Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
net/publication/359418293
CITATIONS READS
2 94
1 author:
Luiz Couceiro
Universidade Federal do Maranhão
34 PUBLICATIONS 18 CITATIONS
SEE PROFILE
All content following this page was uploaded by Luiz Couceiro on 23 March 2022.
1
Este artigo é uma versão bastante ampliada da comunicação apresentada no Colóquio Internacional A
Feitiçaria no Atlântico Negro, 19 e 20 de outubro de 2006, no Centro de Estudos Afro-Orientais,
Salvador, Bahia, na mesa intitulada Feitiçaria no universo luso-brasileiro colonial e no Brasil Império.
Agradeço os comentários tecidos por Maria Rosário Carvalho (UFBa), debatedora dos trabalhos que
compunham mesa, bem como a Gabriela dos Reis Sampaio (California University – San Diego), que
também compôs a mesa.
2
Ver Manuela Carneiro da Cunha, Negros, estrangeiros: os escravos libertos e sua volta à África, São
Paulo, Brasiliense, 1985, p. 77. Por outros caminhos metodológicos, consultando fontes policiais e do
Ministério da Justiça, Flávio dos Santos Gomes chegou às mesmas conclusões de Cunha, para a província
do Rio de Janeiro, em “História, protesto e cultura política no Brasil escravista,” in Jorge Prata de Sousa
(org.), Escravidão: ofícios e liberdade (Rio de Janeiro, Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro,
1998), pp. 65-97. Sobre a insurreição malê, ver João José Reis, Rebelião escrava no Brasil: a história do
levante dos malês em 1835 – edição revista e ampliada, São Paulo, Companhia das Letras, 2003.
3
Cunha, Negros, estrangeiros, pp. 80-81.
2
4
Cf. Carlos Eugênio Líbano Soares, A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro
(1808-1850), 2ª. edição revista e ampliada, Campinas, Editora da UNICAMP, CECULT, 2002, pp. 99-
114.
5
Dava-se este nome às antigas leis portuguesas compiladas em códigos. As primeiras, ordenadas por D.
João I, foram concluídas em 1446. Em 1514 publicou-se nova coleção das leis do reino com as alterações
introduzidas pelo tempo. Por terem sido impressas por ordem de D. Manuel, receberam o nome de
Ordenações Manuelinas. Em 1603 publicaram-se as Ordenações Filipinas, mandadas compilar por Filipe
I, que em Portugal vigoraram até 1868. No Brasil, as Ordenações Filipinas, por força da lei de 20 de
outubro de 1823, vigoraram até 31 de dezembro de 1916, como subsídio do direito pátrio, e só foram,
definitivamente, revogadas pelo Código Civil de 1917.
6
http://www.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5p1150.htm (acesso em 18/08/2007).
7
http://www.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l4p931.htm (acesso em 14/08/2007).
8
Apud. Yvonne Maggie, Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil, Rio de Janeiro, Arquivo
Nacional,1992, pp. 22-23, nota 3.
3
9
Utilizamos a seguinte edição do referido Código: Código Criminal do Império, na tese inteira: Código
Criminal do Império do Brazil annotado com os atos dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, que
têm alterado e interpretado suas disposições desde que foi publicado, e com o cálculo das penas em
todas as suas aplicações por Araújo Figueiras Júnior (Bacharel em Direito), 2ª. Edição cuidadosamente
revista e aumentada com os atos dos Poderes supra-referidos, expedidos depois da 1ª. Edição, Rio de
Janeiro, Eduardo e Henrique Laemmert, 1876. Agradecemos ao historiador Rafael Sancho Silva pela
localização desta edição do Código Criminal na Biblioteca da Faculdade de Direito da Universidade
Federal da Bahia (UFBA).
10
Marcel Mauss & Henri Hubert, “Esboço de uma teoria geral da magia”, in Marcel Mauss, Sociologia e
Antropologia (São Paulo, Cosac & Naify, 2003), pp. 47-181.
11
Bronislaw Malinowski, “Capítulo XVII. A magia do kula”, in Argonautas do Pacífico Ocidental: um
relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné melanésia, (3ª.
Edição, São Paulo, Abril Cultural, 1984), pp. 292-312, Coleção Os Pensadores, v. XLIII e “Part VI. An
ethnographic theory of the magical word”, Coral Gardens and their magic, v. II, London, Georde Allen
and Unwin Ltd., 1935, pp. 213-248. Norbert Elias também argumenta, assim como Malinowski, que a
importância de controlar a natureza leva pessoas a lançar mão de recursos mágicos para dar garantias
explicativas emocionais, e não racionais, aos acontecimentos imprevistos. Para mais este autor, o recurso
individual à magia necessita da crença coletiva na magia. Ver Norbert Elias, “Part II: The fishermen in
the Maelstrom,” in Involvement and detachment, Oxford & New York, Basil Blackwell, 1987, pp. 43-
118.
4
12
E. E. Evans-Pritchard, Witchcraft, oracles and magic among the Azande, Oxford, Clarendon Press,
1935. Para comentários sobre alguns dos temas tratados por Evans-Pritchard, que interessam diretamente
nossa argumentação, ver Malcolm D. McLeod, “Oracles and accusations among the Azande”, in André
Singer & Brian V. Street (orgs.), Zande themes: essays presented to Sir Edward Evans-Pritchard
(Oxford, Basil Blackwell, 1972), pp. 158-178.
13
Dizemos “de certo modo” pelo fato de Jeanne Favret-Saada, Les mots, la mort, les sorts, Paris,
Gallimard, 1977, não se remeter, em momento algum, ao trabalho de Mauss & Henri Hubert, “Esboço de
uma teoria geral da magia”, principalmente às considerações da p. 77. Mas não conseguimos, ao ler e
reler seu livro, deixar de relacionar os apontamentos pioneiros desses autores em relação às condições
sociais da crença na magia, décadas antes da publicação do livro daquela autora.
14
Biblioteca Nacional, doravante BN, Seção de Periódicos.
5
teria abarcado escravos de diversas fazendas de São Roque – possível centro nervoso da
tramóia –, Una, Campo Largo e Itu. Processos haviam sido instaurados e, da capital da
província, partiram dez praças comandados por um oficial bem como um
“correspondente” do jornal Correio Paulistano. Dois dias depois, o “correspondente”
publicou as primeiras informações. Da página quatro do número anterior, a narrativa
passou, dado significativo, às páginas dois e três, na coluna “Interior –
Correspondências do Correio”. O “correspondente” afirmava que tantos escravos
encontravam-se presos nas celas da delegacia de São Roque “que o carcereiro quase não
conseguia dar conta de seu, até então, pacato serviço”. Além dos detidos, outros
escravos e livres da região estavam participando de “grandes reuniões misteriosas, em
noites e lugares indeterminados”.
Na noite do dia 18, três homens procuravam dois escravos que haviam fugido do
engenho de sua senhora, dona Ana Theresa, quando foram surpreendidos por uma
“sentinela”, “guardando a porta do Templo onde a Grande Ordem celebrava uma de
suas sessões”. Alertando outros escravos, botaram os homens para correr. Ao
denunciarem as “reuniões” para o delegado, os três homens forneceram as informações
necessárias para que fossem efetuadas as prisões de alguns dos escravos supostamente
envolvidos. Um destes presos revelou que o “lugar que, até então, se achava oculto”, ou
seja, “perto desta vila”. Revelou também a identidade do “grão mestre da Associação: o
preto forro de nome José, morador em Sorocaba”. Desta forma, “dirigiu-se para ali uma
escolta, que conseguiu capturá-lo depois de porfiada e perigosa luta”.
O “correspondente” continua seu relato, afirmando que havia sido apreendida
uma curiosa coleção de objetos pertencentes à “Grande Ordem”, [como] “caramujos,
guiso de cascavel, grande e variado sortimento de raízes, figuras de pão e de cera da
terra, pedras de cevar, cabeças e olhos de cobra, pés e cabeças de macaco, rabo de
serelepe, pontos de chifre betumado de cera coberta com um fragmento de espelho,
patuás contendo raspas de raízes, cabelos e unhas de gente e outras muitas coisas.”
[Todos estes] “Bizarros objetos exalavam um cheiro nauseabundo e ativíssimo de
aguardente”.
– Sabeis adivinhar?
– Sim, senhor – respondeu Pai Gavião.
– E se eu esconder essa caixa de tabaco, poderá adivinhar o lugar em que ela
ficará?
– Sim, senhor.
8
O curioso retirou-se da sala, deu a caixa a uma pessoa que se achava do lado
esquerdo de uma janela, no patamar de uma escada. Voltou pouco depois, dizendo ao
Pai Gavião que fizesse a tal adivinhação. “Pai Gavião” afirmou que “precisava do
Vungo” –“a raiz grande, chamada de Guinéu Encantado – um corno de boi”, como
vimos anteriormente. Satisfizeram sua vontade. “Trouxeram-lhe um dos Vungos
apreendidos. Recusando-o por não prestar, Pai Gavião, então, pediu outro.” Novamente,
foi satisfeito. “– Este sim – disse o adivinho, segurando no Vungo com ambas as mãos,
com a esquerda na extremidade, meio sobreposta sobre o dedo mínimo da direita;
aproximou o Vungo de sua boca, com os olhos semi-fixados. Pelos movimentos dos
lábios, via-se que ele travava com o Vungo um solilóquio misterioso.”
Daí a pouco, algumas
15
Utilizamos o conceito “classe senhorial” para designarmos um conjunto de homens investidos do poder
de organizar a administração pública no Império, fossem esses homens “saquaremas” ou “luzias”. Para
uma discussão fundadora daquele conceito, ver Ilmar Rohloff de Mattos, O tempo saquarema: a
formação do Estado imperial, 2ª. Edição, São Paulo, HUCITEC, 1990. Para uma análise da construção da
estabilidade política do Império a partir do processo de profissionalização da burocracia do Estado, ver
José Murilo de Carvalho, I – A construção da ordem: a elite política imperial; II –Teatro de sombras: a
política imperial, Rio de Janeiro, Editora UFRJ, Relume-Dumará, 1996. Para uma leitura recente sobre o
período de estruturação física e política de vilas, municípios e províncias nas primeiras décadas do
Império, discutindo práticas políticas federalistas dos homens que estavam à frente desse processo, ver
Miriam Dolhnikoff, O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil do século XIX, São Paulo, Globo,
2005.
