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tempos da peste
O ARAUTO DA CLOROQUINA
Ele era uma estrela da ciência – até que propôs uma cura para a Covid-19
SCOTT SAYARE
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29/08/2020 Didier Raoult: O arauto da cloroquina
Didier Raoult: “Já inventei uns dez tratamentos. Metade deles é empregado no mundo todo. Nunca fiz um estudo duplo-cego,
nunca. Nunca!” FOTO: ANTOINE D’AGATA_MAGNUM PHOTOS_FOTOARENA
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Com esse espírito – embora contestado por seus pares, e certamente por
causa disso também –, Raoult propôs um remédio contra a Covid-19:
uma combinação da hidroxicloroquina (uma droga contra a malária) com
a azitromicina (um antibiótico comum). E pôs-se a declarar: “Nós
sabemos como curar essa doença.” Trump não foi o único a querer
abraçar avidamente essa possibilidade. Quando cheguei a Marselha,
alguma versão do tratamento proposto por Raoult havia sido autorizada
para testes, ou para uso, em muitos países, entre eles França, Itália, China
e Índia. Um em cada cinco testes farmacêuticos no mundo era sobre
hidroxicloroquina.
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oucas semanas atrás, falei (guardando a distância recomendada)
com um homem chamado Jacques Cohen. Ele estava sentado na
calçada do lado de fora do prédio do IHU, um anguloso
monumento de concreto e vidro a cerca de 2,5 km do antigo porto de
Marselha. Encostado num pilar, sentado de cócoras, com os pulsos
apoiados sobre os joelhos, Cohen estava perto de um grupo de umas
sessenta pessoas, à espera de entrar no hospital por uma porta lateral.
Como todos ficavam despreocupadamente próximos uns dos outros – de
pé, num grupo informal, como as pessoas costumavam fazer –, podia-se
identificá–los como os desafortunados que já se sabiam infectados pelo
vírus. Eu havia escolhido Cohen como meu interlocutor por instrução de
uma enfermeira. Ele não estava tossindo ou espirrando e usava máscara.
“Seja como for, vamos todos pegar”, disse-me a enfermeira.
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Raoult conhece bem os dois remédios. Desde o início de sua carreira, ele
tem feito extensas experiências com o redirecionamento de drogas,
aplicando-as no tratamento contra doenças diferentes daquelas para as
quais foram inicialmente aprovadas. Centenas e centenas de moléculas já
foram sancionadas para uso humano pela FDA norte-americana, a
agência responsável pela fiscalização e aprovação de alimentos e
remédios. Escondidas entre elas, segundo Raoult, está a cura imprevista
para muitas doenças. “Você testa tudo, para de ponderar e simplesmente
vai ver se, por acaso, funciona. E há coisas que se descobre que fazem
você cair de costas”, disse ele. Antidepressivos e anti-hipertensivos já
revelaram ter propriedades antivirais. A lovastatina, usada para reduzir
os níveis de colesterol, já se mostrou eficaz contra a peste, pelo menos em
camundongos. Num artigo de 2018, Raoult e uma equipe de
pesquisadores relataram que a azitromicina exibia forte atividade em
células infectadas com o zika vírus.
R
aoult passou a primeira década de sua vida em Dacar, no que era
então o Senegal francês, para onde haviam enviado seu pai, um
médico militar. Sempre que precisava combater a malária, tomava
cloroquina. “Eu tomava cloroquina o tempo todo, quando criança”, conta.
Durante os anos 1990, numa experiência precoce de redirecionamento, ele
testou o efeito da hidroxicloroquina numa enfermidade muitas vezes
fatal, conhecida como febre Q, provocada por uma bactéria intracelular.
Como os vírus, as bactérias intracelulares se multiplicam dentro das
células que as hospedam. Raoult descobriu que, ao reduzir a acidez das
células hospedeiras, a hidroxicloroquina retardava o crescimento
bacteriano. Começou, então, a tratar a febre Q com hidroxicloroquina e
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aoult passou quase a vida toda em Marselha, uma cidade áspera e
belicosa, mas que ele ama. Em homenagem a ela, chamou todo um
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Nos últimos anos, Raoult, ao que parece, tem se divertido com afirmações
científicas tendenciosas, por vezes em território muito além de sua
especialidade. É cético, por exemplo, quanto à utilidade de modelos
matemáticos no âmbito da epidemiologia. A mesma lógica o levou a
concluir que os cientistas que desenvolvem modelos climáticos nada mais
são que “adivinhos” de nossa “era científica”, e que suas previsões
medonhas são, em grande parte, apenas uma tentativa de expiar nosso
sentimento de culpa, intenso, mas irracional.
