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República dos antigos,

NEWTON BIGNOTTO

república dos modernos

B
enjamin Constant perseguiu durante
toda sua vida o sucesso e o reconheci-

mento muitas vezes à custa de sacrifí-


cios pessoais e de renúncias, que no

período pós-revolucionário, na França,


nem sempre lhe granjearam a simpatia

e a compreensão de seus contemporâ-


neos. Dividido entre o desejo de atuar

na cena pública de forma contundente

e a vontade de legar à posteridade uma


obra de fôlego sobre matérias tão com-

plexas quanto história das religiões e


política, ele acabou se lançando em

projetos conflitantes, que raramente


atingiram o fim almejado. Uma boa parte
NEWTON BIGNOTO
é professor de Filosofia de suas reflexões foi elaborada durante
da UFMG e autor de
Origens do Republicanismo o período de exílio forçado no início
Moderno (Editora da
UFMG). do século XIX, quando sua ligação com

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rência no tocante a seus princípios fun-

damentais. Se, como muitos dos pen-


sadores liberais do século XIX francês,

ele foi objeto de um esquecimento


voluntário e mesmo desdenhoso por

parte dos que se dedicaram a compre-


ender o nascimento da modernidade

política, isso não impediu suas idéias de

influenciarem decididamente os deba-


tes que opuseram pensadores liberais

contemporâneos a socialistas e mais re-


centemente a republicanos e comu-

nitaristas (1).

O objetivo deste texto não é o de


oferecer uma visão de conjunto da obra

de Constant e nem mesmo o de mos-


trar sua influência na formação do pen-

samento liberal. Nossa intenção é re-

cuperar alguns argumentos centrais em


seus escritos, que tiveram um papel
Madame de Staël e sua oposição às decisivo nos debates contemporâneos
políticas napoleônicas lhe custaram um sobre a natureza e a finalidade das so-
afastamento do mundo público. Desse ciedades democráticas, e analisar o al-
maciço original ele retiraria boa parte cance e as bases de suas afirmações
de seus escritos posteriores, copiando, sobre a natureza dos regimes republi-
cortando pedaços inteiros ou simples- canos da Antigüidade e aqueles deriva-
mente reescrevendo trechos original- dos das experiências revolucionárias
mente destinados a outros textos. modernas. Nosso alvo será a famosa
Constant acabou, entretanto, constru- distinção entre a liberdade dos antigos
1 Ver a esse respeito o texto ins-
indo uma obra que, apesar de guardar e a liberdade dos modernos, apresen- pirado de Charles Taylor, “Pro-
pósitos Entrelaçados: o Deba-
te Liberal-Comunitário” (in C.
a marca das circunstâncias que a viram tada por Constant como uma das muitas Taylor, Argumentos Filosóficos,
São Paulo, Loyola, 2000, pp.
nascer, revela uma surpreendente coe- inovações de suas reflexões políticas 197-220).