10
que este aceitasse um novo julgamento para o réu. Mesmo confessando, “sem a menor
cerimônia e frescura, que o plano era matar todos os brancos, e que para isso os
escravos os quais liderava possuíam armas de fogo, além das do trabalho nas fazendas, e
mais todo o armamento que assaltariam das lojas, Chico Garcia foi absolvido por dez
votos”.
Em oito de agosto, na página dois do Correio Paulistano, lemos mais notícias
acerca das “lojas Filhos das Trevas e Campo Encantado” sobre o prosseguimento que o
delegado de polícia da cidade de São Roque, em 31 de julho, dava nas investigações das
possíveis insurreições escravas comandadas por “Pai Gavião”. Havia prendido vários
escravos membros das mesmas. Além disso, de outros lugares das redondezas
chegavam notícias de ações dos “Filhos das Trevas”. Em São Roque, no dia 28 de julho,
uma “reunião de escravos da loja” foi debandada pelas autoridades policiais, terminando
com um “escravo com o braço quebrado, e outros dois com a cabeça partida”. Um
indivíduo chegado de Sorocaba dizia a várias pessoas da cidade que lá também fora
descoberta uma “patota dos Filhos das Trevas”, e que o subdelegado de polícia havia
ordenado a prisão dos seus membros. O mesmo delegado foi apurar uma denúncia na
Serra de São Francisco sobre a existência de uma “casa secreta, contendo uma provisão
de espingardas, lanças, e outras armas inofensivas”, pertencentes ao arsenal da
insurreição tão prometida e propalada por Pai Gavião. Assim, toda a “população dos
municípios de São Roque, de mais de dez mil almas disseminadas em três freguesias,
com cento e tantos juízes de fato, um batalhão da Guarda Nacional com cinco
numerosas companhias e quase trezentos guardas de reserva”, estava em estado de
alerta.
As notícias alarmantes continuaram no dia 18 de agosto, na coluna “Notícias e
Fatos Diversos”, na página quatro do mesmo jornal. Em notícia de título “Fogo de
Escravos”, o autor dizia que estavam acontecendo, para “as bandas do Campo Redondo,
nos dias santificados, grandes reuniões de escravos, onde a primeira distração era o
fogo”, ou seja, bebedeiras. Tal informação gerou grande medo às pessoas da região,
pois “era sabido que nas reuniões dos Filhos das Trevas e do Campo Encantado, a
ingestão de aguardente por parte de todos os membros era o prenúncio de uma nova
vinda de Pai Gavião”. Tais reuniões, apesar de conhecidas e comuns nas redondezas da
cidade, havia se tornando mais freqüentes naqueles dias.
Denúncias acerca de furtos domésticos, que recentemente alguns escravos
estavam cometendo para “poder comprar parte dos materiais para as reuniões”, e pagar
11
pelos conselhos de Pai Gavião – afinal de contas, quem não o pagava, não os recebia –
atormentavam autoridades locais. Também ocorreu o “espancamento de um alemão,
perto do cemitério da cidade, do qual saiu com a cabeça quebrada”. O tal “alemão”, de
quem não nos foi revelado o nome, “não sabia das reuniões dos Filhos das Trevas
naquele cemitério e, inocentemente, passou por ali, sem poder prever as conseqüências
de sua atitude”. O que o autor da notícia estranhava era que, apesar da “vítima pedir que
o acudissem, depois de gravemente ferido, as pessoas que por ali passavam ignoravam
sua figura, virando-lhe a cara”, atitude também tomada por um oficial de plantão. O
autor ainda deixa no ar que haveria conivência entre moradores da região e os escravos
“Filhos das Trevas” para que fizessem em paz suas “reuniões”, desde que não fossem
para “combinar a morte de brancos e insurreições”. Não sabendo disso, ou seja, de que
membros da “loja” estariam dentro do cemitério em meio a uma das reuniões, talvez o
“alemão” tenha sido punido pelo que não sabia e acabado, de maneira drástica, tomando
parte no “acordo”.
boatos que se espalhavam pela região sobre um homem que teria sido
assassinado por causa de um jogo dos Filhos das Trevas, de um outro que o
corpo teria sido achado no rio Tietê, assim como da morte de duas crianças
que as autoridades locais preferiram dizer – para não causar maior reboliço
– que haviam sido asfixiadas na multidão de devotos romeiros.
escravos, mas dos meus vizinhos. Enfim, abandonei este escravo e sua
mulher para sempre, deixando de os procurar. Mas, agora, porém,
Ilustríssimo senhor, me constando que pelo réu prezo nesta cadeia, Pascoal
de Nação, escravo de dona Geraldina Maria de Campos, fora o mesmo
Pascoal declarado em seu interrogatório que este meu escravo Félix foi
quem lhe vendeu uma raiz das venenosas, com a qual ele matou os escravos
de sua senhora. E, sabendo eu que, por esta declaração, o meu escravo está
incurso nas penas da Lei, devendo ser por isso punido com todo o vigor da
Lei, por isso não podendo eu prendê-lo e remeter a vossa senhoria por se
achar esse negro ausente. Assim, pois, eu entrego o referido escravo à
Justiça, para que seja ele processado. Fico sem responsabilidade de custos
que se fizerem, e nem mesmo a outras e quaisquer indenizações. Deus
guarde a Vossa Senhoria.16
Benedito, por ter-lhe roubado umas galinhas e 6000 réis em dinheiro”. Fez isso “durante
três meses”, no fim dos quais “Benedito veio a morrer”. Fizera o mesmo com o crioulo
Lourenço, mas com o intuito de “curar-lhe” uma “dor de barriga por haver comido
cabeça de boi”; depois de “dois meses”, Lourenço veio a “falecer”. Da raiz, “chamada
Sassurana”, “dada” a ele por Félix, “raspou um pouco e misturou ao mingau da
“crioulinha” Maria Rita, que só viveu mais três dias”. O “crioulo” Luís “viveu apenas
mais um mês”, desde que “colocou um pouco daquela raiz em sua canjiquinha”. Ao
“marido” de Valeriana, Jeremias, dera da “aguardente com a tal raiz raspada”, “mas este
ainda durou quatro meses vivo”.
No dia 29 de janeiro, na cidade de Guaratinguetá, Luís Moçambique foi preso
por ter envolvimento nas mortes em questão. Com ele, foi apreendida “uma bolsa de
couro”, que “estava escondida em sua senzala”, com um “livrinho de Santa Bárbara, um
pequeno embrulho contendo um bocado de cera, um pedacinho de trapo azul, uma
imagem de Jesus Cristo e outra de Maria, com uma raiz”.
Luís fora interrogado em primeiro de fevereiro. Afirmou ser natural de “Lili,
Moçambique”, tendo vindo para o Brasil com sete anos de idade, estando com mais ou
menos 65 anos. Não conheceu seus pais. Era escravo do capitão José de Godois
Moreira, “trabalhador de roça e curador de cobras, pelo que recebe gratificações”.
Negou ter fornecido os “objetos encontrados na caixa de Pascoal”, bem como ter se
encontrado com ele, Félix e Jacinto na Quaresma de 1869. Afirmou ainda que, “há mais
de sete anos, não ia à cidade de Cunha”, e que os objetos encontrados em sua “senzala”
realmente lhe pertenciam. Com relação a Antonio Carioca, afirmou que este “não
gostava dele, querendo até lhe matar por não ter consentido que ele [Luís] entrasse com
todos os escravos no terreiro da fazenda, à meia noite de um dia atrás”.
Entretanto, num segundo depoimento, Luís acrescentou uma série de novas
informações contraditória às anteriores. Afirmou que “há anos conhecia todos os livres
que testemunhavam no processo”, bem como “todos os escravos”, que o “acusavam” de
envolvimento nos crimes “por suporem que ele é curador de malefícios”. Sobre Antonio
Carioca, afirmou que, “na noite da véspera do dia de Santo Antonio, havia ido com
outros escravos ao seu sítio no Pinheiro”, onde “deram-lhes pancadas, das quais lhe
resultaram incômodos de saúde, sofrendo do peito até o presente”. Depois de agredi-lo,
“Antonio Carioca e os demais escravos se retiraram”.
Sobre as ervas, Luís informou que “dera a Pascoal duas raízes para curar
mordedura de cobra, e a garrafinha para dor de barriga”. Pascoal haveria de “voltar ao
18
sitio do Pinheiro na Quaresma desse ano para comprar-lhe um livro de Santa Bárbara”,
mas que até aquele momento ele não havia ido. Por outro lado, ele e Jacinto Monjolo
haviam se “encontrado no Cemitério da Paraitinga”, e, saudando-o, Jacinto lhe disse que
“vinha trazendo um animal para a Festa da Lagoinha”, e que lhe “levaria um outro no
dia seguinte”. Tal como Pascoal, Jacinto não o havia procurado novamente. Fora
perguntado pelo delegado se entre ele e Jacinto havia ocorrido “problema por causa de
algum remédio recomendado à sua mulher”. Luís respondeu que havia sido procurado
por Jacinto para que “curasse inchação na barriga de sua mulher”, e afirmou que
“aplicara” nela “raiz de Guiné em aguardente, e que por mais dois anos ela andou boa”,
vindo a falecer depois deste período. Jacinto lhe havia dado a “gratificação de dois
tostões”. Já Pascoal, havia-lhe “dado dez tostões pelo ensinamento das raízes”.
Logo em seguida, depôs “Jacinto Nunes da Silva Reis Júnior, monjolo da Costa
da África, onde nasceu na cidade de Nategué, de onde veio muito pequeno sem ter
conhecido seus pais”. Sabia que era acusado de “conivência com os delitos de Pascoal”.
