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ÁRIA DE OPERETA:​ ANÁLISE HARMÔNICA, MELÓDICA E FORMAL

Ivan Daniel Barasnevicius


Instituto de Artes da UNICAMP – ibarasnevicius@gmail.com

Paulo José de Siqueira Tiné


Instituto de Artes/UNICAMP - paulotine70@gmail.com

Palavras-chave: Análise harmônica e melódica, Ária de Opere​ta, Guinga.


música brasileira

1. Introdução

É fato que uma das mais importantes peças do processo de elaboração do disco
Cheio de Dedos​, ​lançado em 1996 através da Gravadora Velas pelo cantor, violonista e
compositor Guinga, ​foi o produtor Paulinho Albuquerque, que também foi um diretor,
iluminador e advogado, sendo que a partir do final dos anos 1970, esteve envolvido com
diversas gravadoras e editoras. Ou seja, antes do trabalho com Guinga e com a Gravadora
Velas ao lado de Ivan Lins e Vitor Martins, Paulinho Albuquerque esteve ligado à diversos
outros projetos envolvendo produção musical, mas é fato que teve um papel fundamental
não só na elaboração deste disco, mas no começo da carreira do compositor Guinga de
forma geral. Segundo depoimento dado pelo pianista Itamar Assiere, responsável pela
gravação do piano na faixa ​Ária de Opereta,​ o convite para participar deste projeto veio pelo
próprio Paulinho, já que Itamar participou da maioria das produções dele tanto da época em
que trabalhou com a Gravadora Velas como depois de ter fundado seu próprio selo, o
Carioca Discos.
Itamar ressalta que, para o disco ​Cheio de Dedos,​ inicialmente iria gravar a faixa
Inventando Moda, p ​ ara que este arranjo tivesse piano e violão, mas que durante o processo
de gravação foi muito difícil sincronizar os dois instrumentos, já que não foram gravados
juntos em uma situação em rubato. Paulinho, que costumava ser bastante sistemático em
suas produções, gostava de gravar tudo com metrônomo, a não ser que fosse uma situação
como a descrita. Incomodado com a imprecisão rítmica, achou melhor complementar a
gravação com saxofone, deixando o piano de lado, caso contrário Guinga teria que refazer a
sua parte. Assim, acabou ficando acertado que Itamar faria a faixa ​Ária de Opereta para es​te
disco, inicialmente com teclados. O pianista ressalta que Paulinho mostrou uma prévia da
gravação, já com a voz de Ed Motta e um violão gravado por Guinga. Itamar não soube
precisar se Paulinho Albuquerque enviou para ele uma fita antes da gravação para que
pudesse se preparar ou se harmonizou a música diretamente no estúdio, ou ainda se Lula
Galvão disponibilizou uma cifra, já que Guinga não escreve as suas composições. De
qualquer forma, evidencia que a percepção foi a ferramenta mais importante para a sua
performance, tanto pela ausência de partituras quanto pela dificuldade de se cifrar as
composições do violonista.
Neste período, era comum que Itamar trabalhasse com Paulinho em discos de
samba no Estúdio Discover, no Rio de Janeiro, onde o ​Cheio de Dedos foi gravado,
principalmente usando teclado, já que este estúdio não possuía um piano disponível. Porém,
como o pianista Chano Dominguez havia sido convidado para gravar na faixa ​Rio de
Exageros​, também presente em ​Cheio de Dedos​, a produção reservou duas sessões na
Companhia dos Técnicos, antigo Estúdio da RCA, que segundo Itamar, era um dos poucos
lugares, naquele contexto, onde se poderia ter um bom piano disponível. Como o produtor
não teria ficado satisfeito com a introdução que havia sido composta com teclado, onde
Itamar fazia uma citação de ​Carmen​, solicitou que Itamar elaborasse uma outra opção de
introdução com piano, para ser gravada na Companhia dos Técnicos. Ainda segundo Itamar,
no processo de produção dos trabalhos do Guinga, tudo partia do violão dele. Primeiro se
gravava a sua performance, para que depois novas idéias fossem adicionadas. Na peça
aqui analisada, ​Ária de Opereta​, não existe um violão na gravação final, mas Itamar usou
para elaborar a sua parte no piano um violão guia que Guinga havia gravado mas que não
entrou no fonograma resultante. Sobre as aberturas dos acordes utilizados em seu
acompanhamento, Itamar em seu depoimento destacou ter seguido a harmonia proposta por
Guinga a partir da guia de violão gravada anteriormente, mas que foi totalmente responsável
pelo desenvolvimento da introdução presente no arranjo.

