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A arte engajada e seus públicos

(J 955/1968)
Marcos Napolitano

Ao longo deste ensaio vou propor uma perspectiva para se pensar a


trajetória da arte engajada nos anos 60, a qual tentará articular a relação entre as
formas de expressão artística dos autores engajados e os públicos receptores
dessas obras. Delimitarei minha análise em três áreas de expressão: o teatro, o
cinema e a música. Essas três "artes de espetáculo", confollne a expressão de
Roberto Schwarz (1 978: 63) ocuparam a cena principal numa época de "relativa
hegemonia cultural da esquerda", entre a segunda metade dos anos 50 e o final
da década de 60. No caso da música popular, os anos 60 consolidaram um
verdadeiro "sistema" musical-popular, articulando "autor-obra-público-crítica"
e instaurando uma nova maneira de pensar e viver a música popular em nosso
país. Se a literatura, como campo privilegiado de elaboração do pensamento
crítico da esquerda, era substituída pelo teatro, pela música e pelo cinema,
veículos privilegiados nos anos 60, por outro lado, essas três artes, renovadas,
tornavam-se mais "literárias",

ESludos Hisl6ricos, Rio de Janeiro, nO 28, 2001, p. 103-124.

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No teatro, a articulação com a tradição literária até poderia ser consi­


derada "natural", na medida em que a sua linguagem opera com a palavra como
material básico de expressão ao lado do gesto, palavra esta voltada para o drama,
para o ato da encenação, e não para a leitura. Mas na música (popular) e no cinema,
a relação com a literatura (em seus diversos níveis), até então, fora mais episódica
e incomum, e suas articulações com a literariedade parece ser um dos pontos mais
marcantes da renovação dessas duas artes no Brasil dos anos 60. Podemos
considerar que houve uma mudança estrutural na linguagem, que operou não só
a renovação do fazer musical e cinematográfico, mas também acabou por consti­
tuir uma nova estrutura de recepção - um novo público - "jovem, universitário,
de esquerda", como se dizia. Esse segmento de público, mais tarde ampliado (no
caso da música popular), constituiu uma primeira camada na renovação da
recepção das artes de espetáculo no Brasil, sob a vigência de uma cultura
nacional-popular de esquerda. Não apenas os novos dramaturgos, cancionistas e
cineastas migravam de classes e espaços sociais, nos quais as "letras" (literatura,
meio acadêmico, crítica literária, jornalismo) tinham um papel central, altamente
valorizado, como definidoras do conceito de "cultura", mas um novo público se
formava, a partir de um espaço público onde o "espírito letrado" era até então
predominante.
Minha tese central é que o conceito de engajamento artístico de esquerda,
a partir do final dos anos 50, deve ser pensado a partir dessas mudanças estruturais
no campo artístico-cultural como um lOdo, processo que diluiu a "república das
letràs" em outras áreas artísticas, vocacionadas para o "efeito", para aperfO,.mallce,
para o "lazer". Assim, o conceito de engajamenlO, tal como delimitado por Sartre
(1993: li) - a atuação do intelectual através da palavra (arriculada em prosa e
ensaio), colocada a serviço das causas públicas e humanistas -, sofreu no Brasil
(e em outros países, sobretudo da América Latina) uma releitura, com todos os
problemas e virtudes daí decorrentes. Ao contrário do que defendia o filósofo
francês, o espaço de atuação privilegiado do artista/intelectual de esquerda
brasileiro não foi a prosa ou o ensaio, embora os anos 50 e 60 fossem pródigos
também nesses gêneros, mas as artes que apelavam aos sentidos corpóreos, através
de imagens, sons e ritmos.
Num primeiro momento desse processo, a esfera pública na qual era
vivenciada a arte engajada possuía uma certa articulação "artista-obra-público",
esboçando um sistema cultural ainda incipiente. Na medida em que as obras mais
expressivas (dramas, filmes, canções) tangenciavam o público mais amplo, em
alguns casos via o mercado, essa homologia passou a ser rensionada por dois
falOres: a entrada de novos segmentos sociais na composição do público, sobre­
tudo oriundos de outros circuitos culturais (rádio, televisão, cultura oral, litera­
l
tura de massa), e a necessidade de construir uma "popularidade" - questão que

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A arte CIIgajada e se"s públicos

se colocava diante dos artistas de esquerda -, que era vista como uma tática para
atingir os objetivos políticos mais amplos do "engajamento". O mercado acabaria
sendo o caminho trilhado em algumas expressões da arte engajada, caminho este
muitas vezes enviesado, para se chegar à "popularidade". N essa questão, gostaria
de demarcar um ponto importante que me afasta das correntes de análise vigentes
sobre o tema: esse processo - de "ida ao mercado" - foi potencializado pelo
processo sociopolítico detonado após o golpe militar de 1964 e, principalmente,
pela repressão pós-68, mas não foi iniciado por ele. Desde o início dos anos 60, o
problema da "popularidade" (leia-se, a formação de públicos fiéisi massivos e
assíduos) estava colocado nos debates entre os artistas de esquerda.
O novo contexto político e econômico, pós-64, deslocou essa discussao
para o mercado, que acenava para os artistas com novas e inusitadas possibili­
dades de divulgação, pleno de "ambigüidades" (Ridenti, 1993: 96). A reação de
cada área de expressão a essa nova conjuntura ideológica, cultural e econômica
será diferente. Nesse ponto, explicito a hipótese fundamental deste artigo. Após
um movimento inicial de formação de um público inicialmente mais coeso para
a arte engajada - processo que localizamos entre 1955 e 1965, aproximadamente
-, na segunda metade da década de 60 as áreas do teatro, cinema e música popular
desenvolverão relações diferenciadas com os seus públicos específicos. Esta
hipótese não implica afirmar que os públicos específicos dessas três áreas eram
estanques e homogêneos, ou que uma mesma pessoa não transitava entre os
vários públicos de cada área de expressão. Em suma, o que enfatizo é que a
relação estrutural entre artista-obra-público passará a ser diferenciada para cada
uma dessas três frentes de expressão: cinema, teatro e música popular.
Os anos-chave desse processo de reestruturação dos públicos da arte
engajada vão de 1966 a 1968. Nesse triênio, três tendências se sobressaíram com
mais nitidez: no teatro, assistiu-se a um processo de implosão do público. No
cinema (brasileiro), um processo defechamelllo do público. Na MPB, um for­
midável (e problemático) processo de abertura do públko. Portanto, proponho
três categorias para reexaminar a relação entre as artes engajadas e seus públicos
nos anos 60: "implosão", "fechamento" e "abertura". Em outras palavras, de­
fendo uma revisão da visão monolítica e orgânica de público para as artes
engajadas do final dos anos 60, segundo a qual todos eram "jovens, intelecruais
e de esquerda", como se costuma dizer, e se relacionavam da mesma maneira com
as diversas áreas de expressão artística. Obviamente, a falta de pesquisas empíri­
cas e documentais de maior fôlego dificultam o desenvolvimento de análises mais
específicas e ponruais sobre "os públicos" da arte engajada, o que parece ser a
necessidade mais urgente da pesquisa histórica sobre o tema.
Retomemos as três imagens: implosão, fechamemo, abertura. "Implosão"
porque, a partir de 1 967, o teatro se fará "contra" o público, tendo como

