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VELASCO, Valquíria Cristina Rodrigues.

Geografia da Repressão: Experiências, Processos e


Religiosidades no Rio de Janeiro (1890 – 1929). 2019. Dissertação (Mestrado em História). Instituto de
História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.

A pesquisadora aborda quatro autores que publicaram artigos e livros sobre as religiões de matriz africana
no início do século XX
Nina Rodrigues – Salvador; Fernando ORitz – Havana; Dario Bittencourt – Rio Grande do Sul; Dalmo
Matos – São Paulo.

Diante de uma acalorada reclamação da imprensa baiana para que se “acabe de uma vez com aquela tradição
africana de tão fácil extirpação” (RODRIGUES: [1988] 1932, p. 245), Nina considera curioso aquele tom de
ingênua convicção como a imprensa, o público “esclarecido” e a polícia creem ser possível “sufocar as
crenças religiosas de uma raça com a mesma facilidade com que se dispersa um ajuntamento fortuito de
curiosos” (idem). Por fim, Nina acrescenta que cultos que sobreviveram às violências da escravidão e
resistiram à conversão católica, “capitulando o clero” estavam destinadas a resistir por longo prazo, e faz
uma “previsão”, talvez daquilo que ele já observava:
Diante da violência da polícia, as práticas negras se furtarão à publicidade: hão de refugiar-se nos
recessos das matas, nos recônditos das mansardas e cortiços; se retrairão às horas mortas da noite, se
ampararão na proteção dos poderosos que buscam orgias e devassidões que elas lhes proporcionem;
tomarão por fim roupagens do catolicismo e da superstição ambientes. Mas essas práticas, no sentido
religioso que as inspira, hão de persistir enquanto a lenta evolução da raça negra deixar o negro, o
negro antropológico atual. (RODRIGUES: [1988] 1932, p. 246).

Nina Rodrigues não concorda com a violência praticada pelo Estado, mas considera as práticas como “orgia
e devassidão”
Se por um lado nos parece haver uma solidariedade de Nina com as crenças africanas reprimidas pela
violência da polícia, de outro modo nos parece que ele está na verdade fazendo uma denúncia ao perfil da
sociedade brasileira e expondo aí suas verdadeiras crenças acerca da involução desse povo. (p.21)
Práticas que só seriam superadas pelos negros após lento processo de evolução

Fernando Ortiz e o estudo sobre Negros Brujos em Cuba – influencia da criminologia racista de Lombroso
O espiritismo cientificista de Allan Kardec coaduna com as teorias e modelos já apresentados para
construção da compreensão de Ortiz para as questões raciais em perspectiva evolutiva, abarcando uma
espiritualidade nacional, para o seu caso Cubano. Ortiz que negava ser Espírita14 não deixava de
demonstrar o interesse pelas ideias de Kardec e em muitos pontos importou para suas categorias as
explicações do mesmo. Como em sua concepção de que os negros são delinquentes por essência,
deixa explícito que o problema está além da formação biológica, adentra uma motivação
espiritualista, indo além dos termos criminológicos. (p.25)

Etnologia criminal: categorizar as práticas religiosas como criminosas e seus praticantes como criminosos
em potencial
Ortiz organiza a prática da bruxaria em algumas categorias: Curandeiro, adivinho (agoureiro) e
feiticeiro, para ele esses são os três aspectos da bruxaria e afirma que todos estes irão se
desafricanizar, perdendo seu prestigio para os procedimentos “adivinhatórios dos brancos” como a
quiromancia. No entanto para ele o que é mais preocupante é o caráter intrínseco da “bruxaria”
enquanto prática “antissocial”. O autor faz uma breve comparação da bruxaria cubana com a haitiana
e a jamaicana e diminui o potencial perigo da primeira frente à essas ultimas. Seriam “as mortes
cometidas por seus seguidores insuficientes para taxar a aquela de criminosa, visto o extremo dos
homicídios habituais” (ORTIZ: 1906, p. 356). (p.28)

