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Abrimos esse trabalho com a citação do Código Penal do Canadá, artigo que
esteve em vigor até 2018, que foi lançado em1892. Pode, inicialmente, parecer que
estamos longe do que o título desta obra se propõe, mas logo veremos que não. Em 2015,
uma mulher que praticava a Wicca, bruxaria moderna, como religião, foi presa e
processadas por “prática de bruxaria”. Em 2018, outras duas mulheres foram processadas,
acusadas de “extorquir pelo uso de forças das trevas”. Doriee Madeena Stevenson,
cartomante, foi acusada de se apropriar indevidamente de 60 mil dólares canadenses.
Uma semana depois a “médium” Samanta Stevenson, foi presa em Toronto, segundo a
polícia, por fazer crer a um homem que só se livraria dos “espíritos malignos” em sua
casa, se a vendesse e transferisse o dinheiro para ela (KING, 2018).
Coughlan (2018) afirma que muitos dos artigos do Código Penal do Canadá estão
obsoletos e precisam passar pela reforma proposta em 2017. Segue afirmando que "No
caso da lei sobre bruxaria, na prática qualquer comportamento que pudesse se encaixar
1
Artigo revogado em 2018.
2
Fingir praticar bruxaria, etc. 365 Cada um que de forma fraudulenta
(a) finge exercer ou usar qualquer tipo de bruxaria, feitiçaria, encantamento ou conjuração,
(b) compromete-se, por uma contrapartida, a adivinhar o futuro, ou
(c) finge de sua habilidade ou conhecimento de uma ciência oculta ou astuta para descobrir onde ou de
que maneira qualquer coisa que supostamente foi roubada ou perdida pode ser encontrada, é culpado
de crime punível com condenação sumária. (Tradução) Disponível em: < https://laws-
lois.justice.gc.ca/eng/acts/c-46/section-365-20030101.html#wb-cont>, acesso em: 10.dez. 2020.
nessa categoria está coberto por outros artigos do código, como a fraude.". No entanto,
muitos casos podem ser recuperados, como em 1990, um homem processado no caso “R.
v. Appleby , [1990] AJ No. 849”, quando encontraram uma faca pontiaguda em sua
propriedade. O Acusado, porém, afirmava ser “wiccano” e: "the knife is as much a part
of me as my arm is. It's an integral part of my belief structure, and its's a part of my life.
I use it for magical reasons...I also use it for cutting string."3
Bakht e Palmer (2015) mostram que a última acusação em que o réu foi condenado
por “bruxaria” ocorreu em 1993 “R. c. Turgeon, [1993] JQ no 523”, confirmado pela
Suprema Corte e sem direito de apelação. Seguem dizendo que nos casos mais recentes
como os de 20094 e 20135, as acusações foram retiradas quando os acusados se declaram
culpados por crimes “mais graves”. Concluem, os especialistas:
Em 2018, enfim, o artigo 365 do “Criminal Code” Canadense foi revogado, mas
o “fóssil irracional” que era a própria lei nos leva a pensar no “espírito” das coisas, o que
movia o Direito Penal no final do século XIX e início do XX. E buscando assim,
compreender essa essência que envolve a repressão a “bruxas”, “feiticeiros”, “espíritas”,
3 "a faca faz parte de mim tanto quanto meu braço. É parte integrante da minha estrutura de
crenças e faz parte da minha vida. Eu a uso por motivos mágicos ... Também uso para cortar
corda." (Tradução).
4 Vishwantee Persaud, acusada de enganar advogado criminal Noel Daley. Disponível em:
https://www.thestar.com/news/crime/2009/12/10/witch_was_wicked_police_say.html.
5 Gustavo Valencia Gomez, acusado e preso por “finger praticar bruxaria”. Disponível em:
https://www.thestar.com/news/crime/2013/02/08/witchcraft_charges_dropped_after_restitution_
paid_to_victims.html.
