pela dedicatória a Charles W. Hendel, desejo ex- agradecimentos ao Decano da Graduate School, pela hos-
pressar meus sentimentos de profunda gratidão para com pitalidade que me foi oferecida nos últimos três anos.
o homem que me ajudou, com zelo incansável, a pre- Uma palavra de agradecimento cordial também é devi-
parar este livro. Foi ele o primeiro a quem falei sobre da aos meus estudantes. Discuti com eles quase todos
o plano geral da obra. Sem o seu vívido interesse pelo os problemas contidos neste livro, e tenho a confiança
. tema do livro e seu amigável interesse pessoal pelo au- de que eles encontrarão muitos sinais do nosso trabalho
tor,' dificilmente eu teria encontrado o ânimo necessá- comumrias páginas que se seguem.
rio para publicá-Ia. Ele leu o manuscrito diversas ve- Estou agradecido ao Fluid Research Fund da Yale
zes, e sempre pude aceitar suas sugestões críticas, que U niversity pelos fundos de pesquisa que me ajudaram
se revelaram muito úteis e valiosas. a preparar este livro.
A dedicatória, no entanto, tem não apenas um sen-
tido pessoal, mas também' 'simbólico". Dedicando es- Ernst Cassirer
te livro ao Presidente -do Departamento de Filosofia e Yale University
ao Diretor de Pós-Graduação da Yale U niversity , que-
. ro expressar ao próprio Departamento meus cordiais
agradecimentos. Quando, há três anos, vim para a Ya-
le University , foi uma surpresa agradável encontrar uma
estreita colaboração que se estendia por todo um amplo
campo. Foi urn prazer especial, e um grande privilégio,
trabalhar com meus colegas mais jovens em seminários
conjuntos sobre diversos temas. Esta foi, com efeito, uma e..
experiência nova em minha longa vida acadêmica - e
uma experiência muito interessante e estimulante. Te-
rei sempre uma grata lembrança desses seminários con-
juntos - um sobre filosofia da história, outro sobre fi-
losofia da ciência e um terceiro sobre a teoria do conhe-
.cimento, realizados por Charles Hendel e Hajo Holborn,
F.S:C. Northrop e Heriry Margenau, Monroe Beards-
ley, Frederic Fitch e Charles Stevenson.
Devo ver neste livro, em larga medida, o desf~cho
do. meu trabalho na Graduate School da Yale Univer-
sity, e sirvo-me desta oportunidade para expressar meus
PARTE I
OOVE
....., É O HOMEM?
.
i.
-
CAPÍTULO I
A CRISE DO CONHECIMENTO
DE SI DO HOMEM
ideal e a empírico. Ele tenta explicar o mundo ideal, o mem. Nas primeiras explicações mitológicas do univer-
mundo da conhecimento, em termas de vida. Nas dois sO. encontramos sempre uma antropologia primitiva lado
domínios, segundo Aristóteles, encontramos a mesma a lado com uma cosmologia primitiva. A questão. da ori-
continuidade ininterrupta. Na natureza,assim como no gem da mundo. está inextricavelmente entrelaçada com
conhecimento humano, as formas superiores desenvol- a questãa? da origem do homem. A religião. não. destrói
vem-se, a partir de formas inferiores. A percepção das essas primeiras explicações mitalógicas. Ao contrário,
sentidos, a memória, a experiência, a imaginação e a preservo. a cosmalagia e a antropologia mitológicas
razão estão. todas ligadas por um vínculo comum; são dando-lhes nova forma e nova profundidade. A partir
apenas estágios e expressões diferentes de uma única e de então, a autoconhecimento não. é mais concebida co-
mesma atividade fundamental, que atinge a sua mais ma um interesse meramente teórico. Deixa de ser ape-
alta perfeição. no homem, mas que também, de certo mo- nas um tema de curiosidade ou especulação; é declara-
do, é compartilhada por tados os animais e todas às for- da como a abrigação fundamental do homem. Os gran-
mas de vida orgânica. des pensadores religiosos foram as primeiros a afirmar
Se fôssemos adotar essa visão bialógica, seria de es- essa exigência moral. Em todas as formas superiores de , '
perar que os primeiros estágios do conhecimento humano vida religiosa, a máxima "Canhece-te a ti mesmo" é
lidassem exclusivamente com o mundo externa. Para to- vista cama um imperativo categórico, como uma lei re-
das as suas necessidades imediatas e interesses práticos, ligiosa e moral suprema. Neste imperativa sentimos, par
o homem depende de seu ambiente físico. Não pode vi- assim dizer, uma súbita l\eversãa da primeira instinto
ver ;eIl).·uma constante adaptação. às condições do mundo. natural de conhecer - percebemos uma transavaliaçãa
que o rodeia. Os primeiras passas na direção. da vida ,- de ta das os valores . Nas histórias de todas as reli-
intelectual ecultural da homem podem ser descritos co- 'f
giões do mundo - na judaísmo, no b.pdismo, na con-
.rno atas que implicam uma espécie de ajuste mental ao 1 fucionismo e no cristianismo - podemos observar as
ambiente imediato. À medida que a cultura humana pro- etapas individuais desse desenvolvimento.
