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29/08/2017 Robert Kurz - A INDÚSTRIA CULTURAL NO SÉCULO XXI

Robert Kurz

A INDÚSTRIA CULTURAL NO SÉCULO XXI


Sobre a actualidade da concepção de Adorno e Horkheimer

Da crí ca aparente da burguesia intelectual ao culto pós-moderno da superficialidade * Crí ca cultural


eli sta ou emancipatória? * Reducionismo tecnológico * A publicidade como percepção cultural do
mundo e de si mesmo * A con nuação do "trabalho abstracto" e da concorrência por outros meios * A
Internet como novo meio central da indústria cultural * A virtualização do mundo da vida * Intera vidade
da Web 2.0 e individualização * Uma cultura grá s paga cara * O limite interno do capital e a crise
económica da indústria cultural * A caminho do esgotamento das reservas culturais * O mundo não é um
acessório. Por que é impossível uma "revolução cultural" separada

Nota prévia: o presente ensaio é a versão escrita e alargada de uma comunicação apresentada em 21 de Novembro
de 2010 na Alliance Française em São Paulo no âmbito de uma série de conferências subordinadas ao tema “A
Indústria Cultural no Século XXI”.

Há textos que já estão envelhecidos quando vêem a luz do dia. E há textos que mesmo com cem anos de
idade se apresentam frescos e emocionantes. O livro A Dialé ca do Esclarecimento de Adorno e
Horkheimer, onde se inclui o célebre capítulo sobre a Indústria Cultural, teve a primeira edição em 1944.
Poder-se-á ainda falar tanto tempo depois da actualidade das ideias aí formuladas?

Para o pensamento pós-moderno em sen do lato a resposta é clara: não. Este ponto de vista tornado
dominante nas úl mas décadas gosta de acusar o conceito de indústria cultural de ser portador de um
“pessimismo cultural” conservador. Que mal poderá haver na industrialização da cultura? Não se
encontrarão aí potenciais de liberdade e progresso que podem ser u lizados por todos os seres humanos?
A esquerda cultural e pop pós-moderna, na sua experiência mediá ca para não dizer snobismo mediá co,
julgou-se para lá do pensamento “fora de moda” da teoria crí ca. Com isso, no entanto, apenas
demonstrou o seu próprio carácter de simples fenómeno de moda. Entretanto a empresa pop pós-moderna
já está um pouco entrada nos anos e os seus velhos protagonistas ganharam uma aura já quase de avô. De
repente eles mesmos correm o risco de se tornarem conservadores em relação ao seu próprio mé er de
juventude cultural profissional. É precisamente nesta situação que é de todo o interesse voltar a ver com
outros olhos o conceito crí co de indústria cultural e as acusações pós-modernas contra ele lançadas.

Da crí ca aparente da burguesia intelectual ao culto pós-moderno da superficialidade


Para começar será preciso esclarecer o que se deve entender por “pessimismo cultural”. No modo de
expressão pós-moderno, que em todo o caso prefere proceder associa vamente, a simples classificação
denunciatória já parece falar por si mesma, sem precisar de mais fundamentação. Aqui se infiltra de algum
modo a referência pejora va à postura de “burguesia cultural” na argumentação deprecia va,
argumentação essa que permanece igualmente associa va e indeterminada. Na realidade a “burguesia
cultural”, a que corresponde a estrita diferença entre cultura de entretenimento e cultura séria, é um
fenómeno bem especificamente alemão. A literatura, a música etc. “sérias” ou de “alto nível cultural” não
devem ser manchadas por um “entretenimento” entendido como fundamentalmente baixo, tal como o
ensino e a inves gação académicas não devem ser manchadas por uma “ciência popular” aferida pelo
entendimento comum.
Se a burguesia cultural clássica, sobretudo na Alemanha, torce o nariz à superficialidade da moderna
cultura comercial, isso não passa de um gesto vazio. Pois tal crí ca permanece ela própria superficial, uma
vez que a sua preocupação é toda ela para os modos exteriores de exposição, enquanto o conteúdo social e
o núcleo poli co-económico de tais produções têm de ser ocultados e permanecem amplamente
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irreflec dos. Esta espécie de “pessimismo cultural” é uma forma de reacção puramente intracapitalista.
Quanto mais se invoca abstractamente uma “essência interna” indeterminada e mis ficada da alta cultura
iluminista burguesa, tanto mais irrelevante se apresenta a cruzada da burguesia cultural contra a indústria
cultural. Atrás disso esconde-se um penoso estado de coisas. O entretenimento frívolo e a simplificação
popular não passam do reverso do carácter carregado ideologicamente em alto grau das próprias ciência e
arte burguesas “sérias” que assim se torna reconhecível. O facto de estas não serem compradas apenas
porque já antes nham sido compradas pelo Estado para efeitos de representação mostra a origem comum
em que o dinheiro se valida no Estado e o Estado no dinheiro. É verdadeiramente a involuntária revelação
deste contexto que não agrada aos crí cos da cultura da burguesia cultural na industrialização da cultura,
pois com isso a sua própria vida fica exposta. Para os restos hoje miseráveis e do ponto de vista capitalista
precarizados dos bajuladores burgueses da alta cultura está completamente rompida a distância para a
superficialidade cultural, pelo que a sua a tude só pode ser entendida como sá ra real.
É verdade que não se pode absolver sem mais Adorno e Horkheimer do patrio smo do milieu da
“burguesia cultural”. Este, no entanto, encontra-se mais no modo de exposição do que no conteúdo crí co.
Se a “crí ca da crí ca” pós-moderna insiste sobretudo no primeiro, então ela mais uma vez diz mais sobre si
mesma do que sobre o objecto que põe de lado. De facto para o culturalismo pós-moderno são sempre
mais importantes os trapinhos, os acessórios, o “styling” e a a tude do que aquilo que neles se exprime. A
crí ca inverdadeira e ela própria superficial da burguesia cultural à superficialidade vira-se num culto pós-
moderno afirma vo da superficialidade. A aparência imediata ter-se-ia emancipado da sua essência. Ao que
corresponde o modo de pensar posi vista que submete os conteúdos a um método formal vazio e os
condena à indiferença.
A feira explícita da exterioridade, de que a crí ca cultural conservadora e a nebulosa invocação de uma
“interioridade” cons tui uma mera inversão, naturalmente não é nada de novo. Ela regressa
periodicamente, ainda que na pós-modernidade tenha experimentado por assim dizer a sua apoteose de
capitalismo tardio e de capitalismo de crise. Heinrich Heine, no seu ensaio crí co sobre A Escola Român ca
(1833), tem em mira de certa maneira uma a tude e um modo de proceder semelhantes para caracterizar o
processo de autodissolução do roman smo: “Entre os imitadores de Fouqué tal como entre os imitadores
de Walter Sco formou-se tristemente o costume de descrever apenas a manifestação exterior e o traje em
vez de a natureza interna das pessoas e das coisas. Este género rasteiro e modo leve grassa actualmente
tanto na Alemanha como na Inglaterra e em França. Mesmo se as descrições já não enaltecem o tempo da
cavalaria, mas dizem respeito às nossas condições modernas, mesmo assim mantém-se o es lo an go de
ver apenas o acidental do fenómeno em vez de a sua essência. Os nossos novos romancistas, em vez de
conhecimento das pessoas exprimem apenas conhecimento do vestuário, baseando-se talvez no mote: o
hábito faz o monge.
Já foi dito muitas vezes e não foi só do lado conservador que a redução dos objectos à sua fenomenologia
e decididamente à sua fachada, tal como o formalismo tanto esté co como epistémico, cons tuem marcas
ineludíveis de esgotamento cultural e social e de processos de dissolução; seja de uma formação social, de
uma época, de um padrão cultural ou de uma determinada escola. No que respeita ao nosso objecto, trata-
se não apenas do modelo em fim de linha da pós-modernidade, mas é esta que já cons tui como tal e no
seu conjunto o modelo em fim de linha da modernidade capitalista sob todos os pontos de vista. O baile de
máscaras pós-moderno não representa senão uma festa de classe média em tempo de peste, nem sequer
par cularmente frívola, mas sim aborrecida. De resto uma metáfora com que Roswitha Scholz caracterizou
já nos anos noventa o carnaval histórico da pós-modernidade como fuga condenada ao fracasso para o
palácio de cristal do capitalismo de casino. Isso até hoje pouco mudou na consciência ideológica do carácter
social pós-moderno apesar dos violentos surtos da crise. Quanto mais se invoca a “cria vidade”, mais surge
ininterruptamente a apresentação do acidental e do exterior. Não é a criação de algo novo que se exprime
com emoção contra a determinação da essência, mas sim a fuga perante a essência nega va e
completamente miserável da realidade da própria existência.
A hipóstase da capa exterior cultural e metodológica encobre precisamente a causa central da
indiferenciação, ou seja, a forma social geral e sobreposta como conteúdo substancial, à qual também a
indústria cultural já pertence sempre. O que é “burguês” em sen do próprio na esfera cultural dominante
não é um gesto conservador da “cultura” da associação de filólogos, mas sim o carácter de mercadoria dos
seus produtos, que integra estes no reino do “trabalho abstracto” e a si mesmo se degrada em elemento
abstracto na metamorfose do capital, como um móvel de design ou comida de design. Os protagonistas
podem aqui ignorar reciprocamente o carácter de entretenimento ou sério.
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Ironicamente a burguesia cultural clássica e as suas actuais figuras decadentes não se ilude de modo
diferente do pós-modernismo que surfa nos média quanto à essência nega va da cultura capitalista. Ambos
reflectem apenas diferentes estádios do desenvolvimento capitalista do mesmo modo afirma vo. O
pessimismo cultural é conservador e a formação posi va pós-moderna da indústria cultural é apenas
pseudo-“progressista” no mesmo con nuum capitalista não transcendido por nenhum dos lados. Por isso a
diferença se encontra apenas rela vamente às embalagens ou aos penteados, enquanto a determinação
categorial idên ca permanece escondida e não se consegue sen r o ridículo comum. Quando riem uns dos
outros riem sempre apenas de si mesmos.

Crí ca cultural eli sta ou emancipatória?


O pessimismo cultural conservador é eli sta até aos ossos e só a par r deste ponto de vista é pseudo-
crí co da produção intelectual em série. A cultura há-de supostamente morrer com o ocidente porque já
não está reservada às classes superiores “cultas” mas assume o carácter de uma cultura de massas. A crí ca
da frivolidade, da superficialidade e da vulgaridade da indústria cultural reconduz-se assim directamente ao
facto de ser produzida para a grande maioria, incluindo as camadas sociais inferiores consideradas como
que “por natureza” intelectualmente menores. Devia conceder-se-lhes com gosto uma espécie de
diver mento ingénuo, de modo a terem o seu prazer inofensivo e evitarem maus pensamentos, desde que
a alta cultura eli sta man vesse o seu caracter exclusivo e a coisa ficasse entre nós.
Na indústria cultural, pelo contrário, sente-se como ameaçador que ela nivele as pretensões, ultrapasse as
fronteiras sociais e desmascare como um disparate a aura de zelo cultural da an ga burguesia, uma vez que
esta há muito perdeu a sua base histórica que só ideologicamente con nua presente. Não é por acaso que
Adorno e Horkheimer troçam dos “amigos da educação” que “idealizam como orgânico o passado pré-
capitalista” imponentemente patriarcal. Por isso a cultura de massas industrial e comercializada não fica
sujeita ao veredicto conservador por ser “o esclarecimento como mis ficação das massas” (como diz o
sub tulo do capítulo da Indústria Cultural), mas sim porque torna reconhecível a falsidade reacionária do
auto-incensamento bucólico e imitador dos clássicos da consciência de professor efec vo que gostaria de
refrescar a sua própria estupidez social na canonizada “nobre simplicidade e silenciosa grandeza”
(Winckelmann) de heranças culturais irreais.
Inversamente os profetas pop pós-modernos rejubilam exactamente com a mesma massificação industrial
como se ela fosse per se valiosamente emancipatória. A cultura de massas já seria sempre boa,
independentemente do conteúdo e da forma, e seja ela uma cultura autónoma das próprias massas ou uma
cultura que obedece a impera vos heterónomos e perfeitamente independentes des nados à consciência
estragada das massas. Uma afirmação mais ou menos do mesmo modo que para a ideologia do movimento
de esquerda (de resto completamente marcada em termos pós-modernos) qualquer movimento de massas
em si já tem de ser essencialmente “autên co” seja qual o sen do em que se movimenta. A indústria
cultural, independentemente da sua forma de mercadoria e de capital, enquanto acessibilidade geral e
afirmação de massas, é considerada como momento de libertação no capitalismo de facto já não
grandemente tema zado. Esta a tude aponta no entanto apenas para o brutal interesse próprio de uma
determinada personagem na comercialização, nomeadamente como designer secundário académico e
publicista. Essa é a verdadeira razão porque ela gostaria de colar à teoria crí ca o pessimismo cultural
eli sta conservador como qualidade determinante.
Ora o conceito nega vo de indústria cultural em Adorno e Horkheimer quer dizer exactamente o
contrário: não é a acessibilidade para todos que é objecto de crí ca, mas sim que a indústria cultural, como
eles dizem, “representa o mais sensível instrumento de controle social”. Trata-se portanto do conteúdo
estruturalmente alienado e objec vadamente autoritário da cultura de massas capitalista e não do seu
alcance para lá das elites. Este conteúdo segundo Adorno e Horkheimer é “barbárie esté ca” porque
processa a “moral degradada dos livros infan s de ontem” a fim de disponibilizar para os desaforos sociais
os indivíduos cada vez mais infan lizados.
A an tese da indústria cultural seria uma cultura para todos que se opusesse à coerção da mera repe ção
e internalização do princípio dominante; portanto nem uma cultura para poucos, que se mantém como
mero ornamento desse princípio, nem uma cultura compensatória de terapia ocupacional democrá ca, que
não passa de um mecanismo de controle híbrido. É justamente este carácter essencial da indústria cultural
na forma da mercadoria que os ideólogos pop pós-modernos não querem reconhecer, embriagando-se pelo
contrário nela. A crí ca, se é que ela ainda surge, reduz-se a uma mera diferenciação interna que confere
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arbitrariamente um estatuto de culto pseudo-emancipatório a determinadas tendências de massas da


indústria cultural, como se a compra e consumo dos respec vos produtos contrariasse o controle social de
modo puramente imanente, enquanto outras produções são rejeitadas com fundamentação igualmente
superficial.

