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Sociological Paradigms - Burell e Morgan

Índice

1. Pressupostos sobre a natureza das ciências sociais.......................02


1.1As formas do debate.........................................................................05
1.1.1 Nominalismo/Realismo: o debate ontológico.............................05
1.1.2 Anti-positivismo/Positivismo: o debate epistemológico..............06
1.1.3 Voluntarismo/Determinismo: o debate sobre a natureza...........07
1.1.4 Teorias Ideográficas/Nomotéticas: o debate metodológico.......07
2. A análise dos pressupostos sobre a natureza das ciências sociais.08
3.1 Pressupostos sobre a natureza da sociedade...........................10
3.1.1 O debate sobre ordem/conflito............................................10
2.2 Regulação e mudança radical............................................17
3.2 Duas dimensões: quatro paradigmas........................................20
3.3 A natureza e os usos dos quatro paradigmas...........................22
2.3 O paradigma funcionalista...................................................25
3.3.2 O paradigma interpretativo..................................................29
3.3.3 O paradigma humanista radical...........................................31
3.3.4 O paradigma estruturalista radical.......................................33

Sociological Paradigms and Organizational Analysis


London, Heinemann, 1979.
Burrel, G and Morgan, G.

PRESSUPOSTOS SOBRE A NATUREZA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS

Um aspecto central de nossa tese é a idéia de que todas as teorias sobre


as organizações estão embasadas em uma filosofia das ciências e uma teoria
sobre a sociedade. Neste capítulo, abordaremos o primeiro aspecto desta tese e
examinaremos as diferentes abordagens sobre as ciências sociais.
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Argumentaremos que é conveniente conceber as ciências sociais em termos de


quatro conjuntos de pressupostos referentes à ontologia, à epistemologia, à
natureza humana e à metodologia.
Todo cientista social aborda sua disciplina através de pressupostos
explícitos ou implícitos sobre a natureza do mundo social e a maneira como este
pode ser investigado. Primeiramente temos pressupostos de natureza
ONTOLÓGICA, pressupostos que concernem a própria essência do fenômeno
sob investigação. Por exemplo, os cientistas sociais terão que enfrentar a
questão ontológica básica: se a “realidade” é algo externo ao individuo –
impondo-se a consciência “de fora” – ou se é um produto da própria consciência;
se a “realidade” tem uma natureza objetiva ou se é produto de cognição
individual; se a “realidade” é um dado externo ou se é um produto da nossa
mente.
Associado a essa questão ontológica, há um segundo conjunto de
pressupostos de natureza EPISTEMOLÓGICA. São pressupostos que
concernem as bases do conhecimento: como podemos compreender o mundo e
comunicar este conhecimento aos outros. Tais pressupostos estão embasados
em noções tais como as formas possíveis de conhecimento ou a possibilidade de
distinção entre o falso e o verdadeiro. Na verdade, a própria distinção entre o
falso e o verdadeiro em si já pressupõem uma determinada postura
epistemológica. Está embasada em uma visão específica sobre a natureza do
conhecimento: por exemplo, se é possível conceber o conhecimento como um
dado “hard”, real e capaz de ser transmitido de forma tangível ou se o
conhecimento tem um caráter mais “soft”, subjetivo, espiritual e até mesmo
transcendental, decorrente da experiência do insight de uma individualidade
única e essencialmente pessoal. Os pressupostos epistemológicos nestas duas
posturas determinam posturas extremadas sobre a questão da possibilidade do
conhecimento, de um lado, ou, de outro lado, do conhecimento como experiência
puramente subjetiva.
Associado às questões ontológicas e epistemológicas – mas
conceitualmente distinto – surge um terceiro conjunto de pressupostos referentes
à NATUREZA HUMANA e, mais especificamente, sobre a relação entre o
homem e o ambiente. É óbvio que as ciências sociais como um todo tem que
estar embasadas em tais pressupostos, uma vez que o Homem é o sujeito e o
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objeto da sua indagação. Podemos identificar perspectivas em ciências sociais


que estão embasadas em uma visão de homem que implica em uma resposta
mecanicista, ou mesmo determinista, às situações encontradas no mundo
externo. Nesta visão, os homens e suas experiências são produtos do ambiente,
condicionados pelas circunstancias externas. Tal perspectiva extrema pode ser
contrastada com outra que atribue aos seres humanos um papel mais criativo;
perspectiva esta onde a vontade (free will) ocupa, o centro do palco; onde o
homem é visto como sendo criador de seu ambiente; senhor em oposição a
marionete. Nestas duas visões opostas esta embutido um importante debate
filosófico entre os partidários do determinismo, de um lado, e do voluntarismo, de
outro. Embora existam posições extremadas, grande parte das teorias sociais,
como veremos a seguir, adotam posturas situadas mais ao meio do campo deste
debate.
Os três conjuntos de pressupostos até agora mencionados tem implicações
de natureza METODOLOGICA. Cada um deles tem importantes conseqüências
quanto à forma de investigação e obtenção de conhecimento sobre o mundo
social. Ou seja, os diferentes pressupostos sobre ontologia, epistemologia ou
natureza humana levam a adoção de metodologias também diferenciadas entre
si. As possibilidades de escolha são, de fato, tão numerosas que o que é
considerado como CIÊNCIA pelos cientistas tradicionais cobre apenas uma
parcela restrita das opções possíveis. Por exemplo, podemos identificar
metodologias nas ciências sociais que tratam dos fenômenos sociais como se
fossem fenômenos do mundo da natureza: como dados “hard”, reais, externos; e
outras metodologias que atribuem a estes fenômenos qualidades “soft”, pessoais
e mais subjetivas.
Se subscrevermos à postura onde o mundo social é visto como uma
realidade externa e objetiva, o empreendimento cientifico resultante
provavelmente focalizará a analise das relações e regularidades entre os seus
elementos constitutivos. A preocupação central será então de identificar e definir
tais elementos e descobrir formas de expressar estas relações. As questões
metodológicas estarão centradas na definição dos conceitos, sua medida e
identificação dos temas subjacentes. Tal perspectiva se expressa
primordialmente na busca de leis universais que expliquem e governem a
realidade sob observação.
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Se subscrevermos à postura alternativa, com sua ênfase na importância da


experiência subjetiva para a criação do mundo social, a busca de compreensão
estará centrada em outras questões e as abordará de forma distinta. A
preocupação central será a compreensão das formas em que o individuo cria,
modifica e interpreta seu mundo. Em casos extremos, a ênfase será na
explicação e compreensão do que é único e particular e não no geral e universal.
Uma tal abordagem questionaria a própria existência de uma realidade externa.
Em termos metodológicos, esta seria uma abordagem que enfatizaria a natureza
relativística do mundo social podendo mesmo ser considerada anti-científica
quando referida às regras básicas em uso comum nas ciências sociais.
Figura 1

A dimens

Abordagem subjetivista às
ciências sociais

Nesta
Nominalismo
rápida esquematização das diversas posturas ontológicas,
epistemológicas, humanas e metodológicas que caracterizam as abordagens em
ciências sociais, procuramos ilustrar duas perspectivas amplas e de certa forma
polarizadas. A FIGURA 1 procura retratar estas posturas de forma mais rigorosa
em termos do que se convencionou chamar aqui da dimensão subjetiva-objetiva.
Nela são identificados os quatro conjuntos de pressupostos relevantes para a
Anti-positivismo
compreensão das ciências sociais, cada um dos quais sendo caracterizado pelo E
rótulo descritivo sob o qual tem sido objeto de debate na filosofia social. A seguir,
faremos uma revisão dos quatro debates de forma breve, porém sistemática.

1.1. AS FORMAS DO DEBATE

Voluntarismo
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1.1.1. Nominalismo/Realismo: o debate ontológico

Estes termos tem sido alvo de muita discussão na literatura


especializada e estão cercados de controvérsias. A posição nominalista gira
em torno de pressupostos que o mundo social externo à cognição individual é
meramente constituído de nomes, conceitos e rótulos usados para estruturar a
realidade. Os nominalistas não aceitam a existência de uma estrutura neste
mundo descrito através destes conceitos. Os “nomes” são considerados como
criações artificiais cuja utilidade está baseada na sua conveniência como
instrumentos (tools) para a descrição, o “dar sentido” e a negociação do mundo
externo. O nominalismo frequentemente é equacionado com o
convencionalismo, e nós, aqui, não faremos distinção entre eles.
O realismo, de outro lado, postula que o mundo, externo a cognição
individual, é um mundo real composto por estruturas “hard”, tangíveis e
relativamente imutáveis. Tais estruturas, dizem os realistas, existem como
entidade empíricas independentemente de serem por nós rotuladas ou
percebidas. Podemos, mesmo, não estar cientes da existência de certas
estruturas cruciais e, consequentemente, não ter “nomes” ou conceitos com os
quais articulá-las. Para o realista, o mundo social existe independentemente da
consciência individual. O individuo, desta forma, nasce e vivencia um mundo
social que tem uma realidade própria. Não é algo criado pelo indivíduo – existe
“lá fora”; do ponto de vista ontológico é anterior a existência e consciência de
qualquer ser humano tomado individualmente. Para o realista o mundo social
tem uma existência tão “hard” e concreta quanto o mundo da natureza.

