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A FADA PUBLICIDADE

Era uma vez uma menina chamada Minucha, que vivia no país
das fadas e que passava o dia inteiro a ver televisão. Até as fadas têm
defeitos, é verdade! Do que ela mais gostava não era dos
documentários ou dos desenhos animados. Era… da publicidade.
É que até as fadas têm necessidade de um pouco de sonho e
de muita magia. E a publicidade fazia sonhar, e de que maneira!
Todos aqueles brinquedos, todos aqueles objectos que a televisão
propunha, mesmo que fossem só em imaginação, eram

Conta--me como sou


Conta sou!! inacreditáveis.
Havia um foguetão telecomandado que ia até à lua, um
submarino de tamanho natural, um audioformiga para compreender
a língua dos insectos, uma boneca que fazia gelados de morango,

Volume IIII etc. Assim, quando chegava a publicidade, o coração de Minucha


batia muito rápido, as faces ficavam coradas e os olhos em bico.

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A vontade chegava, incontrolável. Primeiro, aparecia um
buraco no estômago, depois um formigueiro na barriga, a seguir uma
ideia fixa na cabeça, e finalmente uma voz estridente a gritar:
“Quero! Vou comprar! Quero, e hei-de ter.” E aquele mal-estar não a
largava, até ao momento em que, finalmente, conseguia o que
queria.
No país das fadas, mesmo sem dinheiro e graças ao pó mágico,
consegue-se tudo o que se quer, excepto as varinhas de condão.
Estas só são entregues pela Academia das Fadas. Minucha conseguia
todos os objectos: o foguetão telecomandado, a boneca pasteleira, o
submarino de tamanho natural, o robô que arruma o quarto.
Durante um ou dois segundos, Minucha ficava muito contente.
Ria sozinha, cantava, corria por todo o lado, mas, a partir do
momento em que tinha o brinquedo, ficava inevitavelmente
desiludida. O robô só funcionava com pilhas que eram difíceis de
encontrar, o foguetão não regressava da lua, os gelados de morango
sabiam a plástico. Em conclusão, a magia desaparecia quando o
objecto se tornava real.
Mesmo assim, Minucha não se cansava de ver a publicidade
que conta tão lindas histórias e que cria em nós a vontade de possuir
o mundo inteiro!
Então, lá voltava o carrossel: buraco no estômago, comichão,
ideia fixa, voz a gritar “Quero e hei-de ter!”, um brinquedo a sair da
televisão, e uma grande crise de lágrimas por causa da decepção. Já
não tinham conta os brinquedos que se acumulavam no sótão, ainda
a brilhar de novos, as bonecas, os comboios que já não apitavam, os
novos carrinhos, uns mais rápidos do que outros, os novos cereais

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para o pequeno-almoço com o brinde que a televisão tinha
mostrado!
Índice Certo dia, ao ligar a televisão, Minucha sentiu o coração bater
Um esqueleto no armário… .................................................. ..............1 ainda mais rápido, as faces a ficarem ainda mais vermelhas. No
Começar a vida com o pé esquerdo – jogos e saúde ..........................9 pequeno ecrã, uma pequena feiticeira apregoava as qualidades de
A greve dos legumes – alimentação ................................................. 19 uma varinha de condão.
As sereias do fundo da água – perigos da água ...............................25 — Com uma varinha prateada, o teu Q. M. (Quociente Mágico)
Dra. Roza e a fada-madrinha – como lidar com os desgostos .........31 será mais elevado e farás maravilhas! Com a varinha preciosa, serás a
Petúnia e a modista das palavras –dislexia......................................39 mais feliz das fadas!
O Pai Urso foi-se embora – divórcios................................................4 5 A pequena feiticeira enumerou, em seguida, todos os
O pequeno comerciante que vendia sorrisos – a importância do fabulosos truques de magia que se podiam fazer com a varinha de
verdadeiro sorriso ..................................................................49 condão: transformar uma princesa em orangotango, uma mãe em
O duende Dudu, professor de felicidade – emoções ........................61 pai, um pai em avó, uma panela de pressão num chapéu de madrasta,
As duas casas ou uma história de cores – disputas e divórcios ........67 um pedaço de chocolate num quadrado de açúcar… Oh! Como a
Malu, a pequena feiticeira triste – disputas e divórcios ...................73
pequena fada gostaria de ter uma!
Miss Liza, que se julgava uma princesa – orgulho ...........................79
Mas lembra-te de que as pequenas fadas podem conseguir
O menino sol que nunca queria deitar-se – hiperactividade ............83
tudo, excepto as varinhas de condão. Quando tomou consciência
O anjinho que queimou a asa – como lidar com as tentações .........87
daquela atroz realidade, Minucha quase arrancava os cabelos. Era a
O principezinho destemido – instinto de sobrevivência ...................93
primeira vez que não podia calar a voz estridente: “Eu quero, eu hei-
História da varinha que encolhia – conhecer os limites ...................97
-de ter!” Tinha o coração cheio de amargura.
A Fada Publicidade – a ditadura da televisão ................................109
Se não podia transformar uma princesa em orangotango e uma
Diogo e Diego discutem – irmãos e irmãs ......................................115
gazela em três sapos, uma panela de pressão em chapéu de
A história do rapaz alto e tímido – emoções ..................................121
madrasta e um pedaço de chocolate em açúcar, de que lhe servia
A caixa que fazia desaparecer Mimi Alcachofra – afirmação da
viver? Dava voltas na cama a matutar o que havia de fazer para
individualidade – ter cuidado consigo .................................127
conseguir uma varinha de condão prateada que fizesse maravilhas.
A pequena aranha que queria tudo, tudo, tudo – emoções ...........139
Uma noite, depois de ter dado 1678 voltas na cama, apareceu à
A história do menino distraído – ter cuidado consigo ....................145
sua frente a fada-madrinha, aquela que vem socorrer as pequenas
A história do senhor demasiado gentil – abusos sexuais ...............153

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fadas que estão desesperadas. Quando Minucha lhe explicou que O festim dos micróbios – vírus e higiene ....................................... 159
não conseguia dormir por causa da varinha de condão prateada que O encontro com a Dama das histórias – leitura ........................... 165
fazia maravilhas, a madrinha desatou às gargalhadas. A zanga de Lara e Lia – emoções .................................................. . 169
— Porque te ris? Não tem graça nenhuma! — resmungou Jogos perigosos – a influência nefasta dos outros ........................ 175
Minucha. O dia em que a Terra ficou surda – os barulhos e o mal que fazem
Mas a madrinha não parava de rir. .................................................. ........................................... 181

— Mas é a Fada Publicidade! A marota! Diz o que lhe vem à Os perigos da internet .................................................. ................. 187

cabeça e raramente cumpre as suas promessas. Se queres saber, ela O lobito Alberto e os matulões – bullying...................................... 193
O pequeno vampiro apaixonado – auto-estima ............................ 201
é um pouco feiticeira… Quando vê uma criança diante da televisão,
As aventuras e desventuras do lobo fumador – perigos do tabaco205
esfrega as mãos de contente e põe-se a fazer chacota lá do seu
A história dos homenzinhos de patins – a pressa e o stress .......... 213
canto: “Ah, ah, ah! Aqui está mais uma que caiu em meu poder…” É
assim aquela tonta. A única coisa que lhe interessa é ser a rainha do
mundo!
E a fada-madrinha fez um ar muito sério.
— A sua varinha prateada é como outra varinha qualquer, só
que brilha um pouco mais.
A pequena fada teve uma crise de cólera: bateu o pé, atirou o
edredão ao ar, deitou brinquedos pela janela fora. Depois acalmou-se
e começou a reflectir.
Não desistiu de ver televisão mas, quando a ligava e começava
a sentir a comichão no estômago, a ideia fixa, o coração a bater mais
rápido, isto é, a vontade de possuir tudo, ela via a Fada Publicidade,
lá no seu canto, a rir e a esfregar as mãos de contente:
— Sonha, minha filha, sonha! Em breve serei a rainha do
mundo! Todas as crianças serão minhas!
Então, Minucha desligava a televisão e dizia muito alto:

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— Não, não, fada má! Desta vez não vais apanhar-me! O teu
UM ESQUELETO NO ARMÁRIO… brinquedo parece mágico, mas não é!
E era ela que ria à socapa, imaginando a fada verde de raiva. E

Conhecemos os nossos filhos como a palma da mão. O formato dizia para consigo:

das unhas, o recorte das orelhas, as risadas deles, os caprichos e as — De nós as duas, sou eu a mais forte!

cóleras… É natural. No fim de contas fomos nós que os “fizemos”…


No entanto, algo começa a escapar-nos desde muito cedo – pela
simples razão de que a vida, a verdadeira vida, sempre nos escapa… Sophie Carquain
Petites histoires pour devenir grand
Eles têm os seus segredos, os seus “esqueletos no armário”, as Paris, Ed. Albin Michel, 2003
suas angústias e perguntas: “Por que é que eu gosto dela e ela não (tradução e adaptação)
gosta de mim?”, “E o pai, como é que ele se sentirá lá em cima?
Estará bem, ao menos?”, “E Deus? Achas mesmo que ele existe?”
E nós, que os imaginávamos ainda na idade dos chupa-chupas,
dos escorregões, damos com eles carregados de perguntas, de
segredos. Nós, as “mães-corujas”, sentimos por vezes um assomo de
nostalgia e pensamos: “Ainda tão novo… e já vem com estas
perguntas!” Sim, é verdade.
É inútil esperarmos que ele calce 39 para o vermos interrogar-
se sobre o curso do mundo. As crianças não se deixam enganar pelos
nossos sorrisos postiços nem pelas nossas tentativas para as
protegermos do mal. Não estão ao abrigo das pequenas feridas da
existência e das questões metafísicas.
Também são picados pelas urtigas do mundo, mesmo que, a
cada dia que passa, nós, pais, tal como o Principezinho, tentemos
aplanar os nossos pequenos mundos e expurgá-los de todos os
obstáculos que possam vir a feri-los. Não nos deixemos enganar pelo
seu silêncio. Mesmo antes do cataclismo da adolescência, os nossos

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filhos não vivem em nenhum mundo cor-de-rosa. Aos 3-4 anos
começam a ter consciência da morte. Por volta dos 10, sabem que ela
é definitiva. Por isso, como falar-lhes da morte, da sexualidade, da
amizade, do dinheiro, da tristeza e da angústia, da solidão e da
camaradagem? Do divórcio e dos conflitos?
Filósofa lá no fundo de si mesma, a criança passa os dias num
local, a escola, que responde a tudo… excepto às suas interrogações.
Entre as aulas de Geografia, de Matemática ou de Formação Cívica,
não há lugar para “filosofias”! Cuidado para não sufocarmos à
nascença a centelha de filosofia que existe nela. Por vezes, temos
muita pressa em fazer das crianças pequenos adultos, cem por cento
adaptados ao mundo real, verdadeiros campeões de adaptação, que
trazem boas notas e correm do judo para as lições de violino, sempre
a sorrir (mesmo que o sorriso seja postiço).
Cuidado com aquelas pressões que, conforme escreve Pierre
Péju, “mantêm a criança no que é infantil”, para depois “a
precipitarem nos problemas da pré-adolescência, sem nunca terem
deixado aflorar as grandes questões”. E se deixássemos de a
amordaçar… E se nos esforçássemos desde o início por a abrirmos às
grandes questões?
A idade da razão é denominada pelos especialistas de “período
de latência”. É um momento muito especial. Pressupõe-se que os
nossos “ex-pequenos” tenham interiorizado os interditos. Já não
choram nem gritam a plenos pulmões. Quando muito, queixam-se de
alguma dificuldade em adormecer. Os pais respiram de alívio. Este
período abençoado, depois da fase dos “caprichos ao rubro” e antes
da fase conturbada da adolescência, decorre de forma sub-reptícia E,

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como não faz barulho, é fatalmente esquecido.
Mas não é pelo facto de a nossa “criança” ter hoje seis ou sete
anos que ela se tornou mais sossegada. Pelo contrário: de acordo
com os especialistas, a inquietação é o traço dominante deste
famoso período. Embora menos espectacular do que o dos quatro
anos. Temos de reconhecer que a escola e a sociedade contribuem
para “amordaçar” a criança. A partir da primária, tem de se dizer
adeus à fantasia, aos joguinhos e aos escorregões no recreio. E
coitados daqueles que não se põem na linha. Mas as crianças
adaptam-se a tudo. Adaptam-se ao pai que chega tarde, à mãe que
não tem tempo para lhes responder, ao ritmo escolar que não é o DIOGO E DIEGO DISCUTEM
adequado. É quase assustador, se pensarmos bem.
Não critiquemos a escola. Também nós, pais, passamos o
Os esquilos Diogo e Diego moravam perto um do outro. Eram
melhor do nosso tempo a lisonjear a criança real, a criança “solar”. E
como irmãos gémeos, embora Diogo tivesse uma cauda totalmente
que tipo de discurso é o nosso? “O que fizeste nas aulas? Arruma o
ruiva e a cauda de Diego tivesse alguns pêlos brancos. Diogo tinha
teu quarto, vai escovar os dentes (pelo menos durante três minutos),
construído a sua casa no buraco de uma nogueira e Diego tinha
come os legumes e despacha-te!” Uma espécie de “voz de síntese”,
escolhido uma aveleira.
um tudo-nada metálica, que soa como um eco longínquo e nos
Cada um tinha decorado o ninho a seu gosto e ambos
lembra afinal o que detestamos: a repetição inexorável e arcaica dos
gostavam muito de cozinhar. Um dia, Diego levou um frasco de
“deveres” da existência. Mas, e a verdadeira vida? Por que a
compota de avelãs a Diogo e este ofereceu-lhe licor de noz. Foi um
esquecemos tantas vezes?
comportamento gentil, não foi?
Sem dúvida, devido à falta de tempo. Porque é preciso andar
E, contudo, nenhum deles pensou nisso. Enquanto provava a
depressa! Porque, obcecados pelo desempenho, pelas boas notas e
compota, Diogo ia cogitando: “Estas compotas de avelã têm um
pela visibilidade das coisas, acabamos por só nos dirigirmos ao seu
sabor delicioso de madeira recém-cortada, de manteiga e de trigo.” E
lado menos bom: a criança solar, que dorme, come, trabalha e
a inveja apoderou-se dele.
aprende. E a criança lunar, o poeta que sonha, que pensa, que sofre
Enquanto sorvia o seu licor de noz, Diego resmungava:
em segredo? Muitas vezes fica esquecida. Talvez não saibamos como
“Realmente, há quem tenha tudo. Este licor de noz é

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verdadeiramente suculento! Quando penso que o Diogo pode bebê- falar com ela… Ao chegarmos a casa à noite, o que pretendemos é
-lo todas as noites!” E o seu coração encheu-se de amargura. retomar um diálogo que não teve lugar durante o dia.
A partir desse dia, cada um olhava o outro com inveja. Quando O nosso filho estava na escola, nós, no escritório. Temos de
Diego pensava no ninho soberbo de Diogo, com uma cobertura mole conversar. O que fazemos então? Recorremos a um interrogatório
de penas de avestruz, tinha vontade de amuar até ao raiar do sol. cerrado, do género: “Então, querido(a)? Como passaste o dia?
Quando Diogo pensava na cama de rede que Diego tinha fabricado, Comeste bem?” Até ao inevitável: “Tiveste boas notas?” Claro que
tinha vontade de lhe morder o nariz até fazer sangue. tudo é feito com boa intenção. Mas isto soa a interrogatório policial,
Um dia, Diego cheirou um odor delicioso de Pinhão nº 5. do género: “Nós temos meios de vos fazer falar!” De resto, os
— Cheira tão bem em tua casa — disse, sem conseguir resultados são quase sempre decepcionantes. E o nosso pequeno
esconder o descontentamento. entrevistado fecha-se no seu mutismo.
— Foi uma prenda da minha tia — respondeu Diogo, que “A solidão da criança é mais secreta do que a do adulto” diz
semicerrou os olhos para ver melhor o boné de Diego, feito de Bachelard. É verdade, senhor poeta, é tão verdade que nós, mães,
plumas de avestruz cosidas à mão. “Trá-lo de propósito para me ficamos irritadas com os segredos dos filhos. Nós que, ao chegarmos
fazer inveja”, pensou logo Diogo. a casa, gostaríamos tanto de, integralmente, “recuperar o nosso
— Que boné! — exclamou, fazendo uma careta. rebento”, de o ouvirmos contar como foi o seu dia. Só que… o
— Oh, é uma coisinha de nada — respondeu Diego, que era rebento oferece resistência. E a comunicação demora a estabelecer-
muito vaidoso. — Uma prenda da minha tia costureira. se. As crianças detestam a intromissão, a curiosidade dos adultos.
Nessa mesma noite, Diego pensou na despensa de Diogo e São exímias em escapulir-se às nossas perguntas. Fazem lembrar as
Diogo pensou no guarda-roupa de Diego. Quanto mais o tempo enguias. Uma expressão de contrariedade, um suspiro: “Chega de
passava, mais eles pensavam no que não tinham: uma colecção de perguntas”, “Deixa-me em paz”… “Está bem, desculpa”.
conchas de noz, um bocado de vaso encontrado num campo, uma É aqui que entra a história contada à hora de dormir. A história
espiga de milho para decorar a casa… A menor quinquilharia punha- cria laços entre os pais e os filhos, sobretudo numa época em que
-os verdes de inveja. Tudo o que um deles tinha, o outro também passamos o melhor do nosso tempo longe deles. Através da história
queria ter. Chegavam a brigar duramente para arrancar das mãos do contada ao deitar, não lhes falamos com todo o nosso poder de mães
outro uma casca de noz ou um pedacinho de castanha. dominadoras, mas “comungamos” com eles, neste ou naquele
Um dia, quando Diego encontrou um trevo de quatro folhas, problema. Por meio da distanciação, a história fala-lhes de um outro
Diogo pôs-se a choramingar: o trevo era seu, fazia parte do seu eu: uma personagem que não os angustia e que os encoraja a falar.

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Sente o seu filho triste, deprimido? Comece por: “Era uma vez”, uma território. E quando Diogo apanhou um ramo de papoilas, Diego
distanciação no tempo que o “desangustia” e desinibe. Porque a bateu à porta do amigo para lhe pedir metade do ramo. Diego teve
personagem, o coelhinho, o pequeno ratinho, o principezinho ou a ciúmes do aniversário de Diogo e Diogo teve ciúmes da tosse
fada, é ele e um outro. convulsa de Diego. Diogo teve ciúmes da varicela de Diego e Diego
Quando ele ouvir a história da princesinha que se tinha fechado teve ciúmes da constipação de Diogo.
na sua torre, de tão triste que estava, ficará tranquilo – era tão longe, Os ciúmes e a inveja davam-lhes dores de barriga. “Alguém me
foi há tanto tempo – e a distância faz desaparecer a angústia. quer mal”, pensava Diego, “a floresta já não gosta tanto de mim, já
Perante um diálogo mais difícil, a história permite recolher não me dá tantas coisas como outrora”.
confidências de uma forma mais eficaz do que se se abordar os Acabaram por fazer tanta algazarra que todos os vizinhos do
assuntos de uma maneira frontal. Recebe-se mais quando “se dá” do bosque (as rolas, as andorinhas, as pombas e os ratos) se reuniram
que quando se pretende tirar à força. para trocar impressões.
Da boca do adulto ao ouvido da criança, os contos são as — Não estamos para aturar as vossas disputas!
primeiras confidências filosóficas. Pela primeira vez, a criança vive a — Falem mais baixo!
experiência do universal: ultrapassa as fronteiras estreitas do “eu”, o — Já ninguém se entende!
gueto do “ego”… As histórias criam uma ponte entre nós e os outros Toda esta barulheira acabou por chegar aos ouvidos da Grande
e fazem-nos sair do casulo do nosso pequeno mundo. Eis a palavra- Coruja, que se deslocou pessoalmente para avaliar a disputa.
-chave: emoção. E também aquela que diferencia a história do Ouviu então as queixas dos dois esquilos.
discurso moralizador. Não se imagina a que ponto o livro é capaz de — O ninho dele é mais macio do que o meu!
transmitir emoção. À medida que as crianças o vão folheando, — O dele é maior do que o meu!
sentem a revolta da Cinderela, o medo de Branca de Neve, choram ao — Até teve a varicela!
ouvirem o que diz a menina dos fósforos (que lhes fala também de — E ele teve a tosse convulsa!
Deus e do que está para além da morte): “Satisfação imediata e — Pois, mas a varicela é melhor do que a tosse convulsa! Faz
exclusiva das nossas sensações: a imaginação expande-se, os nervos comichão, mas não dói tanto!
vibram, o coração bate apressado, a adrenalina sobe...” A Grande Coruja ria-se por detrás dos seus óculos.
As histórias falam também de subconsciente a subconsciente, — Daqui a pouco quem tem ciúmes de vocês sou eu. Vocês
e não do córtex ao neo-córtex! A emoção que as crianças sentem têm tantas coisas. E, no entanto, não estão contentes. Isso é pena!
diante da leitura de uma história abre nelas como que uma brecha…

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A Grande Coruja continuou, olhando-os através dos seus óculos Os olhos brilham, os sorrisos abrem-se, o rosto ilumina-se, o queixo
enormes: treme. “Algo se passa”, diz o poeta, “alguma coisa oscila”. Porque a
— Se eu fosse Diego, gostaria de ser Diego. E se fosse Diogo, emoção é um inevitável vector de ideias, de longe bem mais eficaz do
gostaria de ser Diogo. Se fosse a ti, Diego, teria orgulho em ter um que qualquer discurso racional!
amigo como o Diogo. E tu, Diogo, devias estar contente por teres um E, de repente, nesta íntima “oscilação” do ser, sentimo-nos
amigo que faz compota de avelãs tão bem! Vou ensinar-vos como prontos para compreender tudo: as pequenas feridas, as questões
uma pessoa aprende a gostar ainda mais de outra. Diego, tu vais dar sérias, os sofrimentos dos outros. E os nossos. A emoção é uma
compota de avelãs ao Diogo e vais fazer para ele um boné de plumas. extraordinária chave de acesso às ideias. Aos 5,6,7 anos, o nosso filho
Quanto a ti, Diogo, vais fazer licor de noz para o Diego e algumas deixa progressivamente a sua babete, o seu paninho de estimação, o
almofadas para ele decorar o seu pequeno ninho. Sugiro ainda que, seu velho ursinho de pelúcia. Deixa o mundo do amorzinho exclusivo,
de vez em quando, troquem de casa. Terão assim a impressão de ir para entrar no dos amorzinhos múltiplos, por outras palavras, no da
de férias. filosofia, no da história, no dos outros. Mas não terão também as
E foi o que aconteceu. Diego fez um boné de plumas soberbo histórias a função de permitir uma transição?
para o seu amigo Diogo usar no Inverno e Diogo fez pequenas Vejam os mais pequenos, que chegam orgulhosamente ao
almofadas cheias de lasquinhas de avelã trituradas para Diego. De infantário ou à escola, de manhã, trazendo na mão um pequeno livro,
vez em quando, durante o fim-de-semana, trocavam de casa, só para uma história que lhes fala deles próprios, uma história com que,
sentirem como as suas próprias casas eram confortáveis. Diogo e durante todo o dia, se deleitarão – mesmo sem saberem ler. E
Diego tornaram-se os melhores amigos do mundo. vasculhemos também as nossas sacolas: há sempre um velho livro,
de folhas já gastas, ao lado de uma fotografia de férias ou de um
pequeno caderno. A história da noite tem também uma função
Sophie Carquain terapêutica. Saboreamo-la como uma guloseima, antes de
Cent histoires du soir adormecermos. Como uma luz de presença no corredor, que nos une
Paris, Ed. Marabout, 2000
(tradução e adaptação) aos outros antes do mergulho na noite.
O ritual das histórias da noite é um momento de magia
roubado à vida. Instalamo-nos confortavelmente, esquecemos tudo.
As discussões, as pequenas feridas, as censuras, os dentes não
lavados. Pais e filhos vêem-se pouco? É preciso manter vivo o ritual

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da história contada antes de adormecer: minimum vital, pausa
indispensável. Lemos à noite: a criança sente-se protegida por AOS PAIS E EDUCADORES
múltiplos rituais. Daí as crises de lágrimas quando se vê privada da
história da noite – é pior do que ser privada de sobremesa.
Adoptamos rituais relacionados com a história, procurando criar um Sem saber como, pode ter exacerbado, ou exacerbar, a inveja
ambiente apropriado: apaga-se a luz, acende-se uma pequena entre os seus filhos. Evite fazer deles uns clones. Não os vista de igual
lâmpada, faz-se silêncio. e realce as diferenças entre eles, já que é nas semelhanças que a
Apanhamos o tom, modificando a voz. Uma voz muito grossa, inveja se cristaliza. Se acha que são ambos excelentes na natação ou
uma muito fininha para os ratinhos, etc. Sobretudo, deixar aflorar a na pintura, cada um deles tentará sempre exceder o desempenho do
emoção… Em suma: é preciso empenho. Já repararam que, quando outro. Mas se sublinhar que o Tiago é excelente em xadrez e que a
lêem uma história “em cima do joelho”, os nossos filhos podem pedir Ágata é óptima em música, não os situará no mesmo plano, antes
outra, e depois outra? Mas, quando ficam realmente satisfeitos, não
ajudará a confirmar a individualidade de cada um deles.
costumam pedir mais… A história é a guloseima, antes da longa
Evite falar deles no plural: “Vocês são insuportáveis!”, “São
separação da noite. É como uma lampadazinha que a criança poderá
sempre os mesmos!”. Prefira: “Benjamim, tu que és muito forte, vem
meter debaixo do travesseiro. Uma ideia, uma imagem para afagar,
ajudar-me.” Privilegie os momentos que passa com cada um. À noite,
para chuchar, para remexer em todos os sentidos. É o que os bebés
não hesite em dizer-lhes, separadamente, o quão gosta deles.
pressentem quando se lhes dá um livro, que eles viram de pernas
Mas não tente estar sempre a compensá-los. Se o mais velho
para o ar vezes sem conta! “Sim”, dizem na sua linguagem. “Há
alguma coisa de essencial e de misterioso. O livro é mágico.” fizer anos, o mais novo tem de perceber que não vai ter prenda,

Lendo uma história aos nossos filhos, fornecemos-lhes uma porque a sua prenda é-lhe dada no seu aniversário.
mão cheia de pedrinhas brancas – que os pássaros não comerão. Seja discreto. Não tente ser sempre o centro dos seus jogos e
Levá-las-ão consigo, ao longo do caminho, rumo à floresta obscura. atenções. Deixe-os viver a vida como irmão e irmã. Isso ajudá-los-á a
Perdidos no escuro, assolados de perguntas, dúvidas e angústias, entenderem-se melhor.
saberão desenvencilhar-se. E tirar proveito delas. Os dois amigos que são como irmãos têm cada um a impressão
de ser menos mimado. Diga ao seu filho que o coração das mães é
Sophie Carquain
Petites histoires pour devenir grand elástico e que consegue dar a mesma quantidade de amor a uma,
Paris, Albin Michel, 2003
(excertos adaptados)
duas, três, dez ou doze crianças.

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A Grande Coruja propõe uma solução: oferecer-se coisas
diferentes, ajudar-se mutuamente, tirar partido daquilo que o outro
faz. Quando se é irmão ou irmã, ou irmãos, o melhor a fazer é
emprestar coisas mutuamente, ajudar-se e amar-se. Pergunte-lhe se
não acha que, quando estamos em guerra, perdemos sempre.