gride, porém, logoencontramas uma tendência aposta O mesmo princípio. é válido para a evolução geral
da vida humana. Desde os primeiros 'vislumbres de cons- do pensamento' filosófico. Em seus primeiras estágios,
ciência humana, encontramos uma visão introvertida da a filosofia grega parece ocupar-se exclusivamente do uni-
vida que acompanha e complementa essa visão. extro- verso física, A cosmologia tem uma clara predominân-
vertida. Quanto mais esse desenvolvimento. se afasta des- k
cia sobre todos as demais ramos de investigação filosó-
t, '
sas origens, mais essa visão introvertida vem ao. primeira 1., fica. Na entanto, é característica da profundidade e da
plano. A curiosidade natural do homem começaaos pau- "i abrangência da mente grega que quase todas os pensa-
cos a mudar de direçãa.Pademos estudar esse cresci- t .dores individuais representam ao. mesmo tempo. um novo
mento' em quase todas as formas da vida cultural da ho- tipo geral de pensamento. Para além da filosofia física
O QUE É O HOMEM~ 15
14 ENSAIO SOBRE O HOMEM
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mundo de nossos sentidos, é apenas pelo poder de nos- homem. As teorias estóica e cristã do homem não são
so juízo que podemos apreender essa ordem. O juízo necessariamente hostis uma à outra. Na história das
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é' o poder central no homem, a fonte comum da verda- i, idéias, ambas trabalham em conjunção, e com freqüência
;
de e da moralidade, pois é a única coisa em que o ho- as encontramos em estreita conexão em um único e mes-
~.
e.:
mem depende inteiramente de si mesmo; o juízo é li- mo pensador individual. Não obstante, sempre resta um
vre, autônomo e auto-suficientel". "Não te perturbes", l ponto em que o antagonismo entre os ideais estóico e
I
diz Marco Aurélio, \ cristão se revelou irreconciliável. A declarada indepen-
I
dência absoluta do homem, que na teoria estóica era con-
não sejas demasiado impaciente, mas sê teu próprio senhor, siderada como a virtude fundamental do homem, na teo-
e olha para a vida como varão, como ser humano, como cida- ria cristã torna-se o seu vício e erro fundamentais. En-
dão, como criatura mortal. .. As coisas não atingem a alma, quanto o homem persevera neste erro não há caminho
pois são externas e permanecem inamovíveis, mas nossa per- possível paca a salvação. A luta entre essas duas visões
turbação vem apenas do juízo que formamos em nós mesmos. conflitantes durou muitos séculos, e no início dà era mo-
Todas essas coisas que vês mudam imediatamente, e não ma.is derna - na época da Renascença e no século XVII -
serão; êlembra constantemente cjuantas dessas mudanças já sentimos ainda a sua força!".