1.1.2.Anti-positivismo/positivismo: o debate epistemológico

Muitos sustentam que o termo “positivista”, tal como aconteceu com


“burgueses” tornou-se mais um epíteto depreciador do que um conceito
descritivo útil. Entretanto, é nossa intenção aqui usá-lo como conceito
descritivo para caracterizar um determinado tipo de epistemologia. A maioria
das descrições correntes do positivismo referem-se a uma ou mais dimensões
do nosso esquema para a análise dos pressupostos sobre as ciências sociais.
O positivismo é, também, erroneamente equacionado ao empirismo. Tal
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mistura obscurece as questões básicas e contribue para o uso do termo de


forma depreciativa.
Usaremos “positivismo” aqui para caracterizar epistemologias que
procuram explicar e predizer o que acontece no mundo social através da busca
de regularidades e de relações causais entre seus elementos constitutivos. A
epistemologia positivista está essencialmente ambasada nas abordagens
tradicionais predominantes nas ciências naturais. Os positivistas poderão diferir
no que diz respeito aos detalhes de sua abordagem. Por exemplo, alguns
reinvidicam que as regularidades hipotéticas podem ser verificadas através de
um programa experimental adequado. Outros contestam que as hipóteses
podem somente ser falsificadas, mas jamais demonstradas verdadeiras.
Entretanto, ambos, os verificacionistas e os falsificacionistas aceitam que o
crescimento do conhecimento é essencialmente um processo cumulativo no
qual novos insights são somados ao estoque de conhecimento já existente
sendo as hipóteses falsas eliminadas.
A epistemologia do anti-positivismo poderá assumir formas variadas mas
contestará, sempre, a utilidade da busca de leis ou de regularidades
subjacentes no mundo social. Para o anti-positivista o mundo social é
essencialmente relativístico e só pode ser compreendido a partir da
perspectivas dos indivíduos que estão diretamente envolvidos nas atividades
sob estudo. Os anti- positivistas rejeitam que o ponto de vista do “observador”,
característico da epistemologia positivista, seja uma posição vantajosa para a
compreensão das atividades humanas. Eles sustentam que a compreensão só
é possível quando se ocupa o quadro de referência do participante na ação. É
preciso compreender “de dentro’ e não de “fora”. Do ponto de vista das ciências
sociais este é um empreendimento essencialmente subjetivo e não objetivo. Os
anti-positivistas tendem a rejeitar a noção de ciência que gera conhecimentos
objetivos.

1.1. 3.Voluntarismo/determinismo: o debate sobre a natureza


humana

Este debate gira em torno da questão do modelo de homem imbricado


em uma determinada teoria social científica. Podemos identificar, em um dos
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extremos, a visão determinista que considera o homem e suas atividades como


sendo totalmente determinadas pela situação ou “ambiente” em que está
situado. No outro extremo podemos identificar a visão voluntarista segundo a
qual o homem é completamente autônomo e sujeito ao seu livre arbítrio. Na
medida em que as ciências sociais preocupam-se em entender as atividades
humanas, elas deverão inclinar-se, implícita ou explicitamente, para um destes
pontos de vista, ou adotar uma postura intermediaria que permita a influência
de ambos, fatores situacionais e voluntários, ao dar conta das atividades dos
seres humanos. Tais pressupostos são elementos essenciais das teorias
sociais cientificas, dado que eles definem em termos gerais a natureza das
relações entre o homem e a sociedade em que ele vive.

1.1.4.Teorias ideográficas/nomotéticas:o debate


metodológico

A abordagem ideográfica em ciências sociais está embasada na visão


segundo a qual só é possível compreender o mundo social através do
conhecimento de primeira mão do sujeito sob investigação. Desta forma,
enfatiza a necessidade de aproximação com o sujeito e de explorar
detalhadamente o seu background e sua história de vida. A abordagem
ideográfica enfatiza a análise dos relatos subjetivos gerados através de um
“entrar dentro” das situações e do envolvimento pessoal no curso do cotidiano
da vida – em suma, a análise detalhada dos insights gerados por tais encontros
com nossos sujeitos e os insights obtidos a partir dos relatos impressionistas
encontrados em biografias e fontes jornalísticas. O método ideográfico enfatiza
a importância de permitir que nossos sujeitos expressem suas naturezas e
características durante o processo de investigação.
A abordagem nomotética em ciências sociais enfatiza a importância de
embasar a pesquisa em protocolos e técnicas sistemáticas. Seu paradigma é a
abordagem e os métodos das ciências sociais naturais, que focalizam o
processo de teste de hipóteses a partir dos cânones do rigor cientifico. Sua
preocupação central é com a elaboração de testes científicos e de técnicas
quantitativas para a análise dos dados assim gerados. Dentre o instrumental
utilizado nas metodologias nomotéticas encontram-se os surveys, os
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questionários, os testes de personalidade e instrumentos padronizados os mais


variados.

2. ANÁLISE DOS PRESSUPOSTOS SOBRE A NATUREZA DAS


CIÊNCIAS SOCIAIS

Estes quatro conjuntos de pressupostos constituem um instrumento


valioso para a análise da teoria social. De forma geral há, na literatura, uma
tendência a fundir as questões ai envolvidas. Desejamos propor, aqui, que há
consideráveis vantagens em manter estes quatro elementos do debate social-
científico analiticamente distintos. Embora na prática tenda a haver uma forte
inter-relação entre as posições adotadas em cada um destes quatro elementos,
os pressupostos sobre cada um podem variar consideravelmente. Vale a pena
examinar esta questão mais detalhadamente.
As posições extremas em cada um dos quatro elementos considerados
estão refletidas nas duas tradições intelectuais que predominaram nos últimos
duzentos anos. A primeira destas tende a ser denominada de “positivismo
sociológico”. Trata-se da tentativa de aplicação dos modelos e métodos
próprios das ciências da natureza ao estudo dos afazeres humanos. Pensa-se
o mundo social como se fosse o mundo natural, adotando-se uma abordagem
ontológica “realista”. Isto é reforçado pelo uso de uma epistemologia
“positivista”, por visões relativamente deterministas sobre a natureza humana e
pelo uso de metodologias “nomotéticas”.
A segunda tradição dominante remete ao Idealismo alemão e constitue-
se em total oposição a primeira. Está embasada na premissa de que a
realidade última do universo é o “espírito” ou a “idéia” e não os dados da
percepção sensorial. Adota uma postura essencialmente “nominalista” em sua
abordagem da realidade social. Em contraste com as ciências da natureza,
enfatiza o caráter essencialmente subjetivo dos afazeres humanos, negando,
pois, a utilidade ou relevância dos métodos das ciências naturais para o estudo
dos fenômenos nesta esfera. Metodologicamente é “anti-positivista”, e
voluntarista no que diz respeito a natureza humana e favorece os métodos
ideográficos como fundamento das ciências sociais. Desta forma, o positivismo
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sociológico e o idealismo alemão caracterizam os extremos objetivo e subjetivo


do modelo proposto.
Muitos sociólogos e teóricos das organizações foram formados dentro da
tradição do positivismo sociológico não tendo sido expostos aos dogmas do
idealismo alemão. As ciências sociais, para eles, são congruentes com a
constelação de pressupostos que caracterizam o extremo objetivista de nosso
modelo. Entretanto, nos últimos setenta anos tem havido uma crescente
interação entre estas duas tradições, especialmente ao nível sócio-filosófico.
Como resultado surgiram posições intermediárias, cada uma das quais tem sua
configuração especifica de pressupostos sobre a natureza das ciências sociais.
Todas estas posturas têm gerado teorias, idéias e abordagens características
de suas posições intermediarias. Como argüiremos mais tarde, os
desenvolvimentos na fenomenologia sociológica, etnometodologia e na teoria
da ação, precisam ser entendidos a partir desta perspectiva. Estas novas
abordagens, além dos insights específicos, tem sido frequentemente usadas
como trampolim para a crítica ao positivismo sociológico gerando um intenso
debate entre escolas rivais. A natureza destes debates só pode ser
compreendida pela análise dos pressupostos subjacentes aos diferentes
pontos de vista.
Alegamos que o esquema analítico aqui apresentado permite fazer
justamente isto. Não se trata de um artifício de classificação, mas de um
instrumento importante de negociação na teoria social. Ele chama a atenção
para pressupostos chaves. Ele permite focalizar as questões especificas que
diferenciam as diferentes abordagens sócio-científicas. Ele permite analisar o
grau de consistência entre os quatro conjuntos de pressupostos sobre as
ciências sociais que caracterizam o ponto de vista de qualquer teoria. Esta é,
pois, a primeira das dimensões de nosso esquema para a análise das teorias
em geral e das teorias organizacionais em específico. Por conveniência, nos
referimos a ela como dimensão “subjetiva-objetiva”, dois rótulos que parecem
capturar bem os pontos em comum entre os quatro conjuntos de pressupostos.