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A HISTÓRIA DO RAPAZ ALTO E TÍMIDO
COMEÇAR A VIDA COM O PÉ ESQUERDO
Era uma vez, numa escola feita de cartão, um rapaz alto a
Às 16h40, Nuno chegou da escola. A primeira coisa que fez foi quem chamavam “o desajeitado”. Chegava todos os dias à escola
atirar com a parka para cima da cama, pegar no frasco de Nutella, e dobrado, amuado, amarrotado. Não dobrado de riso, antes dobrado
sentar-se ao computador. Queria experimentar um jogo de vídeo como uma folha de papel. Diziam-lhe:
super-infernal, no qual uns afia-lápis com bocas sanguinolentas — Desdobra-te! Vais acabar por ter dores de barriga.
perseguiam uns pobres lápis aterrorizados. Ou então:
Nuno dedilhava o computador com a mão direita, enquanto ia — Que tímido que é este desajeitado!
enfiando a mão esquerda no frasco de Nutella. Sentia-se feliz. O O rapaz alto de papel só ouvia comentários sobre a sua
mesmo não se podia dizer dos seus pés que, debaixo da mesa, timidez. Também lhe chamavam “simplório”, “fracote”, “mãos de
tremiam enervados. cebola”, “menino da mãe”… Já não sabia ser outra coisa. Quando
— Estou farto até às unhas destas histórias de lápis! — ouvimos “Que mau que ele é”, só temos vontade de ser maus.
queixava-se o pé esquerdo que estava sempre de mau humor. Quando ouvimos “Que medroso que ele é”, coramos até à raíz dos
O direito perguntou: cabelos. Nunca ninguém o chamara pelo nome. Diziam sempre:
— Ele não tinha aula de ginástica hoje? “Olha, lá vem o desajeitado” ou “Olá, acanhado”.
— Sua Excelência estava um pouco constipada e foi Como é que uma pessoa se desdobra? Ele bem tinha tentado,
dispensada — respondeu o nariz tapado. mas a sua coluna vertebral era demasiado pesada. Mesmo que
sejamos feitos de papel, é difícil. Quem lhe dera fazer como os

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outros. Aqueles que parecem frisos, porque dão as mãos e ficam — Ai, que azar! — queixaram-se as duas pernas, ao verem-se
todos coladinhos. Aqueles que sorriem e se desdobram como assim privadas da oportunidade de praticar desporto. — Queríamos
pedacinhos leves de papel, que voam e volteiam com o vento. tanto esticar-nos um pouco…
Mas continuava dobrado. Na aula de Matemática, dobrava-se De segunda a domingo, Nuno estava sempre sentado ao
em dezoito, na aula de Português em envelope. Durante o recreio, computador. Mesmo que os pais ou os colegas lhe dissessem: “Nuno,
não passava de um quadradinho minúsculo, franzido em noventa e vem brincar, está tão bom tempo! Vamos jogar uma partidinha de
oito partes. Quando tinha vontade de rir, levantava-se um bocadinho, futebol?”, a resposta era sempre a mesma:
mas esse movimento só durava três segundos. Um dia, alguém disse- — Tenho muita pena, mas ainda me falta uma corridinha de
-lhe: afia-lápis!
— Ó desajeitado! Tenho a certeza de que consegues O pai suspirava, pois achava que ele e o filho viviam mesmo em
transformar-te em chapéu. planetas diferentes. Erguia o indicador e dizia:
O rapaz corou e dobrou-se ainda mais sobre si mesmo. Mas — Quando tinha a tua idade, fartava-me de dar pontapés na
aconteceu que Lili, a despachada, ia a passar naquele momento. A bola! Que interesse pode ter esse jogo?
rapariga insistiu: Nuno, contudo, sentia uma tal paixão pelo jogo que nunca
— Anda lá, transforma-te em chapéu. O que esperas para te dava um pontapé numa bola ou fazia uma corridinha. A não ser para
transformares em tricórnio? Mostra um pouco de coragem… apanhar o autocarro de regresso a casa, onde o esperava o seu
Surpreendido, o rapaz tentou. Desdobrou um braço, depois o adorado jogo, que tanto enervava os seus pés.
outro e, de repente, tinha-se transformado em chapéu de papel. À noite, o cérebro, que gostava de arbitrar conflitos, pedia
— Isso é espectacular! — comentou Lili, a despachada. — calma:
Tenta agora transformar-te em barco. — Então, meus filhos, tenham calma.
— Um barco? Nada de mais simples! — disse o tímido, que O pé direito retrucava:
esticou os braços o mais que pôde e fez da cabeça a proa de um — Mas nós sentimo-nos uns inúteis, não servimos para nada.
navio. — É incrível! — exclamou o rapaz. — Sinto-me tão bem a fazer Além disso, como estamos sempre um em cima do outro debaixo da
de navio. secretária, aborrecemo-nos e discutimos constantemente.
A rapariga despachada aplaudiu. E o esquerdo acrescentava:
— Estás a ver? És capaz de ser bem mais do que tímido.
O rapaz agradeceu-lhe e disse:

122 10
— Sem falar que estamos enfiados numas sapatilhas que — Sinto que posso transformar-me numa tigela, numa
cheiram a bacalhau seco. Ainda vamos morrer abafados. Gostávamos cambalhota, numa banheira, num navio pirata, num pontapé no
tanto de sentir umas meiazinhas macias… traseiro, e em mil e uma outras coisas.
O cérebro consolou-os: Nessa noite, o desajeitado regressou a casa todo desdobrado.
— Fiquem sabendo que não são os únicos. Os pés do Luís, da Como a mãe ficou feliz!
Ágata, da Armanda e do Manuel queixam-se do mesmo.
A irritação apoderou-se das barrigas das pernas:
— Nós também fomos feitas para correr. Não somos uns Sophie Carquain
míseros lápis! Dantes andávamos mais. Agora, os meninos vão para a Cent histoires du soir
Paris, Ed. Marabout, 2000
escola de carro e nós não fazemos exercício nenhum! (tradução e adaptação)
O cérebro avisou:
— Desconfiem dos “dantes”. Dantes também havia
dinossauros que não vos deixavam sair das cavernas. E não havia
tantos desportos para as crianças praticarem. Hoje podemos correr
na floresta sem encontrar animais assustadores, inscrever-nos nas
aulas de ténis, nadar na piscina…
— Oh, quem me dera esticar-me na água! — disse a coluna. —
Todas as tardes aguento com dez quilos de livros, cadernos e lápis. O
médico disse que, se continuasse assim, estaria dobrada em duas aos
30 anos. E o pior é que, à força de tanto mastigarem batatas fritas e
chocolates, os miúdos estão a ficar com barriga… O que vou fazer se
tiver de transportar uma pasta enorme às costas e um bidão à frente?
— Calem-se todos! — ordenou o cérebro, que já estava farto
de tantos queixumes. — A minha vida não é um mar de rosas.
Obrigam-me a perseguir lápis durante horas e, à noite, tenho
pesadelos! Bem que gostava de arejar um pouco, mas nem sequer

11 123
consigo concentrar-me numa torneira quando o Nuno desliga o ecrã.
AOS PAIS E EDUCADORES Só me apetece ver-vos a dar pontapés na bola!
As pernas disseram então:
— Gostávamos de dar um passeio pela floresta.
Não chame “tímido” ao seu filho. Nunca diga diante dele: “O — Eu gostava de arejar os neurónios — disse o cérebro.
meu filho é extremamente tímido.” O seu filho poderia convencer-se O nariz tapado desejou:
de que é realmente tímido e tentar ajustar-se à imagem que tem — Quem me dera respirar o ar puro dos pinheiros em vez deste
dele. A criança, que ainda é muito vulnerável em termos de chulé.
identidade, tenta tornar-se aquilo que os outros pensam dela. — Nós queríamos não fazer nada — disseram os dedos, que

Se o seu filho continua “agarrado às saias da mãe” e não sai estavam cansados de matraquear o teclado do computador.

com os amigos, talvez o pai possa falar um pouco com ele, sobretudo Todos declararam:
— Abaixo as consolas e os jogos!
se se trata de um rapaz. Pode acontecer que pais muito solícitos
O cérebro interveio:
reforcem a timidez e a inibição da criança. Se fizermos tudo por eles,
— Calma, meus filhos. Uma vez que o Nuno não nos ouve,
de que forma podem os nossos filhos desenvolver a sua auto-
vamos duplicar os nossos sinais de alarme e de cansaço. Vão ver o
-confiança?
que vai acontecer…
Talvez a falta de confiança do seu filho derive de uma
Uma vez que o Nuno passava tempo demais ao computador,
insegurança afectiva. Talvez ele receie não ser amado
as pernas dele fizeram-no sentir um duplo formigueiro, as costas
incondicionalmente pelos pais. Talvez tenha ouvido comentários começaram ainda mais a contrair-se, os olhos a lacrimejar sem parar,
como: “Se continuares assim, deixo de gostar de ti.” “Se te tornares e os ouvidos ficaram vermelhos que nem lagostins. O cérebro
insuportável, mando-te para um colégio interno”. começou a cantar o hino nacional em falsete.
Pode ainda acontecer que pais muito dinâmicos, exigentes e Agora, pouco tempo depois de começar a jogar, o rapaz ficava
dotados, aumentem a timidez dos filhos. uma pilha de nervos e sentia necessidade de sair, de mexer. Começou
então a pedir:
Fale com ele! — Pai, queres jogar futebol comigo?
— Mãe, inscreves-me no ténis outra vez?
Pergunte-lhe:
Ou sugeria:
• “Tens medo dos outros?”

124 12
— E se fossemos passear pela floresta no domingo? • “Será que gostarias de ir a casa das pessoas, de te abrir, de
Com estas transformações, o Nuno começou a sentir-se muito comunicar, mas, se o fizeres, pensas que vais ser rejeitado?”
melhor e isso deu-lhe forças redobradas para continuar a fazer • “Tens medo do que possam pensar ou dizer de ti? Sabes,
desporto. Escusado será dizer que o pé esquerdo recuperou o bom filho, não podemos agradar a toda a gente.”
humor.
• “Pensas, às vezes, que não vais conseguir fazer determinada
coisa, que não és suficientemente bom?”

Sophie Carquain A verdade é que muitos dos nossos fracassos têm origem na
Petites histoires pour devenir grand (2)
Paris, Albin Michel, 2005 nossa falta de confiança, não na nossa falta de capacidades.
(tradução e adaptação)

13 125
AOS PAIS E EDUCADORES (1)

Uma geração de sedentários

Presas entre o telecomando e a consola de jogos, as nossas


crianças fazem parte de uma geração de pequenos sedentários. Não
devemos demonizar os jogos de vídeo, mas temos de estar atentos à
forma como os nossos filhos os encaram. Os rapazes, sobretudo,
fazem-no com uma tal paixão que até se esquecem de comer! É
necessário motivá-los: inscrevê-los em actividades desportivas uma
ou duas vezes por semana pode ser uma hipótese.
O verdadeiro desporto começa aos 6 anos. Nesta idade, a
criança domina melhor o seu esquema corporal, tem uma melhor
sincronização. A partir dos 8 anos, com a aquisição do sentido de
disciplina, está pronta para praticar qualquer actividade desportiva.

O desporto é bom para…

• Consolidar os ossos: o esqueleto recupera durante o período


de repouso que se segue ao esforço físico. Reconstitui-se de
forma mais forte, para se preparar para futuros e maiores
esforços. Os “pilares” tornam-se mais espessos. Antes dos 20
anos, idade em que os ossos se calcificam, o exercício físico
(praticado durante uma meia hora, duas/três vezes por
semana) previne as fracturas e a osteoporose.

14
• Modelar as articulações: a falta de exercício físico pode inibir
o crescimento das articulações. Alguns adolescentes podem
ter problemas recorrentes no joelho, como luxação da rótula,
por exemplo.
• Reforçar a coluna: ao correr e saltar, trabalhamos os
músculos da coluna e das costas. Uma criança que pratica
desporto dobra-se menos sobre a mesa.
• Limitar o risco da obesidade: o desporto favorece a
combustão espontânea das gorduras, e limita as vezes que a
criança se senta diante da televisão a comer batatas fritas!
A CAIXA QUE FAZIA DESAPARECER
Um desporto praticado com regularidade habitua o corpo a
preparar-se para os esforços e a ser mais flexível. Uma hora
MIMI ALCACHOFRA
de jogging vale 500 calorias.
Não procuremos imitar demasiado os outros ou escondermo-nos por detrás
• Aprender a trabalhar: a prática de um desporto auxilia a
deles. Mais vale afirmarmo-nos e sermos nós próprios.
visão, a audição, a memória… Segundo certos estudos, as
crianças que praticam um desporto com regularidade têm Mimi Alcachofra era uma pequena ratinha doce, muito terna,
melhores resultados escolares que as outras. com a ponta do nariz cor-de-rosa vivo. Toda a gente gostava dela,

Quem faz o quê? sem saber muito bem porquê. Aliás, quando os adultos a
encontravam na rua, com o olhar gentilmente baixo, com o seu
Um hiperactivo: desporto de combate (judo, karaté, kung-
vestidinho cor-de-rosa pelo joelho e as suas sandálias rosa, diziam ao
-fu…). O judo desenvolve o sentido dos outros, o respeito pelas seu filhote com um ar reprovador:
regras. ― Olha para a Mimizita Alcachofra, como ela é meiga!
Um tímido: desporto de bola (basquete, andebol, futebol), E acrescentavam, com um ar de censura:
com predominância do basquete, que exige menos contacto físico. ― É muitíssimo meiga. Não é como alguns ratinhos…
Um gorduchinho: a natação é excelente, porque ajuda-o a Isto queria dizer “Sê como a Mimi Alcachofra e serás melhor.”
esquecer o peso do corpo dentro da água.

15 127
Quando ouvia estes elogios, Mimi pestanejava e ficava um
pouco mais rosa do que antes. Deve dizer-se que Mimi não dizia lá AOS PAIS E EDUCADORES (2)
muitas coisas: ouvia sem falar, prestando sempre muita atenção aos
outros. Um pouco como uma mãe, que nos olha em silêncio e
aplaude com os olhos! Mas havia mais… De tanto ouvir os outros, A partir dos 2 anos, as crianças estão coladas ao ecrã. Será por
Mimi desenvolveu um verdadeiro talento de imitadora. efeito hipnótico sobre o nervo óptico, como dizem os neurologistas,
Quando alguém se punha diante dela a falar e a pestanejar, ela ou porque se identificam com os seus heróis, como dizem os
também pestanejava. Quando Joaninha trocava as letras, Mimi psicólogos? A necessidade de imagens aumenta com a idade. Entre
respondia com as letras trocadas. Quando o Bispo João falava, com a os 4 e os 10 anos, a criança passa duas horas e catorze minutos diante
sua voz grossa, ela respondia-lhe engrossando a sua. Quando a Rata da televisão e 48% das crianças escolhem sozinhas os seus programas
Susana gritava, com a sua voz de cana rachada, Mimi respondia-lhe à quarta de manhã. Um outro dado preocupante: mais de 30% das
de igual forma.
crianças têm uma televisão no seu quarto.
Quando um pequeno rato balançava os pés, ela também se
balanceava, sem se aperceber disso. Que magia! Mimi pegava na voz A dependência

dos outros, imitava-lhes os gestos e tornava-se como eles, sem Quanto mais televisão vêem, mais as crianças se arriscam a
grande esforço. Tinha também um talento incrível para falar com aborrecer-se sem ela. É que a televisão propõe um imaginário
pronúncia suíça, holandesa, alemã, árabe ou japonesa. “pronto-a-usar”, que substitui a verdadeira imaginação da criança.
Um dia, Mimi pôs-se a imitar a professora na perfeição,
Ou seja, cria uma sensação de “vazio interior” e de dependência.
mexendo as orelhas, rodando um pedaço de giz entre os dedos,
Quando a desligamos, ficamos mais sós do que estávamos.
fazendo rir os colegas. Quando era convidada, diziam-lhe: “Vá lá,
Mimi, agora imita o Sr. Godofredo, o professor de desporto.” Então, Os limites

ela dava chutos no ar, levantava o dedo indicador com ar ameaçador, • Nunca se deve permitir que haja televisão no quarto ou outro
assobiava, com as sobrancelhas em forma de acento circunflexo e tipo de ecrã.
aspecto furioso. Durante esses momentos, ela tornava-se o Sr.
• Nunca se deve deixar ver televisão de manhã, antes de ir para
Godofredo. E os outros riam à gargalhada.
a escola, porque desconcentra. Também não se deve ver
Mas, se alguém perguntasse a Mimi Alcachofra: “Diz lá, Mimi, o
televisão antes de fazer os deveres.
que te faz rir com vontade?” ou “O que pensas disto?”, ela ficaria
• Escolhem-se os programas em conjunto.

128 16
• Usa-se e abusa-se do gravador. Gravam-se os desenhos muito embaraçada. Dobrar-se-ia toda por dentro, como faz um
animados favoritos dele para ver depois dos deveres. contorcionista, para que deixem de o ver. Além disso, Mimi tinha

• Nada de televisão-tapete: o ecrã não pode estar aceso outro truque de magia para passar despercebida. Tinha inventado,

durante 24 horas. como nos espectáculos, uma “caixa de desaparecer” invisível: aquela
famosa caixa na qual o mágico fecha alguém e, cinco minutos depois,
• Incentivar a criança a diversificar as suas actividades: leitura,
já não há lá ninguém.
jogos de construção. O imaginário desenvolve-se quando
A “caixa que fazia desaparecer” estava no interior de si
inventamos jogos, quando sonhamos…
mesma. Bastava que se concentrasse e tornava-se invisível. A caixa
• Incentivar a criança a estar com outras crianças.
que desaparecia era muito útil nos dias em que Mimi se aborrecia
• A partir dos 6 anos, encorajamo-la a ser ela a limitar “as horas imenso, durante os almoços, quando ia à missa, e quando não podia
de televisão”. mexer em nada.

As consolas de jogos Quando se aborrecia, dizia: “Abracadabra, buraco de cabra!” E


então, a Mimi que se via, com o seu nariz cor-de-rosa, os grandes
Por que razão gostam eles tanto delas? A criança é passiva e
olhos cinzentos, era um fantasma da verdadeira Mimi. Às vezes,
dependente em relação ao mundo exterior. Quando joga, sente-se
escutava: “Mimi!!! Estás a ouvir-me? Onde estás, Mimi?”, como se
activa e vê de imediato as suas ideias traduzidas por imagens. Daí a fosse um eco, vindo das profundezas do seu ser.
sensação de poder que experimenta… Como reconhecemos uma Mas, depois, era preciso sair da caixa que desaparecia para
criança dependente? Quando ela começa a cortar laços com o mundo regressar ao mundo dos seres vivos. Quando ninguém vinha dar-lhe a
que a rodeia. Triste e ensimesmada, erra pela casa como uma alma mão, ou tirá-la da caixa que desaparecia, ela podia ficar longos
penada, não tem amigos… minutos assim… até que visse um espelho que lhe confirmasse que
As raparigas sofrem raramente deste tipo de problema, porque ainda existia! Então, ao ver o seu reflexo, subia lentamente à
têm uma evolução linguística e sensorial mais rápida do que a dos superfície. E assim regressava para junto dos outros.

rapazes e refazem o mundo a partir da sua Barbie. Os rapazes Uma vez, num daqueles dias de tédio, passou-se algo muito
curioso. Mimi Alcachofra encontrava-se no restaurante para o
precisam de acção e os jogos permitem-lhes ver sobre o ecrã o efeito
baptizado de Luís Júnior, o seu primito de 3 meses. Quando serviram
dos seus actos e dos seus gestos. Isso valoriza-os aos seus próprios
a refeição, Mimi verificou pelo canto do olho, no espelho, que tudo
olhos.

17 129
estava bem, que se mantinha lá. Ninguém lhe prestava atenção, • Desde a compra do jogo que se devem criar limites. O jogo
como já era costume. deve estar limitado a certas horas do dia: nunca de manhã,
― É muito, muito bom, ó meu Deus, como é bom! Tu não antes da escola, e nunca antes dos deveres. Há pais que só
achas, Rosita? E tu, avô João? E tu, primo Alberto? Que delícia esta permitem o jogo às quartas e aos fins-de-semana.
tarte de três queijos!
• Dos 6 aos 8 anos, só podem jogar meia hora por dia. A partir
Mas ninguém se dirigia a Mimi. Esta olhou em frente, mas o
dos 10 anos podem jogar uma hora. Mais tarde, se forem
espelho pregou-lhe uma partida: o seu rosto não estava nítido, não
educados desta forma, serão eles mesmos que se darão
conseguia distingui-lo na imagem. Os contornos estavam desfocados
conta dos seus limites.
e tremeluzentes – como quando se olha através de lágrimas.
• Ponha um despertador a tocar para avisar do fim do jogo.
Então, Mimi teve medo. Talvez tivesse entrado demasiado
fundo no seu “buraco de rato”. Iria desaparecer? Sentiu que estava a • Não desligue o aparelho bruscamente; previna-o: “Vamos

cair num grande buraco negro. Como se o fundo da sua “caixa que jantar dentro de dez minutos.”
faz desaparecer” tivesse rompido, e ela caísse, caísse, e voltasse a • Entre os 5 e os 6 anos, temos de os incentivar com frases do
cair… tipo: “Os fabricantes fizeram tudo para que não possas
Olhava para todos: o avô Quim, o avô João, a tia Ana, e cada apagar a consola. Tenta ver se és mais forte do que eles.” Ou
um tinha um rosto para olhar, cada um sorria ao outro, como num “Se fores capaz de desligar sozinho o Game-Boy, isso significa
espelho. Quanto ao bebé, parecia falar com o biberão. Mas a ela que és mais forte do que o Super-Homem.”
ninguém sorria, com ela ninguém falava. Existiria ainda? Concentrou-
-se, esticou-se no seu interior, como fazem os contorcionistas no
Algumas frases-chave
circo, quando terminam o seu número de ginástica, e saiu
lentamente, muito lentamente, músculo após músculo, da caixa que • Quando ficamos demasiado tempo diante da televisão, o
fazia desaparecer. cérebro adormece e o teu corpo enferruja. Ficamos incapazes
Então, respirou fundo e gritou, com gestos largos de tragédia: de pensar e de nos mover.
― É mau! É asqueroso! É horrível!
• A televisão faz muito barulho. Quando a desligamos,
Estava completamente distendida, o que lhe dava uma voz
podemos desfrutar do diálogo e do silêncio.
forte – uma voz de estentor.
• Um livro ajuda-nos a sentir menos sós. A televisão não.
― SOU MIMI ALCACHOFRA, E NÃO QUERO DESAPARECER!
• Não é a televisão que nos ajuda a fazer amigos.

130 18
Ergueram-se os talheres e pairou um enorme silêncio. De
repente, todos os rostos se voltaram para ela! Até Luís Júnior deixou
de chorar. O avô João quase se entalava a engolir um pedaço da tarte
de três queijos. A mãe bem tentava conter Mimi, mas esta gritava
bem alto:
― NÃO SOU MEIGA! NÃO SOU ASSIM TÃO BOA DE ROER! NÃO
SOU COR-DE-ROSA NO MEU ÍNTIMO! ESTOU FARTA! FARTA!
Olhou o espelho de relance: à medida que falava, definiam-se
os contornos, reaparecia o reflexo. Berrou de novo:

A GREVE DOS LEGUMES ― BOM APETITE PARA TODA A GENTE!


E voltou a pegar no talher.
― B-b-bom ape-ti-te, Mimi ― gaguejaram os outros,
Esta história passou-se há centenas de milhares de anos,
absolutamente surpreendidos.
quando não havia electricidade, nem televisão, nem consolas de
Mimi fez, assim, a primeira “afirmação de si própria”. De
jogos, nem computadores. Em suma, não havia nada.
tempos a tempos, ser-lhe-á ainda necessário gritar para dizer aos
As crianças de então eram muito diferentes de nós, mas tinham
outros que existe!
uma coisa em comum connosco: detestavam legumes! Como vês, há
Na família, contou-se, durante algum tempo, esta história, e
coisas que não mudam: o amor dos pais, as discussões entre irmãos e
rezava-se para que Mimi Alcachofra não ficasse louca. Mas Mimi não
irmãs, e a guerra das crianças contra os legumes. Sempre que se lhes
se importava: tinha gasto, simplesmente, um pouco mais de tempo
dava sopa, choramingavam. Quando lhes cozinhavam feijão verde,
do que os outros para se afirmar. Tomou a decisão de que nunca
gritavam por socorro. Os legumes estavam fartos.
mais deixaria que fossem os outros a decidir por ela. Sabia dizer:
Numa noite de Inverno, na qual as crianças se tinham portado
― Gosto de cebolas, detesto chocolate, não gosto de teatro,
particularmente mal com eles, os legumes ficaram muito zangados e
mas adoro ópera. Se não compreendem, não faz mal.
tristes e resolveram fazer uma reunião. Afinal de contas, ninguém
Sabia falar também dos seus desgostos de amor e não se
gosta que digam mal de si, que digam que não se presta.
limitava a ouvir. Era sempre muito meiga, mais nunca mais foi “fácil
O chefe das cenouras declarou:
de roer”, porque ninguém se deve deixar roer pelos outros.
— Isto não pode continuar!

19 131
Mais tarde, Mimi Alcachofra tornou-se célebre pelos seus dons — Estou farto! — gemeu o alho francês. — Quando alguém
de imitadora. Mas só o era durante algumas horas por dia. O resto do fala de mim, as crianças fazem logo caretas.
tempo, era Mimi e mais ninguém. — De mim só gostam no Dia das Bruxas — disse a abóbora. —
Depois, deitam-me ao balde do lixo, sem dó nem piedade.
— Se for frita ou gratinada, ainda me suportam — confessou a
Sophie Carquain abóbora-menina. — Senão, preferem coxinhas de frango.
Petites leçons de vie. Pour l’aider à s’affirmer — Isto é um escândalo! Uma injustiça! — gritaram todos.
Paris, Ed. Albin Michel, 2008
(tradução e adaptação) Só a batata não se queixava.
— É claro que tu estás sempre satisfeita — disse o feijão verde.
— As crianças adoram batatas fritas, gratinadas, aloiradas…Mas tu
não és um legume e não lhes dás tantas vitaminas como nós. E se
fores frita, estão eles fritos, porque só lhes dás gordura!
Entretanto, a batata dizia no seu cantinho:
— Vão falando que eu não me importo. Sempre que apareço,
sou acolhida como uma estrela de cinema!
Nessa mesma noite, os legumes entraram em greve por tempo
indeterminado. Desapareceram do planeta e os frutos foram com
eles, em sinal de solidariedade.
Ficou apenas a batata. É claro que os pais aproveitaram e
fizeram dela gato-sapato: frita, cozida, assada, serviam-na de todas
as formas. As crianças estavam felizes: acabara-se a sopa de cenoura,
os espargos salteados, os tomates fatiados. Apenas tinham pena das
ervilhas, que não detestavam totalmente. Agora só havia lentilhas,
trigo, pastas e arroz.
Com os legumes, tinham desaparecido também as discussões
familiares, cheias de frases do género:
— Come a sopa!

132 20
— Acaba o prato!
— Vou contar até três! Depois… AOS PAIS E EDUCADORES
No início, as crianças ficaram felizes da vida. Mas, após algumas
semanas, passou-se algo de curioso. A Terra ficou sem cores. Até
Ajude-o a afirmar-se
parecia que tinha caído num banho de lixívia. A Natureza parecia um
filme a preto e branco. As crianças perderam o tom rosado das faces Se algumas crianças têm dificuldade em afirmar-se no seio do
e da pele, e depressa se fartaram de correr e de saltar, porque se grupo, é porque lhes falta auto-estima.
sentiam sempre cansadas. Os dentes cariados também lhes davam
muitas dores.
De onde vem a auto-estima?
Os médicos diagnosticaram falta de vitaminas, o que irritou os
pais, porque não podiam colher legumes em parte alguma. Fez-se Vem, em primeiro lugar, do amor e do olhar dos pais que,

apelo a mágicos de todo o mundo, para que encantassem os legumes desde o nascimento, provam à criança que é única, que é amada. Em
e os fizessem aparecer de novo. seguida, pelos 3-4 anos, a auto-estima é alimentada pela escola e
Os legumes, bem escondidos, escutavam as suaves melodias pelas relações com os outros. Fazer amigos, ser convidado para
que lhes entoavam e sentiam-se felizes. O coração da cenoura batia, festas de aniversário, são sinais que testemunham o interesse que se
o tomate corava, o feijão verde tremelicava, as ervilhas davam nutre pelos outros.
saltinhos. Sempre era diferente de ouvir insultos… Quanto à falta de auto-estima, descobrimo-la em algumas
Nesse mesmo dia, os legumes reapareceram. E a Terra
crianças que fazem tudo e que tudo dariam para serem amadas!
retomou as suas belas cores e o seu apetite de viver. A partir de
Crianças que se submetem muito à aprovação do olhar dos outros. A
então, as crianças compreenderam que os legumes não estão na
maior parte das crianças consegue “esquecer-se” dos demais;
Terra por acaso e que não é bom que desapareçam. As mães fizeram
absorvem-se com muita facilidade numa actividade como o desenho,
mais esforços para os tornar atraentes. Uma colher de natas frescas
a pintura…E isto torna-as encantadoras aos olhos dos outros.
na sopa, espetadas de legumes, beringelas bem fritas, ervilhas
Mas outras, muito cedo, preocupam-se com o que pensam
misturadas com toucinho, e outros truques.
Os legumes estavam fascinados, de tão bonitos e bem delas, querem ser aceites, receiam não ter bom aspecto, não usar a

apresentados que eram! marca certa, ou adoecem quando não são convidadas para a festa de
aniversário de um amigo. Algumas ainda, como Mimi Alcachofra ou a

21 133
pequenina fada, sabem desaparecer num buraco de rato e não se Hoje, os legumes já não fazem greve, porque sabem que as
fazem notar. crianças correm perigo sem as vitaminas A, B, C, D, E, F e que ficam
gordas e brancas como bolas.
E ninguém quer ficar assim, pois não?
As sete chaves da auto-estima

1. Valorize as tentativas

É preciso estimular as crianças a fazerem o que gostam, felicitá- Sophie Carquain


Petites histoires pour devenir grand (2)
-las com sinceridade, e não apenas quando têm sucesso. “Algumas Paris, Albin Michel, 2005
crianças temem tanto o fracasso que chegam a recusar participar (tradução e adaptação)

num jogo ou começar um exercício de matemática”, sublinha a


psicóloga Emmanuelle Rigon. As crianças também “crescem” com
aplausos! Isso vê-se desde a aprendizagem do andar, na qual são
incitadas a tentar ir mais longe, com a segurança que lhes advém do
olhar materno.
Fizeram uma asneira? Partiram um prato? Não ralhe logo. Mais
vale valorizar, inicialmente, a sua tentativa. Se partiu um prato a pôr a
mesa, comece por elogiá-la pelo facto de querer ajudar para, de
seguida, referir que era melhor que não tivesse partido.
Passa-se a mesma coisa quando revelam uma criatividade
generosa e desordenada… pintando as paredes da sala, por
exemplo! É preciso resistir à tentação de os repreender logo ao
regressar à noite: felicita-se… e depois corrige-se.

2. Evite a hiper-protecção

É inútil brincar à mãe-galinha. Não se trata de antecipar os


desejos… E ainda menos as suas asneiras! Atenção às nossas

134 22
pequenas frases inibidoras: “Tu vais cair”, “Não pegues nisso, vais
AOS PAIS E EDUCADORES partir”, “Basta uma vez para…”
Segundo Emmanuelle Rigon, “uma mãe demasiado protectora
não dá segurança, porque remete para a imagem de um mundo
Como dar a comer legumes a quem só gosta de batatas fritas,
muito perigoso, o que pode travar a criança nas suas explorações.”
choraminga diante da couve-flor e resmunga com a alface?
Se você “faz a papinha toda” ao seu filho, com frase do género:
A partir dos 2 anos, as crianças começam a debicar os legumes.
“Olha, vai ter com a tua colega! Ela parece simpática, dá-lhe a mão”,
Sobretudo os legumes verdes. Só gostam de batatas, pastas e arroz.
está a dizer-lhe que ele não é capaz de se desembaraçar sozinho.
Ao recusar os legumes, a criança arrisca-se a ter mais constipações
É uma espécie de armadilha de pais, idêntica à que leva
(falta de fibras) e uma menor resistência às infecções. Isto deve-se a
algumas mães a prolongar o ritual do deitar. É preciso dar espaço à
hábitos errados desde muito cedo.
criança para se acalmar, para construir a sua “bolsa de segurança”
Dê o exemplo interior. Esta “capacidade de estar só em presença da mãe”, muito

• Os pais são o melhor exemplo porque, segundo os bem descrita pelo psicanalista Winnicott, é essencial, porque permite

nutricionistas, as crianças funcionam de forma mimética em à criança reforçar a confiança em si própria e é capaz de diminuir a

família. Se nós não comermos certos legumes, dificilmente solidão.

elas os comerão. 3. Tenha um comportamento adaptado


• De vez em quando, leve-as às compras. As compras feitas
Se a auto-estima se transmite de pai para filho, não é por
pela Internet tornam a alimentação abstracta e pouco lúdica.
razões genéticas. É, antes de mais, pela atitude e pelo
• Não desista. Mesmo que o seu filho recuse os espinafres, a
comportamento. Esquecemo-nos muitas vezes de que as crianças
couve-flor, os brócolos ou a alface, dê-lhos regularmente. Os
reagem, em primeiro lugar, por mimetismo.
estudos provam que é preciso fazer pelo menos 5 tentativas
Ouvir os pais a explodir porque se perdem quando andam de
para os habituar. Mas não o force, senão ele pode
carro, ou porque não conseguem resolver alguma coisa, pode
desenvolver uma fobia.
desencorajar as crianças. Pelo contrário, ver os pais a falar num sítio
público, a convidar amigos, pode encorajar os filhos a desenvolverem

23 135
um certo à vontade social, muito mais do que os ver sentados no seu Alguns truques
canto, escondidos por detrás do jornal!
• Os legumes crus são mais apelativos do que os legumes
4. Escute a criança cozidos e são mais ricos em vitaminas.