. testemunhaste. O Universo - mudança, a Vida - afir- Aqui podemos apreender um dos traços caracterís-
• n;;ção13. ticos da filosofia antropológica. Esta não é, tal como ou-
.. . tros ramos da investigação filosófica, um lento e contí-
t
o maior mérito desta concepção estóica do homem está nua desenvolvimento de idéias gerais .•Mesmo na histó-
no fato de dar ao homem um profundo sentimento tan- ria da lógica, da rnetafísica e da filosofia natural encon-
to de sua harmonia com a natureza como da sua inde- tramos as mais nítidas oposições. Esta história pode ser
I
pendência moral em relação à natureza. Na mente do "
descrita, em termos hegelianos, como um processo dia-
!" lético em que cada tese é seguida de sua antítese. Ape-
filósofo estóico, essas asseverações não são conflitantes; I
estão correlacionadas 'uma à outra. O homem encontra-se sar diss~, há urna coerência interna, uma clara ordem
em perfeito equilíbrio com o universo, e sabe que este ,. lógica, que liga os diferentes estágios desse processo dia-
,:
equilíbrio não deve ser perturbado por nenhuma força lético. A filosofia antropológica, por outro lado, demons-
externa. Este é o caráter dual da "imperturbabilidade" tra um caráter totalmente diverso. Se quisermos apreen-
(àt7;POl~íOl) estóica. Esta teoria estóica revelou-se como der os seus reais sentido e importância, deveremos es-
. uma das mais potentes forças formativas da cultura an- colher, não o modo épico de descrição, e sim o dramá-
tiga,mas viu-se subitamente em presença de uma nova tico. Pois não somos confrontados com um desenvolvi-
força, até então desconhecida. O conflito com essa no- mento pacífico de conceitos ou teorias, mas com um
va força abalou em suas fundações o ideal clássico do choque entre poderes espirituais conflitantes. A histó-
22 ENSAIO SOBRE O HOMEM
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O QUE É O HOMEM.) 23
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ria <da,filosofia antropológica está cheia das mais pro-
fundas paixões e emoções humanas. Não se ocupa de mento, todo o poder original de raciocínio ficou obscu-
um único problema teórico, por mais geral que seja o recido. E a razãosozinha, deixada a si mesma e a suas
seu escopo; aqui, todo o destino do homem está em jo- próprias faculdades, nunca pode encontrar o caminho
go, e clamando por uma decisão definitiva. de volta. Não pode reconstruir-se; não pode,por seus
Essa característica do problema encontrou sua ex- próprios esforços, retomar à sua pura essência anterior.
pressão mais clara na obra de Agostinho. Agostinho Se tal transformação for algum dia possível, será ape-
situa-se na fronteira entre duas eras. Vivendo no século nas por ajuda sobrenatural, pelo poder da graça divi-
IV da era cristã, foi criado na tradição da filosofia gre- na. Assim é a nova antropologia, tal como é entendida
ga,' e é em especial o sistema do neoplatonismo que dei- por Agostinho, e mantida em todos os grandes sistemas
xou sua marca em toda a filosofia dele. Por outro lado de pensamento medieval. Até Tomás de Aquino, o dis-
porém, ele é o pioneiro do pensamento medieval; é .~ cípulo de Aristóteles, que volta às fontes da filosofia gre-
fundador da filosofia medieval e da dogrnática cristã. Em ga, não se aventura a desviar-se desse dogma fundamen-
suas Confissões podemos acompanhar cada passo da sua tal. Ele concede à razão humana um poder muito mais
passagem da filosofia grega para a revelação cristã. Se- alto que o concedido por Agostinho; mas está convenci-
gundo Agostinho, toda a filosofia anterior ao apareci- do de que a razão não pode usar corretamente esses po-
mento de Cristo padecia do mesmo erro fundamental deres a me~os que seja guiada e iluminada pela graça
e estava infectada por uma única e mesma heresia. O .de Deus. Chegamos aqui a uma inversão total de todos
poderda razão era exaltado como o mais alto poder do os valores sustentados pela filosofia grega. O que ou-
homem. Mas o que o homem jamais poderia ter sabi- trora parecia ser o mais alto privilégio do homem revela-
do, até ser iluminado por uma revelação divina espe- se como seu perigo e sua tentação; o que surgia como
cia( é ,que a própria razão é uma das coisas mais ques- seu orgulho torna-se sua mais profunda humilhação. O
tionáveis e ambíguas do mundo. A razão não nos pode preceito estóico de que o homem deve obedecer e reve-
mostrar o caminho para a clareza, a verdade e a sabe- renciar seu princípio interior, o "demônio" dentro de
doria, pois é em si mesma obscura em seu sentido, e sua si, é agora considerado como uma perigosa idolatria.
origem está envolta em mistério - um mistério que só Não épraticável continuar aqui a descrição do ca-
pode ser solucionado pela revelação cristã. Para Agos- o ráter dessa nova antropologia, analisar os seus motivos
tinho, a razão não tem uma natureza simples e única, fundamentais e acompanhar o seu desenvolvimento.
mas antes dupla edividida: O homem foi criado à ima- Mas, para podermos entender o seu propósito, podemos
gem de Deus; e em seu estado original, no qual saiu das escolheruma via diferente, mais direta. No início dos
mãos de Deus, era igual ao seu arquétipo. Mas tudo is- tempos modernos, apareceu UJ;t1 pensador que deu a es-
sofoi perdido com a queda de Adão. A partir desse mo- sa antropologia um novo vigd~ e um novo esplendor.
