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Traduzido do origínal francês Pour CoM4il7'e 111 hlllie de MAQCRA VEL,

Bordas, 1974.

et~pa: L&PM Editores


tradupfo: Suely Batos
rnlllo: Adornar Vazps de Freitas
lJana Di Marco Prefácio ......................................... . 7
Renato Pinto da Silva
PRIMEIRAPARTE:OPENSAMENTODEMAQUIAVEL. ..... .. . 13

livro 1: Maquiavel em seu tempo, espectador e ator


~pítulo l : A Itália e Florença no tempo de Maquiavel . . . . . • . . . 15
.Capítulo 2: As instituições e os interesses políticos em Florença • . . 20
Capítulo 3: Nicolau Maquiavel, poütico de seu tempo . . . . . . . . . . 31
livro 2: A natureza, campo limitativo das possíveis políticas
Capítulo 1: Natureza humana e história dos homens . . . . . . . . . . . 44
Capítulo 2: A Fortuna . . • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60
Concluslo do livro 2: . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71
- Uma analogía esclarecedora . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 72
© Bordas, Paris, 1974. -"Seguir a verdade efetiva das coisas" . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75
Todos os direitos desta ediçlo reservados à
L&PM Editores Ltda.- Av. Nova Iorque, 306 Livro 3: A instauração política
90000- Porto Alepo Capítulo 1: A Virtude . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. .... .. . . . . . 80
Rio Grande do Sul
. "l Capítulo 2: As linguagens da instauração política
Capítulo 3: O Príncipe e a nação . . . . . . . . . . .
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. 94
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Impresso no Bruil
Outono do 1984 - Acerca de algumas dificuldades . . . . . . . . .. •... .. . . . . . 114

5
- O Príncipe, a nação e os consentimentos ..... ... .. ..... 116
- Naçlo maquiaveliana. Direito natural. Agostianismo ........ 122 Prefãcio
- limites ..... ...................... .......... 135
- Apêndice do Capítulo 3: Maquiavel e a Itália ............ 149
Capítulo 4 : A nação, crença e força .............. ........ 155
Uvro 4: A cruz dos políticos
Capítulo 1: Os maus príncipes ... . .... .. ........... ..... 174
Capítulo 2: Corpo político e individualidade dos homens . . . ..... 182
Capítulo 3 : Política e juízo moral .... .... .............. . 199
Capítulo 4 : A história circular ...................... .... 213
Conclusllo ..' .... . . .................. . ............ 223

SEGUNDA PARTE: ANTOLOGIA MAQUIAVELIANA .......... 231

Nota geral ........ . ...................... . .. ..... . . 233


1. Entre os escritos principais ............ . .. ........... .. 234
2. Modelos e antimodelos ..... .......... ............... 27 1
- Girolano Savonarola ................... ........... 271 Sem dúvida esta é a sorte das grandes vidas: nos homena que marca-
- Castruccio Castracani ...................... ........ 276 ram épocas, muito cedo o comentário se interpõe entre a obra e a posterida·
- César Bórgia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 281 de. Ele nJ'o tarda em ultrapassar- pelo menos quantitativamente - aquilo de
- Júlio U ...... . .... . .......... . . .......... . .... 291 que é o comentário. Mais grave ainda: toma-se autônomo e gerador de uma
- A França . . ...... .. . . ... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 294 tradição sobreposta que, apoiada em sua lógica própria, oblitera a obra de que
-A Alemanha ........•..•. • •..•..............••.• 300 é resultado, oculta-a, altera-a e faz com que ela seja perdida de vista. Nossa
3. Alguns traços da personalidade de Maquiave1 .... ... ......... 305 civilização do liVro, que imprime livros, infelizmente encoraja esta prática do
comentário. RedUndante, indefuúdamente repetida sob as diversas formas
Bibliografia . .. ...... .. ... . . . .... . ..... . .... .... .. .. 317 de comentários sobre oomentá.rios, constitui um dos perigos mais insidiosos
de qualquer ensino escolar, infernalment~ assediado pelos fantasmas esco-
lásticos. De livro em livro, de referência apressada à utilizaçlo partidária, a in-
vocação dos grandes autores desce perto de seu l.i.mite inferior: a tagarelice.
As coisas originais sio tanto mais reclamadas por esta alteraçJo con-
fusa quanto seu domín.io é mais excitante, importante para todos, portanto,
sensivelmente carregado. A história das matemáticas, por exemplo, é, tam-
bém ela, semeada de reputações usurpadas, de mexericos, de incompreen-
sões, de calúnias, de falsas novidades; mas estes avatares jamais ultrapassaram
o lirrúte das escolas; eles dizem respeito a um pequeno número de especialistas
estabelecidos em círculos e partilhando .algwls segredos. Nestes limites estrei-
tos, em que as novidades circulam e em que a exatidlo geralmente é aprecia·

6 7
da, a obstinaçlo de alguns pode bastar para restabelecer urna verdade esque- ca a seus próprios compromissos e para clarijicar o contexto contempo~eo
cida ou perdida. Não acontece o mesmo com a moral e com a política. Se de seus sucessivos engajamentos.:...Da Contra-Reforma ao processo de Moscou,
nelu as interpretações logo recobrem o originário, os clichês devem sua for- dir-se-ia, aí, como um Maquiavel que se tomou típico serviu de "projétil ideo-
ça e sua simplicidade i urgente necessidade de compreender e de poder falar lógico,.' entre os combatentes das lutas pelo poder. Ao mesmo tempo, ou su-
que todos nós experimentamos. A imagem do Epinal que se põe a viver não é cessivamente, tabu o.u "mito", como o quer Gramsci, ao dar a este mito o sen-
· gratuita; nlo é somente um erro ou urna aproximação excessiva. Ela se apóia tido que lhe dava Sorel, a imagem maquiaveliana aí viveria uma vida própria,
numa pseudo-inteligibilldade: permite pensar e acreditar. Estejamos certos claramente dinamizada por lutas que sio em sua maioria posteriores ao floren-
de uma .coisa: ao perder seu pretexto, ou, pelo contrário, ao reforçar seu im- tino, numa palavra, plenamente política.
pacto polêmico segundo as lutas do momento - de nossos sucessivos mo- Não está no meu plano, aqui, seguir assim, passo a passo, a imagem do
mentos -, esta imagem é viva nfo por uma preocupação de erudição ou de Secretário. Trata-se antes de retornar ao modelo. Portanto, que se aceite per-
exatidão mas pqr sortilégio ou por exorcismo. doar a um autor de comentário esta atitude de má camaradagem que consisti-
A autonomia relativa das imagens tradicionais em relação ao que delas ra em jamais fazer referência a outros comentadores. Ainda menos às quere-
foi a origem doravante mutilada, deveria ser o objeto da primeira advertên- las de pura erudiçlo que dividem a tradiçio maquiaveliana. Aqui jamais esta-
cia através da qual conviria prevenir o leitor. Felizmente, a linguagem nos aju- rio em questão divergências que afastam umas das outras as diversas com-
da u.rn pouco a operar urna separação necessária. Um jumento que suporta os preensões de nosso autor. EDcontrar-se-á, em compensação, o eco de interpre-
golpes sem avançar um passo e sem dar mostras da menor emoção é rígido; tações históricas - e políticas, e filosóficas - , o que é inteiramente outra
pelo que nfo é estóico~ O primeiro trabalho de informação de urna obra que coisa.
ae propusesse a iniciar ao pensamento de Zenon de Citiurn ou de Crisipo cer- lU alguns anos - somente - o retorno ao ilustre florentino tornou-se
tamente seria o de evitar, por meio de urna definição, que seu propósito se es- pOssível, bibliograficamente cômodo. Os leitores que nfo conhecem o italia-
tabeleça sobre a base desta confusão. Não se poderia fingir ignorar que ela no, italiano difícil, além disso, têm doravante i sua disposição o resultado de
está veiculada por uma tradição muito longa e que, nesta qualidade, está pre- um considerável esforço de tradução e de reunião de textos até então disper-
sente no horizonte cultural daquele que aborda a filosofia do Pórtico. sos. Reunindo dois livros publicados por Edmond Barincou o leitor poderá
•:~· .. Maquiavélico, maquiaveliano; maquiavelismo, maquiavelianismo. O con- tomar conhecimento de todos os textos de Maquiavel que o tempo nos con-
vite a distinguir é sugerido por uma precauçio análoga efetuada pela lingua- servou. A primeira destas obras foi editada pela Biblioteca da Pléillde em 1952
gem. Discretamente, se se pensa nisso, e se se quer bem considerar o enorme sob o título inexato de Oeuwes completes de Machiavel; a segunda está dis-
desequilíbrio entre a imagem útil e o modelo longínquo. De um lado, a neces- ponível sob a forma de dois grossos volumes intitulados Toutes /es lettres
sidade ·cotidiana de designar o cálculo político e o ardil e de lhes imprimir esta de Machiavel (Gallimard, 1955, coleção "Memórias do passado para servir ao
marca infamante de ser a habilidade descarada e privada de ·escrúpulos; do ou- tempo presente"). Reunindo nestas obras antigas~traduções que se esgotaram
tro, o homem da Renascença italiana, de urna verdade suficientemente com- e acrescentando a elas as suas próprias no estilo próprio daquele que melhora .
(

plexa para justiftcar uma bibliografia enorme e contraditória. as antigas, Edmond Barincou esclarece o conjunto com 242 páginas de notas,
.• o~o Não seria insano escrever um livro que teria por objeto o maquiavelis- na maiorparte eruditas e oportunas. :1! a estas obras de textos que sempre fa-
mo sem Maquiavel:. seu conteúdo seria extenso e apaixonante se quisesse ana- rei referência; utilizei as traduções tal como elas aí figuram, não tendo, senlo
Usar o emprego político que os modernos fazem da imagem - dela fizeram e muito poucas vezes, a necessidade de modiftcá-las pelo que julguei ser urna lei-
dela farlo sem· dúvída ainda por muito longo tempo - para dar urna dinâmi- tura filosófica mais exata. Evidentemente, como é necessário, se encontrará
no fun deste livro uma bibliografia francesa relativa ao florentino; também
• N. do T.: Dlferenç.- intradutíwl em português pois para rtolque e rto1cien temos so- alguns títulos entre as obras italianas cuja leitura é indispensável a todos
mente 11t6tco., No original: " •• . de 14 moindre émotion ert rtolque; il n ~~~ pas 1tolcien aqueles que desejam aprofundar as questões maquiavelianas.
pow fiUt#nt ·~

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De qualquer ponto de vista que se aborde Maquiavel percebe-se imedia- compreendo do SccroUrio Oorentlno e, atrawa dele, de alguns proble·
IUI

tamente questões de política; ao menos, não o preocupa nada que nlo seja mu maiores de nossa vida política - como de nosso pensamento filosófico -
exigido por sua reflexão sobre a política. Se, então, conforme a tradiçlo de que o gênio deste homem colocou em nosso horizonte. O tempo que nos se-
Milet, é uma certa amplitude que define o objeto "filosofia", se esta palavra para dos primeiros anos do século XVI nfo tomou caducas as enormes ques-
conota necessariimente a sistematização de um espaço que vai da gnosiologia tões que o habitaram. Os meios conceituais graças aos quais hoje pensamos o
universo político nos conduzem, ao contririo, a colocar Maquiavel entre
à ética, ~v~~ ~~o-f<;>~~ m~o ~~- Filósofos foram seus con-
aqueles que instauraram nossa modernidade. ·
temporâneos: eles assumiram o projeto filosófico n_- toíâlidade -~ ~ ~xte~­
~o.: Quem entretanto nio vê que a obra do Seêíetário tem ~ais impacto fi·
/osófUX? do que nlo tim agora - e talvez nunca tiveram - o neoplatorúsmo
de Marsile Ficin e a escola averroísta de Pádua? Nosso homem era evi<ten-
NOTAS
temente um político, como o é aquele que aplica todas as suas faculdades ao
exercício' do poder. Nlo o Poder em geral, ma~ wn governo. Por conseguinte,
1. Esta lústória ordenada do maquiavelismo está delineada, um pouco apr~
tomando por conceito-modelo a ..visão de mmdo", tal como ela foi definida
damente, sem dúvida, na obra de Georges Mounin, Mlquiavel (Clube Francês
por Lucien Goldmann, por exemplo, a tarefa daquele que expõe o pensamen-
do Livro, 1958; reeditada nas ~itions du Seuil em 1966). ~de Mounin que
to do florentino nfo ~ maia somente a de seguir os temas maquiavelianos na
empresto esta expressão. Pelo que sei, o capítulo ''Maquiavel e o maquiavelis-
ordem em que eles aparecem logo à primeira vista; ela é a de construir, não
mo" é o melhor de todos os textos que pretendem tratar da imagem política
ignorando que o subjacente, o implicado, devem encontrar uma formulaçlo, e
do Secretário e de sua utilização. Uma coisa tA'o carregada de impacto político
que o e.statuto relativo dos assuntos nela se acha modificado. Somente nesta
quanto ..o maquiavelismo" ben;t mereceria que se lhe fizesse a história: a que
condição a intenção maquiaveliana pode sem dúvida ser desenvolvida como
uma coer6ncia filosófica imediatamente reconhecida.
Mounin nos dá, animada por um pensamento de síntese, é pelo menos plau-
Inversamente, a vida de Maquiavel, pois que ela não foi a de um "filó- sível. Outros textos são somente repertórios, escolas de indiferença às idéias
sofo" de que toda a atividade tem por fim cardinal o trabalho univenitário como uma tradição universitária muito insípida sabe fabricar. Por exemplo, o
de seu "asswtto", é um enredo de acontecimentos, para nós desigualmente Maquiavel de Emile Namer (P.U.F., 1961), muito pouco esclarecedor sobre o
maquiavelismo, apesar do título prometedor de seus últimos capítulos: ..,
importantes ou significativos. O esforço de reuniio d~9ue seus textos foram
Fortuna de Maquiavel", e ..a atualidade de Maquiavel".
o objeto deixa intatas esta diversidade e esta desigual~de: as anotações de
trabalho avizinham o tratado histórico, a carta doméstica, o teatro ou A Arte A última obra da literatura maquiaveliana em língua francesa, sem dú·
vida reservada ao leitor mais amplamente iniciado, trata deste maquiavelismo
da guemz. Rica documentação que nos esclarece o homem, mas que somente
refratado na interpretação. O título desta obra é aliás significativo: "O Traba-
é necessário recomendar ao especialista. Digamos, portanto, contrariamente
lho da obra. Mllquiavel': (Gallimard, Coleçfo "Biblioteca de Filosofia",
ao rito, que não é necessário ler tudo; que é preciso entretanto ler-se mais do
1972). Claude Lefort, seu autor, percorre aí um itinerário bastante longo
que o que traz um título prestigioso: certas cartas, todos os relatórios oficiais,
a obra lingüística, o teatro... (778 páginas; do hfncipe aos anos 60), pelo qual nos conduz através de um
Guia para uma leitura ordenada de um autor abundante, tentativa de ''museu imaginário... museu barroco" {Gilles Lapouge, crônica em Le Monde,
de 4-1-1973).
compreender filosoficamente um homem que foi um verdadeiro político, e de
A amplitude de informação de Claude Lefort, acrescentada ao efeito de
compreendê-lo pela relação que ele mantém com uma história propriamente
contraste obtido pelo entrecruzamento de comentários, designa a obra como
política, eis o que me pareceu justificar Q projeto de acrescentar um Maquia-
a "Suma" atual de interpretações. Maquiavel suporta aí todas as suas leituras
vel a uma série razoavelmente diferenciada e já longa de livros de mesmo tí-
posteriores, sem se avalizar claramente alguma delas na exclusão de outras. No
tulo. Caberá ao leitor julgar se a leitura que ele vai iniciar ajudará finalmente

10 11
horizonte, se se quer; ou no debaixo do sol de todas as construções erguidas
em sua memória, por uma presença subterrânea e, entretanto, legível no tea-
tro ellsabetano, em De Sanctis, Ritter, Cassirer, Gramsci, Uo Strauss e deze-
nas de outros.

PRIMEIRA PARTE
O Pensamento de Maquiavel

-. 12
IJVROI
Maquiavel em seu tempo, espectador e ator

Capítulo 1
A Itália e Florença no tempo de Maquiavel

Do início ao fim de sua vida (de 1469 a 1527) Maquiawl conheceu


uma Florença ..republicana". Isto nfo significa que ele não tenha sido o es·
pectador de convulsões muito importantes, e que estas convuJsões em si mes-
mas nlo tenham sido as manifest.ações de transformações evolutivas profun·
das e de longa duração. Além disso, e de maneira conexa, o termo ''repúbli· ·
ca", empregado para definir a soberania política no Estado florentino exige
precisões que, indispensáveis, devem nos prevenir contra-sensos e anacronis-
mos.
Republicana: Florença nlo _pertence a ninguém. O poder florentino
--- -· -. ------=--
emana dos próprios florentinos. Nenhum senhor, nenhum bispo são seus so-
beranos. Nenhum condottieri tornou-se bastante poderoso em seu interior
· para estar em condiçfo de se apoderar do Palácio Velho.
O caso nl~. ~ ~~arnente ~. l;IDi~. entre as dezenas de unidades polí-
ticas com que conta a penfusula italiana desta época, de um Estado que con-
servou urna forma "comunal" de gowmo. Florença e Veneza são, entre·
tanto, os dois únicos grandes Estados regionais a ter conservado - global·
mente - as estruturas sociais e políticas feudais-corporativas que são suas
desde o século XIII. Dos outros grandes Estados da Península, Nápoles ain-

15

. r.
da ~ feudal, Millo é um ducado e·pertencerá aos Sforza até 1535, a Igreja pras de soberania (os genoveses, por exemplo, vendem üvomo aos florenti-
potiUi o terceiro. Os outros Estados "republicanos" s1o muito menores nos por cem mil florins em 1421) modificam os espaços e a maneira em que
do que Aorença e Veneza, a força de uma burguesia j' capitalista é neles eles estio organizados. I! sem dúvida impossível estabelecer uma carta polí-
menos importante, a atividade econômica aí está ligada a mercados mais tica exata e detalhada da Itilia deste tempo.
restritos: Luca, Siena e muitas outras são mais "cidades livres" do que Com relação à situaçio de conjunto da penfusula italiana, Florença
Repúblicas. vive entfo um regime no qual se colocam, em reunião convergente, proble·
A sobrevivência, no século XV, de sociedades de um tipo ao mesmo mas, todos importantes para quem quer compreender Maquiavel:
tempo feudal e no entanto já aberto à busca de uma base regional, senfo na· "A cidade toscana nos apresenta, portanto, o caso, quase único,
cional, coloca aos historiadores problemas reais 1 • O que de fato caracterizou a de uma grande comtma medieval que tenta se erigir em Estado territo-
evoluç!o da Itália a partir da metade do século XI1 foi um vasto e multifor- rial mesmo mantendo sua situação republicana. Os problemas que esta
me movimento de unificações parciais. Estas modificações políticas, além de situação colocava eram múltiplos: até que ponto o regime sócio-políti-
diferenças notáveis quanto i forma das constituições, tiveum no principal co, doravante consolidado e baseado nas corporações artesanais, frearia
um modelo idêntico: confisco de antigas pequenas "repúblicas" por dinas- este desenvolvimento? Qual fonna de poder o substituiria? Como se
tias de "prfucipes novos" ou extensão do território de antigos domínios se- faria frente à tendência geral de concentrar o Estado em tomo de uma
nhoriais. Numerosas pequenas comunidades medievais, cujo poder retirava dinastia principesca? As respostas que a hlstória da poderosa comwú-
sua legitimidade de uma organizaçlo social corporativa, caem nas ml'os destes dade florentina vai fornecer são tanto mais significativas quanto não
Senhores, são conquistadas ou vendidas, e uma espécie de unificação consti- há em seu seio outra fonte legítima de autoridade do que os próprios
tui a tendência de conjunto das mudanças políticas e territoriais. Esta tendên- cidadãos. Por outro lado, o jogo político que aí se instaura é livre, isto
cia i wúficaçlo deixa ainda subsistir uma grande quantidade de Estados. Do ~.desembaraçado ao máximo de interferências exteriores", .
ducado de Savóia, ao norte, à Sicüia e à Sardenha - que a Espanha aragonesa
conquistou em 1282 e em 1348 - , ~~~o~~~ ee_guena dimensão e de impor- A república que Maquiavel conhece está instalada em Aorença desde
tância var!~~l- ~d~ fazem da península ~-um' dia· sê tornará a Itália um 1293, quando a cidade se organizou sobre a base dos ordinamenti di giustizüz
~~ -~ cubos muito pequenos: m~quesado de Monferrate, condado de (atos de justiça). Estes praticamente puseram fmt, na cidade toscana, ao
Asti, marquesado de Mântua, ducado d'Este . .. Entretanto, só o Estado pon- maior conflito dos séculos XII e XIII, o último, por muito tempo, dos que
tifício ainda se divide em pequenos domfuios senhoriais minúsculos e, aliás, sacudiram a Europa. Aorença, com efeito, conseguiu nã'o escolher entre a
ef!meros. hegemonia do Papa e a do Imperador: ela esvaziou a luta dos guelfos e dos gi-
Os limites, a importância relativa dos Estados italianos slo, então, ins- belinos de seu conteúdo "internacional". Ao se apoiar nos guelfos, a burgue-
t~veis, e Florença nfo escapa à regra. Confonne a ocasião, as fronteiras ul- sia mercantil da cidade florentina instaurou seu poder contra o dos grandes
trapassam a Toscana, ou estreitam mais os muros da cidade. No meio do ter- senhores feudais que, até aí, se apoiavam num sistema social que se encon-
ritório, centros importantes resistem à ocupação, ou se libertam ou se rebelam trava quase sem alteraç§o em escala européia.
ao servir de asilo aos exilados influentes da metrople. Se as assedia muito tem- Desde o fun desta "guerra"- longa e confusa - at~ a entrada de Car-
po campanhas episódicas, saqueia-se a cidade rebelde ou trata-se com ela acor- los VIII na Itália, no mês de agosto de 1494, os conflitos que opõem as ci-
dos particulares. Ver-se-á mais adiante que a "guerra" contra Pisa ocupou des- dades da península, as alianças que elas concluem, os tratados que as enga-
t_~. ~~o uma parte n~tável da vida de MaquiaveCSipãram-se as cidades Vi- jam não concernem senão de longe às potências do outro lado dos Alpes.
zlnhu - ou mais distantes - de seu contado, que assim mudam de órbita eco- A localização das querelas e dos horízontes políticos é mesmo uma das ca-
2
nômica e política • As guerras, de decênios em decênios e confonne o seu re- racterísticas desta época: aí há dois séculos, aqueles que precederam o início
sultado, os tratados sem cessar negociados e revisados, as anexações, as com- de atividade de Maquiavel, em que as guerras da Itália são guerras italianas, e

16 17
em que os interesses em jogo são somente interesses locais. Os grandes Es- de sua morte, 1527, Roma será pilhada pelos exércitos imperiais. A Itália, um
tados nacionais em via de formação nesta época, por razões de conjuntura in- tanto subitamente, tomou-se um enorme bolo para as grandes potências ex·
tema, aliás diferentes para cada um deles, não mais movimentaram a política pansionistas da época.
das diversas cidades e não mais prolongaram suas po)(ticas próprias nas ci-
dades e nos domínios senhoriais da penfusula. O poder turco está bem pre-
~ente, é verdade, mas somente no horizonte das cidades cuja vocaçfo
é ma- NOTAS
rítima: Gênova, Nápoles e, sobretudo , Veneia. Aragão, além disso, ocupa uma
parte do que hoje se tomou a Itália; mas, na época, a Sardenha e a Sicilia não
1. Sobre a Itália da Renascença a bibliografia é, evidentemente, abundante,
.slo ainda sentidas como territórios italianos: elas são o estrangeiro para os
de uma riqueza muito grande, sobretudo em língua italiana. Encontrar-se-ão
espíritos do tempo, e sabe-se que o reatamento destas ilhas à entidade ita·
indicações a este respeito no fim do volume.
liana colocou, ainda muito mais tarde, um bom número de problemas. Fenô- 2. O contado é constituído pelo campo que circunda imediatamente a metró-
meno mais "italiano", portanto: a casa de Anjou, depois a de Aragão, a par- pole. Não há, no contado, cidade rival. Se a noção administrativa de contado
tir de 1442, pesam continuamente sobre a política de Nápoles. Mas o Im-
é sem utilidade na Itália moderna, a palavra designa ainda "o campo", onde o
pério não se manifesta mais, e a França menos ainda. camponês é contadino. Significativa herança de estruturas comunais : as pro-
Este fato, aliás provisório e relativo, de que os poderes italianos com· vincie italianas trazem o nome de sua sede. Os revolucionários franceses de
puseram um jogo bastante autônomo, ao aparecerem deste modo próximos 1790 e de 1793 nio quiseram, sabe-se, atribuir os departamentos à cidade que
e apesar de tudo solidários, trouxe consigo o nascimento de projetos e de os administra. A Itália não tem tradição jacobina e centralizadora. A melhor
sonhos. A Itália do mito pagou a esta época a forma "profética" de que ela traduç!o francesa de contado seria pays (região). O seu habitante é o campo-
se revestiu em Dante Alighieri, por exemplo (1265-1321): a de uma nação nês, assim como o contadino vive no contado.
italiana que despertaria ao se realizar. Precoce, entretanto, a Itália perma- 3. Alberto Tenenti. F7orenceà l'époque de Medieis. Flammarion, 1968, p.l4.
nece um objeto poético, assim como ela é a promessa irrealista de alguns
grandes patriotas utopistas ou aventuteTrbs, tal como Cola di Rienzo, que
tentou na primeira metade do século XIV restaurar a grandeza romana ex·
pulsando os nobres da cidade. Inspirada pelo Papa Oemente VI, que residia
em Avinhão, a aventura de Cola di Rienzo agitou durante algum tempo uma
sociedade pouco preparada para compreendê-la, e "o último tribuno de Ro-
ma" acabou lastimavelmente. Por razões econômicas e sociais que teremos
ocasião de expor mais adiante, os centros de atividade italianos são ainda con-
correntes e o porte dos interesses em causa exclui que na unidade de uma
nação seja superada a multidão de concorrências locais.
Os últimos anos do século XV vêem, portanto, uma transformação,
ao mesmo tempo quantitativa e qualitativa, nas políticas italianas: após dois
16culos de relativa ausência, a entrada na arena dos grandes Estados cuja geo-
política j4 é nacional. Maquiavel tem vinte e cinco anos quando Carlos VIII
da França penetra em Florença e aí permanece onze anos. Em três anos e
alguns meaes, ele começará suas funções administrativas e políticas. No ano

18 19
nove "senhores" (que compõem a Signorla) pertencem todos às "Artes maio-
res"; aos segundos cabe um poder menor, mas real, o que os diferencia da
imensa maioria do povo florentino, que nlo tem nenhum direito político ati-
vo. As Arti maggiori agrupam os banqueiros, os burgueses cuja atividade eco-
nômica é a mais importante fonte de lucros florentinos - industriais t!xteis e,
mais especialmente, de lã -, os mercadores, cujos negócios já ultrapassam de
longe os limites do Estado. Nas Arti minori agrupam-se os pequenos comer-
ciantes e as manufaturas ainda artesanais.
Transcrita nesta organizaçllo da vida pública em Florença, há nela uma
atitude fundamenW com relaçao à política que convém esclarecer um pouco.
O direito político nlo existe agregado ao "direito natural" da nobreza e é,
portanto, intransmissível pelos laços de sangue, embora se encontrem trans-
missões deste tipo nas Arti; o laço de sangue é aí mediatizado pela herança,
com todo o importe econômico-social que a hCrança de bens e de ativida-
des representa. Este direito nto está mais lipdo à simples "qualidade de ho-
Capírulo 2 mem". Está implicado num conjunto cuja estrutura determinante é sócio-
econômica. A constituição de tais sistemas é característica de urna organiza-
As instituições e os interesses políticos em Florença ção burguesa precoce: enquanto o organismo social ainda está próximo das
condições concretas que deram surgimento ã feudalidade, a bwguesia pré-
1293: o terreno do jogo político está delimitado por muito tempo. O
e
capitalista elabora um sistema comunal·feudal. preciso saber efetivamente
poder escapa aos nobres que, doravante, deverio, para continuar a participar que nenhuma socieda~. !ll~~~_l- ~on.ce~~u _um <ii!iito no-iual i ~i!'flples
dele, tomá-lo de outro modo sem o que,):!{Q continuam a fazê-lo em outros ~~~~_E~m~ni ~L~~~~r _t~ . reS!f~ era_sufiçilllte .P~a .!l~~L~!!!I!._Parte
sistemas feudais corno as Senhorias. O poder nfo é, no entanto, devolvido ao ~ soberania política deste}.!:!lar. A categoria da vida pública que nós chama~
povo florentino. Os ordinamenti di giustizia, que doravante regulamentam o mos política, e que será um instrumento preparado muito mais tarde com a
mecanismo do exercício dos direitos políticos na cidade, afastam assim, de idéia de nação que llie servirá de suporte, ainda não está elaborada em sua au-
um lado, os nobres, e, de outro, a maior parte dos assalariados e artesãos. Na tonomia relativa. Quando, durante os séculos XIV e XV, começam a se cons-
tituir noutros lugares Estados com base nacional - como, por exemplo, a
época em que o capitalismo está em via de formaçio nas cidades italianas,
França de Luís XII - , as estruturas herdadas do pré-capitalismo slo um en-
em que mutações qualitativas se sobrepõem a um forte aumento do volume
trave ao desenvolvimento das próprias forças que os produziram. ligadas
de negócios que são tratados em Florença, em que setores inteiros da ativi-
como o sfo a estruturas análogas em outras cidades da península, não tardam
~de ec:o~.~e!D uma irnportãnci! sem. ~mpa!~Çio com ~9.1!! ti-
a interditar o desenvolvimento ulterior dos negócios e das indústrias, e sfo as-
nham até aí, os proprietários de fábricas têxteis, os comerciantes e os ban-
-se·aíribuem-~·exercíêio do poder político. Reunidos em ~rpo~ sim uma das causas do declínio das cidades comtmais e do crescimento corre-
queiros
lativo do número de Senhorias. Por outro motivo, elas sfo um lugar de ten-
ções de ofício - em "artes" -,eles governam a cidade ou, mais exatamente,
sões onde se agitam, num movimento freqüentemente subterrâneo, forças que
partilham um poder que propriamente pertence ao "ofício" de que fazem
pouco a pouco dfo um conteúdo burguês às Comunas, apesar dos entraves
parte. Uma ruerarquia destes "ofícios", algum~ vezes variável segundo as in·
da feudalidade corporativa. Nfo podendo sair de um sistema que ela mesma
fluências e as forças em presença, os reparte em dois grandes grupos: os Arti
maggiori e os Arti minori. Cabe aos primeiros o poder.supremo na cidade: os

20 21
enpndr ou, a burguesia de negócios o esvazia de seu conteúdo primitiv
o, çlo sistemática das engrenagens do Estado permaneceriam forçosamente abs-
1 tratos.
como se o v! com a ascendo dos M~dici, por exempl o •
O ..tumulto -~os CiC?mpj' ~~ e_I!\_J37!! , é sem dúvida o acontecimento
3
jNÕs tempos que preocdein· õae Maquíavel, o "direito público" florenl is-
1
tino apresenta entfo algumas características que é preciso não desconheocti mais importante de todos aqueles que acentuaram as características comuna
ca-
Antes de tudo, ~ um pacto de direitos privados, isto é, de privi-légios - palaL burguesas do conjunto das instituições florentinas, em detrimento de suas
lado, é pela referênc ia implíci ta ou
vra que designa a lei privada, a lei-para-um-grupo:·Assim como, na atividad
e racterísticas comunais-feudais. Por outro
que con- explícita a ele, principalmente, que a burguesia florenti na infletiu em seguida
comercial, meu lucro é para ti urna perda, meu direito político é o
a totalidade do conteúdo que ela pretendia dar às formas políticas da cidade.
traria o teu. P~~o. portanto, mas concebido CO!fiO uma soma de direitos par-
Até 1378, a "plebe" de operários e artesãos das "Artes men~~s" nJo
ticulares que se compOem, se anulam ou se reforçam. Os_ordi~'!!_en_!!_d~ g!us·
tinha ôbtid~ nenhul]l~~asce~são política, apesar do fat~ de que, em troca
de
i-
tizia nio têm o caráter do que chamaríamos em nossos dias uma constitu domina nte da burgues ia
promessas, sua f_?!.~~ _t~nha sido utilizada pela fraçfo
çlo do Estado de Florença; eles nlo são uma regra do jogo político na qual tentou jogar seu
os oposta· ao p.aiti4'!..!!1elfo. Por ocasião do verão de 1378 ela
o funcionamento global do Estado é posto antes de que sejam definidos nas
admitid as. Resuma mos este próprio jogo: este foi o "tumulto". Após terem sido misturados a lutas
papéis que aí desempenhalfo as diversas partes
quais eles permaneciam estrangeiros, f!~-Ciompi instaur~ d~r~!..~.~ més
primeiro traço dizendo que, se bem existe, evidentemente, uma vida públi-
e dez ~um gov~'!_IO da_cidade que devia, esperavam eles, p~fi~ar 4~a
po-
ca e uma política, nlo existe direito público no sentido em que o pensamento s" Em 20
lítiCade que a "plebe" seria parte integ,ante ao lado dos "grande •
constitucionalista nos ensinou a concebê-lo. Em seguida, as próprias arti, cujas m um car-
am ·de julli.o de 1378 eles se apoderam dos edifícios públicos e nomeia
defllliçftes fazem referencia ao universo da atividade econômica, combin
dador de lã ao mais alto cargo do Estado. Para instalá-lo em sua nova autori-
traços saídos deste universo com sobrevivências da feudalidade . .1! assim que
in-
dade eles lhe confiam a bandeira de Florença. Ao invadir os bairros ricos,
todos os artesãOs de lanifícios não sâ'o membros de direito das "corporações" as têxteis. Em 29
po- cendeiam as residências de alguns proprietários de indústri
da lã enquanto que, inversamente, famílias estrangeiras na indústria têxtil
de jullio queimam as umas nas quais haviam sido depositados os nomes de
ci-
dem, por direito de nascimento ou por compra, estar inscrita s nestas "artes"
no
dadãos "grandes.. elegíveis para os cargos públicos e para as magistraturas
e usufruir todas as prerrogativas ligadas ao pertencirnento a estes grupos. Con- gesto e proclam ado por seus
mês seguinte . Seu programa, afirmado por este
sidera-60 mesmo que a maior parte das inscrições'm!s "Artes maiores"'eram
nos oradores, não tinha nada de revolucionário no sentido em que se toma esta
deste último tipo. Os valores neo-burgueses são, por outro lado, calcados
ados mais elevado s na cidade são palavra em nossos dias: eles não visavam, com_toda eYi,dência, . dc.rmblY:J!.~­
·;; valores feudais e nobiliários: os nove magistr
a1
tado, mas participar eles mesmos nÓs cargos deste Estado. Quando, depois
os "Magníficos e Altíssimos Senhores'', e formam a Senhori •

O sistema instaurado pelos ordinamenti di giustizia foi portanto o qua- dos ordinamenti, o sistema das arti se esvaziou pouco a pouco de seu con-
i
i- teúdo feudal , pela ação contínua de uma fraçilo da burguesia que substitu
dro - um dos quadros - no qual se representaram as tensões e as contrad os bancári os ... ) por
foi o lugar em que as antigas estratificações horizontais (os ofícios têxteis,
ções da sociedade floréntina a partir do ~culo XIV. Ele os
sa- estratificações verticais (os grandes proprietários ... , os pequenos artesãos),
estas tensoes encontraram sua expressão política e jurídica. Em compen m
Ciompi, por sua vez, contentam-se com as estruturas tais como elas aparece
çfo, na-o se poderia dar o menor conteúdo concreto ao sistema político da
ci-
hierarqu ia das artes maiores e menore s,
no nível formal. Sem pôr em causa a
dade do Líóo, senão nlo veria que as instituíções se infletiam em si mesmas se acresce ntarão às sete
: eles exigem então a criação de três artes novas, que
para fazer frente u tensões manifestadas e para exprimi-las à sua maneira
o reflexo corporações maiores e às catorze menores já existentes e que deverão lhes
quadros da história florentina a nível político, elas eram também pe·
permitir o acesso às magistraturas. Duas destas artes dizem respeito aos
de uma hlst6ria concreta. Certas características politícas dos ordinamenti
so-
deveria reunir os operário s da
em relação com movime ntos históric os quenos artesãos "com oficina"; a última
frenm uma verdadeira transformação ditos implica-
Florenç a .. ou ~a descri- "plebe... A constituíção desta arte dos Ciompi propriamente
fora dos quais Üm "quadro dos acontecimentos de
23
22
ria para estes últimos o direito de se associar e de eleger os dirigentes de sua preteM5es pontifícias sobre os negócios de Florença. Assim, durante os
corporaç lo; até aí, com efeito, a massa de Ciompi era dirigida por "oficiais"
meses que precederam o "tumulto " propriamente dito, a "plebe" se achara
que nlo eram os seus e que eles não escolhiam.
mobilizada por alguns burgueses e inserida num jogo que não era o seu. O
O tempo dos Ciompi durou somente um verio: exasperada pela resis·
principal utllizador, durante este primeiro momento , da força e do descon-
Uncia que seu próprio chefe, Micbele di Lando, sob a pressão da burguesia e
tentamen to dos Ciompi, fora Salvestro M6dici. Outras grandes famüias tam-
na necessidade em que estava de compor com ela, opunha a suas esperanças,
b6m se lançaram a esta demagogia. Compreende-se que, nestas condições, uma
a "pleble" organizava tumultos em cima de tumultos. Em 31 de agosto deu-se
revolta da "plebe" ·deveria ser sentida como uma grave divislo no seio da pró-
o fim de sua exísUncia política. Vencida, decapitada, após um tlltimo tumul-
pria populaçfo burguesa e que a detrota dos Ciompi deveria arrastar em sua
to que foi esmagado neste dia, a massa de Ciompi - que não se pode chamar
esteira medidas contra aqueles que, membros da fraçlo burguesa suspeita de
de classe de tal l.lllodo a sua organizaçlo era frágil e confusa a sua ação - dei·
demagogia, se comprometeram em utilizar a força do povo para seus próprios
xou de ser uma força real.
fins políticos. A restauração aristocrática de 1382, em sua reaçfo contra o
No entanto, esta força permaneceu efetivamente, mas como o rrnzior
"tumulto ", visou enttro famt1ias que, por conseguinte, haviam utilizado a
mito político florentino do século XV. A persi.stl!ncia do temor de que uma
"plebe".~ nesta época, por exemplo, que desapareceram da cena política os
força popular foae capaz de tomar as armas, se manifesta de diversas manei-
. Alberti, 'Wna das mais importan tes famüias de entfo. A principal acusaçlo
ras mas continuam ente durante o tempo da República. Motor - corno qual·
que se fazia a cidad!os dos " grandes", para evitar que um dentre eles, apoian-
quer mito - de comporta mentos políti~os e enredo de instituições, ela permi-
do-sé de novo sobre a força dos Ciompi, se tomasse soberano da cidade, era a
te compreender a que necessidades, sentidas corno UIJentes, queria fazer fren-
seguinte: "Culpado por querer se elevar acima de todos os outros cidadãos".
te a ordem da cidade. O quadro de instituições permanece completamente
Se ela fosse comprovada, levaria ao confisco de todos os bens e ao ext1io.
sem alteraçlo até que seja promulgada a "constituiçtro" de Savonarola (em
O temor de que uma parte dos "grandes ", uma famllia ou uma aliança
1495), mas aí va:o doravante se representar os afrontamentos entre os grandes
entre grandes famillas, pudesse se colocar à frente da massa popular e usar
burgueses e as camadas populares.
desta força considerável para seu próprio poder, foi desde entlo paralela, e
Isto em duas direções, aliás, vizinhas. De um lado, assiste-se a uma acen- correlativa, do temor de que os próprios Cwmpi tomassem as annas para par-
tuaçlo do caráter plutocrático da constitui çlo f\.~rentlna, enquanto que o ticipar do governo da cidade. No que diz respeito a este último ponto - a
sistema medieval-comuna] nfo comporta , necessarià1nente, como se o vê por evicç!o política dos Ciompi - , a burguesia florentina, evidentemente, anulou,
muitos exemplos, esta devolução do poder à riqueza. Por outro lado, Flo- desde 1382, os resultados obtidos sob a pressão do "tumulto ". A arte da "pie·
rença se orienta claramente, cinco anos após o "tumulto ",para uma vida po- be", abolida imediatamente após o "tumulto ", do sobrevivera mesmo at6
lítica na qual a grande burguesia afirma sua simbiose com a antiga aristocra- esta data, que viu a supresslo das duas outras artes criadas em 1378. Os
cia nobiliária, e exclui a possibilidade de qualquer governo de consenso na- Ciompi acharam""e, portanto, de novo a depender de um oficial de polícia
cional e esta última direção da evolução política na cidade do Lírio que que era estranho a seu grupo, o Ufficiale forestiere, reinstalado desde 1379.
marca principalmente os tempos dos M6dici e, por isso, aquele em que vive
No que concerne ao temor de que um demagogo dos "grandes" pudesse se
Maquiavel. Nfo é simples perceber-lhe os mecanismos; isto exige um pouco
apoderar das rédeas da cidade, dando a seu poder uma base popular ou na·
mais de atençfo.
cional, ele é um motor tão cardinal das instituições florentinas que se o en·
Os Ciompi somente entraram na luta, e por sua própria conta, no fun
contrará incessantemente presente em suas máquinas administrativas. O con-
de uma dura crise econômic a ocasionada por uma guerra: a guerra que havia
junto forma, portanto, um entrelaçamento convergente - ao menos em um
oposto a fração " urbana" da but~uesia ao partido guelfo. A guerra dita " dos
certo nível, e apesar das contradições que as instit).lições exprimem ao mes.
oito santos'', com efeito, atiçara, no próprio interior da cidade, a burguesia
mercantilista e favorável à independência do regime e o partido favorável às

24
25
mo tempo que tentam recobri-las - , que exprime as principais preocupações Sob formas complexas, desconcertantes. de que entretanto se cçta
da sociedade, ou da fraçlo social que se beneficia das instituições. a intençio formal, insinuam~ conteúdos que nlo excluem evidentemente
as alianças entre grandes famüias, os expedientes, os favores i marzem da loei.
,. Durante os ~culos XIV e XV, dissemos, a bmguesia ji ultrapassa, tanto quan-
' l ,.•\ r\ to o pode, o que as institutçoes da Comuna visavam proibir. Pelo menosela o
" f ' .,
As duas personagens que detêm a força das armas nfo podem ser flo- faz sem que as estruturas mudem sensivelmente. Mesmo a supremacia progres-
rentinas: seus serviços são alugados. O primeiro é o comando dos exércitos siva dos M6dici passa - i custa de numerosas deformações subterrâneas, nlo
em campanha; ele é necessariamente ~o~. seu papel está sempre li· se duvida - pelo canal deste regime "republicano".
mitado a tal ou qual campanha, através de um preço acertado quando do O desenvolvimento destas eleições divenas, quer elas digam respeito 1
engajamento para a duraçlo da condctta; ele não deve entrar nos muros designaçfo de pessoas ou à escolha de decisões que slo levadas a tomar as
assembléias ou os colégios de magistrados, ~ significativo de uma tradiçlo na
com sua tropa, e a tradiça"o exige que ele jamais seja convocado ao Palácio
qual o fato de tomar uma decisão é em si mais perigoso do que a auaência
Velho. A segunda destas personagens temíveis é o bargello; também ele
de decisão. Na totalidade das comunas desta época, a maioria requerida
de~ ser um estrangeiro: chefe dos sbires - isto ~. chefe de polícia - , é
pàra um voto nfo é a que nós chamamos maioria absoluta (a metade dos vo-
escolhido entre os nobres de um país distante ao menos quarenta léguas
tantes mais um voto), mas ela deve reagrupar dois terços dos votantes. Os
da cidade de Marzocco.
lucanos exigem mesmo em suas assembléias a maioria de três quartos. Maquia-
Além disso, o sistema político obedece a dois grandes princípios. Ele
vel assi]n comenta:
multiplica o número de responsáveis e de bene/iCÍilti dos cargos públicos e,
paralelamente, por um sistema complexo de inelegibilidades, afasta do po- "Alguns talvez consideraria como um vício que todos os sufrá-
der aqueles que desejariam exercê-lo por muito tempo: a dmaçio do man· gios dos lucanos devessem ser conquistados pelos três quartos de vo-
dato é breve e todo mandato é seguido de um período de inelegibilidade que tos; ao que se responde que das declsOes que sempre se fazem nas re-
proíbe que o titular do cargo seja o sucessor de si mesmo. Em seguida. para póblicas por sim ou na-o, o 'sim nelas é muito mais arriscado do que o
evitar que as grandes famt1ias, por uma aliança~ as ligaria em facções, se nlo; é con~niente se precaver mais com as pessoas que querem que se
assegurem a exclusividade dos cargos públicos, a desigoaçlo de magistrados faça uma coisa do que com aquelas que se opõem a que se a faça. e é
sempre combina a sorte e a eleiça:o: os nomes dos candidatos têm que, num por isso que se considera como um mal menor uma certa dificuldade
momento que varia segundo a magistratura visada, ser achados uma vez de· de se conduzir a um bem do que um excesso de facilidade em cair num
signados por um sorteio de um uma em que vários nomes foram postos. mal" (Súmário da coisa pública em Luca. Toutes les Jettres de Maquia-
No detalhe, o funcionamento das instituições florentinas .desafia a vel, tomo 2, p.429.)
imaginaça"o. Os grandes traços que acabamos de indicàr encont~~ toda-
via em todas as escolhas que os florentinos das artes maiores e menores slo Nlo é sem sentido considerar por que, no mesmo texto, Maquiavel jul-
ga excessiva esta maioria de três quartos, quando ela diz respeito a certas de-
chamados a fazer. Um Grande Conselho -ou Conselho principal - agrupa
três mil membros e é renovado em um terço de seis em seis meses. O Con- cisões:
selho dos Oitenta elege os mais altos magistrados da cidade, os ''Magníficos " . . . se entretanto a referida dificuldade (de conduzir a um bem)
e Altíssimos Senhores". Estes tlltimos slo em número de nove, pertencem é uma boa coisa, ela do o é sempre porque existem efetivamente me-
todos is "Artes maiores" e esta-o em exercício somente durante dois meses. didas que, ao contrário, seria necessário facilitar, entre outras, as san-
Após estes dois meses eles são inelegíve~s durante dois anos. O mais eleva· çOes contra estes cidadlos turbulentos 5 ; com efeito, se slo suficientes
do dos magistrados é o Chefe de Justiça; sua autoridade é grande mas está ·dois terços de votos para decretar a puniçlo dos dissipados, seus paren-
sob a vigilância dos Altíssimos Senhores; ele reside no Palácio Velho.

26 27
llt'" ~!" ·.~r-..,,.'o,~ •. t ' •
.

Amo tem em tomo de cinqüenta mil habitantes no nascimento de Maquia't'el


tes e amigos teriam bem mais dificuldade em impedir o voto." (Ibid.,
(a sede do departamento de Drõme atualmente tem mais e Londres, no~­
pp.429430 .) culo XV. tinha uma populaçlo quase igual); que os enrcitos do Lírio, na
Por outro lado, o governo de uma cidade ainda medieval nlo tem o pa· mais vigorosa das campanhas, contam com algumas centenas de cavaleiros
pel motor que os políticos modernos se darlo com o advento posterior dos mercenários; e que é aí, entretanto, que se jop uma boa parte de nossa mo-
e
Estados nacionais a complexificaçfo das estruturas sociais e econômicas. dernidade, que se prepara uma vislo já italiana do futuro da península, que se
No tempo que pre~de o desenvolvimento de Estados adaptados ao progres- defrontam os Estados europeus por uma terra que eles sabem importante.
so do capitalismo industrial, todas recebem as regras de sua atividade na cor- Um pequeno texto, escolhido para ajudar um pouco a imaginaçlo, ser·
poraçlo em que estio inscritos; a arte é o agrupamento fundamental, de on- virt, para completar, de nota pitoresca. ~ a auem entre Florença e Pisa; cerco
de todos tiram ao mesmo tempo sua defesa individual e coletiva, assim como longo e sem sucesso. Em 25 de agosto de 1499 os ''Dez do Poder" escrevem
aí recebem u nonnas de sua vida econômica. o ditigismo do Estado será um aos comissários iie Florença in castris contra Pisanos: faltam dinheiro e tro-
fruto mais tardio do desenvolvimento econômico e da organizaçlo social que pas aos assediados, Paolo Vitello, o condottieri a serviço de Florença, está fra-
lhe é o correlato. Sabe-se que este ditigismo, na França, foi um dos instru· co; primeiramente eles falam de sua "amaiJUra", do "abatimento profundo
mentos da centralizaç(o monárquica: Colbert cria na metade do ~culo XVII que reina na cidade inteira... Concluem:
as manufaturas de que a principal característica é escapar às regras dos "ofí· ''Mas seria preciso tempo para fazer reentrar dinheiro novo e pen·
cios". Na comuna florentina acontece todavia de outro modo: sar em novas medidas. No entanto, para salvar o que nós dJssemos, en·
"A autoridade da Senhoria sobre o campo é muito forte', no víamos para todo o nosso território ordem escrita de recrutar homens, de
que a maior parte deverá ser imediatamente conduzida e iremos conti·
interior da cidade ela ·6 nula: aí ela se limita a convocar os Conselhos,
a propor os projetos às suas deliberaçOes, a manter a correspondência nuar de maneira a poder dispor de um bom número de tropas vigorosas
com os embaixadores; ela anuncia as deliberaçl5es, chamadas entre eles e bem treinadas . . .
Estamos na terceira hora pois retardamos a partida de nosso esta-
(os tucanos) "colóquios", dos mais ábios ~ cidadlos, "colóquios"
que fazem ã antecâmara das assembléias propriamente ditas. Ela super· feta na esperança de vos enviar por ele uma soma de dinheiro. Mas nlo
visiona os negócios; ela os recomenda; em resumo, ela dá o primeiro im· pudemos consegui-lo pois hoje é domingo e porque a expediçiiO dos ne·
pulso a tudo o que se faz para governar a cidade." (lbid., p. 426.) gócios correntes ocupou todo o nosso dia; ele vos será enviado provavel·
mente amanhf de manhf cedo." (Em Toutes les lettres de Maquúrvel,
E logo: tomo l ,pp. 4142.)
"Que i Senhoria falte autoridade sobre os cidadlos de Luca é
coisa excelente porque é uma coisa que todas as boas repúblicas respei·
taram. Os cônsules romanos, o doge e a Senhoria de Veneza jamais tive· NOTAS
ram, e em noSIOs dias. ainda nlo ~m. autoridade alguma sobre os cida-
dfos, pois é precisamente isto a primeira marca de uma república por·
1. ~ preciso aqui assinalar, após todos aqueles que recentemente se interessa-
que, se tu a tomas autoritúia, ela engendrará maus resultados no prazo
ram pela Renascença italiana, o grande livro de Frederick Antal: Florentine
mais breve." (Jbid., p. 428.) painting and its social background (A pintura florentina e sua base social). A
Para ftxar mais completamente o quadro político das repúblicas da Re· obra nfo está traduzida em francês . Mas o está em· italiano: Einaudi, Turim,
nascença é necessário recomendar ao leitor jamais esquecer que o território 1960.
florentino nlo é maior do que um cantão suíço; que a cidade ls margens do 2. No italiano moderno a forma enfática de polidez ainda é: vostra Signoria..