Tenha uma atitude atenta. Quando regressa a casa à noite, • Faça um puré de batata e inclua nele 1/3 de legumes

desligue o telemóvel e escute o seu filho. Se continuar a falar com as (cenouras, feijão verde, couve-flor). Com o tempo, vá

suas amigas ao telefone, ou a consultar os seus e-mails, ele vai pensar incluindo mais legumes e menos batata.

que está a mais. • Misture tomate no arroz, cenouras no esparguete, abóbora


nas pastas frescas.
5. Não o pressione
• Faça tartes de legumes em forma de carros, de corações,
Proponha actividades interessantes, mas não os mergulhe num disponha legumes em “ramos de flores” no prato.
frenesim de bom desempenho. Também é preciso deixá-los • Proponha o mesmo alimento sob diferentes formas: peixe em
aborrecer-se, brincar sozinhos quanto possível, para que possam espetadas, legumes em pauzinhos com molho de iogurte. Os
encontrar o seu próprio modelo e caminho interior. pratos também podem ser decorados de forma criativa.
“Algumas mães, hiper-perfeccionistas, entusiastas, agitam o
• Experimente deitar iogurte em legumes cozidos e depois
guizo, falam, estimulam… não deixando os filhos sossegados nem
salpique-os com queijo. Eles adoram!
um bocadinho. Isto cria stress e insegurança”, explica Emmanuelle
• Compense com fruta enquanto a criança não se habituar.
Rigon. “Choca-me o número de crianças que, hoje em dia, sentem
Sumo de laranja de manhã, crepes de pêra ao lanche,
ansiedade no jardim-de-infância, porque “fizeram mal” um desenho,
morangos à noite.
porque “perderam”. Pretende-se criar pequenos macacos sábios e já
• Leve o seu filho consigo ao mercado a fazer compras de
estão stressados aos 3 ou 4 anos”, preocupa-se Sylvie, educadora do
legumes, fruta, carne e peixe. Não se fique pelas prateleiras
primeiro ano.
dos cereais e dos bolos.
Ora, se se é submetido a um horário de ministro desde os 3-4
anos, como poderão as crianças desenvolver as suas capacidades?
Não é bom pôr a fasquia demasiado alta, visto que as crianças terão a

136 24
impressão de serem amadas apenas pelos bons resultados – o que
prejudica a auto-estima.

6. Responda aos seus complexos

Orelhas grandes, cabelo até à boca, óculos… Os complexos,


que motivam muitos comentários no recreio da escola, podem
começar muito cedo. Como ajudá-los a continuar a gostar de si
próprios? Falando-lhes, simplesmente. Não se deve ignorar, senão os
assuntos tornam-se tabu. É preciso falar e encontrar soluções. Para
uma baixa estatura? Tomam-se as curvas de crescimento, e propõe-

AS SEREIAS DO FUNDO DA ÁGUA -se, mais tarde, fazer um exame ósseo. A um pequeno “estrábico”,
prometem-se lentes; um gordinho ficará sossegado por saber que

No fundo dos oceanos, nos lagos e nas piscinas, nos mais pode consultar um nutricionista…desde que também faça um

profundos abismos, vivem as sereias do mar. Nem sempre são gentis. esforço para não comer tantas guloseimas! As respostas científicas
Algumas são mesmo caprichosas. É o caso das sereias das piscinas, serenam as crianças.
com os seus cabelos emaranhados, as suas caudas de tubarão e as
7. Alterne prazer e obrigações
suas unhas pontiagudas.
Tente fixar limites… sem ser demasiado frustrante. Se se é
No fundo das piscinas, falta o ar e sobra o tempo. As sereias,
caprichosas, perigosas e cruéis, inventaram um jogo que as diverte demasiado rígido, a criança pensa que nada é possível – e arrisca-se a

imenso: puxar as crianças pelos pés e atraí-las. As crianças funcionam perder a confiança porque se fecha na sua concha. Arriscamo-nos a
como brinquedos para elas, sobretudo quando não sabem nadar que deixem de ouvir as nossas perguntas.
bem, não sabem vir à superfície, não têm bóia nem braçadeiras. Mas se não lhes pomos nenhum limite, sentir-se-ão perdidas,
Se este jogo as diverte, é porque é muito perigoso para as sem referências, o que é igualmente motivo de insegurança. Em
crianças e proibido no país das sereias. As mães-sereias avisam: suma, é preciso saber ser um pai sólido, não castrante, que tem uma
— As crianças não sabem viver debaixo de água. Só palavra… e que a cumpre.
conseguem sobreviver em terra, porque os seus pulmões precisam

25 137
“A auto-estima é constituída pelo amor e pela educação. Um de ar livre para respirar. Se ficarem na água sem saber nadar, sem
não funciona sem o outro,” explica o psiquiatra Christophe André. poder retomar o fôlego, caem como pedras no fundo do oceano.
“Se assim não for, os jovens serão incitados a desprezar os outros… Mas as sereias não se importam com nada disto. O tédio torna-

O que os tornará, mais cedo ou mais tarde, extremamente infelizes.” -as desobedientes. Para atraírem as crianças para o fundo da água,
cantam uma linda canção de embalar:

Algumas frases-chave Vem,


Vem ver-nos cá em baixo.
• Muito bem! Conseguiste sozinho, formidável! Sem bóias ou braçadeira
É melhor a brincadeira.
• Acho que tens mesmo jeito para o desenho, para o judo… Vem,
Vem juntar-te aos demais
• Tens um talento incomparável.
E não ouças os teus pais.
• Não conheço nenhum miúdo que tenha, como tu, tão
Estas vozes fazem as crianças sentir-se seguras e importantes.
elevado sentido de…
Dá-lhes a sensação de terem asas, de serem mais fortes do que as
• Confio em ti. Vais ser capaz.
ondas do mar ou do que a água dos rios. As crianças pensam: “Sou o
rei da água, o príncipe das ondas.” Sobretudo aquelas que não
sabem nadar bem. Põem-se a chapinhar e facilmente caem de cabeça
para baixo, tornando-se prisioneiras das sereias.
São histórias tristes, eu sei, mas tens de as conhecer para
estares em segurança na água, porque não és nem elefante-marinho
nem baleia. As sereias sussurram:
— Não ponhas a bóia; só um mergulhinho não faz mal. Podes
atravessar a piscina e vir brincar connosco.
Mas, bem no fundo de ti, uma outra voz diz:
— Não te esqueças de dizer aos teus pais que vais para a água.
Não corras perto da borda, tem cuidado com as marés, com a
corrente do rio. Se caíres na água, tenta vir à superfície e alcançar a
margem. Não ouças a canção das sereias.

138 26
Quando tiveres aprendido a nadar, talvez possas pensar nelas.
São muitos os adultos que viajam pelo fundo do mar. Mergulham
com máscaras e garrafas de oxigénio e conseguem ver anémonas,
estrelas-do-mar, peixes transparentes, e cavalos-marinhos. Mas
nunca vêem sereias porque estas escondem-se daqueles que sabem
nadar…

Sophie Carquain
Petites histoires pour devenir grand (2)
Paris, Albin Michel, 2005
(tradução e adaptação) A PEQUENA ARANHA
QUE QUERIA TUDO, TUDO, TUDO

Como todas as aranhas, Matilde, condessa de Milbocados,


tricotava excelentemente. Com as suas patas muito finas, tricotava
várias teias belas e sólidas apenas numa noite! Todas as aranhas
gostam de ter várias casas, mas Matilde era demasiado ambiciosa.
Tinha estendido as suas teias um pouco por todo o lado: por cima de
uma aveleira, no sótão, na cozinha. Mas ainda lhe faltavam seis, oito,
doze casas, sem contar com o castelo!
Na teia principal, Matilde guardava a comida: pedaços de
folhas de Outono, bocados de lã recolhidos em cachecóis, raminhos
apanhados do chão, sem falar das provisões de moscas e mosquitos
que se tinham alojado na sua despensa sem saber o que os esperava.
Matilde chegava a ter cinquenta em conserva. O que não deixa de ser
excessivo para um minúsculo estômago de aranha como era o seu.

27 139
─ Porque precisará ela de tantas coisas? ─ perguntavam-se as
primas. AOS PAIS E EDUCADORES
A sede de aquisição de Matilde não tinha sossego. Quando
uma vizinha apanhava um bocadinho de mosquito, a condessa ficava
verde de raiva. Aliás, sempre que algo se mexia no ar, Matilde Os afogamentos são a primeira causa de morte em acidentes

estendia as patas ávidas. Fazia o registo de todos os seus tesouros domésticos com crianças e jovens de idades compreendidas entre 1 e
num grande livro, mas usava tinta transparente, para que ninguém 14 anos.
pudesse lê-lo.
Como prevenir?
Não se sabe ao certo por que razão Matilde era assim. Sabia-se
que os pais tinham sido aspirados por um aspirador de marca • Comprando bóias, braçadeiras, até mesmo um fato de banho

Torpedo, num dia de limpeza de Primavera. Diz-se que nem sequer flutuante. Se tiver piscina em casa, rodeie-a de forma a que o
chorou. Partiu para outro lugar e começou a armazenar coisas inúteis seu filho não possa ultrapassar as barreiras (mínimo de 1,20 m
na teia. De vez em quando, organizava festas para as primas, mas de altura). Certifique-se de que tem material de salvamento à
fazia-o unicamente pelos presentes. Punha um pratinho de mão, e deve haver alguém em casa que tenha noções de
mosquitos e pulgões em cima da mesa e engolia os presentes com primeiros-socorros.
gula. • Estando atento: três afogamentos em quatro ocorrem por
Passado algum tempo, viu-se sozinha. Afinal, quem quereria
falta de atenção. Nunca se deixa uma criança sozinha, mesmo
visitá-la? Matilde sentia-se tão triste que começou a tecer teias
que tenha pé e mesmo que esteja bem equipada.
pretas. Eram teias sinistras. Como ninguém lhe dava amor ou carinho,
• Explicando os riscos implícitos, quando a criança já tem idade
começou a armazenar ainda mais moscas, mosquitos, pedaços de lã e
para compreender. Nunca deve tomar banho sozinha, deve
raminhos. De noite, chegava a roubar bugigangas das casas das
entrar progressivamente na água e respeitar o tempo da
vizinhas. Sabia que o seu comportamento estava errado, mas era
digestão. Também deve conhecer a sinalização das praias.
mais forte do que ela. O que ela queria era amor, mas ninguém lho
dava. • Não forçando a sua aprendizagem. Os mais gordinhos podem

Até que um dia…num momento de grande tristeza, Matilde começar por volta dos 5 anos, porque flutuam mais
apanhou na sua teia o conde de Meuquerido, um aranhiço delicioso, facilmente e têm mais resistência à água fria. Os mais
com olhos de veludo, que ficou radiante por ter sido agarrado. Ele pequenos devem começar como se fosse um jogo.

140 28
Algumas frases-chave mesmo não sabia o que fazer com as patas. E é assim que os nossos
apaixonados tiveram muitos bebés--aranha e construíram uma teia
• Tens de me avisar sempre que queres ir para a água, mesmo
de seis andares, que não era destinada a conservar mosquitos, mas a
que tenhas as tuas braçadeiras postas.
acomodar todos os bebés!
• Vês aquele objecto a afundar-se? Pode acontecer-te o
Finalmente, a aranha Matilde, radiante, começou a tricotar
mesmo.
teias cor-de-rosa e azuis. Distribuiu tudo o que tinha armazenado na
• A água e o fogo são mais fortes do que o Super-Homem. despensa, rasgou as páginas do livro escrito a tinta transparente, e
fez figurinhas de papel para todos os seus filhos. Amava e era amada.
O que mais podia ela querer?

Sophie Carquain
Cent histoires du soir
Paris, Marabout, 2000
(tradução e adaptação)

29 141
AOS PAIS E EDUCADORES

O roubo – analise a situação

Por mais insignificante que seja aquilo que o seu filho roubou, a
verdade é que roubou… E não deve fazer de conta que nada se
passou. O roubo é sempre um sintoma: a criança rouba por
frustração e compensação, porque está triste. Há crianças para as
quais é extremamente importante “ter”. Talvez esteja a passar por
uma fase de transição, talvez esteja preocupada e ansiosa. Pode
sentir-se posta de lado, pode sentir que não tem tudo o que merece.
Por volta dos 6-8 anos, a criança pode roubar por desafio, ou
para fazer parte do “grupo”.

O que fazer?

Não trate o seu filho como um ladrão, mas seja firme com ele.
“Não tens o direito de roubar! Ninguém tem! Quando somos
crianças, não vamos para a prisão por causa disso mas, quando
somos adultos, podemos ir presos!” Diga-lhe o quanto o ama e o
quanto confia nele. “Confio em ti. Sei que o fizeste só desta vez. Foi
um erro. Não és um ladrão e não és mau.”

Fale com o seu filho. Diga-lhe coisas como:

“Matilde, a pequena aranha, quer tudo para si. Fica muito


invejosa quando vê alguém que recebe alguma coisa que ela não
tem. Quer possuir tudo. Chega a roubar. Mas nunca se deve roubar!

142
Achas que ela é mesmo má? Eu não acho. Penso que o seu
coração está muito triste. Matilde acha que se tiver muitas coisas
será feliz. Mas, como já te deste conta, quando temos um brinquedo
novo, queremos logo outros a seguir…
Temos sempre vontade de ter coisas diferentes e os desejos
podem nunca mais acabar. É por isso que não interessa ter tudo.
De qualquer forma, também não poderias ter tudo, porque eu
não posso comprar-te tudo. Mas se vires alguma coisa que te agrada,
diz-me.
Anoto-a na minha agenda e posso oferecer-ta no Natal ou no
FADA--MADRINH
DRA. ROZA E A FADA HA
teu aniversário…”

Um dia, sem se saber porquê, Zara deixou de falar. Gritava,


berrava, dizia palavrões. A mãe achava que este co
comportamento
acabaria por passar, mas tal não aconteceu. Na rua,
ru as pessoas
viravam a cabeça, furiosas com a chinfrineira que
ue ela fazia. Um
homem chegou mesmo a ameaçar denunciar a mãe,
ãe, por achar que
ela maltratava a criança.
Mas a mãe de Zara nunca tinha batido na filha.
ha. Acontece que,
na vida de Zara, como na vida de muitos de nós, tinha havido
pequenas “bofetadas” que tinham deixado a sua marca.
ma Às vezes,
podem ser as discussões dos pais; outras vezes, uma
um mudança de
casa que não queríamos; pode ser a morte de uma av
avó adorada, um
acidente de carro e muitas outras coisas.
No Verão anterior, Zara tinha sabido que Joel,
oel, o seu melhor
amigo, tinha tido um acidente de carro. A mãe dissera
ra-lhe:

31 143
— O Joel continua a gostar muito de ti, mas agora adormeceu
e vai ficar no céu para sempre.
A mãe não quisera empregar a palavra “morte”, até porque a
separação dos pais era um desgosto recente para Zara. Mas as
crianças sabem a verdade. O coração da menina partiu-se em mil
pedaços e a sua cabeça deixou de poder articular frases normais.
Começou a gritar, e os gritos eram armas contra a morte, a tristeza e
a mentira. Alguns amuam, choram, ou deixam de comer. Zara gritava.
Um dia, o director da escola sugeriu à mãe:
— A sua filha não está bem. Devia levá-la à Dra. Roza.
Falava-se sempre da Dra. Roza “com um z”, como se tivessem
medo de a confundir com uma flor. Quando passeava pelos
corredores, as pessoas comentavam que ela tinha um lado de fada e
que resolvia problemas que mais ninguém conseguia. Como as fadas-
-madrinhas dos contos, que transformam o sapo em príncipe e as
criadas em princesas. Zara ouviu tudo isto e teve vontade de
conhecer a Dra. Roza. O que aconteceu numa quarta-feira de Maio.
Quando viu a senhora, Zara ficou admirada. Tinha-a imaginado
cor-de-rosa e pequenina. Mas era uma senhora normal. Vestia umas
calças e uma camisola pretas e tinha uns olhos cinzentos e doces.
Zara não gritou mas martelou a cadeira com pontapés. Uma outra
forma de dizer “não”. A Dra. Roza perguntou:
— Zara, conheces histórias de princesas?
—…
— E de fadas-madrinhas?

32
Zara ficou em silêncio, mas pensou na madrinha da Gata
Borralheira, que a tinha tornado tão bela, e na Fada dos Lilases que
explicou a Pele de Burro que ninguém casa com o pai…
— Eu conheço-as muito bem — continuou a Dra. Roza, que se
pôs a sussurrar: — Há muitos, muitos séculos, a minha tetrabisavó
era uma fada-madrinha…
Zara ergueu os olhos, nos quais se misturavam desconfiança e
interesse. Apetecia-lhe falar, mas as palavras embrulhavam-se na sua
garganta. Ficou em silêncio.
— Há muitos séculos, as fadas-madrinhas eram sempre
A HISTÓRIA DO MENINO DISTRAÍDO
convidadas para o baptizado dos futuros reis e rainhas para lhes
atribuir qualidades: inteligência, harmonia, confiança em si. Mas,
como nem tudo é cor-de-rosa na vida, aparecia sempre uma fada má “Distracção” significa estar longe de si, como se fossemos
outra pessoa…
que lhes rogava uma praga: ou as princesas picavam o dedo na roca e
Um dia, conheci um menino muito distraído. Parecia uma
morriam antes dos quinze anos, ou se transformavam em burros e
libelinha, sempre de nariz no ar. Esquecia-se de tal forma do que se
sapos. Umas vezes, os pais pediam para casar com elas; outras, elas
passava à sua volta, que até se esquecia de que tinha um corpo.
punham-se a chorar, a amuar, a gritar, a deixar de comer… Mas as
Borboleta que passasse, nuvem em forma de Pai Natal que planasse,
fadas-madrinhas estavam sempre por perto e, embora não pudessem
anular a maldição, continuavam a proteger as princesas. e ei-lo a segui-las, de nariz ao vento e de sorriso nos lábios.
Este rapaz era tão distraído que tinha comportamentos
A Dra. Roza ergueu o dedo e perguntou a Zara:
verdadeiramente estranhos. Ia contra os postes e pedia desculpa,
— Conheces o segredo das fadas-madrinhas?
— Não — respondeu a menina sem gritar, o que já não fazia há enfiava o dedo na jaula dos macacos, apresentava uma embalagem
de chocolate vazia a pensar que era o bilhete de autocarro, e
muito tempo.
esquecia o lanche, que apodrecia sempre no fundo da pasta.
— Vou revelar-to. Uma fada-madrinha não é a mãe, nem a tia,
Também ia para a escola de pijama e deixava os blusões em todo o
nem a avó, nem a amiga… Mas compreende melhor do que elas os
lado. Os pais exasperavam-se:
desgostos das crianças. E consegue ajudar só de ouvir. Nós, as
— Tens a cabeça na lua ou quê? Ainda te vais esquecer da
psicólogas, somos as descendentes das fadas-madrinhas.
cabeça um dia…

33 145
Contudo, a mãe do menino distraído tinha uma secreta Todas as quartas-feiras, Zara ia ter com a sua fada-madrinha. A
admiração pela distracção do filho e gabava-o diante das outras Dra. Roza conhecia todos os espinhos. Zara desenhava, falava,
pessoas, patetice que em nada ajudava o nosso rapaz. Pôr pasta esculpia pequenos objectos com pasta de modelar, e mil outras
dentífrica no cabelo, em vez de champô, era considerado um acto coisas que diziam o que lhe ia no coração e na cabeça. A psicóloga
“heróico”, por exemplo! O rapaz distraído sabia bem o que fazia mal escutava-a e falava-lhe daquelas “maldições” que podem, de um dia
à saúde: meter os dedos na tomada, acender fósforos, passar a para o outro, transformar-nos em sapos.
correr diante de uma porta de garagem, correr pela rua. Mas, como As sessões com a Dra. Roza duraram o tempo necessário para
estava sempre na lua, nem via o perigo. que Zara recomeçasse a sorrir e a trabalhar com gosto na escola.
Certo dia, quis ir ter com um amigo que lhe dizia adeus do Hoje, com 30 anos, já não precisa de gritar para se fazer ouvir. Fala
outro passeio; e atravessou a rua, todo contente, sem se dar conta normalmente, com uma voz doce, mas sente-se que tem dentro de si
dos automóveis que iam a passar. Um condutor travou a tempo. Por uma enorme força.
uma fracção de segundo, teria morto o rapaz. O homem saiu do Às vezes pergunta às pessoas:
carro, branco como a cal. Quando viu que o rapaz distraído nem — Acreditam nos contos de fadas? Eu acredito. Quando tinha 6
prestara atenção ao que acabava de fazer, zangou-se a sério. ou 7 anos, transformei-me em sapo. Encontrei, então, uma fada-
— Um dia, ainda acabas na urgência do hospital, à custa da tua -madrinha e transformei-me… em mim mesma!
distracção. E passas a viver numa cadeira de rosas!
“Estes adultos gostam tanto de exagerar”, pensou o distraído.
Numa outra ocasião, o rapaz seguiu um professor de Sophie Carquain
matemática que se propôs ajudá-lo a fazer os deveres, tendo Petites histoires pour devenir grand (2)
Paris, Albin Michel, 2005
sugerido que, depois, fossem até ao circo ver os tigres brancos. Uma (tradução e adaptação)
amiga da mãe do rapaz viu-os e o homem desatou logo a fugir. Nesse
dia, foi a vez de a mãe ficar branca como a cal:
— Não te disse já que nunca se acompanham pessoas
desconhecidas?
Certo dia em que os bombeiros faziam exercícios de
segurança, o nosso rapaz resolveu pendurar-se na varanda do quarto

146 34
andar, para os ver melhor. Claro está que os bombeiros tiveram de o
AOS PAIS E EDUCADORES ir buscar com uma escada…
— Obrigado, mas eu ia descer sozinho.
Excessos — Deves estar a brincar, miúdo — disse o chefe dos
A nossa sociedade sofre da inflação dos psicólogos para bombeiros. — Se nós não te tivéssemos visto, estalavas-te no chão

crianças. Psicólogos, psiquiatras, pedopsiquiatras, todos se queixam como um ovo frito. Morrias.

do mesmo: os pais levam os filhos a consultas a torto e a direito. — Que exagero! — protestou o rapaz distraído.
A mãe decidiu levá-lo ao médico para ver se havia algum
“Vêm ter connosco para saber se os devem inscrever no judo, para
problema. Depois de o ter examinado com cuidado, o médico
saber se é normal comerem um queijo inteiro. Tornámo-nos
concluiu que estava tudo bem e disse-lhe:
auxiliares de educação. Os pais estão desnorteados, não têm
— A tua distracção não te protege. Muito pelo contrário. Tens
confiança em si como pais”, desabafam os especialistas.
todo o direito de sonhar, mas tens de descer à terra de vez em
Uma realidade quando; senão, acabas por não ver os perigos que te ameaçam.
Claro que o rapaz estava de acordo com o médico, mas nem
Contudo, por detrás destes excessos, uma realidade subsiste.
por isso alterou o seu comportamento.
Segundo a OMS, 12% das crianças e dos adolescentes, ou seja, 1 em 8,
Um dia, algo de extraordinário aconteceu. Quando o rapaz
sofrem de um problema mental, seja ansiedade, hiperactividade,
jogava à bola, esta saltou para a rua e ele foi atrás dela. Era como se
bulimia, anorexia. Serão os nossos filhos cada vez mais frágeis e cada
pensasse que o seu corpo também era feito de borracha. Só que,
vez menos confiantes? Segundo os psicólogos, há alguns sintomas
desta vez, o condutor não travou a tempo e o rapaz acordou num
que estão mais reforçados hoje do que antes: a ansiedade relativa ao lugar onde já tinha estado muitas vezes: a lua.
desempenho escolar e a instabilidade psicomotora ou — Mais um sonhador! — exclamou a lua. — Também não
hiperactividade. Também há cada vez mais depressões entre os estavas bem na terra? Queres viver comigo?
adolescentes. Os sintomas são os problemas de sono e a falta de Como o rapaz nada dizia, a lua continuou:
apetite. Um adulto costuma falar verbalmente do que o preocupa, — Aqui nada de mal te acontece: podes sonhar durante o
mas a criança tende mais a somatizar. tempo que aqui estiveres.
No primeiro dia, o menino dormiu o dia todo. E adorou. No
segundo dia, falou um pouco com o vento. No terceiro dia, ajudou a

35 147
lua a desembaraçar-se das pedrinhas que enchiam as suas crateras. Quando consultar alguém?
Como se mexeu bastante, teve a sensação de estar a começar a
Quando a criança come mal, dorme mal, ainda faz chichi na
acordar. Pareceu-lhe até ouvir a mãe a dizer “Está a acordar! Está a
cama, chora muito, tem obsessões, adoece com frequência, é melhor
acordar! Em breve voltará para junto de nós.”
ir ver alguém.
No quarto dia, sentiu de repente uma enorme nostalgia da
Se uma criança mente ou rouba uma vez, tal facto não é
terra, das ruas, das bicicletas, da escola, de casa, dos pais e do gato
alarmante; mas, se isso se repete, é preferível ver o que se passa.
Mosquito. O rapaz distraído apercebeu-se de que gostaria de morar
num sítio com referências, com coisas a ver e a respeitar, um lugar Quem devemos consultar?
onde não se sentisse sempre a voar.
• Um pedopsiquiatra é um psiquiatra que se especializou em
Depois destes quatro dias de solidão, despediu-se
crianças. Receita medicamentos e trata depressões e
respeitosamente da lua:
distúrbios de comportamento.
— Senhora lua, muito obrigada pela sua gentileza. Gosto muito
das suas dunas e do seu vento, mas prefiro viver na terra. Nunca • Um psicólogo clínico, que pode ser psicanalista ou não.

esquecerei esta estadia e, de vez em quando, virei visitá-la, porque Onde consultar?
adoro sonhar. Mas prometo que terei os pés bem assentes na terra
• Pergunte ao médico de família ou ao pediatra.
quando atravessar uma rua ou andar de bicicleta.
• Dirija-se a um centro clínico que disponha desta
A lua deu-lhe um conselho:
— Não tentes o diabo. Não te metas debaixo de um carro ou te especialidade.

ponhas a seguir um desconhecido. Da próxima vez que me vieres Consultas


visitar, ficas cá para sempre.
Da primeira vez, as crianças vão acompanhadas pelos pais. É
O rapaz prometeu seguir o conselho da lua. Acordou, então, do
preciso explicar-lhes que o psicólogo não é um professor. Se as
sono lunar a que chamamos coma, e que nos mergulha num estado
crianças têm dificuldade em exprimir-se por palavras, pode recorrer-
muito próximo da morte. Acordou com dores de cabeça e mais dores
ainda no coração. Teve sorte, porque alguns nem sequer chegam a -se aos desenhos, à plasticina, aos bonecos. Cada uma tem a sua

acordar de tanto estarem sempre na lua. forma diferente de se exprimir. As consultas seguintes fazem-se com

Quando regressou à escola algum tempo depois, contou aos a criança sozinha. O pai ou a mãe ficam na sala de espera. A
colegas que a lua era um sítio simpático mas muito monótono. É psicoterapia com crianças funciona mais depressa do que com

148 36
adultos, mesmo que possa não operar milagres. Pode ser que uma ou claro que, de quando em vez, ainda se escapava até à lua. Mas nunca
duas consultas sejam suficientes. quando tinha de fazer coisas importantes. Cuidar de si, ter atenção
aos perigos, saber evitar os obstáculos, é ter sempre os dois pés bem
assentes na terra.
Algumas frases-chave

• Há sempre solução para os problemas. Quando nos doem os


dentes, vamos ao dentista. Quando nos dói o coração, vamos Sophie Carquain
ao psicólogo. Petites histoires pour devenir grand (2)
Paris, Albin Michel, 2005
• Podemos ir falar com alguém que nos ajude a ver melhor as (tradução e adaptação)
coisas. Queres?
• Quando se é grande, como tu, costumamos esconder os
nossos desgostos. Mas mais vale deixar sair as lágrimas, em
vez de fechar o desgosto no coração.

37 149
AOS PAIS E EDUCADORES

Porquê este lado de Professor Girassol?

As crianças estão sujeitas a devaneios porque têm um mundo


imaginário muito rico. Abstraem-se, brincam com nada, inventam
histórias…

E se isso esconder outra coisa?

• Poderá ser cansaço? Quando as crianças mudam de escola e


mudam de ritmo, quando começam a adquirir competências
novas, é natural que estejam cansadas quando chegam da
escola. E é natural que façam uma sesta “disfarçada”. Talvez
devam deitar-se mais cedo ou vir almoçar a casa uma ou duas
vezes por semana.
• Talvez seja a reacção a uma série de limitações às quais não
estava habituada. A um ritmo trepidante, a criança responde
“desligando”.
• Será tristeza? Pode ser que algo de perturbador tenha
acontecido: o nascimento de um irmãozinho, uma mudança
de casa, discussões constantes entre os pais…

Como gerir?

Parar de se enervar e de gritar. Deixá-lo mais tranquilo. Olhá-lo


nos olhos quando falamos, estabelecer uma comunicação de

150
“proximidade”. Deixando de troçar das suas “brincadeiras” e de lhe
colar etiquetas. Ao estigmatizá-lo, ele torna-se mais alheado.

Algumas frases-chave
• Pareces estar a sonhar: o que se passa?
• Estás bem?
• Se quiseres falar, estou aqui…

Mesmo que não responda, a criança percebeu a empatia do


adulto.
PALAVRAS
PETÚNIA E A MODISTA DAS PALAVRAS Os perigos da rua

Apesar de os nossos filhos deverem desembaraçar-se o melhor


Petúnia era uma bruxinha como as outras, com os cabelos em
que puderem, isso não significa que podem fazer tudo sozinhos. Uma
desalinho, um queixinho aguçado e um chapéu pontiagudo.
criança não é um adolescente e um adolescente não é um adulto.
Mas um pequeno detalhe diferenciava-a das outras: sempre
que falava, era um desastre. Gaguejava e trocava as sílabas, o que • A criança não avalia tão bem como nós a velocidade e a

fazia com que as fórmulas mágicas que pronunciava resultassem em distância.

catástrofe. • A criança nem sempre consegue ligar o barulho à fonte.


