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Ernst Cassirer

Ensaio sobre o Homem


Introdução a uma filosofia da cultura humana

Tradução
TOMÁS ROSA BUENO

Ernst Cassirer (1874-1945) filósofo germânico do neokan-


tismo, nascido em Breslau, Alemanha, hoje Wrocaw, Polônia,
cujos estudos sobre a linguagem deram origem às mais modernas
teorias da hermenêutica e a diversos estruturalismos. Estudou
em Berlim, Leipzig, Heidelberg e Marburg. Foi professor de filo-
sofia em Hamburgo (1919)e reitor da Universidade de Hamburgo
(1930), cargo a que renunciou depois da ascensão de Hitler.
Exilou-se sucessivamente na Inglaterra (1933-1935),Suécia (1935-
1941) e nos Estados Unidos. Partindo dos problemas da teoria
do conhecimento, que seriam o núcleo do neokantismo, ampliou
o foco temático em direção a uma crítica da 'cultura. Na linha ~
substitutiva do conceito de substância pelo de função publicou
a famosa Die Philoeopnie des symboliscl1en Formen (1923-1929), wmjmartinsfontes
que, juntamente com Die Philosophie der Aufklãung (1932), cons- ' SÃO PAULO 2012
titui o auge de sua obra.
Titulo original: AN ESSAY ON MAN - AN INTRODucnON
TO A PI1ILOSOPI1Y OF I1UMAN CULTURE
publicado por rale Universiry Press
Cor~-'rigJlI © /944. /972 b)' Yole Uníversíty Press
Copvrígln © 1994, Livraria Marfins Fontes Editora Luto..
São Paulo. para a preseme edição.
Publicado por. acordo com rale Universiry Pvess.
Todos os direi/os reservados.
A
Charles W. Hendel
1: edição /994 com. amizade e gratidão
2:' edição 20/2

Tradução
TOMÁS ROSA BUENO

Revisão da tradução
Certos Ednasdo Silveira Matos
Revisões gráficas
Renato da Rocha Cortos
Flora Maria de Campos Fernandes
Produção gráfica
Geraldo Alves

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, S,P, Brasil)
Cnssirer, Erust
Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura
humana / Ernst Cassirer ; tradução Tomás Rosa Bueno. - 2~ ed. -.
São Paulo : Editora WMF Martins Fontes, 2012. - (Biblioteca do
pensamento moderno)

Titulo original: Ao essay on mau : an introduction to a philosophy


of human culture
ISBN 978·85·7827-609-6

I. Antropologia filosófica 2. Civilização - Filosofia 3. Cultura


4. Simbolismo L Título. Il. Série.

12·09135 COD·128

Índices para catálogo sistemático:


1. Homem: Antropologia filosófica 128

Todos os direitos desta edição reservados à

Editora WMF Martins Fontes Ltda.


RI/a Prol' Laerte Ramos de Carvalho, 133 01325.030 São Paulo SP Brasil
Te/. (11) 3293.8150 Fax (11) 3/01. /042
e-niail: iI1fo@wmjiJwrrim:fon!es.com.br
.
http://www.wmfmartilISfol1res.com.bl·

Não pode ser vendido em Portugal


VII. Mito e religião 121
VIII. A linguagem 181
IX. A arte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 225
X. A história .. '.. - . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 279
Xl. A ciência '" .' 337
XII. Sumário e conclusão 361

Notas .................................... 373

PREFÁCIO

o primeiro impulso para que este livro fosse escrito


veio de meus amigos ingleses e americanos, que me pe-
diam, repetida e urgentemente, que publicasse uma tra-
dução para o inglês de minha Filosofia das Formas Simbó-
licas-, Embora me agradasse muito a idéia de ceder às
suas instâncias, após os primeiros passos tentativas jul-
guei impraticável e, nas presentes circunstâncias, injus-
tificável reproduzir o livro original em sua totalidade. No
que tange ao leitor, seria exigir demasiado de sua aten-
ção ler um estudo em três volumes sobre um tema difícil
e abstrato. Mas mesmo do ponto de vista do autor difi-
cilmente seria possível ou aconselhável publicar uma obra
_planejada e escrita há mais de 25 anos. Desde então, o
autor continuou seu estudo do tema. Aprendeu muitos
fatos novos e deparou com muitos problemas novos. Até
os velhos problemas são por ele vistos de outro ângulo,
e surgem sob uma luz diferente. Por todas estas razões,
:. resolvi começar de novo e escrever um livro inteiramen-
te novo. Teria de ser muito mais curto que o primeiro.
2 ENSAIO SOBRE O HOMEM 3
PREFÁCIO

~'Um livro grande", disse Lessing, "é um grande mal."


lhe sou muito grato pelas muitas observações valiosas
Ao escrever a minha Filosofia das Formas Simbólicas, esta-
e pertinentes acerca do tema do livro.
va de tal m~do envolvido no próprio terna que esqueci
Não pretendi escrever um livro "popular" sobre
ou desprezei essa máxima estilística. Hoje sinto-me muito
um tema que, em muitos aspectos, resiste a qualquer
mais inclinado a subscreveras palavras de Lessing. Em
popularização. Por outro lado, este livro não é dedica-
vez de apresentar uma relação detalhada dos fatos e uma
do apenas a estudiosos e filósofos. Os problemas funda-
alentada discussão das teorias, tentei concentrar-me no
mentais da cultura humana têm um interesse humano
pres:ntelivro, em uns .poucos pontos que me par~ce-
geral, e devem ser tornados acessíveis para o público ge-
ram ser de especial importância filosófica, e expressar
ral. Tentei, portanto, evitar todas as tecnicismos e ex-
meus pensamentos tão breve e sucintamente quanto pos-
primir meus pensamentos da maneira mais clara e sim-
sível.
ples possível. Contudo, devo avisar aos meus críticos que
,. . M~smo assim, o livro teve de lidar com temas que,
o que apresento aqui é mais uma explicação e uma ilus-
a pnmeir~ vista, podem parecer amplamente divergen-
tração que uma demonstração da minha teoria. Para
tes~ l!m hvr0:tue se ocupa de questões psicológicas, on-
uma discussão e uma análise mais minuciosas dos pro-
tológicas e eplstel110lógicase que contém capítulos so-
blemas envolvidos, devo pedir-Ihes que vejam a descri-
bre Mito e Religião,. Linguagem e Arte, Ciência e His-
ção detalhada na minha Filosojia das Formas Simbólicas .
.. tória está aberto à objeção de que se trata de um mixtum
Desejo fortemente não impor uma teoria pronta e
compositum das coisas mais disparatadas e heterogêneas.
acabada, exposta em um estilo dogmáJ:ico, às mentes dos
Espero que o leitor, após ter lido estas páginas, ache in-
meus leitores. Tive a preocupação de deixá-los em uma
furidadatal objeção. Um de meus objetivos mais impor-
posição em que pudessem julgar por eles mesmos. Cla-
tantes foi convencê-Ia de que todos os temas tratados nes-
ro que não foi possível colocar diante deles o conjunto
te livro são apenas, afinal, um único tema. São caminhos
completo de evidências empíricas em que se funda a mi-
o

diferentes que levam ao mesmo centro - e, a meu mo-


nha tesç principal. Tentei, contudo, fazer citações am-
do de ver, cabe" a uma filosofia dacultura descobrir e
plas e detalhadas das obras básicas sobre os vários te-
determinar esse centro.
mas. O que o leitor encontrará não é, absolutamente,
QUaI(to ao estilo deste livro, foi um sério impedi-
uma bibliografia completa - até mesmo os títulos de
mento, éclaro, ter tido de escrevê-lo em uma língua que
uma tal bibliografia teriam excedido de longe o espaço
não me é nativa. Dificilmente eu teria superado esse obs-
que me foi concedido. Tive de contentar-me em citar
tácul5> sem a ajuda de meu amigo J ames Pettegrove, do
os autores para com os quaiseu mesmo me sinto mais
NewJersey State Teachers College. Ele revisou o ma-
em dívida, e em selecionar os exemplos que me parece-
nuscrito todo e ofereceu-me seus cordiais conselhos so-
ram ter um significado típico e ser de superior interesse
bre todas as questões linguísticas e de estilo. Também
filosófico .•
4 ENSAIO SOBRE O HOMEM PREFÁCIO 5