29
28

/.
Tendo chegado tarde à república e à unidade nacional a Itália não conheceu a
severa crítica que f"t.zeram a linguagem francesa sofrer os "cidadiios" do ano I.
3. aompo é, na origem, uma palavra regional florentina que designa o carda·
dor de lã; em seguida, o conjunto do proletariado das indústrias têxteis. No
século XN ele é a mfo-de~bra, o sottoposto em geral, o operário que perten·
oe a alguma corporação.
4. " Os grandes" são primeiramente compostos de todos os que pertencem às
"Artes maiores". Pouco a pouco esta expressão, nisto seguindo a evolução do
conteúdo das artes, designa os ricos, os grandes comerciantes, os patrões da
indústria têxtil e dos bancos.
S. " ... produzem-6e diariamente nesta cidade excessos que a autoridade do
grande número é insuf"tciente para reprimir; também os seus jovens concebem
uma audácia crescente, corrompem~ e, uma vez corrompidos, arriscam~ a
se tomar o instrumento de ambiciosos."
6. No campo e no distrito trata-6e, efetivamente, de proibir qualquer ativida·
de concorrente. A conquista de uma cidade como Prato ou Pisa tem por obje· Capítulo 3
tivo sua ruína econômica. Nicolau Maquiavel, político de seu tempo

Nfo se sabe grande coisa de certo da juventude e da formaçso de Ma-


quiavel. Conhece-se um pouco mais sobre sua famtlia porque o próprio Nico-
lau dela se fez na ocasião o historiógrafo, aliás, discreto. Evidentemente, não
sem que se tenha colocado o acento, aqui e ali, sobre as informações às quais
ele dava valor: que a Maclavellorum famüia figurava, desde a sua instaJação
em Florença, no século Xlll, entre os adeptos do partido guelfo; que de modo
algum era ele mesmo de má linhagem pois os seus pretendiam descender do
mesmo tronco dos antigos senhores de Montespertoli (no distrito, a sudoeste
de Florença, entre o vale de Pesa e o vale de Eisa); que eles tinham herdado
destes senhores a.Iguns direitos nobiliários em 1393; que eles nlo.eram ricos;
no que lhe diz respeito mais particularmente, que era o segundo ftlho do se-
nhor Bernardo e de Bartolomea Nelli, viúva; que teve um irmlo e duas irmãs.
~ certo também que durante os dois séculos de sua instalação em Florença, os
Machiavelli - antigamente Machiavegli - deram à. República alguns padres e
gonfaloneiros.
Sua família era, portanto, ,honorável, ideologicamente à vontade nesta
Florença comuna! onde eles viviam como cidadãos de artes subalternas. Numa
estrutura política em que, como se viu, a dependência natural de uma arte e

30 31
I '· •, •'•
' r,' ; '

de um grau de descendência explicitamente dava direitos e proibia outros, isto atividade bancária. Banido por seus rivais, ainda influentes, em 1433, entrou
nlo 6 sem importincia. Quando, mais tarde, seus inimigos pessoais querer!o de novo na cidade um ano após, triunfalmente. Um més e um dia após o nas-
excluí-lo de seus cargos pt1bllcos, eles evidentemente atribuir!o as culpas a cimento de Maquiavel, mas certamente do lado da margem direita e nlo na
esta dependência: tentarão provar que seu pai era um bastardo. Insinuações O/tramo, o neto de Cosme, -~o - a espera de tomar-se "o masnífi-
que freqüentemente se encontram nas intrigas deste tempo e querela típica na co - , esposou uma Orsini, sinal certo de uma bela ascendo social e de um
qual o atacado responde com uma nobre indignação: de qualquer modo, ele bom resultado bancário.
sabia que o ônus da prova cabia aos atacantes. Sem dúvida, os textos que O desaparecimento do pai de Lourenço, Pedro, "o gotoso", quatro
escre'Jerá sobre a calúnia insidiosa e incompreensível, que ele desejaria poder meses após o casamento, inaugura o ''principado" prestigioso do Masnífico
punir e substituir por acusa~es juridicamente qualificadas, devem algo às e de seu irrnlo Juliano. ~~~ este ''principado" que se desenrola a .obscura
ameaças que Pesaram um tempo sobre seu próprio destino público. juventude de nosso Nicolau. Trágico fim de. Juliano, nove anos apó& o início
Ele também conhece os limites de sua origem: jamais será outra coisa do de seu ''reinado": na catedral Santa Maria de Fiore, durante a grande missa de
que o Secretário, personagem de segunda linha, encarregado de certas missões 26 de abril de 1478, cai apunhalado por Francesoo Pazzi; Lourenço escapa
mais delicadas nos tempos em que sua excepcional inteJ.i8ência política é reco- com precisfo aos golpes dos conjurados. E;.es vingaM- assim o confisco de
nhecida e em que os senhores que ele escolheu estio no poder, excluído en· seus bens, dois anos antes, numa questlo de rivalidade das duas famílias quan-
tretanto dos principais papéis, regularmente escondido ou abandonado pelos to à gestfo da tesouraria da Santa Sé. O Papa Sisto IV estava a par deste
"grandes", sempre "passado para trás" quando de suas negociações no ex· acerto de contas; ele ~ imediatamente acusado, com alguma probabilidade,
terior por um embaixador de carreira de que ele nfo pode pretender nem a de t!-lo inspirado. A multidlo toma o partido dos M~dicl : bnediatamente
excetencia nem o estilo de vida. lacopo Pazzi ~ linchado, Francesco esquartejado. Maquiavel viu, oom nove
Se, desde este 3 de maio de 1469 que viu seu nascimento, at~ seu ingre$- anos, o corpo do arcebispo Salviat~~nforcado !l ~a janela do Pallicio Ytlho.
so na vida pública, pode-se supor que sua inst~ foi comum - e, conse- - -- ·Outra expemiíciãdeSta juventude, num te~podecididamente confor-
qüentemente, sem que seus vestígios tenham chegado ati nós -, é quase me às imagens que deixou em nossa imaginaçlo a Renascença italiana: o ól.ti-
certo que os sobressai~ da. N_~ória.flor~~~ 9ue ele pôde observar durante mo ano da vida de Lourenço, o Magnífico, vé a ascensfo política de um-~~ de
os anos de ~a iuvt:ntude tiveram m!is importância sobre a sua fo~açio in· exceçlo, homem de dons fora. d~ .IJl~.dia, e em quem Florença durante um
íélêctüãi·ê-iobre a armaçfo de. seus reflexos políticos do que seu curso esco- teffipõãleançã o-miiãgre do anormal. Girolano Savonarola é este homem, su-
. I lar·: At6mciiSSo, a hiStória recente determina sempre uma eerta vivência-polí· perior do convento Sfo Marcos, infatigivel pregador que ousa anatematizar
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tica "imediata", que condiciona em muitos sentidos o consenso de uma ge· os M6dici em sua cidade, o dinheiro em sua pátria, o reftnamento da ''Cúpu-
ração de homens e serve de referência coletiva às tomadas de posiçlo de cada la" de Brunelleschi. o papado sob um burel dominicano. Ele vai, no intervalo
um. de bons sete anos, marcar no ferro em brasa da discórdia, da paixfo puritana,
O s6culo XV, que Maquia'Jel, por sua vez, encontrara em seus dois ter· da delaçlo, da espionagem de famt1ias, a vida florentina. Ele nlo tarda a in$-
ços, nfo fora inútil para uma grande farnt1ia florentina: no nascimento de Ni- taurar uma intransigência e um furor teocrático inquietantes e apaixonados
colau ela de fato go'Jemava, através de empregados e seguidores, a cidade tos- nos quais a sociedade toscana, ji amplamente bwguesa, vai ser assediada e
cana. Desde o início deste século, com efeito, Cosme de M~ dici - que já se tentará, no nível misterioso das profundezas místicas e expiatórias, reencon-
chama, quando Maquiavel fala dele, i/ vecchio: o velho - empreendera con- trar uma espécie de pureza.
quistar habilmente e com paci!ncia um poder obsequioso que ele mesmo A morte de Lourenço, um ano após o início da encarnaçlo savonaro-
nlo se dignava a exercer, deixando as estruturas republicanas funcionar no liana, nfo melhora as coisas. Seu filho Pedro, sem prestígio pessoal e sem ha-
vácuo. Para ele, o penhor político representava somente o meio indispen· bilidade, nfo pode fazer face suficiente perante o pregador inflamado do
sivel da gestão e do crescimento de uma colossal fortuna que se erigia na Dôme. No momento em que Carlos VIII de França empreende uma expe-

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diçfo italiana, como para confi.nnar as predições apocalíptiC3S do Padre, o Examinemos ent!o estes anos de atividade, de que ele dirá mais tarde,
povo n!o se contém mais: ~x.eu.f~a os_Médici pela segunda vez <!lL~idad.ct de numa das primeiras cartas de sua desgraça, dirigida a seu amigo Vertori em lO
Manocco e se confiscam os bens dos emigrados em proveito de ~i...Repú· de aezembro de 1513, que eles foram "quinze anos dedicados a cultivar a
biiêa- em q~e se a~itiu que é Cristo .que~ de~ém o poder. Seria preciso Arte do Estado, em que nlo dormi nem tive folga".
que Florença inventasse em seus muros a quase totalidade dos abalos e das Relacionada, n2"o mais a wna experiência de juventude de um burguh
inovações de sua época? Ela entio inventou, em miniatura e de outro modo, florentino mas à totalidade política de seu tempo, a "invasao•• de Carlos VIII
a Reforma. Mas ao lado de Savonarola, Lutero aparecerá mais tarde como um na Itália inaugura, nós já o dissemos, um período em que a península 6 o cen·
fim político. Além disso, a conjuntura de Wittenberg apelará o que a de tro de múltiplas cobiças e o principal botim dos expansionismos europeus. As
Florença recusa no momento : os partidários de Savonarola formam uma políticas locais nlo mais podem, desde ent!o, ser separadas da história eu·
aliança bastante diversa para que a aventura não se acabe na disputa. Os dis- rop6ia inteira, tanto como elas n2"o foram vividas isoladamente.
cípulos do dominicano (aqueles que se chama com escárnio i piagnoni, os Para prevalecer em Nápoles, Ludovico, o Mouro, que governa Millo
carpidores) expulsaram os Médici com a ajuda dos aristocratas "enraive- como tutor de um jovem Sforza, chama Carlos VIII, cujos laços com a flo-
cidos" (arrabiati) que esperam retomar ao regime que era o de Florença rescente cidade do vale do Pó slo antigos. A França nlo tem dificuldade em
antes de 1293; todos se apóiam sobre o "segundo povo" que o "principado" se interessar por Nápoles: nela se enfraqueceria a Espanha, daí se partiria em
dos ~dici eclipsou. cruzada contra os turcos, se saqueariam de passagem algumas cidades cuja
Quando Carlos VIII retira-se da Itália, onde permaneceu até 1495, o concorrência têxtil tomou~ temível. Os italianos desunidos, pouco treinados
Papa Alexandre VI Bórgia pode agir: a opinião florentina doravante está di- e mal equipados, nfo resistem ao choque do exército francês: os "bárbaros"
vidida a respeito da teocracia do Padre que acaba de ver se afastar seu aliado descem até Nápoles, com efeito, onde chegam em 1495. Pedro de ~dici
mais seguro. Em maio de 1498, para acabar a aventura, as chamas da f~ei· fugiu de Florença, nlo opondo resistência nem aos exércitos da França -ele
ra sio oferecidas em espetáculo aos florentinq~. que se comprimem na praça deixou o Palácio Velho wna semana antes da entrada das tropas - nem ao
da Senhoria. As relações de Maqulavel com a lembrança que ele guarda do po· po'YO que doravante aciama Savonarola. Ludovico, o Mouro, conseguiu aí ser
deroso dominicano serão sempre complexas, e o lugar que este último detém duque, Nápoles está conquistada, os Médici tomam a viver seu segundo bani·
no pensamento político do Secretário está longe de ser negligenciável: tere· mento. Eles esperarão seu retomo a Florença at6 1512.
mos portanto oportunidade de falar nele de novo. Sem esperar, no mesmo ano da tomada de Nápoles, a Liga de Veneza
A carreira política de Maquiavel se desenvolve inteiramente no tempo entende estabelecer wn equilíbrio que acaba por perturbar esta súbita expan·
que separà a queda de. Sav~narola do t:etomo dos Médici. alo da Casa de Anjou: a Espanha e o Imp6rio aí arrastam Veneza e Milfo. A
Um m6s após o suplício do Padre, quando os florentinos reinstalam batalha de Fomovo que Carlos VIII deve travar na Emília para poder recon-
wna república livre de qualquer misticismo e defendendo-se muito de se en- quistar a França, a capitulaçfo diante dos espanhóis da pequena guamiçlo
tregar de novo a uma dinastia disfarçada, o nome de Nicolau Maquiavel é francesa deixada em Nápoles terminam a epopéia do primeiro dos três reis
sorteado para o importante posto de Secretário da Senhoria, presidindo os franceses sucessivos que se engajaram nas "guerras da Itália".
trabalhos da segunda chancelaria e, a partir do mês seguinte, servindo, além Os ~dici expulsos, Savonarola propôs aos florentinos wn modelo po-
disso, o secretariado dos "Dez do Poder" . lítico: Veneza. O Senado, a m*stade do doge aí asseguram uma bela esta· ·
Dois meses após o retomo dos Médici a Florença, quinze anos mais bilidade, a continuidade de wn regime mais do que secular e aos olhos de
tarde, MaquJavel é destituído deste mesmo posto (novembro de 1512). A~!.· todos um milagre da sabedoria. Trata-se aí, efetivamente. de wna plutocra·
sua morte ~~ _J_llo terá mais..u.m papel público CQJ1lp~áv~l ~- q~ foi durante cia bastante fechada que soube acumular, apesar das enormes díficuldades
õêxilf2 .~ M6diéi. · ····
--- ---... ·--H · que reencontrou a cidade frente ao expansionismo turco no Mediterrlneo e
no Adrittlco, as vantagens do regime aristocrttico. Florença, portanto, sob

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o impulso combinado dos democratas e dos púzgnoni, dissolve os Conselhos Estado na Romanha. Direta ou indiretamente, já cercou o distrito florentino:
que os M6dici estabeleceram alguns anos antes, cede o poder legislativo ao incita as revoltas de Pisa ao oeste e do vale de Chiana ao Sul, suscita proble-
Grande Conselho, que re11ne doravante todos os cidadlos cujos pais ou avós ma em Pistóia, explora em seu proveito o descontentamento de Arezzo. Na
foram membros da Senhoria, os chefes de regilo e os florentinos distÍJ:IIUi· direçlo do norte, já 6 o soberano de Imola e Faef!Z8. Procura uma capital pois
dos por suas qualidades (os boni homines). O execUtivo, de novo, se diver- Bolonha lhe está proibida.
sifica; os Superiores da Senhoria slo assistidos pelo Conselho doa Dez na Florença tem medo: ela se entrega, ela cuja doutrina consiste em fugir à
política estrmseira, os Oito de Guarda para os negõcios de poücia e pua o e
submisslo de wn senhor, de um gonfaloneiro vitalício. \'Crdade que ela o es-
exercício da justiça) enquanto que os Ufficiali di Monte ocupam-te dos colheu ..democrata", na pessoa frágil de Piero Soderini. Envia Maquiavel para
cofres do Estado. Cofres, aliás, vazios, fisco excessivo, economia ameaça· junto de César para observá-lo, medir suas forçu e seus apetites. Ele de fato
\
da, princípios de fome: os tempos vlo mal. A descida dos "búbaros" 6, observa: v6 em Súúgália como César reprimiu num só golpe todos os seus anti-
aos olhos de todos, a causa das maiores infelicidades 1 • Pisa, a cidade que gos aliados. Ele traz de sua misslo algo de muito confuso, uma vontade indo-
comanda o acesso ao mar e fazia de Florença um Estado exportador de mivel de trabalhar para nlo ser conquistado, e uma admiraçlo pela política
t!xteis, libertou.e do jugo 4o Palácio Velho na passagem de Carlos VIU. de alto vôo que ele viu em açlo.
Que ao menost Luís XII, que sucedeu(,Çarlos Y.Ill' no trono da Fran- Em 18 de agosto de 1503, uma vez mais, o perigo passa: levado pela m•
ça e tem, tamb6m ele, pretenaoes italianu, cÕnse-rte um pouco o desastre lúia, Alexandre Vl deixa a Igreja sem chefe e César sem apoio. Maquiavel está
de Pisa. Que ele ofereça um ex6rcito para cercar a cidade rebelde. Meu Deus! em Roma, assiste ao Concílio que, sem dar a Tiara a um Soderini, como se es-
Em 1500, o exército franch que ajuda no interminbel cerco se amotina perava em Florença, a dá ao menos a um Della Rovere, inimigo jurado dos
e deserta: os suíços repentinamente se aborre~ contra uma Florença que os .B6rgia. Prjvado de proteçlo quando seu poder ainda estava muito fragilmente
alimenta mal e nfo os pap. Para Luís XII é um contratempo: após ter re- instalado, aquele que foi duque de Valentinois nfo tem mais do que acabar na
tomado Milão e antes de se lançar mais jl31'8 o sul, convém restabelecer Es~ uma vida de condottieri doravante medíocre. ·
a ordem em seu ex6rcito de suíços; 6 tamb6m um ganho inesperado: se os Luís XII, por sua vez, experimenta o desastre de ver seus exércitos do
franceses tomam a direçlo do cerco, nfo tardarlo em obter o da própria Flo- sul batidos pela Espanha. Gonzalve de Cordoue derrota perto de Nápoles os
rença. A primeira legaçiO de Maquiavel "l corte da França" durart quatro regimentos de suíços. Em 1504logo tudo está acabado para eSte aliado incô-
meses: trata-se para ele de declinar a oferta francesa de uma proteçlo mais modo. Em sua segunda legaçlo na França Maquiavel negocia o adiamento da
plena de ameaças, sempre a assegurar ao rei conquistador a amizade dos Al· dívida florentina e toma distâncias medidas com o rei vencido mz ainda po-
tíssimos Senhores. O perigo passa: Luís XII está agora mais 10 sul, diante deroso.
de Nápoles. Pelo tratado de Granada, os embaixadores distribuem-te, junta- O ano de 1505 é inteiramente ocupado em cercar Pisa. Enfim, após um
mente com a Espanha, toda a Itália meridional. Florença, se nlo recuperou assalto desastroso e uma louca debandada, a República decide dar raz!o a Ma-
Pisa, permaneceu independente. quiavel, confiando-lhe o encargo de constituir uma milícia. Á falta de meios,
~ necessário ent!'o remediar o mais urgente, o que será a política cons- de decislo, e à falta tamb6m de uma clareza política suficiente, a milícia nfo
tante do regime florentino 2 • Sem ceder a Luís XII, trata·se agora de fazer demorará a causar decepções àqueles que a quiseram. No momento, ele recru-
frente a um de seus mais turbulentos protegidos. O rei da França é o aliado do ta, organiza, treina suas tropas. _ ..
Papa Alexandre VI e este papa tem um filho: César Bórgia. ~ este hábil César Rapidamente se percebe em Florença que a derrota ~ César Bórglà
que se intrometeu no regulamento de um negõcio que fazia de Luís XII o antes que ele tivesse tempo de destruir Florença, evita agora a este úl:timo câir
devedor de Roma: ele teve o legado pontifício qqe negociou na França a anu- sob a autoridade pontifícia: Júlio 11 Della Rovere exprime, com efeito, a pre·
laçfo do casamento de Luís e de Jeanne de Valois. César pretende agora, efe- tensão .de colocar sob a autoridade da Santa Sé todas as ántigu possessões
tivamente, sob a dupla proteçfo de seu pai e das armas da França. forjar um do duque de Valentinois. Rapidamente enviado ao Papa pela inquieta Senho-

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ria, Maquiavel encontra este último inteiramente ocupado em sua conquista. um protetor bem distante e muito fraco contra uma coalizlo de inimigos bas-
Sua "segunda legaçlo ao Papa" lhe mostrará um outro tipo de homem polí- tante próximos. Basta dizer que seria a morte da pequena República se as
tico, e o convencerá de que alianças nlo voltassem atrás antes de um confronto. Tanto mais porque
Luís xn concebeu o projeto de reunir contra Júlio 11 um concílio cismático
" os principados eclesiásticos... são mantidos pela grande anti·
em Pisa! De junho a outubro de 1510, primeiro, em setembro de 1511, de-
güidade que existe nas instituições da religião, as quais são tão pode-
pois, Maquiavel efetua suas terceira e quarta legações na França: é sem dúvida
rosas e de tal natureza que seus príncipes peonanecem no lugar, de
nas cartas vindas de Blois que o florentino p~anifesta uma habilidade política
qualquer maneira que eles se comportem e que vivam." (Le Prince, .
que atinge alguns momentos insuperáveis. Combate« em Ravena em 11 de
cap. 11, Pl. p. 322.)
abril de I 512, Gaston de Foix aí perde a vida e, apesar da vitória, Luís xn
Outras i.I\quietações: qual será a atitude próxima do imperador Maxi· renuncia a Milão.
miliano que prepara, por sua vez, uma invasão italiana com o objetivo con- . Os imperiais de Ferdinando 11 que combateram em Ravena voltam-&e
fesso de restituir Génova ao Im~rio e, na ocasião, de ir a Roma restabele· agora contra Florença: o ano de 1512 é fatal para as instituiçOes republicanas,
cer qual é a capital do Santo Im~rio? Trata-se então, para nosso Maquia- muito ligadas à sorte dos franceses. Prato, pequena cidade do distrito florenti·
vel, de sondar suas intenções, de compor de antemão com este novo con· no que comanda a passagem dos Apeninos, é saqueada. Os aristocratas, os par-
quistador eventual, sempre evitando pagar-lhe os cinqüenta mil ducados tidúios dos Médici obtêm do chefe que ele se exile sem resistir.
que ele exige. Secretário de Francesco Vettori, núncio oficial, Maquiavel , Maquiavel, mais tarde, nos P!SE!.~sos ~<!_l!!f!..UJ!i'!!f!..ir!! .t!.~!!:'.~-q~ . Tito
consagra a esta misslo a primeira metade do ano de 15~~- U~!fb. justificará a derrota da República soderiana. Evidentemente, como ve-
Aliás, as coisas sucederão de outro<lrru-)do: (~li~o flm de sua remos mais adiante, dela fará uma análise exclusivamente "política", que dei-
conquista italiana, v6-se o soberano de um Estado qüeãgora se confina ls xa na sombra as condições concretas nas quais malograram as instituiçOes "de-
possessões de uma poderosa metrópole: Veneza. Contra esta resistencia vi· mocráticas":
zinha ele forma em 1508 a Liga de Cambrai; a Espanha, a França e o bn· " ... Quem quer que se alimentar da leitura dos acontecimentos
~rio nela estão aliados pelo juramento de vencer a cidade dos doges. 1509,
antigos sentirá que toda mudança de governo, seja de uma república
é em AgnadeDo que a artilharia francesa derrota os venezianos.
nUm.a tirania ou de uma tirania numa república, deve ser seguida e mar-
Durante este tempo, aproveitando-se deste novo engajamento inter-
cada pela execuçio memorável de algum inimigo do novo Estado. Quem
nacional das grandes potências da época, Florença muda <!.e_~!~.o ~m a se eleva à tirania e nfo faz matar um Brutus; quem restabelece a liberda-
resistência de Pisa, efetiv;t um bloqueio rigoroso e. fin~~te a ~l!ll- Ma·
de em seu país e que, como o outro Brutus3 , n1o imola seus filhos, nfo
q\iiã~í eStá de novo in castris; seu papel de ~~~.0. é~ II!lft~~ente, a mantém senfo por muito pouco tempo ... Citarei somente um exem-
aeterminaJlt inãiõiiiaaã da cidá&. -·· ·
plo tirado de nossos anais, e um dos mais memoráveis na história de
SÓberano ·da 'Lo'"àihàidii por sua vitória em Agnadello, Luís XII nlo
Florença: é o d~~~edni, que acreditou, à força de bondade e de
resiste à tentaç!o das pretensões francesas doravante seculares: ataca Millo. paciência, vencer a oÕstinaçlo destes novos filhos de Brutus ao retomar
Júlio 11 imediatamente tenta arruinar as alianças da Liga de Cambrai nas da
sob uma outra forma de governo e que se enganou completamente. Em·
Santa Aliança: VeJJ.eza nela se aliará à Espanha, e mesmo à Inglaterra, contra
bora sua experiencia lhe demonstrasse a necessidade de urna tal execu-
uma França doravante privada dos suíços. O bispo de Sion, com efeito, ac• ção e embora a Fortuna e a ambição daqueles que o atacavam lhe fome-
ba de seduzir estes últimos para deles fazer uma guarda permanente a servi·
ce•m freqüentemente a oportunidade de deles se desfazer, ele jamais
ço do papado. Antes que se chegue de novo às annas, Florença espera se co- teve a .coragem de se de.terminar a isso ...
locar neste novo jogo em que as ameaças prevalecem sobre as satisfações. Jú-
Os escrúpulos de Soderini eram os de um homem honesto e bom;
lio O, o insaciável, e Veneza, a inimiga hereditária, aüam-5e contra a França: todavia, jamais se deve deixar propagar« um mal quando ele é capaz de

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comprometer o próprio bem que se pretende salvar ... O que o enga- Maquiavel, por sua vez, se~. do m~s de novembro de 1512 até sua mor-
nou foi este erro inicial de desconhecer que nem o tempo nem os b~ te, afastado dos negócios públicos. Primeiro francamente proscrito, suspeito
nefícios dominam a maldade. De sorte que, à falta de ter sabido asse- de complô, aprisionado um mEs e "questionado", expulso de Florença e
melhar-se a Brutus, perdeu com sua pitri~t o poder e sua reputaç!o." convidado a residir em sua propriedade de San Andrea in Percussina, perto de
(lll, 3. Pl. pp. 613-614.t San Casciano, ele se instala a contragosto em sua exist!ncia de desgraça, ele
que tanto se dedicou à atividade de governo.
A parti~ de ~ d~stituiçlo , o destino de Maqui~l e o de Florença
Ele jamais se lastimou, na força de sua atividade pública, de faltar tem-
nlo se~ mais senlo de lot~~C, ao menos nos detalhes da vida de nosso
po para ler ou para escrever. Ua e escrevia. Sem d6vida seus escritos jamais
homem. Maquiavel nlo 6 mais um homem público e s~a ci.~~de de_ novo
slo totalmente destacados das préocupaç&s de circunstincia. Porque é preci-
adotou o reSiit\e árlStociáiiCo que lhe deu o retom~ do_! Médici. O Grande
só insistir: ele intri&! e_ ~_até . ~~~ poJ.11~r._c~os- ~iversos, novas
Co~lh~ 6 dissolvido, enquanto se instala wna balia (wna comissão restri-
funções aos_.senh~res.. m~_çllçi~o~. Para estes últimos, as coisas mudaram de
ta dotada de plenos poderes) de quarenta membros. O mês de outubro vê
figura- nestes quinze anos de exílio: João Médici, cardeal até 1513,e morrerá
a retirada das umas de todos os elegíveis indesejáveis. No ano seguinte s1o
Papa em 1521 sob o nome de Leio X, era fJ.J.ho de Lourenço, o Magnífico.
recriados os Conselhos que o ano de 1494 suprimira e cujos membros slo
Seu primo, o filho natural deste Juliano que caiu sob os golpes dos Pazzi, su-
de novo designados por uma Senhoria cuidadosamente depurada. Tenta-se
cede-lhe na Tiara dois anos após; ele é Clemente VII e sobreviverá sete anos a
recriar a atmosfera que outrora fez de Lourenço um Magnífico. Maquiavel. Mais perto de Florença, que foi o berço de suas ambições, os M~di·
Com o ano de 1515, Francisco I da França está a ponto de encontrar
ci t&n Lourenço, filho de Pedro, o Inãbil, um duque de Urbino ao qual o ho-
um equilíbrio europeu, pelo acordo que o llp com Ferdinando 11, o Católico.
mem de San Andrea in Percussina dedicará O Príncipe. Parco sucesso desta
Os italianos podem acreditar que a{a~ram ~ guerras em sua penf~sula. Mas procura junto a senhores prudentes: pequenas missões slo pouco a pouco con-
o neto de Ferdinando ~ Carlos V, CUJa eletçJo à testa do Im~no faz, aos
fiadas ao exilado de que nos valerá a redaç!o das Histórias F1orentiMs, dirigi-
olhos dos franceses, um inimigo irredutível e não mais um aliado possível.
das por Clemente VII. !f>~nço, po~-~~~-vezd~ ~~rirá_.Q.!r['!.c~-~~·
Tudo isto se acaba em Pávia, em 24 de fevereiro de 1525, com a prisão do
. entretanto, encontrará, em corriiiensaçA'o, milhões de leito~~ ~~ ~ as 'ca-
rei da França. Onze meses mais tarde, este último renuncia a qualquer pre-
~~ .Todavia, nfo duvidemos : seu autor teria preferido que seu dest~o o
tensfo italiana pelo tratado de Madri de que ele dirá, assim que esteja em
folheasse primeiro e o agradecesse, como ele o esperava.
liberdade que lhe foi extorquido. Para este homem fmalmente complexo, em que o cálculo se misturou a
Esta retrataçlo da França, sua adesão à .!Jga de Cognac 'pela qual o
sacrifícios muito reais, as coisas se mostraram muito duras. E isto até o último
Papa, Millo e Florença tentam se opor uma últirÕ-à vez ao~invencível Im~­
ano de sua vida em que se produziu o acontecímento que se sabe, e que vinha
rio, terminam, como se sabe, por uma mudança irreversível nas políticas
para ele ou muito cedo ou muito tarde. ~ela t~_r:_e_ifa..~Z , em mai() !i~ 1~p, os
italianas. No dia 6 de maio de 1527, um mês e meio antes da obscura morte
Médici si..Q expql59~-~e flo~n.ça; as tropas imperiais, sob a direçlo da:cOndii>
de Maquiavel, o exército do lm~rio submete a um saque em regra a cidade
@~f de Bourbon, transtornam o equilíbrio italiano e os interesses se restabe-
do Papa. Cerca Florença, priva-a de alimentos e a deixa em sua peste: há du-
lecem· uma vez mais. Muito tarde: Maquiavel, irritado, enfraquecido, nlo pode
zentos mortos por dia. Florença é doravante cidade do Império; Alexan·
• fazer boa fJgUta diante desta mudança que nlo lhe teria podido desagradar; o
dre Médici, genro de Carlos V, presidirá seu futuro. Assassinado dez anos
tempo dos Médici fora muito longo para que o antigo Secretário nfo fosse
mais tarde por Lorenzino Médici- o Lorenzaccio da tradição literária - ,é
verdadeiramente comprometido por suas ofertas de serviço. Muito cedo, tam-
substituído no poder por Cosme 11 que, apoiando-se também ele sobre a po-
b~m. pois há dois meses ele teria sido definitivamente poupado por um último
derosa Espanha, instaura uma verdadeira dinastia que se transformará na
contratempo: na nova república que se instalava, precária, em 1527, ningutm
'I
I
dos grlo-ducados da Toscana, a partir de 1569. imaginava
-· ,_ ..,..confiar ·a
..- cargo algwÍi este ___
-- --anhgo seividor
...... _,
obscuro: Foi-lhe somente

40 4J
permitido vir a morrer em Florença, o que ele fez em 22 de junho deste lllCS- exércitos franceses, aliás chamados por nossos próprios príncipes, c:omeçaram
mo ano. a transtorná-lo numa enorme desordem. .1! ·um assunto muito digno de se lem-
Sem dúvida teria melhor valido, para a imagem que nós temos do ho- brar e pleno dos mais atrozes acontecimentos por causa de sua variedade e de
mem, que ele morresse como proscrito, que ele se conduzisse de outro modo sua amplitude: a I~álla sofreu aí durante um bom número de anos todas as ca-
durante sua desgraça. Uma coisa é certa: os julgamentos que acusam o homem lamidades que os pobres mortais estfo acostumados a sofrer por parte da justa
retiram sua importância somente disso, de que o homem em questão foi Ma· cólera de Deus assim como da crueldade e das perfídias de outros homens".
qulavel. Se eles são conduzidos com esta asi>ereza, se são ao contrário invali· (Sobre Guicciardini, ver nota 1, página 69.) Do próprio Maquiavel, na Man·
dados com este ardor quase fanático, é que eles tocam um autor cujo pensa- drágora, este julgamento concernente ao tempo em que "começaram, com a
ment o ainda problematiza e provoca escândalos. C~~~. ~be b~IJ!. entre- invasão do rei Carlos, as guerras italianas que arruinaram esta província".
tanto, que a política deste tempo, pois que ela não é conceitualizada sob a Assim também na Oizia. O Are tino ( 1492-1556) diz, pela boca de um de seus
idéia de democr.~~-r.!~_!lce aos Grandes; ao menos é a maneira que ela é personagens, que "um artesão de então comia mais numa única refeição do
percebida. jiêi~- consciências-viws ·aa éPõca, que não vêem de outro modo a que um gentil-homem de hoje encontra em duas na sua mesa".
natureza da política. · 2. Os florentinos têm, aliás, uma significativa consciência dos seus tempos:
Oito anos após o fun de Maquiavel, o machado do carrasco cortou o tendo de escolher um símbolo de sua situação para ornamentar a fachada do
pescoço de Tho.mas More. Eis um homem que não servira. Ao nível das cons- -Palácio da Senhoria, eles escolhem o mito de Davi. Confiam a execução de
ciências, isto é, ao nível do que os homens percebem de si mesmos, querem unia estátua representando o vencedor a um escultor de vinte e seis anos:
ou recusam, Thomas More figura'..eomo l'l'üla exceção. Maquiavel, se foi uma Michelângelo. A obra, universalmente conhecida, foi realizada entre 1501 e
inteligência de exce~o, entreviu problemas para sempre insupetiveis e para 15Ô4. Os Golias estavam nas portas: Luís XII, o Papado, a Espanha (que logo
sempre torturantes, nJ"o viveu, ele, com uma condncia de exceçfo. Ele será todo um império).
foi o servidor inteligente, moralmente comum, de uma pequena política de •, 3. Este "outro Brutus" é um herói legendário da história de Roma. ~ necessá-
que"é preciso dizer que no sentido histórico do termo foi continuamente con- rio saber que, desta história da Roma antiga, Maquiavel avaliza quase todos os
servadora, até mesmo "reacionária", porque tudo o que os tempos comporta· mitos; aqui, trata-se, portanto, de Lucius Junius BrÚtus, sobrinho de Tarquí·
vam de inovador a contrariava. nio, o Soberbo. A morte de Lucrécio o faz um inimigo da realeza: proclama a
Nlo se julgam com o mesmo furor - portanto, com a mesma inquietu- queda dos Tarquinios. Tendo seus dois filhos conspirado para a restauração
de - as infâmias de Piero Soderini: ele é dos mortos que morrem com o mau- dos Tarquínios, segundo a lenda, presidiu ele mesmo as suas execuções.
soléu. O fato de que a tradiçfo oprima contra qualquer justiça ou canonize 4 . A queda de Soderini - e sua própria destituição -se constituem, sem dú-
contra qualquer lucidez a própria vida do homem M!Quia~l ~sin al : o ~ete­ vida, nos principais fatos da experiência política de Maquiavel. Nós teremos
tário foi mais, se~pre send.9 flolCntino da Renascença, moralmente medíaete, portanto a oportunidade de falar deles sob o título: "Os maus príncipes".
- í hábil ~~_dor, amante do poder., vitorioso ou yencido nos negócios de di·
~~ importâncias, ~~te-~orto. ~ isto que nos importará agora, e que
tentaremos buscar no que se segue.

NOTAS

1. A História da ltálúz, de Francesco Guicciardini, escrita em 1538, começa


assim: "Eu decidi escrever o que aconteceu em nosso passado, desde que os

42 43
UVR02 so nos 6 dado como um conjunto interligado de fenômenos submetidos a leis.
Estas leis nlo slo somente a constataçlo completamente exterior de regula-
A natureza, campo limitativo das ~veis ridades; elas designam a ess6ncia científica do mundo, de que os fenômenos
políticas constituem um nível.
Por ru&s muito gerais, que concemem ao conjunto da representaçfo
na Renascença. a relaçlo da pritica política e do saber nlo 6 análoga ao que
acabamos de dizer. Aí nlo se pode tentu a constituiçlo de um sistema sufi.
cientemente amplo - isto 6, "essencial" - para que ele possa compreender as
. con'd.iÇOes nas quais aparecem tal ou qual forma política em wz de tal ou
qual outra:
"O caso deu surgimento a todas as e~cies de aowrno entre os
homens:• (Tite·Live, I, 2. Pl. p. 384.)

A possíb!J!c4de - e a necessidade -:- 4~ ,'!J,nU..~Ill4 QQru;!i!~ que fosse


fundadõfdi-wnª-.PriÍt~•· poUtiç! justa, evi~e~~emente nlo se impunha ao
-·Capítulo 1 penãament<?_de Maquiavel nos te~o~-~~ que o co~junto.das c~ncias ~uma­
~'
Natureza humana e história dos homens nas .i10s oferece. A ~ca ~.PJi!l..~ (no sentido de .<.?~lO_ ~.~~~~--q~ .se apli·
··. ~·-·~ ~~iê~Çio) _que poderia. ~~<:er ~. !~.mll!JD.@Jigitela...at.lvi~~~e de».. p_rfu·
cipes ~ :~a ~):Qria'~·- No seu retiro de San Andrea in Percussina Maquiavel
Nlo se encontrará, em Maquiavel, um sistema geral da representação assim enuncia o alcance que ele atribui aos Discursos sobre a primdra década
cujo papel seria tomar inteligível o universo político do homem. Nele nlo hi
organizaçlo de conceitos sobre o conhecimento dos quais poderia se pautu
,. de Tito Lívio:
" .. . a maior parte daqueles que lkm (a história) detém-se no pra-
wna açlo política, da mesma maneira que hoje estão ligadas wna prática zer 11nico que lhes causa a variedade de acontecimentos que ela apresen-
t6cnica e wna disciplina científica. O conhecimento que se pode obter das ta; somente nfo lhes v!m ao pensamento imitu dela as belas ações; esta
r coisas e dos homens, tal como ele 6 possível no universo intelectual do floren- imitação llies parece nfo somente difícil mas mesmo impossível ~ como
tino, nlo está com a política na mesma relaçfo que estio, para n6s, o conhe· se o céu, o sol, os elementos e os homens tivessem mudado de ordem,
cimento dos ventos ou das maJés e a navegação segura. de movimento e de potência, e fossem diferentes do que eram outrora.
Para nós, com efeito, a prática Ucnica pode ae fundamentu (1Jl8l8 for- ~ para, tanto quanto eu possa, desenganar os homens deste erro
~ malizàçlo conceitual cujo objeto 6 o conhecimento..sWJPá~lco -~ ~ conjun- que acreditei dever escrever sobre todos os livros de Tito Lívio que a ín·
to relativaMente_- e .p~v_i.~riame":te- i~~l ~~.f~.~ÔJD~~<?s. Mais ainda, a júria do tempo nlo nos roubou, sobretudo o que, a partir da compara-
prática t6cnica da navegação, por sua vez, enriquece o sistema teórico com a ção dos acontecimentos antigos e modernos, me parecer necessário para
contribuição da experi~ncia dos navegadores. De maneira que o conhecimento dele facilitar a compreensão. Por isto, aqueles que me lerem poderão
conceitual e a prática inteligível slo os dois aspectos que um mesmo processo tirar a utilidade que se deve propor no conhecimento da história." (Ti·
complexo assume: o do conhecimento. O sistema de eonceitos nutre-se e se te·Live. I, Avant-Propos. Pl. p. 378.)
enriquece de experiências práticas, que sempre têm um valor mais geral do
que elas contém enquanto acontecimentos singulares; por seu lado, a prática O que "a história" nos faz ver? Mais precisamente, como para nós se or-
penetra-se indefmidamente de racionalidade. Em nossa cosmologia, o univer· ganiza o passado do homem que nos devemos propor à nossa atenção? ~ sob a

44 45
fonna de um lugar que ela se apresenta: 2.2ó1Illf>O da tús~ôria ~o lugar tempo- fielmente os gestos dos povos latinos: aqui e lá, rebelilo, depois repres-
ral dos exemplos edificantes, instrutivos, úteis, que se trata de imitar quando sio, apesar de certas diferenças. Portanto, se é verdade que a história
eles são dignos de repetição ou de evitar, se eles foram errôneos. Neste lugar deve nos ensinar a viver, na-o seria fora de propósito, tendo de julgar e
. teuiporal reencont~Õs ~andes ho~ens que o povoam. Eles o habitam mas punir as pessoas do vale de Chiana; ver o exemplo daqueles que se tor-
não o marcam como o organizariam balizas que lhe orientariam o espaço, lhe naram os senhores do mundo, sobretudo num caso em que eles ensinam
construiriam uma topologia, lhe indicariam um sentido a seguir. uma progres- tão preciosamente como é conveniente comportar-se ..." (De la Maniere
sllo, um passado obrigado a ir de um ponto de partida a um ponto de chegada. de Traiter les Populatíons Rebelles du Vai di Chiana. Pl. p. 126.)

;
Como qualquer lugar, ao contrário, o passado pode ser percorrido em qual· Saber sempre exterior a seu objeto, a história acrescenta exemplos a
quer sentido,, indiferentemente. Não há leis gerais que lhe coloquem os acon- I exemplos, acontecimentos singulares a acontecimentos singulares que, acumu·
tecimentos em sucessão necessária: portanto, não hã leis que se possa assimilar lando-se na memória pelo efeito da descrição, permitem ao entendimento um
e fazer suas por uma apropriação intelectual das essências. Cada situação, cada exercício que ultrapassa "o prazer que causa a variedade de acontecimentos".
fenômeno fala somente de si; é neste sentido que a história é "exemplar", Comparando consigo mesmo a variedade de situações e de açOes, a ..leitura
feita de exemplos que são convites mudos à contemplação, e à "Jiça-o tirada atenta das coisas antigas" destaca semelhanças. A analogia fundamenta_:se na
da história". Se os homens e os acontecimentos da história não foram todos ! semelhança: entre situa~es que se assemelham temos o direito de estabelecer
contemporâneos, são, entretanto, simultâneos no espaço intelectual que eles uma ligaç!o lo~~q~-~ ~f~~~;~-~ _aj~~§_zãda}íóitáçto:------·-
delimitam. Para o espírito, a história dos homens é a narração inteligente da A história, portanto, é a prática da descriç!o e o comentário das seme-
diversidade do homogêQe~ lhanças: há aí o programa de todo um saber. Por natureza, o co~ntário é in·
Retomemos, para esclare~r, a comparação que nos serviu de ponto de
fatigável , acumulativo, porque sempre nos convida a um segundo comentário
partida neste capítulo: não é porque Magalhães pôde passar do At.~t~co ao · que terá por objeto o comentário inicial. O que se disse sobre as coisas imedia-
Pacífico pelo sul da América que posso esperar fazer o mesmo segwndo a
tamente incorpora-se à própria coisa para os comentadores posteriores. O
mesma rota; é porque nele há um estreito transitável. A existência de~!e
que Tito Lívio disse do complô de Brutus faz parte da ciência que pode-
.estreito foi Magalhães que nos ensinou. Fazendo-o, ele nos revelou uma
mos adquirir deste complô em si mesmo e acrecenta-se de pleno direito ao
verdade que o ultrapassa, que agora é plenamente nossa, mesmo se ela primei-
que Brutus dele disse para se justificar, porque Tito Lívio pertence, tam-
ramente foi só sua, no tempo de sua descoberta. Portanto, não se difá que o
bém ele, ao panteio de grandes exemplos. A "freqüentaç!o de bons auto-
navegador que agora se serve do estreito de Magalhães age por imitação do por-
res" nfo tem nada além disso: encontrar um comentador cujo discurso
tuguês, mesmo se, como ele, serve-se hoje do mesmo itinerário: ele age pelo
seja ..tão grande" quanto a coisa sobre a qual ele disserta, afunde que seja
conhecimento de uma verdade objetiva, obtida pela experiência de Magalhães.
realizada em seu livro a homogeneidade do acontecimento e da linguagem.
Na concepção maq~iaveliana dll utilidade dll história, funciona d~ outro mo-
Para que o discurso histórico e o ato efetuado na história tenham uma
dÓ: sabe_!__a__hj_S!Q.~a-~ -~-çumular__e,xemplos, na mai~r vm.edade _poss!~~~-para
mesma natweza: que eles sejam boas expressões do homem. Que disseram?
PõiJ'er-bnnar_: \
qyç.flzcw.ttJ O que se disse que eles haviam feito?
"Eu ouvi dizer que a história nos ensina a viver, e sobretudo aos Redundante, a pesquisa histórica ooleciona as monografias sobre os
príncipes; que o mundo sempre foi semelhantemente povoado de ho- acontecimentos e sobre os comentários de acontecimentos. Na ótica de uma
mens que sempre mostraram as meSmas paix~s; que sempre houve che- tal defmição de saberes, o conhecimento é. necessariamente enciclopédico,
fes e servidores e, entre estes, aqueles que serviam de boa vontade e. acumulativo, a totalidade "de tudo o que se pode saber" sendo o horizonte
aqueles que se revoltavam, e que estes últimos eram chamados à razão. de uma justaposiçlo incansável de saberes comentados. Em 1486, i em no-
Se alguém se recusar em acreditá-lo, que ele constate que Arezzo, no vecentas teses que· Pie déiJ!LM!i'ªº!lol~ encerra uma impressionante soma de
último ano, e que todo o território do vale de Chiana, repetiram muito

46 47
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saberes parciais acumulados. As verdades sobre o homem aumentam pelo O lugar histórico, precisamente porque nlo 6 orientado mas isótropo, é
manejo de comentários sem, no entanto, unificar-se por se submeterem a também, de pleno direito, nosso momento presente. Nada nos separa dos
leis. grandes antigos senlo o tempo. Se este tempo tem uma realidade nlo é
Nestas condições, para o espírito de Maquiavel, assim como para aque- porque ele separa os acontecimentos e os toma .irreversivelmente sucessivos
les que foram seus contemporâneos, a história é feita de histórias, historüze. (eles slo, ao contrário, todos intelectuahnente simultâneos: os dois Brutos po-
O texto escrito sobre o passado de Florença responde ao titulo Histórias dem ser para nós os portadores da "mesma liç!o histórica"); é porque ele
F7orentinas 1 ; o relatório sobre a França é um "retrato das coisas da Fran- privilegia o conhecimento da história daqueles que vêm após em relaçfo àque-
ça"; o que se refere à sua legação junto a Maximiliano, "retrato das coisas les que viveram antes. O tempo que se escoou entre a aparição dos grandes
da Magne"; o principal livro 6 um comentário: Discursos sobre a primeira modelos e nossa própria aparição deixou as coisas "nas devidas condiÇOes";
década de ,fito Lívio. Outro gênero: o "diálogo". O humanismo cultiva o mas, na condição de ter a memória, podemos ter a "experiência". Nós sabe-
capitolo, isto 6, a dissertação pesquisada sobre um tema local; se o encon· mos, porque estamos após, como ~ coisas se passaram, quais foram os erros,
trará entre os textos maquiavelianos quer tratem da Fortuna ou da lngrati- como se apresenta o sucesso, em que sinais se anuncia a catástrofe.
dfo. Outro gênero ainda: o "retrato", como estas "naturezas de homens flo- Nesta disciplina acumulativa, portanto, inesgotável, a experiência vai
rentinos" preparadas sem dúvida para entrar na série de Histórias Florenti- aos Modernos. Entre Tito Lívio e Lourenço Médici, os papéis não slo suscetí-
nas que nosso autor nlo teve tempo de redigir. Seu contemporâneo, Frances- veis de reciprocidade. Nfo que as coisas tenham mudado "como se o céu, o
.9> Guiççiardini, por ~a vez, escreve "relatos": seu "Relilto da Espanha", por sol, os elementos e os homens tivessem mudado de ordem, de movimento e de
exemplo; se ele eséreve uma t.Vistória da Itália, tenta também redigir J!istórlas potência, e fossem diferentes daqueles que eram outrora"; mas porque Lou-
Florentinas, Coisas Florentinas; comenta um comentário: Considerações so- renço pode aprender de Tito Lívio, e nlo o inverso. A prática política pode
bre os discursos de Maquiavel sobre a primeira década de Tito Lfvio. entfo se aperfeiçoar, se os homens não perdem a compre,enslo das coisas do
As histórias, portanto, são descrições exatas, multiplicadas, nas. quais há passado:
matéria para imitação: todas as situaçOes jã foram vividas pelo homem, "ape· "Isto (fazer-vos chefe da libertação da Itália} mo vos será penoso
sar de certas diferenças", e é possível conduzir-se bem. Ogrande modelo deste se vós tendes em vista os fatos e vidas daqueles que acabo de citar ...
gênero literário e epistemológico nasceu na Iatinidade: muitos autores aí es- Aqui (na Itália) existe um acordo muito grande; ora, lá onde há grande
creveram De Viris 1/lustribus Urbis Romae. Maquiavel segue Varrfo, Suet~ acordo, nlo pode acontecer que aí precise muito, provido que vossa
nio e Cornélio Nepos. Mais tarde haverá "histórias naturais" assim como há casa retenha alguma coisa da conduta daqueles que eu vos propus como
historiae: elas terfo por objetivo a descriçfo exata com vista a uma classifica- modelos" (Le Prince, cap. 26: ..Exortaçlo para procurar tomar a Itália
çlo. A taxônomia que elas autorizado se fundamentará, ela também, sobre a e hbertá..Ja tios bárbaros", Pl. pp. 368-369 .)
consideração de semelhanças, até mesmo analogias locais. Pensamento topo-
lógico, tanto a classiflcaçlo como o culto dos grandes exemplos deixam fora Assim se justifica a empresa de aconselhar os grandes:
do campo de sua "pesquisa" a possibilidade de que um pensamento, desde " ... não encontrei nada entre todas as minhas roupas velhas que
entfo topológico e não mais somente descritivo, introduza leis essenciais ou amo e estimo tanto quanto ao conhecimento das ações dos grandes per-
ao menos gerais. Para compreender a paisagem mental na qual se assentou a sonagens, o qual aprendi por longa experiência das coisas modernas e
epistemologia segundo Maquiav~l. é preciso jamais perder de vista que Bacon leitura contín·ua das antigas: em que pensei e refleti longamente e com

I , ainda nfo aparecera; no nível da teoria dos saberes, a induçlo nlo nasceu
como cognitio causarum. A his!_oria é o "modelo" de qualquer expo!ição de
conhecimentos. --·- · · . ·· - ··· · ---·-···· - ---·
cuidado, para reduzi-lo agora em um pequeno volume que envio a Vos-
sa Magnificência." (Le Prince, Carta Dedicatória ã Lourenço Médici, du-
.....- ... . . .... que de Urbino. Pl. p. 289.)2 ·
I I
48 49
l"!'!'.. . . . . . . . . . . .lli!I!!!!!I!.&&!I!JI.III4!!111J!Il!II'!!I!Ei. l. ~r~~.j!~A~t. .., •• '··' · ·:'· ··' .
:P

Se a experiência serve aos modernos é evidente que, para Maquiawl, toclas u vezes que o acaso lhes fornecer oportunídade." (Tito Lfvw, 11,
a pureza do ato poütico esti nas origens. No ponto em que estamos de nosso Avant-propos. Pl. p. 512.)
reencontro com o florentino, já é possível ver uma dupla dimensfo deste tema
du "origens" na escritura maquiaveliana. Como se vê, o mito du eras antigas é a expresslo privilegiada das cons-
Primeiramente, o mito da clareza e da grandeza dos tempos originários c~ncias que percebem sua realidade como pobre, fraturada, numa palavra,
do universo político acompanha em seu pensamento o sentimento da dor e da decadente. :e·o momento negativo da apercepç!o das crises culturais, das mu-
obscuridad.e dos tempos que Íhe são contemporâneos. Maquiavel tem, nós o tações sociais e políticas. Momento negativo porque urna crise aí é percebida
vimos, uma aguda consciência da fratura cultural de que ele é espectador, ma- sem que seja simultaneamente enunciada - nem mesmo simplesmente enun-
nifestada, a seus ofuos, pelas invasOes sucessivas de ''bárbaros". Na época de ciável - a possibilidade para a história de superar a crise. Neste caso, para as
uma crise, qtsando os instrumentos intelectuais e objetivos que pennitido ul- consciências dolorosas que a vivem, a crise cultural ~o pode achar seu fim
trapassar o estado anterior de coisas ainda nio estio destacados nem clara- se~o atra• de um retomo ao anterior "puro.. de toda degeneredncia:

mente percebidos, as consciências voltam« para o passado: elas têm sauda- "V!-se ... urna cidade, um Estado, receber urna constituiçlo du
des. Elas elaboram visões da história nas quais o escoamento do tempo apare- m10s de um legislador, cuja virtU, o leva a fazer durante algum tempo
ce como portador de catástrofes, porque ele no curso das eras conduz ã opaci- progressos em direçlo à perfeição: quem quer que viva entlo neste
ficaçfo progressiva·la simplicidade "que existia anterionnente". A "maldade Estado e dá mais elogios ao passado do que ao presente certamente se
de nosso tempo" conceitv~ entlo o retorno: ela manifesta a dor das cons- engana ... Mas se ele vive nesta mesma república ou neste mesmo Esta-
ciências que se acham postas diante de acontecimentos que nlo têm, pa,ra do na época em que este declina, então ele não se engana mais... (Tite-
elas, um sentido aceitável ou que nJo têm mesmo um sentido revelável. Nós . Li've. 11, Avant-propos. Pl. p. 510.)
já evocamos a ~ econônúca e política dos tempos maquiavelianos; deveria
ser possível. mesmo à distância, conceber o que os acontecimentos que rela- E, mais adiante, na mesma obra, o título significativo:
tamos puderam ter de doloroso, de inquietante, para os homens que os vive- ''Se se quer que uma religião ou uma república viva muito tempo
ram. Eles sentem a sua época sob a modalidade do retomo; eles a compreen- é preciso freqüentemente fazê-la voltar a seu p~cípio." (Ibid., IU, 1.
dem sob a idéia de decadência: O Prfncipe, assim como os Discursos sobre a Pl. p. 607.)
primeira década de Tito Uvio sfo redigidos na pequena peça de San Andrea
in Percussina onde Maquiavel "suporta uma grande e contínua maldade da A segunda dímenslo do mito dos tempos originários que anunciamos
Fortuna": a proximidade dos acontecimentos italianos está evidentemente ba- acima é dependente, além da conjuntura política da Itália renascentista e do
nhada pelo sentimento que ele experimenta de sua denota pessoal. · ressentimento pessoal, de razOes fundamentais que dizem respeito à cosmolo-
gia geral. Este último ponto merece evidentemente alguns esclarecimentos.
''Eu ignoro se merecerei ser colocado no grupo de pessoas que se . Existe núto, como muito bem o analisaram os historiadores do pensamento
enpnam, ao elevar tfo alto nestes discursos o tempo dos antigos ro- p~~ientífico4 , quando o sentido da história é dado desde a origem numa
manos e ao censurar aqueles em que vivemos. E, verdadeiramente, se a "cosmogonia'' em que grandes ancestrais, heróis ou deuses realizaram ações
virtude que entfo reinava e o vício que domina hoje nlo fossem mais exemplares que puseram fun ao caos para dele fazer um cosmo. Estes 8Jlces-
brilhantes do que o .sol, seria mais contido em minhas expressOes, te- traia dos tempos originários do mundo orientaram o espaço, separaram a ter-
mendo cair no erro que reprovo lOs Qutros. Mas a coisa 6 tio evidente ra do mar, determinaram o Bem ao combater o Mal. Eles deram assim wn sen-
para todos os olhos que n!o hesitaria em dizer audaciosaJt~ente o que tido à vida dos homens e traçaram para a humanidade um programa de vida
penso daqueles tempos e destes, para excitar, na alma dos jovens que le- pelo qual o homem pode mantet o sentido origirWio. Nu magias e nu reli-
rfo meus escritos, o desejo de imitar uns e evitar o exemplo dos outros, litJea, este retorno permanente às origens é o rito. Pelo rito sestual e vocal, ao

50 51
imitar, ao dançar e ao narrar os Gestos Heróicos, o feiticeiro ou o padre dão adiante no mesmo prefácio está ainda mais próximo da análise crítica das con-
.
de novo. eficácia a este próprio gesto, ou, mais exatamente instauram um
tempo sagrado no qual é o próprio gesto originário que é indefmidarnente rei-
dições psicológicas nas quais nascem os mitos na Idade de Ouro:
" ... o julgamento que fazem os mais velhos sobre o que eles vi·
terado e que mantém o cosmo em sua existência significativa e valorizada. raro em sua juv~ntude, e que eles bem observaram, bem conheceram,
O pensamento do florentino é inteiramente profano: apressemo-nos em pareceria igualmente na:o estar sujeito a erro. Esta observação seria cor·
dizer que para ele nl'o há nenhuma força m'sica que nasceria da evocaçlo pe· reta se os homens em todas as épocas de sua vida conservassem a mes·
ri6dica e ritual dos grandes antigos. Estes antigos nlo assumem, em Maquia- ma força de julgamento e os mesmos apetites; e embora os tempos real-
vel, o lugar dos deuses que basta evocar e imitar em cerimônias para que o mente nl'o mudem, eles nlo podem parecer os mesmos aos homens que
mesmo gesto, refeito "em sua memória", reencontre seu poder originário. têm outros apetites, outros prazeres e uma outra maneira de ver. Nós
Nele, o mito está separado de qualquer rito. Com relaçlo A lembrança dos
perdemos muito de nossas forças psíquicas ao envelhecer; e ganhamos
tempos passados, ele explica mesmo sua gênese de uma maneira a que eviden·
em juízo e em prudência; isto que nos parece suportável ou bom em
temente nl'o falta
...._ interesse psicológico: nossa juventude nos parece mau e insuportável: deveríamos acusar so-
''Tõaos os homens louvam o passado e reprovam o presente e, fre- mente nosso julgamento desta mudança; nós acusamos os tempos."
qüentemente, ser:u razão. Eles sl'o de tal fonna amigos do que existiu (Ibid., Pl. pp.Sll-512.)
outrora que, nl'o somente elogiam os tempos que eles nlo conhecem se-
nl'o pelos escritores do passado, mas que, tomadQs velhos, ouve-se-lhes Postos estes limites, !l'O se mantém menos verdadeiro que, separado de
enaltecer o que eles se recordam de ter visto em sua juventude. Sua opi- qualquer influência mágico-religiosa, o pensamento maquiaveliano da história
nilo é, o mais freqüentemente, errônea, e por diversas razOes. desenvolve muitos temas que caracterizam psicologicamente .o mito. Ele reto·
~a em seu conjWltO, tal qual a principal problemática de Tito Lívio. Ao opor
A primeira é que jamais se conhece inteiramente a verdade sobre
o passado. O mais freqüentemente, escondem-5e os acontecimentos que a "grandeza do povo romano" à "Fortuna", este último escrevia: "Do meu
desonrariam um século; e quanto àqueles que fizeram por honrá-lo, se ponto de vista, a origem de uma tio grande cidade (Roma) e a criaç!o de um
os amplifica, se os narra em tennos pomposos e enfáticos... império cuja pot6ncia nio está longe de igualar-se ao dos deuses sio devidas
A segunda razlo é que os homens só têm ódio pela crença ou pela ao Destioo".
inveja, dois motivos que morrem com os acontecimentos passados, os É notável como, para Maquiavel, a "questfo.. levantada por Tito Lívio
quais nl'o podem inspirar nem uma nem outra. Mas nlo é assim com os ainda designa o nücleo das explicaçoes que convém dar à grandeza de Roma.
acontecimentos em que somos nós mesmos atores, ou que se passam Uma a.rgumentaçfo detalhada sobre este ponto alimenta, em conseqüência,
I sob nossos olhos ... 5 O que nós percebemos aí é de tal modo misturado um capítulo central e importante dos Discursos sobre a primeira década de
às coisas que nos desagradam que somos levados a julgá-los mais severa- Tito Lívio. Propõe-se aí saber "qual mais contribuiu para a grandeza do im·
mente do que ao passado, embora freqüentemente o presente realmen- pério romano: a Virtude ou a FortWla". O florentino escreve, e esta será a úni-
te mereça mais louvores e admiraçlo... (Tite-Live. 11, Avant-propos. Pl. ca crítica importante de suas fontes latinas:
pp. 509-510.)
"Diversos escritores, entre outros Plutarco, escritor muito sério,
Estas poucas linhas já assinalam problemas muito importantes da meto· pensaram que a Fortuna teria contribuído mais do que a Virtude para o
dologia e dos juízos históricos, e ultrapassam-nas somente com um século e crescimento do império de Roma. Uma das mais fortes razões que dela
meio de avanço um bom m1mero de argumentos que constituirfo mais tarde a se dá é a própria aprovaçfo deste povo que, ao elevar mais templos à
"querela dos antigos e dos modernos". O que se pode ler wn pouco mais Fortuna do que a qualquer outro deus, reconhecia por isso dela ter tido

52 53
todas as suas vitórias. Parece que Tito Lívio se filia a esta opinião: rara- quica do mundo, a ruptura que o florentino introduz é imensa; é esta imensi-
mente ele faz um romano falar da Virtude sem aí acrescentar a Fortuna. dade que convém medir se se quer compreender em que nosso autor é o prin·
Nfo só na-o concordo com isso mas acho-o mesmo insustentável. cipal dos políticos "modernos". Se se acham entiO, nos textos maquiavelia-
Com efeito, se jamais se encontrou república que tenha feito tantas con- nos, algumas considerações sobre a regularidade de fenômenos da natureza,
quistas quanto Roma, 6 reconhecido que jamais se constituiu Estado elas são, seja puramente literárias, seja, ao contrário, fortemente significativas,
para fazer tanto quanto ela. Foi ao valor de seus exércitos que deveu com a condiçfo de serem ligadas àquilo a que elas se referem: ao ato voluntá·
suas conquistas; mas foi à sabedoria de sua conduta, a esta caracterís- rio pelo qual o homem - um homem, um povo - instaura uma existência po-
tica particular que lhe imprimiu seu primeiro legislador, que ela deveu lítica onde, anteriormente, nada havia que pudesse condicionar esta existência
conservá-las, como nós o provaremos ao longo dos vários capítulos se- política. Digamos, em outras palavras, que o ato pe~o qual a _22lí~_v~ll_l ao
guintes." (Tite-Live. 11, I. Pl. p. 513.) . mundo é criador, isto_~.~ ~~ ~- UUJ...a&enciamento 4e tellll.QS..iiJi.,j4,~~que. ele
Pode-se supor: a crítica que Maquiavel dirige à concepção que. Tito Lí-
'éhwnano,' e <ií.íe' ~i~ faz o homem p!é-pQlítico. alçar-se à sua..h.ununidade ple-
n~~ntê-~~f~!~~-. .
vio fazia dâ'ltistória dos homens é muito mais uma mutação no interior do mi-
Na grande maioria dos textos escritos por Maquiavel é portanto o ato
to do que uma superaçfo real do "conhecif!1ento mítico" da história.
da instauraçfo política que é percebido primeiramente: não é por acaso que a
Por que esta,!Outação, manifesta, como acabamos de ler, por uma crí-
pesquisa maquiaveliana dirige-se principalmente para as origens das cidades
tica dedicada ao tema principal da História de Roma que Tito Lívio escreveu
humanas. Estas origens não são "naturais", elas são começos de obtas livres,
·nos trinta anos que precederam o nascimento de Jesus Cristo? Porque, do au-
isto é, que escapam a qualquer determinismo:
tor latino a Maquiavel, a noçlo de Fortuna se laicizou: tornou-se profana. O
capítulo seguinte deste livro será inteiramente consagrado a esta idéia de "Eu quero colocar à parte o que se poderia dizer de cidades que,
Fortuna. Ver-se-á aí como, de divindade tutelar ela torna-se, sob a pena do desde seu nascimento, foram submetidas a um poder estrangeiro; falarei
florentino, 'ausência de ~~~:9.~tu.r.~; como, de divindade protetoi:a'";i:le Desti- somente daquelas cuja origem foi independente, e que primeiramente se
no, ela torna-se ·~g_:. Af!.'!'.ita de uma Providênciti Maquiavel ;;bsfftui o governaram por suas próprias leis, seja como repúblicas, seja como prin-
mito 'ilõ'nõiiiém: é a virtude
::-.:-n-:t:" • ..
humana
. .. - -
que faz a política
-
e constitui os unpé-
. . - ... - - - - --
. cipados. Sua Constituição e suas leis diferiram como sua origem. Umas
riO.!:_ A ocasião da fortuna" chama seu correlato: a vontade despojada dos tiveram, ao começar, ou pouco tempo após, um legislador que, como
heróis fundadores de mundos, que são os civilizadores prometéicos de uma licurgo nos lacedemônios6 , lhes deu de uma vez por todas as leis que
humanidade a construir. elas deveriam ter. As outras, como Roma, deveram as suas ao acaso, aos
Por conseguinte, toma-se possível apresentar com alguma chance de acontecimentos, e as receberam em várias fases." (Tite-Live. J, 2. Pl.
exatidão a unidade do pensamento de Maquiavel;o lugar que aí detam a cos- p.383.)
mologia e a antropologia, apesar da diversidade de textos e da ausência de
"sistema''. A vontade de um legislador, o acaso, os "acontecimentos" 7 •
O mundo de Nicolau Maquiavel evidentemente não é uma "natureza" A "~~t'!!!~za", portanto, defme, neste primeiro tempo, um campo de
no sentido em que o pensamento moderno nos ensinou a pensar esta última. . possíveis "inconstdni'eS e rilo-üiiiãbase nãiúrâi ~ Políticas; nós o díssemos, o
Nele .~!? M cosmologia em que o universo seria um conjunto ligado de fenô-
Cõnêêftõfundameniãiéentiô-~-d;·;;-c:;~àsião da fortunã•·. ·· ·
--~é o hómem;·denilüiio'põíítfcÕ e-criador. De uma humanida-'
o
§~~ ~~«:tidos a l~s. conjunto de seres é dado mais como hi~ruq~a do
de "na~~.. .P-Jé.7po~!ticã: Viit.u..~. ~o :~têi "civil" ainda-estã suht'eirâneo,
que como regularidade; nlo esqueçamos ainda que é a visfo de mundo que
.simboliza - e conceitualiza - a árvore de Porfírio que comanda todas as con- ele faz um corpo político, república ou principado. Ele é o "Príncipe". Apa·
sideraçOes relativas à «natureza das coisas". Com relação a esta visão hierár- fêét então uma noção bastante Cc;mple:xa no .pensamento de Maquiavei: a do
acabamento desta obra, seu sucesso; mas ela é também, e simultaneamente, a

