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Natal Chove.

É Dia de Natal

Seja cada presépio a nossa casa


Chove. É dia de Natal.
Transformada no mais florido altar,
Lá para o Norte é melhor:
Um pedaço de sol em cada brasa,
Há a neve que faz mal,
Uma estrela do céu em cada olhar.
E o frio que ainda é pior.

Seja o Natal das prendas uma prenda


E toda a gente é contente
Que não esqueça o mundo humilde e mudo,
Porque é dia de o ficar.
Seja a verdade a dominar a lenda
Chove no Natal presente.
A verdade primeiro e mais que tudo.
Antes isso que nevar.

Seja o Natal fraterna comunhão


Pois apesar de ser esse
Com os pobres sem pão e sem lareira,
O Natal da convenção,
Não haja, em parte alguma, coração
Quando o corpo me arrefece
Que, por Jesus, não ame a terra inteira.
Tenho o frio e Natal não.

A voz das almas se una à voz dos sinos:


Deixo sentir a quem quadra
– Glória a Deus! Para os homens, paz e bem!
E o Natal a quem o fez,
Todos, pelo Natal, somos meninos
Pois se escrevo ainda outra quadra
A beijar o Menino de Belém...
Fico gelado dos pés.

Moreira das Neves


Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"
Natal... Na província neva. NATAL DAS ILHAS

Nos lares aconchegados, À Maria e ao Manuel Pinheirinho, primos-

Um sentimento conserva irmãos

Os sentimentos passados. Natal das Ilhas. Aonde


O prato do trigo novo,

Coração oposto ao mundo, A camélia imaculada,

Como a família é verdade! O gosto no pão do povo?

Meu pensamento é profundo, Olho, já não vejo nada.

Estou só e sonho saudade. Chamo, ninguém me responde.


Natal das Ilhas. Serão

E como é branca de graça Ilhas de gente sem telha,

A paisagem que não sei, Jesus nascido no chão

Vista de trás da vidraça Sobre alguma colcha velha?

Do lar que nunca terei! Burra de cigano às palhas,


Vaca com língua de pneu,
Fernando Pessoa Presépio girando em calhas
Como o elétrico, tu e eu.
Natal das Ilhas. Já brilha
Nas ondas do mar de inverno
O menino bem lembrado,
Que trouxe da sua ilha
O gosto do peixe eterno
Em perdão do seu passado.

Vitorino Nemésio
DE CONSOADA Natal Divino

Que vos hei de mandar de Caparica Natal divino ao rés-do-chão humano,


De que vós, Prima, não façais esgares? Sem um anjo a cantar a cada ouvido.
Porque de graças e benções aos pares, Encolhido
Disso, graças a Deus, sois vós bem rica. À lareira,
Mel e açúcar? São cousas de botica. Ao que pergunto
Coscorões? São piores que folares. Respondo
Perus? Não, que são pássaros vulgares. Com as achas que vou pondo
Porcos? Só de o dizer nojo me fica. Na fogueira.
Mandara-vos o sol, se desta cova
Mo deixaram tomar; mas é fechada, O mito apenas velado
E inda o é mais para mi a rua nova. Como um cadáver
Pois, se há de ser de nada a consoada, Familiar…
Mandar-vos-ei, sequer, Prima, esta trova, E neve, neve, a caiar
Que o mesmo vem a ser que não ser nada De triste melancolia
Os caminhos onde um dia
D. Francisco Manuel de Melo
Vi os Magos galopar…

Miguel Torga
Natal Natal

Ninguém o viu nascer.


Devia ser neve humana
Mas todos acreditam
A que caia no mundo
Que nasceu.
Nessa noite de amargura
É um menino e é Deus.
Que se foi fazendo doce...
Na Páscoa vai morrer, já homem,
Um frio que nos pedia
Porque entretanto cresceu
Calor irmão, nem que fosse
E recebeu
De bichos de estrebaria.
A missão singular
De carregar a cruz da nossa redenção. Miguel Torga
Agora, nos cueiros da imaginação, Natal
Sorri apenas
A quem vem,
Leio o teu nome
Enquanto a Mãe,
Na página da noite:
Também
Menino Deus...
Imaginada,
E fico a meditar
Com ele ao colo,
No milagre dobrado
Se enternece
De ser Deus e menino.
E enternece
Em Deus não acredito.
Os corações,
Mas de ti como posso duvidar?
Cúmplice do milagre, que acontece
Todos os dias nascem
Todos os anos e em todas as nações.
Meninos pobres em currais de gado.
Crianças que são ânsias alargadas
Miguel Torga
De horizontes pequenos.
Humanas alvoradas...
A divindade é o menos.

Miguel Torga
Natal
LITANIA DO NATAL

Nem pareces o mesmo,


A noite fora longa, escura, fria.
Deus menino
Ai noites de Natal que dáveis luz,
Exposto
Que sombra dessa luz nos alumia?
Num presépio de gesso!
Vim a mim dum mau sono, e disse: «Meu
E nunca foi tão santa no teu rosto
Jesus…»
Esta paz que me dás e não mereço.
Sem bem saber, sequer, porque o dizia.
E o Anjo do Senhor: «Ave, Maria!»
É fingida também a neve
Na cama em que jazia,
Que te gela a nudez.
De joelhos me pus
Mas gosto dela assim,
E as mãos erguia.
A ser tão branca em mim
Comigo repetia: «Meu Jesus…»
Pela primeira vez.
Que então me recordei do santo dia.

Miguel Torga E o Anjo do Senhor: «Ave, Maria!»