Pela dedicatória a Charles W. Hendel, desejo ex- agradecimentos ao Decano da Graduate School, pela hos-
pressar meus sentimentos de profunda gratidão para com pitalidade que me foi oferecida nos últimos três anos.
o homem que me ajudou, com zelo incansável, a pre- Uma palavra de agradecimento cordial também é devi-
parar este livro. Foi ele o primeiro a quem falei sobre da aos meus estudantes. Discuti com eles quase todos
o plano geral da obra. Sem o seu vívido interesse pelo os problemas contidos neste livro, e tenho a confiança
. tema do livro e seu amigável interesse pessoal pelo au- de que eles encontrarão muitos sinais do nosso trabalho
tor,' dificilmente eu teria encontrado o ânimo necessá- comumrias páginas que se seguem.
rio para publicá-Ia. Ele leu o manuscrito diversas ve- Estou agradecido ao Fluid Research Fund da Yale
zes, e sempre pude aceitar suas sugestões críticas, que U niversity pelos fundos de pesquisa que me ajudaram
se revelaram muito úteis e valiosas. a preparar este livro.
A dedicatória, no entanto, tem não apenas um sen-
tido pessoal, mas também' 'simbólico". Dedicando es- Ernst Cassirer
te livro ao Presidente -do Departamento de Filosofia e Yale University
ao Diretor de Pós-Graduação da Yale U niversity , que-
. ro expressar ao próprio Departamento meus cordiais
agradecimentos. Quando, há três anos, vim para a Ya-
le University , foi uma surpresa agradável encontrar uma
estreita colaboração que se estendia por todo um amplo
campo. Foi urn prazer especial, e um grande privilégio,
trabalhar com meus colegas mais jovens em seminários
conjuntos sobre diversos temas. Esta foi, com efeito, uma e..
experiência nova em minha longa vida acadêmica - e
uma experiência muito interessante e estimulante. Te-
rei sempre uma grata lembrança desses seminários con-
juntos - um sobre filosofia da história, outro sobre fi-
losofia da ciência e um terceiro sobre a teoria do conhe-
.cimento, realizados por Charles Hendel e Hajo Holborn,
F.S:C. Northrop e Heriry Margenau, Monroe Beards-
ley, Frederic Fitch e Charles Stevenson.
Devo ver neste livro, em larga medida, o desf~cho
do. meu trabalho na Graduate School da Yale Univer-
sity, e sirvo-me desta oportunidade para expressar meus
PARTE I

OOVE
....., É O HOMEM?

.
i.
-
CAPÍTULO I

A CRISE DO CONHECIMENTO
DE SI DO HOMEM

Que, o conhecimento de si mesmo é a mais alta me-


ta da indagação filosófica parece ser geralmente reconhe-
cido. Em todos os conflitos entre as diferentes escolas fi-
losóficas, esse objetivo permaneceu invariável e inabala-
do: foi sempre o ponto de Arquimedes, o centro fixo e
inamovível, de todo pensamento. Nem os pensadores mais
céticos negam a possibilidade e a necessidade do autoco-
nhecimento. Desconfiaram de todos os princípios gerais
relativos à natureza das coisas, mas tal desconfiança ser-
viu apenas para abrir um novo modo de investigação mais
confiável. Com grande freqüência, na história da filoso-
fia, o ceticismo foi simplesmente a contrapartida de um
resoluto humanismo . Pela negação e destruição da certeza
objetiva do mundo externo, o cético espera trazer todos
os pensamentos do homem de volta para o seu próprio
ser. O autoconhecimento - declara - é o primeiro pré-
10 ENSAIO SOBRE O HOMEM
, O QUE É O HOMEAP 11
requisito da auto-realização. Devemos tentar romper as .
brir todo acampo dos fenômenos humanos. Mesmo que
cadeias que nos ligam ao mundo exterior para poder-
mos desfrutar nossa verdadeira liberdade. "La plus gran- conseguíssemos coletar e combinar todos os dados , te-
de chose du monde c' est de savoir être à soy", escreveu ríamos ainda/uma imagem pobre e fragmentária - um
Montaigne. mero esboço - da natureza humana.
Contudo, nem mesmo essa abordagem do proble- Aristóteles declara que todo o conhecimento huma-
ma - o método da introspecção - está ao abrigo das no tem origem em uma tendência básica da natureza
dúvidas céticas. A filosofia moderna teve início com o humana que se manifesta nas ações e reações mais ele-
princípio de que a evidência de nosso próprio ser é irn- mentares do homem. Toda a extensão da vida dos sen-
pregnável e inatacável. Mas o avanço do conhecimento tidos é determinada e impregnada por essa tendência.
'psicológico pouca coisa fez para confirmar esse princí-
pio cartesiano. Hoje, a tendência geral do pensamento Todos os homens, por natureza, desejam conhecer. Urn a in-
inclina-se novamente para o pólo oposto. Poucos psicó- dicação disso é o deleite que obtemos dos sentidos; pois estes,
logos.modernos admitiriam ou recomendariam um sim- além de sua utilidade, são amados por si mesmos; e acima de
todos os demais o sentido da visão. Pois não só com vistas à
ples método de introspecção. No g'eral, dizem-nos que
ação, mas, mesmo quando não vamos fazer nada, preferimos
tal método é muito precário. Estão convencidos de que
ver a tudo o mais. A razão é que este, mais que todos os senti-
uma atitude behaviorista estritamente objetiva é a úni-
dos, faz-nos conhecer e traz à luz muitas diferenças entre as
ca abordagem possível para uma psicologia científica.
coisas1.
Um behaviorismo coerente e radical, porém, não con-
segue atingir seus fins. Pode prevenir-nos - de possí-
Este trecho é altamente característico da concepção do
veis erros metodológicos, mas não consegue resolver to-
conhecin;ento de Aristóteles, no que esta se distingue
dos os problemas da psicologia humana. Podemos criti-
da de Platão. Tal elogio filosófico da vida sensual do ho-
car a visão puramente introspectiva, ou colocá-Ia sob sus-
mem seria impossível na obra de Platão. Ele nunca po-
peição, mas não suprimi-Ia ou eliminá-Ia. Sem a intros-
deria comparar o desejo de conhecimento ao deleite que
pecção , sem uma consciência imediata dos sentimentos,
derivamos dos nossos sentidos. Em Platão, a vida dos
emoções, percepções e pensamentos, não poderíamos se-
sentidos está separada da vida do intelecto por uma bre-
quer definir o campo da psicologia humana, No entan-
cha ampla e insuperável. O conhecimento e a verdade
to; é preciso admitir' que, seguindo apenas este cami-
pertencem a uma ordem transcendental -. ao reino das
nho, nunca poderemos chegar a uma visão abrangente
da natureza humana. A introspecção révela-nos.apenas idéias puras e eternas. O próprio Aristóteles estava con-
aquele pequeno segmento da vida humana que é aces- vencido deque o conhecimento científico não é possível
'sível à nossa experiência individual. Nunca poderá co- unicamente através do ato da percepção. Mas fala co-
'mo biólogo ao negar a separação platônica entre o ~undo
12 ENSAIO SOBRE O HOMEM O QUE É O HOMEM.) 13

ideal e a empírico. Ele tenta explicar o mundo ideal, o mem. Nas primeiras explicações mitológicas do univer-
mundo da conhecimento, em termas de vida. Nas dois sO. encontramos sempre uma antropologia primitiva lado
domínios, segundo Aristóteles, encontramos a mesma a lado com uma cosmologia primitiva. A questão. da ori-
continuidade ininterrupta. Na natureza,assim como no gem da mundo. está inextricavelmente entrelaçada com
conhecimento humano, as formas superiores desenvol- a questãa? da origem do homem. A religião. não. destrói
vem-se, a partir de formas inferiores. A percepção das essas primeiras explicações mitalógicas. Ao contrário,
sentidos, a memória, a experiência, a imaginação e a preservo. a cosmalagia e a antropologia mitológicas
razão estão. todas ligadas por um vínculo comum; são dando-lhes nova forma e nova profundidade. A partir
apenas estágios e expressões diferentes de uma única e de então, a autoconhecimento não. é mais concebida co-
mesma atividade fundamental, que atinge a sua mais ma um interesse meramente teórico. Deixa de ser ape-
alta perfeição. no homem, mas que também, de certo mo- nas um tema de curiosidade ou especulação; é declara-
do, é compartilhada por tados os animais e todas às for- da como a abrigação fundamental do homem. Os gran-
mas de vida orgânica. des pensadores religiosos foram as primeiros a afirmar
Se fôssemos adotar essa visão bialógica, seria de es- essa exigência moral. Em todas as formas superiores de , '