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paradigma as peças O rei da vela e Roda viva, do Grupo Oficina, não por acaso
exemplo de "teatro de agressão", conforme a expressão da época. "Fechamento"
porque, a partir de 1965, se fez um cinema para pequenos círculos, em parte por
causa dos problemas de distribuição e da força esmagadora do cinema norte­
3
americano, em parte por opção estética Finalmente, falamos em "abertura" do
público para qualificar o processo da música popular pois, nessa área, também a
partir de 1965 (com o programa O fino da bossa, por exemplo), o público será
potencializado pela entrada das canções engajadas numa impressionante
dinâmica de mercado televisivo e fonográfico, confirmando a vocação para a
audiência massiva que a música popular brasileira já possuía, antes mesmo da
explosão da bossa nova.
Para o teatro, o cinema e a canção engajada, no início dos anos 60, o
problema do público se colocava em dois níveis: num primeiro nível, colocava-se
o desafio de consolidar um público próximo e imediato, que partilhasse com o
artista espaços sociais comuns (movimento estudantil, campi universitários) e
valores ideológicos e políticos. Enfim, um elilos comum que reforçasse o sentido
político das manifestações artísticas. Num segundo nível, o desafio era ampliar
o circuito de público, abrir os espaços pelos quais a arte engajada circulava. Esse
era o maior desafio na medida em que, fora dos circuitos de mercado, o acesso às
massas era bastante problemático. A estrutora do CPC da UNE era bastante eficaz
para chegar aos públicos estudantis, mas impotente para romper os limites deste
meio socioculturaJ. Os "espetáculos de rua" ou em "porta de fábrica" eram uma
saída precária e não consolidavam a "popularidade" tão almejada pelo artista
engajado.
O desafio era construir um circuito de mercado, profissional e massivo,
mas sem cair nas fórmulas e armadilhas da indústria da cultura, considerada
4
alienada e escapista. Era preciso, portanto, atuar em dois níveis de público: o
meio social imediato ao artista, futura liderança do processo político (grosso modo,
o meio estudantil), e o meio social mais amplo, massivo, alvo da "pedagogia
política" que, de forma mais ou menos explícita, se enunciava na obra ("o povo").
No primeiro nível de relação com o público, a arte engajada visava a constituir
uma vanguarda, uma liderança, um grupo social que deveria conduzir o processo
reformista-revolucionário, em curso no governo Goulart, conforme a leitura da
esquerda. No segundo nível, tratava-se de ampliar a esfera pública da arte
engajada, entendida como veículo de conscientização das massas. A educação
política, estética e sentimental de uma elite (o "jovem estudante de esquerda") e
das massas (o camponês, o operário, a classe média) eram duas faces de uma
mesma moeda, pensada sob perspectivas diferentes.
Vejamos alguns detalhes desse processo de fOIlIlação de um público,
entre 1955 e 1966, em cada área especifica.

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A arte engajada e sells públicos

No tcatro

o teatro engajado, ou "empenhado", como se dizia, nasceu no seio do


teatro "burguês". O primeiro Teatro de Arena, formado em 1953, surgiu como
um grupo experimental, den tro do T BC, o já consagrado Teatro Brasileiro de
Comédia, criado em 1948. O surgimento do Arena, a partir do T BC, não só
capitalizava a grande explosão da vida teatral em São Paulo como também
flexibilizava o cUSto das produções, além de servir como laboratório de formação
de novos atores e diretores e formar um público mais jovem e, em certa medida,
ausente das platéias do "teatrão". Em 1955, com a mudança para o lendário
endereço da rua Teodoro Bayma n. 94, no Centro de São Paulo, o Arena cede o
espaço às segundas-feiras para o recém-formado Teatro Paulista do Estudante
5
grupo de jovens autores-atores surgido sob os auspícios do Partido Comunista.
Para o PCB, o objetivo imediato era atuar no meio estudantil secundarista, onde
despontava forte oposição ao Partido, e a atividade artística era um dos instru­
mentos de tal estratégia. Para os jovens militantes comunistas, com vocação
artística, o TPE foi a chance de conciliar a vida partidária com a atuação teatral.
Em 1956, o TPE e o Arena se fundiram. Entre 1956 e 1957, a maioria das
peças encenadas eram clássicos estrangeiros, antigos ou modernos. Em 1956, a
chegada de Augusto Boal, dirigindo Ratos e homens, de Steinbeck, marcou o início
da busca de uma linguagem cênica despojada, que culminará nas famosas peças
dos anos 60, do Arena renovado, como Arena conta ZlImbi. Um ano antes, no II
Festival de Teatro Amador, em 1955, o TPE apresentava uma tese que era a síntese
"teórica" dessas preocupações: "O teatro amador em defesa de nossas tradições
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culturais,, Nesse documento, a relação com o público ocupa um lugar central
na reflexão. Basicamente, o texto defendia o caminho da "emoção" como base da
"consciência" social. A emoção deveria levar ao "desentorpecimento", primeiro
momento de uma tomada de consciência sobre os problemas da realidade.
Portanto, o eixo do teatro era, sobretudo, o público, mais do que a linguagem, a
obra ou o ator em si. Ao lado da atuação dos homens de cinema ligados ao PCB,
como Alex Viany e Nelson Pereira dos Santos, o TPE fundava as bases da nova
arte engajada de esquerda, sob o lema do nacional-popular.Por outro lado, cinema
e teatro recuperavam a perspectiva colocada pela literatura social dos anos 30,
sobretudo por Jorge Amado e Graciliano Ramos.
Apesar da consolidação de um público jovem e cúmplice das questões
colocadas, dois problemas ainda se apresentavam: a necessidade de uma autoria
brasileira mais consistente e a consolidação das condições de produção e, conse­
qüentemente, de ampliação do público. O grande sucesso de Eles não usam
black-tie, peça que estreou em fevereiro de 1958, parecia apontar para a solução
dos dois problemas. Escrita pelo jovem Gianfrancesco Guarnieri, autor da "casa"

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(pois era membro fundador do TPE), a peça foi um grande sucesso de público.
Numa primeira temporada, ficou um ano em cartaz , percorreu mais de quarenta
cidades e foi encenada 512 vezes (Moraes, 1991: 59). Tendo como eixo dramático
os dilemas e conflitos de uma família operária durante uma greve, a peça buscava
realizar a ponte "emoção-consciência", já sistematizada nos manifestos e artigos
do TPE? A linguagem dramática e realista, levada a cabo pelo diretor José Renato
e encenada com muita força pelos atores, além de agradar o público estudantil
mais jovem, conseguiu trazer um público mais amplo, o público que até então
freqüentava o "teatro sério", na linha TBC. Além disso, um grande número de
encenações, ainda não contabilizado, foi realizado em sindicatos e circos, apon­
tando para um novo público, ausente das salas de teatro convencionais. Em
outubro de 1959, Eles não usam black-tie estreou no Rio de Janeiro, no mesmo
teatro de Copacabana onde, cinco anos mais tarde, seria encenada Opinião.
No seio do TPE/Arena, surgia também um outro autor: Oduvaldo
Vianna Filho. Em 1959, estreava a peça Chapetuba F.C., que também dramatizava
os conflitos sociais e políticos dentro de um time de futebol, e em três meses foi
encenada mais de cem vezes. Guarnieri e Vianinha iniciavam uma trajetória que
parecia resolver duas questões colocadas pelas discussões que ocupavam o meio
teatral da época: conciliar textos de qualidade dramática e crítica social e política,
e encontrar uma linguagem que pudesse ser assimilada, de uma maneira ou de
outra, por vários "públicos" (ou platéias), de origem social e formação cultural
diferentes. Dos operários dos subúrbios aos burgueses do TBC, passando pelos
jovens e estudantes, todos estariam aptos a assimilar o conteúdo e a linguagem
das peças, de apelo realista, dramático e humanista, ainda que focando problemas
classistas e nacionais. Num certo sentido, esse tipo de teatro era a materialização
estética dos princípios de aliança de classes, referendada no V Congresso do PCB,
em 1960, base do refolInismo "populista" que seria colocado em xeque pelo golpe
militar (Mostaço, 1982: 34). A renúncia do conservador Jânio Quadros e o sucesso
da mobilização popular para garantir a posse do progressista Jango estimulavam
ainda mais a participação política e a busca de um novo patamar de conscienti­
zação popular através da cultura.
Nesse contexto, surgia no Rio de Janeiro o Centro Popular de Cultura

da UNE. E bastante conhecida a importância de Vianinha no surgimento do


CPC, até porque o evento que deu início às articulações no meio estudantil foi a
sua peça A mais valia vai acabar. .., encenada em 1960. Ela tentava "explicar" o
mecanismo de exploração capitalista, através de uma linguagem leve e bem
humorada. Portanto, a estratégia era outra: o drama e a emoção dão lugar ao
humor e ao didatismo mais linear. As duas linguagens, historicamente constitu­
tivas de um público teatral massivo, se reencontrarão no show Opinião, encenado