Roubo de galinhas para os feitiços, preparos abortivos


Ortiz destaca que as leis cubanas não são “rigorosas” para o combate a bruxaria. Como um bom
discípulo de Lombroso ele qualifica os bruxos como “delinquentes natos”, um “caráter congênito para
todos os atrasos morais, para além da delinquência” (ORTIZ: 1906, p. 367) e portanto deve haver uma
legislação forte para efetivo combate. Ele vai afirmar que mesmo quando há uma penalização, como
no caso da “niña Zoila”,19 não há uma caracterização do delito como “brujeria” nos tribunais, sem
reconhecimentos legais para os aspectos da bruxaria (ORTIZ: 1906, p. 369 – 370). Com “energéticos
procedimentos médicos e higiênicos” Cuba saiu vitoriosa contra a Febre Amarela (ORTIZ: 1906, p.
373), da mesma maneira Ortiz propõe que seja a luta contra a bruxaria: “com procedimentos
repressivos e preventivos(de terapia e profilaxia social)”20(idem) (...)
Como um foco de infecção, Ortiz aconselha que os locais onde existam os cultos bruxos sejam
desinfetados, uma limpeza espacial e social, visto que suas propostas vão adiante com uma profunda
reforma do sistema criminal cubano, abraçando a “moderna ciência criminológica”

Dario Bittencourt, gaúcho:


Ao iniciar uma reflexão sobre os “cultos feiticistas no Império” já de princípio ressalta a situação de
pobreza em que os negros vivem em decorrência da história da escravidão, o que não permitia aos
religiosos contraírem templos para suas práticas. E vai utilizar a concepção de Nina Rodrigues (1932)
para o distanciamento das religiões negras dos “atos civis”: casamento, nascimento e enterro, que
ficam a cargo da Religião Oficial do Império, sendo vigente entre eles apenas o culto aos mortos
dentro das cerimônias africanas. Por fim, para o Império, sua Constituição e Leis Criminais vão
afirmar que eram “tolerados os cultos feiticistas”, mediante discrição das práticas que já eram levadas
pelo contexto da escravidão a viver de maneira discreta nas senzalas. E garante não haver outro
modo de se lidar com as crenças negras já que o “feitiço é uma realidade brasileira”
(BITTENCOURT: 1940 apud RAMOS: 1940, p. 131). (p. 38, grifos nossos)

Críticas ao sistema repressivo


Conclui então que “a liberdade religiosa – ao menos no tocante aos cultos fetichistas – parece não
existir”, “seja por ignorância crassa ou por refalsada má fé esses cultos continuam sendo considerados
foras da Lei” (idem). E novamente em crítica à polícia afirma que as autoridades não têm
conhecimento do que é inviolável a liberdade religiosa. Todo seu discurso contrário à violência da
polícia e favorável a liberdade de culto (p.39)

Império o Estado tolerava os cultos fetichistas, mediante uma discrição desses. E que na República, com a
Constituição de 1934 “desde que não contravenham a ordem pública e aos bons costumes” a “macumba e o
batuque” são respeitáveis como quaisquer outros cultos religiosos e devem ser exercidos com liberdade. E
todo aquele, mesmo as autoridades que contrariarem essa liberdade devem ser punidos conforme a Lei
(p.40)

Voltando ao texto que Bittencourt apresenta Mãe Andreza dizendo que ela “não era uma batuqueira vulgar
como as que pululam por aí” (BITTENCOURT: 1958 apud SANTOS: 2009, p. 84), vemos que ele de fato
crê que existem muitos casos de “exploradores” dentro dos “candomblés”, e então o que diferenciava mãe
Andreza para além de “sua inteligência singular”?

Diferenciação entre magia boa e magia má pela dimensão mística ser estruturante das relações sociais no
país, como se todas as classes sociais fossem atravessadas pelo conhecimento, ou necessidade de acesso, aos
cultos afro-brasileiros
Bastide e a “Macumba em São Paulo”: estudos sobre a repressão paulista na década de 1930 e 1970
O mapeamento que Bastide (1946) realiza através do endereço dos acusados nos processos mostra a
geografia da macumba pela Capital paulista, que era justamente o que ele buscava, mas nos mostra
mais. Sem dúvidas através de outra ótica de observação, esses dados levantam a geografia da
repressão operada pelo Estado contra as crenças afro-brasileiras. Ele observa que os feiticeiros e os
curandeiros brancos e estrangeiros se localizam na parte Oeste da Cidade, enquanto os “homens de
cor” se localizam no centro. Ele considera as verificações sem sentido por contarem com um número
pequeno de casos, porém como o próprio qualifica no início do capítulo é pertinente pela ausência de
outros trabalhos que façam esse tipo de investigação. (p.46)