perar que os primeiros estágios do conhecimento humano vida religiosa, a máxima "Canhece-te a ti mesmo" é
lidassem exclusivamente com o mundo externa. Para to- vista cama um imperativo categórico, como uma lei re-
das as suas necessidades imediatas e interesses práticos, ligiosa e moral suprema. Neste imperativa sentimos, par
o homem depende de seu ambiente físico. Não pode vi- assim dizer, uma súbita l\eversãa da primeira instinto
ver ;eIl).·uma constante adaptação. às condições do mundo. natural de conhecer - percebemos uma transavaliaçãa
que o rodeia. Os primeiras passas na direção. da vida ,- de ta das os valores . Nas histórias de todas as reli-
intelectual ecultural da homem podem ser descritos co- 'f
giões do mundo - na judaísmo, no b.pdismo, na con-
.rno atas que implicam uma espécie de ajuste mental ao 1 fucionismo e no cristianismo - podemos observar as
ambiente imediato. À medida que a cultura humana pro- etapas individuais desse desenvolvimento.
gride, porém, logoencontramas uma tendência aposta O mesmo princípio. é válido para a evolução geral
da vida humana. Desde os primeiros 'vislumbres de cons- do pensamento' filosófico. Em seus primeiras estágios,
ciência humana, encontramos uma visão introvertida da a filosofia grega parece ocupar-se exclusivamente do uni-
vida que acompanha e complementa essa visão. extro- verso física, A cosmologia tem uma clara predominân-
vertida. Quanto mais esse desenvolvimento. se afasta des- k
cia sobre todos as demais ramos de investigação filosó-
t, '
sas origens, mais essa visão introvertida vem ao. primeira 1., fica. Na entanto, é característica da profundidade e da
plano. A curiosidade natural do homem começaaos pau- "i abrangência da mente grega que quase todas os pensa-
cos a mudar de direçãa.Pademos estudar esse cresci- t .dores individuais representam ao. mesmo tempo. um novo
mento' em quase todas as formas da vida cultural da ho- tipo geral de pensamento. Para além da filosofia física
O QUE É O HOMEM~ 15
14 ENSAIO SOBRE O HOMEM

e universal. Mas o único universo que ele conhece, e


da escola dé Miléto, os pitagóricos descobrem uma filo-
ao qual se referem todas as suas indagações, é o uni ver-
sofia matemática, enquanto os pensadores eleáticos são
só do homem. Sua filosofia - se é que ele possui uma
os primeiros a conceber o ideal de uma filosofia lógica.
- é~e~tritam:nte antropológica. Em um dos diálogos
Heráclito posta-se na fronteira entre o pensamento cos-
platônicos, Socrates é descrito envolvido em uma con-
mológico e 6 antropológico. Embora faleainda como fi-
versa com seu pupilo Fedro. Estão caminhando, e logo
lósofo natural e faça. parte dos" antigos fisiologistas",
chegam a um lugar fora dos portões de Atenas. Sócra-
está convencido de que é impossível penetrar o segredo
tes .e~prime sua admiração pela beleza do lugar. Fica
da natureza sem ter estudado o segredo do homem. De-
deliciado com a paisagem, à qual faz grandes elogios.
veremos cumprir a exigência de auto-reflexão se quiser-
. ~as Fedr,o o interrompe. Surpreende-se pelo fato de que
mos manter nosso domínio sobre a realidade e enten-
Socrates se comporte como um estrangeiro passeando
der o seu sentido. Assim, Heráclito pôde caracterizar
com um guia. "Cruzas a fronteira alguma vez?", per-
. o conjunto de sua filosofia pelas duas palavras EOLSy!(Jáp:f/v
gunta-lhe. Sócrates )ntroduz um significado simbólico
E/J-E<.';TÓV ("Busquei a mim mesmo'<)". Mas essa nova
em sua resp~,sta. "E bem verdade, meu bom amigo",
tendência de pensamento, embora fosse de certo modo
retruca ele, e espero que me perdoes quando ouvires
inerente à filosofia grega primitiva, só alcançou sua plena
a razão, ou seja, que sou um amante do conhecimento
maturidade. na época de Sócrates. Portanto, é no pro-
e os homens que residem na cidade são meus mestres'
blemado homern que se encontra o marco que separa e não as árvores, ou o campo.' '3 . ,
o pensamento socrático do pré-socrático. Sócrates nun-
. Noentanto, quando estudamos os diálogos socrá-
ca ataca ou critica as teorias de seus predecessores. Não
. tlCOS ~e P~atão, não encontramos em parte alguma uma
pretende introduzir uma nova doutrina filosófica. Ne-
soluçao direta para o novo problema. Sócrates oferece-
le, porém, todos os antigos problemas são vistos sob uma
no~ uma análise detalhada e meticulosa das qualidades
nova luz, 'pois são dirigidos a um novo centro intelec-
e Virtudes humanas individuais. Procura determinar a
tual.Os problemas da filosofia natural e da metafísica
natureza dessas qualidades e defini-Ias: bondade, justi-
gregati são subitamente eclipsados por uma nova ques-
ça, temperança, coragem eassim por diante. Mas nun-
tão que, a partir de então, parece absorver todo o inte-
ca arrisca uma definição do homem. COI;nodeve ser vista
resse teórico do homem. Em Sócrates, não temos mais
essa aparente deficiência? Teria Sócrates adotado deli-
uma teoria independente da natureza ou uma teoria ló-
beradamente uma abordagem perifrástica - que lhe per-
gica independente. Não temos sequer uma teoria ética
mitisse apenas arranhar a superfície de seu problema,
congruente e sistemática - no sentido em que foi de-
sem Jamais penetrar a sua profundidade e seu verdadeiro
senvolvida nos sistemas éticos posteriores. Resta apenas ? A
,
amago. 9Ul,. porem,
. / mais que em qualquer outra parte,
uma questão: o que é o homem? Sócrates sustenta e de-
devemos desconfiar da ironia socrática. É precisamente
fende sempre oideal de uma verdade objetiva, absoluta
16 ENSAIO SOBRE O HOMEM
o QUE É O HOMEM? 17
a.resposta negativa de Sócrates que lança sobre a ques-
tão uma luz nova e inesperada, e que. nos proporciona tureza, a verdade é fruto do pensamento dialético. Lo-
uma compreensão positiva da concepção socráticado ho- go, só pode ser obtida mediante uma constante coope-
mem. Não podemos descobrir a natureza do homem do ração dos sujeitos em mútua interrogação e resposta ..Não
mesmo modo que podemos detectar a natureza das coi- é, portanto, como se fosse um objeto empírico; deve ser
sas físicas. As coisas físicas podem ser descritas nos ter- entendida como produto de um ato social. Temos aqui
mos" de 'suas propriedades objetivas, mas o homem só uma resposta nova, indireta, à questão' 'O que é o ho-
pode ser descrito e definido nos termos de sua consciên- mem?". Declara-seque o homem é a criatura que está
cia. Este fato coloca um problema inteiramente novo, em constante busca de si mesmo '- uma criatura que,
.que não pode ser resolvido por nossos modos costumei- em todos os momentos de sua existência, deve exami-
o ros de investigação. A observação empírica e a análise nar e escrutinar as condições de sua existência. Nesse
lógica, no sentido em que esses termos eram usados na escrutínio, nessa atitude crítica para com a vida huma-
filosofia pré-socrática, revelaram-se neste caso ineficientes na, consiste o real valor da vida humana. "Uma vida
e.inadequadas. Pois é apenas nas nosssas relações ime- que não é examinada", dizS6crates em sua Apologia,
diatas com os seres humanos que obtemos. uma com- "J:?ão vale ser vivida.t '" Podemos epitomizar o pensa-
preensão do caráter do homem. Na verdade, devemos mento de Sócrates dizendo que o homem é definido por
confrontar o homem, devemos enfrentá"lo diretamen- ele como o ser que, quando lhe fazem uma pergunta ra-
te, frente a frente, para podermos entendê-lo. Logo,a cional, pode dar uma resposta racional. Tanto o seu co-
característica distintiva da filosofia de Sócrates não é um nhecimento como a sua moralidade estão compreendi-
novo conteúdo objetivo, mas uma nova atividade e fun- dos nesse círculo. É por essa faculdade fundamental, por
ção do pensamento. A filosofia, que fora até então con- essa faculdade de dar uma resposta a si mesmo e aos
cebidacorno um monólogo intelectual, é transformada outros, que o homem se torna um ser' 'responsável" ,
em um diálogo. Só por meio do pensamento dialógico sujeito moral.
ou dialético podemos abordar o conhecimento da natu-
reza humana. Antes disso, a verdade podia tersido con-
cebida como .uma espécie de coisa pronta que poderia 2
ser apreendida por um esforço do pensador individual
e prontamente transferida e comunicada a outros. Mas De certo modo, esta primeira resposta sempre foi
Sócrates n.ão pôde continuar a subscrever essa opinião. resposta clássica. O problema socrático e o método so-
É tão impossível- diz Platão na República ~. implan- CI'átíco não podem jamais ser esquecidos ou obliterados.
tar a verdade na alma de um homem quanto o é dar meio do pensamento platônico,' ela deixou sua
o poder de ver aum homem que nasceu cego. Por na- todo o desenvolvimento futuro da civili-
humana. Talvez não haja maneira mais segura,
O QUE É O HOMEM) 19
18 ENSAIO SOBRE O HOMEM