54 55

11
..
J
resposta dos homens ao ato pelo qual o Príncipe os constitui em corpo políti·
i Ao contrário, a oposiçlo de uma "natureza" a uma "política.. implica
co. Isto fari o objeto de todo o ·nosso üvro 3 e responderá ao título: A ins· urna concepçlo da história que exclui tudo o que chamamos o progresso ou a
tauração política. historicidade da história. Enquanto que, para nós, um dos ternas centrais do
Mas a exist6ncia nacional, e a instauração política deixam subsistir, no estudo dos saberes históricos é sua constituiçlo, para Maquiavel nfo ~ o mes-
nível que lhes 6 próprio, as detenninaç&s n.aturais e passionais nos indivíduos mo. Que a prática cada vez mais fina se articule com um discurso cada wz
que compõem os corpos políticos. As naçOes slo ao mesmo tempo o lugar em mais coerente e aberto; que nestas relaçCes complexas apareçam rupturas, que
que Slo transcendidas as exist!ncias individuais e o em que se defrontam as in· morram e se atualizem superações que pennitam novas apreena&s das coisas
dividualidades. O pn!-político está em luta cont~ o ~!if!~. assim como o in· antigas ao mesmo tempo que se concebam localizaç(Ses de maneiras ultrapas-
díviduo enfrenta~ (na~. Há maus príncipes; há, em cada \un,'Wií nlo-ci· sadas de compreender, eis o que nos 6 relativamente familiar. !ara ~aquiavel,
dadfo. As "repúblicas", formas concretas e acabadas de nações, sfo precárias. como para todos aqueles que nlo puderam pensar a história em seu movimen-
Os malogros dos príncipes e das n~s constituem a via-sacra da políti· tõ;ümãídéia- se,;a ela antiga ou nova - é correiã.óu fàha, ~ sÓmêntê isto.
ca neste-mundo. A luta do natural e do político detennina o malogro dos Es- ·El~ j~ais_é f!llatiyã~Íogo,_ ~~!ávçl ;e!a (ab;.,lut~ ~o~e-~ ~~~~de:
tados e s'ua pot6ncia, sempre, sem que jamais esta luta possa ser superada: a "Se se considera o respeito que se tem pela Antiguidade e, para
lústória é circul~osso Uvro 4 se proporá a esclarecer isto. me limitar a wn único exemplo, o preço que freqüentemente se pasa
Eme.ncia defeituosa e momentânea do homem político, do homem para simples fragmentos de estátuas aníigas, que se é cioso de ter per·
coletivo que se introduz como uma espécie de transcend!ncia no curso de to de si para ornamentar sua casa, apresen"·las e<;mo modelos a artis-
uma humanidade natural, a constituiçlo dos corpos políticos está duplamente tas que se esforçam por inútá-las em suu obras; se, de wn outro lado,
delimitada pelo "natural" das coisas e dos homens. De um lado, com efeito, vê-se os maravilhosos exemplos que a história nos apresenta de reinos
esta "natureza" é wn limite de possibilidades; elâé então a Fortuna feita de e de repúbliéas antigas; os prodígios de sabedoria e de virtude operados
"ocasiOes" moventes e pouco conceitualizáveis no curso do mundo. De outro pelos reis, oficiais, cidadlos, legisladores que se sacrificaram por sua
lado, ela é o que resiste à vontade política, e que fmalmente mata suas obras; pátria; se se os vê, digo, mais admirados do que inútados, ou mesmo de
ela é a cruz da política e morte incessantemente renovada da vontade política. . tal modo abandonados que nfo res1a o menor traço desta antiga virtu·
Destes dois lados, o "natural" é, para a política, limitativo e assassino. de, nlo se pode senlo ser ao mesmo tempo tio estranhamente sur-
Nwn pensamento como o de Maquiavel, cujo centro é a política, a natureza é preendido quanto profundamente afetado. E, entretanto, nas disputas
um avesso, aquilo sobre o que - e apesar do que -o ato demiúrgico irrompe. que surgem entre os cidad!'os, ou nas doenças aos quais eles estio sujei-
Se a morte dos impérios é "natural" , seu nascimento não o é de modo algum. tos, w-se estes mesmos homens recorrerem ou aos juízos expressos, ou
A existência coletivo-politizada nio é uma dimensão da natureza humana; aos remédios ordenados pelos antigos. As leis civis nlo slo, com efeito,
etá nfo mais está implicada na natureza das coisas. O cosmo nlo é nem senlo sentenças dadas por seus jurisconsultos que, reduzidas a princí·
ordem, nem modelo político. ~ um campo neutro e inconstante onde se exer· pios, dirigem em seus juízos nossos jurisconsultos modernos. A mediei·
cem, em vfo e na dor, as despojadas liberdades. na nlo é outra coisa do que a experlertcia de médicos antigos tomada
~~~~q'!_e_n~_5>". existe natureza _humana que sej~ fundado~a da poli· como guia para seus sucessores." (Tite-Live. I, Pref~cio, Pl. pp. 377-'578.)
tica, de ord~Jll ~1c;.tjya, aQ.,tn~!!JllO.t~~P.O 1!1ÇQJD.o.da e"~e.seJa4,a, d<_>mma o _con-
junto. d~s traços humanos reunidos pelo nosso autor. t o que a tradiçlo ma·
quiaveliana chamou imediatamente com uma palavra pouco vazia: o pessimis- NOTAS
mo. ~ também o que se chamou, prematuramente, o " realismo político" que
quer "considerar os homens como eles são". 1. Os títulos italianos das obras citadas neste parágrafo são os seguintes: Isto·
rie fiorentine, Ritratto di cose di Francia, Ritratto delle cose del/a magna, Dis-

56 57
'
corsi sopra la prima deca di Tito Livio, Nature d'uomini fiorentini. De Frm- o crítico reanima estas manchas, quando ele as faz cartas e palavras, elas lhe
cesoo Guicciardini: Ricordanze, Ricordi, Rilazione di Spagna, Storiil d7111- falam de paixões que ele nlo sente, de cóleras sem objetos, de temores e de
í esperanças defuntos ...
lia, Storie rwrentine, Cose fiorentine, Considerazioni intorno ai discorsi dei
Machiavelli sopra la 'prima deca' di Tito Livío. Mas visto que , para n6s, um escrito é uma empresa, visto que os escrito-
2. Para ser mais completo sobre a argumentação desta carta dedicatória é pre- res estfo vivos antes de estarem mortos, visto que nós pensamos que é preciso
ciso também considerar um discurso paralelo e mais circunstanciado que ele tentar ter razão em nossos livros e que, mesmo se os séculos nos injustlçam
também contém, onde se "mostrou" que os Grandes devem se cercar de con- depois, isto não é razão para injustiçarmos de antemão, visto que considera-
selheiros "populares". Sobre o nome de um tal conselheiro, Lourenço de Mé- mos que o escritor deve se engajar inteiro em suas obras e não como uma pas-
dici não tem de hesitar: "Eu nfo desejaria de modo algum que se me imputas- sividade abjeta, que na frente coloca seus vícios, suas infelicidades e suas fra-
se a presunção de que, sendo de pequena e baixa condição, ouso, entretanto, :.·...
quezas, mas como uma vontade resoluta e como uma escolha, como este em-
discoflCr sobre o governo dos príncipes e lhes dar as regras; porque como preendimento total de viver que cada um de nós tem, então é conveniente que
aqueles que desenham as paisagens se mantém em baixo, na planície, para retomemos o infcio e que nos perguntemos: por que se escreve?".
contemplar o aspecto das montanhas e dos lugares altos, e se encarapitarn so- Salutar advertência dirigida ao leitor. .. e ao autor. Convite a devolver a
bre elaspar' melhor considerar os lugares baixos, assim também para melhor Maquiavel pelo menos o que ele deu: ele tomou, em sua vida, os autores com
seriedade, ele não os matou pela química da leitura muíto freqüentemente
conhecer a natureza dos povos é conveniente ser Príncipe e, para a dos prínci·
pes, ser popular ...". (lbid., Pl. pp. 289-290.) praticada nas bibliotecas. Ele não lhes concedeu esta chata irrealidade que se
3. A idéia de vírtu é central no pensamento de Maquiavel a tal ponto que se dá aos mortos.
pode considerar que ela lhe é seu ponto nodaL Tudo o que se segue (em parti- 6. A existência de Ucurgo é um 'bom exemplo de mito político. Muito certa-
cular o livro lll, na sua quase totalidade) tenta explicá-la. A palavra virtu é mente criado no decorrer do século VI antes de Cristo pelo séquito de Chilon,
propriamente intradutível. (Ver, a este respeito, a nota 7, página 73.) este herói civilizador fora o legislador dos "tempos primitivos" (século XJ antes
4. Sem dúvida muito exclusivamente fenomenológicos, os melhores livros de Cristo). Ele daria um fundamento semidivino às antigas práticas políticas ,
que se pode consultar sobre o pensamento mítico me parecem ser os de Mir- dando-llies a força de resistir às reformas. ücurgo partira de Esparta: espera-
cea Eliade. Cf. Le SaÚé et le profane - le mythe de l'étemel retour. N.R.F., va-se 'seu retomo. Mesma estrutura do mito de Quetzacóatl, nos toltecas. Mes-
coleção "Idées". ma estrutura nos pensamentos em que a Idade de Ouro abre-se sobre um Pa-
5. Como nfo evocar, para esclarecer esta observação capital de Maquiavel, o raíso, graças ao retomo glorioso de um juiz supremo da manutenção dos va-
excelente texto de Sartre (Situatíons Il, 1948, Gallimard, retomado em lores ancestrais.
Qu'est-ce que la littérature?, coleção "Idées"): "O crítico vive mal, sua mu- 7. O texto italiino diz: "alcune le hanno avute a cado ed in pfú volte e se-
.condo gli àccidenti ., ·: "Accidenti" e não "fattí': nem "avvenimenti': nem
lher nã'o o aprecia como seria preciso, seus filhos são ingratos, os flOS de,rnês
"eventi': Portanto, no pensamento de Maquia\tel, trata-se bem mais de "aci-
difíceis. Mas sempre lhe é possível entrar em sua biblioteca, pegar um livro
dentes", no sentido do latim "accidit" e não de "evenit". A tradução por
numa estante e abri-lo. Solta-se dele um ligeiro odor de cave e começa uma es-
"acidentes" e não por "acontecimentos" f~eou mais clara.
tranha operação que se decidiu chamar a leitura. De um certo lado 6 uma pos-
se: empresta-se seu corpo aos mortos para que eles possam reviver. E, de um
outro lado, é um contato com o além. De fato, o livro não é de modo algum
um objeto, nem também um ato, nem mesmo um pensamento: escrito por um
morto sobre coisas mortas, ele nlo tem lugar algum sobre esta terra, não fala
de ~ada que nos interesSa diretamente; deixado a si mesmo ele se empilha e se
despedaça, restam S<?mente manchas de tinta sobre papel bolorento e, q~do

58 59
própria Fortuna efetua. :e-nos necessário entfo ~nunciar o que a Fortuna per·
mite pensar, o que ela exclui que se pense, o que ela produz nesta semintica
articulada que é o sistema de Maquiavel. Ao que ela remete? De que ela 6
signo, cada n()Çfo -sendo ftnalmente o núcleo, uma maneira de ligar os temas
e de ordená-los numa paisagem mental que é o todo de um determinado pen·
sarnento, portanto, de uma determinada obra?
Sem dúvida o pequeno capitolo sobre a Fortuna, assim como o cujo
•' objeto é "a ocasifo" slo pouco conhecidos e muito pouco freqüentemente ci·
tados. Eles parecem triviais em seu emprego num autor cujos textos principais
/
slo, aparentemente, de outra seriedade. Aliás, a ediçfo das "obras completas"
reproduz os capitoli com outras "poesias e prosas diversas". Ora, nós o disse·
mos, a exposiçlo poHtica ou histórica nfo exclui o comentário 1 assim co-
mo nlo ~ incompatível com o tratamento na direçfo de uma questlo limita-
da.
" ... a multid!o lhe (a Fortwta) dá o nome de Toda-Poderosa
Capítulo 2 porque quem quer que aceite a vida neste mundo sente cedo ou tarde
A Fortuna seu império.
Freqüentemente, ela mao~m os bons fracos sob seus pés enquan·
to que engrandece os maus, e se por vezes faz uma promessa, jamais se
"De que rimaS, de que versos poderia eu alguma vez me
servir para cantar o reino da Fortuna, suas prósperas aventu· lhe viu mantê-la.
rase suas·adwrsidades. Ela destrói de alto a baixo os Estados e os reinos ao sabor de seu
E pua dizer como, por llWs que a julguemos completa· capricho e rouba ao justo o bem que ela desperdiça ao perveno.
mente injuriosa e importuna, ela reúne todo o uniY~ ao Esta deusa inconstante, esta divindade volúvel freqüentemente
redor de seu trono?..
coloca aqueles que slo dela indignos num trono em que aqueles que a
Capltolo de la Fortune.
mereceriam jamais alcançam.
Ela dispOe do tempo ao sabor de sua vontade; ela nos engrandece
Harmonia ou caos; necessidade ou contingência; acaso ou Destino. Os
e nos destrói sem piedade, sem lei e sem razlo.
desenvolvimentos destes temas ordinariamente têm menos intqresse - pelo
Ningu6m sabe de quem ela é filha, nem de que raça ela nasceu: o
menos, mteressam·tlO$ menos em nossos dias - que nlo é significativa para
um autor a escolha de um1l destas possíveis témáticas, f.oi o que aconteceu
que há somente de certo é que o próprio Júpiter teme seu poder." (Ca·
pito/o de la Fortune. Pl. pp. 81-86.)
tamb6m com Maquiavel: a noçlo de Fortuna é a moeda de uma vislo de mun·
Tudo é classicamente pagão neste capito/o: é a lei da fanulia do epigra·
do; ela nfo tem o ~-5!2~tQ.Ae .~-:~_mçe!tÕ~;Nfo nos seria muito útil, conse- ma. Além desta apadncia, convém nfo perder de vista a distância epistemo-
qüentemente, entrar no estudo analít iCõ de textos, ~mo se a Fo~a pudes- lógica que separa o florentino da antiguidade latina. Esta distância suprime a
se ser um obj_eto de estu~? :.Estes textos slo numerosos, algumas vezes aparen· noçfo de Fortuna do quadro intelectual que era o seu na religiio romana,
temente contraditórios, algumas vezes tamb6m realmente opostos, de um con· mesmo decadente 2 • Esta Fortuna deve entfo achar um outro lugar sígnificati·
teúdo diverso conforme o serviço que é pedido a esta noçlo. Muito mais im·
vo de outra realidade. Relacionada ao conjunto do pensamento de Maquiavel,
portante é a sfntese ·operada em tomo da id6ia de Fortuna, ou melhor, que a

60 61
a Fortuna nlo é um princípio de explicax3'9 que seria, por exemplo, comple-
Há, nos textos de Maquiavel, algumas consideraçOes sobre uma ordem
;;;;;;;;; de wnã -explicaçfopela
vontade nos homens: "Ela nos engrandece e geral do mundo. Esta ordem chama-se novamente Fortuna, e esta não é a me-
nos desirói sem piedade, sem lei e sem razlo". Bem ao contrário, ela é invoca- nor das ambigüidades desta n~o sem estatuto epistemológico unívoco.
da como princípio cuja funçfo epistemolósíca é a de deM[Uilli/icar quak[uer Compreendamos: para o indívíduo e para os cálculos de um comportamento
explicação naturalista, cosmológica ou empirica das fundações 'políticas: em curso de se decidir, .!l .~~r_tuna ~~clt,# qu_e h;tiL~!.~!.~nci!~ssível da açlo
"N~m sabe de quem ela é filha, nem de que raça ela nasceu: . .". - politicamente oportuna ("Tu mesmo, enquanto perdes teu te~po-a me falar ,
A Fortuna existe somente para dizer a neutralidade do mtmdo em maté- iriteiramente entregue á-teus vãos pensamentos..."). Isto não exclui, ao con-
ria áe política; ela preenche uma função de abandono. Pela Fortuna, o mundo trário, que, na escala do todo, da história, do passado, ela possa sem inconVe- ,,
pré-dvil - o que precede o ato pelo qual o homem se faz político- 6 vazio. níente5ei dada conto fatalidade. o~- !rata ~e excluir, no nív~l da ação, é
Parece1os evidente, por conseguinte, que uma parte dos comentadores .de que ~~sta.~a regra_SY'&!A.~l~·la reco~~~er.
Maquiavel, numericamente frágil aliás, e pouco importante em sua interpre-
taçlo do maquiavelianismo, enganou-se ao entender a Fortuna como uma Pro- "A Fortuna cega o espírito dos homens quando ela nlo quer que
vi~ncia. Ela, ao contrário, 6 urna dupla negação dela: nlo somente, com efei-
eles se oponham a seus desígnios." (Tite-Live. li, 29: título.)
to- observaçfo trivial -, ela nega todo o país religioso de onde nasceu;mas Comecemos este capítulo:
ainda serve para recusar o que poderia ser dado como seu equivalente laiciza-
do ou ateu : a regularidade implacável da ordem das coisas. . "Ao considerar atentamente a marcha das coisas humanas vê-se
que M acontecimentos aos quais o próprio céu parece significar aos ho-
''Quem és tu, tu que nlo pareces uma mortal, tanto que o ~u a
mens que eles nlo têm do que se desviar; ora, se se viu isto em Roma,
ornou e enfeitou com suas graças? Por que nJo repousas de modo al-
onde reinavam tantas virtudes, tanta religião e tanta disciplina, nlo é
gum? Por que tens as ~ a teus p6s7
surpreendente revê-lo nas cidades e naçOes que delas slo desprovi-
Eu sou a Ocasifo; e muito poucos me conhecem: e o porqu! nlo
das... " (Pl. p. 595.)
cesso de me movimentar 6 que sempre mantenho um p6 sobre urna ro-
da. A Fortuna fatal nlo é a vetora de um determinismo político sobre
Nfo existe nada tio rápido que se iguale a meu curso; e somente o qual seja poss(vel apoiar-se para agir. Os autores da idade científica insisti-
conservo as asas a meus p6s para faScinar os homens na passagem. ram bastante sobre este ponto para que nlo seja necessário nele nos estender:
Eu trago diante de mim todos os meus cabelos flutuantes e es- _!.fatalidade é uma ~tuQría mental que se conju~.I\~J~t~~o.!m.~rior..._f!!.<?.~O
condo sob eles núnha palavra e meu rosto para que eles nio me reco- presente.. nem muito..menos no.futJJtO. Tudo terá sido necessário amanhf, ~aS
nheçam quando eu me apresento. ~siã necessidade nfo ~~r desef!~~ ~os-~~teclmeJ!~S de hoje que,
Atrás de minha cabeça, nenhum cabelo flutua, e aquele que teria e~~o, a P!!!ir de ~an!-f, -~~~~~~ C2~_:_!.end!>_s_!~_?_ne~~os" na
me deixado passar, ou diante do qual eu me teria voltado, se fatigará em categoria do "tersido~::_ Numa perspectiva bem diferente da nossa, Bergson es-
vfo a me surpreender. creveu uma 'boa-psicologia sobre esta "iluslo retrospectiva da fatalidade".
- Diga-me: que é aquilo que caminha? Notemos esta passagem muito significativa de Maquiavel, que se encontra a al-
- E o ~ependimento. Assim, preste muita atençlo: aquele que gumas linhas do texto que acabamos de ler:
nlo sabe me alcançar guarda somente remorso.
"Poder-se-ia citar exemplos modernos em apoio desta reflexão,
Tu mesmo, enquanto perdes tempo a me falar, inteiramente en-
mas nfo o creio necessário; o dos romanos deve bastar e nele me mante-
tregue a teus vãos pensamentos, não te apercebes, infelizmente, e tu n1o
rei." (Jbid.)
sentes que eu já te escapei das rolos." (Capitolo de /'Occosion. Pl. p.Sl.)

62 63
/
O principal papel que desempenha a Fortuna no julgamento que se falar, mas numa língua a tal ponto indireta que a semiologia que ela invoca é
pode estabelecer sobre a história política dos homens ~. nlo o de esclarecer ambígua. Muito tarde se saberá que os prodígios eram sinais:
uma açt:o, mas o de deslocar o problema que pode colocar a responsabilidade
"Eu ignoro de onde isto wm, mas IJ'Ifi exemplos antigos ou me>
~ - . _.. , e o resultado de___
uma vontade _,uma __
do sucesso ou da derrota . ~- ~ortuna _mec;te a distância que sep~ _a empresa de
_ ... obra:
demos provam que jamais acontece nenhuma grande transformaçlo
numa cidade ou num Estado que nlo tenha sido anunciada pelos adivi-
" ... os homens que vivemhabilmente* 3 nas grandes prosperidades nhos, revetaçoes, prodígios ou sinais celestes. Para nlo relatar dela um
ou nas grandes infelicidades merecem menos do que se imagina o louvor exemplo tomado fora de nós, sabe-te de que maneira o padre Girolamo
ou a reprov~. Se os verá a maior parte do tempo precipitados na ruí- Savonarola predisse a chegada de Carlos VIII na 1Wia4 ; e que, em toda
na ou_ na grandeza por uma irresistível facilidade que lhe concede o ~u. a Toscana, principalmente em Arezzo, viram-se homens que se entrega-
r quer lhe elimine, quer lhe ofereça a ocasião de exercer sua virtude. vam ao combate nos ares.
Tal ~ a marcha da Fo~: quando ela quer conduzir um grande Todos sabem igualmente que pouco antes da morte de Lourenço
projeto a cabo, escolhe um homem de um espírito e de uma virtude tais de Médici o raio caiu no alto do Dôme, e isto com tanto estrondo que es-
que eles lhe permitem reconhecer a ocasiio assim oferecida. Do mesmo ~e edifício foi consideravelmente danificado. Nlo se sabe igualmente que,
modo, quando ela prepara a derrubada de um império, coloca à sua pouco antes da expulslo de Piero Soderini, nomeado gonfaloneiro vita-
frente homens capazes de lhe apressar a queda. Existisse qualquer um lício de Florença, o mesmo palácio foi abalado pelo raio? Poder-se-ia
bastante forte para pará-la, ela o massacraria ou llie eliminaria todos os citar' uma infinidade de outros exemplos que terno aborrecer . .." (nte-
meios para nada realizar de útil." (lbid, Pl. pp. 596-597.) Live. I, 56. Pl. pp. 499-500.)
Nada se pode saber do que quer a Fortuna. Nfo há ciência da fatalida- AJgwnas vezes, é verdade, a natureza é mais explícita, e sabe tomar par-
de e este é, uma vez mais, o principal papel da noção que reencontramos na tido de uns contra outros:
conclusA'o do mesmo capítulo. A ordem do m~do não é de modo algum uma
"Narrarei somente o que, a partir de Tito Lívio, precedeu a chega-
base científica possível da ordem política:
da dos gauleses em Roma Um plebeu, chamado Marcus Ceditius, foi
.~
"Eu repito então, como uma verdade incontestável, e cujas provas declarar no Senado que, ao passar de noite na rua Nove, escutara uma
estio por toda a parte na história, que os homens podem ajudar a For- voz mais forte do que uma voz humana lhe ordenar para avisar os magis-
tuna e nlo se llie opor; urdir os fios de sua trama e niO os arrebentar. ...._ trados que os gauleses vinham a Roma" (Ibid, Pl. p. 500.) .
NA'o acredito por isto que eles devam abandonar-se a si mesmos. Eles
ignoram qual é seu objetivo; e como ela somente atua pelos caminhos Estes textos, extraídos de páginas sem dOvida alguma maquiavelianas,
obscuros e indiretos, resta-lhes sempre a esperança; e, nesta esperança, merecem que nós tentemos compreend!-Ios de outro modo do que por uma
eles devem retirar a força de jamais se abandonar, em qualquer infor- rápida refer6ncia, pouco séria, ao "espírito" do tempo em que eles foram es-
t6nio ou mis6ria em que possam se achar." (lbid, in fine.) critos. Sem dúvida o florentino poderia, sem dificuldade, a seus olhos, conce-
ber um sistema do homem e nfo excluir de modo algum o prodígio. Ele foi
Quando as coisas do mundo, tomadas globalmente, siO reputadas fatais, um entre os outros, todos os outros dos que tiveram a sua amplitude: de uma
o homem submetido a esta fatalidade somente tem de lhe ler os sinais. O sinal ~rpreendente modernidade nas pesquisas que ainda nos dizem respeito, e vi.-
nlo é a causa do que chega, nlo é dele uma parte a partir da qual se poderia, vendo ao mesmo tempo de noçOes de que devemos nos sentir para sempre
graças a um cálculo inteligente e competente, inferir o todo: ele lhe ~ a ·afastados. A alquimia de CardA', como a de Leonardo Da Vinci, avizinham-se
"advert~ncia". Advertência sempre confusa, opaca, oráculo equívoco, eclipses do mesmo modo das fórmulas matemáticas em que a álgebra progride e das
e meteoros, trovfo e tempestades. O sinal fala muito da coisa de que se quer invençOes mecânicas de um empirismo racional indiscutível. Mas é precíso

64 65
/

ramL mpreender tais frases na economia geral do pensamento político- revoluções que se viu e vê todos os dias, ultrapossando qualquer conjuc-
cósmico de nosso autor. tura dos homens ~ Se bem que ao pensar eu mesmo algumas vezes nisso,
Há ~rtanto "sinais" que anunciam as grandes mudanças nos Estados. em parte me deixei levar por esta opinilo ..." (Jbid., Pl. pp. 364-365.)
"" InteresseméHlõs por isto: no conjimto dos textós, as últicàs ooni~D.ciãSdo
tn~~<? úta.na~Y.. ~~).~. d~ unive.~polít~·-~~~#.~óf.áe~-dó-~~~ Imediatamente, entretanto, a noçlo de Fortuna reenvia a isto em rela-
n!~ si~..aco!'tec!mm!Q: Há somente sinais... A16m disso, estes sinais nlo sio çlo à qual ela é Fortuna:
absolutamente claros, nem constantes, s!o prodígios, puntuais, maravilho·sos, "Todavia, para que nosso livre-arbítrio nio seja aniquilado ...
raros, pertencentes a uma teratologia da natmeza. ºIn~ única e~cie de pga- eu a comparo a um destes rios acostumooos a transbordar, que ao se
~ por!antç ...ç~ttado .~ ..Q.$<Q~.~-()~. Este próprio milagre co- enfurecer inundam a seu redor as planícies, destróem as árvores e as
manda, em Maquiavel, imediatamente, um retomo ao hom~eo : se há sinal, casas, roubam terra de um lado para dá-la a outro lado; todos fogem
6 que há no cosmo co~ncias difusas capazes de fazer sinais. O cosmo pode diante deles, todo o mundo cede a seu furor, sem lhes poder colocar
assinalar na medida em que ele está povoado de ~ncias: muralha alguma. E embora eles sejam assim furiosos em alguma estaçfo,
' 'Para explicar a causa destes prodígios seria preciso .ter um conhe- os homens, todavia, quando o tempo está tranqüilo, nfo deixam de ter
cimento das coisas naturais e sobrenaturais que eu nlo tenho. Seria tal- a liberdade de se precaver atrav6s de muralhas e diques, de sorte que, se
vez possível que o ar, conforme a opinilo de certos filósofos', fosse eles subissem uma vez mais, ou desaguariam num canal, ou seu furor de
povoado de inteligências que, bastante dotadas para predizer o futuro e modo algum teria tfo grande desregramento e nllo seria tJo ruinoso. ~
tocadas de ,compaixlo pelos homens, os advertissem peloa sinais para se sim suce.de com a Fortuna, que demonstra seu poder nos lugares em que
pôr em guarda contra o perigo que os ameaça. O que quer que seja, a nfo há força alguma preparada para lhe resistir e dirige seus assaltos ao
verdade do fato existe, e estes prodígios sempre slo seguidos de mudan: lugar em que ela sabe bem que nfo há muralhas nem diques para lhe
ças as mais importantes nos Estados." (lbid., Pl. p. 500.) resistir." (lbid., Pl. p. 365.)

A noçlo de Fortuna, como nós a vemos, desempenha em Maquiavel um ~!:~rum~ é o que provoca a o~ção ~.:V~~· Em ~!açfo ~. ~S!a
papel multiforme e p~en~~ifunçlo de síntêse, apeur - e graças ã -das V~de ela é uma resist~ncia, um obstáculo; mas 6 tamb6m a· portadora das
diferenças de formuiaçlo. Ela tradÜz ao me5mo"iémpo uma opção intelectual ocasil5es de agir. Ela é aquilo em que o homem desafia sua humanidade. E
10bre o Todo sempre a excluir a compreensõo de determinismos parciais6 • O tamWm medida dos fracassos, dos desvios, dos êxitos. Em si mesma, 6 privada
texto mais complexo sobre esta noçlo 6, sem dúvida alguma. o capítulo 25 do de sentido cósmico e, ainda mais, de sentido antropológico. Apelo dirigido
Pt-incipe, que tenta responder à questlo que seu título assim enuncia: "De pua o homem existir, astúcia ou presa, verdade para se apoderar ou mentira
quanto pode a Fortuna nas coisas humanas e como ae lhe pode resistir". eedutora, Capitólio ou rochedo tarpeio. A Fortuna chama a Virtude como seu
A Fortuna 6 aí antes de tudo o curso do mundo, de que o saber huma- parceiro e como seu acólito. Ela tira seu nome da confrontaçlo: se ela é
no nfo seria conhecedor: Fortuna, é por urna vontade que deseja imprimir sua virtude no curso do
mundo e dela fazer um fenômeno deste mWldo.
"Eu bem sei que alguns foram e sio de opinifo de que as coisas O absoluto que a Virtude é reencontra a Fortuna sob as esp!cies de mu-
deste mundo sejam desta maneira governadas por Deus e pela Fortuna, dança do imJnvisível mutável:
que os homens com toda a sua sabedoria nlo podem dominá-las, e aí
..Eu concluo, portanto, que sendo a Fortuna mutável e os homens
nfo tenham mesmo rem6dio algum; por isso, eles poderiam considerar
peonanecendo obstinados em seus modos, s1o felizes enquanto os dois
quase vlo cansar-se em dominá·las, em vez de se deixar governar pela
se combinam juntamente, e, tio cedo eles discordem, infelizes." (lbid..
sorte. Esta opinilo recuperou crédito em nosso tempo pelas grandes
Pl. p. 367.)

66 67
-------------~---~....'>'~"!~""'r:'":"'"'"' •'.H".I "~" - "'·:'." "'·''•• ' "

---- " , Esta relaçfo entre o homem e o mundo nlo é simétrica: nlo é a de duas NOTAS
. vontades homos~neas que se oporiam. A Fortuna nio deve ser compreendida
de uma maneira análoga ao que sert, mais tarde, o "gâlio maJisno";ela nlo ~ 1. Os epigramas da Renascença retomam os da antiguidade grega ou latina.
\ um livre arbítrio em luta com o livre .arbítrio do homem. Esta relaçfo nJo é Por exemplo, o capitolo "da ocasião" copia -apenas - o décimo segundo
assim uma oposiçlo dial~tica, embora. de uma certa maneira, se apresente sob epigrama de Ausone (poeta latino do século IV).
a forma da contrariedade; a Fortuna e a Virtude, com efeito, jamais se sinte- 2. Reencontraremos de novo as "idéias romanas" no decorrer de nosso Uvro
tizam nwna realidade que superaria a ambas; elas permanecem i~nticas a si 3. Cf. nota 20, página 109.
mesmas, como termos eternamente contrários. Para além das apar!ncias dra· 3. As passagens das citações impressas em tipo itálico e imediatamente segui-
mtticas da política, esta oposiçlo ~ estttica, congelada nas convulaDes que a das de um ~terisco são sublinhadas por mim.
manifest~. O tempo da política ~ o do movimento no imóvel, e reencon- 4. Savonarolà predizia a iminente chegada do tempo do Apocalipse.
traremos mais tarde o retomo eterno da história circular. S. Eram numerosas as variantes do averroísmo no universo intelectual floren-
Maquiavel, nós o dissemos, n!o conceitualizou, numa cosmolosia geral, tino. O pensamento do ftlósofo de Córdova, traduzido do árabe e do hebreu
as relações do homem e do mundo. Esta ausência de cosmologia é propria- desde o século Xlll em Pádua, não pôde chegar até nosso homem sob a forma
mente o que libera o campo da política, prepara os problemas de nossa polí- de um clima intelectUal. Maquiavel, contudo, jamais cita e provavelmente n!o
tica, repele o agostianJsmo para um outro planeta. Da Fortuna, do chamado leu os grandes averroístas de seu tempo. Nem mesmo Agostino Nifo, nascido
que ela lança em sua indiferença à demiurgia política do homem, como for- no mesmo ano que ele, nem Marsilio Ficino, de que ele diz uma única vez
. necer o que poderíamos chamar de conceitos? Imagens, portanto, signos de
que foi "o segundo pai da ftlosofia platônica" a propósito de um retrato de . ..
uma ruptura com os sistemas anteriores, e feitas para evocar e nlo para ex-
Cosme de Médici, "que alimentou em sua casa e muito amava Marsilio Fiei-
plicar. . no". (Histoires florentines. VII. 6. Pl. p. 1297 .) Também nada sobre Pietro
A primeira destas imagens é da ordem da quantidade : Pomponazzi, seu contemporâneo próXimo de alguns anos (1462·1525). 1!
''Para que nosso livre arbítrio nfo seja destruído, eu considero raro, muito raro, que Maquiave1 faça alusão ao que se conveio chamar "o em·
que pode ser verdadeiro que a Fortuna seja dona da metade de nossas preendimento filosófico", todavia vivo e poderosamente sintético em sua
obras, mas que etiam ela nos deixa governar quase a outra metade de- lpoca. Ele ilustra a nossos olhos esta reaJ.idade que é a conllergência de espí-
las." (/bid., Pl. p.365.) ritos de uma época sobre os temas que conceituali.zam - diversamente - os
problemas objetivos desta época. Ele nos toma sensível, a propósito, tudo o
A segunda, antropomórfica, tem um conteúdo análogo lquele que...!6s que pode ter de artificial e de teoricamente pouco fundado na pritica unilate-
manifestamos acima. Ela é semelhante a outros aínda, mas é bastante signi- ralmente intelectualista que chamamos entre universitários de "história da fi-
ficativo do que ela evoca para que nós nos limitemos a isso: losofla", que reduzimos à história de idéias cujo estatuto ftlosófico é entre
nós reconhecido, como se o füosófico não tivesse nenhuma relaçlo com ores-
" . . . eu tenho a opinilo de que seja melhor ser corajoso do que to.
prudente, porque a Fortuna é mulher, e ~ necessário, para mant!·la 6. O fatalismo é a única opçã'o possível dos pensamentos que, nDo tendo os
submissa, bater·lhe e contrariar-lhe. E comwnente se vê que ela se dei- meios de apoiar a escolha esclarecida, o cálculo e a decisão sobre um conheci-
xa vencer mais por estes do que por outros que procedem friamente. mento limitado mas, entretanto, efetivo das ligações entre as causas e os efei-
t por isso que ela é sempre amiga dos jovens, como mulher, porque
eles têm menos respeito, mais ferocidade e com mais audácia a co-
o
tos, concebem sinteticamente todo. Nestas condições, segundo o peso rela-
tivo que se pretenda dar ã fatalidade do todo, de um lado, à vontade do ho-
mandam" (Ibid., Pl. pl367.) mem, de outro lado, a importância do Destino na representaçlro do mundo, é

68 69
·---------"""'--g;:;;;-----"·""'····'" '~""''·"' '~ ""''1"V . . . .. ., . . . '" . · ··.:~""
· --·--

diversamente ponderada. Em Maquiavel, é constante que a principal preocu-


pação seja dar nítido lugar para a vontade atuante do homem político: ~­
tade escapa portant~ .~ .fatalid~de , esta própria fatalidade tornando~ uma
9eqüincia.nio:Sisiêmatizável de ocasiões disjuntas e diversas. Outros pensa-
mentos agenciam de outro modo temas de mesmo nível epistemológico: é o
caso, por exemplo, do estoicismo de Crisipo, que compreende a determinação
da vontade doS homens na própria fatalidade: "Que tu faças vir ou não um
médico, tu curarás". (Crisipo, interpretado por Cícero: De fato, XIII, 30}. Cri-
sipo está m~ preocupado com uma opção sobre a ordem do mundo; Maquia·
vel nos fala do homem.

CONCLUSÃO DO IlVRO 2

O que até aqui nós dissemos da história, do papel que af desempenha a


Fortuna como auaência de bases naturais da política, permite-nos agora con-
cluir em termos um pouco mais sint6ticos.
;. As diversas formas do materialismo, até a oonstituiçlo de uma teoria
materialista da ~ncia, se apresentaram como reivindicaçoes da liberdade.
Esta liberdade se encontra num mOJJimento de retomo ao imedillto. Este ime·
diato, em Maquiavel, ~ o da. vóniãlte. Esta conduz a uma libertaçfo com reta-
~.-
çlo aos sistemas de representâçlo: sistemas dogmáticos, mas também sistemas
.I do empírico. Tanto como nlo há Providencia, nfo há ordem das coisas na for·
ma prtitica de Destino: lirniti'()i~·itno~çl~ de. ~-~ewmi-
..aad.L.PÕrt;iio, ~ siSnif}êatiVo ·q~ a ordem sÓb suã formãiiaiiscin(Jente teo-
centrica seja colocada ao lado da ordem natural empírica, para que todas as
duu lejam invalidadas pelo mesmo morimento.
O Secretário entra entfo nesta enorme tradiçlo filosófica pela qual a
Uberaçlo do querer passa pelo abandono dos sistemas e isto até na forma em·
. pírica de que podem se revestir estes últimos. Se para ele nlo há ci6ncia possí-
wl da e:<>líti~ é .P.>~Que nl'o h•~rdem na~~-ooiW da poÚticL.Pàce aos
liltemas pelos quais a prática política - a sabedoria, a habilidãcfé;ã justeza e a

70 71
..
'· '.,

justiça políticas - é concluída de uma ordem de coisas pré-políticas - o direi- O elementar atômico é o que proíbe falar do Todo como um todo coerente,
to natural, as necessidades da cristandade, mas também a geografia, a econo- uno, harmonioso, enquanto totalidade, porque precisamente s6 o elemento
mia, o jogo das paixOes humanas -, o pensamento de Maquiavel faz do ato é real. Esta realidade exclusiva da partícula conduz ao fato de que o Todo, o
político um aparecimen~ . fen~~l!.? -~-C?~-~~-_?o_ ~it~, o cosmo, nlo slo senlo uma ac_umulaf_ãq_qçi-
dentlll, sempre revogável no tempo e dispena no espaço infulito6 • Que o
mundo Seja tâi-ou qual é então o que jamais se pode diur de m~eira exauJ.-
Uma analogia esclarecedora ~ - - -- . - --- ·- .. - --- --
!tva:_tsto é, plenamen~ . in~~!v~. Ai está, sem d(Jvida, a YCrdadeira inspira-
Çio destas "explicaÇOes múltiplas" que Epicuro dá dos fenômenos globais,
Bem mais do que de Aristóteles, é então de Epicuro que Maquiavel ado-
enormes, que pOem em jogo milhOes de átomos e que resultam de combi-
ta o terreno ftlosófico. Junto a enormes diferenças, de que esta está no ceme
naçOes casuais: estas explicações slo, todas, igualmente verossímeis, todas
de nosso problema: para Epicuro, o imediato da vontade seria individual e o
elas podem ser sucessivamente verdadeiras, niio há ciência possível em seu
retomo ao imediato da vontade seria um retorno à ética, na-o à política 1 • ~!!'a
nírel. Quando se afasta do elemento, do puntual, do imediato, introduz-se
Maquiavel, ao contrário, o imediato da vontade é coletivo, é político. Ao me·
o acaso, o irregular e o fortuito como "leis" de Ugaça-o dos elementos.
nos, como o veremos com mais detalhe a seguir2 , o ato individual do Príncipe
A funça-o que as combinações casuais preenchem em Epicuro é a de
tem outros homens por objeto, e, mais ainda, eiedete~ina ~Õs ~utros ho-
nos liberar do "destino dos físicos'', isto é, do conceito chave das ftloso-
mens uma resposta voluntária, que é homogênea em seu ato inicial. A vonta-
fw pelas ,quais a necessidade é o modo de ser do Todo. A necessidade -na
de, que para o ftlósofo do Jardim seria instauiadora de umÚtica materialista, espécie, a inal~q~- é o modo de ser do elementar:____ __ ____ ·
___..-· ... - -- - -- h•.__.___ __,
toma-se em Maqulavel lnstauradora de uma política. Entretanto, esta reserva
estando feita, a relaçlo da vontade e da representaçao é análoga nas duas em- ''Nfo há nenhuma ordem no mundo. Muitas coisas slo feitas de
presas materialistas. outro modo do que elas deveriam ter sido... nem os olhos sa-o feitos
Eis aqui o texto de Diógenes .Laerte que, ao compilar Epicuro 3 , nos co- para ver, nem os ouvidos para escutar, nem a língua _para falar, nem
loca imediatamente no centro desta analogia: os pés para caminhar, porque todos estes 6rgf0s nasceram antes que
tivessem existido a linguagem, a audiça-o, a vfslo, o andar. De modo
)
''Quanto ao destino, que alguns vêem como o soberano de tudo, o que estes 6rglos nlo surgiram para preencher estas funçOes mas estas
sábio ri dele. Com efeito, ainda vale mais aceitar o mito sobre os deuses são o resultado dos primeiros..." (Transcrito por Lactance. Des insti-
do que se submeter lW ~stino do! físicos*•. Porque o mito nos deixa a tutions divines, P.U.F. Textos escolhidos, p. 69.)
esperança de nos conciliar com os deuses pelas honras que nós lhes pres-
O órgão antes da funçl'o e nlo com vistas à funça-o, o germe antes da
tamos, enquanto que o destino tem a característica ~ necessidade ine-
planta adulta, a "semente" simples e elementar antes do Todo constituído:
xorável.
No que conceme ao acaso, o sábio nlo o considera como a multi· " . . . tudo se produz necessariamente por si mesmo... sã'o as
dlo, como um deus, porque nada é concluído por um deus de uma ma- sementes adejantes através do espaço vazio que, agrupando-se por
neira desordenada, nem como uma causainstável. Ele nlo acredita que acaso*, produzem e fazem crescer todas as coisas." (lbid)
o acaso distribui aos homens, de maneira a lhes causar a vida feliz, o
Compreende-se que, no pensamento dos epicuristas, a consideraça-o
"beniõ-; o mal, mas ques-ele lhes
__ fornece
____os. __elementos
-------- . .. dos
---- grandes
.. bens das origens mantenha um lugar intelectualmente cardinal. Lucrécio lhe con-
--ou _ ·- ---
dos grandes males*."
........ . . --·- .. sagra todo o livro V do De natura rerum. Significativos desenvolvimentos
Cheguemos à explicaça-o: em Epicuro, os átomos tinham por funçlo consagrados aos monstros vivos: estes slo todos relativos insensatos obtidos
conceitual negar os conjuntos estávei;d;-que um sistema teria sido possível. '

72 73
como os animais viáveis, por uma soma casual de elementos normais. Na es-
essencial nlo está nas considerações sobre o Todo.~~.'~~ llDicas slo
cala dos todos, a natureza engendra nJo importa o quê.
reais, elementar~s ; nas 1~ ~a su~~- das do...chamadas acaso, "este
··- Agora ~ vê com evidbcia :_p~a_ a política de Maquiavel, um ~P_O
fragmenta~o .. feito de ocasíOes di~un~, sobre-~- ~u~s n~~uma cl6ncJa
6ê"m e este mal só fazem perconer os diversos lugares; .." .
Oentíficos, ou mellior, de espírito científiCO,' _f!' materi~os que
ést.ável pode disooner validamente, desempenha o mesmo pape~ que o át~mo
ilustram o epicurismo e o maquiavelianismo o do ~la E~~o que eles
da física de Epicuro. Nos dois casos, a perspectiva intelectual, tsto é, o lugar ...__,. . ---·- -- - .- - . ·- e--outro.
comportam com relaçfo a ~-~!i~~ glob~ e <!~~~tivo~_, Afinal, um
relativo que os conceitos ocupam num conjunto, é idêntico: ao suprimir a
desemperilíãfã.ffi.n ã histÓria das idéias um papel progresSista. Iiuuficiente-
possibilidade de sistema<;, porque as totalidades são insensatas, o lugar é claro
menk~ntíflros:~ele$ o sJo também porque pennmeoon .aq~m da indu-
para o que é imediato, parcial, início de algwna coisa e nlo conclusiO de uma
çfo empírica amplificadora. Dest'e ponto de vista a política de Aristóteles,
ciência. \ cuja' base empírica nllo ~olo~ _gúvida, ~-·· e.m !l!.~t9s-
pofiíc>s:.oonectadà a um .
Tudo o que se pode dizer, tanto em Epicuro quanto em Maquiavel, d~
~todo Jt}!Í_S~tivo" do que_~ do ~?!..e~tin o. ·
universo em seu conjunto, 6 simplesmente isto: o universo é ~a pentl.anê!lCl~
Em Maquiavel, conseqüentemente, nllo se encontra uma teoria geral
~t~~~ªJbi.Y:tlta, _sern...alcance ~tico nem i)olíticç, O que significa dizer
das instituições e dos atos políticos. Com nl2is forte razlo nlo se acha aí um
que o Todo é o Todo. Compare-se.
No que conceme ao epicurismo: • sistema geral no qual a política seria uma direçlo particular de pesquisa no
seio da antroplogia. ~lo se achará aí uma reunião de prdticas políticas. Isto
"Nosso primeiro princípio é que nada jamais se criou do nada por nio é porque, como muito se disse, haja no Secretário uma ..ausblcia de altu-
efeito de uma pot!ncia divina... ra das visões"; tudo indica, ao contrário, que este homem era dotado de uma
"A esta verdade, acrescentamos uma outra : é que a natureza nlo penetraçfo impressionao~. ~ no nível arquitetônico que, ao contrário, se
destrói nada mas simplesmente dissolve cada corpo em suas partes ele- situa a impossibilidade de mn sistema: as idéias do Aorentino.excluem a expo-
mentares..." (Lucrécio, De natura rerum. Livro I.) siçlo sistemitica porque elas excluem nelas mesmas a sua l.ipçlo em sistema.'
NIO que aí nlo haja coerência, mas esta coerência - que começamos a perce-
E também:
.ber - nJo i absolutamente a de um sistefiUI; é a de uma concepçiO geral do
..... é permitido conceber que tais mundos (como o nosso) pos- homem e do mundo que exclui, precisamente, qualquer passagem contínua
sam existir em número infinito, e que um mundo pode nascer tanto no entre o cósmico p~-político e o político. Se a política é cósmica, é porque
seio de um outro mundo quanto num intermúndio (assim chamamos o ela instaura um universo, nl'o porque ela se conclui a partir de dados que lhe
inten:alo entre os mundos) ..." (Epicuro, Carta a Pythocles. ) ·seriam prévios..~m lugar de est~ _inscrita no..mundo, a política~ N!~S de tu-
do o fato da vontade, individual e coletiva. A dimenslo política da exist6ncia
Para Maquiavel:
aos homens está para se instaurar, nlo esté em ler no que el; nlo é. o ato
"Ao refletir sobre a marcha das coisas humanas eu considero que ~Ciuã!~õ 'li§~ ~..[~p~l!f.!~!~-~eÇ~- abSolut<!.- . --
0 mundo permmece no mesmo estado em que esteve todo o tempo;
que sempre há a mesma soma de bem, a mesma soma de mal; mas que
este mal e este bem só fazem percorrer os diversos lugares, as diversas
"Seguir a verdade efetiva da coisa, mais do que a
regiOes." (Tite-Li»e. n, Prefácio. Pl. pp. 510-511.) imaginação desta coisa"
"A mesma soma de bem, a mesma soma de mal.. .", eis o que abstra- ..... sendo minha intençlo escrever coisas aproveitáveis para aque-
tamente define um todo ; concebe-se que, no pensamento de Maquíavel, esta les que as escutarfo, pareceu-me mais conveniente seguir a verdade efe-
idéia de "soma de bem" ou ..de mal" é confusa. Compreende-se mesmo que o tiva da coisa, mais do que a imaginaçlo desta coisa. Vários se imagina-
ram Rep(lblicas e Principados que jamais foram vistos nem conhecidos

74
75
por verdadeiros. Mas há muita diferença entre a sorte que se vive e aque- tudo bem consid~rado, encontrará alguma coisa que parece ser virtu·
la segundo a qual se deveria viver, pois aquele que deixar o que se faz oSd , e, ao segui-la, seria sua ruína; e alguma outra coisa que pareça ser
pelo que se deveria fazer, aprende antes a se perder do que a se conser- vlcio , mas que, ao segui-la, dará origem à segurança e ao bem-estar."
var..." (Le Prlnce, Cap. XV. Pl. p. 335.) (lbid., Pl. pp. 335-336.)

Esta passagem é justamente céiebre. Mas nfo é certo que ela tenha sido No mesmo texto em que Maquiavel pronuncia sua fórmula tomada cé·
corretamente interpretada quando se quis ver aí uma profisdo de fé "científi- lebre, ele se explica sobre esta ••verdade efetiva da coisa", isto 6, " das coisas
ca" 7 • O que é seguro é que o real aí está oposto ao imaginário, como o que pelas ~s os homens, e, mais particularmente, os Príncipes, sJo louvados ou
"se faz" ao que "se deveria fazer". Na utopia 8 , reconstru~o pela imaginaçfo reprovados •• (título do capítulo 15). As relações políticas apareoem aí. Quais
de um Estado conforme o ideal, o "real" está confoonado a uma lei aceitável ,.. Slo? Relações entre os homens, muito frouxamente articuladas sobre a verda·
de do que nós chamamos "as coisas". Há louvor e reprovaçlo, isto é, o que
para o espírito ; o ideal e o real Slo aí confundidos com pouco esforço ; o valor ''
aí está dado como regra do desenvolvimento da coisa.~ bem isto qüe Maquia· os homens dizem e pensam uns dos outros. Discurso sobre os vícios e sobre as
vel nlo quer fazer: a "verdade efetiva da coisa" é inteiramente outra do que '
~
) .. virtudes, e nlo vícios e virtudes. As qualidades, aprender a "deles usar ou nlo
uma reconcilla~o no imaginário de um pseudo-real e de um ideal sonhado. .. usar segundo a necessidade"; a necessidade dos apareceres inter-humanos, que
·x
é a necessidade principal das relações políticas. Nfo somente ela nJo tem rela·
Trata« portanto de um projeto de pol~tica científica? Antes de deci· ii' çlo com a objetividade do mundo, mais ainda, acreditá-la objetiva, 6 utopia:
dlr isso, convém prosseguir a leitura deste capítulo 15:
"Encontrará alguma coisa que parece ser virtuosa, e, ao segui-la, seria sua
" ... porque quem quer inteiramente fazer profisSio de homem de :;'
ruína".
bem, nfo pode evitar sua perda entre tantos outros que não são bons. e Para falar numa linguagem que nos 6 familiar, a política nfo está funda-
também necessário ao Príncipe que se quer conservar,que ele aprenda a ~bre~ ciên~~- m.!5~bre. u~_ret9,rica: ela ~ .uma ~--~·~.!iim..~.~a
poder nlo ser bom e de usar isso ou nfo usar segundo a necessidade. determinada relaçlo com os outros homens. O .nív~l . PQlídco da existência
Ao deixar portanto de lado as coisas que se imaginou para um humana é um solipsismo roÍetiv~.; ~--·--. ---.
Príncipe, e ao discorrer das que Slo verdadeiras, eu digo que todos os
homens, qwzndo se fala deles•, e principalmente dos Príncipes, por se-

rem aqueles em grau mais elevado, ~s atribui* uma destas qualida· NOTAS
des que provocam reprovaçfo ou louvor. Isto é, que um será tido"! por
liberal, um outro por miserável. .. um será considerado* pródigo, al· 1. No que toca a Lucrécio, o caráter individual da ética é muito mais afirma-
guns rapaces ; um, cruel, outro, piedoso; um, enganador, outro, homem do. Sobre o epicurismo antigo, cf. Paul Ni.zan. Les matérialistes de 1:.tntiqui-
de palavra ... e assim por diante. Sei que todos confessarlo que seria té. Maspero, 1%8.
bastante louvável que se encontrasse um Príncipe tendo todas as referi· 2. Cf. Livro 3.
das qualidades que são tidlls• por boas ; mas, como nJo se pode ter to- 3. Diógenes L3ércio: "Vida, doutrinas e sentenças de falósofos ilustres". L. X.
das elas, nem observá-las inteiramente, porque· a condiçfo humana nlo 134-135. Citado em EpiCW'e et les épicuriens. Coleção "Les grands textes".
o pe['J11jte, é-lhe necessário ser bastante sábio para que ele saiba evitar a P.U.F., 1964, p.l30. A raridade de fragmentos de Epicuro que foram conser-
infâmia9 destes vícios que o fariam perder seus Estados; e, daqueles que vados transforma qualquer compilação· de textos de Epicuro em ediçfo de
não o fariam nada perder, que se cuidasse, se llie fosse possível ; mas, se obras completas. O livro da coleção acima ~ posterior âs descobertas de Her-
nfo lhe ~ possível, ele pode deixá-los correr sem menor preocupaçfo. E culanum e explora o que lhe foi explorável. Do mesmo modo o livro de
etiam que ele nl'o se preocupe de incorrer na reprovação destes vícios Boyancé, na coleção "Les grands penseurs", P.U.F. ·
sem os quais ele nl'o pode conservar facilmente seus Estados; porque, 4. Os "físicos" são os filósofos da escola jônica de Tales e Anaximandro. Eles

76 77
quan.t o que a física da atração denomina e conceitualiza o fmalismo, a provi·
não eram físicos no sentido em que hoje chamamos físico um homem que
d!nc1~, a ordem do todo, a segunda se lhe distancia. Vê-se que o epicurismo
pratica a ciência física. Seu método era dedutivo; eles colocavam o problema
é um tmportante exemplo desta representação antifmalista do mundo.
dos "elementos" constitutivos da natureza. No que conceme ao que deseja-
7. Edmond Barincou (PI.. p. 1501, nota sobre O Príncipe) escreve: "O neolo-
mos dizer de Maquiavel, a diferença - capital, numa outra relaçfo - entre a
gismo de Maquiavel (verità effettuale) ficou célebre como fónnula do mate-
escola jônica e a prática empírica nã"o tem importância como se o vê pela se·
rialis~o histórico do autor". !:alar do materialis~o histórico de Maquiavel
qüência do texto.
~e-VIdentemente, um puro anacronismo. Certos comentadores de Maquiavel,
5. A seqüência do texto de Diógenes Laércio introduz imediatamente a dis·
sempre a evitar o anacronismo precoce que faz deste último um precursor de
tância que assinalamos algumas linhas acima, entre o imediato epicurismo e a
Marx, ligaram o pensamento do florentino à corrente da história positiva.
vontade maq~iaveliana. Epicuro busca uma moralidade da vida feliz, pela qual
A realidade no~ parece mais complexa, como se leu no textQ.
a felicidade individual é um repouso. Este prazer em repouso jamais é engana-
8. ITho~jttore' escreve A Utopia nos anos 15 15 ou 1516, mais ou menos
dor. Para Maquiawl, viu-se, é possível uma distorção entre o ato tal como ele
dois anos depois que Maquiavel tinha escrito O Príncipe. Portanto, emprego
foi desejado e o ato tal como ele aparece no curso do mundo, fenômeno que
esta palavra para designar a tradição filosófico-ética do Estado ideal. A Uto-
tem um conteúdo relativamente independente das intenções do agente. Trata·
pia é, etimologicamente, "o Estado de nenhuma parte".
se com efeito de uma vontade política, não mais ética, e a polítíca é também
9 .. Infâmia no sentido etimológico de "má reputação", que nilo conota, es-
exterior com relação ao que a projeta. Todos os problemas do êxito e do fra-
tritamente falando, nenhum sentido moral.
casso, necessariamente ignorados no epicurismo, ao contrário, sfo centrais no
pensamento de Maquiavel. Nas linhas que se seguem deixaremos o terreno da
analogia para alcançar o da pura diferença:
"Ele (o sábio) considera que vale melhor má chance em raciocinar bem
do que boa chance em raciocinar mal. Certamente, o que.se pode desejar de
mellior em nossas ações é que a realização do julgamento nio seja favorecida
pelo acaso.
Por conseguinte, medite todas estas coisas e as que são de mesma natu-
reza. Medite-as dia e noite, contigo e com teu semelhante. Entlo jamais, nem
em estado de vigfiia nem em sonho, tu serás seriamente perturbado mas tu vi-
verás como um deus entre os homens. Porque aquele que vive no meio de
bens imperecíveis nio se parece en!-n~ a um ser mortal". (Diógenes La.ércio.
Ibid.)
6. Duas grandes representações do mundo sio partilhadas na 8J)tiguidade. Na
primeira destas representações ~ o Estado mais organizado que chama a si o
Estado menos organizado. O mais complexo aí é principal com relaçlo ao
menos complexo, o todo com relaçfo à parte. O espaço é fechado porque ne-
cessariamente o todo deve existir determinado. O exemplo mais significativo
desta física da atraçfo e da "simpatia" é o que nos mostra o estoicismo; seu
país de origem é certamente a observação de seres vivos. A segunda destas f f.
sicas, ancestral da nossa ''mecânica", explica a fonnação de totalidades pelos
choques entre elementos. O todo aí é indeterminado e o espaço infmito. En-
79
78
UVR03 a isso. De preferência, eles os iniciam nos negócios. O dinheiro que eles ga·
nham com custo, não o gastam tão à larga como o faz aquele que está habi-
A instatiração política tuado ã entrada regular de benefícios."
As "posses", geradoras de "benefícios", são modalidades do haver: são
riquezas herdadas, defmidas num espaço estável, ftxadas a fam11ias. "0 dinhei-
ro que é ganho com custo" , ao contrário, sanciona um fazer fortuna. Fazer e
não mais ter: o burguês comerciante tem do homem uma imagem em que a
faculdade cardinal é a vontade.
O lucro do comércio, ao menos tal como ele é percebido na consciên-
cia do comerciante que ainda não tem os instrumentos conceituais para fazer
do comércio uma teoria econômica, é arriscado; não está inscrito numa ordem
das coisas que possa garanti-lo. A atividade que o acarreta é uma "empresa",
vontade de •'fazer fortuna" e de conquistar o dinheiro dos outros. Neste ní-
vel, a atividade pré-industrial ou o empréstimo bancário são uma luta entre as
vontades. Melhor, estas vontades diversas encontram seu interesse mútuo nos
Capítulo 1 comportamentos localmente concordantes: é o o objetivo dos contratos.. O
A Virtude pbstáculo ã expansão ilimitada de um é a vontade do outro: vontade de não
comprar o produto, vontade de emprestar seu dinheiro a uma taxa de usura,
vontade de guardar suas matérias-primas, vontade de proibir a passagem sobre
Embora encerrada num conjunto de estruturas que ela ainda não pode seu território. Nenhum meio intelectual permite pensar o comércio como uma
ul~apassar e ~ue dificulta seu desenvolvimento, a burgu~~i!__tp.e!~til_ dirige atividade que obedece a leis ..naturais", a leis da produção; fala-se do ..desejo
.a_'~,~:~~ &.~~ntin3: Neste quadro ainda bastante estreito em que se exerce sua de riquezas", o que é outra coisa. A lógica do comércio - e , através dela, da
atividade , esta burguesia tem consciência de que ela é portadora do progres- ~~ricaç_ão - semp!~_~me~e ~.?utraT'~~~d~;-~~;_-Q~~-~_s_a~~;s2~----·--·
so. Pelo fato de que a atividade comercial ainda não tem tradição que possa
Enquanto que a ideologia da fração social, cujas vantagens são tradicio- servir de substituto à noção de ••ordem do mundo", a consciência que ela tem
nais, põe facilmente na frente as considerações sobre a ordem do mundo e . de possuir um futuro será vivida segundo a modalidade da empresa. Esta em-
~o aeento ~b~e os val~res q~tempo Conserva e pereniza, os valores p;ó. presa é o correlato da "oportunidade". O tempo, para uma civilização
pnos do comerCio e da empresa serão, ao contrário, a preocupação privile- mercantil, não é aquilo que consagra o passado e o torna respeitável, aquilo
giada dos burgueses cuja atividade se separou da propriedade fundiária para se que o faz amadurecer 3 : ele é, ao contrário, o lugar rapidamente mutável de
lançar na gestão de fábricas e de comércios. ocasiões "a aproveitar", de negócios enriquecedores. Ele apresenta no dia-a-
Um contemporâneo de Maquiavel, Francesco Guicciardini, exprime dia os negócios possíveis, as compensações a agarrar. Contrariamente, no tem-
com clareza o conteúdo da consciência dos florentinos que se dedicam à ati- po da tradição, que é conservador e bonificador, o tempo dos negócios não
vidade econômica. Guicciardini é um grande burguês 1 , numa cictade de fa- comporta garantia alguma para o futuro: tal como se enriquece, hoje, num
bricantes e de mercadores: bom negócio, pode se achar, amanhã, arruinado se as ocasiões lhe são desfa-
..Os mercadores são pessoas que se dedicam a fazer fortuna; é por isto, vorávej,s. Tempo da vigilância inquieta, portanto, tempo que ameaça e, por
e porque tudo o que diz respeito ao comércio tem necessidade de astúcia e de sua vez, prometedor, e não tempo da permanência e da confiança. Ainda,
diligência, que eles não se abandonam à ociosidade e não habituam seus filhos a relação que o homem mantém com o tempo conceme à sua vontade; se ele

80 81
... , .... '" . ' .' '

nlo tem aí compreensfo geral das leis do enriquecimento, há uma vontade


indefmidamente obstinada - isto é, resistente ao tempo e aos reveses - de 110 compatíveis com as fmalidades do comércio. Tudo indica, em sua diplo-
enriquecer• . mlcia e em seus escritos, que ele elaboro fil!poUiif:il u~ !déúz_~ ele_conlf-
Maquiavel, na sociedade florentina , não ocupa um lugar análogo ao de tról wbre o '!!-IJ!ie!~ !!rz ~.tfv.!.~~ c_?._'!_l~gal. _A plutocracia lhe ap_ar_e~ C.O-º!.<?. o
Guicciardini. Sua origetn, o nível de sua fortuna, a natureza de sua atividade .!!Jime· ideal :
o distanciam do_enriquecimento comercial. A atividade econômica não apa·
.:
..A este princípio: que um país pleno de fidalgos nio pode sego-
rece, como tal, em seu universo intelectual. Se ele tem consciência de uma di- vernar em república , não se me objetará talvez o exemplo contrário da
versidade muito grande introduzida pela atividade econômica entre as Repú· república de Veneza, na qual somente os fidalgos podem chegar aos em·
blicas e os domínios feudais, ele a percebe através das conseqüências, reais ou
I. supos~, que esta diversidade manifesta no nível político, pela supressão
pregos. Eu responderia com isto: que os fidalgos venezianos o são mais
das de nome do que de fato. Como was riquezas estão fundlldas no coméf'- .
jurisdições privadas e das fortunas estabelecidas. O texto que se segue faz par- cio e consistem em bem móveis •, eles não t&n nem grandes proprie-
te de um capítulo muito importante dos Discursos sobre a primeira déca· dades em terras, nem castelos, nem jurisdição sobre súditos 6 • O nome
da.. . s de fidalgo neles não é senão um título feito para atrair a consideração,
" ... estas repúblicas {alemãs) que mantiveram intato seu regime o respeito, e não é de forma alguma estabelecido sobre nenhuma das
político do suportam que algum cidadão viva nelas como fidalgo, ou o vantagens de que os nobres desfrutam algures. Veneza nlo está dividi·
da em nobreza e em povo senão como as outras repúblicas estão dividi·
seja; elas têm o cuidado de manter, ao contrário, a mais perfeita igual-
dade e são as inimigas irreconciliáveis dos senhores que habitam seu das em diferentes classes sob nomes diferentes; admitiu-se aí que os no-
país; e se por acaso qualquer um deles cai entre suas mãos, elas o matam bres tenham todas as honras, todos os lugares, que o povo deles está
sem piedade. Para explicar o que eu entendo por fidalgo, diria que se excluído; esta partição não provoca desordem alguma, e nós dissemos
chamun assim todos aqueles que vivem sem fazer nada do produto de os motivos disso." (lbid.., Pl. pp. 498499.)
suas posses, e que não se dedicam nem ã agricultura, nem a nenhum O quadro político das repúblicas italianas, como o que oferecem a
outro ofício ou profissfo. Tais homens são perigosos em qualquer repú· maior parte dos Estados desta época, é ainda bastante estreito. Excetuados o
blica e em qualquer Estado. Mais perigosos ainda são aqueles que, além .:>nsto império otomano (que Maquiavel não parece conhecer), o reinado de
de suas posses em terras, têm ainda castelos de onde eles comandam e França, o Império e a Espanha, existe um multidão de pequenos Estados cujo
súditos que lhes obedecem . O Reino de Nápoles, o território de Roma, poder político não é estável, nem fora de alcance. O leitor moderno de-ve fa-
a Romanha e a Lomb!lJ'dia tam destas duas espécies de homens em zer o esforço de fazer uma imagem dele: ele encontrará algumas comparações
abundância; tarnbélir,ííunca se formaram nestas províncias, república, dteis nos regimes instáveis em que a base nacional ainda não chegou plena·
Estado üvre, povoadas destes inimigos naturais de qualquer polícia ra-
mente à sua atualização histórica. C}>~-C?_~C!!?.!..!?...l'2~!.!.:~C?~·~ Nada
zoável. Seria impossível mesmo estabelecer aí uma república. O único predestina a isso; nada o ocasiona senão a vontade de possuí-lo. No interior
meio de fazer reinar qualquer ordem seria de aí in'troduzir a realeza. de uma certa cl~sse de "pdncipe s possíveis'• - a devoluçfo do poder ao povo
Com efeito, nos países em que a corrupçJo ~ t~o forte que as leis não flcando fora do campo de qualquer problema político Ttlll - enriquecidos,
podem pará-la, é preciso neles estabelecer ao mesmo tempo uma força capazes de se assegurar o serviço de guerreiros, a diferença entre aquele que
maior, isto é, uma mJo real que possa reprimir a ambição de uma no- exerce o poder e aquele que dele está privado reside no fato de que um ousou
breza corrupta. " (Tite-Live. I, SS. Pl. pp.49749 8.) e o outro do. Se nenhuma ciên~!a_~ ÇC?_!sas, n~m d_! h!st6ri~~~~ da__~ogra­
~aquiav~.L~nsagrou su~.v.!~.~ atiya à diplomacia de uma república mer- fla, nem da eco~~<!~!!l re~~~ lei_~~ ~~Y!>.!!!.r_ão ~~ PQder ~lítico,

-
cantil. Ele pertence à fraçfo não-comercianté- da populaÇão cujos interesses

82
~ a vontade do homem que permanc:e a sua foo~: Esta vo~~d~ ~~ &:!ei-

83
nar, ~P.!llada d~ __qualqu~tema_ Jepresentativo, recebeu de__M~guiavel o num sistema cuja intenção é conhecer, senão como um éonjunto de determi-
nome ~~ - ·:Yi!.!~.:. ···· .. · ·· naçOes submetidas a leis: as do temperamento, de paixões, etc. O mesmo ho-
-· · Uma vontade nua: é muito importante que, em nenhum de seus textos, mem deve entretanto ser desejado livre, não mais por uma razã'o especulativa,
Maquiavel jamais submeta à sua análise a vontade humana. Por que, por que evidentemente, mas pela razão prática, isto é, moral. ~ significativo que Ma-
motivos psicológicos, toma-se Príncipe? Haveria aí, evidentemente, no qua- ' quiavel reencontre, ele também, embora em termos evidentemente diferentes,
dro de uma pesquisa sobre os homens, uma pesquisa possível; ela permanece eate problema da relação da vontade e da persoMlidade no homem político8 •
estranha ao maquiavelianismo, e isto nio é por acidente. O homem político
O que nele diz respeito a este tema? .:\..v~a~~~e. c~~3lJl~S- "nua",
maquiaveliano nã'o é político nem por paixão, nem por uma característica
7 ~rque ela é inco~ci~n~~. !l~~e-~!Jla·se. !lurna_pe~2'!...8J!~ade,_E.l~Jl.Cha _nesta
particu1ar que predisporia "naturalmente" certos homens a amar o poder.
penonali~~~~ a~-~~s~~_!:e~P?-~1P-?~~-~~~ Umtte. Independentemente de
-t!~ntact_e IJ!a_quiaveliana está separada de qualq!!~!.J?.si~?}.~gia. tua ''Virtude", o homem político é tal ou tal: reencontrará, portanto, em si
Portanto, contrariamente ãquilo que uma tradi.ç lo superficial levou a
mesmo, a dureza e a rigidez de sua própria natureza psicológica, sob a forma
fazer crer, não se encontra em Maquiavel um "profundo conhecimento psi·
de um obstáculo à sua vontade e de uma resistência à mudança. Enquanto que
cológico dos homens políticos". ~. conseqüentemente, muito mais fecundo
a Fortuna é "ocasião" sem lei, a permanência de traços psicológicos do ho·
aceitar que nosso autor se situe numa tradiçlo que nós conhecemos sobretu-
mern político é causa de seus fracassos. Longe de poder fazer da virtude um
do a partir de um autor posterior: Kant. Não há pesquisa psicológica que per· traço psicológico, é preciso dizer, ao contrário, que ~ções da e.~~_ol5>gia
mita compreender a apariçã'o da vontade; incondicionada, primeira, ela se 1 da Virtude são as de uma luta. Todos os textos maquiavelianos são aqui con·
acha separada da "constituiçã'o natural" dos homens. oordantes. Deles eu escolheria dois, em obras diferentes, que ilustram esta
Que Se avalie: em 10 de agosto de 1513, Maquiavel escreveu a Francesco concordância9 :
Vettori as poucas linha que seguem. Estamos aqui quase dois séculos e meio
antes da Oítica da razão prática. "Eu considerei mais de uma vez que os homens conseguiriam ou
fracassariam conforme eles soubessem ou não regrar sua conduta. so1>re
"Senhor Embaixador. Vós não quereis que este pobre Rei de as .circunstâncias: vê-se de fato uns nelas ir plenõidé.~J;~osidade, ou-
França recupere a Lombardia e eu o desejaria: pode acontecer, todavia, fiõs;· circíuisi>ect~ e prudentes: e estes dois modos de agir, estando
que estas duas vontades contrárias provenham da mesma causa, isto é, ? iguabnente distanciados do único que convém, os desencaminha igual-
de uma inclinação natural, de uma paixão que nos leva, vós a dizer não, mente. O homem que menos se perde e encontra o sucesso é aquele
e eu a dizer sim ..." (Carta/familiar, 131, em Toutes les Lettres. ... t. 2, cujo modo de agir encontra as circunstâncias favoráveis , mas então,
p. 353.) -... /
como sempre, não faz senão obedecer à força de sua natureza*." (Tite·
..:_ '
Segue então uma argumentação cujas palavras-chave são: "Eu pensava... .; Live. m, 9. sob o título: "Do que é preciso saber variar seguindo o tem-
eu pensava e continuo a pensar que...". :-:·:·. po, se se quer sempre encontrar a FortuM propícia". PI. pp. 640-641.)
Desde que elas fazem da vontade outra coisa do que a atuação de ca- Do Príncipe, capítulo 25 (Pl. pp. 365-366):
racterísticas psicológicas, de paixões "empiricamente determinadas'' , os pen-
samentos que chamaríamos "de tipo kantiano" reencontram seu problema " .• . vêem-se os homens, nas coisas que os conduzem ao objetivo
maior sob a seguinte forma: como uma vontade incondicionadá pode se deter· que todos visam (que são as honras e a riqueza) aí procederem por di-
minar numa personalidade? Sabe-se que este tema encontrou em Kant urna versos meios; um com prudência, o outro com furor; um por violência,
expressfo fdosófica graças à qual ele está em muitas memórias. Resumamos: outro pela arte; este pela paciência, aquele pelo seu contrário; por todas
com relação ao pensamento especulativo, o homem nã'o pode ser conhecido as quais maneiras pode-se chegar ao objetivo. Além disso vê·se igualmen-
senão sob o conceito de "natureza empírica"; não se pode falar do homem, te em dois que governam com prudência, um chegar e o outro não che-

84 85
fili
dos Príncipes modelos. Na conjuntura dada à consciência do exilado de San lia reais. Entretanto, jamais o tom aí é o do reconhecimento de uma necessi·
I
,,1
Casciano. é bem a ele que Lourenço de Médici deveria se ftxar como exemplo dade das coisas, mas o de uma exaltação das vontades.
de Virtude. Mas a experiência política também fez, sem que se possa relacio- Face a signos que são somente convites, a última palavra é, -~ão das
nar os tipos à unidade. do estudo atento das vidas de Júlio ll, de Sfona, de
li I
Castruccio Castracani, grandes monarcas 11 •
Nós já sabíamos que não há ordem das coisas que seja política porque
. coisas, mas dos homens valorosos:
"Todas as coisas concorreram para vossa grandeza. O resto repousa
jll'I a poUtica nfo é cósmica; aprendemos &gora que não há traços psicológicos em vós. Deus não quer empreender fazer tudo ele mesmo para não nos
tirar de modo algum o livre ·arbítrio e uma parte deste louvor que pode·
dados que possuiria particularmente o homem político "predestinado" por·
,, que a política não é questão de psicologia. Ela é questão de Virtude, concei- mos ter." (Le Prince. Pl. p.369.)
l to residlU\f que se alcança quando se retirou tudo o que ela não é, um pouco E, finalmente:
como se chega ao conceito de incondicionado quando se retiraram todas as ,.'·
li condições. No limite, a Virtude, como a vontade kantiana. não recupera nada ..Que vossa ilustre Casa portanto assuma esta decisão, com o mes-
mo ânimo*, com a mesma esperança* 14 com que se assumem guerras
,.I para a inteligência: ela é o não-lugar da razão especulativa. Ela é o que resta, e
que, entretanto, muda tudo, quando a inteligência esgotou tudo o que ela ti· justas, que sob seu es~darte nossa pátria seja enobrecida~ e que sob
J .nha a dizer: sobre as paixões, sobre o apetite de reinar, sobre a mecânica de seus auspícios seja verificado o que diz P~trarco :
1 temperamentos humanos. etc. Determinemos ainda: para _(I_ ü11~liKil!çja, a Virtude contra furor
·il1 Yirt.ude· é um~ 4~~a. Ela aparece no espaço em que a inteligência é contra· Tomarás' armas; e faça o combater certo
;;.I Que o antigo valor
riada, assim como a Fortuna, no mesmo nível que ela.
nos itálicos corações inda não é morto."
ue coisa maravilhosa a considerar... 1 2 que a totalidade ou a
li maior parte daqueles que completaram grandes coisas neste mundo e se
sobressaíram entre os homens de seu tempo tiveram um nascimento ou
' '.
·,
:li origens humildes e obscuras, ou, ao menos, fortemente contrariadas
•. NOTAS
I 13
pela Fortuna ; ••• Eu acredito muito que em se tratando da sorte, a >
·I Fortuna entende demonstrar ao mundo que é ela, e não sua subedoria, 1. Por uma bastante impressionante lacuna da ediçfo francesa, as obras d•
r-- Guicciardini não são traduzidas em nossa língua. Os textos de que farei uso.
que faz os grandes homens, ao escolher para manifestar seu)oder o mo-
I mento de suas vidas em que esta sabedoria não pode intervir em nada e aqui e mais adiante, são extraídos da ediçfo mais acessível aos italianistas,
Infalivelmente figurando nas bibliotecas que dispõem de um departamento
em que é preciso todo ele se relacionar a ela." (La Vie de Castruccio
I Castracani da Lucca. PJ. p. 913.) de literatura estrangeira: La letteratul'a italiana - storia e testi. Riccardo Ric·
clardi. edit., Milão-Nápoles. O volume n9 30 é inteiramente consagrado a Fran-
.I Segunda conseqüência: se nada predestina à Virtude, se esta disposiçlo ceaco Guicciardini: Opere (edição incompleta das obras, mas para nós sufi-
'I I.
da vontade é livre arbítrio, o ato pelo qual pode-se excitar a vontade política
do outro é a exortação. Discurso que não tem por objeto fazer compreender o
ciente) a Cura di Vittorio de Caprariis, 1953.
As relações que· Maquiavel e Guicciardini mantiv~ram são complexas.
li universo da política, nem falar segundo a modalidade do necessário, mas de- Bm todo o caso, nio é possível aprofundar um pouco o pensamento do Se-
li lj
cidir uma vontade a se pôr à obra. O último capítulo do Príncipe traz o tí· cretúio sem situá-lo pelo viés deste outro pensamento que foi o de seu cor-
tu lo "exortação para tomar a Itália e livrá-la dos bárbaros". Os encoraja· respondente. Os laços entre os dois florentinos foram muito reais, com efei·
mentos, que se dirigem a Lourenço de Médici, são aí numerosos é de todas
li to o caminho de um orientando-se durante os seis últimos anos da vida de
as espécies : os exércitos não são de modo algum invencíveis, as forças da Itá· n~o homem: numa referência explícita à orientação do outro. Maquia~l
1.1
88 89
I, i
lil
encontrou este interlocutor de escolha quando, enviado numa pobre
misslo terá de uma lucidez que só a ciência pode atingir (por exemp
a Carpi, passa em 1521 por Módena onde Guicciardini é governador. lo, os grandes
Em mais textos muxistas sobre a "reificaçlo da existência" ou a célebre primei
de uma correspondência bastante seguicb , duas missões de Maquia ra par·
vel, em te do Manifesto Comunista: "Em toda. a parte em que ela cooqui
1526 e 1528, ainda os reunirlo. Disto restam-nos cartas familiares stou o po-
e instru- der, ela (a burguesia)" esmagou as relações feudais, patriar cais
ções oficiais; umas ·e outras atestam que os dois homens conside e idflicas. •.").
ram-se re- Francesco Guicciardini, por sua vez, já tem uma longa tradiçlo de
ciprocamente e dão algum valor às suas relações. Além disso, Guicci comércio:
ardini sua família é "de negócios" e, há dois séculos, aí triunfa ~uitO bem.
escreve uma série de ..considerações a propósito dos discursos de Encon·
Maquiavel traremos maiS adiante (capítulo 4 do presente livro) os limites de
sobre a ·primeira década de Tito Lívio". Quanto a nosso autor, sua con·
ele vê no cepçlo nacional. Maquíavel, este, não tem ligaçJo desta ordem; já
governador a serviço do Papa um homem de urna envergadura
compará· se ~ nele,
vel à sua., Ele se vê tamMm um servidor dos Médici , é verdade, todavia, uma resistêricia conceitual muito pande i id6ia de uma historic
e calcula idade
um retomo ãs graças por seu intermediário. De fato, Guicciardini da história. O tempo maquiaveliano não é somente o tempo da
é sem "ocasi lo";
dúvida o homem de que nós diríamos hoje que era o mais "cultiv ele é tambétÍt o di repetição (os modelos "históricos") e o do eterno
ado.. entre retor-
os que foram dados a Maquiavel encontrar. Ele está para o Maquia no como lugar imóvel de fracassos . .
vet madu- 4. Interessante obra sobre as relações do "humanismo" florentino com o con·
ro o que MarceUo de Virgilio Adriani foi até 1512 para o Secretá
rio da se-
..
gunda chancelaria: um poderoso estimulante intelec tual, um obstác teúdo da consciência mercantil : Les maTchanth écrivaim, affairu
ulo con· et huma-
tra o qual ele sente seus limites, um interlocutor que a confrontação nisme à Florence. Particularmente, de Ch.ristian Bec: Affair n et wciété
permi· : la
te ultrapassar. Finalmente, medida de suas audácias e de suas abertu pédagogie marclulnde. Mouton, 1967.
ras, assim S. Este capítulo é reproduzido na quase-totalidade na segund
como de seus preconceitos. a parte deste
De uma família muito rica convertida ao comércio desde o século Xll, livro, p. 216.
Francesco Guicciardini (1483·1540) foi embaixador da república de 6. A feudalidade não é somente, para a nobreza, posse de feudos
Florença e privilé-
junto a Ferdinando, o Católico, antes de se pôr a serviço do Papado gios, ela consiste tamMm em "direito de jurisdiçlo".
(1516: 7. A ~avra virtU designa a coragem. O homem "virtuoso" é aquele
l.do X é um Médici) e de ser governador de Módena. Comissário do que cha-
exército mamos "valoroso" em nossa literatura medieval: ao mesmo tempo
pontifício, ele quase é, sob o pontificado de Clemente VIl, outro corajoso e
Médici, ) viril, que tenta sem sentir temor. Compreende-se que esta palavra
governador da província da Romanha. A Fortuna o afasta por um seja dificil·
tempo dos mente tradutível. Marie-Claire Lepape (Mach ünelle politique. Coleçi
negócios, após a derrota da liga de Cognac, de que ele é um dos artesio o "Les
s, con- grands textes", P .U.F ., 1968.) tenta restituir-lhe o sentido com "caráte
tra Carlos V. r" e se
\ explicá na página 67. Ela, no entanto, me parece cometer um contra-
2. A idéia segundo a qual as vontades individuais se inter-impedem senso ao
mutua· escrever: "ele (o caráter) se defmiria mais pela superioridade natural
mente encontrou-60 diversamente tematizada nas fdosofias da época de tiro
clássica. tempeiamento que~ impõe, que se faz reconhecer...". A confus
Digamos que esta idéia, evidentemente ligada à ascensão da burgue ão se insta·
sia indus· la então, e obscurece o que se deve ao contrário dii.er da distinç
trial e comercial, foi diversamente utilizada nas concepções de mundo ão, análoga
ela- em Maquiavel e em Kant, do caráter e do temperamento. Para nossos
boradas do século XVI ao século XX: ..dialética" da ação e da dois au-
paixão, tal tores, o caráter é o ~o desejado da vontade pura: "Estes dons da naturez
como ela aparece em Descartes; "mecanismo metafís.ico" na criação a po-
do mu~­ dem também ser extremamente maus e perniciosos quando a vontad
do em Leibniz (em que Deus deve resolver problemas de "•maxim e que dele
UITH11ini· deve fazer uso, e que constitui essencilllmente o que :se chllmll o caráter
mwn"); em outros horizontes, ela deu nascimento à noção de estraté *, não
gia, ma- é absolutamente boa" (Fondements de la métllphylique des moeun
tematizada pela teoria dos jogos, etc. . Trad.
3. A consciência mercantil evidentemente não é, na época em qu Delbos . Seção n. Se se quer traduzir •<v;,ru" por "caráter" é a esta distinção
tão clara para si mesma como nós o deixamos entender aqui. ~.jam
e~ ­ ----............ que é preciso se referir. Mas esta referência toma-se difícil, portan
ais ela <lora de ambigüidade, desde que a palavra "caráter" é comumente
to, porta-
recebida
90
91
na acepção que se lhe impôs a caracteriologia: "núcleo de disposições inatas, criar um Estado para seus sobrinhos Lourenço' e Juliano. Maquiavel, portan-
recebidas da hereditariedade, congenitais, que constituem a estrutura soma- to, interrompe a redação dos Discursos para dirigir-se a Lourenço.
topsicológica de um indivíduo" (4 Senne). Decididamente, se se deseja se 14. Em italiano, speranza. A esperança é uma categoria da vontade e nã'o da
iniciar ao pensamento de Maquiavel ao lirnitàr os importes parasitas, é preci-
so aceitar que a palavra virtU nfo seja traduzida. Fazer um pouco o que fa- ..
inteligência.

zem os matemáticos ao escolher símbolos vazios de qualquer conteúdo pré-


vio e explicá-lo. e aliás a atitude adotada pela grande maioria dos comenta-
dores . .. e tradutores.
8. I! difícil acreditar que o paralelismo dos pensamentos maquiaveliano e
kantiano {cdm relação ao objeto preciso que tratamos neste capítulo, é des-
necessário dizer) seja uma convergência acidental.. Provavelmente é mais jus-
to ver que, com relação a sistemas anteriores pelos quais os conceitos funda-
mentais sã"o de ordem cósmica (o agostinismo, para Maquiavel, o pensamen-
to de Wolf, para Kant), os dois homens elaboram um conceito acósmico do
homem pela demiurgia de sua vontade. Talvez não seja inútil observar que a
situação das classes ascendentes é análoga nas repúblicas italianas e na Euro·
pa do século XVIII.
,I 9. Aos dois textos aqui citados poder-se-á utilmente acrescentar a carta fa-

li miliar 116, reproduzida parcialmente na parte antológica deste livro, p. 200.


1O. O texto dado pela Pléiade introduz sem utilidade a palavra "gênio", que
acrescenta uma nota romântica a Maquiavel que não tem nenhuma necessi-
I dade dela: "per la divenità de' cittadini" (pela diversidade dos cidadãos).
11 . Encontrar-se-á, na segunda parte deste livro, uma seleção de textos que
.I intitulei "Modelos e antimodelos". Ver p. 229.
12. O velho italiano, como o velho francês , dava ã palavra ''maravilha" (ma-
ravig/ia, hoje menos utilizada do que meraviglia no texto: cosa maravigliosa),
de sentido que chamamos ''forte": coisa fora de orde!JI'ê,'\JleSSa condiçfo,
impressionante.
13. A este discurso fundamental evidentemente se sobrepõe um discurso cir-
cunstanciado, no qual Maquiavel se dirige aos Grandes sobre o destino polí-
tico dos quais ele aposta. A argumentação é, portanto, inteiramente contrá·
ria: por exemplo, O Prlncipe, último capítulo, edição francesa, p. 368. "Não
se vê absolutamente no presente em que outra Casa ela (a Itália) possa mais
esperar do que na vossa muito ilustre, a qual com sua Fortuna, seus talen-
tos e favorecida de Deus e da Igreja (da qual ela mantém o leme) poderia se
fazer chefe desta libertação". Atribuía-se a leão X de Médici a intenção de

92 93
eata-forma-aí-em~utra coisa do que ela". (Aristóteles, Métaphysique. Z 8,
1033 a 28-34.) ·
o agente é aquele que é causa da irrupção da forma na matéria, aquele
que efetua transitivamente o composto forma-matéria.
''Não há coisa que cause tanta honra ao homem que novamente
cresce, como fazem as novas leis e ordenações por ele inventadas. Tais
coisas, quando são bem fundadas e nelas têm a grandeza, lhe granjeiam
1• uma majestade maravilhosa: e na Itália a matéria nã'o falta para aí intro-
:e
duzir toda forma que se queira. aí que há grande força nos membros,
t- providos c:rue não falte às cabeças." (Le Prince, Cap. 26. Pl. p. 369.)
11 Esta últúna frase já indica muito bem que a linguagem de Maquiavel nio
1 a de um escolástico rigoroso, nem a de um bõm aluno do Estagirita.. O uso
<k. que ele faz do conceito de forma, se se tomasse esta forma em seu sentido
. aristotélico, seria inCllmpatível com tudo o que nós conhecemos, por outra
Capítulo 2 ' via, de seu pensamento: a política, em sua própria intenção, está aí bem longe
·de ser inengendrada ou eterna. Por outro lado, Aristóteles jamais colocou a
As linguagens da instauração política
.;: forma dos viventes na cabeça, e a matéria nos membros; relacionada à filoso-
.· fia do Grego, o lugar dado ã forma é muito heterodoxo. Maquiavel, aliás, não
Maquiavel dispõe de três linguagens para falar da instauração política. freqüenta os autores fdosóficos, nã'o diz quase nada da escolástica que ele
Estas três linguagens são emprestadas a sistemas conceituais diferentes, mas o ~&nora, e a questão de saber se ele conhecia o Grego se colocou aos biógrafos
uso parcial que o Florentino faz destes sistemas diferentes é concordante. Se, de nosso homem.
em todo rigor, estes sistemas se excluem entre eles, os empréstimos que Ma- ~ , :e então numa outra direção que é preciso se orientar no que toca ao
quiavel efetiva com relação a eles sio mais imagens do que temas propriamen- .···
1
cx?nteúdo que convém dar a esta forma. Além da negligência propriamente
te ditos. Quer ele se refira ao universo aristotélico e fale da instauração polí- · temática, o uso da "imagem., da forma é significativo por três razões. Primei-
tica como da irrupção da forma numa matéria; quer ele faça do Prfucipe um ramente, Maquiavel utiliza o sentido banal da palavra e explora sua introdu-
enviado da Fortuna ou um possível eleito ~~ª-ta; quer, fmalmente, ele fale do ÇIQ semântica cotidiana: pelo ato instaurador ·do Prfucipe, o que era ''infor-
nascimento das cidades à maneira platôniéa segundo o modelo dos contratos; me.. toma .forma, a política introduz o estrutural. Em seguida, o ato do Prín·
Maquiavel diz quase sempre a mesma coisa, e é bem esta mesma coisa que é ~~~~~dra um con.tpos_tC?.• por~e a pol~ti~ ~ en~~!:?? ~f!l~sição_:ntre
importante captar, para além das diversidades de exposição. homens, e sua análise faz ressal~_J!eS.t!$WJJmçp~~-~-~la ~!lementos he-
Na linguagem de Aristóteles, a forma é a razão determinante de qual- téfõiênêoS': :~~~~?~t~..n~s o v~~~~~ m~. a_p~~e.t_é_ ~_n.!Ç!o?.~?~tuída
quer mudança na matéria. Ela é inengendrada, eterna. Ela encontra uma ma- em República ou em Principado. Finalmente, não é tanto sobre o tema da for-
téria em si mesma eterna, e a encontra de uma forma e de uma matéria aca- íilãq~ é p~eciso htsisHr, mas sobre o que é dele. o correlato: a matéria. Na Jin.
bada que existe doravante um ''isto", aqui e agora existente como objeto de· ~; pagem de Aristóteles, assim como em boa parte ·de toda a filosofia grega, a
terminado, um composto que se pode nomear: "Tomar o bronze redondo nã'o ··.:}. matéria primordial era "caos", ausência de determinação, porque era anterior
·a qualquer racionalidade; do mesmo modo,_an_t~~ q~c:.haj~_~l~t!ca. ~~()-~~~
é' produzir nem o bronze nem a esfera. mas alguma outra coisa, por exemplo,
