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Paixao Cortes, o folclore gaúcho

e o escravizado esqúecido
Morreu em 28 de agosto de 2018, aos 91 anos, o folclorista
Paixão Côrtes, certamente a figura mais forte e representativa do
Movimento Tradicionalista Gaúcho, do qual foi destacado fundador,
no distante ano de 1947. Era homem singularmente simpático e
afável, que deixou lastro indelével na cultura rio-grandense.

Nas décadas seguintes ao fim da II Guerra, com o apoio das


autoridades públicas rio-grandenses, com destaque para os anos da
ditadura militar, o movimento tradicionalista gaúcho e seus grupos
de base, os Centros de Tradição Gaúcha – CTG -, se transformariam
no maior movimento cultural organizado do Brasil, que se espraiou
através do país, superando suas fronteiras.

Pátria do latifúndio
Paixão Côrtes nasceu em Santana do Livramento, na
fronteira com o Uruguai, região dominada fortemente pelo
latifúndio pastoril, no passado e ainda hoje. Santana do Livramento
é o segundo maior município sulino e o que mais perdeu população
na última década, devido à falta de trabalho para sua rarefeita
população.

No sul do Brasil, denomina-se de “Campanha” a


continuidade de campos de planícies e coxilhas que se estendem da
Depressão Central até a Fronteira sul – e seguem adiante no Uruguai
e na Argentina. No período colonial e imperial, o Rio Grande foi
dominado pelos proprietários das imensas estâncias e charqueadas
da Campanha e da Fronteira, umas e outras apoiadas na exploração
do trabalhador escravizado.

Tão poderosos eram os estancieiros escravistas do meridião


sulino que livraram longa guerra contra o poder central [Guerra dos
Farrapos 1835-40], em prol da autonomia e, logo, da secessão da
província sulina. Sonhavam unificar, em uma só nação, suas
propriedades pastoris-escravistas do sul da província e do norte do
Uruguai, onde eram também “senhores de baraço e cutelo”.

Pequena propriedade
A imigração colonial-camponesa alemã [1824], italiana
[1875], polonesa, etc., criaram dinâmica que ensejou – fenômeno
único no país – o deslocamento do poder da oligarquia agrária,
quando da República, em 15 de novembro de 1889, por bloco
político-social de viés pró-capitalista, modernizante e autoritário.

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O poder político se deslocou da Campanha-Fronteira, na
metade sul, para sobretudo a Depressão Central e a Serra, na
metade norte, regiões que já superavam economicamente o
Meridião nos anos finais do Império. Esse movimento, que
singularizou por décadas o RS, foi dirigido pelos republicanos
positivistas e seus principais líderes: Júlio de Castilho, Borges de
Medeiros, Flores da Cunha e Getúlio Vargas.

O latifúndio não entregou o poder de “mão beijada”. Em


1893-5, assaltou militarmente o novo poder, causando a mais
sangrenta guerra civil do sul do país: a Revolução Federalista. Em
1923, o latifúndio pré-capitalista fracassou novamente em
movimento armado que, nesse momento, reivindicava apenas uma
maior partição no poder, pois estava consciente do menor
dinamismo econômico e político diante da nova pró-capitalista.

Hegemonia industrialista
Em 1937, o golpe do Estado Novo liquidou o federalismo
nacional; fechou os partidos políticos, entre elas o Libertador, dos
latifundiários sulinos; impulsionou fortemente o industrialismo, no
Rio de Janeiro e São Paulo. Apesar de promover forte transferência
de renda do campo para a indústria, Vargas jamais atacou o
latifúndio, uma das razões da crise do padrão de
“desenvolvimentismo burguês assentado nos capitais e mercados
internos” por ele impulsionado.

Quando da deposição de Vargas, em 1945, o Brasil se


modificara fortemente. A indústria dominava a nação e a classe
operária se fortalecera. O latifúndio tornara-se mero apêndice
político do projeto imperialista de destruição da “indústria nacional
autônoma” getulista. A União Democrática Nacional nasceu como
representação do conservadorismo e a reorganização saudosista do
Partido Libertador restringiu-se à Campanha e à Fronteira sulina.

Entretanto, a ofensiva cultural do latifúndio riograndense


teve indiscutível sucesso, enquanto fracassava redondamente sua
reorganização política autônoma. O movimento tradicionalista
nasceu propondo o latifúndio pastoril como cadinho das mais
límpidas e gloriosas virtudes da população rio-grandense como um
todo.