diferente (Üt.&Ót.«Jopov). Tudo o que interessa é a tendên-


ou mais direta, de canvencer-nos da profunda unidade
cia a atitude interior da alma; e tal princípio interior
e perfeita continuidade da pensamento filosófico antiga
não pode ser perturbada. "Aquilo. que não. torna o ho-
que comparar esses primeiras estágios da filosofia gre-
mem piar que antes tampouco pode piorar sua vida, nem
ga com um das últimas e mais nobres produtos da cul-
feri-Ia do exterior au da interior.Y''
tura greca-ramana, a livra Para Si Mesmo escrita pela im- Portanto, a exigência de autoquestionamento apa-
perador Marco Aurélio Antanina. À primeira vista, tal rece no estoicisma, tal como na concepção de Sócrates,
comparação pode parecer arbitrária, pois Marco Auré- coma privilégio do homem, e seu dever fundamental".
lio. não. era um pensador original, nem seguia um mé- Mas esse dever é agora entendida em um sentida mais
todo estritamente lógico. Ele própria agradece aos deu- amplo; tem um embasamento não apenas moral, mas
ses par não. se ter tornado, ao decidir-se pela filosofia, também universal e metafísico. "Nunca deixes de fazer
um-escritor de filosofia ou um resolvedor de silogismos''. a ti mesma esta pergunta e de inquirir-te assim: que re-
Mas Sócrates e Marco Aurélio têm em comum a con- lação tenho eu cam essa parte de mim que chamam de
vicção de qlle, para encontrar a verdadeira natureza ou Razão soberana (Tà 1J'YE/hOJ!L/(ÓJ!)?" io Aquele que vi-
essência da hamem, devemos primeira remover dele ta- ve em harmonia consigo mesma, com a seu demônio,
dos os traças externas ou incidentais. vive em harmonia cam a universo; para ambos, a or-
dem universal e a ardem pessoal não passam dedife-
Não chamai do homem nenhuma daquelas coisas que não lhe rentes expressões e manifestações de um princípio. co-
cabem como homem. Não podem ser ditas do homem; a na- mum supjacente. O homem prova o seu poder inerente
tureza d'o homem não as garante; elas não são culminações de crítica, de juíza e discernimenta, ao. conceber que nes-
dessa natureza. Conseqüentemente, nem o fim pelo qual o ho- ta correlação a Eu, e não a Universo, tem o papel prin-
mem vive está situado nessas coisas, nem ainda aquilo que é cipal. Depois que a Eu conquista a sua forma interior,
.perfectivo do fim, isto é, o Bem. Além disso, se qualquer des-
esta permanece inalterável e imperturbável. "Uma es-
sas coisas coubesse ao homem, não caberia a ele desdenhá-Ias f 1 "11
fera, depois. de formada, permanecere d on d a ele.
ou opor-se a elas ... mas, de qualquer forma, quanto mais o
Esta é, par assim dizer, a última palavra da filosofia grega
homem consegue Iibertar-se , ... destas e de outras coisas tais
- palavra que, mais uma vez, contém e explica a espí-
com equanimidade, tanto mais ele é bom?
rito em que foi concebida ariginariamente. Tal espírita
era um espírito de juíza, de discernimenta crítica entre
Tudo a queacantece de fora ao. homem é nula e inváli-
Ser e Não-Ser, entre verdade e ilusão, entre bem e mal.
do. Sua essência não depende de circunstâncias exter-
A própria vida está mudando. e flutuando, mas a ver-
nas; depende exclusivamente da valor que ele mesmo
dadeira valor da vida deve ser buscada em uma ordem
se dá. Riquezas, posição, distinção social, até mesma
eterna que não. admite qualquer mudança. Não está no
a saúde e os dates intelectuais - tudo isso. torna-se in-

r,.
,',',

20 ENSAIO SOBRE O HOMEM O QUE É O HOMEM.? 21

mundo de nossos sentidos, é apenas pelo poder de nos- homem. As teorias estóica e cristã do homem não são
so juízo que podemos apreender essa ordem. O juízo necessariamente hostis uma à outra. Na história das
)
é' o poder central no homem, a fonte comum da verda- i, idéias, ambas trabalham em conjunção, e com freqüência
;
de e da moralidade, pois é a única coisa em que o ho- as encontramos em estreita conexão em um único e mes-
~.
e.:

mem depende inteiramente de si mesmo; o juízo é li- mo pensador individual. Não obstante, sempre resta um
vre, autônomo e auto-suficientel". "Não te perturbes", l ponto em que o antagonismo entre os ideais estóico e
I
diz Marco Aurélio, \ cristão se revelou irreconciliável. A declarada indepen-
I
dência absoluta do homem, que na teoria estóica era con-
não sejas demasiado impaciente, mas sê teu próprio senhor, siderada como a virtude fundamental do homem, na teo-
e olha para a vida como varão, como ser humano, como cida- ria cristã torna-se o seu vício e erro fundamentais. En-
dão, como criatura mortal. .. As coisas não atingem a alma, quanto o homem persevera neste erro não há caminho
pois são externas e permanecem inamovíveis, mas nossa per- possível paca a salvação. A luta entre essas duas visões
turbação vem apenas do juízo que formamos em nós mesmos. conflitantes durou muitos séculos, e no início dà era mo-
Todas essas coisas que vês mudam imediatamente, e não ma.is derna - na época da Renascença e no século XVII -
serão; êlembra constantemente cjuantas dessas mudanças já sentimos ainda a sua força!".
. testemunhaste. O Universo - mudança, a Vida - afir- Aqui podemos apreender um dos traços caracterís-
• n;;ção13. ticos da filosofia antropológica. Esta não é, tal como ou-
.. . tros ramos da investigação filosófica, um lento e contí-
t
o maior mérito desta concepção estóica do homem está nua desenvolvimento de idéias gerais .•Mesmo na histó-
no fato de dar ao homem um profundo sentimento tan- ria da lógica, da rnetafísica e da filosofia natural encon-
to de sua harmonia com a natureza como da sua inde- tramos as mais nítidas oposições. Esta história pode ser
I
pendência moral em relação à natureza. Na mente do "
descrita, em termos hegelianos, como um processo dia-
!" lético em que cada tese é seguida de sua antítese. Ape-
filósofo estóico, essas asseverações não são conflitantes; I
estão correlacionadas 'uma à outra. O homem encontra-se sar diss~, há urna coerência interna, uma clara ordem
em perfeito equilíbrio com o universo, e sabe que este ,. lógica, que liga os diferentes estágios desse processo dia-
,:
equilíbrio não deve ser perturbado por nenhuma força lético. A filosofia antropológica, por outro lado, demons-
externa. Este é o caráter dual da "imperturbabilidade" tra um caráter totalmente diverso. Se quisermos apreen-
(àt7;POl~íOl) estóica. Esta teoria estóica revelou-se como der os seus reais sentido e importância, deveremos es-
. uma das mais potentes forças formativas da cultura an- colher, não o modo épico de descrição, e sim o dramá-
tiga,mas viu-se subitamente em presença de uma nova tico. Pois não somos confrontados com um desenvolvi-
força, até então desconhecida. O conflito com essa no- mento pacífico de conceitos ou teorias, mas com um
va força abalou em suas fundações o ideal clássico do choque entre poderes espirituais conflitantes. A histó-
22 ENSAIO SOBRE O HOMEM
;'""
i
O QUE É O HOMEM.) 23
h
ria <da,filosofia antropológica está cheia das mais pro-
fundas paixões e emoções humanas. Não se ocupa de mento, todo o poder original de raciocínio ficou obscu-
um único problema teórico, por mais geral que seja o recido. E a razãosozinha, deixada a si mesma e a suas
seu escopo; aqui, todo o destino do homem está em jo- próprias faculdades, nunca pode encontrar o caminho
go, e clamando por uma decisão definitiva. de volta. Não pode reconstruir-se; não pode,por seus
Essa característica do problema encontrou sua ex- próprios esforços, retomar à sua pura essência anterior.
pressão mais clara na obra de Agostinho. Agostinho Se tal transformação for algum dia possível, será ape-
situa-se na fronteira entre duas eras. Vivendo no século nas por ajuda sobrenatural, pelo poder da graça divi-
IV da era cristã, foi criado na tradição da filosofia gre- na. Assim é a nova antropologia, tal como é entendida
ga,' e é em especial o sistema do neoplatonismo que dei- por Agostinho, e mantida em todos os grandes sistemas
xou sua marca em toda a filosofia dele. Por outro lado de pensamento medieval. Até Tomás de Aquino, o dis-
porém, ele é o pioneiro do pensamento medieval; é .~ cípulo de Aristóteles, que volta às fontes da filosofia gre-
fundador da filosofia medieval e da dogrnática cristã. Em ga, não se aventura a desviar-se desse dogma fundamen-
suas Confissões podemos acompanhar cada passo da sua tal. Ele concede à razão humana um poder muito mais
passagem da filosofia grega para a revelação cristã. Se- alto que o concedido por Agostinho; mas está convenci-
gundo Agostinho, toda a filosofia anterior ao apareci- do de que a razão não pode usar corretamente esses po-
mento de Cristo padecia do mesmo erro fundamental deres a me~os que seja guiada e iluminada pela graça
e estava infectada por uma única e mesma heresia. O .de Deus. Chegamos aqui a uma inversão total de todos
poderda razão era exaltado como o mais alto poder do os valores sustentados pela filosofia grega. O que ou-
homem. Mas o que o homem jamais poderia ter sabi- trora parecia ser o mais alto privilégio do homem revela-
do, até ser iluminado por uma revelação divina espe- se como seu perigo e sua tentação; o que surgia como
cia( é ,que a própria razão é uma das coisas mais ques- seu orgulho torna-se sua mais profunda humilhação. O
tionáveis e ambíguas do mundo. A razão não nos pode preceito estóico de que o homem deve obedecer e reve-
mostrar o caminho para a clareza, a verdade e a sabe- renciar seu princípio interior, o "demônio" dentro de
doria, pois é em si mesma obscura em seu sentido, e sua si, é agora considerado como uma perigosa idolatria.
origem está envolta em mistério - um mistério que só Não épraticável continuar aqui a descrição do ca-
pode ser solucionado pela revelação cristã. Para Agos- o ráter dessa nova antropologia, analisar os seus motivos
tinho, a razão não tem uma natureza simples e única, fundamentais e acompanhar o seu desenvolvimento.
mas antes dupla edividida: O homem foi criado à ima- Mas, para podermos entender o seu propósito, podemos
gem de Deus; e em seu estado original, no qual saiu das escolheruma via diferente, mais direta. No início dos
mãos de Deus, era igual ao seu arquétipo. Mas tudo is- tempos modernos, apareceu UJ;t1 pensador que deu a es-
sofoi perdido com a queda de Adão. A partir desse mo- sa antropologia um novo vigd~ e um novo esplendor.
Na obra de Pascal, ela encontrou a sua última , e talvez
24 ENSAIO SOBRE O HOMEM O QUE É O HOMEM? 25