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em vários de seus escritos (2). Não nos in- possível o governo dos homens pelos ho-
teressa, por enquanto, verificar se a reivin- mens e de aumentar o governo dos homens
dicação de originalidade procede, mas sim- pelas leis” (6). É claro que nenhum dos dois
plesmente constatar que esse mérito foi- desconsiderava as dificuldades que envol-
lhe atribuído por muitos de seus seguido- vem a definição do que é uma sociedade
res, e que suas idéias continuam a influen- governada pelas leis e não pelos homens,
ciar aqueles que defendem a democracia mas isso não os impedia de se opor a qual-
liberal representativa como única forma quer interferência na vida dos cidadãos que
coerente de organização da vida política possa ser atribuída diretamente a um ho-
nas sociedades capitalistas modernas. mem ou a um grupo de homens cujos inte-
Procuremos, no entanto, precisar nosso resses não sejam expressos pelas vias pre-
problema. Constant opera em seu escrito de viamente acordadas por todos.
1819 uma separação entre o mundo antigo e Em que pese, no entanto, a importância
o mundo moderno fundada no fato de que a e a força dos argumentos de muitos pensa-
maneira como concebiam a liberdade era dores liberais, poucos escritores foram mais
diferente e inconciliável. Os antigos, segun- bem-sucedidos em defender a superiorida-
do ele, exerciam uma soberania direta, deli- de da concepção de liberdade negativa so-
berando sobre assuntos variados como a bre a concepção de liberdade positiva do
guerra contra povos estrangeiros, a gestão que Isaiah Berlin. Num artigo célebre –
2 O principal texto no qual ele das magistraturas e a promulgação das leis. “Duas Concepções da Liberdade” (7) – ele
trata do assunto é uma confe- A conseqüência é que “admitiam como com- retoma de forma direta o pensamento de
rência pronunciada em 1819
no Athénée: “De la Liberté des patível com ela (a liberdade) a submissão Benjamin Constant. Na verdade, o pensa-
Anciens Comparée à Celle des
Modernes”. Como veremos tra- completa do indivíduo à autoridade do todo” mento de Berlin é pouco original no que
ta-se de uma idéia recorrente (3). Em outra direção, “o objetivo dos mo- diz respeito às grandes linhas da tradição
em seus escritos, que faz parte
do núcleo de sua concepção dernos é a segurança dos privilégios priva- liberal, mas é importante para a compreen-
liberal da política. Nesse texto
seguiremos a edição parcial
dos; e eles chamam liberdade as garantias são dos fios de continuidade entre os gran-
das obras de Constant organi- concedidas pelas instituições a esses privi- des teóricos dessa tradição e seus defenso-
zada por Marcel Gauchet:
Benjamin Constant, De la Liberté légios” (4). Deixemos por um instante res na atualidade. No que diz respeito à li-
chez les Modernes , Paris, Constant de lado, para observarmos a recep- berdade, ele não hesita em usar as concep-
Hachette, 1980.
ção de suas idéias para além de seu tempo. ções do século XIX sem introduzir media-
3 Benjamin Constant, “De la
Liberté des Anciens Comparée No correr do século XX vários pensa- ções. Referindo-se a um grupo de teóricos
à Celle des Modernes”, op. cit.,
p. 495. dores liberais, como Raymond Aron e F. A que inclui Constant, Mill e mesmo
4 Idem, ibidem, p. 502.
Hayek, fizeram da definição de liberdade Tocqueville, ele afirma: “Durante todo o
como ausência de constrangimento – defi- século XIX, os pensadores liberais susten-
5 Não deixa de ser curioso que
a famosa definição da liberda- nição que remonta a Hobbes e não a taram que se a liberdade não contém limi-
de como ausência de constran-
gimento, presente no começo Constant (5) – a pedra de toque de um com- tes ao poder de alguém de me obrigar a
do capítulo XXI da segunda bate levado a cabo contra todas as formas fazer o que não quero, então, independente
parte do Leviatã de Hobbes,
tenha servido para fundamentar de governo que trazem para o centro do do ideal em nome do qual eu fui constran-
uma concepção de sociedade
na qual o governo tem um lugar
debate a participação direta dos homens na gido, eu não sou livre. Para eles, uma dou-
pouco significativo na adminis- construção da vida política cotidiana e na trina da soberania absoluta era uma doutri-
tração da vida pública. Deixa-
remos de lado, no entanto, esse definição das medidas a serem tomadas na da tirania” (8).
problema uma vez que ele não contra tudo o que é sentido como ameaça à Para Berlin uma sociedade só pode ser
concerne o núcleo de nosso
argumento (Thomas Hobbes, sobrevivência do corpo político. O que esses dita livre se respeitar pelo menos dois prin-
Leviathan , Harmondsworth,
Penguin Books, 1985, pp. 261- pensadores retiveram da argumentação de cípios. O primeiro, que coincide com o
74). Constant foi sobretudo a oposição a toda e enunciado de Hayek, garante em todas as
6 Raymond Aron, apud P. qualquer forma de governo que pareça de- circunstâncias o predomínio das leis sobre
Manent, Les Libéraux, Paris,
Gallimard, 2001, p. 846. pender de um cidadão ativo e militante para a vontade dos homens e dos governantes
7 I. Berlin, “Deux Conceptions de existir. Como resume muito bem Aron, ao arbitrários. O segundo garante a existência
la Liberté”, in Éloge de la Liberté, manifestar sua concordância com os prin- de limites invioláveis dentro dos quais os
Paris, Calmann-Lévy, 1988, pp.
167-218. cípios liberais de Hayek, “o objetivo de uma homens podem se sentir seguros quanto a
8 Idem, ibidem, p. 211. sociedade livre deve ser o de limitar o mais qualquer comando emanado das leis ou de