Yvonne Maggie (1992)


relativiza a “hipótese repressiva” ao perceber que “enquanto alguns terreiros eram violentamente
reprimidos, outros eram protegidos por intelectuais da elite local” (Maggie: 1992, p. 24). E é a partir
dessa nova perspectiva de relativização da repressão que Maggie afirma buscar inserir sua discussão
“procurando relativizar ainda mais a hipótese da repressão do Estado”. Procura então demonstrar “que
os mecanismos reguladores criados pelo Estado a partir da República não extirparam a crença (nem
pretendiam isso)40 mas, ao contrário foram fundamentais para sua constituição” (MAGGIE: 1992, p.
24).

Maggie (1992) vai realizar duas seleções dentro do universo dos cento e nove processos do período
entre 1890 e 1941 que ela encontra. Primeiro retira os quarenta “mais ricos”42 que serão resumidos
pelas informações: “Nome, profissão, flagrante, sentença, ano, acusadores, objetos, perícia, peritos,
depoimentos de testemunhas e acusados, discurso dos especialistas”. Dessa primeira seleção então ela
realizou um novo recorte de acordo com dois aspectos: “Como pensavam os juízes, advogados,
delegados e promotores” e “como pensavam testemunhas, acusados e peritos e como se evidenciava o
crime”, daí saindo os vinte e quatro que ela trabalhará no corpus do texto (MAGGIE: 1992, p. 50).
(p.51)

João José Reis: repressão mediada


Ou seja, a repressão e a liberdade eram concedidas de acordo com a mentalidade da autoridade que estivesse
de frente no momento, pois o importante era manter a paz, garantindo que não haveria uma repressão
escrava (REIS: 54 [2009] 1989, p. 39)

Metodo da micro-historia: método da Micro-História, observar através do personagem Juca Rosa o contexto
social do Rio de Janeiro do século XIX, onde uma figura como Juca se tornou notícia durante meses e teve
seu nome como sinônimo de feiticeiro por décadas. A autora vai considerar que o contexto social do
momento foi determinante para que o caso estudado tivesse a repercussão que teve, ela destaca a situação da
população negra na Cidade do Rio de Janeiro daquele momento
Nos leva a observar também que a questão da repressão aos curandeiros-feiticeiros, como vemos também
nas fontes levantas, é anterior ao Código Penal republicano. Não havia uma lei específica, o que foi
corrigido na primeira oportunidade que se vislumbrou na República, Juca Rosa, exemplo, foi processado por
estelionato (56)

Nathalia Oliveira (2015) A Repressão Policial às Religiões de Matrizes Afro-brasileiras no Estado Novo
(1937 – 1945)
Ainda sobre o Museu de Magia Negra atribui seu tombamento a Dante Milano (OLIVEIRA: 2015, pp.7 – 8).
Mas ao observarmos o processo de tombamento das peças podemos verificar que estava de frente nesse
momento o “Primeiro Delegado Auxiliar” Anezio Frota Aguiar, responsável pela “Secção de Tóxicos e
Mystificações” da Primeira Delegacia Auxiliar, onde se encontravam os “objetos que se relacionam com a
Magia Negra”.48 Enquanto diretor do SPHAN e responsável pelo tombamento, encontramos Rodrigo Mello
Franco de Andrade. Dante Milano só apareceria no cenário ligado ao Museu de Magia Negra em 1947
quando o SPHAN repassa as peças para o Museu do Departamento Federal de Segurança Pública, como
podemos verificar em ofício trocado entre esses, presente no processo de tombamento das peças.
Geografias da Repressão:
traçar um mapeamento da geografia da repressão, pretendendo a identificação do perfil desses religiosos
reprimidos, observando as relações entre a crença dos reprimidos e o espaço social e geográfico onde estão
inseridos, tal como o perfil de cor, nacionalidade, materialidade encontrada nas apreensões e, sobretudo o
discurso presente tanto na imprensa (nos casos em que os periódicos são as fontes), quanto nos processos
criminais e de habeas corpus. (p.60)
No entanto, como já foi ressaltado por autores antes de nós (MATTOS: 1938; BASTIDE: 1983; MAGGIE:
1992), no processo da repressão na República, muitos dos reprimidos são brancos. Observando as fontes
podemos confirmar a presença significativa de brancos e estrangeiros nos processos criminais55, mas há
uma questão que nenhum dos autores anteriores se debruçou. Mesmo em casos que a repressão ocorre contra
pessoas brancas percebemos indícios de um racismo cultural, e para trabalharmos com esse conceito
utilizamos Fanon no capítulo Racismo e Cultura do livro Em defesa da Revolução Africana ([1980] 1969).
Ele concebe que o racismo “vulgar” biológico tende a desaparecer ao se transformar em racismo cultural:
O objecto do racismo já não é o homem particular, mas uma certa forma de existir. No limite, fala-se de
mensagem, de estilo cultural. Os <valores ocidentais> reúnem-se singularmente ao já célebre apelo à luta da
<cruz contra o crescente>. (FANON: [1890] 1969, p. 36). (p.63)