Reducionismo tecnológico
Outro aspecto da crí ca cultural genuinamente conservadora consiste no seu reducionismo tecnológico,
que corresponde à a tude eli sta de burguesia cultural. A cultura também estaria condenada à decadência
supostamente porque a sua massificação exigiria simultaneamente uma mecanização tecnológica. É
justamente contra esta interpretação que protestam Adorno e Horkheimer logo no início do capítulo da
Indústria Cultural. Aí se diz: “Os interessados adoram explicar a indústria cultural em termos tecnológicos. A
par cipação de milhões em tal indústria imporia métodos de reprodução que, por seu turno, fazem com
que inevitavelmente, em numerosos locais, necessidades iguais sejam sa sfeitas com produtos
estandardizados. … Ora isso não deve ser atribuído a uma lei de desenvolvimento da técnica enquanto tal,
mas sim à sua função na economia contemporânea”.
Para os dois autores esta função é dupla: o controle social é eficaz como efeito colateral justamente
porque a cultura foi transformada num objecto imediato da produção para o puro lucro. Ou, expresso em
termos de filosofia social nas palavras de Adorno e Horkheimer: “Tudo só tem valor na medida em que se
pode trocá-lo, não na medida em que é algo em si mesmo”. Sob o totalitarismo da economia isto é válido
tanto para o mais simples objecto de uso material como para os bens da produção cultural capitalizada. Tal
como um casaco socialmente não é um casaco e o leite não é leite, mas ambos aparecem igualmente como
objec vação de “trabalho abstracto” e portanto como quan dade abstracta de preço, assim também a
qualidade sensível e esté ca de bens culturais musicais ou literários e teóricos é degradada pela sua forma
abstracta de valor e de certa maneira morta, porque esta apenas proporciona ao produto o acesso à
“validade” e à par cipação na massa de substância social do valor, permanecendo o conteúdo específico
para si indiferente. Em todo o caso poder-se-á anotar à formulação de Adorno e Horkheimer que não se
trata aqui do processo de uma mera “troca”. Pois a circulação representa apenas a esfera de “realização” da
“riqueza abstracta” como fim em si mesmo (Marx), ou seja, o regresso da substância do valor representada
no corpo das mercadorias à forma do dinheiro que lhe é “própria”.
É em primeiro lugar desta objec vidade económica fe chista, com a sua permanente mudança de forma
interna a que o objecto real permanece exterior, que deriva a estandardização mecânica e o nivelamento
dos conteúdos, e não de uma exigência puramente tecnológica. A crí ca cultural conservadora insiste no
processo tecnológico de produção em massa justamente porque gostaria de manter fora da linha de ro a
essência nega va da forma social de mercadoria. O pós-modernismo agudiza mesmo essa ignorância, uma
vez que já nem sequer recusa a crí ca da determinação social da forma, mas declara-a desde logo
impossível epistémica e logicamente. A oposição à retórica de decadência dos conservadores consiste então
novamente numa mera inversão da sua redução tecnológica. Seria justamente a tecnologia como tal que
desenvolveria efeitos benéficos independentemente da sua forma capitalista (ou mesmo tornados
gen lmente possíveis apenas por esta). A crença pós-moderna inversa na libertação cultural através da
tecnologia sucumbe também ao mesmo mal-entendido. Pessimismo cultural conservador e op mismo
cultural pós-moderno cons tuem na sua limitação tecnológica as duas faces da mesma medalha. Ambas
escondem igualmente a dominação da “riqueza abstracta” capitalista sobre os conteúdos e as formas de
exposição dos bens culturais.
Em todo o caso a tecnologia da indústria cultural não está imune à forma económica do fe che do capital
nem à função de controle social a ela associada. Ela não é de modo nenhum neutra na sua forma de
manifestação concreta, à semelhança dos meios técnicos de produção nas outras indústrias capitalistas.
Mas não se deve confundir causa com efeito. É a forma e a estrutura da tecnologia que obedece aos
impera vos da relação social e não o contrário. Os aparelhos estão gene camente impregnados pela forma
social. O desenvolvimento das forças produ vas no capitalismo é sempre simultaneamente um
desenvolvimento de forças destru vas. Isto é válido não apenas num sen do superficial e par cular, por
exemplo para a industrialização da guerra, com a bomba atómica como ponto culminante da técnica e
ul ma ra o dos progressos democrá cos. Também a linha de montagem não representa um aumento puro
e neutro da produ vidade, pelo contrário, na sua determinação concreta pertence igualmente à miséria do
trabalho abstracto a que os produtores estão subjugados. A indústria cultural não é excepção nesta
iden dade entre produ vidade abstracta e destruição.
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O momento destru vo do fim em si mesmo económico fe chista a nge, modela e violenta de múl plos
modos para lá da correspondente orientação das técnicas de produção também os conteúdos culturais. Tal
como no caso das mercadorias para as necessidades do dia-a-dia, não se trata do conteúdo da necessidade,
mas sim da sua adaptação também técnica ao conteúdo da valorização. A inversão capitalista entre meio e
fim, entre concreto e abstracto apresenta-se de modo específico na produção de bens culturais. De facto
pode entender-se isto também como inversão entre técnica de produção e conteúdo ou entre inovação
técnica e conteúdo: não é um (novo) conteúdo que procura para si uma técnica adequada, pelo contrário,
qualquer conteúdo é adaptado a uma técnica rentável e a “cria vidade” reduz-se exactamente a isso. Mas
também esta relação não deriva de qualquer relação independente de técnica e conteúdo, mas sim do facto
de ambas serem forçadas à cama de Procrustes do impera vo do valor. Adorno e Horkheimer escrevem a
este respeito: “A indústria cultural se desenvolveu com a primazia dos efeitos,… dos detalhes técnicos sobre
a obra, que outrora trazia a ideia e com essa foi liquidada”.
Deste modo se inverte a relação entre conteúdo e modo de representação. Na indústria cultural este
úl mo parece autonomizar-se, como se mostra de seguida: “O facto de que suas inovações caracterís cas
não passem de aperfeiçoamentos da produção em massa não é exterior ao sistema. É com razão que o
interesse de inúmeros consumidores se prende à técnica, não aos conteúdos teimosamente repe dos, ocos
e já em parte abandonados”. Tal como na produção o que está em causa é apenas o aumento das vendas,
também no consumo consequentemente o que está em causa é apenas a função técnica de brinquedo
igualmente indiferente ao conteúdo. Mas se os “detalhes técnicos” já não são expressão da ideia do
conteúdo, dominando pelo contrário acima do conteúdo e “liquidando” a ideia, esta tendência irresis vel é
ela própria por sua vez devida à forma geral de mercadoria tanto do meio de produção como também dos
produtos. A formulação aponta justamente para o facto de que a técnica dos meros efeitos não existe por
acaso, mas é expressão daquele totalitarismo económico que nos tempos pós-modernos ainda se agravou
enormemente em comparação com meados do século passado.

A publicidade como percepção cultural do mundo e de si mesmo


O efeito tecnológico tem o seu modelo na publicidade omnipresente, na esté ca das mercadorias do
mercado mundial. A ideia de conteúdo não possui qualquer existência própria; ela está à par da ao serviço
de uma coisa que lhe é exterior e por isso ela é também casual, tornada irreal de modo formalista e abafada
no mero efeito. É justamente para esta dimensão da esté ca das mercadorias que Adorno e Horkheimer
apontam já em 1944, na fase final da totalização do design publicitário no mundo da vida: “A cultura é uma
mercadoria paradoxal. Ela está tão completamente subme da à lei da troca que não é mais trocada. Ela se
confunde tão cegamente com o uso que não se pode mais usá-la. É por isso que ela se funde com a
publicidade.… A publicidade é seu elixir da vida. (O seu) produto … acaba por coincidir com a publicidade de
que precisa por ser intragável”.
De notar aqui, como já se assinalou, a redução notória que ocorre em Adorno e Horkheimer à chamada
“troca” que representa uma truncagem na economia, pois no sistema do “trabalho abstracto” reacoplado a
si mesmo não pode falar-se de “troca” em sen do próprio. Apenas a uma observação superficial a forma
dinheiro corresponde a uma “relação de troca” externa, sendo que essencialmente faz parte do fim em si
autonomizado da “riqueza abstracta” como auto-relação interna do capital. Abstraindo disso, é justamente
apenas perante este pano de fundo que aquela autonomização secundária da publicidade se torna possível
e acaba por se tornar uma necessidade que imprime o seu selo em toda a produção cultural, como se diz no
capítulo da Indústria Cultural: “A publicidade converte-se na arte pura e simples com a qual Goebbels a
iden ficou premonitoriamente”. Deste modo “uma olhadela rápida mal consegue dis nguir texto e imagem
publicitários da parte redaccional”.
A ac vidade ar s ca é tão pouco livre como na idade média cristã, pois tal como então qualquer
representação nha de repe r sempre a mesma cons tuição religiosa, também agora ela se transforma
sempre na mesma publicidade, justamente na sua aparentemente fortuita “mul plicidade” e con ngência,
publicidade que a si mesma se recomenda e aprecia na figura de automóveis, bebidas energé cas,
telemóveis ou bonés de basebol. Representar o mundo na forma autonomizada da publicidade significa só
conseguir percebê-lo na forma da mercadoria autonomizada. Isto afecta também a autopercepção e as
relações sociais dos indivíduos. Até na in midade, que já não existe, nasce uma distância media zada que
tem como pressuposto uma completa ausência de distância em relação aos impera vos sociais. Já não
existe qualquer espaço de tranquilidade social não sobrecarregado com as exigências da dominação. O
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modelo de iden dade posto em movimento tem de se apresentar sempre e em toda a parte à sentença das
“tabelas de opinião” no eterno carnaval da subjec vidade como uma marca de cerveja ou de perfume. O
capital humano ambulante precisa dos produtos da indústria cultural em sen do lato não tanto para uso,
mas mais como sujeito para a teimosa “auto-representação” em que os portadores do traje estão
secretamente convencidos da sua falta de valor. Os actores para si mesmos nem sequer quando estão
sozinhos podem abandonar o seu papel. A máscara de carácter secundária da indústria cultural do
autovendedor precário está colada à pele.
Dá a impressão quase maçadoramente que também neste aspecto se pode percorrer a
complementaridade polar de pessimismo cultural conservador e op mismo cultural pós-moderno crente no
progresso. Mais uma vez os suportes da reflexão da burguesia cultural troçam da publicidade apenas
porque gostariam de conseguir uma barreira ideológica contra a infiltração do económico vulgar na esfera
eli sta da arte. Eles barram o efeito sem conteúdo apenas para conseguir parar a comercialização de
pretensos “bens mais sagrados” sem quererem tocar minimamente no capitalismo. Assim, a publicidade
vulgar não deve poder ser reconhecida como a face que sorri trocista no espelho à refinada arte burguesa.
Nesse aspecto tal como em qualquer outro a forma social da relação fe chista devorou o conteúdo. O que
resta também na arte oficial para os círculos superiores, que já só consegue ser eli sta no preço em
dinheiro, é a comum autovenda pelos ar stas de salão que são “vanguardistas” ao máximo quando com
vergonham viram os quadros para a parede e escurecem os textos.
E mais uma vez o pós-modernismo apenas vira a crí ca aparente do pessimismo cultural e proclama a
publicidade como libertação da arte do toque de museu de um classicismo de mestre-escola. O carácter
auto-represivo das mónadas da auto-representação alimentadas pelo complexo totalitário da indústria
cultural é tão escondido aqui como no caso da contraparte conservadora. A distância hipocritamente
assumida da consciência de burguesia cultural em relação à literal comunidade de publicidade universal e
autopublicidade vira-se no entanto na divisa pós-modernista “estar presente é tudo”. Não só a proximidade
formal, mas também a conexão interna entre propaganda populista e publicidade ou não devem ser
mencionadas ou consideram-se mesmo suscep veis de carga posi va. O pós-modernismo está assim de
acordo com Goebbels sem querer saber disso. Cada um apraz-se em efeitos sem conteúdo para assim
renovar a própria máscara de carácter e deixar qualquer crí ca à par da sem objecto. A consciência do
es lo de vida pós-moderno é já apenas uma espécie de boné de basebol colec vo ideal que se promove a si
mesmo.

A con nuação do "trabalho abstracto" e da concorrência por outros meios


A apologia pós-moderna do predomínio do efeito e do detalhe técnico sobre o conteúdo gosta de afirmar
que isso está associado a um conforto cultural que garante o “prazer sem remorsos”. Que mal haverá nisso?
Uma vez que se dissolveu qualquer critério de conteúdo e a crí ca foi declarada uma impossibilidade,
gostaria ainda de se proceder como se a mercadoria da indústria cultural caísse do céu como uma espécie
de maná ou voasse para a boca de cada um como os pombos assados do país da cocanha. Inversamente a
burguesia cultural conservadora, na medida em que ainda sequer existe e não tem já de se colocar na forma
do passado, vê a indústria cultural como pechincha cultural deselegante e considera que o consumo dos
seus produtos só se faz sem esforço porque se trata de lixo absolutamente sem pretensões que envenena a
mente e a alma. Contra isso são apresentados os “trabalhos de elevada pretensão” produzidos, os únicos
que devem ser válidos para os “verdadeiros ar stas” bem como para os “verdadeiros apreciadores da arte”,
como pequena mas refinada comunidade de um “conhecimento” sem preço.
Também neste aspecto os op mistas pós-modernos da cultura e os pessimistas conservadores da cultura
estão bem uns para os outros: ambos afirmam por igual a facilidade e o prazer sem esforço do consumo da
indústria cultural, só que este gozo supostamente cómodo é avaliado de maneira oposta. Adorno e
Horkheimer abordam o assunto de modo completamente diferente. De acordo com a sua origem, de facto,
eles não estão imunes ao auto-incensamento que simplesmente assenta mais na canonização e na restrição
no sen do da alta cultura burguesa do que na primazia do conteúdo. Mas, independentemente deste
condicionamento socio-histórico, eles não deixam de ver o contexto de mediação interna entre a indústria
cultural e a pressão para a eficiência no trabalho capitalista, entre “trabalho abstracto” e “gozo do tempo
livre” pretensamente sem remorsos. Não se trata aqui simplesmente da crí ca a um simples efeito
compensatório, como se uma coisa fosse exterior à outra.