. mais impressionante, expressão. Pascal estava prepara- de seus princípios e na necessidade de suas deduções.
do para essa tarefa mais que qualquer outro escritor ja- Mas nem todos os objetos são passíveis de serem trata-
mais estivera. Possuía um dom incomparável para elu- dos desse modo. Há coisas que, em virtude de sua suti-
ci.dar ,as questões mais obscuras, e para condensar e con- leza e sua infinita variedade, desafiam toda tentativa de
centrar sistemas de pensamento complexos e disperses. análise lógica. E, se existe no mundo qualquer coisa que
Nada parece ser impermeável à agudeza de seu pensa- devamos tratar da segunda maneira, é a mente do ho-
mento e à-lucidez de seu estilo. Nele estão unidas todas mem. O que caracteriza o homem {a riqueza e sutile-
as vantagens da literatura e da filosofia modernas. To- za, a variedade e a versatilidade de sua natureza. Lo-
davia, ele as usa como armas contra o espírito moder- go, a matemática nunca poderá tornar-se o instrumen-
no, o espírito de Descartes e de sua filosofia. À primei- to de uma verdadeira doutrina do homem, de uma an-
ra vista, Pascal parece aceitar os pressupostos do carte- tropologia filosófica. É ridículo falar do homem como
.sianismo eda ciência moderna. Não há na natureza nada se fosse uma proposição geométrica. Uma filosofia mo-
que possa resistir ao esforço da razão científica, pois não ral nos termos de um sistema de geometria - uma Eihica
existe nada que possa resistir à geometria. É um evento more geometrico demonstrata - é para Pascal um absurdo,
curioso na história das idéias o fato de ter sido um dos um sonho filosófico. A lógica e a metafísica tradicionais
mai'ores e mais profundos geômetras que se tornou o de- tampouco estão em posição de entender e resolver o enig-
fensor temporão da filosofia antropológica da Idade Mé- ma do homem. Sua lei primeira e suprema é a lei da
<lia. Aos dezesseis anos de idade, Pascal escreveu o tra- contradição. O pensamento racional, o pensamento ló-
tado sobre secções cônicas, que abriu um novo campo, gico e metafísico só são capazes de compreender os ob-
muito rico e fértil, de pensamento geométrico. Mas ele jetos que estão livres de contradição e que tenham uma
não era apenas um grande geômetra, era também um natureza euma verdade coerentes. Contudo, é precisa-
filósofo; e, como filósofo, não estava meramente absor- mente essa homogeneidade que nunca encontramos no
to nos problemas geométricos, mas queria compreen- homem. Não se permite ao filósofo conceber um homem
der o verdadeiro uso, a extensão e os limites da geome- artificial; ele deve descrever o verdadeiro. Todas as cha-
tria. Foi desse modo levado a fazer a distinção funda- madas descrições do homem não são mais que especu-
mental entre o "espírito geométrico" e o "espírito agudo lações visionárias se não forem baseadas na nossa expe-
ou sutil". O espírito geométrico sobressai em todos aque- riência do homem, e por ela confirmadas. Não há ou-
les temas que são suscetíveis de uma análise perfeita - tra maneira de conhecer o homem senão pela compreen-
que podem ser divididos até seus elementos primeiros-''. são de sua vida e conduta. Mas o que encontramos aqui
Parte de certos axiomas e destes extrai inferências cuja desafia toda tentativa de inclusão em uma fórmula sim-
verdade pode ser demonstrada por regras lógicas uni- t
t·.
ples e única. A contradição é o próprio elemento da exis-
tência humana. O homem não tem uma' 'natureza",
versais. A vantagem desse espírito consiste na clareza
I
t
O QUE É O HOMEM? 27
26· ENSAIO SOBRE O HOMEM

ta do pecado do homem, pois ele não é produzido ou


_um ser simples ou homogêneo. Ele é uma estranha mis-
necessitado por qualquer causa natural. Tampouco po-
tura de ser e não-s~r. O lugar dele é entre esses dois pó-
demos dar conta da salvação do homem, pois esta de-
los opostos.
pende de um ato inescrutável de graça divina. É livre-
Existe, portanto, apenas uma abordagem para o se-
mente dada e recusada; não há qualquer ação humana,
gredo da natureza humana: a da religião. A religião
nem qualquer mérito humano, que possa merecê-Ia. A
mostra-nos que há um homem duplo - o homem an-
religião, portanto, nunca pretende esclarecer o misté-
tes e depois da queda. O homem estava destinado à mais
rio do homem. Ela confirma e aprofunda esse mistério.
alta meta, mas perdeu o direito a sua posição. Pela que-
O Deus de que ela fala é um Deus absconditus , um deus
da, perdeu seu.poder, e sua razão e sua vontade foram
oculto. Logo, até mesmo a sua imagem, o homem, não
pervertidas. Logo, a máxima clássica' 'Conhece-te a ti
pode ser senão misterioso. O homem também é um ho-
mesmo", entendida em seu sentido filosófico no senti-
mo absconditus . A religião não é nenhuma "teoria" do
do de Sócrates, Epíteto ou Marco Aurélio, é nào só ine-
Deus e do homem e da sua relação mútua. A única res-
ficaz, mas também enganadora e equivocada. O homem
l -Ó, posta que recebemos da religiãoé que é vontade de Deus
não pode 'ter confiança em si mesmo e ouvir-se. Deve r-
o:ul ta.r-se. "Assim, sendo Deus oculto, toda religião que
silenciar-se para poder ouvir uma voz mais alta e mais I
! . nao diga que Deus é oculto não é verdadeira' e toda re-
verdadeira. "O que será de ti,
ó Homem! tu que bus- ~.
ligião que não dê uma razão para tal não é 'instrutiva.
casqual éa tua verdadeira condição por tua razão na-
tural? Sabe então, homem arrogante, que paradoxo és
[ A nossa faz tudo isso: Vere tu es Deus absconditus'? .... Pois
a natureza é tal que por toda a parte indica um Deus
para ti mesmo. Humilha-te, razão impotente; fica quieta,
perdido, tanto dentro como· fora do homem." 18 Portan-
natureza imbecil; aprende que o homem supera infini-
to,por assim dizer, a religião é uma lógica do absurdo
tamente o homem, e ouve de teu senhor tua verdadeira


condição, de que és ignorante. Ouve a Deus." 16
O que se apresenta aqui não pretende ser uma so-
.
,.
r
pois só assim pode apreender o absurdo, a contradíção
interna, o ser quimérico do homem. "Certamente na-
da nos marca com mais rudeza que essa doutrina; 'e no
lução teórica do problema do homem. A religião não po-
entanto, sem esse mistério, o mais incompreensível de
de proporcionar essa solução. Por seus adversários, a re-
ligião sempre foi acusada de obscuridade e incornpreen- •j:. todos, somos incompreensíveis para nós mesmos. O nó
de nossa condição dá suas voltas e mergulha nesse abis-
sibilidade. Mas tal acusação torna-se o mais alto louvor
mo, de tal modo que o homem é mais inconcebível sem
tão logo consideramos a sua verdadeira meta. A religião
esse mistério do que esse mistério é inconcebível para
não pode ser clara e racional. O que ela relata é uma
o homem. "19
história obscura e sombria: a história do pecado e da
queda do homem. Revela um fato para o qual nenhu-
ma explicação racional é possível. Não podemos dar con-
,.,..
l