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outros homens. Essa limitação, ou salva- ser mais claro quando afirma que o verda-
guarda, impõe restrições claras à prática de deiro conflito se desenrola no campo das
atos bárbaros que, em qualquer circunstân- concepções dos fins da vida associativa.
cia, seriam desumanizadores daqueles que De maneira explícita, ele diz a seu leitor
os perpetrassem. Esses limites comportam, que a única sociedade livre é aquela orga-
por exemplo, a interdição da aplicação re- nizada segundo os princípios liberais.
troativa de uma lei nova para qualquer acu- Não podemos pretender que a argumen-
sado de um crime, a negação de qualquer tação dos pensadores liberais contemporâ-
condenação sem julgamento, a suspensão neos siga sempre o modelo sugerido por
de perseguições a minorias ou a dissiden- Berlin e que todos realizem a mesma ope-
tes políticos, a interdição da tortura e da ração de amálgama entre correntes diver-
delação entre parentes próximos. Ao anali- sas de pensamento. Partindo de um outro
sarmos esses dois princípios não teríamos ponto de vista, Taylor caracteriza melhor o
dificuldade em conferir-lhes validade e em debate atual quando mostra que existe sim
reconhecê-los como esteios fundamentais uma disputa entre concepções diferentes
da democracia contemporânea. O proble- de sociedade. Para ele, pensar a liberdade
ma surge no momento em que, para defen- nos moldes da participação – liberdade em
der sua concepção de liberdade, Berlin sentido positivo – implica recusar um mo-
enuncia a posição dos que considera como delo baseado na centralidade do indivíduo,
seus adversários: “encontramo-nos aqui no para propugnar uma sociedade orientada
oposto do que é buscado pelos partidários por valores coletivos, mas isso nada tem a
da liberdade positiva. Uns desejam restrin- ver com as diversas experiências totalitá-
gir a autoridade enquanto tal; outros que rias e ditatoriais, que marcaram o cenário
ela esteja em suas mãos. O problema é ca- dos últimos dois séculos (10), ou mesmo
pital, pois não se trata de duas interpreta- com o jacobinismo, que está ma mira de
ções diferentes de um mesmo conceito, mas Berlin, quando faz suas críticas (11). O que
de dois pontos de vista opostos e mesmo gostaríamos de ressaltar é que a distinção
inconciliáveis com relação aos fins da exis- entre as duas formas de liberdade é um
tência humana” (9). aspecto fundamental da concepção liberal
Ao enunciar com cores tão radicais a contemporânea de sociedade e que, inde-
oposição entre os defensores das duas for- pendentemente dos abusos cometidos em
mas de liberdade, Berlin deixa entrever o sua utilização, ela não pode ser descartada
coração de sua argumentação. Na moder- se quisermos compreender uma das facetas
nidade apenas a liberdade negativa é com- mais importantes das disputas teóricas atu-
patível com uma sociedade livre e sadia. ais, sobretudo aquelas que opõem libera-
Os que defendem qualquer outra concep- lismo e republicanismo.
ção aproximam-se da barbárie que eclodiu É nossa convicção que Benjamin
em vários momentos da história recente do Constant influenciou de forma decisiva o
Ocidente. Nessa lógica, é o mesmo o peri- debate em seu século, e que legou para a
go que ronda as concepções republicanas posteridade uma visão do problema que foi
inspiradas em modelos do passado, o perío- definitiva para a consolidação da tradição
do jacobino da Revolução Francesa, a Re- liberal. Por isso, vale a pena retornar a seus
volução Russa, o stalinismo e outros textos para entendermos o momento de
acontecimentos dos séculos XIX e XX. Os formação de uma maneira de argumentar
riscos são a instauração da barbárie e a perda que ajudou a construir não apenas a identi-
da liberdade. A estratégia argumentativa dade liberal, mas também a idéia que mui-
9 Idem, ibidem, p. 213.
do intérprete liberal é, pois, a de fazer amál- tos teóricos têm daqueles que tomaram ca-
10 Charles Taylor, “Propósitos En-
gama de todas as experiências que não re- minhos diferentes dos seus. Se certamente trelaçados: o Debate Liberal-
Comunitário”, op. cit., pp.
conhecem a verdade da definição da liber- não podemos correr o risco de conceder a 198-9.
dade como ausência de constrangimento Constant, no plano da história das idéias,
11 I. Berlin, “Deux Conceptions de
como a única legítima. Berlin não poderia mais do que ele merece, também não pode- la Liberté”, op. cit., p. 209.

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mos deixar de reconhecer que, pelo menos dade da qual gozavam os antigos lhes tra-
no que diz respeito à caracterização dos zia um prazer “sólido” (15), mas esse pra-
problemas das sociedades modernas pela zer é experimentado na modernidade quan-
ótica da questão da liberdade, ele alcançou do nos fazemos representar. Essa alteração
o sucesso que desejou durante toda sua exis- nos “prazeres” se deve ao fato de que os
tência. antigos “tinham mais prazer em sua exis-
Vamos retornar a nosso autor consul- tência pública e menos em sua existência
tando inicialmente um de seus escritos, privada” (16). Quanto aos modernos, “qua-
antes de retomarmos a leitura de trechos de se todos seus prazeres estão na esfera pri-
sua célebre conferência. Trata-se do “De vada: a imensa maioria, sempre excluída
l’Esprit de Conquête et de l’Usurpation”, do poder, atribui um valor muito pequeno
texto que, segundo o autor, pretende anali- à sua existência pública” (17).
sar duas pragas de seu tempo num momen- As linhas gerais do argumento de
to em que a Europa sofria com os tumultos Constant são bastante conhecidas até mes-
provocados pelas guerras e pela usurpação mo pelo sucesso que alcançaram entre os
do poder por alguns homens, que Constant pensadores liberais de nossos dias. Seria
reputava serem meros aventureiros. Os interessante, no entanto, continuar a anali-
capítulos que nos interessam mais de perto sar seu texto à luz dos debates imediatos
se encontram na segunda parte, dedicada à que o inspiraram e dos pressupostos que
usurpação. nosso autor esposa. Em primeiro lugar, é
Na apresentação do sexto capítulo da necessário observar que ele depende de uma
parte referida, nosso autor enuncia o que noção de progresso muito bem assentada
será o núcleo de sua argumentação: “A li- para fazer valer suas razões. No curso de
berdade que foi apresentada aos homens seu escrito, ele fala sem ambigüidade que
12 Benjamin Constant, “De l’Esprit no final do século passado foi tomada de “os progressos da civilização, a tendência
de Conquête et de empréstimo das repúblicas antigas” (12). comercial da época, a comunicação dos
l’Usurpation”, in De la Liberté
chez les Modernes, op. cit., p. A partir desse ponto a oposição entre o povos entre eles, multiplicaram ao infinito
182.
mundo antigo e o mundo moderno será parte os meios de felicidade particular” (18). A
13 Idem, ibidem.
integrante de toda a análise elaborada por crença na marcha da civilização européia e
14 Marcel Gauchet observa, nas Constant. Insistir nas diferenças entre o no progresso não tem nada de escandaloso
notas da obra de Constant, que
Madame de Staël, em seu comportamento dos antigos e o que lhe no momento em que Constant escreve. Ao
Circonstances Actuelles qui
Peuvent Terminer la Révolution, parecia constituir a modernidade política contrário, talvez fosse mais correto pensar
de 1798, já notava a diferen- nascente foi sua maneira de expor a recusa que ele se serve de um lugar-comum de seu
ça que separava os antigos dos
modernos no que toca à liber- de tudo o que se seguiu à Revolução. Olhan- tempo para fazer valer suas idéias junto a
dade. Para ela, como para seu
amigo mais tarde, o recurso a
do para os anos finais do século XVIII e um público que não era, a princípio, simpá-
uma forma de liberdade incom- para a Europa devastada pelas guerras tico à suas concepções.
patível com os tempos moder-
nos era um perigo a ser evitado napoleônicas, ele foi levado a concluir que Mas é preciso estar atento para o funcio-
a qualquer preço (Benjamin o engajamento direto dos homens na ação namento de seu pensamento e perguntar se
Constant, De la Liberté chez les
Modernes, op. cit., p. 630). política compôs o quadro de um terrível podemos nos servir de suas conclusões sem
15 “L’avantage que procurait au engano histórico. “Essa liberdade”, diz ele, adotarmos, como ele, a idéia de que as ci-
peuple la liberté, comme les
anciens la concevait, c’était “compunha-se muito mais da participação vilizações caminham inexoravelmente para
d’être de fait au nombre des ativa no poder coletivo do que no gozo suave um abandono progressivo das organizações
gouvernants; avantage réel,
plaisir à la fois flatteur et solide” da independência individual” (13). do passado em favor de uma nova ordena-
(Benjamin Constant, “De l’Esprit ção social. Com isso não pretendemos dei-
de Conquête et de
O início do capítulo não deixa dúvidas
l’Usurpation”, op. cit., p. 184). quanto à intenção de Constant. Retomando xar de lado o fato observado por Gauchet
16 Idem, ibidem. um argumento presente em Madame de de que Constant soube como poucos perce-
17 Idem, ibidem. Staël desde o final do século (14), ele pare- ber a constituição de uma modernidade em
18 Idem, ibidem. ce disposto a demonstrar que o esforço para tudo diferente de um passado que muitos
19 Marcel Gauchet, “Preface”, in conduzir os homens a participar ativamen- autores continuavam a venerar (19). Con-
Benjamin Constant, De la Liberté te da vida pública contraria a marcha do trariamente a muitos de seus adversários,
chez les Modernes, op. cit., p.
43. progresso das civilizações. De fato, a liber- ele soube enxergar no indivíduo um ele-

