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Pai Gavião e a Coroa da Salvação: acusações de feitiçaria e insurreições


escravas no Império do Brasil 1

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Luiz Couceiro
Universidade Federal do Maranhão
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Pai Gavião e a Coroa da Salvação: acusações de feitiçaria e insurreições escravas
no Império do Brasil1

Luiz Alberto Couceiro


(Doutorando em Antropologia – IFCS/UFRJ; professor na Faculdade São Bento da
Bahia)

Casos de acusação de feitiçaria no Império


A questão central deste artigo é avaliar alguns contextos e situações nas quais
escravos eram acusados de feitiçaria, no Sudeste do século XIX. Concluímos a partir da
análise de um processo criminal e de uma série de notícias de jornal, os dois casos
centrais deste artigo, bem como dos demais casos encontrados noutros tipos de
documentos, que as acusações de feitiçaria estavam ligadas a assassinatos, ou ameaças
de assassinatos, praticados por escravos contra os senhores e seus empregados, bem
como insurreições escravas, ou ameaças de insurreições.
Após o levante dos malês, em janeiro de 1835, toda a África passou a ser vista
pela classe senhorial como pátria de africanos, independentemente de sua origem ou
“nação”.2 Muitos africanos e seus descendentes, assim, passaram a ser encarados como
perigosos, potencialmente conspiradores, fossem livres, escravos ou libertos. O governo
imperial tentou deportar alguns deles para a África, sem sequer pagar sua passagem.
Além disso, tal governo passaria, nos anos 1860, a verificar os passaportes dos africanos
vindos nos navios aportados no Império para evitar o desembarque de qualquer liberto
que não fosse nascido no Brasil.3 O medo de que outras partes do Império, com grande
concentração de escravos, repetisse a insurreição dos malês levou ao aumento do

1
Este artigo é uma versão bastante ampliada da comunicação apresentada no Colóquio Internacional A
Feitiçaria no Atlântico Negro, 19 e 20 de outubro de 2006, no Centro de Estudos Afro-Orientais,
Salvador, Bahia, na mesa intitulada Feitiçaria no universo luso-brasileiro colonial e no Brasil Império.
Agradeço os comentários tecidos por Maria Rosário Carvalho (UFBa), debatedora dos trabalhos que
compunham mesa, bem como a Gabriela dos Reis Sampaio (California University – San Diego), que
também compôs a mesa.
2
Ver Manuela Carneiro da Cunha, Negros, estrangeiros: os escravos libertos e sua volta à África, São
Paulo, Brasiliense, 1985, p. 77. Por outros caminhos metodológicos, consultando fontes policiais e do
Ministério da Justiça, Flávio dos Santos Gomes chegou às mesmas conclusões de Cunha, para a província
do Rio de Janeiro, em “História, protesto e cultura política no Brasil escravista,” in Jorge Prata de Sousa
(org.), Escravidão: ofícios e liberdade (Rio de Janeiro, Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro,
1998), pp. 65-97. Sobre a insurreição malê, ver João José Reis, Rebelião escrava no Brasil: a história do
levante dos malês em 1835 – edição revista e ampliada, São Paulo, Companhia das Letras, 2003.
3
Cunha, Negros, estrangeiros, pp. 80-81.
2

controle de quaisquer tipos de reunião ou ajuntamento de escravos por parte das


autoridades policiais.4 Os casos de acusação de feitiçaria são encontrados, desta forma,
em fontes que narram fatos relacionados à insurreições de escravos.
O Código Criminal do Império do Brasil de 1830 não previa como crime a
prática de feitiçaria, ao contrário das Ordenações Filipinas5, o conjunto de leis das
colônias portuguesas, e do Código Penal republicano de 1890. No Título 3 do Livro 5
daquelas Ordenações?, intitulado “Dos Feiticeiros”, podemos ler sobre uma série de
atitudes consideradas como sendo “feitiçaria”, mas não encontramos definição alguma
desta palavra. O acusado de feitiçaria deveria pagar três mil réis ao acusador, ser
açoitado no braço, em plena vila onde residisse, e degredado para o Brasil.6 A acusação
de feitiçaria também aparece em outra situação nas Ordenações. No Título 88 do Livro
4, “Das causas porque o pai ou mãe podem deserdar seus filhos”, o Item 7 fala em
deserção no caso de “usar de feitiçaria ou conversar com feiticeiros”. Em seguida, uma
nota intitulada “Feiticeiros” faz uma longa análise das hipóteses de surgimento da
expressão e conclui que não é possível definir feitiçaria e nem feiticeiro(a).7
No Código Penal republicano também encontramos a regulação da crença, em
três artigos. O artigo 156 proibia: “Exercer a medicina em qualquer de seus ramos e a
arte dentária ou farmácia; praticar a homeopatia, a dosimetria, o hipnotismo ou o
magnetismo animal, sem estar habilitado segundo as leis e regulamentos”. O artigo 157
proibia “Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar talismãs e cartomancia
para despertar sentimentos de ódio e amor, inculcar cura de moléstias curáveis e
incuráveis, enfim, para fascinar a credulidade pública”, e o artigo 158 proibia
“Ministrar, ou simplesmente prescrever, como meio curativo para uso interno ou
externo e sob qualquer forma preparada, substância de qualquer dos reinos da natureza,
fazendo ou exercendo, assim, o ofício denominado de curandeiro.”8

4
Cf. Carlos Eugênio Líbano Soares, A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro
(1808-1850), 2ª. edição revista e ampliada, Campinas, Editora da UNICAMP, CECULT, 2002, pp. 99-
114.
5
Dava-se este nome às antigas leis portuguesas compiladas em códigos. As primeiras, ordenadas por D.
João I, foram concluídas em 1446. Em 1514 publicou-se nova coleção das leis do reino com as alterações
introduzidas pelo tempo. Por terem sido impressas por ordem de D. Manuel, receberam o nome de
Ordenações Manuelinas. Em 1603 publicaram-se as Ordenações Filipinas, mandadas compilar por Filipe
I, que em Portugal vigoraram até 1868. No Brasil, as Ordenações Filipinas, por força da lei de 20 de
outubro de 1823, vigoraram até 31 de dezembro de 1916, como subsídio do direito pátrio, e só foram,
definitivamente, revogadas pelo Código Civil de 1917.
6
http://www.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5p1150.htm (acesso em 18/08/2007).
7
http://www.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l4p931.htm (acesso em 14/08/2007).
8
Apud. Yvonne Maggie, Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil, Rio de Janeiro, Arquivo
Nacional,1992, pp. 22-23, nota 3.
3

As palavras “feitiçaria” e “feiticeiro” sequer aparecem no Código Criminal do


Império.9 Como nos arquivos brasileiros os documentos relativos aos crimes cometidos
no Império, grosso modo, estão organizados pelos artigos daquele Código, não podemos
encontrar as acusações de crença e prática de feitiçaria como motivos legais para a
abertura de um processo criminal. Entretanto, encontramos esta acusação diluída em
outras fontes, como um processo criminal de homicídio, outro de estelionato, notícias de
jornais e correspondências privadas de delegados de polícia e ministros da Justiça. Além
destas fontes, há alguns romances que narram histórias nas quais personagens chamados
de feiticeiros aparecem como agentes centrais da trama.
Estas informações demonstram que a crença no poder do feitiço e dos feiticeiros
existia no Império do Brasil, e que não havia lei alguma que punia os acusados de
feitiçaria, ao contrário do período colonial e do republicano. As pessoas eram punidas
não por serem feiticeiras e nem por praticarem a feitiçaria, mas sim por estelionato,
homicídio, e demais crimes prescritos pelo Código Criminal.
Nossa argumentação seguirá às indicações de Mauss & Hubert10 acerca da
proeminência do social nas explicações da crença e das práticas mágicas. Também
seguiremos questões levantadas por Malinowski11 sobre a centralidade da explicação
mágica na vida social, garantindo um “algo a mais” para o sucesso dos
empreendimentos das pessoas. Nosso material de pesquisa traz informações sobre
infortúnios, acusações de “feitiçaria”, isto é, a crença de que certas pessoas têm o poder
extraordinário de fazer o mal e reverter situações entendidas como sendo ruins, segundo

9
Utilizamos a seguinte edição do referido Código: Código Criminal do Império, na tese inteira: Código
Criminal do Império do Brazil annotado com os atos dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, que
têm alterado e interpretado suas disposições desde que foi publicado, e com o cálculo das penas em
todas as suas aplicações por Araújo Figueiras Júnior (Bacharel em Direito), 2ª. Edição cuidadosamente
revista e aumentada com os atos dos Poderes supra-referidos, expedidos depois da 1ª. Edição, Rio de
Janeiro, Eduardo e Henrique Laemmert, 1876. Agradecemos ao historiador Rafael Sancho Silva pela
localização desta edição do Código Criminal na Biblioteca da Faculdade de Direito da Universidade
Federal da Bahia (UFBA).
10
Marcel Mauss & Henri Hubert, “Esboço de uma teoria geral da magia”, in Marcel Mauss, Sociologia e
Antropologia (São Paulo, Cosac & Naify, 2003), pp. 47-181.
11
Bronislaw Malinowski, “Capítulo XVII. A magia do kula”, in Argonautas do Pacífico Ocidental: um
relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné melanésia, (3ª.
Edição, São Paulo, Abril Cultural, 1984), pp. 292-312, Coleção Os Pensadores, v. XLIII e “Part VI. An
ethnographic theory of the magical word”, Coral Gardens and their magic, v. II, London, Georde Allen
and Unwin Ltd., 1935, pp. 213-248. Norbert Elias também argumenta, assim como Malinowski, que a
importância de controlar a natureza leva pessoas a lançar mão de recursos mágicos para dar garantias
explicativas emocionais, e não racionais, aos acontecimentos imprevistos. Para mais este autor, o recurso
individual à magia necessita da crença coletiva na magia. Ver Norbert Elias, “Part II: The fishermen in
the Maelstrom,” in Involvement and detachment, Oxford & New York, Basil Blackwell, 1987, pp. 43-
118.
4

os fins perseguidos. Assim, levaremos em conta a abordagem de Evans-Pritchard12


sobre a sociedade Zande, na qual coloca em relação questões morais levantadas pelos
Azande para explicar os infortúnios causados por pessoas acusadas de os terem
provocado através da feitiçaria (“sorcery”) ou da bruxaria (“witchcraft”). Levaremos em
conta, também, as observações de Favret-Saada, de certo modo já apontadas por Mauss
& Hubert, sobre a importância da opinião pública para a sustentação ou não da crença
nos poderes daquele que é acusado de ser feiticeiro.13
Segundo estes autores, as crenças são claras, mas as condições nas quais
ocorrem, os contextos, variam muito. Nas sociedades onda há a crença na magia, todos
acreditam que todos têm poderes para fazer o mal aos outros, mas não acusam a si
mesmos. A crença não determina a interpretação dos acontecimentos. Há eventos que
são entendidos como produto da ação do feiticeiro, infortúnios específicos socialmente
legitimados por essa crença. De acordo com o contexto, uma sociedade pode legitimar a
crença na feitiçaria através da repetição de um infortúnio, envolvendo dilemas entre
vizinhos e familiares – como podemos ver nos materiais de pesquisa de Evans-Pritchard
e Favret-Saada. De toda forma, são levadas em conta situações locais para a
compreensão dos males que atingem as pessoas, pois o reconhecimento de que a
feitiçaria realmente ocorreu se dá através do consenso da opinião pública. Esta sustenta
a idéia de que não é feiticeiro quem quer. É feiticeiro quem é reconhecido como
feiticeiro – independentemente da própria pessoa se reconhecer como tal, posto que se
trata, como dissemos, de um poder socialmente constituído.

Pai Gavião e a ameaça de insurreição em 1854


São Paulo, 24 de julho de 1854. Na coluna “Notícias e Fatos Diversos” do jornal
Correio Paulistano, impresso na cidade de São Paulo, mais uma notícia sobre um plano
de insurreição escrava.14 Segundo a notícia, caso não tivesse sido descoberto pelos
senhores das grandes escravarias e pelas autoridades policiais da região, essa insurreição

12
E. E. Evans-Pritchard, Witchcraft, oracles and magic among the Azande, Oxford, Clarendon Press,
1935. Para comentários sobre alguns dos temas tratados por Evans-Pritchard, que interessam diretamente
nossa argumentação, ver Malcolm D. McLeod, “Oracles and accusations among the Azande”, in André
Singer & Brian V. Street (orgs.), Zande themes: essays presented to Sir Edward Evans-Pritchard
(Oxford, Basil Blackwell, 1972), pp. 158-178.
13
Dizemos “de certo modo” pelo fato de Jeanne Favret-Saada, Les mots, la mort, les sorts, Paris,
Gallimard, 1977, não se remeter, em momento algum, ao trabalho de Mauss & Henri Hubert, “Esboço de
uma teoria geral da magia”, principalmente às considerações da p. 77. Mas não conseguimos, ao ler e
reler seu livro, deixar de relacionar os apontamentos pioneiros desses autores em relação às condições
sociais da crença na magia, décadas antes da publicação do livro daquela autora.
14
Biblioteca Nacional, doravante BN, Seção de Periódicos.
5

teria abarcado escravos de diversas fazendas de São Roque – possível centro nervoso da
tramóia –, Una, Campo Largo e Itu. Processos haviam sido instaurados e, da capital da
província, partiram dez praças comandados por um oficial bem como um
“correspondente” do jornal Correio Paulistano. Dois dias depois, o “correspondente”
publicou as primeiras informações. Da página quatro do número anterior, a narrativa
passou, dado significativo, às páginas dois e três, na coluna “Interior –
Correspondências do Correio”. O “correspondente” afirmava que tantos escravos
encontravam-se presos nas celas da delegacia de São Roque “que o carcereiro quase não
conseguia dar conta de seu, até então, pacato serviço”. Além dos detidos, outros
escravos e livres da região estavam participando de “grandes reuniões misteriosas, em
noites e lugares indeterminados”.
Na noite do dia 18, três homens procuravam dois escravos que haviam fugido do
engenho de sua senhora, dona Ana Theresa, quando foram surpreendidos por uma
“sentinela”, “guardando a porta do Templo onde a Grande Ordem celebrava uma de
suas sessões”. Alertando outros escravos, botaram os homens para correr. Ao
denunciarem as “reuniões” para o delegado, os três homens forneceram as informações
necessárias para que fossem efetuadas as prisões de alguns dos escravos supostamente
envolvidos. Um destes presos revelou que o “lugar que, até então, se achava oculto”, ou
seja, “perto desta vila”. Revelou também a identidade do “grão mestre da Associação: o
preto forro de nome José, morador em Sorocaba”. Desta forma, “dirigiu-se para ali uma
escolta, que conseguiu capturá-lo depois de porfiada e perigosa luta”.
O “correspondente” continua seu relato, afirmando que havia sido apreendida
uma curiosa coleção de objetos pertencentes à “Grande Ordem”, [como] “caramujos,
guiso de cascavel, grande e variado sortimento de raízes, figuras de pão e de cera da
terra, pedras de cevar, cabeças e olhos de cobra, pés e cabeças de macaco, rabo de
serelepe, pontos de chifre betumado de cera coberta com um fragmento de espelho,
patuás contendo raspas de raízes, cabelos e unhas de gente e outras muitas coisas.”
[Todos estes] “Bizarros objetos exalavam um cheiro nauseabundo e ativíssimo de
aguardente”.

Indo ao encontro de Pai Gavião


O “correspondente” resolveu investigar as tais “reuniões”, descobrindo que
existiam três grupos na região, aos quais chamou de “lojas”, que formavam a “Ordem”
inteira. Seus nomes eram: “Filhos das Trevas, Maçonaria Negra e Campo Encantado”.
6

O “grão-mestre da Ordem” chamava-se José Cabinda, “figura célebre naquela região, a


quem os irmãos não conheciam se não pelo nome de Pai Gavião, ou Coroado”.
Nas “sessões” e na “admissão de novos adeptos, os irmãos formavam um grande
círculo”, nos quais alguns dos “assistentes tocavam um tosco instrumento feito de
cabaças com cabo de pão e chocalhos”. Ao som do instrumento, “o grão-mestre,
dançando e cantando numa linguagem ininteligível”, se dirigia para o centro e ali
colocava “uma luz, uma garrafa de aguardente, uma tigela com diversas raízes, uma
figura de pão à meio-corpo e sem braços”. Em seguida, “informava que a tal figura
tinha o nome de Careta”, assim como outra, feita de cera. “O umbigo era formado por
um pedaço de vidro.” Colocaram ali também uma

raiz grande, a qual lhe davam o nome de Guinéu Encantado – um corno de


boi –, que tinha o nome de Vungo, um patuá envolto em casca de lagarto,
dois Santo Antonios de nó-de-pinho, sendo um sem cabeça, e, finalmente,
uma panelinha, betumada de cera, coberta por um vidro que é conhecido
pelo nome de Galo.