Negou ter entregado qualquer tipo de objeto que tivesse sido enviado por Luís
Moçambique a Pascoal, “e que nem tampouco estava aprendendo feitiçaria com Luís,
do que Pascoal é mestre há muitos anos”. Este, sim, estava “aprendendo feitiçaria com
Luís”. Uma noite, Antonio Carioca fora se “oferecer para curar sua esposa, dizendo que
Luís do Pinheiro era quem a havia matado”. Acertaram tudo por “20 mil réis”. Antonio
Carioca se comprometeu a dar à Genovefa “remédios ocultos, menos a aplicação de
fava de Santo Antonio”. Por conseguinte, Luís havia se tornado seu “inimigo”, posto
que ele, Jacinto, “havia descoberto que fora Luís que houvera enfeitiçado sua mulher,
tendo-lhe feito mal”. Por isso, “Luís jurou, na Festa da Lagoinha, que iria matá-lo”. Já
Pascoal, para se livrar das mortes causadas na casa de dona Geraldina, queria
comprometê-lo, também o “acusando de ser feiticeiro”. Pelo “medo de ser preso”,
Jacinto começou a “vender seus animais e suas roças” para que pudesse “sair” da cidade
de Cunha “assim que pudesse”.
ele por Jacinto, “em sua casa”: numa primeira vez, inclusive na presença de Antonio
Carioca – “que estava deitado numa esteira” –, dera-lhe duas raízes; numa segunda vez,
dera-lhe mais cinco. Entretanto, confirmou que recebera de Luís a tal garrafinha,
ressaltando que “estava escangalhada e, por isso, não valia de mais nada”. Jacinto
confirmou tais informações, reafirmando que “Antonio Carioca é que era bom de
feitiçaria”, pois pediu que todas as garrafas existentes lhe fossem entregues para que
pudesse curar Genovefa. Luís não retrucou em nenhum momento da acareação.
No dia 11 de fevereiro, Pascoal fora pronunciado como “autor” dos assassinatos,
e Luís Moçambique, Félix, Antonio Carioca e Jacinto Monjolo como “cúmplices por
ministrarem o conhecimento” que os possibilitou. Às dez horas da manhã do dia 28 de
março de 1870, os escravos foram ouvidos pelo juiz municipal de Cunha, em nova
acareação que, mais uma vez, trouxe novas informações.
Pascoal afirmou que assassinou o escravo Benedito porque este lhe havia
“furtado umas galinhas, roupas e algum dinheiro”, e que “para isso havia arrombado sua
casa”. Assim, “dera as raízes com a intenção de matá-lo”, ao contrário dos demais
escravos. A estes, “dera para experimentar e ver os efeitos das raízes”. Pascoal declarou
que Jacinto foi quem lhe havia “dado os remédios para curar as pessoas”. O próprio
Jacinto “mandou chamá-lo”, “em sua casa”, para “oferecê-los”. Além disso, Pascoal
afirmou que os livres que depunham “não tinham presenciado nada do acontecido na
casa de morada” da fazenda de dona Geraldina, “exceto Manoel Pereira Abreu e
Timóteo José Cesário de Campos”. Fizera a confissão de que “havia matado outros
escravos” além daqueles cinco, “após sofrer castigos na casa de sua senhora”. Não
havia, portanto, “matado Geremias”, “mas as pessoas atribuíam a ele tal acontecimento
porque ele lhe estimava muito, por terem vindo juntos da mesma terra e por também
morar com ele”. Seus senhores, na verdade, “não gostavam da estima que gozava dos
brancos da casa do capitão José de Godois Moreira”, e “por isso há muito tempo
queriam motivo para processá-lo”.
Já Luís Moçambique afirmou que tinha o “hábito de curar as pessoas de
mordeduras de cobra, conhecia Pascoal há muito tempo e havia lhe dado as raízes” para
o mesmo fim. Além do mais, “para provar o que estava falando, qualquer um dos
presentes poderia beber das raízes que nada lhes aconteceria”. Se quisessem, “ele
mesmo estava pronto para beber”. Isso provava, também, que não teria sido com suas
raízes que Pascoal matara Benedito, mas sim com o “veneno da garrafinha”. Pascoal,
assim, o teria envolvido nas mortes “para que parasse de ser castigado por seus
20
senhores”. Uma vez que as raízes não eram de espécies venenosas, nada mais poderia
ser alegado contra a sua inocência.
Jacinto Monjolo afirmou que “conhecia Pascoal há muitos anos”, e “sempre
pousava quando passava por sua casa”. Numa destas vezes, ele encontrou-se com
Antonio Carioca. Afirmou, por fim, que “ninguém lhe havia dado nada, nem mesmo
conhecia nenhum dos objetos que ali estavam sendo apresentados”.
antropologia britânica dos anos 1950 e 60.17 Turner alertava sobre o perigo de operar-se
com categorias estanques, impostas pelo antropólogo antes mesmo das análises do
material disponível. No mesmo artigo, comentando uma publicação dirigida pelos
antropólogos britânicos Middleton & Winter – também pesquisadores da “feitiçaria” nas
sociedades africanas –, que visava dar uma visão universal da feitiçaria na parte leste da
África18, Turner propõe uma definição básica para a feitiçaria como fenômeno social.
Tal definição se modificaria ao se aproximar dos dados coletados pelos pesquisadores.
Para ele, muitas das sociedades africanas estudadas pelos autores dos artigos que
compunham o livro reconhecem a mesma série de componentes sociais, antes mesmo de
falarmos em feitiçaria. Estes componentes são: capacidades “inatas”, “adquiridas”,
“aprendidas” e “herdadas” para causar dano e para matar; poder para matar de maneira
imediata e poder conseguido por meio de “medicinas”; o emprego de familiares,
visíveis e invisíveis; a introjeção mágica de objetos no interior dos inimigos; magia
hostil noturna e diurna; a inovação dos espíritos mediante uma maldição, etc. Em
Cunha, a feitiçaria ocorreu pela capacidade aprendida, ou seja, quem desejava ser
“feiticeiro” assim o seria caso entrasse para a “Escola Coroa da Salvação”, aprendendo
tal “ofício”. Além disso, seguindo a proposta de Turner, as técnicas aprendidas eram
para ser usadas para causar dano a alguém. Turner ainda argumenta que nas distintas
sociedades, e às vezes nas distintas situações dentro de uma mesma sociedade, aqueles
componentes aparecem separados e agrupados de diferentes maneiras. A solução
17
Cf. Victor W. Turner, “Brujeria y hichicheria: taxonomia versus dinamica”, in La selva de los
simbolos: aspectos del ritual Ndembu, Madrid, Siglo Veintiuno, 1967, pp. 124-141.
18
Trata-se de John Middleton e E. H. Winter (orgs.), Witchcraft and sorcery in East Africa, London,
Routledge & Kegan Paul, 1963. Alguns anos mais tarde, houve uma tentativa de historiadores e
antropólogos repensarem paradigmas até então dominantes nos estudos sobre acusações de feitiçaria, em
Mary Douglas (org.), Witchcraft confessions and accusations, London, Tavistock Publications, 1970.
Para uma visão geral acerca dos estudos que antropólogos britânicos fizeram sobre “acusações de
feitiçaria” na África, ver Adam Kuper, Antropólogos e Antropologia, Rio de Janeiro, Livraria Francisco
Alves Editora, 1978, pp. 87-119 e Murray Leaf, Uma história da Antropologia, Rio de Janeiro, São
Paulo, Zahar, EdUSP, 1981, pp. 298-301. Para uma análise crítica do ponto de vista da antropologia
britânica acerca dessas acusações, ver Malcolm Crick, “Recasting witchcraft”, in Max Marwick (org.),
Witchcraft and sorcery (Middlesex, Penguin, 1982), pp. 343-364. Considerações importantes acerca de
vários dos autores da antropologia inglesa, por nós citados, encontram-se em George W. Stocking Jr.,
After Tylor: British School Anthropology, 1888-1951, Madison, The University of Wisconsin Press,
1995. Outros pontos acerca da forma de produzir as etnografias dessa “escola antropológica”, levando-se
em conta os contextos políticos internacionais, são abordados por Mauro Almeida, “A etnografia em
tempos de guerra: contextos temporais e nacionais do objeto da antropologia”, in Fernanda Peixoto,
Heloisa Pontes & Lilia Moritz Schwarcz (orgs.), Antropologias, histórias, experiências (Belo Horizonte,
Editora UFMG, 2004), pp. 61-77. Algumas questões acerca dessas discussões foram recentemente
levantadas por Emerson Giumbelli, “Os Azande e nós: experimento de antropologia simétrica”,
Horizontes Antropológicos, ano 12, no. 26 (jul./dez. 2006), pp. 261-297.
22
apontada pelo autor é optar pela análise de casos, situações, pois isso pode muito bem
revelar parte da dinâmica social.
Segundo as indicações de Turner, e analisando cada caso, podemos ver que, a
partir da primeira acusação de feitiçaria, as investigações policiais revelam uma série de
elementos que já estavam postos em relação – as diversas disputas entre os agentes
sociais. Nas notícias ao redor de Pai Gavião encontramos, de um lado, os senhores de
escravos, de vários perfis econômicos, e os escravos que compunham as tais “Lojas
Feiticeiras”, membros da Justiça e o escravo médium que recebia o espírito de Pai
Gavião, o enviado do Correio Paulistano e as pessoas que assistiam aos “rituais de
possessão”. De outro lado, encontramos sentimentos, expectativas, atitudes, as palavras
de Pai Gavião sobre uma grande insurreição escrava e o medo da classe senhorial que a
mesma acontecesse, estas mesmas palavras e seus efeitos nos escravos presentes nos
“rituais de possessão”, a possessão de Pai Gavião controlada pelo espírito que escolhia o
médium e a classe senhorial local querendo aproveitar a “incorporação” para inquirir
Pai Gavião.
