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UFF 2023.

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Aluno: Ian Cardozo dos Anjos
Disciplina: Poder e política no mundo ibérico

Verbete: Escravidão e a doutrina dos direitos naturais

Os séculos XVI e XVII assistiram o desenvolvimento de um novo momento intelectual na


península ibérica. A grande problemática que engendrou diversos debates no meio acadêmico
ibérico foi a questão da escravidão. A exploração do Novo Mundo e de alguns pontos da
costa ocidental africana gerou certas inquietações intelectuais no tocante à natureza de dois
povos, a saber, indígenas e africanos.
O problema da escravidão foi tratado principalmente pelos neoescolásticos da Escola de
Salamanca. Este movimento intelectual tratou de compreender e solucionar alguns problemas
que surgiam no meio social e intelectual da Europa, e, principalmente, do mundo ibérico. A
Escola de Salamanca partia de uma reinterpretação de Aristóteles através dos escritos e
estudos do renomado teólogo Tomás de Aquino. Assim, o tomismo foi a lupa pela qual os
teólogos de Salamanca tentaram resolver o problema da escravidão.
O embasamento teórico resumia-se à doutrina dos direitos naturais. Desta maneira, a
teologia moral; o direito canônico e o aristotelismo via Tomás de Aquino foram os
norteadores dos rumos intelectuais que buscaram tratar da escravidão.
Os tratados teológicos que estão relacionados ao movimento de Salamanca são muito
importantes para a compreensão da questão da escravidão. Por mais que haja diferença entre
a teoria e prática; entre a lei e a ação; entre o texto e o ato; é crucial entender o que Reinhart
Koselleck chamou de “viabilização linguística” (KOSELLECK, 2020). Ao tratarem sobre a
escravidão, os teólogos buscaram estabelecer uma organização segura para esta questão,
sendo, portanto, a linguagem como a maneira de organizar a sociedade.
O papel da escravidão sob o olhar da tomismo neoescolástico concentrou-se na Escola de
Salamanca. Entre os principais nomes dos intelectuais que fizeram parte deste movimento
estão: Francisco de Vitória, Domingo de Soto, Domingo Bañez, Martín de Azpilcueta,
Melchior Cano e Francisco Suárez (DUVE, 2021). Thomas Duve mostra a importância de se
entender a Escola de Salamanca não apenas como um grupo de intelectuais, “mas uma prática
cultural, um modo específico de participar em um sistema comunicativo dedicado à
normatividade” (DUVE, 2021). De igual modo, é importante ressaltar que as calorosas
disputas intelectuais exigiram uma ação de legitimação do teólogo para o debate contra
juristas. Duve mostra que Francisco de Vitória foi um dos representantes dos teólogos para
debater a questão dos direitos dos índios nas Américas (DUVE,2021).
A escravidão do africano ou do indígena era um novo probelma, e, portanto, os círculos
intelectuais buscaram debater essa questão. Um ponto importante era o da natureza da
escravidão e suas relação com os direitos naturais. O uso constante de Aristóteles através do
tomismo foi crucial para o debate sobre a escravidão. Logo, surgira uma discussão importante
sobre o aspecto da escravidão, ou seja, sobre a questão da escravidão natural.
Giuseppe Tosi apresenta alguns pontos tocados por Aristóteles sobre a escravidão, que mais
tarde, foram reinterpretados pelos teólogos neoscolásticos do século XVI. Aristóteles
estabeleceu uma diferenciação entre o escravo por natureza e o escravo por lei. O escravo é
um objeto de propriedade, porém, um objeto animado. O que o distingue dos outros objetos é
que ele é animado. Já o que caracteriza sua distinção para com outros homens é o fato de ser
uma propriedade. (TOSI, 2003).
Aristóteles também definiu que o escravo é um instrumento de ação e não de produção.
Para ele, a relação senhor/escravo é semelhante à relação alma/corpo. A diferenciação do
escravo é qualitativa. Ele é inferior e incompleto. Tosi expõe que Aristóteles tratou de
abordar a escravidão natural com a barbárie, e a escravidão como “justa”. Tosi também
revela que o cristianismo desenvolveu uma nova justificativa da escavidão que partia da
teologia (TOSI, 2003).
A junção entre a teologia moral tomista e a epistemologia aristotélica enfatizaram a questão
dos direitos naturais. Os africanos e os índios eram detentores de um direito que antecede os
direitos, um direito natural. Fernão Rebelo definiu que o escravo tinha alguns direitos, como
o de um bom tratamento pelo seu senhor, direito ao matrimônio e até a fugas em caso de
necessidade. Um ponto importante é o reconhecimento da humanidade do escravo.
Francisco de Vitória desenvolveu uma importante visão sobre a relação dos indígenas com
o território. Assim, os cristãos não poderiam se “apoderar dos bens e da terra dos bárbaros”.
Vitória reconhece um direito de posse legítima do território, mas estabelece uma binariedade
entre civilização e barbárie. Os bárbaros são inferiores e necessitados. Sepúlveda também
defendeu uma diferenciação entre os civilizados e os bárbaros. Os índios eram inferiores