6 A ofensa de feitiçaria no Canadá e sua aplicação primária, contínua a mulheres e grupos
7
Lição inaugural do curso de direito criminal, em Minerva Brasileira, apud. T. ALVES JR., Anot. ao cod.
crim., 1.19. (MACHADO, 1941, p. 1).
contexto social brasileiro no pós-abolição, o que obrigatoriamente levou Joaquim Nabuco
em 4 de outubro de 1888, a apresentar à Câmara de Deputados, o projeto de um
dispositivo penal que desse conta de todas as mudanças ocorridas: “Fica autorizado o
Ministro da Justiça a mandar fazer uma edição oficial das leis penais do Império, de
acordo com a lei de 13 de maio de 1888, e intercalando as disposições esparsas"
(MACHADO, 1941, p. 6).
É bem óbvio o porquê de ao ser analisado em comparação ao Código Penal de
1890, o Código Criminal do Império parecer tão bom. O Código do Império substituiu o
“nefasto” Código Filipino. Compilado de leis reformadoras das Ordenações Manuelinas,
com penas físicas rigorosas e atrelado ao passado colonial, que devia ser deixado no
passado, segundo a mentalidade da época em que a legislação foi gestada. Assim , o
Código do Império, de fato se preocupa, sobretudo em substituir a herança da metrópole
portuguesa, mas para falar em inovação pouco se dá.
Alvarez (et al., 2003) afirma que:
No entanto, a organização jurídico-política que foi sendo constituída, nas
primeiras décadas do período imperial, ainda mesclava ideias que estavam em
debate na Europa e nos Estados Unidos com aspectos da herança colonial. No
campo penal, as concepções sobre os crimes e as formas de punição são
bastante reveladoras dessa tensão que se mantém ao longo do Império. Mas
nem por isso o Código deixou de contemplar formas já consideradas arcaicas
de punição, como a pena de morte, as galés, a prisão perpétua. A estrutura
escravista suportava igualmente a conservação dos castigos corporais aos
escravos (ALVAREZ, SALLA e SOUZA, 2003, p. 2).
Siqueira (2003) vai ainda afirmar que não há um método definido nem “na
distribuição geral das figuras delituosas, quer na coordenação destas entre si, lacunoso
em muitos pontos, parco daquilo que já tem tido entrada no direito positivo de povos
cultos”. A ausência da Escola Positivista de Direito, também conhecida por Criminologia
é, portanto, o que mais incomoda aos juristas que o criticam.
O Liberalismo Penal, chamado de Escola Clássica no apogeu da Criminologia por
Ferri, um dos idealizadores desta, é fruto do Humanismo e está diretamente ligado a
contestação dos poderes absolutistas. A pena de morte e à galês, por exemplo, deixou de
ser presente apenas com Código Penal de 1890 no Brasil, assim como inaugurou a pena
prisão com trabalho, visando a correção do indivíduo. Estas ações estão em direta
consonância com a Escola Clássica, mesmo que seu principal redator Baptista Pereira,
aceitasse também os postulados da Escola Positiva. O entendimento do Direito Penal a
partir da Criminologia dos italianos Lombroso e Ferri, inaugurado em 1882, já havia
adentrado ao Brasil e marcava a formação de muitos juristas, favorecendo ainda mais as
críticas ao Código de 1890.
Comparativamente, as Escolas são opostas em si. Enquanto a Escola Clássica
prioriza a liberdade individual, a Escola Positiva visa a defesa social. Então, para a Escola
Positiva, a negativa do livre-arbítrio e da liberdade moral parte do determinismo, onde
acreditam que o criminoso possui em sua formação antropológica a tendência ao crime.
Portanto, para a Escola Positiva, o foco passa do crime – como na Escola Clássica – para
o criminoso. A pena não está mais pautada no crime e sim na “temibilidade” do
delinquente, forma-se também o conceito de anormalidade do criminoso, sua
caracterização como delinquente. Os fatores de prevenção ao próprio crime tomam
destaque pela possibilidade de “prever” grupos de delinquentes natos (SBRICCOLI,
2009). Lombroso postulou: “Na realidade, para os delinquentes-natos adultos não há
muitos remédios; é necessário isola-los para sempre, nos casos incorrigíveis, e suprimi-
los quando a incorrigibilidade os torna demasiado perigosos” (1893, p.8).