Neste momento, o “correspondente” escreve que “entrou em cena, na grande


reunião, o Pai Gavião, entornando a garrafa sobre a tigela e ordenando que um novo
irmão se aproximasse”. O “novo irmão ajoelhou-se ante o grão-mestre e despiu-se de
sua camisa. Pai Gavião, o grande líder, apontou uma faca sobre o peito do noviço” e o
fez prestar um “juramento solene de fidelidade. Segredo inviolável, sob pena de morte,
mesmo que fosse estrangulado ou queimado”. Em seguida, “abriu-lhe uma cruz, com a
ponta da faca, sobre o peito direito. Correram algumas gotas de sangue da epiderme
rasgada”. Passou-se, então, “alternadamente”, um “patuá e uma raiz-de-guiné
encontrada sobre a cissura da cruz” e depois “esfregaram-se uns pós brancos na ferida
do iniciado”. Por fim, o mesmo bebeu “a pinga sagrada”, que estava numa “tigela que
corria por todos os irmãos”.
Numa “vasilha de barro com brasas, Pai Gavião deitou um pouco de incenso, e o
irmão iniciado aspirou o perfume que dali exalou”. Depois disso, o “grão-mestre Pai
Gavião” acendeu seu “cachimbo” naquele “fogo sagrado”.
Cerimônia encerrada, o “iniciado” foi levado, já como “irmão”, ao centro do
“grande círculo, onde sentou”. “Pai Gavião submergiu a cabeça das figuras na tigela” e
ouviu-se novamente “o som monstruoso” do já referido instrumento. Ordenou que “se
7

fizesse silêncio no Campo Encantado”. Foi “prontamente obedecido. Conversou com as


figuras, aproximando-as do ouvido para escutar suas respostas”. Pai Gavião começava,
então, a “tresvariar, dizendo com uma voz terrível – Não ouvis? Não ouvis uma voz que
me chama?” O “correspondente” afirma que “não queria ir, mas era obrigado a
obedecer”, porque “essa voz era mais forte e mais poderosa do que a vontade do Deus
no qual cria!”.
“Pai Gavião”, ou “Pai Coroado”, correu “desvairado para o mato”, voltando
pouco tempo depois, “alisando-se de roldão no meio do círculo, suando e fazendo
horríveis contorções”. De repente, parou tais movimentos, levantando-se com “altitude
majestosa”.

Seus olhos percorreram desvairados todos os dos Filhos das Trevas.


Consultando o Galo, e, lendo o futuro pelo vidro do Vungo, prometeu aos
irmãos que, num futuro não tão remoto: gozarão de liberdade pela morte de
seus senhores; possuirão grandes riquezas; seus senhores não terão ânimo de
castigá-los; nem ferro, nem balas colarão em seus corpos; gozarão das
moças mais bonitas.

O interrogatório de Pai Gavião


No dia 24, o delegado de polícia, capitão Moraes, “interrogou pessoalmente, na
sala da municipalidade”, o escravo José Cabinda, que recebia o espírito chamado Pai
Gavião. “Permitido” o ingresso na sala, depois do interrogatório, várias pessoas logo
entraram, inclusive o “correspondente”.
Num certo momento da “sessão” jurídica, um curioso, com a permissão do
delegado, promoveu “uma experiência inofensiva”. Dirigindo-se ao líder dos escravos
“Filhos das Trevas”, que “recebia” naquele momento o espírito chamado “Pai Gavião
ou Coroado”, lhe indagou:

– Sabeis adivinhar?
– Sim, senhor – respondeu Pai Gavião.
– E se eu esconder essa caixa de tabaco, poderá adivinhar o lugar em que ela
ficará?
– Sim, senhor.
8

O curioso retirou-se da sala, deu a caixa a uma pessoa que se achava do lado
esquerdo de uma janela, no patamar de uma escada. Voltou pouco depois, dizendo ao
Pai Gavião que fizesse a tal adivinhação. “Pai Gavião” afirmou que “precisava do
Vungo” –“a raiz grande, chamada de Guinéu Encantado – um corno de boi”, como
vimos anteriormente. Satisfizeram sua vontade. “Trouxeram-lhe um dos Vungos
apreendidos. Recusando-o por não prestar, Pai Gavião, então, pediu outro.” Novamente,
foi satisfeito. “– Este sim – disse o adivinho, segurando no Vungo com ambas as mãos,
com a esquerda na extremidade, meio sobreposta sobre o dedo mínimo da direita;
aproximou o Vungo de sua boca, com os olhos semi-fixados. Pelos movimentos dos
lábios, via-se que ele travava com o Vungo um solilóquio misterioso.”
Daí a pouco, algumas

bogas de suor rebentaram da fronte do oráculo do Campo Encantado. Suas


feições se contraíram, seus olhos meio cerrados se tornaram sombrios e
ameaçadores; exalou um gemido quase abafado, e um movimento nervoso,
involuntário ou admiravelmente fingido; por três vezes contraiu e puxou
violentamente as mãos e os braços para o lado esquerdo, e todas essas
contrações eram acompanhadas de suor mais copioso e um tremor geral do
corpo.

Com o mesmo em total silêncio, o “adivinho disse”:


“– Meu senhor, me perdoe. A boceta está perto da escada, do lado esquerdo da
janela.”
O homem, que dirigia a “experiência inofensiva”, assim “lhe ordenou”:
“– Pois vá buscá-la!”
O “oráculo” dirigiu-se ao patamar da escada, olhou atrás da falha da janela do
lado direito, “deu um suspiro e disse”:
“– O Vungo me traiu.”
O “correspondente” escreve que “os brancos fizeram isso para enganar Pai
Gavião”, pois a pessoa na qual fora confiada a guarda da caixa “passou-a para outra,
que estava na janela do lado direito”. Dedurava, desta forma, a

trapaça que lhe haviam armado, para tentar desmascarar publicamente os


seus poderes. Transtornado, o oráculo consultou novamente o Vungo.
9

Cansado de errar, declarou que estava muito atribulado e não podia


adivinhar, porque o Vungo estava profanado e provavelmente havia sido
tocado por alguém que houvesse tido relações com mulheres, porque eles,
oráculos, para fazerem adivinhações, não as tinham desde véspera.

E Pai Gavião ainda vagava pela região...


Antes do acontecimento envolvendo as “lojas da ordem de Pai Gavião”,
membros da classe senhorial local não atribuíam a onda de perturbações sociais
provocada pelos escravos à liderança exercida pelas sugestões proferidas por ele nas
“sessões”, até então secretas.15
Em 17 de julho de 1854, o Correio Paulistano transcreveu uma notícia que saiu
na página três do Correio da Barca. Em Valença, a redação deste jornal havia recebido
um bilhete no qual estava escrito que, entre os dias 23 e 28 de junho, correram “boatos
de que aconteceria uma terrível insurreição escrava” nos dias subseqüentes.
Imediatamente, “os fazendeiros de Valença se armaram o quanto puderam,
abandonando suas fazendas, fugindo para a cidade”.
Em três de agosto, o mesmo jornal, na “Coluna Interior – Correspondência do
Correio”, em suas páginas dois e três, também transcritas no Correio Paulistano, trouxe
notícias acerca do julgamento do escravo “escravo, Filho das Trevas, Joaquim”,
pertencente a Inácio Alves. O fato ocorreu em Taubaté, no dia 24, com o escravo
“julgado por tentar matar sua senhora a foiçadas”, sendo “condenado à galés perpétuas”.
No dia seguinte, um novo escravo foi julgado. Tratava-se de Chico Garcia,
pertencente a Manoel Vaz de Toledo, condenado por ter sido o “cabeça de uma
insurreição, abortada contra a vontade dos seus companheiros”. Seu senhor havia
pedido um novo julgamento, mas teve que “escutar a veemente recusa” do promotor,
que não tinha visto motivo algum para aceitar tal pedido. No entanto, o promotor não
contava com a forte influência do senhor do escravo sobre o juiz do caso, conseguindo

15
Utilizamos o conceito “classe senhorial” para designarmos um conjunto de homens investidos do poder
de organizar a administração pública no Império, fossem esses homens “saquaremas” ou “luzias”. Para
uma discussão fundadora daquele conceito, ver Ilmar Rohloff de Mattos, O tempo saquarema: a
formação do Estado imperial, 2ª. Edição, São Paulo, HUCITEC, 1990. Para uma análise da construção da
estabilidade política do Império a partir do processo de profissionalização da burocracia do Estado, ver
José Murilo de Carvalho, I – A construção da ordem: a elite política imperial; II –Teatro de sombras: a
política imperial, Rio de Janeiro, Editora UFRJ, Relume-Dumará, 1996. Para uma leitura recente sobre o
período de estruturação física e política de vilas, municípios e províncias nas primeiras décadas do
Império, discutindo práticas políticas federalistas dos homens que estavam à frente desse processo, ver
Miriam Dolhnikoff, O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil do século XIX, São Paulo, Globo,
2005.
10

que este aceitasse um novo julgamento para o réu. Mesmo confessando, “sem a menor
cerimônia e frescura, que o plano era matar todos os brancos, e que para isso os
escravos os quais liderava possuíam armas de fogo, além das do trabalho nas fazendas, e
mais todo o armamento que assaltariam das lojas, Chico Garcia foi absolvido por dez
votos”.
Em oito de agosto, na página dois do Correio Paulistano, lemos mais notícias
acerca das “lojas Filhos das Trevas e Campo Encantado” sobre o prosseguimento que o
delegado de polícia da cidade de São Roque, em 31 de julho, dava nas investigações das
possíveis insurreições escravas comandadas por “Pai Gavião”. Havia prendido vários
escravos membros das mesmas. Além disso, de outros lugares das redondezas
chegavam notícias de ações dos “Filhos das Trevas”. Em São Roque, no dia 28 de julho,
uma “reunião de escravos da loja” foi debandada pelas autoridades policiais, terminando
com um “escravo com o braço quebrado, e outros dois com a cabeça partida”. Um
indivíduo chegado de Sorocaba dizia a várias pessoas da cidade que lá também fora
descoberta uma “patota dos Filhos das Trevas”, e que o subdelegado de polícia havia
ordenado a prisão dos seus membros. O mesmo delegado foi apurar uma denúncia na
Serra de São Francisco sobre a existência de uma “casa secreta, contendo uma provisão
de espingardas, lanças, e outras armas inofensivas”, pertencentes ao arsenal da
insurreição tão prometida e propalada por Pai Gavião. Assim, toda a “população dos
municípios de São Roque, de mais de dez mil almas disseminadas em três freguesias,
com cento e tantos juízes de fato, um batalhão da Guarda Nacional com cinco
numerosas companhias e quase trezentos guardas de reserva”, estava em estado de
alerta.
As notícias alarmantes continuaram no dia 18 de agosto, na coluna “Notícias e
Fatos Diversos”, na página quatro do mesmo jornal. Em notícia de título “Fogo de
Escravos”, o autor dizia que estavam acontecendo, para “as bandas do Campo Redondo,
nos dias santificados, grandes reuniões de escravos, onde a primeira distração era o
fogo”, ou seja, bebedeiras. Tal informação gerou grande medo às pessoas da região,
pois “era sabido que nas reuniões dos Filhos das Trevas e do Campo Encantado, a
ingestão de aguardente por parte de todos os membros era o prenúncio de uma nova
vinda de Pai Gavião”. Tais reuniões, apesar de conhecidas e comuns nas redondezas da
cidade, havia se tornando mais freqüentes naqueles dias.
Denúncias acerca de furtos domésticos, que recentemente alguns escravos
estavam cometendo para “poder comprar parte dos materiais para as reuniões”, e pagar
11

pelos conselhos de Pai Gavião – afinal de contas, quem não o pagava, não os recebia –
atormentavam autoridades locais. Também ocorreu o “espancamento de um alemão,
perto do cemitério da cidade, do qual saiu com a cabeça quebrada”. O tal “alemão”, de
quem não nos foi revelado o nome, “não sabia das reuniões dos Filhos das Trevas
naquele cemitério e, inocentemente, passou por ali, sem poder prever as conseqüências
de sua atitude”. O que o autor da notícia estranhava era que, apesar da “vítima pedir que
o acudissem, depois de gravemente ferido, as pessoas que por ali passavam ignoravam
sua figura, virando-lhe a cara”, atitude também tomada por um oficial de plantão. O
autor ainda deixa no ar que haveria conivência entre moradores da região e os escravos
“Filhos das Trevas” para que fizessem em paz suas “reuniões”, desde que não fossem
para “combinar a morte de brancos e insurreições”. Não sabendo disso, ou seja, de que
membros da “loja” estariam dentro do cemitério em meio a uma das reuniões, talvez o
“alemão” tenha sido punido pelo que não sabia e acabado, de maneira drástica, tomando
parte no “acordo”.

A visita do dr. Roth: a promessa de Pai Gavião quase foi cumprida


No número do dia 19, nas mesmas coluna e página, o jornal publicou notícias
acerca da visita de um tal “dr. Carlos Roth, que verificaria se naquela região haveria
jazidas de carvão mineral, assim como minas de ferro”. Segundo uma morador “as
primeiras impressões visuais do dr. Roth, acerca da configuração da Montanha do
Sabão, apontavam para uma vasta riqueza mineral”. Tal montanha era de “formato
piramidal, e de seu topo podia-se ver as povoações de Sorocaba, Itu, Araçá e São
Roque”.
Simultaneamente, um pequeno destacamento de praças, “comandado pelo
tenente Pimenta, seguiu para Porto Feliz”. A região estava “sendo guarnecida pela
Guarda Nacional, evitando a insegurança da população quanto à possível insurreição
dos Filhos das Trevas”. Além disso,

as festas religiosas, que tradicionalmente ocorriam naquela época do ano, de


Bom Jesus de Pirapora, distrito da cidade de Paraíba, estavam atraindo, como
esperado, um grande número de devotos romeiros – naquele ano calculado
entre cinco e seis mil almas –, e qualquer tipo de ação dos Filhos das Trevas
originaria um tumulto de proporções inestimáveis.
12

O medo de que esses escravos da fizessem “algo de terrível” durante a festa se


dava pelos

boatos que se espalhavam pela região sobre um homem que teria sido
assassinado por causa de um jogo dos Filhos das Trevas, de um outro que o
corpo teria sido achado no rio Tietê, assim como da morte de duas crianças
que as autoridades locais preferiram dizer – para não causar maior reboliço
– que haviam sido asfixiadas na multidão de devotos romeiros.

Em sua “expedição”, o “dr. Roth, escoltado por alguns praças”, encontrou no


cume da montanha uma pequena construção, com “mais de 300 espingardas, e alguns
objetos estranhos, tais como dentes de cobra e patuás”. Assim, foi “descoberta mais uma
parte das armas que os Filhos das Trevas” diziam possuir – e que muitas autoridades
locais haviam acreditado serem imaginárias –, “muito mais do que a própria Guarda
Nacional, agentes de polícia, senhores de escravos e comerciantes somados possuíam”
nas redondezas. A localização do “paiol de armas obedecia”, ao que parecia, “a uma
estratégia de observação de todos os que Pai Gavião havia prometido atacar”, qual
fossem, “todos os brancos” daquela região. Do cume da montanha, os escravos
poderiam observar a movimentação cotidiana dos moradores das cidades, dos grupos
armados, para, enfim, decidir a melhor estratégia de ataque. “Desta forma, poderiam
tomar de assalto toda a região”.
Notícias e mais notícias sobre as intenções dos “Filhos das Trevas” não paravam
de chegar à redação do Correio da Barca, retransmitidas pelo Correio Paulistano. No
dia 23 de agosto, o mesmo jornal publicou uma pequena nota afirmando que no dia dez
do mesmo mês, na fazenda do capitão Joaquim de Souza, havia sido “descoberto mais
um projeto de insurreição ligado à loja Filhos das Trevas”. As autoridades policiais,
atendendo ao chamado do fazendeiro, foram, no mesmo dia, “verificar a veracidade” do
tal “projeto”, mas “não encontraram nada referente à revolta de escravos”. Já no dia 25,
noticiou-se que escravos e pretos livres, “assegurava uma pessoa de fé dos redatores,
continuavam a se reunir no cemitério da cidade para fogar, especificamente nos dias
santificados”. Apesar das denúncias, dizia o autor da notícia, as autoridades locais não
tomavam “providência alguma e a polícia de São Paulo dizia que não possuía soldados,
nem dinheiro, o bastante para dar conta daqueles encontros para fogos, e mesmo
ameaças de insurreição dos escravos, que, para ela, não passavam de boatos”.
13

Em busca da “Coroa da Salvação”: escravos acusados de aprender e praticar


feitiçaria
Na cidade de Cunha, província de São Paulo, em 1869, alguns dos escravos de
dona Geraldina Maria de Campos apareceram mortos. Os sintomas levaram a senhora à
suspeita de que pudessem ter sido “envenenados”, pois isso já havia ocorrido em outras
fazendas da região. Na “casa onde residia” o escravo Pascoal de Nação, foram
encontrados em sua “caixa uma patrona de couro” contendo “uma pequena garrafa
branca com um líqüido que ele confessou ser de uma raiz muito venenosa, raspada e
misturada com aguardente”, bem como “diversas raízes, todas venenosas, das quais de
algumas ele se servia para dar aos seus parceiros”. Ainda na mesma patrona, achou-se:
“um canudo contendo dentes de cobra, alfinetes e alcanfôr” – objetos “reconhecidos
[pela senhora e pelo escravo] como materiais venenosos”.
Pascoal afirmou que dera a composição da garrafinha a três escravos de dona
Geraldina – Jeremias, Benedito Gama e Lourenço Crioulo. Da raiz, tinha dado um
pouco à “crioulinha Rita, também escrava de dona Geraldina”, misturada ao seu
“mingau”. Afirmou, ainda, que não matara somente estes quatro escravos, mas também
o escravo chamado Luís, pertencente ao genro de dona Geraldina. A este havia dado
“um pouco de pó de uma raiz venenosa”, misturado à “canjiquinha que o crioulo estava
comendo”. Pascoal afirmou “ter recebido a garrafa branca do escravo Luís
Moçambique, do capitão José de Godois Moreira. Ela estava cheia do tal “veneno que
fora preparado pelo próprio Luís Moçambique”, quem Pascoal dizia ser “mestre”. Com
este, estava “aprendendo seu ofício”, e que por isso mesmo recebera do “mestre mais
raízes, alfinetes e dentes de cobra num canudo”. Havia comprado a raiz mais venenosa
de outro de seus “mestres”, o escravo Félix, pertencente a Lourenço Pereira Coelho,
pagando-lhe 1000 réis. Este escravo lhe havia dito que a raiz “era para tudo, e que com
ela poderia matar muita gente”. As mortes na fazenda “deveriam ocorrer até a sexta-
feira da Quaresma”, pois “nesse dia os seus dois mestres iriam acabar de lhe ensinar
tudo o mais; ambos tinham em seu poder muitas raízes e outros venenos com os quais
também matavam algumas pessoas”. Com estes “dois mestres, disso ele sabia, muitos
escravos estavam aprendendo o ofício”. Não sabia quem eram, e muito menos precisar o
que realmente estavam “aprendendo”.
Diante de todas estas declarações, dona Geraldina entregou Pascoal às mãos do
inspetor de quarteirão, para que ele, por sua vez, o entregasse ao delegado de polícia da
cidade de Cunha, afastando-o do convívio dos seus escravos.
14