Na obra de Pascal, ela encontrou a sua última , e talvez
24 ENSAIO SOBRE O HOMEM O QUE É O HOMEM? 25
. mais impressionante, expressão. Pascal estava prepara- de seus princípios e na necessidade de suas deduções.
do para essa tarefa mais que qualquer outro escritor ja- Mas nem todos os objetos são passíveis de serem trata-
mais estivera. Possuía um dom incomparável para elu- dos desse modo. Há coisas que, em virtude de sua suti-
ci.dar ,as questões mais obscuras, e para condensar e con- leza e sua infinita variedade, desafiam toda tentativa de
centrar sistemas de pensamento complexos e disperses. análise lógica. E, se existe no mundo qualquer coisa que
Nada parece ser impermeável à agudeza de seu pensa- devamos tratar da segunda maneira, é a mente do ho-
mento e à-lucidez de seu estilo. Nele estão unidas todas mem. O que caracteriza o homem {a riqueza e sutile-
as vantagens da literatura e da filosofia modernas. To- za, a variedade e a versatilidade de sua natureza. Lo-
davia, ele as usa como armas contra o espírito moder- go, a matemática nunca poderá tornar-se o instrumen-
no, o espírito de Descartes e de sua filosofia. À primei- to de uma verdadeira doutrina do homem, de uma an-
ra vista, Pascal parece aceitar os pressupostos do carte- tropologia filosófica. É ridículo falar do homem como
.sianismo eda ciência moderna. Não há na natureza nada se fosse uma proposição geométrica. Uma filosofia mo-
que possa resistir ao esforço da razão científica, pois não ral nos termos de um sistema de geometria - uma Eihica
existe nada que possa resistir à geometria. É um evento more geometrico demonstrata - é para Pascal um absurdo,
curioso na história das idéias o fato de ter sido um dos um sonho filosófico. A lógica e a metafísica tradicionais
mai'ores e mais profundos geômetras que se tornou o de- tampouco estão em posição de entender e resolver o enig-
fensor temporão da filosofia antropológica da Idade Mé- ma do homem. Sua lei primeira e suprema é a lei da
<lia. Aos dezesseis anos de idade, Pascal escreveu o tra- contradição. O pensamento racional, o pensamento ló-
tado sobre secções cônicas, que abriu um novo campo, gico e metafísico só são capazes de compreender os ob-
muito rico e fértil, de pensamento geométrico. Mas ele jetos que estão livres de contradição e que tenham uma
não era apenas um grande geômetra, era também um natureza euma verdade coerentes. Contudo, é precisa-
filósofo; e, como filósofo, não estava meramente absor- mente essa homogeneidade que nunca encontramos no
to nos problemas geométricos, mas queria compreen- homem. Não se permite ao filósofo conceber um homem
der o verdadeiro uso, a extensão e os limites da geome- artificial; ele deve descrever o verdadeiro. Todas as cha-
tria. Foi desse modo levado a fazer a distinção funda- madas descrições do homem não são mais que especu-
mental entre o "espírito geométrico" e o "espírito agudo lações visionárias se não forem baseadas na nossa expe-
ou sutil". O espírito geométrico sobressai em todos aque- riência do homem, e por ela confirmadas. Não há ou-
les temas que são suscetíveis de uma análise perfeita - tra maneira de conhecer o homem senão pela compreen-
que podem ser divididos até seus elementos primeiros-''. são de sua vida e conduta. Mas o que encontramos aqui
Parte de certos axiomas e destes extrai inferências cuja desafia toda tentativa de inclusão em uma fórmula sim-
verdade pode ser demonstrada por regras lógicas uni- t
t·.
ples e única. A contradição é o próprio elemento da exis-
tência humana. O homem não tem uma' 'natureza",
versais. A vantagem desse espírito consiste na clareza
I
t
O QUE É O HOMEM? 27
26· ENSAIO SOBRE O HOMEM
•
condição, de que és ignorante. Ouve a Deus." 16
O que se apresenta aqui não pretende ser uma so-
.