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mento indissociável dos processos que guntar é por que Constant repetiu a mesma
conduziam os homens a um novo tempo. observação ao longo de sua obra.
Nesse sentido, viu a diminuição do desejo Ao descrever o cidadão antigo, nosso
de participação como uma das marcas de autor retoma mais uma vez lugares-comuns
afirmação de uma sociedade baseada na de sua época. Os cidadãos das antigas re-
vida privada e no gozo pessoal de vanta- públicas aceitavam sacrificar sua “indepen-
gens materiais. O que não podemos deixar dência privada” para garantir sua impor-
de lado é que Constant precisou adotar uma tância política. Referindo-se aos séculos re-
visão progressiva da história para chegar à publicanos romanos, ele diz: “o cidadão se
suas conclusões. Sem a noção de progresso transformou em escravo da nação da qual
não é possível afirmar que os antigos foram ele fazia parte” (21). A oposição central
deixados para trás de forma definitiva. continua a ser aquela entre o cidadão ativo
Esquecer esse aspecto da démarche de e o indivíduo dedicado à vida privada nos
Constant corresponde a abandonar um ele- tempos modernos. Um detalhe, no entanto,
mento que contribui para torná-la coerente chama a atenção na argumentação de nos-
e não um detalhe marginal em seu procedi- so autor. Ao falar das repúblicas antigas e
mento analítico. Recusando uma concep- do controle que exerciam sobre seus cida-
ção cíclica do tempo, ainda operante em dãos, ele insiste em excluir Atenas da lista,
pensadores do começo do século XVIII, recorrendo para isso a uma menção à obra
em favor de uma concepção linear, ele abre de Xenofonte e Isócrates. Se tomarmos a
as portas para a afirmação da ultrapassa- afirmação apenas do ponto de vista da his-
gem definitiva do passado, inclusive no tória da Antigüidade, veremos que ela não
tocante à maneira como os homens organi- se sustenta. Dizer que Atenas foi uma cida-
zavam a vida política. de de exceção no mundo antigo não impli-
Sua visão da Antigüidade, entretanto, ca demarcar o território de sua originalida-
nada tinha de original. Ainda no capítulo de. Além do mais, a afirmação de Constant
que estamos analisando, ele afirma que uma não faz jus nem mesmo às idéias correntes
das dificuldades para nos servirmos dos de seu tempo, que colocavam Atenas como
modelos gregos e romanos residia no fato um dos exemplos mais claros do desenvol-
de que o tamanho reduzido do território das vimento das repúblicas no passado, como
pequenas repúblicas antigas é que permitia prova o verbete “République” da Ency-
a seus cidadãos participar direta e cotidia- clopédie de Diderot et d’Alembert (22).
namente das decisões mais importantes da Além do mais, basta recorrer ao texto de
vida política de sua cidade (20). Ora, essa sua conferência de 1819 para constatar que
era uma observação que podia ser encon- pelo menos algumas instituições tipicamen-
trada em quase todos os autores que pensa- te atenienses estão listadas entre os absur-
ram a política no século XVIII, de dos que os legisladores modernos preten-
Montesquieu, passando pela Encyclopédie diam copiar (23).
20 “ Dans les republiques de
de Diderot et d’Alembert, até Rousseau. Tomar as observações de Constant so- l’antiguité, la petitesse du
Na verdade Constant faz uma afirmação bre a história da Grécia ou de Roma como territoire faisait que chaque
citoyen avait politiquement une
que apenas mascara o problema que ator- ponto central de sua argumentação pode grande importance” (Benjamin
Constant, “De l’Esprit de
mentou vários autores, a saber, se seria levar-nos a trilhar um caminho falso. Se a Conquête et de l’Usurpation”,
possível constituir uma democracia ou uma menção ao mundo antigo parece fundamen- op. cit., p. 182).
república nos Estados nacionais modernos tal para ele, isso se deve muito mais a seu 21 Idem, ibidem, p. 183.
nos mesmos moldes das cidades antigas. desejo de afirmação da particularidade dos 22 No verbete o autor analisa o
caso de Atenas como um dos
Independente das convicções de autores tempos que estava vivendo e à sua vontade mais importantes, ao lado de
como Montesquieu ou Rousseau, seria de demarcar o terreno próprio da moder- Roma, para a compreensão da
noção de república na Antigüi-
muito difícil encontrar, no curso do século nidade do que a uma visão acurada dos tem- dade.
XVIII, alguém disposto a defender a sim- pos antigos. Basta acompanhar seu texto 23 Benjamin Constant, “De la
ples imitação dos antigos como modelo de para ver que demarcar fronteiras impossí- Liberté des Anciens Comparée
à Celle des Modernes”, op.
conduta política. O que devemos nos per- veis de serem ultrapassadas era muito mais cit., p. 507.