Ai dias de Natal a transbordar de luz,
Onde a vossa alegria?
Todo o dia eu gemia: «Meu Jesus…»
E a tarde descaiu, lenta e sombria.
E o Anjo do Senhor: «Ave, Maria!»
De novo a noite, longa, escura, fria,
Sobre a terra caiu, como um capuz
Que a engolia.
Deitando-me de novo, eu disse: «Meu
Jesus…»
E assim, mais uma vez,
Jesus nascia.

José Régio
NATAL À BEIRA-RIO FALAVAM-ME DE AMOR

É o braço do abeto a bater na vidraça? Quando um ramo de doze badaladas se


E o ponteiro pequeno a caminho da meta! espalhava nos móveis e tu vinhas
Cala-te, vento velho! É o Natal que passa, solstício de mel pelas escadas de um
A trazer-me da água a infância ressurrecta. sentimento com nozes e com pinhas,
Da casa onde nasci via-se perto o rio. menino eras de lenha e crepitavas
Tão novos os meus Pais, tão novos no porque do fogo o nome antigo tinhas
passado! e em sua eternidade colocavas o que a
E o Menino nascia a bordo de um navio infância pedia às andorinhas.
Que ficava, no cais, à noite iluminado... Depois nas folhas secas te envolvias
Ó noite de Natal, que travo a maresia! de trezentos e muitos ler
Depois fui não sei quem que se perdeu na dos dias e eras um sol na sombra flagelado.
terra. O fel que por nós bebes te liberta e no manso
E quanto mais na terra a terra me envolvia natal que te conserta
E quanto mais na terra fazia o norte de quem só tu ficaste a ti acostumado.
erra.
Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir-me Natália Correia

À beira desse cais onde Jesus nascia...


Serei dos que afinal, errando em terra firme,
Precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia?

David Mourão-Ferreira
NÃO CORTEM O CORDÃO

Não cortem o cordão que liga o corpo à Não limpem o sal na boca. Esse objecto

criança do sonho, asteróide,

o cordão astral à criança aldebarã, não cortem não o removam.

o sangue, o ouro. A raiz da floração A árvore de alabastro que as ribeiras

coalhada com o laço frisam, deixem-na rasgar-se:

no centro das madeiras - Das entranhas, entre duas crianças, a que era

negras. A criança do retrato viva

revelada lenta às luzes de quando e a criança do sopro, suba

se dorme. Como já pensa, como tem unhas de tanta opulência. O trabalho confuso:

mármore. que seja brilhante a púrpura.

Não talhem a placenta por onde o fôlego Fieiras de enxofre, ramais de quartzo, flúor

do mundo lhe ascende à cabeça. agreste nas bolsas

Linhas cristalográficas atravessando os cornos. pulmonares. Deixem que se espalhem as


redes

A veia que a liga à morte. da respiração desde o caos materno ao sonho

Não lhe arranquem o bloco de água abraçada da criança

aonde chega exacerbada,

braço a braço. Sufoca. única.

Mas não desatem o abraço louco.


Herberto Helder

A terra move-a quando se move.


NATAL DE 1971

Natal de quê? De quem? Natal de caridade,

Daqueles que o não têm? quando a fome ainda mata?

Dos que não são cristãos? Natal de qual esperança

Ou de quem traz às costas num mundo todo bombas?

as cinzas de milhões? Natal de honesta fé,

Natal de paz agora com gente que é traição,

nesta terra de sangue? vil ódio, mesquinhez,

Natal de liberdade e até Natal de amor?

num mundo de oprimidos? Natal de quê? De quem?

Natal de uma justiça Daqueles que o não têm,

roubada sempre a todos? ou dos que olhando ao longe

Natal de ser-se igual sonham de humana vida

em ser-se concebido, um mundo que não há?

em de um ventre nascer-se, Ou dos que se torturam

em por de amor sofrer-se, e torturados são

em de morte morrer-se, na crença de que os homens

e de ser-se esquecido? devem estender-se a mão?

Jorge de Sena
O Natal não é ornamento
Dia de Natal "O Natal não é ornamento: é fermento
É um impulso divino que irrompe pelo interior
Hoje é dia de Natal da história
Mas o Menino Jesus Uma expectativa de semente lançada
Nem sequer tem uma cama, Um alvoroço que nos acorda
Dorme na palha onde o pus. para a dicção surpreendente que Deus faz
da nossa humanidade
Recebi cinco binquedos
O Natal não é ornamento: é fermento
Mais um casaco comprido.
Dentro de nós recria, amplia, expande
Pobre Menino Jesus,
Faz anos e está despido. O Natal não se confunde com o tráfico
sonolento dos símbolos
Comi bacalhau e bolos, nem se deixa aprisionar ao consumismo
Peru, pinhões e pudim. sonoro de ocasião
Só ele não comeu nada A simplicidade que nos propõe
Do que me deram a mim. não é o simplismo ágil das frases-feitas
Os gestos que melhor o desenham
Os reis de longe lhe trazem não são os da coreografia previsível das
Tesouro, incenso e mirra. convenções
Se me dessem tais presentes,
O Natal não é ornamento: é movimento
Eu cá fazia uma birra.
Teremos sempre de caminhar para o
encontrar!
Às escondidas de todos
Entre a noite e o dia
Vou pegar-lhe pela mão
Entre a tarefa e o dom
E sentá-lo no meu colo
Entre o nosso conhecimento e o nosso desejo
Para ver televisão.
Entre a palavra e o silêncio que buscamos
Uma estrela nos guiará
Luísa Ducla Soares
O Natal não é ornamento"
Tolentino de Mendonça

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