Seguir a proposta de Turner significa, em última instância, seguir a metodologia
de Van Velsen, na qual é privilegiada a narrativa o mais detalhada possível dos
acontecimentos específicos a uma situação. Transformamos os dados do processo
criminal em uma narrativa diferente da de sua natureza jurídica original, através da
ordenação dos acontecimentos mais adequada às análises dos conflitos e das normas
sociais em questão. Procuramos construir as questões a partir dos diferentes pontos de
vista presentes ao longo do processo criminal, no qual se apresenta um número limitado
de personagens, que, por sua vez, representam diferentes interesses e grupos sociais.19
Estamos utilizando, assim, os registros de situações concretas para analisar uma série de
dados interligados, numa área social delimitada, parte do sudeste escravista. 20
No caso da “Escola de Feitiçaria Coroa da Salvação”, a natureza do documento
que estamos trabalhando nos possibilita analisar a relação entre seus membros, bem
19
Sobre a construção de versões de fatos no bojo de um processo criminal, ver Mariza Corrêa, Morte em
família: representações jurídicas e papéis sexuais, Rio de Janeiro, Graal, 1983.
20
J. Van Velsen, “A análise situacional e o método de estudo de caso detalhado”, in, Bela Feldman-
Bianco (org.), Antropologia das sociedades contemporâneas (São Paulo, Global, 1987), pp. 345-374.
Para um exemplo concreto da aplicação deste método, ver Max Gluckman, “Análise de uma situação
social na Zululândia moderna”, in Feldman-Bianco (org.), Antropologia das sociedades contemporâneas,
pp. 227-344. Por outros caminhos, centrado nos debates da hermenêutica de Paul Ricoeur e da análise dos
discursos de Gadamer, encontramos parte destas técnicas de descrição de dados de pesquisa em Clifford
Geertz, “1. Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura”, in A interpretação das
culturas, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1978, pp. 13-41.
23
como dos mesmos com os da classe senhorial, aparentemente liderados por dona
Geraldina ao longo das investigações.
Todas as testemunhas têm alguma relação de parentesco ou compadrio com dona
Geraldina: José Cesário de Campos é seu filho; Antonio Pereira Coelho, sobrinho e
inspetor de quarteirão; José de Godois Moreira, genro; feitor, anônimo, dos escravos de
dona Geraldina; Máximo Campos do Amaral, padrinho de seu filho, portanto, compadre
de dona Geraldina; Lourenço Pereira Coelho, seu cunhado e pai de Antonio Pereira;
Joaquim Augusto da Purificação, seu genro. Alguns destes homens eram senhores de
escravos envolvidos nos crimes, fossem como assassinados, assassinos ou “feiticeiros”.
Mas isso veremos ao longo de nossa análise.
O fato que deve ficar registrado, daqui até o final deste artigo, é o controle
exercido por dona Geraldina e autoridades senhoriais sobre a construção das acusações
dos escravos, através do constrangimento de pessoas que lhes estavam subordinadas na
hierarquia econômica, política e/ou familiar. Dona Geraldina conduziu as investigações
o tempo todo, designando a função dos agentes, sem consultar pessoa alguma. Segundo
as informações do processo, era imediatamente obedecida. Desta forma, ambas as três
hierarquias estão juntas, interdependentes, uma vez que dona Geraldina era a maior
senhora de escravos dos senhores envolvidos no processo – o que reforça a idéia de que
ocupava o lugar maior na hierarquia econômica local. É bom deixarmos claro que a
posse de escravos não garantia uma produção econômica elevada para o senhor, mas o
simples fato de ter muitos escravos implicava que teria moeda de troca da mais valiosa
naqueles anos de grande movimentação de compra e venda de escravos, como bem já
demonstrou Slenes21, nas áreas cafeeiras do sudeste. Para conseguir escravos, o senhor
deveria conhecer os mecanismos diversos que envolviam transações não somente caras,
mas arriscadas, uma vez que os escravos antes mesmo de chegarem às suas plantações
passavam pelas mãos de vários negociantes e autoridades imperiais.22 Essa observação
se restringe para o caso de Cunha, não servindo para o de Pai Gavião, pois fazem parte
de duas realidades distintas, respondendo de formas diversas aos efeitos da lei de
supressão do tráfico internacional de escravos para o Brasil, em 1850.
Ademais, as ações criminosas, no sentido literal, legal, do termo, dos escravos
emperravam, muitas vezes, a rotina de trabalho nas lavouras. Não atoa, os boatos de
21
Cf. Robert W. Slenes, “Grandeza ou decadência? O mercado de escravos e a economia cafeeira da
província do Rio de Janeiro, 1850-1888”, in Iraci del Nero da Costa (org.), Brasil, história econômica e
demográfica (São Paulo, IPE-USP, 1986), pp. 103-155.
22
Ver Emília Viotti da Costa, Da senzala à colônia, 3ª edição, São Paulo, Brasiliense, 1989, pp. 85-91.
24
insurreição não vinham de cortinas de fumaça, mas de uma série de atitudes de escravos
que envolvia assassinato de feitores e demais funcionários das fazendas, no sudeste
escravista cafeeiro de 1860 em diante, bem como fugas e pequenos roubos.23 Em
Taubaté e Campinas, por exemplo, houve um aumento considerável de homicídios e
lesões corporais cometidos por escravos em homens livres, uma vez que estes eram
identificados como ilegítimos substitutos da autoridade senhorial em situações nas quais
os escravos não reconheciam com clareza sua autoridade: maus tratos, prisões, capturas
e punições entendidas pelos cativos como injustas ou mesmo desnecessárias.24 Só na
província de São Paulo, havia uma extensa lista de posturas públicas acerca da punição
a ser imposta aos escravos fugidos capturados, bem como pelo cometimento de furtos e
roubos os mais diversos, e a seu senhor. Falamos em 1860 por ser o ano da primeira
legislação desta província destinada a controlar a fuga de escravos. As posturas
municipais tornaram oficiais as atitudes de escravos a partir do momento em que o
governo procurou enquadrá-las na lei, tentando acompanhar a rápida sofisticação de
suas estratégias de fuga e formação de quilombos, como a criação de gratificações
extras, em 1862, para os apreensores de escravos, recompensas maiores pela captura de
escravos de outros municípios, proibição dos escravos usarem certos tipos de roupas,
evitando que os fugitivos se imiscuíssem melhor na população, e mesmo impedindo-os
de dormir em quartos de aluguel.25
23
Para exemplos de tais fatos, ver Luiz Alberto Couceiro, “Reinventando o cativeiro, construindo a
emancipação: escravos, senhores e lógicas de sociabilidade em fazendas de café (Sudeste, 1860-1888)”,
in Revista Acervo: o Arquivo Nacional e seus pesquisadores, vol. 15, no. 2 (2002), pp. 17-32 e “A
disparada do burro e a cartilha do feitor: lógicas morais na construção de redes de sociabilidade entre
escravos e livres em fazendas do sudeste, 1860-1888”, Revista de Antropologia – USP, n. 46.1 (2003), pp.
41-83; Luiz Alberto Couceiro & Carlos Eduardo Moreira de Araújo, “Dimensões cativas e construção da
emancipação: relações morais nas lógicas de sociabilidade de escravos e livres. Sudeste, 1860-1888”,
Estudos Afro-Asiáticos, ano 25, no. 2 (2003), pp. 281-306; Flávio dos Santos Gomes, A hidra e os
pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no Brasil – séculos XVII-XIX, São Paulo,
Editora UNESP, Editora Polis, 2005 e Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas
no Rio de Janeiro – século XIX, Edição revista e ampliada, São Paulo, Companhia das Letras, 2006 (Rio
de Janeiro, Arquivo Nacional, 1995); Humberto F. Machado, Escravos, senhores e café: a crise da
cafeicultura escravista do Vale do Paraíba Fluminense, 1860-1888, Niterói, Clube de Leitura Cromos,
1993; Maria Helena Pereira Toledo Machado, Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas
lavouras paulistas, 1820-1888, São Paulo, Brasiliense, 1987 e O plano e o pânico: os movimentos sociais
na década da abolição, Rio de Janeiro, São Paulo, Editora UFRJ, EdUSP, 1994.
24
Para os homicídios e lesões corporais, ver, principalmente, Machado, Crime e escravidão, pp. 38-44.
25
Sobre as posturas na província de São Paulo, bem como uma série de leis sobre fugas e formação de
quilombos, ver Ademir Gebara, O mercado de trabalho livre no Brasil (1871-1888), São Paulo,
Brasiliense, 1986, pp. 138-154. Para análises acerca dos significados diversos das fugas de escravos, no
Império, ver Flávio dos Santos Gomes, “Jogando a rede, revendo as malhas: fugas e fugitivos no Brasil
escravista”, Revista Tempo, vol. 1, no. 1 (1996), pp. 67-93 e Isabel Cristina Ferreira dos Reis, ““Uma
negra que fugiu, e consta que já tem dous filhos”: fuga e família entre escravos na Bahia oitocentista”,
Afro-Ásia, no. 23 (2000), pp. 29-48.
25
Estes tipos de lei eram comuns em toda a América. Nos Estados Unidos, por
exemplo, Tang escreveu um breve sumário do controle judicial adotado pelo estado da
Virgínia para prevenir insurreições escravas.26 Primeiro, africanos escravizados eram
proibidos de viajar para qualquer lugar sem a autorização de seu senhor. Segundo, eram
proibidos de erguer suas mãos contra qualquer branco cristão. Terceiro, os brancos
tinham garantido o direito de disciplinar sua propriedade – no caso, os africanos
escravizados. Quarto, africanos escravos ou livres não podiam possuir nem ao menos
carregar nenhum tipo de arma de fogo. Quinto, associações entre brancos e não-brancos
eram proibidas. Sexto, todos os africanos, observado o seu estatus, eram proibidos de
aprender a ler e a escrever. Sétimo, africanos não podiam praticar sua própria religião.
Oitavo, caso fossem livres um dia, os escravos africanos tinham que deixar a colônia
por um período de tempo específico. E nono, africanos escravizados estavam sujeitos à
obrigatória realocação na Libéria, após a emancipação. Tang demonstra como o que
denominou “leis anti-insurreição” estavam mais ligadas ao campo das representações
sociais da elite senhorial e dos brancos livres acerca das ações dos escravos e dos
africanos livres, do que às possibilidades de sucesso racional e calculado da formulação
das leis. Para a autora, os senhores queriam controlar ou restringir satisfatoriamente a
ocorrência de insurreições de escravos e africanos livres.