,.
r
pois só assim pode apreender o absurdo, a contradíção
interna, o ser quimérico do homem. "Certamente na-
da nos marca com mais rudeza que essa doutrina; 'e no
lução teórica do problema do homem. A religião não po-
entanto, sem esse mistério, o mais incompreensível de
de proporcionar essa solução. Por seus adversários, a re-
ligião sempre foi acusada de obscuridade e incornpreen- •j:. todos, somos incompreensíveis para nós mesmos. O nó
de nossa condição dá suas voltas e mergulha nesse abis-
sibilidade. Mas tal acusação torna-se o mais alto louvor
mo, de tal modo que o homem é mais inconcebível sem
tão logo consideramos a sua verdadeira meta. A religião
esse mistério do que esse mistério é inconcebível para
não pode ser clara e racional. O que ela relata é uma
o homem. "19
história obscura e sombria: a história do pecado e da
queda do homem. Revela um fato para o qual nenhu-
ma explicação racional é possível. Não podemos dar con-
,.,..
l
dirigida contra toda a raça humana. ... Quem é que, ao veres- finito e o infinito, 7fÉpcxs e Cx7rHPO/l, são declarados por
tas nossas guerras civis, não exclama Que a máquinade todo no Philebus como os dois princípios fundamentais
o mundo está desarranjada, e que odia do juízo está próxi- estão necessariamente opostos um ao outro. Na dou-'
moi .. Mas quem quer que apresente à sua fantasia, como em trinade Bruno, a infinidade não significa mais uma mera
um quadro, a grande imagem de nossa mãe natureza, retra- negação ou limitação. Ao contrário; significa a imensu-
tada em toda a sua majestade e glória; quem quer que na face e inesgotáyel abundância da realidade e o poder
dela leia tão geral e tão constante variedade, quem quer que irrestrito do intelectohumano. É neste sentido que Bru-
se observe nessa figura, e não a si mesmo mas a todo um rei- entende e interpreta a doutrina copernicana. Esta dou-
. no, não 'maior que o menor toque de um lápis, em compara' segundo Bruno, foi o primeiro e decisivo passo em
ção com o todo, só esse homem é capaz de avaliar. as coisas "\CllI:t~çaoà autolibertação do homem. O Homem não vi-
estimativa e grandeza23.
de acordo corri s.uaverdadeira mais no mundo como um prisioneiro encerrado noin-
32 .ENSAIO SOBRE O HOMEM
o QUEÉ O HOMEM.) 33
terior das "paredes estreitas de um universo físico [mito. trar a realidade de Deus e, de maneira indireta, a reali-
Pqde atravessar os ares e romper todos os limites ima- dade do mundo material. Leibniz combina essa prova
i'·
ginár.ios das esferas celestiais erigidos por uma rnetafí- metafísica a uma nova prova científica. Descobre um
sica e umacosmologia falsas-". O universo infinito não novo instrumento de pensamento matemático - o cál-
fixa qualquer limite à razão humana. O intelecto hu- culo infinitesimal. Pelas regras desse ,rálculo, o univer-
mano toma consciência de sua própria infinidade me- so físico torna-se inteligível; vê-se que as leis da nature-
dindo seus poderes pelo universo infinito. za não são, nada além de casos especiais das leis gerais
Tudo isso é expresso na obra de Bruno em uma lin- da razão. E Spinoza que se aventura a dar o último pas-
guagem poética, e não científica. O novo mundo da ciên- so, decisivo, nessa teoria matemática do mundo e da
'cia moderna, a teoria matemática da natureza , ainda mente humana. Spinoza concebe uma nova ética uma
era desconhecida de Bruno. Ele não pôde, portanto, se- teoria d~s paixões e afetos, uma teoria matemática do
guir por seu caminho até sua conclusão lógica. Foram mundo moral. Está convencido de que só por meio des-
necessários os esforços combinados de todos os metafí- sa teoria podemos atingir o nosso fim: a meta de uma
sicos e cientistas do século XVII para superar a crise "filosofia do homem", de uma filosofia antropológica,
intelectualprovocada pela descoberta do sistema coper- que esteja livre dos erros e preconceitos de um sistema
nicano. Todo grande pensador - Galileu, Descartes, meramente antropocêntrico. Este é o tópico, o tema ge-
Leibniz, Spinoza - tem sua parte especial na solução ral, que em suas várias formas permeia todos os gran-
desse problema. Galileu afirma que, no campo da ma- des sistemas metafísicos do século XVII. É a solução ra-
temática, o homem alcança o ápice de todo o conheci- cionalista do problema do homem. A razão matemática
mento possível- conhecimento que não é inferior ao é o vínculo entre o homem e o universo; permite-nos
do intelecto divino. É claro que o intelecto divino co- passar livremente de um para o outro, A razão 'mate-
nhece e concebe um número infinitamente maior de ver- mática é a chave parauma verdadeira compreensão das
dadeematemáticas do que nós, mas, com relação à cer- ordens cósmica e moral.