2. Análise formal

A peça ​Ária de Opereta é uma parceria de Guinga e do letrista Aldir Blanc.


Entretanto, é possível perceber que a faixa foge um pouco desses padrões idiomáticos
frequentemente seguidos por Guinga em suas composições e comentados anteriormente.
Embora seja possível encontrar no songbook o acompanhamento escrito para o violão, na
gravação desta faixa presente no disco ​Cheio de Dedos temos o piano como instrumento
principal de acompanhamento, gravado por Itamar Assiere e um arranjo de cordas que foi
escrito por Leandro Braga, além da participação de Ed Motta na voz. Nesta gravação,
presente no disco “Cheio de dedos”, não existe um violão gravado por Guinga, que apenas
realizou alguns vocalizes. O arranjo analisado segue a seguinte estrutura:

Introdução Parte A Parte A’ Parte B Parte A’’ Parte B coda

Em linhas gerais, a estrutura formal deste arranjo segue o seguinte plano: A


introdução foi feita apenas com o piano no formato de melodia acompanhada. Na primeira
parte A temos o voz fazendo a melodia principal e o piano fazendo o acompanhamento de
maneira bem livre. A parte A’ começa de forma parecida com a anterior, porém no final
entram as cordas escritas por Leandro Braga. Na parte B, podemos encontrar também o
acompanhamento do piano e as texturas produzidas pelas cordas. Após a parte B, temos
uma repetição da parte A, porém sem a letra no início, que foi substituída por vocalizes. Na
sequência, temos a parte B novamente, e uma coda feita somente com o piano. ​Entretanto,
em nossa investigação, não vamos analisar a introdução ou a coda, passando assim
diretamente para a análise das duas partes principais da peça.

3. Análise harmônica e melódica

A peça será fragmentada de forma a facilitar a visualização dos elementos


utilizados. Como uma forma de melhor compreender os elementos presentes na peça ​Ária
de Opereta, i​ rei realizar sempre que viável a análise da melodia e de suas ornamentações,
sendo esta peça totalmente tonal. E, de forma geral, a melodia de ​Ária de Opereta possui
em sua elaboração diversos saltos e abundante uso de cromatismos. Vamos ao primeiro
fragmento:

Fragmento 1 de ​Ária de Opereta


O primeiro fragmento começa com o I, na tonalidade de Dó maior. O segundo
acorde, Em7, pode ser analisado como III, cuja escala-acorde é o frígio. O terceiro acorde,
B/E, é analisado aqui como V/III, e podemos encontrar na melodia neste momento as notas
fá#, mi, sol e dó, respectivamente 5J, 4J, 6m e 9m de si, o que configura o modo mixo
9b/13b para este acorde. Nestes quatro primeiros acordes, é interessante observar o baixo
pedal em mi, o que gera inclusive o baixo na 4J no terceiro e quarto acordes. No quarto
acorde, B7(9b)/E, a escala é a mesma do terceiro, ou seja, mixo 9b/13b. Logo no primeiro
compasso, temos um salto de 7M, entre as notas Dó e Si, realizado através do anacruse.
Posteriormente, a melodia faz uma nota de passagem cromática entre a 7M e 6M da escala
do acorde do momento, através das notas Si-Si bemol-Lá, sendo que o Si bemol pode ser
considerada uma nota de passagem cromática. Na sequência temos as notas Si e Lá,
realizando outro salto de sétima, atingindo a nota Lá, que é a 4J do acorde Em7. A partir
deste Lá, temos novamente um movimento cromático, porém partindo da 4J em direção à
3m do mesmo acorde, representado pelas notas Lá, Lá bemol e Sol, sendo que o Lá bemol
pode ser considerada como um nota de passagem cromática. O Ré sustenido no final deste
compasso pode ser considerado como uma antecipação do compasso seguinte, já que não
faz parte nem do acorde e nem da escala definida para o ​momento, que é Mi Frígio, assim
poderá ser analisado como 3M do acorde B/E. ​No terceiro compasso desse segmento
podemos encontrar novamente um grupo de notas realizando uma bordadura, representado
pelas notas Mi, Sol e Dó, e que se direciona para o Ré sustenido do compasso seguinte,
que é a 3M do acorde B7(9b)​/E. Ou seja, de maneira geral, es​te fragmento é composto por
uma sequência de 3 motivos, sendo que final, onde poderia estar uma quarta repetição
deste motivo temos uma nota longa utilizada para finalização deste segmento. Importante
observar também que embora tenham diferenças quando observadas de perto, o primeiro e
segundo fragmentos de forma geral preservam um contorno semelhante.