A Escola Positiva encontrou solo fértil para suas ideias no Brasil, em um momento
tão singular com a abolição recente da escravidão negro-africana, e com a Proclamação
da República, onde o autoritarismo do Estado se destacou sobretudo. Não havia mais
espaço para filosofias humanistas e privilégios do Livre-arbítrio. A posição do Direito
Penal deveria acompanhar as necessidades de enquadrar e ditar os modelos de
normalidade (Civilização) e de anormalidade (delinquência). Esse é, portanto, o grande
motivador de todas as críticas ao Código Penal, o foco dado aos crimes e não aos
criminosos. E sobretudo a abertura e possibilidades interpretativas como no caso do artigo
27 em seu inciso 4º, onde atrela a responsabilidade jurídica do réu à sua livre vontade e
inteligência pelo ato cometido, mais uma vez demonstrando a marcada Escola Clássica
que conduz o Código.
No entanto, Antônio José da Costa e Silva (2004) explicita o teor das críticas ao
Código Penal de 1890 como “severas, não raro exageradas” (SILVA, 2004, p. 25).
Exageradas ou coerentes, as críticas não foram suficientes para derrubar o Código Penal
de 1890 e isso é um problema que precisa ser investigado de perto. Como uma legislação
que em desacordo com a teoria do direito mais aceita pelos juristas da época, pôde
permanecer atuante por mais de cinco décadas?
Esses artigos estavam presentes no Código, portanto para dar conta um apelo
moral das altas classes brasileiras, que não suportavam mais lidar com as práticas de
“idiossincrasia moral”. Os responsáveis pelo relatório afirmam que as alterações
propostas são “irrelevantes” e que a “necessidade de prever o crime indígena “
manifestado nos exemplos da capoeiragem, do roubo de animais e nos jogos de azar, já
eram supridas pelo Código Penal de 1890 nos artigos 402 e 403 para Capoeiragem, 331
§ 4 para roubo de animais e nos artigos 363 e 370 para jogos de azar. Vão ainda mais
fundo quando tratam dos “crimes contra saúde pública”, criticando a supressão do artigo
que criminaliza o “officio” de curandeiro, avaliam ser de suma importância que haja a
diferenciação dada pelo Código de 1890, quando põe um artigo prevendo crime de
“exercício ilegal da medicina” e outro para a prática do curandeirismo. Questionam ainda
que se mantiveram sobre o nome de crime indígena, outras práticas que revelam a
“idiossincrasia moral do nosso meio”, porque não o fez com o artigo 158, visto que “é tão
indígena quanto os outros” (ADVOGADOS, 1897).
Quem não está identificado ao estudo da Feitiçaria no Brasil não pode deixar
de estranhar a promiscuidade que se encontram os utensílios pertencentes aos
ritos de Shango, Ogan, Eshu etc. A razão desse fato reside no desvirtuamento
soffrido pela religião africana com o passar dos tempos. Ao perito pouco
cauteloso escapam essas pequenas cousas que não passam despercebidas aos
estudiosos do assumpto. De modo que pela simples observação do material
apresentado ao exame, chega ao abundo de concluir que no local onde se
encontraram o material arrecadado se praticavam vários cultos consagrados a
orishas que se contradizem. Uma tal conclusão não deixa de ser temerária. O
que pode affirmar-se é que em tal ou qual templo se pratica o falso espiritismo,
sem precisar a divindade a qual se homenageia. No caso em apreço não tem
dúvidas os peritos em atestar que a matéria examinada é composta por objectos
de uso corrente no arraial da “macumba”. Tome-se para argumento a causa
assignalada na letra – a – o chifre de veado. Dê-se a palavra a Ortiz: <<U
empleo de cuernoss como fetiches es muy corriente entre lós brujos afro-
cubanos e problablemente fue introducido em Cuba por los negros Del
Congo>> “Los negros Brujos”. E mais adiante, continuando a tratar desse
fetiche assim se exprime o mesmo autor na sua aludida obra: << Em Cuba
donde los brujos non hallaron antílopes, los cuernos de esto cuadrúpede fueron
sustituidos por los del veado y más raramente por los de otros
animales.>>(VELASCO, 2019, pp. 23 -24).