Dizia “pato greto” para “gato preto” ou chamava “andorinha” • O tempo de reacção de uma criança é menor do que o de um
ao sapo. Quando escrevia, fazia uma sopa de letras que lhe deixava adulto.
um gosto bem amargo na boca.
Pequenos conselhos
Na escola, tirava sempre zeros redondinhos e fazia rir as outras
bruxinhas. Transformava teias de aranha em rosas perfumadas em • Ensiná-la aos poucos a atravessar a rua.
vez de moscas malcheirosas. • Recomende-lhe que atravesse junto de um polícia, mesmo
Além das palavras também invertia os números. Um dia, em que tenha de andar mais dez metros.
vez de 2 sapos horríveis, fez aparecer 40 príncipes garbosos a • Os carros podem galgar o passeio para estacionar. Ensine-a a
fazerem declarações de amor. estar atenta.

39 151
• Deve andar sem coisas que a façam atravessar sem pensar Podem imaginar o efeito que estas palavras xaroposas tiveram
caso as perca (bola) ou que a impeçam de estar atento nas outras bruxinhas todas. Pois foi, desataram a fugir… Os pais já

(walkman). não sabiam o que fazer.

• Deve ir a horas para a escola para evitar correrias. A mãe preparou poções especiais que a bruxinha comia
corajosamente. Contudo, nada resultava. Quanto mais o tempo
• Não deve fazer o que os outros fazem: há adultos que
passava, mais a bruxinha sofria. Chegou a ficar muda, com medo de
atravessam com o sinal vermelho.
ser alvo de troça das coleguinhas. No país das feiticeiras, as coisas
• Compre material claro e fluorescente, caso ela tenha de
não eram concertadas, por tradição; eram desconcertadas.
andar de trotineta ou bicicleta.
Um dia, a mãe disse a Petúnia:
• Compre um capacete, ensine-a a descodificar os sinais, a não — O Dr. Verruga falou-me de um remédio que só existe no país
utilizar os aparcamentos dos supermercados para jogar à dos homens. Eles têm modistas de palavras, pessoas que ajudam a
bola, etc. trocar as palavras de lugar e a colocá-las no sítio certo. Mesmo aquilo
de que precisas. Temos de lá ir todos os dias e vai ser bastante
trabalhoso.
A pequena bruxinha imaginou logo uma costureira de agulha e
linha em riste, a coser pedacinhos de tecido. É um facto que a forma
de falar de Petúnia se assemelhava a uma manta de retalhos, e que
alguém tinha de coser todos aqueles quadradinhos.
É assim que, todas as semanas, Petúnia passou a pentear os
cabelos em desalinho, escondendo-os debaixo de uma boina com ar
sensato, e trocou os botins pontiagudos por umas sapatilhas…
Parecia uma menina igual às outras. Em casa da modista das
palavras, Petúnia passou a trabalhar com afinco: cosia e descosia as
palavras até fazerem sentido.
Isto era trabalho a sério, não era magia.
No país das feiticeiras, Petúnia estava habituada a que tudo se
fizesse à custa de sortilégios e de truques de ilusionismo. No país dos

152 40
humanos, eram precisos muito tempo e paciência para ir às aulas,
rever as lições e fazer as flores crescer.

Sophie Carquain
Petites histoires pour devenir grand (2)
Paris, Albin Michel, 2005
(tradução e adaptação)

A HISTÓRIA DO SENHOR DEMASIADO GENTIL

O padeiro da esquina da rua era muito gentil e gostava muito


de crianças. Sabia ouvi-las como ninguém e ajudava-as nos trabalhos
de casa. Dava-lhes gomas, bombons, chocolates. É fácil gostar de
alguém que nos dá coisas sem pedir nada em troca.
O senhor gentil enfiava as mãos no pote de vidro e tirava
guloseimas “só para ti”. E sorria, gentil, a ver as crianças a comer,
como se fosse o melhor espectáculo do mundo. O senhor parecia o
caçador que Tomé vira num filme. O caçador tinha domado um tigre
bebé, dando-lhe um bombom de mel todos os dias. Quando o tigre
se deu conta, era demasiado tarde. Já estava prisioneiro do caçador.
Todos os domingos, Tomé ia ao padeiro comprar pão e
queques de chocolate. O padeiro dava-lhe um saco de gomas de
todas as cores e feitios “só para pessoas especiais, como tu.
Rapazinhos bonitos e inteligentes”. E acariciava os cabelos de Tomé,
com o mesmo olhar do caçador de tigres.

41 153
Quando chegava a casa, Tomé punha tudo em cima da mesa da
cozinha. Tudo menos o saquinho de gomas. Este, escondia-o em cima AOS PAIS E EDUCADORES
do armário dos brinquedos, como fazia com os segredos que
guardava para si. É que para o Tomé aquele saquinho significava que A dislexia parece “estar na moda”. Muitas crianças são

outros adultos gostavam dele, além dos pais. E todas as crianças afectadas por este distúrbio de linguagem. Mas há crianças que têm
ficam contentes com isso. “apenas” problemas de leitura, devido a um sistema de
Tomé não sabia bem como chamar a esta relação entre uma aprendizagem incorrecto. Logo, torna-se necessário distinguir os
criança e um adulto. Ternura? Afecto? Amizade? Um dia, ao regressar falsos dos verdadeiros disléxicos.
da escola, perguntou à mãe: O disléxico não fixa o som de uma palavra. Dizemos-lhe que
— Uma criança pode ser amiga de um adulto? Só amiga? c+h = ch e, no dia seguinte, já ele esqueceu tudo. Também não
A mãe franziu as sobrancelhas e respondeu: consegue soletrar e confunde o b com o d. Aborrece-se na escola
— A amizade é uma troca entre duas pessoas. Uma troca entre
porque não consegue aprender a ler, mas ninguém se apercebe disso
iguais. Uma criança não viveu as mesmas coisas que um adulto viveu.
a não ser quando, aos 7 anos, a criança não sabe realmente ler.
Uma amizade assim não é comum.
Como não se aprisiona uma criança só com batatas fritas,
gomas ou pãezinhos, o padeiro mostrou-lhe um dia o forno e a massa Como gerir o problema?
a levedar. E acariciou os cabelos do menino com um brilho cruel no • Prevenindo-o. Se, aos 4-5 anos, a criança não sabe falar, tem
olhar, embora sorrisse gentilmente, como sempre. Enquanto o
problemas de sintaxe, não domina a mão esquerda e a
homem pegava nele ao colo, o menino pensava numa história que
direita, é melhor consultar um ortofonista. Aos 5-6 anos,
lera, na qual um tigre queria matar um menino.
fazem-se jogos de Scrabble com ela, para ver como se
— Se fores simpático e não disseres nada a ninguém, dar-te-ei
desembaraça a constituir palavras.
tudo o que quiseres.
• Fazendo uma boa detecção do problema: a criança faz uma
Foi então que uma sirene começou a tocar dentro de Tomé.
Uma sirene que lhe dizia “Põe-te a andar! Põe-te a andar!” E Tomé consulta que envolva um rastreio ortofónico, psicológico e

saiu a correr da padaria. neuropsicológico. Como o tempo de aprendizagem da leitura

Nesse dia, aprendeu que os génios bons que concedem se flexibilizou muito, é melhor prevenir do que remediar.
desejos só existem nos contos de fadas e não na padaria da esquina.

154 42
• Depois do rastreio, o especialista saberá dizer se se trata de Percebeu por que razão os pais lhe diziam para não aceitar prendas
dislexia ou de simples dificuldades de aprendizagem. As ou guloseimas de desconhecidos. Sejam elas quais forem. É que

dislexias severas demoram anos a tratar e exigem esforço. alguns adultos esperam, em segredo, que lhes dês em troca algo que

• Encoraje o seu filho. O disléxico demora mais tempo a fazer vale muito mais do que bombons de três euros. Querem um pouco
de ti. O que não pode ser!
os deveres e isso faz com que a etiqueta “lento” lhe seja logo
colada. Encoraje os seus pontos fortes noutros domínios
(artes, matemáticas) e leve-o a tirar partido disso.
Sophie Carquain
Petites histoires pour devenir grand (2)
Algumas frases-chave Paris, Albin Michel, 2005
(tradução e adaptação)
• Tens algumas dificuldades com a leitura, mas isso nada tem a
ver com a tua inteligência.
• Vamos todos trabalhar: tu, eu e o ortofonista.
• Lembras-te de onde estavas há um mês? Já te deste conta
dos progressos que fizeste?

43 155
AOS PAIS E EDUCADORES

Não se deve levar os filhos a pensar que todos os adultos são


perversos. Isso arruinaria a confiança que as crianças depositam
naturalmente nos adultos. Mas devemos falar-lhes de certos adultos
que são doentes, embora pareçam gentis e queiram dar-nos muitos
presentes. Quando lhes pedimos que não aceitem nada de ninguém,
é porque ninguém dá nada sem esperar algo em troca, excepto os
pais ou os amigos. Nunca é demasiado cedo para lhes falarmos da
noção de oferta e de contra-oferta.
Quando um adulto dá demasiadas prendas a uma criança, isso
é um sinal de perigo. O mesmo acontece com as seitas em que as
pessoas dizem que vão tomar conta de nós. O que elas querem é o
nosso dinheiro ou a nossa pessoa.

Os abusos sexuais

Ao contrário do que os meios de comunicação querem fazer


crer, os abusos sexuais não são mais frequentes. O que acontece é
que falamos mais deles.

• A maioria das crianças agredidas está na casa dos 10 anos, e


os casos de maus-tratos entre crianças aumentaram.
• Pensa-se que as crianças devem ser alertadas contra
potenciais abusadores a partir da idade de 4-5 anos. Pode

156
fazer-se isso através de uma leitura e deve repetir-se o
“aviso” sempre que a criança se ausenta para longe dos pais
nas férias.
• Como falar-lhes disso? Dizendo-lhes que alguns adultos são
“loucos”, que não são “normais”, que não amam as crianças,
mesmo que as sentem ao colo e as acariciem. A lei proíbe
esses comportamentos e pode ser-se preso por eles.
• Previna-o de que não são só os actos que são perigosos. À
excepção dos pais e do médico, nenhum adulto deve vê-lo
nu. E nenhum adulto deve tomar banho com ele.
FOI--SE EMBORA
O PAI URSO FOI

Gestos e palavras
Naquela manhã, quando os três ursinhos traquinas acordaram
da sua noite castanha, quiseram, como todos os dias, andar às As palavras são importantes mas os actos também.
cambalhotas, às cavalgadas e às cabriolas no lombo do pai urso. Era • Devemos fomentar e respeitar o sentido de pudor da criança,
para todos uma grande brincadeira ouvirem o pai a fingir que ralhava, que se desenvolve por volta dos 5/6 anos. Devemos bater à
meio a rosnar, com a sua voz de urso: porta da casa de banho, quando ela toma banho, correr a
— Ai se vos apanho, seus ursinhos traquinas!
cortina para que ela fique à vontade….
Nós, ursos, só temos o fim-de-semana para dormir. E o pai urso
• Se a criança não quer dar beijos, não dá. Tem esse direito.
fingia que lhes dava um sopapo, um bofetão e uma grande patada.
• Não se devem fazer trocas que envolvam o corpo dela. Não
Os ursinhos traquinas fartavam-se de rosnar e rolavam no chão de
se deve dizer: “Se não me deres um beijo, não há prenda de
tanto rir, o que era até uma maneira de massajarem as vértebras.
anos”. Imagine o que isso pode despoletar…
Mas, naquela manhã, quando os três ursinhos acordaram,
encontraram a cama vazia e a mãe já a pé, olhando tristemente pela • Avise-a de que ninguém pode ir buscá-la à escola sem o

janela, como na história da princesa dos cabelos de ouro. Mas aquilo consentimento dos pais. Se houver um imprevisto, avisa-se a
não era nenhum conto de fadas. directora, que se certificará de que a criança ficará a seu
cargo até alguém chegar.

45 157
• Se ela se sentir ameaçada na rua, diga-lhe para ir para junto — O vosso pai foi embora — disse a mãe ursa, fungando. E foi
de um adulto em que os pais depositem confiança. Pode ser a logo para a cozinha fazer crepes com mel.

mercearia, a padaria, etc. — Ai sim? — pensaram os ursinhos. — Deve ter ido buscar o
mel e o jornal. E algumas ervas para o almoço. E fazer as compras da
semana.
Algumas frases-chave
E… esperaram todo o dia…
• O teu corpo pertence-te. Tens sempre o direito de dizer Quando a noite estendeu o seu manto de estrelas,
“Não!” compreenderam que o pai urso não voltaria para casa naquela noite.

• Os segredos só contam se tu os escolheres. Se um adulto te Teria ido hibernar para outro lado? Para a Sibéria? Para onde o mel é

impuser um segredo, conta-o, mesmo que ele te ameace. mais aromático? À força de fazerem tantas perguntas, os ursinhos
tinham perdido o ar traquina. Teria encontrado no caminho alguma
• Se te derem muitas prendas, é porque esperam algo de ti em
princesa encantada? É assim que entre os ursos se fala dos pais que
troca.
se vão embora para seguirem um outro caminho, a Ursa Maior, por
• Se não quiseres que te dêem um beijo, não te forces a aceitá-
exemplo.
-lo. Diz “Não!”
— Alguns partem para encontrar um pouco mais de fantasia,
outros, para tomar ar durante um ou dois meses. Mas nunca ninguém
foi embora por causa de um, de dois ou até de três ursinhos
traquinas — respondeu-lhes, de imediato, a mãe ursa.
Se ela sentia vontade de dizer mal do pai urso, a verdade é que
nunca o fez.
— Ele gosta muito de vós, sente imenso a vossa falta, eu sei —
disse-lhes, olhando-os com os seus olhos castanhos orlados de
vermelho.
E os dias continuavam a passar sem voltarem atrás.
Na toca, a vida já não era como dantes. Já não havia aquela voz
grossa a acordá-los de manhã, nem aquelas grandes patas que os
levavam à escola. Um pai, quando falta, faz muita falta: os pêlos da

158 46
barba mal cortados, as mãos grandes e quadradas, a voz grossa a
ralhar, a barriga do pai urso que mexia quando ele se punha a rir, o
cheiro a tabaco, os seus bocejos ruidosos que faziam tremer as
paredes da toca, e até as grandes cóleras e as grandes zangas.
Os três ursinhos teriam dado tudo para receberem as boas
palmadas do costume. Com as mães, a vida é cheia de doçura, de
carinho, mas falta, sem dúvida, um pouco de força e de surpresa.
Ninguém se atrevia a dizê-lo, mas era o que toda a gente pensava.
Até que chegou uma altura em que se deixou de falar no assunto.
Nunca mais se pronunciou a palavra “pai”. Sobretudo porque
O FESTIM DOS MICRÓBIOS
bastava pronunciar uma só palavra iniciada por “pa” para que os
olhos da mãe ursa começassem a ficar perigosamente vermelhos.
É noite e Benjamim já se foi deitar. O sol adormeceu e a lua
Deixaram então de dizer muita coisa: “pai”, “papagaio”,
sorri.
“papaia”, “papar”, “paparico”, “paparoca”, mas também as palavras
Tudo está calmo na terra e no céu… enfim, tudo está calmo lá
“paradoxo”, “parágrafo” e “passado”. Quantas palavras existiam
fora. Na boca de Benjamim, o segundo molar superior esquerdo está
começadas por “pa”! Por isso, na toca, deixou de se pronunciar uma
em efervescência. Mal o menino adormeceu, Macróbio I chamou os
grande parte do dicionário.
comparsas, que mais parecem formigas a fazer um carreirinho. Uma
De tanto, tanto se esperar, o rosto do pai urso começou a ficar
migalha de pão aqui, um pedacinho de bolo acolá são verdadeiras
menos nítido aos olhos dos ursinhos traquinas. Nos seus sonhos, ele
delícias que eles procuram entre os dentes. E levam às costas todo o
transformou-se no Peter Pan, no Rei Leão, em muitas outras
material de que precisam para recolher estes pequenos tesouros que
personagens. O rosto do pai urso que ralhava desvanecia-se pouco a
os hão-de alimentar durante muito tempo.
pouco.
— Regalem-se, meus amigos! O molar é todo vosso! — grita
Um dia, contudo, após tão longa espera, chegou uma carta à
Macróbio I.
toca dos ursinhos traquinas. Depois daquela aventura, já havia
Benjamim esqueceu-se novamente de escovar os dentes. Nem
passado muito, muito tempo, tanto que um outro pai urso tinha ido
sequer se esqueceu… Antes mentiu à mãe, dizendo-lhe que os
viver lá para casa, os ursinhos tinham regressado às suas lendárias
escovara durante os três minutos da praxe. Até se deu ao trabalho de
pôr a água do lavatório a correr enquanto, na realidade, lia um livro e

47 159
pensava: “Estou farto. Porque há-de ser preciso escovar os dentes travessuras e os olhos da mãe ursa nunca mais tinham ficado
todos os dias, manhãs e noites? Aposto que essa história dos vermelhos.
micróbios é tudo treta”, pensava. — Ursinhos! Venham depressa! Uma carta do vosso pai! —
Mas, nessa noite, a boca de Benjamim era a prova contrária gritou a mãe ursa, que conhecia bem a ligação dos três ursinhos ao
dos seus pensamentos. pai.
— Onde a escova não alcança, o micróbio dança — dizia um Meus três ursinhos queridos, escrevia o pai urso, sinto muito a
deles, todo contente. vossa falta. Apareço sábado para vos visitar e espero que me perdoem.
— Se do dentífrico há vestígio, para nós é o suplício — Só quero ver-vos e fazer-vos papas, papinhas, paparicos e paparocas.
tamborilava o chefe, a fazer música ambiente. Contem comigo sábado de manhã.
— Este miúdo é amoroso. Pensa em nós todas as noites —
dizia, satisfeita, a bactéria Pulguinha, que adorava pré-molares. — Havias de ver a alegria dos três ursinhos traquinas. Porque eles

Vou fazer-lhe um buraquinho, só para lhe agradecer. sabiam muito bem que, mesmo que o pai urso não voltasse a viver na

O Minúsculo, seu irmão, dizia: toca, o amor entre um pai e os seus ursinhos traquinas dura toda

— Olha-me para este festim! Rebuçados de morango! Pudim uma vida: toda uma vida de “palavras” a dizer, de “paparocas” a

de caramelo! Creme de barrar Nutella! comer e de “passados” a refazer!

Os micróbios mais velhinhos iam recolhendo fiambre e salpicão


no canino do lado. Sempre com a ajuda daqueles instrumentos que
vão escavando buraquinhos que hão-de dar buracões! As famosas Sophie Carquain
Petites histoires pour devenir grand
cáries! Paris, Albin Michel, 2003
— Não se esqueçam de que o melhor ainda está para vir — (tradução e adaptação)
encorajava o chefe.
— O melhor? — perguntavam-se os outros.
— Sim, o interior do dente, onde tudo é rosadinho e fresco.
E os micróbios lá se lançaram de novo ao trabalho, com
redobrado afinco. Até que o chefe, Macróbio I, deu ordem de
retirada:

160 48
— Vamos, meninos, acabou a festa! Já fizemos muitas
escavações por hoje! Agora são horas de dormir e de deixar os
micróbios mais pequeninos trabalhar. Não queremos que ele acorde
com dores de dentes, pois não? Isso haveria de o mandar a correr
para o dentista e nós não queremos que isso aconteça, pois não? Não
queremos bons conselhos nem dentífricos, pois não?
Só de pensar nisso, os micróbios até tinham vontade de fugir.
— Toca a escovar os dentes antes de deitar, meninos — disse a
mãe Micróbia aos seus filhotes. — Senão, já sabem o que vos espera
esta noite.
O PEQUENO COMERCIANTE QUE VENDIA
IA SORRISOS — Oh não! — exclamaram os microbiozinhos. — Não
queremos uma visita dos micromicromicróbios!
Todos retiraram a sua microescova do seu microbolso e
Era sexta-feira, dia de mercado, e o pequeno Jos
José dirigiu-se ao
escovaram os dentinhos com muito cuidado, antes de se deitarem
largo da aldeia, onde o vendedor de sorrisos instalava
ava a sua carrinha.
nas caminhas dos dentes de Benjamim.
Era uma carrinha vermelha e amarela, com arabes
bescos dourados
Quanto a este, continuou a dormir tranquilo. Se soubesse o
desenhados que diziam: “Venda de sorrisos, risoss lo
loucos e outros
que se passava dentro da sua boca, por decerto se assustaria. Os
risos escondidos”.
micróbios também dormiam agora, com a barriguinha bem cheia e
Este pequeno comerciante era muito gordin
rdinho e vendia
formulando um desejo:
sorrisos como se vendem bombons, só que muit
uito mais caros.
— Quem dera que amanhã o Benjamim não escove outra vez
Enquanto os risos de chacota eram vendidos a 2 euro
uros cada um, os
os dentes!
meio-sorrisos custavam 60 euros, e as gargalhadas 150 euros.
Apesar dos preços elevados, o pequeno vended
dedor de sorrisos
vendia sempre muitos. Alguns habitantes da aldeia chegavam
che com o
cesto a transbordar de alhos franceses, cenoura
ouras, batatas e Sophie Carquain
Petites histoires pour devenir grand (2)
colocavam um pequeno envelope de sorrisos por cima
ma dos legumes. Paris, Albin Michel, 2005
― Venham cá! ― chamava o vendedor que,
e, ccomo é óbvio, (tradução e adaptação)

exibia um enorme sorriso de comerciante. ― Aqui,i, só


s há felicidade!

49 161
Trago-vos meio-sorrisos, muito fresquinhos; também há sorrisos
AOS PAIS E EDUCADORES maliciosos. A super-promoção de hoje é para os sorrisos de palhaço:
custam menos 30%.
Os risos contagiosos nunca estavam em promoção, pois
Não há idade fixa para o aparecimento das primeiras cáries. As
levariam o pequeno comerciante à falência. Bastava comprar um
crianças que bebem Coca-Cola o dia todo, que chupam rebuçados a
para fazer rir toda a aldeia!
toda a hora, e que não escovam bem os dentes, podem ter cáries nos
O pequeno vendedor ganhava muito dinheiro naquela aldeia:
dentes de leite. Estas cáries evoluem mais rapidamente do que as dos
os habitantes eram tão tristes que consumiam logo o sorriso ao
dentes definitivos e, quando são descobertas, já é demasiado tarde. balcão.
Estas cáries têm de ser tratadas. ― Venham, venham, há cá boa gargalhada! ― apregoava o
Entre os 18 meses e os 2 anos, é preciso escovar-lhes os dentes pequeno comerciante.
todos os dias, com uma mini-escova que se compra nas farmácias. A E toda a gente ia para casa a contar histórias engraçadas. Toda
partir dos 2 anos e meio, a criança pode fazê-lo sozinha. É mais fácil a gente… excepto o pequeno José, que não tinha dinheiro.
quando há irmãos mais velhos a quem imitar. É preciso lavar os Normalmente, as crianças não têm necessidade de comprar risos,

dentes de manhã e à noite, sobretudo à noite, porque a placa nem sorrisos, porque os têm. Mas pode acontecer que o sorriso lhes

dentária estagna e a saliva já não desempenha o seu papel protector. seja roubado por um adulto tolo e mau. Era o que se tinha passado
com o pequeno José. O seu sorriso tinha desaparecido, e o menino
É durante a noite que se formam as cáries.
tinha ficado sozinho no seu canto.
Conselhos úteis Antes de ir para a escola, o pequeno José esforçava-se. Punha-
se em frente ao espelho, apoiava as mãos nas ancas, franzia o
• Evitar a sacarose contida nas guloseimas, nas charcutarias e sobrolho e dizia:
nas pastilhas para a garganta. Todos estes elementos são ― Ri-te, vá lá, ri-te! 1, 2, 3… Sorriso!
carígenos, ao contrário dos açúcares lentos. E exibia um belo sorriso de palhaço. Mas este sorriso de

• Acabar com o biberão açucarado à noite, que contribui para palhaço pesava-lhe como uma máscara de metal. Era necessário ter

manter os dentes num banho permanente de acidez. uma força de gigante para o manter. Então, após três ou quatro
tentativas, o sorriso desaparecia. O pequeno José olhava o seu
Reservem para de manhã os alimentos açucarados feitos para
os bebés.

162 50
reflexo na vitrina de uma loja e via o seu rosto carregado e fechado. • Não coma com a mesma colher do bebé. A cárie é infecciosa
O sorriso tinha desaparecido. e transmissível. Ao partilhar a colher, partilhamos também os
Naquela sexta-feira, José pôs-se na fila de espera, decidido a germes.
pedir ao pequeno comerciante para lhe emprestar um sorriso. À sua • Dê-lhe flúor. No sal, na água mineral ou natural (0,3 mg de
frente, na fila, estava um gigante triste e melancólico. Quando
flúor por litro), no dentífrico.
chegou a vez, o gigante triste procurou algumas moedas, com os
dedos grossos, no seu minúsculo porta-moedas, e pigarreou: Quando a criança tiver 3 anos, os pais podem levá-la ao
― Não tem… um riso qualquer por dez cêntimos? dentista num dia em que eles mesmo tenham consulta. Assim, ela
O pequeno comerciante procurou num frasco e arranjou-lhe pode ver o consultório e o dentista, como se fosse uma visita. Aos 5
um niquinho de sorriso em saldo. José ficou ainda mais triste, porque
anos, já vai para ser consultada. Sentada na cadeira onde pode girar à
não tinha sequer dinheiro para comprar um meio-sorriso. Nem uma
vontade, enquanto descobre as funções daqueles aparelhos
moedinha para pedir um sorriso malicioso ou um riso escondido.
amiguinhos…
No entanto, quando se apercebeu do pequeno José, o
Se houver cáries, serão tratadas na próxima consulta. É preciso
comerciante redondinho esboçou um largo, muito largo sorriso.
que a criança tenha vontade de voltar. Quando as famílias têm
― Queres alguma coisa, meu rapaz? ― perguntou.
José suspirou e mostrou os bolsos vazios. tendência para cáries, recomenda-se a “selagem de fissuras”, que

― Não tens dinheiro. Hum… consiste em cobrir as fissuras entre os dentes com uma resina

O pequeno comerciante examinou José, dos pés à cabeça, protectora, para que os detritos alimentares não se alojem aí. É o
durante longos minutos… Depois disse: método preventivo ideal.
― Preciso de um rapazinho como tu, um rapazinho que tenha
perdido o sorriso. Diz-me uma coisa… estás interessado em trabalhar
Algumas frases-chave
comigo?
José abriu muito os olhos, mas não pronunciou qualquer • É verdade. Temos de recomeçar todos os dias, de manhã e à

palavra: estava demasiado excitado! No entanto, o pequeno noite. É obrigatório. Os dentes são o que temos de mais
comerciante, especialista em sorrisos interiores, tinha compreendido. precioso.
― Então, entra! ― convidou o comerciante. ― Entra na minha
carrinha. Logo que acabe de atender os meus clientes, mostro--ta…

51 163
• Não basta lavar a boca. É preciso escovar bem para que as Estava escuro e o pequeno José arregalava os olhos. Havia
migalhas das refeições, de que os micróbios tanto gostam, centenas e centenas de prateleiras sobre as quais estavam colocados

desapareçam no lavatório. envelopes de todas as cores, cheios de sorrisos, cada um com o seu
nome. Havia também frascos cheios de risos por gestos e de risos
loucos! Nas etiquetas, o pequeno José podia ler: “caretas”, “meio-
-sorriso”, “sorriso desdentado”, “sorriso feliz”, “riso de
superioridade”, “riso de troça”, “sorriso de delicadeza”.
― Onde é que encontrou todos estes sorrisos? ― perguntou o
rapazinho.
― Ah ah ah! ― riu o pequeno comerciante muito gordinho. ―
Às vezes, basta apenas levantá-los do chão ou apanhá-los do ar!
O homenzinho levantou-se e mostrou-lhe uma rede para
apanhar borboletas.
― Normalmente, abro um envelope e agarro o sorriso invisível.
Nos dias de Verão, quando o ar cheira a morangos, basta-me
estender a mão: os sorrisos de felicidade e os sorrisos loucos correm
por todo o lado! No Inverno, é um pouco mais difícil. Com o frio, os
rostos têm mais dificuldade em descontrair e sorrir. E quando um
rosto faz uma careta, arrasta outras caretas. No Inverno, há
epidemias de rostos tristes, como epidemias de gripe. Ganho muito
pouco no Inverno.
O homem olhou para o pequeno José:
― Vou explicar-te o que espero de ti. O que me interessa é ver
os outros sorrir. Toda a gente, percebes? Mesmo os que não têm
dinheiro, mesmo aqueles a quem foi roubado o sorriso da infância. É
por isso que estás hoje aqui. Se quiseres, fazes alguns testes. Vais
experimentar todos os sorrisos e risos… Vais estudá-los e ver os que

164 52
são mais eficazes para fazerem sorrir os outros: aqueles com os quais
podemos fazer amigos. O sorriso é como um laço entre as pessoas.
Quando sorris, é como quando estendes a mão a alguém, percebes?
Claro que o pequeno José entendia. E estava contente, tão ENCONTRO
O EN CONTRO COM
contente! Haverá trabalho mais agradável do que testar sorrisos?
Durante um mês, trabalhou para o pequeno comerciante.
A DAMA DAS HISTÓRIAS
Experimentou, um a um, todos os sorrisos, e todos os risos. Passeava
de metro, de autocarro, punha-se nas filas do cinema e do teatro; ia à Pedro vivia com os pais, com o gato Afonso e com
piscina, à cantina, e anotava, num pequeno bloco, que efeito tinha o o seu coelho branco, numa linda casa de ardósia. Era um
sorriso sobre as outras crianças. rapazinho “quase” como os outros…, com a diferença
Um dia, no autocarro número 83, pôs um sorriso de palhaço, de que nunca parava de fazer perguntas. Cem por hora,
um daqueles sorrisos que soam um pouco falso. As pessoas dez por minuto!
aproximaram-se dele mas, em poucos segundos, toda a gente se pôs Pequenino, ainda antes de saber falar, apontava para uma
a chorar, como se tivessem adivinhado que havia tristeza por detrás coisa com ar interrogativo e, se a resposta tardava, punha-se a berrar
daquele sorriso demasiado grande. e ficava muito vermelho. “Porque é que o chocolate é castanho? E
Num outro dia, no autocarro 38, abriu o envelope e dele saiu porque é que os coelhos não gostam de chocolate? E porque é que o
um bonito “sorriso de delicadeza” com o qual olhou para as pessoas. açúcar é doce? E como se faz o açúcar? E porque é que se diz que os
Os viajantes sentaram-se durante alguns minutos, pigarrearam, Marcianos são verdes se ainda ninguém os viu?”
olharam para o relógio, e depois, como José continuava a sorrir sem Os pais olhavam para o céu à procura de solução, mas não caía
nada dizer, partiram tal como tinham chegado. “O sorriso de nenhuma resposta.
delicadeza é bom no início, mas não chega para fazer amigos”, Quanto mais o Pedro crescia, mais eles coçavam a cabeça,
escreveu o pequeno José. porque, com a idade, as questões tornam-se cada vez mais
Quando engoliu um sorriso louco, foi terrível! No metro, pôs- complicadas. Era, por exemplo: “De onde vêm as doenças? Porque é
-se a rir sozinho, e toda a gente riu com ele. Toda a gente ficou louca. que os velhos acabam sempre por morrer? E porque é que eu sou eu
As pessoas batiam com a cabeça no vidro e ninguém se falava. E e não sou o Robin dos Bosques? E onde é que eu estava antes de
saíam sempre a rir, sem poder sequer trocar um número de telefone. nascer?”
Só queriam assoar-se e tapar os olhos, agora cheios de lágrimas.