Fontes historiográficas:
Enquanto os Processos Criminais falam para um público restrito e conhecedor dos detalhes dos processos e
leis que os fundamenta, nos possibilitando a observação das dinâmicas existentes entre polícia, testemunhas,
réus (e seus advogados) e a justiça, assim como a representação do Estado em seus agentes da ordem. Já os
jornais por estarem mais preocupados com a mensagem que passarão ao seu público e sem nenhum
compromisso com a Justiça como instituição, fazem seus relatos muito preocupados com os fatos chocantes
aos olhos de seu público. Muitas vezes levantam denúncias contra algumas pessoas que por suas ações se
destacam e chamam atenção e em inúmeras vezes os jornais saem na frente da polícia buscando evidencias
que levarão às autoridades a concluir a devassa e prisão dos “feiticeiros”. Os jornais ainda estão muito
preocupados em descrever os materiais apreendidos com grande minúcia sempre a fim de chocar pela
“barbárie” dos atos e utensílios.

Periódicos:
Os discursos dos periódicos estão sempre enfatizando a “barbárie” e a “incivilidade” daqueles que são
presos na prática do “curandeirismo”, da “medicina ilegal”, da “cartomancia”, do “espiritismo” ou “falso
espiritismo” como passou a ser chamado a partir da metade da década de 1920, ou ainda do “charlatanismo”
e “magia negra” como são classificados genericamente os inquéritos apresentados pelas mídias impressas do
período que escolhemos como nosso recorte temporal. Os jornais ressaltam constantemente o papel
importante da polícia no combate e a responsabilidade das autoridades na “limpeza” necessária da sociedade
carioca “infestada” pelas crenças “incautas” e “bárbaras”.

Templos religiosos:
Não poderíamos falar em templos religiosos pensando em um modelo concebido de Igreja, terreiro, centro
ou outro qualquer nessas proporções. Em muitos casos os religiosos são presos em suas próprias casas de
moradia, onde também realizavam suas práticas religiosas. Em tantos outros, lojas comerciais ou
estabelecimentos era usados, poucos são os casos em que observa-se a organização estrutural externa
(possivelmente também um resultado da repressão) concebida por nós como um templo religioso de nossos
tempos. No entanto para traçar de forma evidente a maneira de observação desses lugares, escolhemos
manter o uso do termo “templos religiosos”, visto que esses espaços eram para além de lojas, casas,
barracões e farmácias, eram tidos por aqueles que os frequentavam como locais de encontro com algo
considerado divino. (p.67)

Campanhas moralistas dos jornais


Buscam chocar seu público e realizar um levante de informações que são entregues prontamente aos
policiais para que esses executem as prisões. São de fato campanhas morais com auxílio de uma camada da
população que podiam não concordar com aquelas práticas, ou ainda se sentir impulsionados a denunciar por
motivos mais específicos como brigas pessoais, “trabalhos” que não deram certo, entre tantas outras tensões.