2.1Pressupostos sobre a natureza da sociedade


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Todas as abordagens utilizadas no estudo da sociedade estão localizadas


em um determinado quadro de referência. Diferentes teorias tendem a refletir
perspectivas diferentes, eleger questões e problemas para estudo, e estar
embasadas em um conjunto de pressupostos que refletem uma visão particular
sobre a natureza do fenômeno sob investigação. Os últimos vinte anos têm
sido marcados por tentativas variadas por parte dos sociólogos de separar as
diversas escolas de pensamento e os pressupostos meta-teóricos por elas
refletidos.

2.1.1 O debate sobre ordem/conflito

Dahrendorf (1959) e Lockwood (1956), por exemplo, procuraram


distinguir as abordagens sociológicas que procuraram centrar-se na explicação
da natureza da ordem e do equilíbrio social daquelas que se preocuparam mais
com os problemas da mudança, conflito e coerção nas estruturas sociais. Tal
distinção tem sido o centro das atenções naquilo que se convencionou chamar
de debate sobre a ordem/conflito.
Os teóricos da “ordem” ultrapassam em número os teóricos do “conflito”,
e, como observou Dawe, “a tese de que a sociologia tem como preocupação
central o problema da ordem social tornou-se uma das poucas ortodoxias desta
disciplina. Constitui a premissa básica de muitos balanços sobra teorias
sociológicas que, em outros aspectos, diferem consideravelmente quanto aos
objetos e perspectivas (Dawe, 1970, p. 207).
Muitos sociólogos atualmente consideram este um debate morto ou até
mesmo um não-debate (Cohen, 1986; Silverman, 1970; Van der Berghe, 1969).
Influenciados pelo trabalho doa autores como Coser (1956), que apontaram
para os aspectos funcionais do conflito social, os sociólogos tem sido capazes
de incorporar o conflito como uma das variáveis no âmbito de teorias
orientadas primordialmente à explicação da ordem social. A abordagem
proposta por Cohen, por exemplo, ilustra este fato claramente. Ele toma o
trabalho de Dahrendorf como ponto de partida e elabora algumas das idéias
centrais do debate sobre ordem/conflito de forma a construir dois modelos de
sociedade caracterizados por conjuntos rivais de pressupostos, um atribuindo
aos sistemas sociais às características de compromisso, coesão, solidariedade,
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consenso, reciprocidade, co-operação, integração, estabilidade e persistência;


e o outro, as características de coerção, divisão, hostilidade, dissenção,
conflito, má-integração e mudança (Cohen, 1968, pp 166-7).
A critica principal de Cohen é que Dahrendorf estaria equivocado ao
tratar os modelos de ordem e conflito como modelos totalmente separados. Ele
considera que é possível para as teorias incorporarem elementos de ambos os
modelos e que não é necessário que optemos por um ou por outro modelo.
Deste ponto de vista, a questão da ordem ou conflito passa a ser meramente
lados de uma mesma moeda; não sendo mutuamente exclusivos, não há
necessidade de harmonizá-los. A força do argumento é tal que foi instrumental
em desviar a atenção do debate sobre ordem/conflito. Na esteira do chamado
movimento de contra-cultura dos anos sessenta e do insucesso da revolução
de 1968 na França, os sociólogos ortodoxos se tornaram muito mais
interessados e preocupados com os problemas do “individuo” em
contraposição aos problemas da “estrutura” social. Os movimentos subjetivistas
tais como a fenomenologia, a etnometodologia e a teoria da ação, aos quais no
referimos no capitulo anterior, tornaram-se mais atraentes e merecedores de
atenção. Consequentemente, sob o impacto das questões emergentes sobre a
filosofia e o método das ciências sociais, o debate sobre ordem/conflito perdeu
seu interesse.
Nossa alegação, aqui, é de que se formos rever as origens intelectuais e
fundamentos deste debate, seremos obrigados a concluir que ele morreu uma
morte prematura. Dahrendorf e Lockwood procuraram revitalizar a obra de
Marx através de seus escritos e devolve-la ao papel central que lhe cabe na
teoria sociológica. De modo geral Marx tem sido relativamente ignorado pelos
sociólogos ficando a influencia principal por conta de Durkheim, Weber e
Pareto. É importante notar, neste contexto, que estes três sociólogos foram
todos eles preocupados com a questão da ordem social; é justamente Marx
que se preocupa com o papel do conflito como força motriz na mudança social.
Colocando desta forma o debate sobre ordem/conflito está perpassado pelas
diferenças entre as perspectivas e preocupações dos principais teóricos sociais
do século dezenove e começo do século vinte. A sociologia moderna limitou-se
a articular e desenvolver os temas introduzidos por estes pioneiros da analise
social. Dizer que o debate sobre ordem/conflito está morto, ou é um não-
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debate, é menosprezar, se não ignorar, as diferenças substantivas entre a obra


de Marx e, por exemplo, de Durkheim, Weber e Pareto. QAualquer pessoa que
esteja familiarizado com o trabalho destes autores e esteja ciente da profunda
divergência entre marxismo e a sociologia, terá que admitir que há, ai,
diferenças substantivas que estão longe de estarem reconciliadas.
Neste capitulo, portanto, procuraremos reavaliar a questão da
ordem/conflito com o objetivo de definir uma dimensão crucial que possibilite a
analise dos pressupostos sobre a natureza da sociedade subjacentes às
diferentes teorias sociais. Para tal, retornaremos a obra de Dahrendorf, que
busca caracterizar as oposições no seguintes termos: “a teoria integrativa da
sociedade , exemplificada pela obra de Parsons e outros estruturalistas-
funcionalistas, está fundamentada em alguns pressupostos tais como:
1. toda sociedade é uma estrutura de elementos, relativamente persistente
e estável;
2. toda sociedade é uma estrutura integrada de elementos;
3. todo o elemento em uma sociedade tem uma função, isto é, tem sua
contribuição para sua manutenção como sistema;
4. toda estrutura social operante embasada no consenso de seus membros
sobre os valores.
O que denominei de teoria de coerção da sociedade também pode ser reduzida
a alguns princípios básicos, embora também aqui estes pressupostos
representem uma simplificação e um exagero:
1. toda sociedade está a todo o momento sujeita a processos de mudança; a
mudança sócia é onipresente;
2. toda sociedade exibe, a todo o momento, dissenso e conflito o conflito social
é onipresente;
3. todo elemento em uma sociedade contribui para sua desintegração e
mudança;
4. toda sociedade está embasada na coerção de alguns membros sobre os
demais”. (Dahrendorf, 1959, pp 160-2)
Os adjetivos opostos sugeridos pelo esquema de Dahrendorf para
distinguir entre as abordagens para o estudo da sociedade podem ser
agrupados em forma de uma tabela:
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Tabela 2.1
Duas teorias sobre a sociedade: ordem e conflito
A visão de ordem ou visão a visão de conflito ou
Integrativa enfatiza coerção enfatiza
Estabilidade Mudança
Integração Conflito
Coordenação funcional Desintegração
Consenso Coerção