teza objetiva, as poucas verdades conhecidas pela men-
te humana são conhecidas tão perfeitamente pelo homem
quanto o são por Deus-". Descartes começa com sua dú- 4
vida universal que parece encerrar o homem nos limi-
tes de sua própria consciência. Parece não haver saída Em 1754, Denis Diderot publicou uma série de afo-
desse círculo mágico - nenhuma abordagem da reali- rismos intitulada Pensées sur I'interprétation de Ia nature. Nes-
dade. Mesmo neste caso, porém, a idéia do infinito acaba se ensaio ele declarou que a superioridade da matemá-
'sendo o único instrumento para a derrubada da dúvida tica no domínio da ciência não é mais inconteste. A ma-
universal. Só por meio desse conceito podemos dernons- temática, afirmou, alcançou um tão alto grau de perfei-
34 ENSAIO SOBRE O HOMEM o QUE É O HOMEM? 35
. ção que nenhum progresso é mais possível; a partir desse Mas está chegando o momento em que superaremos esse
momento, a matemática permanecerá estacionária. preconceito, e então teremos chegado a um ponto novo
e culminante na história da ciência natural.
Nous touchons ali moment d'une grande révolution dans les . Terá sido cumprida a profecia de Diderot? Terá o
sciences. Au penchant que lcs esprits me paroissent avoir à desenvolvimento das idéias científicas no século XIX
Ia moi-ale, aux belles lettres, à I'histoire de Ia nature et à Ia confirmado a sua opinião? Em um ponto, sem dúvida,
physique cxpérimentale j'oserois presque assurer qu'avant qu'il o erro dele é óbvio. A sua expectativa de que o pensa-
soit cent ans' on ne comptera pas trois grands géometres en mento matemático se paralisaria, que os grandes mate-
Europe. Cette science s 'arrêtera tout court ou l'auront laissé máticos do século XVIII haviam chegado aos Pilares de
les Bernoulli, les Euler, les Maupertuis et les d' Alernbert. Ils Hércules, revelou-se inteiramente in~orreta. Àquela ga-
auront posés les colonnes d'HercuIe, on n'ira point au delà26.
láxia do século XVIII devemos agora acrescentar os no-
mes de Gauss, de Riemann, de Weierstrass, de Poinca-
Diderot é um dos grandes representantes da filoso- ré. Por toda a parte, na ciência do século XIX, depara-
fia do Iluminisrno. Como editor da Encyclopédie, ele está mos com a marcha triunfal de novas idéias e novos con-
no próprio. centro de todos os grandes movimentos in- ceitos matemáticos. Não obstante, a previsão de Dide-
telectuais de seutempo. Ninguém tinha uma perspecti- rot continha um elemento de verdade. Pois a inovação
va mais clara do desenvolvimento geral do pensamento da estrutura intelectual do século XIX está precisamente
científico; ninguém tinha uma sensibilidade mais agu- no lugar que o pensamento matemático ocupa na hie-
da para todas as tendências do século XVIII. É ainda rarquia científica. Uma nova força começa a surgir. O
mais característico e notável de Diderot que, represen- pensamento biológico toma a precedência sobre o pen-
-tando todos os ideais do Iluminismo , tenha começado samento matemático. N a primeira metade do século
.a duvidar da correção desses ideais. Ele espera o surgi- XIX há ainda alguns metafísicos, como Herbart, ou al-
mente de uma nova forma de ciência - uma ciência guns psicólogos, comoG. Th. Fechner , que nutrem a
de caráter mais concreto, baseada antes na observação esperança' de fundar uma psicologia matemática. Mas
dos fatos que na adoção de princípios gerais. De acordo tais projetos desaparecem rapidamente após a publica-
com Diderot, superestimamos demais os nossos méto- ção da obra de Darwin A Origem das Espécies. A partir
dos lógicos e racionais. Sabemos corno comparar, orga- desse momento, o verdadeiro caráter da filosofia antro-
.
nizar e' sistematizar os fatos conhecidos; mas não culti-
vamos os únicos métodos pelos quais seria possível des-
pológica parece ter sido fixado de uma vez por todas.