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A arte ellgajada c sefls públicos

em 1964, sob a perspectiva da catarse de um público traumatizado pelos acon­


tecimentos políticos daquele ano.
Por volta de 1961, Vianinha produz um documento dos mais significa­
tivos para entendermos os projetos e dilemas da arte de esquerda no Brasil. Num
dos trechos mais contundentes, Vianinha diz: "Um movimento de massas só
pode ser feito com eficácia se tem como perspectiva inicial sua massificação, sua
industrialização (...). Nenhum movimento de culrura pode ser feito com um
,

autor, um ator etc. E preciso massa, multidão" (aplld Mostaço, 1982: 58). Nesse
trecho, ficava clara não só a profissão de fé de Vianinha, que seria sua marca até
a morte prematura, em 1974, mas também uma linha de atuação junto ao público
que marcaria uma vertente importante da arte engajada de esquerda no Brasil: a
busca da audiência massiva, como estratégia e princípio.
Entre 1962 e 1964, consolidaram-se as quatro grandes vertentes do teatro
8
brasileiro: o Arena, renovado, cada vez mais sob influência de Augusto Baal,
partindo para uma linha de montagem de autores clássicos; o Oficina, surgido
em fins dos anos 50, na sua primeira fase (pré-Rei da vela), seguindo um caminho
mais próximo ao "realismo existencialista"; o TBC, já em crise, apesar do grande
sucesso de O pagador de promessas (Dias Gomes, 1960); e, finalmente, o teatro do
CPC, apontando para uma linha de "agitação-propaganda", com peças ágeis e
buscando "tipos-ideais" para falar da sociedade e da política nacional. Na medida
em que a radicalização política tomava conta da vida nacional, o teatro iniciava
um debate que iria explodir no final da década de 60, lastreado por novas
questões: para quem se deve encenar? Para o "povo" ou para a "pequena
burguesia", público tradicional dos teatros desde o final dos anos 40? Como
devem ser trabalhados os dilemas nacionais? Pela emoção, catarse e identificação
entre público e palco? Ou pela busca do distanciamento e do choque com a
platéia?
A conquista das faixas etárias mais jovens, nos anos 50, não arrefeceu a
discussão sobre o perfil marcadamente classista das salas de espetáculo e sobre a
ausência de extratos mais amplos da própria classe média (público marcante nas
salas de cinema, por exemplo), para não falar das classes populares urbanas
(público das audiências radiofônicas dos anos 40 e 50). O limite de público do
teatro, mesmo vocacionado para uma audiência maior, acabava por garantir um
sentido de sociabilidade muito forte e estreita entre o público que freqüentava as
peças, quase sempre identificado com culrura política "nacional-popular". A
implosão dessa cultura, por volta de 1967/1968, fará com que o próprio público
"imploda", ou seja, seja desagregado por dentro de suas próprias estruturas.
Segundo Zuenir Ventura, o teatro brasileiro possuía, por volta de 1969, um
público "[u<o" de cerca de 200 mil pessoas no Brasil todo, quase todos concen­
trados entre Rio e São Paulo. Esse número permaneceu estável até meados dos

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anos 70, não acompanhando o crescimento do público em outras artes, o que


parecia indicar uma estagnação, agravada pela censura, particularmente grave no
caso do teatro (Ventura et alli, 2000: 103).
Com o golpe militar de 1964, a questão passava a ser outra. O pacto
classista reduz seu espectro social (expurgando a "burguesia traidora"), e a crença
na emoção como base de uma construção progressiva da consciência sofre um
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abalo. Com Opinião, espetáculo realizado pelo grupo homônimo, há uma cli­
vagem em direção a uma linguagem mais popular (recuperando a linguagem das
comédias de costumes e do teatro de revista). Ao mesmo tempo, a relação com o
público passa a incorporar a busca da "resistência-catarse", sem negar, num
primeiro momento, o binômio "emoção-consciência". Se nesse espetáculo o
público já era visto como "cúmplice" do que se passava no palco, a busca da catarse
aproximava ainda mais o palco e a platéia: "Opinião operava numa comunicação
de circuito fechado: palco e platéia irmanados na mesma fé. Aliás, raro exemplo
de espetáculo brasileiro contemporâneo inteiramente grego em seu espírito. O
povo do palco era o mesmo povo da platéia" (Mostaço, 1982: 77).
Paradoxalmente, após 1964, o teatro de esquerda, marcado por esse
espírito cívico de protesto/resistência e pela busca de encenação do otimismo e
da crítica da "cultura popular", ampliará seu público, sobretudo entre os mais
jovens, potencializando um processo histórico já notável no final dos anos 50. Os
sucessos da época exemplificam esse processo: Arena coma Zumbi (Arena, 1965),
Se correr o bicho pega.. (Opinião, 1966), Morte e vida Severina (Tuca, 1966),Aret1a
.

cOlUa Tiradentes (Arena, 1967), entre outras. Mesmo enfatizando a "cultura


popular" e criticando algumas ilusões políticas da aliança de classes defendida
pelo PCB (como a crença na "burguesia progressista"), o teatro de esquerda
pós-golpe (Arena e Opinião, sobretudo) ainda manteve a perspectiva básica da
"frente" política derrotada em 1964. Até um certo momento, por volta de
1966/1967, seu público fiel parecia homologar essa opção.
A nova radicalização política, aliada a uma mudança no campo intelec­
tual de esquerda e no meio estudantil, em fins de 1967, iniciou o processo final
de implosao do público. Na verdade, esse processo de "implosão" do público
teatral, no final dos anos 60, não foi uma opção estética nem o resultado de 11ma
prática cultural consciente do meio teatral. Intimamente ligado à construção de
uma sociabilidade de esquerda e, notadamente, jovem, o teatro brasileiro será
tragado pelas mudanças nesses dois campos. A esquerda, até então hegemonizada
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pelo PCB, fragmentou-se a partir de 1967. Paralelamente, a juventude, sobre­
tudo como conceito sociocultural, também sofria um processo radical de
mudanças, em direção à contracultura massificada. Na nossa opiniao, esses dois
processos conjugados explicarão a "implosão" da platéia (e do próprio fazer
teatral, em certa medida), mesmo antes da edição do AI-S. As duas grandes