porque eram bárbaros. Aqui o tema da escravidão ganhou um aspecto importatne no debate
intelecutal, pois trabalhou-se o conceito de guerra justa.
Uma das justificativas que norteou o debate sobre escravidão foi o conceito de guerra justa.
Sepúlveda tratou de relacionar a inferioridade dos bárbaros e a ação da guerra justa com o
Direito Natural. Para ele, a autoridade do “senõr” sobre o “siervo” estava baseado no Direito
Natural, pois o “imperfeito” deveria dominar o “imperfeito e desigual”. Seguindo o
pensamento aristotélico, Sepúlveda ressaltou a escravidão por natureza. Deste modo, baseado
no Direito Natural, a guerra era justa caso houvesse resistência à servidão.
A questão da guerra justa gerou um forte debate no meio intelectual. Pedro Calafate expõe
como alguns teólogos de Coimbra, Évora e Salamanca buscaram rebater os argumentos que
tentavam justificar a missão e a conquista no Novo Mundo através de uma guerra justa.
Calafate mostra como Domingo de Soto e Bartolomeu de Las Casas buscam refutar o
argumento da guerra justa. A rudeza dos índios e dos africanos não justificavam o
empreendimento da escravidão através de uma guerra justa. Assim, “a rudeza dos homens e
dos povos não lhes impedia a liberdade nem o domínio de jurisdição e posse" (CALAFATE,
2015). A guerra justa também tinha a finalidade de garantir a dignidade do gênero humano.
As práticas de sacrifício humano que tanto escandalizaram os cristãos poderiam ser punidas
por uma guerra justa que buscasse garantir uma dignidade humana universal (CALAFATE,
2015). O debate sobre a guerra justa também tinha um viés teológico que se resume na
natureza da autoridade papal. Foi discutido se o papa tinha autoridade para com todos os
povos, ou apenas para com a igreja.
O debate sobre a escravidão se deselvou no tocante à sua própria natureza. O direito das
gentes possibilitada uma escravidão legal através da guerra justa. Era, portanto, uma
justificação legal, e não natural. Luís de Molina trabalhou com a ideia da injustiça na guerra,
assim como Bartolomeu e Vitória desenvolveram a soberania dos povos sobre o seu território.
A problemática da guerra justa alcança um novo patamar com a ideia de que por mais que a
guerra fosse “injusta”, haveria uma certa possibilidade dela ser justa. O empreendimento dos
europeus entre os ameríndios e os africanos tornou possível essas nuances sobre a definição
de justiça e de escravatura.
O conceito de escravidão estava embricado com questões centrais da natueza humana. O
direito natural relaciona-se estreitamente com a natureza dos indígenas e dos africanos. A
escravidão é possível e talvez justa quando se trata de bárbaros que resistem a uma submissão
pacífica. O caráter missiológico também tinha seu peso, pois a recusa à verdadeira religião
era passível da guerra justa, assim como o direito das gentes. Do outro lado, a humanidade
dos africanos e indígenas era ressalta para refutar a ideia de uma escravidão justa, ou de uma
guerra justa. Os bárbaros eram humanos e tinham seus direitos, mesmo na condição de
escravos. Indo mais além, a guerra poderia ser injusta quando se tratasse da posse legítima do
território.
Assim, vê-se um amplo debate com disputas intelectuais. Ocorreu uma ainda fraca, porém,
presente contestação da escravidão. O debate ideológico e intelectual também estava
relacionado com a justificação e legitimidade da autoridade eclesiástica e secular nos
empreendimentos das potências marítimas da península ibérica. Assim, a teologia moral
deveria solucionar, ou organizar a questão da escravatura.
A escravidão era uma problemática para o cristão, e a teologia moral deveria nortear a boa
conduta cristã lidando com a questão da escravatura. Diversas questões morais permeavam a
realidade da escravidão. A licitude da captura e do tráfico foi debatida, assim como a origem
do escravo, pois uma propriedade roubada gerava sérios problemas na moral cristã. O
comércio de escravos tornou-se uma atividade lucrativa e atraente. A teologia moral buscou
organizar essas ações, e para isso, a escravidão deveria se esclarecida e dabatida. Assim,
vê-se os mais opostos posicionamentos que buscaram justificar ou contestar a escravidão.
As escolas teológicas trataram de discutir algumas problemáticas circunstanciais à
escravidão. Um dos problemas foi o do cristianismo dos africanos. A extensão da fé cristã
entre os negros gerou uma proteção contra escravidão dos negros cristãos, pois não era
permitido que um cristão fosse escravizado. Domingos Mauricio fala de uma “necessidade de
proteger o mundo cristão negro” assim como a manutenção da liberdade dos povos
descobertos nas Américas (MAURICIO, 1977). A extensão da fé cristã entre os africanos e
indígenas foi um ponto importante para o reconhecimento da humanidade destes povos, e,
por isso, a escravidão era um problema ainda mais grave. O cristão deveria se atentar para os
direitos do escravo, assim como para os direitos do senhor. A relação moral era mútua.
Mauricio expõe como a questão da legalidade e moralidade da escravidão foi conduzida
pelas escolas teológicas:

“As escolas teológicas desempenham papel de primeira ordem, nesta revolução


pacífica de mentalidade, definindo os títulos de escravidão, reconhecidos como
justos pelo direito das gentes, pela lei civil e eclesiástica, ou pelo direito
consuetudinário, revelando a inviolabilidade fundamental moral e religiosa do
escravo, marcando, quanto possível, os direitos e deveres mútuos, não só dos
indivíduos escravizados, mas dos senhores, apontando os caminhos de recupe-ração
civil do homem servo e ponderando o valor moral e religioso da sua recondução à
condição livre” (MAURICIO, 1977).
Mauricio também fala da questão da conduta moral sobre a aquisição e o comércio dos
escravos:
“Apesar disso, as formas não só injustas, mas violentas e bárbaras, das compras e
vendas pelo interior da África, e mesmo nos portos de origem; os calamitosos meios
de transporte sem higiene, sem alimentação conveniente nem resguardo moral; as
desumanas fragmentações familiares de pais e filhos ou de mulheres e maridos; as
condições morais criadas, sobretudo, as jovens escravas, constituem uma página
negra da civilização ocidental, que levou tanto tempo a suprimir essa instituição na
sua vida sócio-econômica e entre os povos estranhos, principalmente islâmicos ou
entre os indígenas primitivos de África e da América. Outro devia ser o caminho
para resolver problemas de ordem sociológica. Cumpria, ao menos, encontrar
processos mais justos e por caminhos mais humanitários e cristãos” (MAURICIO,
1977).

O debate no mundo ibérico não se limitou à Universidade de Salamanca, mas atingiu outros
pontos, como Évora e Coimbra. Assim, a questão da escravidão foi central nos debates
intelectuais. As disputas foram protagonizadas por polos intelectuais que polemizaram o
debate sobre a escravidão. Sendo assim, vê-se as primeiras contestações da escravatura frente
ao desenvolvimento de uma justificativa da mesma.
Porém, comete-se anacronismo ao afirmar que este primeiro período de debates sobre a
escravidão moderna viu o desenvolvimento de um movimento abolicionista. Esta é uma
interpretação teleológica da história. De fato, ergueram-se posicionamentos de
questionamento e contestação da escravatura, mas não se pode dizer que existia um
movimento abolicionista, embora essas primeiras contestações tenham se desenvolvido no
cerne do movimentos de abolição que foram sendo construídos nos séculos XVII, XVIII e
XIX.
Os teólogos e juristas que questionaram a legitimidade e moralidade da escravidão partiam
do mesmo modo epistemológico que seus opositores. A doutrina dos direitos naturais foi bem
aproveitada tanto pela crítica quanto pela justificação da escravidão. Os direitos, deveres e
normas morais que conduziam a sociedade cristã foram estabelecidos para a organização
linguística de um “bem estar social”. A humanidade dos africanos e indígenas foi discutida,
pois estava imanentemente relacionada à escravidão. Por fim, deve-se entender que a
escravidão tratou-se de uma questão social que estabeleceu-se no empreendimento colonial
moderno e foi discutido à luz dos problemas que surgiram a partir da sua prática.
Bibliografia:
CALAFATE, Pedro (Org.). A escola ibérica da paz nas universidades de Coimbra e Évora
(séculos XVI e XVII). Coimbra: Almedina, 2015.
DUVE, Thomas. Algumas observações sobre o modus operandi e a prudência do juiz no
Direito canônico indiano. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 37,
2017, p. 52-79.
KOSELLECK, Reinhardt. “História social, história dos conceitos" In: Histórias de
conceitos – estudos sobre a semântica e a pragmática da linguagem política e social. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2020.
MAURICIO, Domingos. A Universidade de Évora e a escravatura. Didaskalia, VII,
1977, p. 153-200.
TOSI, Giuseppe. Aristóteles e o Novo Mundo – a controvérsia sobre a conquista da América
(1510-1573). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021.

Fontes primárias:

ARISTÓTELES. A Política. 2a edição. Bauru/SP: Edipro, 2009.


VITORIA, Francisco de, 1486?-1546. V845 Relectiones : sobre os índios e sobre o poder
civil.Brasília :Editora Universidade de Brasília, 2016.
REBELO, Fernão. Opus de Obligationibus Iustitiae, In: CALAFATE, Pedro. A Escola
Ibérica da Paz nas Universidades de Coimbra e Évora: (século XVI) - Escritos Sobre a
Justiça, o Poder e a Escravatura (Volume 2). Coimbra: Almedina, 2015.
SEPÚLVEDA, Juan Ginés de. Demócrates segundo o De las justas causas de la guerra contra
los indios.

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