Fragmento 2 de ​Ária de Opereta

O segundo fragmento se inicia com o acorde E7M. Vale observar também que
temos novamente um cromatismo, desta vez a partir do Ré#, que está na cabeça do
compasso, indo em direção ao Ré natural e depois Dó#, sendo o Ré natural apenas uma
nota de passagem. Neste momento, é possível observar uma picardia no acorde E7M.
Como se pode observar, no caso do E7M citado, temos um caso de picardia na Mediante
Maior. Onde a princípio deveria estar o acorde Em7, Guinga utilizou o E7M, seu oposto,
portanto. E como este acorde é abandonado logo em seguida, temos um procedimento
muito próximo ao citado por TINÉ (2011) para o caso da picardia no acorde C7M existente
na peça ​Luiza, ​de Tom Jobim. O próximo acorde, A#m7(5b), pode ser classificado como
SubII/II, sendo que a sua escala é o lócrio 9. Sobre esta tipologia de acorde, TINÉ (2011)
afirma que:

Como extensão do substituto de dominante (subV), há a possibilidade de


um acorde substituto de subdominante (“subII”), ou seja, uma tétrade menor
com 7a. menor ou meio diminuta correspondente ao subV (...). Observe que
as cadências obedecem à lógica do subV, ou seja, quando o substituto de
dominante prepara um acorde maior do campo, ele corresponde à tipologia
do modo alterado e, portanto, o substituto do II é um acorde meio diminuto
e, quando o subV substitui a dominante de um acorde menor do campo, ele
corresponde à tipologia do modo mixo 11+ e o subII correspondente é um
acorde menor com sétima menor. Entretanto, como “tudo que serve ao
menor serve ao maior”, pode-se utilizar a cadência ​sub II V que se dirige a
um acorde maior no campo com os acordes menor com 7a. (dórico) e
dominante (mixo 11+), o que, de fato, é muito mais comum (TINÉ,
2011:105).

Entretanto, vale ressaltar que este acorde, no contexto da peça, não está em
uma situação cadencial conforme descrito na citação acima, porém a classificação SubII/II
seria uma forma de situar este acorde dentro da tonalidade. O próximo acorde, E7(b13),
analisado como V/VI, tem o modo mixo 9b/13b como escala-acorde. De maneira geral, é
comum que esta escala seja escolhida para dominantes secundários que se direcionam
para acordes menores, que é o que acontece neste caso:

Como se pôde observar, às dominantes de acorde menor no campo (II, III e


VI) podem ser adicionadas as seguintes extensões ​9- ​(nona menor) e ​13-
(décima terceira menor) e às dominantes de acorde maior podem ser
adicionadas as seguintes extensões ​9 ​(nona maior) e ​13 ​(décima terceira
maior). O VII grau não recebe, a princípio, dominante individual por não
possuir, nesse momento, estabilidade, devido à ausência de 5ª justa.
Concluímos com isso que o modo que “gera” a dominante de acorde menor
no campo harmônico é o mixo9-(13-), ou seja, o modo do V grau da escala
menor harmônica, e o modo que “gera” a dominante de acorde maior no
campo harmônico é o mixolídio, ou seja, o modo do V grau da escala maior.
Isso significa que as dominantes secundárias são geradas pelos campos
harmônicos das tonalidades vizinhas e relativas (da tonalidade principal ou
vizinha) no Círculo das Quintas. Por exemplo: o acorde A7(9-)13-, ​V/II ​(V do
II), é gerado pelo modo de LÁ mixo9-(13-), quer dizer escala de Ré menor
harmônica começada pelo V grau. Esta tonalidade (Ré menor) é relativa de
FÁ maior, vizinha de DÓ no Círculo das Quintas. Se conferirmos cada
dominante e sua proveniência, verificaremos a verdade da colocação
anterior. Tal fato corrobora com a ausência de dominante para o VII grau:
essa dominante (no caso F#7) seria gerada pelo V grau de SI menor,
tonalidade que não é vizinha nem relativa de tonalidades vizinhas no Círculo
das Quintas de DÓ maior (TINÉ, 2011:20).