llO
A arte engajada e seus públicos

expressões dramatúrgicas desse processo não tardariam a aparecer, em fins de


II
1967 e ao longo de 1968: por um lado, o Grupo Oficina, a partir de O rei da vela,
rarucalizava o procedimento carnavalizante, libertá rio e crítico em relação aos
pressupostos político-ideológicos do PCB, sintetizados na tática da frente política
revolucionária e na crença no progresso da consciência histórica. Por outro, o
Teatro da USP (T USP) defendia uma proposta de dramaturgia que ia além da
resistência e da busca da "catarse" e passava a fazer a apologia da luta armada. No
final dos anos 60 e início dos anos 70, essas duas vertentes expressivas, radicais
e libertárias cada qual à sua maneira, se articularam, entrando em choque com
um outro tipo de dramaturgia, defendida pelo PCB, ainda presa aos valores do
l2
"nacional-popular" e da linha "emoção-consciência-catarse-resistência".
Para os limites da nossa análise, o que importa marcar é que a implosão
"ideológica" do público teatral e a sua expressão cênica acabarão por afastar,
momentaneamente, a própria presença de extratos mais amplos da classe média
(ou "pequena burguesia") nas platéias. Obviamente, não podemos esquecer a
violenta censura e repressão que se abateu sobre o meio teatral a partir do AI-S,
processo que foge à nossa proposta de análise, mas que certamente dificultava a
montagem de qualquer peça mais crítica. A crise de público, tão discutida no
início dos anos 70, revela não só uma mudança estrutural da platéia de teatro,
mas também a própria crise da função política do drama, exercitada desde os anos
50 e vivida sob a égide da "emoção-consciência-resistência-catarse".
Quando o Oficina se propunha a fazer um teatro "contra o público"
(teatro de "agressão"), ou quando o TUSP dizia em sua revista que era preciso
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"morrer o intelectual para nascer o revolucionário", essas não eram expressões
figuradas. O teatro mais impactante de 1968 representou, em cena, a implosão
da base social e ideológica de uma platéia até então mais ou menos coesa e com
amplo potencial de crescimento numérico. Por exemplo, O manifesto de O rei da
vela funciona como um verdadeiro epitáfio de todas as tentativas de construir,
no público, uma consciência que fosse a base de uma ação coletiva transfor­
madora:

Tudo procura transmitir essa realidade de muito


barulho por nada, onde todos os caminhos tentados para superá-la até
agora se mostraram inviáveis. Tudo procura mostrar o imenso cadáver
que tem sido a não-história do Brasil destes últimos anos, à qual todos
nós acendemos nossa vela para trazer, através da nossa atividade cotidi­
ana, alento. (Correa, 1979: 63)

A ousadia formal, tão marcante para a renovação do teatro brasileiro,


deveria romper os limites do "bom gosto" e capacidade de assimilação (estética
e ideológica) da platéia "média".

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Nelson Rodrigues, em uma crônica de 1968, sem o compromisso


ideológico de analisar o teatro como um "homem de esquerda" (aliás, muito ao
contrário), acabou sendo um dos primeiros a perceber o processo de implosão do
público teatral, potencializado pelo "teatro de agressão":

Mas nem tudo é vão no novo teatro. Quem o diz é o José


Celso. Segundo o jovem diretor, nem só os compreensivos enchem a sua

platéia. Há uma meia dúzia que, chocadíssima, "muda de lugar". Otimo,


ótimo. E, realmente isso jamais aconteceu com Sófocles, Shakespeare ou,
Ibsen. A platéia de tais autores nunca trocou de cadeira. Não há dúvida.
Aí está a uma deslumbrante conseqüência ética, sociológica, ideológica
ou que outro nome tenha. (... ) Chegará um dia em que ninguém irá ver
Shakespeare, com medo que o Hamlet [saia do palco e] lhe bata a carteira.
(Rodrigues, 1993: 130)

o público 110 cillema

E curioso notar que a primeira tentativa de realizar um cinema engajado


de esquerda, no Brasil, como notamos nas obras de Alex Viany (Agulha lLOpalheiro,
1951) e Nelson Pereira dos Santos (Rio, 40 graus, de 1954, e Rio, Zona Norte, de
1957), nasceu junto a um gênero de filmes mais populares. As produções musicais
da Atlântida, reelaboradas dentro dos princípios do neo-realismo italiano, servi­
ram de base para os primeiros filmes engajados dos anos 50. Nesse sentido, a
cinematografia de esquerda, inicialmente, se colocava na tradição do cinema
popular carioca, ainda que criticando a alienação das chanchadas e comédias
populares.
Apesar de haver uma certa memória sobre o cinema brasileiro, sistema­
tizada sobretudo pela crítica especializada, que trata os primeiros filmes de
Nelson Pereira dos Santos, acima citados, como os precursores do Cinema Novo,
há um distanciamento claro entre essas obras e o movimento que explodiu em
1962. Distanciamento não só estético, mas sobretudo na relação com o público.
Os dois filmes de Nelson Pereira dos Santos trabalham com elementos musicais
e dramáticos ambientados em meios sociais populares, operados por uma lin­
guagem filmica basicamente realista e narrativa, facilmente assimilável pelo
público mais amplo. O público de cinema brasileiro, incipiente e heterogêneo,
se dividia em dois grandes blocos: um segmento mais popular e suburbano, que
garantia o sucesso das chanchadas e comédias dramáticas da Atlândida, e um
público mais seletivo, que buscava um cinema mais próximo da estética holly­
woodiana, alvo dos filmes da Vera Cruz paulista.

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A arte engajada e seus públicos

Ao longo dos anos 50, notamos uma lenta e árdua disputa entre o cinema
nacional e o cinema norte-americano, já dominando a linguagem técnica e os
mecanismos comerciais que tomavam-se os paradigmas do cinema de mercado
e hegemonizavam, praticamente, platéias de várias origens sociais e gostos. De
qualquer forma, essa década assistia a um lento crescimento do público de cinema
nacional, em que pese a dificuldade de produçao e distribuição. Os primeiros
filmes de Nelson Pereira dos Santos surgiam corno urna tentativa de capitalizar
parte desse público e , ao mesmo tempo, de falar a linguagem do nacional-popular
que garantia a audiência de alguns setores intelectualizados. Sobretudo em Rio,
ZOlla Norte essa opção ficará clara.
O filme nos conta, através dejlash- backs a saga do compositor favelado
,

"Espírito Santo da Luz", vivido com maestria por Grande Otelo (diga-se, um dos
mais populares e talentosos atores brasileiros). Na tentativa de "vencer na vida"
e tomar-se compositor de sucesso, ele acaba ludibriado pelos esquemas da
indústria radiofônica e fonográfica, além de ser tratado com descaso pelos
músicos nacionalistas intelectualizados, que o viam corno mera "fonte" inculta
para músicas mais refinadas. Sem espaço para conseguir viver da sua arte, o
compositor encontra na favela o seu público privilegiado e seu espaço de ex­
pressão como artista, aspecto reforçado pela bela seqüência final, quando, pen­
durado na porta do trem, antes de cair, o protagonista canta O samba Ilão morreu
(Zé Keti), olhando com certo orgulho para os morros que constituíam a paisagem.
Um dos momentos mais interessantes do filme, que revela a opção por
uma tentativa de comunicaçao num circuito popular, perspectiva que será ques­
tionada pelos cineastas mais jovens dos anos 60, é quando o personagem de

Grande Otelo encontra Angela Maria (representando a si mesma) nos corredores


da rádio. Sem esperanças de "vencer na vida", dados os reveses e desventuras
pelos quais passara, ele acaba reconhecido pela artista popular, que se encanta
14
com sua canção. . Além disso, o filme é pontuado por seqüências musicais que
claramente remetem à tradição dos musicais da Atlântida, devidamente expur­
gada da carnavalização exagerada e do falso g/amour do teatro de revista, que no
cinema funcionava como uma imitação tosca dos musicais americanos. De
qualquer fOIlua, nessa incipiente tentativa de produzir um cinema brasileiro,
popular e engajado não há urna negação dos princípios filmicos do cinema
comercial vigente na época (dramas e/ou chanchadas musicais). O que ocorre é
uma reapropriação de alguns estilemas e argumentos desse tipo de cinema, que
os tornam mais realistas e críticos.
São precisamente esses os elementos que desapareceram por ocasião da
explosão do Cinema Novo, no início dos anos 60. A linguagem autoral e van­
guardista,os argumentos mais herméticos, a narrativa mais intimista,os persona­
gens e situaçôes mais alegóricos do que dramáticos/miméticos indicam clara-