f:$. .
I '
I
94 95
,i

_aos olhos do f1orentino senão uma pré-humanidade, uma contigüidade ou vingança, com que fé obstinada·, que piedade, que lágrirn~. Que por-
uma dispersão de homens, sem detenn-~~ções atualizadas: · - .. - . - . tas se lhe fechariam? Que povo lhe recusaria obediência? Que inveja
a ele se oporia? Que italiano lhe recusaria homenagem? Esta bárbara
"O povo romano, pleno de admiração pela bondade e pela pru-
tirania repugna a todo mundo aqui."
dência de Numa, rendia-se a todos os seus conselhos. ~ bem verdade
que a simplicidade destes espíritos, tão levados ã superstição nestes tem- ~aquiavel___~ do :"ríncipe UJE~ segund!i série de imagens, trazi~ de
pos religiosos, a rusticidade de homens aos quais ele estava tio ocupado, linguagens aliás diferentes: Demiur~2· pr()feta ou Her~i, ~le perten_pe ~_pan­
lhe davam muitas facilidades para conseguir seus desígnios. Era uma ma- te"ão..da literatura mística. O Secretário escreve após Petrarco: ele reúne toda
téria nova ã qual ele podia facilmente imprimir uma nova forma. Tam- ~guidide;· qu~"'f el~ -~ja cantada pelo Antigo Testamento, quer ela seja a
b~ estou bem convencido de que quem quer que quisesse fundar uma lembrança de paganismos greco--latínos. O sincretismo, ainda, é o fruto de
república triunfaria infmitamente mais com os montanheses ainda pou- ·> uma distância com relação às fontes e talvez de um sacrifício ãs convenções
co civilizados do que com habitantes das cidades corrompidas. Um literárias do que se chamou "o humanismo":
escultor tira mais facilmente uma estátua de um bloco informe do que
"E se, como eu já o disse, era necessário para mostrar o valor
do esboço vicioso de um mau artista." 1 (Tite-Live. I, 11. Pl. pp. 412-
413.) de Moisés que o povo de Israel fosse escravo no Egito; para conhecer a
grandeza de espírito de Ciro, que os persas fossem tir~dos pelos
Os povos são «matéria" qu~c;lo ainda não chegaram ao estado de na- medas; a excelência de Teseu, que os atenienses fossem dispersos; assim,
~igãiiiZãdas.-Em...cerUs ~~iõe~ eles invocam, a páltii-iie.süaáiigóstia no presente, para fazer conhecer o valor de um espírito italiano, seria
pré-política, a Vinda do Príncipe, como a Fortuna, a natureza, ou mesmo as necessário que a Itália fosse conduzida aos termos nos quais se a w: que
almas difusas no Cosmo podem fazer alguns sínais. Ao solicitar o Príncipe, ela fosse mais escrava que os judeus, mais serva que os persas, mais dis-
como nas filosofias místicas, o que é virtual, contém alguma aspiração ã exis- persa que os atenienses, sem chefe, sem ordem, vencida, pilhada, des-
tência; romantismo tão pouco inesperado, tão pouco diretamente inteli- peda~da, perseguida pelos estrangeiros, em resumo, que ela tivesse so-
gível sob a pena do Secretário que Gramsci o interpreta como um mito dra· frido todas as infelicidades." (Ibid., Pl. p. 368.)
nútico 2 :
'
Na tradição grega, os Heróis são homens -~a-~~a, J?rimordiais, que
"Consideradas então todas as coisas acima deduzidas, e pensando
comigo mesmo se, no presente, na Itália, o tempo que corre seria tal
que um Príncipe novo a( pudesse se honrar e se ele aí encontraria uma
... ----
atingiram a quãse-divilldadej)ÕrSêus
. .. . ... . . ..
atõs.Civiliudores-·...exemplares.:..
.--.
jO,'ip~--~?~.~~~a!<;>~_int~~~~-~ o!dem no caos primitivo. O profeta
___
O
...
Demiw·

matéria que desse ocasião a um homem de sabedoria e de talento de aí


atquele que traz o signo de uma "o.u~ .~'?.~". ~costumeiro falar' a respeito
cféstês poucos textos em que Maquiavel une-se à mais constante inspiração
introduzir uma forma que lhe trouxesse honra e proveito ã comunidade
lírica da literatura política italiana, de seu "patético", até mesmo, de sua ''ilu-
de homens deste país, parece-me que há tantas coisas que vêm todas em (·•..
minação". À interpretação romântica -e de qualquer maneira exclusivamen-
favor de um novo Príncipe que não sei qual tempo foi jamais mais pro-
te psicológica - desta poesia, opõe-se segwamente uma outra maneira de
pício." (Le Prince, Cap. 26. Pl. pp. 367-368.)~
.'·t
acolher as mesmas palavras: ao se constatar que a maior parte das frases "líri·
E, mais abaixo (lbid. , Pl. pp. 370-371 ): cas" se dirigem diretamente a Lowenço de Médici, no quadro do célebre
Príncipe, se o fez a expressão da servilidade que se lhe acrescenta. Para além
"Eu não saberia declarar suficientemente com que· grande afei-
. 10mente do questionamento do homem, talvez será útil tentar uma compreen-
ção ele (um redentor) seria recebido em todas estas províncias que so-
do que dá alguma coisa ãs idéias, ao menos àquelas que desde o início nos pa-
freram com es~ invasões de estrangeiros na Itália, com que sede de receram os pontos de articulação dos pensamentos de n05S0 homem.

96 97
" ... podem-6e ver aqui coisas extraordinárias, sem exemplos, diri·
gidas por Deus: o mar se abriu, uma nuvem vos descobriu o caminho· a na ausência de vida propriamente política - ausência de um ''vivere cMle" -
pedra verteu águas; aqui choveu maná. Todas as coisas contribuir~ du populações da península. Clla.Jl!.a:~- ~ isso ~":~~o lX?J!tiC!_n~onal :
para vossa grandeza." (Le Prince, texto já citado.) Mta instauração é criaçã'o. Ela é subversiva no sentido muito literal de que
tlã~rte - ao invalidá-Ias - as-baSes-sobre ~ quai; estio então fundadu
Esta conspiraçA'o de .Peus, da natureza, dos homens, dos signos, é uma ~ ~rdens políticas existentes.. ·- ·
constante da literatura político-mística. Que seja. Nos follietos de um homem Esta situação revolucionária da política maquiaveliana esclarece uma
como ~quiavel, entretanto, a utilização de clichês deste gênero literário é clu mais significativas incompreensões de Maquiavel que a história das idéias
bastante inabituaJ, fmalmente, muito estranha à sua concepção das coisas da - e dos momentos - políticas jamais produzira: a distância que separa Bodin
política, para que possamos legitimamente pensar que nos encontramos na de nosso florentino, sessenta anos apenas, mas uma distância histórica enor·
presença de uma escolha. Porque se esta escolha nA'o é a do conteúdo explí· me. Porque esta incompreensão pennite, em compensação, compreender me·
I, cito, o que seria ininteligível e contrário a tudo o que sabemos que Maquiavel
I,
lhôr o Secretário e melhor situar seu próprio discurso, nós lhe daremos um
penstJ, é preciso dizer que por esta própria escolha o apelo dirigido sob esta llforço de atençã'o que, eu penso, não sed perdido.
li
I· ;orma ao Prfucipe, busca, conscientemente, uma expressão adequada. O século XVI, na França, é duramente marcado pelas guerras de religilo
Se não é o Sagrado que irrompe no Gesto político dos homens, é que o
I;
lt
sagrado não é exterior ao homem. O Príncipe que engendra um "status civ-
ti por toda a problemática política que estas guerras envolvem. No final dos
tnfrentamentos, de fato, aparece aos olhos de todos que o consenso religioso
lis" - um "vivere civile ",como bem o diz a filosofia política italiana - engen· IOfreu um golpe mortal e que foi a Reforma que o deu. Trata-se entA'o de
li
li dra o sagrado. Numa linguagem que não poderia ser outra do que a que foi, encontrar noutra parte do que neste consenso o fundamento de uma autorida·
I' Maquia~l utiliza a mística num sentido que é inteiramente contrário ao que de política que desde entA'o será autônoma. O poder real já existe; ele é soli-
I' a mlstica cristã dizia, em sua época, do universo político. O agostianismo sub· citado pelos dois Í>artidos inimigos: trata-se de defmi-Io como independente
I~ J!letia a política ao sagrado; o homem político aí jamais ipr~f~ta -·é bem ao clot comportamentos religiosos dos franceses. JuriStas vão se dedicar a esta ta·
I;
I •
contrário, o fato de ser profeta que confere 03. d_ke!_!o~ ~IIti~-;~·M;quiavel,
. por SUil vez, sacraliza o próprio polftico.. O Príncipe é construtor d;; ·um mun-
11fa na segunda metade do século. Eles constituem wna corrente, que justa·
I( IDIDte se chama de "política"; os mais célebres dentre eles são incontestaYCl·
l j do: lá onde existia somente o caos, universo humano disperso rivalidàde de mente Michel de l'Hospital (1505-1573) e Bodin (1530.1596). O problema
indivíduos, esfacelamento da Vutude, el~ ~~za um Wtf~~~t rey;do. Para
I'l
que eles têm para resolver é este: como conferir uma legitimidade nova, dada
Maquiavel, ele evidentemente se apropria dos atributos de Deus. a ruptura da unanimidade religiosa, a um poder real que já existe e que se tra·
.,I'1 . O que pode significar uma tal convergência de linguagens de inspiração ta de redefmir pela determinação de uma nova fmalidade? Sua resposta, sabe·
mística, se se quer olhá..Ja de perto? Para nós, fmalmente, isto esconde um
,,I ; conteúdo que é, mais simplesmente e, sem dúvida, mais adequadamente
•· consiste em remeter os comportamentos religiosos para o lado dos negó·
cl01 privados e, ao fazer isso, assegurar a autonomia do político - coletivo
li "revolucionário". Coloquemos enta'o, por nossa vez, a questão: "Em qu; monúqU.Íco - pela relação à adesão ideológica das pessoas às diversas.lgrejas.
li Maqulavel é re~lucionário?" Em que sua linguagem exl?ressa com os con-
I Afirmar a autonomia do político de maneira a fazer do rei, não um chefe re·
I I ceitos que são possfveis na Florença do século xrl nascente, recobre um Uaioso, mas um árbitro ~ uma inovação considerável, mas ela ~ possível nes·
,, apelo ao nascimento do Estado? No que ~le percebe que somente um Estado tt1 termos porque o poder monárquico já é uma prática real. Os políticos nlo
_1ue repousa sobre w_n~-b~ nacional~ , ao s~gir~~í~-;.;de um ~~do feu- lllo '"revolucionários": an contrário, eles reforçam uma ordem política real-
,,
l i
dal !!1~9.~~<!~·- F~ superar estrutur~ ~- ai1!_c!! sobre~vem· ,~~~ooiliüna, mente existente.
I
~os ~quenos p~nctpad~, na práti_ca dos exércitos merce,!!~o-~ e ..~as inge·
·I'li rênctas es~an~rras. Mm prc:>fundamente, mais dramaticamente tam~m,
Compreende·se imediatamente toda a distância que separa estes "poli·
üc:os" franceses do Secretário florentino. Maquiavel invoca um Príncipe que
I'
I~
lt 98
I. 99
I:
,.
nlo existe: sua reivindicaçfo é revolucionária
num a relação de subversfo aretúio aparecia como subversivo. Em regra
que ela mant~m com uma ordem feudal. geral, encontra-se o mesmo tipo
de repulsão durante os períodos em que se pens
O que resulta disso? Que o problema dos a em consolidar os poderes
meios politicos é primordial 'lltabelecidos.
no pensamento de Maquiavel. O de um novo
fim a conceber para a política é,
ao contrário, o único que Bod.in tinha para resol
o próprio Bodin nlo tin.'ta nenhum meio conceitual de avali.ar . •
ver. Os anátemãs morais que ·• cfl histórica que o separava de Maquiavel: não a dtStan-
o magistrado angevino, autor dos Seis Livro lhe restava senão uma apercep-
s diz República (157 6), dirige à .~- fiD puramente moral dos textos e da atitude· que
memória do Secretário florentino, postos assim
clarecidos como acabamos de fazer, manifesta
em perspectiva histórica e es-
m e exprimem duas atitudes,
f 10
do que agora chamamos de análise lúst6rica,
·~~ oolocar em relação concreta a França de Henr
eles ex~rim~: Este fracas-
que sena a uruca cap~ de
ique m e a Florença de Piero
ligadas a situações políticas muito diferentes
nária e o~tra nlo, o lugar relativo que ocupa
. Nestas situaçôes, uma revolucio- v• _ .._. .
~ IIIUUCnm,
carrega-se de uma outra significação quando se
o descobre em auto-
uma reflexão sobre os meios em ~· •
relação à deteonlnaçlo do fim nlo é idêntico. 111 modernos. Aí, se se avaliza sem processo crítico os jutzo B din st
_l:i!_lP~m 9ue_~ -º~dem política italiana
Se Maquiavel_!!l_~ifesta.....cm...lua f ..lece sobre as condições nas quais apareceu o pens~entosdequeMaqu o . e a-

rj>. :.
s~ ex Eihi]g.L o fr~~gura, ira. Se tal fosse nosso propósito, deveríam
aavel, é
apesar das pr~ssõe~ que se exercem ao mesm os nos mterrogar sobre a ati-
por parte dos refoonados, que o rei 6 o Rei,no
quica já dada realmente. Longínquo precurso
tomará a da laicidade do Estado, Bodin proc
damente dizemos para ilustrar com mais prec
o tempo por part_e d~_católicos e
ID~-•419 <le wn~ ~dem monár-
r da noção que ~ais tarde se
ede de duas maneiras, que rapi-
} ·
:~'
- em si mesma política, que manifesta esta ~gue
rt ..;;ntaremos com um exemplo de comentário parct
al:
"Perto da República , monumento maciço de
de direito público, rebarbativo e sem janel
ira. Aqui , nós nos con-

ciência política e
is!o a diferença das posições po- as, coberto de erudição e
líticas. No nível das ideologias, cujo afrontame desprovido de todas as graças, O Príncipe figur
nto é precisamente gerador de a o_ passate~P_O sem al-
problemas, ele elabora uma vaga teoria cuja funç cance de um amador desenvolto. Perto de Bod.
ão é esvaziar as querelas reli- in, ngoroso 1unsta abun-
giosas ou, ao menos, diminuir-lhes a violência; I. ·. dante em raciocínios, rígido moralista nas rude
seu teísmo a-religioso, acerca zas bíblicas, alta cons-
de um ..grande Deus da natureza", terá na burg ciência preocupada com o problema religioso
uesia ll!>eral um sucesso cons- e d~ soberan~ bem do
tante e preencherá até o século XVIII um pape Estado como o do indivíduo (a exemplo de
l político semelhante.ao que~ Platao e de Anstóteles),
o seu sob a pena do magistrado do s6culo XVI Maquiavel aparece como um adorador estreito
. No nível de uma definição do e cínico do poder ~n-
conteúdo da política, Bodin refletiu em teon ' ereto :" (J. J. Chevalier, Les grandes oeuvres
os cujo teor ilustra perfeitamen- politiques tk Maquuzvel
te esta diferença que tentamos compreender. à nos jours. Ed. Colin, 1954 , p. 38.)
O início dos Seis livros diz Repú-
blica tem por tema: "Qual é o principal fim
da República bem organizada". Acontece que Maquiavel imagina de outro mod
Como se vai ler, o conteúdo político é independ o o nascime~ to das ci-
ente de qualquer sistema de ~; . dades e das ordens políticas. Do ponto
de vista no qual ele se expnme , c~mo
pensamento de que não mais se poderia doravante
deduzi-lo: I' · uqu ele que ele invoca na história das idéias
políticas, o texto q~e ~ V31 ler
"República é um governo íntegro de várias ~eia
s e do que lhes
:j, 1101' 8 está evidentemente bastante
distante do que se pôde ler no lDlCIO deste
é comum, com poder soberano. Nós
colocambs ~ta definição em oapítulo.
primeiro lugar porque 6 preciso buscar em toda
s as coisas o fun princi- ''O acaso deu nascimento a todas as espécies
pal, e logo depois os meios de aí chegar." de governos entre os
homens. Os primeiros
.
habitantes foram pouco numerosos e viveram
du·
rante um tempo, dispersos, à maneira de anim -
Os textos de Maquiavel, sobre o conteúdo revo
lucionário dos quais os ais. Vindo o genero huma-
comentadores raramente se enganaram, enco no a aumentar-, sentiu-se a necessidade de se reunir, àe se defender; para
ntram em Bodin um crítico in- .
dignado. Esta censura é, aliás , comum, no curso ·melhor chegar a este último objetivo, escolheu-s .
já longo da história de juízos e o m8ls forte, o ~81S
estabelecidos sobre o florentino, em todos aque l corajoso. Os outros 0 puseram à sua frente
e prometeram obedece-lo.
les aos olhos de quem o Se·

100
101
J
j.
I
li
'I
li
,.
Na época de sua reunião em sociedade, começou-se a conhecer o que é .t o
10bermo e o direito do indiv~duo, primeiro é tirado do segundo e é
li bom e honesto, e a distingüi-lo do que é vicioso e man. Viu-se um ho-
mem fazer mal a seu benfeitor. Dois sentimentos imediatamente se ma-
i leattimado somente numa referência à "necessidade" do.homem de ser gover-
-; oado para melhor viver. O Estado não é, então, outra coisa do que o produto
nifestaram em todos os corações: o ódio pelo ingrato, o amor pelo ho- , oonaciente de uma coletividade de homens; e, nesta própria coletividade,
mem bondoso. Censurou-se o primeiro e honraram-se ainda mais aque- ( i , o elemento constitutivo é a vontade de cada um de ser membro de uma
les que, ao contrário, se mostraram reconhecidos, pois todos sentiram ~; ..' til ÇOJ]lunidade. Os juristas diziam que o direito é um pacto e que o primei·
que poderiam experimentar idêntica injúria. Para prevetúr males seme- ro destes pactos é o que consiste em se constituir em corpo político capaz
lhantes, os homens se determinaram fazer leis • e a ordenar punições de ela~rar este próprio direito: "pactum associotionis ". O pactum subjectio-
para quem as contrariasse. Tal foi a origem da justiça. 1111 ~ somente segundo, derivado, conseqüente e não antecedente 5 , acordo
., Desde que ela foi conhecida ela influi sobre a escolha do chefe a pelo qual o corpo político assim engendrado pelo pacto de associação se dá
nomear. Desde então não se dirigiu mais nem ao mais forte nem ao mais um ~onarca, um governo, uma autoridade à qual se decide se submeter.
bravo mas ao mais sábio e ao mais justo." (Tite-Live. I, 2. Pl. pp. 384- A tradição de juristas-ftlósofos chama esta autoridade, de qualquer natureza
385.) 1
:" " qw ele seja, "o Príncipe".
J; \ · ~da conseqüência: qualquer pacto, qualquer contrato, ao ter sem-
Expliquemo-nos: neste texto, aliás quase único sob a pena de Maquia-
vel, ~~cjmento_d~ !eis é "narrado" não mais como a obra ~emiúrgica de
J. i pro um. objeto defmido e limitado, o poder do Príncipe, do Estado em seu
-~·· apuel}to polftico-adnünistrativo, é, assim, definido e lúnitado. f!_~st'!do tem
um grande Legislador mas como a obra da vontade de homens em coletivida-
· ·- aun objetivo, sobre o qual as vontades contratantes estão de acordo e ao qual
_ãe. Estas vontades, ao determinarem entre elas um acordo, engendram um di-
reito. Pelo fato de que ele resulta de um movimento convergente de vontades
,, ! liã.afõseu consentimento, .cada uma no-que lhe concerne e no que dela de-
particulares, este direito é um "contrato" que as pessoas concluem entre elas
~ ~ Q_o.!'j~!!v_? ~ ~~do é evident~mente .de_ftnJ~<?. !).~~-~~ relação à
· ·~ tldatencia do pr~rio Estado, mas com relação aos interesses e necessidades
para sua salvaguarda ou seu bem~star.
Historicamente, a utilização de um "modelo" contratual para dar conta o..
1ôí contratantes. N~~t~ ~o~diçOes: ;.oo~trato" autoriza um-dupió Üso: ele
~:'d-;~~lâdo, dar conteúdo ao Estado e ele toma possível, de outro la-
da gênese do direito e das sociedades civis, serviu á uma reirindicaçlo hôeral
clq1 marcar-lhe os Umites. A primeira destas dimensões do contrato é positiva,
com relação às sociedades políticas. Durante muito tempo progressista, esta
1 Óutra ~limitativa; as filosofias desta espécie, que alcançarão seu apogeu nos
maneira de pensar o direito foi a arma intelectual daqueles que pretendiam
.Wos XVD e XVDI com a rcflexlo burguesa da Europa ocidental e da
colocar a existência dos indivíduos face aos sistemas pelas quais a.existência
~rica do Norte, questionam-se, assim, o que o Estado é, assim como o
de Estados, de príncipes, de governos era de uma outra natureza do que a que
existência de pessoas. Se a fonte da existência política é um "contrato" 4 , se
' ' . ele nlo é.
Última conseqüência, que constitui um tema muito importante da luta
este contrato engendra um Pivere ctvile coletivo - ao mesmo tempo consen-
,· revolucionária ~ntra os regimes monárquico-feudais: o contrato é revogável
tido e coercitivo -,o direito político d.eve poder em última análise Sf subor-
• o objetivo pelo qual ele foi instituído se acha desviado, falsificado, ou se
dinar aos interesses dos contratantes: modelo burguês da existêDQ_ia-Política.
perdeu seu interesse para os contratantes. Assim, o Estado poderá ser julgado
A ordem política é entlo uma ordem derivada a partir de atos individuais que
lhe dão nascimento ao se multiplicarem e lhe conferem "força de lei". A
f t, eventualmente, tido por caduco. Na tradição de juristas e de filósofos do
~ direito contratual, acha-se necessariamente convocado um debate sobre o
idéia, expressa claramen te neste texto admirável que se ácaba de ler, tem vá-
..cllreito de revolta" (que não se chama ainda "direito à revolução"), que
rias conseqüências, de que ao menos três sfo notáveis para nosso propósito.
.ucede a uma temática análoga, que se encontraria no quadro do agostianis·
Primeiramente, a ordem política não é transcendente com relação às
mo, sob o nome de "direito de tiranicídio". Neste último quadro, o tirani-
vonbdes individuais porque ela é a obra destas vontades. &tre o direito do
r · oCdlo seri.a justificado a partir do princípio: a autoridade do monarca é deri-

102 103
vada da de Deus; por corueguinte, a ausência de wna verdadeira conformi- lftica da diplomacia e do segredo, de outro, como uma grande exigência
dade entre as leis da autoridade divina, manifestas nas Escrituras e na tradi· de humanidade consentidora e ela mesma criadora de urna limpidez de
ção eclesiástica, e a autoridade do monarca indigno, justificaria a mudança quereres . . .
. brutal da pessoa do Rei. Nas políticas do direito contratual, evidentemente, Não .se é impunemente contemporâneo de crises: as crises se refle·
é uma perspectiva inteiramente diferente que conduz ao direito de revolta: 'tem nos pensamentos que as conceitualizam. Se nenhum pensamento hu·
se a autoridade do Estado é uma autoridade derivada de uma soberania que mano jamais pôde expor um sistema fechado e totalizado, pelo fato já ne-
a engen.dra, a perda da confonnidade entre os objetivos que perseguiam as oeaaário, mas ainda abstrato, de que o pensamento não é o próprio real mas
vontades individuais ao criar o Estado e este próprio Estado torna legítimas eeu equivalente conceitual, o pensamento de um homem que aplica seu
as mudanças no Estado - estas mudanças podendo ir até á sub....erslo - que eepírito· a um mundo cujas contradições são particularmente agudas reflete
lhe dão de novo um objetivo conforme a seu fim'. tttas contradições com uma acuidade análoga. Isto é verdadeiro de qualquer
e certo que o importe intelectual e político das linhas que citamos pensamento que não é dialético, isto é, que não pode pensar a contradiçlro
acima se acresceú, paTa nós modernos, de tudo o que a burguesia liberal trou- como lei do devir no próprio real. Simultaneamente , portanto, e sem po·
xe ao tema do "contrato social" após Maquiavel. Nós não podemos, sem um . ~r orden~, nem perceber como contraditórios os elementos diversos de sua
esforço, separar esta noção evocada pelo Florentino do que ela se tornari mais ) representação, Maquiavel analisa o surgimento da ordem política, e a invoca
tarde em Althusius (Exposição po/ítiCQ metódiCQ, 1603), no Direito de guerra ' IX nihilo, e ao ~esmo tempo ele une a aparição de uni'a~~.J.!!i_o (!"e.Estado à
e de paz, de Grotius {1625), quando Hobbes escreve o Leviatã, sob a pluma buíêã'-êóletiva de um bem-estar. De um lado ele define uma exiStência "sui
de Pufendorf, no pensamento de l.ocke (1632-1704), no de Barbeyrac, que ,;;,.;~-, do Estado, e o faz uma realidade fundadora de humanidade, enquan-
se expatrla quando é revogado o édito de Nantes, em Rousseau. Operar esta to que, de um outro lado, ele não pode excluí-lo de uma preocupaçlro parti·
separaçfo não é contrário a tudo o que nós sabemos da história das idéias? 1hada por todos de uma moralidade pública. M está um núcleo de uma con-
Sem dúvida é mais fecundo levar em consideraçio o fato de que este tradição, de que é entretanto claro que é contradição no interior de uma uni·
último texto de Maquiavel nfo pode ser acrescentado a tudo o que nós dis· dade, e que ela é o estatuto de que se reveste, nos tempos maquiavelianos do
semos por outro motivo, e que seria maquiaveliano tanto como, ao fazer pa- pensamento político, a própria unidade.
recer pensar que o todo forma sistemll. Há aí, nio duvidemos, uma contra- 7 A _política é sim'.!!.tan~en!e .~a realização efetiva - insta1,1ração e
dição, em qualquer nível que se situe esta contradição. pve~o _:_ e- pe~ição de objetivos. ~Quando ela é abordada do ponto de
Contradição: o Maquiavel da razão de Estado, aquele para quem a or- tliti <le sua instauraç[o é o problema técnico da instauração, é a pessoa do
dem política é primeira, instaurada até aqui pela demiurgia de um único Prmcipe, são, numa palavra, os problemas dos meios políticos que são deter·
homem, é o mesmo que aquele que escreve: "os outros o colocaram à sua mtnantes, a ponto de estes invadirem todo o campo, ou quase todo. Aos olhos
frente e prometeram obedecê-lo". O Maquiavel de que toda a obra é uma de· Maquiavel, sem dúvida não 6 importante que César Bórgia nA"o pense de
elaboração cujo tema central é a autonomia do político é tamf?ém aquele outro ~odo do que em termos de meios, e não pense em outra coisa do que
que passa de sentimentos morais sentidos pelos homens à j~ão posi- em si mesmo. No que conceme a Lourenço de Médici, a quem O Príncipe
tiva: ··viu-se um homem fazer mal a seu benfeitor. Dois sentimentos ime- deve servir de manual de instauraçaõ e de pequeno breviário de conservação, a
diatamente se manifestaram em todos os coraçeses: o ódio pelo ingrato, o oolsa é clara. Ela será, desde o primeiro capítulo, ••quantas espécies de princi-
~
111
amor pelo homem bondoso. Censurou-se o primeiro e honraram-se ainda pados há e por que meios* eles se adquirem". O Príncipe "que quer se con·
I mais aqueles que, ao contrário, se mostraram reconhecidos, pois todos sen-
tiam que poderiam experimentar idêntica injúria. Para prnenir males se-
•rvar" pode tender toda a sua Virtude em vista deste único objetivo, e este
I. melliantes, os homens se determinaram fazer leis e a ordenar puniçeses para
· objetivo, tal como ele está dado à consciência do Príncipe, pode se confun-
dir com sua própria duração 7 • Abordada agora do ponto de vista dos fiOS
quem as contrariasse. Tal foi a origem da justiça". De um lado, uma po- que ela se atribui Óu, o que dá no mesmo, do ponto de vista do que ela em
I
li 104 105

I~
,,
i
li · , .\

I .I i: verdade é para os homen s vivendo coletivament e, esta


mesma polític a deve
I ; ·I poder ser pensada segundo a categoria do consentimento•
Nenhu m dos comentários sérios do Floren tino aceita ver
.
mico em que ele já é ativo, ao universo polÍtic o, em que
nobiliárias ou eclesiásticas duramente resistentes. Deste
se choca às estrutu ras
I ·!II uma pura in- ponto de vista, pode-
se ver que Dante Alighieri representa, na lta1ia, uma das últimas grande
cobseqüência, nem uma exclusiva servilidade, no fato s con-
de que a redação dos
! Discursos sobre a primeira década tk Tito Uvio tenha sido interro cepções feudais: se ele invoca um Príncipe, este é um prínci
li mpida, de pe cristão, ca~~
julho a dezembro de 1513, pela muito rápida elabor 'de realizar politicamente a união da cristandade e, neste quadr
li ação de O Príncipe. O o, o da Itáha
"impe rial". Ele vai do místic o ao polític o. Para o autor
I objeto dos Discursos é,entr etanto ,esta Roma republicana
cujo Senado é a ins- de JJa_ Monm~ia, a
JtMia já é misticamente real e aspira à sua realização geopo
tituiçã o principal: ..0 Pr~ncipe", ao contrá rio, é, em. m~\tP
u.e_s.,peit~~_. ._um ma- lítica. 1:. eVIdente
I I
que Maqui~_vel rompe com esta maneira de execução
nual de -~~~tica imperial. A empresa de escrever sobre
a polític a é sempre porqu e el~ _represen~a
I outras forças sociais e porqu e conceitualiza diferenteme
complexa e~ neste caso preciso, espero ter mostra do até nte a pohtic a:a l~!a
I I encon tramo s em presença de uma obra articulada. Mesm
certo ponto que nos
o se a articulação
está para se construir 9 porq~e ela é suscetível de um destin
o com~. Dora-
\'lllte, bãstã-que rer. .
I! não pode ter sido, para seu própri o autor, uma síntes e,
o que teria supost o a - P~r conseguinte, a questão se desdobra: quem vai assegu
.
utilização de conce itos que só foram disponíveis mais tarde.
,,i'
rar esta mstau -
raçfo polític a? Quais são os possíveis contra tantes, isto
é, as partes inter~sa­
das? o compo rtame nto do Prínci pe, o do povo, depen
dem de sua respectivas
li ·vontades, de sua Virtude. Q~_ !tá ~~v~~m.!el_!Ça
'O às polí~icas an!~fio­
li res - portan to, também com relação à antrop ologia e
Concluamos este capítu lo. A constr ução da polític a sobre ã cosmologia ante~o­
,. contra tos serviu à burguesia progressista para extraí-la
o model o de res · _ ~~s_t_~rmç~ não são mais nem místic os nem
mesm o costn916&~co­
do cósmico e ligá-la à naturalistas. No resto, é provável que a justap osição
atividade livre do homem . A burguesia de negócios exige de textos em que de-
li com esta constr ução ~;~ e-~~ntrato camin ham um ao lado do outro reflete
que a ordem polític a reprod uza uma ordem econômica e exprime o duplo
I na qual ela desempe-
a pecto da polític a: s~ ? laço polític~não é um l~ço
li nha doravante um papel de primeiro plano. A nova ativida
de produtiva, ligada ~~-natureza, ~ -~le é
ao comércio e à fabricação mais do que à velha propriedade conse ntido e <J®rtdo, é també m, e simult aneam ente, lDStttu
fundiária, ao bus- ição e coerçao.
car mercados conquistados no quadr o de trocas de produ A q;;;;tã o maquiaveliana, no mais alto nível possível
1. 1 : ..Como instau-
tos e de serviços e rar )un nível polític o d~ existência humana?", evident~mente não
I nio mais no de privilégios e de benefícios hereditários
- isto é, possuídos e ~~­
I
conservados fora de qualqu er transação negociada -, tem ceu idêntiaz no pensamento político posterior que se Situa na
um instru mento : o mesma tradl-
I ato pelo qual várias vontades ligam-5e umas às outras para
compr a, uma troca, um empré stimo, etc. Analisada -
uma locação, uma
çlo". Ainda é útil, para esclarecer esta última questão, relacio
rentin o a Rousseau. Para Maquiavel, a qyes~o d~ liberda
n~. nosso ~o­
'i de maneira aliás ainda de. pohuc a, da JUS·
bem implíc ita e bem escondida - pela burguesia ascend .!2 .:: ~?- impor tante ~ã iüta contra _o s absolu~isJI!OS e ~o impor tante
p~a
ente, a atividade eco-
I nômica é ..negóc io", ela é discussão, vontad e de enriqu nós mesmos -, vem em segundo l.u~ em çomparação
comª questão pnn-
ecer, relaçã o persua- ~.P~.: -~ dá ·vontade de ser P-Olítico, o que nós já encon tramo
siva. Esta atividade econômica ainda não é, nesta época s sob o nome de
, analisada cpmo uma · Virtude . .Iodos aquefes que lêem Maqui avel consta
produ ção de riquezas objetivas, porqu e a classe social tam que, sob sua pena,
que est!9 tt contat o Pfincipados, monar quias e repúblicas são aí tratad os
com o objeto e com a matéria-prima, a partir da qual sem que as diferenças
o objeto é produzido, tejam aí declaradas essenciais' 0 , ao ponto de que certas passag
ainda não tem os meios culturais de falar de sua própri ens de textos
a atividade; ela o fará tomam-se ambíguas: não se sabe mais de que regime
mais tarde, graças ao conce ito de trabalho social. se trata. Para o Secre-
Para esta burguesia progressista, a reivindicação polític túio é certo que a distinção nfo tinha a importância
a consiste, por- que, evidentemente,
tanto, na expor tação do instru mento que lhe é favorável, ela t~mou em seguida, quando o pensamento liberal se achou diante
o contra to de que de seu
ela tomou -se dona, 9ue para ela se trata de fazer passar proble ma cardinal: supera r os regimes monárquicos. 1:.
do universo ·econõ- o caso de Rousseau:
como, desde que os ~tados existe m, fazer um govern
o justo? Como, ~om
106
107
homens que são todos igualmente soberanos, justificar o Estado? Fazer com di, 1949. Tomo S das Opere. Trad. francesa de G. Moget e A. Monjo em
que Paulo obedeça a Pedro, estando claro que Paulo e Pedro sfo igualmente Gramscl. Oeuwes choisú. 'êditions Sociales, 1959, pp. 18l e ss. Traduçlo bra-
detentores da soberania? .Oeira de Luiz Mário Gazzaneo, Maquiavel, a politial e o esllldo moderno.
Em diferentes passagens, o problema político de Maquiavel recobre exa- Civilização Brasileira, 1968. As relações de Maquiavel e de Gramsci são além
tamente o de Rousseau, ao menos o Contrato Social, Uvro I, até o capítulo 8, 4isso objeto de uma explicação freqüentemente bastante esclarecedora em
inclusive 11 • Para os dois autores, a ordem polftica não é nem derivada nem La NouveUe critique, n9 de junho de 1963; artigo de G. Moget, pp. 78 e ss:
destacada . da ordem cósmica; o princípio de uma hierarquia não é um dado ..Em que Maquiavel é revolucionário?". "O caráter utópico do Príncipe re-
da natureza; o laço político, e a determinação existencial que ele concreta- aide no fato de que o Príncipe nio existia na realidade histórica, nio se apre-
mente determina, deve ser da competência da vontade. Em nome deste mes- tentava ao povo italiano com características de imediatidade objetiva, mas
mo acósmicb, Maquiavel invoca em suas promessas a instauração de uma po- era urna pura abstração doutrinária, o símbolo do chefe, do condottieri
lítica, como desenvolvimento e acabamento da existência coletiva. Rousseau, ideal; é por um movimento dramático de grande efeito que os elementos
que, por sua vez, escreve num momento em que os grandes sistemas nacionais passionais, míticos, contidos em todo este pequeno volume, se concentram
já estão postos, situa sua pesquisa numa perspectiva crítica e interroga o bom e tomam vida na conclusão, na 'invocaçio' dirigida a um Príncipe 'realmente
direito de Estados já constituídos em ser tais corno são 12 existente'. Em seu livro, Maquiavel e~ como deve s~r o Pr~c.ipe que quer
Ao reconhecer o parentesco de sua obra com a do i1ustre florentino, conduzir ~-Põ~o-ifUÕ..isaÇÍ~t~9 .n QV.Q.~tado e_~_exposição é levada com um
Rousseau pensa que Maquiavel escreve O Príncipe para esclarecer os povos ífsõ; lógico, com .um distanciamento ci~!!tífie:o; na conclusfo, o próprio Ma-
sobre os métodos dos reis ... Ele confunde sua própria problemática com a de qüiavel se faz povo, co~unde-se com o povo, mas não com um povo no sen-
um outro momento histórico; ele nega, por generosidade, o Maquiavel da ins- "- tido 'genérico' mas com o povo que Maquiavel convenceu pela exposição
tauraçio política em proveito do único Maquiavel que se refere à vontade dos que precede, um povo de que ele se toma, de que ele se sente a consciência e
povos. As coisas, acredito eu, são mais complexas ·porque a crise européia do a expressão, de que ele sente a identidade consigo mesmo: parece que todo o
~cuJo XVIII não reproduz aquela na qual o Secretário se achava colocado. trabalho ,ógico' é somente uma reflexão do povo sobre si mesmo, um racio-
cínio interior que .se faz na consciência popular e que encontra sua conclusfo
nurtt grito apaixonado, imediato. A paixão, de raciocinar sobre si mesmo,
NOTAS transforma-se em 'inovimento afetivo', febre. fanatismo de açfo. Eis por
que o epfiogo· do Príncipe (trata-se do capítulo 26, que encerra o livro) não é
I. Ed. Barincou (Pl. nota da página J 506) assinala com muita verossimilhan- aJao de extrínseco, de 'chapeado' do exterior, de retórica, mas deve ser expli-
ça: "Isto é certamente uma homenagem indireta a Michelângelo: o Davi saiu cado como um elemento necessário da obra, melhor, como o elemento que :~
entre 1502 e março de 1504 de um bloco de mármore abandonado desde etelarece sob sua verdadeira luz a obra inteira e dela é de fato uma espécie de '·
1464 por Agostíno di Duccio, que se desesperara ao tirar dele o profeta pe· "manifesto político'". (Notes sur Machillvel. Trad. francesa, op. cit., pp. 182-
dido. t Piero Soderini que o fez entregar a Michelângelo". Acrescentemos, 183.)
de no::sa parte, que o exemplo do escultor retoma incessanteme~ sob a pe- 3. "Sobre uma base nacional": as páginas que se seguem (a ~ da página
na de Aristóteles quando ele trata das relações da forma e da n;a'téria. Este 87) e todo o capítulo seguinte do presente livro, "'Príncipe e a nação", se
exemplo deveria também ser veiculado entre florentinos letrados, como o são elforçarlo por determinar, para que sejam evitados quaisquer mal-entendidos.
em nossos dias os conceitos de "complexos", ..traumatísmos", "maquiavelis- Talvez o artigo da Nouvelle critique (op. cit.) não tome bastante cuidado em
mo", isto é, no quadro de um consenso cultural bastante vago. fYitu estes mal-entendidos que têm sua fonte ~o anacronismo.
2. Texto muito importante para qualquer interpretação de Maquiavel. Anto- 41. Maquiavel dá como real um ' 'estado de natureza" originário, no qual "os
nio Gramsci: Note sul Machiavel/i, sul/a politica e su/lo stato moderno, Einau- prtmei.ros habitantes f?rarn pouco numerosos e viveram um tempo dispersos
I
- ~ 108 109
à maneira de anÍJllaÍ<I... Ele se situa na linhagem de Platão. Cf. République n, S. Os contratos são, assim, separados e hierarquizados em Puffendorf( l 632-
369 a.C., que cito na traduçfo de Baccou (Ed. Gamier): I694), que refletiu a partir da doutrina de Grotius (1583-1645). Eles são con-
"- Agora ••• se nós observássemos o nascimento de uma cidade, não ve- fundidos em Hobbes que, assim, faz do contrato o fundamento do absolutis-
/ mo de Cromwell. O pacto de sujeição não existe em Rousseau. Cf. Contrat
ríamos aí a justiça aparecer, assim como a injustiça?
- Provavelmente, diz ele. I()C,fallll, 16, sob o título "De como a instituição do governo não ~ absolu·
I ' tamente um contrato", esta passagem : "não há senão um contrato no Estado,
I I - O que dá nascimento a uma cidade é, creio eu, a impotência em que
cada indiví~uo se encontra em se bastar a si mesmo e a necessidade que ele 6 o da associação e este sozinho exclui qualquer outro".
sente de wna multid!o de coisas; ou bem pensas tu que haja alguma outra coi- 6. O próprio Hobbes, que identifica o pacto de associação e o pacto de sujei-
sa na origem de uma cidade? çio, reconhece o direito dos súditos de assegurar sua proteção por si mesmos
- Nenhama, respondeu ele. te o Estado lhes faz falta (os Stuart acabavam de ser destronados por
- Portanto, assim um homem se prende a outro homem para tal outro Cromwell, novo protetor).
emprego e a multiplicidade de necessidade reúne numa mesma residência um 7. Desde Hegel estamos habituados a pensar que a história pode ter " ardis" e
grande número de associados e de auxiliares; a este estabelecimento comum que a razão na história não ~ forçosamente a intenção daqueles que fazem a
nós demos o nome de cidade, nfo é? história. Esta idéia hegeliana não é de modo algum de Maquiavel ; ela, no en-
- Perfeitamente". tanto, permite compreendê-lo melhor.
Sabe-se que, a seguir, as filosofias do contrato social e do "estado de na- 8. Al~m do texto citado, pode-se lembrar do julgamento que Maquiavel dá
tureza" se afinaram, como se vê, por exemplo, em Rousseau, De /lnégalité sobre a autoridade do Estado no ' 'Sumário da coisa pública em Luca" (Tou-
pann; les hommes (prefácio): "Não é uma empresa fácil desfazer o que há de tes les lettres de Machiavel, tomo 2; p.426) : "A autoridade da Senhoria sobre
originário e de artificial na natureza atual do homem e de bem conhecer um '- o campo é mais forte, no interior da cidade ela é nula: ela aí se limita a convo-
estado (natural) que não existe mais, que tlllvez nunca existiu, que provavel- ·car os conselhos, a propor às suas deliberações os projetos, a assegurar a corres-
men~ jamais existirá, e de que entretanto é necessário ter noções justas, para pondência com os embaixãdores; anuncia.as deliberações, ditas ... colóquios,
bem JUlgar de nosso estado presente. Seria mesmo preciso mais filosofia do dos mais sábios de seus cidadãos, colóquios que fazem antecâmara às assem-
que se pensa àquele que empreenderia de terminar exatamente as precauções bléias1propriamente di tas. Fiscaliza os negócios; ela os recomenda; em resu-
a tomar, para fazer sobre este tema sólidas observações: e uma boa solução do mo, ela dá o primeiro impulso a tudo o que se faz para governar a cidade". No
problema seguinte nã'o me pareceria indigna dos Aristóteles e dos Plínios de mesmo "sumário", uma interessante frase, que pode esclarecer o problema
nosso século: que experiêncills seriam necessárias para chegar a conhecer 0 ho- preciso que aqui nos ocupa: "Que ã Senhoria falte autoridade• ~uma excelen-
mem Mtural? E quais siio os meios de fazer estas experiências no interior da te coisa ... Ao contrário, é uma coisa muita má que um chefe de república não
~iedade? (Sublinhado por Rousseau.) Algumas páginas mais adiante: "Co- tenha ITU/Íestade"'". (Ibid., p. 428.)
mecemos portanto por afastar todos os fatos; porque eles nio tocam absolu- 9 . Sob o título "Maquiavel e a Itália" se encontrará, anexada ao capítulo 3
tamente à questão. Não é preciso tomar pesquisas, nas quais se ~de entrar . do presente livro, uma nota na qual agrupei os principais elementos desta
so~re este tema, por verdades históricas, mas somente por raciOCjnios hipo- questão que, por mais importante que seja, é somente secundária para uma
téticos e condicionais, mais próprios a esclarecer a natureza das coisas do que obra desta coleção.
em mostrar a verdadeira origem e semelhantes a estes que fazem todos os dias 10. Isso se avaliará por um texto reproduzido na segunda parte (Tite-Live. 1,
nossos físicos sobre a formação do mundo". Rousseau, que leu Descartes e SS); em particular, a conclusão que Maquiavel tira de sua análise.
Buffon procede "ao supor mesmo da ordem entre os objetos que não se 1 ~ . Exame particularmente dos "modelos" políticos exportados da famt1ia ,
precedem de modo algum Mturalmente uns aos outros" como o enuncia o da prática da escravidão, etc.
Discurso do método.

110 111
I~- ~ textos n os quais a problemática ~ diretamente análoga e, por razões
histónc~: claras: são aqueles nos quais Rousseau trata dos corsos e dos polo- I
neses.' alias, a tttuJo menor destes últimos. Por exemplo, esta passagem im·
preSSionao
~
. te do "projeto de constituição para a Córsega (Prefácio)·. " ... sepa·
ra-se _mwto duas coisas in~paráveis, a saber, o corpo que governa e corpo
0
que e governado. Estes d01s corpos fazem um único na instituição primitiva,
eles só ~ separam pelo abuso da instituição. Os mais sábios, em semelhante
caso, observan~o rel~ções de c?nvenil!ncla, formam o governo pela nação. Há
entr'!tant~ muzto maiS a fazer, e formar a nação pelo governo. No primeiro ca·
~~ a _medicta ~e o governo declina , a nação permanece ndo a mesma, a conve-
~encta se esvanece ; no segundo tudo muda a passo igual e a nação, condu-
ZJ~do o governo por sua força, o mantém enquanto ela se mãntém e o faz de-
chnar ~uando ela declina. Um convém ao outro em todo 0 tempo". (Oeuvres
completes de Rousseau. Biblioteca da PMiade, tomo 3, p. 901.)
t .
Capítulo3 l;
O príncipe e a nação
A Virtude do Príncipe encontra diante dela a dos homens. i! sobre ho·
mens que ela se aplica e constitui um modo da relação inter-humana. Quando
a Fortuna lhe está favorável, e durante o tempo em que ela lhe está favorável,
esta Virtude instaura uma política. "Fundar uma república" ; "conservar o
Estadd": nestes. textos de Maquiavel isto assim se exprime. Uma outra fór·
mula, equivalente , nos permitirá pensar, ligando·a à antropologia polCtica do
florentino, esta "fundaçfo " de repúblicas ou de principados: fundar uma
.I re~blica ou U11! pJin~P.a~o é J~r c9~r~tlJ!!e~~.f.OJI! _qu~-~_Jl_açlo exista .
I ÁÍÔnde só h~via uma contigüidade de homens individuais, surge ex novo uma
I realidade de outra ordem que é ''transcend ente" com relaçlo às existências in·
I dividuais de homens que constituem uma multiplicidade. ~sta realidade de
uma ouua ordem, irredutível portanto aos elementos que nela constituem a
I ) extenslo - os fiC?~~~ú'Pi~ .QlltJQ:.c ainda outro -, çhama-se n~o. Conce·
.
IJI""-se qúêe";ta i~ia de naçã_o seja dificilmente acessível no maquiavelianismo.
.. ~·

I Dipmos, entretanto , que ela é aí central, porque é a veTdllde dll polftico vista
como modo de m dos homens coletivamente. Sem ela, a história das políticas
nlo seria senfo a narraçlo de aventuras de príncipes, aventuras individuais de
fortunas diversas que nfo teriam interesse no quadro da humanidade em ge·
'1
ral.

11 2 113
Acerca de algumas dificuldades rador de direito, como poderá se dar que este homem se queira florentino,
queíra-$e somente florentino? Por que se sentiria ele solidário dos homens de
Nos grandes sistemas dos quais Maquiavel se serve para falar da instaura- Florença, e mais deles do que das pessoas da Alemanha? Por que seria ele mais
ção política não se vê bem, imediatamente, qual pode ser o papel que desem- "enraizado" na coletividade de pessoas de Florença? Por que detenninaria ele
penha o conceito de naçã"o. •• consentimento aos limites deste Estado, t!o grande ou t!o pequeno que :;
Se, primeiramente, é somente a Virtude de um Príncipe audacioso que •Ja este Estado, ao dizer: "Aqui está a coletividade de homens de que eu sou
instaura o. Estado, e se se separa este ato ao considerá-lo isoladamente, não se uma parte": Uma única cidadania é imediatamente possível para este homem:
encontra aí jamais a necessidade de uma ação convergente de todos, nem a da universalidade dos outros seres livres, ,presentes e realmente existentes,
tanto mais a de um consentimento de todos. Um Príncipe pode bem instaurar mas também passados e por vir. Numa palavra, de uma universalidade que não
seu poder sem que os homens que ele submete a este poder fonnem o menor • pode jamais fechar nem determinar. Em política, esta universalidade é uma
conjunto real. Certamente pode ter súditos; estes súditos não serão nada mais abstração vazia 2 , ela designa uma pseudo-instância sem papel possível na ins-
do .que estes súditos-deste-Príncipe, cada um estando individualmente ligado tauraçfo de urna política real.
ao Príncipe pelo laço de sujeição. Dizer isto é constatar uma vez mais o que já Em todo caso, concebe-se que o tipo de reflexão graças à qual se obtém
fizeram observar as políticas idealistas do contrato social: o poder de um Prín- ·. tala noções não acha nenhum' lugar atribuível no maquiavelianismo. Se é ver-
cipe é um poder exercido por um homem sobre um outro homem e, sobre um dadeiro que o pensamento do Secretário é mais complexo do que se deixa
outro homem, e ainda um outro. Este poder interindividual é multiplicado perceber urna leitura sumária do Prlncipe, também é verdadeiro que aí nllo
tantas vezes mais quanto se encontram súditos, sem que jamais tenha a ver
com o que seja coletivo, por maior que seja o número de súditos referidos.
da um existe, bem ao contrário, isolado em sua dependência individual e nes-
c, • encontra nenhuma mística da nação "universal.,, embora esta mística da
· universalidade constituísse o maior sonho de uma boa parte dos humanistas
ltallanos.
ta sujeição multiplicada jamais se encontra a menor dimensão política 1 • Se Portanto, ver-se-á que, de um lado, a nação maquiaveliana não é este
um Príncipe pode se apoderar de Florença, que ele se apodere de Florença; wúversal realizado, e que, de outro lado, ela não tem conteúdo geopolítico
se a Fortuna de suas armas, a habilidade de sua diplomacia, a venalidade de concreto. Explicamos: em Maquia\'CI, a vinda do Prfucipe não é o que ela é
homens, lhe entregam também Pisa, ele ainda terá Pisa. Jamais, neste proces- em outros, a manifestação - e a realização - de um consenso entre o mundo
so, teria sido questão de saber se os florentinos e os pisanos s!o ou não um e os homens, entre. o imperador e o Papa, entre o sagrado e o profano, no
mesmo povo, constituindo uma mesma nação. Ao menos, jamais esta coisa quadro desta visão universalista que é a cristmulade1 . Sob o nome de "orbis",
que é a nação teria desempenhado o menor papel na determinação da sobera- o objetivo do sonho místico realizaria o uni~rsal e o colocaria sob o signo do
nia que se exercerá sobre Florença e sobre Pisa. ~qrado , em tennos muito estranhos às pesquisas maquiavelianas. Para superar
Na segunda linguagem que Maquiavel emprega é também difícil pensar nta mística, e para dar um conteúdo concreto à nação, faltam a Maquiavel
I
o conceito de nação, e difícil de tomar inteligível o aparelho político-admi- eatudos em si mesmos concretos sobre a r~~de i~ana. ~~ au!or pão
,I
I
nistrativo desta nação: o Estado. Esta dificuldade é devida ao fato' de que o iê dediCânêm i_"geográfiã:·nem evidentem~te_~nornia, para aí achar as
I modelo político do contrato nasceu nas camadas soci~menos preocupadas, ewntuaisboo_de_uma_ ~Ômwt!d~~ de ·des~o ~lig~~ _os_itãlian?S entre
no momento histórico que aqui nos ocupa, com e~~ê9cia política do que "i. A ausência de~te5 estudçs, que somente ~~r_!o_~de dar um"ã-base
com liberdade de comércio. Se, com efeito, o laço políttco é, não mais cria- -~c~ta ao' -q~ -~~~amos naçõe~4 • explica o caráter ~nívoco, multifonne,
do pelo ato do Príncipe, mas querido unicamente pelo consentímento, se do que vamos encontrar. Resta-nos, portanto, conscientes como nós doravan-
cada indivíduo é detentor de uma parte da soberania inalienável que ele en- te o somos de partir à busca de uma noção capital mas, entretanto, fugidia,
gaja num movimento abstratamente livre de sua vontade, não se vê mais ler os diversos textos nos quais a dificuldade se revela e se manifesta.
como pode existir a nação nem o Estado. Se cada homem de Florença é ge·

11 4 11 5
,,, O Príncipe, a nação e os consentimentos:
descoberta de uma homogeneidade
I vidualmente e, mais particularmente, o dos príncipes; porque todo
aquele que não é retido pelo freio de leis cometer~ as me~as fal-
' li O ato instaurador do Príncipe, a "fundação de uma repúbBca" encontra tas de uma multidão desenfreada; e isto pode se verificar facilmente.
'I uma resposta homogênea no ato do povo que se constitui como súdito deste Existiram milhares de príncipes; conta-se o nó mero de bons e de sábios.

Prfucipe. Pode-se , portanto, falar de uma Virtude de todos, que se exprime no Além disso, só falo daqueles que estavam libertos de qualquer espécie
I
corpo po~tico, e exprime no mesmo ato a dimensão política que todos desen- de freio, e entre estes não se pode colocar... aqueles que, em nosso
'•I volvem na exist!ncia polftico-coletiva. O Prfucipe, se ele é aquele para quem a tempo, nascem na França; porque esta monarquia é mais regrada pelas
ordem política adveio, se ele tem todos os caracteres que a tradição grega atri- leis do que qualquer outro Estado moderno1 • Os príncipes que nascem
ii buía ao Deiniurgo, nfo é, entretanto, quando se o relaciona à Virtude de ou- sob semelhantes constituições não podem se comparar àqueles sobre os
tros, senfo um element?_~~ .~ j~- que é coletivo. Após uma passagem por quais se pode estudar o caráter próprio a qualquer Príncipe para opô-lo
r li urna diferença de "quase-natureza" (há o Prfucipe e existem os outros), reen- ao do povo. Deve-se pôt: em paralelo com seus pr.íncipe~ w:n povo gover-
contra-se a homogeneidade como lei das coletividades. Q)l~~~~,!,ÇI)a ~_!!_lu­ _!l-ª!IO._Ç.Q!!1.9_ele.s~QrjeJ!;J~t!l! ql!Oit.Qf?..~~~~ ~est~ . povo a ~esma
pr jus~~-nU!'!! ~r c?l.etiv~, um Nous, e é neste sentido que Maquiavel pode ser Virt~~U.~E~-~~~Jlf,Í.!l..,ÇWI!~. e.Jl~Ç> se lh~ .v~rá nem servu com b~xeza,
'•

Ili considerado, como o sublinha Gramsci, como o intérprete de uma autêntica nfm ~dar cqm insolência.. : .
t
e
consciência nacional. neste sentido também que ele pensa bastante profun- - · Mas o que diz Tito Lívio do caráter da multidão não pode se apli-
''

damente o que constituí a matéria própria da política: o homem coletivo. car àquela que é, como a multidio romana, regrada por leis, ~as sim a .f
11 1:

111
Deparamos primeiramente com uma advertência, pela ~ai Maquiavel
previne-se muito corajosamente das críticas que um público de 'clérigos" de·
este populacho desregrado como era o de Siracusa, que cometta todos
os excessos aos quais se entregavam também* os prfucipes furiosos e
sem freio, tais como Alexandre ou Herodes ...
í
1

veria dirigir â expressfo de uma opiniio sobre o povo tal como a que se segue:
Portanto, não se pode censurar mais o car~ter de um povo -~-ql,!e
i'! "Ao empreender defender uma causa contra a qual todos os histo-
riadores se declararam 5 , encarrego-me, talvez, de uma tarefa tfo difícil
0 de _~_ P.rín.ciperPOrqÚé-todas os dois estão igualmente sujeitos a se
~caminhar quando !'§o_s§.o con.tidos por natf9.... *
liil ou de um fardo tfo pesado que seria obrigado a abandoná-lo por impo-
tência, ou · de correr o risco de nela ser vencido. Mas seja qual for, eu
.- E'u conciuõ, ·portanto, contra a opinifo comum que quer que o
povo, quando ele domina, seja irrefletido, inconstante, ingrato; e m~­

penso e sempre pensarei que nfo pode ser um erro defender' urna opi- tenho qu~ estes defeitos não são mais o feito de pov~s do que ~e ~rm­
I! nião qual seja ela, desde que seja pela razão e não pela autoridade ou
. jl cipes. Incriminar a ambos é talvez justo; excetuar dtsso o~ pnnctpes,
pela força." (Tite-Li11e. I, 58. Pl. p. 502.) n!o; ~rque um povo que comanda e que está regrado por l~ts é pruden-
Jl
bnediatamente após, o texto começa a tratar do tema enunciado no te, constante, reconhecido, tanto, e mesmo, acho eu, mrus do que_ o
título do capítulo: "De como um povo é mais sábio e mais constante do que Príncipe mais estimado por sua sabedoria. De um outro lado, um Pn~­
li' um Príncipe". Estas linhas provavelmente são as'fn,ais significativas de todas ciÍ)e que se libertou das leis será ingrato, inconstante, imprudent~, maJS
:li aquelas nas quais Maquiavel escreve sobre a reJação.-dos príncipes e dos povos. do qlle um povo colocado nas mesmas circunstâncias que ele . A dtferen-
Acha-se tudo aí, ou quase tudo. É conveniente, por conseguinte, citá-lo ça que há em sua cónduta não 11em dll diversidllde de s~ natural, q~e ~
1,1
amplamente 6 • absolutamente o mesmo*, e que não poderia oferecer dtferença senao a
vantagem do povo, mas sim do maior ou menor respeito que o povo e
"Eu digo primeiramente que esta irreflexão de que os escrito·
li res acusam a multidiio é também~ o defeito de homens tomados indi-
o Príncipe têm às leis sob a quais eles vivem ..." {lbid., PJ. pp. 502-504.)

jil
I ! 'I 11 6 JI 7
li
I
I
I Eu dizia mais acima que este texto é sem dúvida o mais significativo da- O célebre capítulo 18 do Príncipe, breviário de polftica cínica no qual
I l 1e examina ''como os príncipes devem manter sua fé" 10 não deve se prestar a
queles nos quais Maquiavel estabelece uma relação entre a instauraçto política
I · e o povo. Encontra-se aí, com efeito, uma temática muito ampla, concentra-
. contrasenso: a "fé" que está em questão é "confiança", ..fé jurada", "fidelida-
I
~I da, capital em tudo o que diz respeito à idéfa de nação. de•'. A ausência de fé não compreende a infidelidade à lei política; isto é no·
Se "nasceu sob urna Constituição", o Príncipe "conserva" o Estado em ,tivel no impressionante quadro de astúcias de todos os gêneros que este capí-
que ele o "reforma": nos dois casos ele recebe e dá a lei. Se ele instaura um tulo contém.
A comparação de textos permite mesmo ir mais longe. Se, em $UOS relações
Estado, ele dá a lei sem tê-la recebido previamente. ~por isso que os "prínci-
com os outros príncipes 11 , '1amais um Príncipe esteve privado de legítimas
pes que nascem sob. . . constituições não podem se comparar àqueles sobre os
exrosas para disfarçar sua falta de fé;e se poderiam alegar infinitos exemplos do
quais se pode estudar o caráter próprio a qualquer Príncipe para opô-lo ao do
povo". o caráter próprio a qualquer Príncipe é o de dar a lei, de dizer o direi- tempo presente, mostrando quanto de paz*, quantas promessas for~ feitas e~
vfo e destruídas pela infidelidade dos Príncipes ..."; se, ao contrário, não ha
to no quadro de uma constituição11 instaurada por ele ou bem recebida e con-
servada, de.ter uma diplomacia, etc. "pior exemplo numa república do que fazer uma lei e não observá·la, so~re­
O Príncipe, segundo Maquiavel, que dá a lei, ou a conserva, deve recebê- tudo se és tu que a fazes", é que nós nos encontramos diante de relações dife·
la para ele pelo próprio ato que a dá ou a conserva para os outros. \ rentes instauradas entre os homens. Maquiavel nota à sua maneira o que mais
Traduzida num outro nível, a mesma consideração se exprime: tude\ será dito sob uma forma clara~ados entre si estão numa relação
pré-política análoga ao que o estado de natureza está para os indivíduos. !-3
" . .. eu nfo creio que haja pior exemplo numa república do que relações entre Estados não ~o regulamentadas pelo dir~_to. 9 Es~ad~ é gera-
fazer uma lei e não observá-la, sobretudo se foste tu que a faeste. dorde umdliêitõ iríierno enquanto que, em seus tratados e em suas promes-
Em 1494, o Estado de Florença acabava de ser restabelecido em US,7 Útn ''q~~~<Íivi!Juo" que não deve se referir a nenhum direito univer-
suas formas anteriores por Girol~o Sa~ola9 , cujos escritos provam 111. "llha de Direito", o _Estado maquiavelia_no não P,O~eria ~~lll! .~ !l_~nh~
a ciência, a habilidade, a Virtude. Entre as leis que ele fez estabelecer "direito internacional".
para assegurar a liberdade dos cidadãos, existia uma que permitia ape- ·- Esta observação permite compreender melhor o estatuto inter-humano
lar~ ao povo de todos os julgamentos pronunciados por crimes de Es- instaurado como Estado. A fJ.losofia clássica, ao mesmo tempo surgida e mo-
tado pelos Oito ou pela Senhoria. Para fazê-la passar, custou-lhe muito tora do "republicanismo", distinguia o súdito e o cidadão da seguinte manei-
tempo e trabalho. Aconteceu de, pouco depois dela ser ratificada, cinco ra: o súdito é aquele que é sempre legislado sem jamais ser legislador, sua
cidadãos serem, por crimes desta natureza, condenados à morte pela Se- lituação política é de heteronomia; o cidadão é aquele que é ao mesmo tempo
nhoria. Tendo os condenados querido apelar ao povo não se o permitiu; legislador e legislado, ele é o primeiro legislador de sua legislaça:o, é autônomo
violou-se completamente a lei. Este acontecimento contribuiu mais do numa autooomia coletivamente exercida. Recordando-se disso, pode-se dizer
que qualquer outro para diminuir o crédito do padre Girolano. Se este que <2 ~~~~ .segund~ ~a9uiav~l- é.cidadão, ~erador - ú~co ou, ao menos,
apelo fosse útil ele deveria fazê-lo observar; se não o era, ele não deveria ,.P,!!vjlegia~o ..:: da J~i , ~as também objeto de apltc~~o da l~1. _
---.. Este acontecimento foi tan-
se dar tanto trabalho para fazê-lo aprovar. A este repeito, convém, evidentemente, evttar uma mterpretaçao mora-
to mais notado porque, em todas as 'predicações que Girolano Savona- lizao te desta submissão do príncipe à lei. Mesmo se se pode considerar que
rola fez a seguir, não ousou nem condenar nem desculpar aqueles que uma tal interpretação ~ão é forçosamente vulgar, pode-se assegurar que ela
violaram esta lei: como homem que não queria condenar uma institui- nlo é fiel ao espírito de Maquiavel. Seria fora de propósito compreender, por
I.,, ção que lhe dava proveito, mas que não queria mais desculpar-lhe a vio- exemplo, que o Príncipe deve, se ele quer ser justo e reto, submeter-se ~ri­
1
·I lação. Fato que traiu sua ambiçã'o partidária, desacreditou-o e deveria meirarnente à lei, etc. ~ muito claro que Maquiavel não permite nenhuma m-
li; lI pesar consideravelmente em seu destino." (Tite-Live. 1, 55. Pl. pp.477- terpretação que não seja política: quando Savonarola deixou violar a lei, isto
478.)
119
118
foi ..fato que traiu sua ambição partidária, desacreditou-o e deveria pesar con- corpos políticos; fracasso, portanto, "de homens visados em sua individuali-
sideravelmente sobre seu destino" (de homem público, compreende-se). dade, e, mais particularmente, o dos príncipes".
Portanto, digamos que, para nosso autor, o Príncipe 6 o primeiro cida- Para um leitor moderno, 6, sem dúvida alguma, difícil compreender
dão, pois ele oferece wna cidanania aos outros ao instaurar um universo no uma taJ identificação absoluta da política e da legalidade 14 , que faz do
qual a lei 6 real, e ele mesmo participa neste universo no qual a lei é necessá- Estado uma instância de jurisdição, de ''jurlsdictio" (fato de dizer o direito
ria. Ele conquista uma nova dimensão para os homens, a exist~ncia política, onde está o direito). Para Maqulavel, esta dicçfo é criação, que decide ex
e a conqui_sta simultaneamente para os outros e para si mesmo. Aparece ime- nihilo que o direito é isto e aquilo:
diatamen~ uma identidade entre os príncipes "que estão libertos de qualquer
es~cie de freio" e a "multidão desenfreada", de um lado, enquanto que, de
" •. . todos sabem que dizer Império, Reino, Principado ou Repú-
outro lado, ''deve-se pôr em paralelo com os príncipes nascidos sob as cons- blica, como dizer Chefe a partir da categoria mais elevada para descer
tituições um povo governado como eles • por leis". até ao Otefe de um bergantim é dizer justiça e armas. Da justiça, vós
ni'o tendes nada e, de armas, nada; recuperar uma e outras consiste em
Assim, ele instaura uma es~cie de reciprocidade de pa~is políticos,
propriamente constitutiva de nações: se organizar militarmente por decisão pública, com uma boa organiza-
çã'o e que dure.. . (Discurso sobre a mllitarização do Estado de Floren-
" ... se se passa em revista as desonras e as glórias respectivas de ça. 1506. Relatório dirigido ã Senhoria. Em Toutes les lettres de Mo-
príncipes e de povos, ver-se-á os povos dominar de longe sobre os prín- quiavel, tomo 2, p. 68.)
cipes. Se os prlncipes se mostram superiores para criar leis, dar uma
Parece , com evidência, que nenhum moderno pode pensar o papel do
Constituição a um país, estabelecer uma nova forma de governo, os po-
Estado, tanto como o fundamento "nacional" deste Estado, com esta clareza
vos lhes sãc mais supen"ores ao manter a ordem estabelecida, que el~s
abstrata. Duas razõe~ nos distanciam dela, de fato.
acrescentam mesmo à glória de seuHegisladores*". (Tite-Live. I, 58,
Primeiramente', o progresso da ciência política e o caráter doravante
já citado mais acima. Pl. p. 505.)
científico da análise de ideologias: no século XVI, evidentemente, a política
-~·-~~<?_.P~óprio da política, e<>!~to , não é, aos O.~?.!_<le. Magu~vel , a já era uma realidade mais complexa do que esta "dicção do direito"; esta pró-
realização da vontade de poder mas a instauração da cidadania mediatizada ·pria dicção do direito teria sido suscetível de uma análise mais concreta, que,
pela obediência ã lei 12 . •Distinta do que seria uma convergênCia sempre aci· .•:
por conseguinte lhe tivesse explicado a verdade. Os instrumentos conceituais
dental de atos individuais multiplicados, ela está além das pessoas que com. disponíveis no século XVI não podiam, entretanto, desembocar numa tal
põem os povos e os poderosos. Se se os relaciona somente à sua existência ·,. análise; no maquiavelianismo - entre outras concepções do mundo - esta aná-
individual, os príncipes e os indivíduos que compõem uma muJtidã'o são de lise está necessariamente ausente. No Florentino, e aí está a originalidade, a
mesma natureza: " ... esta rusticidade de que os escritores acusam a multidão política (seus cálculos como suas ftnalidades) é percebida como uma realida-
6 o fracasso 13 dos homens tomados individualmente, e , mais particularmen- de absolutamente autônoma, fechada sobre si mesma, exclusiva em sua maté-
te, o dos príncipes: porque todo aquele ~ n§'o seja contido pelo fteio de ria, em sua '&.parlçfo e em seu ftm. No direito político não há nada mais. para
leis cometerá os mesmos erros de uma multidãd desenfreada".!! mais difícil a a consciência de Maquiavel, do que a vontade üvre de se dar leis. A ordem ju-
um Príncipe do que a um povo permanecer submetido à lei: mais poderoso, rídico·política, separada ~o resto - isto é, abstrata - aparece então não como
ele é o objeto desta tentação que é a anarquia individual, anarquia·para-si- um nível relativamente au~ônomo, mas como uma essência fixa, uma ordem
mesmo; mais sozinho - os papéis políticos não são homogêneos, intercam- irredutível ao que quer que seja.
biáveis, equivalentes -, ele está mais próximo desta condição individuada Em seguida, a evolução do conteúdo concreto do Estado tem "comple·
que, ver-se·á logo, em Maqulavel sempre é centrífuga, sempre dissolvente de xificado" este último nas sociedades avançadas modernas : também ele não
aparece mais em nossos dias na bela simplicidade de um conceito facilmen-

120 121
foi ..fato que traiu sua ambição partidária, desacreditou-o e deveria pesar con- corpos políticos; fracasso, portanto, "de homens visados em sua individuali-
sideravelmente sobre seu destino" (de homem público, compreende-se). dade, e, mais particularmente, o dos príncipes".
Portanto, digamos que, para nosso autor, o Príncipe 6 o primeiro cida- Para um leitor moderno, 6, sem dúvida alguma, difícil compreender
dão, pois ele oferece wna cidanania aos outros ao instaurar um universo no uma taJ identificação absoluta da política e da legalidade 14 , que faz do
qual a lei 6 real, e ele mesmo participa neste universo no qual a lei é necessá- Estado uma instância de jurisdição, de ''jurlsdictio" (fato de dizer o direito
ria. Ele conquista uma nova dimensão para os homens, a exist~ncia política, onde está o direito). Para Maqulavel, esta dicçfo é criação, que decide ex
e a conqui_sta simultaneamente para os outros e para si mesmo. Aparece ime- nihilo que o direito é isto e aquilo:
diatamen~ uma identidade entre os príncipes "que estão libertos de qualquer
es~cie de freio" e a "multidão desenfreada", de um lado, enquanto que, de
" •. . todos sabem que dizer Império, Reino, Principado ou Repú-
outro lado, ''deve-se pôr em paralelo com os príncipes nascidos sob as cons- blica, como dizer Chefe a partir da categoria mais elevada para descer
tituições um povo governado como eles • por leis". até ao Otefe de um bergantim é dizer justiça e armas. Da justiça, vós
ni'o tendes nada e, de armas, nada; recuperar uma e outras consiste em
Assim, ele instaura uma es~cie de reciprocidade de pa~is políticos,
propriamente constitutiva de nações: se organizar militarmente por decisão pública, com uma boa organiza-
çã'o e que dure.. . (Discurso sobre a mllitarização do Estado de Floren-
" ... se se passa em revista as desonras e as glórias respectivas de ça. 1506. Relatório dirigido ã Senhoria. Em Toutes les lettres de Mo-
príncipes e de povos, ver-se-á os povos dominar de longe sobre os prín- quiavel, tomo 2, p. 68.)
cipes. Se os prlncipes se mostram superiores para criar leis, dar uma
Parece , com evidência, que nenhum moderno pode pensar o papel do
Constituição a um país, estabelecer uma nova forma de governo, os po-
Estado, tanto como o fundamento "nacional" deste Estado, com esta clareza
vos lhes sãc mais supen"ores ao manter a ordem estabelecida, que el~s
abstrata. Duas razõe~ nos distanciam dela, de fato.
acrescentam mesmo à glória de seuHegisladores*". (Tite-Live. I, 58,
Primeiramente', o progresso da ciência política e o caráter doravante
já citado mais acima. Pl. p. 505.)
científico da análise de ideologias: no século XVI, evidentemente, a política
-~·-~~<?_.P~óprio da política, e<>!~to , não é, aos O.~?.!_<le. Magu~vel , a já era uma realidade mais complexa do que esta "dicção do direito"; esta pró-
realização da vontade de poder mas a instauração da cidadania mediatizada ·pria dicção do direito teria sido suscetível de uma análise mais concreta, que,
pela obediência ã lei 12 . •Distinta do que seria uma convergênCia sempre aci· .•:
por conseguinte lhe tivesse explicado a verdade. Os instrumentos conceituais
dental de atos individuais multiplicados, ela está além das pessoas que com. disponíveis no século XVI não podiam, entretanto, desembocar numa tal
põem os povos e os poderosos. Se se os relaciona somente à sua existência ·,. análise; no maquiavelianismo - entre outras concepções do mundo - esta aná-
individual, os príncipes e os indivíduos que compõem uma muJtidã'o são de lise está necessariamente ausente. No Florentino, e aí está a originalidade, a
mesma natureza: " ... esta rusticidade de que os escritores acusam a multidão política (seus cálculos como suas ftnalidades) é percebida como uma realida-
6 o fracasso 13 dos homens tomados individualmente, e , mais particularmen- de absolutamente autônoma, fechada sobre si mesma, exclusiva em sua maté-
te, o dos príncipes: porque todo aquele ~ n§'o seja contido pelo fteio de ria, em sua '&.parlçfo e em seu ftm. No direito político não há nada mais. para
leis cometerá os mesmos erros de uma multidãd desenfreada".!! mais difícil a a consciência de Maquiavel, do que a vontade üvre de se dar leis. A ordem ju-
um Príncipe do que a um povo permanecer submetido à lei: mais poderoso, rídico·política, separada ~o resto - isto é, abstrata - aparece então não como
ele é o objeto desta tentação que é a anarquia individual, anarquia·para-si- um nível relativamente au~ônomo, mas como uma essência fixa, uma ordem
mesmo; mais sozinho - os papéis políticos não são homogêneos, intercam- irredutível ao que quer que seja.
biáveis, equivalentes -, ele está mais próximo desta condição individuada Em seguida, a evolução do conteúdo concreto do Estado tem "comple·
que, ver-se·á logo, em Maqulavel sempre é centrífuga, sempre dissolvente de xificado" este último nas sociedades avançadas modernas : também ele não
aparece mais em nossos dias na bela simplicidade de um conceito facilmen-

120 121
.4 - -- - -- - -- -~ - -- - -~ •

to pensável. Seria evidentemente fora de propósito estendermo-nos sobre a


cte Roma e de seu im~rio, no apogeu dos tempos republicanos. 1! certo que
história, em grande parte posterior a Maquiavel, dos Estados burgueses e, cor-
Políbio figura entre as leituras favoritas do proscrito de San Casciano, mesmo
relativamente, sobre a riqueza de compreensões possíveis dos papéis e da na-
• ele 6 raramente citado nas obras deste último.
I tureza das estruturas estatais.
Estas duas razões históricas, que nos tomam difícil a leitura do Floren-
Considerado em seu impacto político, o estoicismo não tem a unidade
f-qual a exposição puramente filosófica tem o hábito de reduzi-lo, ao mesmo
tino, nos impõem dele uma compreensão circunstanciada, aliás estio Ugadas: o
i i li desenvolvimento do conteúdo interno do Estado, nos países em que a burgue-
sia dominá desde os s6culos XIV ou XV, tomou possível a aparição de uma
tempo que o torna insípido. O antigo estoicismo é contemporâneo da deca-
d6ncia das cidades gregas; o estoicismo intermediário é "republicano"; ele se
prolonga à época em que o im~rio substituiu a. república e acompanha este
! I I ciancia positiva da polí~ca. Doravante, uma aproximação deste tipo - intei-
tm~rio até seu declínio. Qual é a doutrina de Políbio no que conceme à bis·
ramente corrompida de relatividade constitutiva que ela seja - nos permite
tória e ao fwtdamento dos Estados?
conhecer os Estados nascentes de outro modo de corno os conheciam os
Incontestavelmente, Políbio pertence a esta corrente de pensamento es-
contemporâneos destes Estados, e também de compreender os limites que
tóico pelo qual o mundo é político e o direito um dado cósmico. Digamos
estes contemporâneos encontraram quando de sua apercepção do Estado.
mesmo, após todos os historiadores do direito político, que é a importaçio de
'eonceitos estóicos para Roma que foi um dos pontos de partida de uma defi-
Nação maquiaveliana - Direito Natural - Agostianismo niçfo do jus gentium, direito de nações "outras que não romanas". As coi-
IU são relativamente simples para o estoicismo antigo, o de Zenon de Cit-
Para Ma9.uiavel 1.portanto, a ~lítica é instauração da lei, lá onde esta tium, em que o cosmo é ao mesmo tempo modelo e norma da cidade. Toda
últimã não existia; ela confere a~ homem -Üma dfrnensão-ciüe tranul&Uf3 cidadania é uma dependência do universo e as cidades politicamente defm.idas
sua 'eXiStência até aÍ individual e dispersa; a nação se acha engendrada pelo lfo desvalorizadas como artificiais e acidentais, segundo o que os primeiros es-
ato recíproco de virtude~osso florentino pertence portanto a urna tradição tóicos apreenderam de seus mestres cínicos e cirenaicos. Mesmo após Pane-
filosófico-política, que ele mesmo ilustrou de maneira incontestável : aquela
para a qual não existe nenhum direito "natural". Para ele, direito algum
tius, o estoicismo romano, que se chama "imperial" porque floresceu após C6:
sar (~ Sêneca, 4 a 64 pós-Cristo a Marco Aurélio, 121-180), ainda concebe o
precede o ato positivo pelo qual ele adquire realidade e efetividade na história
cosm~ como modelo político e como única cidade real. Lê-se plenamente este
dos homens. A nação retira seu direito de seu próprio surgimento: nenhuma
I
"cosmopolitismo" no texto seguinte, extraído de Epíteto (50-128): ·
1: instância natural ou teológica garante-lhe o exercício de direitos que ela teria
desde então somente de fazer .valer. T3!!,~~-C?Illo aJ~!~~ia naçi~, ~ di!'eito !lio "Se o que os ftlósofos dizem do parentesco de Deus e dos homens
é virtual antes de ser real. Esta dependência do maquiavelianismo dos siste- 6 exato, o que resta ao homem senão repetir as palavras de Sócrates .
mas de "direito positivo" introduz uma relação nuançada com urna de suas quando se lhe perguntava de que país ele era? Ele jamais dizia que era
fontes intelectuais mais importantes:as Histórias de Políbio. de Atenas 6u de Corinto, mas que era do mundo. Por que dizer, com
Políbio viveu de 200 a 122 ~ de Cristo, mais ou menos. Era um gre- efeito, · ~ue tu és de Atenas e não deste pequeno canto da cidade em
go letrado e politicamente ativo porq~ era hiparca da Liga Aquéia 1 s quando que teu pobre corpo foi lançado em seu nascimento? Não 6 claro que
foi enviado a Roma, entre os mil reféns de alta categoria e de grande influên- teu nome de ateniense ou de oorintino tu o tires de um lugar mais vasto
cia com os quais a liga teve de pagar sua derrota de Pidna, em 168 antes de que compreende não somente este canto mas ainda tua casa inteira e ge-
Cristo. Em Roma, Políbio é introduzido no séquito de Cipião Emiliano. En- ralmente todo o espaço em que foram engendrados teus antepassados
contra aí um outro grego, Panetius, nascido em Rodes, estóico emigrado de até ti? Portanto, aquele que toma consciência do governo do m\UldO,
Atenas. Panetius inicia Políblo na filosofia do Pórtico, tal como sua introdu- que sabe que a maior, a mais vasta, a mais importante de todas as famí-
ção no universo romano o havia transformado. Políbio escreve uma história lias é "o conjunto dos homens e de Deus", que Deus lançou suas seme~-

122
123

I'
~ •. ! .. .. ...... . , .. , -:-

tes não somente em meu pai e em meu avô mas em tudo o que 6 engen- aquela em que se acha valorizada a construção pelo homem de um cosmo po-
drado e cresce na terra, e principalmente nos seres razoáveis porque, em litico razoável e cujos princípios são imanentes à antropologia 18 • Para Polí-
relação com Deus pela raz!o, eles sio os únicos de natureza a participar bio 6 o acesso a toda uma paisagem ordenada: a da grande tradição de juris-
numa vida comum com ele, por que um tal homem nã'o diria: eu sou do consultos republicanos, aqueles mesmos que deram ao direito romano seu
mundo? eu sou fll.ho de Deus?" (Entretiens I, 9. Trad. Bréhier. Bibliote-
~I
cotlteúdo ao fixar nas instituições uma mentalidade cujo estudo é, hoje, ainda
ca de la Pléiade.) bastante mantido.
I Está evidentemente fora de questão falar, por pouco que seja, da manei-
O estoicismo "intermedíário", aquele que se elabora no séquito de Ci- ra como o direito romano se articula com o conjunto da vida romana: é claro
pião no tempo da República no momento de suas maiores conquistas, deve que isto seria uma pesquisa absolutamente estranha ao que Maquiavel, por sua
operar alguns 'ajustamentos, visto que os primeiros discípulos de Zenon vive- vez, busca nos textos antigos19 • Uma única observação será suficiente para
ram o fundas cidades gregas. Políbio 6 contemporâneo da conquista da Mace- nosso propósito aqui e ela esclarecerá ~bj~to que in~ ao f!o~~ntin_E;
dônia e de sua transformação em província, da destniição de Cartago em .. desde a metade do século V antes de Cristo, elaborou-se um direito comum
146, da submissão da Espanha. Enquanto que Crisipo desvaloriza qualquer aos patrícios e ã plebe, não sem males. Ele leva o nome de "Lei das XII tá-
acontecimento, toda a história; enquanto que nada do que acontece no tempo 'b\UlS". A partir desta constituição, aliás sumária e que nós conhecemos de
e no espaço de que os homens necessitam para seu devir lhe é essencial; en- maneira fragmentária, uma coisa é certa: Roma trabalha continuamente._at6
quanto que para ele é essencial a identidade do cosmo e dos deuses, Políbio o Império, pela laicizafã!> quase completa 'deiua oiiãfdiiiri9_p;ídico-políti-
tenta pensar sinteticamente a ligação que existe entre o mundo como cidade -a
última e a história romana com~contecimento efetivo desta cidade. Seu pro- Os historiadores do direito romano vêem esta laicizaçfo num movimen-
grama histórico assim se enuncJa: to que conceme de maneira homóloga, de um lado aos magistrados e à defmi-
"Eu diria como, e pelo efeito de que regime político, quase toda a terra çlo do imperium e, de outro, ao próprio conteúdo do jus e do jurare.
habitada fora dominada e tomara-se, acontecimento sem precedente, o fato A cidade romana perde progressivamente seu caráter religioso, quando
de um Império único, o de Roma". este caráter era, na origem, afmnado pela confusão de poderes civis e sacer-
Políbio, portanto, vê no tempo humano, e na história de Roma de que dotais. Doravante, o poder dos magistrados é entregue por uma eleição (quer
ele freqüenta os meios dirigentes, uma realização progressiva do universal cos- . pelos comícios tribais, quer pelos comícios de centuriões, segundo as magis-
mopolítico; Zenon ou Crisipo, por sua vez, "realizaram" esta universaJidade traturas). Ele defme uma área de competência no interior da qual o magistra-
na identidade sempre dada, ao mesmo tempo instantânea e eterna, do mundo do está investido do imperium (ou da potes tos somente, segundo a hierarquia
e de Deus 16 • Para o discípulo de Panetius 17 , a identidade do cosmo e da cida· : das magistraturas). Esta área 6 estritamente delimitada pela lei : a atividade do
de política está para se efetivar. Com o otimismo das classes dirigentes que magistrado exerce-se aí em formas predeterminadas que excluem qualquer
não vêem limites a seus empreendimentos.( entretanto, Tibério Graco cai sob ambigüidade. O formalismo dos atos jurídicos, das deliberações políticas é
os golpes em 133, seus irmãos Caios doze-'anos mais tarde, após terem levado uma conseqüên<!!il da laicizaçlo da cidade. A ausência de sentido escondido
a seu estado manifesto o principal problema da constituição do Império),~~ distingue o ato completo em virtude do imperium de tudo o que diz respeito
líbio projet~ na história uma filosofia da totalidade antropocósmica e pensa i prática religiosa que, ao coptrário, é súplica, rito sempre incerto, consulta de
li que· á·Õ;dem histórica das coisas manifesta o filosófico. Para ele, a história é
esta realização, este processo de unificação do mundo humano, este aconteci-
auspícios sempre ambíguos, etc. 9 pol.~!i.c~·j~r ~~ico é feito de formulações
claras
,_., e delimitadas •
10

I ment9 progre.~sivo.dQ up.iversal histórico. Desde entã'o, entrar numa relação de direito é jurare, determinar um
Ainda mais do que Tito Lívio, Políbio é aquele dos historiadores lati· conteúdo para as obrigações contratadas por juramento, em benefício de um
nos em que Maquíavel certamente colhe uma boa parte de sua inspiração: terceiro ou da república mesma. Em casos difíceis, a fórmula que exprime a

124 125
O primeiro sistema de que falamos.•. é o melhor, após este em-
relação t efetiva, emprestada a um ritual social; esta fónnula previne as esca-
pregado pelos romanos..•
patórias, que assim, se evita ao excluí-las de antemão. Quando se encontram
juramentos sociais de uma particular solenidade, os deuses são invocados na
Tudo isto prova a excelência do caminho seguido pelos romanos,
palavra que atesta o engajamento; ftadores de quem jura, eles o assistirão para
llie arranjar a força necessária e serio testemunhos de sua boa-ft . Mas "seja
, tanto mais admirável porque ninguém lhes traçou a rota e porque nin-
guém nela caminhou após eles". (Tite-Eive. IJ, 4 . Pl. pp. 523-527.)
qual for a construçfo (gramatical), o elemento religioso do jurare consiste nu-
ma assistência divina que nele é mais inseparável do que constitutiva 21 '•.
Na história do mundo ocidental, Roma inventou o que, aos olhos de
Maquiavel e de muitos outros, pode ser um exemplo de soberania política.
A aparição do cristianisJ!l:o_na latinidade traz, todos o sabem, uma ruína
Pelo jogo de ~onquistas, Roma se encontra frente a um problema que Esparta
bastante importante nas ~oncepções sobre a gênese do direito e sobre o cará-
não conheceu. Nosso florentino. que passa nisso sobre questões que a análise
ter das nações. Uma re!i!_:~:~olta: n~ .é ~.a!~J n~.imes.tida.d~ "soberania".
nfo encontrará senão mais tarde, pensa que a extensio das terras submetidas
~~~- e~endrar o:'-itos na~onais e particul~es ; é, a_9 contrário, ~a teolo-
ao imperium de Roma teria podido ser indefuúda, se os costumes políticos
não se degradassem. Assim, Roma ilustra a seus olhos os possíveis triunfos da
··ra.qu.tt pretende determinar as políticas•. Esta inversio é conhec1da sob o
nome de "agostianismo político" porque é a partir de Santo Agostinho (354-
soberania. Ele trata disso, por exemplo, no Tito Lívio, livro 11, capítulo 3, sob
430) que ela to~ou uma consistência notável e que se modificou também se·
...... ........ cresceu ao arruinar as cidades vizinhas e ao dar facílmente
o título: "Roma -
gundo as necessidades históricas da vida política do Papado.
aos estrangeiros a qualidad~ de cidâdãos'\ Assim (capítulo seguinte): "As re·
Portanto, a relação se inverte entre os deuses e o poder político. Mais
p\lblicas empregaum três meios para crescer":
exatamente, Deus toma-se o fundamento de toda autoridade política, que é
"Todo aquele que observou atentamente a história antiga teve de entfo uma ..tenência" (no sentido literal da palavra: tendo lugar de ...). O