Civilização e Barbárie
Nas suas origens, desconhecendo a história rio-grandense, o
tradicionalismo sulino empreendeu invenção de tradição
apologética e conservadora, fortemente apoiada em ideologia

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cultural platina congênere, anterior e de maior riqueza, devido ao
dinamismo superior – econômico, social e político – da economia e
sociedade pastoril uruguaia e, sobretudo, argentina.

O tradicionalismo sulino assenta-se na proposta de


sociedade apoiada em produção que literalmente não exigia
trabalho [“produção sem trabalho”], o que permitiria relações
fraternas entre fazendeiros e peões, companheiros nas atividades
lúdicas pastoris [“democracia pastoril”] e nos mesmos ideais. Teses
apologéticas celebrizadas em Facundo, Civilização e Barbárie, por
Domingo Sarmiento (1810-1888), que literalmente odiava os
gauchos argentinos.

O sucesso tradicionalista consolidou-se com a construção de


locus de encenação de sua narrativa mitificada – os Centros de
Tradição Gaúcha. Neles, os tradicionalistas realizam encenação
romântica da estância pastoril, de diversas modalidades, onde o
fazendeiro (“patrão”) fraterniza e comunga com o “capataz”, os
“sota-capatazes”, os “peões” e, finalmente, as “chinas”, na
reconstrução desse mundo idílico sem explorados e exploradores.

Limpeza étnica
A transposição das elucubrações ideológicas pastoris
platinas ao Rio Grande do Sul exigiu uma violenta maior no relativo
ao nosso passado. Ao contrario da Banda Oriental, de Santa Fé, de
Corrientes, de Entre Ríos, etc., a economia pastoril sulina não se
apoiou sobremaneira no peão, mas principalmente em
trabalhadores escravizados – os “cativos campeiros”.

Até praticamente a Abolição, o Rio Grande foi sempre terra


de cativos, não de gaúchos. Uma fazenda sulina apoiada sobretudo
no trabalhador escravizado opunha-se cabalmente à proposta
fantasiosa da “democracia pastoril” e de “produção sem trabalho”
[sem esforço e sem oposição social]. Como introduzir na fazenda
romantizada dos CTG o cativo, o tronco, a palmatória, o suor do
negro escravizado? Para manter as propostas fantasiosas de
passado latifundiário e pastoril sem contradições sociais, a
escravidão sulina, uma das mais perenes e consistentes do nosso
país, foi ignorada e desconhecida, em uma verdadeira limpeza
étnica do passado.

Para tal, o “cativo campeiro” foi negado, cedendo lugar a


um “peão-gaúcho” reconstruído à imagem e semelhança de seu
antípoda social – o “fazendeiro”. Essa metamorfose do cativo
campeiro em gaúcho idealizado, e deste último em fazendeiro,
materializou-se na bela estátua “O Laçador”, de 1958, de Antônio
Caringi, que teve como modelo precisamente Paixão Cortes,

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engenheiro-agrônomo, nas vestes de fazendeiro travestido em
gaúcho.

Representação viva do tradicionalismo


Paixão Côrtes, um belo homem, quando jovem e em idade
avançada, de abundante bigode e cabelos longos, literalmente
incorporou seu personagem, vivendo como uma espécie de gaúcho
da fronteira, renascido nos nossos dias. Foi líder paradigmático
dessa construção da tradição que, cada vez mais afastada e contra a
realidade histórica, inventou indumentárias, danças, canções,
músicas, etc. Nesse processo, até mesmo palavras inexistentes de
um linguajar gaúcho foram inventadas.

A reconstrução de um passado pastoril que saltou barreiras


sociais, geográficas e históricas inarredáveis e propôs o fazendeiro-
gaúcho imaginado como personagem quase único do passado
sulino. Lançou para as sombras do desconhecimento a história dos
trabalhadores escravizados, dos povos autóctones, do imigrante
colonial-camponês e, sobretudo, dos trabalhadores rurais e
industriais sulinos contemporâneos.

A grande razão do sucesso do movimento tradicionalista se


deve ao fato de que, praticamente desde sua origem, superada sem
retorno a proposta de hegemonia pastoril regional, o MTG foi
perfilhado gostosamente por todas as facções das classes
dominantes sulinas, com destaque para as industriais hegemônicas,
devido à sua proposta socialmente apaziguadora, da existência no
passado de um sociedade em que o lobo bebia ao lado do cordeiro,
em que o explorador andava de braços dados com o explorado.

Adaptado do artigo Paixão Côrtes e a invenção da


tradição de Mário Maestri
https://sul21.com.br/opiniao/2018/08/paixao-cortes-e-a-
invencao-da-tradicao-por-mario-maestri/

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