Esta conceitualização, como o próprio Dahrendorf admite, é uma


simplificação e, embora forneça um instrumental útil para entender as
diferenças entre as duas perspectivas, permite interpretações errôneas dado
que os diferentes adjetivos têm significados diferentes para diferentes pessoas.
Isto fica evidente ao considerarmos o tratamento dispensado à noção de
conflito na literatura sociológica. Por exemplo, após a demonstração das
funções do conflito social por Coser, o papel do conflito como mecanismo de
integração passou a ser alvo de atenções, e a própria noção de “conflito”
passou a ser incorporada a noção de integração. Ou seja, a dimensão de
ordem/conflito proposta por Dahrendorf foi convencionalmente enxugada a tal
ponto que foi absorvida pela questão central da sociologia tradicional – a
preocupação com a explicação da ordem. A falácia desta postura fica
evidenciada quando se consideram formas extremas de conflito, como conflitos
de classe, revolução e guerra, que só podem ser incorporadas pelo modelo
integracionalista através de um vôo da imaginação. Tais exemplos sugerem
que é ilusório procurar equiparar este tipo de conflito macroestrutural com o
conflito funcional descrito por Coser. Há aqui, uma questão importante de grau,
que evidencia os perigos da dicotomização da integração e conflito; na
verdade, a distinção entre os dois está mais próxima a um continuum do que é
reconhecido pela maioria dos sociólogos.
Outro elemento problemático do esquema de Dahrendorf é a distinção
entre consenso e coerção. Num primeiro momento a distinção parece obvia e
clara, focalizando os valores compartilhados de uma lado, e a imposição de
algum tipo de força (poder) de outro. Uma analise mais cuidadosa, entretanto,
revela certa ambigüidade. De onde vêm estes valores compartilhados? Eles
são desenvolvidos autonomamente ou são imposições de certos membros da
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sociedade sobre os demais? Ou seja, abre-se a possibilidade de que o


consenso seja o produto do uso de algum tipo de força coercitiva.
Por exemplo, como aponta C. Wright Mills, “o que Parsons e outros
grandes teóricos denominaram “orientações de valor” e “estruturas normativas”
nada mais são que símbolos centrais de legitimação” (1959, p. 46).
A estrutura normativa, neste sentido – aquilo que Dahrendorf chama de
consenso – torna-se um sistema de legitimação da estrutura de poder. Para
Mills ele reflete a realidade da dominação. Em outras palavras, os valores
compartilhados podem ser visualizados tanto como um indicador do grau de
integração de uma sociedade determinada, quanto como uma medida de
sucesso das forças de dominação em uma sociedade propensa à
desintegração. Assim, de um ponto de vista, as idéias compartilhadas, valores
e normas existentes são algo a ser preservado; de outros ponto de vista, eles
representam modos de dominação dos quais o homem deve ser liberado,
Desta forma, vê-se que a dimensão de consenso/coerção focaliza, de fato, à
questão do controle social. No esquema de Dahrendorf, o consenso –
independentemente de como é alcançado – é visto como sendo independente
da coerção. A nosso ver esta postura é errônea uma vez que, como sugerido
anteriormente, ela ignora a possibilidade de formas de coerção que emergem
através do controle do sistema de valores.
Ao distinguir entre estabilidade e mudança como aspectos dos modelos
de ordem e conflito, Dahrendorf, mais uma vez, abre a possibilidade de
interpretações errôneas, mesmo quando ele declara explicitamente que não
está propondo que a teoria da ordem implique na premissa de que as
sociedades são estáticas. O que ele procura fazer é demonstrar como as
teorias funcionalistas estão fundamentalmente centradas nos processos que
possibilitam a manutenção do sistema. Ou seja, as teorias funcionalistas são
consideradas estáticas por centrarem-se na explicação do status quo.
Neste sentido, as teorias do conflito são substancialmente diferentes;
elas estão comprometidas com, e procuram explicar, o processo e a natureza
das mudanças estruturais profundas na sociedade ao invés de focalizar
mudanças mais superficiais e efêmeras. A categorização de Dahrendorf no que
diz respeito à estabilidade e mudança perde a força na medida em que todas
as teorias funcionalistas reconhecem mudança e visualizam-na como um dado
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empírico obvio da vida cotidiana. Poderia ser argumentado que seria


necessário buscar novos rótulos para expressar as dimensões sugeridas por
Dahrendorf: em primeiro lugar, que a perspectiva da ordem é primordialmente
orientada para o status quo; em segundo lugar, que esta perspectiva acessa
uma ‘mudança’ substancialmente diferente da mudança em que estão
centradas as teorias do conflito.
As noções de coordenação funcional e desintegração, proposta por
Dahrendorf, constituem poderosos elementos para a diferenciação das
perspectivas de ordem e conflito. Entretanto, aqui também há margem para
interpretações errôneas. O conceito de integração, tal como utilizado por
Dahrendorf, é derivado da preocupação dos funcionalistas como a contribuição
dos elementos de um dado sistema ao sistema como um todo. Isto representa,
em vários sentidos, uma simplificação exagerada. Merton (1984) por exemplo,
introduziu a noção de função manifesta e latente, algumas das quais podem
ser disfuncionais do ponto de vista do sistema. Também Gouldner (1959),
escrevendo pouco depois da publicação da edição alemã da obra de
Dahrendorf, sugere que partes variadas dos sistemas poderão ter um alto grau
de autonomia contribuindo pouco para a integração do sistema como um todo.
Desta forma o termo “coordenação funcional” é uma simplificação e, tendo em
vista a experiência de pontos de vista tais como apontados anteriormente, no
seio das escolas funcionalistas, não é nada surpreendente que o conceito de
desintegração tenha sido encampado pela perspectiva funcionalista. A
“desintegração” pode, portanto, ser considerada como um conceito
integracionalista e, tal como aconteceu com outros aspectos do esquema de
Dahrendorf, esta dimensão tem sido frequentemente enxugada de seus
significados mais amplos e trazida para o seio das teorias da ordem. Por estas
razoes, teria sido mais esclarecedor se a posição assumida pelas teorias do
conflito tivesse sido expressa em termos mais radicais e mais característicos.
Empregar, por exemplo, a noção de contradição e de incompatibilidades
básicas entre os diferentes elementos da estrutura social, implícitos na teoria
marxista. A contradição implica em heterogeneidade, desequilíbrio e em forças
sociais essencialmente antagonisticas e divergentes. Localiza-se, portanto, no
pólo oposto do conceito de “coordenação funcional”, que necessariamente
pressupõem a compatibilidade básica entre os elementos de um dado sistema.
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Argumentar que o conceito de contradição pode ser subsumido pela análise


funcionalista requer um ato de fé ou, minimamente, um vôo da imaginação.
A obra de Dahrendorf foi extremamente útil no sentido de ter identificado
importantes elementos constitutivos que diferenciam os teóricos da ordem dos
teóricos do conflito. Entretanto, como demonstrado aqui, as distinções feitas
entre as duas meta-teorias não são suficientes. Mais especificamente, os
debates realizados nestes últimos vinte anos indicam que a caracterização da
perspectiva do conflito não foi suficientemente radical a ponto de evitar a
confusão desta com a perspectiva da ordem. Isto possibilitou que os teóricos
da ordem enfrentassem o desafio para o seu quadro de referência
representado pelo esquema de Dahrendorf. Isto pode ser melhor visualizado
referindo-nos ao trabalho de Cohen (1968) mencionado anteriormente.
Ao defender seu ponto de vista, Cohen parece ter interpretado
erroneamente a distinção entre os dois modelos. Sua interpretação dos
conceitos aproxima as diferentes variáveis de forma tal que elas podem ser
consideradas como sendo compatíveis. Na verdade a sua análise reflete antes
de mais nada a tentativa de incorporar o modelo de conflito às teorias
contemporâneas da ordem. Desta forma ele perde de vista o radicalismo
essencial da perspectiva do conflito podendo, assim, concluir que os dois
modelos não são mutuamente exclusivos e, portanto não precisam ser
reconciliados. Ele argumenta que os dois modelos não constituem alternativas
reais e efetivamente acaba por sugerir que um é apenas recíproco do outro.
Ele consegue, portanto, deixar o tema central do livro de Dahrendorf – o
problema da ordem – intocado. A incorporação do conflito nos limites do
modelo da ordem des-enfatiza sua relevância.
Coerente com análise feita anteriormente, argumentamos que a tentativa
de redução dos dois modelos a denominadores comuns leva a ignorar suas
diferenças fundamentais. Uma teoria do conflito embasada no conflito estrutural
profundo e centrada na transformação radical da sociedade não pode ser
compatível com uma perspectiva funcionalista. As diferenças entre estas
perspectivas são consequentemente importantes e merecedoras de serem
enfatizadas em qualquer análise das teorias sociais.
Retroativamente, é possível perceber que muitas das interpretações
errôneas surgiram pelo fato de que os modelos na analise de Dahrendorf não
17

foram suficientemente diferenciadores. O que propomos, portanto, é a


introdução de modificadores que permitam articular as diferenças de forma
mais explicita e radical. Dado que grande parte da confusão deve-se a
ambigüidade dos termos descritivos gostaríamos de sugerir o uso de uma
terminologia diferente.