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importante do que realizar um estudo cui- cesa e seus atores. Partindo do que fora dito
dadoso do passado. O verdadeiro motivo antes, ele afirma: “Essas verdades foram
para citar o mundo antigo era mostrar que completamente desconhecidas pelos ho-
estamos a uma grande distância dele, in- mens que, no final do século passado, acre-
clusive no plano moral. Como afirma ditaram que deviam regenerar a humanida-
nosso autor: “os antigos estavam na juven- de” (25). A explicação mais óbvia para isso
tude da vida moral, nós estamos na maturi- era o fato de que os homens da revolução
dade, talvez mesmo na velhice; carrega- adotaram a obra de Rousseau como refe-
mos conosco sempre um pensamento es- rência e fizeram dela um manual que os
condido que desfaz o entusiasmo” (24). conduziu, e só podia fazê-lo, diretamente à
Qualquer qualidade associada aos antigos tirania. Esse será o grande tema de vários
devia ser descartada da vida pública, pelo escritos de nosso autor. “Veremos”, diz ele,
simples motivo de que a marcha da história “[…] que a metafísica sutil do Contrato
a tinha tornado algo impossível de ser rea- Social só serve em nossos dias para forne-
lizada nos tempos presentes. cer as armas e os pretextos para todos os
A continuação da leitura do texto pode tipos de tirania” (26). Ao lado de Mably, o
nos fornecer elementos preciosos para a filósofo de Genebra será o alvo privilegia-
compreensão das disputas envolvidas nas do dos ataques de Constant. Para ele: “Os
posições assumidas por Constant. Para o homens, que foram levados pela onda dos
leitor atual cabe, no entanto, notar que, se acontecimentos a liderar nossa revolução,
podemos ser sensíveis à acuidade das obser- estavam, em conseqüência da educação que
vações de nosso autor a respeito da natureza haviam recebido, imbuídos das opiniões an-
das sociedades modernas, não podemos tiquadas e tornadas falsas, que os filósofos
deixar de lado o fato de que ele pretende de que falei haviam posto em realce” (27).
fundamentá-las em uma visão acanhada da O Contrato Social de Rousseau será visto
Antigüidade e numa noção bastante arraiga- como a obra matriz de uma visão passadista
da quanto à marcha da história. Nesse sen- da história, que via na continuidade absur-
tido, não vemos razão para aceitar sem mais da entre os tempos antigos e a modernidade
a distinção entre o mundo moral dos antigos a ponte entre uma liberdade política real e
e o mundo dos modernos, se não estivermos uma ficção que, nas condições do capita-
dispostos ao mesmo tempo a adotar as ra- lismo nascente, só podia conduzir a um
zões que fundamentam a argumentação de feroz despotismo.
24 Benjamin Constant, “De l’Esprit
de Conquête et de Constant. Isso não tem nada a ver com o A linha principal da argumentação de
l’Usurpation”, op. cit., p. 185.
reconhecimento da distância que nos separa Constant consiste, portanto, na ligação ínti-
25 Idem, ibidem, p. 186.
da Antigüidade e com o fato óbvio de que ma entre a obra de Rousseau, sua visão da
26 Idem, ibidem, p. 187.
não podemos, sobretudo hoje, pretender Antigüidade e o fato de que os revolucioná-
27 Benjamin Constant, “De la repetir suas práticas no mundo moral e po- rios fizeram dessas constatações a mola para
Liberté des Anciens Comparée
à Celle des Modernes”, op. cit., lítico. A constatação da distância entre as uma série de ações, que não podiam resultar
p. 505.
diversas experiências históricas não prova em outra coisa a não ser em uma tirania. “Os
28 Benjamin Constant, “De l’Esprit
de Conquête et de
que os argumentos de Constant devem ser partidários da liberdade antiga ficaram furio-
l’Usurpation”, op. cit., p. 191. aceitos sem maiores problemas. De nossa sos com o fato de que os modernos não que-
29 Idem, ibidem. parte, acreditamos que somente o acompa- riam ser livres de acordo com o método que
30 Supostamente a referência de nhamento do texto pode nos levar a deslindar escolheram” (28). Para alcançar seus obje-
Constant é ao capítulo XXVI do
primeiro livro dos Discorsi a verdadeira batalha travada por nosso au- tivos, serviram-se de uma máxima, atribuí-
(Machiavel, “Discorsi sopra la tor. Como mostraremos, ela tinha pouca da a Maquiavel segundo a qual “Pela tirania
Prima Deca di Tito Livio”, in Tutte
le Opera , Firenze, Sansoni, relação com uma visão correta do mundo é preciso mudar tudo” (29). Pouco importa,
1971, p. 109). Como já ob-
servou Gauchet, a passagem
antigo e de seus desenvolvimentos. aqui, que tal máxima não se encontra em
citada simplesmente não exis- O começo do sétimo capítulo da segun- Maquiavel (30), ou que nosso autor não se
te. Lendo o capítulo, constata-
mos, aliás, que ela não reflete da parte do texto que estamos analisando preocupe em demonstrar a fundamentação
em nada o espírito do mesmo dirige nosso olhar para o verdadeiro objeto da “sutil metafísica” de Rousseau. Tal aná-
ou o tema tratado pelo autor
florentino. de crítica de Constant: a Revolução Fran- lise certamente mostraria a fragilidade da