O Ortiz citado no relatório dos peritos, policiais cariocas, Octacíio Leal e Claudio
Mendonça ao fazerem a apreensão de materiais no caso de Domingos Bastos em 1929, é
Fernando Ortiz (1881 – 1969), advogado de formação, radicado na Europa que trabalhou
entre os anos de 1902 e 1905 como cônsul em Gênova, onde teve contato direto com
Cesare Lombroso e Enrico Ferri (1856 – 1929), e aprofundou suas convicções na
Criminologia. Ao retornar à Cuba, Ortiz produz a obra Hampa Afro-cubana. Los Negros
Brujos (Apuntes para un estúdio de etnologia criminal), com prefácio escrito pelo
próprio Lombroso. Essa obra serviu aos policiais cariocas, no fim da década de 20, como
“manual” de repressão a religiosos afro-brasileiros.
O livro Hampa Afro-cubana. Los Negros Brujos. Apuntes para un estudio de
etnologia criminal, foi a primeira obra de Ortiz, produzida 1906, logo assim que retornou
para Cuba depois de seu tempo como cônsul na Itália. A obra é dividida em sete capítulos
e traz uma análise das práticas religiosas afro-cubanas através do olhar racista de Ortiz
que pretende a todo o momento categorizar as práticas religiosas como criminosas e seus
praticantes como delinquentes em potencial. Logo de princípio, apresenta-nos os
componentes étnicos da sociedade cubana e como é formada racialmente a “má vida”
daquela sociedade.
Em resumo, ele vai afirmar que as três raças: “que depositaram suas características
psicológicas” na sociedade cubana foram os brancos espanhóis que colonizaram a região
trazendo a cultura e os vícios próprios das diversas regiões da Espanha; em segundo lugar
os negros que ele se atém com maior cuidado; em terceiro ele põe os “amarillos”, ou seja,
os “amarelos”, sem explicar muito bem quem seriam. Ele inclui uma quarta raça, quase
que por obrigação, por considerá-la insignificante por sua escassez, os “Americanos
nativos”. (ORTIZ: 1906, p. 21).
Sobre a raça negra, que é sem dúvidas o que mais interessa para o autor mediante
toda a proposta da obra, ele afirma terem sido indivíduos retirados pela escravidão, de
suas pátrias, famílias e sociedade. Foram assim submetidos a trabalhos rudes e constantes,
diferente do que estavam acostumados, tiveram sua impulsividade comprimida por uma
raça “superior” e “civilizada”. E, ao fim da escravidão, esses negros alcançaram um nível
mais apurado de cultura, perdendo muito de sua “psicologia africana”, no entanto se
mantiveram em um ambiente restrito e separado dos brancos. (ORTIZ:1906, p. 27).
No “Provenir de La Brujeria”, capítulo sétimo de “Las Hampas Afro-cubanas”,
Ortiz apresenta suas considerações sobre o que pensa ser a solução para o “problema” da
bruxaria em Cuba. Ortiz, vai afirmar que sua análise não se trata de uma pretensa
infalibilidade própria dos “brujos”, mas como se deve “vacinar” a evolução da bruxaria
levando em conta os elementos e as circunstâncias favoráveis e adversas do ambiente.