113
estudos históricos . 2001 - 28

mente uma filiação muito maior com o cinema europeu contemporâneo (princi­
palmente o francês), temperado ainda pelo neo-realismo italiano, mais acessível
aos grandes públicos. Até 1964, as duas vertentes (cinema de gênero e cinema de
autor) coexistiram na medida em que o Cinema Novo, apesar da vocação experi­
mentalista, ainda se pautava pelo projeto de engajamento artístico refoIlllista e
nacional-popular, cujo mote era a "conscientização" da platéia.
Na "trindade" máxima dessa fase do Cinema Novo - Vidas secas (Nelson
Pereira dos Santos, 1963), Os fuzis (Rui Guerra, 1964) e Deus e o diabo lia tma do
sol (Glauber Rocha, 1964)- notamos que o experimentalismo, presente em vários
aspectos da linguagem fílmica (atuação dos atores, enquadramento dos planos,
movimentos de câmera, montagem, fotografia etc.) está subordinado a um
princípio de composição em que a condução da narrativa e a sistematizaçao das
idéias e valores político-ideológicos ainda predominam na estrutura geral da
obra. Os elementos que emprestam uma certa dificuldade de assimilação, se
tomarmos o padrão do cinema comercial da época, são mais o ritmo da narrativa
(mais lento do que o padrão) e a montagem do que a naIlativa e o argumento em
si, pautados ainda pela verossimilhança e mímese. De qualquer forma, aqueles
elementos deixavam um amplo espaço de reelaboração por parte do espectador,
num recurso tipicamente literário, onde a palavra e a idéia não eram totalmente
diluidas e subordinadas à imagem realista, trabalhada num flu.xo narrativo linear
e direto. Em outras palavras, este tipo de cinema, ainda mantendo elos com a
narrativa e os gêneros tradicionais, já apelava aos sentidos de um público mais
intelectualizado, alvo do estilo "autoral" dos grandes diretores (sobretudo
Glauber e Rui Guerra). Nesse momento, tem-se o início de um processo de
"fechamento" de público, um cinema "para poucos", pleno de referências e de
desafios de decodificação e reelaboração receptiva, negação de um cinema de
massas, narrativo e segmentado em gêneros. Se o teatro era o espaço primordial
da "sociabilidade" de esquerda, o cinema era o espaço de expressão dos grandes
debates e dilemas desse segmento ideológico, aspecto reforçado pela capacidade
de síntese de idéias, situações e tipos humanos, muitas vezes dialógicos e até
contraditórios, através da imagem.
Na medida em que a primeira fase do Cinema Novo tentou fazer, ao
mesmo tempo, um cinema de autor e um cinema brasileiro (de gênero), esses
dilemas específicos da área cinematográfica se articularam às grandes questões
nacionais -dependência, contra-revolução, crise existencial e criativa - colocadas
pela maioria dos filmes. Por outro lado, o desafio do Cinema Novo era ser fiel a
urna determinada idéia de "cultura brasileira" e, ao mesmo tempo, situar o
cinema brasileiro diante das mais valorizadas escolas de cinema, sobretudo
européias. O resultado desses dilemas, estéticos e ideológicos a um só tempo, foi
a dupla nanueza do Cinema Novo: explorar as imagens do atraso brasileiro

114
A arte C/lgajada e seus públicos

através de um tratamento moderno, anti-convencional. Os soldados de Os jilZis,


a família de retirantes de Vidas secas, os camponeses e cangaceiros de Deus e o
diabo apresentavam uma imagem do arcaísmo, perpassado por formas de repre­
sentação extremamente modernas e ousadas, se afastando de qualquer romanti­
zação ou estilização folclorizada, chaves de leitura consagradas pelo grande
público na filmografia anterior ao Cinema Novo. Em seu manifesto "Estética da
fome", Glauber Rocha assumia este afastamento com as formas de representação
convencionais do subdesenvolvimento, romantizadas ou folclorizadas:

Enquanto a América Latina lamenta suas misérias


gerais, o interlocutor estrangeiro cultiva o sabor desta miséria, não como
um sintoma trágico, mas apenas como um dado formal. (... ) Eis funda­
mentalmente a siruação das artes no Brasil diante do mundo: até hoje,
somente mentiras elaboradas da verdade (os exotismos formais que
vulgarizam problemas sociais) conseguiram se comunicar em termos
quantitativos,provocando uma série de equívocos que não tetminam nos
limites da arte mas contaminam o terreno geral do político. (Rocha,
1979: 16)

O manifesto termina com outra alusão ao público: "[O Cinema Novo]


não é um fJlme mas um conjunto de fJlmes em evolução que dará, por fim, ao
público a consciência de sua própria miséria" (Rocha, 1979: 17). O que se viu é
que apenas um pequeno círculo de espectadores quis (ou soube) mergulhar nesses
dilemas, retratados nos filmes. A maioria preferiu assumir seu papel de espec­
tador descompromissado da fetichização da técnica e do Slar syslem, padrões
hollywoodianos por excelência. Se esse "fechamento" não foi totalmente em vão,
sendo importante para a renovação de um pensamento crítico sobre o cinema no
Brasil, do ponto de vista comercial o cinema brasileiro de ponta submergiu de
vez na sua dependência crônica em relação ao Estado, na medida em que optava
por um cinema mais autoral, voltado para um público pequeno e seleto.
Mas havia um outro lado. O choque entre a linguagem moderna e a
representaçao do arcaico,cosruradas por uma cinematografia que demandava um
espectador atento e formado, tinha alguns vícios nascentes. As sutilezas e mean­
dros das narrativas e o caráter alegórico dos personagens nem sempre eram bem
resolvidos, em função de um certo descuido, intencional na maioria dos casos,
na roteirização do argumento e na direção de atores (marcas do cinema brasileiro
desde então), relegados em prol da "idéia" e da "palavra",substratos privilegiados
da composição fIlmica do Cinema Novo. Esses vícios, em certa medida,ajudaram
no processo de fechamento do público, pois apostavam num produto artesanal
que ia na contramão da industrialização crescente do cinema. Não é por acaso
que nos anos 70, num processo de autocrítica feita por alguns diretores de