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Na realidade, a dialéc ca do consumo pop totalmente capitalizado consiste precisamente em que a


coerção social e a liberdade de escolha do objecto, o esgotamento perturbado da energia laboral
protestante e a autocomplacência na exposição não só correspondem, mas transformam-se uma na outra e
uma manifesta-se na outra. O trabalho pesado de miséria não é apenas o pressuposto indispensável, que se
gostaria de manter discreto, mas sempre o pressuposto consciente para a capacidade de compra. Adorno e
Horkheimer não invocam o perigo de um gozo demasiado fácil para a capacidade de trabalho que no
entanto seria preciso exigir, mas mostram que aquele cómodo conforto é em si mesmo ilusório. O que é
dado enquanto tal não pode ser separado do seu contrário no processo de ganhar dinheiro, como eles
deixam claro: “A diversão é o prolongamento do trabalho sob o capitalismo tardio. Ela é procurada pelos
que querem se subtrair aos processos de trabalho mecanizado, para que estejam de novo em condições de
enfrentá-lo. Mas, ao mesmo tempo, a mecanização adquiriu tanto poder sobre o homem em seu tempo de
lazer e sobre sua felicidade, determinada integralmente pela fabricação dos produtos de diver mento, que
ele apenas pode captar as cópias e as reproduções do próprio processo de trabalho”.
Mais uma vez não é a exigência da técnica de reprodução em si que realiza esta inversão fatal, mas sim o
totalitarismo fe chista da forma geral da mercadoria que tendencialmente transforma todas as expressões
vitais em “trabalho abstracto” ou pelo menos as equipara a ele; mesmo não estando ligadas a qualquer
processo de valorização real. Não há qualquer verdadeiro relaxamento na falsa concentração e fixação no
trabalho do sujeito. Mesmo o deixa-andar tem de ser instrumentalmente organizado e profissionalizado
para que se transforme no seu exacto contrário. É para isso que aponta uma das mais frequentemente
citadas passagens do capítulo da Indústria Cultural: “O fun (em inglês no original: gracejo) é um banho
medicinal, que a indústria da diversão prescreve incessantemente”.
Não só a coerção para o trabalho e o delírio do esforço se reproduzem no consumo de mercadorias da
indústria cultural, mas também a monadologia objec va da esfera da circulação capitalista, ou, como
observam Adorno e Horkheimer, “a dureza da sociedade da concorrência”. O fun também se torna um
banho medicinal porque o “gozo” não é inocente nem cómodo, e nem sequer inteligente, mas, apesar de
toda a camaradagem das festas, torna-se numa inspecção do design dos corpos, dos trapos e das
personalidades, em que cada simulacro de eu só consegue diver r-se contra todos os outros e tem de fazer
crer permanentemente a si mesmo que o prazer está nisso. Mesmo a máscara de tempo livre forçadamente
alegre, como se diz no resumo do capítulo da Indústria Cultural “atesta a tenta va de fazer de si mesmo um
aparelho eficiente…”. Em lado nenhum isto se mostra mais claramente do que nas micro-empresas pós-
modernas de high-tech e de publicidade. O “trabalho abstracto” e a concorrência só se tornam um jogo e
uma festa porque tanto a festa como o jogo há muito que se transformaram em “trabalho abstracto” e
concorrência.
Com isto se revela a indústria cultural também como uma organização com conotação sexual. Mulheres e
homens situam-se aí de modo diferente apesar de todas as modificações culturais, exactamente porque se
trata de modelos, simulações e formas de reprodução do “trabalho abstracto”. Pois a forma de sujeito assim
determinada, incluindo a da concorrência universal, tem conotação estruturalmente masculina, como
Roswitha Scholz mostrou na sua teoria da dissociação sexual que pela primeira vez tema zou a relação de
género à altura conceptual das categorias capitalistas fundamentais. Mesmo estando as mulheres cada vez
mais integradas na esfera do “trabalho abstracto” e na esfera pública capitalista elas con nuam a ser aí
menos apreciadas porque con nua a cair sobre elas a responsabilidade no sen do mais amplo pela oikos
dissociada daquela esfera na medida em que não se pode expressar em dinheiro (gestão da casa, cuidar das
crianças e dos idosos etc.). Esta relação capitalista entre os sexos profundamente ancorada no inconsciente
colec vo atravessa todos os domínios sociais. E assim por maioria de razão se reproduz no “banho
medicinal” da tensa empresa do diver mento. As mulheres entretanto concorrem aí com outros corpos
diferentes dos corpos sexuais aparentemente autodeterminados que se revelam como “mulheres” em
todas as autonomias individualizadas. Também como “capazes de fazer tudo”, que devem ser igualmente
responsáveis pela família e pela profissão, elas não perdem a acentuação específica sexual – ainda que de
forma modificada – e o “ser mãe” con nua a matraquear por trás. Isto repercute-se na sua auto-imagem
co-fabricada pela indústria cultural; daí que elas também não sejam realmente tomadas a sério como
sujeitas do fun.

A Internet como novo meio central da indústria cultural


Está na altura, como seria de esperar, de enfrentar a Internet como complexo mais avançado da indústria
cultural. A “Net” cons tui sem dúvida a tecnologia pós-moderna perfeita que não por acaso é comparada
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com a descoberta da imprensa no início da modernidade considerando-se que terá efeitos igualmente
revolucionários. Mas, tal como a impressão de livros e as suas consequências sociais não se podem
entender a par r de si mesmas mas apenas no contexto do processo de cons tuição histórica proto-
capitalista, também a Internet não pode ser declarada um estabelecimento tecnológico autónomo com
potencialidade de mudança social, mas apenas como momento socio-tecnológico nos limites históricos do
capitalismo.
A oposição complementar até aqui esboçada entre o pessimismo cultural da burguesia cultural e o
op mismo cultural pós-moderno fica quase sem razão de ser neste complexo ultramediá co; e de facto
sobretudo porque a alta cultura conservadora e de filologia an ga da burguesia clássica está pronta a
capitular incondicionalmente. A correspondente burguesia cultural no contexto específico alemão foi por
um lado desde sempre uma burguesia de fantasia, um grupo social difuso e mul facetado, cujos membros
pretendiam considerar-se “algo melhores” justamente no aspecto cultural. Esta demarcação referia-se não
apenas às qualificações (académicas) superiores, mas a um cânone cultural tendo por cerne as línguas
an gas, a filosofia clássica e a poesia do idealismo alemão. A pretensão a isto associada de “cultura
superior” ia muito para lá dos poucos especialistas no assunto; abrangia todo o espaço académico e
também certamente o pessoal docente e até os que concluíam o secundário. Por isso a demarcação não era
apenas face às “massas incultas”, mas também contra as elites dos outros países capitalistas. Uma
burguesia de fantasia era-o certamente também no que diz respeito à competência quanto ao conteúdo
daquele cânone cultural que para a maioria desta classe não passava de superficial e ia perfeitamente de
braço dado com os ritos de vapores de cerveja e a brutalidade nas relações sociais.
Esta velha “barbárie culta” da burguesia académica alemã ex nguiu-se na época das guerras mundiais e
não há que chorar por ela. Na democracia de mercado mundial após 1945 desapareceu ainda mais o
cânone cultural clássico dando cada vez mais lugar a uma mera consciência de elite funcional. O que restou
foi um fraco reflexo da pretensão de resto nunca realmente cumprida e um resíduo apenas fantasmagórico
da falsa consciência de ser “algo melhor”. Na actual ideologia de classe média este impulso reduz-se cada
vez mais à tenta va de compar mentar a qualificação a nível do secundário da própria prole contra as
novas classes inferiores e os migrantes, ou seja, de sabotar qualquer ultrapassagem do há muito anacrónico
sistema escolar em três graus da RFA.
Quanto aos conteúdos, o império fantasmá co da burguesia cultural desapareceu defini vamente com a
terceira revolução industrial. A presunção eli sta há muito que já não se refere à capacidade de conseguir
recitar Homero no texto original, mas sim a uma mistura de economia polí ca e “competência mul média”
que dá o perfil ideal para o indivíduo pós-moderno de via estreita enquanto “aparelho de sucesso”; mesmo
que seja apenas na nova fantasia do respec vo milieu. A consciência de elite sem fundamento trocou com
muito sofrimento a máscara colada à cara; ela tornou-se tão vulgarmente da economia capitalista e tão
ordinariamente tecnológica como toda a organização democrá ca. Mesmo os professores de la m,
cien stas literários e catedrá cos de filosofia vão como aprendizes para junto de jovens e dinâmicos
empresários aldrabões e desfazem-se em admiração perante maluquinhos de treze anos que gostam de se
considerar virtuosos no clique de rato. A nova elite é notoriamente sem pretensões espirituais e aparelhada
para o curso de mercado de modo tão reducionista que as universidades “de excelência” poderão ser
consideradas quando muito como ironia objec va. A apoteose do complexo da indústria cultural consiste
em que a elite de todos os sectores está transformada em meras figuras de banda desenhada que se
deleitam extraordinariamente no seu estado porque já não têm qualquer critério de comparação.
Adorno e Horkheimer em 1945 ainda não podiam saber da revolução tecnológica digital nem da sua
aplicação ao desenvolvimento capitalista. Mas es veram perfeitamente em posição de prognos car a
tendência geral para a integração mediá ca no que respeita à indústria cultural, tal como Marx o nha feito
para a cien ficização da indústria capitalista. “A televisão”, escrevem eles, “tende a uma síntese do rádio e
do cinema” e isso irá dar na “realização irónica do sonho wagneriano da obra de arte total". Pois a
“harmonização entre palavra, imagem e música”, uma vez que já não segue qualquer lei cultural própria, é
apenas “o triunfo do capital inves do”.
É fácil de perceber que a Internet se prepara para consumar a síntese da indústria cultural numa escala
ainda maior. As diferentes tecnologias de impressão, telefone, telefonia, rádio, cinema e televisão são
fundidas num único complexo global. No entanto daí não emerge novamente uma revolução tecnológica
enquanto tal, mas é a lógica (que penetra gene camente todo o sistema) do “trabalho abstracto”, da forma
autonomizada do valor e do controle social por estas regido que cons tui a matriz e simultaneamente o
movens desta integração mediá ca. A força sinté ca não resulta de qualquer reflexão consciente e já nem
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sequer das ac vidades autónomas dos indivíduos, mas emana pelo contrário da determinação heterónoma
da forma social. Por isso se condensam e agravam na Internet como novo meio central todas as
contradições e deficits que Adorno e Horkheimer detectaram precocemente na indústria cultural. De facto
trata-se apenas da pressen da “realização irónica do sonho wagneriano da obra de arte total" num sen do
abrangente. O que se pode assinalar em alguns aspectos essenciais.