Quanto mais venenos, mais escravos: Pascoal e os primeiros depoimentos ao


delegado
No dia 17, o delegado resolveu fazer um primeiro interrogatório a Pascoal, que
afirmou ser “filho de pai de Angola”, de nome “Chicomena”, ter “54 anos de idade mais
ou menos”, ser “solteiro, trabalhador de roça”, de “nação Moçambique”, e ter “nascido
na África”. As duas raízes amassadas com o pano branco chamavam-se “Sassurana”, e
lhe haviam sido dadas por Félix. Um liberto, chamado Jacinto Monjolo, que fora
escravo de Nuno da Silva Reis, havia “recebido sete raízes de Antonio Carioca”.
Quando Jacinto Monjolo deu as duas raízes a Pascoal, disse-lhe que Antonio Carioca
era “muito bom mestre, e que as raízes eram para curar malefício”. “Aquelas outras sete
raízes”, afirmou Pascoal ao delegado, “mais os dentes de cobra e os alfinetes num
canudo”, foram-lhe dadas por Luís Moçambique; já a “garrafa com o líqüido” fora
encaminhada a ele pelo mesmo Luís, por intermédio de Jacinto Monjolo.
As testemunhas foram ouvidas no dia 20: Antonio Pereira Coelho, lavrador, de
37 anos de idade, inspetor do 16º. Quarteirão, o negociante português Manuel Pereira,
de 23 anos, o lavrador Antonio Leite França, de 35 anos de idade. Todas, sem exceção,
afirmaram que “objetos de feitiçaria foram achados na caixa que estava na casa do
escravo Pascoal”, o qual afirmou, no momento em que isso ocorreu, que seriam para
“ganhar dinheiro e matar gente, pois estava aprendendo este ofício com o escravo
Félix”. Tudo fora encontrado na “senzala” da escrava Valeriana. Uma vez “arrombado o
cadeado que trancava a caixa”, e reconhecido os já falados objetos, Pascoal foi
imediatamente preso e, “livre de qualquer castigo, declarou espontaneamente” que
“matou” os cinco escravos mencionados anteriormente – Benedito, Lourenço, Maria
Rita, Luís e Jeremias. Pascoal declarou, ainda, que “estava aprendendo este ofício” com
os escravos Luis e Félix para, quando “ficasse bem mestre, ganhar dinheiro ensinando
aos outros”.
Segundo informação fornecida pela testemunha Manuel Pereira, Pascoal havia
lhe dito que comprara os “objetos de feitiçaria” que “guardava na caixa” de Luís
Moçambique, pela quantia de 3000 réis. Ainda segundo ouviu de Pascoal, afirmou que o
escravo “ignorava as virtudes das tais raízes, as quais saberia melhor na próxima
Quaresma”. Segundo a testemunha, Pascoal lhe afirmou que, até lá, “Luís Moçambique
lhe havia recomendado matar 21 pessoas, sete crianças e 14 grandes”, para “receber” a
“Coroa da Salvação”.
15

Ainda sobre os dias do “aprendizado do ofício”, a sétima testemunha, o lavrador


Manoel Borges da Silva, de 44 anos de idade, afirmou que ouviu Pascoal dizer que
“Félix e Luís Moçambique ensinavam, a alguns escravos da região, coisas sobre as
raízes e outros tantos objetos, no sítio que foi do alferes João Ferrás e que hoje em dia
era de propriedade de dona Geraldina, em todos os domingos e dias santos”.
José Cesário de Campos, filho de dona Geraldina, depôs no dia 24 de janeiro.
Confirmou o que havia sido dito até o momento, acrescentando que na “próxima
Quaresma Pascoal e os demais escravos que estavam aprendendo o ofício” se
“reuniriam” com seus “mestres”, Félix e Luís Moçambique, para que “cada um
recebesse certas graduações, e que assim como os estudantes aprendem matérias
diversas em cada ano, assim também os discípulos desta escola tinham de aprender em
anos diversos”. Ainda segundo José Cesário, Pascoal afirmou que “Luís Moçambique
estava ensinando feitiçaria a outros escravos de Guaratinguetá”.

A carta do senhor de Félix, Lourenço Pereira Coelho, ao delegado de polícia de


Cunha
No dia 19 de janeiro, o senhor de Félix, Lourenço Pereira Coelho, ao saber dos
fatos atribuídos ao seu escravo, escreveu e remeteu a seguinte carta ao delegado de
polícia da cidade de Cunha.

Ilustríssimo senhor delegado de polícia, Participo à Vossa Senhoria, que


tendo eu, há meses bastantes a esta parte, suspeitado que o meu escravo de
nome Félix estava dando maus pareceres aos meus escravos e aos escravos
das fazendas vizinhas, não só querendo ensinar arte de feitiçaria como
mesmo produzi-la para estes diabólicos fins, imediatamente tratei de
apreender para o castigar e interrogá-lo a respeito disto. Porém, o mesmo,
avisado por alguém, ou mesmo por qualquer escravo meu, evadiu-se de
minha casa para os municípios de São Luís e de Guaratinguetá, não podendo
eu nunca mais prendê-lo. Desgostoso eu finalmente com este escravo,
entendi ser melhor largar ele em completo abandono, desprezando-o ao
menos uma vez, visto que por sua avançada idade nenhum serviço mais
podia me prestar, e mesmo porque, Ilustríssimo senhor, entendi ser melhor
não procurar mais este malvado, porque não quero tê-lo no seio de minha
família, servindo somente para corromper seus parceiros, não somente meus
16

escravos, mas dos meus vizinhos. Enfim, abandonei este escravo e sua
mulher para sempre, deixando de os procurar. Mas, agora, porém,
Ilustríssimo senhor, me constando que pelo réu prezo nesta cadeia, Pascoal
de Nação, escravo de dona Geraldina Maria de Campos, fora o mesmo
Pascoal declarado em seu interrogatório que este meu escravo Félix foi
quem lhe vendeu uma raiz das venenosas, com a qual ele matou os escravos
de sua senhora. E, sabendo eu que, por esta declaração, o meu escravo está
incurso nas penas da Lei, devendo ser por isso punido com todo o vigor da
Lei, por isso não podendo eu prendê-lo e remeter a vossa senhoria por se
achar esse negro ausente. Assim, pois, eu entrego o referido escravo à
Justiça, para que seja ele processado. Fico sem responsabilidade de custos
que se fizerem, e nem mesmo a outras e quaisquer indenizações. Deus
guarde a Vossa Senhoria.16

A “voz dos feiticeiros”: os depoimentos de Pascoal, Luís Moçambique e Jacinto


Monjolo
No dia 26 de janeiro, depôs Pascoal, reafirmando suas “relações” com Félix e
Luís Moçambique, e “reconhecendo” os “objetos de feitiçaria” apreendidos em sua
“caixa”. Acrescentou às informações até aqui conhecidas que ele e Jacinto Monjolo
“aprenderiam, na Quinta-Feira Santa” daquele ano, 1870, “mais coisas sobre a cura de
malefícios com seus dois mestres, na casa do sítio do Pinheiro, e receberiam, então, o
grau da ordem”. Afirmou que havia “dado” a quantia de “3000 réis a Luís, dez tostões a
Félix” e a “Jacinto Monjolo apenas a promessa de que lhe daria 4000 réis”. Jacinto, por
sua vez, usaria parte deste dinheiro para “pagar o que devia a Luís”. Este último havia
se “desentendido” com Jacinto pela “demora do pagamento”, fazendo com que
“brigassem na Lagoinha”. Por fazer parte do acordo, Pascoal afirmou que Jacinto fora
“fazer queixa” de Luís a Antonio Carioca, que, por sua vez, fora ao Pinheiro, onde
ficava a “senzala” de Luís. Chegando lá, Antonio “descobriu objetos de feitiçaria que
eram usados desde quando Luís adoecera”. Para que Luís “melhorasse”, Antonio
houvera “quebrado a mandinga, sendo reconhecido”, assim, como “mestre de todas as
mandingarias”.
Sobre o uso do material encontrado em sua “patrona de couro”, Pascoal afirmou
que havia “dado um pouco do líqüido da garrafinha misturado à aguardente ao crioulo
16
AN, processo-crime, Corte de Apelação, número 50, caixa 28, galeria c, fls. 17-18.
17

Benedito, por ter-lhe roubado umas galinhas e 6000 réis em dinheiro”. Fez isso “durante
três meses”, no fim dos quais “Benedito veio a morrer”. Fizera o mesmo com o crioulo
Lourenço, mas com o intuito de “curar-lhe” uma “dor de barriga por haver comido
cabeça de boi”; depois de “dois meses”, Lourenço veio a “falecer”. Da raiz, “chamada
Sassurana”, “dada” a ele por Félix, “raspou um pouco e misturou ao mingau da
“crioulinha” Maria Rita, que só viveu mais três dias”. O “crioulo” Luís “viveu apenas
mais um mês”, desde que “colocou um pouco daquela raiz em sua canjiquinha”. Ao
“marido” de Valeriana, Jeremias, dera da “aguardente com a tal raiz raspada”, “mas este
ainda durou quatro meses vivo”.
No dia 29 de janeiro, na cidade de Guaratinguetá, Luís Moçambique foi preso
por ter envolvimento nas mortes em questão. Com ele, foi apreendida “uma bolsa de
couro”, que “estava escondida em sua senzala”, com um “livrinho de Santa Bárbara, um
pequeno embrulho contendo um bocado de cera, um pedacinho de trapo azul, uma
imagem de Jesus Cristo e outra de Maria, com uma raiz”.
Luís fora interrogado em primeiro de fevereiro. Afirmou ser natural de “Lili,
Moçambique”, tendo vindo para o Brasil com sete anos de idade, estando com mais ou
menos 65 anos. Não conheceu seus pais. Era escravo do capitão José de Godois
Moreira, “trabalhador de roça e curador de cobras, pelo que recebe gratificações”.
Negou ter fornecido os “objetos encontrados na caixa de Pascoal”, bem como ter se
encontrado com ele, Félix e Jacinto na Quaresma de 1869. Afirmou ainda que, “há mais
de sete anos, não ia à cidade de Cunha”, e que os objetos encontrados em sua “senzala”
realmente lhe pertenciam. Com relação a Antonio Carioca, afirmou que este “não
gostava dele, querendo até lhe matar por não ter consentido que ele [Luís] entrasse com
todos os escravos no terreiro da fazenda, à meia noite de um dia atrás”.
Entretanto, num segundo depoimento, Luís acrescentou uma série de novas
informações contraditória às anteriores. Afirmou que “há anos conhecia todos os livres
que testemunhavam no processo”, bem como “todos os escravos”, que o “acusavam” de
envolvimento nos crimes “por suporem que ele é curador de malefícios”. Sobre Antonio
Carioca, afirmou que, “na noite da véspera do dia de Santo Antonio, havia ido com
outros escravos ao seu sítio no Pinheiro”, onde “deram-lhes pancadas, das quais lhe
resultaram incômodos de saúde, sofrendo do peito até o presente”. Depois de agredi-lo,
“Antonio Carioca e os demais escravos se retiraram”.
Sobre as ervas, Luís informou que “dera a Pascoal duas raízes para curar
mordedura de cobra, e a garrafinha para dor de barriga”. Pascoal haveria de “voltar ao
18

sitio do Pinheiro na Quaresma desse ano para comprar-lhe um livro de Santa Bárbara”,
mas que até aquele momento ele não havia ido. Por outro lado, ele e Jacinto Monjolo
haviam se “encontrado no Cemitério da Paraitinga”, e, saudando-o, Jacinto lhe disse que
“vinha trazendo um animal para a Festa da Lagoinha”, e que lhe “levaria um outro no
dia seguinte”. Tal como Pascoal, Jacinto não o havia procurado novamente. Fora
perguntado pelo delegado se entre ele e Jacinto havia ocorrido “problema por causa de
algum remédio recomendado à sua mulher”. Luís respondeu que havia sido procurado
por Jacinto para que “curasse inchação na barriga de sua mulher”, e afirmou que
“aplicara” nela “raiz de Guiné em aguardente, e que por mais dois anos ela andou boa”,
vindo a falecer depois deste período. Jacinto lhe havia dado a “gratificação de dois
tostões”. Já Pascoal, havia-lhe “dado dez tostões pelo ensinamento das raízes”.
Logo em seguida, depôs “Jacinto Nunes da Silva Reis Júnior, monjolo da Costa
da África, onde nasceu na cidade de Nategué, de onde veio muito pequeno sem ter
conhecido seus pais”. Sabia que era acusado de “conivência com os delitos de Pascoal”.
Negou ter entregado qualquer tipo de objeto que tivesse sido enviado por Luís
Moçambique a Pascoal, “e que nem tampouco estava aprendendo feitiçaria com Luís,
do que Pascoal é mestre há muitos anos”. Este, sim, estava “aprendendo feitiçaria com
Luís”. Uma noite, Antonio Carioca fora se “oferecer para curar sua esposa, dizendo que
Luís do Pinheiro era quem a havia matado”. Acertaram tudo por “20 mil réis”. Antonio
Carioca se comprometeu a dar à Genovefa “remédios ocultos, menos a aplicação de
fava de Santo Antonio”. Por conseguinte, Luís havia se tornado seu “inimigo”, posto
que ele, Jacinto, “havia descoberto que fora Luís que houvera enfeitiçado sua mulher,
tendo-lhe feito mal”. Por isso, “Luís jurou, na Festa da Lagoinha, que iria matá-lo”. Já
Pascoal, para se livrar das mortes causadas na casa de dona Geraldina, queria
comprometê-lo, também o “acusando de ser feiticeiro”. Pelo “medo de ser preso”,
Jacinto começou a “vender seus animais e suas roças” para que pudesse “sair” da cidade
de Cunha “assim que pudesse”.

Os “feiticeiros” frente a frente


No dia nove de fevereiro, Luís Moçambique, Pascoal e Jacinto Monjolo foram
colocados na mesma sala da delegacia da cidade de Cunha, para que fatos contraditórios
em seus depoimentos pudessem ser esclarecidos.
Pascoal fez uma retificação. Antes, havia dito que Luís havia-lhe dado as raízes
e a garrafinha com um líqüido. Desta vez, afirmava que as raízes haviam sido dadas a
19

ele por Jacinto, “em sua casa”: numa primeira vez, inclusive na presença de Antonio
Carioca – “que estava deitado numa esteira” –, dera-lhe duas raízes; numa segunda vez,
dera-lhe mais cinco. Entretanto, confirmou que recebera de Luís a tal garrafinha,
ressaltando que “estava escangalhada e, por isso, não valia de mais nada”. Jacinto
confirmou tais informações, reafirmando que “Antonio Carioca é que era bom de
feitiçaria”, pois pediu que todas as garrafas existentes lhe fossem entregues para que
pudesse curar Genovefa. Luís não retrucou em nenhum momento da acareação.
No dia 11 de fevereiro, Pascoal fora pronunciado como “autor” dos assassinatos,
e Luís Moçambique, Félix, Antonio Carioca e Jacinto Monjolo como “cúmplices por
ministrarem o conhecimento” que os possibilitou. Às dez horas da manhã do dia 28 de
março de 1870, os escravos foram ouvidos pelo juiz municipal de Cunha, em nova
acareação que, mais uma vez, trouxe novas informações.
Pascoal afirmou que assassinou o escravo Benedito porque este lhe havia
“furtado umas galinhas, roupas e algum dinheiro”, e que “para isso havia arrombado sua
casa”. Assim, “dera as raízes com a intenção de matá-lo”, ao contrário dos demais
escravos. A estes, “dera para experimentar e ver os efeitos das raízes”. Pascoal declarou
que Jacinto foi quem lhe havia “dado os remédios para curar as pessoas”. O próprio
Jacinto “mandou chamá-lo”, “em sua casa”, para “oferecê-los”. Além disso, Pascoal
afirmou que os livres que depunham “não tinham presenciado nada do acontecido na
casa de morada” da fazenda de dona Geraldina, “exceto Manoel Pereira Abreu e
Timóteo José Cesário de Campos”. Fizera a confissão de que “havia matado outros
escravos” além daqueles cinco, “após sofrer castigos na casa de sua senhora”. Não
havia, portanto, “matado Geremias”, “mas as pessoas atribuíam a ele tal acontecimento
porque ele lhe estimava muito, por terem vindo juntos da mesma terra e por também
morar com ele”. Seus senhores, na verdade, “não gostavam da estima que gozava dos
brancos da casa do capitão José de Godois Moreira”, e “por isso há muito tempo
queriam motivo para processá-lo”.
Já Luís Moçambique afirmou que tinha o “hábito de curar as pessoas de
mordeduras de cobra, conhecia Pascoal há muito tempo e havia lhe dado as raízes” para
o mesmo fim. Além do mais, “para provar o que estava falando, qualquer um dos
presentes poderia beber das raízes que nada lhes aconteceria”. Se quisessem, “ele
mesmo estava pronto para beber”. Isso provava, também, que não teria sido com suas
raízes que Pascoal matara Benedito, mas sim com o “veneno da garrafinha”. Pascoal,
assim, o teria envolvido nas mortes “para que parasse de ser castigado por seus
20

senhores”. Uma vez que as raízes não eram de espécies venenosas, nada mais poderia
ser alegado contra a sua inocência.
Jacinto Monjolo afirmou que “conhecia Pascoal há muitos anos”, e “sempre
pousava quando passava por sua casa”. Numa destas vezes, ele encontrou-se com
Antonio Carioca. Afirmou, por fim, que “ninguém lhe havia dado nada, nem mesmo
conhecia nenhum dos objetos que ali estavam sendo apresentados”.