1 15
estlldos históricos . 2001 - 28

esquerda em busca do público amplo, os problemas do "acabamento" e "quali­


dade técnica" dos filmes será um dos fios da renovação do cinema brasileiro.
Após 1965, ao contrário do teatro que se consagrou como espaço da
"catarse", o cinema optou pelo viés da autocrítica e da reflexão. De O desafio
(Paulo César Saraceni, 1965) até Terra em transe (Glauber Rocha, 1967), notamos
um mergulho dos cineastas (e seus filmes) no universo das contradições do
intelecrual de esquerda, público privilegiado dessas obras. Nesse sentido, o
cinema brasileiro foi um importante foco de questionamentos.
Como elemento de intervenção e crítica no próprio campo intelecrual, a
segunda fase do Cinema Novo foi um vetor fundamental na construção de uma
consciência lúcida e, ao mesmo tempo, pessimista (ao contrário do teatro e da
música, por exemplo, mais exortativos e positivos) sobre o sentido histórico do
golpe militar, na medida em que se retratavam os dilemas políticos e existenciais
do intelecrual de esquerda. Terra em trallse, neste sentido, é modelar. A fragmen­
tação da consciência reformista e o esgotamento do ideário populista eram
representados através da própria fragmentação da linguagem filmica e do dilace­
ramento da expressão do artista/intelecrual de esquerda. A este só restava um
caminho: a negação existencial e moral da sua classe e a ação direta (e até suicida)
contra a ditadura. A cena do poeta-político Paulo Qardel Filho), de Terra em trallse,
avançando contra a barreira policial e agonizando solitário de metralhadora em
punho, é altamente reveladora dessa "opção".
Por volta de 1968, o chamado "cinema marginal", desdobramento dos
impasses do Cinema Novo, nada mais faz do que radicalizar a crise existencial e
ideológica do artista/intelecrual, diluindo sua representação na própria repre­
sentação alegorizada da marginalidade e no amoralismo, elementos tidos na
época como anti burgueses por excelência e distantes da teleologia da história
defendida pela esquerda nacionalista (Xavier, 1993: 13). O grande público, ávido
de dramas catárticos, narrativas lineares e personagens modelares (para o bem
ou para o mal) fugia dos filmes brasileiros mais alegóricos. Mesmo relativos
sucessos de bilheteria, como Macunaíma Q oaquim Pedro de Andrade, 1969) e
Como era gostoso o meu francês (Nelson Pereira dos Santos, 1971), não chegaram a
ampliar o público de filmes brasileiros como um todo. Esse processo só ocorreria
a partir da segunda metade dos anos 70, capitaneado por fumes que procuravam
fugir da linha do engajamento, como Dona Flor e seus dois maridos (Bruno Barreto,
1976) eXicada Silva (Cacá Diegues, 1975), próximos da tradição das chanchadas.
Paradoxalmente, o cinema engajado realizava, como área de expressão,
uma tarefa histórica que nem o teatro (momentaneamente "implodido" a partir
do seu público) nem a música popular (consagrada, comercialmente, pelo grande
público sem compromisso polftico, mas sensível às mensagens ideológicas das
canções) tinham condições de realizar. Foi através do Cinema Novo, sobrerudo

1 16
A arte ellgajada seus príblicos

em sua segunda fase, que se fez a dissecação mais profunda do cadáver do


intelecrual de esquerda formado sob o populismo nacionalista.
Não por acaso, quando o Tropicalismo de Caetano e Gil quis colocar em
cheque a MPB nacionalista, ainda marcada pelo nacional-popular e consagrada
pelo gosto médio, amalgamou duas referências que, a princípio, aruavam em
campos distintos: a referência ao cinema de Glauber (no plano da representação,
o uso da alegoria e, no plano da relação com o público, o fechamento do círculo
de ouvintes) e ao teatro de José Celso (no plano da representação, o deboche e a
carnavalização e, no plano da relação com o público, a opção pela agressão ao
gosto médio).
Mas, na música popular, a relação entre artista e público era menos direta
e mais problemática, ancorada num sólido sistema de comunicação e de produ­
ção/consumo de canções, que tragavam o artista engajado.

Música popular

A música popular brasileira chegou na senda do engajamento por um


15
caminho bastante sui-generis: o da bossa nova cosmopolita. A bossa nova
explodiu em 1959, no mesmo ano que o rock'lI TOI! entrou com grande força no
mercado brasileiro. Se os dois gêneros tinham seus enrusiastas em estratos sociais
diferentes (a alta e a baixa classe média, respectivamente), a faixa etária era quase
a mesma: a juventude urbana, entre 17 e 25 anos, aproximadamente. O relativo
sucesso da bossa nova entre o público jovem, comprovado pelo êxito dos shows
inaugurais do movimento, ocorridos em campi universitários, foi decisivo para a
incorporação dessa estética musical pelos intelecruais do movimento estudantil,
como a base para uma canção engajada nacionalista (Lins e Barros, 1963).
Portanto, era precisamente o problema do público a ser atingido que se colocava.
Num primeiro momento, a estética intimista, a complexidade har­
mônica e as letras na linha "amor, sorriso e flor" foram bastante criticadas pelos
jovens engajados do movimento esrudantil. Mas a perspectiva de que um
movimento musical brasileiro que, bem ou mal, incorporava o samba (apesar das
influênciasjazzíslicas) cairia nas graças da juvenrude mais intelectualizada não
poderia ser desprezada, diante das duas opções "imperialistas": o jazz e o rock
(Treece, 1997: 5�
Carlos Lyra, um dos "fundadores" da canção engajada no Brasil, desde
1961 estava atento ao samba tradicional e mesclava temas românticos com letras
de cunho nacionalista, mostrando o potencial crítico (nos termos da época) das
canções da BN. Sua ligação com o Centro Popular de Cultura da UNE, a partir
de 1962, era uma ponte do movimento bossanovista junto à cultura engajada de
esquerda. O manifesto do CPC, redigido por Carlos Estevam Martins, pouco

1 17
estudos hist6ricos . 2001 - 28

influenciou o campo musical engajado, ao menos até 1964. Seus telmos- estética
simplória, conteudista, comunicativa - não foram muito bem assimilados na
música popular, já marcada pelas novas exigências da bossa nova. Conforme
Arnaldo Contier (1998: 27):

devido à inexistência de um projeto específico para a


área musical e em função da historicidade das memórias sonoras desses
compositores [Edu Lobo e Carlos Lyra, principalmente], o projeto sobre
a canção de protesto foi-se esboçando através de matizes poético-políti­
cos e musicais muito diversos.

Havia uma certa liderança esrudantil que tentou sistematizar uma "de­
fesa" da bossa nova, ainda que crítica, como demonstram os textos de Nelson
Lins e Barros. Sua tese, apresentada em dois artigos publicados na revista
Movimemo (orgão oficial da UNE) era que a bossa nova deveria ser "nacionali­
zada",para que cumprisse seu papel conscientizador junto a dois tipos de público:
o jovem esrudante de classe média e as classes populares urbanas, acostumadas
ao samba tradicional. Podemos dizer que, nos artigos em questão, Lins e Barros
tentou compensar as lacunas do "Manifesto do CPC" na área musical, discor­
rendo sobre os seus problemas específicos. No artigo de 1962, "Música popular
e suas bossas", Nelson enfatizava que a música brasileira, mesmo após o surgi­
mento da bossa nova, estava num impasse ao mesmo tempo estético e ideológico,
que se manifestava em várias siruações dicotômicas:

Há o choque entre as regiões subdesenvolvidas e as


expressões culturais dos grandes centros industriais, dominados pelos
Rio de Janeiro. Há o choque entre o valor artístico, como expressão
cultural das classes, e o valor comercial, da música como mercadoria. Há
o choque entre a música brasileira e a música estrangeira. Todos eles se
interdependem e resultam das contradições econômicas existentes.
(Lins e Barros, 1962: 26)

E concluía, advertindo que, caso não fossem "encontradas as soluções"


a música brasileira sofreria três consequências fatais: a) a "música autêntica",
regional, desapareceria; b) a música das elites continuaria heullética, sem ser,
propriamente, música brasileira; c) a música comercial seria dominada pela
. .
mllslca amencana.
,