Trabalhos de Bastide em São Paulo: grande apreensão de ‘curandeiros’ brancos


Trabalhos de Maggie no Rio:
Explicando a presença de uma maioria branca sendo reprimida Maggie (1992) afirma estar diante de uma
Guerra de Orixás69, onde para a autora ficam evidentes as tensões nas relações sociais de negros e brancos
no Rio de Janeiro, tendo os negros “aparentemente”, levado vantagem na disputa sobre a repressão, pois
foram os menos envolvidos nas tramas da polícia, enquanto os brancos aparecem como grandes alvos: A
maior porcentagem de brancos e imigrantes, em relação à população total do estado no período, pode
significar que os negros foram melhores acusadores... Ou seja, não se podem tomar os dados obtidos na
polícia como se representassem a população total de participantes do culto (MAGGIE: 1992, p. 69). Assim
Maggie (1992) discorda do objetivo de Bastide ([1946] 1983), mas alerta apenas para o problema de análise
onde Bastide resumiu a “Macumba Paulista” aos casos de repressão. Esses dados para ela não representam a
totalidade nem a face mais verdadeira do “culto”. (p.81)

Maioria dos processos, os acusados estão classificados como “não dito”


Considerando a narrativa comum por parte dos policiais em vários processos onde a “cor da crença” está
bastante definida enquanto práticas negras, cremos que nos processos em que os policiais não falam nada da
cor do acuso, assim o fazem por ser, para eles, uma relação presumível como “própria dos negros”, e por
isso o número de brancos acaba por ser maior, pois ao se depararem com um branco, ou um estrangeiro
esses deveriam ser diferenciados no processo por suas cores não estarem de acordo com suas práticas,
enquanto os negros não são de fato declarados como tal. (p.84)
de maneira geral são essas as categorias como aparecem caracterizando os sujeitos em seus processos ou nas
reportagens dos periódicos: “Negro”, “Branco”, “Pardo”, “Caboclo” e os casos em que não são ditos o perfil
dos envolvidos. Dessa maneira podemos afirmar que em dados consolidados dos anos totais observados
(1890 – 1929) e dentro das duas fontes trabalhadas (Jornais e Processos Criminais), os negros são maioria
frente aos brancos, porém a informação ausente é majoritária. Ressaltamos que consideramos como hipótese
para explicação dessa ausência de informação, principalmente nos casos dos inquéritos e processos judiciais,
o fato de que para as autoridades da época era mais que certo que esses crimes viessem a serem cometidos
por pessoas negras, por isso não haveria necessidade de reafirmar “algo óbvio”. Já em casos que o acusado
era branco isso acaba por ser ressaltado no processo para que haja uma diferenciação do “óbvio” que era a
acusação de negros. Então dentro de nossa hipótese os “Não-Dito” seria também, constituído por pessoas
negras o que daria um número majoritário dessas na dinâmica da reprimidas, portanto compreendemos a
questão racial de maneira muito diferente do que já foi apresentado por Mattos (1938), Bastide (1942) e
Maggie (1992), pretendemos assim, mais a diante trabalhar o processo das ideologias raciais que adentram o
Brasil no Século XIX. (p.85)
a partir da década de 1910 a fotografia passa a acompanhar as noticias de jornal – é exclusividade dos
negros a exposição imagética
ao se intensificarem as campanhas abolicionistas os jornais vão mudando o foco de suas reportagens. Saem
os anúncios de escravos “fujões” e entram as ações policiais de batidas aos “Zungus”, “Casas de dar
Fortuna” e “macumbas”, o negro continua sendo alvo de reportagens que os estereotipam para toda a
sociedade. (p.86)

O que Manoel Queimado, Saul Cambinda, Juca Rosa, Tito Augusto Dinis dos Santos84, Bernardina Maria
do Rosário85 e tantos outros homens e mulheres que trataremos nesse trabalho possuem em comum? São
todos negros, e para além da própria cor da pele, eles creem e praticam uma “religião de preto”. Essa cor da
crença extrapolará a própria cor das peles dos envolvidos na repressão a cor impregna suas crenças, mas
como já vimos isso parece ter passado despercebido aos olhos de outros pesquisadores, não deixaremos,
porém, aqui esquecido. A questão da cor, da raça, seja impressa na pele dos “marginais” seja na crença e nos
ritos dos reprimidos é fundamental para o desenvolvimento desse trabalho. (p.90)
Há um padrão de ideais e ações que estão presentes no tratamento desses casos. Há, além uma noção dentre
as autoridades de que os negros, em específico, mas de forma geral todos aqueles que se dedicam às
“crenças dos negros”, são degenerados por natureza. Passaremos então a uma busca por compreender como
nascem essas ideias e como elas chegam ao Brasil, encontrando aqui solo fértil e um histórico de ações que
corroboravam com as filosofias em questão. (p.91)