Para a cidade do Rio de Janeiro, Chalhoub argumenta que escravos lutavam,
com maior dureza a partir da década de 1860, para multiplicar as situações sociais nas
quais assumiam papéis aparentemente impensados para um escravo. Poderiam
conseguir emprego como operário e, ao ser acusados de um crime, ser julgados como
pessoas livres na Justiça, por exemplo. As situações nas quais escravos conseguiam
vender sua força de trabalho avolumavam-se com o passar dos anos, quando vários
deles compravam cada vez mais sua alforria. Afinal de contas, o número de libertos que
eram reescravizados por seus senhores, por ingratidão, era pequeníssimo no Rio de
Janeiro e mesmo em São Paulo. As alforrias dos escravos passaram a ser condicionais,
ou seja, deveriam trabalhar por mais alguns anos para seus senhores. Assim, a lei de 28
de setembro de 1871 reconheceu tais atitudes de escravos quando impediu que os
senhores recusassem a compra da alforria quando requerida por aqueles.27 Dizia, assim,
26
Joyce Tang, “Enslaved African rebellions in Virginia”, Journal of Black Studies, vol. 27, no. 5 (may
1997), pp. 598-614.
27
Cf. Sidney Chalhoub, Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte,
São Paulo, Companhia das Letras, 1990, pp. 135-174. Para análises acerca das discussões dos políticos e
senhores do Império do Brasil em torno da aprovação da lei de 1871, ver Carvalho, I – A construção da
26
o seu parágrafo segundo: “o escravo que, por meio de seu pecúlio, obtiver meios para
indenização de seu valor, tem direito a alforria. Se a indenização não for fixada de
acordo, o será por arbitramento. Nas vendas judiciais ou nos inventários o preço da
alforria será o da avaliação”.28
Após este importante passeio pelas ruas da Corte, voltemos às esquinas e
encruzilhadas da feitiçaria escrava da cidade de Cunha...
É importante adiantarmos que, ao contrário do que vimos nas relações entre os
próprios escravos, a autoridade de dona Geraldina impediu que ocorressem acusações
de qualquer espécie entre os livres, ao longo do processo criminal. O exercício de seu
poder foi legitimado pelos demais senhores, uma vez que não apenas a obedeceram,
como também deixaram que seus escravos fossem investigados a partir de suas relações
com Pascoal, o primeiro escravo acusado de “feitiçaria” pela senhora, que a ela
pertencia. Como a mais atingida pelos efeitos mortais dos feitiços, pois seus escravos
Jeremias, Benedito Gama e Lourenço Crioulo foram mortos, bem como Maria Rita, era
mais do que “natural” que ela capitaneasse as investigações. Apenas a quinta vítima, o
escravo Luís, era de outra pessoa – pertencia ao genro de dona Geraldina, Joaquim
Augusto, pessoa bem próxima a ela.
Caso não descobrisse e eliminasse os “feiticeiros” do convívio das pessoas da
região, dona Geraldina e seus escravos continuariam a sofrer grande perigo de morte.
Os procedimentos deveriam ser: primeiro, conhecer os feiticeiros a partir das
informações do primeiro acusado, seu escravo Pascoal; segundo, localizá-los e, terceiro,
capturá-los para serem interrogados. O reconhecimento dos acusados de serem
“feiticeiros”, ao longo do processo, acontecia quando os senhores e seus empregados
encontravam nas suas senzalas “objetos reconhecidamente de feitiçaria”.29
ordem, pp. 269-302 e Eduardo Spiller Pena, Pajens da casa imperial: jurisconsultos, escravidão e a Lei
de 1871, Campinas, Editora da UNICAMP, CECULT, 2001. Ao longo da década de 1870, o clima
político continuaria a ser dominado pelos debates de outras leis para o gradual ou o imediato fim legal da
escravidão no Brasil, como as leis Sinimbu e a dos Sexagenários. Ver Maria Lúcia Lamounier, Da
escravidão ao trabalho livre: a Lei de Locação de Serviços de 1879, Campinas, Papirus, 1988 e Joseli
Maria Nunes Mendonça, Entre a mão e os anéis: a Lei dos Sexagenários e os caminhos da abolição no
Brasil, Campinas, Editora da UNICAMP, CECULT, 1999, para análises da elaboração das respectivas
leis; Sidney Chalhoub, Machado de Assis, historiador, São Paulo, Companhia das Letras, 2003. Para
observações gerais acerca das cartas de alforria, ver os apontamentos de Ligia Bellini, “Por amor e por
interesse: a relação senhor-escravo em cartas de alforria”, in João José Reis (org.), Escravidão e invenção
da liberdade: estudos sobre o negro no Brasil (São Paulo, Brasiliense, 1988), pp. 72-86.
28
Cf. AN, Colleção das Leis do Império do Brasil de 1871, Tomo XXXI, Parte I, Rio de Janeiro, 1871,
pp. 147-151.
29
Este tema é o assunto central de nossa tese de doutorado em Antropologia, no PPGSA-IFCS/UFRJ, que
se encontra em fase de conclusão.
27
Agora, resta-nos saber: se não foi o escravo Pascoal quem afirmou ser
“feiticeiro”, como dona Geraldina e seus prepostos e aliados sabiam das causas das
mortes dos seus escravos?
Em estudo sobre acusações e crenças na feitiçaria entre os Zulu, Max Gluckman,
seguindo Evans-Pritchard, afirma que, entre “os ocidentais”, quando algo ruim acontece
diz-se que foi uma infeliz coincidência, má sorte ou azar. Esta explicação independe das
explicações científicas sobre o modo pelo qual as coisas aconteceram. Ao contrário
desta maneira de pensar, “os africanos Zulu”, mesmo sabendo como as coisas ruins
sucederem a alguém, dizem que foi a “bruxaria” o motivo pelo qual algo ruim
aconteceu.30 Queremos dizer com isso que havia descendentes dos Zulu entre os
senhores ou escravos em Cunha? Queremos dizer, ainda, que haveria uma passagem
estrutural da crença na feitiçaria “da África” para o Brasil, através de escravos
africanos, que permaneceu na África estudada por Gluckman nos anos 1930? A resposta
é não, absolutamente não é isso que queremos dizer ao nos apoiarmos nas observações
de Gluckman sobre os Zulu. Queremos chamar a atenção para a ligação da crença na
feitiçaria com algo de ruim que tenha ocorrido com uma pessoa próxima, sendo esse
fato creditado aos poderes mágicos utilizados por alguém.
Provavelmente, não era novidade para dona Geraldina, e seu séquito de
acusadores de “feitiçaria”, as ações de escravos contra senhores, em todo o continente
americano, através de poções mágicas provocando envenenamento. Além disso, feitiços
e “coisas feitas” eram vistos, ao contrário da feitiçaria, nas sociedades escravistas
americanas, como fundamento da forma de pensamento da maneira pela qual coisas
ruins acontecem consigo ou pessoas próximas. Peguemos o exemplo da colônia
holandesa de Curaçao, no Caribe, onde a escravidão durou oficialmente até 1863.
Vários escravos acreditavam que sua crença na “brua” funcionava contra os senhores.
Em poucas palavras, a crença na “brua” dos escravos de Curaçao rezava sobre a vida da
alma de cada pessoa após sua morte. Uma pessoa que levou uma vida eticamente boa,
digamos assim, terá seu espírito bom. Os bons espíritos podem, caso sejam convocados
ritualmente, proteger a vida dos vivos, ao contrário dos maus espíritos, que lhes causam
prejuízos. Para aqueles escravos, o bruxo era aquele que tinha a capacidade de lidar com
os maus espíritos para causar dano a uma terceira pessoa. Assim, quando acontecia algo
de ruim contra algum senhor, em Curaçao, logo se desconfiava de seus escravos.
30
Max Gluckman, “The logic of witchcraft”, in Custom and conflict in Africa, Oxford, Basil Blackwell,
1970, pp. 81-108, p. 12.
28
Entretanto, os bruxos podiam ser libertos, como em Cunha, com autoridade sacerdotal
reconhecida pelos escravos que iam procurá-los. Na insurreição escrava ocorrida em
Curaçao, em 1775, sabe-se que o bruxo Mingeel Boelbaaij organizou um ato religioso
com todos os escravos rebeldes, no qual lhes aspergiu uma poção mágica para imunizá-
los contra as armas dos senhores e seus prepostos.31
Argumentamos, assim, que dona Geraldina compartilhava junto a vários
senhores de escravos da crença no feitiço, associando certos casos da vida cotidiana, e
mesmo casos excepcionais, aos efeitos de poções mágicas e da ação dos escravos que
reconhecidamente detinham suas técnicas de manipulação e ensino. Mauss falava em
reconhecimento social da magia para que, antes de mais nada, ela pudesse existir em
qualquer sociedade.32 Malinowski, por sua vez, falava em níveis de crença na magia
diferenciados entre pessoas de uma mesma sociedade. Além disso, lembremos que o
mesmo Malinowski afirmou que a “feitiçaria” existia mesmo quando era negada por
alguns de seus informantes, reforçando a crença em seus efeitos.33 Entretanto, para
termos toda esta eficácia do medo e das acusações proporcionada pela crença nos
efeitos pragmáticos da feitiçaria na vida social, devemos fixar a idéia de que não há
feitiço sem feiticeiro, nem feiticeiro sem cliente, nem cliente sem a pessoa que se quer
atingir. Em suma, não há tudo isso se não há um sistema de crenças que afete todos os
envolvidos: acusados, acusadores, clientes, editor de jornal, ministros, políticos em
geral, funcionários públicos... e “feiticeiros”.
A acusação de feitiçaria no caso de Cunha estava ligada, ora mais, ora menos
nitidamente aos escravos africanos não somente por parte da classe senhorial, mas
também da parte dos próprios escravos. Não é novidade alguma, lembremos disso, que
no Brasil Império fora enfatizada entre as elites a idéia de África ligada a mistérios
quanto aos poderes dos antepassados, poderes estes freqüentemente relatados por
jornais da época. Neste sentido, façamos uma pausa para um breve entendimento desta
importante questão, fundamental para compreendermos sua marcante presença na
construção do inquérito do processo criminal instaurado em Cunha e nas narrativas de
outros de nossos casos.