:l
. i
ver que as repúblicas empregavam três meios para se desenvolver:
O primeiro... consiste em não forrrw senão uma única liga de vá-
Deus cristio sendo, por outra via, universal, o conceito de nação se esfuma no
qostianismo, em benefício da noção de orbis, universal humano de que Jesus
rias repúblicas reunidas entre .elas; entio nenhuma conserva proeminên- ~ monarca e de que o Papa é o representantç. A autoridade política, como tal,
cia sobre a outra; e, no caso de conquista, as cidades conquistadas tor- nio está então mais num imperium; ela desce à categoria de auctoritas, autori·
nam~ associadas da liga. dade derivada, segunda, de que o modelo é ao mesmo tempo o fundamento,
pois que ele está transportado em Deus, titular de todo imperium, detentor
O segundo meio é associar-se a outros Estados, mas reservando-se único da soberania no cosmo. Resumamos dizendo que o direito cristão se se·
o direito de soberania, à sede do Império e à glória de tudo o que se faz para fundamentalmente do direito romano dos jurisconsultos republicanos em
em comum. Este foi o método seguido pelos romanos. três pontos centrais deste direito: primeiramente, a nação deixa de ser a fonte
O terceiro, enfim;ef~r-se súditos das nações vencidas. Foi as- e o campo de apli'-'llção do direito, e isto em benefício da orbis, totalidade an·
sim que dele se utilizaram Atenas e Lacedemônia. tropocósmica orientada por uma Providência e por uma escatologia da Salva-
Destes três meios, o último é perfeitamente inútil ... Roma, ao ção; em seguida, a política deixa de ser fundadora para tomar-se segunda;fi·
contrário, por ter seguido o segundo sisterrta de conduta, elevou-se ao naimente, a relação da religião com a lei civil se inverte.
mais alto grau de poder; e como ela foi a única a segui-lo constantemen- ~~~vel _~~u a im~rt~c.~a__P.?)i~~~~ _d.e ~~I ~n~e~~o. E o agostianis·
te, foi também a única que chegou a est.e ponto•.. Este sist.ema nfo foi mo em toda a extensão de seu campo, está no oposto diametral do menor
--~
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, ... 00 0 -MOO O>O - • .... . . - 0 • .... . . . ... • • •• - 0 0

seguido, como nós o dissemos, senfo pelos romanos; e uma república pensamentos maquiay~_l!3,!10~ Dois planetas diferentes. Também contem-
que quer crescer nã'o deve ter outro; porque a experiência provou que pOrâneos, porque seria falso acreditar que a pretensfo teocrática do Papado se
nlo há mais sábio nem mais seguro.
127
126
I -
enfraqueceu no tempo em que nosso homem pensa. Sem dúvida, ao contrário, nalidade se sobressaltava sobre a dos artistas solicitados, t!m wn aentido mui-
no que diz respeito à formaçfo intelectual do homem e de sua história, a pre- to claramente agostiniano. Consideremo-las um momento e vejamos como ae
. sença de uma pretensfo política da Igreja é o perigo que se impõe com maior ordenam as obras de Bottioelli, Ghirlandaio, Perugino, sob a orientaçlo de
evid!ncia ao homem de San Casciano. um bom conhecedor do Vaticano e de sua história, Lutz Heusinger 24 •
,;I A doutrina agostiniana sofreu, é verdade, eclipses relativos desde seu ~ "Em toda a produção artística do Quattrocento 25 n!o se encontra
. '
I'
apogeu, que ilustrara muito bem em seu tempo a atitude política de um Papa em parte alguma as histórias de Moisés evocadas oom tal potência; o fato
i! tal como Inocêncio lU (de 1198 a 1216). Sob seu pontificado, a noção de .de que esta obra única se encontra precisamente na capela palatina de Sis-
"c_ristan~ad~" co~tém o máximo de seu importe político e ântropológico; to IV é significativo. Para penetrar no sentido dos afrescos, ob~Crvemos
o mterd1to e praticado com uma grande eficácia contra os monarcas reticen- na ordem tipológica os dois ciclos de pinturas, o de Cristo e o de Moisés;
teS22 ; o ~pado é o poder que delega os poderes civis, na atmosfera de wn dito de outra maneira, vemos em Moisés o predecessor, o "arquétipo' de Cris-
consenso quase universal do mundo ocidental. A seguir, é butante seguro que to. A vida de Moisés ocupa a parede do fundo ... ela se detém no momento
os papas não se enfraqueceram até e~ ponto culminante que é o Grande em que Deus chama Moisés para guiar o povo de Israel. Na travessia do mar
Cisma do Ocidente. Aí, de 1378 a 1415, dois papas se opõem, submetidos por Vennelho, Moisés aparece como um chefe secular, um rei no apogeu de seu
~a vez a políticas que lhes escapam em grande parte e de que eles s1o os ava- poder; no Moisés que recebe as Tábuas da Lei, ao contrário, é como legisla-
listas, tanto em Roma como em Avinhlo. Mais precisamente, o século XV é o dor que ele aparece e, no afresco seguinte, como grande sacerdote. Na pare-
tempo em que Roma reage contra o enfraquecimento do Grande asma. Assis- de em frente, vemos Deus nos mesmos papéis de soberano, de legislador e de
te-se aí ao retomo de teóricos, dogmáticos, canonistas que jUJtiflcam a proe- sacerdote. Um afresco nos pennite interpretar todo o conjunto: aquele em
minência do pontífice romano, tanto no donúnio da fé como no da sabedoria que Cristo acompanha os chefes a Slo Pedro, demonstrando, assim, por este
poüticall.
gesto, que os três poderes supremos pertencem doravante ao Papado; além
Para Maquiavel, este adversário estava lá, bem contemporAneo. Com disso, no alto da parede, encontramos Pedro entre os papas. A construçJo que
efeito, é na perspectiva política da retomada de wn poder espiritual e tempo- aparece no plano de fundo na 'entrega dos chefes' nlo pretende repre~Cntar o
ral que os trabalhos de embelezamento e engrandecimento do Vaticano come- templo de Jerusalém; com efeito, segundo o Evangelho, o reencontro entre
çam, em tomo de 1475: é o tempo da juventude para o ftlho de Bernardo Jesus t Slo Pedro não se passa em Jerusalém mas na Cesaréia. Contudo, ao
Macchíavelli. Sisto IV toma assim a cargo a restauraçfo do brilhantismo rom• observar as linhas idealizadas do edifício segundo o círculo e o quadrado, na:o
no. O centro do novo palácio pelo qual o suce~r de Pedro consolidaria ideo- é difícil reconhecer a imagem da Igreja, herdeira do poder e da missão de Pe-
logicamente seu poder no mausoléu do fundador - até aí os papas tiveram dro. Desta maneira, a Igreja reaftrma sua aspiração legítima ao poder. I! no
sua residência e seus ofíc~os no Latrio - recebeu do nome de seu pontífice r,nesmo espírito que é preciso interpretar o episódio do pagamento do tributo
promotor a denominaçfo deq apela Sixtina. O plano de conjunto e o projeto 1
('Damos a César o que é de César'). Comparado ao poder que a entrega dos
decorativo desta capela obedeciam a fms dogmáticos que é útil explicitar, vis- chefes confere à Igreja e ao Papa, o poder temporal do imperador aparece
to que as considerações q':IC vfo se seguir n!o poderiam prejudicar em nada bem diminuído. A$türr. por uma série de imagens que se abrem com Moisés,
e
a admiração estética universal de que a capela é um objeto priviJegiado. na 'arquétipo' de Cristo, e se tenninam com a história do Redentor, estio ilustra-
decoraçfo primitiva, a que precede as pinturas de Michel.ingelo, do teto e da das, de um lado, a missão da Igreja que ela defende com afmco, de outro lado,
pintura-afresco do Julgamento Final, que o agostianismo é lido com grande pela vontade do Papa de nada ceder de sua autoridade no selo desta Igreja. O
clareza. Mais mfstica, a pintura de Buonarotti traduz, sob o pontificado de Jú- 'Castigo da Raça de Qorah' tem por fundo a reproduçlo exata do arco de
lio IJ ~ella Rovere, .uma estética mais do que uma visã'o histórica e teológica Constantino. Foi acrescentada 'no arco a seguinte inscrição: 'Que ninguém se
das co1~s. Mas as pmturas·afresco das paredes laterais, pertencentes ao prOJe- arrogue uma tal dignidade porque é preciso ter sido, como Arfo, chamado de
to de S1sto IV e provavelmente dirigidas em detalhe por um Papa cuja perso-
I Deus' (Judeus V, 4). Sisto IV, durante todo o seu pontificado, foi incessante-