A condenação dos “feiticeiros”


No dia 30 de março de 1870, Pascoal e Luís Moçambique foram condenados à
pena de galés perpétuas – prisão com trabalhos forçados. Jacinto Monjolo foi absolvido.
O pedido de apelação foi negado, em seis de julho de 1870, com o processo sendo
encerrado em 21 de agosto. A condenação foi pelos homicídios, no caso de Pascoal, e
por Luís Moçambique tê-lo ajudado diretamente a cometê-los, lhe fornecendo as armas
necessárias.

A classe senhorial em ação: sobre os acusadores de feitiçaria


Primeira acusação: de dona Geraldina a seu escravo Pascoal de “ter assassinado
vários escravos seus e de senhores vizinhos”. A acusação veio após a senhora comandar
uma investigação policial de caráter privado, mas de grande valia para a justiça
imperial. Segunda acusação: a mesma senhora ao mesmo escravo de perpetrar tais
crimes, contra vários de seus escravos, por meio da “feitiçaria”. Ou seja, Pascoal é, para
sua senhora, “assassino” e “feiticeiro”. Ao longo do processo criminal, que se inicia
com ambas acusações, ele será mais “feiticeiro” que “assassino”, somente invertendo
esta relação entre acusações às vésperas da promulgação da sentença. Mas, qual é a
novidade disso para nossa análise?
Vimos o caso de Pai Gavião. Nele, os envolvidos, incluindo o correspondente
que nos narrou uma versão da história, acreditavam nos poderes de um espírito, ex-
escravo, que incorporava em José Cabinda, um escravo por ele escolhido, utilizando seu
corpo para pronunciar-se nos encontros noturnos, bem como planejar uma possível
insurreição. No caso dos acusados de feitiçaria em Cunha, temos, segundo o processo
criminal, uma “escola de feitiçaria” na qual aqueles que desejavam aprender o “ofício
de feiticeiro” passariam por aulas nos finais-de-semana e dias santos. Lembremos que
Turner alertou para a pluralidade de usos dos conceitos de feitiçaria e bruxaria pela
21

antropologia britânica dos anos 1950 e 60.17 Turner alertava sobre o perigo de operar-se
com categorias estanques, impostas pelo antropólogo antes mesmo das análises do
material disponível. No mesmo artigo, comentando uma publicação dirigida pelos
antropólogos britânicos Middleton & Winter – também pesquisadores da “feitiçaria” nas
sociedades africanas –, que visava dar uma visão universal da feitiçaria na parte leste da
África18, Turner propõe uma definição básica para a feitiçaria como fenômeno social.
Tal definição se modificaria ao se aproximar dos dados coletados pelos pesquisadores.
Para ele, muitas das sociedades africanas estudadas pelos autores dos artigos que
compunham o livro reconhecem a mesma série de componentes sociais, antes mesmo de
falarmos em feitiçaria. Estes componentes são: capacidades “inatas”, “adquiridas”,
“aprendidas” e “herdadas” para causar dano e para matar; poder para matar de maneira
imediata e poder conseguido por meio de “medicinas”; o emprego de familiares,
visíveis e invisíveis; a introjeção mágica de objetos no interior dos inimigos; magia
hostil noturna e diurna; a inovação dos espíritos mediante uma maldição, etc. Em
Cunha, a feitiçaria ocorreu pela capacidade aprendida, ou seja, quem desejava ser
“feiticeiro” assim o seria caso entrasse para a “Escola Coroa da Salvação”, aprendendo
tal “ofício”. Além disso, seguindo a proposta de Turner, as técnicas aprendidas eram
para ser usadas para causar dano a alguém. Turner ainda argumenta que nas distintas
sociedades, e às vezes nas distintas situações dentro de uma mesma sociedade, aqueles
componentes aparecem separados e agrupados de diferentes maneiras. A solução

17
Cf. Victor W. Turner, “Brujeria y hichicheria: taxonomia versus dinamica”, in La selva de los
simbolos: aspectos del ritual Ndembu, Madrid, Siglo Veintiuno, 1967, pp. 124-141.
18
Trata-se de John Middleton e E. H. Winter (orgs.), Witchcraft and sorcery in East Africa, London,
Routledge & Kegan Paul, 1963. Alguns anos mais tarde, houve uma tentativa de historiadores e
antropólogos repensarem paradigmas até então dominantes nos estudos sobre acusações de feitiçaria, em
Mary Douglas (org.), Witchcraft confessions and accusations, London, Tavistock Publications, 1970.
Para uma visão geral acerca dos estudos que antropólogos britânicos fizeram sobre “acusações de
feitiçaria” na África, ver Adam Kuper, Antropólogos e Antropologia, Rio de Janeiro, Livraria Francisco
Alves Editora, 1978, pp. 87-119 e Murray Leaf, Uma história da Antropologia, Rio de Janeiro, São
Paulo, Zahar, EdUSP, 1981, pp. 298-301. Para uma análise crítica do ponto de vista da antropologia
britânica acerca dessas acusações, ver Malcolm Crick, “Recasting witchcraft”, in Max Marwick (org.),
Witchcraft and sorcery (Middlesex, Penguin, 1982), pp. 343-364. Considerações importantes acerca de
vários dos autores da antropologia inglesa, por nós citados, encontram-se em George W. Stocking Jr.,
After Tylor: British School Anthropology, 1888-1951, Madison, The University of Wisconsin Press,
1995. Outros pontos acerca da forma de produzir as etnografias dessa “escola antropológica”, levando-se
em conta os contextos políticos internacionais, são abordados por Mauro Almeida, “A etnografia em
tempos de guerra: contextos temporais e nacionais do objeto da antropologia”, in Fernanda Peixoto,
Heloisa Pontes & Lilia Moritz Schwarcz (orgs.), Antropologias, histórias, experiências (Belo Horizonte,
Editora UFMG, 2004), pp. 61-77. Algumas questões acerca dessas discussões foram recentemente
levantadas por Emerson Giumbelli, “Os Azande e nós: experimento de antropologia simétrica”,
Horizontes Antropológicos, ano 12, no. 26 (jul./dez. 2006), pp. 261-297.
22

apontada pelo autor é optar pela análise de casos, situações, pois isso pode muito bem
revelar parte da dinâmica social.
Segundo as indicações de Turner, e analisando cada caso, podemos ver que, a
partir da primeira acusação de feitiçaria, as investigações policiais revelam uma série de
elementos que já estavam postos em relação – as diversas disputas entre os agentes
sociais. Nas notícias ao redor de Pai Gavião encontramos, de um lado, os senhores de
escravos, de vários perfis econômicos, e os escravos que compunham as tais “Lojas
Feiticeiras”, membros da Justiça e o escravo médium que recebia o espírito de Pai
Gavião, o enviado do Correio Paulistano e as pessoas que assistiam aos “rituais de
possessão”. De outro lado, encontramos sentimentos, expectativas, atitudes, as palavras
de Pai Gavião sobre uma grande insurreição escrava e o medo da classe senhorial que a
mesma acontecesse, estas mesmas palavras e seus efeitos nos escravos presentes nos
“rituais de possessão”, a possessão de Pai Gavião controlada pelo espírito que escolhia o
médium e a classe senhorial local querendo aproveitar a “incorporação” para inquirir
Pai Gavião.
Seguir a proposta de Turner significa, em última instância, seguir a metodologia
de Van Velsen, na qual é privilegiada a narrativa o mais detalhada possível dos
acontecimentos específicos a uma situação. Transformamos os dados do processo
criminal em uma narrativa diferente da de sua natureza jurídica original, através da
ordenação dos acontecimentos mais adequada às análises dos conflitos e das normas
sociais em questão. Procuramos construir as questões a partir dos diferentes pontos de
vista presentes ao longo do processo criminal, no qual se apresenta um número limitado
de personagens, que, por sua vez, representam diferentes interesses e grupos sociais.19
Estamos utilizando, assim, os registros de situações concretas para analisar uma série de
dados interligados, numa área social delimitada, parte do sudeste escravista. 20
No caso da “Escola de Feitiçaria Coroa da Salvação”, a natureza do documento
que estamos trabalhando nos possibilita analisar a relação entre seus membros, bem

19
Sobre a construção de versões de fatos no bojo de um processo criminal, ver Mariza Corrêa, Morte em
família: representações jurídicas e papéis sexuais, Rio de Janeiro, Graal, 1983.
20
J. Van Velsen, “A análise situacional e o método de estudo de caso detalhado”, in, Bela Feldman-
Bianco (org.), Antropologia das sociedades contemporâneas (São Paulo, Global, 1987), pp. 345-374.
Para um exemplo concreto da aplicação deste método, ver Max Gluckman, “Análise de uma situação
social na Zululândia moderna”, in Feldman-Bianco (org.), Antropologia das sociedades contemporâneas,
pp. 227-344. Por outros caminhos, centrado nos debates da hermenêutica de Paul Ricoeur e da análise dos
discursos de Gadamer, encontramos parte destas técnicas de descrição de dados de pesquisa em Clifford
Geertz, “1. Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura”, in A interpretação das
culturas, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1978, pp. 13-41.
23

como dos mesmos com os da classe senhorial, aparentemente liderados por dona
Geraldina ao longo das investigações.
Todas as testemunhas têm alguma relação de parentesco ou compadrio com dona
Geraldina: José Cesário de Campos é seu filho; Antonio Pereira Coelho, sobrinho e
inspetor de quarteirão; José de Godois Moreira, genro; feitor, anônimo, dos escravos de
dona Geraldina; Máximo Campos do Amaral, padrinho de seu filho, portanto, compadre
de dona Geraldina; Lourenço Pereira Coelho, seu cunhado e pai de Antonio Pereira;
Joaquim Augusto da Purificação, seu genro. Alguns destes homens eram senhores de
escravos envolvidos nos crimes, fossem como assassinados, assassinos ou “feiticeiros”.
Mas isso veremos ao longo de nossa análise.
O fato que deve ficar registrado, daqui até o final deste artigo, é o controle
exercido por dona Geraldina e autoridades senhoriais sobre a construção das acusações
dos escravos, através do constrangimento de pessoas que lhes estavam subordinadas na
hierarquia econômica, política e/ou familiar. Dona Geraldina conduziu as investigações
o tempo todo, designando a função dos agentes, sem consultar pessoa alguma. Segundo
as informações do processo, era imediatamente obedecida. Desta forma, ambas as três
hierarquias estão juntas, interdependentes, uma vez que dona Geraldina era a maior
senhora de escravos dos senhores envolvidos no processo – o que reforça a idéia de que
ocupava o lugar maior na hierarquia econômica local. É bom deixarmos claro que a
posse de escravos não garantia uma produção econômica elevada para o senhor, mas o
simples fato de ter muitos escravos implicava que teria moeda de troca da mais valiosa
naqueles anos de grande movimentação de compra e venda de escravos, como bem já
demonstrou Slenes21, nas áreas cafeeiras do sudeste. Para conseguir escravos, o senhor
deveria conhecer os mecanismos diversos que envolviam transações não somente caras,
mas arriscadas, uma vez que os escravos antes mesmo de chegarem às suas plantações
passavam pelas mãos de vários negociantes e autoridades imperiais.22 Essa observação
se restringe para o caso de Cunha, não servindo para o de Pai Gavião, pois fazem parte
de duas realidades distintas, respondendo de formas diversas aos efeitos da lei de
supressão do tráfico internacional de escravos para o Brasil, em 1850.
Ademais, as ações criminosas, no sentido literal, legal, do termo, dos escravos
emperravam, muitas vezes, a rotina de trabalho nas lavouras. Não atoa, os boatos de

21
Cf. Robert W. Slenes, “Grandeza ou decadência? O mercado de escravos e a economia cafeeira da
província do Rio de Janeiro, 1850-1888”, in Iraci del Nero da Costa (org.), Brasil, história econômica e
demográfica (São Paulo, IPE-USP, 1986), pp. 103-155.
22
Ver Emília Viotti da Costa, Da senzala à colônia, 3ª edição, São Paulo, Brasiliense, 1989, pp. 85-91.
24

insurreição não vinham de cortinas de fumaça, mas de uma série de atitudes de escravos
que envolvia assassinato de feitores e demais funcionários das fazendas, no sudeste
escravista cafeeiro de 1860 em diante, bem como fugas e pequenos roubos.23 Em
Taubaté e Campinas, por exemplo, houve um aumento considerável de homicídios e
lesões corporais cometidos por escravos em homens livres, uma vez que estes eram
identificados como ilegítimos substitutos da autoridade senhorial em situações nas quais
os escravos não reconheciam com clareza sua autoridade: maus tratos, prisões, capturas
e punições entendidas pelos cativos como injustas ou mesmo desnecessárias.24 Só na
província de São Paulo, havia uma extensa lista de posturas públicas acerca da punição
a ser imposta aos escravos fugidos capturados, bem como pelo cometimento de furtos e
roubos os mais diversos, e a seu senhor. Falamos em 1860 por ser o ano da primeira
legislação desta província destinada a controlar a fuga de escravos. As posturas
municipais tornaram oficiais as atitudes de escravos a partir do momento em que o
governo procurou enquadrá-las na lei, tentando acompanhar a rápida sofisticação de
suas estratégias de fuga e formação de quilombos, como a criação de gratificações
extras, em 1862, para os apreensores de escravos, recompensas maiores pela captura de
escravos de outros municípios, proibição dos escravos usarem certos tipos de roupas,
evitando que os fugitivos se imiscuíssem melhor na população, e mesmo impedindo-os
de dormir em quartos de aluguel.25

23
Para exemplos de tais fatos, ver Luiz Alberto Couceiro, “Reinventando o cativeiro, construindo a
emancipação: escravos, senhores e lógicas de sociabilidade em fazendas de café (Sudeste, 1860-1888)”,
in Revista Acervo: o Arquivo Nacional e seus pesquisadores, vol. 15, no. 2 (2002), pp. 17-32 e “A
disparada do burro e a cartilha do feitor: lógicas morais na construção de redes de sociabilidade entre
escravos e livres em fazendas do sudeste, 1860-1888”, Revista de Antropologia – USP, n. 46.1 (2003), pp.
41-83; Luiz Alberto Couceiro & Carlos Eduardo Moreira de Araújo, “Dimensões cativas e construção da
emancipação: relações morais nas lógicas de sociabilidade de escravos e livres. Sudeste, 1860-1888”,
Estudos Afro-Asiáticos, ano 25, no. 2 (2003), pp. 281-306; Flávio dos Santos Gomes, A hidra e os
pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no Brasil – séculos XVII-XIX, São Paulo,
Editora UNESP, Editora Polis, 2005 e Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas
no Rio de Janeiro – século XIX, Edição revista e ampliada, São Paulo, Companhia das Letras, 2006 (Rio
de Janeiro, Arquivo Nacional, 1995); Humberto F. Machado, Escravos, senhores e café: a crise da
cafeicultura escravista do Vale do Paraíba Fluminense, 1860-1888, Niterói, Clube de Leitura Cromos,
1993; Maria Helena Pereira Toledo Machado, Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas
lavouras paulistas, 1820-1888, São Paulo, Brasiliense, 1987 e O plano e o pânico: os movimentos sociais
na década da abolição, Rio de Janeiro, São Paulo, Editora UFRJ, EdUSP, 1994.
24
Para os homicídios e lesões corporais, ver, principalmente, Machado, Crime e escravidão, pp. 38-44.
25
Sobre as posturas na província de São Paulo, bem como uma série de leis sobre fugas e formação de
quilombos, ver Ademir Gebara, O mercado de trabalho livre no Brasil (1871-1888), São Paulo,
Brasiliense, 1986, pp. 138-154. Para análises acerca dos significados diversos das fugas de escravos, no
Império, ver Flávio dos Santos Gomes, “Jogando a rede, revendo as malhas: fugas e fugitivos no Brasil
escravista”, Revista Tempo, vol. 1, no. 1 (1996), pp. 67-93 e Isabel Cristina Ferreira dos Reis, ““Uma
negra que fugiu, e consta que já tem dous filhos”: fuga e família entre escravos na Bahia oitocentista”,
Afro-Ásia, no. 23 (2000), pp. 29-48.
25

Estes tipos de lei eram comuns em toda a América. Nos Estados Unidos, por
exemplo, Tang escreveu um breve sumário do controle judicial adotado pelo estado da
Virgínia para prevenir insurreições escravas.26 Primeiro, africanos escravizados eram
proibidos de viajar para qualquer lugar sem a autorização de seu senhor. Segundo, eram
proibidos de erguer suas mãos contra qualquer branco cristão. Terceiro, os brancos
tinham garantido o direito de disciplinar sua propriedade – no caso, os africanos
escravizados. Quarto, africanos escravos ou livres não podiam possuir nem ao menos
carregar nenhum tipo de arma de fogo. Quinto, associações entre brancos e não-brancos
eram proibidas. Sexto, todos os africanos, observado o seu estatus, eram proibidos de
aprender a ler e a escrever. Sétimo, africanos não podiam praticar sua própria religião.
Oitavo, caso fossem livres um dia, os escravos africanos tinham que deixar a colônia
por um período de tempo específico. E nono, africanos escravizados estavam sujeitos à
obrigatória realocação na Libéria, após a emancipação. Tang demonstra como o que
denominou “leis anti-insurreição” estavam mais ligadas ao campo das representações
sociais da elite senhorial e dos brancos livres acerca das ações dos escravos e dos
africanos livres, do que às possibilidades de sucesso racional e calculado da formulação
das leis. Para a autora, os senhores queriam controlar ou restringir satisfatoriamente a
ocorrência de insurreições de escravos e africanos livres.
Para a cidade do Rio de Janeiro, Chalhoub argumenta que escravos lutavam,
com maior dureza a partir da década de 1860, para multiplicar as situações sociais nas
quais assumiam papéis aparentemente impensados para um escravo. Poderiam
conseguir emprego como operário e, ao ser acusados de um crime, ser julgados como
pessoas livres na Justiça, por exemplo. As situações nas quais escravos conseguiam
vender sua força de trabalho avolumavam-se com o passar dos anos, quando vários
deles compravam cada vez mais sua alforria. Afinal de contas, o número de libertos que
eram reescravizados por seus senhores, por ingratidão, era pequeníssimo no Rio de
Janeiro e mesmo em São Paulo. As alforrias dos escravos passaram a ser condicionais,
ou seja, deveriam trabalhar por mais alguns anos para seus senhores. Assim, a lei de 28
de setembro de 1871 reconheceu tais atitudes de escravos quando impediu que os
senhores recusassem a compra da alforria quando requerida por aqueles.27 Dizia, assim,

