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SEMINAIRE INTERNATIONAL « TRAVAIL ET FORMATION PROFESSIONNELLE

DANS LE DOMAINE DE LA CULTURE : PROFESSEURS, MUSICIENS, DANSEURS »


Université d’Etat de Campinas UNICAMP, Sao Paulo, Brésil, 18-20 avril 2006

Hyacinte Ravet
Université Paris Sorbonne – Paris IV

Carrières de musicien-nes
Carreiras de músicos/musicistas

Les résultats
Os resultados

Na seqüência do retrato social geral da profissão de músico intérprete na


França1, esta comunicação apresenta um meio específico, atípico: o mundo da orquestra,
que emprega músicos permanentes, enquanto os músicos intérpretes, na sua maioria,
são eventuais na França2. Ao nos debruçarmos sobre esse mundo, somos levados a
examinar o universo da música erudita, seu funcionamento, a maneira como se
desenvolvem as carreiras ali e o tipo de trajetórias vividas pelos músicos. Porém, nesse
universo, observam-se diferenças importantes em matéria de profissionalização e de
situação de trabalho entre homens e mulheres. A análise em termos de relações sociais
de sexo emerge assim como um eixo de estudo importante e pertinente para apreender
os modos de hierarquização adotados nas profissões musicais. Após esboçar os
contornos do mundo da orquestra e da profissão de músico de orquestra permanente (I),
o exame dos modos de socialização e de profissionalização no universo da música
erudita traz à luz inúmeras variáveis de diferenciação entre os músicos (II), que são
explicitadas na análise comparativa de carreiras femininas/masculinas em música (III).

Os músicos de orquestra na França

Segundo a Associação Francesa de Orquestras3 o meio orquestral

1
Cf. Philippe Coulangeon, Les musiciens interprètes en France. Portrait d’une profession, Paris, La
documentation française, 2004.
2
Philippe Coulangeon estima em 5% o número de músicos permanentes na profissão de músicos
intérpretes (considerando apenas músicos de orquestra) e em 13% quando se incluem os músicos
professores que têm um emprego estável. Cf. “L’expérience de la précarité dans les professions
artistiques. Le cas des musiciens interprètes”, Sociologie de l’art, Opus n°5, 2004, p. 82.
3
Site AFO, 2005. (http://www.france-orchestres.com/).
compreende cerca de 2.100 músicos profissionais para 29 orquestras civis:
essencialmente orquestras sinfônicas (como a Orquestra de Paris) ou líricas (como a
Orquestra Nacional da Ópera de Paris), oumesmo conjuntos mais específicos (como o
Conjunto InterContemporain para a música contemporânea). Existem ainda orquestras
militares ou assemelhadas, que agrupam cerca de 3.000 músicos (essencialmente
orquestras de harmonia, compostas portanto de instrumentos de sopro, como por
exemplo a Guarda Republicana). Os músicos considerados aqui dispõem de um estatuto
muito particular em relação ao conjunto da profissão, que compreende 25.000 músicos.
Eles são permanentes, enquanto a regra geral para os outros músicos intérpretes é a
eventualidade (ou a precariedade, um duplo emprego, etc.). O estatuto de permanentes
significa que eles são empregados assalariados em tempo integral, ligados a uma
orquestra, com Contrato por Tempo Indeterminado (para as orquestras sob o regime de
direito privado ou sob o regime de associações da Lei 1901), ou com Contrato por
Tempo Determinado renovável a cada três anos (orquestras sob o regime da função
pública territorial).
As convenções do trabalho são definidas de maneira muito precisa: os músicos
devem prestar um certo número de serviços durante o ano (um serviço representa, por
exemplo, um ensaio ou um concerto), uma carga horária global de trabalho em ensaio,
em concerto ou em gravação; a duração máxima dos ensaios é definida, os tempos de
descanso são regulamentados, assim como o tempo de recuperação entre serviços; o
mesmo para os trajes de concerto, etc. A permanência representa, assim, uma atividade
no cotidiano em um espaço-tempo definido; ela é feita de ensaios (no sentido próprio do
termo), portanto de rotina4 (sem julgamento de valor, no sentido anglo-saxão do termo),
de estabilidade. O concerto poderia ser visto como um tempo de quebra de rotina.
Esses músicos profissionais também obedecem a uma organização precisa do
trabalho em termos de categorias e de estatutos. Além das funções administrativas, que
representam uma reserva de emprego não desprezível das orquestras, os empregos de
músicos distinguem-se em função do instrumento tocado, do estatuto de solista ou não e
da categoria de recrutamento. Esta é feita por concurso, mediante audição de músicos,
normalmente em várias etapas: com base em um programa imposto, às vezes com uma
obra à escolha, compreendendo uma última etapa em geral sobre “traços de
4
Cf. Adorno, Pierre Michel Menger, ibid.: “o caso emblemático dos músicos de orquestra ilustra essa
contramitologia do artista submetido às restrições de uma organização e que atribui a ela as desilusões de
um trabalho rotineiro e estritamente especializado, muito distante daquilo que entrevia nos longos anos de
aprendizagem orientados para a realização individual na carreira de solista.”
orquestra” (passagens solistas ao instrumento, particularmente perigosas e delicadas).
Portanto, os músicos disputam e são admitidos para um posto com um instrumento
determinado, um estatuto e uma categoria determinada, por exemplo, um posto de
Primeira trompa solo, categoria A. A orquestra inclui ainda várias famílias de
instrumentos, para os quais os empregos se distinguem. As cordas incluem os violinos,
altos, violoncelos e contrabaixos; elas ocupam o primeiro plano. Os sopros incluem
madeiras e metais; ficam no centro do cenário, primeiro as madeiras e logo atrás os
metais. As madeiras compreendem as flautas e piccolo, oboé e trompa inglesa,
clarinetes, entre os quais clarinete baixo, baixos e contrabaixos; os metais, as trompas,
trompetes e corneta, trombones e tubas. A última família é a das percussões (timbales,
xilofones, sinos, etc., incluído o piano); ela fica no fundo do cenário.
Para esquematizar um conjunto de posições muito variadas e muito
hierarquizadas de uma orquestra a outra, compreendendo escalões ordenados, podemos
destacar antes de tudo a oposição entre a maioria das cordas e dos sopros, sendo que as
primeiras incluem tuttistas e solistas, enquanto que os sopros são todos solistas por
definição dos postos. Os solistas compreendem particularmente os primeiros solistas,
que fazem as principais intervenções no instrumento e os segundos solistas, que
acompanham e apóiam o primeiro solista e o substituem caso ele falte. Entre as cordas,
os principais de grupo e sobretudo o spalla (Konzertmeister) são solistas. Entre os
instrumentos, cada grupo de instrumentos é separada segundo várias categorias de
solistas (1º oboé, 2º oboé, etc.). ao contrário dos solistas, os tuttistas nunca tocam uma
nota em solo, mas sempre com os membros de cada grupo de instrumentos; eles são
chamados também de “músicos da fila”.
As posições musicais dentro de uma orquestra são, portanto, bastante
hierarquizadas, conforme o papel musical e as categorias, geralmente quatro, e que
determinam a grade de salários (que evoluem também com a antiguidade). Essa
hierarquia coincide com a dos papéis musicais: os solistas são responsáveis em diversos
graus pela interpretação musical e pelo trabalho realizado em um grupo de
instrumentos, interlocutores mais ou menos diretos do maestro (ao contrário dos
tuttistas). A própria organização orquestral é muito estruturada entre pessoal
administrativo, artistas e maestro. Além disso, há outros músicos que tocam às vezes na
orquestra: os “suplementares” intervêm pontualmente e não são titulares na orquestra.

No universo da música erudita – e de forma ainda mais acentuada em relação


aos mundos do jazz ou da chamada música popular moderna – a situação das orquestras
sinfônicas ou líricas permanentes é bem particular. A maioria das orquestras de música
barroca ou dos conjuntos de música contemporânea funciona com músicos eventuais,
mas em geral com um núcleo duro de músicos que se reúnem para as mesmas
produções. Eles vivem um tipo de semipermanência, como mostra Pierre François, uma
“situação intermediária entre o emprego permanente e o engajamento efêmero”,
operando segundo uma “lógica de titularidade provisória”5.