A virtualização do mundo da vida


Desde o início que é inerente à indústria cultural a tendência para inverter a relação entre objecto e
representação, entre signo e significado, ou apagar a diferença entre eles. Aqui apenas surge o “mundo
inver do” geral da relação de capital numa dimensão específica da indústria cultural. Horkheimer e Adorno
vêem esta tendência de inversão já no então recente meio do cinema a cores: “O mundo inteiro é forçado a
passar pelo filtro da indústria cultural. A velha experiência do espectador de cinema, que percebe a rua
como um prolongamento do filme que acabou de ver, porque este pretende ele próprio reproduzir
rigorosamente o mundo da percepção quo diana, tornou-se a norma da produção. Quanto maior a
perfeição com que suas técnicas duplicam os objectos empíricos, mais fácil se torna hoje obter a ilusão de
que o mundo exterior é o prolongamento sem ruptura do mundo que se descobre no filme”.
Não se trata de um propósito consciente, por exemplo no sen do de uma “manipulação” deliberada da
consciência (como também em Adorno e Horkheimer parece ser sugerido ocasionalmente mais tarde), pelo
contrário, o momento manipula vo reside na lógica objec va das relações e na própria expressão delas na
indústria cultural: “A vida não deve mais, tendencialmente, poder se dis nguir do filme sonoro”. Esta
formulação no capítulo da Indústria Cultural aponta para um “dever” no sen do do “sujeito automá co”
(Marx) da valorização do capital. Os indivíduos manipulam-se em certa medida a si mesmos justamente
porque são “sujeitos” do impera vo capitalista. Tal como se consuma uma inversão porque a produção
concreta já só é socialmente “válida” como forma de manifestação do “trabalho abstracto”, tal como a
forma das mercadorias se duplica na forma do dinheiro e tal como a “riqueza concreta” só pode ser forma
de representação e de manifestação da “riqueza abstracta”: também se inverte e duplica a percepção e a
representação cultural-simbólica do mundo e da própria existência. A autonomização já esboçada do efeito
técnico sem conteúdo vai ainda mais longe e agrega-se num pseudo-mundo, uma vez que os objectos
concretos tal como os indivíduos com eles relacionados se tornam meras formas de manifestação do seu
próprio modo de representação e este úl mo desenvolve uma espécie de vida aparente.
Ao que Marx designou por “formas de existência objec vas”, ou seja, à verdadeira vida no capitalismo
marcada pelos impera vos da valorização e da autovalorização é sobreposta uma segunda realidade virtual:
uma encenação e auto-encenação mediá ca. Este conceito tornou-se inflacionário como semi-crí co ou
directamente afirma vo. Não por acaso se expandem designações do mundo do teatro como metáforas em
todos os domínios da vida. Os indivíduos consideram-se cada vez mais como os seus próprios actores no
seu próprio teatro. Esta pseudo-vida virtual não só tem função compensatória para a miséria das relações
sociais reais, mas também é imagina va e ideologicamente elevada a “verdadeira” realidade, perante a qual
a existência material e social real surge como mero apêndice e já quase como irreal.
As palavras de Adorno e Horkheimer sobre a indis nguibilidade e mesmo inversão mediá cas entre o ser
social e o parecer produzido pela indústria cultural são profé cas porque já fazem ver no cinema uma
tendência que vai muito para além dele. Para a maioria dos consumidores da indústria cultural de então o
cinema a cores ainda era reconhecível como produto das fábricas de sonhos e a sala de cinema iden ficada
como um lugar onde uma pessoa não se instala a sério, mas entra ocasionalmente saindo do mundo do dia-
a-dia. A Internet, pelo contrário, não em geral mas para um número elevado e crescente de pessoas em
diferentes graus, tornou-se uma espécie de residência espiritual e cultural que inversamente se abandona
apenas ocasionalmente para uma visita à realidade social e material. Esta inversão entre aparência
mediá ca e realidade a ngiu, com a ajuda do desenvolvimento tecnológico e a síntese dos aparelhos
electrónicos, pelo menos uma nova dimensão.
Certamente que não devemos cair no erro de levar o cliché demasiado a sério. Abstraindo do facto de que
a maior parte da humanidade não tem acesso ou tem um acesso muito limitado à Internet e que com a
expansão se vão revelando limites de saturação por falta de poder de compra e/ou de infraestruturas,
também para muitos u lizadores habituais a diferença entre o mundo real e o virtual de modo nenhum
desapareceu. O que aliás nem sequer é possível, tal como o valor abstracto de modo nenhum consegue
fazer desaparecer a necessidade de bens de uso materiais na sua maneira de representação na forma do
dinheiro. Se o dinheiro não se pode comer, muito menos downloads.
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A hipóstase da virtualidade também não cons tui um simples problema geracional como muitas vezes se
quer fazer crer. A pretensa “geração Net” de “na vos do digital” é mais uma lenda de fazedores de opinião
interessados. Na realidade não existe grupo etário uniformizado numa socialização digital específica. Não se
deve confundir o consumo talvez mais frequente de meios de comunicação electrónicos nem com uma
maior competência no assunto nem com um movimento da percepção sem dificuldades. Também entre os
teenagers se encontram não poucos indivíduos com dificuldade em lidar com um ambiente digitalizado; não
é apenas entre adultos mais velhos. E o consumo superficial de brinquedos das tecnologias da informação
da indústria cultural não põe em acção qualquer “soberania”, muito menos se isso assumiu um carácter de
vício. Em todas as gerações há poucos possuidores de uma efec va competência digital abrangente; e não é
certo o sen do em que a aplicam.
A adaptação pretensamente mais fácil de teens e twens à virtualização tecnológica do mundo da vida é
em parte mera ilusão de especialistas profissionais em juventude, mas em parte também auto-ilusão da
geração com esses interesses, na sua própria falsa consciência. Ou também uma auto-ilusão dos seus pais e
avós com uma socialização de burguesia cultural residual que gostariam de atribuir à própria prole especiais
oportunidades de futuro, como capital humano capaz de clicar no rato. O “darwinismo dos média”
frequentemente invocado poderá facilmente ficar para trás. As jovens competências mediá cas de via
reduzida de hoje, que já nem livros lêem, são os perdedores de amanhã, mesmo do ponto de vista da
imanência capitalista.
Os propagandistas da tendência para a virtualização, em todo o caso real, nem coincidem com o ensino
das competências tecnológicas, nem reflectem sobre as contradições insolúveis surgidas nesta tendência ou
sobre o ilusionismo a elas associado. Pelo contrário, estamos perante uma certa parte da produção de
opinião académica e mediá ca que conseguiu um estatuto hegemónico porque este confere uma expressão
ideológica afirma va ao desenvolvimento capitalista no princípio do século XXI. A pressão para a
virtualização, na medida em que se generaliza de acordo com a tendência em todo ocaso paralisante,
corresponde antes a uma zelosa adaptação à ideologia hegemónica e assim a um estado em que as
necessidades próprias já não se conseguem dis nguir de um conformismo sem cerimónias. Em todo o caso
a fuga para um além simulado digital aponta para a miséria da realidade capitalista.
O desacoplamento da consciência pós-moderna do velho cânone cultural burguês de modo nenhum
produz qualquer novo conteúdo, mas transforma em conteúdo a própria “forma vazia”, assim consumando
a ilusão objec va do capital que gostaria de emancipar a “riqueza abstracta” da matéria e da natureza.
Pertence à essência da ideologia pós-moderna an -essencialista que a relação referencial entre
representação e objecto, modus e conteúdo ou signo e significado tenha de ser apagada. Se o culturalismo
propaga a autonomização dos sistemas de signos e dos modi, ele sucumbe à abstracção funcional do
comprar e vender na esfera de mercado burguesa que já não quer saber da sua substância fe chista. A
síntese de meios da indústria cultural através da Internet parece fornecer uma base tecnológica para a
emancipação ilusória dos signos. O gradual desaparecimento do mundo em correntes de dados amarra a
aparência real fe chista da mercadoria num plano diferente, como campo de jogos universal
mecanicamente produzido, sobre o qual não só os objectos mas também as pessoas se duplicam e na sua
virtualização proporcionam a si mesmas uma vida aparente que corresponde à sua real nulidade e
indignidade. O espaço virtual é assombrado pelos avatares enquanto espíritos dos mortos vivos que
realmente vegetam nos campos de concentração da valorização do capital e da administração do trabalho.
O virtualismo integrado da indústria cultural penetrou a respec va tecnologia; mas mais uma vez a razão
não é a tecnologia como tal, pelo contrário, esta assume o seu carácter através do carácter da forma de
sujeito capitalista, que vai bisbilhotando numa dinâmica cega. Por isso também não é por acaso que a
maioria das presenças no campo de jogos virtual são masculinas. Na realidade os homens e as mulheres
individualmente não se encaixam nas suas atribuições socio-históricas, como foi demonstrado na teoria da
dissociação sexual, mas em média também não podem livrar-se delas enquanto a relação social subjacente
não for abolida. A atenção conotada como feminina para com crianças, idosos e doentes dela necessitados
até já nas novelas surge na melhor das hipóteses de forma idealizada; é de todo impossível encená-la como
“realidade virtual” porque nesta área não é possível qualquer simulação técnica sob pena de se revelar
imediatamente o carácter absurdo desta. O espaço virtual cons tui o império espiritual secundário,
duplicado do “trabalho abstracto” também no sen do do seu devir historicamente irreal; e os avatares que
o assombram são sobretudo fantasmas da masculinidade patriarcal moderna.

Intera vidade da Web 2.0 e individualização


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À medida que os massmedia electrónicos modernos e a produção da indústria cultural a eles associada
entravam na vida eles eram também calibrados formal e tecnologicamente para a passividade do seu
público. Adorno e Horkheimer vêm aí decididamente uma marca estrutural essencial da indústria cultural:
“A passagem do telefone ao rádio separou claramente os papéis. Liberal, o telefone permi a que os
par cipantes ainda desempenhassem o papel do sujeito. Democrá co, o rádio transforma-os a todos
igualmente em ouvintes, para entregá-los autoritariamente aos programas, iguais uns aos outros, das
diferentes estações. Não se desenvolveu nenhum disposi vo de réplica e as emissões privadas são man das
na servidão”.
A apologia pós-moderna do “espectáculo” (Debord) da indústria cultural julga poder intervir
triunfantemente neste lugar para provar o carácter an quado do pessimismo cultural da teoria crí ca. Pois
se a falta de um “disposi vo de réplica” era notória para os média pré-digitais e mesmo para o estádio
inicial da Internet, entretanto – apressa-se a concluir o arrasoado pop pós-moderno – a velha estrutura
autoritária de “emissor e receptor” estaria de facto superada. A palavra-chave é “interac vidade”. A
mutação sem fim da Internet teria conduzido à nova qualidade da Web 2.0 interac va, é o que não cessa de
ser dito tanto nos suplementos culturais como no mundo académico. Neste nível qualquer “u lizador”
pode sempre e em toda a parte ligar-se e do modo mais personalizado possível intervir pela palavra (ou
pela imagem).
Os passos desta mutação são elucida vos. Vão desde a pseudo-par cipação em programas de rádio com
par cipação telefónica dos ouvintes, jogos de marcar presença com cumprimentos tolos “a todos os que me
conhecem” etc., passando pelo inflacionamento de websites privados, até aos Blogs, às formas
directamente interac vas da “função comentário” nas mailing lists ou nas edições electrónicas dos média
impressos, às redes “de amizade” da Web 2.0 e aos serviços informa vos como o “Twi er”. Mas todas estas
formas de interacção digital conduziram tão pouco a uma emancipação mediada de modo puramente
tecnológico como todas as formas anteriores da indústria cultural.
O conceito de um mero “disposi vo de réplica” foi talvez escolhido com infelicidade por Adorno e
Horkheimer, porque eles também não podiam entender esta função de modo reduzido à técnica. Mas trata-
se de algo diferente. A capacidade de réplica é organizada apenas no nível do objecto e do equipamento e
não ao nível social. A expressão “redes sociais” digitais que aparentemente contradiz esta avalização não
passa de um eufemismo. O social refere-se aqui a um contexto quase exclusivamente virtual, meramente
simulado; trata-se na maior parte das vezes de amizades irreais entre avatares. Os verdadeiros indivíduos
ficam muitas vezes anónimos, ou ram a máscara apenas de modo exibicionista na distância
media camente mediada que aparentemente permite uma proximidade primi va secundária. À irrealidade
corresponde o não compromisso; de resto algo de essencial da disposição ín ma pós-moderna que foge de
qualquer compromisso como o diabo da cruz. Esta óbvia fenomenologia da Web 2.0 é geralmente
conhecida e frequentemente tema zada; não em úl mo lugar nos mesmos suplementos culturais que
gostam de delirar sobre a interac vidade digital. Mas gostam pouco de reflec r sobre os seus pressupostos
ou consequências.
O pano de fundo é cons tuído desde logo não pela pura tecnologia mas sim, como não podia deixar de
ser, pelo desenvolvimento social logicamente corrente e associado à “interpretação” tecnológica. O
disposi vo como tal fornece apenas o termo aliás traiçoeiro da “interac vidade” ou “interacção”, como se
se tratasse de uma relação recíproca entre planetas, moléculas, insectos ou componentes mecânicos. Esta
desumanização, já insinuada no termo quase igualmente neutro de “comunicação”, corresponde ao
estatuto desrealizado das pessoas par cipantes, que se transformaram literalmente em simples máscaras.
Poder-se-ia designar como astúcia nega va da razão capitalista o facto de o “disposi vo de réplica” técnico
surgir precisamente no momento em que os sujeitos socialmente reduzidos ao mínimo e virtualmente
desumanizados e tornados reconhecíveis como meros actores já não têm nada para dizer uns aos outros,
pelo contrário, já só conseguem apresentar uns aos outros as suas máscaras. Portanto não se fala de
“diálogo”, de “discussão” nem muito menos de “polémica”, não por acaso proibida, mas sim de uma
“interac vidade” vazia e mecânica a que os indivíduos burgueses se reduziram a si mesmos.
Adorno e Horkheimer pressen am já em 1944 o estado de decadência da subjec vidade capitalista que
Ulrich Beck caracterizou quarenta anos mais tarde como “individualização”. Ao contrário das hipóteses
op mistas de Beck, eles já sabiam antecipadamente que o processo não nha nada a ver com a libertação
dos indivíduos da coerção social objec vada, mas sim com um novo patamar da sua interiorização, que se
exprime também exteriormente como nova qualidade da mera “libertação” no sen do de uma universal
situação de fora de lei [Vogelfreiheit]. O indivíduo abstracto, desde início o po lógico ideal de sujeito
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funcional capitalista, ou seja, o contrário de um indivíduo concreto vivendo conscientemente a sua própria
socialidade, após um longo e doloroso processo de desenvolvimento refinou-se até à pura forma pós-
moderna, em que surge já apenas como um ponto ou como uma “unidade”. O capital, o “sujeito
automá co” da valorização, é agora a auto-referência imediata, não filtrada, louca e demoníaca do sujeito:
cada um é o seu próprio capitalista, cada um é o seu próprio trabalhador. O homem isolado já não tem
qualquer história, mas, como unidade abstracta, já é apenas um ponto médio das tendências de mercado,
uma máquina de autovalorização, ou, como se diz premonitoriamente no capítulo da Indústria Cultural:
“Cada um é tão-somente aquilo mediante o que pode subs tuir qualquer outro: ele é fungível, um mero
exemplar. Ele próprio, enquanto indivíduo, é o absolutamente subs tuível, o puro nada”.
Mas já não há aqui qualquer Dialé ca do Esclarecimento, como Adorno e Horkheimer ainda pretendiam
constatar, se bem que com dúvidas, mas sim o cumprimento da sua promessa. O esclarecimento nunca
nha prome do outra coisa senão a “felicidade” de cada um poder transformar-se a si mesmo num “puro
nada”. Este contexto é perfeitamente claro e cri cável. Mas o pós-modernismo em todas as suas variações
não quer esta crí ca; os respec vos exemplares deleitam-se na sua pura nulidade que eles imaginam como
libertação da materialidade e de todas as relações em geral. Os indivíduos abstrac ficados até mais não
poder ser já não conseguem envolver-se com coisa nenhuma, com conteúdo nenhum, porque eles próprios
se tornaram um objecto meramente exterior e coisificado.
Isto já se aplicava de certa maneira à individualidade abstracta ainda não amadurecida que se exercitava
nos primeiros disposi vos da tecnologia de “comunicação” no século XIX; por exemplo e em primeiro lugar
no telefone, então ainda limitado às classes superiores com capacidade de pagamento. Quando a Adorno e
Horkheimer ironizam que os velho “disposi vo de réplica” telefónico ainda nha deixado “liberalmente” os
par cipantes “desempenhar” o papel de sujeitos e que o disposi vo de controle democrá co da indústria
cultural pelo contrário já nem isso permite, tal ponto de vista de modo nenhum é desmen do pela “Web
2.0” interac va. Mesmo que ambos os autores se tenham expressado talvez ainda no sen do de uma
dialéc ca posi va, possível mas não desenvolvida, mesmo assim a sua formulação irónica deixa pressen r
que o carácter “liberal” e simultaneamente de mero disposi vo do telefone reduz a subjec vidade a
“desempenhar um papel”, porque por trás está o poder apriorís co do “sujeito automá co” que rebaixou o
moderno conceito de “subjec vidade” ao conceito de uma simples função. A essência desta subjec vidade
“interac va” precoce exprime-se da melhor maneira naquelas cenas do cinema em que o par cipante
visível afasta de si o auscultador para não ter de ouvir o palavreado insuportável do parceiro de
“interacção” e depois parla por sua vez para o bocal sem que a interrupção tenha sido notada no outro
lado.
Com isto já terá sido dito provavelmente tudo sobre a “interac vidade” na pantomina do cinema mudo. A
mania do telemóvel que grassa há mais de uma década trouxe esta situação à sua úl ma reconhecibilidade,
na medida em que lhe confere agora uma mobilidade tecnológica e simultaneamente um espaço público do
exibicionismo “comunica vo”. O que antes era piedosamente abrigado pela cabine telefónica irrompe agora
como verborreia nas ruas, nos cafés e nos meios de transporte. Poderia ser preferível que os par cipantes
desnudassem de facto simplesmente as partes sexuais, pois pelo menos os circunstantes seriam poupados à
obscenidade muito pior da sua ac va ferramenta bucal. Pois o que é a gabardine aberta do tradicional
exibidor do membro sexual perante e boca aberta de um pseudo-sujeito pós-moderno? Nas
“comunicações” compulsivamente ouvidas já não é possível reconhecer qualquer contexto humano; e
mesmo as comunicações profissionais ou comerciais mostram apenas porque é que a economia
empresarial tem de conduzir à catástrofe pessoal e social. O disposi vo telefónico móvel entretanto cruzado
com a Internet faz aparecer o correspondente sistema de “réplica” que vai muito para lá da publicidade
compulsiva acus camente limitada das presunçosas comunicações quo dianas.
A Web 2.0 oferece a qualquer discu dor de café e a qualquer arruaceiro pubertário pelo menos
formalmente a plataforma para uma publicidade mundial imediata. Mas a possibilidade tecnológica
coincide com a sua irrealidade social. Os indivíduos tornam-se media camente ac vos em expressões para
a generalidade social precisamente na forma irreflec da e acri camente aceite em que foram comprimidos
pelo capitalismo: como pseudo-individualidades atomizadas, como meros exemplares do mesmo princípio
transcendental. Quando um puro nada interage com outro, trata-se apenas da velha conhecida “figura de
interacção” por outros meios, a saber, que um possuidor de mercadorias encontra outro. Só na aparência se
trata da “discussão” de conteúdos e problemas reais, mas de facto trata-se em primeira linha da auto-
encenação narcisista, que nos meios mais an gos da indústria cultural pelo menos ainda não estava
“interac vamente” ligada, mas permanecia atribu vamente na situação de amigavelmente “muda”, como
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um equipamento apenas habitualmente ac vo ou como uma irradiação acús ca unilateral. Con nua a ser
um segredo dos apologistas saber porque há-se ser melhor uma irradiação acús ca nos dois sen dos.
Adorno e Horlheimer já nham reconhecido que a “extravagância bem organizada” cons tui o verdadeiro
fim do exercício mediá co, e no caso é igual, seja a cena agora ligada “interac vamente” ou não. Na medida
em que os par cipantes se limitam a apresentar-se ou ligar-se reciprocamente, é justamente através do
“disposi vo de réplica” que eles con nuam desligados: “Este número não está atribuído”.
A “interacção” limitada à forma e reduzida à técnica é ainda mais di cil que a do processo de canal
unilateral porque sugere uma estrutura dialógica tornada antecipadamente impossível pelo equipamento
do sujeito pós-moderno, na medida em que este con nua a ser afirmado acri camente. Isto também se
aplica à auto-sa sfação pseudo-an -autoritária dos pequenos bloggers que se submetem aos impera vos
socio-económicos do “sujeito automá co” justamente porque se transformam a si próprios em marcas de
empresa. A relação autoritária não é ultrapassada por deixar de ser uma relação exterior, mas deslocada
para o interior dos indivíduos como auto-relação autoritária. Tal como cada um é o seu próprio capitalista e
o seu próprio trabalhador, também cada um é a sua própria estrela, o seu próprio herói e o seu próprio e
único fã; e mesmo o seu próprio clube de fãs, enquanto personalidade múl pla por via da mul plicação
virtual. Também se poderia dizer: cada um é a sua própria indústria cultural caseira e também a maioria das
criações se torna correspondentemente penosa. Mas não faz mal porque na comunidade de tagarelas
também já ninguém nota.
Tal como a virtualização do mundo da vida se apresenta de modo diferente para homens e mulheres, o
mesmo acontece também com a virtualização e com o meio “interac vo”. Mais precisamente: o patriarcado
coisificado, a dissociação sexual, reproduz-se de maneira diferente na “interacção” mediá ca
individualizada, à semelhança da indústria cultural em geral e desde o início. E tal como o “trabalho
abstracto” é estruturalmente conotado como masculino, mesmo estando as mulheres há muito tempo
também “empregadas” nessa esfera funcional, o mesmo se aplica também ao espaço virtual das auto-
encenações. Aqui também o sexo pode ser mudado com um clique de rato, sendo que mais uma vez são
sobretudo os homens que também querem ainda deitar a unha a uma feminilidade virtual para ser
realmente “tudo” na sua imaginação. A parte efec va de mulheres entre os encenadores da Net será por
isso presumivelmente ainda menor do que já parece.
O “puro nada” assinalado por Adorno e Horkheimer é, como reflexo do “trabalho abstracto”, igualmente
estruturado como masculino e, justamente na sua nulidade, disponível para a violência latente. Pois o puro
nada da subjec vidade desmiolada e virtualizada só consegue transcender o seu estado de mónada na
configuração de ba das e caças às bruxas. Naturalmente que também raparigas par cipam no muito
deplorado mobbing digital; mas por regra ele tornou-se sobretudo um desporto de jovens masculinos. Isso
torna-se ainda mais claro nos ajuntamentos virtuais de comentários sujos para adultos. Para o mob digital
que periodicamente de forma como “interac vidade” masculina, de resto, as mulheres desagradáveis
cons tuem o objecto favorito. Este carácter fascista latente de tropa de assalto no espaço virtual pode
perfeitamente irromper na realidade social e tornar-se violência material imediata. Nisso consiste talvez
sobretudo o jeito para o consenso e a “capacidade de realidade” tecnologicamente “interac vos” dos
autofigurantes digitais.