Espiritismo científico
É necessário compreendermos que inicialmente o aspecto social dos participantes do Kardecismo no Rio de
Janeiro é de uma pequena elite. As profissões encontradas entre os participantes nas décadas de 1870 a 1890
envolvem médicos, engenheiros, homeopatas, advogados, militares e funcionários públicos. Ou seja, são
grupos de uma posição social relativamente privilegiada. No entanto é importante registrar que a FEB
realizava grupos abertos de estudo do Livro dos Espíritos, assim como festejos, comemorações e
conferencias que chegavam a reunir em média 500 pessoas (GIUMBELLI: 1997, 62 - 63).
Ideias permeadas pelo evolucionismo social: Discursos envolvendo a “raça negra” é sempre de
“inferioridade moral”, “baixa inteligência”, “inaptidão” para exercícios intelectuais e de uma evolução
“fundamental”, realizada através das “encarnações” que os levarão à níveis mais altos da evolução, deixando
para trás a raça “incivilizada”. Tais discursos se fundamentam nas “ciências”, como a Frenologia para
observação e “comprovação” de tais argumentos (KARDEC: 1868) (p.102)
Espiritismo também foi criminalizado, mas menos perseguido

Aprisionamento e nuances de gênero – elaborações: maioria das mulheres empregadas (domésticas ou


lavadeiras), homens ficavam para o enfrentamento policial
As mulheres são, no entanto por muitas vezes presas nas batidas aos espaços devassados, porém
liberadas ao verificarem na delegacia que as mesmas trabalham (domésticas e lavadeiras são
normalmente as principais atividades), muito diferente dos homens em geral. Talvez encontremos aí a
explicação para o número superior de homens entre os acusados. Havia, nesse período por nós
estudado, um embate amplo à “vadiagem”, perfil que marca principalmente os homens negros, pela
“ociosidade” que os afeta sobremaneira após 1850 com a Lei Euzébio de Queirós, mas que se torna
inimiga pública após 1888 com a abolição da escravidão (p.105)
Objetivo da dissertação “Geografias da Repressão policial a religiosos”
- parte da História Social: personagens são mais que sombras, possuem nomes, experiencias
- dimensão espacial que envolve fenômenos históricos; mudança paradigmática da relação espaço-tempo em
Soja (1993); perspectiva pós-colonialista, contando as historias a partir da subjulgação

Três períodos:
1890-1903: 20 freguesias , 23 casos, 67 pessoas
1904-1915: 25 freguesias, 20 casos, 27 pessoas
1916-1929: 27 freguesias, 75 casos, 298 pessoas

SCHLOTE, Alex August. GEO_OP: Sistema de Mapeamento Geográfico de Ocorrências Policiais. Centro
de Ciências Exatas e Naturais, Universidade Regional de Blumenau. Monografia, 2016
- metodologia: manchas criminais
 Endereços das batidas policiais, nome dos envolvidos, sexo, origem, cor, crimes cometidos,
materialidade apreendida
 Mapa das linhas de transportes e conceituação breve da evolução histórica da cidade e dos subúrbios
 Escolha da escala do mapa; escolha da forma de representação
 Comparação com dados totais: densidade demográfica
 Mapas de bairros/freguesias descontinuados do contexto do município da corte
 Não é uma geografia (ainda) apenas por descrever casos e indicar sua localização

Casos apresentando os indivíduos denunciados, presos e processados


- Madame Thebas, cartomante, registrado sob o nome de Vicente Avelar, que possuía um jornal e era líder
de uma “Sociedade Científica”, acusado como curandeiro e feiticeiro. Como divulgação usava o nome de
Madame Thebas, que indicava ser uma cartomante parisiense chegada ao Rio de Janeiro e que praticava as
“ciências ocultas”