Socializações, heranças e profissionalização

A formação dos chamados músicos clássicos é feita durante uma aprendizagem


de longuíssimo prazo, rigorosa, extremamente exigente e muito competitiva, que tem
como corolário a aquisição desde muito criança de uma técnica instrumental de alto
nível, que requer uma prática intensiva à margem e além da escola. Segundo a pesquisa
realizada com músicos intérpretes por Philippe Coulangeon6, a idade média de iniciação
é de 9 anos para a música erudita contra 12 anos para a música popular; contudo, os
conservatórios para o ensino “clássico” recomendam uma iniciação mais precoce (entre
5 e 7 anos). Paralelamente, os alunos de música costumam fazer sua formação escolar (e
depois seus estudos gerais) por correspondência; ou então estudam em Aulas com
Horários Adaptados (CHAM*) e alguns fazem um Baccalauréat especializado em
música (Bac F11). Quanto mais se avança na aprendizagem em instituições musicais
especializadas, seguindo um curso linear, mais os músicos se especializam (embora
exista um número cada vez maior de bacheliers). A formação compreende assim cursos
de formação musical (solfejo), cursos de instrumento, prática em aula de orquestra ou
música de câmara, ou mesmo análise musical, escrita ou harmonia, etc. Os aprendizes
de música, ao longo de sua escolaridade musical, passam cada vez mais horas no
“conservatório” e trabalhando seu(s) instrumento(s) em casa (até 6 horas ou mais por
dia para quem pratica de maneira intensiva, particularmente os instrumentistas de
cordas).
A própria formação se desenvolve dentro de estruturas de ensino especializado
bastante hierarquizadas, das escolas de música municipais aos Conservatórios

5
Pierre François, Le monde de la musique ancienne. Sociologie économique d’une innovation esthétique,
Paris, Economica, 2005, p. 166.
6
Philippe Coulangeon, op. cit., p. 118.
*
N. de T. Classes à Horaires Amenagés.
superiores: o ministério da Cultura registra 250 Escolas de Música Reconhecidas, 102
Escolas Nacionais de Música, 35 Conservatórios Nacionais Regionais, 2 Conservatórios
Nacionais Superiores de Música:

 2 CNSM - Conservatórios Nacionais Superiores de Música e de Dança:


cerca de 2.000 alunos (1.473 em Paris e 520 em Lyon).
 35 CRN - Conservatórios Nacionais Regionais metropolitanos: 51.098
alunos (91% de música e 9% de dança).
 102 ENM - Escolas Nacionais de Música e de Dança metropolitanas: 87.947
alunos (90% de música e 10% de dança).
 250 EMA - Escolas de Música Reconhecidas: 139.000 alunos em 2001-2002
(88% de música e 12% de dança).
Fonte: DEP, Ministère de la Culture et de la Communication, Chiffres clés 2005.

As instituições onde se formam músicos são organizadas, portanto, segundo uma


estrutura piramidal, e compreende passagens quase obrigatórias em certos CNR ou nos
CNSM. O percurso teórico do músico é um percurso balizado que compreende barreiras
temporais (limite de idade para chegar a certos níveis) e uma rarefação do número de
lugares e de “eleitos” ao longo do percurso. Assim, os músicos de orquestra geralmente
são diplomados por uma escola de música ou por um conservatório. Salvo para certos
lugares de solistas nas orquestras mais conceituadas, o “Prêmio” obtido no instrumento
não é exigido nos concursos, mas na prática constata-se que muitos o possuem. O nível
de exigência dos concursos varia em função do grau de visibilidade e de legitimidade da
orquestra. Assim, entre as três orquestras junto às quais realizei uma pesquisa7, observa-
se que: na Orquestra Nacional da Ópera de Paris, 81% dos músicos 8 tinham sido
contemplados pelo menos com um Primeiro Prêmio de instrumento de um dos CNSM
contra apenas 38% dos músicos da orquestra da Bretanha.
No universo erudito, a formação é fortemente enquadrada e institucionalizada, e
os percursos balizados, comparativamente à de intérpretes da chamada música popular.
Estes últimos têm uma formação mais prática, mas geralmente passaram por algum
curso. Constata-se, assim, entre todos os intérpretes, “uma maioria de músicos não
diplomados, uma minoria de músicos sem formação”9.
Já no universo “clássico”, constatam-se diferentes modos de socialização em
função dos eixos erudito/popular, masculino/feminino. Os trabalhos de Bernard

7
Cf. segunda parte metodológica do texto.
8
Do conjunto dos músicos (solistas e tuttistas).
9
Philippe Coulangeon, op. cit., p. 127.
Lehmann sobre a orquestra10 explicitam a diferenciação entre os modos de socialização
burguês e popular que repousam nas lógicas sociais da escolha do instrumento. O
recrutamento social dos instrumentistas de cordas distingue-se tradicionalmente do de
instrumentistas que tocam metais. Os primeiros provêm geralmente de meios sociais
favorecidos, ou mesmo burgueses; são formados em conservatórios e/ou receberam
aulas particulares. Os segundos são recrutados tradicionalmente nos meios populares,
em particular nos meios operários e mineiros do norte da França, e fazem sua
aprendizagem nas sociedades de música, orfeões, harmonias e fanfarras. Essas
instituições emprestam instrumentos e formam pela prática coletiva. “Chegar a Paris”
pode representar para certos músicos dos meios populares “um meio de escapar da
mina”. Esse recrutamento social diferenciado entre as cordas e os metais existe também,
em parte, entre os jovens músicos de orquestra; a origem social dos instrumentistas de
corda é mais elevada que a de metais. Quanto aos instrumentistas que tocam madeiras,
atualmente eles são recrutados mais nas classes médias superiores11. Assim, os
instrumentos veiculam a imagem de instrumentos “nobres” (como o violino) ou
“populares” (a tuba, por exemplo), mas igualmente de “masculinos” e “femininos”.
De fato, uma forte sexualização dos instrumentos define modos de socialização
distintos conforme os sexos12: do lado feminino, encontram-se instrumentos como a
harpa, a flauta ou o piano; do lado masculino, encontram-se os metais e os instrumentos
de sopro em geral, assim como os “grandes” instrumentos (contrabaixo). Essa
sexualização da imagem dos instrumentos, que orienta a escolha de um instrumento
por um aprendiz de música, menino ou menina, repousa tradicionalmente na relação
com o corpo: do lado do feminino, encontra-se a graça, mas sem visibilidade dos corpos
e das formas femininas, que envolve pouca ou nenhuma força, pouco sopro, nenhuma
saliva13, secreção ou transpiração; do lado masculino, a demonstração corporal de força
ou de potência (para “grandes” instrumentos como o contrabaixo ou a tuba), o sopro e
mesmo a saliva (trompete, trombone). Essas representações e imagens de instrumentos
condicionam fortemente a “escolha” do instrumento feita pela criança e pela
comunidade educativa (pais e professores). Essa sexualização dos instrumentos age
10
Bernard Lehmann, L’orchestre dans tous ses éclats, Paris La Découverte, 2002.
11
Cf. Hyacinthe Ravet, Les musiciennes d’orchestre, tese de Doutorado, Universidade Paris-X-Nanterre,
2000.
12
Idem e Hyacinthe Ravet, “Professionnalisation féminine et féminisation d’une profession”, Travail,
Genre et Sociétés, n°9, 2003, p. 173-195.
13
Ou condensação de ar quente e úmidona madeira que produz um gotejamento, quando se toca clarinete,
por exemplo.
então desde o início da formação do músico. A socialização instrumental é feita em
classes de homens ou de mulheres, onde se separam as sociabilidades masculinas ou
femininas, a aprendizagem de modos de desempenho instrumental (leve/forte, etc.).
Essas diferenças reaparecem em seguida na diferenciação de carreiras. De fato, o piano,
muito mais praticado pelas meninas, na maioria das vezes conduz ao ensino,
rarissimamente à orquestra. Assim, os modos de socialização se separam segundo os
eixos erudito/popular e masculino/feminino, que também estão presentes nos modos de
profissionalização.
Um outro fator de diferenciação das trajetórias – que atua tanto na primeira
socialização quanto na profissionalização – reside nas diferentes heranças musicais
recebidas ou não pelos músicos. Veremos no exemplo das mulheres clarinetistas que
aprenderam a tocar um instrumento visto tradicionalmente como masculino e que
detalharemos na segunda comunicação sobre os métodos, as fontes (principalmente
relatos de itinerários e arquivos) e a análise que produziram esses resultados. A herança
musical e o nascimento da vocação têm assim duas faces. A primeira é a do “herdeiro”,
no sentido identificado por Bernard Lehmann nos músicos de orquestra14: os músicos
cujos pais, ou um deles, também são profissionais da música têm a facilidade de quem
foi criado nesse meio e conhece implicitamente suas regras. Entre as mulheres
clarinetistas encontradas, algumas são filhas de musicistas profissionais. Mas o
patrimônio musical pode ser transmitido de outra maneira. As outras “herdeiras” – e
esta é a segunda face do herdeiro – são filhas de pai músico amador. Algumas se
iniciaram no clarinete com seu pai, clarinetista, que foi portanto seu primeiro
professor. Para muitas dessas “herdeiras”, filhas de pai amador, a prática da música
se desenvolveu primeiramente em família, com os irmãos e irmãs (ou mesmo com tios,
primos e primas), acompanhando juntos os ensaios da harmonia da vila ou da
cidadezinha.
De fato, muitos músicos foram criados em um ambiente musical proporcionado
pela prática dos pais, e a maioria aprendeu a tocar em família ou em um ambiente
próximo, ou em um ambiente de melômanos. A título de comparação, 58% dos músicos
intérpretes (música erudita e popular) tiveram músicos profissionais ou amadores em
seu círculo familiar15. Fortes socializações musicais primárias e depois secundárias, ao
mesmo tempo familiares, escolares, em instituições musicais, e grupais repercutem na
14
Cf. Bernard Lehmann, op. cit.
15
Philippe Coulangeon, op. cit., p. 143.
profissionalização e influem na conformação das trajetórias.
As formas de profissionalização e de carreiras distinguem-se segundo o universo
musical, a origem social e o sexo do músico. Constata-se de fato uma profissionalização
diferenciada entre músicos permanentes e eventuais, entre os universos erudito e
popular. No universo da chamada música popular, uma grande variedade de situações
de emprego e de modos de profissionalização engendra perfis de atividade variados.
Philippe Coulangeon distingue assim seis perfis, da eventualidade multi-inserida,
“feliz”, às situações mais precárias. No universo erudito, o processo de
profissionalização se concretiza quando da formação superior: ele pode conduzir à
orquestra e/ou ao ensino em estruturas especializadas, ou mesmo, para alguns raros
músicos, a uma carreira de concertista internacional. O ingresso na orquestra passa por
uma socialização secundária em um viveiro de “grandes alunos”. Nesse meio de
interconhecimento, onde os músicos com lugar nas orquestras geralmente acumulam
esse emprego com a função de professor em um conservatório, o circuito é bastante
fechado no nível mais alto. Conseqüentemente, é preciso trabalhar com esses “grandes
professores” que compartilharão sua experiência na orquestra, fazer estágios, adquirir
experiência como “suplementar” servindo de reforço em uma grande orquestra
permanente, atuar em troca de cachê. O desafio consiste em adquirir experiência, pois
esta é cada vez mais exigida nos recrutamentos para orquestra, o que parece paradoxal
aos aspirantes à profissão, já que a formação para os ofícios da orquestra está apenas
começando a se desenvolver (com formações particulares nas instituições superiores).