31
Para todos estes dados sobre a crença na “brua” em Curaçao, durante a escravidão, ver Armando
Lampe, “O catolicismo negro na sociedade escravista de Curaçao”, in Escravidão negra e história da
Igreja na América Latina e no Caribe – Comissão de Estudos de História da Igreja na América Latina
(CEHILA), Petrópolis, Vozes, 1987, pp. 169-213.
32
Cf. Mauss & Hubert, “Esboço de uma teoria geral da magia”, p. 63.
33
Bronislaw Malinowski, Magia, ciência e religião, Lisboa, Edições 70, 1988.
29
34
James Clifford, “Sobre o surrealismo etnográfico”, in A experiência etnográfica: antropologia e
literatura no século XX (organização e revisão técnica de José Reginaldo Santos Gonçalves), Rio de
Janeiro, Editora UFRJ, 1998, pp. 132-178, pp. 156-158.
35
Cf. Sidney Chalhoub, Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial, São Paulo, Companhia
das Letras, 1996, pp. 15-59; Lilia Moritz Schwarcz, Retrato em branco e negro: jornais, escravos e
cidadãos em São Paulo no final do século XIX, São Paulo, Companhia das Letras, 1987 e O espetáculo
das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930, São Paulo, Companhia das
Letras, 1995, pp. 23-66. Para uma abordagem de longa duração temporal da história das idéias raciais
aplicadas às Américas, ver Renato Silveira, “Os selvagens e a massa: o papel do racismo científico na
montagem da hegemonia racial”, Afro-Ásia, no. 23 (2000), pp. 89-145.
30
Pai Couto foi reverenciado pelo autor da notícia com sua biografia narrada a
partir de sua atuação tanto na África, quanto no Império do Brasil. Tal como Pai
36
BN, Seção de Obras Raras, pp. 2-3.
31
Gavião, Pai Couto era louvado pelo seu intelecto, preservado até o final de sua vida.
Também tinha o crédito daqueles que ouviram suas histórias acerca dos tais feitos de
bravura e coragem, no mar e nas matas africanas. A narrativa que o jornalista credita a
Pai Couto reforçava a visão da África fascinante e misteriosa que também sustentou o
crédito de membros da classe senhorial a Pai Gavião. Inclusive no momento em que
prometia organizar insurreições. Seus atos, incluindo o que dizia, e como dizia,
alimentavam a imaginação de uma África que os membros da classe senhorial
construíam. Voltando ao texto, podemos perceber que o jornalista não fornece nenhum
dado preciso sobre os lugares da África do Sul, nem mesmo as datas, nomes de povos,
portos onde atuou o bravo Pai Couto, muito menos o modo pelo qual fora capturado e
vendido como escravo para o Império do Brasil. Tais informações eram dispensáveis
para as necessidades de pensamento da classe senhorial sobre a África focalizada por
sua retina.37
Podemos dizer, assim, que tanto Pai Gavião quanto Pai Couto eram metáforas
desta África imaginada aos nossos olhos, mas “verdadeira” aos dos membros da classe
senhorial. Ambos sustentavam o sentimento de insegurança desta classe, ameaçando os
indivíduos, suas vidas, e as cidades, sua produção econômica e as relações de trabalho.
Lembremos que Pai Couto foi elogiado, dentre outras coisas, por ser um guerreiro que,
ao invés de organizar insurreições escravas, conquistou a simpatia dos senhores que
conheceu. Conseqüentemente, ambos traziam a idéia de África feiticeira, terra irracional
e mística, de espíritos que encarnavam em médiuns e antigos guerreiros produzidos nas
matas selvagens. Estes seriam ancestrais dos escravos, o espírito por já ter morrido, há
tempos, pelas mãos de um senhor, e o “guerreiro espartano” pelos seus 120 anos,
história viva tanto da África, quanto do período colonial luso-americano até parte do
Império do Brasil.
37
Sobre as formas pelas quais idéias sobre a África eram difundidas para as elites e camadas médias
letradas no Ocidente do século XIX, ver Robert Thornton, “Narrative ethnography in Africa, 1850-1920:
the creation and capture of an appropriate domain for Anthropology”, Man: New Series, vol. 18, no. 3,
(sep. 1983), pp. 502-520.
32
Queremos dizer que o medo da classe senhorial é resultado de certa forma de ver
os escravos, bem como de onde muitos deles vieram. A construção de imagens de
escravos segundo o olhar de homens da boa sociedade imperial explicava qual tipo de
medo que esta sentia de várias das atitudes dos mesmos.41
Anos antes do caso de Cunha eclodir através das investigações senhoriais que
resultaram no processo criminal, ocorreu, na Corte, tensão por parte das autoridades do
Ministério da Justiça em relação a um caso de “feitiçaria”.
No dia 16 de dezembro de 1867, o juiz Carlos de Lima Teixeira escreveu aos
responsáveis pela Secretaria de Polícia da Corte sobre um “sinistro fato de feitiçaria”.42
Afirmava que, no dia 14 daquele mesmo mês, fora procurado por um tal Luiz Tavares
Guerra que temia o fato de que os “escravos da casa [na qual ele trabalhava] formavam
o desígnio de se revoltarem contra seu senhor e caixeiros”. O juiz enviou,
“imediatamente, uma força do Corpo Militar de Polícia, e fez prender os que pareciam
38
Claude Lévi-Strauss, Totemismo hoje, in Lévi-Strauss, São Paulo, Abril Cultural, 1976, pp. 95-187, pp.
171-173, Coleção Os Pensadores, vol. L
39
Cf. Robert Wayne Slenes, Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família
escrava, Brasil, Sudeste, século XIX, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999, pp. 50-53
40
Célia Maria Marinho de Azevedo, Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites, século
XIX, São Paulo, Annablume, 2004 (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987).
41
“Os homens não agem, enquanto membros de um grupo, de acordo com aquilo que cada um sente
como indivíduo: cada homem sente em função da maneira pela qual lhe é permitido ou prescrito
comportar-se. Os costumes são dados como normas externas antes de engendrar sentimentos internos, e
estas normas insensíveis determinam os sentimentos individuais, assim como as circunstâncias em que
poderão ou deverão se manifestar. (...) A emoção vem somente quando o costume, indiferente em si
mesmo, é violado. (...) Em verdade, as pulsões e emoções não explicam nada; elas sempre resultam: seja
do poder do corpo, seja da impotência do espírito. São conseqüências nos dois casos, jamais causas.”
Lévi-Strauss, Totemismo hoje, p. 157.
42
AN, IJ6 – Série Justiça /Polícia da Corte, pacote 517.
33
43
Ao longo deste artigo, trabalhamos com o conceito de feitiçaria como a crença no poder de se fazer o
mal a alguém, segundo meios mágicos. A crença na eficácia das técnicas do feiticeiro por parte do doente
que ele cura ou de quem ele persegue, e a força da opinião coletiva em seus poderes de curar alguém ou
lhe causar dano fecham o que é chamada de “triângulo de crença na eficácia da feitiçaria”, por Claude
Lévi-Strauss, “O feiticeiro e sua magia”, in Antropologia estrutural, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro,
1975, pp. 193-213, pp. 194-195. A partir deste simples, porém eficaz, modo de se entender o princípio
básico para a ocorrência da crença na feitiçaria, na acusação de feitiçaria, nos efeitos diversos do feitiço e
no poder do feiticeiro, podemos fazer nosso argumento ser mais bem compreendido, ao enfatizarmos as
relações sociais entre este último sujeito e as demais pessoas que o circundam.
34
eram considerados bens.44 Mintz & Price afirmam que certos tipos de comportamento
foram cunhados no interior dos grupos de escravos e dos grupos de livres nas Américas.
44
Ver Sidney W. Mintz & Richard Price, O nascimento da cultura afro-americana: uma perspectiva
antropológica, Rio de Janeiro, Pallas, Universidade Cândido Mendes, 2003.
35
O invisível é entendido como uma encarnação do visível, sendo Pai Gavião uma
manifestação própria da realidade invisível. Além do mais, passava a ilustrar a já falada
“África fetiche”, através do efeito visual que sua performance provocava nos
observadores, dentre eles o correspondente que fez todo o relato dos rituais de
possessão. A visibilidade passava a ser entendida como resultado da “cultura africana”,
uma experimentação deste conjunto monolítico e uniforme de comportamentos de
escravos, exatamente quando uma força do mundo dos mortos se tornava invisível aos
olhos dos vivos.45
Em nosso caso, era a presença do espírito visto, porém inatingível, que acendia o
sentimento de medo da insurreição imaterial nos membros da classe senhorial. O
invisível é o observável por também pertencer ao mundo desta classe, ao que ela
acreditava ser o “mundo africano” da “África fetiche”. Não esqueçamos, porém, de
ressaltar que quem estava fisicamente presente era um escravo médium, e não Pai
Gavião. Ao invés de ver a morte como um mundo separado do dos vivos, e, ao contrário
do mesmo, um mundo de silêncio, os escravos e livres que acreditavam em Pai Gavião
entendiam a morte como um mundo de vozes. Tal mundo seria um plano da vida, por
excelência comunicável com o outro, o dos vivos.46
Como conseqüência do mistério acerca dos rituais e das práticas mágicas dos
feiticeiros e médiuns escravos africanos, já fazia parte do imaginário luso-americano a
idéia de África misteriosa, mágica, feiticeira, que em muitos aspectos reforçava práticas
de origem européia, como adivinhações, previsões futuras, fórmulas para que o mundo
dos mortos ajudasse os vivos a realizarem seus desejos e necessidades, sendo, em
alguns casos, o curandeiro identificado tanto às práticas de feitiçaria, quanto às da Igreja
para desfazer feitiços.47 Cada vez que um caso de feitiçaria escrava era descoberto,
45
Sobre a “categoria psicológica do duplo”, do “visível-invisível”, Vernant esclarece: “O duplo é uma
coisa bem diferente da imagem. Não é um objeto “natural”, mas não é também um produto mental: nem
uma imitação de um objeto real, nem uma ilusão do espírito, nem uma criação do pensamento. O duplo é
uma realidade exterior ao sujeito, mas que, em sua própria aparência, opõe-se pelo seu caráter insólito aos
objetos familiares, ao cenário comum da vida. Move-se em dois planos ao mesmo tempo contrastados: no
momento em que se mostra presente, revela-se como não pertencendo a este mundo, mas a um mundo
inacessível.” Cf. Jean-Pierre Vernant, “Figuração do invisível e categoria psicológica do “duplo”: o
kólossos”, in Mito e pensamento entre os gregos: estudos de psicologia histórica, São Paulo, Difusão
Européia do Livro, Editora da Universidade de São Paulo, 1973, pp. 263-276, p. 268.