26
Joyce Tang, “Enslaved African rebellions in Virginia”, Journal of Black Studies, vol. 27, no. 5 (may
1997), pp. 598-614.
27
Cf. Sidney Chalhoub, Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte,
São Paulo, Companhia das Letras, 1990, pp. 135-174. Para análises acerca das discussões dos políticos e
senhores do Império do Brasil em torno da aprovação da lei de 1871, ver Carvalho, I – A construção da
26

o seu parágrafo segundo: “o escravo que, por meio de seu pecúlio, obtiver meios para
indenização de seu valor, tem direito a alforria. Se a indenização não for fixada de
acordo, o será por arbitramento. Nas vendas judiciais ou nos inventários o preço da
alforria será o da avaliação”.28
Após este importante passeio pelas ruas da Corte, voltemos às esquinas e
encruzilhadas da feitiçaria escrava da cidade de Cunha...
É importante adiantarmos que, ao contrário do que vimos nas relações entre os
próprios escravos, a autoridade de dona Geraldina impediu que ocorressem acusações
de qualquer espécie entre os livres, ao longo do processo criminal. O exercício de seu
poder foi legitimado pelos demais senhores, uma vez que não apenas a obedeceram,
como também deixaram que seus escravos fossem investigados a partir de suas relações
com Pascoal, o primeiro escravo acusado de “feitiçaria” pela senhora, que a ela
pertencia. Como a mais atingida pelos efeitos mortais dos feitiços, pois seus escravos
Jeremias, Benedito Gama e Lourenço Crioulo foram mortos, bem como Maria Rita, era
mais do que “natural” que ela capitaneasse as investigações. Apenas a quinta vítima, o
escravo Luís, era de outra pessoa – pertencia ao genro de dona Geraldina, Joaquim
Augusto, pessoa bem próxima a ela.
Caso não descobrisse e eliminasse os “feiticeiros” do convívio das pessoas da
região, dona Geraldina e seus escravos continuariam a sofrer grande perigo de morte.
Os procedimentos deveriam ser: primeiro, conhecer os feiticeiros a partir das
informações do primeiro acusado, seu escravo Pascoal; segundo, localizá-los e, terceiro,
capturá-los para serem interrogados. O reconhecimento dos acusados de serem
“feiticeiros”, ao longo do processo, acontecia quando os senhores e seus empregados
encontravam nas suas senzalas “objetos reconhecidamente de feitiçaria”.29

ordem, pp. 269-302 e Eduardo Spiller Pena, Pajens da casa imperial: jurisconsultos, escravidão e a Lei
de 1871, Campinas, Editora da UNICAMP, CECULT, 2001. Ao longo da década de 1870, o clima
político continuaria a ser dominado pelos debates de outras leis para o gradual ou o imediato fim legal da
escravidão no Brasil, como as leis Sinimbu e a dos Sexagenários. Ver Maria Lúcia Lamounier, Da
escravidão ao trabalho livre: a Lei de Locação de Serviços de 1879, Campinas, Papirus, 1988 e Joseli
Maria Nunes Mendonça, Entre a mão e os anéis: a Lei dos Sexagenários e os caminhos da abolição no
Brasil, Campinas, Editora da UNICAMP, CECULT, 1999, para análises da elaboração das respectivas
leis; Sidney Chalhoub, Machado de Assis, historiador, São Paulo, Companhia das Letras, 2003. Para
observações gerais acerca das cartas de alforria, ver os apontamentos de Ligia Bellini, “Por amor e por
interesse: a relação senhor-escravo em cartas de alforria”, in João José Reis (org.), Escravidão e invenção
da liberdade: estudos sobre o negro no Brasil (São Paulo, Brasiliense, 1988), pp. 72-86.
28
Cf. AN, Colleção das Leis do Império do Brasil de 1871, Tomo XXXI, Parte I, Rio de Janeiro, 1871,
pp. 147-151.
29
Este tema é o assunto central de nossa tese de doutorado em Antropologia, no PPGSA-IFCS/UFRJ, que
se encontra em fase de conclusão.
27

Agora, resta-nos saber: se não foi o escravo Pascoal quem afirmou ser
“feiticeiro”, como dona Geraldina e seus prepostos e aliados sabiam das causas das
mortes dos seus escravos?
Em estudo sobre acusações e crenças na feitiçaria entre os Zulu, Max Gluckman,
seguindo Evans-Pritchard, afirma que, entre “os ocidentais”, quando algo ruim acontece
diz-se que foi uma infeliz coincidência, má sorte ou azar. Esta explicação independe das
explicações científicas sobre o modo pelo qual as coisas aconteceram. Ao contrário
desta maneira de pensar, “os africanos Zulu”, mesmo sabendo como as coisas ruins
sucederem a alguém, dizem que foi a “bruxaria” o motivo pelo qual algo ruim
aconteceu.30 Queremos dizer com isso que havia descendentes dos Zulu entre os
senhores ou escravos em Cunha? Queremos dizer, ainda, que haveria uma passagem
estrutural da crença na feitiçaria “da África” para o Brasil, através de escravos
africanos, que permaneceu na África estudada por Gluckman nos anos 1930? A resposta
é não, absolutamente não é isso que queremos dizer ao nos apoiarmos nas observações
de Gluckman sobre os Zulu. Queremos chamar a atenção para a ligação da crença na
feitiçaria com algo de ruim que tenha ocorrido com uma pessoa próxima, sendo esse
fato creditado aos poderes mágicos utilizados por alguém.
Provavelmente, não era novidade para dona Geraldina, e seu séquito de
acusadores de “feitiçaria”, as ações de escravos contra senhores, em todo o continente
americano, através de poções mágicas provocando envenenamento. Além disso, feitiços
e “coisas feitas” eram vistos, ao contrário da feitiçaria, nas sociedades escravistas
americanas, como fundamento da forma de pensamento da maneira pela qual coisas
ruins acontecem consigo ou pessoas próximas. Peguemos o exemplo da colônia
holandesa de Curaçao, no Caribe, onde a escravidão durou oficialmente até 1863.
Vários escravos acreditavam que sua crença na “brua” funcionava contra os senhores.
Em poucas palavras, a crença na “brua” dos escravos de Curaçao rezava sobre a vida da
alma de cada pessoa após sua morte. Uma pessoa que levou uma vida eticamente boa,
digamos assim, terá seu espírito bom. Os bons espíritos podem, caso sejam convocados
ritualmente, proteger a vida dos vivos, ao contrário dos maus espíritos, que lhes causam
prejuízos. Para aqueles escravos, o bruxo era aquele que tinha a capacidade de lidar com
os maus espíritos para causar dano a uma terceira pessoa. Assim, quando acontecia algo
de ruim contra algum senhor, em Curaçao, logo se desconfiava de seus escravos.

30
Max Gluckman, “The logic of witchcraft”, in Custom and conflict in Africa, Oxford, Basil Blackwell,
1970, pp. 81-108, p. 12.
28

Entretanto, os bruxos podiam ser libertos, como em Cunha, com autoridade sacerdotal
reconhecida pelos escravos que iam procurá-los. Na insurreição escrava ocorrida em
Curaçao, em 1775, sabe-se que o bruxo Mingeel Boelbaaij organizou um ato religioso
com todos os escravos rebeldes, no qual lhes aspergiu uma poção mágica para imunizá-
los contra as armas dos senhores e seus prepostos.31
Argumentamos, assim, que dona Geraldina compartilhava junto a vários
senhores de escravos da crença no feitiço, associando certos casos da vida cotidiana, e
mesmo casos excepcionais, aos efeitos de poções mágicas e da ação dos escravos que
reconhecidamente detinham suas técnicas de manipulação e ensino. Mauss falava em
reconhecimento social da magia para que, antes de mais nada, ela pudesse existir em
qualquer sociedade.32 Malinowski, por sua vez, falava em níveis de crença na magia
diferenciados entre pessoas de uma mesma sociedade. Além disso, lembremos que o
mesmo Malinowski afirmou que a “feitiçaria” existia mesmo quando era negada por
alguns de seus informantes, reforçando a crença em seus efeitos.33 Entretanto, para
termos toda esta eficácia do medo e das acusações proporcionada pela crença nos
efeitos pragmáticos da feitiçaria na vida social, devemos fixar a idéia de que não há
feitiço sem feiticeiro, nem feiticeiro sem cliente, nem cliente sem a pessoa que se quer
atingir. Em suma, não há tudo isso se não há um sistema de crenças que afete todos os
envolvidos: acusados, acusadores, clientes, editor de jornal, ministros, políticos em
geral, funcionários públicos... e “feiticeiros”.
A acusação de feitiçaria no caso de Cunha estava ligada, ora mais, ora menos
nitidamente aos escravos africanos não somente por parte da classe senhorial, mas
também da parte dos próprios escravos. Não é novidade alguma, lembremos disso, que
no Brasil Império fora enfatizada entre as elites a idéia de África ligada a mistérios
quanto aos poderes dos antepassados, poderes estes freqüentemente relatados por
jornais da época. Neste sentido, façamos uma pausa para um breve entendimento desta
importante questão, fundamental para compreendermos sua marcante presença na
construção do inquérito do processo criminal instaurado em Cunha e nas narrativas de
outros de nossos casos.

31
Para todos estes dados sobre a crença na “brua” em Curaçao, durante a escravidão, ver Armando
Lampe, “O catolicismo negro na sociedade escravista de Curaçao”, in Escravidão negra e história da
Igreja na América Latina e no Caribe – Comissão de Estudos de História da Igreja na América Latina
(CEHILA), Petrópolis, Vozes, 1987, pp. 169-213.
32
Cf. Mauss & Hubert, “Esboço de uma teoria geral da magia”, p. 63.
33
Bronislaw Malinowski, Magia, ciência e religião, Lisboa, Edições 70, 1988.
29

“África fetiche” e fetiche de africano


O sentido mágico da “feitiçaria” escrava dava-se através do que chamamos por
“África fetiche”. Falando sobre a concepção de cultura entendida pelos intelectuais que
fundaram o Museu do Homem, na década de 1920, Clifford lembra que a África era
entendida como um objeto de sedução, um lugar onde viviam “povos exóticos”.34
Destes povos da “África negra”, ainda resistindo às diversas imposições da relação de
dominação colonial, tais intelectuais tomavam-lhes objetos de sua produção como
detentores de significados idílicos, que resumiam não as várias Áfricas, mas a África.
Assim, tais artefatos começaram a ser consumidos por aficionados colecionadores
europeus. Estes homens deslocavam os significados específicos dos “exóticos objetos”
da cultura que os havia produzido, para um campo de significados atribuído a uma
África. A África pensada através de cabeças francesas, ou européias, estrito senso. Para
os colecionadores, este movimento de resumir a África dos sonhos em objetos concretos
fazia sentido como uma função quase mística.

Segundo o correspondente, Pai Gavião era o espírito de um africano, e tal prática


mágica de “possessão” era entendida por membros da classe senhorial local como parte
das práticas dos escravos, ou seja, oriundas da África. Lembremos, também, o fato do
médium ser escravo africano, numa espécie de linha direta espiritual comunicando o
Império do Brasil e a terra dos escravos. Desta forma, ao mesmo tempo em que tal
crença sustentava o medo senhorial das ondas escravas de “brancocídio”, despertava
nesta mesma classe social fascínio, respeito, curiosidade, prestígio e perigo. Isso
explica, em parte, encontrarmos notícias de jornais elogiando africanos dentro desta
ótica, mesmo que no bojo de um ambiente social cada vez mais hostil a eles, na
emergência de teorias de “classes perigosas”, “limpeza social, étnica”, etc. presentes na
mentalidade da classe senhorial, mais fortemente a partir do final da década de 1860.35

34
James Clifford, “Sobre o surrealismo etnográfico”, in A experiência etnográfica: antropologia e
literatura no século XX (organização e revisão técnica de José Reginaldo Santos Gonçalves), Rio de
Janeiro, Editora UFRJ, 1998, pp. 132-178, pp. 156-158.
35
Cf. Sidney Chalhoub, Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial, São Paulo, Companhia
das Letras, 1996, pp. 15-59; Lilia Moritz Schwarcz, Retrato em branco e negro: jornais, escravos e
cidadãos em São Paulo no final do século XIX, São Paulo, Companhia das Letras, 1987 e O espetáculo
das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930, São Paulo, Companhia das
Letras, 1995, pp. 23-66. Para uma abordagem de longa duração temporal da história das idéias raciais
aplicadas às Américas, ver Renato Silveira, “Os selvagens e a massa: o papel do racismo científico na
montagem da hegemonia racial”, Afro-Ásia, no. 23 (2000), pp. 89-145.
30

Podemos entender melhor o que dissemos através de notícia publicada pelo


jornal A Democracia, da cidade de Piracicaba, província de São Paulo, em 18 de julho
de 1879:

Da freguesia da Aparecida comunicam ao Sapucaiense:


Acaba de falecer na fazenda do Monte Café um preto com a idade de 120
anos. Debaixo do humilde nome de Pai Couto, esse escravo encerrava uma
alma grande e a estóica coragem de um espartano, o que admirava a todos
que o cercavam.
Aos 20 anos de idade, alistado nas colunas revoltosas da Costa da África,
das quais conseguiu ser um dos chefes mais proeminentes, era o terror dos
portugueses e ingleses e de todos aqueles que procuravam abrigo nestas
regiões inóspitas.
Por mais de uma vez os pavilhões luso e britânico abateram-se diante da
bravura e da coragem desse filho das matas africanas.
A África do Sul era-lhe perfeitamente conhecida; percorrera-a em todos os
sentidos para com sua voz potente reunir cortes dispersas, a fim de
debelarem o inimigo comum. Mais tarde, depois de 15 anos de lutas
improfícuas, foi derrotado numa das mais sangrentas batalhas que a África
presenciou e levado para bordo de um navio: ali, com alguns bravos que lhe
restavam, fez uma revolta onde pereceram 17 pessoas.
Domado então pelo direito da força, foi trazido para o Brasil, onde
venderam-no como escravo.
Longe, pois, de sua pátria, era necessário sufocar todos os sentimentos
patrióticos que lhe giravam na alma; e resignando-se à sua sorte do
cativeiro, conseguiu captar as simpatias dos seus senhores.
Todos esses detalhes contados pelo próprio escravo, foram confirmados por
um oficial português, morto aos 50 e tantos anos, única testemunha que
nesse tempo restava dos feitos gloriosos do destemido africano, que
conservou até o último momento as faculdades intelectuais.36

Pai Couto foi reverenciado pelo autor da notícia com sua biografia narrada a
partir de sua atuação tanto na África, quanto no Império do Brasil. Tal como Pai
36
BN, Seção de Obras Raras, pp. 2-3.
31

Gavião, Pai Couto era louvado pelo seu intelecto, preservado até o final de sua vida.
Também tinha o crédito daqueles que ouviram suas histórias acerca dos tais feitos de
bravura e coragem, no mar e nas matas africanas. A narrativa que o jornalista credita a
Pai Couto reforçava a visão da África fascinante e misteriosa que também sustentou o
crédito de membros da classe senhorial a Pai Gavião. Inclusive no momento em que
prometia organizar insurreições. Seus atos, incluindo o que dizia, e como dizia,
alimentavam a imaginação de uma África que os membros da classe senhorial
construíam. Voltando ao texto, podemos perceber que o jornalista não fornece nenhum
dado preciso sobre os lugares da África do Sul, nem mesmo as datas, nomes de povos,
portos onde atuou o bravo Pai Couto, muito menos o modo pelo qual fora capturado e
vendido como escravo para o Império do Brasil. Tais informações eram dispensáveis
para as necessidades de pensamento da classe senhorial sobre a África focalizada por
sua retina.37

Podemos dizer, assim, que tanto Pai Gavião quanto Pai Couto eram metáforas
desta África imaginada aos nossos olhos, mas “verdadeira” aos dos membros da classe
senhorial. Ambos sustentavam o sentimento de insegurança desta classe, ameaçando os
indivíduos, suas vidas, e as cidades, sua produção econômica e as relações de trabalho.
Lembremos que Pai Couto foi elogiado, dentre outras coisas, por ser um guerreiro que,
ao invés de organizar insurreições escravas, conquistou a simpatia dos senhores que
conheceu. Conseqüentemente, ambos traziam a idéia de África feiticeira, terra irracional
e mística, de espíritos que encarnavam em médiuns e antigos guerreiros produzidos nas
matas selvagens. Estes seriam ancestrais dos escravos, o espírito por já ter morrido, há
tempos, pelas mãos de um senhor, e o “guerreiro espartano” pelos seus 120 anos,
história viva tanto da África, quanto do período colonial luso-americano até parte do
Império do Brasil.