Uma cultura grá s paga cara


A indústria cultural como campo de valorização do capital pressupõe naturalmente o carácter de
mercadoria dos seus produtos, cuja expressão reificada das relações humanas, como é sabido, foi por Marx
animada no seu conceito de fe che. A objec vidade de valor das mercadorias culturais no espaço de uma
produção para o puro lucro exige agora verdadeiramente a retransformação “realizadora” e a expressão
destas mercadorias na forma da “riqueza abstracta”, ou seja, no dinheiro, através do acto de venda. Aqui
entra novamente a apologia pós-moderna do complexo da indústria cultural, pelo menos no que respeita à
Internet. Os conteúdos de todo o po aí oferecidos não custam nada ou custam muito pouco, ainda que se
tente permanentemente introduzir ou estabilizar limitações de acesso e modos de pagamento digitais. Não
significará isto que, pelo menos a indústria cultural digital, sem querer já está em parte para lá da forma do
dinheiro e da mercadoria? Não se deverá considerar isto como grande potencialidade emancipatória,
francamente como o surgimento de um comunismo do grá s para lá dos “bens pagos”?
O que se passa não é que o capítulo da Indústria Cultural não tenha previsto nada disto apenas porque
ainda não havia Internet em 1944. De facto muitas mercadorias da indústria cultural, por exemplo, revistas,
discos ou CDs, nham então como têm hoje de ser comprados à boa maneira tradicional; e também o
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cinema é um serviço cultural oferecido para ser comprado, tal como um bilhete para a montanha russa ou
uma entrada num cabaret. Mas a rádio e a televisão já não podem entrar como mercadorias isoladas na
valorização e no campo de realização do mercado. Se para o efeito até agora são cobrados impostos pelo
Estado já não se trata aqui de uma metamorfose regular na produção capitalista de mercadorias, mas em
todo o caso de uma determinação da forma daí derivada. O Estado subvenciona estes sectores socializados
da Indústria Cultural como “de direito público” tal como outras infraestruturas e recupera uma parte destes
custos na forma de impostos. O carácter de mercadoria de toda a organização não é assim minimamente
desmen do, mesmo se os programas devem ser ob dos baratos ou quase grá s. Por maioria de razão isto
se aplica às emissoras privadas surgidas na senda da era neoliberal, financiadas exclusivamente pela
publicidade.
Adorno e Horkheimer não se metem muito numa análise poli co-económica do contexto formal da
indústria cultural com as metamorfoses do processo social de valorização, mas reflectem sobre o carácter
quase grá s da rádio e da televisão mais no plano dos símbolos culturais e psicossocial: “Actualmente, as
obras de arte são apresentadas pela indústria cultural como os slogans polí cos e, como eles, inculcadas a
um público relutante a preços reduzidos. Elas tornaram-se tão acessíveis quanto os parques públicos. Mas
isso não significa que, ao perderem o carácter de uma autên ca mercadoria, estariam preservadas na vida
de uma sociedade livre”.
Assim se dá a entender que o consumo tornado mais ou menos grá s de uma parte crescente da
produção da indústria cultural de modo nenhum está “superado” numa ultrapassagem por toda a
sociedade do sistema produtor de mercadorias, mas con nua a ser parte integrante deste. Tal como os
meios de propaganda polí ca são inerentes à forma de mercadoria, mesmo se são difundidos
gratuitamente entre o povo, o mesmo se aplica ao consumo mediá co dos produtos culturais. Eles não
fogem à forma do dinheiro como “bens pagos”, apenas a mediação com o conjunto do sistema é outra; seja
o financiamento baseado numa cobrança estatal de rendimentos capitalistas, no sistema de crédito ou
numa ligação com a publicidade, como cujo suporte privilegiado a indústria cultural aliás se apresenta. Na
medida em que as preferências testadas dos compradores (por exemplo no Facebook) mais uma vez dão
ocasião a novos anúncios publicitários, os u lizadores supostamente grá s colaboram involuntariamente no
financiamento. Nessa medida apenas no plano da aparência imediata ou da par cularidade para os
consumidores se pode falar de “dissolução do genuíno carácter de mercadoria” destes produtos, porquanto
eles permanecem mercadorias de acordo com o seu caracter social, mercadorias cujo contexto formal
apenas nas instâncias de mediação se desmonta.
Este carácter repercute-se, não só no conteúdo mas também no aspecto social e psicológico, tanto mais
fortemente junto dos indivíduos consumidores quanto mais ele já não é imediatamente económico para
eles como acto de compra, como Adorno e Horkheimer fazem notar cri camente contra a pseudo-
emancipação da massificação do barato ou mesmo do grá s: “A eliminação do privilégio da cultura pela
venda em liquidação dos bens culturais não introduz as massas nas áreas de que eram antes excluídas, mas
serve, ao contrário, nas condições sociais existentes, justamente para a decadência da cultura e para o
progresso da incoerência bárbara”. Assim dizem Adorno e Horkheimer involuntariamente que o “privilégio
da cultura” burguês era apenas uma ilusão na qual já residia como verdadeiro movens a tendência para a
“venda em liquidação”, para a “decadência” e para a “incoerência bárbara” que na indústria cultural apenas
se torna manifesta. Aquela cultura burguesa que ainda nha de custar alguma coisa não era senão o luxo de
uma auto-reflexão afirma va firme que nem uma rocha, de que ainda se precisava nos tempos da
cons tuição capitalista, mas que perdeu os seus momentos excedentários na mesma medida em que
mergulhou no quo diano das massas como deformação da indústria cultural.
Também aqui mais uma vez é preciso ter em atenção a lógica económica funcional que em Adorno e
Horkheimer permanece mais como pano de fundo sem ser explicitamente nomeada. A industrialização da
educação e da cultura está subme da à mesma lei da concorrência que os outros sectores do capital. Neste
aspecto, no entanto, o determinante é o impera vo económico e não o tecnológico. A luta pela quota de
mercado (mesmo numa área secundária, como a publicidade enquanto sector económico próprio, para o
qual o produto da indústria cultural cons tui o plano de sustentação) exige um embaratecimento que só
pode basear-se na redução dos custos de produção. Mas se os custos das produções culturais são baixados
à bruta a qualidade sofre ainda mais que no caso das indústrias de produção material. O produto é então
sempre “uma carripana” e ainda muito pior. Pois só é possível “racionalizar” a produção intelectual ou
ar s ca como quem racionaliza a produção de guarda-lamas ou de cambotas à custa do completo
esvaziamento do seu conteúdo. Ela perde o seu próprio valor de uso com a incorporação directa no sistema
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do “trabalho abstracto”, como já Adorno e Horkheimer deixaram claro no caso da reversão ou mesmo
indis nguibilidade entre conteúdo redaccional e publicidade. É o que se vê por exemplo nos jornais
publicitários grá s cujos conteúdos redaccionais, na medida em que estão estreitamente cruzados e mesmo
francamente misturados com a publicidade, mostram de modo par cularmente crasso a “decadência” da
reflexão como expressão cultural e a “incoerência bárbara” da cultura capitalista transmi da gratuitamente.
A Internet tem esta natureza de uma produção capitalista de conteúdo e de cultura que já apenas é paga
monetariamente de modo indirecto e justamente por isso perde o seu “valor de uso”, transformada numa
organização de massas individualizada. Não se trata aqui de modo nenhum de uma libertação
emancipatória da “cria vidade”, mas sim de uma espécie de “priva zação” neoliberal da produção em
massa normalizada da indústria cultural numa escala nunca vista. Cada um ser a sua própria indústria
cultural já não deve ser entendido apenas como metáfora irónica ou como definição cultural-simbólica, mas
é para ser tomado à letra com todas as suas implicações. A forma tecnológica que corresponde ao
equipamento do sujeito pós-moderno provoca uma enchente de apresentações completamente
desqualificadas que já não podem ser avaliadas nem recusadas por qualquer instância redaccional.
Portanto cada um é o seu próprio meio, a sua própria revista, o seu próprio cinema e programa de
televisão. Ao contrário da produção profissional, aqui de facto já não é necessária qualquer “racionalização”
para rebaixar o objecto com a pré-formação capitalista até à ap dão para o gratuito. As descuidadas
criações de todo o po estão em todo o caso determinadas pela situação dos seus actores, que não se
conseguem envolver com nada e são movidos pela pressão da concorrência, pela pressa do serviço em
abstraccto e por um controle do fundo de tempo, situação que exclui qualquer concentração nos
conteúdos. Quem perante este pano de fundo se “liga” “interac vamente” com externalizações com as
quais à par da não tem quaisquer custos nem pode nem quer ter, nem custos materiais nem de esforço
intelectual, esse também já não precisa de baixar custos. O que foi o resultado na linha de montagem
económica da verdadeira indústria cultural é no caso das auto-apresentações individuais já um pressuposto,
nomeadamente a indiferença, a fugacidade e a inu lidade do objecto. Cada um é o seu próprio jornal
publicitário gratuito.
O desprezo por todos os critérios e o desdém por todos os conteúdos levam a cultura burguesa à sua
plena reconhecibilidade justamente onde ela se torna aparentemente “grá s”. Já na antecâmara desta
situação Adorno e Horkheimer formularam este “progresso” como descida do valor em dinheiro para uma
desvalorização cínica de todos os conteúdos e não como emancipação da forma da mercadoria: “Quem, no
século dezanove ou no início do século vinte, desembolsava uma certa quan a para ver uma peça teatral ou
para assis r a um concerto dispensava ao espectáculo pelo menos tanto respeito quanto ao dinheiro gasto”.
Na cultura do grá s da Internet já nada nem ninguém é respeitado. Também já nem se pode falar de
respeito próprio. Quem no meio do capitalismo enaltece o total desvalor das suas produções intelectuais e
ar s cas com isso admite também a nulidade do seu conteúdo. Pois um puro nada também só pode
produzir um puro nada.
Quando no caso não apenas se é suporte de publicidade mas se é também a própria coisa a publicitar
naturalmente que o financiamento secundário se mantém em limites bastante estreitos. Como seu próprio
jornal publicitário gratuito não se ganha um cên mo através de terceiros, pois não se tem senão o
conteúdo, que já não é nenhum e do qual também não vem nada. Assim os sujeitos do gratuito na Internet
fiscalizam reciprocamente o respec vo desvalor. Subjec vidade desvalorizada mas não ultrapassada –
também este estado de um culturalismo desculturalizado Adorno e Horkheimer de certa maneira previram:
“A arte manteve o burguês dentro de certos limites enquanto foi cara. Mas isso acabou. Sua proximidade
ilimitada, não mais media zada pelo dinheiro, às pessoas expostas a ela consuma a alienação e assimila um
ao outro sob o signo de uma triunfal reificação. Na indústria cultural, desaparecem tanto a crí ca quanto o
respeito… Para os consumidores nada mais é caro. Ao mesmo tempo, porém, eles desconfiam que, quanto
menos custa uma coisa, menos ela lhes é dada de presente”.
Um verdadeiro presente teria custado despesas e por isso seria algo em si. Libertar o gasto dos recursos
não apenas para o caso pessoal par cular, mas fundamentalmente libertá-lo da sua forma fe chista do
valor só funcionaria no entanto para o conjunto da sociedade e para todos os bens e não teria nada a ver
com o carácter individual de um presente, pelo contrário, seria mesmo uma maneira diferente de
reprodução social. A cultura pseudo-grá s da Internet não é uma coisa nem outra. O sujeito pós-moderno
da auto-encenação, armado com a tecnologia da “comunicação” mas socialmente e quanto aos conteúdos
em geral vazio ou indiferente, produz apenas cripto-mercadorias em larga medida sem gastos, justamente
porque já nenhum gasto lhe é pago e no capitalismo não se podem aguentar gastos não pagos.
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E justamente porque não existe qualquer modus revolucionado de u lização dos recursos a nível de toda
a sociedade, que a exis r seria válido também para a produção cultural, os actores do grá s virtual iludem-
se com os seus pacotes de troca vazios numa “economia da dádiva”. Na medida em que exis ram de facto
nas formações pré-modernas estruturas sociais de reciprocidade traduzidas como “de dádiva”, estruturas
que aqui são apenas toscamente ideologizadas, elas foram em todo o caso expressão de uma mobilização
real de recursos e não nham nada a ver com coisas aparentes. O facto de um conteúdo intelectual ou
cultural poder ser divulgado “sem custos” através de um clique de rato de modo nenhum significa que ele