Apesar de ressaltar que não pretende fazer futurologia, ele prevê o fim do aspecto
religioso da “brujeria” e afirma que, assim sendo, todos os bruxos seriam apenas
curandeiros e adivinhos num futuro próximo. Ele explica isso a partir do desaparecimento
dos negros africanos com a morte dos que ainda viviam em Cuba. Ele acreditava que
haveria então uma sucessão geracional de pessoas que já não nutririam fé em “Obatalá”.
E, que os negros das novas gerações, ou seguiriam a fé dos brancos, mas com acentuada
prática “fetichista”, ou deixariam de ter grandes preocupações com a religião em frente
às “lutas econômicas” (ORTIZ: 1906, p. 351 - 352).
Ortiz organiza ainda, a prática da bruxaria em algumas categorias: Curandeiro,
adivinho (agoureiro) e feiticeiro, para ele esses são os três aspectos da bruxaria e afirma
que todos estes irão se “desafricanizar”, perdendo seu prestígio para os procedimentos
“adivinhatórios dos brancos” como a quiromancia. No entanto para ele o que é mais
preocupante é o caráter intrínseco da “bruxaria” enquanto prática “antissocial”. O autor
faz uma breve comparação da bruxaria cubana com a haitiana e a jamaicana e diminui o
potencial perigo da primeira frente às últimas. Seriam “as mortes cometidas por seus
seguidores insuficientes para taxar a aquela de criminosa, visto o extremo dos homicídios
habituais” (ORTIZ: 1906, p. 356).
Mesmo afirmando que a bruxaria não pode ser vista e tratada como uma
“religião”, e que isso seria “um absurdo” por seu caráter antissocial (ORTIZ: 1906, p.
380). Ortiz atribui aos “brujos” o peso do que chama de “gérmen delituoso”. Esse
“gérmen” presente na “psique do bruxo” unido ao “fanatismo das suas superstições” e
ao “excesso de impulsividade” acha como via de saída da “bruxaria” os atos delituosos
(ORTIZ: 1906, p. 356). Portanto, a prática da “bruxaria” não por si só uma religião,
devido as práticas antissociais que se atribui aos seus praticantes, mas é um reflexo do
“gérmem delituoso” que aflora em seus praticantes.
Toda a busca de Ortiz em sua obra encontra nesse trecho seu objetivo final, ele
pretende realizar uma mudança drástica na criminologia cubana, em suas ferramentas
legais e na forma de se pensar o Direito. Os “brujos” são o exemplo usado para demonstrar
a ineficiência da forma de se punir “a má vida” de Cuba. Em 1926, vinte anos depois do
lançamento “Negros Brujos”, Ortiz publica o projeto de um Código Criminal cubano,
com prólogo de Enrico Ferri8 e a proposta permanecia “um sistema defensivo do Estado
contra a delinquência” (ORTIZ, 1926, p. ix).
8 Enrico Ferri – (1856 – 1929): Sociólogo criminal, jurista italiano, principal representante da
Escola Positivista de Direito Penal “considerava a delinquência como consequência de fatores
antropológicos e sociais”. Companheiro de Cesare Lombroso e Rafael Garófalo. Acesso em: <
http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/EnricFer.html>.
Na proposta de Ortiz para uma efetiva repressão aos bruxos cubanos ele considera
fundamental que o simples exercício da “bruxaria” seja caracterizado como crime, e não
apenas os crimes acontecidos em decorrência da bruxaria como já apresentamos. Nesse
sentido, Ortiz vê o Código Penal de 1890 do Brasil como uma “avançada” Lei para o ano
de 1906, momento que Ortiz publica sua obra.
Apesar desse “avanço” prático da Lei brasileira frente à Lei Cubana de repressão
aos “brujos”, através do que propõe o autor, vemos que o projeto de Ortiz pretende um
combate mais efetivo principalmente no que se refere às penalizações. Primeiro ele
recomenda separar os “brujos” de seus “fiéis”:
Fazendo desaparecer os enganadores, suas festas, danças e rituais selvagens,
seus templos destruídos, seus deuses impotentes confiscados, todos esses
tentáculos de feitiçaria cortados o que liga seus crentes ao fundo bárbaro de
nossa sociedade. Aliviando suas, ainda não desafricanizadas mentes, do peso
de suas superstições e fazendo-os subindo sucessivas zonas de cultura.