O acorde Am7(9), que é o VI, tem como escala-acorde o modo eólio. O próximo
acorde, E7(9b)/A, apesar de manter o pedal na nota lá, pode ser analisado como V/VI,
sendo que sua escala também é o modo mixo 9b/13b, apesar de diferentemente do acorde
de mesma tipologia citado há pouco, não se resolve no VI. Nesta segunda frase, podemos
observar um salto de 7M entre as notas Mi e Ré Sustenido através de um anacruse. Logo
depois temos um cromatismo entre as notas Ré Sustenido, Ré e Dó Sustenido, ou seja, a
exemplo do que acontece no início da primeira frase, entre a 7M e 6M da escala do acorde
do momento, que é Mi Lídio, porém com uma nota de passagem cromática entre elas, que é
o Ré natural. Entre o final do primeiro compasso deste segmento e o início do segundo
podemos observar novamente um salto, porém de 6M. Na sequência, temos as notas Dó e
Sol#, respectivamente, 6m e 3M do acorde E7(13b). Posteriormente, temos as notas Lá, Dó
e Fá que vão compor uma bordadura, que se direciona para o Sol#, 3M do acorde E7(9b)​/A.
e que é bastante próxima em termos de contorno com a que se pode encontrar no final da
primeira frase. Vamos ao terceiro fragmento:
Fragmento 3 de ​Ária de Opereta

No início do terceiro fragmento, encontramos o acorde Dm7(11), cuja


escala-acorde é o modo dórico. O próximo acorde, G#°(b13), é de tipologia diminuta.
Seguindo o que é sugerido por (TINÉ, 2011), este acorde pode ser analisado como V°9,
sendo que a sua escala-acorde é o modo lócrio 4°/7°1. Este acorde, na verdade, substitui o
B°, que tem como escala-acorde o modo lócrio 6M2, Sobre as características principais
deste tipo de acorde, é interessante observar que (TINÉ, 2011)​:

Ian Guest apresenta em seu livro “Arranjo” três funções para o acorde
diminuto: as funções dominante, auxiliar e a cromática. Para alguns deles
eu dei um segundo nome a fim de se especificar melhor sua função. Assim
como o acorde dominante é aplicado como preparação dos demais graus do
campo harmônico, o acorde diminuto pode fazer o mesmo. Neste caso, o de
função dominante, o acorde diminuto sempre acontece ½ tom abaixo do
acorde “alvo” que pode ser antecedido por seu diminuto individual ou ele
pode acontecer após o alvo. Nesses dois casos o diminuto sempre ocorre
nos tempos ou compassos fracos do ritmo harmônico (TINÉ, 2011:30)

A primeira seção desta peça possui 16 compassos em cada uma das


repetições. O acorde G#°(b13) acontece no décimo compasso desta seção, ou seja, em um
compasso fraco do ritmo harmônico, ​assim como descri​to acima. Como a tonalidade desta
seção é Dó maior, a princípio este acorde poderia ser analisado como um dominante
secundário do VI, sendo analisado então como V°9/VI. ​En​tretanto, observando a sequência
dos acordes presentes nesse trecho, é possível perceber que o acorde diminuto em questão
não leva ao VI, e sim para uma forma alterada do primeiro grau, no caso um C7/G, que
possui função V/IV. Assim, parece mais adequado analisar o acorde como uma rotação do
B°, porém com 11J, sendo que o B° tem como escala-acorde o modo lócrio 6M. O próximo
acorde, C7/G, pode ser analisado, como descrito acima, como V/IV. Este acorde, C7/G,
prepara o Fm6, cuja escala-acorde é Fá dórico7M3. Existem diferentes análises sobre este
tipo de evento harmônico. Sobre este acorde, ressalto que:

No campo harmônico maior, o quarto grau, que possui função


subdominante, é um acorde maior. Porém, existe também a possibilidade,
neste mesmo ponto, de se usar um acorde menor. Tal acorde é conhecido
como subdominante menor. Normalmente, tal acorde vem acrescido da 6M
ou 7M, mas em alguns casos podemos encontrar o subdominante menor
com 77m (BARASNEVICIUS, 2009: 59)