também seja produzido sem a aplicação de recursos intelectuais e materiais; a ser assim ele não passaria de
um conteúdo nulo.
Os economistas da dádiva interac va trocam entre si o puro nada que corresponde ao seu estado social e
intelectual, e na verdade até sabem ou pelo menos pressentem isso, como Adorno e Horkheimer já
constataram. O que acontece aos consumidores-produtores digitais não é diferente do que acontecia aos
anteriores simples consumidores, cuja a tude o capítulo da Indústria Cultural descreve: “A dupla
desconfiança contra a cultura tradicional enquanto ideologia mescla-se à desconfiança contra a cultura
industrializada enquanto fraude. Transformadas em simples brindes, as obras de arte depravadas são
secretamente recusadas pelos contemplados juntamente com as bugigangas a que são assimiladas pelos
meios de comunicação. Os espectadores devem se alegrar com o facto de que há tantas coisas a ver e a
ouvir”. Eles par cipam na externalização de massas indiferenciada, sem custos, indiferente e recíproca em
que ninguém se leva a sério a si mesmo nem aos outros. Por isso quem tenha do a má sorte de ac var
gastos reais e carregar um conteúdo efec vo tem de ser nivelado sem piedade pelo mesmo nada mediá co
que é guardado com inveja pelos seus tulares. Qualquer esforço pelo conteúdo é “depravado” e o seu
resultado tornado parecido com “bugigangas” baratas, e justamente por isso os “contemplados” sabem
secretamente que se estão a enganar reciprocamente e por isso já consideram sempre tudo um logro.
Também não se deve deixar passar em claro que Adorno e Horkheimer, mesmo na crí ca radical à cultura
do falso grá s, man nham em mente como imagem idealizada igualmente falsa os velhos heróis da cultura
plena e superiormente burguesa que ainda vendiam realmente conteúdo autên co e simultaneamente se
podiam dar ao luxo de desprezar esta relação. Assim se diz poucas páginas depois no capítulo da Indústria
Cultural: “O Beethoven mortalmente doente, que joga longe um romance de Walter Sco com o grito: ‘Este
sujeito escreve para ganhar dinheiro’ e que, ao mesmo tempo, se mostra na exploração dos úl mos
quartetos – a mais extremada recusa do mercado – como um negociante altamente experimentado e
obs nado, fornece o exemplo mais grandioso da unidade dos contrários, mercado e autonomia, na arte
burguesa. Os que sucumbem à ideologia são exactamente os que ocultam a contradição, em vez de acolhê-
la na consciência de sua própria produção…”.
Não se pode deixar de reconhecer, e tal testemunha da manutenção do carácter social da an ga
burguesia cultural em ambos os autores, que eles pensam ter exis do “a unidade dos contrários, mercado e
autonomia, na arte burguesa” cujo “exemplos mais grandiosos” se poderiam reunir precisamente na
capacidade de se revelar como “negociante altamente experimentado e obs nado”. Se nas condições
capitalistas de reprodução não se pode renunciar ao pagamento monetário dos gastos, na medida em que
estes de acordo com o fundo de tempo e os recursos materiais vão para lá de uma simples relação de hobby
até a produção de conteúdos, tão-pouco se pode fazer passar inversamente a astúcia do negociante e a
esperteza da valorização como reverso da “autonomia” ar s ca e teórica. Esta úl ma tem de estar sempre
em pé de guerra com a primeira; qualquer habilidade para os negócios é ela própria devoradora no que ao
fundo de tempo e aos recursos diz respeito e cons tui portanto inevitavelmente um desvio da concentração
na própria coisa. Uma tal qualificação aponta não para o conteúdo como apesar de tudo “a mais extremada
recusa do mercado”, mas sim em úl ma instância para uma heteronomia que tem de ser inerente a
qualquer valorização, mesmo a dos quartetos.
A nostalgia ideológica de Adorno e Horkheimer pertence ao seu resto de razão burguesa iluminista na
qual mercado e autonomia são idên cos na arte e não só. A crí ca e a historicização nega va desta razão
capitalista não são levadas até o fim na Dialé ca do Esclarecimento, onde os autores de facto reconhecem a
“oposição” de mercado e autonomia, as quais no entanto pretendem fazer surgir como “unidade”
reconciliada ou pelo menos fundamentalmente reconciliável num passado de burguesia cultural idealizado.
Na conservação hesitante da razão burguesa já antes reconhecida como nega va e destru va faz-se a
quadratura do círculo; a apreciada astúcia dos negócios é a da lógica hegeliana em que as contradições não
conduzem à ruptura e à explosão, mas sim à falsa reconciliação posi vamente superadora na forma do
eterno sujeito da circulação.
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Mas a concepção de Adorno e Horkheimer, apesar deste excurso deficitário, formula ainda uma crí ca
consciente do problema contra a cultura do grá s das comunidades de “u lizadores” por maioria de razão
falsa e men rosa, quando eles fazem notar que “sucumbem à ideologia” justamente aqueles que “ocultam
a contradição, em vez de acolhê-la na consciência da sua própria produção”. Não se trata obviamente de
uma imaginada unidade entre conteúdos que se fecham à forma do valor, por um lado, e habilidade para o
negócio monetário da circulação, por outro, cuja idealização ela própria “oculta a contradição”, mas sim e
apenas do facto de que surge com toda a ni dez a irreconciabilidade da contradição e a necessidade da
ruptura histórica (em vez da “superação” posi va) na “consciência da sua própria produção” e de cuja forma
da mercadoria ou do dinheiro como mal necessário sob as condições opressivas se re ra aquela
interpretação minimizadora ou mesmo transfiguradora.

O limite interno do capital e a crise económica da indústria cultural


Por muito actual que seja a concepção de indústria cultural também para o início do século XXI, há hoje
uma importante diferença em relação a 1944. Então estava ainda pela frente a grande prosperidade do pós-
guerra. Na transição da época das guerras mundiais para a curta época histórica de produção em massa e
consumo em massa do fordismo, Adorno e Horkheimer não podiam perceber a indústria cultural em
formação do ponto de vista da crise objec va ou do limite interno histórico do processo de valorização. O
complexo da indústria cultural que se revelava nebulosamente nas suas dimensões nha de lhes parecer
uma fatalidade, como forma de controle total ou autocontrole e de submissão da consciência à máquina do
fim em si capitalista.
Hoje, pelo contrário, a indústria cultural desenvolvida está sob o signo de um limite objec vo
amadurecido do capital mundial. A própria Internet é toda ela parte integrante de uma tecnologia de crise
da terceira revolução industrial, cujos potenciais de valorização conduzem ao esvaziamento da substância
do valor. Também neste aspecto não é a tecnologia como tal que autonomamente teria efeito sobre as
relações e seria a verdadeira razão para o seu revolucionamento. A racionalização, que leva à ex nção do
fogo do “trabalho abstracto”, segue as mesmas leis que este; a libertação da força de trabalho supérflua
cons tui o reverso da sua subsunção ao capital. No sen do do fe chismo social, “autónomo” é apenas o
automovimento solto do “sujeito automá co” do qual nasce a tecnologia de crise em geral que dá
expressão à autocontradição interna do sistema. O capitalismo não esbarra num limite tecnológico dele
independente, mas sim no seu próprio limite (económico) interno. No complexo da indústria cultural este
limite geral do capital ergue-se de uma maneira específica que aponta simultaneamente para o mecanismo
da crise e para as suas formas de desenvolvimento.
A virtualização culturalista do mundo da vida corresponde à virtualização económica do capital. Os dois
momentos não representam qualquer novo grau de desenvolvimento do modo de produção e modo de
vida capitalista, mas sim um processo da sua desvirtualização e portanto da sua real autodestruição. A
dessubstancialização do capital através da redução desproporcional da força de trabalho regular, a única de
produz valor, criou aquela famigerada economia global de bolhas financeiras em que o capital passou da
acumulação real para uma acumulação meramente simula va. Esta representa por assim dizer o seu
próprio avatar económico no mundo aparente do céu financeiro desacoplado. Mas o espaço virtual da
Internet não se limita a espelhar em sen do simbólico-cultural o capital fic cio já sem cobertura de
qualquer valorização real, mas pertence também directamente a esse império económico espiritual.
A Internet, como complexo híbrido da indústria cultural, não produz mercadorias reais, mas apenas
virtuais. Ela nem sequer produz num volume apreciável produtos intelectuais ou ar s cos imateriais, que
na forma da mercadoria pudessem ter par cipado da massa da substância social do valor, mas apenas
divulga electronicamente tais conteúdos associados a gastos objec vos, enquanto os conteúdos genuínos
surgidos directamente na Net, tanto objec va como economicamente em grande parte sem valor, nem
contribuem para a massa de substância real de valor nem dela par cipam, na medida em que permanecem
“grá s” desse modo inverídico.
Ora se a publicidade é determinante para a indústria cultural não só como forma de expressão da esté ca
das mercadorias, mas também como base financeira da economia da Net, então esta factualidade esclarece
o modo do seu encaixe na reprodução capitalista. A publicidade, como sector secundário por sua vez
capitalistamente improdu vo, que não traz qualquer contribuição para a massa da substância social real do
valor, representando pelo contrário uma dedução dela, só pôde expandir-se numa dimensão sem
precedentes na história do capitalismo na base insuflada da economia das bolhas financeiras e do
endividamento desde os anos de 1980. Só perante este pano de fundo surgiu o complexo tecnológico-
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cultural da Internet daí derivado na sua actual amplitude. Os serviços, possibilidades de acesso ou de
apresentação e conteúdos gratuitos postos à disposição só podem ser descritos em termos capitalistas
como suportes de publicidade. Quanto mais a indústria cultural se desloca para o espaço virtual, mais
precária se torna esta dependência.
Simultaneamente este espaço exige também um poderoso e muito real agregado infraestrutural de
consumo energé co, cablagem, baterias de servidores etc. que por sua vez se repercute como factor de
custos. Em grande parte estes equipamentos tecnológicos também têm de ser financiados a par r da
publicidade ou exigem uma parte das suas receitas. Isto também se aplica às redes promovidas ou postas à
disposição pelo Estado cujas receitas também são uma dedução da massa social de valor; tal como as suas
outras funções também esta é cada vez mais financiada a crédito. Sejam quais forem as mediações, o
complexo da indústria cultural virtualizada é essencialmente uma criatura do capital fic cio e das suas
diversas formas, que no seu conjunto representam uma antecipação cada vez mais irreal de futura criação
real de valor protelada sempre mais. O limite interno de toda a organização torna-se manifesto na mesma
medida em que o sistema de crédito demasiado estendido colapsa, as cadeias de crédito se rompem e se
revela a infinanciabilidade social da cultura do grá s virtual. A total deslocação do problema para o crédito
estatal não altera aqui nada.
Quando portanto os pressupostos económicos escondidos caírem a pique revelar-se-á que a mentalidade
do grá s do “u lizador” de modo nenhum cons tui uma antecipação da abolição da forma da mercadoria e
do dinheiro. Pelo contrário, trata-se de uma consciência que há muito só vive do crédito e até só pensa no
crédito. Tal como uma reprodução não monetária surge erroneamente como “sem custos” mesmo dos
gastos materiais ou sociais enquanto “desmaterialização” ilusória, assim também a própria existência
virtualizada surge como não paga, cujos custos terão de cair noutro lado, sobretudo quando não se precisa
de saber nada disso. O pós-modernista ecologicamente esclarecido é sempre a favor do bom e contra o
mau, só que tem de haver corrente eléctrica na tomada e os ar stas da vida têm de ter que comer a um
nível aceitável de gourmet, sem que as condições sociais de um luxo qualita vamente diferente e realmente
generalizado se tornem um problema a sério. O consumo do futuro da substância do valor, a deslocação dos
créditos mal parados e o desaparecimento técnico do dinheiro da realidade do mundo da vida surgem
como uma espécie de “mundo sem dinheiro” que de algum modo se tornou bastante mais barato. A
revolução contra a “riqueza abstracta” não se dá, mas cada um é o seu próprio bad bank. Também do ponto
de vista polí co-social surgiram, no lugar de revolucionários, caçadores de pechinchas digitais. Nem é bom
perguntar como reagirá a consciência da indústria cultural ao colapso do seu mundo de ilusão e auto-ilusão.