Tais construções de idéias faziam parte da maneira de pensar da classe senhorial,


que através da mesma tinha como organizar por categorias relacionais seus sentimentos.
Lévi-Strauss afirma, acerca dos estudos de Radcliffe-Brown sobre o pensamento
totêmico, que, é fundamental analisar a relação entre as formas de pensamento, o mundo
sensível que reforçou sua construção e os objetos em que tais se aplicam, objetos esses

37
Sobre as formas pelas quais idéias sobre a África eram difundidas para as elites e camadas médias
letradas no Ocidente do século XIX, ver Robert Thornton, “Narrative ethnography in Africa, 1850-1920:
the creation and capture of an appropriate domain for Anthropology”, Man: New Series, vol. 18, no. 3,
(sep. 1983), pp. 502-520.
32

passíveis de observação.38 Ora, o pensamento da classe senhorial era especulativo


quanto à África, e muitas vezes sobre a vida dos escravos nas fazendas do sudeste,39
pois a ordem intelectual da mesma dava contornos ao seu medo, classificando-o em
relação às atitudes dos escravos entendidas como perigosas. Os membros daquela classe
imputavam em tais atitudes os motivos de seus medos, e a construção de uma terra
fisicamente desconhecida, a África, que teria a qualidade de produzir poderes mágicos
em seus naturais, vendidos como escravos para as outras pontas do Atlântico. A classe
senhorial não somente sentia medo e ansiedade em relação aos escravos se insurgirem,
provocando “ondas negras para os medos brancos”40, mas também com o possível
fracasso do controle social que pretendia exercer sobre os mesmos.

Queremos dizer que o medo da classe senhorial é resultado de certa forma de ver
os escravos, bem como de onde muitos deles vieram. A construção de imagens de
escravos segundo o olhar de homens da boa sociedade imperial explicava qual tipo de
medo que esta sentia de várias das atitudes dos mesmos.41
Anos antes do caso de Cunha eclodir através das investigações senhoriais que
resultaram no processo criminal, ocorreu, na Corte, tensão por parte das autoridades do
Ministério da Justiça em relação a um caso de “feitiçaria”.
No dia 16 de dezembro de 1867, o juiz Carlos de Lima Teixeira escreveu aos
responsáveis pela Secretaria de Polícia da Corte sobre um “sinistro fato de feitiçaria”.42
Afirmava que, no dia 14 daquele mesmo mês, fora procurado por um tal Luiz Tavares
Guerra que temia o fato de que os “escravos da casa [na qual ele trabalhava] formavam
o desígnio de se revoltarem contra seu senhor e caixeiros”. O juiz enviou,
“imediatamente, uma força do Corpo Militar de Polícia, e fez prender os que pareciam

38
Claude Lévi-Strauss, Totemismo hoje, in Lévi-Strauss, São Paulo, Abril Cultural, 1976, pp. 95-187, pp.
171-173, Coleção Os Pensadores, vol. L
39
Cf. Robert Wayne Slenes, Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família
escrava, Brasil, Sudeste, século XIX, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999, pp. 50-53
40
Célia Maria Marinho de Azevedo, Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites, século
XIX, São Paulo, Annablume, 2004 (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987).
41
“Os homens não agem, enquanto membros de um grupo, de acordo com aquilo que cada um sente
como indivíduo: cada homem sente em função da maneira pela qual lhe é permitido ou prescrito
comportar-se. Os costumes são dados como normas externas antes de engendrar sentimentos internos, e
estas normas insensíveis determinam os sentimentos individuais, assim como as circunstâncias em que
poderão ou deverão se manifestar. (...) A emoção vem somente quando o costume, indiferente em si
mesmo, é violado. (...) Em verdade, as pulsões e emoções não explicam nada; elas sempre resultam: seja
do poder do corpo, seja da impotência do espírito. São conseqüências nos dois casos, jamais causas.”
Lévi-Strauss, Totemismo hoje, p. 157.
42
AN, IJ6 – Série Justiça /Polícia da Corte, pacote 517.
33

tornar-se suspeitos: Francisco, Bento, Luiz, Torquato, Roque, Caetano e [outro]


Francisco”.
O juiz interrogou um escravo de nome David, que trabalhava na mesma casa, e
que pertencia a um inglês chamado Hill. David confirmou o quê já havia dito ao
administrador da casa, isto é, que “há um mês soube” pelo escravo Torquato da
existência de uma “mesa de feitiçaria que tinha por fim dar cabo de Guerra e dos
caixeiros e [até mesmo] dos seus escravos até o fim deste ano [1867], da qual era chefe
um preto mina velho de nome Francisco e [da qual] faziam parte cinco escravos”. Após
este interrogatório, o juiz afirmou que continuaria as investigações sobre a tal “mesa de
feitiçaria”, uma vez que soube que muitos outros escravos estariam envolvidos não
apenas com a mesma, como também com o “plano de morte de Guerra, dos caixeiros e
de seus escravos”. Neste sentido, o juiz acreditava não somente na feitiçaria como
forma de fazer o mal, mas que, através da mesma, escravos, liderados por um africano,
que já havia sido preso, poderiam levar a cabo um plano de assassinar pessoas que lhes
eram bem próximas. Assim, podemos dizer que neste caso havia crença coletiva no
feitiço, na acusação de feitiçaria, no feiticeiro e nos seus clientes para causar mal a
alguém, fechando o triângulo de crença no feitiço.43
Temos que lembrar que a condição fundamental de uma sociedade escravista é a
clara separação institucional entre livres e escravos, relativa principalmente a códigos de
conduta, normas policiais e ao acesso à Justiça. Neste sentido, cada agente que pertencia
a um daqueles dois grupos sociais estava cercado por limites jurídicos para se comportar
na vida social. Cada escravo e cada livre não a experimentaram da mesma maneira.
Cada um se comportou como livre e como escravo de várias formas, constituindo
famílias, seguindo regras morais e éticas construídas em grupos sociais, e renovadas a
cada dia, protestando direitos de acordo com a gramática social que dispunha para
pautar suas ações. Deve-se ressaltar que aos livres cabia o direito ao monopólio da
violência policial e do poder militar, vedado aos escravos que em inúmeras situações

43
Ao longo deste artigo, trabalhamos com o conceito de feitiçaria como a crença no poder de se fazer o
mal a alguém, segundo meios mágicos. A crença na eficácia das técnicas do feiticeiro por parte do doente
que ele cura ou de quem ele persegue, e a força da opinião coletiva em seus poderes de curar alguém ou
lhe causar dano fecham o que é chamada de “triângulo de crença na eficácia da feitiçaria”, por Claude
Lévi-Strauss, “O feiticeiro e sua magia”, in Antropologia estrutural, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro,
1975, pp. 193-213, pp. 194-195. A partir deste simples, porém eficaz, modo de se entender o princípio
básico para a ocorrência da crença na feitiçaria, na acusação de feitiçaria, nos efeitos diversos do feitiço e
no poder do feiticeiro, podemos fazer nosso argumento ser mais bem compreendido, ao enfatizarmos as
relações sociais entre este último sujeito e as demais pessoas que o circundam.
34

eram considerados bens.44 Mintz & Price afirmam que certos tipos de comportamento
foram cunhados no interior dos grupos de escravos e dos grupos de livres nas Américas.

Escravos e livres cruzavam-se na sociedade, uma vez que tais só existiam


quando postos em relação. Mintz & Price argumentam que as experiências sociais de
escravos e livres não se restringiam à sua origem física, mas sim aos modos como se
relacionaram nos mais diversos contextos escravistas nas Américas. O fato de estes
autores falarem numa “cultura afro-americana” não implica, necessariamente, em
enfatizarem uma primazia da essência biológica tanto de africanos e seus descendentes,
quanto de europeus e seus descendentes, ao comportamento social. Fato é que Minstz &
Price reconheceram a construção de maneiras de viver, de ver o mundo e agir no
mesmo, específicas de sociedades para onde africanos foram imigrados forçosamente
como escravos. Esses autores enfatizam que é possível que laços sociais entre os
próprios senhores e entre os próprios escravos tenham sido construídos no contato
institucionalmente forçado, inclusive a cultura da imaginação que os primeiros
desenvolveram sobre a terra de onde vinham os segundos. Mesmo quando ambos
autores falam do “fluxo cultural” entre livres e escravos nas Américas, os senhores
muitas vezes imaginavam a vida dos escravos em suas terras, e nas de onde haviam sido
retirados.

A idéia de “África fetiche” serve, desta forma, para compreendermos a produção


de símbolos e práticas culturais diversas em uma mesma sociedade, ou mesmo região,
como no caso de São Roque e cercanias, aonde Pai Gavião vinha atuando. Cada
feiticeiro, ou médium, era uma parte viva da memória senhorial acerca do que
chamavam de África. Eram exóticos aos olhos da classe senhorial. Esta memória sobre
a África era alimentada pela importância que os membros daquela classe davam à
observação como meio para conhecer o outro, e não somente a uma relação pelo verbo,
pelas idéias trocadas em forma de palavra. Ao que era observável, ao visível, era
atribuído o que passava a se supor do outro, isto é, o invisível. O visível, assim, é uma
metáfora do invisível, pois aqueles membros da classe senhorial objetificavam a
“magia” dos escravos através da performance do médium no qual Pai Gavião havia
incorporado, ou seja, à performance do espírito. Neste momento, o invisível tornava-se
visível.

44
Ver Sidney W. Mintz & Richard Price, O nascimento da cultura afro-americana: uma perspectiva
antropológica, Rio de Janeiro, Pallas, Universidade Cândido Mendes, 2003.
35

O invisível é entendido como uma encarnação do visível, sendo Pai Gavião uma
manifestação própria da realidade invisível. Além do mais, passava a ilustrar a já falada
“África fetiche”, através do efeito visual que sua performance provocava nos
observadores, dentre eles o correspondente que fez todo o relato dos rituais de
possessão. A visibilidade passava a ser entendida como resultado da “cultura africana”,
uma experimentação deste conjunto monolítico e uniforme de comportamentos de
escravos, exatamente quando uma força do mundo dos mortos se tornava invisível aos
olhos dos vivos.45
Em nosso caso, era a presença do espírito visto, porém inatingível, que acendia o
sentimento de medo da insurreição imaterial nos membros da classe senhorial. O
invisível é o observável por também pertencer ao mundo desta classe, ao que ela
acreditava ser o “mundo africano” da “África fetiche”. Não esqueçamos, porém, de
ressaltar que quem estava fisicamente presente era um escravo médium, e não Pai
Gavião. Ao invés de ver a morte como um mundo separado do dos vivos, e, ao contrário
do mesmo, um mundo de silêncio, os escravos e livres que acreditavam em Pai Gavião
entendiam a morte como um mundo de vozes. Tal mundo seria um plano da vida, por
excelência comunicável com o outro, o dos vivos.46
Como conseqüência do mistério acerca dos rituais e das práticas mágicas dos
feiticeiros e médiuns escravos africanos, já fazia parte do imaginário luso-americano a
idéia de África misteriosa, mágica, feiticeira, que em muitos aspectos reforçava práticas
de origem européia, como adivinhações, previsões futuras, fórmulas para que o mundo
dos mortos ajudasse os vivos a realizarem seus desejos e necessidades, sendo, em
alguns casos, o curandeiro identificado tanto às práticas de feitiçaria, quanto às da Igreja
para desfazer feitiços.47 Cada vez que um caso de feitiçaria escrava era descoberto,

45
Sobre a “categoria psicológica do duplo”, do “visível-invisível”, Vernant esclarece: “O duplo é uma
coisa bem diferente da imagem. Não é um objeto “natural”, mas não é também um produto mental: nem
uma imitação de um objeto real, nem uma ilusão do espírito, nem uma criação do pensamento. O duplo é
uma realidade exterior ao sujeito, mas que, em sua própria aparência, opõe-se pelo seu caráter insólito aos
objetos familiares, ao cenário comum da vida. Move-se em dois planos ao mesmo tempo contrastados: no
momento em que se mostra presente, revela-se como não pertencendo a este mundo, mas a um mundo
inacessível.” Cf. Jean-Pierre Vernant, “Figuração do invisível e categoria psicológica do “duplo”: o
kólossos”, in Mito e pensamento entre os gregos: estudos de psicologia histórica, São Paulo, Difusão
Européia do Livro, Editora da Universidade de São Paulo, 1973, pp. 263-276, p. 268.
46
Sobre as diversas visões e entendimentos acerca da morte, dos espíritos e dos mortos no Império, ver
João José Reis, A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX, São Paulo,
Companhia das Letras, 1999.
47
Cf. Laura de Mello e Souza, O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no
Brasil colonial, São Paulo, Companhia das Letras, 1986, pp. 157-193.
36

essas categorias entrevam em cena novamente, pois os feiticeiros africanos eram cópias
imitando um modelo básico, a “África fetiche”.
Assim, esta idéia de “África fetiche” evoca uma representação de África que está
além das manifestações mágicas, em um tempo “passado” não localizável de modo
preciso. Ao que nos parece, a classe senhorial não fazia questão disso, pois este
“passado” era permanentemente presentificado, uma vez que estava ligado diretamente
à representação que tinham dos feiticeiros escravos. Apesar de depender, e se basear, na
mentalidade política mais ampla da sociedade imperial brasileira, a “feitiçaria” era vista
pela classe senhorial como uma perigosa herança africana, desde que ameaçasse a sua
segurança, ou melhor, os seus interesses. Podemos identificar, então, o mesmo arquétipo
de sustentação da idéia de classes perigosas, produzida na Inglaterra e na França
urbanas na mesma época do caso de Pai Gavião, herança social a ser organizada pela
ideologia da classe senhorial, que tinha na “reinvenção” da sociedade brasileira, na raça
nacional, e nos espaços públicos propostas de consertar, fabricar, o passado.48
Tanto os escravos quanto a classe senhorial acreditavam numa África misteriosa,
mágica por ser feiticeira. Os primeiros, para manter viva a esperança “paternal” com os
médiuns e santos, em um quase “messianismo espiritual” orientando algumas das
atitudes dos escravos da região onde Pai Gavião estava encarnando. Lembremos que,
anos depois, foram encontradas as tais espingardas que Pai Gavião havia dito que seus
“filhos” estariam juntando, quando da expedição geológica do dr. Roth. Os segundos, na
explicação do seu medo da possibilidade da ocorrência de tantos assassinatos de
senhores que, aparentemente, não teriam a ver com a feitiçaria escrava. O caráter
secreto dos encontros reforçava a desconfiança da sua influência nas possíveis
insurreições. Provas disso são as notícias de jornais da época, as formas que
caracterizam a figura dos acusados de serem “feiticeiros”, em razão da morte de
senhores, ou tentativas de, como a que foi publicada no Monitor Paulista, da cidade de
Bananal, província de São Paulo, em 20 de abril de 1879.49
Na página três deste jornal, sob coluna de título “VARIETAS”, conta-se a
história de amor entre Ignácia e Querino, acontecida em Campos, província do Rio de
Janeiro. Ignácia era uma moça “alta, rosto redondo, feições miudinhas, corada, de olhos

48
Cf. Schwarcz, O espetáculo das raças. Para a compreensão desse processo, através da construção de
História do Brasil no Império, ver Manoel Luís Salgado Guimarães, “Nação e civilização nos trópicos: o
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional”, Estudos Históricos, no.
1 (1988), pp. 5-27 e Maria Helena P. T. Machado, “Um mitógrafo no Império: a construção dos mitos da
história nacionalista do século XIX”, in Estudos Históricos, no. 25 (2000-2001).
49
BN, Seção de Obras Raras.
37

pretos brilhantes, buliçosos, úmidos, boca rasgada, lábios finos, cabelo louro abundante,
elegante, ágil e leviana”. Ainda segundo o narrador da notícia, a primeira impressão que
a moça produzia era “agradável”, pois tinha “todos os traços da volubilidade, o andar
ligeiro gracioso”, além de corar facilmente. Seus pais eram o padre João Luiz da
Fonseca Osório, e a filha de um tal Francisco José de Almeida Cruz.
Ainda bem menina, Ignácia perdeu seu pai, por isso tendo sido criada na casa de
seu tutor, outro padre, chamado João Antunes de Menezes Silva, e pela mãe do mesmo,
até os 12 anos de idade, quando “armaram-lhe um casamento”. Seu tutor se opôs, pois o
noivo, conhecido por Cunha, poderia ficar com a fortuna de alguns bens, incluindo
terras e escravos, de Ignácia. Além disso, Cunha era conhecido na região por ter maus
antecedentes, pois uma moça que vivia com ele, a qual havia trazido de Portugal,
morrera em sua casa de “forma misteriosa”.
Querino era filho de Thomaz Joaquim de Faria Sobrinho, fazendeiro do
município de São Fidélis, província do Rio de Janeiro, e sua mãe era uma escrava de seu
pai. Querino era “pardo escuro, alto, robusto, feio, de feições grosseiras, tipo do mulato
petulante, com 22 anos de idade. Não tinha instrução, escrevendo mal”. Era “homem de
condição inferior”, tendo sempre vivido como caixeiro, até “comprar a casa de negócio
do tal Cunha”, noivo de Ignácia. “Aproveitava as íntimas relações com o amigo para
freqüentar sua casa, quando este se ausentava em viagens para São Gonçalo, São Fidélis
e Macaé”. Nestas visitas, Querino e Ignácia, “então amantes, tramaram a morte de
Cunha”.
No Monitor Campista, de oito de abril, pode-se ler que, no inquérito do processo
criminal instaurado para apurar o caso, logo após Cunha ter encontrado a
“correspondência com umas ervas”, depuseram cinco testemunhas.50 Todas afirmaram
que Ignácia e Querino “entretinham correspondência amorosa”, onde havia o registro
das intenções de “matarem Cunha através de envenenamento”. João Barreto, em seu
depoimento, afirmou que Querino ia “várias vezes à botica da Santa Casa pedir-lhe
veneno para matar ratos, bem como drogas para serem aplicadas na comida”, sem que
pudessem ser percebidas. Cirilo, empregado na farmácia de Souza Mota, segundo o
mesmo jornal, em exemplar do dia dez, afirmou em seu depoimento que Querino fora
“lhe pedir uma droga venenosa para matar um impertinente gato, que entrava toda noite
em sua cozinha”. O mesmo foi “dito” por Antonio Pinto Sampaio, caixeiro da farmácia

50
BN, Seção de Obras Raras.
38

de Ezequiel Pinto Sampaio, “mas não vendeu a Querino tais drogas por não possuir
receita médica”.
As “drogas eram aplicadas pela escrava Thereza”, mãe de criação de Cunha,
também servindo de intermediária entre os dois amantes, “entregando um ao outro sua
correspondência”. Maria Mariana, escrava de quinze anos de idade, pertencente à
Igancia, informou que:

muitas vezes serviu de intermediária entre sua senhora e Querino, e que os


bilhetes deste eram sempre volumosos, revelando conterem alguma coisa;
que sua senhora era quem preparava todos os dias de manhã chocolate para
dar a Cunha; que foi ela que encontrou um pó verde que está em poder de
seu senhor, que este tratava com muita amizade e carinho sua senhora.