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leitura realizada por Constant das obras dos república que fosse outra coisa do que aque-
dois autores, mas mascararia o verdadeiro la sonhada e implementada pelos homens
objetivo de seus escritos, que tiveram sem- da última década do século XVIII e que,
pre a pretensão de influenciar diretamente o segundo Constant, haviam tentado obrigar
debate político, e não de servir como refe- seus contemporâneos a serem livres como
rência à compreensão erudita dos escritos antigamente.
dos filósofos que critica de maneira veemen- A relação entre a crítica liberal e o pen-
te. Rousseau, em particular, interessa por- samento de Rousseau é um dos temas mais
que foi o criador intelectual do jacobinismo, visitados pela crítica especializada. Há
não por sua vontade, mas por seus erros e quase dois séculos os defensores das duas
enganos quanto à natureza dos tempos e dos posições trocam farpas e acusações sobre
homens. O que deve ser combatido é o par um terreno de mútua incompreensão. Nes-
formado pela união entre Rousseau e se campo minado não seria difícil mostrar
Robespierre que, por seus delírios com rela- o quão redutora é a leitura feita dos textos
ção à natureza da liberdade possível nos do filósofo genebrino por seu crítico libe-
tempos modernos, conduziram os homens a ral mais conhecido na França. De fato,
novos sofrimentos. Constant não se preocupa nem um pouco
Constant foi, como mostra a parte final em definir o estatuto teórico de noções como
de sua conferência de 1819, um defensor do a de “vontade geral” e nem de investigar o
sistema parlamentar inglês, e se transformou papel que de fato a Antigüidade tinha na
num dos críticos do republicanismo que obra de Rousseau (33). Defensor ardoroso
sempre associou ao jacobinismo. Suas críti- da ruptura inequívoca com o passado mais
cas tanto à república e à revolução ecoaram distante, não hesita em dizer que o “espíri-
ao longo de todo o século XIX. Como mos- to cavalheiresco” deveria ser conservado
tra Claude Nicolet em seu clássico L’Idée na modernidade, pois “o uso de formas
Républicaine en France (31), de sua pena doces e o hábito das nuanças engenhosas
partiram os toques iniciais de uma oposição dão à alma uma susceptibilidade delicada,
entre o republicanismo francês e o liberalis- ao espírito uma flexibilidade rápida” (34).
mo inglês, que ganharia contornos muito Crítico das virtudes cívicas, Constant é
variados ao longo do século XIX. Nesse nostálgico das sociedades de corte nas quais
sentido, a obra de Constant é de fato um brilhava o “belo espírito”. Distante da ar-
marco do pensamento liberal moderno, mas gúcia de Tocqueville, que soube compre-
também o ponto de partida de uma argu- ender as verdadeiras dificuldades impos-
mentação em muitos aspectos falaciosa. tas àqueles que desejam mudar inteiramente
No curso do século que se seguiu à Re- o governo dos homens e seus vínculos com
volução Francesa, Rousseau continuou a a tradição (35), Constant se contentou
exercer uma grande influência sobre os pen- muitas vezes com a simples constatação de
sadores que procuraram dar forma à idéia que a modernidade havia forjado um cami-
de vontade geral, assim como sobre aque- nho distante das antigas práticas, sem se
31 Claude Nicolet, L ’ Idée
les que procuravam negar a validade da preocupar com a multiplicidade de sendas Républicaine en France (1789-
1924) , Paris, Gallimard,
experiência republicana iniciada com a que se abriam com essa nova era. 1994, pp. 70-4.
Revolução Francesa. A idéia de que o Retornar, no entanto, aos debates sobre 32 Idem, ibidem, p. 481.
mundo antigo podia servir como referên- a relação entre os dois pensadores não seria
33 A esse respeito é interessante
cia para se pensar a política sobreviveu até um procedimento cabível no espaço de um consultar: Denise Leduc-
Fayette, J.-J. Rousseau et le
mesmo entre pensadores como Gambetta e artigo. Para nossos propósitos, cabe lem- Mythe de l’Antiguité, Paris, J.
Ferry (32) que, embora marcados pelo pen- brar que a leitura dos escritos de Constant Vrin, 1974.