Além disso, os músicos não passam pela mesma profissionalização dependendo


de sua origem social, diferença que se nota principalmente em função da posição
ocupada na orquestra. De maneira geral, quase 40% dos músicos intérpretes,
considerados todos os campos musicais, são oriundos das classes superiores16. Na
orquestra, o recrutamento social é hierarquizado dos metais às cordas, passando pelas
madeiras. Nas três orquestras que pesquisei mediante questionário (1998-99), os
músicos cujos pais pertenciam à categoria socioprofissional dos “altos funcionários e
profissões intelectuais superiores” representavam 64% das cordas e cerca de 30% das
madeiras, enquanto que os metais geralmente eram filhos de pais pertencentes à
categoria dos “operários” (30% dos casos). Assim, para a orquestra como o
recrutamento social mais seletivo, a Orquestra Nacional da Ópera de Paris, os músicos

16
Ibid., p. 110.
cujos pais são membro da categoria socioprofissional dos “altos funcionários e
profissões intelectuais superiores” representam 66% das cordas, 57% das madeiras, e
apenas 16% dos metais.

Quadro 1: Origem social dos músicos da Orquestra Nacional da Ópera de Paris


PCS du père Cordes Bois Cuivres Percussions TOTAL
Profissão do pai Cordas Madeiras Metais Percussão
N=84 N=23 N=19 N=9 N=135
Agriculteurs exploitants 1% 4% 0% 0% 2%
Agricultores exploradores
Artisans, commerçants, chefs 11% 0% 16% 11% 10%
d’entreprise
Artesãos, comerciantes, diretores de
empresa
Cadres et professions 66% 57% 16% 44% 56%
intellectuelles supérieures
Altos funcionários e profissões
intelectuais superiores
Professions intermédiaires 13% 21% 21% 22% 16%
Profissões intermediárias
Employés 5% 4% 16% 11% 7%
Empregados
Ouvriers 0% 4% 32% 11% 6%
Operários
Sans activité professionnelle 2% 0% 0% 0% 2%
Sem atividade profissional
Non réponse 2% 9% 0% 0% 3%
Não resposta
TOTAL 100% 100% 100% 100% 100%
Fonte: Questionário passado aos músicos de três orquestras permanentes francesas, in Hyacinthe Ravet,
Les musiciennes d’orchestre, tese de Doutorado, Universidade Paris-X- Nanterre, 2000, p. 557.

Na análise das hierarquias sociais e musicais que operam na orquestra, Bernard


Lehmann mostra uma divisão muito forte entre filhos de músicos e de não-músicos,
sendo que os primeiros são mais preparados para o ofício de músico de orquestra e
vêem isso mais como uma “evidência”. Em compensação, ele revela um paradoxo para
os filhos de não-músicos. Os instrumentistas de cordas de origem social mais elevada
são freqüentemente tuttistas, e portanto ocupam postos de menor responsabilidade no
plano musical e com as remunerações mais baixas. Já os sopros e sobretudo os metais
de origem social geralmente popular geralmente ocupam postos de solistas, portanto de
maior responsabilidade no plano musical e com as melhores remunerações. Bernard
Lehmann analisa esse paradoxo como uma “inversão de hierarquias”, em que os
“promovidos” – os metais de origem popular em postos de solistas – ocupam posições
mais elevadas que os “rebaixados” – instrumentistas de cordas de origem social mais
elevada que ocupam uma posição de músico de fila na orquestra e estão decepcionados
em relação às suas ambições iniciais de solistas.
Além disso, muitos músicos de orquestra são também professores em escolas de
música, intérpretes de música de câmara, músicos de estúdio, por exemplo. Para esses
músicos “integrados”, no sentido de Becker, a segunda atividade é importante aos seus
olhos pois dá sentido à primeira. Assim, instrumentistas de cordas se investem na
música de câmara e em particular no quarteto (muitas vezes sem remuneração
correspondente ao trabalho efetuado), paralelamente à sua atividade orquestral, como
compensação para se sentirem músicos de verdade e não apenas “executantes” 17. A
multiatividade aqui assume um sentido bem diferente que no caso dos músicos
eventuais, que têm um estatuto precário na chamada música popular.