Como é possível verificar, no caso do acorde analisado, podemos encontrar o Lá


bemol, que é a 3m de Fá, e o Mi, que é a 7M de Fá. A presença destas duas notas
caracteriza a escala-acorde como fá menor melódica, ou seja, está em consonância com o
que é citado no texto acima. ​Vale ressaltar que esta abordagem, influenciada pelo que
Arnold Schoenberg diz a respeito deste tipo de acorde em seu Tratado de Harmonia, não é
a única possibilidade de análise para este tipo de acorde. TINÉ (2011), classifica esta
1
​Sétimo grau da escala de lá menor harmônica. Vale ressaltar que em diferentes métodos este modo
possui nomenclaturas diferentes. (TINÉ, 2011) chama este modo de Lócrio diminuto, entretanto me
parece que a nomenclatura adotada aqui é mais adequada. U​tilizei esta nomenclatura em outros
textos de cunho didático lançados anteriormente (BARASNEVICIUS, 2009). En​tretanto, deve-se citar
que existem outras possibilidades de nomenclatura também difundidas. É possível também
(GOODRICK, 1987) classificar este modo , por exemplo, de “Altered Dominant bb7”.
2
Segundo grau da escala de lá menor harmônica.
3
Em diferentes métodos, este modo pode aparecer simplesmente descrito como menor melódica, já
que se trata do primeiro modo do primeiro grau desta escala.
situação como sendo um Empréstimo Modal​, ​ou seja, ​o Fm6 pode ser interpretado como um
acorde emprestado da tonalidade de Dó menor. Assim, pode-se verificar que se trata da
abordagem mais comum para estes casos, conforme descrito acima, ou seja, quando é
utilizado um acorde do tom menor dentro do contexto maior.
Neste terceiro fragmento, podemos observar novamente no anacruse um salto
de sétima, porém desta vez um salto de 7m, seguido por um movimento cromático entre as
notas Sol, Sol bemol e Fá, sendo que o Sol bemol é uma nota de passagem cromática neste
contexto. É importante ressaltar a antecipação representada pelo Sol sustenido no final do
primeiro compasso deste segmento, já que não faz parte da escala de acorde do momento,
e sim do material do compasso seguinte. No final deste segmento, é possível encontrar um
cromatismo descendente, realizado através das notas Dó, Si, Si bemol, Lá e Lá bemol,
também de forma distinta do que se pode encontrar em trecho similar dos segmentos
anteriores, sendo que as notas Si e Lá bemol podem ser analisadas como notas de
passagem cromáticas, sendo que o Lá bemol poderia ter uma análise alternativa, pois pode
ser considerado também como uma antecipação da 3m do Fm6 seguinte. Vamos agora para
o quarto fragmento, que finaliza a primeira parte da peça:

Fragmento 4 de ​Ária de Opereta

O acorde Am​/E, é aqui analisado como VI. Na sequência, ​temos o Am7M​/E, cuja
escala-acorde é o dórico7M4, e depois ​Cadd9/E, analisado como I. Depois temos o acorde
B7(9b/11+), que tem a função de V​/III, e no final da par​te A temos uma resolução de certa
forma inesperada em um acorde maior no II, que acontece através de uma picardia, ou seja,
quando o grau é atingido com a terça alterada, em sentido oposto ao existente no campo
harmônico, sendo abandonado logo após ter sido atingido. Assim, como se pode observar,
na parte A de Ária de Opereta, apesar da utilização de alguns dominantes secundários e da
sua finalização no acorde maior no segundo grau, de forma geral este trecho
predominantemente está dentro da tonalidade de Dó maior. É interessante observar que
este segmento é bastante diferente dos três anteriores em termos de contorno. No início
deste segmento, temos um salto de 4J, logo depois temos um intervalo de 3M. Observe a
relação com a mudança das cifras: no primeiro círculo, o primeiro movimento termina na
fundamental do acorde, no segundo, o movimento termina na 7M do mesmo. No terceiro
compasso, é importante observar uma quebra do esquema motívico proposto pelas frases
anteriores. Posteriormente, iremos perceber que no final da parte B acontece um movimento
semelhante. Na sequência vamos prosseguir analisando a melodia da parte B:

Fragmento 5 de ​Ária de Opereta

4
Essa opção é considerada aqui por ser o modo com menos notas evitadas disponível.
Do ponto de vista harmônico, esta seção pode ser considerada menos estável
do que a primeira, o que pode certamente ser considerado como um elemento de contraste
entre as partes. Assim, a parte B começa na tonalidade de Si bemol e termina em uma
tonicização no acorde B7M, o que pode viabilizar duas possíveis análises, como veremos
logo mais. O primeiro acorde dessa parte, Bb7M​/F, analisado aqui como I do novo ​tom, Si
bemol, foi atingido sem nenhuma preparação modulatória prévia. Entretanto, é possível
fazer uma analogia com o processo da Picardia, pois o que seria o VII do tom inicial da parte
A, um acorde meio-diminuto, aparece totalmente alterado para um acorde maior com sétima
maior. Porém, não encontramos nessa sequência, os processos de digressão ou modulação
propriamente ditas conforme descrito anteriormente. O que se pode encontrar nesse trecho
é uma sequência quase total de acordes dominantes: logo depois do acorde Bb7M​/F, ​temos
o acorde G7(11+)5, analisado aqui como V​/II e logo depois o acorde Eb7M/G, analisado
como IV. Na sequência, ​temos um acorde D7(b13), considerado aqui como V​/VI.
Neste quinto segmento, primeiro da parte B, podemos observar algumas
recorrências: A melodia se inicia na 7M do acorde Bb7M, sendo que podemos perceber a
repetição da nota lá, que funciona neste ponto como uma antecipação, recurso este que
será repetido outras vezes como poderemos perceber adiante. Podemos perceber também
neste trecho um movimento cromático entre as notas Lá, Lá bemol e Sol, sendo que o Lá
bemol pode ser classificado como uma nota de passagem cromática. No acorde Eb7M(6),
onde a nota Ré representa a 7M deste acorde, não temos a repetição da nota como no
começo deste segmento, mas temos novamente o intervalo de 7M na cabeça do compasso,
assim como novamente um movimento cromático, desta vez entre as notas Ré, Ré bemol e
Dó, sendo que o Ré bemol é uma nota de passagem cromática. Vale ressaltar também que
os dois fragmentos da melodia presentes neste segmento são similares, estando apenas
transpostos umas 4J acima um do outro, com exceção da primeira nota. Vamos agora para
a análise do sexto fragmento:

Fragmento 6 de ​Ária de Opereta

Es​te fragmento se inicia no ​Db7(9), que ​traz algo de certa forma inusitado em
sua estrutura: apesar de ser analisado aqui como SubV​/II, sua escala-acorde é mixolídio, e
não mixo 11+ ou al​terado, como frequentemente acontece nestes casos. Analisamos esse
acorde como sendo mixolídio devido ao uso na melodia da nota Sol bemol, 4J de Ré bemol.
O próximo acorde, E7(9), pode ser considerado aqui como subV​/IV, sendo que o seu modo
é o mixo11+. Na sequência, o acorde ​Eb7(9), será analisado aqui como ​subV/-VII, sendo
que a exemplo do que acon​tece com o acorde anterior, também tem como escala acorde o
modo ​mixo11+. Consideramos es​ta possibilidade de análise como a que melhor se encaixa
neste caso em particular, já que efetivamente o acorde Eb7(9) se direciona ao Ab7(9b), que
como veremos a seguir, é o -VII. Entretanto, ​é impor​tante ressaltar que caberiam para este
caso pelo menos duas análises alternativas, já que o Eb7(9) poderia ser considerado o
IVblues, ou ainda como SubV​/III​, mas consideramos que são menos adequadas estas
5
É importante lembrar que no songbook da Ed. Gryphus, neste ponto, se encontra uma cifragem
diferente para este acorde. Considerando a transposição que fizemos para esta análise, conforme
descrito anteriormente, no referido material neste ponto temos o acorde A+​/G. Entretanto, a nossa
percepção nos leva a crer, por mais que isso possa ser algo subjetivo, que a cifragem G7(11+) e a
respec​tiva análise V/II e escala-acorde mixo11+ é mais adequada.
abordagens pois não condizem com o caminho feito pela harmonia. De qualquer forma,
seria o caso de uma diferenciação mais conceitual do que prática, pois nestas três
possibilidades de análise a escala​-acorde seria mixo11+. O próximo acorde, Ab7(9b), se
direciona para o Db7(4/9), e será analisado aqui como V/-III, já que, apesar da 9b presen​te
na cifragem, tem como escala de acorde o mixo 9b​/13b, pois na melodia des​te momen​to é
possível encontrar o Mi bemol, 5J do acorde, o que seria incompatível com a escala
alterada.
Neste segmento, logo no primeiro acorde, Db7(4​/​9), podemos observar
novamente, a utilização de notas repetidas na melodia funcionando como uma antecipação,
conforme aconteceu no segmento anterior. Pode-se ressaltar também a utilização da 4J e 5J
na melodia, o que caracteriza, conforme descrito anteriormente na análise harmônica, a
configuração do modo mixolídio para este acorde. Com relação à análise melódica, vale
lembrar que este contorno não aparece anteriormente na peça. Já o fragmento existente no
segundo acorde, E7(9), traz o desenho bastante próximo aos dois presentes no fragmento
anterior, apresentando ligeiras diferenças intervalares apenas. É importante ressaltar mais
uma vez a utilização de um cromatismo, representado aqui pelas notas Fá sustenido, Fá e
Mi, sendo que o Fá natural pode ser analisado como uma nota de passagem cromática. No
último fragmento melódico deste segmento, que começa no acorde E7(9) e termina no
acorde Ab7(b9), temos uma nota de passagem não cromática caracterizada pelo Fá e
terminamos com um salto de 6m entre as notas Sol, que é a 3M do acorde Eb7(9) e o Mi
bemol, que é a 5J do acorde Ab7(b9). Vamos agora para a análise do sétimo fragmento:

Fragmento 7 de ​Ária de Opereta

No ​Db7(4/9) que dá início a es​te fragmento, é importante frisar que, assim como
o acorde ​Db7(9) ​de alguns compassos atrás, este também tem como escala de acorde o
modo mixolídio, já que a 4J está presente na melodia deste ponto. Na sequência,
encontramos o C7(9​/11+), que é V/V e possui como escala de acorde o mixo11+. No
próximo acorde, A7M ​temos o que, de certa forma, poderia ser interpretado como uma
picardia no VII. Uma eventual modulação para os espaços tonais mais distantes
normalmente é atingida utilizando uma dupla interpretação de um acorde napolitano ou de
um subV, mas estes processos não foram verificados neste trecho. Entretanto, devo
destacar que no acorde A7M acontece apenas uma picardia, não existindo digressão ou a
modulação propriamente dita, o que caracterizariam processos mais complexos envolvendo
cadências para no novo tom através dos procedimentos citados. A meu ver, a partir do
acorde G#7(9b​/11+), podemos ​ter dois caminhos de interpretação, sendo que uma
possibilidade não necessariamente exclui a outra. Em uma primeira perspectiva, o
G#7(9b​/11+) é analisado como SubV/VI, sendo que seu modo é a escala al​terada. Neste
penúltimo segmento, podemos observar no primeiro acorde novamente a utilização do
recurso da nota repetida, funcionando como uma antecipação, conforme foi evidenciado nos
segmentos anteriores da parte B. Já no final do primeiro compasso temos um movimento
cromático descendente, que se inicia na 4J do acorde Db7, Sol bemol, e vai até a 9M do
próximo acorde, C7(9​/11+). Assim, a no​ta Mi funciona aqui como uma nota de passagem
cromática. ​No final do segundo compasso, podemos verificar um sal​to de 6+ entre as notas
Si bemol e Sol sustenido, o qual, sendo enarmonizado em um intervalos de 7m, mostra uma
recorrência, já que este salto está presente na melodia em diversos pontos dos fragmentos
anteriores de forma destacada. No quarto terceiro compasso, é possível verificar um
contorno melódico parecido com o encontrado no primeiro compasso do segmento anterior,
ou seja, mais uma recorrência que acaba trazendo coesão para esta melodia. No quarto
compasso deste segmento, temos um contorno que também pode ser considerado uma
recorrência, pois apesar das diferenças entre os intervalos dos acordes, podemos dizer que
está relacionado com o fragmento evidenciado no último compasso do segmento anterior.
Neste ponto, vale ressaltar também que o material presente na melodia é essencial para
caracterizar a escala de acorde deste G#7(9b​/​11+) como alterada. Finalmente, vamos ao
último fragmento desta análise:

Fragmento 8 de ​Ária de Opereta

O acorde G7M​/D, é o VI, en​tretanto aconteceu uma digressão para que es​te VI
alterado fosse atingido, já que na tonalidade de si bemol maior o VI seria um acorde menor
com sétima a princípio. Na sequência, encontramos novamente o C7(9​/11+), que a princípio
seria V/V, possuindo como escala de acorde o mixo11+. En​tretanto, deve-se observar que
nesta progressão ele acaba funcionando como um SubV do acorde B7M, portanto o
C7(9​/11+) pode en​tão ser analisado como SubV​/-II. ​Assim, o último acorde, B7M, é
analisado como a NAP do tom de Si bemol maior, ou seja, -II. Sobre o acorde napolitano, é
importante observar que:

Tradicionalmente o acorde napolitano é a primeira inversão do acorde maior


do II grau rebaixado em meio-tom na escala maior ou menor. O nome sexta
napolitana advém do fato de na harmonia tradicional, se grafar a primeira
inversão com o número 6 (no caso IV6), já que este intervalo (6ª) acontece
entre o baixo invertido e a fundamental do acorde. Já a designação
“napolitano” é relativamente arbitrária. No caso da música popular a primeira
inversão é deixada de lado e a indicação de grau se faz com II-. Tal acorde
engendra uma cadência denominada cadência napolitana, que na música
clássica assume as seguintes possibilidades: II- I6/4 V I, II- V I, e a versão
plagal II- I (TINÉ, 2011:72).