2.1. 2.Regulação e mudança radical

A análise realizada sugere que a distinção entre ordem e conflito é a


mais problemática. Sugerimos, portanto, sua substituição por “regulação” e
“mudança radical”.
Introduziremos o termo “sociologia da regulação”para caracterizar as
teorias primordialmente centradas na explicação da sociedade através de
termos que enfatizam sua unidade subjacente e sua coesão. É uma sociologia
voltada à questão da necessidade de regulação dos afazeres humanos: as
questões que coloca focalizam a necessidade de compreensão do porque a
sociedade se mantém como entidade: por que se mantém como unidade ao
invés de se esfacelar.
Interessa-se pela compreensão das forças sociais que impedem que a
visão Hobbesiana de “guerra de todos contra todos” se torne uma realidade. A
obra de Durkheim, com sua ênfase na natureza da coesão e solidariedade
sociais, é um exemplo claro e compreensivo da preocupação com uma
sociologia da regulação.
A “sociologia da mudança radical” contrapõem-se a da regulação em
função de sua preocupação central em explicar mudança radical, conflitos
estruturais subjacentes, modos de dominação e contradições estruturais
considerados característicos da sociedade moderna. É uma sociologia voltada
a emancipação do homem das estruturas que limitam e impedem seu potencial
para o desenvolvimento. Suas questões básicas centram-se nas privações,
materiais e psíquicas (simbólicas), do homem. É frequentemente visionaria e
utópica dado que se volta tanto ao potencial quanto ao real (actuality); focaliza-
se o que é possível e não o que é; nas alternativas e não no status quo. Neste
sentido está tão distanciada da sociologia da regulação quanto a sociologia de
Marx da sociologia de Durkheim.
18

A distancia entre estas duas sociologias pode ser melhor visualizada em


forma diagramática onde pontos de vista extremos são contrapostos de forma a
enfatizar suas diferenças essenciais. A tabela 2.2 sintetiza a situação.
Propomos a regulação/mudança radical como a segunda dimensão crucial do
nosso esquema para a análise das teorias sociais. Lado a lado coma dimensão
subjetiva/objetiva discutida no capitulo anterior serve como um meio poderoso
de identificação e analise dos pressupostos subjacentes às teorias sociais de
forma geral.
As noções de regulação e mudança radical foram aqui apresentadas de
forma rudimentar e extrema. Os dois modelos ilustrados na tabela 2.2 devem,
pois ser vistos como formulações do tipo-ideal. Os sete elementos identificados
caracem de uma análise mais rigorosa e sistemática através da qual sua forma
e natureza pudessem ser detalhadas. Deixaremos este detalhamento para ser
feito em capítulos posteriores. Aqui serão consideradas apenas as
interrelacoes mais gerais entre as sociologias da regulação e mudança radical.
Consideramos que eles representem pontos de vista fundamentalmente
distintos sobre a natureza da sociedade; que refletem quadros de referencia
essencialmente distintos; que representam, portanto, modelos alternativos para
a análise dos processos sociais.
Apresentar os modelos desta forma é ficar aberto ao tipo de criticas
feitas ao trabalho de Dahrendorf. Por exemplo, poderia ser sugerido que os
dois modelos são recíprocos – apenas dois lados de uma mesma moeda – e
que a interrelação dos sub-elementos de cada modelo não necessita ser
congruente, ou seja, a analise poderia focalizar elementos de ambos os
modelos.
A resposta a estas críticas segue as linhas de nossa defesa do trabalho
de Dahrendorf. A junção dos dois modelos ao seu tratamento como se fossem
variações sobre um mesmo tema é uma forma de ignorar, ou pelo menos
diminuir, suas diferenças fundamentais. Embora seja possível diluir os dois
modelos num meio de campo qualquer, eles deverão permanecer
essencialmente separados dado estarem embasados em pressupostos que se
opõe. Desta forma, discutir as funções do conflito social é comprometer-se com
uma sociologia da regulação em oposição a uma sociologia da mudança
radical. Não importa o quanto nossa postura se aproxime do meio do campo,
19

ainda assim será necessário um comprometimento com um ou outro lado da


questão. As diferenças fundamentais entre os dois modelos ficarão mais claras
à medida que nos reportemos às suas origens intelectuais e escolas
representativas em capítulos posteriores. Concebemos estas duas
perspectivas sociológicas como dimensões polares, reconhecendo, assim, que
a despeito das variações possíveis no contexto de cada modelo, as duas
perspectivas são essencialmente distintas e separadas uma da outra.

Tabela 2.2
A dimensão da regulação-mudança radical
Preocupações da sociologia Preocupações da sociologia
da regulação da mudança radical
o status quo mudança radical
ordem social conflito estrutural
consenso modos de dominação
integração e coesão social contradição
solidariedade emancipação
satisfação das necessidades privação
realidade potencialidade

Notas:
Consenso: concordância voluntária e espontânea
Satisfação das necessidades: usado para referir-se à ênfase na satisfação das
necessidades do individuo ou do sistema. A sociologia da regulação pressupõe
que diversas características da sociedade podem ser explicadas em função
destas necessidades. Pressupõem, ainda, que é possível identificar e
satisfazer as necessidades humanas no contexto do sistema social existente e
que a sociedade reflete estas necessidades. O conceito de privação, de outro
lado, está enraizado na noção de que o sistema social impede a realização dos
desejos, a privação em si sendo decorrente do status quo. O sistema social,
portanto, não satisfaz as necessidades, destruindo a possibilidade de
realização. Está enraizado, em ultima análise, na noção de que a sociedade é
o resultado de privações e não de ganhos.
3.Duas dimensões: quatro paradigmas

Nos dois capítulos anteriores focalizamos alguns dos pressupostos que


caracterizam as diferentes abordagens em teoria social. Argumentamos ser
20

possível analisar tais abordagens à luz de duas dimensões chaves, cada qual
subsumindo, por sua vez, uma serie de temas correlatos. Sugerimos que os
pressupostos sobre a natureza das ciências sociais podem ser pensados em
termos da dimensão subjetivo/objetivo, e os pressupostos sobre a natureza das
ciências sociais em termos da dimensão regulação/mudança radical. Neste
capitulo, pretendemos discutir as inter-relações entre estas duas dimensões, e
desenvolver um esquema coerente para a análise das teorias sociais.
Já apontamos para o fato de que o debate sociológico, desde o fim da
década de sessenta, tendeu a ignorar a distinção entre estas duas dimensões
e mais especificamente, focalizar a dimensão subjetivo/objetivo, ignorando a
dimensão regulação/mudança radical. É interessante observar que este
privilegiamento ocorreu tanto nas correntes sociológicas com a questão da
regulação quanto nas associadas à questão da mudança radical. O debate
objetividade/subjetividade foi, portanto, conduzido independentemente da
dimensão social de ambos os campos.
Na sociologia da regulação o debate centrou-se entre a sociologia
interpretativa e o funcionalismo. Na esteira do livro de Berger e Luckman
(1966) sobre a sociologia do conhecimento, do trabalho de Garfinkel (1967)
sobre etnometodologia e do renascimento do interesse pela fenomelogia, os
pressupostos ontológicos e epistemológicos da perspectiva funcionalista
ficaram cada vez mais sujeitos ao questionamento. Este debate tem levado a
uma polarização crescente entre estas duas escolas de pensamento.
Na sociologia da mudança radical, de forma semelhante, ocorreu também
uma divisão entre os teóricos que subscreviam a visões objetivas ou subjetivas
da sociedade. Em vários sentidos, o debate teve como precursor a publicação
do livro de Louis Althusser “Por Marx”, na França, em 1966, e na Grã Bretanha,
em 1969. Este livro introduziu a noção de uma “ruptura epistemológica” na obra
de Marx polarizando os teóricos marxistas em dois campos distintos: os que
enfatizam os aspectos subjetivos do marxismo (por exemplo, Lukacs e a
Escola de Frankfurt) e os que advogam uma visão mais objetivista, entre eles
os seguidores do estruturalismo althusseriano.
Observou-se, assim, no contexto das sociologias da mudança radical, de
meados ao fim dos anos sessenta, uma mudança de ênfase. O debate entre as
duas sociologias, característico do inicio da década, cedeu lugar a um dialogo
21