128 129
mente ame~o de ver seu poder abalado por um Concílio manobrado por princípios úteis de que um legislador sábio conhece toda a importância
soberanos e biSpOS, como foi o da Basiléia. Nos decretos que o Papa promulga e que nfo trazem com eles provas evidentes que possam impressionar os
para defender seu poder ou quando ele passa à contra-ofensiva, as palavras das outros espíritos. O homem hábil que quer fazer desaparecer a dificulda·
Escrituras, inscritas no afresco, ressoam como advertências e relembram com de recorreu aos deuses. .." (Tite-Live. I, 11. Pl. p. 412.)
freqüência o terrível castigo que fulminou a raça de Qorah, culpada por
ter se revoltado contra o poder que Moisés tinha de Deus. Por conseguinte:
Em agosto de 1483, a Capela Sixtina foi consagrada, enquanto que Sis· " ... é dever dos príncipes e dos chefes de uma república manter
,,
I'
t~ N lutava contra a ameaça do Concílio. Ao fazê-la construir, o Papa preten. sobre seus fundamentos a religifo que aí se professe; porque entlo nada
,. dta que a capela simbolizasse a Igreja e o Papado que reivindicava o poder. Os é mais f!cil do que conservar seu povo religíoso e, por conseguinte, bom
I
IJ
afrescos da capela, ilustrando as vidas de Moisés e de Cristo, deveriam atestar e unido. Assim, tudo o que tende a favorecer a religi.lo deve ser benvin·
as bases fústóricas deste poder." do, mesmo quando se lhe reconhece a falsidade; e se o vê tanto mais
quanto mais se tem sabedoria e conhecimento da natureza humana.
Da atenção de homens sábios em se conformar a estas máximas
_nasceu a fé nos milagres que se celebra nas religiões, mesmo as mais fal·
Os juízos que Maquiavel sustenta sobre o cristianismo jamais fazem a
menor referência aos teólogos nem aos canonistas agostinianos: Tanto corno
sas. Estas pessoas sábias as acreditavam, seja qual fosse sua fonte, e sua
opinião fazia autoridade junto a todos os outros. Houve um grande nú· t
nlo .leu os "filósofos poüticos". nosso homem não se interessa pelos grandes
teóncos do pensamento da Igreja. Todavia, dispersos na obra e bastante con-
vergentes, abundam os textos que apreciam o papel fústórico da Igreja e do
pensamento cristlo, sem que jamais estes dois temas aliás sejam avaliados se-
mero destes milagres em Roma ..." . (Ibiá., I, 12. Pl. p.415.)
Com relação a esta referência permanente às religiões pagãs, o cristianis-
mo é uma degenerescência da "Virtude", e isto em dois sentidos: além do fa·
1
paradamente. to de que inverte, como nós já o dissemos, a relação real entre a crença e a ins·
tauraçlo política, ele constitui um enfraquecimento das motivações políticas
Fixemos logo que muito freqüentemente o cristianismo é citado no
em sj,,mesmas. O cristianismo
quadro ~ ~ma análise que conceme, em seu conjunto, ao papei da "religiJo" ' ----·····-·· ·--é o portador intelectual
..
e afetivo
.. ...... .
de uma má 1»
~
1ftica26.
na.c~nstitutçfo de um consenso nacional. A este título, o modelo de qualquer
religtllo .permanece a crença em deuses nacionais. Nós teremos portanto a "Por que razões os homens do presente estão menos ligados à li·
oportuni~ade de reenconttv um sistema de crenças de tipo religioso no capí· berdade do que os de outrora: pela mesma razão, penso eu, que faz
tulo segumte. A fun de sittkr o julgamento maquiaveliano neste quadro em com que os de hoje sejam menos fortes; e é, se eu nlo me engano,
que naturalmente entra seu exame do cristianismo, ser-nos-á suficiente, no a diferença de educaçio fundada sobre a diferença de religião: Nos-
momento, destacar que o modelo exemplar de relações entre a religião e Es- sa religião, com efeito, niO tendo mostrado a verdade e o caminho
0
tado nos é dado pelo antigo costume das religiOes pagls: certo, faz cott qúe nós consideremos menos a glória deste mundo.
Os paglos, ao contrário, que a estimavam muito, que nela coloca-
··~
.. "A história romana, para quem a lê judiciosamente, prova como a vam o soberano b~m , punham . infmitameote mais ferocidade em suas
religifo era útil para comandar os exércitos, para reconfortar o povo, ações: é o que se pode inferir da maior parte de suas instituições, a co-
para manter as pessoas de bem e fazer corar os maus... meçar pela magnificência de seus sacrifícios, comparada à humildade de
E, em verdade, jamais existiu efetivamente legislador que não ti· nossas cerimônias religiosaS cuja pompa, mais flatosa do que grandiosa,
v~sse .re~rrido_ à ~tervençfo de um Deus para fazer aceitar leis excep- nio tem nada de feroz nem de atrevido. Suas cerimônias eram nfo so-
aonaa, inadmtSStveis de outra forma: com ef~ito, numerosos slo os mente pomposas mas encontravam-se aí sacrifícios ensangüentados pelo
r
I: 130 131

l!
I
11
I
I 11 massacre de uma infinidade de animais; o que tomava os homens tam- nação da política eclesiástica que, na história, desacreditou a Igreja e sua ideo-
11 b6m ferozes, tio terríveis quanto o espetáculo que se lhes apresentava. logia agostiniana.
Além disso, a religião pagl divinizava somente os homens de uma glória
"E, certamente, se nos começos da república cristã a religião fosse
terrestre, capitães de exércitos, chefes de repúblicas. Nossa relígillo glo-
mantida conforme os princípios de seu fundador, os Estados e as repú-
rifica mais os humildes devotados à vida contemplativa do que os ho·
mens de ação. Nossa religlll'o coloca a felicidade suprema na humildade, blicas da cristandade seriam bem mais unidos e bem mais felizes do que
27
na abjeção , no desprezo das coisas humanas; e a outra, ao contrário, 0 si'o. Não se pode dar mais fortes provas de seu declínio do que ver os

fazia:.O consis~ na grandeza da alma, na força do corpo e em todas as povos mais próximos da corte de Roma - que está à fren~e - tão ~e­
qualidades que tomam os homens temíveis. Se a nossa exige alguma for- nos religiosos do que os que dela estio perto. Quem exammar os p~­
ça da êÜma, é mais a que faz suportar os males do que a que conduz às cípios sobre os quais ela está fundada, e quanto a ~tica que nela~ fe~­
fortes ações. ta está deles distante, julgará que a hora está sem dúvida bastante próXI-
Parece-me, portanto, que estes princípios, ao tomar os povos mais ma ou de sua queda, ou do flagelo .
' Mas como numerosas pessoas pensam que a prosperidade da Itália
débeis, os dispuseram a ser mais facilmente a presa dos maus. Estes vi·
rarn que eles podiam tiranizar sem piedade homens que, para ir ao pa- está junto à exist~ncia da Igreja em Roma, que me seja permitido levan·
raíso, estão mais dispostos a receber seus golpes do que a devolvê-los. · tar contra esta opinião algumas razões, de que duas entre outras me pa-
Mas se este mundo se afeminou, se o céu parece desarmado, acusemos. recem irreplicáveis." (Tite-Live. I, 12. PI. pp.415-416.)
somente a covardia daqueles que interpretaram nossa religião segundo a ' A primeira destas razões, que se vai ler imediatamente, está ligada ao
indolência e nllo segundo a virtude. Se eles tivessem considerado que es- que dissemos precedentemente. Ela~ contemporânea, nã~ o esqueçamos: da
ta religião permite exaltar e defender a pátria, eles teriam visto que ela 8
crítica da Igreja que fora o centro da ação de Sav~~ola. . Con~mporanea
nos ordena amar esta pátria, honrá-Ia, e de nos tomarmos capazes de também de Lutero, que enuncia, por sua vez, esta pnmetra razio com ~
defendê-la. força completamente diferente. Lutero (1483-1546) está na linhage~ de cnti·
Estas falsas interpretações, e nossa má educação fazem com que cos moràlistas do catolicismo romano. Maquiavel se colocou a sernço de um
hoje se vejam menos repúblicas do que se viam outrora, e que os povos, ) Médi~i, junto ao·futuro Clemente VII, então cardeal Júlio Médici, no momen:
por conseguinte, tenham menos amor à liberdade." (Tite-Live. li, 2. to da primeira viagem a Roma do reformador alemão ( 1520). No que toca a
Pl. pp.519-520.) ·-\ obra teológica e política de L~tero, o secretári~ florentin~ nã~ di~á nada~':
I
sem dúvida esta construção germânica lhe parecta um pengo .g~bebno,_ m~t~O
O cristianismo, historicamente encarnado na política da Igreja, de que mais quanto não lhe parecia útil a crítir,a que ela comportava da instttutçao
ele nfo se separa no pensamento maquiaveliano, fracassou temporalmente
romana.
com as derrotas desta Igreja.~ precis?_~! que, ª~ <?lhos de_M..a9..1!iavel , não
h~J!a obstáculo ideológico maior a que a política fosse AC?minada ~!~s pon- " ... eu mantenho primeiramente que o mau exemplo desta corte
.J.Qt.de Visiã d.â' Ipg,_r!tas_!~to seria na condi~Q.. d~ q~ estes ~ntos de vista destruiu na Itáli·~ qualquer sentimento de piedade e de religillo. D~í. os
fo~_m realmente atuantes no devir oolítico e de ql!~ eles fo~.!!l_lllotores de desregramentos, desordens ao inftnito; por<fie se lá onde nfo há reltg~ã~
uma instauração política re_~...:_O poder da Igreja teria podido ser uma insti· supõem-se todas as virtudes, lá onde ela falta deve-se supor to~os _os vt·
tuição capaz de assegurar um governo. Mas no momento que são escritos os cios. Assim, portanto, a primeira obrigação que nós outr~s, ttaltanos,
Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, qualquer menção da Igreja é temos com relação à Igreja, e aos padres, é·que eles nos pnvaram de re-
redigida segundo a modalidade do irreal do passado: ela comporta uma conde- ligião e nos dotaram de todos <l~ vícios.''
E vem então a longa passagem cujo fim é conhecido, no qual Maquiavel

132 133
.....

~valia ~ fracasso da política eclesial, como o de um poder bastante forte para


tmpedtr que não se realize a unidade italiana e, entretanto, bastante fraco para Limites
poder mantê-la em seu proveito. Aqui, o julgamento que o Florentino estabe- A concepção maquiaveliana da constituição - e da natureza - das na-
lece sobre o Papa J úlio IfJO deve esclarecer para nós o propósito em seu con- ções representa uma superação evidentemente importante com relação ao
junto. agustianismo. Entretanto, ela opera esta superação sob uma forma limitada,
que comporta em si mesma os elementos de sua inadequação relativa. Embora
"Mas nós lhe temos uma outra (obrigação), maior ainda, e que é a haja traços absolutamente claros, no Florentino, de uma maneira positiva de
seg\mda das duas causas de nossa ruína. 1:. que é ela, a Igreja romana, visualizar o direito como expressão e estruturação de uma consciência coleti·
que nos manteve e nos mantém divididos. Um país não pode ser verda- vo-nacional; embora se encontre nele o sentimento muito vivo de que o futu-
deifatnente unido e prosperar, senão quando não obedece inteiramente ro das comunas feudais e das senhorias fragmentadas está na instauração de
a um único governo, seja monarquia, seja república. Tal é a França ou a uma monarquia de base nacional; o aparelho conceitual pelo qual é pensado
Espanha. Se o governo da Itália inteira não está assim organizado, quer este conteúdo novo e progressista permanece, entretanto, dominado pelo atra-
como república, quer como monarquia, é somente à Igreja que nós 0 tivo da ordem romana na época republicana. A maior parte dos capítulos que
devemos. Ela adquiriu aí um império e um domínio temporal, mas não , constituem os Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio são signifi-
foi t!o potente nem tão hábil para se assegurar todo o território e toda cativamente construídos de maneira a pôr em evidência comparações entre os
a soberania; tanto como foi bastante fraca para que o temor de perder inícios místicos de Roma e as políticas praticadas na Renascença, entre o
seu domínio temporal a fizesse em muitas passagens chamar o estrangeiro If. comportamento das legiões de Cipião e a dos exércitos mercenários de con·
em seu socorro contra um poder do país, que ela temia. Assim, ela cha-
mou Carlos Magno para expulsar os Iombardos que já eram reis de toda-
. dottieri, etc. ,
À luz do que vimos, podemos compreender que a ligaçllo exclusiva de
a ltáliau ; assim, em nossa época, ela venceu o poder dos venezianos Maquiavel às instituições da Jatinidade republicana designa ao mesmo tempo
com a ajuda da França; e em seguida expulsou os franceses com a ajuda um movimento progressista e os limites deste próprio movimento. Progresso
dos suíços32 . numa concepção da ordem política, que assim se toma "positiva", isto é, ana-
~a não ~ndo jamais bastante poderosa para ~ }l~derar de Uaadá'ao nível de seus fenômenos, e nfo mais ao nível de uma concepção mui-
~-~-00!~!. b_l_!tante p~a ip_~~ lJ!Il_9~t!9 de_~~eã-~_Joi a cau- to geral do mundo que seria encarregada de sustentar e de lhe operar a sínte-
sa de que este país janvuspôde se reunir sob um chefe; foi dividido en- ee; limites muitos reais, eles também, que encerram estreitamente uma visão
~ vários pequen~~ pr~s ~u se~Q_r~~-,_ -:I'ai é a ~~a_;j~~sua desWtião de mundo sem grande abertura. E este nio é um dos menores paradoxos desta
e_de sua fraqueza , que o conduz a ser a pre~. nfo somente de estr~gei­ ~poca "renascente": germes de nossa modernidade, caminham um ao lado do
ros poderosos, mas de todo aquele que o quiser atacar. outro aí, aí se excluem, quando serão chamados a frutificar na história poste-
· · Ora, tudo isto é à corte de Roma que nós o devemos. Para se 000• rior e a se desenvolver para nós, ao exigir de nossa parte sínteses que não esta-
vencer disso pela experiência, seria preciso ser tão poderoso para enviar lnOS prestes a completar.
a corte de Roma, eu suponho, ao centro da Suíça, habitar com o povo Maquiavel não foi' uma testemunha muito. boa da mutação cultural de
da Europa que, pela religia'o e pela disciplina militar, mais conservou os que ele foi contemporâneo. Digamos mesmo que se ele se previne de qualquer
antigos costumes. Ver-se-iam logo os costumes culpados desta corte aí oon&ideração sobre a lústória universal, se as anotações que se encontram a
fazer nascer mais desordens do que em tempo algum nenhuma outra nte respeito em tomo de um texto são de uma pobreza singular, uma con-
causa jamais pôde produzir." (lbid., l, 12. Pl. pp.416-4 t 7.) cepçlo limitada do mundo humano é-lhe a causa. Espíritos de seu tempo, en-
tre os melliores, encontravam precisamente na extensão, percebida como in-
cleflnida, deste mundo um alimento para discussões; e também destes últimos

134
135
nó~ ainda vivemos. Elas animam, acrescentadas a debates evidentemente pos- mente informado de tudo. Ele tem de 32 a 38 anos, prestigiado, desfrutan -
tenores, nossa problemática antropológica. Por exemplo, Maquiavel está total- do de sua plena maturidade. Escreve um poema de quinhentos versos:
mente ausente de uma das aberturas capitais de sua época: a conquista e a des-
coberta do Novo Mundo33 . "Eu vou contar as experiências que a Itália suportou durante os
O que ele fala disso? . dois últimos lustros sob astros contrários à sua fortuna.
Pois eu teria de contar atalhos montanhosos, pântanos cheios de
"Eu não ignoro que o invejoso natural dos homens torne qualquer sangue e de mortos, enquanto que mudava a face dos reinados e dosEs-
descoberta tão perigosa para seu autor quanto o é para o navegador a tados!
busca das águas e das terras desconhecidas. Entretanto, animado deste ó musa, mantenha minha lira, e tu, Apolo, venha em meu socorro
desejo que me leva sem cessar a fazer o que pode se transformar na van- acompanhado de suas in:nis!
I· tagem çomum de todos, eu me determinei a abrir uma nova rota, em ...". (Premiere décennale, 1504. PI. p. 36.)
I que teria muita dificuldade, sem dúvida, em caminhar." (Tite-Live. 1.
Prefácio. P1. p. 377.) Como se constata, os limites da humanidade estão próximos da Europa
no pensamento de nosso autor. Sobretudo, é singular que um tal espírito te-
Isto é. frágil. Maquiavel aliás o reconhecia implicitamente, ao mostrar J;lha tido uma tal cegueira: verdadeira recusa que mereceria sem dúvida um es-
que .ele ou~~ falar de um certo Américo Vespúcio. Com efeito, "na redação tudo de que a psicologia das profundidades poderia nã'o estar ausente.
destinada a unpressão, Maquiavel suprimiu as palavras: 'tanto .. _quanto é Com efeito, a ausência completa do Novo Mundo na reflexão do Secre-
0
para o navegador a busca de águas e de terras desconhecidas'. Esta rasura é tário n!o é explicável por considerações sociológicas. Muito ao contrário, po·
muito significativa; ele julgou sem dúvida supérflua ou presunçosa uma com· de·se afirmai que a Co~quista foi muito rápido uma preocupação do pensa·
paraçã'o que nos parece tão justificada de todos os pontos de vista, entre mento burguês, ,e que ela é conhecida - e refletida - pelos contemporâneos
outros a este: Américo Yespúcio, pai deste Agostinho que escreve a Nicolau de Maquiavel. Por conseguinte, ela nllo está fora deste "máximo de consciên-
onze das mais interessantes cartl.ls famüiares, acabava de remeter a Soderini cia possível" de que fala com muita profundidade Lucien Goldmann 35 •
sua relazione dei paesi nuovamente ritrovati nel mondo nuovo , 34.
Conhecida e refletida: por exemplo, num homem que nós já encontra-
Os Yespúcio eram amigos de nosso homem. As cartas de Américo a Pe- mos, F~ancesco Guicciardini 36 • Neste último, ao inverso de seu corresponden·
dro Médici, depois a sodê'"rinh eram muito conhecidas em Florença. Em parti- te , o sentimento é agudo de pertencer a uma época transtornada, em escala
c.ular a.carta na qual ele escrevia a Pedro:"... Eu encontrei, nestes países me· mundial, por fenômenos absolutamente sem precedentes. Ele pensa mesmo
nd1onais, um continente mais povoado de homens e de animais do que nossa que a novidade dos tempos que se está vivendo é tão radical que ela toma im-
Europa, que a Ásia e que a África, com um clima mais temperado mais doce possível qualquer "história geral": para ele, não se encontram leis gerais da
do que não importa que outra região conhecida por nós . .. Pode-se: com justi-
evolução dos homens 37 •
ça, lhe dar o nome de Novo Mundo" . A carta teve uma tal difusão que caiu
enquant o ~ra traduzida em toda a Europa, entre as mã'os de um geógrafo ale~ Grande burguês de qút. o comércio é a atividade, de que a política inter-
mã'o, Martm Waldseemuller. Este último propôs, em sua Cosmograplúae in- nacional é o centro de interesse , Guicciardini consagra à conquista do Novo
troductio, publicada em 1507, que este Novo Mundo fosse doravante chama- Mundo uma análise na qual uma forma de demiurgia humana desconhe cida de
do: Americi te"a vel America. Do nome de um florentino, amigo indireto Maquiavel é celebrada na audácia dos navegadores. Três conseqüências são ti·
mas bast~te próximo de nosso Maquiavel, existe uma terra América. 1501- . radas desta demiurgia, em direções diferentes; todas as tfes permitem medir,
1502: a grande viagem deste Américo ; 1507: a Cosmographiae introductio; por comparação, os limites de nosso homem.
1501-1507: Maquiavel está "nos negócios" da República florentina , ampla- A primeira destas conseqüências é cosmológica: "Graças a estas nave-
pções apareceu com evidência que no conhecimento da terra os antigos se

136
137
enganaram sobre muitos pontos311 •• •" . Segundo, no que conceme ã políti· obrigados a dar ao rei a quinta parte do que eles extraíam ou do que, de uma
ca, vemos aí uma contribuição, de que é preciso bem dizer que ela é capital maneira ou de outra, chegava a suas mã"os41 ".
para a época, a uma descrição anti-agostiniana do mundo humano, e um ata· Entretanto, a perspectiva de Guicciardini permanece, globalmente, mais
que claro às pretensões teológico-polfticas sustentadas: ••... esta navegação conservadora do que a de Maquiavel. Primeiramente, apesar das visões incon-
não somente confundiu muitas das coisti afirmadas pelos escritores a respei· testavelmente mais amplas e de uma presença mais constante nas preocupa·
to das coisas terrestres, mas deu, além dissó, alguma ansiedade aos intérpre· ções verdadeiramente ''internacionais'' de sua época, ele analisa as perturba·
tes da Santa Escritura, habituados a ver no versículo do Salmo que diz "em ções italianas em termos bastante limitados do que o faz o Secretário. Este úl·
toda a terra seu grito e até os confins do mundo sua palavra", a afirmaçfo timo, ao menos, tivera em toda a sua vida a preocupação efetiva dos negócios
de que a fé de Cristo teria penetrado no mundo inteiro pela boca dos Apósto· de sua pequena república ameaçada. ~ Guicciardini que escreve as linhas que
los. Interpretação estranha à verdade, porque do fato de que não aparecia ne- seguem:
nhum conhecimento destas terras, de que não se encontra nenhum sinal, ne· "(Com a invasãO de Carlos VIU) entrou na Itália uma flama e uma
nhum traço de nossa fé, certas hipóteses parecem indignas de ser mantidas, a peste que , não só revolveu os Estados, mas ainda a maneira de governá·
saber que o Cristo teria vivido antes dos tempos presentes, ou que esta parte los e a arte da guerra. Com esta invação dos franceses, como por uma
tão vasta do mundo teria sido já no passado descoberta e reconhecida pelos ·tempestade repentina que coloca todas as coisas sem direito e avesso,
homens de nosso hemisfério". fraturou~ e explodiu a uníão da Itália e até o pensamento que todos
A terceira dimensão da análise de Guicciardini é ainda mais sígnifica- tinham dos negócios públicos, assim como a atenção que se lhes dedica·
~a dos limites maquiavelianos: aí, com efeito, aparecem as motivações que va ••. Com efeito, os Estados se puseram desde então a se conservar, a
explicam o colonialismo dos espanhóis e dos portugueses, assim como traduz se arruinar, a dar ou a reter, não mais segundo planos e nos gabinetes,
o pressentimento de uma ruptura próxima dos equilíbrios europeus, que fará como no passado, mas no cam:J)o, e as armas à mão" . (Storie jlorentme.
nascer o bastante considerável afluxo de ouro americano na península ibéri· Laterza edit. pp. 92-93.)
ca 39 • " •• • Os espanhóis, seduzidos por urna ocupaçlo fácil destas terras e pela
--~queza da presa - porque se encontraram filões de ouro abundantes -, co- ·;Portanto, resumamos dizendo que, se o espaço de informações ~e _G~i~·
tpeçaram a se instalar aí em grande número como em casa; Cristóvio Colom- clardmi~·õiais-e:xie~. o mod~lo i..taliano. que organiza.e&W dados num pen·
bo, tendo penetrado mais cedo, e após ele o florentino Américo Vespúcio40 , íãiDeilto j)oiítico é medie~.: A Reforma é a seus olhos um perigo porque ela
depois muitos outros, as ilhas foram descobertas assim como grandes exten· ·iraiá um grave golpe ifs estruturas edesiásticas'42 • A.análise que ele faz do
sões continentais; e em certos lugares descobriu-se a polidez e os costumes de papel antiitaliano do Papado está bastante em atraso com relação às conside·
uma sociedade civilizada (ainda que na maior parte dos casos fosse o contrá· nçrses maquiavelianas sobre o mesmo tema: as críticas que ele dirige aos
rio, tanto para a construção pública quanto para a privada, para as vestimen- papas visam sobretudo Alexandre Vl, e são somente morais43 • Para finalizar,
tas e para as relações sociais). Mas todos são povos estranhos à guerra e consti· e medir que se Maquiavel não foi o único em sua época a tratar de certos te-
tuem urna presa f:fcil: descobrem~ grandes países novos que formam, sem mas, ele o fez de outro m~do e em termos de que parece ter demonstrado a
comparaçio possível, um espaço maior que o mundo habitado de que tínha· arande originalidade poritica, examinemos um instante o que seu correspon·
moo até aí conhecimento. É nestes países que se estenderam os espanhóis e, dente pensa, e em que sentido ele o pensa, da realidade italiana:
tanto tirando o ouro e a prata destes filões que existem em numerosos luga-
" ... Eu não sei se a ausência de monarquia teria sido para este
res e na areia dos rios, tanto comprando muito barato aos habitantes, tanto
país uma felicidade ou uma infelicidade, porque se um Estado comum
roubando o que estes haviam acumulado, dele trouxeram para a Espanha uma
poderia servir à glória do nome da Itália e ser uma vantagem para a ci·
quantidade infinita; encontram-se muitos que navegaram nestas águas a titulo
dade que a tjvesse dominado, teria sido para ~odas as outras cidades
privado, com licença do rei, é verdade, e a suas custas, e estes eram entretanto

138 139
...'·.,.•..~ :,-.\_ .

uma calamidade: oprimidas pela sombra da primeira, elas não teriam a 2. Hegel consagra o livro I dos Príncipes de 1D phüosophie du droit ao estudo .
possibilidade de chegar a nenhuma grandeza porque está no costume deste momento da moralidade que é o direito abstrato. Em termos insupe-
das repúblicas não partilhar os frutos de sua liberdade e de sua domi- ráveis - ao menos no quadro de seu próprio idealismo - ele compreende o
nação com outros senão com seus próprios cidadãos. ldealistno que corresponde a este momento da abstração, inaugurado pelo
Se é verdade que a Itália, dividida em múltiplos domínios, sofreu estoicismo. O objeto ao qual o consentimento estóico se dirige na-o pode ser
freqüentemente numerosas calamidades que ela teria evitado talvez sen- ten!o o universo abstratamente defmldo como totalidade universal. Reencon-
do una, isto nã'o impediu de haver em todo tempo, apesar de tudo, mui- traremos de novo, por nossa parte, e no curso do presente capítulo, o estoí·
tas cidades florescentes que ela não teria conhecido sob um Estado úni- cismo médio porque Maquiavel teve relações efetivas como o estoicismo mé-
co. ~ por isso que eu penso que uma monarquiª lhe Jeria sido mais um dio, representado por Polibío.
No que conceme a Rousseau, sabe-se que a existência de totalidades re-
dano do' que um_pmveitQ, - --~ - .,,
Este argumento não é válido para um reinado que é comum a to- .lativas é um problema ao qual ele se achou defrontado (como se pode ser cor-
dos os súditos: vê-se assim a França e muitos outros países viverem feli- 107) e que a existência das nações o leva a sutis distinções entre a vontade de
zes sob um rei. Entretanto, que haja aí algum destino particular (ita- todos e a vontade geral. Cf., por exemplo, Contrar sociaL L. ll, 2 , "de como a
liano: fato) ã Itália, ou que a causa dele seja o temperamento de nossos ·. ·IOberania: é indivisível" e 3, "se a vontade geral pode errar". Se a nação nA:o
homens, constituído de tal maneira que eles tem a inteligência e a força, dá lugar a análises concretas, se se pe1manece no único nível de uma política
jamais foi fácil para este país se submeter a um poder único, ainda não do consentimento, esta idéia permanece vazia, abstrata e conduz a distinções
teria tido aí a Igreja. A Itália, ao contrário,.sempre aspirou à liberdade, metafísicas, que Rousseau transpõe numa pseudomatemática: "Há muitoJre-
e eu não creio que se tenha lembrança de um império que a tenha pos- ~nte~J_lte dif~~!!ça en!fe a vontade qe !od~~a_ von~ade ger_al; esta_visa
suído inteiramente, outro que o de Roma. Se ele o fez, foi com grande 10mente ao interesse comum; a outra .visa ao interesse privado e nlo é senlo
Virtude e grande violência; quando a República se eclipsou, e quando a uma soma de vontadespãrticuÚues: ~as eliminai deStas mesmas vontades as
Virtude faltou aos imperadores, eles perderam facilmente o governo da ~-menõs"êlue-seiiiierdestróem-, permanece <:01}19 _s~J!la -~as ~i.ferenças
Itália . ãvõiliãdOJgeral". (Contrat scu;iaL U. 3.)
e
por isto que, se é verdadeiro que a Igreja romana se opôs às 3. Signiflêativo-a esÚ respeito é o pensamento de Erasmo. (Institutio princi-
monarquias, eu não me inclino facilmente a acreditar que isto foi uma plschrlstiani, 1516.)
infelicidade para o país, porque ela assim o manteve numa maneira de 44. O estudo concreto da nação lhe dá estatuto de realidade histórica; ela nllo
1e faz uma realidade natural e não lhe reconhece de modo algum uma existên-
viver que está majs na sua tradição mais antiga e em sua inclinação."
(Considérations sur les discours de Machiavel. Livro II. Cap. 12. Ricciar- da metafísica.
di edit. pp. 340.341 .) S. No início do capítulo, Maquiavel transcreveu a opinião de Tito Lívio "e de
outros historiadores": ''Nada é mais móvel, mais superficial, do que a multi-
dlo ". Citaçlio das Histoires r?maines XXIV, 25: Haec natzua multitudinis est:
NOTAS .fUt humiliter servil, aut superbe dominatur (Eis o que é o natural da multi-
dlo: ou bem ela serve huiDndemente ou bem ela destrói, com orgulho).
I . O despotismo priva o homem de sua dimensão política, mais ainda do que 6. Além disso, ler-se-á, n'a parte antológica deste livro, alguns outros textos
e
de sua liberdade. Ele é mutilação. o sentido de toda a análise de Montes- Interessantes sobre o ponto que nos ocupa. Particularmente pp. 216 a 224.
7. Cf. Na segunda parte, algumas considerações sobre a França, "modelo
quieu. Rousseau não se pergunta tanto em que condições um corpo social é
livre como não coloca a questão : em que condições existe para o homem uma político", p. 247.
existência propriamente política? 8. A palavra "constituição" deve ser tomada, evidentemente, no sentido anti-

140 141
go de "sistema estável,. (modelo organicista dos Estados), e não no sentido 18. Políbio, como todos os intelectuais que gravitam no círculo dos Cipilo,
que o constitucionalismo político impôs: regra do jogo político definindo e atribui a Roma uma funçio civilizadora universal que ele une à urna missão
limitando as condições do exercício do poder. histórica transcendente pelo mito da Fortwta. O mito tem por fWJçiO essen-
9. Sobre Savonarola, alguns esclarecimentos nas pp. 27 e ss. Cf. também tex· cial jvstificar o lugar da classe senatorial no fWJcionamento da cidade e a po-
tos sobre este "modelo poHtico", p. 229. lítica imperialista romana, cujo império está em plena constltulçlo. Face a es-
1O. O conjunto deste capítulo 18 do Príncipe em reproduzido na parte anto- te mito otimista, que justifica os empreendimentos, mas que comporta peri-
lógica de* livro, p. 205. . JOS (pauperização da plebe; constituiçio de uma classe de publicanos riwis
-~J 1. Todo o mwtdo concorda em considerar que os capítulos do Príncipe nos dos senadores e que se apoderam das riquezas em detrimento dos patrícios),
quais se trata geralmente das relações instauradas no quadro dos Estados slo urna corrente de opinilo nega qualquer poder à Fortwta e constrói a história
os capítulos 12 a 14. O capítulo I 8 pertence ao retrato- circWJstanciado _ de Roma com a ajuda somente das virtudes coletivas dos romanos, à qual a
do novo Príncipe às voltas com outros príncipes, senhores, facções, etc. IUlia deve bastar. O representante mais conhecido desta corrente política é
12. ~picuro (cf. nota 5, página 62) faz da política o lugar das paixões e das Catfo (234-149), contemporâneo de Políbio e que pertence à classe dos gran·
amb1ções. Prazer nem natural nem necessário, o que aliás é a característica das des feitores do Lácio.
loucuras. A exish!ncia individual descobre a lei sob a forma da prudencia que Sabe-se que papel Maquiavel atribui à Fortuna, que nele não tem mais
conduz à vida feliz. Em Maquiave1, a lei somente é coletiva; marca de um pen· ~~~de uni_~~tino J1l!lS .o de uma "ordem de .coisas" em forma de oca-
sarnento idealisticamente político. siões preéárias e disjuntas. Quando Maquiavel cita Catão é para aprová-lo. Sem
13. Mantive, mais acima (p. 100), desta frase de Tito Lívio, a traduçlo dada diiVida alguma é a imaíiê~cia da Virtude que o tenta, com relação a esta forma
· pela Pléiade. P~ece·me de fato que se deve melhorá-la e, após as pági.nas que ela transcendência que é o Destino histórico das nações. (Cf. üvro n, ''Natu·
precedem, o le1tor verá bem por quê. DeDico adunque come di que/lo difetto reza hwnana e história dos homens", sobre as relações de Maquiavel com a
di che accusano gli scrittori la moltitudine, se ne possono acCUSI/Te tutti gli ho- Fortwta, segWJdo Tito Lívio.)
mini particolannente, e nwsime i principi é preciso dar: "Eu digo, portanto, 19. O leitor que se interessa pela filosofia política possui sem dúvida uma do-
que este erro, de que os escritores acusam a multidio, pode-se acusar todos os cumentação geral sobre as instituições. Se não é o caso, eu lhe recomendo:
homens, se se os considera cada um em sua individualidade, e sobretudo os Jacques Ellul, Histoire des imtitutions (5 volumes, P.U.F., coleçlo 'Thémis''}
príncipes". Claramente mais filosófica mas freqüentemente muito rápida: Histoire des
14. As três dimensões dos Estados então wtanímemente re~cidas pelos ldées poli~ de Jean Touchard (2 volumes, P.U.F ., coleçlo 1'hémis").
a?t~.r~ ~: a ~~tê~~a . de ~a _legislação, a de uma diP.~macia, a de uma Uma boa compilação de documentos: Ccnstitutions et documents politiques,
diplomaaa._ .a de_~-Jorça militar. Daí os planos das principais obras de Ma- de Duverger, ou Histoire des institutions e des faits sociaux: textes et docu-
quiavel, Guicciardini, etc. mmts, de Imbert, Sautel e Marguerite Boulet-Sautel.
15. O hiparco recrutava e instruía os cavaleiros nos exércitos helênicos. 20. A laicidade do Estado republicano romano é mais uma tendência, que
16. O tempo ~ também eternidade, pelo jogo de "eterno retomo" do tempo manifesta um estado das mentalidades, do que um estado de direito que se
a si mesmo. Para Maquiavel também, como nós o veremos mais adiante poderia concluir de uma o...~servação das instituições em seus detalhes.
(p. 180), a história é circular. Entretanto, num sentido diferente, que tentarei 21. De toda maneira, u relações da religifo e do Estado republicano ro.mano
explicar. • llo de uma outra natureza do que nfo o selfo os do império posterior e da
17. Panetius, cujos textos nos faltam mas que se conhece pelo "De 0//iciis" religiio cristã. Durante o período que agora nos ocupa, não existe religião uni-
de Cícero, constrói, por sua vez, uma síntese paraiela àquela à qual Políbi~ venalista. A religião romana nlo é uma religião de Estado, no sentido em que
submete o cosmopolitismo. Ela concerne à moral individual; Panetius intro- diremos mais tarde que existirfo Estados em que o catolicismo, por exemplo
duz na sabedoria estóica a "moral média" ou parenética. - religilo universalista- determina explicitamente a filosofia do conjunto do

142 143
• 1 • • , ;_IJ.lf; I l~i .

Estado. Os deuses romanos são deuses-de-Roma e deuses-para-Roma. Este Um outro antifascista, mas este nfo-comunista, Guiseppe Prezzolini, es-
etnocentrisrno teológico aliás se complica, na Roma republicana, pelo direito cre"Yeu em abril de 1971 um livro cujo título 6 significativo: Le Olrlst et/ou
- limitado, mas real - que os latinos e os peregrinos têm de import.ar na ci· MM;hlaveL Aí ele tenta um estudo que pretende colocar o problema político
dade o culto de suas próprias divindades. em teunos modernos: •1Jm Estado pode ser cristfo?" (Parte 1, cap. O; ..Je-
Entretanto, notemos que, mesmo no interior desta reügifo romana par- IUI Cristo foi socialista?" (Parte 2, cap. 11). O conjunto da obra está dedica·
ticularista, observa-se uma exclusão progressiva dos cargos políticos fora da elo ..a Santo Agostinho,leitura de meus vinte anos, e a Maquiavel, leitura .de
função sacerdotal. Por exemplo: o reic sacrorum deve, segundo a fórmula, "fu- meus quarenta". Prezzolini nlo é um solitMio; ele é um testemunho mwto
gir da cú'ria" quando nã'o completa os ritos; o ingresso de um Cônsul é prece- claro da retlexfo de seu tempo, que é o nosso. Outra paisagem política, do
dido da consulta dos awpieúl, mas esta segue a eleição, nio constitui um ele· · outro lado dos Alpes, onde ainda domina e sem dúvida por longo tempo, a
mento da designaçã'o do Cônsul, sempre a constituir um elemento da entrada problemática Ih democracia cristã...Porque Roma reúne ~ capitais numa
nas funções efetivas; ao contrário, todos os cinco anos, após o recenseamento, mesma cidade e •o Papa face ao Quirinal' significa outra coJSa do que o arce-
um sacrifício público é oferecido aos deuses da cidade. Este /ustrum ~ um fa. bispo de Paris face ao Eliseu", como o nota com concisão Jacques Nobécourt
to de direito porque torna sozinho intangíveis as decisões dos Censores em sua Italie à Vi/ (l.e Seuil, coleção ..L'Histoire immédiate", 1970).
durante o recenseamento, etc. ·. 24. Lutz·Heusinger,l.A chapelle sixtine. Ed. Oto, Roma. Trad. franc. de Pau·
21. Dumézil,Idéesromaines. N.R.F.,1969,pp.4344. lette Bolognesi, pp. 6-7. Este folheto é ~endido aos turistas na entrada do pa-
22. A interdiç!o é uma das três censuras de que a Igreja dispõe e que suspen- .Wcio do Vaticano.
de o exercício do culto, a administração de sacramentos, etc., num lugar de- 25. Do século XV.
terminado ou no conjunto de um país. Assim, cidades, reinos, eram postos 26. A este respeito, ler também o capítulo 11, 13, da Arte da guerra, onde ..a
em interdição até a "resipiscência" do soberano. · extinção da Virtude militar" é atribuída à existência de grandes impérios e
23. Convém que um franch faça o esforço de compreender o que a implan- ·''aos novos costumes introduzidos pela religião cristf'' que recomendam pou-
tação da Santa Sé na Itália pôde introduzir de específico no pensamento po- par os vencidos. (Cf. p. 212, na parte antológica deste livro.)
lítico da península desde o fim da latinidade até os nossos dias, inclusive. 27. Em i\aliano abiezione; a tradução ••abjeçio" é legítima e o termo é con·
Gramsci anotava um programa de pesquisa que não pôde levar a cabo, por firmado pela oposiçlo à ..grandeza de alma", algumas palavras mais adiante
nlo ter sobrevivido ao seu encarceramento. Ele escrevia seu projeto de um lftl"Ulez%1l déllo animo.
"Principe moderno": "uma c!$ primeiras partes deveria ser justamente consa· 28. Cf. alguns esclarecimentos históricos na p. 27. Ver também Savonarola
grada à 'vontade coletiva' e colocaria o problema nos seguintes termos: 'Quan- entre os «modelos políticos", na p. 229.
do se pode dizer que existem as eondições ~rmitem que nasça e se de· 29. Possui-se entretanto uma carta na qual seu amigo Vettori desW:a que a
senvolva urna vontade coletiva nacional popular?} Seguir-se-ia uma análise his· empresa Iuterana teve bom termo. , .
tórica (econômica) da estrutura social do país ~udado ... Por que não se deu 30. Cf. a parte antológica deste livro, os textos ~obre Júlio li..E no presente
na It~lia , no tempo de Maquiavel, a monarquia absoluta? .1! preciso remontar capítulo, os julgamentos e~belecidos sobre a liga de Cambr&, na qual este
até o Im~rio Romano ... Papa luta com a França coptra Veneza, 1508. . . .
A razA'o pela qual fracassaram sucessivamente as tentativas para criar 31. Os lombardos, vindos para Itália no século VI, constttuuarn ~ remo.
uma vontade coletiva nacional-popular está em buscar na existência de grupos Com Pávia por capital, e5te último se estendia na maior parte da Itália seten·
sociais determinados .. . no caráter particular de outros grupos que refletem a trional, ao ducado de Spoleto e ao de Benevento. No século VIII eles ataca-
função internacional da Itália enquanto sede da Igreja e depositária do Santo ram várias vezes 0 domínio da Igreja, que pediu ajuda aos francos. Em 774
Império romano, etc.". (Note sul Machiavelli. . ., op. cit., pp.188-189.) deu-se 0 embate decisivo entre Carlos Magno e Desidério: com a queda de

144 145
.I Pávia o reino lombardo desapareceu. (Conforme uma nota. da edição italia- . meiro nega-lhe a lei para salvar o surgimento da Virtude; o outro a toma im-
I na das opere de Maquiavel, Ed. Mursia.) possível pela mudança sem lei. O papel da "natureza humana" - determina·
32. Quando Júlio li empreendeu constituir contra a França a Santa Aliança, ç1o ou indeterminação -são neles diametralmente opostos.
em 1508, após Agnadel, o bispo de Sion conseguiu retirar o corpo de solda- 38. Os textos de Guicciardini citados nestas páginas são extraídos de Storia
dos suíços do exército de Luís Xll e colocá-lo à disposição do Papado. Um d'lta/Í/l VL Utilizo a tradução de Gilbert Moget, dada na Nouvelle critique.
pequeno exército de suíços entraria assim a serviço de Roma e aí permane- Junho de 1963, pp. 91 e ss. (op. cit.)
ceu depois. · 39. Na mesma época muitas pessoas pressentem as motivações econômicas
33. Perturbação e abertura: a Conquista, desde os últimos anos do século XV :do impulso colonialista e prevêem suas conseqüências políticas para a Euro-
~odifica o equilíbrio das potências européias e coloca à antroJ'Ologia, à polí~ pa. Papa da família espanhola (de Borja, em Aragão), Alexandre VI Bórgia,
tica e à teo1ogia da época, problemas absolutamente novos. No plano inte- 10b pressões diversas, concedeu à Espanha e a Portugal o privilégio da con·
lectual, pode-se assim resumir: os índios são homens (o que é, portan to, um quista do Novo Mundo (Bula de 2 de m aio de I 493). Francisco I reagiu sig-
homem?). Os Estados indígenas podem ser legítimos, quando os povos não nificativamente: ''O sol brilha para mim como para os outros; que se me·
conhecem a Revelação e quando seus caciques não são "monarcas sagra- mostre a cláusula do testamento de Adão que me interdita recl.amar minha
dos"?. Conhecem-se os nomes dos prmcipais
. atores destas discussões: LasCa- parte do Novo Mundo".
sas (1474-1566), cujo maior adversário escravagista foi Sepúlveda (1490- De Montaigne {1533·1592), este julgamento: ' 'Quem jamais pôs a tal
1573, preceptor de Filipe 11, em 1536). Do ponto de vista do reconheci- preço o serviço da mercantillzação e do tráfico? Tantas cidades arrasadas, tan·
mento do direito natural e internacional, o grande nome permanece Fran- tu n ações exterminadas, tantos milhões de povos passados ao fio da espada
resco de Vitoria ( 1480.1546), dominicano como las Casas, ensinando na e a mais rica e mais bela parte do mundo subvertida pela negociação de péro-
~ve~i~ade de Sal~anca, um dos teóricos mais importantes na época do lu e da pimenta! Vitórias mecânicas. Nunca a ambição, nunca as inimizades
'domrmuum naturel dos Estados pag[os, isto é, de sua soberania. plblicas impulsionaram os homens uns cont ra os outros a tio horríveis hosti-
34. Reproduz entre aspas o início da nota pela qual Bariocou esclarece lidades e calamidades tão miseráveis". (Essais. III. 6. "Des coches".)
este texto de Maquiavel. Cf. nota, Pl. p . 1504. 40. Esta h>calização relativa de Colombo e de Vespócio atesta, do lado de
35. Sobre esta noção, toda a obra de Lucien Goldmann. Em particular a Guicciardini, uma sólida informação. Em sua época, com efeito, o mérito da
última obra, póstuma, "A criação cultural na sociedade moderna" (Médi- Descóberta iria inteiramente a Vespúcio que, é verdade, compreendera sozi-
tations. DenlSel, 1971.) ) . nho que a América não era em absoluto a parte oriental da Ásia. Cristóvão
36. Cf. pp. 69 e ss. 0 - Colombo, ''O Azarado", acreditou , provavelmente até a sua morte, que a ter-
37. A base histórica das discussões sobre a história, uma vez conhecida. pode-se ra recentemente descoberta e apango eram uma e mesma coisa e que ele
resumir assim os argumentos trocados: sobre a base de uma natureza humana Ulim triunfara em seu único desígnio: abrir uma rota para atacar os turcos
imutável, Maquiavel pensava que os atos políticos surgissem ex nihilo: as po- pelo Este. O mérito intelectual de Vespúcio, portanto, era enorme; junto
líticas, novas em seu surgimento, reencontram um dado natural permanente. l aua nacionalidade ele entusiasmou os contemporâneos florentinos com suas
As vontades chocam-se com as naturezas assim como a leveza ã gravi~de da vtqens. Guícciardini, .pvr sua vez, adquirira uma informação mais correta
massa. Para Guicciardini, se não é conveniente ..sempre ter os romanos na quando de sua embaixadaj unto de Ferdinando, o Católico. Mas, enquanto ele
boca", é porque os homens não repetem indefinidamente as determinaç&s tempre se sentiu florentino, era preciso ainda assim wm muito sólida aber-
de uma natureza imutável. Para o governador de Módena, as transformações tura de espírito para conceder ao genovês - a serviço de Ferdinando, o Ara-
são, ao contrário, tão radicais na história dos homens, que cada situaçlo aonês, o que é mais - a parte de Descobridor.
histórica exige uma análise inteiramente particular. Nossos correspondentes 41 . A fiDl de evitar qualquer contrasenso e qualquer anacronismo sobre a
slo representantes significativos de duas maneiras de negar a história. O pri- I. compreensfo "mo<!ema': de Guicciardini, é conveniente assim mesmo acres-

146 147
centar que ele també~ escreve: •'Mais digno seria seu objetivo (destes portu·
gueses e destes espanhóis, e particulannente de Cristóvão Colombo). se a
tantos perigos e trabalhos eles tivessem sido conduzidos não pela sede imo·
derada do ouro e de riquezas mas por um desejo de dar a si mesmos e aos
outros este conhecimento (de coisas ta:o grandes e inimagináveis) ou propa·
gar a fé crista:; ainda que este último objetivo tenha sido de alguma maneira
satisfeito por via de conseqüência, porque em muitas terras os habitantes
,,'· foram convertidos à nossa religião". E mais adiante : " .. . ilhas felizes pela si·
I tuação do céu, pela fertilidade da terra e porque, à exceção de alguns povoa-
I; dos muito·selvagens, que se alimentam de corpos humanos, quase todos os ha·
bitantes, muito simples em costumes e contentes com o que produz a bonda-
l de da natureza, nfo são atonnentados nem pela avareza nem pela ambiçlo;
mas estas ilhas são ao mesmo tempo muito infelizes porque, não tendo os
I
" homens nem religião nem conhecimento das letras, nenhuma habilidade de \
ofício, nem annas, nenhuma arte de guerra, nenhuma ciência, nenhuma ex·
periéncia das coisas, são, quase da maneira que o seriam os animais plenos
APÊNDICE DO CAPÍTULO 3
de docilidade, a presa mais fácil do primeiro que chegar e que os ataque".
(lbid.) Maquiavel e a Itália
42. Cf. "Justificação da política de Clemente Vll". Clemente VII é um Mé·
dici, a serviço de quem Guicciardini assume o cargo de presidente da Roma-
Os maquiaw:listas italianos modernos fazem de seu autor e de seu ho-
nha. Na Histoil'e d1talie o sucesso da heresia luterana é atribuída ao tráfico
.-n polí~ço um dos homens que preconizaram a unidade italiana. A ques-
de indulgências e aos escândalos da Cúria.
tlo nfo 6 tio simples e nfo sustenta urna tal resposta quando nfo se a cerca
43. CondenaÇÕes que se encontrarão no centro da Contra-Reforma, a perso-
de precauções.
nalidade de Bórgia sendo entfo dada como ~co motivo - pasSado - da
"\tinta a favor de um retrato "italiano" do Secretário o famoso último
Refonna. Em Guicciardini: "Suas preocUpa-ÇÕes e seus negócios tomaram-se
oapítulo do Príncipe, de que nós falamos 1 e que se encontra citado na segun-
nlo mais. a santidade da vida, não mais a extensão da religiã'o, nfo mais o ze.
da parte deste livro2 • Inclina tarnb6m para a concluslo de que este retrato nio
lo e a caridade com relação ao próximo, mas os exércitos, as guerras contra
•tnexato o interesse que nosso homem tem em César Bórgia, interesse que au-
os cristfos, falando de sacrifícios com pensamentos e mãos cheios de sangue,
llllltou manifestamente o formato histórico real do condottieri para além
mas acumulaçio de tesouros, mas novas leis, novos artifícios, novas ciladas
'da wrossimilhança históriqt. Se César teve, no espírito de Maquiavel, mais im·
.para de tudo fazer dinheiro. E, por isto, utilizar sem vergonha as coisas sagra·
,ortancia do que ele teve na história italiana3 , isto certamente tem a ver com
das como.as profanas". (Histoire d'Jtalie. Ricciardi Edit., pp. 564·565.)
·o fato de que ele foi um personagem central em sua carreira de diplomata flo-
• Nntino, que ele foi uma· ameaça urgente para a pequena República, que ele
lbt portador de lições de comportamentos políticos; mas isto tem a ver tam·
Wm com o fato de que ele colocava na realidade urna vontade atuante de ane·
uç&a e·de unificaçlo da Toscana, de que ele, enfim, era um político de di·
a.do italiana.