Carreiras de musicistas

Se a profissionalização dos músicos se distingue em função do universo musical,


do estatuto do emprego e da origem social, ela também conhece formas sexualmente
diferenciadas. De fato, a distribuição sexuada dos instrumentos de música engendra
conseqüências na profissionalização futura dos intérpretes18. Um estudo realizado com
antigos alunos de dois Conservatórios Superiores de Música de Paris e de Lyon mostra
que homens e mulheres não têm nem a mesma profissionalização, nem as mesmas
carreiras, sobretudo “no acesso às posições que asseguram mais notoriedade e melhores
remunerações: as mulheres costumam ser muito menos profissionalizadas nos ofícios de
execução que seus colegas do sexo masculino”19. Entre as musicistas, dois terços (66%)
se tornaram professoras, enquanto uma a cada cinco ocupa uma função de intérprete
(22%); em contrapartida, seus colegas do sexo masculino tornaram-se na maioria dos
casos músicos de orquestra (40%) ou solistas, e metade professores (50%)20. Eddy
Schepens constata igualmente diferenças importantes segundo as disciplinas de origem.
A mais forte profissionalização dos homens em relação às mulheres é observada entre
os instrumentistas de cordas e mais ainda de madeiras (sem falar dos metais), para os
ofícios de orquestra. Ao contrário, a maior profissionalização das mulheres em relação

17
É o que Bernard Lehmann analisa em sua obra. Voltaremos a isso nas conclusões. Ver também uma
visão mais nuançada: Hyacinthe Ravet, “En concert... Fête et défaite des musiciens”, La fête comme
jouissance esthétique, A.-M. Green (dir.), L’Harmattan, Paris, 2004, p. 281-302.
18
Sem contar que as musicistas, considerados todos os campos musicais, são antes de tudo cantoras.
Voltaremos a isso a propósito da chamada música popular.
19
Eddy Schepens, Les anciens étudiants des Conservatoires supérieurs de musique de Paris et de Lyon
(de 1979 a 1990), Paris, ministère de la Culture, DEP, 1995, [n.p.].
20
Essas cifras ocultam também uma grande diversidade, pois os homens, mais do que as mulheres,
acumulam postos de músicos e orquestra e de professores.
aos homens é observada entre as instrumentistas que tocam piano ou teclado, e isso em
favor do ensino.
Historicamente, as mulheres tiveram dificuldade de ser recrutadas como
musicistas intérpretes profissionais, e foram deixadas de lado para as necessidades da
ópera e, portanto, nos ofícios do canto; o exercício da música para elas era sobretudo
diletante21, para enfeitar os lares burgueses. Na França, começam a fazer parte das
orquestras profissionais apenas entre finais dos anos 1960 e início dos anos 1970. É
preciso chamar a atenção para o papel do biombo nas audições; esse biombo ou cortina,
que impede que o júri veja o candidato, permitiu a entrada de musicistas nas orquestras,
às vezes de maneira não desejada pelos músicos e pelos maestros em exercício
(principalmente nas orquestras militares com a abertura legal do exército às mulheres,
mas também nas orquestras civis).

Assim, várias orquestras recrutaram mulheres acreditando recrutar homens, o


que acabou provocando alguns escândalos ligados a tentativas de anular concursos em
que alguma musicista tinha sido recrutada (em particular aos postos de solistas)22. Da
mesma maneira, um estudo americano mostra que a presença de um biombo explica em
boa medida a feminização progressiva das orquestras americanas23.
Atualmente, nas orquestras profissionais francesas, as musicistas representam
um terço dos efetivos, com disparidades importantes segundo o grupo de instrumentos.
Em 2001, segundo os dados apresentados pela AFO (Associação francesa de
Orquestras), as mulheres representam 87,5% dos harpistas e 54,6% dos violinistas
contra uma presença quase nula entre os instrumentas praticantes da maior parte dos
metais, em uma proporção de 43,6% das cordas, 15,6% das madeiras, 2% dos metais,
24,7% da percussão24. Ora, os instrumentos de sopro e as percussões pertencem às
categorias de solistas, enquanto que as cordas empregam tuttistas e solistas. Além disso,
mesmo quando são majoritárias em grupo de instrumentos, é mais difícil que as
mulheres se tornem principais de um grupo de instrumentos. Por exemplo, para o grupo
dos violinos, as mulheres representam mais da metade dos músicos e menos de um

21
Cf. Françoise Escal, Jacqueline Rousseau-Dujardin, Musique et différence des sexes, Paris,
L’Harmattan, 1999.
22
Cf. Hyacinthe Ravet, “L’accès des femmes aux professions artistiques. Un double droit d’entrée dans le
champ musical”, in Droits d’entrée, publicação dirigida por G. Mauger, a ser lançada.
23
Claudia Goldin, Cecília Rouse, “Orchestrating Impartiality: The impct of “Blind” Auditions on Female
Musicians”, The American Economic Review, septembre 2000, p. 715-741.
24
Incluídos a harpa e os teclados.
quarto dos solistas. Conseqüentemente, nas orquestras profissionais francesas, mais de
oito a cada dez solistas são homens25. Para o conjunto das orquestras francesas, a
divisão entre solistas e tuttistas é estritamente inversa para os homens e para as
mulheres: dois terços das mulheres são tuttistas e um terço, solista; entre os homens,
dois terços são solistas e um terço, tuttista. Portanto, as mulheres ainda enfrentam
obstáculos para ter acesso à responsabilidade, como solistas e principais, e mais ainda
como maestros.

Gráfico 1: Proporção de homens e de mulheres entre os tuttistas e os solistas


em orquestras permanentes

Fonte: Questionário passado aos músicos de três orquestras permanentes francesas, in Hyacinthe Ravet,
Les musiciennes d’orchestre, tese de Doutorado, Universidade Paris-X- Nanterre, 2000, p. 544.

A esse respeito, o caso das mulheres maestros é paroxístico. Historicamente, em


particular por tradição musical, as mulheres dirigem mais coros26 do que orquestras. E
quando dirigem instrumentistas, são orquestras de câmara, de música barroca ou ainda
de música contemporânea. É bem raro dirigirem uma orquestra sinfônica ou lítica,
sobretudo quando é permanente, e mais ainda como maestro permanente ou diretor
musical. É mais fácil que lhes seja confiada a direção de obras com coro ou para o
público jovem, ou ainda de música contemporânea. Uma última possibilidade é
dirigirem um conjunto que criaram, como Laurence Equilbey com o Coro Accentus ou
Dominique My com o Conjunto Fa (música contemporânea) ou ainda a clavecinista e
regente de canto Emmanuelle Haïm, que fundou o Concerto de Astrée.
Atualmente, na França, existem duas mulheres diretoras musicais de uma
orquestra permanente: Graziella Contratto à frente da Orquestra dos Países de Savoie
(nomeada em 2002, em função em setembro de 2003) e Susanna Mälkki à frente do
conjunto InterContemporâneo (nomeada em 2005, primeiros concertos em fevereiro de

25
Um terço das mulheres é solista e dois terços são tuttistas. As proporções são estritamente inversas para
os homens.
26
Vemos aqui mais uma vez a relação privilegiada com o canto.
2006). Nos dois casos, trata-se de musicistas não francesas. A primeira dirige uma
orquestra de 20 músicos composta quase que exclusivamente de cordas (apenas um
oboé para 19 cordas). A segunda dirige um conjunto de música contemporânea com 31
solistas. A experiência recente de Claire Gibault, maestrina pioneira na França que foi a
primeira a obter um Prêmio de Direção de orquestra no CNSM de Paris em 1969,
mostra que as mulheres ainda

têm um longo caminho a percorrer: a Orquestra Filarmônica da Radio-France recusou-


se a trabalhar sob sua direção em 2005. Essa recusa irritou Jean-Pierre Brossman,
diretor do Teatro do Châtelet27; a orquestra justificara sua recusa por um problema de
indisponibilidade. Ele então cancelou a programação dessa orquestra e apoiou Claire
Gibault, oferecendo-lhe a direção de uma outra orquestra. A organização do trabalho
orquestral é assim perpassada de hierarquias sociais e caracteriza-se por uma divisão
social das tarefas e papéis que condiciona as carreiras dos músicos(as).
Considerando-se a profissão de músico de orquestra no conjunto dos intérpretes
de música e também entre as outras artes, contata-se que o universo dos intérpretes é
feminizado diversamente.. As mulheres representam 24% dos músicos, metade dos
atores e constituem dois terços dos efetivos de dançarinos28.

Quadro 2: Distribuição por sexo das categorias de artistas em 2001

Hommes Femmes
Homens Mulheres
Danseurs 32 % 68 %
Dançarinos
Musiciens 76 % 24 %
Músicos:
Comédiens 54 % 46 %
Atores
Fonte : Caisse des congés spectacle.

Cada vez mais, observam-se disparidades importantes conforme os universos


musicais: as mulheres têm uma participação de 44% no mundo da música erudita e de
17% na chamada música popular29.