A caminho do esgotamento das reservas culturais


A restrição e impasse económico corresponde à restrição e impasse cultural. Neste contexto a questão da
inovação na indústria cultural e nas suas fontes deve ser posta de lado. Mesmo como sector secundário e
até improdu vo do capital, que no entanto tem de ser economicamente alimentado pela massa de
substância social do valor, a indústria cultural é tão abstracta e em si desqualificada quanto aos conteúdos
como toda a valorização no seu conjunto. A completa indiferença perante qualquer conteúdo material,
porque o seu objecto próprio é o valor abstracto, obriga portanto a liquidar os recursos culturais que não
coincidem imediatamente com o fim em si da “riqueza abstracta”; precisamente como os recursos naturais,
materiais e humanos, aliás, também têm de ser recrutados para a acumulação abstracta como suportes
concretos indiferentes.
No movimento histórico ascendente do capital para a determinação da forma abrangente e planetária
surgiu uma genuína arte e cultura burguesa que em primeiro lugar se nha formado sobretudo como
oposicionista no terreno das relações apenas meio desenvolvidas enquanto precocemente capitalistas e
proto-capitalistas. Tal como a filosofia iluminista e a ciência deste período, ela era um produto capitalista
pela estrutura e pelo conteúdo, mas apenas nas suas formas de pensar e representar, como mobilização
ideológica e antecipação ideal, e não ainda propriamente como objecto imediato de valorização; por isso
também como produto de luxo para patronos nas cortes absolu stas ou para círculos privados e
correspondentemente financiada. Também a esfera pública burguesa como pressuposto para uma
transformação da indústria cultural permaneceu nessa medida em primeiro lugar como protó po.
Só neste estatuto intermédio “elevado”, que contradiz a sua própria lógica mesmo que apenas
formalmente, pôde a cultura burguesa adquirir a aparência de contexto de reflexão determinado pelos
conteúdos e de capacidade de expressão com os célebres “momentos de excesso”, em que se reuniu um
fundo de verdadeira “objec vidade cultural” que era um reflexo da objec vidade do valor mas ainda não
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esta mesma, a qual ainda só nha conquistado alguns domínios da reprodução material. A consciência da
burguesia cultural quis sempre manter este estatuto intermédio e ligar-lhe a ilusão de arte, ciência etc.
“altas”, não corrompidas pelo economismo vil, embora o modo de pensar, as formas de representação e os
conteúdos já afirmassem igualmente aquela lógica que escarnece da pretensa autonomia da arte ou da
cultura e logo haveria de encontrar a sua expressão simbólica defini va no “Quadrado Negro” de Malevich.
Ora é evidente que a indústria cultural, apenas incipiente no século XX e só nos limites do capitalismo no
início do século XXI aumentada até à virtualização do mundo da vida, nunca pôde alimentar-se de
conteúdos a par r de si mesma, mas fê-lo vampirescamente em primeiro lugar a par r daquele passado de
uma cultura e arte burguesa ainda não possuída pela sua própria lógica. A aventura da história da imposição
do capitalismo, cujas narra vas e criações ainda não entradas elas próprias na valorização (do classicismo e
roman smo burgueses, passando pelo realismo, até à “modernidade clássica”) criaram a aparência de um
conteúdo cultural independente, mas esgotaram-se no prazo de poucas décadas. A indústria cultural não
conseguiu criar mais nada de novo a par r de si mesma. A sua cria vidade consis u sempre apenas na
adaptação de material pré-encontrado.
Houve no entanto ainda uma segunda onda a par r da qual a sede vampiresca da indústria cultural pôde
beber. Foram as contraculturas e subculturas dos movimentos sociais e milieus, que se orientavam
subjec vamente contra o capitalismo ou contra as suas formas de manifestação e que deram expressão
intelectual e ar s ca a uma existência marginalizada, a formas de vida inconformadas ou a desvios sociais.
Estas culturas de protesto ou pelo menos subculturas foram o campo de referência de uma invocada
contraposição “não comercial” à indústria cultural. De facto, porém, eram muito fracas na sua potência
subversiva para poderem vir a tornar-se um opositor sério; e na verdade sobretudo porque a sua crí ca
permaneceu não crí ca da forma, fenomenologicamente limitada e socialmente par cular, sem conseguir
a ngir a universalidade social. Tal como a estatalidade capitalista sempre conseguiu capturar, adaptar,
torcer e transformar em recursos polí cos próprios as tendências “polí cas” emancipatórias de curto
alcance (do velho movimento operário até à “nova esquerda” de 1968), também as culturas de protesto e
subculturas “não comerciais” foram a curto ou a longo prazo transformadas num recurso da indústria
cultural.
O que se apresentava como subversão cultural e contracultura cons tuía, na verdade, tal como a an ga
alta cultura burguesa de certa maneira ainda externa, uma espécie de reserva natural para o capital da
indústria cultural, reserva que era periodicamente ceifada ou trinchada. Após a segunda guerra mundial
ambos os recursos perderam a sua rela va autonomia; a alta cultura burguesa simplesmente morreu e já só
podia ser u lizada como madeira seca, as subculturas tornaram-se cada vez mais viveiros capitalistas. Como
na sequência da revolução tecnológica e da globalização todos os horizontes se reduzem, também se
acelera o processo de mutação da indústria cultural, de criações subcomerciais ou protocomerciais até ao
desaparecimento do objecto.
Adorno e Horkheimer descrevem o vampirismo cultural apenas tendo em vista a decadência da an ga alta
cultura burguesa e também com imprecisões; mas o problema das subculturas ficou fora do seu horizonte
ou foi de imediato subsumido ao conceito de indústria cultural. A par r deste déficit de análise também se
esclarece parcialmente o erro do julgamento nega vo de Adorno sobre o jazz, cuja origem e qualidade
própria foram ignoradas. Adorno, neste ponto plenamente conduzido pelas idiossincrasias do “bom gosto”
da burguesia cultural clássica, não quis ver o jazz na sua especificidade própria anterior à indústria cultural,
mas apenas como produto genuíno da máquina cultural capitalista. Ele não viu aqui que esta máquina
precisa de um material não inerente a ela própria porque só consegue despedaçar algo que lhe tenha sido
trazido. O seu produto precisa de matéria-prima ou semi-elaborada cultural previamente encontrada. Estes
recursos não estavam ainda completamente esgotados em meados do século XX.
Poder-se-á admi r que Adorno só conhecia ou só nha em vista o jazz já orientado pela indústria cultural,
por exemplo as show bands dos anos de 1940. Neste sen do Adorno de certo modo acaba por ter razão e
sobretudo no que diz respeito ao prognós co, que no entanto não pode referir-se especificamente ao jazz
ou à música pop. Trata-se das criações culturais em geral, seja qual for a especialidade e o nível ar ficial.
Juntamente com a terceira revolução industrial como tecnologia de crise universal e com o processo de
crise global que se lhe seguiu, também a indústria cultural a ngiu o seu limite histórico. O seu auge, que
coincide com a totalização da esté ca das mercadorias, coincide também com o esgotamento dos seus
recursos externos. De certa maneira pode falar-se de uma analogia com o esgotamento das reservas
energé cas e com a destruição das bases naturais da vida, bem como com a crise das relações entre os
sexos. Também neste sen do o capitalismo destrói os seus próprios pressupostos. Na mesma medida em
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que a abstracção do valor segue a sua dinâmica interna e completa realmente o programa da sua
totalização, dissolve não só a sua própria substância de trabalho, mas também os seus fundamentos
naturais, sexuais e culturais, os quais se transformam de pressupostos mudos em gritantes contradições.
O pós-modernismo faz notar involuntariamente o limite cultural quando desliga as intenções da cultura de
protesto e da subcultura da sua pretensão ideológica de “não comercial” ou “an comercial” e as desloca
directamente para a indústria cultural, na medida em que gostaria de escolher para si momentos
pretensamente subversivos literalmente por compra no supermercado ou por download numa Internet
subsidiada. O conteúdo de realidade desta interpretação está em que, pelo menos nos efeitos sociais, já
não se trata muito de criações rela vamente autónomas, mas sim apenas de produtos que são a priori da
indústria cultural como objectos de “autovalorização” e da sua possível procura. A “subversão”, que
naturalmente já não é nenhuma, deve ser transferida para o modus do simples consumo de mercadorias
(mesmo que seja de uma mercadoria obviamente “gratuita”).
De par com esta ideologia de um consumo “cria vo” ou mesmo “crí co” vai a completa recusa de tomar
como foco da crí ca a forma da mercadoria como tal (com o que o pós-modernismo no seu conjunto
regride para trás do marxismo do movimento operário, em vez de o transcender). A questão já não é que a
forma da mercadoria como mal necessário se agarre também aos conteúdos da sua crí ca, de modo que
esta se possa ar cular em geral e reproduzir os seus pressupostos materiais, mas sim que o carácter de
mercadoria é aceite ou ignorado e o conteúdo é posi vado como conteúdo da valorização, mesmo que num
sen do apenas simbólico.
Mas se a “cria vidade” já consiste apenas no po e na combinação do consumo de mercadorias, então
isso conduz a uma crise do valor de uso, porque já não há qualquer novo fornecimento de conteúdos. Após
a morte da an ga alta cultura burguesa a subcultura sofre o mesmo des no. Já só há pseudo-subculturas,
elas próprias já orientadas pela indústria cultural. Mesmo a mais tola banda escolar já aspira desde o início
ao sucesso comercial ou pelo menos ao capital cultural para “aparecer” nas listas de sucessos, e dá
fundamentalmente mais valor à “apresentação” do que ao conteúdo inovador que não tem. Isto aplica-se a
todo o sector cultural, abstraindo das excepções. Tal como a substância do valor é apenas simulada, uma
vez que ocorre uma reciclagem a par r das bolhas financeiras, também a indústria cultural vive apenas da
reciclagem de velhos conteúdos sucessivamente adaptados, até que sufoque na sensaboria dos eternos
requentados. Esta situação torna-se cada vez mais explicitamente naquela barbárie cultural de que fala o
capítulo da Indústria Cultural.