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ara os padrões da biologia molecular, a reação em cadeia da
polimerase (PCR) em tempo real – a tecnologia mais empregada
para detectar a presença do Sars-CoV-2 – não é
extraordinariamente complexa, mas depende da coleta do material, de
máquinas termocíclicas, reagentes químicos e de sondas (probes) e
iniciadores (primers) de nucleotídeos. Se um desses componentes está em
falta, os testes não podem ser realizados. Desde janeiro, quando o
genoma do Sars-CoV-2 foi publicado, o IHU comprou ou tomou
emprestado o maior número possível desses componentes, gastando
meio milhão de euros apenas em novas máquinas. Quaisquer que fossem
as reservas de Raoult em relação ao vírus, ele não pretendia perder a
oportunidade de estudá-lo e, talvez, ganhar a corrida em busca do
tratamento. Seu instituto é financiado, sobretudo, por recursos públicos –
Raoult recebeu mais de 800 milhões de euros para construí-lo, em valores
de hoje –, mas, na prática, detém o comando sobre o seu próprio
orçamento pois, como diretor, ele tem o controle quase absoluto sobre o
que se passa lá dentro. “A rigor, ele pode dizer: ‘Esperem aí, quero
transformar o quarto e a sala de jantar numa cozinha’”, afirma Michel
Drancourt.
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Os testes estavam previstos para durar duas semanas por paciente, mas,
passados meros seis dias, os resultados foram tão favoráveis que Raoult
decidiu pôr fim ao ensaio e publicar o relatório. “Em geral, dedicaríamos
algum tempo para escrever com calma, fazer correções, ponderar,
examinar as coisas cinquenta vezes”, contou-me Philippe Gautret, o chefe
de departamento cujo nome encabeça a lista de autores. “Mas, nesse caso,
trabalhávamos com um sentimento de efetiva urgência. Porque
achávamos que tínhamos de divulgar aquilo, pois era possível que
tivéssemos encontrado um modo de melhorar a situação.”
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o dia 16 de março, Gregory Rigano, um advogado de Long Island,
entusiasta da tecnologia blockchain, apareceu no The Ingraham
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A
dinâmica de uma crise não se presta exatamente a produzir ciência
confiável. Em outubro de 1985, nos terríveis anos iniciais da
epidemia da Aids, um grupo de médicos franceses, ao lado da
ministra francesa da Saúde e Serviços Sociais, promoveram uma coletiva
de imprensa para anunciar ao mundo que haviam descoberto o que
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pode dizer ‘é tarde demais, você não vai ver o benefício clínico’. Mas, se é
um antiviral, teríamos que pelo menos ver atividade antiviral.”
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“Se você não fez isso, pode olhar para um relatório sobre como as pessoas
respondem a um tratamento assim e concluir que a resposta está ali –
bem ali. E se alguém não estiver vendo é porque deve ter outras
motivações”, escreveu Derek Lowe, experiente pesquisador farmacêutico,
para a Science Translational Medicine, no mês de abril. “Mas não é assim
que funciona”, ele prossegue: “Remédios para o Alzheimer, para a
obesidade, para problemas cardiovasculares, para a osteoporose – muitas
e muitas vezes, resultados que pareciam positivos evaporaram quando
examinados mais de perto. Depois que você passa por isso umas poucas
vezes, aprende a sério que a única maneira de ter certeza das coisas é
fazer ensaios controlados suficientemente robustos. Nada de atalhos,
nada de intuição: só dados.”
“J
á inventei uns dez tratamentos em minha vida”, Raoult me
contou. “Metade deles é empregado no mundo todo. Nunca fiz
um estudo duplo-cego, nunca. Nunca! Tampouco qualquer coisa
randomizada.” Com alguma satisfação, ele comenta que a crítica foi mais
intensa do que previra. “Honestamente, não podia imaginar que
deflagraria um frenesi como esse”, diz, recostando-se na cadeira de seu
escritório, ao se referir à tempestade que havia criado no mundo lá fora.
“Quando você conta a história, é bem preto no branco, não é? Sujeito,
verbo, complemento. Você detecta uma doença; tem um remédio que é
barato e que sabemos bem que é seguro, porque 2 bilhões de pessoas
usam; nós receitamos, e ele muda o que tem de mudar. Pode não ser um
produto milagroso, mas é melhor que não fazer nada, não é?”
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Raoult tem mostrado indícios daquilo que parece ser alguma dúvida.
Numa entrevista, parafraseando o fecho fatalista de O Estrangeiro, de
Albert Camus, disse que “deve haver muitos espectadores no dia da
minha execução e eles devem me receber com gritos de ódio”.
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[6]No dia 27 de maio, diante das evidências científicas reunidas até agora,
a França decidiu proibir o uso da hidroxicloroquina no combate à Covid-
19 em todo o seu território.
*
Nota: No dia 4 de junho, a revista médica The Lancet publicou uma
retratação anulando a validade do estudo com dados de 96 mil pessoas
com Covid-19. A revista informou que o estudo se baseara em dados
hospitalares fornecidos pela empresa norte-americana Surgisphere, que
se recusou a abri-los publicamente mesmo diante das suspeitas de
inconsistência. Diante disso, tornou-se impossível a verificação
independente da qualidade dos dados. Com a anulação do estudo, a
Organização Mundial da Saúde (OMS) retomou as pesquisas com
hidroxicloroquina que havia suspendido em 25 de maio.
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