27
Cf. artigo de Marie-Aude Roux “Claire Gibault, refusée par l’orchestre de Radio-France”, Le Monde,
dimanche 23-lundi 24 octobre 2005, p. 19.
28
Cf. Philippe Coulangeon, Hyacinthe Ravet e Ionela Roharik, “Gender differentiated effect of time in
performing arts professions: Musicians, actors and dancers in contemporary France”, Poetics, volume 33,
Issues 5-6, 2005, p. 369-387.
29
Cf. Hyacinthe Ravet e Philippe Coulangeon, “La division sexuelle du travail chez les musiciens
français”, Sociologie du travail, n°3, vol. 45, 2003, p. 361-384.
Quadro 2: Taxa de feminização dos músicos por atividade e por campo de especialização musical (1)
Musique Musiques
Ensemble N=
savante populaires Conjunto
Música Música
erudita popular
Instrumentistes 39% 8% 16% 1186
Instrumentistas

Chanteurs (2) 55% 58% 57% 298


Cantores(2)

Ensemble 44% 17% 24% 1484


Conjunto
Fonte: CESTA/DEP Ministère de la Culture et de la Communication, 2001.
Campo: apenas instrumentistas e cantores
(1)
Em razão do baixo número de efetivos envolvidos, os chefes de coro e chefes de orquestra
não são considerados no quadro.
(2)
i.e., cantores, artistas líricos, artistas de variedade.

Esse fenômeno de segregação também conduz as musicistas mais raramente aos


ofícios de interpretação, ao contrário dos ofícios de ensino, acantonando-as igualmente
em determinadas atividades. Os trabalhos que realizamos com Philippe Coulangeon,
comparando a situação respectiva dos músicos intérpretes franceses homens e mulheres,
incluindo todos os campos musicais, mostram que: às musicistas cabe o papel de
cantoras; aos músicos, os papéis de instrumentistas, de solista e de maestro. De maneira
geral, as musicistas ocupam estatutos mais precários que os homens e, na média têm
remunerações menores.
A exemplo do mundo do trabalho em seu conjunto, o universo musical vive um
duplo fenômeno de segregação. O mundo da chamada música popular caracteriza-se
essencialmente por um fenômeno de segregação horizontal30, que acantona as
musicistas essencialmente no papel de cantora e determina expectativas em relação a
elas fundadas em estereótipos corporais opondo a feminilidade (juventude, sedução) e a
masculinidade (mito do artista, desvio). No mundo da chamada música erudita, as
musicistas estão mais presentes como instrumentistas, e dificilmente têm acesso às
posições de autoridade (solista, maestro); esse segundo modelo, que repousa sobre os
estereótipos masculinos de uma autoridade apreendida como masculina, cria um
fenômeno de segregação vertical31. As pesquisas realizadas por Marie Buscatto no meio
do jazz mostram, aliás, que as duas formas de segregação podem se acumular32: nesse

30
Diferenciação de empregos, de ofícios e de setores assumidos.
31
Diferenciação de carreiras e de seu desenvolvimento.
32
Marie Buscatto, “Chanteuse de jazz n’est point métier d’homme. L’accord imparfait entre voix et
instrument”, Revue Française de Sociologie, 2003, n° 44-1, p. 35-62.
universo, as mulheres são confinadas essencialmente aos ofícios do canto e situam-se
sistematicamente no patamar mais baixo da hierarquia do prestígio e dos ganhos.
Assim, no campo musical, onde os papéis e as tarefas são a priori menos sexuados por
definição do que entre os atores e os dançarinos, homens e mulheres não vivem, porém,
a mesma profissionalização nem as mesmas carreiras.

Para concluir

Entre os artistas intérpretes de música, a profissionalização se diferencia


conforme os universos (música erudita/música popular), o estatuto de atividade
(permanentes/eventuais), o sexo (homens/mulheres). Contudo, no mundo da orquestra
compartilham-se características comuns; uma construção institucionalizada de carreiras,
própria do campo “clássico”, uma socialização musical primária em geral muito
marcada por um enquadramento familiar, uma socialização “antecipatória” para certos
músicos (onde as atividades pré-orquestrais, da harmonia municipal à Orquestra dos
Prêmios dos CNSM, formam a orquestra), uma forte socialização secundária que leva a
apreciar ou a depreciar a atividade orquestral e a desenvolver mais ou menos atividades
extra-orquestrais. Esses traços marcam as trajetórias dos músicos, mesmo que as
socializações e profissionalizações masculinas e femininas distintas conduzam à
diferenciação das carreiras de músicos homens e mulheres, e mesmo que percursos mais
atípicos conduzam às vezes também à orquestra.
Uma última observação é que a profissão de músico de orquestra parece estar em
busca de uma identidade de “artista” sempre em jogo, presa nas contradições aparentes
de uma atividade que oscila entre rotina e o extraordinário, entre cotidiano e exceção.
Por um lado, o trabalho é marcado pelo caráter rotineiro da atividade (repetições no
sentido próprio do termo, “serviços” que o músico deve prestar), pelo “labor”
instrumental às vezes chamado ironicamente de trabalho “em série” (particularmente
para os tuttistas), pela dependência em relação ao maestro e à administração da
orquestras. Certos músicos definem-se às vezes como “funcionários da música”, ou
mesmo como “Ossos da semicolcheia”; eles são vistos dessa maneira por músicos que
têm um estatuto de emprego mais precário, e para os quais os músicos de orquestra
desempenham às vezes um papel de contramodelo. Por outro lado, muitos músicos de
orquestra relatam o momento intenso do concerto, o prazer de tocar e de atuar juntos, o
reconhecimento por alguns do “privilégio” de poder “viver sua paixão” e de “viver de
sua paixão”. Portanto, os músicos estão presos em uma ambivalência, enquanto sua
identidade profissional parece estabelecida a priori, como artistas intérpretes de
música, nomeados como tal pelas convenções coletivas. Mas o estatuto permanente da
atividade, sob a autoridade de um maestro e dentro de uma organização estabelecida,
parece entrar em contradição com as representações associadas ao mito da vida de
artista para uma parte dos músicos. Essa identidade artística buscada insere-se à sua
maneira no desafio lançado pelas profissões artísticas à análise sociológica33...

33
Para retomar os termos de Eliot Freidson, que assinala a particularidade do “trabalho por ‘vocação’”,
isto é, que envolve um amor pela atividade e cujo produto é a obra no sentido cultural, em oposição ao
trabalho no sentido técnico e econômico. E, diz ele, “o que é central na noção de trabalho ‘por vocação’, é
a idéia de que sua execução não obedece ao desejo ou à necessidade de um ganho material”. Ora, há uma
ambigüidade para as profissões que E. Freidson chama de “profissões aplicadas tradicionais” (como as
profissões liberais ou, no caso, os músicos profissionais de orquestra) na medida em que “todas requerem
de seus membros o amor do saber sobre o qual repousam, a competência – o interesse voltado ao seu
trabalho –, a vontade de colocar o interesse de seus clientes antes do seu. Mas o fato de ter de ganhar a
vida pelo exercício dessa atividade profissional cria um conflito de interesse que pode comprometer a
qualidade de seu envolvimento.” Cf. Eliot Freidson, “Les professions artistiques comme défi à l’analyse
sociologique”, Revue Française de Sociologie, XXVII, 1986, p. 437-443.
SEMINAIRE INTERNATIONAL « TRAVAIL ET FORMATION PROFESSIONNELLE
DANS LE DOMAINE DE LA CULTURE : PROFESSEURS, MUSICIENS, DANSEURS »
Université d’Etat de Campinas UNICAMP, Sao Paulo, Brésil, 18-20 avril 2006

Hyacinthe Ravet
Université Paris Sorbonne – Paris IV

Carrières de musicien-nes
Carreiras de músicos/musicistas

Les méthodes
Os métodos

Esta comunicação tem como objetivo apresentar a vertente empírica dos


resultados de pesquisas apresentadas, a maneira como diferentes técnicas de pesquisa de
campo foram utilizadas, produzindo ao mesmo tempo dados quantitativos e qualitativos,
em função de problemáticas mobilizadas. Para fazer um rápido apanhado dessas
pesquisas, trata-se antes de tudo de uma tese que realizei sobre a maneira como uma
pessoa se torna (ou não) músico(a) de orquestra, que levou a trabalhos sobre a profissão
de músico intérprete e à sua feminização; e posteriormente a pesquisas realizadas em
colaboração com Philippe Coulangeon sobre a divisão do trabalho entre os músicos
franceses, incluindo todos os campos da prática, e com Philippe Coulangeon e Ionela
Roharik sobre a comparação entre intérpretes das artes do espetáculo (músicos, atores e
dançarinos). Finalmente, falarei de uma pesquisa em curso sobre a direção de orquestra
e o trabalho realizado por um maestro e músicos. As questões do lugar das musicistas
no universo considerado, de seu acesso à prática profissional e de sua situação de
trabalho orientaram os procedimentos que adotamos nos trabalhos aqui apresentados. O
primeiro eixo de pesquisa procura determinar quem são os músicos(as) das orquestras
profissionais da França (o lugar). O segundo analisa desde quando e como as musicistas
têm acesso ás orquestras profissionais na França (o acesso). Finalmente, um terceiro
eixo de estudo trata da maneira como se realiza a “acomodação dos sexos” entre os
músicos (as modalidades do trabalho no cotidiano).
Quem são os músicos(as) das orquestras profissionais da França?