Mas, o que este caso tem a ver com nosso assunto? Ora, o personagem que
faltava para entendê-lo, segundo jornalistas que trataram do mesmo, o personagem mais
importante da trama criminosa, era um “feiticeiro” referido nas cartas amorosas.
Segundo as cartas, Querino e Ignácia contavam com ele “para fazerem Cunha morrer,
sem causar sua morte reparo ou desconfiança”. Quem seria este feiticeiro? Segundo o
jornalista do Monitor Campista, era preciso dizer “quem são os feiticeiros”, e o que é o
feiticeiro em Campos.

Sob o título de “O FEITICEIRO”, temos a definição esclarecedora do tal


personagem:

O feiticeiro é quase sempre um preto africano, que conhece perfeitamente a


virtude curativa ou o veneno das plantas similares ou análogas às da África.
Vive por isso cercado de certo prestígio entre os pretos e até entre as pessoas
brancas e da boa sociedade. Alguns desses feiticeiros pretendem e fazem
crer realmente ao geral da nossa população, que podem com olhares,
palavras misteriosas e viagens, fazer morrer um animal ou uma pessoa, tirar-
lhe o juízo, ou destruir-lhe a saúde por toda vida.

É certo que, com administração dos venenos das plantas, tudo isso podem
fazer, assim como curam, com segurança e rapidez o envenenamento ou a
moléstia que produzem.
39

Assim é que se tornam temíveis e úteis.

Se não iludem sempre os médicos esses envenenamentos quer produzam a


loucura em diferentes graus, quer simulem perfeitamente uma febre
intermitente perniciosa ou outra moléstia com forma anômala, não é menos
verdade que estes são quase sempre importantes para debelar o mal por
desconhecerem a qualidade do veneno ou não conhecerem um antídoto
capaz de repor a saúde ou a organização do seu estado fisiológico.

Julgue-se no papel que ele representa na nossa sociedade, onde a civilização


não tem ainda educado os instintos humanos pelas regras de uma sã moral, e
onde a ação da polícia é tão fraca e descuidada, julga-se por este fato em que
ele viria com certeza fazer morrer um marido traído, sem que a esposa
adúltera e o amante perverso pudessem ser suspeitos de tanta perfídia e de
tal crime.

Dizem-me que não há muito, em Campos, um feiticeiro querendo


empobrecer o senhor chegou a matar na fazenda mais de 40 crianças; entre
as quais netos seus, para desviar de si as suspeitas.

Quando se lê nas cartas de um e outro que esperavam um feiticeiro, pode


bem ser que Ignácia acreditasse, que ele com um olhado ou com alguma
reza ou certas palavras pudesse fazer morrer seu marido, pois muitas
pessoas ainda dentre aquelas que têm certa instrução acreditavam que o
feiticeiro não precisa servir-se de plantas venenosas, porque tem um poder
diabólico ou sobrenatural que exerce de longe ou de perto com certas
palavras ou sinais misteriosos para fazer morrer a pessoa lenta e
subitamente, torná-la louca furiosa, ou mansa com a perda gradual da
memória, do senso, tino e vontade.

Nesta espécie de verbete sobre o feiticeiro, temos a repetição de elementos


centrais da forma de pensamento da classe senhorial sobre “a África e os africanos e
seus descendentes”: a narrativa começa com a África mágica encarnada no feiticeiro,
um africano prestigioso, com crédito entre senhores e escravos; caso ele causasse mal às
pessoas da classe senhorial, passava a ser mal quisto por membros desta mesma classe,
inclusive acusado de iludir médicos com suas curas e envenenamentos. Como a polícia
40

não dava conta da ação do feiticeiro, ele podia ajudar os amantes na tentativa de
execução de tamanho “ato imoral”, pois atos criminosos eram comuns para feiticeiros –
um deles havia matado 40 crianças de seu senhor, arruinando-o! Afinal de contas, o
feiticeiro possibilitou uma trama que, sem ele, possivelmente não teria ocorrido. O
culpado era o feiticeiro, pois somente ele tinha os poderes para que o crime fosse
concluído. Tal figura, poluidora dos puros sentimentos humanos civilizados, inimiga da
razão e da moral da boa sociedade, em virtude da alimentação dos instintos mais vis,
mais uma vez agia pela desordem e contra o projeto civilizador da boa sociedade
imperial.

A fazenda invisível: quando a classe senhorial errou de insurreição


No ano de 1862, misteriosas cerimônias promovidas por escravos surpreenderam
os senhores de Valença, província do Rio de Janeiro. Aos moldes dos encontros
promovidos sob motivação da crença em Pai Gavião, escravos de várias fazendas
“ajuntaram-se em reuniões noturnas com o fim de preservarem-se de moléstias e terem
fortuna”. As “reuniões” eram “temidas” pelos senhores por indicar a possibilidade de
“insurreição”, pois envolviam “grande quantidade de escravos”. Ao receber
“comunicado urgente”, o então chefe de polícia da Corte, José Custódio de Andrade
Pinto, tratou de investigar as “reuniões sinistras” promovidas pelos escravos de
Valença. Concluiu que os mesmos davam-lhes o nome de “Congêres”, nas quais
celebravam “cerimônias grosseiras e misteriosas, com o fim de protegerem-se de
moléstias e terem fortuna, como bem já disseram os seus senhores, por meio de
feitiços”.51 José Custódio percebeu que os senhores eram obstáculos no caminho da
“fortuna” e das “moléstias” dos escravos, devendo ser eliminados através dos feitiços
feitos nas “Congêres”. Além disso, quanto mais as autoridades demoravam a confirmar
tal informação, “mais a população de Valença, e municípios vizinhos, se alarmava”. A
solução encontrada foi recorrer ao então ministro da Justiça, Francisco de Paula
Negreiros Sayão Lobato. O documento encerra com essa informação, e não sabemos,
até o momento, quais foram as atitudes tomadas pelo ministro, se é que este as tomou.
Quase trinta anos antes, em 28 de novembro de 1838, o jornal O Sete D’Abril,
do Rio de Janeiro, publicou em suas páginas dois e três uma longa narrativa sobre o
sucesso de uma “expedição” senhorial para “acabar com insurreição escrava de enormes

51
AN, IJ1 – pacote 871, Ofícios do Presidente da Província do Rio de Janeiro.
41

proporções”.52 A narrativa fora enviada e assinada por Francisco de Lacerda Werneck,


senhor de grande quantidade de escravos, e herdeiro de muitas terras produtivas, em 13
de novembro.53 Vamos aos fatos.
Em Vassouras, província do Rio de Janeiro, “os escravos do capitão mor Manoel
Francisco Xavier estavam revoltados”. Às quatro horas da tarde do dia dez, 150 homens
da Guarda Nacional, mais paisanos armados, foram reunidos, “em 48 horas”, em quatro
divisões, para dar fim à insurreição dos escravos. O clima de tensão e expectativa era
tão grande que o coronel chefe da missão, o próprio Werneck, dirigiu aos seus
“camaradas um discurso, cuja leitura enérgica produziu um efeito admirável, fazendo
ressoar por alguns minutos entusiasmados vivas”. Às seis horas da manhã, uma das
colunas foi explorar as matas “que ficam à direita da estrada de Santa Catarina”,
juntando-se mais tarde às demais, logo abaixo da “Pedra do Silveira”. A coluna
encontrou, logo, logo, “o trilho dos escravos, com 33 ranchos, aonde haviam pernoitado
a primeira noite; adiante, viram mais um lugar junto à Pedra do Silveira, onde haviam
dormido”. No outro lado da rocha, outro acampamento, com “alguns tições de fogo”. Às
três horas, mais um acampamento foi encontrado. Mas, segundo informações prévias,
havia ainda um último a ser descoberto, possivelmente onde grande número dos
escravos se achava.
O clima continuava tenso, pois as notícias eram de que os “escravos fugidos para
as matas de Vassouras passavam de 100”! Werneck ordenou, “para prevenir algum
incidente desagradável”, que seus homens “não se desunissem e demorassem o passo”.
Após “oito horas seguidas de caminhada por escarpados montes”, quando “começava a
fatigar grande parte da tropa, muita dela pouco afeita a andar a pé”, todas as colunas
acharam o acampamento. Eram então cinco e meia da tarde. A tensão aumentou, pois
“na descida de um serrote, sentiram golpes de machado e falar de gente”.
Os escravos estavam “espalhados”. Era um “quilombo” de, pelo menos, “150
escravos”. Werneck resolveu “cercá-los com todos os seus 150 subordinados”. Depois
disso, foram “marchando” em direção aos escravos. Um deles viu toda a movimentação
da tropa, e “deu o sinal” aos demais. Com algumas “poucas armas de fogo e outras
cortantes”, os escravos venceram a primeira batalha. Em seguida, eles gritaram: “Atira,
caboclos! Atira, diabos!”. Uma “descarga muito barulhenta” se fez, e “dois homens da

52
BN, Seção de Obras Raras.
53
Para maiores informações acerca das atividades econômicas da família Werneck, ver Eduardo Silva,
Barões e escravidão: três gerações de fazendeiros e a crise da estrutura escravista, Rio de Janeiro,
Brasília, Nova Fronteira, INL, 1984.
42

missão caíram feridos”. Werneck mandou seus homens “atacarem com força total”,
logo fazendo “20 e tantos escravos rolarem pelo morro abaixo, uns mortos, outros
gravemente feridos”. Depois disso, “o tiroteio se tornou geral”, com os escravos
correndo mata adentro, largando parte das armas e dando as costas à tropa, que
continuava a atirar. “Foram perseguidos e espingardeados em retirada e em completa
debandada, por espaço de uma hora.” Conseguiram escapar.
O cair da noite e a perda da trilha dos escravos fez com que Werneck optasse por
“desfazer toda a estrutura física do quilombo”. Foi então que descobriu “grande estoque
de alimentos”:

mais de 20 arrobas de açúcar, muito fubá, farinha, toucinho, carnes, mais de


20 galinhas vivas, cinco perus, dois carneiros – que fielmente nos
acompanharam para casa – grande quantidade de utensílios de cozinha,
machados, foices, enxadas, cavadeiras, ferramentas de carpinteiro, de
ferreiro, uma bigorna, 40 a 50 caixas com roupa fina, e alguma engomada,
grande quantidade de periódicos velhos para cartuxame, folhas em que
tinham trazido pólvora, cento e tantas esteiras, numerosa quantidade de
mantas de dormir, talvez 60$000 rs em notas e cobre.54

Werneck orientou os homens para queimarem tudo aquilo que “os camaradas”
não pudessem “levar, a fim de tirar todos os recursos” dos quilombolas.
O saldo do conflito: 22 presos, sete ou oito dos quais gravemente feridos, sete
mortos, com todo o “mato rastilhado de sangue em todas as direções”. Retornaram à
fazenda de um dos capitães da missão “às ave-marias”. No dia seguinte, após uma
“noite de muita chuva”, alguns homens voltaram ao “local do quilombo para resgatar
feridos ou mortos”, e para explorarem suas imediações. Trouxeram “dois homens da
missão e mais outros dois quilombolas feridos”. Ainda faltavam ao capitão mor de “250
a 300 escravos, de um e outro sexo”, fugidos nas matas. Entretanto, o “rei e cabeça do
motim, Manoel Congo, foi preso; e seu vice-rei, morto com um tiro!”.55

54
BN, Seção de Obras Raras, documento microfilmado, p. 3.
55
O quilombo de Manuel Congo foi detalhadamente analisado por Flávio dos Santos Gomes, uma vez
que reuniu o máximo de documentos produzidos pelas autoridades sobre os mais variados aspectos do
mesmo. Ver Gomes, Histórias de quilombolas, pp. 179-321. Na nova edição, revista e ampliada, ver pp.
144-247. Para nosso trabalho, apenas esta fonte, que encontramos independentemente da leitura que
fizemos de Gomes, nos interessa.
43

No final de toda a empreitada, Werneck reuniu seus homens em forma, e lhes


dirigiu um “discurso em louvor”, causando “aplausos e vivas extraordinários”.
Nessa narrativa, há uma curiosa observação feita por Werneck: “notei que nem
um só escravo fez alto quando se mandava parar, sendo preciso espingardeá-los pelas
pernas. Uma crioula gritava: morrer sim, entregar, não!!!”. O que isso queria dizer?
Porque os escravos foram tão destemidos, num primeiro momento, e depois fugiram
para o interior das matas, como que retornando, todos ao mesmo tempo, a algum lugar
que as tropas não haviam conseguido chegar?
Na mesma página três, onde a narrativa de Werneck termina, um jornalista de O
Sete D’Abril fala que recebeu mais informações dos redatores de outro jornal, chamado
O Chronista. Um tal “amigo Y” lhe havia escrito uma carta com revelações que
explicavam a curiosa observação de Werneck. As informações são descritas como sendo
“seguras e verdadeiras”.
Na fazenda do capitão mor Manoel Francisco Xavier, três ou quatro dos seus
escravos “conseguiram a fama de feiticeiros, e por esse título ganharam a confiança e o
respeito de grande parte dos outros escravos”. Por serem vistos como “senhores da
natureza”, os demais escravos foram “convencidos pelos feiticeiros malandrins” que
tinham “o poder de fazê-los ficar invisíveis”. Além disso, se fossem com os “feiticeiros”
para o mato, encontrariam a “fazenda invisível”, longe dos olhos dos senhores. Assim,
muitos escravos, “por volta de 300”, se embrenharam mata adentro na esperança de
encontrarem a “fazenda encantada”. Construíram uma estrada, com a largura de “poder
andar quatro homens de frente”, um do lado do outro. Quando paravam, faziam enormes
ranchos, “com toda a comodidade”.
Assim, continua o autor da notícia, não havia mais que um “boato de que os
escravos do capitão mor se haviam insurgido, quando apenas tinham fugido”. A
insurreição ocorria tão “mansa e pacificamente”, sem que em momento algum a família
do capitão mor fosse colocada em perigo. Prova disso era a certeza dos

escravos de que eram invisíveis, que no primeiro encontro que com eles teve
a tropa, aos primeiros tiros dados da parte desta, eles vinham com os braços
abertos oferecer-se como alvos das espingardas, e que só quando viram que
44

a invisibilidade os não preservava das balas é que recorreram também às


armas! 180 e tantos escravos só tinham 19 espingardas velhas ou de caça!56

Os escravos comedores de pólvora


Em dez de junho de 1857, o comendador Joaquim José de Sousa Breves, um dos
maiores senhores e traficantes de escravos do Império, escreveu um ofício ao então
presidente da província do Rio de Janeiro, João Manuel Pereira da Silva. Breves estava
muito preocupado com o “indício de sedição entre seus escravos, no município de São
João do Príncipe”.57 Seu incômodo era devido, num primeiro momento, ao fato de ter
“encontrado mais de 34 latas de pólvora na senzala” de uma de suas fazendas. Isso daria
para carregar muita munição, e provocar explosões de grandes proporções onde os
escravos bem entendessem. Para sua surpresa, “descobriu que a grande quantidade de
pólvora servia para fins menos sediciosos”.
Os escravos de suas e das demais fazendas da região “andavam se reunindo de
noite, há seis meses, em grupos ocultos”, numa “sociedade chamada Dom Miguel”.
Cada “iniciado”, segundo as investigações do próprio comendador Breves, “era
queimado e bebia pólvora com misteriosas misturas”. Apesar dos “castigos que Breves
mandou aplicar nos escravos” que descobriu pertencerem à tal “seita”, “eles
continuavam com estas baboseiras”. Breves desconfiava que em tais reuniões poderiam
“ser combinados planos para uma grande insurreição”, dada a “insistência dos escravos
em continuar se encontrando, por várias noites seguidas”. Descobriu que os “iniciados”
deveriam pagar certa quantia de dinheiro para os “mestres da seita”, o que lhe
despertava a desconfiança da estratégia para ganhar dinheiro inventada por certos
negros espertalhões”.
Como as autoridades locais não faziam qualquer tipo de investigação mais
profunda sobre as atividades da “seita Dom Miguel, nem mesmo dela tomavam se quer
conhecimento”, Breves – com toda a autoridade de um dos membros mais prestigiados
da elite senhorial – escreveu diretamente ao presidente da província do Rio de Janeiro.
Aproveitando a situação, pediu ao mesmo a mudança de todas as autoridades da Justiça
naquela região. Em sua opinião, “o delegado e o subdelegado eram doidos, além deste

56
BN, Seção de Obras Raras, p. 3.
57
AN, IJ1 – pacote 867, Ofícios do Presidente da Província do Rio de Janeiro. Para outras informações
acerca da atuação do comendador Breves na política imperial, fundamentalmente na burla à proibição ao
tráfico internacional de escravos para o Brasil, ver Luiz Alberto Couceiro, “Acusações atlânticas: o caso
dos escravos num navio fantasma – Rio de Janeiro, 1861”, Revista de História/USP – Dossiê História
Atlântica, no. 152, (1o. semestre de 2005), pp. 57-77.
45