46
Sobre as diversas visões e entendimentos acerca da morte, dos espíritos e dos mortos no Império, ver
João José Reis, A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX, São Paulo,
Companhia das Letras, 1999.
47
Cf. Laura de Mello e Souza, O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no
Brasil colonial, São Paulo, Companhia das Letras, 1986, pp. 157-193.
36
essas categorias entrevam em cena novamente, pois os feiticeiros africanos eram cópias
imitando um modelo básico, a “África fetiche”.
Assim, esta idéia de “África fetiche” evoca uma representação de África que está
além das manifestações mágicas, em um tempo “passado” não localizável de modo
preciso. Ao que nos parece, a classe senhorial não fazia questão disso, pois este
“passado” era permanentemente presentificado, uma vez que estava ligado diretamente
à representação que tinham dos feiticeiros escravos. Apesar de depender, e se basear, na
mentalidade política mais ampla da sociedade imperial brasileira, a “feitiçaria” era vista
pela classe senhorial como uma perigosa herança africana, desde que ameaçasse a sua
segurança, ou melhor, os seus interesses. Podemos identificar, então, o mesmo arquétipo
de sustentação da idéia de classes perigosas, produzida na Inglaterra e na França
urbanas na mesma época do caso de Pai Gavião, herança social a ser organizada pela
ideologia da classe senhorial, que tinha na “reinvenção” da sociedade brasileira, na raça
nacional, e nos espaços públicos propostas de consertar, fabricar, o passado.48
Tanto os escravos quanto a classe senhorial acreditavam numa África misteriosa,
mágica por ser feiticeira. Os primeiros, para manter viva a esperança “paternal” com os
médiuns e santos, em um quase “messianismo espiritual” orientando algumas das
atitudes dos escravos da região onde Pai Gavião estava encarnando. Lembremos que,
anos depois, foram encontradas as tais espingardas que Pai Gavião havia dito que seus
“filhos” estariam juntando, quando da expedição geológica do dr. Roth. Os segundos, na
explicação do seu medo da possibilidade da ocorrência de tantos assassinatos de
senhores que, aparentemente, não teriam a ver com a feitiçaria escrava. O caráter
secreto dos encontros reforçava a desconfiança da sua influência nas possíveis
insurreições. Provas disso são as notícias de jornais da época, as formas que
caracterizam a figura dos acusados de serem “feiticeiros”, em razão da morte de
senhores, ou tentativas de, como a que foi publicada no Monitor Paulista, da cidade de
Bananal, província de São Paulo, em 20 de abril de 1879.49
Na página três deste jornal, sob coluna de título “VARIETAS”, conta-se a
história de amor entre Ignácia e Querino, acontecida em Campos, província do Rio de
Janeiro. Ignácia era uma moça “alta, rosto redondo, feições miudinhas, corada, de olhos
48
Cf. Schwarcz, O espetáculo das raças. Para a compreensão desse processo, através da construção de
História do Brasil no Império, ver Manoel Luís Salgado Guimarães, “Nação e civilização nos trópicos: o
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional”, Estudos Históricos, no.
1 (1988), pp. 5-27 e Maria Helena P. T. Machado, “Um mitógrafo no Império: a construção dos mitos da
história nacionalista do século XIX”, in Estudos Históricos, no. 25 (2000-2001).
49
BN, Seção de Obras Raras.
37
pretos brilhantes, buliçosos, úmidos, boca rasgada, lábios finos, cabelo louro abundante,
elegante, ágil e leviana”. Ainda segundo o narrador da notícia, a primeira impressão que
a moça produzia era “agradável”, pois tinha “todos os traços da volubilidade, o andar
ligeiro gracioso”, além de corar facilmente. Seus pais eram o padre João Luiz da
Fonseca Osório, e a filha de um tal Francisco José de Almeida Cruz.
Ainda bem menina, Ignácia perdeu seu pai, por isso tendo sido criada na casa de
seu tutor, outro padre, chamado João Antunes de Menezes Silva, e pela mãe do mesmo,
até os 12 anos de idade, quando “armaram-lhe um casamento”. Seu tutor se opôs, pois o
noivo, conhecido por Cunha, poderia ficar com a fortuna de alguns bens, incluindo
terras e escravos, de Ignácia. Além disso, Cunha era conhecido na região por ter maus
antecedentes, pois uma moça que vivia com ele, a qual havia trazido de Portugal,
morrera em sua casa de “forma misteriosa”.
Querino era filho de Thomaz Joaquim de Faria Sobrinho, fazendeiro do
município de São Fidélis, província do Rio de Janeiro, e sua mãe era uma escrava de seu
pai. Querino era “pardo escuro, alto, robusto, feio, de feições grosseiras, tipo do mulato
petulante, com 22 anos de idade. Não tinha instrução, escrevendo mal”. Era “homem de
condição inferior”, tendo sempre vivido como caixeiro, até “comprar a casa de negócio
do tal Cunha”, noivo de Ignácia. “Aproveitava as íntimas relações com o amigo para
freqüentar sua casa, quando este se ausentava em viagens para São Gonçalo, São Fidélis
e Macaé”. Nestas visitas, Querino e Ignácia, “então amantes, tramaram a morte de
Cunha”.
No Monitor Campista, de oito de abril, pode-se ler que, no inquérito do processo
criminal instaurado para apurar o caso, logo após Cunha ter encontrado a
“correspondência com umas ervas”, depuseram cinco testemunhas.50 Todas afirmaram
que Ignácia e Querino “entretinham correspondência amorosa”, onde havia o registro
das intenções de “matarem Cunha através de envenenamento”. João Barreto, em seu
depoimento, afirmou que Querino ia “várias vezes à botica da Santa Casa pedir-lhe
veneno para matar ratos, bem como drogas para serem aplicadas na comida”, sem que
pudessem ser percebidas. Cirilo, empregado na farmácia de Souza Mota, segundo o
mesmo jornal, em exemplar do dia dez, afirmou em seu depoimento que Querino fora
“lhe pedir uma droga venenosa para matar um impertinente gato, que entrava toda noite
em sua cozinha”. O mesmo foi “dito” por Antonio Pinto Sampaio, caixeiro da farmácia
50
BN, Seção de Obras Raras.
38
de Ezequiel Pinto Sampaio, “mas não vendeu a Querino tais drogas por não possuir
receita médica”.
As “drogas eram aplicadas pela escrava Thereza”, mãe de criação de Cunha,
também servindo de intermediária entre os dois amantes, “entregando um ao outro sua
correspondência”. Maria Mariana, escrava de quinze anos de idade, pertencente à
Igancia, informou que:
Mas, o que este caso tem a ver com nosso assunto? Ora, o personagem que
faltava para entendê-lo, segundo jornalistas que trataram do mesmo, o personagem mais
importante da trama criminosa, era um “feiticeiro” referido nas cartas amorosas.
Segundo as cartas, Querino e Ignácia contavam com ele “para fazerem Cunha morrer,
sem causar sua morte reparo ou desconfiança”. Quem seria este feiticeiro? Segundo o
jornalista do Monitor Campista, era preciso dizer “quem são os feiticeiros”, e o que é o
feiticeiro em Campos.
É certo que, com administração dos venenos das plantas, tudo isso podem
fazer, assim como curam, com segurança e rapidez o envenenamento ou a
moléstia que produzem.
39
não dava conta da ação do feiticeiro, ele podia ajudar os amantes na tentativa de
execução de tamanho “ato imoral”, pois atos criminosos eram comuns para feiticeiros –
um deles havia matado 40 crianças de seu senhor, arruinando-o! Afinal de contas, o
feiticeiro possibilitou uma trama que, sem ele, possivelmente não teria ocorrido. O
culpado era o feiticeiro, pois somente ele tinha os poderes para que o crime fosse
concluído. Tal figura, poluidora dos puros sentimentos humanos civilizados, inimiga da
razão e da moral da boa sociedade, em virtude da alimentação dos instintos mais vis,
mais uma vez agia pela desordem e contra o projeto civilizador da boa sociedade
imperial.
51
AN, IJ1 – pacote 871, Ofícios do Presidente da Província do Rio de Janeiro.
41
52
BN, Seção de Obras Raras.
53
Para maiores informações acerca das atividades econômicas da família Werneck, ver Eduardo Silva,
Barões e escravidão: três gerações de fazendeiros e a crise da estrutura escravista, Rio de Janeiro,
Brasília, Nova Fronteira, INL, 1984.
42
missão caíram feridos”. Werneck mandou seus homens “atacarem com força total”,
logo fazendo “20 e tantos escravos rolarem pelo morro abaixo, uns mortos, outros
gravemente feridos”. Depois disso, “o tiroteio se tornou geral”, com os escravos
correndo mata adentro, largando parte das armas e dando as costas à tropa, que
continuava a atirar. “Foram perseguidos e espingardeados em retirada e em completa
debandada, por espaço de uma hora.” Conseguiram escapar.
O cair da noite e a perda da trilha dos escravos fez com que Werneck optasse por
“desfazer toda a estrutura física do quilombo”. Foi então que descobriu “grande estoque
de alimentos”:
Werneck orientou os homens para queimarem tudo aquilo que “os camaradas”
não pudessem “levar, a fim de tirar todos os recursos” dos quilombolas.