Podemos observar que o acorde descrito na citação acima é exatamente o que


podemos observar no final da parte B, onde existe uma digressão no acorde B7M, conforme
citado anteriormente. Uma outra possibilidade de análise sugere que a partir do A7M temos
um processo modulatório para si maior, ou seja, este acorde poderia ser considerado como
o -VII do novo tom, conforme mostra a tabela a seguir:

Db7(4/9) C7(9/11+) A7M G#7(b9/11+) G7M(6)/D C7(9/11+) Badd9 B7M

subV/II V/V tom: SubV/-VI -VI (lídio) subV I I


(mixo) (mixo si (al​terada) (mixo 11+) (lídio) (lídio)
11+) maior-
VII
(lídio)
Segundo segmento da parte B de Ária de Opereta (Análise alternativa)

Assim, o G#7(b9/11+) seria considerado o SubV/-VI, seguido pelo próprio -VI,


SubV e finalmen​te o I do tom de si maior. Neste fragmento, podemos observar novamente a
repetição da nota no começo da frase, algo que já havia sido percebido no início dos
segmentos 5, 6 e 7, e que funciona aqui também como uma antecipação, conforme descrito
anteriormente, e que pode ser verificado no primeiro compasso. No final do primeiro
compasso deste segmento, observamos um contorno bastante próximo ao que acontece no
início do segmento 4, ou seja, mais uma recorrência que acaba por trazer mais consistência
à elaboração melódica. No final, podemos perceber uma frase que difere tanto ritmicamente
quando melodicamente de todo o material investigado nesta análise, mas que deve-se
evidenciar que faz todo o sentido com o que foi verificado na análise harmônica, já que os
intervalos deste trecho fazer parte da estrutura do modo Sí lídio, que é a escala de acorde
utilizada no caso dos acordes napolitanos6. Este trecho pode ser considerado como uma
recorrência do que acontece no final da parte A, já que ambas possuem características
semelhantes, embora o contexto harmônico e intervalar seja diferente.

4. Considerações finais

Como uma forma de melhor compreender os elementos presentes na melodia de


Ária de Opereta, ​procurei realizar uma análise harmônica e melódica da peça, evidenciando
suas características. Como foi possível observar ao longo desta análise, esta melodia possui
diversos cromatismos, notas de passagem, entre outros elementos típicos de figuração
melódica. Conforme ficou evidente na análise harmônica, existem grandes contrastes entre
as duas partes da peça. Harmonicamente, a primeira parte é mais estável que a segunda.
Com relação à análise melódica, também é possível verificar alguns contrastes entre os
trechos, embora o motivo principal composto por semínima pontuada e três colcheias se
mantenha. Embora harmonicamente esta peça seja bem sofisticada, passando por três tons
diferentes pelo menos, pode-se dizer que com relação à sua estrutura melódica ela seja
bastante tradicional. Pode-se perceber que existe uma quadratura bem clara, pois são duas
partes que são compostas por quatro frases cada. De forma geral, as frases são compostas
por três repetições do motivo principal, acrescido de uma nota longa no final. A última frase
de cada uma das seções possui características diferentes de todo o restante, mas que são
similares entre si com relação ao contorno.

5. Referências

ASSIERE, Itamar. Entrevista a Ivan Daniel Barasnevicius em 11/04/2018. São Paulo - SP.
Áudio por Skype.

CABRAL, Sérgio. ​A Música de Guinga​. Col. Songbook. Rio de Janeiro, RJ: Editora Gryphus,
2003.

Cheio de Dedos​. Carlos Altier de Sousa Lemos Escobar, Guinga. Gravadora Velas, Rio de
Janeiro, 1996.

LIMA, Marisa Rosa Ramires de. ​Harmonia. ​Uma abordagem prática. São Paulo, SP:
Embraform Formulários, 2011.

NETTLES, Berrie. ​Harmony 3.​ Berkley College of Music, s/d.

TINÉ, Paulo José de Siqueira. ​Harmonia: Fundamentos de arranjo e improvisação. São


Paulo, SP: Rondó, 2011.

6
No caso da primeira opção de análise harmônica descrita para este trecho.

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