último ser bobo e vingativo”. Isso porque, avaliava Breves, tais autoridades, ao invés de
pedirem reforço policial à Corte para evitar uma possível insurreição dos escravos, se
dedicavam a se “vingarem de questões pessoais, e resolverem intriguinhas”.
A solicitação de Breves foi prontamente atendida. O ministro mandou o chefe de
polícia interino da província do Rio de Janeiro, José Caetano de Andrade Pinto,
começar as investigações sobre a “seita Dom Miguel”. Além disso, nomeou um novo
subdelegado, Eusébio da Fonseca Guimarães, que passou imediatamente a “dar buscas
nas senzalas” para encontrar objetos roubados que pudessem dar algum indício sobre o
“plano dos escravos matarem os senhores da região”. Eusébio proibiu que os escravos
saíssem à noite das fazendas de seus senhores, para que as “reuniões sinistras fossem
interrompidas”. Em suas primeiras buscas, encontrou “raízes e ervas venenosas, que
podem produzir graves incômodos de saúde”. Os “pretos encontrados com estes objetos
foram castigados, evitando o mal maior”. Tais notícias foram comunicadas ao ministro,
em “correspondência confidencial” de 21 de junho de 1857, pelo próprio Eusébio, que
ainda informou “não haver indício algum de sedição entre os escravos”.58
Mas os trabalhadores livres e moradores dos núcleos urbanos próximos àquelas
fazendas não estavam bem certos quanto à improvável insurreição. Os boatos eram
tantos que os administradores das fazendas recorreram ao novo subdelegado, alegando
que era necessário pedir, “o quanto antes, reforços para evitar as sedições dos escravos”.
Diante de tal situação, Eusébio passou a dar buscas também nas “roças”, onde poderia
encontrar mais “objetos e raízes escondidas pelos escravos”, que já sabiam de suas idas
às senzalas, bem como dos castigos que sofreriam caso seus “feitiços fossem
encontrados”. Tratou de isolar “os escravos do fazendeiro Joaquim Breves, que não têm
contato com os dos fazendeiros vizinhos, e por isso é impossível que possam entre si
estabelecer um acordo para qualquer fim sinistro”.
Eusébio havia “percebido que entre aqueles escravos havia nações rivais, apesar
da harmonia forçada em que vivem pela sujeição do cativeiro”. Mas, havia uma coisa
que unia tais escravos,

a supersticiosa idéia que sempre domina a raça africana, acreditando em


seus fetiches, patuás, amuletos etc., quando praticam cerimônias e danças
grotescas do seu país, e nesta prática supõem alcançarem absurdas

58
AN, IJ1 – pacote 867, Ofícios do Presidente da Província do Rio de Janeiro.
46

felicidades, regresso à sua pátria, a bem de algumas doçuras ao cativeiro em


que vivem, e mil insignificantes coisas de sua fantasia.59

O subdelegado também tinha uma idéia de “África fetiche”, segundo nossa


interpretação, supondo que aqueles escravos estavam externando aquilo que seria afeito
a sua “raça africana”. Assim, o comportamento dos mesmos seria dominado por um
grau menor de racionalidade, em comparação aos livres. De todo modo, o subdelegado
alegara que, apesar dos escravos terem motivos de sobra para “manifestar a rivalidade
entre suas diferentes nações”, a crença no feitiço era superior a tais querelas.
As coisas pareciam se agravar em São João Marcos. Em “correspondência
confidencial”, de nove de julho, o delegado local, Antonio Cesar de Azevedo, escreveu
ao vice-presidente da província do Rio de Janeiro comunicando que havia confirmado a
informação de que os escravos de diversas fazendas realmente “andavam planejando
uma insurreição”.60 O “centro das reuniões dos escravos era”, segundo o delegado, a
“lavoura da fazenda São Joaquim, pertencente ao comendador Joaquim Breves, onde
guardam zagaias e outros instrumentos de semelhante gênero”. O vice-presidente da
província resolveu também investigar o caso. Leu cartas de empregados e caixeiros de
fazendas da região, datadas de dez e 11 de junho, e tomou conhecimento da existência
de “270 colonos portugueses” numa das fazendas de Breves que poderiam ser atingidos
com a insurreição. Era necessário esclarecer, ainda segundo o vice-presidente, quais
eram os fins da “associação de Dom Miguel, de que trata a carta do comendador
Breves”.
No dia 22 de julho, novamente chegavam notícias sobre o fracasso do plano de
insurreição, após as batidas das autoridades policiais nas senzalas dos escravos, bem
como os castigos aplicados aos “escravos feiticeiros de Dom Miguel”. No dia 24, em
um “ofício reservado” dirigido ao Palácio da Presidência da Província do Rio de
Janeiro, chegou ao ministro e secretário dos Negócios da Justiça, Francisco Diogo
Pereira de Vasconcelos, a confirmação de tais notícias. Aparentemente, a “associação de
feitiçaria Dom Miguel” havia sido dissipada por senhores e autoridades imperiais tendo
à frente o comendador Breves. Não se falava mais em “insurreição” nem em “feitiçaria”
entre os inúmeros escravos das fazendas daquele lugar. Entretanto, a tranqüilidade que
as boas novas traziam deu lugar a um clima de apreensão entre altas autoridades

59
AN, IJ1 – pacote 867, Ofícios do Presidente da Província do Rio de Janeiro.
60
AN, IJ1 – pacote 867, Ofícios do Presidente da Província do Rio de Janeiro.
47

imperiais. Os escravos de São João Marcos “acreditavam que no dia de Santo Antonio
seria o fim do mundo”. O ministro contou que se “ouvia nas ruas da Corte semelhante
boato entre os escravos”, boato este que ia se “espalhando rapidamente por toda a
província do Rio de Janeiro”. Neste sentido, o ministro recomendava aos chefes de
polícia que “todas as investigações e práticas necessárias fossem tomadas para tão
importante objeto”.
Para além do medo que as reuniões de tantos escravos provocaram nos senhores
de São João Marcos, medo este ligado não apenas à crença nos efeitos dos feitiços por
eles aprendidos e ensinados na seita Dom Miguel, temos que lembrar que a primeira
metade do século XIX foi palco de forte influência de médicos na política imperial.
Estes médicos lutavam pelo prevalecimento de suas técnicas de curar, bem como seu
saber científico, em uma sociedade que acreditava, desde os tempos coloniais, no poder
de curandeiros e de feiticeiros. Vimos que altas autoridades imperiais estavam
diretamente envolvidas na questão da repressão da “seita Dom Miguel”, e de todas as
reuniões de “escravos feiticeiros”. Não pensemos que foi “apenas” a influência do
poderoso senhor e traficante de escravos José de Sousa Breves o motivo para tamanho
interesse, bem como de outros perfis de senhores de escravos. Aquelas autoridades se
reuniam, muitas vezes, em grupos sociais que se estabeleciam na Corte para discutirem
e divulgarem para membros da elite imperial a “medicina científica”. Ao longo da
segunda metade do século XIX, as críticas de “científicos” aos “feiticeiros” foram
organizadas em periódicos, tais como o Correio Paulistano e a Província de São Paulo.
Notícias de desmerecimento dos feitos dos “feiticeiros” eram, em grande medida,
escritas em tom de acusação moral aos mesmos.61 Em notícia de 30 de novembro de
1879, por exemplo, o Correio Paulistano publicou o caso de um flagrante a uma
“sessão de feitiçaria”, com “42 pretos livres e escravos, e 11 pretos minas”. “O
celebrante, no ato em que foi preso”, continua a notícia, “era escutado com atenção pelo
piedoso auditório”. A riqueza de detalhes afirma o fascínio que tais práticas chamadas
de “feitiçaria” provocavam naqueles “homens de ciência”. O jornal termina a notícia
com a acusação de que a cena era uma “indecente comédia”, sendo os escravos que dela
participaram presos e castigados.62

61
Sobre isso, ver Schwarcz, Retrato em branco e negro, pp. 125-128.
62
Apud. Schwarcz, Retrato em branco e negro, p. 126.
48

Considerações finais
Entre o período da produção de acusações de feitiçaria pela Inquisição
portuguesa, “período colonial”, e o do Código Penal de 1890, “República Velha” ou
“Primeira República”, há um período no qual as acusações de feitiçaria no Brasil
escaparam de códigos e regras formais, ao que nos parece, porém não do interior das
instituições do Estado, nem mesmo às notícias de jornal. É parte dessa história que
pretendemos contar. Acreditamos, com esse estudo, poder demonstrar como, já no
século XIX, um segmento central da elite imperial escravista do sudeste acreditava no
feitiço, antes mesmo das leis republicanas anteriormente apontadas virem a existir, antes
mesmo do Brasil virar uma república, em 1889. Procuramos, assim, recuperar casos de
acusação e crença na feitiçaria no sudeste cafeeiro da segunda metade do século XIX,
analisando-os segundo: a natureza da acusação, a sociedade que a sustenta e produz,
bem como a junção da antropologia com a análise histórica. Além disso, procuramos
deixar claro que utilizamos o termo feitiçaria para designar a crença no uso de poderes
mágicos para produzir o mal, como, de certa forma, aparece nos documentos
consultados.
A crença no feitiço perpassava todas as condições sociais, como constatamos na
“correspondência reservada” de ministros da Justiça e chefes de polícia, localizadas
tanto no Arquivo Nacional, como no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, bem
como em notícias na imprensa e até mesmo ao longo das investigações de um processo
criminal, no Império do Brasil. A cada documento que encontramos sobre feitiços e
“reuniões para fins ocultos”, recuávamos ainda mais no tempo marcado pelo estudo de
Maggie.63 Neste estudo, sua preocupação foi conhecer e analisar os critérios e os
procedimentos utilizados na aplicação das leis que legitimaram a crença na feitiçaria,
segundo o Código Penal de 1890. Nesse artigo, procuramos demonstrar como a crença
na feitiçaria na Luso-América, minuciosamente documentada e narrada por Mello e
Souza64, se manteve após a emancipação política em relação ao território português, em
1822. O fato de se constituir em um corpo burocrático e jurídico distinto à antiga
metrópole não implicou que os homens que lutavam pelo poder no Império do Brasil, ao
redor de seu monarca Pedro, legitimassem os efeitos dos feitiços na vida social da nova
“nação civilizada”.

63
Maggie, Medo do feitiço.
64
Mello e Souza, O Diabo e a Terra de Santa Cruz.
49

A etnografia produzida por Crawford65 demonstrou que nas sociedades africanas


sob domínio colonial inglês os tribunais coloniais não admitiam acusações de feitiçaria.
Duas linguagens sociais conviveram como forma de resolver problemas, conflitos: a dos
tribunais ingleses, baseada na comprovação legal dos acontecimentos, e a das acusações
de feitiçaria entre os africanos, baseada na crença de que há pessoas com poderes
mágicos capazes de causar danos às outras. Na década de 1960, Fry66 estudou os Shona
em na Rodésia, atual Zimbábue, e verificou que, pelo fato de os ingleses não
compartilharem da crença na feitiçaria e nem mesmo nos espíritos, os médiuns se
transformaram em líderes das campanhas pela independência, uma vez que não eram
molestados pelas autoridades britânicas. Em oposição ao cristianismo dos colonizadores
e de seus descendentes, os médiuns Shona foram alçados a representantes da
“africanidade”. Deve-se ressaltar que, por isso mesmo, os ingleses não conseguiram
descobrir muitos dos planos da luta pela independência, uma vez que passaram a ser
tramados após os cultos de possessão que ocorriam na casa dos tais médiuns. O curioso
é que antes disso, segundo Fry, estes mesmos médiuns foram vítimas de campanhas de
perseguição política no início dos movimentos pela independência.
Ao contrário do que Crawford67 demonstrou para a Rodésia, não houve no
Império do Brasil, segundo nossas pesquisas, lei alguma de supressão, combate ou
proibição da feitiçaria. Não houve, muito menos, lei alguma que julgasse e determinasse
como atitude criminosa algum tipo de acusação de feitiçaria. Para além de algumas
notícias sobre ditos “feiticeiros” que saíram nos jornais do Império, há documentos
“reservados” e “confidenciais” na correspondência entre autoridades sobre troca de
informação de casos de feitiçaria, levados a sério pelas mesmas. Tanto assim que
presidentes de província do Rio de Janeiro e ministros da Justiça mandavam apurar tais
casos, nunca duvidando dos poderes dos “feitiços”, nem mesmo dos “feiticeiros” no
meio da escravaria. Isso me levou a pensar que a crença dos escravos também pertencia,
de certa forma, ao meio da elite imperial.
Diferentemente da África de domínio colonial britânico, no Brasil significativos
segmentos da elite dominante e escravos, libertos e africanos livres acreditavam na
feitiçaria, desenvolvendo linguagens socialmente compartilhadas acerca desta crença,
bem como sobre acusação de fatos provocados por feitiços ou pessoas acusadas de

65
J. R. Crawford, Witchcraft and sorcery in Rhodesia, London, Oxford University Press, 1967.
66
Peter Fry, Spirits of protest: spirit-mediums and the articulatino of consensus amongst the Zezuru of
Southern Rhodesia, London, New York, Melbourne, Cambridge University Press, 1976.
67
Crawford, Witchcraft and sorcery in Rhodesia.
50

praticarem feitiçaria. As insurreições escravas juntamente com a crença de membros da


elite na feitiçaria abriam a possibilidade de diálogo entre todos aqueles agentes sociais,
fato que os escravos reconheciam através de reivindicações bastante específicas, muitas
vezes.
Reis afirmou que a província da Bahia conheceu dois paradigmas de vigilância
aos escravos. O primeiro seria o de João de Saldanha da Gama Mello e Torres Guedes
Brito, o conde da Ponte, que assumiu o cargo de governador da Bahia em 1807. O
conde da Ponte escreveu ao Conselho Ultramarino Português, no dia sete de abril
daquele ano, afirmando que conhecia “os subúrbios da capital”, para acabar com as
liberdades excessivas de escravos, libertos e vadios. Para o conde, que contava como
uma rede de espiões, sua política policial acabaria com os focos de insurreição dos
escravos, proibindo que os senhores lhes dessem a liberdade de cantar e dançar como
vinham fazendo, bem como se reunir com tanta freqüência. Sua política mostrou-se
ineficaz o bastante para impedir a combinação e a realização de revoltas escravas de
grandes proporções em Salvador e no Recôncavo, em 1808 e 1809.
Em substituição ao conde da Ponte, veio Marcos de Noronha e Brito, o conde
dos Arcos, que governou a Bahia de 1810 a 1818. Achava o contrário de seu antecessor.
Para ele, os senhores de escravos eram severos demais, punindo-os excessivamente.
Assim, os escravos deviam praticar livremente suas danças e religiões, evitando grandes
conflitos, uma vez que não estariam se submetendo a nenhum tipo de “ordem dos
brancos”, estranha aos seus costumes. Também errou o alvo, mesmo atirando de outro
ângulo. Várias insurreições escravas ocorreram durante sua gestão, como em 1814,
quando escravos de Itapuã e de Salvador se uniram ao redor de um “babarolixá
subversivo”.68
Para o sudeste escravista, encontramos funcionários e autoridades imperiais
empenhados em reprimir as insurreições dos escravos, investigando os boatos e os
planos daquelas minuciosamente. Não encontramos o menor indício da existência de
uma política centralizadora das atitudes destas autoridades, com recomendações vindas
de vice-governadores e mesmo de presidentes de província, tal como Reis encontrou
para a Bahia para “afrouxar” ou “reprimir” os folguedos e demais ações dos escravos
em suas horas de folga. Descobrimos nos arquivos casos em que a insurreição e a crença
nos espíritos e no poder de pessoas fazerem o mal por meios sobrenaturais estavam
juntos, lado a lado. Estes casos foram relatados por membros da elite letrada imperial,
68
Cf. Reis, Rebelião escrava no Brasil, pp. 70-93.
51

fossem jornalistas ou políticos, senhores de escravos ou delegados, em documentos os


mais diversos – notícias de jornal, ofícios reservados e confidenciais e num processo
criminal. Cada narrador estava dentro de um estilo específico de narrar uma história,
mas todos os documentos que analisamos têm seu clímax numa possessão de espíritos
ou em escravos acusados de feitiçaria, juntamente com atitudes vistas como
insurrecionais ou perigosas. O medo da rebelião e o medo do feitiço apareceram em
grande parte dos casos, uma vez que os documentos foram produzidos quando o feitiço
estava contra, e não a favor, de membros da elite imperial. A insurreição dos escravos
era o fantasma senhorial mais assustador, sem sombra de dúvida. O feitiço também, mas
em uma dada situação na qual escravos o usavam como linguagem de insurreição, ao
sentirem que parte da classe senhorial acreditava no poder do feitiço, bem como no da
insurreição.
A crença no feitiço foi, assim, um elo entre membros de todas as classes sociais
no Sudeste escravista do Império do Brasil, aproximando as pessoas num tenso diálogo
que permitia a negociação. Um diálogo inserido numa relação de tensão em que pessoas
acusavam outras de terem o poder de lhes fazer mal, através de meios mágicos. Um
diálogo que subentendia intimidade entre as classes sociais diversas, costumes e visões
de mundo compartilhadas, e não isolamento e negação. O medo e a crença no feitiço
reforçaram a intimidade no conflito entre senhores e escravos no século XIX,
demonstrando que negociação não quer dizer ausência de conflito, de mortes e
assassinatos, dor, sofrimento, tensão e controle social, nem mesmo a presença de algum
projeto de paraíso social no Brasil, mas sim a especificidade, nem mais branda, nem
mais cruel, da experiência escravista no Brasil. Em suma, de um aspecto central da
construção das relações sociais neste país.
Afinal de contas, não é em toda e em qualquer sociedade que a crença no feitiço
perpassa membros de todas as classes sociais. Este não é um mero dado da natureza.

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