148 149
Entretanto, este retrato· "italiano" seria unilateral: ele delinearia traços estavam submetidos à mesma necessidade, pois eles haviam extermina-
que se pode encontrar - aliás esparsos, e de maneira inconstante - numa obra do seus nobres! força de revoluções; os sobrevíventes nlo se conheciam
escrita; não daria nenhum lugar às preocupações - estas, constantes - mani- mais senão em sua arte mercantil; no resto eles estavam à reboque das
festadas numa carreira de homem de ação. O que é ainda mais, seria anacrôni- vontades e da fortuna de outros. Todas as armas da Itália se encontra-
co e faria assumir a um florentino do início do século XVI visões que níío po- vam, portanto, nas mãos de alguns principículos e de aventureiros: de
diam ser as suas. Para se tomar consciente disso, é preciso pensar que Rous- uns, não pelo culto da glória, mas para víver mais suntuosa e mais se-
seau e Montesquieu preconizarão mais tarde ainda unidades polítictu ümita- ~amente; outros, porque foram alimentados neste ofício desde a in-
das. O que, por sua vez, Maquiavel admira na Alemanha4 é mais um equilíbrio fância, porque nfo podiam exercer um outro e porque buscavam por aí
entre um poder imperial e a sobrevívência de unidades feudais de pequena di- fazer renome de homens ricos e poderosos. Os mais famosos dentre eles
mensão. eram entio Carmagnola, Francesco Sforza, Niccolõ Piccinino, aluno de
~. portanto, muito mais o vazio político dos principados italianos do Braccio, Agnolo della Pergola, Lorenzo e Micheletto Attenduli, os Tar-
que sua multiplicidade que constitui uma calamidade no "estado político da taglia, Giacopaccio, Ceccolino de Perouse, Niccolõ de Tolentino, Cuido
Itália perto da metade do século XV": Torello, Antonio da Ponte ad Era e vários outros semelhantes. Seu nú·
mero, acrescido destes de que se acaba de falar, era-o também pelos ba·
"Os pri:"cipais Estados eram assim divididos: a rainha Joana n ti-
rões romanos, os Orsini, os Colonna, pelos outros senhores e os gentis-
nha Nápoles, a Marcha de Ancona, o patrimônio de São Pedro e a Ro-
homens do reinado de Nápoles e da Lombardia. Vivendo da guerra,
manha. Uma parte de seus lugares obedeciam ao Papa, os outros eram
estas pessoas criaram uma espécie de aliança tácita para dela fazer um
ocupados per seus vicários, ou por tiranos, como Ferrara, Módena e
ofício, e eles a conduziam por muito tempo e tanto e de modo que ven-
Reggio, pelos da casa de Este; Faenza pelos Manfred; 1inola pelos Ali-
cedores e vencidos aí perdiam igualmente. Acabaram por reduzir esta
dosi; Furli pelos Ordelaffi; Rimini e Pesaro pelos Malatesti, e Camerino
profissão a uma tal abjeção que o menor dos capitles em que se encar-
pelos de Varano. A Lombardia era dividida entre o duque Filippo e os
nou mesmo a sombra da antiga Virtude não teria tido dificuldade em as
venezianos, porque todos os senhores de Estados particulares tinham esmagar ignominiosamente, para o estupor desta Itália que simploria-
sido destruídos, exceto os Gonzague, que eram senhores de Mântua. Os
florentinos eram senhores da maior parte da Toscana. Luca e Siena so- mente os celebrava.
~ ~ . portanto, destes príncipes indolentes e destes desprezíveis ar-
mente tinham suas leis particulares; a primeira sob a autoridade dos
rastadores de espada que vai abundar minha história." (Hist. Flor. I , 39.
Guini~, e a segunda livre. Os genoveses, tantO(IÍvres( tanto submetidos
Pl. pp. 997·999.)
aos re1s de França ou aos Visconti, não desfru~~ de consideração al-
guma e eram postos na categoria de Estados menores. Nenhum destes Poder-se-á ainda ler5 um texto que, por estar ligado a uma tradição qua-
que nós acabamos de indicar como ocupando a primeira categoria era 118 constante em toda a história das idéias políticas - aí compreendida a nos-
mais defendido pel~ tropas do país. O Duque Filippo, entrincheirado ia - nlo é menos de se tomar muito a sério numa explicação do que nos ocu-
em seu palácio, nlo se deixava ver e guerreava através de seus lugares-te- pa aqui. Extraiamos deste texto a seguinte passagem:
I
nentes. Quando os venezianos quiseram voltar suas armas para a terra
..... Vós sabeis que entre os militares renomados, contaram-se um
firme, eles se despojaram das que lhes havíam permitido tanta glória no
grande número na Europa, pouco na África e ainda menos na Ásia. A
mar e, a exemplo de outros Estados da Itália, empregaram tropas estran-
causa desta diferença é que estas duas partes do mundo jamais encerra-
geiras. O Papa e a rainha Joana, aos quais mal convinha portar armas,
ram senão uma ou duas grandes monarquias e muito poucos Estados re·
um em virtude da religião, a outra em vírtude de seu seJ,to, faziam por
publicanos, enquanto que existia na Europa alguns reis e um grande nú-
força o que os outros faziam por uma escolha detestável. Os florentinos
mero de repúblicas. Os homens somente tornam-se superiores e desen-