introvertido, no interior de cada corrente de pensamento. Em vez de um diálogo


inter-escolas houve uma volta para dentro de si mesmo, sendo os comentários
voltados para si próprios. A preocupação em resolver o posicionamento face a
dimensão subjetivo/objetivo – um processo complexo dada à multiplicidade de
questões interrelacionadas – levou a negligenciar a dimensão
regulação/mudança radical.
O debate recente, consequentemente, tem sido frequentemente confuso. O
pensamento sociológico passou a ser caracterizado pelo sectarismo, com a
ausência conspícua de uma perspectiva mais abrangente e da compreensão
das questões fundamentais. As condições atuais são propicias para a reflexão
sobre os caminhos futuros e, neste sentido, propomos que as duas dimensões
aqui apresentadas definem parâmetros críticos para tal reflexão. São
propostas, aqui, como dimensões independentes que permitem a retomada de
questões relevantes no inicio da década de sessenta, colocando-as lado a lado
com questões relevantes no final da década e inicio dos anos setenta. As duas
dimensões, em conjunto, definem quatro paradigmas sociológicos possíveis de
serem usados na analise de um extenso conjunto de teorias sociais. A relação
entre os quatro paradigmas, aqui denominados de humanismo radical,
estruturalismo radical, interpretativo e funcionalista, é ilustrada na Figura 3.1

FIGURA 3.1
Sociologia da mudança radical

Humanismo Estruturalismo
radical radical

Subjetivo Objetivo

Interpretativo Funcionalismo

Sociologia da regulação
22

A figura mostra claramente que os quatro paradigmas têm aspectos


comuns com seus vizinhos nos eixos vertical ou horizontal em função da
adesão a uma ou outra de suas dimensões, mas diferencia-se em função de
outra dimensão. Desta forma, devem ser considerados como contínuos mas,
ao mesmo tempo, distintos: contínuos porque compartilham características,
mas distintos porque as diferenças existentes – como será demonstrado a
seguir – são suficientemente importantes a ponto de justificar o tratamento dos
paradigmas como quatro entidades distintas. Os quatro paradigmas definem,
pois, perspectivas fundamentalmente distinta de analise dos fenômenos
sociais. Eles abordam esta tarefa a partir de perspectivas contrastantes e
geram, consequentemente, conceitos e instrumentos de analise também
diferenciados.

3.1 A natureza e os usos dos quatro paradigmas

Antes de discutir a natureza substantiva de cada um destes paradigmas


vale a pena pontuar o sentido que aqui é dada a noção de paradigma.
Consideramos que os quatro paradigmas remetem a pressupostos meta-
teóricos que embasam o quadro de referencia, o modo de teorizar e o modus
operandi das respectivas teorias. O termo paradigma visa assim enfatizar o que
há de comum nas diferentes perspectivas; aquilo que dá unidade ao trabalho
de um determinado grupo de teóricos; que permite afirmar que o grupo aborda
a teoria social a partir dos limites definidos por uma problemática comum.
Isto não implica em homogeneidade de pensamento e até permite que,
no contexto de um dado paradigma, haja debate entre teóricos com pontos de
vista diferenciados. O paradigma pressupõe, entretanto, uma uniformidade
subjacente em função dos pressupostos compartilhados, embora
frequentemente não explicitados, que diferenciam fundamentalmente o grupo
de teóricos que trabalham no seio de outros paradigmas. A homogeneidade
intra paradigmática é, portanto, derivada das visões de realidade que lhes são
próprias, embora nem sempre sendo reconhecidas como tal.
Ao identificar quatro paradigmas na teoria social estamos sugerindo
essencialmente que é importante analisar a produção de uma determinada
área em função dos quatro conjuntos básicos de pressupostos. Cada conjunto
23

se remete a realidades sócio-cientificas distintas. Estar localizado em um


determinado paradigma implica, pois, em ver o mundo a partir de uma ótica
especifica. Os quatro paradigmas definem, portanto, quatro visões de mundo,
embasadas, cada uma delas, em pressupostos meta-teóricos sobre a natureza
da ciência e da sociedade.
Afirmamos, aqui, que qualquer teórico da sociedade pode ser localizado
em um dos quatro paradigmas, em função dos pressupostos teóricos refletidos
em seu trabalho. Os quatro paradigmas, em seu conjunto, fornecem um mapa
para a negociação da área temática, um meio conveniente de identificar as
semelhanças e diferenças básicas entre as varias teorias e, mais
especificamente, um meio de identificar o quadro de referencias por elas
adotadas. É, também, uma forma conveniente de localizar o nosso quadro de
referencias e entender, desta forma, porque determinadas teorias e
perspectivas exercem maior atração sobre nós. Como qualquer mapa, fornece
um instrumento que permite estabelecer onde estamos, onde estivemos, e para
onde podemos avançar no futuro. É um meio de traçar as nossas trajetórias
intelectuais e de outros teóricos que contribuíram para esta área temática.
Pretendemos neste livro, fazer intenso uso das qualidades de mapa
destes quatro paradigmas. Cada um deles define a extensão de um território
intelectual. Entretanto, considerando os pressupostos meta-teóricos globais
que os diferenciam entre si, há muito lugar para variações intra-paradigamas.
Assim, por exemplo, no contexto do paradigma funcionalista há teóricos que
adotam posições mais extremadas em uma outra das duas dimensões
consideradas. Tais diferenças implicam o debate interno entre os cientistas
engajados nas atividades de “ciência normal” no contexto de um determinado
paradigma. Os capítulos seguintes examinarão detalhadamente cada um dos
quatro paradigmas procurando localizar, em cada um, suas teorias mais
representativas.
Nossa pesquisa sugere que em contrate com o acirrado debate no
interior de cada paradigma, as jornadas entre-paradigmas tendem a ser raras.
Esta observação é compatível com a noção de Kuhn (1970) de ciência
revolucionária. Para que um cientista mude de paradigma é necessário que
mude seus pressupostos meta-teóricos, algo que, embora possível, na pratica
não ocorre com muita freqüência.
24

Como observaram Keat e Urrl “a mudança de lealdade de paradigma


para outro, para o cientista individual, é frequentemente uma experiência de
conversão semelhante a uma mudança de Gestalt ou de fé religiosa” (1975, p.
55). Quando ocorre tal mudança ela se configura como uma ruptura e é
discutida como tal na literatura técnica, ou seja, o teórico é bem vindo pelo
novo grupo, e é, concomitantemente, deserdado pelos colegas do antigo
paradigma. Foi o que ocorreu na “ruptura epistemológica” na obra do jovem
Marx e do Marx maduro, que seria por nós considerada como uma mudança do
paradigma humanista radical para o estruturalista radical. Na perspectiva da
analise organizacional poderíamos usar como exemplo a obra de Silverman e a
mudança do paradigma funcionalista para o interpretativo. Estas trajetórias
intelectuais serão analisadas em maior detalhe em capítulos subseqüentes.
Antes de perseguir com a analise dos paradigmas vale enfatizar, ainda,
mais uma questão: ou seja, o fato de quatro paradigmas são mutuamente
exclusivos. Sendo visões alternativas da realidade social, remetem a quatro
visões distintas da realidade. São diferentes formas de ver (o mundo). A
síntese, portanto, não é possível, pois que em suas formas puras são
contraditórios dado estarem embasados em pelo menos um conjunto oposto de
pressupostos meta-teóricos. Eles constituem alternativas no sentido de que é
possível operar sequencialmente em diferentes paradigmas; mas são
mutuamente exclusivos visto que não podemos operar concomitantemente em
mais de um paradigma, pois ao acatarmos os pressupostos de um estamos
contestando os pressupostos dos demais.
Desta forma, apresentaremos os quatro paradigmas como instrumentos
de analise na esperança que o conhecimento dos pontos de vista competitivos
nos faça, minimamente, cientes dos limites dentre os quais podemos abordar
nossa disciplina.