28 ENSAIO SOBRE O HOMEM o QUE É O HOMEM) 29


3 uma ordem hierárquica na qual o homem ocupa o lu-
gar mais elevado. Na filosofia estóica e na teologia cris-
o que vemos no exemplo de Pascal é que no início
tã, o homem- era descrito como o fim do universo. Arn-
da era moderna o velho problema continuava sendo sen-
bas as doutrinas estão convencidas de que há uma pro-
tido com toda a sua força. Mesmo após a publicação do
vidência geral regendo o mundo e os destinos do homem.
DiscOUTS de la Méthode, de Descartes, a mente humana
Esse conceito é um dos pressupostos básicos dos pensa-
d'ebatia-se ainda com as mesmas dificuldades. Estava di-
mentos estóico e cristão-v. Tudo isso é subitamente pos-
vidida entre duas soluções inteiramente incompatíveis.
to em causa pela nova cosmologia. A pretensão do ho-
Ao mesmo tempo, porém, tem início um lento desen-
mem a ser? centro do universo perdeu o seu fundamen-
volvimento intelectual pelo qual a questão "O que é o
to. O homem é colocado em um espaço infinito em que·
homem?" é transformada e, por assim dizer, elevada
a um nível, superior. O importante aqui não é tanto a seu ser parece um ponto único e evanescente. Está ro-
descoberta de fatos novos quanto a descoberta de um deado por um universo mudo, por um mundo silencio-
novo instrumento de pensamento. Agora, pela primei- so para os seus sentimentos religiosos e para as suas mais
ra 'lei, o espírito científico, no moderno sentido da pa- profundas exigências morais.
lavra, entra na arena. A busca agora é por uma teoria É compreensível, e foi de fato necessário, que a pri-
geral do ho~em baseada em observações empíricas e em meira reação a essa nova concepção-do mundo só pu-
princípios lógicos gerais. O primeiro postulado desse es- desse ser negativa - uma reação de dúvida e medo. Nem
pírito novo e científico foi a remoção de todas as barrei- mesmo os maiores pensadores conseguiram livrar-se des-
ras artificiais que até então separavam o mundo huma- se sentimento. "Le silence éternel de ces espaces infinis
no do resto da natureza. Para entendermos a ordem das m'effraye", diz Pascal?'. O sistema copernicano tornou-
coisas humanas, devemos começar com um estudo da se um dos mais fortes instrumentos do agnosticismo e
ordem cósmica. E essa ordem cósmica aparece agora sob do ceticismo filosóficos que se desenvolveram no século
uma luz inteiramente nova. A nova cosmologia, o sis- XVI. Em sua Crítica da razão humana, Montaigne usa
tema heliocêntrico introduzido na obra de Copérnico, todos os conhecidos argumentos tradicionais dos siste-
é a única base sólida e científica para uma nova antro- mas do ceticismo grego. Mas acrescenta um novo ins-
pologia. trumento, que em suas mãos revela ter enorme força e
. Nem a metafísica clássica, nem a religião e a teolo- ~.
r fundamental importância. Nada é melhor para humilhar-
gia medievais estavam preparadas para essa tarefa. Es- nos e abater o orgulho da razão humana que uma visão
ses dois corpos de doutrina, por mais diferentes que se- sem preconceitos do universo físico. Que o homem, es-
jam em seus métodos e objetivos, estão baseados em um creveu ele em um famoso trecho de sua Apologie de Rai-
princípio comum. Ambos concebem o universo como mond Sebond,
30 ENSAIO SOBRE O HOMEM O QYE É O HOMEM) 31

me faça entender, pela força de sua razão, sobre quais funda-


As palavras de Montaigne fornecem-nos a chave pa-
ções ele ergueu as grandes vantagens que pensa ter sobre ou-
ra todo O subseqüente desenvolvimento da moderna teo-
tras criaturas. Quem o fez acreditar que este admirável movi-
ria do homem. A filosofia e a ciência modernas tiveram
mento do arco celestial, a luz eterna dessas luminárias que pas-
de aceitar o desafio contido nessas palavras. Tiveram de
sam tão altas sobre a cabeça dele, os prodigiosos e temíveis
provar que a nova cosmologia, longe deenfraquecer ou
movimentos desse oceano infinito teriam sido estabelecidos e
obstruir o poder da razão humana, estabelece e confir-
continuariam por tantas eras para seu serviço e conveniência?
ma esse poder. Essa foi a tarefa dos esforços combina-
Pode-se imaginar algo tão ridículo, que essa criatura alque-
. brada e miserável, que não é sequer senhora de si mesma, mas
dos dos sistemas metafísicos dos séculos XVI e XVII .
está sujeita às injúrias de todas as coisas, devesse chamar a Estes sistemas seguem caminhos diferentes, mas todos
si mesma de senhora e imperatriz do mundo, do qual não tem estão dirigidos para um 'único e mesmo fim. Lutam, por
o poder de conhecer a menor parte, e muito menos de coman- assim dizer, para transformar a aparente maldição da
dar o todo?22 . nova cosmologia em uma bênção. Giordano Bruno foi
primeiro pensador aenveredar por esse caminho, que
o homem está sempre inclinado a considerar este pe- de certo modo se tornou ocaminhode toda a metafísica
queno círculo em que vive como o centro do mundo, moderna. O característico da filosofia de Giordano Bruno
c a fazer de sua vida particular, privada, o padrão do é.que nela o termo "infinidade" muda de sentido. No
universo. Masdeve renunciar a essavã pretensão, essa pensamento grego clássico, a infinidade é um conceito
maneira medíocre e provinciana de pensar e julgar. . negativo. O infinito é o sem limites, ou indeterminado.
Não tern limite nem forma e é, portanto, inacessível à
Quando as vinhas de nossa aldeia são comidas pela geada, o. razão humana, que vive no reino das formas e não con-
padre da paróquia logo conclui que a indignação de Deus está segue entender nada além de forrnas Neste sentido, o
j

dirigida contra toda a raça humana. ... Quem é que, ao veres- finito e o infinito, 7fÉpcxs e Cx7rHPO/l, são declarados por
tas nossas guerras civis, não exclama Que a máquinade todo no Philebus como os dois princípios fundamentais
o mundo está desarranjada, e que odia do juízo está próxi- estão necessariamente opostos um ao outro. Na dou-'
moi .. Mas quem quer que apresente à sua fantasia, como em trinade Bruno, a infinidade não significa mais uma mera
um quadro, a grande imagem de nossa mãe natureza, retra- negação ou limitação. Ao contrário; significa a imensu-
tada em toda a sua majestade e glória; quem quer que na face e inesgotáyel abundância da realidade e o poder
dela leia tão geral e tão constante variedade, quem quer que irrestrito do intelectohumano. É neste sentido que Bru-
se observe nessa figura, e não a si mesmo mas a todo um rei- entende e interpreta a doutrina copernicana. Esta dou-
. no, não 'maior que o menor toque de um lápis, em compara' segundo Bruno, foi o primeiro e decisivo passo em
ção com o todo, só esse homem é capaz de avaliar. as coisas "\CllI:t~çaoà autolibertação do homem. O Homem não vi-
estimativa e grandeza23.
de acordo corri s.uaverdadeira mais no mundo como um prisioneiro encerrado noin-
32 .ENSAIO SOBRE O HOMEM
o QUEÉ O HOMEM.) 33