Alguns meses mais tarde, num artigo na mesma revista, Nelson Lins e
Barros relativizou a sua preocupação, tentando resgatar algum tipo de possibili­
dade político-ideológica na bossa nova. Percebe-se, nitidamente, a força do
público aruando na cabeça do crítico. O autor destacava que a bossa nova tivera
um duplo nascimento: 1959 e 1963. A primeira data corresponde ao "nas-

llB
A arte e/lgajada e SCIIS l'líblicos

cimento" propriamenre dito do "gênero", com o lançamento da música Desafi­


/lado e do álbum Chega de saudade, de Joao Gilberto, que foi visto como uma
sínrese dos novos procedimentos criativos e expressivos de um grupo de jovens
músicos. A segunda data, 1963, conforme Lins e Barros, marcou a reelaboração
da bossa original pela indústria cultural norte-americana, com·a "jazzificação"
dos seus componenres musicais, sendo então reexportada para o mercado
brasileiro e mundial. Nelson Lins e Barros resgata a "primeira BN", que avançava
musicalmenre sem deixar de ser "nacionalista": "Era preciso fazer um samba
brasileiro de boa qualidade: acabar com o bolero, com a insuportável música de
carnaval, com o cafagestismo barato dos quadrados" (Lins e Barros, 1963: 14). E
conclui, otimista: "Essa nova Bossa é a ponre, é a mão que vai encontrar o morro,
o terreiro e o sertão, em uma sociedade melhor que vamos ver, talvez, não muito
longe" (Lins e Barros, 1963: 15).
O show de dezembro de 1962, Noite da Música Popular Brasileira, que
ocupou o Teatro Municipal do Rio de Janeiro e foi produzido pelo CPC/UNE,
foi a tenrativa de lançar a pedra fundamental dessa ponre. A criação do restauranre
Zicartola, em 1963, abriu outro espaço fundamenral para a renovação do gosto
dos estratos mais jovens da classe média, proporcionando encontros sociais e
culturais com o "morro". Essas ponres nao uniram apenas duas tradições mas,
fundamenralmente, dois públicos: o jovem esrudanre de classe média e o "povo",
que ao longo dos anos romperia os limites do público carioca e seria a base na
expansão do leque de ouvintes da música popular. A "subida do morro", já
esboçada alguns meses antes pelo encontro de Carlos Lyra e outros músicos da
bossa nova com os sambistas Nelson Cavaquinho, Cartola e Zé Keti, não havia
conseguido estabelecer uma estética musical integrada - enrre o samba tradi­
cional e o samba moderno - mas havia trazido para o público de classe média a
música dos grandes sambistas cariocas, legitimando-os perante os novos critérios
de formação e hierarquização de gosto musical que se anunciavam.
O caminho foi esboçado por músicos que buscavam uma bossa nova
nacionalista ou uma canção engajada, no sentido amplo da palavra. Carlos Lyra,
Sérgio Ricardo, Nelson Lins e Barros (que também era compositor), Vinícius de
Moraes e ou tros afirmavam a música popular como meio de problematizar a
nação e "elevar" o nível musical popular. Portanro, através dessas pontes que se
construíam entre dois mundos, cultural e socialmente divididos, não se concreti­
zou a utopia defendida pela vanguarda artística estudantil -bastante paternalista,
diga-se - de "elevar" o gosto musical do "povo". Mas, sem dúvida, ampliou-se o
conhecimenro de público de classe média, inserido no mercado fonográfico,
acerca da música popular brasileira de outras épocas e estilos, devidamenre
chanceladas pelos músicos "modernos e sofisticados". Nascia o público da MPB
moderna, que incorporava parte da tradição.

119
estudos históricos . 2001 - 28

Esse novo público de música popular brasileira (até 1965 ainda se


escrevia com minúsculas) cresceu vertiginosamente depois do golpe militar. A
música, aliada ao teatro, tornou-se o grande espaço de sociabilidade da juventude
de esquerda, cada vez mais carente de espaços públicos para se expressar. Mas,
diferentemente do teatro, a música popular, após 1964, irá cada vez mais ocupar
um espaço "midiático", e será a partir dele que seu público crescerá de maneira
exponencial. Ironicamente, a chamada "MPB" atingirá franjas de um público
bastante popular, sobretudo ao longo dos anos 70, mas não pela atuação das
entidades civis, estudantis e sindicais, ligadas à militância de esquerda (como se
projetava nos tempos áureos do CPC), e sim pela penetração crescente na televisão
e na indústria fonográfica, atingindo faixas de consumo mais amplas. Ao con­
trário do que ainda se afirma, sobretudo no plano da memória dos protagonistas,
não foram a música estrangeira ou os segmentos mais populares da música
brasileira (como ajovemguarda) que mais concorreram para consolidar o mercado
fonográfico em nosso país, criando um novo "sistema" de produção/consumo de
canções. Foi a chamada "Música Popular Brasileira" (MPB) que sintetizou a
tradição da grande música da "era do rádio", nos anos 30, com a renovação
proposta pela bossa nova, no início dos anos 60 (Napolitano, 2001). A "abertura"
do público original de música popular, de raiz nacionalista e engajada, se deu via
mercado, com todas as contradições que este processo acarretou na assimilação
da experiência do ouvinte (em outras palavras, a tensão entre "diversão" e
"conscientização").
O momento inicial desse processo de "abertura" que ganhou dinâmica
de mercado própria foram os programas musicais veiculados pela televisão, a
partir de 1965, Ofino da bossa e os "festivais". As trajetórias iniciais de Elis Regina
e Chico Buarque de Hollanda foram paradigmáticas, nesse sentido. A intérprete
e o compositor-intérprete foram grandes fenômenos de vendagem na segunda
metade dos anos 60 e tinham uma característica comum: o estilo de interpretação
de Elis e as canções de Chico traziam em si a tradição do samba-canção e do samba
carioca dos anos 30/40, ao mesmo tempo que incorporavam a ruptura da bossa
nova (Napolitano, 2001 : 163). Os dois foram os responsáveis pelo momento
inicial de ampliação de um público de MPB, que rompia os limites dos campi
universitários e dos shows patrocinados por entidades estudantis (ocorridos no
Teatro Paramount, onde Elis e Chico iniciaram suas carreiras em São Paulo).
Mesmo nos anos 60, os dados sobre vendas de discos desses dois artistas são
impressionantes. Elis, por exemplo, será a primeira cantora a atingir a marca de
500 mil LPs vendidos (fato notável para 1965). Chico Buarque, entre 1 966 e 1 969,
seguiu como um dos três maiores vendedores de LPs e compactos, só perdendo
16
para Roberto Carlos e para os Beatles.

120
A arte e/lgaiada e sells públicos

o público massivo do rádio, nos anos 50, formado pelos exrratos mais
baixos da classe média e pelos segmentos mais populares, foi em parte incorpo­
rado pela "moderna" MPR Esse segmento do público não teve o seu gosto
marcado pelo impacto da bossa nova, permanecendo ligado ao samba tradicional
e às canções românticas ao estilo dos anos 50. A partir de 1965, parte da MPB se
abriu para esse gosto musical mais tradicional, ampliando seu público. Uma
audiência que, inicialmente, teve contato com a MPB por meio da televisão para,
no início dos anos 70, ser incorporada pelo mercado fonográfico propriamente
dito.
Arrisco dizer que Elis Regina e Chico Buarque não "caíram" no gosto
popular, e sim ajudaram a reinventá-Io, consolidando a tendência de "abertura"
do público de música popular no Brasil em direção a uma audiência massiva,
processo para o qual concorreu a música engajada e nacionalista (a "moderna"
MPB). A partir do final dos anos 70, grande parte da experiência social da música
popular (engajada inclusive) ocorrerá "midiatizada" pela TV, pelo rádio e pelo
disco. Isso não quer dizer que os shows, o encontro fisico do público nos
espetáculos musicais - urna sociabilidade mais direta, portanto - deixarão de ser
importantes, mas que urna dinâmica nova articulava a experiência social da
mUSIca.
• •

O Tropicalismo, corno já foi dito, tentou justamente "implodir" o gosto


médio e a vocação massiva da MPB da era dos festivais, incorporando, provoca­
tivamente, a estética "cafona-kitsch", contraponto das convenções de "bom gOStO"
normativo da "moderna" MPB (Favaretlo, 1995: 107). No caso do Tropicalismo,
a incorporação de elementos do "mau-gosto" buscava provocar o estranhamento
do público diante das canções de mercado, como foi dito várias vezes, sobretudo
por Caetano Veloso. Mas o tiro saiu pela culatra. Ao invés da "implosão" do
público, tal como havia ocorrido com o "tropicalismo" teatral, o que acabou
ocorrendo foi uma nova ampliação da faixa de consumidores da MPR A força
do mercado aCabou por incorporar o Tropicalismo, lembrado até hoje como um
momento de renovação da canção brasileira, por incorporar a linguagem pop e
abrir caminho para uma audiência de canções brasileiras "modernas" entre os
adeptos da contracultura jovem e radical, surgida a partir de 1968. Na festa de
arromba da MPB sempre tinha espaço para mais alguém, desde que ungido pelo
gosto elástico da classe média brasileira, que rransformou a sigla em sinônimo
de "bom gosto" e reconhecimento cultural.