Após inúmeras tentativas infrutíferas, a filosofia do ho-
cobrir novos fatos. Somos vítimas da ilusão de que o ho- mem está finalmente em terreno firme. Não precisamos
mem que não sabe contar sua fortuna não está em me- mais dedicar-nos a especulações visionárias, pois não es-
lhor posição que o homem que não tem fortuna alguma. tamos em busca de uma definição geral da natureza ou
[',
t
I
36 ENSAIO SOBRE O HOMEM O QUE É O HOMEM? . 37
'da essência do homem, O nosso problema é simplesmen- sas finais de Aristóteles são caracterizadas como um mero
te colher as evidências empíricas que a teoria geral da asylum ignorantiae. Um dos principais objetivos da obra
evolução colocou à nossa disposição em uma medida ri- de Darwin foi livrar o pensamento moderno dessa ilu-
ca e abundante. são de causas finais, Devemos procurar entender a es-
Tal era a convicção comum aos cientistas e filóso- , trutura da natureza orgânica unicamente por causas ma-
fos do século XIX, Mas o que se tornou mais impor- teriais, ou não poderemos entendê-Ia. Mas as causas ma-
tante para a história geral das idéias e para o desenvol- teriais são, na terminologia de Aristóteles, causas "aci-
vimento do pensamento filosófico não foram os fatos em- dentais", Aristóteles havia afirmado enfaticamente. a im-
píricos da evolução, e sim a interpretação teórica desses possibilidade de se entender o fenômeno da vida por tais
fatos. Essa-interpretação não foi determinada, em um causas acidentais. A teoria moderna aceita esse desafio,
sentido inequívoco, pela própria evidência empírica, mas Pensadores modernos afirmaram que, após as inúme-
antes por certos princípios fundamentais que tinham um ras tentativas infrutíferas dos tempos antigos, consegui-
caráter metafísico definido, Embora raramente reconhe- ram definitivamente dar conta da vida orgânica como
cido, esse cariz metafísico do pensamento evolucioná- um mero produto do acaso, As mudanças acidentais que
rio foi uma força motivadora latente. Em um sentido têm lugar na vida de cada organismo bastam para ex-
filosófico geral, a teoria da evolução não era, de modo plicar a transformação gradual que nos leva das formas
algum, uma realização recente, Ela havia tido a sua ex- mais simples de vida em um protozoário às mais eleva-
pressão clássica na psicologia de Aristóteles e na sua vi- das e complicadas formas, Encontramos uma das mais
são geral da vida orgânica, A distinção característica e notáveis.expressões dessa visão no próprio Darwin, que
fundamental entre a versão aristotélica e a moderna da . costuma ser tão reticente acerca de suas concepções fi-
evolução consistia no fato de que Aristóteles fazia uma losóficas, "Não só as várias raças domésticas", obser-
interpretação formal, enquanto os modernos tentavam va ele no final de seu livro The Variation o] Animals and
uma' interpretação material. Aristóteles estava conven-
Planis undet Domestication,
cido de que para entender o plano geral da natureza,
as origens da vida" as formas inferiores devem ser in-
como também os mais distintos gêneros e ordens dentro da
terpretadas à luz das formas superiores. Na sua metafí- mesma grande classe - por exemplo, mamíferos, aves, rép-
sica, na sua definição da alma como" a primeira efeti- teis e peixes - são todos descendentes de um único progeni-
vação de um corpo natural potencialmente com vida", tor comum, e devemos admitir que toda a vasta quantidade
a vida orgânica é concebida e interpretada em termos de diferença entre essas formas surgiu primariamente da sim-
da vida humana. O caráter teleológico da vida humana ples variabilidade, Considerar o tema sob esse ponto de vista 1
- ,I
é projetado sobre todo o domínio dos fenômenos natu- é bastante para deixar a pessoa muda de espanto, Mas o nos-
rais. Na teoria moderna, essa ordem é invertida. As cau- -so espanto deveria diminuir ao refletirmos que seres quase in-
38 O QUE É O HOMEM? 39
ENSAIO SOBRE O HOMEM
Neste ponto, porém, surge outra questão. Podemos qual os fatos empíricos são esticados para amoldar-se a
contentar-nos em contar de modo meramente empírico um padrão preconcebido.