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Eram perguntas que exigiam um pouco mais de tempo, e “Demasiado violento, sobretudo quando as pessoas não se
quando os pais estão ocupados a mudar um pneu do carro ou a fazer conhecem. Tentar outra coisa para fazer amigos”, escreveu o
o jantar, é-lhes difícil responderem. Quando fazia certas perguntas rapazinho.
(sobre os bebés, as doenças, a morte, por exemplo) a mãe abanava a Com o riso de superioridade, aquele que é utilizado para fazer
cabeça e respondia: troça dos outros, passou-se algo de muito esquisito: as pessoas
— Hum… É uma pergunta muito delicada, meu filho. Dá-me ficavam muito pequeninas e ele via-se como um gigante rodeado de
tempo para pensar — e, sistematicamente, ou por se ter esquecido, pigmeus que o olhavam com um ar aterrorizado. “Nada de especial”,
ou porque também ela não sabia organizar as frases, a mãe de Pedro pensou o pequeno José que, nessa noite, deitou este riso na sanita e
ficava calada. puxou o autoclismo.
Há uma idade em que, à força de se fazer muitas perguntas e Quando, dois dias depois, estreou o seu “riso contido” (uma
de não se obter resposta, se acaba por desistir. Foi por isso que, no espécie de riso que se parece com um gemido), verificou que muitos
dia em que Pedro encontrou o Coelho Branco morto na gaiola, não pares de olhos, espantados, se fixavam nele, como se dissessem:
fez qualquer pergunta à mãe, com receio de a embaraçar. “Com “Estás a gozar-me? Estás a cacarejar?” Não teve mais sucesso com o
certeza”, pensava ele, “certas palavras como morte, doença, fazer meio-sorriso: “O que se passa? O que foi? Estás a rir-te de mim ou
bebés, são palavrões.” quê?” pareciam dizer as pessoas.
Então, o rapazinho enterrou o coelho em silêncio e, com ele, a Na sexta-feira seguinte, José foi de novo ter com o pequeno
sua pergunta. Refugiou-se no jardim, na tenda que tinha só para si, comerciante e reparou que este já não estava tão rechonchudo,
como fazem com frequência os filhos únicos, e reflectiu na vida, na porque tinha envelhecido muito.
existência, e tudo aquilo gerou uma pequena nuvem negra que lhe Apoiava-se na bengala com muita dificuldade e os seus olhos
dava voltas dentro da cabeça. Ficou triste e sentiu frio. Não sabia que tinham perdido todo o brilho. Ouviu, todo a tremer, o pequeno José
àquilo se chamava “solidão”. falar das suas experiências.
Um dia, a meio da tarde, estava Pedrito refugiado na tenda, ― Está perfeito ― disse, numa voz estremecida. ― Saíste-te
quando ouviu uma voz muito meiga. Viu então uma senhora de olhos muito bem a testar sorrisos e risos. Tenho uma surpresa para ti.
profundos e escuros que o observava a sorrir. Podia tê-la encontrado O vendedor mostrou-lhe um frasco que brilhava e murmurou:
no sótão, no meio das coisas velhas, no céu durante um baptismo de ― Acabo de o encontrar: é o sorriso magnético, o sorriso mais
ar num helicóptero, durante a pesca, ou num concurso de música. profundo! Coloquei-o num frasco. Bebe-o!

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José bebeu, e sentiu-se logo cheio de luz: uma sensação de — Bom dia, Pedro — disse-lhe a senhora. — Sabes quem sou?
calor subiu pela sua barriga, fez-lhe cócegas nas orelhas, e provocou Sou a Dama das Histórias.
faíscas nos seus olhos. José sentiu-se muito forte. — A Dama das Histórias?!
― É esquisito, sinto-me a desfazer por dentro ¯ disse. — Sim! A Dama das Histórias! Venho visitar os meninos como
¯ Vai à tua vida, meu rapaz ― murmurou o homenzinho. ― tu, que têm uma nuvem negra no coração. Venho para lhes dizer que
Depois, vem dizer-me se este sorriso é eficaz para fazer amigos. nos livros há histórias que podem dar-lhes respostas.
O pequeno comerciante tinha razão: aquele riso era — Respostas a todas as MINHAS perguntas? — perguntou
totalmente mágico! Quando saiu da carrinha, o pequeno José viu que Pedrito arregalando os olhos.
todos os habitantes da aldeia queriam ficar junto dele. A Dama das Histórias hesitou:
― Ó rapazinho! Rapazinho! Fica comigo! ― gritou o gigante — Não vais encontrar forçosamente TODAS as respostas, mas
tristonho. ― Diz-me por que tens um ar tão feliz. sim TODAS as tuas perguntas. Verás, ao leres, que outros fazem as
Quando chegou à escola, as crianças chamaram: mesmas perguntas que tu. É por isso que os livros são feitos para os
― Olá, José, olá! meninos curiosos, para aqueles que têm milhares de perguntas e
Então, o pequeno José pôs-se a rir ainda mais, mas com um riso que, além disso, querem viver várias vidas ao mesmo tempo. Podes
de prazer. Um daqueles que ainda não tinha experimentado. ser, ao mesmo tempo, Robin dos Bosques ou Peter Pan, sem
Escreveu: “Sorriso mágico, magnético, de gigante!” precisares de qualquer requisito especial! E o mais maravilhoso é que,
E como este sorriso o tornou mais inteligente, escreveu ainda: nos livros, aprendes a viver, a respirar, a experimentar coisas, a
“Nada tem a ver com o sorriso de palhaço, que se cola ao rosto e que brincar… A fazer muitas coisas que não conhecias! Apenas com
desaparece do mesmo modo que chega. Este sorriso vem do interior algumas palavras, papel e muita imaginação…
de cada um e ilumina toda a gente.” E escreveu ainda: “Tudo o que é A Dama entregou-lhe um livro, que ele agarrou com avidez. À
importante vem do mais fundo de nós.” medida que lia, a pequena nuvem negra ia desaparecendo e Pedro
Quando o pequeno José regressou à carrinha, continuava a sentia-se tão aliviado que teve vontade de cantar. O vento nas
sorrir. árvores murmurava: “Lê, lê… É tão bom ler!” E os pássaros
― É o sorriso mais maravilhoso que existe. Toda a gente devia juntavam-se no ninho para o verem saborear o livro.
possuir este sorriso tranquilo, porque as pessoas se aproximam de Enquanto o folheava, Pedrito tinha a impressão que ouvia os
nós e sorriem também. E isso dá-nos mais vontade de sorrir. murmúrios dos gnomos que, com ele, viravam as páginas. Na
realidade, ele já não se encontrava no jardim. Já não estava na

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cabana. Tanto podia estar num avião, num barco, como num castelo, O pequeno comerciante suspirou com um ar satisfeito e depois
com o rei Artur. fechou os olhos. José viu pequeninas lágrimas de alegria brilhar
Era tudo isto ao mesmo tempo. Sentia coisas que nunca antes como pérolas, ao cantinho das pálpebras do homem.
tinha vivido: o gosto do mar nos lábios, ele que nunca vira o mar, o ― Sabes ― disse-lhe o vendedor ― este sorriso do fundo é a
sabor de um bolo de limão, ele que nunca o tinha provado, o coração obra da minha vida. Passei muito tempo a procurá-lo e agora posso
que pula no peito quando se está apaixonado, ele que era tão tímido descansar. Mas quero dar-te um presente…
com as raparigas! Entregou a José um pequenino frasco vazio.
Levantou os olhos do livro para perguntar à Dama das Histórias ― Conserva o teu sorriso neste frasco, não o deixes
como é que simples páginas, tinta e papel, e talvez também desaparecer! Mete-o lá todas as noites, mantém-no com muito amor
imaginação, podiam produzir aquele efeito. Mas a Dama das Histórias e amizade. E terás uma vida formidável ― acrescentou o pequeno
já tinha desaparecido. Ao longe, ouviu a sua voz doce dizer-lhe (ou comerciante, já muito velhinho.
talvez fosse o murmúrio do vento nas árvores!): Quando apertou a mão muito fraquinha do vendedor de
— Pedro, hei-de voltar. Existem centenas de milhares, milhões sorrisos, o pequeno José estava muito triste. Sabia que a carrinha
de livros! partiria naquela noite e que não voltaria a ver o pequeno
A nuvem escura das perguntas condensadas tinha comerciante. Mas tinha posto naquele frasco o mais magnífico dos
desaparecido. No seu lugar, havia uma nuvem transparente, cheia de presentes, um peixinho ágil que se chamava “sorriso luminoso”.
desejo de ler os milhares e milhões de livros do mundo inteiro. Sabia que, com este sorriso tranquilo, delicado e feliz, podia fazer
A partir daquele dia, Pedro nunca mais se sentiu oprimido pelas muitos amigos. E que a sua vida se tornaria, de facto, maravilhosa.
perguntas. Quando começava a ter frio, a sentir-se só e tristonho,
pegava num livro e a magia recomeçava.
Sophie Carquain
Petites leçons de vie. Pour l’aider à s’affirmer
Paris, Ed. Albin Michel, 2008
Sophie Carquain (tradução e adaptação)
Petites histoires pour devenir grand
Paris, Ed. Albin Michel, 2003
(tradução e adaptação)

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AOS PAIS E EDUCADORES

Um mundo de sorrisos

E se, nas nossas pequenas lições de vida, nas nossas histórias


de delicadeza, de respeito, de afirmação pessoal, tudo terminasse
com um sorriso?
Parafraseando Rabelais, pode-se dizer que o sorriso é próprio
do homem e da sua ligação ao outro. É o esboço da afirmação
pessoal (afirmamo-nos pelo sorriso), do respeito e da delicadeza
devidos ao outro; o testemunho incontornável da amizade e do A ZANGA DE LARA E LIA
amor.
Sorrir para o outro é, de facto, desenhar um traço de união. É Lara era uma ratinha cinzenta com um laço rosa no cabelo, e
um momento para o convite, uma abertura que sugere: “Vi-te, Lia era uma ratinha rosa com um laço cinzento no cabelo. No
reconheci-te. Há espaço para ti e estou disponível para te ajudar.” primeiro dia de aulas do 1º Ciclo, no grande recreio da grande escola,

Um sorriso é o primeiro sinal altruísta. Abrimos a porta ao outro, os seus olhares cruzaram-se, bem como os seus lacinhos, e sorriram
uma para a outra com os seus pequeninos dentes pontiagudos.
cedemos o lugar no metro. É o embrulho-oferta com um bonito laço.
— Eu chamo-me Lara.
— E eu, Lia.
Verdadeiro ou falso? Veja a diferença! — Não achas que somos parecidas? — perguntou Lara, que
Os sorrisos verdadeiros que vêm do coração opõem-se aos sempre sonhara ter uma irmã gémea.

sorrisos falsos, mundanos, adocicados, que funcionam mais como — Não sei, mas vamos ser amigas — respondeu Lia.

bofetadas. O mundo está cheio destes sorrisos falsos, que dizem: Assim começou a amizade entre ambas.
Sentaram-se uma ao lado da outra e nunca mais se deixaram.
“Não” com muita elegância, que traduzem o contrário do que
Não paravam de contar coisas uma à outra e punham-se a cochichar
exteriorizam.
quando viam os ratinhos andar à volta delas. Tinham até trocado os
seus laços do cabelo: rosa, cinzento, cinzento, rosa.

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— Assim ficamos mesmo a ser irmãs — cantarolou Lara, com Pode ser o “Obrigado, caro senhor” do director, muito
os olhos brilhantes. sorridente, que indica a porta de saída, como que a dizer “Adeus, vai-
É tão bom ter uma amiga! A duas, tinham a impressão de -te embora, nunca mais te quero ver”. É o sorriso triste e confuso do
serem mais fortes, de formarem um bloco contra os gritos e as homem que anda a passear e desaparece sem dar nada ao sem-
risadas daqueles que se conheciam há já muito tempo. Elas, que eram -abrigo; é o sorriso desdenhoso e altivo do examinador.
novas na escola, sentiam-se assim menos perdidas…
Há risos e sorrisos que matam como tiros de pistola, e que nos
A duas, tudo era mais engraçado. Até as aulas de ginástica, que
afastam uns dos outros. Pelo contrário, há risos que nos unem uns
ambas detestavam, elas que eram tão miudinhas e tão leves!
aos outros. Por que sorrimos tão pouco, quando um sorriso faz tão
Quando saíam da escola dos Ratos, Lara acompanhava Lia a
bem? Por timidez? Por avareza, por sovinice? Temos tanta falta de
casa, depois Lia acompanhava Lara… E as idas e vindas duravam até
tempo que dizemos apenas o essencial da mensagem… sem a
ao cair da noite.
Um dia, Lia apercebeu-se de que um ratinho do 5º ano lhe fazia envolver neste bonito presente!

olhinhos. Risos e sorrisos, quando vêm de muito longe, do fundo do

— Olha — murmurou ela, com a mãozinha rosada sobre os coração, são contagiosos. São risos e sorrisos habitados por uma
lábios. — Julgo que tenho um apaixonado! certa graça, que vivem por eles próprios. Um riso e um sorriso
— É ridículo! — riu Lara. — Está sempre a olhar para ti com verdadeiros são a melhor maneira de entrar em contacto com os
olhos de carneiro mal morto. Para um pirralho de um rato, é o outros. Todos vemos que, quando somos invadidos por um pequeno
cúmulo! sorriso irreprimível, os outros nos seguem; até os desconhecidos
Mas Lia não gostou. Com um olhar duro e os lábios apertados, param para nos pedir uma informação sobre o caminho a seguir.
disse a Lara: Mesmo que apenas os verdadeiros sorrisos sejam contagiosos,
— O que tu tens é ciúmes.
é também preciso mostrar pequenos sorrisos de gentileza, para
Lara sentiu o coração gelar-se-lhe. Era a primeira vez que não
entrar em contacto com o outro. A isso chama-se linguagem “infra-
estavam de acordo. Era a primeira vez que Lia lhe falava assim, com
-verbal”. Infelizmente, esta linguagem não é estudada na escola. É
um tom duro e estranho.
por isso que é preciso ensiná-la às crianças.
Naquela tarde, depois das aulas, ninguém acompanhou
ninguém. Até ao cair da noite, Lara mastigou pipocas diante da
televisão. Mas o gelo do coração não derretia.

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Algumas frases-chave No dia seguinte, Lara quis pedir desculpa. No recreio, correu no
seu passinho miúdo para junto de Lia. Mas esta desviou o olhar e foi
para outro lado. Quanto mais Lara se aproximava, mais Lia se
• Um sorriso é mais forte do que palavras simpáticas. Palavras
afastava.
importantes, ditas sem um sorriso, com ar rezingão, podem
Lara dava-lhe presentes atrás de presentes: cascas de queijo,
não ser compreendidas pelo outro.
bolachas com queijo, biscoitos recheados de queijo. Lia recusava
• Um sorriso é contagioso. Se não sorrirmos, ninguém nos
sempre. Lara escreveu-lhe uma carta, deu-lhe mesmo um lacinho
sorri. Mas quando se sorri, é como se, com um anzol, se rosa, mas Lia torcia o nariz e olhava para outro lado. Quanto mais
procurasse o sorriso do outro. Mesmo ao telefone, um Lara se aproximava, mais ela se afastava.
sorriso ouve-se! Ao quinto dia, quando Lara se aproximou, Lia pôs-se às
• Um sorriso desarma… Se alguém se nos dirigir com um ar risadinhas com aquela maçadora da Lili. O coração apertou-se-lhe:
zangado, podemos responder-lhe a sorrir e a sua raiva lembrou-se dos dias em que era ela, Lara, a rir com Lia da maçadora
diminuirá como com o toque de uma varinha mágica. da Lili.
Pronto, acabara-se tudo. Sentia as mãos frias e o coração
gelado. As próprias árvores, no recreio, pareciam negras e hostis.
Lara tiritava em casa. A mãe dizia-lhe:
— Não lhe mostres tanto que gostas dela, quanto mais te
aproximares, mais ela se vai afastar. Aconteceu-me uma coisa
semelhante com um rapaz por quem estava interessada. Quanto
mais eu lhe dizia que gostava dele, mais ele se ria na minha cara.
Entre amigas, passa-se o mesmo.
— É absurdo — gritava Lara, zangada. — Então não posso
dizer-lhe que gosto dela?
— Não deves ser escrava dela — respondeu a mãe. — Faz o
que te digo: não percas a boa disposição e não transformes isso num
drama. Tudo há-de resolver-se.

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Então, Lara meteu-se definitivamente na toca. Os seus bigodes
e o seu laço rosa estavam caídos de tristeza; na escola, aborrecia-se
terrivelmente, sobretudo quando via Lia e Lili rirem juntas. Tinha a
impressão de já não existir, ela que só vivia nos olhos de Lia. O pior
eram as aulas de ginástica: sentia-se só, frágil, cheia de vertigens. E
quando tinha de dar o salto do cavalo, parecia-lhe que se ia quebrar
em mil pedaços.
Um dia, quando o professor estava a explicar o modo mais
rápido de fugir de um gato, Lara viu um par de olhos aproximar-se
dela. Era a Carolina Gorducha, a ratinha de traseiro redondo de que
toda a turma troçava.
— Parece que isto não está a correr lá muito bem —
comentou, pondo a sua mão gordinha e quente sobre a mão gelada
de Lara. — Eu também não gosto muito das aulas de ginástica —
murmurou ao ouvido da sua nova amiga.
— Para mim são um pesadelo — sorriu Lara.
Assim começou a amizade entre ambas. E as árvores da escola
voltaram a ter folhas. Sentia-se de novo um calor agradável.
Alguns dias mais tarde, à saída das aulas, Lia estava à espera de
Lara.
— Vens a minha casa?
E pôs a mão na sua.
— Sabes — murmurou ela — gosto muito da Lili. Mas tu és a
minha melhor amiga.
Uma onda de calor invadiu Lara, que sentiu os olhos
humedecerem-lhe. Gostava de Lia acima de tudo e nem sabia dizer
porquê.

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Mas procurou dominar-se. Lembrava-se da frase da mãe: “Não
lhe mostres demasiado que gostas dela.”
— Espera um minuto — disse Lara. — Vou apresentar-te a
Carolina, uma nova amiga minha.
— Olá, Carolina — cumprimentou Lia ao ver a Carolina
Gorducha. E a Carolina Gorducha disse:
— Querem vir a minha casa? Tenho umas boas cascas de queijo
para a merenda.
E as três ratinhas lá foram de mão dada.
Lara pensava: “A minha melhor amiga há-de ser sempre a Lia e
O DUENDE DUDU, PROFESSOR DE FELICIDADE eu nem sei porquê. Mas o que sei é que é normal as pessoas
discutirem de vez em quando e até deixarem de se falar. E não vale a

Naquele dia, Martinho acordara muito, mas muito mal pena fazer disso um drama.”

disposto, como era, aliás, habitual, todas as manhãs. Martinho estava


sempre de péssimo humor. Mas não era por falta de uma mãe
sorridente, de um pai carinhoso, de uma linda casa, nem de todas Sophie Carquain
Petites histoires pour devenir grand
aquelas coisas que são necessárias para se ser feliz.
Paris, Albin Michel, 2003
— Bom dia, querido! — exclamou a mãe. O sol inundou o (tradução e adaptação)
quarto.
— Grrr — disse Martinho, à laia de bom dia.
— Hoje está bom tempo, podes vestir os teus calções — disse-
-lhe a mãe carinhosamente.
— Não gosto de bom tempo — resmungou Martinho. —
Quando está bom tempo, fica muito quente.
A mãe suspirou. Porque seria ele tão resmungão?

61 173
Mas, naquela manhã, alguma coisa ia mudar na vida de
Martinho. Ao despir o casaco do pijama, sentiu uma coisa no bolso...
Assustado, sacudiu a veste.
— Ai, ai! Ui! — ouviu-se do chão uma vozinha minúscula.
Martinho semicerrou os olhos... Diante dele, agitava-se o mais
pequenino duende que alguma vez existiu à face da terra. Um
duendezinho que esfregava o seu minúsculo pé esquerdo, ao mesmo
tempo que fazia caretas.
— O que estás aqui a fazer? — perguntou Martinho.
— Não és nada simpático. Ao menos podias perguntar-me se
eu não me magoei, não achas? Julgo que parti o pé esquerdo.
— E depois? — perguntou Martinho, cruzando os braços.
O pequeno duende estendeu-lhe a sua mãozinha minúscula.
— Sou o duende Dudu, professor de felicidade — disse em tom
solene. — Às tuas ordens.
— Professor de felicidade? E que mais? — disse Martinho, rindo
maldosamente. — Porque não professor de delicadeza e de boas-
-maneiras?
— Acertaste em cheio! — exclamou Dudu com a sua vozinha
minúscula — porque sou tudo isso ao mesmo tempo. Ensino a
gentileza, as boas-maneiras, os sorrisos, o desejo de viver. E agora,
cuidas-me da perna e levas-me para a escola, por favor?
De má-vontade, Martinho foi buscar cartão, fósforos e fio de
pesca para fazer uma tala. Em seguida, meteu Dudu no bolso do
casaco, dizendo:
— Nunca se sabe... talvez eu me aborreça menos do que de
costume!

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A caminho da escola, o duende Dudu pôs a sua pequenina
cabeça fora do bolso.
— Martinho, levanta a cabeça! Tens os olhos pregados no
chão! Assim só vês o cocó dos cães!
— E depois? — perguntou Martinho com um tom arrogante. —
Quero lá saber do que se passa à minha volta!
— Não me admira que andes sempre mal disposto, assim
fechado em ti mesmo como numa prisão! — suspirou o duende da
felicidade. — Olha à tua volta! Olha para esta banca de frutos!
Aprecia estes morangos! Davam-me para uma casa fantástica.
Quando for rico, hei-de comprar um morango como aquele e fazer JOGOS PERIGOSOS
dali a minha segunda residência. Com cortinados brancos às pintinhas
cor-de-rosa.
Às vezes, os ratinhos da turma fartavam-se de estar sentados.
“É doido de todo”, pensou Martinho.
Quando chegava a hora do recreio, era vê-los a gritar e a correr nos
Mas o duende não parava de se extasiar:
corredores! Brincavam ao elástico, jogavam à bola e às escondidas.
— Oh! Olha! Aquela menina... Que beleza! Parece saída das Mil
Até que um dia, um grande rato branco troçou deles:
e Uma Noites. Se lhe puseres um diadema, fica uma verdadeira
— Que jogos mais infantis! Eu cá jogo a outra coisa. Mas não
princesa.
posso dizer nada porque são jogos secretos. As famílias dos ratinhos
Pela primeira vez, Martinho reconheceu que Dudu tinha razão.
não gostam de jogos para gente grande.
Quando se olhava para ela com olhos de duende, aquela menina
Foi assim que o grande rato branco lhes ensinou a puxar os
parecia saída de um conto de fadas.
bigodes do gato Isidoro. Mas era um jogo muito perigoso, até porque
— Oh! É extraordinário! — voltou Dudu a exclamar.
o gato apanhava sempre o ratinho mais lento.
— O que é agora? — perguntou Martinho cheio de curiosidade,
— Ora, ora — comentavam os outros. — Este jogo é muito
erguendo os olhos. — O que estás a ver, Dudu?
perigoso.
— Bem, é o senhor Peixoto, o peixeiro — exclamou Dudu com
Contudo, não ousaram contrariar o rato grande, que se tornou
a sua vozinha estridente. — Vai de bicicleta, olha! Deve ir à pesca.
o chefe do bando. Ninguém tinha coragem para confessar o seu
— Para onde?
medo. No dia seguinte, o rato propôs saltarem por cima de uma

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ratoeira, tentando apanhar o pedaço de queijo. Que terror! Todos se — Pode ir para o rio Douro, para o rio Tejo, para o oceano...
sentiam muito assustados, porque bastava um ligeiro toque para tanto faz!
ficarem estrangulados. — É verdade — concordou Martinho. — Não importa saber
— Então, meus medricas? Quem vai ser o primeiro? para onde. O que tem graça é imaginá-lo a pescar...
Os ratinhos olharam uns para os outros, colocaram-se em fila Na escola, Dudu admirava-se a cada instante. A aula de
indiana e saltaram. A Rosinha ficou prisioneira. Da ratoeira e do gato Matemática fê-lo dar saltos dentro do bolso.
Isidoro. Mas nem assim o rato branco desistiu. — Ena! Tantas possibilidades! Tantos cálculos até ao infinito!
— Já vos falei daquele jogo em que os ratinhos enrolam as A aula de História fê-lo suspirar de satisfação.
caudas em torno do pescoço e apertam, apertam… — Tantas histórias... — murmurava ele com a sua vozinha
— Isso é idiota — disse o Luís. — Podemos morrer minúscula de duende. — Histórias de reis, de imperadores...
estrangulados. Mas a sua preferida foi a aula de Geografia.
— Não morrem nada, seus patetas, porque param a tempo. — Os mares! Os oceanos! Tantas ilhas, tantos lugares que não
Este jogo dá-nos a sensação de estarmos a cair do alto de uma conhecemos e que podemos imaginar só de olharmos para um mapa!
falésia. É superfixe! Os mapas geográficos são um verdadeiro sonho!
Os ratinhos começaram a experimentar e nem sequer deram Era assim mesmo, sem tirar nem pôr! Martinho começou a
pela aproximação do gato Isidoro, que comeu logo três de uma vez. pensar que aquele homenzinho estava cheio de razão, e passou a
Era demais! prestar atenção àquilo que acontecia na escola.
Nessa tarde, o ratinho Júlio chegou a chorar a casa: — Gostavas de ir a algum lado, Martinho?
— Há jogos na escola que fazem mal aos ratinhos. Não quero lá — Gostava de ir à Polinésia — respondeu Martinho. — Porque
voltar! lá a água do mar é quente e há peixes de todas as cores.
Os pais do Júlio nem queriam acreditar. Como pode haver Quando saiu da escola, às quatro e meia, com o duende no
alguém pequenino e amoroso que queira magoar-se? Como se pode bolso, Martinho já não ia cabisbaixo. Sentia agora que a sua vida
obedecer com tanta facilidade a quem nos quer fazer mal? estava cheia de sonhos e de cores.
O grande rato branco foi severamente punido e foi até preso, e — Vês — disse Dudu — basta mudar-se o que se tem na
todos os jogos perigosos foram proibidos na escola. E a professora cabeça. Se pensarmos: “Vou aborrecer-me na escola”, aborrecemo-
teve de explicar aos ratinhos o que era verdadeiramente um jogo. -nos de certeza. Mas, se pensarmos: “Vou ouvir histórias bonitas
sobre países longínquos”, tudo se torna diferente.

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O ar cheirava a framboesas e Dudu não parava de falar. — Um verdadeiro jogo é quando um rato faz de conta que é
— Sabes que mais? Se eu tivesse uma mãe como a tua, só teria um gato. Pode ser divertido e não implica perigo nenhum. Mas se o
um desejo: sentir a cara dela junto da minha, respirar o seu perfume... ratinho for atrás de um gato, isso já é um comportamento perigoso.
As mães são tão perfumadas, tão carinhosas! Ficamos tão contentes — Mas como havemos de distinguir entre os dois? —
quando pensamos nelas... perguntaram os ratinhos.
E a sua voz tornou-se grave: — Quando alguém vos disser para guardarem segredo e não
— Eu tive mãe, há muito, muito tempo... E agora daria tudo contarem aos pais, é sinal que o jogo é perigoso. E vocês também
para poder respirar o seu perfume. Mas é tarde demais. têm de aprender a ouvir a vossa pulguinha.
Martinho compreendeu que a mãe de Dudu e o seu — O que é a pulguinha? — perguntaram todos.
desaparecimento tinham um papel muito importante na história do — A pulguinha é uma vozinha que vos avisa do perigo. É por
duendezinho e na sua maneira de procurar ser feliz. isso que se diz: “ter a pulga atrás da orelha”, ou seja, desconfiar de
Naquela noite, Martinho deu à mãe um abraço muito apertado uma situação perigosa.
e respirou com força o seu perfume. A mãe deu-lhe um abraço mais A ratinha Lúcia lamentou-se:
apertado ainda. — Nunca ouvi a minha pulga. Será que tenho uma?
— Sinto que estás melhor, Martinho, e estou muito contente — Claro que tens — assegurou a professora. — Mas tens de te
por isso. esforçar por a ouvir. Quanto mais te esforçares, melhor a ouvirás.
— É natural! — respondeu Martinho a rir-se. — Trago comigo Os ratinhos ficaram felizes por terem uma amiga interior que
um génio bom… Um pequeno duende que me ensina a ser alegre. os avisava do perigo e aprenderam a escutá-la. Quando a pulguinha
A mãe também se riu e deu-lhe as boas-noites. lhe dizia para desconfiarem, eles respondiam logo aos convites com
No dia seguinte, quando Martinho acordou, meteu a mão no um “Não quero brincar” ou “Não vou contigo”.
bolso à procura de Dudu. Nada. Sacudiu com força o casaco do Desde então, os ratinhos não acompanham estranhos na rua e
pijama à espera de ouvir o duende resmungar, como na véspera. Mas só jogam a jogos a sério, ou seja, a brincar. Jogos onde não
aquilo que caiu foi uma minúscula folha de papel branco que ele encontrem gatos…
desdobrou.