Para conseguir isso, não é necessário alcançar um procedimento radical de
eliminação social, como a pena de morte, incompatível com a progressão
penitenciária contemporânea, que já falhou nessa desaparição. (ORTIZ: 1906,
p. 383 -384).
Tal como ele afirma não ser possível, diante do “progresso penitenciário
contemporâneo” recomendar a pena de morte como penalidade aos bruxos, vai dizer
também que seria ótimo se pudessem expulsá-los do território nacional, se fosse possível
suas deportações para os países africanos de origem, “tal como se expulsam os imigrantes
nocivos e aos delinquentes estrangeiros”, porém afirma ser de eficácia restrita tal ação
por terem um grande número de “brujos criollos” atuando em Cuba (ORTIZ: 1906, p.
384).
Sobre o material de culto apreendido nas prisões, ele também faz algumas
recomendações:
Desde já em todo caso, mesmo que uma sentença não seja alcançada, deveriam
aproveitar os ídolos, as imagens, os colares, os fetiches, os altares, as
“chumbas” e os demais utensílios e lixos dos templos buxos, dos quais ao
menos os mais característicos, ao invés de serem destruídos, como se tem feito
atualmente, deveriam ser destinados a um dos nossos museus.
Para se conseguir isto não é necessária nenhuma inovação legal, bastaria uma
recomendação dos centros competentes para mover a boa vontade das
autoridades judiciais inferiores em prol da proposta de conservação desses
objetos pelo interesse da ciência (ORTIZ: 1906, p. 386 -388).
As propostas de Ortiz são para o contexto do seu País, ele trabalha com a realidade
do seu espaço. Dessa maneira, ao observar a obra de Ortiz (1906), podemos notar que as
ideias de um processo civilizador e de um racismo biológico, que estão apuradamente
impregnadas em suas propostas, e são aproveitadas pela polícia carioca nos anos 20, para
uma melhor efetivação da Repressão, ultrapassam as barreiras territoriais. O Código
Penal brasileiro, que Ortiz vê como avançado, mas que internamente sofre duras críticas,
principalmente aos artigos 157 e 158, aparelha as teorias Criminalistas do Direito Penal
acabam se associando aos propósitos do Processo Civilizador saturados nesses artigos,
superando as próprias bases teóricas do Código Penal.
9Não tratamos nesse artigo, mas a figura de Nina Rodrigues, no Brasil é fundamental, também,
para compreender a formação racista que há em toda a intelectualidade brasileira. Em obras
como “O Animismo Fetichista dos Negros bahianos”, Nina estabelece suas convicções acerca
da miscigenação e “contaminação” da cultura dos brancos pelas práticas dos negros,
enegrecendo toda a “raça brasileira” (VELASCO, 2019).
REFERÊNCIAS
ADVOGADOS, I. D. O. D. Parecer sobre o projeto do Código Penal em discussão na
Câmara dos Srs. Deputados ao Congresso Nacional. Rio de Janeiro: Tipografia do
Jornal do Commércio , 1897.
ALVAREZ, M. C.; SALLA, F.; SOUZA, L. A. F. A sociedade e a lei: o Código Penal
de. Justiça e História., Porto Alegre, v. 3, 2003.
ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Volume I: Uma História dos Costumes. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.
KING, R. L. Porque o Canadá ainda processa pessoas por falsa bruxaria. BBC News,
nov. 2018. Disponivel em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-46051814>.
Acesso em: 15 nov. 2020.
REDEYE, O. H. Time to Burn Witchcraft Provisions in the Criminal Code. Can LII
Conect, 2017. Disponivel em: <https://canliiconnects.org/en/commentaries/45329>.
Acesso em: 03 dez. 2020.