os diferentes impulsos que encontramos na natureza hu- Em virtude desse desenvolvimento, nossa teoria mo-
mana? Para uma visão realmente científica, tais impul- derna do homem perdeu seu centro intelectual. Adqui-
sos deveriam ser classificados e sistematizados. Obvia- ~ rimos, no lugar dele, uma completa anarquia de pensa-
,.
mente, nem todos eles estão no mesmo nível. Devemos [ mento. É claro que mesmo nos tempos antigos havia uma
supor que possuem uma estrutura definida - e uma das grande discrepância de opiniões e teorias relativas a este
primeiras e. mais importantes tarefas da nossa psicolo- problema. Mas restava pelo menos uma orientação ge- ,
gia e teoria da cultura é descobrir essa estrutura. Na com- ral, um marco de referência ao qual todas as diferenças
plicada engrenagem da vida humana, devemos encon- individuais podiam ser submetidas. A metafísica, a teo-
trar ,a força acionadora oculta que põe todo o mecanis- logia, a matemática e a biologia assumiram sucessivamen-
mo do nosso pensamento e da nossa vontade em movi- te a orientação do pensamento sobre o problema do ho-
mento. A meta principal de todas essas teorias era pro- mem e determinaram a linha de investigação. A verda-
var a unidade e a homogeneidade da natureza humana. deira crise deste problema manifestou -se quando deixou
Mas, se examinamos as explicações que tais teorias fo- de existir um tal poder central, capaz de dirigir todos os
ram concebidas para dar, a unidade da natureza humana esforços individuais. A importância decisiva do proble-
parece extremamente duvidosa. Cada filósofo acredita ma continuava a ser sentida em todos os diferentes ra-
ter encontrado a mola mestra e a faculdade principal - mos de conhecimento e de investigação, mas não existia
I'idée maitresse, tal como foi chamada por Taine. Porém, mais uma autoridade estabelecida à qual se pudesse ape-
quanto aocaráter dessa faculdade principal, todas as ex- lar. Teólogos, cientistas, políticos, sociólogos, biólogos,
plicações diferem amplamente umas das outras, e são psicólogos, etnólogos e economistas, cada um abordou
contraditórias entre si. Cada pensador individual nos ofe- o problema a partir de seu próprio ponto de vista. Com-
rece a sua própria imagem da natureza humana. To- binar ou unificar todos esses aspectos e perspectivas par-
dos esses filósofos são empiristas determinados; desejam ticulares era impossível. E nem em cada um dos campos
mostrar-nos os fatos e nada mais que os fatos. Mas sua especiais havia um princípio científico de aceitação ge-
interpretação da evidência empírica contém, desde o iní- ral. O fator pessoal tornou-se cada vez mais prevalecen-
cio, uma suposição arbitrária - e esta arbitrariedade te, e o temperamento do escritor individual tendia a ter
vai ficando cada vez mais óbvia à medida que a teoria um papel decisivo. Trahit sua quernque ooluptas: cada autor
"avança e assume um aspecto mais elaborado e sofistica- parece ser conduzido, em última análise, por sua própria
do. Nietzsche proclama a vontade de potência, Freud concepção e avaliação da vida humana.
assinala o instinto sexual, Marx entroniza o instinto eco- Que esse antagonismo de idéias não é meramente
"
't.'
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nômico. Cada teoria torna-se um leito de Procrusto no um grave problema teórico e sim uma ameaça iminen-
42 ENSAIO SOBRE O HOMEM
o QUE É O HOMEM)
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te a toda a extensão de nossa vida ética e cultural não
admite qualquer dúvida. No pensamento filosófico re- to, não teremos qualquer compreensão real do caráter
cente, Max Scheler foi um dos primeiros a perceber e geral da cultura humana; continuaremos perdidos em
a assinala; esse perigo. "Em n~nhum outro período do uma massa de dados desconexos e desintegrados que pa-
recem carecer de toda unidade conceitual.
conhecimento humano", declara ele,