terior das "paredes estreitas de um universo físico [mito. trar a realidade de Deus e, de maneira indireta, a reali-
Pqde atravessar os ares e romper todos os limites ima- dade do mundo material. Leibniz combina essa prova
i'·
ginár.ios das esferas celestiais erigidos por uma rnetafí- metafísica a uma nova prova científica. Descobre um
sica e umacosmologia falsas-". O universo infinito não novo instrumento de pensamento matemático - o cál-
fixa qualquer limite à razão humana. O intelecto hu- culo infinitesimal. Pelas regras desse ,rálculo, o univer-
mano toma consciência de sua própria infinidade me- so físico torna-se inteligível; vê-se que as leis da nature-
dindo seus poderes pelo universo infinito. za não são, nada além de casos especiais das leis gerais
Tudo isso é expresso na obra de Bruno em uma lin- da razão. E Spinoza que se aventura a dar o último pas-
guagem poética, e não científica. O novo mundo da ciên- so, decisivo, nessa teoria matemática do mundo e da
'cia moderna, a teoria matemática da natureza , ainda mente humana. Spinoza concebe uma nova ética uma
era desconhecida de Bruno. Ele não pôde, portanto, se- teoria d~s paixões e afetos, uma teoria matemática do
guir por seu caminho até sua conclusão lógica. Foram mundo moral. Está convencido de que só por meio des-
necessários os esforços combinados de todos os metafí- sa teoria podemos atingir o nosso fim: a meta de uma
sicos e cientistas do século XVII para superar a crise "filosofia do homem", de uma filosofia antropológica,
intelectualprovocada pela descoberta do sistema coper- que esteja livre dos erros e preconceitos de um sistema
nicano. Todo grande pensador - Galileu, Descartes, meramente antropocêntrico. Este é o tópico, o tema ge-
Leibniz, Spinoza - tem sua parte especial na solução ral, que em suas várias formas permeia todos os gran-
desse problema. Galileu afirma que, no campo da ma- des sistemas metafísicos do século XVII. É a solução ra-
temática, o homem alcança o ápice de todo o conheci- cionalista do problema do homem. A razão matemática
mento possível- conhecimento que não é inferior ao é o vínculo entre o homem e o universo; permite-nos
do intelecto divino. É claro que o intelecto divino co- passar livremente de um para o outro, A razão 'mate-
nhece e concebe um número infinitamente maior de ver- mática é a chave parauma verdadeira compreensão das
dadeematemáticas do que nós, mas, com relação à cer- ordens cósmica e moral.
teza objetiva, as poucas verdades conhecidas pela men-
te humana são conhecidas tão perfeitamente pelo homem
quanto o são por Deus-". Descartes começa com sua dú- 4
vida universal que parece encerrar o homem nos limi-
tes de sua própria consciência. Parece não haver saída Em 1754, Denis Diderot publicou uma série de afo-
desse círculo mágico - nenhuma abordagem da reali- rismos intitulada Pensées sur I'interprétation de Ia nature. Nes-
dade. Mesmo neste caso, porém, a idéia do infinito acaba se ensaio ele declarou que a superioridade da matemá-
'sendo o único instrumento para a derrubada da dúvida tica no domínio da ciência não é mais inconteste. A ma-
universal. Só por meio desse conceito podemos dernons- temática, afirmou, alcançou um tão alto grau de perfei-
34 ENSAIO SOBRE O HOMEM o QUE É O HOMEM? 35

. ção que nenhum progresso é mais possível; a partir desse Mas está chegando o momento em que superaremos esse
momento, a matemática permanecerá estacionária. preconceito, e então teremos chegado a um ponto novo
e culminante na história da ciência natural.
Nous touchons ali moment d'une grande révolution dans les . Terá sido cumprida a profecia de Diderot? Terá o
sciences. Au penchant que lcs esprits me paroissent avoir à desenvolvimento das idéias científicas no século XIX
Ia moi-ale, aux belles lettres, à I'histoire de Ia nature et à Ia confirmado a sua opinião? Em um ponto, sem dúvida,
physique cxpérimentale j'oserois presque assurer qu'avant qu'il o erro dele é óbvio. A sua expectativa de que o pensa-
soit cent ans' on ne comptera pas trois grands géometres en mento matemático se paralisaria, que os grandes mate-
Europe. Cette science s 'arrêtera tout court ou l'auront laissé máticos do século XVIII haviam chegado aos Pilares de
les Bernoulli, les Euler, les Maupertuis et les d' Alernbert. Ils Hércules, revelou-se inteiramente in~orreta. Àquela ga-
auront posés les colonnes d'HercuIe, on n'ira point au delà26.
láxia do século XVIII devemos agora acrescentar os no-
mes de Gauss, de Riemann, de Weierstrass, de Poinca-
Diderot é um dos grandes representantes da filoso- ré. Por toda a parte, na ciência do século XIX, depara-
fia do Iluminisrno. Como editor da Encyclopédie, ele está mos com a marcha triunfal de novas idéias e novos con-
no próprio. centro de todos os grandes movimentos in- ceitos matemáticos. Não obstante, a previsão de Dide-
telectuais de seutempo. Ninguém tinha uma perspecti- rot continha um elemento de verdade. Pois a inovação
va mais clara do desenvolvimento geral do pensamento da estrutura intelectual do século XIX está precisamente
científico; ninguém tinha uma sensibilidade mais agu- no lugar que o pensamento matemático ocupa na hie-
da para todas as tendências do século XVIII. É ainda rarquia científica. Uma nova força começa a surgir. O
mais característico e notável de Diderot que, represen- pensamento biológico toma a precedência sobre o pen-
-tando todos os ideais do Iluminismo , tenha começado samento matemático. N a primeira metade do século
.a duvidar da correção desses ideais. Ele espera o surgi- XIX há ainda alguns metafísicos, como Herbart, ou al-
mente de uma nova forma de ciência - uma ciência guns psicólogos, comoG. Th. Fechner , que nutrem a
de caráter mais concreto, baseada antes na observação esperança' de fundar uma psicologia matemática. Mas
dos fatos que na adoção de princípios gerais. De acordo tais projetos desaparecem rapidamente após a publica-
com Diderot, superestimamos demais os nossos méto- ção da obra de Darwin A Origem das Espécies. A partir
dos lógicos e racionais. Sabemos corno comparar, orga- desse momento, o verdadeiro caráter da filosofia antro-
.
nizar e' sistematizar os fatos conhecidos; mas não culti-
vamos os únicos métodos pelos quais seria possível des-
pológica parece ter sido fixado de uma vez por todas.
Após inúmeras tentativas infrutíferas, a filosofia do ho-
cobrir novos fatos. Somos vítimas da ilusão de que o ho- mem está finalmente em terreno firme. Não precisamos
mem que não sabe contar sua fortuna não está em me- mais dedicar-nos a especulações visionárias, pois não es-
lhor posição que o homem que não tem fortuna alguma. tamos em busca de uma definição geral da natureza ou
[',
t
I
36 ENSAIO SOBRE O HOMEM O QUE É O HOMEM? . 37

'da essência do homem, O nosso problema é simplesmen- sas finais de Aristóteles são caracterizadas como um mero
te colher as evidências empíricas que a teoria geral da asylum ignorantiae. Um dos principais objetivos da obra
evolução colocou à nossa disposição em uma medida ri- de Darwin foi livrar o pensamento moderno dessa ilu-
ca e abundante. são de causas finais, Devemos procurar entender a es-
Tal era a convicção comum aos cientistas e filóso- , trutura da natureza orgânica unicamente por causas ma-
fos do século XIX, Mas o que se tornou mais impor- teriais, ou não poderemos entendê-Ia. Mas as causas ma-
tante para a história geral das idéias e para o desenvol- teriais são, na terminologia de Aristóteles, causas "aci-
vimento do pensamento filosófico não foram os fatos em- dentais", Aristóteles havia afirmado enfaticamente. a im-
píricos da evolução, e sim a interpretação teórica desses possibilidade de se entender o fenômeno da vida por tais
fatos. Essa-interpretação não foi determinada, em um causas acidentais. A teoria moderna aceita esse desafio,
sentido inequívoco, pela própria evidência empírica, mas Pensadores modernos afirmaram que, após as inúme-
antes por certos princípios fundamentais que tinham um ras tentativas infrutíferas dos tempos antigos, consegui-
caráter metafísico definido, Embora raramente reconhe- ram definitivamente dar conta da vida orgânica como
cido, esse cariz metafísico do pensamento evolucioná- um mero produto do acaso, As mudanças acidentais que
rio foi uma força motivadora latente. Em um sentido têm lugar na vida de cada organismo bastam para ex-
filosófico geral, a teoria da evolução não era, de modo plicar a transformação gradual que nos leva das formas
algum, uma realização recente, Ela havia tido a sua ex- mais simples de vida em um protozoário às mais eleva-
pressão clássica na psicologia de Aristóteles e na sua vi- das e complicadas formas, Encontramos uma das mais
são geral da vida orgânica, A distinção característica e notáveis.expressões dessa visão no próprio Darwin, que
fundamental entre a versão aristotélica e a moderna da . costuma ser tão reticente acerca de suas concepções fi-
evolução consistia no fato de que Aristóteles fazia uma losóficas, "Não só as várias raças domésticas", obser-
interpretação formal, enquanto os modernos tentavam va ele no final de seu livro The Variation o] Animals and
uma' interpretação material. Aristóteles estava conven-
Planis undet Domestication,
cido de que para entender o plano geral da natureza,
as origens da vida" as formas inferiores devem ser in-
como também os mais distintos gêneros e ordens dentro da
terpretadas à luz das formas superiores. Na sua metafí- mesma grande classe - por exemplo, mamíferos, aves, rép-
sica, na sua definição da alma como" a primeira efeti- teis e peixes - são todos descendentes de um único progeni-
vação de um corpo natural potencialmente com vida", tor comum, e devemos admitir que toda a vasta quantidade
a vida orgânica é concebida e interpretada em termos de diferença entre essas formas surgiu primariamente da sim-
da vida humana. O caráter teleológico da vida humana ples variabilidade, Considerar o tema sob esse ponto de vista 1
- ,I
é projetado sobre todo o domínio dos fenômenos natu- é bastante para deixar a pessoa muda de espanto, Mas o nos-
rais. Na teoria moderna, essa ordem é invertida. As cau- -so espanto deveria diminuir ao refletirmos que seres quase in-
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ENSAIO SOBRE O HOMEM