samento anglo-saxônico, ainda faziam re- permite que apreciemos ainda hoje alguns 34 Benjamin Constant, “De l’Esprit
de Conquête et de l’Usur-
ferência à experiência de Atenas para pro- de seus méritos. No começo do século XIX, pation”, op. cit., p. 193.
var que a implicação dos indivíduos direta- acuado por um desejo incontrolável de su- 35 Tocqueville, L’Ancien Regime
mente na vida pública era algo desejável e cesso e por uma situação política que não o et la Révolution, Paris, Garnier-
Flammarion, 1988, Cap. XII,
saudável para o estabelecimento de uma favorecia, ele percebeu, com uma clareza pp. 211-27.

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muitas vezes ausente em seus contemporâ- ais e sua maneira de conceber a moder-
neos, que a grande novidade revolucioná- nidade. A priori isso não tem nada de erra-
ria deveria ser medida por parâmetros to- do, pois quase todos os grandes pensadores
talmente distintos daqueles empregados políticos modernos se viram envolvidos nas
pelos homens que participaram diretamen- disputas políticas de sua época e foram
te dos acontecimentos decisivos da Revo- marcados por elas, quando passaram a re-
lução Francesa. Reconhecendo o papel fletir sobre a natureza das sociedades em
central dos indivíduos nas sociedades mo- que viviam. O que importa reter, entretan-
dernas e o aparecimento dos mecanismos to, é a fundamentação de seus argumentos,
de representação como parte integrante de as razões que os sustentam, e isso indepen-
um novo tempo, Constant não fez mais do dente dos méritos que eventualmente con-
que mergulhar na corrente de pensadores servam ao longo dos anos.
que buscavam se distanciar dos paradigmas No caso de Constant, o que gostaríamos
da Antigüidade, mas soube produzir um de conservar é o fato de que sua interpreta-
referencial teórico interessante para julgar ção da liberdade moderna como sendo es-
os acontecimentos que estiveram no centro sencialmente ausente de constrangimento é
de sua existência (36). solidária com uma visão do progresso e sua
O que nos cabe perguntar, no entanto, é incompreensão da complexidade do fenô-
se o reconhecimento dos méritos de meno revolucionário, ainda que tenha sido
Constant permite-nos adotar seu diagnós- capaz de deslindar seus aspectos mais per-
tico das sociedades modernas, em particu- versos. Ele não viu, e não poderia ter visto,
lar no tocante ao problema da liberdade, que os ideais republicanos nascidos na Re-
como pertinente para todas as situações en- volução gestariam uma tradição de reflexão
volvendo a participação dos indivíduos na política, que iria muito além da apropriação
vida pública, sobretudo nos dias de hoje. por Robespierre do pensamento de
Essa parece ser a tendência de muitos es- Rousseau. Por outro lado, sua adoração do
critores, como vimos, que aceitam sem mais mundo inglês o cegou para a extraordinária
a distinção entre liberdade negativa e liber- experiência norte-americana e para as ques-
dade positiva como um dado das socieda- tões fundamentais que suscitam, como mos-
des contemporâneas. A suposta demons- trará Tocqueville. Um segundo aspecto que
tração da incompatibilidade moderna com cabe anotar é que, para tornar coerentes seus
a participação dos cidadãos na vida pública argumentos, Constant foi obrigado a retra-
é tomada como um dado natural a ser incor- tar os indivíduos contemporâneos como
porado sem mais aos diagnósticos que tra- mônadas, alheios, em sua busca de satisfa-
çamos de nossos problemas. ção pessoal, a toda participação no mundo
Ora, a análise dos principais argumen- público que não fosse pelos mecanismos de
tos empregados por Constant, para susten- representação. Os que se aventuraram para
tar sua posição quanto à questão da liberda- fora dessa cápsula de isolamento se viram
de, sugere que eles não são necessariamen- diante da tarefa impossível de resgatar as
te um instrumento eficaz para pensar o pro- virtudes dos heróis da Antigüidade num
blema da liberdade e da natureza das socie- mundo que já não tinha espaço para isso. O
dades democráticas na atualidade. Se a lei- resultado dessa vontade por vezes generosa
tura de nosso autor pôde ser inovadora no foi, aos olhos do pensador liberal, a sujeição
momento em que foi realizada, isso não de todos os que se negaram a reconhecer o
implica dizer que seja um diagnóstico vá- mérito da empreitada.
36 Como mostra Gauchet ao no- lido para além do momento em que foi for- Se Constant permanece uma referência
tar que a Revolução foi cega
ao individualismo nascente,
mulado. O que procuramos mostrar, na para se compreender o desenvolvimento do
Constant soube antecipar os verdade, é que, mesmo em seu tempo, a pensamento liberal ao longo do século XIX
riscos de muitas experiências
totalitárias, que ocorreriam no obra de Constant padecia de algumas fragi- na França, a apropriação de sua distinção
século seguinte (Marcel lidades, que traíam a mistura entre as mo- entre as duas formas de liberdade no contex-
Gauchet, “Preface”, op. cit., p.
46). tivações de seus combates políticos pesso- to atual parece-nos bastante problemática.