O mundo não é um acessório. Por que é impossível uma "revolução cultural" separada
O círculo da reflexão crí ca fecha-se se regressarmos à complementaridade polar da pseudo-crí ca eli sta
culturalmente pessimista e da afirmação pós-moderna da superficialidade. A super cie é o mundo dos
fenómenos imediatos; cultural é o do ou it, do design, do guarda roupa. Se a burguesia cultural denuncia
publicamente a superficialidade, ela refere-se apenas o ou it que lhe salta à vista, a formas de
apresentação e manifestação imper nentes ou estranhas. O stock remanescente de consciência cultural
elevada, mesmo se tem um quadro de Kandinsky na parede, num aspecto não está assim tão longe do
filisteu pequeno-burguês do dinheiro e da cerveja como gosta de expressar livremente na sua aversão
contra a “arte degenerada”, a “música negra” e o movimento pop “americano”. Trata-se aqui não do
carácter da super cie em si, mas apenas de trapos e sons “erróneos”, como metáforas de um design social
rejeitado. Por detrás está o medo do estranho, dos underdogs, dos desviantes ou das “classes perigosas”.
Ainda que o culturalismo pós-moderno cul ve e roman ze justamente fenómenos e formas de expressão
abominadas pelos velhos filisteus culturais, mas apenas como acessórios sem conteúdo e arbitrários, ele
pertence à mesma estrutura de percepção e cons tui ele próprio uma consciência de classe média, apenas
diferentemente posicionada. O conflito neste campo isolado não passa de maçador e os intervenientes são
demasiado iden ficáveis na sua iden dade. Poderia sem mais tornar-se chique pendurar
“vanguardis camente” na parede num golpe de surpresa o famigerado veado bramante; logo as galerias
ficariam repletas deles, desde Nova Iorque até à província de Berlim. A reciclagem que a indústria cultural
faz de todas as formas de expressão nivela como é sabido também a diferença entre arte e kitsch. No fundo
começou já com as apresentações dadaístas do pechisbeque como objecto ar s co; o que foi considerado
um escárneo é tratado há muito tempo com seriedade académica como problema da história da arte.
Com isto não se pretende negar que a “expressão” habitual tem de encontrar uma forma na sociedade, no
universo vital e na cultura quo diana. Cada formação histórica exprime-se ar s camente, mesmo onde não
existe uma esfera isolada da arte; as pessoas decoram o espaço vital e apresentam-se nas suas vestes etc.
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Estas múl plas formas de expressão a diversos níveis nunca são puramente individuais, mas sim também
determinadas através da respec va sociedade, das suas contradições e do seu desenvolvimento. Em relação
ao modo de produção e de vida capitalista, no entanto, é preciso ter presente que foram o vazio e
indiferença quanto aos conteúdos que são inerentes aos seus mecanismos, bem como o esgotamento e
seca cultural que acabam por ser realizados pela sua dinâmica específica, que levaram à dominação e
autonomização grotescas do exterior. Tal como a forma abstracta da mercadoria se autonomiza face ao
conteúdo concreto e rebaixa este à sua mera “forma de manifestação”, assim acontece analogamente a já
referida inversão entre conteúdos culturais e intelectuais e a sua “forma de apresentação” exterior.
Isto aplica-se também à chamada cultura quo diana, que se desenvolveu até àquilo que já Marx apontou
como “religião do quo diano”; no entanto muito para lá do carácter ideológico referido por Marx. Já não se
trata de meras “opiniões” e interpretações ideológicas do mundo, mas sim de modos de expressão e de
auto-interpretações entendidos existencialmente. O “puro nada” tem de se auto-apresentar como capa nas
relações com os seus semelhantes e tem de armar permanentemente o seu ou it em sen do lato. A muito
invocada pluralização de es los de vida é completamente uniforme no que diz respeito ao seu carácter
como meio de ganho de dis nção, situação em que a pluralidade se dissolve novamente num
“mainstream”; mesmo que este pareça correr em diversas direcções.
A questão decisiva aqui é que mesmo os mais simples trapos em si bastante irrelevantes são carregados
com formalidades arbitrárias e “questões de gosto” com uma importância imper nente. Que ninguém
consiga escapar às tendências sociais neste plano, a não ser à custa da pura comicidade, não cons tui nada
de essencial. Assim andamos nós há quarenta anos não de toga, mas de jeans; ainda que já não nas
mesmas, pois o desgaste do material obriga a gastar tempo na compra de calças. Se as jeans e os cabelos
compridos dos jovens ou a música rock já foram considerados como sinal de uma espécie de protesto
juvenil, há muito que está provada a inocuidade e o carácter afirma vo desta pseudo-revolta. Isso tornou-
se apenas uma moda geral nas calças, a que mesmo os velhotes veram de sucumbir. Naturalmente que
tais fenómenos se repetem em cada geração de algum modo na puberdade. Mas a novidade é que eles
assumam uma relevância social generalizada.
Devo comprar umas calças que possam servir a um elefantezinho, de modo que ninguém veja se eu tenho
rabo? Ou umas calças tão estreitas que perturbem a circulação sanguínea e toda a gente possa ver que não
tenho rabo? Tais alterna vas existenciais nos tempos pós-modernos já não são deixadas para os jovens
abaixo de quinze anos, mas entram na categoria de quase ideologias polí cas. Que os indivíduos
desenvolvam preferências no vestuário, na comida e bebida, no sexo, na sensibilidade corporal ou na
decoração da casa já não cons tui uma questão natural e inocente. Se tatuagens ou piercings, comida
vegetariana ou vegan e coisas que tais se transformam numa espécie de visão do mundo, com a qual as
pessoas se separam ou se reconhecem de um determinado círculo como antes com o emblema do par do,
então isso aponta para o carácter da ideologia do ou it como procedimento de subs tuição, com o qual se
pretende subs tuir o vazio ideal e social.
Tais procedimentos de subs tuição simbólicos e da cultura quo diana ganham importância justamente
para a administração da crise e suas ideologias de disciplinamento. As campanhas contra os fumadores
incluindo medidas administra vas de proibição ou a denúncia dos hábitos alimentares “não saudáveis” das
classes inferiores não têm nada a ver com a preocupação com o bem-estar. Pelo contrário, o que acontece é
que assim se desloca a percepção das disparidades sociais, da pobreza, dos desaforos sociais e do stress do
trabalho para o figura vo, para a “performance” pessoal, como se o problema fosse apenas de mudanças
no plano dos hábitos ou a tudes culturais quo dianas que não teriam nada a ver com uma relação social
coerciva. Tal ideologia da administração de seres humanos apela segura do objec vo para as almas
aparentadas de personalidades de auto-encenação vazia que pretendem realizar-se no culto da
superficialidade e que se tornam tanto mais permeáveis aos mecanismos de disciplinamento quanto estes
se apresentam como oferta de design.
O culturalismo pós-moderno e sua sobreacentuação da aparência já têm antecedente histórico num duplo
aspecto. Filosoficamente trata-se da corrente irracionalista do pensamento burguês, desde a viragem an -
hegeliana no século XIX, passando pela filosofia vitalista, até ao existencialismo. É o contraprograma
burguês formulado por Nietsche e Heidegger contra Marx e Adorno, donde também a chamada esquerda
pós-moderna re ra as suas referências principais. Ligada a ele esteve sempre a a tude ou modo de
percepção conhecida pelo nome de “este zação”. O horror da guerra e da destruição, o terror da
normalidade, o sofrimento e a miséria tornam-se “belas imagens”, entranhas e barrigas inchadas pela fome
ou feridas ulceradas tornam-se obras de arte. A “esté ca do terror”, desde Walter Benjamin designada por
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fascismo subjec vo, cons tui os antecedentes e é secretamente parte integrante da viragem culturalista
pós-moderna contra a crí ca do capitalismo conteudís ca, social e categorial.
A encenação da “entrada em cena”, mostrada por Leni Riefenstahl na esté ca cinematográfica do
congresso do par do do Reich, com a sua figuração de desfiles de massas, pertence também a esse
programa. A individualização pós-moderna desse modo de proceder não muda nada da essência da coisa; e
pode a qualquer momento virar em surdos mo ns colec vos, como prova o mobbing digital. A indiferença
perante o conteúdo na sua agudização pós-moderna dá lugar a um programa este cista ainda mais
abrangente que o do início do século XX, que nem sequer é percebido como tal porque representa um
sen do geral da vida.
Esta este zação militante, que agora fez da forma do design publicitário uma matriz totalitária, é uma
arma muito mais eficaz contra a crí ca radical do que as simples construções de pensamento da ideologia.
Não se trata da coisa em si, mas do es lo. No lugar da análise crí ca surgem tratados do po “como
empobrecer com es lo”. O styling não reconhece qualquer outro critério de verdade além do número de
comentários “gosto” na Net. E o que é publicitado é o que é apreciado como ou it. A objec vidade nega va
deve ser escondida por um “subjec vismo esté co”; no lugar da revolução social surge a pseudo-revolução
sem dor do “parecer belo” – a este zação da existência de todos e cada um. É este cizada não só a guerra e
a atrocidade, mas também a crise, a nova pobreza e a catástrofe ambiental. Trata-se simultaneamente
duma este zação da verdade, que corresponde ao paradoxal “rela vismo absoluto” da pós-modernidade.
A ideologia da este zação tornada forma de vida real não deve ser confundida com a esté ca em si. A
questão não é que cada conteúdo encontre a sua adequada forma de expressão ou de exposição, para o
que podem ser desenvolvidos critérios. Em vez disso é a forma esté ca que se autonomiza como se viu
contra o conteúdo e rebaixa este à sua forma de manifestação acidental e não essencial. É esta inversão,
implantada e consumada pela forma totalitária da mercadoria na arte e na cultura, que cons tui o
programa da este zação.
Trata-se de um processo histórico que teve a sua conclusão na esté ca das mercadorias após a segunda
guerra mundial e que só pode desembocar, como qualidade de mercado mundial da “incoerência bárbara”,
numa nova este zação da polí ca ela própria há muito desrealizada. O terror é agora tanto mais medonho
de outra maneira quanto ele apresenta simultaneamente todos os traços da tolice. Foi justamente o novo
centro, verde, social-democrata e social-ecológico, que não só apertou o torniquete da administração social
da crise e pôs em marcha Hartz IV, mas simultaneamente também levou ao auge a sua “venda” democrá ca
como pantomina do design publicitário. Não por acaso são os quadros e autoproclamados “revolucionários
da cultura” da an ga nova esquerda de 1968 que produzem este desenvolvimento. Eles já então assumiram
antecipadamente o pós-modernismo de esquerda e hoje mostram-lhe o seu futuro, mesmo que este já não
deva conduzir aos ministérios, mas simplesmente a mandatos pelo “par do dos piratas”. Esta geração de
filhos e netos do “novo centro” já envelhecido nem precisa mais de qualquer passado radical de esquerda
para o design da sua entrada em cena.
A metamorfose das an gas encenações prontas a ser representadas de comunas e de combatentes de rua
em maturidades de homens de Estado mostram involuntariamente que não pode mesmo haver uma
“revolução cultural” autónoma no sen do de simples revolucionamento da a tude, do ou it, da “conduta
do discurso”, do “es lo de pensamento” e do quo diano, até ao penteado, à cultura de consumo ou mesmo
alimentar etc. Se a geração de 68 poli camente crescida se permite uma modernização e democra zação
“cultural revolucionária” da RFA, enquanto fracassou como revolucionária, prova assim apenas que o
pseudo-radicalismo performa vo só serve em culturas de protesto baratas e superficiais, para ultrapassar a
puberdade e também para o “revolucionamento” do próprio capitalismo e do seu es lo de management.
Uma boémia de classe média que se dá por ser da arte do quo diano, da experimentação sexual e da
rebeldia habitual já desempenhou sempre este papel. A “revolução cultural” assim limitada da nova
esquerda foi no entanto a úl ma da sua espécie porque já não havia nada para revolucionar em termos
económico-culturais por falta de substância real de valor e o comboio da esquerda pop pós-moderna já há
muito que estava fora da linha.
Só haverá uma “revolução cultural” no futuro se for simultaneamente expressão de um movimento social
revolucionário com efec vo poder de intervenção e não performance meramente simbólica. Um tal
movimento não existe actualmente e portanto também não se pode desenvolver qualquer esté ca da
crí ca mas apenas uma crí ca da esté ca dominante, enquanto crí ca da indústria cultural. Não se pode
ves r uma roupa sem o corpo para ela. O culto pós-moderno da superficialidade, na sua a tude de crí ca
aparente em que os próprios protagonistas não acreditam, é tão sem substância como a valorização do
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capital virtualizada da pós-modernidade. A condição para uma nova integração do movimento social com o
movimento cultural revolucionário é que penetre na consciência das massas uma nova crí ca radical do
contexto da forma fe chista, coisa de que a esquerda pós-moderna não quer saber absolutamente para
nada.
O que o culturalismo ideológico presentemente ainda consegue ao serviço do capital é única e
exclusivamente o enfraquecimento interno da própria crí ca categorial. Pois esta corre o risco de se
transformar num objecto puramente esté co através da recepção parcial e aparente justamente da crí ca
do “trabalho”, do valor e da dissociação sexual, ou seja, num acessório efémero da auto-encenação, assim
se tornando completamente sem compromisso. Com a totalização do design publicitário vai de par a
subsunção em geral de todos os conteúdos na corrente cega do espírito do tempo ou na moda. Não se trata
apenas de trapos da moda, mas também de delitos da moda, de doenças da moda e ideologias da moda,
até mesmo de indecências da moda. Justamente a esquerda pós-moderna espalha os seus ditos ordinários
por todo o lado através do seu lugarejo intelectual de província. Por isso as personalidades sociais pós-
modernas são por princípio pessoas de pouca confiança; não podemos lembrar-nos delas numa posição fixa
e com carácter vincula vo, nem sequer rela vamente à crí ca categorial, tanto quanto eles supostamente
se apropriaram dela.
Tal como o velho patriarca verde de 1968 Joschka Fischer periodicamente alarga e volta a encolher como
um harmónio o perímetro da sua corpulência, transformando-se de barrigudo em corredor de maratona e
vice-versa, assim também os estrategas individualizados do ou it transformam periodicamente o seu
comportamento, as suas a tudes e convicções sem qualquer conexão interna. Já se sabe que qualquer
conteúdo a que se deita a mão logo terá de ser novamente removido. Períodos inteiros da vida minguam
num Verão ou possivelmente numa tarde; todas as relações se dissolvem já quase antes de terem
começado. Aplica-se a divisa de Berlusconi que terá dito: “Já fui muitas vezes sincero”. Uma vez que o puro
nada não pode permanecer junto de nada, ele também não aprendeu nada certo, nem sequer a própria
língua materna. O cidadão do mundo pós-moderno não sabe bem alemão nem sabe bem inglês; não sabe
bem nada, mas já cheirou tudo alguma vez.
Como an doto para esta situação lamentável recomenda-se em sen do emancipatório uma ampla recusa
da este zação e da moda sem compromisso, o que implica uma crí ca radical do culturalismo pós-
moderno. O conteúdo tem de ser reposto no seu direito prioritário. Isto aplica-se tanto à crí ca superficial
da superficialidade feita pelo stock remanescente da consciência de burguesia cultural como ao contrapolo
pós-moderno. O mundo não é um acessório; o culto da superficialidade devia ser coberto de escárnio e
maldizer. A indústria cultural não pode ser iludida por uma hiperafirmação pós-moderna de esquerda, mas
apenas através da desvalorização militante do mero design em qualquer sen do. Nas publicações da crí ca
radical deviam talvez ser fomentados os textos pesados e no ou it a simplicidade consciente.
Não podemos par r do capítulo da Indústria Cultural da Dialé ca do Esclarecimento sem rupturas, mas a
recepção crí ca da concepção aí desenvolvida permanece indispensável. O pós-modernismo que se
imaginou para lá dela já não tem nada a dizer no mundo de crise do século XXI. Resta a esperança de que já
esteja prestes a levantar-se uma geração que diga com toda a simpa a aos ideólogos pop apaixonados pela
própria juventude profissional que eles mesmos são agora os velhos insuportavelmente chatos de ontem e
que vai sendo tempo de fazerem uma interrupção da emissão.

Original KULTURINDUSTRIE IM 21. JAHRHUNDERT. Zur Aktualität des Konzepts von Adorno und Horkheimer in revista EXIT! Krise
und Kri k der Warengesellscha , 9 (03/2012) [EXIT! Crise e Crí ca da Sociedade da Mercadoria, nº 9 (03/2012)], ISBN 978-3-
89502-333-0, 200 p., 13 Euro, Editora: Horlemann Verlag, Heynstr. 28, 13187 Berlin, Deutschland, Tel +49 (0) 30 49 30 76 39, E-
mail: info@horlemann-verlag.de , h p://www.horlemann.info. Tradução de Boaventura Antunes (03/2013).
A Industria Cultural - Theodor W. Adorno e Max Horkheimer 1944)
h p://obeco-online.org/

h p://www.exit-online.org/

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