3.2.1 O paradigma funcionalista

Este paradigma tem sido o referencial dominante na sociologia


acadêmica assim como no estudo das organizações. É uma perspectiva
firmemente enraizada na sociologia da regulação e que aborda seu objeto de
estudo de um ponto de vista objetivista. Os teóricos funcionalistas têm estado
25

na testa do debate sobre ordem/conflito e os conceitos que utilizamos para a


categorização da sociologia da regulação podem ser aplicados, em maior ou
menor grau, a todas as suas escolas de pensamento. Caracterizam-se, pois,
pela preocupação com a explicação do status quo, ordem social, consenso,
integração social, solidariedade, satisfação das necessidades e realidade.
Abordam estas arenas da problemática sociológica de um ponto de vista
realista, determinista e nomotético.
O paradigma funcionalista tende a gerar sociologia regulativa na sua
forma mais completa. Em termos gerais, esta abordagem busca,
essencialmente, a explicação racional da atividade social. É uma perspectiva
altamente pragmática, preocupada em compreender a sociedade de forma tal a
gerar conhecimento que possa ser utilizado. É frequentemente uma sociologia
orientada a problemas, orientada à busca de soluções praticas para problemas
práticos. É, de modo geral, comprometida com uma filosofia que propõe a
engenharia social como base para a mudança social e enfatiza a necessidade
de compreender os mecanismos da ordem, equilíbrio e estabilidade na
sociedade e as formas de sua manutenção. Está preocupada, portanto, com a
regulação e controle efetivos da atividade social.
Como fica claro a partir da discussão efetuada no capitulo 1, a
abordagem de ciência social característica deste paradigma esta enraizada na
tradição do positivismo sociológico. Reflete, assim, a tentativa de aplicar
modelos e métodos das ciências naturais às ciências humanas. Tendo origem
na França, nas primeiras décadas do século 19, esta perspectiva exerce sua
influência através da obra de Augusto Conte, Herbert Spencer, Emile Durkheim
e Vilfredo Pareto. A abordagem funcionalista em ciências sociais tem de a
pressupor que o mundo social é composto de artefatos empíricos relativamente
concretos cujas inter-relações podem ser identificadas, estudadas e medidas
através de instrumentais derivados das ciências naturais. Frequentemente as
abordagens funcionalistas privilegiam analogias mecânicas e biológicas como
formas de criar modelos para a compreensão do mundo social. Por exemplo,
no caso de Durkhein, a existência de fatos sociais externos à consciência do
homem e que o restringem em suas atividades cotidianas é uma noção central
em sua teoria. A tarefa, portanto, era compreender as inter-relações entre os
fatos sociais objetivos e articular uma sociologia capaz de explicar os tipos de
26

solidariedade que formam o cimento social que mantém a sociedade coesa. A


estabilidade e a natureza ordenada do mundo da natureza foram apropriadas
para a arena das atividades humanas. Para Durkheim, portanto, a tarefa da
sociologia era a compreensão da natureza desta ordem regulada.
Desde as primeiras décadas do século 20, entretanto, o paradigma
funcionalista vem sendo influenciado por aspectos derivados da teoria social
enraizada no idealismo alemão. Esta abordagem, como foi visto no capitulo 1,
reflete alguns pressupostos sobre a natureza das ciências sociais que são
diretamente opostos aos pressupostos do positivismo sociológico. Entretanto,
alguns de seus elementos, em função do trabalho de teóricos tais como Max
Weber, George Simmel e George Herbert Mead, vem sendo utilizados no
contexto das teorias que buscam uma aproximação entre as duas tradições
teóricas. Este esforço gerou perspectivas teóricas que são características das
regiões menos objetivistas do paradigma funcionalista, próximas, portanto, às
fronteiras do paradigma interpretativo. Estas teorias tendem a rejeitar as
analogias mecânicas e biológicas aplicadas ao mundo social e introduziram
idéias que enfatizavam a necessidade de se compreender a sociedade a partir
do ponto de vista dos atores engajados nas atividades sociais.
Desde os anos 40 tem havido, também, uma infusão de idéias marxistas
próprias a uma sociologia da mudança radical. Estas vêm sendo incorporadas
ao paradigma na tentativa de radicalizar a teoria funcionalista e rebater as
acusações de que estas são essencialmente conservadoras e incapazes de
explicar a mudança social. Estas tentativas refletem os temas do debate
examinado no capítulo anterior, especialmente a possibilidade de incorporação
do conflito no âmbito das teorias sobre a ordem, de modo a explicar mais
adequadamente as atividades sociais.
Colocando cruamente, a formação do paradigma funcionalista pode ser
entendida como uma interação de três conjuntos de forças intelectuais, tal
como ilustrado na Figura 3.2
27

FIGURA 3.2
Sociologia da mudança radical

Teoria Marxista

Subjetivo Objetivo

Idealismo
Alemão

Sociologia da Positivismo
Regulação Sociológico

Das três a mais influente foi o positivismo sociológico. Desta forma,


tradições competitivas têm sido sugadas para o interior deste paradigma e
usadas no contexto da problemática funcionalista com suas ênfase na natureza
essencialmente objetiva do mundo social e sua preocupação na formulação de
explicações voltadas a regulação das atividades sociais. Estas correntes
cruzadas dentro do paradigma determinaram o aparecimento de escolas de
pensamento altamente diferenciadas entre si, gerando teorias variadas e um
intenso debate intra paradigma. As Figuras 3.3 e 3.4 embora também elas
rudimentares, possibilitam visualizar as principais correntes teóricas
sociológicas e organizacionais dos quatro paradigmas, em capítulos
subseqüentes. Fica logo aparente, entretanto, que a maioria dos teóricos das
organizações, sociólogos industriais, psicólogos e teóricos de relações
humanas abordam seu objeto de estudo a partir da perspectiva do paradigma
funcionalista.
28

FIGURA 3.3
Os quatro paradigmas sociológicos
Sociologia da mudança radical

Anarquismo

Marxismo
Teoria social
Existencialismo contemporêneo
Russa
S mediterrâneo
o
Teoria crítica
l
i
p
Subjetivo Teoria do conflito Objetivo
c
i
s Teoria
Fenomenologia Hermeneutica
m integrativa
o
Teoria dos
Objetivismo
sistemas

Sociologia Interacionismo e
fenomenológica Teoria da ação

Sociologia da regulação

FIGURA 3.4
As principais correntes de análise organizacional
Sociologia da mudança radical

Teoria anti- Teoria


organizacio organizacio
Subjetivo nal nal radical Objetivo
Pluralismo

Quadro de Teorias da Teoria dos Objetivismo


referência disfunção sistemas
da ação burocrática

Sociologia da regulação

3.2.2 O Paradigma interpretativo

As teorias localizadas no paradigma interpretativo adotam abordagens


coerentes com os princípios do que aqui denominamos sociologia da
regulação, embora o tratamento subjetivista adotado na análise do mundo
social faça com que estes vínculos sejam frequentemente implícitos. O
paradigma interpretativo se orienta pela tentativa de compreender o mundo tal
29

como ele é; compreender, portanto, a natureza fundamental do mundo social,


ao nível, da experiência subjetiva. Procura explicações no terreno da
consciência individual e da subjetividade, na perspectiva dos participantes e
não na dos observadores da ação.
Suas abordagens em ciências sociais tende a ser nominalista, anti-
positivista e ideográfica. Concebe o mundo social como um processo
emergente, fruto da atividade dos indivíduos envolvidos. A realidade social, na
medida em que reconhece sua existência fora da consciência individual, é vista
como uma rede de pressupostos e significados compartilhados
intersubjetivamente. O status ontológico do mundo social é considerado
problemático. O cotidiano tem sabor de um acontecimento milagroso. Os
filósofos e sociólogos interpretativos buscam entender a própria base e a fonte
da realidade social. Assim, frequentemente procuram penetrar as profundezas
da consciência e da subjetividade humana em busca destes significados
fundamentais subjacentes a vida social.
Dada esta visão da realidade, não é surpreendente que a convivência
dos sociólogos interpretativos com a sociologia da regulação seja implícita e
não explicita. Seus pressupostos ontológicos impedem um interesse direto
pelas questões subjacentes ao debate ordem/conflito enquanto tal. Entretanto,
suas visões são permeadas pelo pressuposto de que a atividade humana é
coesa, ordenada e integrada. Os problemas do conflito, dominação,
contradição, potencialidade e mudança não encontram lugar em seus quadros
de referencia. Eles estão orientados mais para a compreensão de um mundo
social subjetivamente criado tal como este se apresenta em termos de um
processo continuado.
A sociologia interpretativa centra-se, pois, na compreensão da essência
da vida cotidiana. Em termos do esquema analítico por anos adotado, ela está
permeada de questões relacionadas à natureza do staus quo, consenso,
coesão social, solidariedade e realidade.
O paradigma interpretativo é fruto direto da tradição de pensamento
social embasada no idealismo alemão. Seus fundamentos estão na obra de
Kant e refletem uma filosofia que enfatiza a natureza essencialmente espiritual
do mundo social. A tradição idealista dominou o pensamento alemão do século
18 em diante, estando fortemente relacionado com o movimento romântico na
30

literatura e nas artes. Fora deste domínio, entretanto, teve impacto limitado até
ser revitalizado, no fim de 1890 e começo do século atual por influencia dos
movimentos neo-idealistas. Autores como Dilthey, Husserl e Shultz
contribuíram para estabelecê-lo como quadro de referencia para a análise
social, embora comprometidos em diferentes graus com a problemática
subjacente do idealismo alemão.
As Figuras 3.3 e 3.4 ilustram a forma como este paradigma vem se
desenvolvendo no que se refere a teoria social e organizacional. Aliás, uma vez
que tem sido poucas as tentativas de enfocar conceitos e situações
organizacionais a partir desta perspectiva, o paradigma gerou poucas teorias
organizacionais propriamente ditas. E, como se verá em capítulos seguintes,
há boas razoes para isto. Afinal, as premissas do paradigma interpretativo
questionam a existência concreta das organizações. Face a este
questionamento, tem importância fundamental para o estudo das organizações
pois questiona os pressupostos ontológicos subjacentes as abordagens
funcionalistas na sociologia em geral e no estudo das organizações em
particular.