O meu pé melhorou e já posso ir-me embora. Sophie Carquain


Petites histoires pour devenir grand (2)
Espero que o teu pé também esteja melhor. Paris, Albin Michel, 2005
Desejo-te uma vida bonita, cheia de pequenas alegrias. (tradução e adaptação)

65 177
AOS PAIS E EDUCADORES Martinho fez um esforço para não chorar. Passado algum
tempo, já não se sentia triste nem zangado. Comentou
simplesmente:
De há alguns anos a esta parte que os recreios assistem à — Que sorte tive de o ter conhecido! Foi o melhor professor de
proliferação de “jogos de massacre”, ou seja, jogos em que os felicidade que alguma vez encontrei!
miúdos fingem estrangular alguém ou estrangular-se a si mesmos, Foi assim que a sua vida mudou por completo.
com um lenço, uma corda, o cinto do fato de judo… As crianças Quando cresceu, Martinho casou-se com uma princesa das Mil
privam-se de oxigénio para poderem ver uma luz branca, para terem e Uma Noites. Viajou para longe, durante muito tempo. Descobriu
alucinações… Contam-se já inúmeras mortes devido a este jogo... regiões desconhecidas, só vistas nos mapas, tal como a Polinésia, o
que lhe dava sempre uma enorme satisfação.
• Os adolescentes sempre brincaram com a morte. É uma Por vezes, diante de um oásis, de uma duna, ou de um cardume
forma de se sentirem mais vivos, de experimentar os seus de peixes multicores que nadavam rumo ao sonho, ele pensava no
próprios limites. Contudo, as condutas de risco estão hoje duende Dudu e sabia que, onde quer que este estivesse, no seu
numa fase crescente e ameaçam já extravasar para as escolas morango gigante ou no deserto da Arábia, iria sempre olhar para ele

primárias. com o seu olhar sábio de filósofo e murmuraria:


— Bravo, Martinho! Estou orgulhoso de ti! O teu pé esquerdo
• Veja se o seu filho tem traços acastanhados à volta do
está agora muito melhor!
pescoço, dores de cabeça fortes, falta de concentração e um
cinto do qual recusa separar-se.
• Muitos pais e educadores pensam que o silêncio é a melhor
Sophie Carquain
das atitudes. Por que razão falar-lhes de jogos que eles Petites histoires pour devenir grand
ignoram? Mas mais vale preveni-los destes jogos e dos Paris, Ed. Albin Michel, 2003
(tradução e adaptação)
perigos que acarretam, antes de eles os descobrirem por si
mesmos… e ser demasiado tarde!

178 66
Algumas frases-chave

• Quando te convidarem a jogar um jogo que te pareça


estranho, recusa logo. Sobretudo se te pedirem para guardar
segredo.
• É grave reter a respiração, fingir estrangular-se. Não é um
jogo. Pode ser a tua morte.
• Fingir que se está morto é totalmente diferente de arriscar a
vida a sério.

AS DUAS CASAS OU UMA HISTÓRIA DE CORES

Num dia de Primavera, os pais do Luís decidiram fazer a


mudança.
— Vamos mudar-nos e deixar a casa verde. Hás-de ver, vai ser
formidável.
Os olhos do Luís brilharam.
— Vou ter um quarto grande? E o pai um novo escritório?
A mãe do Luís deu um grande sorriso.
— Melhor ainda! Vamos ter duas casas. Uma para nós, outra
para o pai. É óptimo, não achas?
Luís meneou a cabeça, pensando: “As mães são realmente
incríveis, com a sua mania de arranjar as coisas.”
— Será maravilhoso, fantástico — continuou a mãe, com um
grande sorriso postiço — Tu, que querias um quarto maior, vais ter
dois: um em casa do pai e outro em minha casa. Passas um fim-de-
-semana em casa dele e outro comigo. Vais ser o nosso reizinho
durante o fim-de-semana, estaremos sempre contigo.

67 179
Luís sentiu um peso de chumbo em cima dos ombros. Rei? Mas
ele nunca tinha querido ser rei. No entanto nada disse, e o rosto
abriu-se-lhe num grande sorriso.
— És um menino sensato! Encaras muito bem as coisas! —
disse a mãe, que, de alguns dias para cá, punha pontos de
exclamação em todo o lado e metia “óptimo” e “maravilhoso” em
todas as frases.
No meio desta efervescência de regozijos, desta montanha de
sorrisos postiços e de hipocrisia, cada um embalou as suas coisas. O
pai fez as malas, piscando várias vezes o olho ao filho.
— Pareces contente, pai — disse Luís.
— Sim, verás que vai ser óptimo — disse o pai com voz sumida.
Por sorte, encontraram duas pequenas casas, não muito
afastadas uma da outra, uma casa amarela e outra azul, para não
serem sempre casas verdes. No dia em que o Luís se preparava para
ir visitar o pai à casa azul, a mãe entregou-lhe uma malinha com as
suas coisas azuis do fim-de-semana. E se o Luís perguntava quando
regressariam todos para a casa verde, a mãe desviava o olhar mas
não o sorriso.
— Em breve, em breve! — dizia alegremente. — Não te
preocupes, querido.
Porque, por vezes, os adultos querem proteger as crianças e
acenam com contos de fadas. Ela não tinha a coragem de dizer que a
vida de antes terminara e que a casa verde estava definitivamente
fechada. A vida organizou-se nas duas casas e entre as duas casas.
Luís tinha a sua pequena escova de dentes azul, a sua escova
de dentes amarela; tinha, de um lado, meias azuis, do outro, meias

68
amarelas; livros azuis, livros amarelos. Tudo estava bem separado: as
cores, as lembranças, os pais. Antes, ele só tinha uma cor, agora,
tinha duas.
Pela primeira vez, Luís compreendia o ciclo do tempo, o
passado, o presente, o futuro. Havia o antes, havia o depois. Nada
durava e nada se misturava. Quando a mãe o acompanhava, deixava-
-o à porta da casa azul, depois de lhe dar um grande beijo. O pai
nunca entrava na casa amarela, deixava Luís descer do carro e dizia-
-lhe:
— Estou cheio de pressa. Preciso de ir.
No entanto, cada um deles fazia perguntas sobre o outro. O DIA EM QUE A TERRA FFICOU
ICOU SURDA
— Como vai a tua mãe? — perguntava o pai.
— O teu pai emagreceu muito? — perguntava a mãe. Em 2550, os carros tinham-se tornado tão velozes que
E o Luís respondia sensatamente: sulcavam os céus como foguetões. Os aspiradores funcionavam
— Oh, a mãe está muitíssimo bem. sozinhos à distância, graças a um telecomando especial, e os
— O pai está óptimo. frigoríficos falavam: “A manteiga está rançosa, os brócolos estão
Pode-se, aparentemente, ser uma criança sensata e, por velhos. Comprar iogurtes, por favor.” Quando os enchíamos de novo,
dentro, estar-se muito confuso. Por dentro, pode-se berrar, vociferar, cantavam árias de ópera.
gritar que a vida não presta e que os pais exageram. Não é fácil ter-se Os telemóveis tinham-se tornado tão pequenos que cabiam
duas casas! Habitualmente, Luís perdia-se nos corredores. Na casa nos ouvidos e bastava estalar os dedos para os ligar. Todas as
azul, procurava o quarto amarelo e quando, na casa amarela, se famílias dispunham de uma dúzia de robôs que faziam tudo em casa:
levantava de noite, dirigia-se à cozinha em lugar de ir ao quarto de arrumar, encerar, fazer os deveres. A vida tinha-se tornado muito
banho. facilitada e havia mais tempo. Contudo, um problema enorme
Ia ao talho comprar pão e pedia iogurtes na loja de brinquedos. persistia: o barulho.
Um dia, chegou à escola com um sapato azul e um sapato amarelo. O barulho tornara-se insuportável, monstruoso, aterrorizador,
Num outro dia, para a aula de ginástica, enfiou uma roupa de palhaço como se tivessem posto o volume de um aparelho no máximo. Os
em vez do fato de treino. frigoríficos que cantavam, os motores-foguetão, os apitos dos

69 181
professores de Educação Física, as fúrias dos pais e, mais do que — Andas sempre na lua — suspirou a professora. Mas era às
tudo, o barulho das crianças. Estas viviam com um auscultador escuras que ele andava.
instalado no ouvido, que transmitia música, filmes ou desenhos No dia da mãe, apareceu com uma máquina de barbear
animados… Ininterruptamente! eléctrica, e deu ao pai, no Natal, um lindo par de brincos em forma de
Sempre que precisavam de falar, as crianças desatavam aos coração. “O Luís anda numa fase de grande distracção”, escrevera a
berros, para se poderem ouvir. Já reparaste que barulho faz barulho? professora na caderneta escolar. Mas Luís não andava distraído, não
Quando alguém fala alto no autocarro, tens de levantar a voz para te estava no azul nem no amarelo, mas no mais completo verde. Porque
fazeres ouvir pelos teus colegas. E o condutor tem de berrar para nunca esquecera a promessa da mãe:
anunciar o fim da viagem. — Em breve, voltaremos para a casa verde.
Em 2550, a professora dava aulas com megafone e as mães Mas quando? E um belo dia, por um grande acaso, o pai e a
utilizavam um microfone para dizer coisas tão simples como “Vai mãe encontraram-se na rua. Com eles, Luís, no meio. Ficaram
tomar o teu banho” ou “Desliga a televisão, se faz favor”. As crianças vermelhos que nem tomates.
respondiam aos berros: “Ainda não posso, estou a ver os desenhos — Oh, o que andas a fazer? — perguntou a mãe.
animados.” — E tu, o que andas a fazer? — perguntou o pai.
Nada se passava com calma, nada se fazia discretamente. — Ando a passear.
Caminhar tornara-se marchar; nas cantinas, o barulho dos talheres — Também eu.
era insuportável; verbos como “sussurrar” e “soprar” (Era um diálogo muito interessante.)
desapareceram do vocabulário das pessoas. Assoar-se era como — E se fôssemos os três ao restaurante? — perguntou o pai
soprar uma trombeta; os pequenos arrotos pareciam petardos. O sol com ar bem disposto.
parecia uma roldana enferrujada quando se erguia e a lua uma gralha Luís não se atreveu a manifestar a sua alegria, mas, por dentro,
insuportável quando aparecia no céu estrelado. dava pulos de contente! Os pais voltavam a entender-se e as cores
Uma pausa, um silêncio, o vazio, um chapinhar de água, um misturavam-se de novo! E, à sobremesa, diante do gelado verde de
bocejo, eram tudo coisas do passado. A Terra fazia tanto barulho que pistácios, perguntou, cheio de satisfação:
os seus vizinhos começaram a detestá-la. Marcianos, Venusianos e — Então… É hoje que voltamos para a casa verde?
Saturnianos, tudo gente calma, chamaram a polícia. Claro que havia A mãe olhou com muita atenção para o fundo do copo.
um Ministro do Ruído, mas as leis já não se cumpriam. Os ouvidos — Luisinho, temos de te explicar… — começou a mãe.

182 70
E ambos explicaram ao rapazinho que nunca mais, nunca mais, tinham-se tornado profundamente infelizes, porque não aguentavam
voltariam a morar juntos. A mãe já não sorria com o seu sorriso tantos decibéis e não podiam fechar-se como os olhos.
postiço e não voltara a dizer “fantástico” ou “maravilhoso”. Luís Um belo dia, quando os Terrestres se levantaram, só ouviram
chorou, gritou, estrebuchou e chamou-lhes mentirosos. Por vezes, um grande silêncio. Puseram o volume do ouvido no máximo e nada.
não é fácil os adultos resolverem-se a dizer a verdade quando ela é Quando as mães quiseram gritar para os filhos lavarem os dentes,
custosa. Mas tem de ser. nenhum som lhes saiu da boca. Tinham ficado surdas. Aliás, toda a
E ele começou a sentir-se melhor. Pela primeira vez, no fundo gente tinha ficado surda.
do seu coração, as coisas tornavam-se claras: o amarelo e o azul A princípio, entraram todos em pânico. Os homens estavam
nunca mais dariam verde, seriam sempre da mesma cor. A casa verde desorientados porque, depois de viverem no barulho mais infernal,
ficaria verde na sua lembrança. não conseguiam suportar o silêncio. Começaram a procurar o barulho
Quando as coisas, com o passar do tempo, se tornaram bem nos supermercados, no metro. Mas o barulho tinha desaparecido. Os
claras, Luís não voltou a misturar, nem as meias, nem os presentes, carros-foguetão andavam sem ruído, os brócolos amareleciam em
nem as escovas de dentes, nem o fato de ginástica. Existia a vida de silêncio no frigorífico, as crianças já não falavam entre si. Será que os
antes – a vida a verde – e a vida de agora. Por vezes, à noite, Luís ouvidos tinham entrado em greve? Nas salas de aula, a professora
pedia à mãe uma história da “casa verde” e sentia-se muito feliz tinha de escrever os deveres no quadro.
porque era uma linda história. Os habitantes dos outros planetas começaram a eleger a Terra
— Mais tarde — dizia à mãe — hei-de morar numa casa verde, para fazer curas de silêncio. Mas o Ministro do Ruído estava muito
verde como a esperança. Nunca há-de haver separação, nunca. Uma preocupado e enviou um e-mail ao Médico Intersideral, que veio logo
só cor para toda a vida. vê-lo, acompanhado por um tradutor de ouvidos. O Médico
— Tens razão, desejo que seja assim — respondia a mãe. — examinou centenas de ouvidos terrestres e declarou que o problema
Tenho a certeza de que hás-de conseguir. era simples: os ouvidos estavam em greve. Tinham fabricado uma
E ficava muito tempo a acariciar-lhe os cabelos, no escuro, até cortina de forma a protegerem-se, como faziam os olhos com as
Luís adormecer… À luz de um candeeiro verde. pálpebras.
— O que devemos fazer para que ouçam de novo? —

Sophie Carquain perguntou o Ministro. — Gostava tanto de ouvir música! Não


Petites histoires pour devenir grand podemos viver neste silêncio!
Paris, Albin Michel, 2003
(tradução e adaptação)

71 183
— Se viverem num estado de ruído permanente, os ouvidos
recusar-se-ão a ouvir — transmitiu o tradutor. — O que eles querem
é: pouco barulho, nada de auscultadores, nada de música selvagem,
ouvir as antenazinhas dos caracóis a abrir, ouvir os barulhos da
natureza.
O Ministro compreendeu o que tinha de ser feito e lançou uma
campanha anti-ruído. Recomeçaram todos a andar devagar, a
sussurrar, e limitou-se o uso do auscultador de música a duas horas
por dia. Os acidentes de mota diminuíram drasticamente.
Os ouvidos, satisfeitos, recomeçaram a ouvir. Redescobriram-
-se barulhos que tinham sido esquecidos: o murmúrio das ondas, o
ronronar do frigorífico, o cricri das cigarras… tudo o que não
podemos ouvir quando estamos sempre com auscultadores nos
ouvidos.
Umas semanas depois, tiveram vontade de pôr tudo em alto
som, mas os Saturnianos avisaram-nos de que iriam ficar surdos de
novo. A recordação das pálpebras de ouvidos fê-los baixar o som e
todos descobriram que ouviam melhor. Ouviam as flores a crescer e
as palavras doces que os namorados sussurravam uns aos outros…

Sophie Carquain
Petites histoires pour devenir grand (2)
Paris, Albin Michel, 2005
(tradução e adaptação)

184
AOS PAIS E EDUCADORES

Todos os anos, são apresentadas mil queixas contra ruídos.

MALU, A PEQUENA FEITICEIRA TRISTE Trata-se de uma questão particularmente sensível para as crianças,
porque estão diariamente submetidas a barulhos fortes e intensos.

Diz-se que as pequenas feiticeiras são insolentes e trocistas, No recreio, na cantina, à saída da escola, cada um grita mais do que o

que têm sempre mais um truque escondido na vassoura. Mas elas outro para se fazer ouvir.
também têm um coração cheio de alegrias e tristezas. Em casa, o ruído continua com a televisão e a consola de jogos.
Malu tinha um olhar carregado de tristeza. O seu pai, o É difícil para uma criança suportar o silêncio e ainda o é mais para um
feiticeiro Tamalu, e a sua mãe, a feiticeira Mamalu, discutiam todos adolescente. Daí que estes usem e abusem da música e do walkman.
os dias. Arremessavam um ao outro globos malcheirosos, poções Nos adolescentes, é a música aos berros que cria lesões
venenosas e aranhas. Já sem falar nas vassouras que voavam pela irreversíveis. Segundo as estatísticas, 44% dos jovens que ouvem a
casa. Debaixo do chapéu pontiagudo, os ouvidos de Malu vibravam música num volume excessivo apresentam um determinado grau de
ao som dos insultos.
surdez.
Numa horrível manhã, quando estava a preparar a sua pasta
em forma de abóbora para ir para a escola, Malu ouviu estas palavras Como gerir o problema

terríveis: • Baixar o volume, sussurrar, falar baixo. O barulho é


— Sabes, penso que nunca mais vamos entender-nos. Temos contagioso. O silêncio também.
de passar a viver separados a partir de agora. Vamos pensar no
• Não gritar com as crianças. Aproximar-se com suavidade e
divórcio.
dizer, num tom de voz normal, que devem lavar os dentes,
Eram palavras horríveis, mesmo para o coração de uma
escovar o cabelo. Pedir silêncio, pondo um dedo nos lábios.
pequena feiticeira. O que mais assustava Malu era o que iria
• Limitar a televisão. Com a televisão ou o rádio ligados o dia
acontecer-lhe. Seria corrida à vassourada por esta raiva tremenda
todo, é impossível ouvirmo-nos e damos a impressão de só
que os pais sentiam um pelo outro? Chegou mesmo a pensar: “Talvez
me transformem em corrente de ar e me aspirem com o aspirador. conseguir viver num mundo ruidoso.

73 185
• Jogar ao silêncio. Os tempos de silêncio imposto podem ir Talvez me transformem num banco, num sapo, numa vela
sendo prolongados. decorativa, ou num raio de lua.”

• Avisar dos riscos inerentes ao ruído: perda de audição, por O pequeno mundo de Malu começava a desmoronar-se. Tinha

exemplo. a impressão de ser totalmente invisível. Na sua cabecinha de


feiticeira, tudo se encaixava: se a sua existência se devia ao amor
entre o pai e a mãe, agora que eles já não se amavam, talvez deixasse
Algumas frases-chave
de haver lugar para ela.
• Os ouvidos não têm pálpebras. É importante fazer pouco — Tenho tanta pena de não ser uma fada. Pegava na varinha

barulho, para que o barulho não nos atinja tanto. mágica e transformava-os em príncipe e princesa. E voltariam a
apaixonar-se um pelo outro.
• Os ouvidos são muito preciosos. Permitem-nos ouvir sons
Como Malu era muito corajosa, pegou no Grande Livro da Magia
importantíssimos: os pássaros, os risos, os sussurros dos
e leu todas as informações relativas aos feitiços que teria de lançar
amigos, a gota de água que cai… Seria muito triste não poder
aos pais, para que eles voltassem a gostar um do outro. Fez tudo o
ouvir nada disso.
que estava ao seu alcance e muito mais.
E sabes por que razão tentou tantas coisas e com tanto afinco?
Porque achava que, se calhar, tinha sido ela mesma a lançar-lhes um
feitiço. Só de pensar nisso até sentia calafrios na espinha.
— Sei lá, talvez um dia tenha pensado em coisas desse
género… e talvez elas se tenham realizado.
Malu seguiu à risca os conselhos do Grande Livro de Magia: fez
uma sopa de sapo, puxou seis vezes, numa noite de lua cheia, a
cauda do gato à meia-noite, apanhou vinte e quatro caracóis num dia
de chuva, fez trinta e seis arco-íris no primeiro dia de Inverno,
celebrou o casamento de setenta e dois ratos, e coseu duas
ratazanas uma à outra com bigode de gato. Estava disposta a fazer
tudo, mas os pais estavam mesmo determinados a separar-se.

186 74
Foi então que decidiu ir visitar a Grande Feiticeira. Esta disse-
-lhe:
— Sabes, os meus poderes não são suficientes. Não podes
curar tudo. Há muitas feiticeirinhas com pais e mães que já não se
entendem. É triste, mas não é uma catástrofe, porque, acima de
tudo, eles continuam a gostar de ti.
E acrescentou:
— Vai ter com a tua mãe. Ela está à tua espera.
Quando Malu entrou no seu quarto, a mãe esperava-a. É bom
que se diga que uma feiticeira conhece sempre os desgostos dos OS PERIGOS DA INTERNET
filhos, mesmo quando estes não falam deles.
Mamalu tinha tirado o chapéu pontiagudo e a filha pôde ver a
Um dia, o lobo mau acordou de muito mau humor e cheio de
tristeza nos olhos da mãe, que lhe disse:
fome. Um lobo gentil teria, sem dúvida, tentado encontrar trabalho
— Malu, o pai e a mãe não vão mais viver juntos na mesma
para ganhar dinheiro e comprar comida. Mas este lobo não estava
casa.
para se maçar. Queria fazer algo de mais espectacular na sua vida do
E logo acrescentou:
que apanhar o metro e ter um emprego decente.
— Não fiques triste! As pequenas feiticeiras com cinco anos
Pensou em apanhar miúdos à saída da escola em troca de
não têm culpa. Não te inquietes com isso.
bombons; contudo, viu logo que a ideia não funcionaria porque as
Malu baixou o seu narizinho pontiagudo e perguntou:
crianças não são estúpidas e já conhecem a história do “Tenho um
— E o que vai ser de mim?
cãozinho na minha carrinha, queres vir vê-lo?” e do “Que tal vires a
— Vais transformar-te numa bela feiticeira — respondeu a
minha casa experimentar a minha superconsola de jogos?” A culpa
mãe, a sorrir. — Vais ter duas casas e vais continuar a estar com os
desta esperteza era dos pais, que os avisavam de toda a espécie de
dois.
perigos.
— Não me parece muito divertido.
O que ele tinha de fazer era passar despercebido, fazer-se
— E não é. Mas é melhor do que nos transformarmos em sapos
invisível. Foi então que um clarão de inteligência iluminou o seu
velhos, sempre a babarem-se. E é o que vai acontecer se
pobre cérebro: a Internet, claro! Graças à Internet, podia atrair todas
continuarmos a discutir.
as crianças que quisesse. Nunca mais teria fome. A Internet permite

75 187
entrar em contacto com milhares e milhares de porquinhos sem ter Mamalu e Malu continuaram a conversar. A pequenita sentia-se
de sair de casa. Pensou num nome para o seu sítio da Internet, um mais aliviada. Compreendeu que não lhe competia fazer nada para
nome que atraísse as crianças: podestertudooquequiseres.com. melhorar a situação, e isso sossegava-a.
Neste sítio, as crianças podiam jogar 24 horas sobre 24, mudar Sabes como acaba esta história? Mamalu ofereceu à filha uma
de mãe, e comer bombons grátis a toda a hora. Também instalou vassoura supersónica pré-programada.
anúncios mentirosos sobre como sair de casa sem que os pais vejam, — Quando estiveres aqui e tiveres vontade de ver o teu pai,
como duplicar a mesada, etc. Para receber documentação sobre tudo podes ir ter com ele em dois segundos e três décimos. Quando
isto, era preciso que as crianças escrevessem o seu nome, a sua estiveres em casa do teu pai e quiseres fazer-me uma festinha, fazes
morada, o nome da sua escola e o seu horário. o caminho inverso.
Um dia, um capuchinho vermelho foi à Internet procurar
material para um trabalho escolar. Viu o anúncio das bolachas de
manteiga e respondeu logo. Até porque ofereciam um cãozinho Sophie Carquain
parecidíssimo com o Milu. Já ia clicar em ENVIAR quando a mãe Cent histoires du soir
Paris, Ed. Marabout, 2000
entrou no quarto. (tradução e adaptação)
— Capuchinho! Ainda estás ao computador?
— Estou a escrever o nome da minha escola. Vão oferecer-me
bolachas de manteiga e um cãozinho de prenda.
— Deves estar a sonhar, filha. Por que razão um desconhecido
havia de dar-te tudo isso? Todos os dias se ouve falar de raptos de
crianças por pessoas que lhes fazem muito mal. Nunca deves dar o
teu nome ou morada, seja onde for. As pessoas que te querem dar
prendas querem obter algo com isso. Algo que te custará muito caro!
Do outro lado da cidade, os três porquinhos também tinham
visto este sítio na Internet. O mais novo, que era também o mais
preguiçoso e o mais distraído, viu o anúncio “Se queres ter uma
casinha em tijolo sem trabalho, clica aqui”. Antes de o poder fazer, o
mais velho, que estava atento, exclamou:

188 76
— Vejam só o que ele inventou desta vez para nos apanhar!
AOS PAIS E EDUCADORES Ninguém constrói uma casa sem esforço!
Quando o lobo viu que não tinha mensagens nenhumas, ficou
furioso. Com crianças assim, nunca conseguiria nada… Três dias
Recordemos que a elevada percentagem de divórcios faz com depois, recebeu um telefonema da raposa e contou-lhe o que tinha

que as crianças sejam as primeiras a sofrer com esta decisão, tanto feito.

mais que não a compreendem. — Deste muito nas vistas — comentou a raposa. — Tens de
disfarçar melhor. Precisas de abrir um chat, um fórum de discussão.
Quando tiver tomado a decisão de se divorciar, explique-a ao
Arranjas um pseudónimo para que ninguém te conheça e está feito. É
seu filho da forma mais simples e rápida possível. Deixe bem claro assim que se apanham galinhas no século XXI. E eu que o diga, que
que a culpa não é dele. Que mesmo que os pais já não sejam marido e apanhei cinco ou seis assim.
mulher, continuam a ser pais dele e continuam a amá-lo. Saliente que O lobo meteu patas ao trabalho e começou a escrever no
ele nasceu do amor entre os pais e que, se pudessem recomeçar a teclado: “Boa tarde, o meu nome é Porcino e queria falar com
vossa relação, voltariam a tê-lo de novo. Ele é o filho com que vocês porquinhos, coelhos e ovelhas. Queria saber como lutar contra o lobo
sonharam. mau.”
Claro que obteve milhares de respostas. “Tens de fazer muitas
Não fale demasiado. Hoje temos tendência para achar que as
perguntas. Como os lobos têm um cérebro minúsculo, ficam logo
crianças são mais precoces e desenvolvidas do que antigamente.
confusos”, dizia um. “É preciso dar-lhes um bom pontapé, que eles
Pode ser que seja verdade, mas não devemos transformar os nossos
desaparecem logo”, adiantava outro. “Não gosta de caçadores nem
filhos em confidentes ou terapeutas. Talvez seja melhor afastar-se de espingardas, e muito menos de mães que estão sempre atentas”,
uns dias, deixando o seu filho com uma avó ou uma tia, para poder comentava um terceiro.
situar-se melhor. “Obrigado pelas óptimas ideias” escreveu o lobo. “Gostariam

Quando falarem com o filho, os pais devem deixar bem claro de receber um pacote de bolachas? É só dar-me o vosso endereço.”
“Nem pensar! Eu nem me chamo capuchinho vermelho; chamo-me
que a decisão é irrevogável. Malu tenta fazer tudo o que pode, mas
raposa azul”, foi a primeira resposta. “E que tal tentarmos encontrá-
não consegue inverter a situação porque os pais já tomaram uma
-lo nós próprios? Mas nada de dizer aos pais. É um segredo nosso”,
decisão. O mesmo acontece convosco e, por isso, o vosso filho tem
insistiu o lobo. “A minha mãe diz que não se devem partilhar
de saber que não precisa de se multiplicar em esforços.

77 189
segredos com desconhecidos. O senhor nem me conhece e já pede a Estejam atentos às suas preocupações e às suas interrogações
minha morada. Vou denunciá-lo. Ainda um dia destes o vemos atrás sobre as questões do quotidiano: as roupas, a casa, o ursinho de
das grades”, foi a segunda resposta. estimação, a pasta, a pessoa que irá buscá-lo à escola, os dias do pai e
O lobo desistiu deste negócio da Internet e decidiu vender o os dias da mãe, os fins-de-semana, as férias… Logo que possam,
computador e comprar comida. sejam o mais pormenorizados possível.

Desdramatizem as relações um com o outro. “Tu também vais


ter duas casas como a bruxinha Malu e nós vamos fazer com que
Sophie Carquain
Petites histoires pour devenir grand (2) tudo seja o mais tranquilo possível. Vamos arranjar a nossa própria
Paris, Albin Michel, 2005
vassoura supersónica.”
(tradução e adaptação)

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AOS PAIS E EDUCADORES

Hoje em dia, não basta prevenir os nossos filhos contra os


perigos que encontram na rua. “Não fales com ninguém” ou “Não
aceites rebuçados de ninguém” também funcionam na Internet,
onde abundam os predadores. Basta lembrar o caso da pequena
Jessica Koopmans, de cinco anos, morta pelo vigilante da escola, que
a “apanhou” na Internet. Se não deixamos um filho de oito anos
MISS LIZA, QUE SE JULGAVA UMA PRINCESA
andar sozinho pela cidade, também não o deixamos navegar na
Internet sem antes tomar precauções.
Onde se aprende que, para se ser amado pelos outros,
Mais de 50% das crianças dizem passar mais de cinco horas por
podemos tomar ares de princesa…mas que isso nem sempre é uma boa
semana na Internet. Segundo um estudo, 78% trocam mensagens,
ideia!
55% dialogam em chats e 39% procuram novos amigos. Mas os pais

Hoje é dia de cacarejos na capoeira. Uma nova companheira nem sempre sabem disto!
chegou ao galinheiro. É um verdadeiro acontecimento!
― Apresento-vos Miss Liza ― diz o Chefe Galo, tirando os • Aprenda a navegar na Internet para poder ajudar o seu filho.
óculos e debruçando-se sobre os seus esporões. Navegue com ele de vez em quando, e instale o computador
Levantando a ponta da asa, continuou: numa sala comum, em vez de o fazer no quarto dele.
― Sejam simpáticas, peço-vos. • Frise que ele nunca deve dar o nome, morada, número de
Ao ver a novata, Lina, Lilinha, Galinheta e Galinhola abriram o
telefone ou nome da escola que frequenta. Deve utilizar
seu bico enorme.
sempre um pseudónimo. Previna-o que o mesmo pode
É que Miss Liza tinha um ar orgulhoso, com as suas penas
acontecer com a pessoa com quem está a falar. “Laura” de 12
amarelas e vermelhas, que formavam um diadema sobre a cabeça.
anos pode ser “João”, de 35 anos.
• Nunca deve enviar fotografias dele.