Novamente vemos, que a Freguesia de Santana é espaço dos “feiticeiros” negros, ainda em 1907 eles
estão por lá. O centenário Pacheco era quase vizinho de outro ancião, o octagenário Tito, preso a
primeira vez em 1889 na mesma freguesia, de “Papae” Felix (1897) e de João Mina (1898), todos
“africanos” como ele, e ainda de “Mãe” Bernardina (1902), que apesar de brasileira, vinda da Bahia,
não escapava à “descendência direta de africanos legítimos”. Eram todos moradores da Freguesia de
Santana, as ruas mais negras da Cidade Velha, ao menos pelo que mostra a Repressão Policial aos
religiosos nesses primeiros anos de Código Penal. (p.173)

- mulheres cartomantes, muitas também trabalhavam como prostitutas, eram migrantes europeias (logo,
brancas)
- poucos registros da freguesia da candelária (hipótese a partir da dissertação: práticas foram empurradas da
área central para a zona periférica ao centro após as intervenções urbanísticas do início do XX)
- caso da página 176: Gregório Joaquim Leite, acusado por um delegado recém-chegado da área urbana para
a freguesia rural de Campo Grande. Foram encontradas ervas, águas, e pessoas rezando a esposa do acusado
em seu leito de morte. O advogado de defesa negou todas as evidencias e o caso foi encerrado – hipótese:
práticas ancestrais de cura (água benzida, grupos de oração) defendidos pela comunidade e advogados, que
encontraram resistência por parte de um profissional que vinha de uma área em que essas práticas eram mais
perseguidas
- Ignes Ferreira da Conceicao (p.177): estratégia de defesa afirmar que não é proibido rezar pelo bem de
outras pessoas – Freguesia de Santo Antonio, acusada condenada em primeira instancia, mas absolvida na
instancia superior por falta de provas
- denúncias da Igreja Católica a procissões espíritas, ou de qualquer crente que não professasse a fé católica
- falsos flagrantes, ou o “forjado”
a defesa duramente afirma que a polícia não só está inventando flagrantes, como o faz de maneira a
iludir a justiça criando falsas estatísticas. Ele está indo além das defesas que vimos até aqui que
costumam se manter na estratégia de apenas negar os fatos alegados pelos policiais, nesse caso o
advogado de João Pinto acusa a própria polícia de inventar os fatos do “flagrante”.(p.182)

- processo por curandeirismo e análise química policial:


Nesse processo o que mais marca é a análise pericial que é feita em duas garrafas que a polícia
encontra na casa de Ozorio. Buscando saber se o líquido dessas garrafas poderia ter sido a causa da
morte de Manuel os peritos realizam longa análise química dos líquidos. Em uma garrafa eles
descobrem uma solução carbonato de sódio em concentração de 78g por Litro e não causaria nem
grava desconforto se ingerido. A segunda garrafa periciada apresentava álcool e muitas ervas em
maceração, não sendo tóxico também. Os peritos determinam, portanto que não foram essas
substancias que mataram Manoel, nem lhe causaram qualquer malefício se o mesmo o tivesse
ingerido. No inquérito policial que temos acesso não há determinação de pena para Ozorio, (p.186)

Repressão policial, Período 1916-1929: crescimento das perseguições policiais


- mais casos de batidas policiais registrados nas freguesias suburbanas e forte redução das freguesias centrais
Inhaúma: 25% dos casos; Espírito Santo: 16%; Irajá: 14%
Período anterior (1890-1915) destacavam-se as freguesias de Santana, Sacramento e Santo Antônio: “É
verificado que a repressão cresceu e que mudou seus moldes nos últimos anos como veremos a diante. Pelo
gráfico fica evidente a maior extensão da repressão, o número de casos aumentou na mesma proporção que
se expandiu territorialmente, chegando a distante freguesia de Campo Grande, por exemplo” (p.188)