O saldo do conflito: 22 presos, sete ou oito dos quais gravemente feridos, sete
mortos, com todo o “mato rastilhado de sangue em todas as direções”. Retornaram à
fazenda de um dos capitães da missão “às ave-marias”. No dia seguinte, após uma
“noite de muita chuva”, alguns homens voltaram ao “local do quilombo para resgatar
feridos ou mortos”, e para explorarem suas imediações. Trouxeram “dois homens da
missão e mais outros dois quilombolas feridos”. Ainda faltavam ao capitão mor de “250
a 300 escravos, de um e outro sexo”, fugidos nas matas. Entretanto, o “rei e cabeça do
motim, Manoel Congo, foi preso; e seu vice-rei, morto com um tiro!”.55
54
BN, Seção de Obras Raras, documento microfilmado, p. 3.
55
O quilombo de Manuel Congo foi detalhadamente analisado por Flávio dos Santos Gomes, uma vez
que reuniu o máximo de documentos produzidos pelas autoridades sobre os mais variados aspectos do
mesmo. Ver Gomes, Histórias de quilombolas, pp. 179-321. Na nova edição, revista e ampliada, ver pp.
144-247. Para nosso trabalho, apenas esta fonte, que encontramos independentemente da leitura que
fizemos de Gomes, nos interessa.
43
escravos de que eram invisíveis, que no primeiro encontro que com eles teve
a tropa, aos primeiros tiros dados da parte desta, eles vinham com os braços
abertos oferecer-se como alvos das espingardas, e que só quando viram que
44
56
BN, Seção de Obras Raras, p. 3.
57
AN, IJ1 – pacote 867, Ofícios do Presidente da Província do Rio de Janeiro. Para outras informações
acerca da atuação do comendador Breves na política imperial, fundamentalmente na burla à proibição ao
tráfico internacional de escravos para o Brasil, ver Luiz Alberto Couceiro, “Acusações atlânticas: o caso
dos escravos num navio fantasma – Rio de Janeiro, 1861”, Revista de História/USP – Dossiê História
Atlântica, no. 152, (1o. semestre de 2005), pp. 57-77.
45
último ser bobo e vingativo”. Isso porque, avaliava Breves, tais autoridades, ao invés de
pedirem reforço policial à Corte para evitar uma possível insurreição dos escravos, se
dedicavam a se “vingarem de questões pessoais, e resolverem intriguinhas”.
A solicitação de Breves foi prontamente atendida. O ministro mandou o chefe de
polícia interino da província do Rio de Janeiro, José Caetano de Andrade Pinto,
começar as investigações sobre a “seita Dom Miguel”. Além disso, nomeou um novo
subdelegado, Eusébio da Fonseca Guimarães, que passou imediatamente a “dar buscas
nas senzalas” para encontrar objetos roubados que pudessem dar algum indício sobre o
“plano dos escravos matarem os senhores da região”. Eusébio proibiu que os escravos
saíssem à noite das fazendas de seus senhores, para que as “reuniões sinistras fossem
interrompidas”. Em suas primeiras buscas, encontrou “raízes e ervas venenosas, que
podem produzir graves incômodos de saúde”. Os “pretos encontrados com estes objetos
foram castigados, evitando o mal maior”. Tais notícias foram comunicadas ao ministro,
em “correspondência confidencial” de 21 de junho de 1857, pelo próprio Eusébio, que
ainda informou “não haver indício algum de sedição entre os escravos”.58
Mas os trabalhadores livres e moradores dos núcleos urbanos próximos àquelas
fazendas não estavam bem certos quanto à improvável insurreição. Os boatos eram
tantos que os administradores das fazendas recorreram ao novo subdelegado, alegando
que era necessário pedir, “o quanto antes, reforços para evitar as sedições dos escravos”.
Diante de tal situação, Eusébio passou a dar buscas também nas “roças”, onde poderia
encontrar mais “objetos e raízes escondidas pelos escravos”, que já sabiam de suas idas
às senzalas, bem como dos castigos que sofreriam caso seus “feitiços fossem
encontrados”. Tratou de isolar “os escravos do fazendeiro Joaquim Breves, que não têm
contato com os dos fazendeiros vizinhos, e por isso é impossível que possam entre si
estabelecer um acordo para qualquer fim sinistro”.
Eusébio havia “percebido que entre aqueles escravos havia nações rivais, apesar
da harmonia forçada em que vivem pela sujeição do cativeiro”. Mas, havia uma coisa
que unia tais escravos,
58
AN, IJ1 – pacote 867, Ofícios do Presidente da Província do Rio de Janeiro.
46
59
AN, IJ1 – pacote 867, Ofícios do Presidente da Província do Rio de Janeiro.
60
AN, IJ1 – pacote 867, Ofícios do Presidente da Província do Rio de Janeiro.
47
imperiais. Os escravos de São João Marcos “acreditavam que no dia de Santo Antonio
seria o fim do mundo”. O ministro contou que se “ouvia nas ruas da Corte semelhante
boato entre os escravos”, boato este que ia se “espalhando rapidamente por toda a
província do Rio de Janeiro”. Neste sentido, o ministro recomendava aos chefes de
polícia que “todas as investigações e práticas necessárias fossem tomadas para tão
importante objeto”.
Para além do medo que as reuniões de tantos escravos provocaram nos senhores
de São João Marcos, medo este ligado não apenas à crença nos efeitos dos feitiços por
eles aprendidos e ensinados na seita Dom Miguel, temos que lembrar que a primeira
metade do século XIX foi palco de forte influência de médicos na política imperial.
Estes médicos lutavam pelo prevalecimento de suas técnicas de curar, bem como seu
saber científico, em uma sociedade que acreditava, desde os tempos coloniais, no poder
de curandeiros e de feiticeiros. Vimos que altas autoridades imperiais estavam
diretamente envolvidas na questão da repressão da “seita Dom Miguel”, e de todas as
reuniões de “escravos feiticeiros”. Não pensemos que foi “apenas” a influência do
poderoso senhor e traficante de escravos José de Sousa Breves o motivo para tamanho
interesse, bem como de outros perfis de senhores de escravos. Aquelas autoridades se
reuniam, muitas vezes, em grupos sociais que se estabeleciam na Corte para discutirem
e divulgarem para membros da elite imperial a “medicina científica”. Ao longo da
segunda metade do século XIX, as críticas de “científicos” aos “feiticeiros” foram
organizadas em periódicos, tais como o Correio Paulistano e a Província de São Paulo.
Notícias de desmerecimento dos feitos dos “feiticeiros” eram, em grande medida,
escritas em tom de acusação moral aos mesmos.61 Em notícia de 30 de novembro de
1879, por exemplo, o Correio Paulistano publicou o caso de um flagrante a uma
“sessão de feitiçaria”, com “42 pretos livres e escravos, e 11 pretos minas”. “O
celebrante, no ato em que foi preso”, continua a notícia, “era escutado com atenção pelo
piedoso auditório”. A riqueza de detalhes afirma o fascínio que tais práticas chamadas
de “feitiçaria” provocavam naqueles “homens de ciência”. O jornal termina a notícia
com a acusação de que a cena era uma “indecente comédia”, sendo os escravos que dela
participaram presos e castigados.62
61
Sobre isso, ver Schwarcz, Retrato em branco e negro, pp. 125-128.
62
Apud. Schwarcz, Retrato em branco e negro, p. 126.
48
Considerações finais
Entre o período da produção de acusações de feitiçaria pela Inquisição
portuguesa, “período colonial”, e o do Código Penal de 1890, “República Velha” ou
“Primeira República”, há um período no qual as acusações de feitiçaria no Brasil
escaparam de códigos e regras formais, ao que nos parece, porém não do interior das
instituições do Estado, nem mesmo às notícias de jornal. É parte dessa história que
pretendemos contar. Acreditamos, com esse estudo, poder demonstrar como, já no
século XIX, um segmento central da elite imperial escravista do sudeste acreditava no
feitiço, antes mesmo das leis republicanas anteriormente apontadas virem a existir, antes
mesmo do Brasil virar uma república, em 1889. Procuramos, assim, recuperar casos de
acusação e crença na feitiçaria no sudeste cafeeiro da segunda metade do século XIX,
analisando-os segundo: a natureza da acusação, a sociedade que a sustenta e produz,
bem como a junção da antropologia com a análise histórica. Além disso, procuramos
deixar claro que utilizamos o termo feitiçaria para designar a crença no uso de poderes
mágicos para produzir o mal, como, de certa forma, aparece nos documentos
consultados.
A crença no feitiço perpassava todas as condições sociais, como constatamos na
“correspondência reservada” de ministros da Justiça e chefes de polícia, localizadas
tanto no Arquivo Nacional, como no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, bem
como em notícias na imprensa e até mesmo ao longo das investigações de um processo
criminal, no Império do Brasil. A cada documento que encontramos sobre feitiços e
“reuniões para fins ocultos”, recuávamos ainda mais no tempo marcado pelo estudo de
Maggie.63 Neste estudo, sua preocupação foi conhecer e analisar os critérios e os
procedimentos utilizados na aplicação das leis que legitimaram a crença na feitiçaria,
segundo o Código Penal de 1890. Nesse artigo, procuramos demonstrar como a crença
na feitiçaria na Luso-América, minuciosamente documentada e narrada por Mello e
Souza64, se manteve após a emancipação política em relação ao território português, em
1822. O fato de se constituir em um corpo burocrático e jurídico distinto à antiga
metrópole não implicou que os homens que lutavam pelo poder no Império do Brasil, ao
redor de seu monarca Pedro, legitimassem os efeitos dos feitiços na vida social da nova
“nação civilizada”.
63
Maggie, Medo do feitiço.
64
Mello e Souza, O Diabo e a Terra de Santa Cruz.
49
65
J. R. Crawford, Witchcraft and sorcery in Rhodesia, London, Oxford University Press, 1967.
66
Peter Fry, Spirits of protest: spirit-mediums and the articulatino of consensus amongst the Zezuru of
Southern Rhodesia, London, New York, Melbourne, Cambridge University Press, 1976.
67
Crawford, Witchcraft and sorcery in Rhodesia.
50