79 191
• Deve recusar todas as prendas. Tinha verniz nas patas e cacarejava com um sotaque distinto, com
• Nunca deve responder a mensagens sugestivas ou agressivas. muitos acentos circunflexos no o:

• Deve pedir a ajuda de um adulto se o ameaçarem ou se lhe ― Côôôt…côôôt… côôôôt…


― És uma princesa? ― perguntou Isabel, a pequena ruiva. ―
pedirem para guardar segredo.
Gostaria de ser tua amiga.
Por cada resposta, Miss Liza baixava os olhos, bem para baixo,
Algumas frases-chave como se olhasse para um grão de cevada no chão.
• Estar na Internet é como estar numa grande cidade: tanto se Durante o recreio, contou às pequenas galinhas de onde vinha:

encontram pessoas simpáticas como pessoas maldosas. morava na quinta de um castelo e o seu pai era um super-galo real.
Dormia num ninho de dossel e era a melhor picadora de grãos de
• A tua palavra-passe é como a chave da tua casa. Não a reveles
cevada da região. Tinha mesmo sido nomeada “Miss Picareta 2008”.
a ninguém, senão ficas em perigo. E colocas toda a tua família
― Nunca puseram batom no bico? ― perguntou às outras
em perigo!
galinhas, que baixaram a cabeça. ― Pois bem, eu tenho batom de
todas as cores. Rosa, amarelo, brilhante. Até azul! E, um dia, até pus
sombra nos olhos e fui ao cabeleireiro de penas.
Como toda a gente a ouvia, pôs-se a contar coisas incríveis:
― Um dia, pus um ovo quadrado, a minha mãe tem um bico
em ouro maciço e a minha madrinha é a raposa!
Se ela falava tanto era porque queria que gostassem dela…
No entanto, as suas conversas tiveram o efeito contrário. Em
breve, nas aulas, já ninguém falava com Miss Liza. Quando chegava
de manhã, toda a gente se afastava, como se ela tivesse a peste.
Depressa ficou sozinha, pois ninguém ousava falar-lhe, por causa do
seu olhar de esguelha que dizia:
― Não vales mais do que um grão de cevada, minha idiota!

192 80
Mas, como foi posta de lado pelas outras, as penas da sua
cabeça começaram a cair, como um diadema que tivesse apanhado
chuva. Então, decidiu falar com a galinha ruiva:
― Bem, afinal sempre quero ser tua amiga.
― De maneira nenhuma! ― respondeu a galinha ruiva. ― És
demasiado princesa para mim. Sou eu que agora não quero mais ser
tua amiga!
No dia seguinte, Miss Liza não apareceu na escola. Nem no dia
a seguir. “Miss Liza está doente, Miss Liza está doente”, murmurava-
-se por todo o lado.
O Chefe Galo pediu à Galinina, à Galinácea e à Garnizé para lhe
O LOBITO ALBERTO E OS MATULÕES
levarem os trabalhos de casa. Quando as pequenas galinhas
chegaram a sua casa… abriram o bico até atrás, mas de surpresa, não Diga-se que Lobito era muito educado, tinha os olhos claros e
de admiração. É que Miss Liza não morava num castelo, mas numa os dentes muito certinhos, sinal de delicadeza entre os lobos bebés.
barraca miserável, perto de uma lixeira. A mãe abriu-lhes a porta, Distinguem-se ao longe os lobinhos civilizados. Olham para a biqueira
com um lenço na cabeça. Bico de ouro, nem vê-lo! Miss Liza estava dos sapatos, ficam corados por detrás do pêlo, dizem “obrigado”,
atrás dela, com as penas do diadema caídas até ao pescoço. As “se faz favor” e têm modos comedidos. Quando não os conhecemos,
outras galinhas estavam completamente bicoabertas. podemos pensar que são tímidos. Mas são apenas reservados.
Compreenderam que Miss Liza não era quem dizia ser! Um dia, o pai de Lobito decidiu mudar de trabalho. Lobito
― Onde está o teu castelo? ― perguntou muito séria a mudou de casa, mudou de covil e também de escola.
Galinina. ― E o teu pai Galo Real? Afinal, eram só mentiras! ― Vais ver que depressa fazes amigos. Todos os lobos
Miss Liza baixou a cabeça. pequenos fazem amigos depressa, porque vivem em grupo ―
― Contei-vos muitas histórias… porque queria ter muitas prometeram-lhe os pais.
amigas. Sentia-me muito sozinha e, como se gosta sempre muito das “Isso são ideias de adulto!” pensava Lobito, que sabia que, aos
princesas…! Mas eu não sou mentirosa! Juro-vos! oito anos, não se fazem amigos na escola com facilidade.
Quando desatou aos soluços, o seu bico começou a tremer. No primeiro dia, chovia no pátio do recreio. Lobito sentiu-se só
Garnizé pôs-lhe uma asa por cima e a Galinina disse-lhe: e cheio de timidez, apesar de vestir um pólo e trazer uma pasta da

81 193
marca Superlobinho. Toda a gente sabe: todos os lobinhos gostam de ― Sabes, ainda bem que isto aconteceu! É que nós não
coisas de marca, para fazerem esquecer que não são uns gostamos muito de princesas. Preferimos pessoas de verdade.
Superlobinhos. E ali está o nosso Lobito no pátio ensurdecedor, Gostamos mais de ti agora. Dantes, estavas num pedestal, mas agora
perdido no meio de gritos de surpresa, de alegria e de raiva. Bastava és tu própria, és a Liza! Além disso, o batom de bicos de todas as
um simples olhar para nos apercebermos de que os lobinhos cores é parolo.
andavam aos pares, em grupos de três ou em bando. Nenhum estava ― É mesmo muito parolo, uuuuullllltra parolo! ― disse Miss
só, excepto ele. Liza, que gozava assim com o seu falso sotaque de condessa.
De repente, viu, ao fundo do pátio, três matulões que vinham E toda a gente desatou a rir.
na sua direcção, a mascar pastilha elástica.
― Olá, miúdo. Olha lá, tu tens uma mochila Superlobinho.
― Bom dia. Sim, é uma Superlobinho ― respondeu ele com Sophie Carquain
delicadeza. Petites leçons de vie. Pour l’aider à s’affirmer
Paris, Ed. Albin Michel, 2008
Um dos três matulões assobiou: (tradução e adaptação)
― É uma Superlobinho autêntica. Vê-se à distância. É que
também as há falsas. Superlobinho falsas e que não prestam para
nada.
― Sim, falsas, eu sei ― respondeu Lobito seguro de si.
― Olha lá, ó puto, os teus pais têm massa? ― perguntou o
mais gordo dos matulυes.
Lobito deu um ar de riso, mas nγo respondeu, porque nγo
sabia mesmo. Jα tinha perguntado uma vez ΰ mγe se eram ricos ou
pobres. E a mγe tinha-lhe respondido:
― Mais ricos do que pobres, mas não muito ― e acrescentara:
― Um lobinho educado nγo se mete nesses assuntos.
Lobito ficou-se por ali com as perguntas, pensando que os
assuntos de dinheiro eram muito complicados para os adultos. Ficou
a olhar para as sapatilhas com um ar embaraηado e pensava: “Mas o

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que ι que estes querem de mim?” Dominado pelo olhar dos trκs,
pareceu-lhe que a pasta estava a soltar-se-lhe das costas!
Naquele momento a campainha tocou. O segundo matulγo
disse:
― Como é que te chamas?
― Alberto Lobito ― respondeu Lobito.
― Encontramo-nos outra vez à saída?
― Está bem ― respondeu Lobito, dividido entre o sorriso e as
lágrimas.
É que, apesar da atitude um pouco ameaçadora dos matulões,
O MENINO SOL não podia deixar de pensar: “Já fiz três amigos! Já fiz três amigos!”
Às 16.30 horas lá estavam os três matulões, de mãos nos
DEITAR--SE
QUE NUNCA QUERIA DEITAR
bolsos. Quando chegou, cumprimentaram-no como a um príncipe.
― Oh! Cá está o nosso Superlobinho! Uau!! Superlobinho com
Há muito, muito tempo, há milhões de anos atrás, não existia uma supermochila!
nada à face da terra… Nada de nada! Nem mesmo pessoas ou O maior deles virou-se e mostrou a Lobito a mochila que usava,
animais. já velha e a desfazer-se.
Em contrapartida, o céu já era habitado: o Sol, a Lua, as ― Vamos fazer um negócio: tu ficas com a minha mochila velha
estrelas… Já lá estavam todos. Naqueles tempos, eram ainda muito e dás-me a tua magnífica Superlobinho… Se não, apanhas! ― disse-
novos, caprichosos, malucos e, por vezes, mal-educados. Sobretudo -lhe o matulão.
o Sol! Lobito quis opor-se mas viu qualquer coisa a brilhar nas mãos
Passava o tempo a passear os seus raios novos e ofuscantes, do matulão. O que seria? Uma tesoura? Um X-acto? Esvaziou a pasta
todo orgulhoso por ser o mais luminoso, o mais cintilante! Por isso, em silêncio e entregou-lha, muito contrariado.
aborrecia toda a gente com os seus raios, o seu calor e a sua luz. ― Muito bem, miúdo! Escolheste bem, porque se não… ― e
— Pára de brilhar! Fazes-nos mal aos olhos! — diziam as fez o gesto de o esganar: crrr!
nuvens. No dia seguinte, Lobito saiu de casa em bicos de pés para a
mãe não ver a nova mochila toda estragada.

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A história repetia-se, dia após dia. Lobito viu-se sem a borracha — Apaguem-no! Não consigo fechar os olhos! — resmungava a
Superlobinho, a T-shirt fofinha de lã de ovelha, os rebuçados de Lua.
galinha, sem o carro Mannix telecomandado, e até sem a merenda — Ah, estes jovens! Julgam que podem fazer tudo! —
que levava todos os dias para a escola. Mas como é que ele podia protestavam as estrelas mais velhas.
dizer que não, perante aquele brilho prateado nas mãos dos — Nunca estás quieto? — suspirava a Terra, extenuada.
matulões e aquela ameaça do crrr? — É sempre de dia! Nem podemos fechar os olhos! — diziam
Em pouco tempo, começou a dar-lhes dinheiro, cada vez mais as pequenas estrelas, que, como todas as crianças, precisavam de
dinheiro, que retirava às escondidas do porta-moedas da mãe e, pela dormir.
altura do Natal, até os brincos de prata da mãe. Todos os habitantes do Céu, cansadíssimos, irritados,
Sem nunca terem entrado em casa dele, os matulões sabiam tristonhos, começaram a pensar no que fazer ao menino Sol para ele
tudo o que lá havia; é que faziam a Lobito longos interrogatórios brilhar menos: fechá-lo num armário escuro, pôr-lhe graxa preta…
sobre os brinquedos e as roupas de marca, e Lobito obedecia, — Isto não pode continuar! — trovejava a Trovoada. — Temos
respondendo a tudo. Não lhe tinha dito a mãe que devia responder de encontrar uma solução.
educadamente a tudo o que lhe perguntassem? Era por isso que E teve logo uma ideia, que contou à Lua e às estrelas.
obedecia aos três matulões e aos “Se falas, estás feito!” A Trovoada dispôs-se a conversar com o menino.
Não era verdade que ele não passava de um lobito sem — Solzinho, tivemos uma ideia. Vais brilhar entre nós algumas
importância, incapaz de fazer amigos? Não admira que agora horas e, depois, ala!... vais brilhar para o outro lado da Terra. Assim,
sofresse as consequências! fazes dozes horas connosco e doze horas com o outro lado.
Quando voltava para casa, a mãe-lobo observava-o com ar Enquanto lá estiveres, eles divertem-se e nós dormimos. E enquanto
preocupado. É difícil esconder seja o que for de quem gosta de nós. estiveres entre nós, são eles a descansar. Assim, não precisas de
Não adianta disfarçar atrás de um sorriso amável, dizer “Sim, a parar e toda a gente ficará satisfeita!
comida foi boa, trabalhei muito.” As mães reconhecem quando o O pequeno Sol saltou de alegria face à ideia de ter duas casas e,
coração do seu lobito está em aflição. sobretudo, amigos em todo o lado.
Quando chegava à escola, Lobito tinha cólicas e sentia o Desde aí, há noite sobre a Terra na primeira metade do dia,
estômago andar às voltas. Levavam-no para a enfermaria onde se para grande felicidade dos seus habitantes, que podem assim
torcia com dores. repousar. Foi nessa altura, aliás, que os homens apareceram, dizendo

196 84
que, com um pouco de sol durante o dia e um pouco de escuro à ― Tens a barriga muito dura! ― disse-lhe um dia a enfermeira.
noite, a vida seria bem agradável no planeta. ― Parece que tens aí escondidos muitos segredos feios.
Sabe-se que, à noite, o Sol nunca chega a desaparecer ― É uma coxa de frango que não passa ― respondeu Lobito
totalmente, mas que está simplesmente do outro lado da Terra, a com voz muito fraca, sabendo muito bem que o que tinha era medo.
viver a sua segunda vida, na sua segunda casa, à espera de voltar. O medo tinha começado a roê-lo até à ponta dos bigodes. O medo
É por isso que nunca se deve ter medo do escuro. que a mãe descobrisse que ele lhe assaltava o porta-moedas, o medo
de apanhar uma tareia, o medo de ter medo…
Mas não dizia nada aos pais.
Sophie Carquain Aprendera a não denunciar e, ainda por cima, os matulões
Petites histoires pour devenir grand tinham-no ameaçado. Se dissesse a mais pequena palavra, eles até o
Paris, Albin Michel, 2003
(tradução e adaptação) esfolavam, por certo. Contaram-lhe o que fizeram a um miúdo da
primária que se tinha recusado a dar-lhes o lanche.
Um dia, quando Lobito se aproximava do portão da escola,
viu… o carro do pai. E o pai, com a sua voz possante, estava a ralhar
aos três matulões!
― Ah! Agora percebo, sua cambada de ladrões, seus patifes!!
Lobito arrebitou as orelhas. Nem acreditava no que via! Ficou
assombrado. Via que o pai era bem mais forte do que os três
matulões! É que, depois de tantos pesadelos, Lobito tinha perdido o
sentido da realidade. Imaginava que os matulões, com toda aquela
raiva e cobiça, mediam, no mínimo, dois metros!
Uma noite, tinha sonhado que os três matulões estavam a
ameaçar o pai, com uma metralhadora, diante de um banco. E agora,
ao lado do pai, pareciam tão pequenos… Lobito, de olhos
esbugalhados, admirava-se com aquele espectáculo de autoridade
que vinha em seu socorro.
Desta vez, sim, à noite, o pai pregou um sermão a Lobito:

85 197
― A lei existe até entre os lobos! E a lei é ter o direito de fazer
certas coisas e não ter o direito de fazer outras: roubar as pessoas,
inventar desculpas, ameaçar os mais fracos… isso não se deve fazer,
e é punido com prisão! Os lobos pequenos, mesmo os muito bem-
-educados, têm obrigação de se defenderem! Os três matulões
fizeram uma coisa muito má e vão ser castigados.
Lobito recuperou os seus haveres: a pasta Superlobinho, o pólo
Superlobinho e a borracha Superlobinho. Guardou-as no quarto e
nunca mais as levou para a escola. E desde então, sente-se muito
melhor, o Lobito! Havias de vê-lo no recreio… Hoje é ele quem mais
grita e ri. Já não tem necessidade de supermarcas para ser um
superlobinho.
E podes acreditar que os matulões deixaram de estar
interessados em andar atrás dele…

Sophie Carquain
Petites histoires pour devenir grand
Paris, Ed. Albin Michel, 2003
(tradução e adaptação)

198
AOS PAIS E EDUCADORES

A chantagem

Segundo estatísticas americanas, uma criança em três é vítima


de chantagem na escola. Será que se trata de um fenómeno ligado à
pressão da sociedade de consumo, ao aparecimento da criança
consumista, à proliferação das marcas, que deixam os nossos filhos
tão invejosos?

O ANJINHO QUE QUEIMOU A ASA Há chantagem e chantagem

Quando a criança sente necessidade de dar o que tem, pode


Era um anjinho muito bonito e parecia muito sensato. Mas ser porque quer conquistar os outros, fazer amigos. Mas também
tinha um problema: queria voar até ao sol. Certa manhã, levantou-se pode ser porque a obrigam. Mostre-se firme. Se o seu filho trouxer
ao mesmo tempo que o astro-rei e suspirou. Como gostaria de o para casa objectos que não lhe pertencem, mesmo que não sejam
abraçar! muito valiosos, interrogue-o sobre a sua proveniência e, se possível,
— Meu Deus, que bonito que é o sol! Brilha tanto!
devolva-os ao proprietário.
— Brilha mas queima — disse a mãe.
Caso veja que o seu filho mudou de comportamento (tem
Contudo, o anjinho era teimoso. Mal os pais viravam costas, ele
medo de ir para a escola, os resultados escolares estão visivelmente a
tentava voar até à bola de fogo. O ar atiça o fogo, torna-o maior,
baixar), impeça-o de levar seja o que for que lhe possam roubar.
mais belo. Sob o olhar maravilhado do anjinho, o sol sentia-se mais
belo e mais forte. Fale com o seu filho
— Ei, anjinho, olha o que eu sei fazer!
• Diga-lhe que os objectos pertencem aos seus donos: “O teu
E lá acendia ele um fósforo gigante. Ou transformava-se em
saco de berlindes foi-te dado pelo teu aniversário. É teu. Claro
bolo de aniversário com seis velas cintilantes. Ou num fogão de
que o podes dar. Mas não irás arrepender-te?”
último modelo. O anjinho aplaudia e tinha ainda mais vontade de se
aproximar do sol.

87 199
• É claro que se pode emprestar e depois recuperar o que é A mãe, muito inquieta, decidiu camuflar o sol com uma boa
nosso. dose de nuvens cinzentas. Mas o sol conseguia sempre aparecer.

• Lembre-lhe o valor das coisas: “Um berlinde não equivale a Então, os pais fecharam o pequeno anjo dentro de uma cortina de

um lanche. Precisamos de comer.” chuva para o impedir de se magoar. Mas os anjos são como as
crianças: quando queremos agarrá-los, acabam sempre por se
• Seja firme: “Proíbo-te de dares o teu lanche. Se o fizeres,
escapar.
estás a proceder mal. Se algum dos teus colegas não tiver
Uma bela manhã, o sol mostrou o seu último achado: tinha-se
lanche, podes partilhar com ele. Nada mais.”
transformado num fogo de chaminé, que o anjinho achou irresistível,
• Recorde-lhe que dar é um acto gratuito: “Tens o direito de
com as suas chamas vermelhas e laranja.
dar o que quiseres, de ser generoso. É bom dar coisas sem
— É bonito, é quentinho, e cheira bem! — anunciou o sol,
esperar nada em troca. Mas não dês coisas em troca de como se estivesse a vender pão quente.
amizade. Os verdadeiros amigos gostam de ti pelo que és, O anjinho aproximou-se do sol, cheio de fome e mais tentado
não pelo que tens.” do que nunca. Um passinho aqui, um passinho ali… e pumba! Uma
• Se o seu filho for vítima de chantagem, diga-lhe que os das asas queimou-se logo e o anjinho caiu dentro de uma nuvem.
adultos vão para a cadeia por roubar. Ajude-o a respeitar-se e Cheio de dores e a chorar, lembrou-se então da frase da mãe: “Brilha
a fazer-se respeitar: “Não podemos aceitar que os outros nos mas queima”.

roubem nem que toquem no nosso corpo. Ambas as atitudes Para aliviar o sofrimento, mergulharam-no no oceano e
embrulharam-no numa nuvem de chuva gelada. Mas a asa estava
mostram falta de respeito para connosco.”
irremediavelmente perdida. Um pássaro emprestou-lhe algumas
plumas coloridas que transplantaram para as suas costinhas.
Ficara bonito, mas já não conseguia voar como dantes. Nos
dias de chuva, sentia dores nas plumas, provocadas pela humidade. O
sol sentia-se um pouco culpado. Com o tempo, o anjinho ficou mais
sensato. Quando envelheceu (os anjos também envelhecem), os
netos faziam-lhe muitas perguntas:
— Porque tens uma asa tão bonita, avozinho?
— És metade pássaro, metade anjo?

200 88
— Sou um pássaro bem estranho, por sinal. Quando era
pequeno, não tive cuidado comigo. Pensava que nada me podia fazer
mal, nem mesmo uma bola de fogo.
E contava-lhes a história do anjinho que queimou a asa.
Os netos ficavam logo sem vontade de se aproximarem do sol,
embora quisessem realizar outras tropelias bem perigosas:
mergulhar num oceano gelado a mil metros de profundidade, tocar o
fundo mais fundo do céu, embora pudessem partir o nariz, subir para
o dorso de uma águia, e outras ideias bizarras que os anjinhos têm
sempre na cabeça.
— Tenham cuidado convosco — disse o avô anjo. — Depois de
perder uma asa é demasiado tarde para pensar nas consequências. O PEQUENO VAMPIRO APAIXONADO
Deve pensar-se antes, antes de ficarmos com pena…
Depois de os netos irem embora, o anjo calçava as meias,
Numa noite de lua cheia, ao sair para o escuro, como sempre
desligava a televisão e olhava com nostalgia o pôr-do-sol. E pensava:
fazia para não ser visto, o pequeno vampiro encontrou uma menina
“Espero que os meus netos não queiram ver o fogo de perto, que
vestida de cor-de-rosa a sair de uma casa. Era noite de Natal. A
não engulam porcarias e que tenham sempre muito cuidado.”
menina tinha os olhos radiantes de felicidade como todas as crianças
naquela noite. Trazia o seu mais belo vestido, cor-de-rosa com folhos,
e estava a dançar no passeio. O pequeno vampiro tinha os dentes
Sophie Carquain pontiagudos, a pele macilenta e um rosto triste, e ali ficou, de olhos
Petites histoires pour devenir grand (2)
Paris, Albin Michel, 2005 arregalados, a admirar a alegria dela.
(tradução e adaptação) Desde o primeiro momento em que a vira que o pequeno
vampiro não parava de suspirar! Era uma dor de alma! Queria voltar a
vê-la. Não para lhe fazer mal. Apenas para lhe dar um beijinho no
pescoço, um beijinho muito, muito pequenino. Mas o que pode
esperar um vampiro negro de uma menina cor-de-rosa?

89 201
À noite, aproximava-se da casa de Rosina, assim se chamava
ela, tentando voltar a vê-la. Mas só conseguia avistar uma menina a AOS PAIS E EDUCADORES
lavar os dentes, uns lindos dentinhos brancos como pérolas de nácar,
a pentear-se ou a passar uma luva pela sua linda pele. Ou a dormir
As quedas constituem 78% dos acidentes domésticos e
sorrindo, na sua cama cor-de-rosa. E o vampiro lembrava-se dos seus
envolvem mesas, camas sobrepostas, colisões no recreio da escola.
dentes compridos, da sua pele macilenta, das mãos recurvadas, e
Os sinais de alerta são perda dos sentidos, vómitos, sonolência
pensava: “Um pouco de cor-de-rosa no meu coração cinzento faria
anormal, problemas de locomoção. O médico fará um exame
um rosa acinzentado que seria muito bonito.”
E escondia-se dentro da sua caixa escura, que é uma forma de aprofundado e uma TAC, se a criança tiver mais de três anos. Durante

os vampiros exprimirem a sua tristeza. As faces pareciam papel as próximas 24 horas, a criança deve continuar a ser vigiada em casa.
enrugado, os olhos reflectiam a tristeza que lhe ia na alma. Colocou As intoxicações (ingestão de produtos domésticos, de
um letreiro na caixa: Desgosto de amor. A mãe dizia-lhe: medicamentos…) vêm em segundo lugar. Não devemos verter um
— Não te preocupes, meu bichaninho. Isto já sucedeu a outros: produto para uma garrafa diferente, devemos utilizar fechos de
o príncipe e a pastora, o guardador de ovelhas e a princesa, o gato e segurança, e evitar deixar medicamentos ao alcance das crianças. Em
a ratinha. Porque não um vampiro e uma menina? caso de acidente, telefonar para o Centro Anti-Venenos ou para o
— Oh! — suspirava ele. — Como é triste estar-se apaixonado! INEM, que indicará as medidas a tomar. Não dar leite nem provocar o
Naquela noite, mais valia ter partido uma perna! Mexe com tudo cá
vómito.
dentro e não se pensa noutra coisa! Gostava tanto de estar com ela,
As queimaduras fazem-nos estar alerta em relação ao micro-
de lhe falar, de lhe pegar nas mãozinhas rosadas, de a ouvir rir, de lhe
-ondas, ao forno, aos fósforos, aos isqueiros, ao chá a ferver que
ver o brilho dos olhos…
bebemos com a criança ao colo, às velas de aniversário… Deve-se
E ficava encostado às paredes do prédio, à noite, a espreitar
fechar a porta da cozinha às crianças quando estamos a cozinhar e
pela janela, só para ver uma pontinha do tule rosa, o esboço de um
colocar as asas dos tachos para o lado de dentro do fogão. Se as
sorriso, um pouco de céu azul. O pequeno vampiro sonhava, no seu
cantinho de céu escuro. Um dia haviam de casar, ela vestida de queimaduras são pequenas, podemos deitar água fria sobre elas

branco, a menina cor-de-rosa, com os cabelos cheios de flores. Ele durante 15 minutos, antes de as secar e de aplicar uma pomada. Para
levaria um lindo fato creme, e os seus dentes seriam como pérolas. queimaduras maiores, também se põe a pele sob água a correr, mas

202 90
chama-se o INEM. Se a criança tiver roupas de fibra natural, tiram-se. Mas, quando acordava, a vida era como antes. E dentro da sua caixa,
Se tiver roupa de fibra sintética, o médico encarrega-se disso. dava largas à tristeza.
Tentou diferentes tácticas. Um dia pintou a cara de cor-de-rosa,
Conselhos suplementares
outro dia escondeu os dedos em forma de garra numas luvas de pele
Esteja atento/a a todos os elementos que possam constituir um de cordeiro. Fechou a boca a sete chaves para tapar os dois grandes
perigo para o seu filho. A maioria dos acidentes dá-se ao fim-de- caninos. Uma outra vez, pôs um nariz de palhaço no rosto macilento,
semana, à hora do almoço. Tenha sempre os números principais de mas ficava com um ar tão triste que até fazia chorar.
telefone num lugar visível, quer para si quer para a baby-sitter. Outro dia ainda, o pequeno vampiro aproximou-se um pouco
mais da janela de Rosina. Foi terrível. Ela estava a ter um sonho mau.
Uma criança que não pára quieta
Chorava enquanto dormia, e gritava. Ele pensou: “É o momento de
Dedos na tomada, pequenos objectos na boca, subidas eu entrar em cena. De qualquer modo, nunca serei pior do que o
íngremes de cadeiras… Se o seu filho não pára quieto, isso pode pesadelo que está a ter”. O pequeno vampiro entrou no quarto no
querer dizer que se sente inseguro, pouco observado. Há crianças preciso momento em que ela ia gritar “Mãe!”. Ao vê-lo, arregalou os
que fazem o pino se sentirem que os pais estão deprimidos. Quando olhos.
chegamos a casa, temos de oferecer tempo a sério aos nossos filhos. — O que estás aqui a fazer? — exclamou ela. — Como

Se chegamos a casa, mas continuamos apressados, a atender o conseguiste entrar no meu quarto?

telefone, a abrir o correio, eles sentem que não estamos “lá” e vão — Não tenhas medo — disse o pequeno vampiro a tremer. —
Eu não faço mal a ninguém. Sou um vampiro simpático. Estou aqui
procurar atrair a nossa atenção de todas as maneiras, inclusive as
para te ajudar. Não tires nem o dente de alho nem o crucifixo.
mais perigosas.
A menina desatou a rir às gargalhadas. Ria-se e de que maneira!
Algumas frases-chave Até as lágrimas lhe vieram aos olhos.

• Agora que já és grande, não queria estar sempre a vigiar-te. — O teu disfarce não serve de nada. Não és nenhum vampiro,
és um rapaz!
Achas que posso ter confiança em ti?
O pequeno vampiro estava mesmo admirado. Em vez de gritar,
• Ninguém toma melhor conta de ti do que tu próprio; A
ela ria-se e dizia que ele era como os outros!
cozinha é o lugar mais perigoso do mundo.
— Eu conheço-te. Às vezes cruzo-me contigo na rua, ou então
• Não brinques com o fogo. O fogo é o nosso maior amigo e o
foi em sonhos. Já te vi nalgum sítio — disse a menina. — Quando
nosso pior inimigo.

91 203
dizes que és um vampiro, estás enganado. Os vampiros são feios e
tristes. Não têm olhos brilhantes como tu.
O pequeno vampiro sentiu que estava a ficar corado, uma
mistura de rosa e cinzento. A menina fez uma careta quando ele lhe
disse que tinha a cara cinzenta como papel enrugado, e fê-lo
aproximar-se do espelho!
— Tens de te bronzear um bocadinho, meu caro, para ficares
mais corado. Deve ser de estares fechado em casa, longe dos outros.
Volta amanhã, que vamos brincar no jardim, ao sol.
O rapazinho viu, com grande espanto, a sua imagem no
espelho. Era a primeira vez.
— Julgava que os vampiros não podiam ver-se ao espelho.
— Às vezes — disse a menina — julgamos que somos
vampiros, feios e cinzentos, mas é só impressão nossa.
E deu-lhe um beijo no nariz.
No dia seguinte, o rapazinho e a menina brincaram juntos no
jardim. O pequeno vampiro adquiriu uma linda cor de pele, olhos
brilhantes e cheios de luz. E os dentes, curiosamente, começaram a
encolher, a encolher… Pareciam pérolas!
— Vês, eu bem te disse. Vês como tinha razão!
E riram juntos.
Assim acaba a história do menino que se julgava um vampiro
feio. Ou, talvez, a de um vampiro verdadeiro, que se transformou
num rapazinho só porque gostava de uma linda menina rosadinha.