Considerações finais

Reflexão, diversão e agressão foram categorias que acabaram por proble­


matizar o projeto de educação sentimental, estética e ideológica, marcando a crise

12 1
estudos históricos . 2001 - 28

da esfera pública da arte engajada, entre 1965 e 1968. Novos códigos, novos
segmentos sociais, novos meios de divulgação concorreram para selar as
,

mudanças da arte engajada no Brasil. E claro, o acirramento da repressão


provocada pelo AI-5, com a censura e o exílio que pesaram sobre os criadores,
não pode ser minimizado.
Por outro lado, ao longo dos anos 70, a arte engajada ganhou um novo
alento, na medida em que a necessidade de uma "resistência" se impôs aos
artistas, que se tornaram verdadeiros arautos da sociedade civil oposicionista
ao regime militar. Isso se fez pelos dois caminhos que se auto-excluíam até o
início dos anos 70: retomando seja o fio do "nacional-popular", seja o da
"agressão/marginalidade", ambos temperados pela linguagem do humor e do
deboche. O caldeirão onde essa cultura radical de oposição foi cozido, já a
partir dos anos 70, foi o conjunto da indústria cultural, categoria que foge aos
limites deste artigo.
Na música popular, a "resistência" se confundiu com a própria canção
comercial, para a qual a existência de um público massivo e fiel, aglutinado em
torno da idéia de MPB, garantia uma independência relativa do artista (em
relação à dependência do mecenato do Estado). No cinema e no teatro, restou a
busca do apoio estatal. O teatro, buscando "refazer" o público (como atestam as
"campanhas de barateamento" patrocinadas pelo MEC) e o cinema, ora tentando
"prescindir" do público (filmes "autorais" alternativos), ora tentando "ampliar"
o seu público (filmes "comerciais" feitos por diretores de esquerda, como Cacá
Diegues). O apoio oficial a essas áreas se revigorou a partir de 1975, com a nova
orientação do Ministério da Educação e Cultura, sintetizada na Política Nacional
de Cultura (Ramos, 1983: 1 1 7; Miceli, 1984: 56).
O peculiar caminho da arte engajada brasileira - nas suas áreas de
expressão vocacionadas para o espetáculo - nos oferece um campo de estudo
altamente instigante, que deve ser pensado para além do jogo "cooptação-re­
sistência" (Ridenti, 1993: 84) do artista engajado em relação ao "sistema", ou do
"sucesso-fracasso" de sua pedagogia política.
Procuramos demonstrar, de maneira provisória e ensaística, como a di ta
"hegemonia cultural" da esquerda pode ser pensada como o centro de problemas
mais amplos na área da cultura, reveladores de processos estruturais que
mudaram as formas de consumo da cultura no Brasil. Esses processos ainda
demandam trabalhos monográficos e uma ampla coleta de dados e fontes
primárias, que ajudem a problematizar as "verdades consagradas" mais ligadas
à memória, produzidas mais pelos discursos dos protagonistas e menos por
historiadores de ofício. Acredito que é no diálogo, nem sempre tranqüilo, destes
com aqueles que a sociedade amplia e enriquece a relação com o seu próprio
passado.

122
A arte e"gaiada e Se/lS públicos

Notas

1. O problema da "popularidade" já era 9. Basicamente formado por Vianninba,


objeto de reflexão de Gramsci, na própria Paulo Pontes e Ferreira Gullar.
gênese do pensamento
lO. A opção pela guerrilha, confirmada
"nacional-popular" da esquerda, sendo
pela participação de Carlos Marighela
visto como a verdadeira realização social
na conferência da OLAS, em Havana,
da obra. Ver A. Gramsci, Literatura e vida
em 1967, foi o detonador da crise
nacional (Civilização Brasileira, 1978).
inrerna definitiva do PCB, após o golpe
2. Por exemplo, Oduvaldo Vianna Filho, militar.
dramaturgo ligado ao PCB, desde o início
11. Peça de Oswald de Andrade, escrita
da década colocava o problema da
em 1937, que parodia a burguesia
"popularidade" como central para a ane
brasileira e sua falsa moral. A leitura de
engajada.
José Celso carnavalizou os personagens e
3. Curiosamente, no Brasil, a mais criou um clima de absurdo, CODtraface de
industrial das artes foi a mais uma realidade social e POlíÜC3, em si,
influenciada pelo paradigma literário e absurda.
direcionada sobretudo para pequenos
12. O conrra-ataque dessa vertente
drculas intelecrualizados e letrados, a
dramatúrgica nacional-popular se dará
partir de uma perspectiva autoral
em 1975, com a peça Gota d'água, de
ngorosa.

Chico Buarque e Paulo Pontes, grande


4. O projeto de ocupação tática dos sucesso de público, que apontava para a
circuitos de mercado aparece, na forma superação do irracionalismo e da agressão
de várias referências e citações, em como meios de expressão teatral, tidos
diversas entrevistas e anigos de músicos como responsáveis pelo afastamento do
e dramaturgos, sobretudo. público.

5. O TPE surge em abril de 1955, 13. Chamada de capa para a Revista do


formado por Oduvaldo Vianna Filho, G. TUSP de 1968.
Guarnieri, Raimundo Duprat, Pedro

14. E curioso notar que, nos anos 60, com


Paulo Uzeda Moreira, Henrique
o triunfo da MPB umodema", o
Liebermann, Vera Gertel, Diorandy
segmento musical representado por
Vianna e Silvio Saraiva, tendo como •

Angela Maria e OUll"OS cantores será


meDrares Ruggero Jacobi e Carla CiveWi.
considerado pela esquerda de
6. Publicada, originalmente, na revista "mau-gosLO", alienante e amipopular (no
Teatro Amador (ano I, n. 6, jan. 1956). sentido ideológico).

7. Essa relação será criticada por Iná 15. Essa particularidade nos afasta, por
Camargo Costa, sendo considerada exemplo, do tipo de engajamemo da
"misLificadora" da consciência social uNueva Cancion latino americana",
proposta. Ver "A crise do drama em Eles mais próxima ao folclore camponês e
não usam black-tie: uma questão de indígena.
classe", em Discurlo (São Paulo, Depto. de
16. Essa afirmação se baseia em pesquisas
Filosofia da USp, n. 20, 1993).
nos arquivos do lBOPE (Boletim de
8. Poderíamos acrescentar a dramaturgia Vendas de Discos - AELJUnicamp),
de Nelson Rodrigues, como uma outra realizados durante minha pesquisa de
grande vertente do teatro brasileiro. doutorado.

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estudos históricos . 2001 - 28

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