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Em primeiro lugar, não podemos deixar de ram os pressupostos da tradição liberal. Esse
lado o fato de que a crítica ao mito da Anti- procedimento não faz justiça nem aos pen-
güidade feita por nosso autor em sua época sadores que se dedicaram a enfrentar o de-
não conserva nenhuma pertinência em nos- safio de construir um pensamento republi-
so tempo. Ninguém pensa hoje seriamente cano ao longo dos últimos duzentos anos
em recorrer aos exemplos romanos para dis- (38), nem à prática efetiva dos cidadãos, que
cutir problemas sobre a participação políti- em nome de ideais variados se dispuseram a
ca, senão para usar como metáfora ou outro atuar de forma direta na arena política nas
recurso de expressão. Na verdade, seria in- muitas transformações que mudaram a face
teressante retornarmos a autores como do mundo.
Rousseau para verificarmos se de fato a O que gostaríamos de afirmar é que, ao
Antigüidade era para eles um motivo de aceitarmos a caracterização da modernida-
adoração irrefletida. De nossa parte, tende- de sugerida pelos herdeiros de Constant,
ríamos a negar essa hipótese, mas sua de- estamos na verdade assumindo uma restri-
monstração nos conduziria para muito lon- ção dos termos do debate sobre a natureza
ge de nossos objetivos. O que nos importa é das sociedades democráticas contemporâ-
que pensadores como Berlin recuperam as neas. A simples contraposição entre liber-
críticas ao ideal de liberdade positiva como dade negativa e liberdade positiva não é
se ele pudesse ter se mantido o mesmo ao uma chave fecunda para se pensar proble-
longo de mais de duzentos anos. Repetindo mas complexos como o das virtudes cívi-
a operação conceitual de Constant, que rea- cas, da participação política, da identidade
lizava sem mediações a ponte entre o pensa- constitucional ou do patriotismo. Isso pelo
mento de Rousseau, o terror jacobino e as simples fato de que depende de pressupos-
aspirações republicanas, Berlin e outros re- tos filosóficos, que não podem ser aceitos
duzem o campo dos debates a uma disputa como princípios inquestionáveis e univer-
entre uma visão passadista do papel das vir- sais por todos os que se dedicam a pensar a
tudes cívicas e a afirmação do papel central natureza da vida política. Talvez seja mais
do individualismo na construção das socie- fecundo reconhecer a complexidade da
dades políticas contemporâneas. O que é questão da liberdade na atualidade do que
deixado de lado nessa maneira de abordar o insistir na dicotomia elaborada no final do
problema é que ela é solidária de uma visão século XVIII. Entre a república dos anti-
da história como progresso e de uma antro- gos e a república dos modernos existe sim
pologia que descreve o homem primordial- uma ruptura decisiva, mas nada nos impe-
mente a partir de seus interesses e apetites. de de nos servir do passado para pensar a
Sem a discussão desses fundamentos teóri- identidade de nossas formações sociais. O
cos ficaremos reduzidos ao mero embate desaparecimento completo da cena públi-
ideológico opondo partidários da participa- ca das referências ao mundo antigo ajuda-
ção política e epígonos da apatia. nos a formular o problema da liberdade, da
Ora, não precisamos necessariamente nos natureza da cidadania, da participação po-
servir da figura do herói antigo ou de seu lítica e da representação em termos muito
sucedâneo revolucionário (37) para pensar- diferentes do que aqueles sustentados por
mos o papel dos atores políticos em nossas Constant e por todos os que se serviram de
sociedades. Se os pensadores liberais têm sua herança para defender uma visão aca-
razão em recusar a lógica que presidiu a ação nhada das possibilidades da vida política 37 Ver a esse respeito: Miguel
Abensour, “O Heroísmo e o
dos homens que instituíram o terror em nome na contemporaneidade. O grande desafio Enigma Revolucionário”, in
Adauto Novaes, Tempo e His-
da vontade geral, nada prova que essa seja a diante do qual a tradição republicana se tória, São Paulo, Companhia
lógica de toda e qualquer participação direta encontra é justamente dizer qual liberdade das Letras, 1992, pp. 205-37.

dos cidadãos na cena pública. Para que essa é possível em sociedades que são o fruto do 38 Interessante, a esse respeito, a
abordagem do problema na
abordagem do problema funcione, é preciso longo e doloroso processo de gestação da França em François Furet,
aceitar a amálgama operada por Berlin entre modernidade e não do gesto irrefletido de Mona Ozouf (orgs.), Le Siècle
de l’Avènement Républicain,
todas as correntes políticas que não aceita- adoração da república dos antigos. Paris, Gallimard, 1993.

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