Sophie Carquain
Petites histoires pour devenir grand
Paris, Ed. Albin Michel, 2003
(tradução e adaptação)

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O PRINCIPEZINHO DESTEMIDO AS AVENTURAS E DESVENTURAS

DO LOBO FUMADOR
Certo dia, uma rainha apercebeu-se de que esperava um bebé.
“Espero que seja um rapaz”, pensou. “As raparigas são tão Um dia, no recreio, o canzarrão malvado tirou um maço de
caprichosas e choronas. Além do mais, só pensam nas suas Barbies.” cigarros do bolso do blusão negro e propôs ao lobo mau:
A rainha Florência tinha uma ideia estranha das raparigas… E, como — Queres um?
era uma rainha moderna, quis conhecer o sexo do futuro bebé. — Claro! — respondeu o lobão, que não queria fumar, mas
Quando soube que era menino, ficou radiante: tinha medo de que o canzarrão deixasse de ser seu amigo.
— Formidável! Vai de certeza trepar às árvores e caçar E foi assim que o lobão, com um certo mal-estar (sobretudo ao
elefantes sem armas. Será o meu príncipe corajoso! pensar na mãe), experimentou o seu primeiro cigarro, que o fez
Quando nasceu o menino, chamaram-lhe Rock, por ser um tossir e cuspir.
nome forte como um rochedo, um nome viril. O baptizado foi — Olha o pateta! — troçou o canzarrão. — Come galinhas mas
sumptuoso, bem como os presentes dos convidados. Nenhuma das não sabe fumar!
prendas era frágil, pois tal não conviria ao nosso príncipe. A troça durou uns bons minutos, com o canzarrão a mostrar os
A rainha escolheu como padrinho o feiticeiro Megatoque, dentes todos amarelados e podres.
conhecido pelas suas ideias originais. Este canídeo era bem estúpido, diga-se de passagem. Não é um
cigarro que nos torna super-fantásticos ou super-fixes. A amizade

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não tem nada a ver com cigarros. Mas o lobão achava que fumar — Faça dele um rapaz corajoso e duro; não quero um filho que
fazia parte dos hábitos de todos os lobões que se prezem. só sonhe em casar com princesas de cabelos loiros e verificar o vinco
— Se eu fosse um pintainho, um patinho ou uma princesinha, das calças ao espelho. Também não quero um marrão que nem saiba
não teria de gramar este horror que me dá vontade de vomitar — caçar.
suspirou entre dentes. E o feiticeiro-padrinho assim fez.
E foi assim que o lobão, que detestava o tabaco, se pôs a O rei e a rainha estavam encantados com um filho que nunca
fumar. Segurava o cigarro entre o indicador e o polegar, semicerrava tinha dores ou medo. Não seria este o temperamento ideal para
os olhos e expelia círculos de fumo, enquanto cruzava as pernas quem estava destinado a combater os inimigos e a alargar as
peludas. Contemplando-se no espelho, dizia para si mesmo: “Olha fronteiras do reino? Um principezinho aprende a mascarar os seus
para esta classe!” medos e a esconder o seu sofrimento, mesmo que esteja feito num
Depois de fumar 5 cigarros, tinha deixado de tossir e cuspir. oito por dentro. Era a isto que os pais dele chamavam “boa
Depois de 15, já adorava o cheiro do tabaco. Depois de 42, já não educação”.
podia passar sem fumar. Tudo o que no início lhe desagradara O pequeno Rock cresceu em dureza. Habitualmente, os medos
(aspirar o fumo, senti-lo descer pelos pulmões, ter a cabeça à roda, aumentam com a idade, com a consciência do perigo. Mas o nosso
sentir um formigueiro nos dedos), tinha-se transformado num rapaz tinha tanto medo de uma fornalha ardente como um bebé de
verdadeiro prazer. dezoito meses. Ou seja, nenhum.
Começava logo a fumar pela manhã, antes de comer o primeiro Aos 9 anos, Rock fazia festas aos cães mais raivosos, queria
frango. Continuava ao almoço: depois do borrego recheado, acendia estrangular javalis com as mãos, atirava-se das escadas, sorria para
outro enquanto esperava para comer o galo, e acabava o maço antes lobisomens, cruzava-se com bandidos desdentados sem o menor
da chegada da cabrinha montês. Fumar tornara-se indispensável para sinal de medo, a menor palpitação cardíaca, a menor gota de suor na
ele. Até os gestos se tinham tornado indispensáveis. Chegava a fumar testa.
40 cigarros por dia, ou seja, dois maços. A coragem do príncipe derivava da sua inconsciência. Isso quer
Fumava quando estava alegre e quando estava triste, quando dizer que ele não tinha consciência dos perigos que o ameaçavam.
tinha fome e quando tinha o estômago cheio, quando tinha sono e Um dia em que uma tempestade medonha se abateu sobre o
quando estava excitado. Gastava nisso todo o dinheiro que tinha. reino, em que tudo ruía e tremia à passagem do vento e da trovoada,
Preferia comprar tabaco a comprar um jogo de vídeo. Quando lhe ele estava no jardim a assobiar. Resultado: uma pneumonia dupla e
diziam que o tabaco provoca cancro, que escurece os pulmões, ou 42 graus de febre.

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Numa outra altura, aproximou-se demasiado da jaula dos leões impede de respirar, ria-se. Durante meio minuto ainda hesitava, mas
no circo, e ficou sem uma mão, que teve de ser reconstituída de logo acendia um novo cigarro.
urgência. O feiticeiro-padrinho fartou-se de lhe ralhar, mas nada Numa manhã de Primavera, o lobão ouviu na rádio que os três
feito! porquinhos tinham-se instalado nas suas casinhas feitas de tijolo,
A rainha nunca teve medo dos desmandos do filho até ao dia palha e madeira. Com o coração aos saltos, fumou logo uma dúzia de
em que o príncipe anunciou que iria voar como um pássaro para cigarros, para ver se lhe surgia alguma ideia. “Já sei”, pensou, “vou
festejar o seu 10º aniversário. Mandou que o prendessem nas soprar como se fosse um tornado e deitar as casas deles abaixo.
masmorras do palácio, para o proteger de si mesmo, e deu-se conta, Depois, é só comer.”
pela primeira vez, de que a sua vontade de ter um filho destemido No dia seguinte, o lobo mau foi à floresta. Pelo caminho,
poderia custar a vida deste. acendeu mais um cigarro. Logo um pardal protestou:
Chamou o padrinho de urgência ao palácio e disse-lhe: — Que cheirete! O que é isto? Uma bomba nuclear?
— Meu amigo, retire todos os dons que concedeu ao príncipe à — Não — respondeu o corvo. — É um cigarro.
nascença. A coragem é útil, mas o medo é necessário para impedir — Que idiota poluidor! E a lei anti-tabaco? — protestou a
que nos matemos. Dê-lhe um pouco de medo e logo veremos! toupeira, com os dedos a apertar o nariz.
O feiticeiro não precisou de mais de dois minutos para pôr o — Não viste o painel? Não sabes ler? — indignou-se o coelho,
príncipe como novo. Depois, deu-lhe a beber um pouco de sumo de que comia uma cenoura.
medo, para o impedir de fazer tantos disparates. O lobão ouviu, indiferente, todos estes protestos e atirou a
Nessa mesma noite, pensou que, de futuro, se inspiraria mais beata para o chão, sem sequer a ter apagado. Que foleiro…
nos contos clássicos e menos nas ideias estapafúrdias de certas Dirigiu-se à cabana de palha, em primeiro lugar. Contou até três
rainhas… Nos contos, os príncipes são corajosos, mas não são e soprou com força, na esperança de derrubar as paredes e de comer
inconscientes. Não precisam de ser durões para ser admirados. o porquinho ali mesmo. Mas, quando abriu a bocarra, apenas um
O padrinho concluiu: soprozinho microscópico lhe saiu da boca. Uma mosca morreu ali
— Um pouco de dores de barriga, umas gotinhas de suor na mesmo, devido ao hálito que saiu da bocarra do lobo. E quem caiu ao
testa, um apertozinho de coração não fazem mal a ninguém. É a isso chão não foi o porquinho mais novo, mas o lobão.
que se chama o instinto de sobrevivência. Quanto mais olhava para a cabana intacta, mais ouvia a vozinha
O príncipe Rock tornou-se um bom aluno, um rapaz bem- interior que lhe dizia: “Foi o tabaco que te pôs neste estado! O
-educado, belo e corajoso. Não era medroso, mas também não se tabaco arruína o teu fôlego!”

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Dentro da cabana, o porquinho ria-se a bom rir, porque já não enfiava às cegas na boca dos leões…ou dos lobisomens. Todos
precisava de se refugiar na casa do irmão do meio. E toda a floresta ficaram a ganhar, incluindo o serviço de urgências do reino.
desatou a rir daquele lobo ridículo que, para se consolar da
humilhação, acendeu mais um cigarro…
Sophie Carquain
Petites histoires pour devenir grand (2)
Paris, Albin Michel, 2005
Sophie Carquain (tradução e adaptação)
Petites histoires pour devenir grand (2)
Paris, Albin Michel, 2005
(tradução e adaptação)

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AOS PAIS E EDUCADORES

Porquê falar-lhes já do tabaco?

• Porque um terço dos jovens dos 12 aos 18 anos fuma com


regularidade…Porque o primeiro cigarro se fuma
normalmente antes da entrada no secundário.
• Porque os jovens desenvolvem uma habituação à nicotina
entre 6 meses e 3 anos depois de terem fumado o primeiro
HISTÓRIA DA VARINHA QUE ENCOLHIA
cigarro. Quando tentam parar de fumar, mesmo que só
fumem entre 3 a 5 cigarros por dia, sentem as mesmas
Quando se satisfazem todos os caprichos dos outros,
dificuldades dos adultos.
perde-se o próprio valor.
• Porque, para prevenir as tentações, mais vale falar-lhes do
tabaco desde a primária.
Quem é que nunca sonhou ser fada? Quem nunca sonhou
• Quais são os riscos? Além da habituação, os jovens fumadores
possuir uma varinha mágica para satisfazer todos os caprichos que
estão sempre em pior forma física do que os outros jovens,
nos passam pela cabeça? Não fazer a cama de manhã, pedir quinze
gelados de três bolas e vinte e três chupa-chupas, transformar a porque o tabaco reduz o crescimento dos pulmões. Ficam

professora em princesa da Guerra das Estrelas, ou ainda trocar a sem fôlego, têm uma tosse cavernosa, uma respiração

couve horrorosa da cantina por um grande prato de batatas fritas sibilante…


com sal e molho de tomate? É com isto que se sonha… Como falar?
Na realidade, no País das Fadas, não se pode utilizar a varinha
• É inútil fazer uma lista com todos os argumentos relativos à
mágica para proveito próprio. Só se pode utilizá-la em caso de
grande aflição – e até perigo de morte. Podem realizar-se os desejos saúde: cancro do pulmão aos 20 anos, doenças

dos outros “com moderação”, “sem abusar”, “sem ser a torto e a cardiovasculares. Nada disso os atinge.
direito”.

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• Deve-se evitar, de igual forma, as atitudes humilhantes: Quando a Rainha das Fadas, no momento da entrega das
“Achas-te muito viril de cigarro na boca?” varinhas, fazia as recomendações, todas as crianças se interrogavam:
“O que quer dizer a frase “Não devem ser utilizadas a torto e a

A atitude a adoptar direito?”


Significava que era possível utilizar a varinha “dez vezes por
• Perguntar quais são as “boas razões” que eles têm para
dia” ou apenas “uma vez por mês”? Quereria dizer “uma vez por
fumar.
dia”? Seria para oferecer bombons? Para dar prazer? E a quem?
• Proibir o tabaco em casa (adultos compreendidos). Àqueles que de facto precisavam?
• Se tivermos uma filha, falar-lhe da anti-sedução que está ― Vocês é que têm de saber ― respondia-lhes, sorrindo, a
ligada ao tabaco: o tabaco amarela os dentes, enfraquece os Rainha das Fadas. ― Quando se tem uma varinha mágica na mão, é
cabelos, torna a pele baça, produz uma tosse cavernosa. difícil, muito difícil impor limites aos desejos!
Diga-lhe que, quando quiser parar de fumar, vai engordar Ora, a pequena fada Noémia tinha muita dificuldade em dizer

imenso. “não” aos outros.


Um dia, no caminho para a escola, cruzou-se com uma
• Se tivermos um filho, devemos falar-lhe do risco de ficar
fadazinha muito chorosa, sentada com a carita entre as mãos,
pequeno para sempre. Por isso é que vemos tantos
porque se tinha esquecido de fazer o trabalho de casa, que consistia
“pequenotes” a fumar… “Alguns médicos dizem que fumar
na seguinte tarefa: “Explica como farias para acabar com a maldição
pára o crescimento. Queres continuar a crescer ou queres
da fada Comodora. Faz com que a princesa Aurora durma apenas três
ficar sempre do mesmo tamanho?” Se ele fizer desporto,
meses em vez de cem anos.”
falar-lhe do perigo de nunca poder progredir na competição.
A pequena fada estava tão angustiada que se pôs a chorar:
• Se for para eles uma forma de liberdade, diga-lhes que nunca ― Vou ter um castigo! Noémia, ajuda-me!
foram tão escravos da indústria do tabaco e do marketing… Noémia tinha um coração de manteiga. Tirou de bom grado a
E que a manipulação fisiológica induzida pelo tabaco ainda é varinha da pasta e, em menos de um segundo, o trabalho de casa
pior… estava feito. A fadazinha enxugou as lágrimas, deu dois beijinhos a
• Ajude-os a criar fórmulas para poderem dizer não, já que eles Noémia e continuou o caminho muito contente, aos pulinhos por
têm receio de que o grupo os exclua: “Não, obrigado. Já entre as pequenas ervas.

210 98
Três dias depois, Noémia tornava-se na “querida fada que experimentei, mas não gostei.” Ou “Obrigada, mas sou
satisfaz os desejos”. Como que por acaso, conheceu, subitamente, alérgica ao cheiro”.
vários “amigos”. Era convidada para aniversários e começaram a
dizer-lhe coisas do género: “Noémia, minha querida, vem sentar-te
Algumas frases-chave
ao pé de mim”, “Noémia, minha pequenina”, “Noémia, minha
querida, como estás bonita hoje”, “Noémia, minha boneca azul, meu • O cigarro é um veneno que destrói o corpo, amarelece os
torrãozinho de açúcar!” dentes, e impede o crescimento.
Quando ouvia isto, a fadazinha tinha logo vontade de pegar na • Quando começamos a fumar, pensamos que é uma
varinha. E esquecia as regras que tinha aprendido. brincadeira e que podemos parar quando quisermos. Mas
― Olha, Noémia… preciso de umas calças de ganga novas para isso é falso.
sair à noite.
• Dentro dos cigarros existe um veneno que nos faz querer
― Oh, não há nada mais fácil! ― ria Noémia.
fumar sempre mais.
E fazia aparecer umas calças fantásticas com lantejoulas nos
• Se formos adultos, podemos dar o exemplo: “Francamente,
bolsos.
se pudesse voltar atrás, nunca teria fumado o primeiro
― Noémia, tenho uma borbulha no nariz.
cigarro.”
― Já não tens borbulha nenhuma.
A cada dia e a cada semana, as suas “amigas” tornavam-se
mais exigentes e os seus desejos cada vez mais extravagantes:
― Quero uma pizza!
― Quero um estojo novo!
― Quero uma mãe mais simpática!
― Quero uma grande taça de mousse de morango.
Chamavam-na a qualquer hora do dia e Noémia lá ia, com a sua
varinha. Às vezes, tinha vontade de dizer:
― Não posso. Quem julgas que sou?!
Mas a cabeça dizia que não e a boca dizia que sim. É difícil dizer
não, quando queremos que os outros gostem de nós.

99 211
Então, Noémia tirava a varinha do estojo e actuava. E verificava
que, de cada vez que a utilizava, a varinha encolhia e ia perdendo o
brilho… Entretanto, os desejos das pequenas fadas tornavam-se
cada vez mais loucos:
― Muda-me o nariz!
― Põe-me as coxas mais magras para eu poder saltar melhor!
― Quero cabelos com caracóis!
― E eu quero olhos azuis com um reflexo dourado!
― Uma bela voz!
― Um palácio! ― gritavam Estela e Bela.
― Dinheiro na minha conta bancária!
― Mais! Mais coisas ainda! ― bradava a fada com voz de
cegarrega.
Um dia, a fada Zélia exigiu:
― Quero sete príncipes encantados, um para cada dia da
semana.
Mas, quando Noémia os inventou, Zélia gritou:
― São feios! Não são bonitos! São feiíssimos! Tira-mos daqui!
E Noémia deparou-se com sete príncipes encantados, sobre os
seus cavalos brancos, terrivelmente acabrunhados, aos quais teve de
pedir desculpa.
Noémia estava esgotada e o que a entristecia mais era ver que
ninguém lhe agradecia. Às vezes, apetecia-lhe dizer que não, mas não
conseguia suportar o sobrolho carregado dos outros. Talvez a
deixassem sozinha. Quem era ela para ousar dizer não? O problema
de Noémia era que se sentia feia, que achava que não valia nada, que

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tinha os cabelos como palha, o nariz grande e abatatado, e algumas
borbulhas no rosto.
Entretanto, as outras fadas tornavam-se cada vez mais
horrorosas! Quanto mais Noémia cedia aos caprichos delas, mais
feias ficavam. Os seus olhos azuis brilhavam com um reflexo
maléfico. Os queixos tremiam e esticavam. Os narizes ficavam curvos
e nasciam-lhes verrugas no rosto. Quando falavam, tinham vozes
trocistas e velhacas. As fadas estavam a transformar-se em… bruxas.
Noémia trabalhava agora desde as seis horas da manhã até
depois da meia-noite. Telefonavam-lhe constantemente, um pouco
A HISTÓRIA DOS HOMENZINHOS DE PATINS
como quando se encomenda uma pizza. Mas, enquanto se paga e
agradece aos funcionários que entregam a pizza, a ela nada lhe
Era uma vez um planeta onde se nascia, vivia e morria sobre
davam em troca! “É curioso”, pensava Noémia, “há qualquer coisa
patins.
que não bate certo! Ensinaram-me a agradecer quando me dão
Também se viajava, namorava e trabalhava sobre patins.
alguma coisa.”
O seu uso era obrigatório porque caminhar era um processo
Uma noite, uma pequena fada telefonou a Noémia à uma hora
muito lento e tomava muito tempo.
da manhã, porque lhe apetecia bolo de chocolate com chantilly.
Alguns habitantes nem sequer tiravam os seus pés rolantes
Noémia sabia que ela estava a passar dos limites. Mas a simples ideia
para dormir.
de dizer “não” ao telefone e de desligar teria o efeito de uma
Nunca ninguém chegava atrasado ao emprego ou às aulas. Só
punhalada no seu coração, visto que, no dia seguinte, tudo se iria
se falava o estritamente necessário, porque até as sílabas eram
saber. E Noémia pagaria cara a sua recusa! Veria as amizades
contabilizadas.
estragadas…
Todas as actividades susceptíveis de nos fazer perder segundos
Assim, em plena noite, teletransportou-se até à casa da
preciosos eram proibidas: falar da chuva e do bom tempo, comprar
pequena fada… E fez aparecer, com a sua varinha, um enorme bolo
bombons, arrastar-se, de manhã, por casa, em peúgas, dançar o
com chantilly. A pequena fada devorou-o, deu um arrotinho de fada,
tango, ou ter bebés. Um bebé exige tempo e isso faz com que nos
e voltou a deitar-se. Sem lavar os dentes e sem agradecer. Noémia
tornemos menos eficazes.
Mas, porque corriam as pessoas assim?

101 213
Porque no planeta ao lado viviam uns seres cinzentos e tristes, voltou triste para casa. “Vou a pé”, pensou ela. “Não posso usar
que tinham decidido fazer das pessoas cavalos de corrida. Para isso, muitas vezes a varinha mágica.”
tinham-nas transformado em seres que apenas viviam para a Mas eram duas horas da manhã e, como estava tudo escuro, a
velocidade e para o stress. fadazinha perdeu-se… Andou às voltas, às voltas, às voltas… Já no
Esses seres faziam apostas e lançavam na lixeira intersideral as limite das forças, tirou a varinha do bolso. Mas a varinha já não era
pessoas que perdessem a corrida. As pessoas não passavam de uma varinha, era um fósforo! Tinha encolhido e já só media cinco
escravas… centímetros. Noémia sentou-se sobre um tronco de árvore e
O corpo humano não consegue viver a 500 quilómetros à hora começaram a cair-lhe grossas lágrimas dos olhos. Gritou:
e, assim, as pessoas passaram a sofrer de várias doenças, a mais ― É injusto! Injusto!
catastrófica das quais eram as fracturas do crânio. E pensou que ia morrer ali sozinha. Mas cada fada tem uma
Sempre que uma criança caía, o seu cérebro começava a madrinha que voa em seu socorro quando ela necessita. A fada boa
encolher até ficar do tamanho de uma ervilha. Como estas fracturas de Noémia apareceu num turbilhão prateado. Parecia muito zangada,
eram cada vez mais frequentes, as pessoas ficavam cada vez menos com uma ruga no meio do rosto e o sobrolho carregado. Em vez de
inteligentes. fazer festas a Noémia, disse-lhe:
Por isso, ninguém tivera ainda a ideia de inventar um capacete ― Parabéns, minha filha. És a campeã na arte de transformar
para proteger a cabeça. fadas em bruxas!
Mas os seres cinzentos e tristes estavam a ficar sem escravos e E tirou uma pequena lista do bolso.
decidiram, então, inventar eles mesmos o capacete e tornar o seu ― Até hoje, transformaste 35 pequenas fadas em 35 bruxas
uso obrigatório. Como as pessoas tinham o cérebro protegido, más.
podiam utilizá-lo para pensar. Por exemplo, para pensar por que Noémia desatou a soluçar.
razão haviam de andar tão depressa. ― Não sabia que os presentes iam ter este efeito. Queria fazer-
Então, pouco a pouco, começaram a reduzir o ritmo da sua -lhes a vontade!
vida e a dar-se conta de que correr não serve de nada. Que isso ― Para quê? Para que gostassem de ti? Achas mesmo que, ao
apenas as escravizava mais em relação ao povo dos seres tristes e satisfazer-lhes todos os caprichos, lhes ias inspirar amor e respeito
cinzentos. por ti?
Passaram, então, a brincar, a conversar, a jogar, a fazer amigos, ― Não quero que me abandonem ― chorou Noémia. ― Não
sem medo de que isso lhes fizesse mal. E nem viam o tempo passar… sei dizer que não. Tentei, mas tive demasiado medo de morrer.

214 102
A fada-madrinha abanou a cabeça e tomou-a nos seus braços Todos se inscreviam em cursos de dança, assistiam ao pôr-do-
meigos. -sol, davam longos passeios pela floresta.
― Eu sei, querida. Mas o amor e a amizade não funcionam com A transformação ainda demorou algum tempo.
prendas. És bonita, inteligente, engraçada e simpática. Não deves dar Mas as dores de barriga e de cabeça desapareceram.
apenas para que gostem de ti! Até os adultos sabem que podem E começaram de novo a nascer bebés…
transformar as crianças em seres horríveis se lhes derem demasiadas
coisas!
E a fada-madrinha agarrou na minúscula varinha que reluziu no Sophie Carquain
ar como se fosse um fósforo. Pegou muito devagarinho num belo Petites histoires pour devenir grand (2)
Paris, Albin Michel, 2005
estojo de veludo vermelho, e dele tirou uma varinha nova e brilhante. (tradução e adaptação)
― É a tua segunda oportunidade ― disse-lhe. ― Toda a gente
tem uma segunda oportunidade. Peço-te que a utilizes apenas de vez
em quando. Se a usares com moderação, não perderá a magia.
Deverias saber que toda a gente tem apenas um número limitado de
desejos. De outra forma, perdes o teu poder. Se a utilizares
demasiado, a tua varinha fica reduzida a uma pequenina palhinha.
Noémia bocejou.
― Prepara-te ― disse a fada-madrinha. ― Volta para casa e
usa a tua varinha mágica só em ocasiões especiais. E faz-te respeitar
um pouco mais pelos outros! Quando nunca se diz “não”, os outros
tornam-se muito exigentes! E querem-te mal porque nem sabem o
que fazer. Ficam com vontade de comer um gelado às duas horas da
manhã, de ir de férias à lua…
E acrescentou:
― Não se pode aceitar tudo o que os outros querem e fazem.
Se aceitarmos, deixamos de ter valor aos seus olhos.
Noémia agarrou com força a sua varinha.

103 215
― Esta varinha ― disse ― sou eu. É o meu segredo. Sou tão
AOS PAIS E EDUCADORES valiosa como ela.
Noémia regressou a casa e guardou a bela varinha mágica
muito novinha no armário, longe de todos os olhares. Precisava de
Queixamo-nos com frequência de que levamos uma vida aprender a dizer “não”! Quando soubesse dizer não, poderia tirá-la
infernal. Mas a dos nossos filhos também o é. Vivem sob pressão do armário… E foi o que fez.
desde que nascem. Estão na escola a maior parte do dia e, depois das Isso não a impediu de ter muitas amigas, pequenas
aulas, entram na roda-viva do banho, dos deveres, e do jantar. Não companheiras que lhe chamavam “Noémia”, “Noé”, e não “minha
admira que tenham tantas dores de barriga! querida”, “meu torrãozinho de açúcar” ou “minha boneca azul”,

Segundo muitos psicólogos, as crianças de hoje queixam-se tudo expressões que soavam a falso!

cada vez mais de que não têm tempo para brincar, divididas que
estão entre o judo e o violoncelo. E se fosse só isto! Deixaram de ter
tempo para sonhar ou até para não fazer nada. Sophie Carquain
Petites leçons de vie. Pour l’aider à s’affirmer
Como gerir a situação? Paris, Ed. Albin Michel, 2008
(tradução e adaptação)
• Na medida do possível, deixe o seu filho gerir o tempo. Uma
criança submetida à pressão do tempo é menos eficiente do
que uma que dispõe de tempo para realizar a sua tarefa. Diga-
-lhe, por exemplo: “Dou-te duas horas para arrumares o teu
quarto e tomares banho”.
• Deixe-o sem fazer nada uma hora por dia. Os desportistas
têm necessidade de alternar momentos calmos e momentos
fortes e as crianças também. Se espremer o seu filho como
um limão, ele torna-se mais lento… para resistir ao ritmo
infernal que lhe é imposto.

216 104
• Acorde-o um quarto de hora mais cedo de manhã para evitar
AOS PAIS E EDUCADORES o stress do pequeno-almoço.
• Reserve meia hora todas as noites para falar das brincadeiras
dele com a melhor amiga, da cantina, de tudo e de nada,
Saber dizer não aos outros para melhor se afirmar
mesmo que se deitem um pouco mais tarde. Se ele estiver
Dizer não, mesmo na idade adulta, é das coisas mais difíceis stressado, também não adormece mais cedo. E não esqueça
que há! Não gostamos de desagradar, queremos fazer a vontade aos a hora do conto!
outros… Por detrás da impossibilidade de dizer não existe um • Deixe que ele conviva com os avós e demais pessoas de
desejo, infantil, de ser imensamente amado, como a pequena fada, e idade. As crianças têm um ritmo muito semelhante ao das
de satisfazer as vontades dos outros… Contudo, podemos correr um pessoas mais velhas.
grande risco, porque esquecemos os nossos próprios desejos e
sacrificamos a nossa identidade.
O problema do capacete
Não ensinar os filhos a dizer não é correr o risco de os
As crianças não gostam de constrangimentos. Contudo, em
privarmos de discernimento e de espírito crítico. Sabe-se hoje que um
caso de queda, a criança arrisca-se a fazer um traumatismo craniano.
grande número de crianças que consome droga desde muito cedo ou
O uso do capacete é hoje obrigatório, tanto no esqui como no
fuma – às vezes desde os dez anos! – cede à influência dos outros,
ciclismo. Também devem usá-lo quando andam de skate ou de
revelando um problema de auto-estima. Esses jovens foram, num
trotineta.
determinado momento, incapazes de dizer não, porque queriam
integrar-se num grupo e queriam que gostassem deles.
Algumas frases-chave

• Tens de repousar; o stress dá dores de cabeça e de barriga.


Como ensinar-lhe a dizer não?
• O cérebro é muito frágil. Se sofrer danos, pode não poder ser
• Respeitando os desejos da criança, se forem razoáveis; reparado. Por isso deves usar capacete.
escutando os filhos, mostramos-lhes que são importantes, • Quando se anda de skate, tem de se proteger os cotovelos,
que as suas palavras não são esquecidas; perguntando pelas os joelhos as mãos e a cabeça. São as partes mais expostas e
razões profundas de não quererem fazer determinada coisa. mais frágeis do nosso corpo.

105 217
• Mostrando aos filhos que existem. Quando regressamos a
casa à noite, ou quando terminamos o trabalho, desligamos o
telemóvel. Os filhos não vêm em último lugar.
• Provando aos filhos que os seus limites e o seu corpo são
respeitados. Não se entra na casa de banho sem bater à
porta, não se invade o quarto deles, como se fosse território
público.
• Ajudando os filhos a respeitarem-se a si próprios, respeitando
os limites do seu corpo e da sua intimidade. Não os obrigando
a dar um beijo quando não querem; quando temos de lhes
dar uma sapatada, tem de ficar claro porque o fizemos.
• Os filhos devem poder exprimir os seus desejos onde quer
que estejam. Porque devem ser os outros a serem
privilegiados, porque têm os nossos filhos de abdicar de
tudo? Podemos sugerir que joguem com o colega, mas de
modo algum que lhe dêem tudo o que possuem.
• Ensiná-los a dizer “não” é ensinar-lhes a resistir à chantagem
afectiva: “Se me deres isso, és minha amiga. “Se não fizeres
de criada e eu de princesa, deixo de gostar de ti.” Os recreios
estão cheios destas pequenas ameaças diárias entre crianças:
“Se eu não for mais uma vez a rainha e tu a criada, nunca
mais falo contigo.” Devemos explicar aos nossos filhos que
estas crianças são manipuladoras. Se eles nunca se
opuserem, se aceitarem tudo, elas irão cada vez mais longe
nas suas exigências. É preciso dizer-lhe que ser amigo não é

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ficar sempre com a parte pior. As relações devem ser
equilibradas.
• Algumas crianças e alguns adultos dariam tudo para que os
outros gostassem deles. Todos conhecemos, à nossa volta,
adultos que bombardeiam os outros com presentes! É uma
forma de chantagem que a criança pode vir a imitar. Mas a
amizade, tal como o amor, não se compram! Muitos adultos
têm esta atitude durante a vida inteira: dão o seu tempo, o
seu dinheiro… a sua “magia interior”, para sobreviver e para
serem amados pelos outros.

Algumas frases-chave

• És simpático, amável, bonito, meigo… Não é preciso mais


nada para que gostem de ti.
• Tu próprio já és um presente!
• Não te obrigues a fazer o que não queres com os amigos ou
amigas.
• Na escola, a professora dá-te ordens, indicações, o que é
normal. Mas, com os amigos, o caso é diferente.
• Dar é uma acto gratuito. Não se dá para fazer amigos. Os
verdadeiros amigos gostam de nós por aquilo que somos e
não pelas prendas que damos, mesmo que te digam o
contrário.

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• Quando não sabes se alguma coisa está bem ou mal, tenta
escutar aquela pequena voz do teu íntimo, que te diz: “Fiz
bem” ou “De facto, agi mal, não posso fazer isto”.
• Quando não souberes mesmo se algo está certo ou
errado, presta atenção. Muitas vezes, isso significa que
tens mais vontade de dizer “não” do que de dizer “sim.”

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