3.2.3 O Paradigma humanista radical

O paradigma humanista radical distingui-se por sua preocupação em


desenvolver uma sociologia da mudança radical a partir de uma perspectiva
subjetivista. Sua postura face às ciências sociais tem muito em comum com o
paradigma interpretativo dado que vê o mundo social a partir de uma
perspectiva nominalista, voluntarista e ideográfica. Difere, entretanto, porque
seu referencial está comprometido com uma visão de sociedade que enfatiza a
necessidade de superar ou transcender as limitações impostas pelos “arranjos”
sociais atuais.
Uma das noções básicas que permeiam o paradigma é de que a
consciência humana é dominada pelas superestruturas ideológicas com as
quais interage e que determinam uma ruptura cognitiva entre o homem e sua
verdadeira consciência. Tal “ruptura” é a alienação ou a falsa consciência que
inibe ou impede a verdadeira realização do homem. A preocupação central dos
teóricos que abordam a condição humana a partir desta perspectiva é a
31

superação dos obstáculos que as configurações sociais existentes colocam


para o desenvolvimento do homem. É uma teoria social desenvolvida para a
critica ao status quo. Tende a visualizar a sociedade como anti-humana e se
preocupa em articular formas que permitam aos seres humanos transcenderem
os vínculos e grilhões espirituais que os amarram à ordem social atual e, desta
forma, desenvolver seu pleno potencial.
Em relação aos elementos utilizados para conceitualizar a sociologia da
mudança radical, o humanismo radical coloca maior ênfase na mudança
radical, nos modos de dominação, na emancipação, privação e
potencialidades. Os conceitos de conflito estrutural e contradição não
aparecem, nesta perspectiva, de forma proeminente, dado serem conceitos
mais característicos de visões mais objetivistas do social tais como
apresentadas no contexto do paradigma estruturalista radical.
Coerente com a abordagem subjetivista em ciências sociais, a
perspectiva do humanismo radical enfatiza a consciência humana. Seus
fundamentos intelectuais remetem às mesmas raízes do paradigma
interpretativo. Deriva da tradição do idealismo especialmente na forma como é
expresso na obra de Kant e Hegel (embora este reinterpretado pelo jovem
Marx). Foi através de Marx que a tradição idealista foi inicialmente utilizada
como base para uma filosofia social radical, e vários humanistas radicais
tiveram esta fonte por inspiração. Marx, em essência, inverteu o quadro
referencial do idealismo hegeliano, gerando, desta forma, as bases para o
humanismo radical. O paradigma foi também influenciado pela infusão da
perspectiva fenomenológica derivada da obra de Husserl.
Como será discutido mais detalhadamente em capítulos posteriores,
afora a obra do jovem do Marx, o interesse por este paradigma permaneceu
adormecido (dormant) até os anos 20 quando Lukacs e Gramsci revitalizaram o
interesse pelas interpretações subjetivistas da teoria marxista. Este interesse
foi desenvolvido pelos membros da Escola de Frankfurt que geraram um
intenso debate, especialmente em função da obra de Habermas e Marcuse. A
filosofia existencialista de Sartre também pertence a este paradigma, assim
como a produção de teóricos sociais tão diversos quanto Illich, Castanedas e
Laing. Todos eles, cada qual a sua maneira, compartilham a preocupação com
a liberação da consciência e da experiência da dominação ideológica das
32

superestruturas do mundo social no qual os homens vivem suas vidas. Buscam


mudar este mundo social através da mudança nas formas de cognição e
consciência.
Mais uma vez, as figuras 3.3 e 3.4 fornecem um resumo grosseiro da
forma em que este paradigma vem sendo desenvolvido nas teorias sociais e no
estudo das organizações. Como procuraremos demonstrar no capitulo 9, os
autores que se manifestaram a respeito das organizações a partir desta
perspectiva sedimentaram as bases para a emergência de uma teoria anti-
organizacional. O paradigma do humanismo radical está essencialmente
embasado em uma inversão dos pressupostos do paradigma funcionalista.
Portanto, não é de se surpreender que a teoria anti-organizacional faça uma
inversão da problemática que define a teoria organizacional e quase todos seus
aspectos.

3.2.4 O paradigma estruturalista radical

As teorias localizadas neste paradigma advogam uma sociologia da


mudança radical a partir de uma perspectiva objetivista. Embora
compartilhando uma abordagem de ciência que tem varias semelhanças com a
teoria funcionalista, seus objetivos são fundamentalmente diferentes. O
estruturalismo radical está comprometido com a mudança radical,
emancipação, modos de dominação, contradição e privação. Aborda essas
questões a partir de uma perspectiva realista, positivista, determinista e
nomotética.
Enquanto os humanistas radicais constroem sua perspectiva focalizando
a consciência como elemento chave da critica radical a sociedade, os
estruturalistas radicais concentram-se nas relações estruturais existentes em
um mundo social realista. Enfatizam que a mudança radical faz parte da própria
natureza e estrutura da sociedade contemporânea, e buscam explicar as inter-
relações básicas no contexto das formações sociais totais. Há, no interior deste
paradigma, um intenso debate, diferentes teóricos enfatizando o papel de
diferentes forças sociais como forças motrizes na explicação da mudança
social. Uns focalizam as contradições internas mais profundas, enquanto outros
focalizam a estrutura e a análise das relações de poder. É comum a todos,
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entretanto, a visão de que a sociedade contemporânea se caracteriza por


conflitos fundamentais que geram mudança radical através de crises políticas e
econômicas. É o conflito e a mudança que possibilita a emancipação dos
homens das estruturas sociais em que vivem.
Este paradigma tem por raízes intelectuais a obra do Marx maduro –
após a chamada “ruptura epistemológica”. Foi o paradigma adotado por Marx
após uma década de envolvimento político ativo e em função de um crescente
interesse pela teoria Darwiniana da evolução e pela economia política. As
idéias centrais de Marx sofreram interpretações variadas nas mãos de teóricos
que se postulavam como seguidores fieis. Entre estes foram particularmente
influentes: Engels, Plekanov, Lenin e Bukharin. Entre os principais exponentes
da posição estruturalista radical, fora da arena de influencia da teoria social
russa, destacam-se: Althusser, Poulantzas, Colletti e vários sociólogos
marxistas da New Left. Embora a influência de Marx no paradigma
estruturalista radical tenha sido deveras dominante podemos identificar,
também, uma forte influencia Weberiana. Como veremos em capítulos
subseqüentes, há um pequeno grupo de teóricos da sociedade que, em anos
recentes, vem procurando explorar as interfaces entre o pensamento de Marx e
Weber, gerando uma perspectiva bastante diferenciada por nos descrita como
“teoria do conflito”. Insere-se aqui o trabalho de Dahrendorf assim como de
teóricos tais como Rex e Miliband.
Mais uma vez, as Figuras 3.3 e 3.4 fornecem uma visão de conjunto das
correntes de pensamento localizadas neste paradigma, correntes estas que
serão examinadas em maior detalhe nos capítulos 10 e 11. Exeptuando-se a
teoria do conflito, a visão estruturalista radical tem recebido pouca atenção por
parte da sociologia inglesa e americana. Este paradigma, estando localizado na
visão realista de mundo social, tem implicações relevantes para o estudo das
organizações, mas estas implicações foram apenas minimamente
desenvolvidas. No capítulo 11 faremos uma revisão dos trabalhos pertinentes e
discutiremos a ainda embrionária teoria radical das organizações.

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