- “guerra aos candomblés do Espírito Santo”: registro em jornais (p.201) indica que a perseguição policial
ter eliminado as casas de santo da freguesia
Talvez tivessem razão no Jornal do Brasil, pois só naquele ano de 1916, dos 14 casos, 4 foram na
Freguesia do Espírito Santo, todos apresentados pelos jornais. A campanha estava mesmo forte para
combater “os candomblés” naquela região, única do Centro da Cidade que ainda aparece nesse
momento com altos índices de repressão, necessariamente por ainda ter presença marcante desses
“indesejáveis” (p.202)

Descrição pelos jornais:


é interessante ver a forma como apresentam seu candomblé nas páginas do jornal. Um “antro” onde
coisas das mais estranhas aconteciam, de deixar qualquer “supersticioso” assustado. E o que de forma
mais interessante é a afirmação de que “agora” as mulheres já estavam também ligadas a “profissão”
de “mandingueiras”. Muito embora encontremos desde o princípio um número significativo de
mulheres sendo reprimidas pela prática e “magia e espiritismo”, sendo sempre em número inferior aos
homens, mas sempre presentes (p.205)

portaria do Chefe de Polícia, 1927: jurisdição para o delegado Augusto de Matos Mendes promoverem a
repressão contra os crimes do artigo 157 e 158 do CP, ou seja, todos os delitos apreendidos nestes artigos
passariam pela investigação do delegado e seus investigadores
((AGCRJ, Relatório da Polícia do Distrito Federal apresentado ao Exmo. Sr. Augusto de Vianna de Castilho,
Ministro de Justiça e Negócios Interiores, pelo Dr. Corialano de Araújo Goés Filho, Chefe de Polícia do
DF,814-25, 1927. Citado e transcrito em: Maggie, 1992: 44-46.))
Arquivo Geral da Cidade
“impossibilitar a pratica do baixo espiritismo, da cartomancia e de outras formas de exploração da
credulidade pública”(...) [esses cultos]“disfarçam indústrias clandestinas”
Apresenta dois problemas: concorrência com as ciências médicas e a necessidade de defender a população
de práticas criminosas
“baixo espiritismo” é o terceiro fator para a alienação mental da população (perdendo apenas para a sífilis e
o álcool!), causando a ruina da “raça e nacionalidade”
Práticas que envolvem o uso de drogas que podem causar lesões ou envenenamento, caso usados de maneira
errada ou criminosa
“A campanha contra esses elementos foi confiada ao delegado Dr. Augusto Mendes e já produziu resultados
positivos, a começar pelo êxodo de curandeiros e magos que, até então, violavam abertamente a lei nesta
capital”
Aumento de 78% nos inquéritos policiais entre 1927 e 1928
- investigações e perícias: médicos peritos, para identificar se a vítima havia sido envenenada ou poderia
estar exposta à contaminação; “peritos em magia”:
Tanto os peritos quanto os investigadores que trabalham nessas investigações passam anos a fio lidando com
esse tipo de material. Com a Portaria de Corialano esse trabalho também se torna mais especializado e
detalhado. Cada relatório da perícia aparenta serem verdadeiros tratados do que é magia e feitiçaria, em um
exercício comparativo os peritos vão diferenciar o que são as práticas do espiritismo verdadeiro e o que
caracteriza o falso e baixo espiritismo. (p.212)

Repressão policial às experiencias religiosas subalternas como parte de um processo civilizador


Inicialmente a repressão a experiencias religiosas era bastante ampla, coibindo desde a homeopatia a cultos
espíritas. Para a historiadora (VELASCO, 2019) após a década de 1920 a instituição policial já teria
acumulado conhecimento para reprimir especificamente os cultos de matriz africana “É o que vemos
acontecer a partir da segunda década de repressão, quando os jornais aliados à polícia passam a estampar em
suas páginas os negros e negras envolvidos em crimes de feitiçaria” (p.214), conclui a autora.
Defende que, apesar da repressão, os religiosos resistiram mantendo suas crenças e práticas. Reconhece que
o processo civilizador tem por objetivo interferir em “pessoas e práticas na sociedade que deviam passar por
uma limpeza drástica a fim de retirar o “resíduo” africano e introduzir a “Cultura europeia””, motivado por
ideologias racistas e higienistas. Entende que a repressão policial não acaba em 1929, se estende pelas
décadas seguintes mudando suas estratégias, especialmente definindo melhor o “padrão criminal”

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