Quando comecei meu trabalho sobre os músicos de orquestra, havia muito


poucos trabalhos sobre as orquestras. As pesquisas existentes permitiam traçar os
contornos do campo orquestral e compreender seu funcionamento, como a tese de
doutorado de Bernard Lehmann (EHESS, 1995), publicada anos mais tarde em
L’orchestre dans tous ses éclats. Ethnographie des formations symphoniques, La
découverte, 200234 e os de Alfred Willener, La pyramide symphonique. Exécuter,
créer? Une sociologie des instrumentistes d’orchestres, Seismo, Zürich, 1997 (dados
principalmente sobre a Suíça). Os dados quantitativos existentes tinham limites, em
particular os da pesquisa realizada por Xavier Dupuis para o Ministério da Cultura junto
a músicos de 30 formações subvencionadas repertoriadas (1993)35. De fato, a taxa de
resposta ao questionário passado aos músicos de 30 formações permanentes foi de 13%.
Esse questionário dirigido aos músicos era distribuído por meio da administração e de
regentes de orquestra, enquanto em muitas delas havia um conflito mais ou menos
aberto entre a administração e os músicos.
Dadas as dificuldades encontradas por X. Dupuis, adotei procedimentos
diferentes em minha pesquisa por questionário realizada em 1998-99: o questionário era
auto-aplicado, mas era eu quem o apresentava aos músicos e recolhia diretamente (com
a concordância da administração mas sem passar por ela). Decidi também aplicar o
questionário aos músicos de três orquestras permanentes, segundo o princípio de uma
amostragem comparativa restrita. Os critérios de escolha foram os seguintes: a história e
a antiguidade da orquestra (antiga/recente), sua posição geográfica (centro/periferia ou
Paris/Província) e sua vocação (lírica/sinfônica). Assim, entrevistamos os músicos da
Orquestra Nacional da Ópera de Paris, ou seja, uma orquestra parisiense, a mais antiga
das orquestras francesas (oriunda do Teatro Nacional do Ancien Regime), que é uma
orquestra lírica composta de 165 músicos. No outro extremo, entrevistei os músicos da
Orquestra da Bretanha, a mais recente das orquestras regionais, orquestra sinfônica do
tipo “formação Mozart”, compreendendo 45 músicos. Entre ambas, fruto da
descentralização, pesquisei a Orquestra Nacional de Lille, uma orquestra criada nos

34
Ver também Bernard Lehmann, ‘L’envers de l’harmonie”, Actes de la recherche en sciences sociales,
n°110, 1995, p. 3-21.
35
Les musiciens professionnels d’orchestre, Ministère de la culture et de la francophonie, Directions de
l’dministration générale, Département des études et de la prospective, Laboratoire d’économie sociale
(Unidade de pesquisa associada ao CNRS), Univesité de Paris I (Panthéon-Sorbonne), 1993.
anos 1970, de Província., sinfônica, composta de 99 músicos. Além disso, uma presença
assídua junto aos músicos permitia responder às dúvidas, observar os ensaios, os
momentos informais e os concertos. Minha prática pessoal de musicista e o fato de
conhecer alguns músicos de orquestra entre os entrevistados facilitou a troca e a
participação dos músicos. A taxa de resposta ficou assim entre 75% e 81% segundo as
orquestras (em torno de 300 questionários recolhidos, ou seja um número de
respostas equivalente ao de Xavier Dupuis para 30 formações). A aplicação de um
questionário a uma amostra restrita associada à observação revelou-se, portanto,
bastante frutífera, mesmo considerando que as populações de artistas têm fama de
resistir à objetivação sociológica.
Além disso, a pesquisa procurava identificar o lugar das musicistas nas
orquestras. O questionário aplicado às três orquestras destinava-se então a conhecer
melhor as situações respectivas dos músicos de cada sexo, seus percursos e seus pontos
de vista sobre o trabalho orquestral, pois quase não existiam dados sobre a composição
sexual nas orquestras que permitissem saber quantas mulheres havia, desde quando, em
que posto, etc. Por isso, procurei estabelecer primeiramente uma taxa de feminização de
cada orquestra e dos diferentes grupos de instrumento a partir dos nomes identificados
na lista de músicos de orquestra elaborada pela Associação Francesa de Orquestras, de
modo que havia dúvidas quanto a nomes ao mesmo tempo masculinos e femininos.
Mobilizamos aqui alguns informantes, o que permitia saber se havia uma mulher
presente entre os metais em tal orquestra, por exemplo (caso raro). Posteriormente,
confrontamos os dados coletados por questionário com aqueles obtidos em 2001 junto à
Associação Francesa de Orquestras: pirâmide de idades distinguindo homens e
mulheres, taxa de feminização por grupo de instrumento36.
A questão do lugar das musicistas nas orquestras, e depois no conjunto das
profissões musicais, induz portanto às seguintes perguntas: quem, como, onde, em que
posto? Essas perguntas conduzem a um necessário trabalho de recenseamento para
saber que lugares ocupam respectivamente homens e mulheres nesses universos
artísticos. Já apresentamos esses resultados antes: presença de 31,9% de mulheres nas
orquestras, distribuição diferenciada por instrumento entre solistas e tuttistas (oito entre
dez solistas são homens), etc. Esses dados permitem estabelecer a distribuição de papéis
e o lugar das mulheres nesse universo. Em seguida, um levantamento como aquele

36
Hyacinthe Ravet, “Professionnalisation féminine et féminisation d’une profession”, Travail, Genre et
Sociétés, n°9, 2003, p. 173-195.
realizado com os músicos intérpretes e a existência de dados referentes a todos os
domínios musicais, a partir dos quais pudemos trabalhar, permitem trazer à luz
fenômenos mais gerais. Assim, no artigo escrito em colaboração com Philippe
Coulangeon sobre a divisão sexual do trabalho entre os músicos franceses37, mostramos
como um duplo fenômeno de segregação, segregação horizontal e segregação vertical,
caracterizava o campo da música popular e da música erudita. Esses dados importantes
informam sobre o lugar ocupado pelas musicistas e as situações respectivas de homens e
mulheres. Contudo, só permitem responder parcialmente à questão do “por que”: como
explicar as diferenças entre instrumentos? Que conseqüências elas têm sobre a
distribuição entre solistas e tuttistas e o papel de cada um(a), sobre a divisão de tarefas
nesse universo? A questão do acesso nesse caso é esclarecedora.

Desde quando e como as musicistas têm acesso a orquestras profissionais na França?