dentais? Não possuirá ele uma distinta e inegável estru-


finitos em número, durante um lapso quase infinito de tem-
po, tiveram muit~s vezes toda a sua organização tornada até
tura teleológica? Com isso, um novo problema apresen-
certo grau plástica, e que cada ligeira modificação de cstrutu- tou-se a. todos os filósofos cujo ponto de partida era a
.r a que fosse de algum modo benéfica sob condições excessiva- teoria geral da evolução. Tinham de provar que o mundo
mente complexas de vida foi preservada, enquanto cada uma cultural, o mundo da civilização humana, é redutível
que fosse de' algum modo perniciosa foi rigorosamente destruí- a algumas causas gerais que são as mesmas tanto para
da. E a longa acumulação de variações benéficas terá levado os fenômenos físicos quanto para os fenômenos ditos es-
infalivelmente a estruturas tão diversificadas, tão belamente pirituais. Este foi o novo tipo de filosofia da cultura in-
adaptadas para .vários propósitos e tão excelentemente coor- troduzido por Hippolyte Taine em sua Philosophy 01Art
denadas como as que vemos nas plantas e animais à nossa volta. e em sua History of the English Literature. "Aqui como em
!
Por isso, falei da seleção como o poder supremo, aplicada pe- ou tras partes", disse ele, I,
lo homem para a formação das raças domésticas ou pela natu-
reza para a produção de espécies ... Se um arquiteto erguesse
não ternos mais que um problema mecânico; o efeito total é
um edifício nobre e cômodo sem usar pedras cortadas, sele-
um resultado, que depende inteiramente da magnitude e da
cionando entre os fragmentos na base de um precipício pedras
direção das causas que o produzem. Embora os meios de no-
em forma de cunhas para seus arcos, pedras alongadas para
tação não sejam os mesmos nas ciências físicas e morais, mas
seus lintéis e pedras chatas para seu teto, deveríamos admirar
em ambas a matéria é a mesma, igualmente feita de forças,
• seu talento e considerá-Io como um poder supremo. Ora, os
magnitudes e direções, podemos dizer que em ambas o resul-
fragmentos de pedra, embora indispensáveis para o arquite-
tado final é produzido segundo o mesmo ll1étod028.
to, têrn com o edifício construído por ele a mesma relação que I
i.
as variações flutuantes dos seres orgânicos têm com as varia-
das e admiráveis estruturas adquiridas em última instância por
É O mesmo círculo férreo ele necessidade que encerra tan-
to a nossa vida física como a cultural. Em seus senti- i.i
seus descendentes modificados27. I'
mentos, suas inclinações, suas idéias, seus pensamen- i
tos e sua produção de obras de arte, o homem nunca
Mas outro passo, e talvez o mais importante, tinha
rompe 'esse círculo mágico. Podemos considerar o ho-
ainda de ser dado antes que uma real filosofia antropo-
lógica pudesse desenvolver-se. A teoria da evolução ha- mem como um animal de espécie superior que produz
via destruído os limites arbitrários entre as diferentes for- filosofias e poemas do mesmo modo que o bicho-ela-seda
mas de vida orgânica. Não há espécies separadas; há ape- produz seus casulos ou as abelhas constroem suas celas.
nas uma contínua e ininterrupta corrente de vida. Mas ..No prefácio à sua grande obra, Les origines de ta France
.~será que podemos aplicar o mesmo princípio à vida hu- contemporaine, Taine declara que estudará a transforma-
mana e à cultura humana? Será o mundo cultural , tal ção da França como resultado da Revolução Francesa
. como o mundo orgânico, formado por mudanças aci- como estudaria" a metamorfose de um inseto" .
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Neste ponto, porém, surge outra questão. Podemos qual os fatos empíricos são esticados para amoldar-se a
contentar-nos em contar de modo meramente empírico um padrão preconcebido.
os diferentes impulsos que encontramos na natureza hu- Em virtude desse desenvolvimento, nossa teoria mo-
mana? Para uma visão realmente científica, tais impul- derna do homem perdeu seu centro intelectual. Adqui-
sos deveriam ser classificados e sistematizados. Obvia- ~ rimos, no lugar dele, uma completa anarquia de pensa-
,.
mente, nem todos eles estão no mesmo nível. Devemos [ mento. É claro que mesmo nos tempos antigos havia uma
supor que possuem uma estrutura definida - e uma das grande discrepância de opiniões e teorias relativas a este
primeiras e. mais importantes tarefas da nossa psicolo- problema. Mas restava pelo menos uma orientação ge- ,
gia e teoria da cultura é descobrir essa estrutura. Na com- ral, um marco de referência ao qual todas as diferenças
plicada engrenagem da vida humana, devemos encon- individuais podiam ser submetidas. A metafísica, a teo-
trar ,a força acionadora oculta que põe todo o mecanis- logia, a matemática e a biologia assumiram sucessivamen-
mo do nosso pensamento e da nossa vontade em movi- te a orientação do pensamento sobre o problema do ho-
mento. A meta principal de todas essas teorias era pro- mem e determinaram a linha de investigação. A verda-
var a unidade e a homogeneidade da natureza humana. deira crise deste problema manifestou -se quando deixou
Mas, se examinamos as explicações que tais teorias fo- de existir um tal poder central, capaz de dirigir todos os
ram concebidas para dar, a unidade da natureza humana esforços individuais. A importância decisiva do proble-
parece extremamente duvidosa. Cada filósofo acredita ma continuava a ser sentida em todos os diferentes ra-
ter encontrado a mola mestra e a faculdade principal - mos de conhecimento e de investigação, mas não existia
I'idée maitresse, tal como foi chamada por Taine. Porém, mais uma autoridade estabelecida à qual se pudesse ape-
quanto aocaráter dessa faculdade principal, todas as ex- lar. Teólogos, cientistas, políticos, sociólogos, biólogos,
plicações diferem amplamente umas das outras, e são psicólogos, etnólogos e economistas, cada um abordou
contraditórias entre si. Cada pensador individual nos ofe- o problema a partir de seu próprio ponto de vista. Com-
rece a sua própria imagem da natureza humana. To- binar ou unificar todos esses aspectos e perspectivas par-
dos esses filósofos são empiristas determinados; desejam ticulares era impossível. E nem em cada um dos campos
mostrar-nos os fatos e nada mais que os fatos. Mas sua especiais havia um princípio científico de aceitação ge-
interpretação da evidência empírica contém, desde o iní- ral. O fator pessoal tornou-se cada vez mais prevalecen-
cio, uma suposição arbitrária - e esta arbitrariedade te, e o temperamento do escritor individual tendia a ter
vai ficando cada vez mais óbvia à medida que a teoria um papel decisivo. Trahit sua quernque ooluptas: cada autor
"avança e assume um aspecto mais elaborado e sofistica- parece ser conduzido, em última análise, por sua própria
do. Nietzsche proclama a vontade de potência, Freud concepção e avaliação da vida humana.
assinala o instinto sexual, Marx entroniza o instinto eco- Que esse antagonismo de idéias não é meramente
"
't.'
..
nômico. Cada teoria torna-se um leito de Procrusto no um grave problema teórico e sim uma ameaça iminen-
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o QUE É O HOMEM)
43
te a toda a extensão de nossa vida ética e cultural não
admite qualquer dúvida. No pensamento filosófico re- to, não teremos qualquer compreensão real do caráter
cente, Max Scheler foi um dos primeiros a perceber e geral da cultura humana; continuaremos perdidos em
a assinala; esse perigo. "Em n~nhum outro período do uma massa de dados desconexos e desintegrados que pa-
recem carecer de toda unidade conceitual.
conhecimento humano", declara ele,

o homem tornou-se mais problemático para si mesmo que em


nossos próprios dias. Temos uma antropologia científica, ou-
tra filosófica e outra teológica que não sabem nada uma da
outra. Portanto, não possuímos mais qualquer idéia clara e
coerente do homem. A multiplicidade cada vez maior das ciên-
cias particulares q.ue se dedicam ao estudo do homem confun-
diu e obscureceu muito mais que elucidou o nosso conceito
do homem29.

Tal é a estranha situação em que se encontra a fi-


losofia moderna. Nenhuma época passada esteve em po-
.sição tão favorável com relação às fontes do nosso co-
nhecimento da natureza humana. A psicologia, a etno-
logia, a antropologia e a história acumularam um cor-
'po de fatos espantosamente rico e em constante cresci-
mento. Nossos instrumentos técnicos para a observação
e a experimentação foram imensamente aperfeiçoados,
e nossas análises tornaram-se mais aguçadas e mais pe-
netrantes. Mesmo assim, aparentemente não encontra-
l~os.~inda um método para o domínio e a organização
desse material. Comparado à nossa própria abundân-
cia, o passado deve parecer. muito pobre. Nossa rique-
za de fatos, contudo, não é necessariamente uma rique-
za de pensamentos. A menos que consigamos achar um
fio de Ariadne que nos conduza para fora deste labirin-

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