Para apreender a problemática do acesso e responder à questão do “como e


desde quando as mulheres têm acesso aos diferentes postos/funções”, um retorno à
história das musicistas é muito instrutiva: na esfera pública, as mulheres foram
essencialmente cantoras e em uma proporção mínima instrumentistas até o século XX.
Comparativamente à questão do lugar, certos fenômenos ligados ao acesso são mais
invisíveis, difíceis de mensurar, como por exemplo a importância do “direito de
ingresso” na profissão de músico de orquestra. Assim, analisar itinerários e
acompanhar a feminização da prática de um instrumento tradicionalmente considerado
como masculino e de um papel historicamente assumido pelos homens foi uma forma
de abordagem esclarecedora. O clarinete foi adotado como um “indicador social” das
transformações da orquestra: entre cordas e metais, entre agudo e grave, esse
instrumento solista na orquestra (e que faz parte das escolhas de interpretação de uma
obra) experimenta uma forte feminização de sua aprendizagem em conservatório desde
os anos 1970. Contudo, ainda são poucas as mulheres que tornam-se principais em
orquestra (cinco em uma centena para as orquestras permanentes francesas).
A pesquisa realizada em tese acompanhou a trajetória de todas as mulheres
clarinetistas que passaram por uma classe de Conservatório Superior (Paris ou Lyon)
desde que existe uma classe de clarinete: após uma demarcação nos diários de classe do

37
Cf. Hyacinthe Ravet e Philippe Coulangeon, “La division sexuelle du travail chez les musiciens
français”, Sociologie du travail, n°3, vol. 45, 2003, p. 361-384.
CNSM e nas listas de premiados, no exame de admissão e no êxito dessas musicistas no
Prêmio de instrumento, esboçamos um panorama da situação profissional dessas
musicistas como professoras, membros de orquestra ou outra, tudo isso cotejado
com os dados obtidos junto a informantes (professores e músicos de orquestra em
exercício). Depois, recolhi 24 relatos de itinerários: a grande maioria das musicistas que
passaram por um dos CNSM foi entrevistada, musicistas à espera de um posto e
clarinetistas em formação; essas entrevistas biográficas aprofundadas abordam sua
trajetória, sua escolaridade, suas tentativas de conseguir um posto e os concursos de que
participaram com ou sem êxito, seu ingresso no posto atual se for o caso, a percepção de
seu itinerário como mulher, sua situação e sua identidade de músico(a), etc.
Era importante entrevistar ao mesmo tempo as que tinham conseguido chegar a
um posto de musicista de orquestra e as que não chegaram (por escolha ou não) para
entender melhor como uma mulher se torna (ou não) musicista de orquestra. Esses
dados também foram comparados com os levantamentos sobre a presença atual de
meninas nas classes de instrumento (dados coletados para Paris). Esse dispositivo
permitia captar o processo de feminização da prática de um instrumento, de sua
aprendizagem à sua prática como profissional no universo erudito. Para as clarinetistas,
o acesso à orquestra como musicistas profissionais realiza-se em várias etapas::
primeiramente, depois de convencer o meio educativo (familiar e escolar) a aceitar a
escolha do instrumento, a socialização se realiza em uma classe de instrumento onde há
apenas homens para as pioneiras durante uma aprendizagem lenta e competitiva; depois
é preciso entrar em um CNSM, e em seguida prestar concursos em orquestra e aos
postos de professor, sendo mais ou menos apoiadas pela comunidade educativa;
posteriormente, a audição, com ou sem a presença de um biombo, é um momento
crucial, em um ambiente altamente competitivo; passando em um concurso, é preciso
ainda adaptar-se à vida na orquestra, em alguns casos, para as pioneiras, como primeira
mulher entre os instrumentistas de sopro. A história coletiva das mulheres clarinetistas
se desenvolve em três ondas38: a primeira, a das “pioneiras” que foram as primeiras a
tocar o instrumento como profissionais; a segunda vê a chegada de “discretas” (pouco
loquazes quanto ao seu estatuto de mulheres na orquestra e como clarinetistas); depois,
uma última onda, a das “paritárias”, reivindica o mesmo acesso que os homens à
orquestra e o mesmo reconhecimento como musicistas capazes de assumir postos de

38
Hyacinthe Ravet, “Professionnalisation féminine et féminisation d’une profession”, op. cit, p. 178-179.
solistas. Cada “geração” identificada conquistou uma posição, que foi consolidada na
“geração” seguinte: ensino, depois orquestra militar ou assemelhados (harmonia) e em
seguida orquestra civil, para as quais a presença de um biombo nos concursos foi
importante.
Na análise do “direito de ingresso” das mulheres na profissão de músico de
orquestra, a consulta a arquivos de conservatórios permitiu estabelecer os limites do
acesso àss diversas classes de instrumento nas estruturas superiores de formação. Os
artigos da imprensa também trazem à luz as polêmicas sobre a aceitação ou não de
mulheres em orquestras e os escândalos do fim dos anos 1960 e dos anos 1970 em torno
de concursos vencidos por mulheres e que foram contestados. O “caso Sabine Meyer”, a
clarinetista defendida pelo maestro Herbert Von Karajan que tentou impô-la à
Filarmônica de Berlim foi emblemática para muitas musicistas. Consultamos os
regulamentos das orquestras e as convenções coletivas, assim como os resultados dos
concursos de certas orquestras (como o da Guarda República) indicando quem se
candidatou e quem foi admitido. Os relatos de musicistas, principalmente das primeiras
solistas e mulheres nas orquestras, mas também entrevistas com músicos homens em
exercício (colegas de grupo de instrumentos que em geral são também professores,
regentes, delegados sindicais, etc.), narravam vários casos anedóticos a propósito das
audições; como a estratégia de algumas candidatas, às vezes aconselhadas por seu
professor do sexo masculino, de usar “sapatos pesados”, de não responder quando lhes
dizem “bom dia”, etc. Vários observadores relataram também que a classificação de um
concurso em que as mulheres estão presentes pode se inverter radicalmente na última
etapa, quando o biombo é retirado.
Trabalhar a problemática do acesso permite assim captar as representações
associadas aos instrumentos, aos postos e aos papéis e, portanto, compreender o sentido
associado às práticas, as que são vistas como “femininas” ou como “masculinas”, e a
maneira como as representações evoluem. Por exemplo, o clarinete era visto
tradicionalmente como um instrumento “masculino”, tocado nas bandas (principalmente
militares) por homens, empregando o ar, e portanto o corpo e seus fluidos39. Ao mesmo
tempo, na visão de certos compositores, notadamente os Românticos, o clarinete
representava uma “voz de mulher”. De ambivalente, a imagem do clarinete foi
progressivamente neutralizada em relação ao gênero na segunda metade do século XX.

39
Cf. a visão antropológica de Françoise Héritier, Masculin/féminin. La pensée de la différence. Paris,
Odile Jacob, 1996.
A metodologia associada a essa trajetória sócio-histórica levou-nos a trabalhar,
portanto, com a ajuda de dados qualitativos finos, em profundidade, sobre uma
população restrita: um levantamento intensivo (quase exaustivo) permitiu a delimitação
sistemática da marca deixada por cada uma das clarinetistas no campo orquestral, e as
entrevistas aprofundadas desenharam seu itinerário. O levantamento apóia-se assim nas
seguintes fontes e dados: arquivos consultados e dados coletados caso a caso junto aos
dois Conservatórios Superiores e aos conservatórios da Prefeitura de Paris40, do
conservatório de Música Militar, de várias orquestras41; relatos de itinerários realizados
com clarinetistas mulheres em atividade em orquestras, professoras, “à espera” (prestes
a realizar concursos) ou ainda estudantes em um Conservatório Superior; entrevistas
complementares com homens clarinetistas em atividade em orquestras profissionais
e/ou professores. Além disso, nesse meio com um grau de interconhecimento elevado, a
socióloga integrada a ele beneficiava- se de uma posição particular: nem muito distante
nem muito próxima, como estudante de música concluindo sua formação.
Pode-se levantar uma questão a propósito desse procedimento: é pertinente
trabalhar a partir de um instrumento? Não seria anedótico? O instrumento que tomamos
como indicador social permite ter um ponto de vista revelador quanto à posição das
musicistas no campo orquestral; a situação das instrumentistas de cordas está além (as
mulheres tem acesso a ele há muito mais tempo, sobretudo como tuttistas), a dos metais
está aquém (ainda há poucas mulheres presentes nas classes de aprendizagem).
Naturalmente, a situação das mulheres clarinetistas precisa ser recolocada no âmbito da
música em geral e para a situação do conjunto das profissões artísticas, em que a música
é o meio menos feminizado. Permanece em suspenso a questão da autoridade: muitas
mulheres clarinetistas manifestaram o desejo de se tornar o segundo, e não o primeiro
clarinete em uma orquestra, não apenas em razão das chances objetivas de êxito, mas
também da limitação do projeto pessoal. Os postos de responsabilidade e de prestígio
estão demorando a ser atribuídos às mulheres devido a resistências e vacilações que
ainda são muitas.

Como se realiza a “acomodação dos sexos” entre os músicos?

Observar como homens e mulheres trabalham juntos e quais são as relações de


40
Conservatórios municipais e Conservatório Nacional da Região de Paris.
41
Em particular Guarda Republicana, Orquestra da Ópera de Paris, Orquestra da Bretanha, Orquestra
Nacional de Lille.
trabalho entre músicos e músicas permite mostrar como se realiza a “acomodação dos
sexos”, no sentido de Goffman, entre os músicos. Em seus trabalhos com cantores de
jazz, Marie Buscatto mostra como homens e mulheres vivenciam sua atividade de
maneiras diferentes, ao mesmo tempo nas relações de trabalho e em sua maneira de
conceber o jazz42. Na interação, delimita-se o território de cada um e o papel que pode
desempenhar. Na música, assim como em outras atividades, as relações e as funções de
responsabilidade são negociadas no dia-a-dia, mas também conforme os esquemas
habituais, ou mesmo os estereótipos que enquadram a ação. Em uma orquestra, os
solistas e os principais devem dirigir o trabalho, e também participam plenamente das
decisões de interpretação. Como um homem/uma mulher exerce suas funções no
cotidiano? Mesmo que estas sejam previamente definidas aqui, elas são igualmente
negociadas no cotidiano, como em qualquer grupo de música (onde as relações
hierárquicas são a priori menos definidas). Quando uma musicista dirige uma orquestra
ou um conjunto de músicos, como ela os faz trabalhar? Como conduz uma criação e/ou
uma interpretação? Como se negociam a autoridade e as cooperações no dia-a-dia?
A pesquisa que estou realizando atualmente com maestros e músicos trata da
“música em fase de ensaio”, sobre a maneira como se constrói uma interpretação
musical, sobre as modalidades segundo as quais um maestro e músicos trabalham juntos
e elaboram essa interpretação. O trabalho de um coletivo dirigido por um maestro põe
em jogo questões de autoridade, de negociação, de articulação de microdecisões para
elaborar uma interpretação. Nesse quadro, formulo a hipótese de que um dos
parâmetros, entre outros, que permite analisar esse processo apóia-se no fato de que o
maestro é um homem ou uma mulher. Como captar o peso dessa variável na situação de
trabalho, sabendo que os casos de direção de mulheres são raros? Para isso, podemos
consultar maestros sobre sua experiência: mediante entrevistas aprofundadas, como para
a carreira de Claire Gibault, uma das maestrinas pioneiras na França, que pretendo
retratar, ou compartilhando experiências entre vários maestros43, por exemplo.
No centro dessa pesquisa encontra-se igualmente um dispositivo de observação

42
Marie Buscatto, “Chanteuse de jazz n’est point métier d’homme. L’accord imparfait entre voix et
instrument”, Revue Française de Sociologie, 2003, n° 44-1, p. 35-62.
43
Assim, durante o colóquio sobre “O acesso de mulheres à expressão Musical” (2002, Sorbonee Ircam),
realizou-se uma discussão a partir das experiências de Claire Gibault, Laurence Equilbey, Nicole
Paiement (nos Estados Unidos). Cf. Jacinthe Harbec, “Enjeux socioculturels et artistiques soulevés par
l’accès des femmes aux professions de chef de choeur et de chef d’orchestre”, in Anne-Marie Green e
Hyacinthe Ravet (dir.), L’accès des femmes à l’expression musicale, Paris, L’Harmattan, 2005, p. 247-
261.
etnográfica de atividade de maestros e de músicos. Assim, pude comparar em Bolonha,
em março de 2005, o trabalho de dois maestros, Claire Gibault e Cláudio Abaddo, com
o mesmo conjunto, a Orquestra Mozart, composta de jovens músicos. Claire Gibault
geralmente ensaiava com a orquestra pela manhã para dirigir um programa com a
orquestra em concerto44. Cláudio Abaddo gravava com a orquestra á tarde árias de
Mozart com a Deutsche Grammophon. Em seguida, pude observar, em março e abril de
2005, o trabalho de Claire Gibault quando ela montou a versão francesa da ópera
Pollicino de Henze, que dirigiu no Teatro du Châtelet. Finalmente, uma outra série de
observações me permitiu assistir aos ensaios e ao concerto de Laurence Equilbey com o
Coro Accentus e o concerto Köln (uma orquestra barroca alemã) em março de 2006
(incluídas particularmente as seções de ensaio do coro com um assistente).
Os materiais coletados são, portanto, muito diversos: meus cadernos de
etnografia (onde está consignado o diário de observação, dia após dia), entrevistas (em
particular várias entrevistas feitas com Claire Gibault, sem contar as inúmeras
entrevistas informais relatadas no diário de campo, fruto dos momentos passados ao
lado dos músicos e dos maestros), rushes (vídeo) do trabalho de Claire Gibault com a
Orquestra Mozart e quando da criação francesa de Pollicino (rushes extraídos do
documentário sobre Claire Gibault rodado pela rede Mezzo quando eu realizava minhas
observações), mas também partituras, algumas com anotações de Claire Gibault, e
outras com anotações feitas por mim durante as seções de observação.
Os primeiros resultados, comparando principalmente o trabalho de Claire
Gibault e Cláudio Abaddo com a Orquestra Mozart, mostram que os dois maestros
revelam maneiras diferentes de direção e de relação com os músicos: há diferenças no
uso das mãos, na verbalização das instruções e das trocas, na maneira de abordar os
músicos e nos primeiros momentos de encontro. Emergem dois modos singulares de
autoridade que se traduzem particularmente pela utilização por um dos maestros e não
pelo outro da batuta para dirigir, utilização que depende fortemente do programa
musical. Esses dois modos parecem estar associados a duas formas de exigência e de
autonomia relativa/de liberdade concedida aos músicos, assim como a duas maneiras de
apreender a construção da interpretação: Cláudio Abaddo se mostra bastante autoritário

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Em um programa de concerto composto de: Silouans Song de Arvo Pärt, Lachrymae para alto e
orquestra de cordas de Benjamin Britten e As últimas sete palavras de Cristo na cruz de Joseph Haydn
(nos Estados Unidos). Cf. Jacinthe Harbec, “Enjeux socioculturels et artistiques soulevés par l’accès des
femmes aux professions de chef de choeur et de chef d’orchestre”, in Anne-Marie Green e Hyacinthe
Ravet (dir.), L’accès des femmes à l’expression musicale, Paris, L’Harmattan, 2005, p. 247-261.
e exigente em suas demandas quanto à maneira de fazer nascer o som, mas dá liberdade
aos músicos no transcorrer do tempo e no transcorrer do fluxo musical; Claire Gibault
faz um grande trabalho de precisão em ensaio, deixando uma grande margem às
sugestões dos músicos, mas a interpretação parece mais enquadrada e orientada durante
o concerto. Organizações diferentes do tempo também se manifestam na maneira de
abordar uma obra, de situá-la, de desdobrá-la no tempo, que depende do programa
musical, além das reações orgânicas do meta-instrumento formado pelo maestro e pelos
músicos.
Considerado o lugar das mulheres na profissão, o sexo do maestro conjugado ao
renome de cada um compõe um parâmetro importante de definição da situação. E isso,
mesmo que a maneira de trabalhar de dois homens ou de duas mulheres comporta tantas
diferenças quanto de um homem para uma mulher. As observações se referem, portanto,
a situações particulares, mas fazemos uma aposta, própria ao procedimento etnográfico,
de que essas observações dizem alguma coisa do trabalho de direção e de construção de
uma interpretação realizada, de maneira geral, por um maestro e os músicos.

Para concluir, alguns elementos de reflexão epistemológicos...

A mobilização de diferentes procedimentos empíricos e metodológicos – quer


sejam de tipo estatístico, relato e entrevistas ou observação – permite captar diversas
facetas de fenômenos complexos. Sua associação é incontestavelmente heurística para a
compreensão do trabalho musical, das divisões e das hierarquias que perpassam os
universos artísticos. Além disso, essas pesquisas ecoam na questão das escalas de
observação e na contribuição conjugada de uma pesquisa realizada em níveis micro,
meso e macro, como também na questão do grau de generalização da análise e da
interpretação mais ou menos participante do/da pesquisador/a no s universos
envolvidos.

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