150 151
volvem seus talentos quando slo emp~gados e encorajados por seu so- A título de burguês florentino médio, Maquiavel está bastante dis~-
berano, seja um monarca ou uma república... Porque o mérito é tanto . te de Dante. Que Florença seja para ele wna unidade política real, isto se I~.
mais comum quanto se encontram mais Estados forçados pela necessi· por exemplo, na resposta que ele dá a um problema que tem um bom lugar -
dade , ou algum outro interesse poderoso, a lhe dar justos encorajamen- freqüentemente desconhecido - nas preocupaçOes que são as suas a partir
tos. de novembro de 1512. Pode-se ter por quase certo, apesar das opiniões con·
trárias, na discussão das quais nós não entraremos, que o homem de San Cas-
Se é verdadeiro que o número de grandes homens depende do nú- ciano é o autor de um "discurso, ou melhor, diálogo no qual se examina se
mero de Estados, é preciso disso concluir que, quando estes se aniqui- a lr'ngua na qual escreveram Dante, Bocct~Ccio e Petrarco deve se chamar ita·
lam, o número de grandes homens diminui com as oportunidades de lillna, toscana ou florenttna 6 ". . '
exercer sua capacidade ... Nela escreve:
"Eu me deterei somente em Dante, que se sobressai em todas as
. . . as diferentes partes da Europa contam com um pequeno nú- coisas por seu g!nio, exceto quando ele começa a falar de sua pátria
mero de soberanos, se se os compara aos que então havia na antiguida-
que ele perseguiu em toda oportunidade com um furor indigno de um
de: a França inteira obedece a um rei, toda a Espanha a outro, e a Itálúz
filósofo e mesmo de um homem. Ele nfo pode se impedir de a cobrir de
não estd muito fragmentada. . . *'.(L 'Art de la gume. 11, 13. Pl. pp. 784- •I
infâmia; ele a acusa de reunir todos os vícios; dela condena os habitan·
787.)
tes, reprova a sede, medita seus costumes e leis que a governam... Não
~~~- ~-f!o~e_J!tino. Não__~ pode negar que a seus olhos Florença é é, portanto, surpreendente que um homem que não procura ·versar o
uma nação. Se ele convida a casa dos Médici a ''tomar a Itália e livrá-la dos opróbrio sobre sua pátria tenha igualmente buscado ãs mil maravilhas
bárõarõs'';..êmbora tivesse combatido C~ Bórgia quando este se lançou em sua língua materna esta reputação que ele julgava lhe ter dado por
numa empresa similar, é preciso compreender que ''a ilustre casa" de Louren- seus escritos; e é por lhe extasiar esta honra que ele compôs seu tratado
ço é. florentina. Embora César. B9rgia represente, na quase;totalidade da obra de vulgqri eloquio no qual ele procura mostrar que o dialeto de que ele
~~--Secretário, o·in_~e(~-do. Príncipe it~i~o novo capaz de real~-~~~ ·Uni- se serviu não é de modo algum o flor:entino". (Pl. pp.l73-174.)
~~ çla .l~çºú:Jsu~. ~~ta ..~.4~. nJo poderia ·se construir senão pela anexa-
ção de Florença, e pela. ~bordin~~-.d.os. (lo.~entin" a~a polí~ca que
lhes seria primeiro - e "para sempre"- estrangeira. Na é , a idéia de um NOTAS
nacionalismo que interessaria à península é premâtú fa: a dimen o dos mer-
cados, das economias, das produções ainda é evidentemente regional. A uni·
l. Cf. pp. 82 e ss. r,
dade é anexaçlo, e a linguagem dos escritores é "dependência ou liberdade". 2. Ver este texto (O Prl'ncipe, capítulo 26), p. 209.
A anexação, com efeito, é o meio político que se opõe ao concorrente eco· 3. Disto já se está consciente entre muitos de seus contemporâneos. Por
nômico. Se Pisa incessantemente combate os exércitos florentinos é porque
exemplo, Guicciardini, Hístoire, i1talie, VI, 4.
esta negocia muito caro o acesso ao mar. As cidades da Toscana, urna vez ven-
4. Cf. p. 25 1. A Alema$8 "modelo político".
cidas, slo despojadas de seus meios econômicos; as que são objeto do impe·
5. Cf. p.212.
rialismo de Florença - no sentido próprio desta palavra - são as que coman-
6. E. Barincou(Pt. pp. 169 e ss.) coloca este discurso entre as "prosas diver-
dam vias d~ acesso ou as que possuem indústrias diretamente concorrentes ,
us". Ele teria podido ser classificado entre as obras políticas. I! muito ·raro
que tecem e que tin$Cm o algodJo. Pedir a Maquiavel para ser italiano antes
que a lingüística seja totalmente destacada das preocupações políticas, como
de ser cidadJo de sua-cidade é uma questão que não é mesmo verossímil.
M dlo conta a maior parte de nossos lingüistas modernos. No "discurso" ma-

152 153
i• ··~ • ;~ -· ' • • •.

quiaveliano, a intençio política ~ afirmada explicitamente desde a primeira


frase: ..Todas as vezes que pude honrar m.inha pátria, mesmo a riscos meus e
!
• !
perigos, eu o fiZ com o mais profundo de meu ânimo".

Capítulo4
A nação: crença e força

A instauração política, obra da vontade, reveste-se de uma dupla dimen-


afo. De um lado, ela possui uma dimensão intelectual, e apela à inteligência
para dar ao Príncipe, ou ao povo, a capacidade de fazer variar o conteúdo de
atos e de decisões, segundo a variação -e a variedade -de ocasiões da For-
tuna. OJ outro lado, esta instauração política é um liame que doravante

l
põe em relação vontades diversas; é aí que sua dimensão é a do consenti-
mento, constitutivo de uma homogeneidade de homens, de que dissemos
mais acima que ela era a nação.
Ninguém é, no universo político, plenamente consentidor nem plena-
mente submisso. Se um apelo é lançado ã vontade coletiva, um apelo é lan·
çado também à inteligência coletiva. Se a inteligência das coisas do mundo
ttU em obra nos atos voluntfrios do homem individual -sob as reservas que
nós encontramos quand.o se tratou da questão da Fortuna -, é preciso tam·
.b4m que a vontade do homem coletivo encontre os motivos de sua determina-
Ç(o em agir num determinado tipo de inteltgência. A nação se constitui tam-
b6m nos entendimentos de homens.
Maquiavel atribui à "religião" esta função ideológica de constituição
rMntal do homem coletivo. Função eminente' que explica que se possa ter sob

155
154
o título: "Assim como são dignos de elogios os fundadores de uma república prosperidade ... Certos acontecimentos se apresentam aliás de tal manei·
ou de uma monarquia, assim merecem reprovação os fundadores de uma tira· ra que eles enganam os homens que nlo t~m uma experiência consuma·
nia": da da política porque eles lhes propõem o erro sob tais aparências do
verdadeiro -que eles facilmente o acolhem". (PI. p. 574.)
"Entre todos os homens de que se fala com elogio, nlo M de mo-
do algum os que sejam tão ctlebres quanto os autores e os fundadores Um outro texto maquiaveliaoo permite precisar em que e como a clari·
de uma religifo. Após eles* vêm aqueles que fundaram Estados. Em se· Yidancia coletiva encontra seus limites. " ... o po~, embo.!!..~jeito ~-~ enga·
guida vêm os grandes capitfes que aumentaram sua soberania ou a de . oar nos negócios ~rais nlo se e11&1!1~ .no~ ~-cul.J!~ª-·" (Ibid, I, 47, título):
sua pátria. Colocam~ ao lado destes, os literatos .. . São ao contrário
"O povo romano começava a se desgostar do nome de cônsul; ele
devotados ao ódio e ã infâmia os homens que destróem as religil:les, que
quis ou que os plebeus pudessem chegar ao consulado, ou que a autori·
derrubam os Estados, os inimigos do talento, da coragem, das letras e
dade destes magistrados fosse limitada. A nobreza, para não hum.ilhar a
das artes úteis e honrosas para a espécie humana: estes são os ímpios, os
majestade consular ao aquiescer a uma ou outra destas demandas, to·
violentos, os ignorantes, os imbecis, os indolentes e os desprezíveis".
mou um termo médio e consentiu que ele nomeasse quatro tribunos re·
(Tite·Live. I, 1O. Pl. pp. 407 408.)
vestidos do poder consular, a escolher entre os nobres ou entre os ple·
Expliquemos: um povo, como tal, nfo está apto a uma inteligência do beus. O povo ficou contente com este arranjo que lhe pareceu enfra·
mundo do m.esmo tipo que a que deve cultivar o Príncipe. Nio é sem signifl· quecer o consulado, e que lhe faria participar nesta suprema magistra· !.
cação, a este respeito, atentar para o conteúdo de dois títulos de capítulos, tura. Viu~e então alguma coisa de muito importante. No momento de i
extraídos ambos do Tito Lívio. Enquanto que, como nós já vimos1 : criar tribunos, o povo que podia escolhê-los todos plebeus tirou-os to- I
dos da ordem da nobreza.. ,
"Um povo é mais :sábio* e mais constante• do que um Príncipe"
Ao exaininar de onde pode vir esta diferença, eu acredito ter-lhe
(1, 58);
encontrado a causa: é que os homens em massa, embora sujeitos a
o julgamento' estabelecido pelo Florentino sobre a inteligência coletiva em sua se enganar sbbre os negócios gerais, nlo se enganam sóbre os particu·
ftmção de clarividéncÍJI global é mais sombrio: lares. O povo romano acreditava geralmente ser digno do consulado; ele
era a 'Porçã~ mais numerosa da cidade, a mais exposta à guerra, a que
"De que modo freqüentemente se vê a opinífo se enganar em cir·
pela força de seu braço contribuía mais para mantê-Ia livre e íomá-la
cunstfncias graves". (ll, 22.)
poderosa1 • Ele considerou, conforme a idéia lisonjeira que se fazia de si
Pode~ aí ler as explicações seguintes: mesmo em geral, esta demanda muito razoável d.e sua parte, e quis
obtê-la a todo custo. Mas, obrigado a se pronunciar sobre cada um dos
"A que ponto pode freqüentemente se enganar a opiniio na cida· candidatos plebeus, tomados em particular, ele sentiu somente sua in·
de, somente podem tê-lo visto e ainda o vêem aqueles que assistem a de· capacidade e decidiu que nenhum deles era digno de preencher um lu·
liberações; estas, muito freqüentemente, quando não são conduzidas gar que ele acreditava.mer,':er em geral. Envergonhados da fraqueza dos
por homens superiores•, cond\U.em ao absurdo: os homens superiores, seus, recorreram aos patrícios, em que reconheciam mais talentos..."
nas repúblicas corrompidas, e sobretudo nos momentos de tranqüili· (Pt. pp. 480481.)
dade, estio expostos ao ódio e assim se adotam as opiniões ditadas
pelo erro reinante ou por algum cidadão mais preocupado em bajular a
opinião do que a servi-Ia. Nfo se reconhece o erro senlo na adversidade,
A consciência coletiva, portanto, nio é de nenhum modo feita de clari·
.t48ncia global, do que nós chamaríamos a inteligência política geral em face
de circunstâncias perctbidas em seu conjunto. Num tempo em que os discur·
--
· e entlo se lançam nos braços daqueles mesmos que desdenharam na

156 157
Maquiavel utiliza duas "analogias" da ordem política: " ... embora as cidades sejam corpos compostos, elas tEm. entre-
1. Um anílogo naturalista, ao qual ele dá um papel intelectual impor- tanto, grandes relações com o corpo humano. Este é freqüentemente
tante. Para ele, ~ útil e fecundo tratar os corpos políticos como se eles fos- atingido por doenças que so.mente o ferro e o fogo podem curar. ~as­
sem corpos vivos organizados: sim que, no corpo político, sobrevêm males funestos que um sábio e
bom cidadão deve curar, mesmo fosse pelo ferro, melhor do que deixá-
" ... como as ações dos homens siío somente imitações diz lUZIU- los estender seus estragos. Que doença mais cruel para uma república
reza• e como não é possível nem natural que um tronco débil suporte do que a servidão? Que remédio foi jamais necessário do que aliviá-la
·uma forte ramagem, assim tam~ uma república pequena e pouco nu- deste mal? As guerras são justas quando elas são necessárias; as armas
merosa não pode ter sob sua dontinação reinados mais poderosos e mais do santas quando elas são nossa última esperança .. ." (PI. p.Il81.)
extensos do que ela. Se, entretanto, ela deles se apodera, experimenta
urna es~cie da árvore que, carregada de urna ramagem mais forte que o Como se o viu: as analogias sfo utilizadas, nA'o por sua única função
tronco, fatiga-se em sustentá-la e fraqueja ao menor vento. :8 o que intelectual mas para legitimar modelos praticamente úteis. Aqui o análogo
aconteceu a Esparta, que se apoderara de todas as cidades da Grécia. médico da cauterização ou da ablação cirúrgica coloca-se num discurso que
Apenas Tebas se sublevou, então todas as outras se sublevaram igual- · Maquiavel empresta a um florentino , Rinaldo degti Albizzi, para decidir o
mente contra ela, e o tronco permaneceu só, privado de seus ramos. Ro- duque de Milão a atacar Florença. O contexto organícista é assim utilizado:
ma não poderia experimentar semelhante infelicidade : ela tinha um tron-
" ... a pátria não tem direito ao amor de seus fllhos senão quan-
co bastante forte para carregar facilmente não importa que ramagem".
do os ama a todos igualmente, e não quando, afastando de seu seio o
(Tite-Live. 11, 3. Pl. p. 523.)
maior número dentre eles, somente prodigaliza seus benefícios a alguns
Que o império seja urna árvore, e que sua metrópole dele seja o tronco, cidadãos injustamente privilegiados". (Jbid. , supra.)
isto evidentemente é uma imagem sem utilização particular, mas de evocaça-o A sobreposição de imagens (a fam1lia, o corpo humano) não dá a estas
vaga. Seria assim em Maquiavel, como em muitos outros autores políticos de imagens um lugar equivalente; enquanto que a imagem da cidade-famt1ia .é
todas as ~pocas . coloniais ou imperialistas, se a primeira frase citada no extra- literária - istot!, de uma utilidade indeterminada - , a utilização da analogi~
to acima nJo desse evidente~ te um conteúdo mais preciso ao que deixa de é muito determinada pela frase introdutória, que lhe pretende fundar a vali-
ser uma.imagem para tomar-se um ancilogo. Este análogo, aliás, é utilizado nos dade: "Embora as cidades sejam corpos compostos, elas, entretanto, tbn gran-
textos rnaquiavetianos para os conceitos que ele veicula, e que nosso homem des relações• com o corpo humano".
acredita poder exportar: os de diferenciação e de complementariedade, pri- 2. O análogo teológiccxósmico, este, tem um valor intelectual menor
meiramente; os de unidade e de solidariedade das partes, em seguida; enfim, o no que diz respeito à utilização que dele se pode fazer para pensar a realidade
da sucesslo necessária doscmentos de desenvolvimento, de maturidade e política; é de utilidade demagógica, se se quer tomar este termo pelo que ~le
de senescência. quer dizer: a condução do povo. Destinado ao grande número, ele penrute
No mes111o capítulo d ·ro Uvio: apresentar à inteligência com\Ull a ordem política como uma realidade natu-
I

"Os romanos iniciaram o bom ~ultivador que, para fortificar uma rais , repousando sgbre um v1u, quando este ~ povoado de um panteão de
jovem planta e lhe fazer dar frutos que cheguem à maturidade, corta-lhe deuses tutelares nacionâis. Este análogo ~ o que util~va a Roma antiga, para
os primeiros ramos e, por isso, retém a seiva no pé da árvore, coloca-a a grande satisfação de nosso florentino:
em estado de desenvolver ramos mais vigorosos e mais produtivos". "Se fosse questlo de decidir a qual dos dois príncipes, Rômu-
(lbid., Pl. p. 522.) lo e Numa, esta república (a república romana) deve mais, Numa,
Noutro lugar (Histoifes florentines, V, 8): eu penso, prevaleceria. Onde já reina a religilo, introduzem-te facil-

160 161
e, espada na ml'o, fê-los jurar sobre sua espada não abandonar a pá-
mente as virtudes militares; mas lá onde nlo houver senlo virtudes mi-
tria ... Assim estes cidadlos, que nem o amor da pátria nem a força
litares sem religião, ter-ae-á muita dificuldade em aí introduzir esta
das leis podiam reter na Itália, foram detidos por um jÜi:àmento _que se
última Certamente Rômulo, para estabelecer o Senado e formar
tlies havia extorquido... isto em virtude da religtf:o que Numa havia
outras instituições civis e militares, nlo teve nea~ssidade da autori-
intrc;d..;udo em Roma." (/bit!, Pl. pp. 411412.) - ··-· ·
dade divina. Mas Numa, persuadido de que esta era necessária, fingiu
ter intimid.ade com uma ninfa que lhe inspirava todas as decisões que Estas considerações sendo acrescentadas às que já se encontrou sobre
e~ tinha de impor ao povo; e ele só empregou este meio porque, tendo o cristianismo, compreender-se-á que Maquiavel julgue a decomposição do im-
de introduzii costumes novos e desconhecidos nesta cidade, não se ~rio romano, nas perturbações que ela desencadeou também no nível das
acr~d.itava com bastante autoridade pará fazê-las admitir... (Tite-Live. crenças, como uma das infelicidades da história:
I, 11. Pt p.412.)
..... nio houve, para a IU!ia e para as províncias abandonadas às
incursões dos bárbaros, tempos mais infelizes do que os que se desen-
Na condição de que a religiio apóie altas virtudes políticas6 , de que ela
rolaram desde Arcadius e Honorius até este Príncipe Teodorico7 • Se se
nfo crie obstáculos ao "poder" de corpos políticos, ela é o único alimento que
examina que prejuízo as mudanças de soberanos ou de governo devi-
pode, na consciência coletiva,[azer as vezes de inteligência de leis; ela se subs-
das, não a uma força estrangeira mas somente às discórdias civis, cau-
titld ã verdadeira. int,eligência, como o manifesta a voluntúia identificaçio de
sam numa república ou num reino; se se reconhece que algumas ino-
todas as religiões pagãs, "mesmo as inais falsas.., nos textos onde sempre se
trata da aptidão das religiões para servir políticas. vações freqüentemente sJo suficientes para derrubar Estados, poder-
se-á facilmente se imaginar quanto a Itália e as outras províncias sofre·
"A despei to de Roma ter tido Rômulo por primeiro legislador e de ram· nesta época. Elas mudaram não somente de Príncipe e de gover-
-~
que foi a ele que a título de filha foi devedora de seu nascimento e de no mas ainda de leis, de costumes, de maneira de viver, de religião, de
seus primeiros passos, os céus julgaram que as leis do fundador nfo es- linguagem, ~ vestuário e mesmo de nome. Estas calamidades foram
tavam à altura de um império ta'o vasto e souberam inspirar aos senado- tais que ao oonsiderá-las, não em massa mas isoladamente, sem vê-las
res romanos o pensamento de lhe dar Numa Pompüio por sucessor a nem delas suportar o peso, somente o pensamento é suficiente para
f1m de que pusesse boa ordem a tudo o que permanecia de inacabado. apavorar o homem mais firme e o mais corajoso. ..
Era um povo feroz que Numa tinha de acostumar à obediência
afeiçoando-o às artes da paz. Recorreu à religião como ao apoio mais A mudança mais importante foi a da religiA'o. A oposição entre
~ece~o dafsoeiedade civil .e esta~leceu, ~o~re tais fundamentos que o hábito da crença antiga e a autoridade de milagres da nova fez nas-
JamalS, em I algum, se vtu respettar a divtndade como se o viu em cer problemas e dissenções bastante consideráveis. Se todavia a reli-
Roma, e isto ante vários s6culos. Foi sem dúvida este temor salutar gião cristã tivesse sido una, e não tivesse sofrido divisões, teriam resul-
que facilitou todas as empresas do Senado e de todos estes grandes ho- tado menos desordens. Mas as divisões de então entre a Igreja roma-
mens. Todo aquele que examinar as ações deste povo em geral e de na, a Igreja grega e a de ·Ravena, entre os heréticos e os católicos, não
urna infinidade de romanos em particular verá que estes cidadãos te- fiZeram senão a~entat· as infelicidades comuns . . . Vivendo no meio de
miam ainda mais faltar a seu juramento do que às leis, como homens tantas perseguições, os homens traziam em seu olhar o terror de sua
que estimam muito mais o poder dos deuses do que o dos mortais co- alma. Além dos males infmitos de que eles eram oprimidos, a maioria
mo se o vê pelo exemplo de Cipião.. . Após a derrota de Cannes por não tmha nem mesmo a consolação de poder recorrer a Deus, a espe-
Aníbal, uma ínfmidade de romanos se reuniram. Aterrorizados e trê· rança de todas as infelicidades; porque a maioria, ao não saber a,que di-
mulos, convieram deixar a Itália e fugir da Sicília. Cipilo os instruiu

162 163
vindade implorar, perecia miseravelmente, privada de todo socorro e de do fala dos edrcito s de seu sonho, que tem-se dificuldade em acreditar que
toda esperança ..." (Hist. flor., I, 5. Pl. pp. 955-956.) lonapar te nio tentasse tam~m . com seu ímpeto, exorcizar o jacobinismo. ..
As tentativas de Maquiavel, no que concerne ãs mílícias, foram fracassos
tanto militares quanto políticos . Militares: os poucos empreendimentos, aliás
. · ttmidoS, de constituiçfo de mDícias foram tfo decepcionantes para que nosso
Se Maquiavel atribui uma enorme importância, como acabamos de ver,
IUtor as considere como aflitivas; a república florentina nlo quis recrutar um
à instauraç!'o política ao ní\tel das crenças, se este nível da inteligência nã'o
ftrdadeiro ex~rcito popular. Se a razio disso é evidente, não parece que o
é diretamente adequado ao conteúdo que se trata de lhe dar, em compensa-
lll'óPrio Maquiavel tivesse tido consciência de uma contradiç!o entre o caráter
ça-o o que ele diz do exercício da força é bem mais direto. A compreensão das
oomunal-feudal das instituições florentinas e o recrutamento de uma tropa
intenções ~quiavelianas, quando têm por objeto o exercício coletivo da for-
fOpUlar no contado ou nas ..Artes menores". Políticas : nós sabemos que o
ça militar, é, por conseguinte, mais fácil.
· ttmor constante do r~e florentino é o de um demagogo que se apoiaria
Como instrumento destinado a fazer - e a ganhar - guerras, as milícias
IObre o povo em armas. Maquiavel, durante sua desgraça, esperará em vfo que
do Secretário interessam muito menos os historiadores da estratégia assim
• Médici lhe confiram um cargo de recrutador, o mesmo que a República de
90mo elas nfo sã'o importantes para os historiadores do pensamento político:
. ~rini suportara um momento que ele assumisse. A ilusão de Maquia~
para estes últimos, efetivamente, elas aparacem com eVidência como estrutu- la
'. 11te respeito era total, por duas razões ao menos. A primeira destas razões
ras destinadas explicitamente a constituir nações. ·
..U Ugada ã própria pessoa do Secretário, e se identifica aos motivos de sua
Enquanto que, do ponto de vista técnico que era o seu, Napoleão inven-
própria desgraça: os Médici jamais visaram, após 1512, confiar ao suspeito,
ta a propósito da Arte da gue"a uma expressão que fará suceSsõ: ao dizer que
•pois ao proscrito, uma missão de tal Importância. A segunda razio é mais
5eu autor escreveu sobre a guerra· como um cego raciocina sobre as cores,
amplamente política: nio mais do que os preceden tes senhores de Florença,
Gramsci, do ponto de vista que lhe conceme e que é inteiramente de outra
natureza, descobre na constituiçD:o de milíciaS a expressão de um jacobinis·
e talvez mesmo menos, os Médici nfo pretendiam voltar aos princípios de
- . política interior r;uja origem se confunde com o regime oligárquico.
mo italiano de alcance político capital. 1! certo que Napoleão como Gramsci
Os textos que Maquiavel consagra à guerra se repartem em três grupos,
não se enganam, nem um nem outro. O primeiro designa limites muito reais,
CIUja amplitude é crescente. Primeiramente, possuem-se cartas e relatórios ofi-
que Maquiavel, por sua vez, tinha muito certamente a pretensão de ter trans-
do homem que estava efetivamente "nos negócios públicos ", e que devia
posto: nosso homem pensava ser um especialista das coisas da guerra, enquan-
cUacutir múltiplos detalhes para chegar a levar a bom termo alguns projetos 8 •
to que seu papel foi menor, ·de recrutador de alguns camponeses do contado
1m seguida, descobrem-se anotações, aliás importantes, em textos como os
florentino para uma pb~'que foi um insucesso, e de incentivador bastante in-
Dhcunos sobre a primeira déCilda de Tito Lívio e O Príncipe 9 • Enfun,A Arte
feliz de algumas cam~: Mas Gramsci acentua uma dimensão das milícias
<cfl ,uerra é escrita 10 , que parece responder a um projeto longamente amadu·
que estava, ela também, presente na consciência do Florentino: além de suas
•IICido e ao qual seu autor tinha apreço.
virtudes militares, as milícias tinham a seus ollios uma visada política nacio-
e, portanto, certo que, no que nos conceme aqui, as milícias de Ma·
nal. Mais exatamente, seria preciso dizer: na época de Maquiavel, como em
muitas outras épocas, um certo tipo de reformas na arte de guerrear conduzia
.-nvet têm um conteúdo político mais importante, assim como não é mar·
Glllte seu lugar na história militar italiana da Renascença,~ entfo mais como
e exprimia mudanças políticas. Napoleão deu prova deingratidã'o: o poder do
tomada de posição política' que lixaminaremos os escritos de nosso autor so·
imperador devia muito ao fato de que os jacobinos franceses tinham, antes do
' " esta questfo, não esquecendo, entretanto, que a maneira de constituir um
im~rio, realizado pela França o que Maquiavel demandava
que se fizesse na IMrclto e o conteúdo dado a este exército foram em todos os tempos atos de
Itália. O florentino, de que se sabe aliás que Napolello o leu com assiduidade,
é neste pooto portador da política ao mesmo tempo que da arte militar quan-
alta política. Finalmente,é portanto só do ponto de vista estreitamente técnico

I 164 165

tl
do ofício das armas - por exemplo: é preciso atacar em corpos distintos ou trezentos cavalos pagos a um condottierl o acreditariam e a soma não
numa única massa - que nio leremos os textos.
ultrapassaria os meios da maioria de nossos soberanos. Por isso, para
No tempo de Maquiavel, a arte guerreira é uma prática principesca ou obter mais facilmente seu cargo e manter sua reputaçilo, eles desacre-
nobiliária. Mas, simultaneamente, nas cidades em que a nobreza tomou-se, _ditaram a infantaria em proveito da cavalaria..." (1ite·Live. U, 18. Pl.
como tal, pouco influente, a atividade propnamente guerreira tomou-se mer· p. S63.)
ce~a. ~ o caso também das comww em ~· sob o impulso da burguesia, a
antiga ~obreza feudal man~ve uma parte de sua proeminência social somente -No espírito de sua universal resoluçlo - ou dissolução - de coisas co-
ao se integrar no quadro relativamente novo das atividades bancárias ou co- em coisas políticas, Maquiavel pensa que a relaçfo dos exércitos com
merciais. O Estado, portanto, aluga os serviços de militares. 01 Estados que eles defendem é mais fundamental ainda do que a relação be·
Falar do alistamento, sob a ~sponsabilidade do Estado, de corpos de 'ilcosa que os exércitos mantêm entre eles: apesar dos arcabuzes14 , apesar da
tropas constituídas de cidadãos empregados nos serviços militares, é, eviden- iombarda, esta invenção inglesa conhecida já há dois séculos, apesar das
I
temente, requerer wna mudança no conteúdo deste Estado. Esta mudança ,polubrinas, logo montadas sobre carretas para tornarem-ee colubrinas ou fal- .
tem várias dimensões. No que diz respeito a Maquiavel é preciso dizer: deveria ao~:aet1es apontáveis com muito boa precislo, as preferências de nosso autor
ter várias dimensões. Primeiramente, teria dado ao povo das ..Artes menores" Jllttem~se para o cerco que reduz à fome o assediado e·aos assaltos de urna
um lugar no Estado 1 1 e, nlo se duvida, um lugar importante; em conseqüên· Jnf1ant11lria de massa. Às custas de grandes contra-verdades estratégicas, numa
cia, teria se conferido um outro sentido ã guerra com relaçlo à vida do pró- h4at,..ri<> militar incrivelmente mal compreendida, pode-se concluir:
prio corpo polí~ico. Em seguida, modificar-se-iam as relações entre a cidade e
"que está provado pelo exemplo dos romanos que se deve dar
seu contJZdo, até mesmo seu distrito, o que teria sido de notável importância
mais importância à infantaria do que à cavalaria.
para a constituiçio de uma consciência nacional toscana ou mesmo italiana 12 •
A prática principesca de uma arte de guerrear -ou seu derivado merce-
Eu acre~to que a maioria dos homens está convencida da supe-
nário - é, aos olhos de Maquiavel, a pior das práticas políticas para o destino
rioridade da infantaria, mas tal é a infelicidade dos tempos que nem o
dos Estados 13 • B sob esta luz que convém examinar os textos nos quais, ana·
exemplo dos antigos, nem o dos modemos 15 , nem o próprio testemu-
cronicamente, de umam aneira insustentáiel na opinião da estratégia e datá-
. d I nho de seus erros, poderiam levar os príncipes de nosso tempo a mu·
tica e sua época, M.avel denuncia os danos de uma guerra que os cavalei-
darem de idtia. Estes não querem compreender que, para restituir às
ros ou os artillieiros dominariam, embora já a dominassem amplamente:
armas de uma província ou de um Estado sua reputaçlo, é preciso fa-
..... de todos os erros cometidos pelos príncipes italianos que zer reviver a disciplina dos antigos, reatá-la, louvá-la, a frm de que o
submeteram a Itália à dominação de estrangeiros, o maior sem dúvida é Estado lhe deva, por sua vez, a honra e a vida..." (Jbid. , Pl.. p. 565.)
ter feito pouco caso da infantaria e voltado toda a sua ·atenção para a
O tom se engrandece no exórdio da Arte dJz guerra. Toma-se evidente
cavalaria: esta desordem teve por causa a má vontade dos condottieri e
a ignorância dos soberanos. Todos os militares, desde vinte e cinco anos,
-~~e_rcício das armas é, aos olhos. de Maquiavel, um dos ·l~~~~J!ivile-
. I:J~ em que se desenvolve a Y_irtude coletiva:.Por uma espkie de milagre,
tendo sido somente homens desprovidos de terras e simples capitfes de
ílta Virtude triunfaria sQbre a terra, a despeito das armas que, com evidên-
aventura, pensaram primeiro em se armar para manter prestígio junto
Ota, relaxaram os laços que pódiam existir entre a Fortuna e os "homens co-
aos príncipes desarmados. Como estes dificilmente podiam pagar-lhes
I um grande número de infantes, pois eles mesmos não tinham súditos
tljosos".
''Po~to, nã'o é suficiente, hoje, na Itália, saber comandar um
.I que os fornecessem e porque um pequeno número de infantes lhes
teria dado pequeno prestígio, limitaram-se à cavalaria. Duzentos ou exército todo formado, é preciso ser capaz de criá-lo antes de empre-
ender conduzi-lo. Mas este êxito só é possível aos soberanos que t!m um

166 167
Estado. exten~ e de numerosos súditos e não a mim6 , que jamais co- ça, a resposta jacobina foi, sabe-se, dupla. No que concerne às relaç6es inter-
mandet exérctto e que jamais pude ter sob minhas ordens senão sol- pessoais ela consistiu na dissoluçlo de todos os agrupamentos e associações
dados submetidos a uma pot6ncia estrangeira e independentes de mi· que podiam se interpor entre o indivíduo-cidadão e o Estado: a lei de l.e Cha-
nha vontade. E eu vos deixo a pensar se é entre semelhantes homens pelier, de 14 de junho de 1791, deveria preencher esta funçlo 17 • No que se
I que se pode introduzir uma disciplina tal como eu a propus. Onde está referiu à emergência de uma consciência nacional efetiva, ela consistiu no re-
r crutamento de um exército popular, pelo qual u campanhas eram subtraídas
o soldado que consentiria, hoje, em portar outras annas além de suas ar-
mas ordinárias e, além de suas armas, víveres para dois ou três dias e ins- à influência centrífuga da feudalidade ainda viva e viam-se associadas aos de-
trumentos de sapador? Onde estão aqueles que manejariam a picareta e sígnios de Paris, centro único da nova soberania.
permaneceriam, todos os dias duas ou três horas, armados, ocupados em Deste jacobinismo, em sua dupla dimensão, já se encontra sob a pena de
todos os exercícios que devem colocá-los em condição de sustar 0 ata- Maquiavel uma temática precisa. No que diz respeito às divisões do corpo po-·
que do inimigo? Quem poderia desacostUmá-los de seus vícios de seus lítico em partidos e ..facções" nele encontraremos 11 reflexões que o aproxi·
jogos, de suas blasfêmias e de sua insolência? Quem poderia s~jeitá-los mam muito da exposiçlo de motivos da lei l.e OlapeUer. que igualmente des-
a uma tal disciplina e neles fazer nascer um tal sentimento de respeito conhecia as diferenças reais e concretas existentes num corpo político entre
e de obediência que uma árvore carregada de frutos permaneceria in- · os cidadãos que o constituem, que fazem dos partidos não lugares onde se ex-
tata no meio do campo, assim come se viu diversas vezes nos exércitos primem consciências parciais mas forças sempre centrífugas e dissolventes.
antigos? Como chegaria eu a me fazer respeitar, amar ou temer, quando Deste traço de jacobinismo Gramsci nlo fala. Ao contrArio, ele nota com clari-
após a guerra eles não devem mais ter comigo a menor relação? De que fldência o papel político maior de um recrutamento dos contadini, isto 6, de
eu os envergonharia quando eles nasceram e se educaram sem nenhuma camponeses habitantes de campos próximos de Florença ou dos pequeníssi-
idéia de honra? Por que me respeitariam visto que não me conhecem? mos burgos das cercanias imediatas da cidade-metrópole:
Por que ~ ou por que santos eu os faria jurar? Por aqueles que eles " ... ao se considerar um exército e ao dividi-lo grosseiramente
adoram o~:~ aqueles que eles blasfemam? Eu ignoro se existem al- encontra-se o cbmposto de pessoas que comandam e de pessoas que
guns que e ês'ildorarn mas bem sei que blasfemam todos. Como quereis obedecem, de pessoas que servem a p6 e de outras que servem a cavalo;
vós que eu confie em promessas de que eles tomaram por testemunho e visto que é preciso incorporar formações militares numa província que
se~es que eles desprezam? E quando eles desprezam 0 próprio Deus, res- n!o tem o hábito das armas, aqui seria necessário, como em todas as·
peltarfo ele~ os homens? Que instituições salutares podeis vós então es- disciplinas, começar pelo mais fácil; e 6 sem dúvida alguma mais fácil
perar num semelhante estado de coisas?" (L 'Art de la guerre. VII, 17. criar a infantaria do que a cavalaria, assim como é mais fácil aprender
Pl. pp. 898-899.)
a obedecer do que aprender a comandar. E visto que ~ vós e vossa Ci-
Compreende-se, evidentemente, por que Grarnsci vê em Maquiavel um dade 19 que estais destinados a servir a cavalo e a comandar. nlo se po-
·~acobino precoce... Não, com certeza, porque ele prefigure por seus escritos deria começar por vós, isto 6, pelo mais difícil; seria preciso começar
a ação bastante posterior dos jacobinos franceses; mas porque ele enuncia exi- pelo que deve obedecer e servir a pé, a saber. por vosso conta/W• ..
g~ncias políticas que serão, mutatis mutandis, as mesmas que os revolucioná- . .. quanto às insignias, julgou« bom que todas as bandieri trou-
nos de 1792. encontraria. Estas exigências dominantes estão ligadas a este xessem a mesma insígnia, a do leão20 , com este funde que todos os ho-
problema ma1or: como, sobre os destroços..de urna ordem feudal em numero- mens tomem-6C de afeiçlo por vós atra~ de urna mesma coisa, para
sos particularismos, em laços interpessoais numerosos - o rei sendo suserano que eles não tenham outro objeto do que o sinal da república e para que
il 'I
de suseranos -,constituir uma consciência política de base nacional? Resumi- eles se tomem assim os partidários; diferenciaram-se o alto dos estandar-
da em suas grandes linhas, mas que ao mesmo tempo são as suas linhas de for- tes a fim de que todos reconhecessem o seu; numeraram-se u bandieri

168 169
. ,.
'l •.J ...,, :. N' o

do Domínio que encerram numerosos burgos análogos,


tais como a Ro-
suas or-
para que a Cidade possa considerá-las e mais facilmente lhes ctar manha, a Lunigiana, etc. não apresentam a mesma importância
porque
dens... Floren ça, e do como ou-
eles ..nlo reconhecem outros senhores do que
tino, o vale do
trora, de centro de atração particular: a regiã'o de Casen
Esta organização, uma vez bem implantada no contado. é
fatal de ho-
fácil incorp orá-la . Amo inferior e superior, o Mugello, etc., embora sejam cheios
que ela penetre pouco a pouco na cidade e será muito ar senlo com Floren ça; e não 6
em ser servid o mens, não podem entretanto se articul
E vós já vos apercebeis vivamente da diferença que existe o grande número de burgos que pode bastar para condu zir uma em-
pidos, tais
por ~ssos concidadfos, por soldados escolltidos e nã'o corrom presa.. :· (Ibid., Pl. pp. 6~9 .}
se recu·
como os que vós tendes agora! Em nossos dias, todo aquele que
para expli-
sou a obedecer a seu pai para se desenvolver no bordel acaba soldad o; Poder-se-ia, se nlo se resiste, inventar uma razlo plaus(vel
boa edúca çlo po- car estas últimas linhas para salvar em Maquiavel o jacobi
nismo da unidade
mas aquele que sai da· escola honesta e que teve uma
bom re- ria, nosso Secretário
derá honrar tanto a si como à sua pátria; tudo consiste em dar italiana: defrontando-se com as resistências da Senho
querer uma milí·
nome ao dito serviço e em determinar bem a organizaçlo
em nosso tenta seduzir os Altíssimos ao lhes propor seus motivos de
da mil(cia. 1506. Em Toutes cia ••• Mais vale talvez ver em Maquiavel um político de
grande porte - ele
contlldo ". (Relatório sobre a instituição
também, faz
le1 lettre1 de Machiavel, tomo 2, pp. 67-71.) parece-nos nfo ter até aqui regateado sobre este ponto - que,
indiscutivelmente progre ssista. ela-
o julgá- tl política. Na época em que, de maneira
Que a intenção geral deste texto seja bem jacobina, todos poderã borou-se o projeto da milícia florentina, o momento polític
o da unidade
que seria o dos
lo, mesmo se seu estilo é menos amplo e menos saliente do Italiana ainda Dão tinha chegado. Só os que desejarlo fazer
dizer em nosso
io oficial - e se·
textos mais literários. Mas, entretanto, há mais: neste relatór florentino o que ele nlo poderia nem dizer nem pensar , aquele s que, por sua
m da pureza jacobina
ereto - que Maqui~~ dirige à Senhoria, afasta-se també vez, n!o dão muita importância à história e ao que ela contém
.
integral do
à qual Gramsci era~sensível. A tal ponto que a interpretaçã'o
pensamento do Secretário resulta difícil. O fundador do partid
o comunista .,
nã'o tinha à sua
italiano, na prislo mussoliniana em que ele redige suas notas,
nuançado mais. NOTAS
disposiçlo as cartas de Maquiavel; ele teria
fa-
..Nlo foi julgado oportuno escolher vossos referentes , tio
21

porqu e a deci- 1. Çf. Capítulo "0 Príncipe e a nação", p. 99.


voráveis sejam eles ao recrutamento de uma infant aria, lugar relativo,
pontos do 2. Significativa defmição do papel do povo no Estado e de seu
são nfo teria sido segura para vossa Cidade, sobretudo nos 10 observará: é o número e o braço militar
. Sem dúvida Maqui avel está toma-
suscetíveis
Domúúo em que se encontram grandes núcleos de homens, do pela i~ ia de que_o povo em armas deve fazer a guerra e que uma naç!o de-
as disposi-
de fornecer uma cabeça para toda a região; porque tais são ve assumir sobre si seu destino guerreiro e não confiá-lo a merce
nários. Mas é
qualqu er um saiba que ele po-
ções dos povos da Toscana que apenas preciso entretanto observar que o povo maquiaveliano nio
é o criador de
ouvir falar de senho r,
de viver de .seus próprios recursos, nlo quer mais riquezas materiais.
també m
sobretudo se ele se encontra armado e seu senhor desarmado: 3. Em 1494 os Médici contluíram um acordo com Carlos vm
que implicava
o, quer se
convém, quer jamais organizar militarmente o dito distrit o pagamento de um tr\buto. Uma sublevação popular os expuls
ou da cidade .
que a de nosso conda do estiver alusão às mudan -
adiar a organizaçio ao momento em "Esta cidade não tinha nel'lhuma forma regular de governo»:
respei to. Os lugare s do dis·
suficientemente assentada para inspirar o ças das instituições, que acompanham a ascenslo política de Savon
arola.
encon tram
trito que importa deixar sem armas são aqueles emqu e se 4. Cf. nota 7 dá p. 73 e texto da p. 74.
Sepolcro,
grandes núcleos de h?mens tais como Arezzo, Borgo San 5. Cf. Jdées romaines, op. cit. O cósmico não é de modo algum
distinto do
ignian o: alguns outros pontos
Cortona, Volterra, Pistóla, Colle, Sangim
171
170

--
teológico nas religiões nacionais em que o sobrenatural não é diferencíado. rlbrizio Colonna, um dos condottieri mais famosos desta é~a. A obra foi
Esta distinçlo 6 tardia: no Ocidente ela data do cristianismo. tlt\ldada em 1521, durante a vida de seu autor.
6. Cf. "Naçlo maquiaveliana, direito natural, agostinismo", no capítulo "O 17. Sabe-ie aliás que Marx coloca a lei Le Chapelier em perspectiva histórica
Príncipe e a naçfo". 10 fazer dela um ato constitutivo de uma consciência nacional e, simultanea-
7. Teodorico chegou à Itália em 489. mente, uma lei cujo objeto é lutar contra as primeiras associações operárias
8. Desde o ano que segue seu ingresso na Chancelaria dos Dez, uma missfo que foram as corporações. Esta lei construía portanto, a constituição de uma
junto a Caterina Sforza coloca Maquiavel em contato com um condottteri oldadania abstrata, no quadro de uma repúbliéa burguesa que dá ao cidadJo
para negociar um acordo que dizia respeito à guerra; logo após, ele estl junto \lllll dimensão parcial, a de ..participante da soberania nacional". Para Grarnsci,
a um exército florentino fatigado de assediar Pisa. Outra missão em Pisa, sem· portanto, que conhecia Marx, o aspecto "revolucionário" de Maquiavel corres-
pre assediada, em 1505 ... e em 1509. Em 1511, Maquiavel é encarregado de . ponde ao momento histórico em que é precisamente revolucionária a emer-
levar tropas sobre o território. da República. Em 1512 ele deixa suas funções ..ncia desta consciência nacional ainda abstrata.
públicas. 18. Cf. o capítulo "Política e individualidade", p. 154.
9. Cf. nos Discursos, entre outros .textos esparsos: 11, 16 a 19; III, 29. No 19. Este texto é extraído de um relatório oficial. Nas cartas e relatórios
Príncipe, os capítulos 12 a 14. ·(mesmo secretos) que Maquiavel dirige à Senhoria, ele sempre mantém a
10. De 1513 a 1520 os elementos da primeira redação sendo contempodneos . flcçlo que identifica os Altíssimos Senhores à cidade inteira.
do Pr{ncipe. :e raro que Maquiavel deixe durante tanto tempo uma obra em 20. O emblema de Florença é um leão (o célebre Marzocco) sobre o fundo de
gestação. tlores-de-lis.
11. Embora o modo de recrutamento de um exército não seja suficiente para ·· 21.. Os referentes são os habitantes do distrito que não sfo nem florentinos
de~erminar sef'éãiáter. Alé~ da estratégia,- .isto é, em última análise, do con- nem contadini. O distrito é composto de cidades e de regiões conquistadas ou
teudo do podçr que determma esta estrategta- a estrutura interna do exérci- oompradas que, portanto, guardaram uma exist~ncia - aliás continuamente
(

to em questãoé o elemento determinante. Cf. se observa "recrutamentos", contrariada - relativamente independente da metrópole florentina.
"conscrições", antes da aparição de regimes políticos republicanos; o caráter
"popular" do recrutamento de um exército não permite afirmar que necessa·
riam ente se está a ver com uma democracia.
12. Ver o apêndice do capítulo 3 do presente livro: "Maquiavel e a Itália".
13. Cf. na parte antológica deste livro, texto das pp. 203 e 212.
14. Introduzidos na arte militar em torno de 1450, notadamente na sede de
Arras, tornado assim muito mortífero nos exércitos de Luís XI pelo recente
uso que dele fazem os assediados, no lugar da tradicional besta. Os arcabuses
permitiram Pávia em 1525. A Arte da gue"a estava velha somente de cinco
anos.
15 . .e verdadeiro que na batalha de Novara, em 6 de junho de 1513, os suíços
de Maximiliano Sforza derrotaram em uma hora as tropas francesas de Fran·
cisco I.
16. A Arte da guemz estl redigida sob a forma de um diálogo imaginário en-
tre os interlocutores habituais de Maquiavel no jardim do palácio Rucellai e

172 173
UVR04 ~ele permanece uma sançJo inteiramente exterior. Ao tratar deste fracas-
to, Maquiavel evidentemente enfre_nta um dos temas principais dos tratados
A cruz dos política; CIUjo objeto ~ pensar a ação. Que a açlo, com efeito, seja necessariamente am-
b(tua1 é uma constatação que ultrapassa em muito o ca~<.po da aÇf<> política;
1111m como é uma constatação que se ergue muito alto na história dos pensa·
mentos humanos e o seu emmCiado é forçosamente banal. Precisemos,_entretan·
to, em vista do objeto que agora nos ocupa, as considerações mais gerais que fi-
2
.•mos acima, quando se tratavam das condições nas quais se exerce a Vutude •
Se a inteligência humana está a serviço de uma vontade nua, demiúrgí·
ca, o ato político torna«, logo que ele se operou, fenômeno da natureza.,_!llo
'cuno das coisas, a vontade, ao se investir nos a~os. de~ de ser uma _pura in·
tençlo ·para tomàr-sé geradora-de cõiSãS oÜ de acontecimentos. Se nio há
campo natural estável, com determinações constantes, no qual se exerce esta
vontade - e é isto que Maquiavel pensa -. entlo, duas causas de erro e de fra-
casso tomam-60 as ameaças técnicas principais de qualquer vontade política.
Capítulo 1 Primeiramente, a uma faculdade de desejar que é, em Maquiavel como o
Os maus prínàpes terá mais tarde em Descartes, inftnita, é necessário que corresponda urna inte-
ll&ência das coisas do mundo em si mesma inftnita. Ora, a noçfo de Fortuna
vem precisamente tomar possível um saber sistemático. Desde entfo, um·co·
:e com elação ao homem coletivo, constituído e determinado como nhecimento por acumulação, q~nio pode ser total mas que é indefmidarnen·
povo ou como'-nação, que se podem julgar os príncipes. O ato fundador, se te extensível, é tudo o que resta ao homem que medita sobre a humanidade.
ele ~ primeiro, nfo tem em si mesmo seu próprio fim e portanto não se es· Em seguida, é-nos sufiCiente relembrar que a individualidade empí·
gota em si mesmo. Ele ~ gerador de uma nova relação inter-humana, prática, rica apresenta« sempre nos textos maquiavelianos como uma iDla de perma-
vivida por uma coletividade. Ele tem ou nfo um sentido com relaçfo a esta Mncia e de firmeza resistente na mobilidade de acontecimentos da Fortuna.
coletividade. O ato principesco instaura ou não instaura o que nós chamamos C.A virtude, que, por sua vez, nio tem causaçio natural (nfo existem condi-
acima de uma certa homogeneidade política e que Maquiavel, por sua vez, ções psicológicas de seu exercício), deixa subsistirem as coações naturais do
chamava república e, a título menor, principado. ; temperamento e da paixio. Em conseqüência:
Esta instauração ~ espreitada pelo fracasso. Deixaremos de lado, para
••.. . um homem habituado a um certo caminho não saberia mu·
retomá-la a seguir {no capítulo 4), a forma implacável de fracasso, para falar
dá-lo... ; logo que venham tempos que não se enquadram mais com sua
presentemente só do fracasso individual de homens políticos. Da obra de
maneira, é .fatal que ele sucumba". (1ite-Live. ill. 9. Texto já citado e
Maquiavel, dois grandes tipos de fracasso individual - e coletivo, por con·
explicado no capítulo ." A Virtude", p. 75.)
seqüência - se destacam, se se quer adotar a seu respeito uma leitura vigi-
lante.
Entre os políticos infelizes, que ilustram o fracasso da rigidez, o que
O fracasso histórico mais comum~ aquele que sanciona o comportamen·
o antigo Secretário da rep.lblica florentina cita com mais amargura é, certa·
to do homem cujos pontos de vista são contrários às variações da Fortuna. Em
suà refaÇiÕcÓ~·a Fortuna, este homem comete um ~rro fat~ a s~~-j;;der. Este mente, ..Piero
__..- Soderini:
fracasso quase t~cnico permanece extrínseco à intenção política, à visada, de

174 175
"Piero Soderini... regulava sua conduta sobre os princípios da • movimenta fora do campo das cidadanias; ele impõe uma ordem inteira-
humanidade e da paciência. Ele viu prosperar sua pátria enquanto as mente externa que não está em nada fundada. sobre o ·que quer que' Seji dê
circunstâncias se prestaram a este regime. Mas vieram tempos em que êó1etiVo. Nfo obedece ele mesmo a nenhum motivo político. Se 6 conveniente
era preciso romper com uma política de humildade e de paciência e qüê'seencontre, em algum momento da existência político-coletiva do ho-
ele não soube romper: caiu e, com ele, sua pátria". (Jbid) 3 mem, uma espécie de homogeneidade entre os habitantes de um mesmo lugar,
contemporâneos de um mesmo tempo, o mau Príncipe é aquele que toma im--
Vem então o julgamento que Maquiavel reseiVa ao erro político desta possível esta homogeneidade; ela lhe faz falta , a si mesmo e a todos os ou·
ordem,·na qual só a clarividência faz falta, enquanto que ela teria sido capaz tros. ~ ·entlo que o "Príncipe que nlo é contido por nada" dispõe« a se
de dar urna matéria adequada a esta vontade nua que é a Virtude. No caso ••colocar em paralelo com a multidfo desenfreada": aquele que, in_!~~?~ ~Q.
de Piero Soderini a condenação mais célebre está redigida sob a forma de epi- ~~~.!~-~_ou de recons~ir o Estado, não se deu-ãSi. Uj~IDQ.yffi.!l_ç_ida-_
grama. Convém não esquecer, ao lê-lo, que o próprio Maquiavel acompanhou
em sua queda o gonfaloneiro e ..sua pátria":
dania encontra doravante diante de si um número indefinido de homens que,
- - -' ...-.- . nã'o
coletivamente
_ .,_ • J
- . " " --
receberam
··-
.
nem cidadania, nem
___ .,. ,......---·---•u• - ~ ••
0
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.__o -·política
existência
. --~
•- ·---- .
"Na noite em que morreu Piero Soderini
Sua alma se foi para a porta do inferno: "Que os príncipes não se queixem pelos erros cometidos pelos po-
'No inferno, tu!', gritou Platão. 'Tolo!' vos submetidos à sua autoridade porque eles s6 podem vir de sua negli-
Aos limbos, em cima, com os outros gaiatos!!" gêncill* ou de seu mau exemplo. Ao examinar os povos que se viram em
(Epigramme. Pl. p.ll7.) nossos dias abandonados ao banditismo e a outros vícios deste gênero,
sabe·se que é preciso deles acusar seus governos, culpados dos mesmos
Quando se pensa que Dante não faz o mesmo uso dos limbos para aí en- excessos". (Tite·Live. III, 29. P. p. 682.)
....-YJar seus mortais 4 , este pequeno texto ganha um sentido ao se colocar numa
l mitologia pessoal: os limbos acolhem as crianças privadas da vida sobrenatural A própria lei não suportã uma análise pela qual toma-se evidente que
ela serve aos interesses do Príncipe. Se a lei é suscetível de uma tal explicação
porque sua morte precedeu o batismo; para nosso autor, eles recebem aqueles
que morreram antes de ter conseguido instaurar em si a humanidade, seja qual
for a sua idade .. . Sem pretender tirar deste pequeno texto mais do que, sem
dúvida alguma, ele dá, notemos que a sentença é feita com piedade e escár·
--·-
psicológica in~~~ual -~~ ~e~-~~-ser· ürna lei política:
,_ ..
-
"Antes que o Papa Alexandre VI tivesse libertado a Romanha dos
·

senhores aos quais ela obedecia, esta região era o antro de todos os cri-
nio5 • mes. As causas mais superficiais produziam aí assassinatos e pilhagens
Absoluwnente outro é o julgamento quando ele se dirige aos príncipes pavorosas; estas desordens nasciam da maldade dos príncipes e não,
do fracasso intrfuseco, àqueles que falharam na instauração política por um como estes o diziam, do mal natural destes povos. Estes príncipes eram
vício do objetivo, aqueles que tentaram fazer da política o lugar do enfrenta- pobres e, querendo viver com o fausto e a opulência, eram obrigados a
menta de vontades individuais de poder. Para estes o tom se amplifica e jun- recorrer a todos os gêneros de rapinas. Entre outros meios infames de se
ta-se ao opróbrio. No pampoliticismo maquiaveliano, o ato do mau Príncipe é enriquecer, eles editavam uma lei para proibir tal ou qual coisa; apenas
aquele que é julgável por um processo psicológico individual. A Virtude pro· ela era publicada eles eram os primeiros a se favorecer da infração pois a
priamente política nlo tem condicionamento psicológico; a boa política, além deixavam impune até que houvesse um número bastante grande de cul-
de sua matéria, que é tal ou tal, deve poder s_e relacionar à vontade nua, ser pados; então eles os perseguiam. nã'o por zelo pela lei mas por cupidez e
dita em termos de vontade incondicionada. Se, portant~, ao~~ ao receber ~ na esperança de q~ eles se resgatassem a dinheiro. De onde inumeráveis
_a. lei pelo ato instaurador o bom Príncipe é ao mesmo tempo o fundador e o ~· males: o mais grave era que a população tornava-se miserável pois os
m~iõ-de sua 'éidactania, o mau, por antífràse, é tirano. o tirano é aquele que
. ·-- . .- -·------·-·-.... --- -- ·- ·...

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mais fortes destes miseráveis compensavam~ sobre os fracos ..." (Jbid, Sábio ou louco, bom ou mau, nio há ninguém que, ao ter de es-
Pl. pp. 682-683.) colher entre estas duas espécies de homens, não louve aqueles que são
louváveis e nã'o reprove os que se deve reprovar; e, entretanto, quase to-
Estes políticos, desde que eles nã'o alcançam o nível a partir do qual seu dos, enganados pela aparência de um falso bem, de uma falsa glória, dei-
empreendimento é uma edificação da humanidade - quase mística, nós disse- xam« levar, voluntariamente ou não, por aqueles que merecem mais
mos: o mito do homem virtuoso é o que, em Maquiavel, assume o lugar de reprovação do que elogio. Tal que se pudesse fazer uma honra imortal
!!1~~(4iQI~-. desdé que eles'pe~aneçam n~ esbtut~de h~~ens-indlviduais­ ao fundar uma república ou uma monarquia, prefere estabelecer uma
que-tomâram-o-poder, estão sujeitos ao opróbrio. U onde ainda nlo há polí- tirania. Não se percebe quanto de fama, de honra, de segurança, de paz .
tica, onde haja ausência de política ou onde se encontra esta pseudopolítica e de- repouso de espírito se troca contra a infâmia, a vergonha, a censu-
que Maquiavel chama tirania, o julgamento a que o homem está sujeito é o ra, o perigo e a inquietude.
julgamento moral.
"Portanto, é destes príncipes indolentes e destes despreziveis E desde que (um Príncipe) seja homem, ninguém duvida que ele
arrastadores de espada que vai abundar minha história.., (Histoires f/o- se afaste tremendo de qualquer imitação destes7 maus e se inflame do
rentines. I, 39. Texto já citado.) \ desejo imenso de fazer reviver os bons. E. em verdade, qualquer Prínci-
pe zeloso de.sua glória deveria desejar reinar sobre uma cidade corrom-
Para . estes príncipes, o julgamento maquiaveliano reveste uma forma pida; não como César, para acabar de perdê-la8 , mas oomo Rõmulo,
cuja solenidade tem algo de notável, por seu caráter não habitual. De um tex- para reformá-la. E em verdade os deuses não podem dar aos homens
to particularmente estudado por ser vigoroso, a cítaçlo seguinte será um pou- ...__,_ uma mais bela chance de glória, como nenhum homem pode se desejar
co longa, embora ela comporte algumas linhas que já lemos no estudo de wn mais bela. Se, para reordenar uma cidade fosse preciso que wn Prínci-
outro problema. Junto a outras passagens, mais curtas, que nos esclarecerã'o pe renunciasse ao poder, aquele que preferisse deixá-Ia na desordem
nas páginas que se seguem, este extrato não poderia ser negligenciado. Ma- para manter o poder tpereceria talvez alguma desculpa; nlo mereceria
quiavel nele nos adverte "que tanto como são dignos de elogios os fundado- nenhuma se pudesse reordená-la e manter o poder. Que estes que o ~u
res de uma república ou de uma monarquia, assim merecem a reprovaçã9 os colocou nestas felizes circunstâncias reflitam que ~is caminhos se
fundadores de uma tirania". abrem diante deles: um os conduz à imortalidade após um reinado feliz
e tranqüilo; o outro os faz viver no meio de mil inquietudes e lhes pro-
..Entre todos os homens de que se fala com elogio não há de mo-
mete após a morte uma eterna infâmia." (Tite-Live. I, 10. Pl. pp. 407-
do algum os que são tão célebres quanto os autores e os fundadores de
411.)
wna religiâ'o. Após eles vêm aqueles que fundaram Estados. Em segui-
da vêm os grandes capitães que aumentaram sua soberania ou a de sua
pátria. Colocam-se ao lado destes os literatos; estes, tendo conseguido
mais ou menos, em diferentes gêneros, desfrutam da glória em graus di- NOTAS
ferentes. Todos os outros homens, cujo número é infinito, recebem a
parte de elogios que lhes vem do exercício de sua arte e de sua profis- 1. Ambíguo não significa vago. A ação é ambígua porque ela pertence simul-
são. Estão, ao contrário, consagrados ao ódio e à infâmia, os homens taneamente a duas or!f~ns de coisas e porque ninguém pode ser coerente e
que destróem as religiões, que derrubam os Estados, os inimigos do ta- exaustivo sobre ela: qualquer discurso pelo qual se procurasse uma plena cons-
lento, da coragem, das letras e das artes úteis e honrosas para a espécie ·dencia das intenções ch~~ com este limite: a objetividade material dos
humana: estes são os ímpios, os violentos, os ignorantes, os imbecis, os atos realizados; todo discurso pelo qual se quisesse esgotar as condições mate-
indolentes e os desprezíveis. riais da realização intencional reencontra, como um ~cer que o mina, a von-

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tade de introduzir no curso do mundo intenções livres, Ambigüídade, portan- dt leU autor colocado, em 1512, entre república e regime mediciano, enquan-
to, quer dizer aqui: impossibilidade de discernir a coisa de que se fala por um to que os acontecimentos ainda hesitam por um tempo.
discurso fechado e necessidade irrealizável de t ratá-Ia simultaneamente em 6. Maquiavel seguramente não leu Pomponazzi, este filósofo redescoberto
dois quadros de referência heterogêneos e, o que é mais, exclusivos wn do pelos italianos e sempre ignorado pelos franceses (1462·1525). Contemporâ-
outro. neo do Florentino, próximo alguns anos, universitário de grande envergadura,
Aqueles que têm preocupações de dominância ética privilegiam o debate tnainando então aqui e ali ao sabor dos contratos (em Pádua, em Ferrara, em
que considera as intenções. A mais antiga síntese que foi realizada entre a in- Bolonha), ele conduz no quadro de um aristotelismo nuançado uma reflexão
tenção e a materialidade· dos atos provavelmente data do estoicismo: "O que 10bre o consenso político que se aproxima das conclusões de Maquiavel, sem
de mellior pode fazer o mellior atirador de arcos é visar com cuidado o cen- dele ter, é verdade, a clareza e o rigor: "quase sempre a apatia dos cidadãos
tro do alvo. No resto, a flecha pertence ao vento assim como à intenção do provém da apatia dos príncipes", "Quasi semper malatüz civium ex malatia
atirador". Para um homem como Crisipo, qualquer que seja o vento, de todas as ,nncipum provenit'~ (De Fato. 1525, IV, 4 , 12.) Convergência de um tempo
maneiras é wn bom vento; nele nós estamos num mundo otimista. E como se- em que se formam consciências políticas de uma nova era...
ria preciso uma inteligência infinita das coisas do mundo para ter o direito de 7. César, Nabis, Falaris e Denys. Calígula, Nero, Vitellius. "Todos os impera-
empreender a menor de nossas ações (seria preciso conhecer o regime dos ven- _''dores que herdaram o império, exceto Tito." (Jbid., supra.)
tos e o dos tremores de terra, os limites da flecha e os limites do arco, etc.) ' 8. eum lugar-comum na Florença republicana mas isto toma wn sentido par·
vale mais ainda dar seu assentimento ao mundo tal como ele é, seja ele qual , tlcular nos propósitos de Maquiavel de condenar César. E de censurar Dante,
for. que enviou Brutus aos infernos. E de condenar o Santo Império. "E que a
Para Maquiavel, que está longe de dar tudo às intenções e que não negli- - llória de César que os escritores tanto celebraram não nos impõe: seus adu·
.gencia o conteúdo objetivo das políticas, o erro pode ser evitado. ' ladores foram seduzidos por sua Fortuna e intimidados pela longa duração
2. Cf. p.58. 4o império que· se perpetuou sob este grande nome e que nio lhe permitia
3. Poder-se-á ler, na parte antológica deste livro, o texto da p. 200, extraído • explicar livremente. Quer-se ~aber o que estes escritores diriam se eles fos-
de uma carta escrita a Soderini,. no tempo que segue imediatamente à desti- •m livres, que se leia o que escreveram de Catilina. E César deve ser conde-
tuição de Maquiavel. . .l nado com o acréscimo de severidade que merece aquele que não se limitou
4. Na planície sombria que acollie Dante e Virgílio, no limiar do Inferno, a premeditar wna perversidade mas que a realizou. Que se leia igualmente os
encontram-se "os infelizes que nunca foram vivos". Estão ai os covardes, os louvores de que se acumulam Brutus: à falta de poder condenar o tirano -
anjos que não tomaram partido por ocasião da revolta de Lúcifer. Eles são ele é onipotente - eles celebram o inimigo da tirania". (/bid., Pl. pp. 408-
desprezados pela misericórdia divina e mesmo por sua justiça. g somente após . ..a9.)
a passagem de Aqueronte que nossos dois peregrinos chegam aos Iimbos, pri-
meiro círculo de onde Cristo fez sair os Patriarcas. "Aqui ninguém chora, so-
mente suspiros." Morada de crianças mortas sem batismo, morada de grandes
pagãos que honraram as ciências e as artes sem ter tido conhecimento da ver-
dadeira religião. Virg11io parará aí; somente Dante mergulhará no Inferno ver-
dadeiro, que se abre diante dele com o segundo círculo. (Cf. A Divina comé- ' '
dia. O Inferno. Cânticos lli e IV.)
5. Cf. um texto, reproduzido na parte antológica deste livro (p. 255), tem aí
um lugar bastante à parte. Ele é inteiramente destinado a ilustrar a habiJ.idade

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lipes, nurÍl menor grau, é verdade, choca-se também à opacidade da coisa po-
lítica, que jamais é totalmente conceitualizável. Ela terá portanto de recorrer
10 conceito de que se pode dizer também que é a negação de qualquer concei-
to: a Fortuna.
Mas, considerado de um outro ponto de vista, que é aquele no qual a in·
&eU,6ncia deve se colocar, o homem permanece submisso às determirlações de
IUI própria natureza quando se tomou político. Destas determinações nâturais
oon~m portanto enunciar os grandes traços; isto será ficil , aliás, porque os
textos slo todos convergentes.
O "natural", em nosso autor, sempre aparece sob as espécies do indivi~
1lflwll riiuljjplieado: Eis aí o decalque, no universo antropológico, da ati~dade
oÕÕCo~~oclal ~e~·opõe o vendedor ao comprador, o prestador ao empresta·
dor, o locatário ao senhorio, o patrio ao empregado 1 • A natureza 6 "egoísta":
·\ ela multiplica os "eu" e os ''tu" até alcançar os limites da hwnanidade, sem
·que nenhuma emergência de "nós" (dimensão propriamente política) possa
CAPÍTUW2 . wr explicada pela inteligência, nem compreendida por ela.
Corpo político e individualidade dos homens A natureza, portanto, multiplica as consci~cias parciais, partidirlas,
..__ ~ístas". A inteligência do homem nio pode lhe apresentar senfo seu pró-
prio interesse e sua faculdade "natural" de apetição só pode deaejar este inte-
A exist~ocia nacional, ao mesmo tempo campo de exercício e resultado mee individual.
do exercício de uma Vutude coletiva, introduz na vida dos homens uma H- ~ assim, portanto, que n~ssariamente deve aparecer o homem para a
pécie de transcendência. Transcendência de uma obra voluntária, no sentido lnteligêncifz daquele que empreende ocupaNe de político. ~ preciso ter por
de que o homem aí éonstrói todas as peças de um universo racional que n!o certo que o homem 6 "mau", isto é, que ele só 6 sensível a motivos e que
tem modelo na natweza. Uma derniurgia - coletiva, no fmal das contai - ins- 11te1 motivos sfo o que sua inteligência lhe apresenta como seu interesse para
taura este cosmo, sem outro motivo do que a vontade nua de assumir uma
existência conscientemente coletiva: o que chamamos desde sempre uma vida
•• Segundo os textos, segundo também o que afeta seu destino político, o
poütica, um vivere civile. Este, conscientemente coletivo, é idêntico, em Ma- terna da "maldade da natureza humana" encontra-se diversamente apresenta·
quiavel, ao campo recoberto pela lei. A irrupçfo da Virtude na história é um elo e esta diversidade rnodaliza uma única concepção. Um destes textos ao
quase-milagre porque ela está "além da ordem": nada a causa senlo o livre menos é de uma precisão Impressionante num homem que foi tio pouco ex·
arbítrio. O homem de Maquiavel retoma em seu proveito o atributo mais tra· plicitamente filósofo e que teoriza raramente as relações da inteligência com
dicional da providência: sua Virtude o iguala aos deuses das diversas mitolo- u opções necessárias ã açlo 2 :
gias ao tomar-se repentinamente causa incondicional de acontecimentos. A
"Como o mostram todos aqueles que tratam de política e como a
Yutude chegou: aconteceu.
história está cheia de exe!Dplos (que o confirmam), é necessário àquele
Assim, e considerado do ponto de vista de sua Virtude, o homem é sus-
que estabelece um Estado e lhe dá leis,prenupor* que todos os homens
cetível desta vontade pura que o faz político. Mas, viu-se, a intelig!ncia nfo
sfo maus e que eles utilizariam a malignidade de sua alma toda vez que
pode encontrar uma representaçlo adequada da obra puramente política. Para tivessem a livre oportunidade. Quando esta malignidade permanece es·
o entendimento dos povos é preciso utilizar análogos. A inteligência dos prín· condida por um tempo, isto provém de uma razão em si me~ma escon·

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didiz e que, porque não se teve experiência do conl7rÍI'ie, não é co- ·~ "eu", o suporte passional do ser empírico e individual. Em cada ~m per-
nh«tcla•. Mas o tempo em seguida faz descobrir-se esta maldade: ele é, anece o que é pré-político. O surgimento d~ polf~ca recobre J!l8S ~~Q !is-
diz-se, pai de toda verdade". (Tite-Live. I, 3.) 3 IDlve o homeE_! ~dividual_ dos apetites, q\_)C ~~-~e~m à ~~r_! d~~-
~syrópri_os._ -
Outros textos, porque se situam no discurso "técnico" que a inteligên·
cia tem sobre a realidade política - é o caso do Príncipe -, dfo a "pressupo- "Que todos invejem e que todos esperem ultrapassar, ao oprimir
siçlo" de que se tratou acima como uma verdade. Tecnicamente, a maldade um ou o~tro, mais do que se apoiar sobre sua própria Virtude;
dos homens deve ser considerada como um conhecimento adquirido: Todos vêem somente com pesar a felicidade do outro, por isso se
"Nasce daí uma questfo, se é melhor ser amado do que temido, aplicam sem trégua e sem descanso a destruí-la;
ou o <;ontrário. Eu respondo que seria necessário ser um e outro; mas, ~ nosso instinto natural que, por seu próprio movimento e por
como 6 difícil reuni-las, é muito mais seguro• fazer-se temer do que sua própria paixão, nos conduz a este ponto, se ele não é subjugado pela
aJ?&r, se é preciso que haja somente um dos dois. Porque geralmente po- autoridade das leis e por uma força invencível;
de-se dizer uma coisa de todos os homens: que são ingratos, volúveis, Mas se se quiser saber por que uma naçlro domina, enquanto que a
dissimulados, inimigos do perigo, ávidos de ganho; enquanto tu lhes fa- outra está em pranto, quando a ambiçio reina igualmente em todas as
duas.
.
zes bem, estio todos contigo, oferecem-te seu sangue, seus bens sua vi·
'
da e seus filhos ... quando a necessidade está longe; mas quando ela se E por que a França permanece vitoriosa enquanto que do outro
aproxima, revoltam-se. E o Príncipe que se baseou somente em suas pa- lado toda a Itália é batida pelas tempestades de um oceano de dores;
lavras e se acha inteiramente desprovido de outras defesas, está perdi- Por que nosso país se vê reservado a só ele fazer a penitência de
do; porque as amizades que se adquirem somente com dinheiro e não todos os males que vfo semeando a avareza e a ambiçllo; ·
pela grandeza e nobreza da alma são compradas, mas com elas nfo se Eis por quê: desde que à ambiçfo se juntam 1:1ma alma orgulhosa,
Virtude e armas raramente vê-se engendrar tais males;
pode contar e, no momento oportuno, nio se toma possível utilizá-Ias;
os homens hesitam menos em negar a um homem que se faz amar do Toda vez que uma cüfàde, naturalmente levada à violência, acha-
se munida de boas leis e disciplinada;
que a um homem que se faz temer; ~!._q~~-~~r-~. ~~!é~_por um
vínculo de o_bJiiações que, pot.~m ~lwmmt.m.!l1§.- ,!. rompido em ~ contra o estrangeiro que ela sacia seu furor que suas leis e seu
rei proíbem saciar sobre si mesma;
ca~ oportunidade que se oferece~ de pr~~it~._P-~_ti~.~es ; !!!!! o_je·
mor. se mantém por um ~~o 4o .çastigo que jan.t~s-se abandona. Quase sempre então este mal esgota-se em seus muros: é no curral
Voltando portanto ao que eu disse, de .ser temido ~u amado, con- de outro que ela vai levar suas devastações com sua bandeira;
cluo que desde que os homens amam segundo sua fantasia e temem à Inversamente, toda cidade em que habitam homens cobiçosos mas
vontade do Príncipe, o Príncipe prudente e bem avisado deve-se ba- covardes está devotada à servidão, a todos os males, a todos os ultrajes."
sear sobre o que dele depende, não no que depende dos outros; ele deve (Capitolo de l'ambition. Pt. p. 93.)
somente aprender a não ser absolutamente odiado, como eu disse" . (Le No próprio interior da existência poütica, todos vivem, portanto, sua sin- .
Prince, Cap. 17: "Da crueldade e da clemência e se é melhor ser amado auJaridade e a subjetividade egocêntrica de "s~a natureza passional". Se cada
do que temido." Pl . pp. 339-340.) um a vive por si mesmo. isto nfo impede que esta individualidade, multiplica-
Um "nós" quase sobre-humano, inexplicável, pode existir, ao qual to· da por milhões de homens que·viveram no tempo do mundo, apareça como
dos acedem como a uma dimensão privilegiada de sua própria existência; mas wna reproduç!o no idêntico, aos olhos daquele que a observa na lústória.
sob esta politizaçlro subsiste, ao nível que lhe é próprio, tudo o que constitui Considerada no nível em que ela cornbate com a paixão, a história política
pode desde ent~o se apoiar u~ente sobre uma mecânica:

184 185
.
.. \'9;;:<'~~~·0~ ... .;

"Todo aquele que comparar o passado e o presente vê que todas orgulho e assumido maneiras populares que os tomavam suportá.eis
as cidades, todos os povos, sempre foram e ainda são animados pelos mesmo aos últimos dos cidadfos. Eles desempenharam este papel e ima-
mesmos desejos, pelas mesmas paixões. Assim·, é fácil, para um estudo gina-te os motivos visto que eles ~cerarn os Tarquínios. A nobreza,
exato e bem refletido do passado, prever numa república o que deve que os receava e que temia igualmente que o povo maltratado ni o se ali-
acontecer e entlo é preciso, ou se semr dos meios postos em uso pelos nhasse em seu partido, comporta-va-se com ele com humanidade. Mas
antigos ou, ao nio achá.J.os empregados, imaginar novos de acordo com quando a morte dos Tarquíníos libertou-os deste temor, ela manteve
a se~elhança de acontecimentos"." (Tir.e-Live. 1, 39. Pl. p. 467.) tfo menos cuidado com o povo quanto estaw mais tempo contida e nio

Na medida em que ela é o lugar do enfrentarnento perpétuo de uma vir-


e
deixou passar nenhuma oportunidade de afligi-lo. urna prova do que
adiantamos:'!~ os homens só fazem o ~~-~-(or~;_!!l~! .des~f?.S.~e ~~~
tude construtiva de universos políticos e de forças centrífugas que dissolvem tenham a escolha e a liberdade de cometer o mal ~-ll!.!!n~!ia~..Jli.O
os corpos ~letivos tio logo eles apareçam, a história da humanidade confun- deiiãni dê leru· Por toda a parte a turbulência e a desordem". (Tite-
~.
de-se com a história das "dissenções": Live. I, 3. Pl: -p. 389:f· -~--
" Se alguma coisa agrada ou instrui na história é o detalhe miúdo; ~ Aqui é preciso se precaver de um anacronismo: sem dúvida alguma é im-
se alguma lição ~ útil aos cidadãos que governam repúblicas é o conheci- possível falar, ao designar a obra de Maquiawl, de urna apercepçio "socioló-'
mento da origem dos ódios e das divislJes'*a funde que, tomados sábios p:a.. das dissenções entre os cidadlos, de que está, entretanto, a tratar inces-
pelo perigo de outros, possam manter a concórdi!'· (Histoiresjlorenti- . 1111~mente 7 • Primeiramente, o Jeitor terá notado, a análise de comportamen-
nes, Prefácio. Pl. p. 945.) __toa é exclusivamente ~tica ou política, jamais ela está ligada ao estatuto eoo-
n6rnico particular de cada grupo social;~ dito que os nobres '"renunciam a seu
Como se pôde examinar, o propósito de Maquiavel até aqw ostentava a
orgulho" ou "comportam-se com humanidade". etc. Em segWda, as forças so-
forma geral de um discurso abstrato sobre "a natureza humana". Nosso autor
ciais em presença são designadas, descritas, mais do que são definidas pelas
tem, portanto, um lugar na querela, de que é preciso bem dizer que ela tor-
condições de sua apariçio e de seu estatuto relativo: "grandes" ou "povo"
nou-se sem grande alcance: "O homem é naturalmente bom ou 6 naturalmen-
· ' nlo slo conceitos mas simples descrições, como os de "pobres" e "ricos'.a .
te mau?" Entretanto, alguns destes textos maquiavelianos que tratam desta
As melhores explorações ..econômica s" se situam nos relatórios oficiais
questio sfo de uma feitura que o aproxima, bem ao contrário, do que setor-
que o Secretário dirige i Senhoria sobre "as coisas de França" ou sobre as da
nará mais tarde a análise sociológica de comportamentos e de consciências.
Alemanha' ; tratam-te aí de "coisas vistas", de informações que devem ser
Nós já encontramos~ na obra do Florentino desenvolvimentos precisos sobre a
completas e a economia acha~e aí integrada a uma descrição de estilos de vi-
posição política dos "gentis-homens"; destacamos seu interesse : as "dissen-
da. Tio logo Maquiavel nos propõe textos cujo alcance é mais geral e cuja ín-
ções" nlo dizem aí mais respeito a individualidades abstratamente definidas.
tençfo concerne à história dos homens em seu conjunto, a melhor análise
Ele está situado mais longe, no que conceme à análise, do que numa frase co-
que ele nos oferece conceme ao estatuto social da classe já ultrapassada: a
mo: nobreza. Forças sociais determinantes em sua época ele só ~ata do ponto
"Em toda república há dois partidos: o dos grandes e o do povo". de vista moiãJ, Sem faZer Denh~~_ieJ~~.~~~ seU estatutO e~~nôDJ!C~IO.
(Tite-Live. l , 4. Pl . p. 390.) Sem d\fVidii 'ocoíiceito de "máxima consciência possível", que já evocamos,
poderia nos ajudar a compreender que nosso autor, por exemplo, jamais rela-
Por exemplo, no que diz respeito ao j.ogo de forças sociais na Roma cione seu ideal dà "Virtude.. com a situação burguesa cuja força é o dinamis-
antiga: mo empreendedor. Ele teria percebido entio que a política baseada sobre a
"Após a expulsio dos Tarquínios parecia reinar a maior unifo Virtude coletiva e concordante era uma contradição e nfo poderia determinar
entre o Senado e o povo. Os nobres pareciam ter renunciado a todo seu wn acordo uninime.

186 187
Nos textos em que analisa as "diferenças" sociais Maquiavel jamais as ~de ~~!: ~...!~~~: nes~_tempo e ~!meio de nut:nerosas precau-
percebe como constitutivas de clivagens que poderiam ser explicativas; por- ,a., a individualidade :·n~~" .6 neutralizada ~l.a..emerg!ncia.de uma. Jli·
tanto ele as tira imediatamente de ..verdades gerais..: iêDÍIÕ -~letiva. ..
A boa política deve, portanto, dar uma expressão positiva, centrípeta
"Quando a morte dos Tarq1línios libertou (a nobreza) deste te·
mor, ela manteve tio menos cuidado quanto mais tempo estava con-
oom respeito ao homem coletivo, às divisões e às dissenções. O texto mais
llllrúficativo a este respeito é sem dúvida alguma o que abre o livro 7 das His·
tida". E imediatamente: "1! uma prova. .. de que os homens• só fazem
t6ri4J florentinas:
o bem a força . . •" .
"Eu quero .. . segundo meu costume, começar este livro com a].
Mais significativo ainda 6 um texto destinado à Senhoria, relatório se-
gumas reflexões para mostrar como aqueles que acreditam na possibi·
creto concernente à milícia e que expõe por que não é preciso dar annas às
!idade de manter a união no interior de uma república se enganam ao ·
grandes cidades do distrito florentino. As razões que comandam deixar de· ,.. conceber esta esperança:
sarmados os centro~ cuja conquista sempre é precária e que reivindicam in·
Entre as numerosas rivalidades que agitam os Estados republica-'
cessantemente a independência de sua atividade são evidentes : ~ são data·
nos,-umas os prejudicam, outras lhes são úteis. As primeiras são as que
das, circunstanciadas, explicáveis por uma concorrência hic et m,4nc:
produzem os partidos e os partidários; as segundas si'o as que se pro-
"Não foi julgado oportuno escolher vossos referentes, por mais longam sem perder esta característica. O fundador de urna república,
favoráveis que eles sejam ao recrutamento de uma infantaria porque o não poden<_!o pofta!lto aí impedir a8 rivalidâdes, de~e -âô-meiios· irnpe·
partido nfo estaria seguro para vossa cidade, sobretudo nos pontos do e
~~}~de se tomarem facçõe~:. ne; ssário -p;.:;;i;t~'õi)$ê[Vãr que OS Ci·
Domínio em que se encontram grandes núcleos de homens suscetíveis dadãos têm nesta forma de governo duas maneiras de fazer nome e de
de fornecer uma cabeça para toda a região. . ." adquirir crédito, ou pelos meios públicos ou pelos meios particulares.
Chega-se a isso pelos meios públicos ou pelos meios oficiais: ganhando
Segue imediatamente o comentário:
uma batalha, conquistando um lugar, dedicando-se a uma missão com
"porque tais são as disposições das pessoas do Toscana* que ape· zelo e habilidade, dando à república conselhos sábios e seguidos de um
nas qualquer um saiba que pode viver de seus próprios recursos ele não efeito feliz. O segundo meio de chegar a isso 6 pôr-se a serviço de um
quer mais ouvir falar de senhor. .." (Relatório sobre a instituiç!o da e de outro, proteger simples cidadãos contra a autoridade dos magis-
milícia. Texto já citado, mais longamente e de um outro ponto de vista, trados, dar-lhes socorro em dinheiro, impulsionar-lhes a honras que
no cap. "A nação, crença e força", no final .) eles não merecem e captar o fawr popular pelas liberalidades e jogos
públicos. Daí nascem as facções e o espírito de partido. Tanto a consi-
deração adquirida por estes meios é prejudicial quanto é útil, quando
é estranha às facções porque então está baseada no bem público e nfo
e claro que, aos olhos de Maquiavel, a política 6 incapaz de engendrar no interesse pessoal". (Pt. p.l288.)
duravelmente um "homem novo" nem de "mudar a vida" no sentido em que
Já 11 encontramos em Maquiavel o que Gramsci chamou de jacobinis-
estamos habituados a pensar uma boa parte de nossa literatura. No Florentino,
mo: o recrutamento de uma milícia toscana pertencia evidentemente a esta
uma ~~pçã'_o~~l!li!i.fi!ca da"polí~c.a alia-se a um naturalismofiXiSiã no que
~lo da.~~i~~~aliãêional qu~~ ~o.~~ará mais tarde, mutatis mu-
cÕnCeme ao homem. _in~vidual. Exceção'~Õ temPo ~"houve milhares de prln·
cípês,.. contarn'.:SC 'os sábios"), incompreendido em muitas considerações por
seus contemporâneos, o bom Príncipe conquista no tempo uma sobre-huma-
--
trmdis, na obra de..Robespierre
- ... de~· SaintJust.
. .e na ...
~ 6 ~9essário s.upr:iJ!l~ !<?4os os corpos intermediários,
- -·- - ---e·~·o. ESta·
Entre.. o indivíduo
todos os "grupos de
. . . ......... pressio" sOb Õ perigo da divisio e da "facçi~;; p;rtidáriã. QUe se cÓmpare
~-·- ··- . ···-
-~ ... ........ ·· ·· ·- ..,.....
188 189
portanto o te~o que se acaba de ler com o seguinte, que não é da mesma "O meio de que a natureza se serve para levar a bom termo o
época nem mais da mesma feitura pois trata-se de um texto de lei francesa, desenvolvimento de todas as disposiçÕes do homem é seu antagonis-
votado em 17 de junho de 1791, sob o nome de seu redator principal, Isaac mo~' no interior da sociedade, assim como este é, entretanto, no fmal
Le Chapelier: das contas, a causa de uma ordenaçio regular desta Sociedade. - Eu en-
" . .. Artigo 2: Os cidadãos de um mesmo estado ou profissão, os tendo aqui por antagonismo a insociável sociabilidade dos homens, isto
empresários, os que tam loja aberta, .os operários e companheiros de é, sua inclinaçlo para entrar em sociedade, inclinaçfo que é, entretanto,
urna arte qualquer não poderão, quando se encontrarem juntos, no- duplicada de uma repulsão geral em fazê-lo, ameaçando constantemente
mear-6e nem presidentes, nem secretários, nem síndicos, ter registros, desagregar esta sociedade. O homem tem uma inclinação para se asso-
to~ decisões ou deliberações, formar regras sobre seus pretensos in- ciar porque num tal estado ele se sente mais do que um homem pelo de-
teresses comuns. senvolvimento de suas disposições naturais. Mas ele manifesta também
e
Artigo 3: proibido a todos os corpos administrativos ou muni- uma grande propensão em se separar (isolar-se) porque ele acha em si
cipais receber alguma mensagem ou petição sob a denominação de um ao mesmo tempo o· caráter de insociabilidade que o impulsiona a querer
estado ou profiSSão, de a isso dar alguma resposta; e é-lhes ordenado tudo dirigir em seu sentido; e, deste fato, ele conta com encontrar resis-
declarar nulas as deliberações que poderiam ser tomadas desta maneira tancias de todos· os lados, do mesmo modo que se sabe inclinado por si
e de velar cuidadosamente para que não lhes seja dada nenhuma se- mesmo a resistir aos outros. Besta resistência que estimula todas as for- "·.."
qüência nem execução..." 12 ças do homem, leva-o a ultrapassar sua inclinação para a indolmcia e,
sob o impulso da ambição, do instinto, da dominação ou de cupidez, a . ··.
A seqüência imediata do texto de Maquiavel citado mais acima é um traçar« um lugar entre seus companheiros que ele atura de má vonta-
bom resumo do que pensa nosso autor a respeito das relações que o univer- de mas de que nio pode se passar. O homem então percorreu os pri·
so político mantém com a singularidade das ''facções": meiros passos que, da ignorância, o levam à culturá14 " . (Emanuel Kant,
op. cit.• reproduzido, entre putros opúsculos, sob o título La Philoso- :: .
"Certamente não se pode impedir que nasçam certos ódios e dos ~

mais violentos entre os grandes cidadfos de um tal Estado; mais à falta phie de l"histoire. Col. "M.édiations". Gonthier edit., 1965.) .'
1·•••

de partidários que os sigam eles não podem prejudicar o Estado; eles


Se nossa preocupação é a do Estado, é preciso, portanto, que o antago-
são, ao contrário, obrigados, para triunfar sobre 'seus inimigos, a servir
nismo "natural.. entre os cidadãos nã'o possa encontrar um modo de expres-
o Estado, trabalhar para sua grandeza e todos se observam uns aos ou-
do política que seria imediatamente facção ou grupo de •'partidários". Mas a
tros afunde que ninguém ultrapasse os limites de seus direitos". (lbid.,
ausência de expressfo política deixa subsistir o antagonismo. Convém abrir-
infra.)
lhe um caminho regular, controlado pelo Estado, e que deverá revestir o es-
Por um "ardil da política", a ambiçllo individual, sempre a pennanecer tatuto de um mecanismo incorporado ao funcionamento do corpo social. Coe-
centrífuga e dissolvente, pode se achar desviada de seu fun consciente e ope· . . dncia em Maquiavel: encontram-se aí, em textos cujo alcance é, todavia, ge-
rar na conservação do corpo político. Quem não pensa num texto análogo, de ral, muito longas passagens que nos falam da "acusação entre cidadãos"; por-
um autor que foi ele também um político jacobino, que escrevia também so- que se espera portanto encontrar esta acusação relacionada à ..salvação do
bre as relações do univetsal e da individualidade e que considerava a "idéia Estado":
de uma hist6rill univeT'$/Ú di> ponto de vista cosmopolita"? Uma citaçlo, de
que se desculpará' facilmente o tamanho ao considerar o que ela nos traz para "Estes que são prepostos na proteção da liberdade de um pais não
o conhecimento de nosso Maquiavel, nos revelará esta analogia: podem ser revestidos de uma autoridade mais útil, mais necessária mes-
mo do que a que lhes dá o poder de acusar os cidadãos diante do povo,
diante de um con~lho, de ilm magistrado, e isto na oportunidade de

190 191
qualquer golpe dirigido ao Estado. Esta instituiçfo tem duas vantagens ..
-~
um vício óa Constituiçio, a acusaçã'o nlo ~ admitida, que mais se utiJi.
extremamente preciosas: a primeira é a de impedir, pelo temor da acu-
zam da calúnia.
sação, os cidadãos de nada tentar contra o Estado ou bem faz!.Jos pu-
Assim, é dever de um legislador dar a todo cldadio a faculdade
nir no campo do atentado cometido; a leSUDda, de oferecer uma saída
dele acusar um outro sem ter nada a recear de sua atitude. Esta precau-
nonnal aos ódios que, por·uma razão ou por outra, fermentam nas cida-
ção, uma vez tomada, que em seguida se persiga com rigor os caluniado-
des contra tal ou tal. Se estes ódios não acham ponto de saída normal
res; estes nlo poderão se queixar da punição; teriam todos os meios
eles recorrem à violência, ruína das repúblicas. Nada1 ~ contrúfo, tor-
de acusar publicamente aquele que eles caluniaram em segredo. O erro
nará un.ta R~~~U~_f~-~~~ como canaliz.ar,_~r a.!'iàl~. pela
lei, os humores que a agitam ... do regulamento sobre este ponto conduz ãs maiores desordens. A ca-
lúnia irrita os homens e nlo os corrige; estes que ela fere pensam em se
ON.O o o _ __

vingar e todos os discursos semeados contra eles lhes inspiram mais ódio
Que nestas ocasiões um indivíduo seja lesado, que mesmo se co- ,.
do que temor." (Op. cit., PI. p. 403.)
meta a seu respeito uma injustiça, o Estado nlo experimenta senfo pou-
co ou nada de desordem. Com efeito, esta injustiça nlo é o fato nem de A orde~_~lítica encontra. assim a funçfo que a_~~ife~!a_ '!as relações
uma viol8ncia privada, nem de uma intervençã'o estrangeira 15 , duas cau- entre particÜiares: a jurisdição. Ela se substitui aos impulsos particulares na
sas poderosas da ruína da liberdade, mas unicamente da força pública e ÇarlÇTo de uma justiça distributiva. Esta justiça está baseada na substituiçã'o
daa leis, contidas em limites que elas nlo ultrapassam a ponto de derru- do Estado em cada indivíduo, nas relações que este indivíduo mant~m com os
bar a república". (Tite-Live. I, 7. PI. pp. 399400.) ·outros. Para todos, o~~~.? !~~a-se um_!l re,p!_e~n~ç_ão_<!C?..S~ mes~o, '~os
. ·olhos dÓs-·outro8'·~ -.ÕÜpla conseqüênçia: a relaçlo interindividual se !Dediat!Za
Enquanto a acusaçã'o é um comportamento suscetível de uma definiçlo
político-jurídica e uma expressão normativa do ódio, a calúnia é uma relaçlo (lpeía mediação do ·Estad_o .<lue se ..pede vingança"); a lde~~~~~-d~-~~m
representitívà-(o Estado que representa todos é o mesmo p~a t?_dos) ~~~a
interindividual "selvagem", isto é, que escapa aos canais jurídicos controla-
üõidãde do êorpo social._Pode-se conceber assim "quanto é perigoso para uma
dos. ~por isso que, após nos ter explicado "quanto as acusaç&s sfo necessá-
repÍlhlica ou para um Príncipe não 'Vingar as injustiças feitas ao público ou aos
rias numa república para aí manter a liberdade" (Tite-Live. I, 7, de que se ex- particulares". (Tite-Live. 11, 28. Título.)
traiu o texto precedente), Maquiavel enuncia (1, 8): ·'Tanto as acusações slo
úteis numa república como a calúnia lhe é perniciosa... .... . vê-se até que ponto todo Príncipe, toda república, deve evitar
fazer .. . injúria nro somente a uma naçfo mas mesmo a wn particular;
". :.: não existe melh~r ~~-(para reprimir a te~.a ~al~a) do porque, que um homem seja gravemente ofendido, seja por um Estado,
g.~e autorizar a acu~o: tanto_este meio I~ é útil J!uma ~~6blica, seja por um outro homem, e que ele nfo receba a r~paração que deve es-
como a cal6nia lhe é funesta ...A acusação e a calúnia díferem em que perar, se ele vive sob uma república, a própria ruína de sua pátria, de·
estãill't'imãnio tem necessidade nem de testemunhas,rnem. de cÕnfion- vesse ela ser a seqüência·de sua vingança, não o fará deter em seus proje-
tações, nem de circunstâncias exatas para ser bem s~da e persuadir. tos; e se ele nasceu sob um Príncipe, por pouco que ténha a alma gene-
Qualquer indiv(duo pode ser caluniado por um outro, mas todos nio rosa, nlo ter4 descanso enquanto não seja vingado, mesmo aí se prevê
podem ser acusados, as acusações podem ser acolhidas tendo necessi- sua piópria perda.
dade de ser apoiadas em prOvaS as mãi$
mãnifest& e de Cir~~cias
Não existe exemplo mais autêntico 16 e mais impressionante desta
que ..l!te ~emonstrem a_~er<!_!~ç-" As- ~~~;ç~~ si~ le~~~-·diante dos
verdade do que o de Filipe, rei da Maeedônia. Ele tinha em sua corte
magistrados, diante de um povo ou de conselhos; a caltínia se exerce ou
um jovem homem nobre e belo, chamado Pausânias. Attale, um dos
nas praças ou sob os pórticos e slo sobretudo os Estados em que, por
. principais oficiais do rei, se apaixonou por ele; tendo várias vezes perse-
guido-o para satisfaZer sua paixão e nele tendo encontrado somente re-
192
193
pulsfo, decidiu-se a empregar a violência e a perfídia mesmo para levar ço, todos aqueles que ~tavam presentes no Conselho Maior escreves-
IClD o nome dos turbulentos que lhes parecessem bons para o exJlio;
a cabo seus desígnios. Em conseqüência, deu um grande almoço onde
Pausânias foi convidado assim como vários outros senhores da corte . faz-se a leitura de todos estes escritos e todo turbulento cujo nome sai
Quando o vinho e a boa recepção animaram ou embriagaram os con- dez vezes ou mais é posto em votaçfo. Se os três quartos dos votantes
vivas, ele fez raptar Pausânias, conduzi-lo a um lugar retirado e nfo se do contra, ele se vê relegado a três anos fora do país. Esta lei era mui-
contentou somente em saciar sua luxúria mas levou a ignomínia até a to bem concebida. .. Ela é, entretanto, insuficiente porque os jovens
entregar este jovem homem à brutalidade de vários outros. Pausânias de raça nobre, ricos e bem aparentados não a receiam. . . (Swnário
se queixou a Filipe que lhe deu durante algum tempo a esperança da coisa pública em Luca. Em Toutes les lettres de Maquiavel, tomo 2,
p.429.)
de ser vingado; e, entretanto, longe·de realizar suas esperanças, nomeou
Attàle governador de uma província da Grécia. Pausânias nfo pôde ver Trata-se agoxa de constituir uma milícia?
erguer-se em honras um homem que merecia uma punição; toda a sua
indignação se voltou não contra aquele de quem havÚJ recebido o ultra· "Os violentos podem lesar a Cidade de duas maneiras, quer por·
je mas contra Filipe, que se recusara a vingâ·lo*.Por ocasião de uma SO· que eles se revoltem e se entendam com o estrangeiro, quer porque eles
lenidade, numa manhã em que Filipe celebrava as núpcias de sua ftlha ofereçam fwtestamente 19 seus serviços a ur_n magistrado ou a um par·
com Alexandre, rei de Epiro, no momento em que ele se conduzia ao ticular. Mastemos a aliança com o estrangeiro, que não 6 de temer de-
templo no meio dos dois Alexandres, um, seu genro, outro, seu filho, vido às regiões supracitadas de seu recrutamento. Quanto aos serviços
Pausânias o apunhalou." (Ibid., :Pt. pp. 594-595.) sediciOsos a um magistrado, é necessárió regulamentar as coisas de tal
maneira que eles tenham de depender de vários superiores, e para dis-
De uma maneira mais direta, a acusação pública deve sei vigilante no tinguir os diversos superiores de que eles devem depender parece-me
que diz respeito ao comportamento dos ..ambiciosos". Esta preocupaçlo que deveriam se reconhecer tr&: o chefe que os comandará em tempo
nós já notáramos quando fizemos contato com a pequena república floren· de paz em casa, o chefe q~ os comandará em tempo de guerra e o che·
tina: notamos que ela era constante desde os ordinamenti di giustizÚJ. Ma· fc que os recompensará. E como seria perigoso que eles reconhecessem
quiavel tem da delação uma concepção muito próxima da que existia nos estas três autoridades num único chefe, seria bom que este fosse o novo
direitos da antiguidade 17 • A partir da "coisa pública em Luca", ele conce· magistrado desta instituiçlo que os comanda em casa; que fossem os
be algumas observações gerais sobre a conservação das repúblicas: Dez que os comandam na guerra e que fossem os Senhores, os Colégios,
"~ ... uma boa regra que seja o Conselho Maior 18 que exerce os Dez e o novo Magistrado que os recompensassem e que os remuneras·
a autoridade sobre os cidadãos porque aí esti um freio sério para con· sem. e assim que eles, com o tempo, acabariam por nlo mais ver senio
ter aqueles que desejariam se elevar muito:_O que não é uma boa coi· confusamente seus chefes para servir o bem público em vez de servir um
sa é que nlro haja além disso uma magistxatura de alguns cidadãos, diga· particular. . ." (Relatório sobre a instituição da milicia. Em Toutes les
mos quatro ou cinco, que tenha o poder de ser severa, porque a au- lettres de Maquiavel, tomo 2, :Pt. pp. 70·71.)
sência de um ou de outro destes dois freios na república permitem aí
as desordens: a autoridade do grande número contendo a ambiçlo dos NOTAS
grandes e dos ricos, a do pequeno homem intimidando a multidão e
contendo a turbulência dÓS jovens; . .. Luca ... na ausência desta ma· 1. Que a atividade natural nlro possa ter outro fim do que o lucro e a apro·
gistratura que devesse pôr os freios a este~ jovens ... votou há muitos 'priação de bens; que o lucro nio possa ser definido senão em termos indi-
anos uma lei dita a ,ei dos dissipados', o que significa turbulentos e de· Ylduais é uma constante no pensamento burguês. De onde os sábios cálculos,
vassos: esta lei decidiu que duas vezes por ano, em setembro e em mar- eobretudo no século XIX, sobre o "egoísmo" que se desenvolve e que se com

194 195
completa em "altruísmo" pela mediaçfo do "ego-altruísmo"'. Para a estética ~ttos explicativos mas simples descriçôes. Pode-se ser "pobre" porque se
ela só pode aparecer como "finalidade sem fun".
2. Ao tratar de moral, Descartes, por exemplo, escreve de wna maneira aná-
loga: "Minha terceira nWóma seria de sempre procurar me vencer mais do que ·
a Fortuna e a mudar meus desejos como a ordem do mundo; e gerabnente de
a::
- ' desempregado. Os verdadeiros conceitos sempre sao ~_tcatlyo~~ n!o
ti vos; eles !eproduzem as articulações ven!aqeflas ~- topç>Jóg!cas ~~.!~al.
a aeneralidade vaga, nos destaca Marx, com a palaVra "trabalho": ao
deUanár ao mesmo tempo o ato do engenheiro e o ato do escravo ele é cien-
me acostumar a acreditar* que não há nada que nfo esteja inteiramente em Wloamente inútil se não se faz dele uma análise histórica. O mesmo aconte-
nosso poder como nossos pensamentos..." (Discours de la méthode, m .) • oÔm o nlo-trabalho: o do desempregado ou o do aposentado.
Analogia: a vontade e a intelig~ncia são postas na mesma relaçlo em Descartes t. Encontrar-se·ão extratos destes textos (Relatório sobre as coisas da Fran-
e em Maquiavel, em problemas evidentemente diferentes. Para Descartes, a in- fl, lU e IV; Relatório sobre as coisas da Alemanha, início) na parte antoló-
teligência·mbe bem que existe um poder efetivo do homem sobre a natureza; ~,aob a rubrica ''Modelos e antimodelos".
mas, se se trata de querer ser feliz e tranqüilo, é preciso se esforçar por acre- 10. Por exemplo: ''Nas repúblicas, os homens que exerceram somente ofí-
ditar o contrário. ~ara Maquiavel; tudo o que se sabe do_homen:!..~9.ue ele 6 t&ol manuais, quando se os encarrega de uma magistratura, n!o são capazes
natur~~te_ _~o~~!l.•. oposto ã le~.~Ao querer estabelecer um Estado·, é pre- de comandar como chefes porque somente aprenderam sempre a servir.
ciso, portanto, saber que é intelectualmente ininteligível que se estabeleça Tlmb6m seria preciso escolher, para comandar, homens que jamais obede-
.wn vivere civile do homem. Se isto triunfou um tempo, uma ''razao escon- •ram, tanto a reis ou às leis: por exemplo, os cidadãos que vivem de sua ren·
dida" deve ser postulada para dar-lhe conta. da". Algumas linhas mais adiante: "Deve-se exercer seus súditos à milícia, de
3. A tradução dada desta passagem pela Pléiade (pp. 388-389) é muito apro- 17 a 30 anos, após o que, se os envia ao lugar de residência; passada esta ida-
ximativa, inexplorável. O texto italiano está em OperediNiccolcMachillvel/i o homem torna-se indócil e recusa à obediência". (Textes épars, reagru-
(Mursia Edit., 1966, p. 135.) Beste texto italiano que aqui está traduzido. fldotemPI .pp. 718-719.)
4. Ver a este respeito livroU. Capítulo "Natureza humana e história dos ho- U. Sobre o ·~acobinismo" de Maquiavel, cf. " A naçfo, crença e força",
mens".
,.139 e ss. "'
S. Cf. Uvro ill. Capítulo I, "A Virtude". A análise do paralelismo dos "gen- 12. O texto completo da lei está reproduzido em Documents d'histoire,
tis-homens" é efetuada também por Guicciardini. No que toca a Maquiavel, tomo I, Coleçlo "U", Ed. Armand Colin, pp. 52-54.
o mesmo capítulo comporta citações extraídas de Tito Lívio, I, 55, aliás, 13. Todas as palavras grifadas nesta citação o são por Kant.
reproduzido em sua quase-totalidade na parte antológica. 14. AJ teses maquiavelianas e kantianas evidentemente não são id~nticas. No
6. O vocabulário ''sociológico" de Maquiavel está evidentemente muito pou- ;tnaamento de Kant, é o desenvolvimento do homem que a natureza busca
co fwdo porque as palavras n!o designam o que nós chamaríamos de con- Jlla "insociável sociabilidade" deste último; para fazê-lo, a "sociedade ci-
ceitos. No conjunto, quando o autor fala de "multidlo", trata-se da multipli· d" 4 wn meio, ela é o lugar "que administra o direito de maneira universal".
cação de individualidades; "o povo" designa seja "a plebe·', por oposição aos fira Maquiavel, a realização do Estado .é, ao con~o. uma exigência primei-
"grandes", seja a coletividade de homens quando sua existência tomou-se po- . . nlooompree~didã co_mo "m~io" com vistas a uma realiza~ posterior.
lítica, determinada em ''república" ou em "principado". o-qúe fiZ a finalidade natural em Kant é a polÍtica (objetl.Vo-últiino e ao mes-
7. Sem dúvida é por isto que nio é muito justo in titular, como o faz Mou- 110 tempo dado primeiro) que a executa no Florentino.
nin (Machiavel, coleção ''Philosophes", P.U.F.), uma parte de textos esco- U. Cf. no mesmo capítulo,' mais abaixo: "Todas as vezes que se vêem forças
lhidos no fim de seu volume: "A teoria maquiaveliana das classes" e "A his- IIUIJiieiras chamadas num Estado por wn partido, pode·se atribuir esta de-
tória deve estudar as lutas entre as classes". A "c1àsse social", como concei- . 'IOfdem ao vício de sua Constituiçao; pode-se assegurar que lhe falta, no cír-
to, é de aparição mais tardia. tulo fechado de suas leis, a escapatória que daria livre curso ao acesso de mal-
8. Ricos ou pobres, grandes ou povo, como se compreender~ depois, nlo são dade tio natural aos homens. Remedia·se este limite abrindo·se às acusações
196 197

.li
um tribunal bastante numeroso e dando-lhe formas bastante solenes para f•
zê-lo respeitar". (Pl. p.401.)
16. De fato, ~ negócio da sucessão de Filipe é muito mais complexo e, de
todas as maneuas, ainda obscuro. Os textos que utilizamos, eu já 0 disse, slo
citados para compreender Maquiavel e nfo para compreender a antiguidade.
17. Sobre estas questões, cf. üvro I, capítulo ''As instituições e os interesses \
políticos em Florença".
18. Assembléia de 70 cidadfos: ..Câmara Baixa".
19. Funestamente e não varonilmente.

Capítulo3
Política e juízo mo~

Es~ aí muito certamente a questio. Aquela que, na experiência das in-


quietudes de cada um, é 1 prin)eira; para muitos, a única questio. Questão
em vista da qual sem cbmda a màior parte dos que terfo aberto este livro em-
preenderfo 1 sua leitura: isto é próprio, próvawlmeote, de todos os escritos
de Maquia9el e de todos os comeo~os sobre Maquiavel. Sobrevoados, os
c textos muito "técnicos", muito "especializados", muito "históricos" ou,
decepçlo maior ainda, muito "teóricos", para chegar à obsecante interroga-
çlo sobre os fins e os meios. No horizonte das reflexões e das escritas, inces-
santemente repetida e, portanto, imóvel, a danaç!o da política: marca infa-
mante do fracasso? Sinal manifesto de seriedade?
Curiosa, se se pensa nela, esta famosa questão : tal qual nos é posta pelo
autor do Prlncipe, ela supõe referSncias. Evidentemente ela nos fala da For-
tuna, da Virtude, do homem maquiaveliano, da hístória. Mas, por outro lado,
ela domina de tão alto tudo o que se pode dizer de inquietante. sobre os po-
líticos que apresenta, por sua urgência, wn caráter de imediatidade. Escapada
do universo maquiaveliano, viveu uma vida autônoma. Sobreviveu a todos os
requisitos que a fundavam em seu nascimento e, quando se aprendeu a falar
do homem em outras perspectivas do que a da Virtude oposta a uma Fortuna,
198
199
o problema dos meios e dos fins políticos permaneceu idantico, aparecendo vezes contra a sua vontade e às "~ezes cedendo a esta atroz fascinaçlo da Qr.
como questão eterna. Imediatamente, se está aí o que nos resta de Maquia11el dem que pretende tanto sujeitar os homens como as coisas, segundo a regra
quando se ignora todo o resto, para nossa vida cotidiana, assim como para a da eficácia tknica e da boa adminlstraçfo. .." 3 •
consciência que devemos ter de nossa humanidade coletiva, 6 sem importância Globalmente, no que diz respeito às relações da moral e da política, os
ignorar todo o resto. O que nos resta é uma afumaçlo nua, separada das con- textos de Maquiavel nlo slo equívocos. Deste ponto de vista, poucas coisas
dições e das teses em função das quais, historicamente, ela nos velo de Floren- foram ditas, mas ditas constantemente e ditas claramente, a fun de permitir
ça: a política pode ser uma moral coletivamente assumida e vivida ou, na ver- que elas sejam instantaneamente ainda ditas, e repetidas, sob o nome do ve·
dade, ela é, sem alternativa possível, outra coisa, irredutivelmente? De uma lho Nicolau e isto com uma força muito maior visto que o escândalo lhe é
pequena casa de Sant'Andrea in Percussina, sem data, pelo caminho mais dire- mais reconhecível e melhor estampado. o pensamento político do Florenti·
to , algo no$ atinge no mais profundo de nossos juízos políticos 1 • no, este é equívoco"; é verdade que dificilmente se pode considerá-lo como
Façamos então nossa, embora por razões diferentes das suas, esta con- ' uma obra formando sistema: os avatares de sua vida, as fontes de suas refle·
fissão de Raymond Aron 2 : "Quem quer que escreva, no alto de uma página xões, os homens que ele tew de combater e aqueles que ele quis servir, as
branca, o nome de Maquiavel, nlo pode se livrar de uma espécie de angústia; forças sociais que determinaram o conteúdo de sua consciência foram 'neste
após centenas de outros, escritores e soberanos, historiadores e filósofos, poli- ponto diversas como a sua perspectiva política jamais foi una. Mas, no pró·
ticólogos e estrátegas, moralistas e teólogos, ele também vai interrogar a esfm- prio interio( desta diversidade e destas contradições, sua atitude sempre foi
ge, o diplomata a serviço de Florença, o patriota.italiano, o autor cuja prosa, a de um político; sua intenção foi mesmo tão perfeitamente política que ela
em cada momento límpida e globalmente equívoca, dissimula as Intenções de constitui um extremo insuperáwl em seu gênero. O qtie dizer?
que as iluminações sucessivas desafiam há quatro séculos a engenhosidade dos Comumente, nlo se chama maquiavelismo nem o liberalismo nem seu
comentadores: ele também vai fazer uma escolha que ignora que outros fue- oposto; é outra coisa que se designa com este nome. Reduzido a suas grandes
ram antes dele ..." linhas (que ao mesmo tempo são suas linhas de força, efetivamente), o pen·
E abandonamos toda pretenslo a qualquer originalidade na interpreta- sarnento de Maquiavel poderia sem dúvida alguma ser assim enunciado:
ção do maquiavelismo, esta atitude que tem tio pouca necessidade deste ho- ... - existe uma ordem de rea4ídades human~ ab~lutament~ if!e_dut_ível
mem, deste historiador, deste·filósofo também que foi- em seu tempo e para o
·..
.e
.~. qualqueroutià que se chama política. Esta o_rdem ~ _coisas pol!ti~ se
nosso - o Secretário. Afmal, a questão colocada 6 muito mais direta, muito determina nos Estados.
mais constitutiva da relação vivida todos os dias entre o homem e sua política; - esta realidade que é a política, um único princípio a constitui: o po·
é em seu centro que todos se instalam, espectadores ameaçados, metade con- der. O Estado não é, aos olhos de nosso autor, o lugar de enfrentamentos le·
sentindo e metade aterrorizada : como poderia parecer novo um tema tão alu- gítimos. Ele é o lugãr do poder, isto é, da lei. O poder que aí se 'exeree não
cinante? Nem mais infortunada, nem mais poupada que as outras, a geraçlo · é mesmo o signo de uma vontade de potência: isto abriria o caminho, que o
de homens que teve a pobre escolha entre Hitler e Stálin, que viveu nomes- Florentino pretende ser fechado cuidadosamente, ao contrário, a uma psico·
mo ano Guernica e o Grande Expurgo... Infalivelmente, menos ativa em se logia da paixão de reinar, de um estudo das necessidades, em resumo, de uma
engajar, mais globalmente consentidora, mais rebelde com relaçlo às poli· antropologia orientada em direção ãs individualidades. O poder maquiavelia·
ticas instaladas, a geração que se seguiu e os homens mais velhos que sobre- no 6 terrivelmente presente mas ao mesmo tempo abstrato, separado de tudo
viveram: "Gerações foram habituadas a se representar a sociedade por ima- a partir de que se estaria tentado a fundá-lo. A única fundação deste pensa·
gens brutais e contrastadas: a Ordem contra a Desordem, a Liberdade contra a .. mento 6 a tomada de poder .
Tirania; os campos estavam defmidos; a luta era clara. E, de resto, produzi- - uma conseqüência, capital para o que nos conceme agora: .~ -~~f­
ram·se deslizes: "os 'homen~ da ordem' mostraram que podiam ser fascina- cio do poder obedece a uma q~a~~~~~ al!~~n-~_a. No nível em que ele é
dos pela pior desordem•.. Os homens de liberdade recorreram ao terror, às Vivido - isto é, exercido Oll 'sofrido - , o direito político não requer nenhu-

200 201
preciso julgar, Maquia...el dela afirma duas coisas. A primeira concerne à apa·
ma referência ao que quer que seja de exterior a este próprio exercício. Nada
riçA'o da política:~ a depravaçlo, dada corno históriea 6 , dos costumes huma-
é juiz da política senão o fr~s~o p_olítico. As próprias paixões (entende-se
nos que introduz o divórcio entre a política e a ética. A segunda destas afrr-
que todos aspiram a reinar) sio apreciadas, não pelo de que elas são sinais e
mações consiste numa valorização do político com relação à infecunda per-
pelas necessidades que elas manifestam ao exasperá-las, mas pelas traduções
. rnanência de uma ética impotente.
de que elas sio suscetíveis no exercício do poder:
.Precisemos: primeiramente, sobre a base intelectual de urna história
"Eu não acreditei dever deixar este tema {das conspirações) sem de que a tendência é a decadência, ~ na verdade o afastamento dos homens
tratá-lo, tanto as conspirações são perigosas para os súditos e para os com relação à "retidão primitiva dos c.ostumes" que introduz um divórcio
príncipes. Elas mataram e destronaram mais soberanos do que as guer- entre a eficácia poütica e o dever-ser da ética. A especificidade da política
ras abertas. Com efeito , poucos indivíduos estão em condição de fazer se instalou no espaço do "dever-ser" deixado livre e tornado deserto pela que-
uma guerra aberta a um Príncipe mas todos estão em condição de cons- •da da pweza7 •
pirar. Não existe empresa mais perigosa e temerária para os homens
".. . a pObreza e a necessidade tornam os homens engenhosos
que se arriscam a isso: os perigos os cercam de todo lado. Também
e... as leis fazem pessoas de bem. Lá onde o bem vem a reinar natural·
acontece que muito poucos tenham sido bem sucedidos numa infinida-
mente e sem lei, pode-se passar sem lei; mas desde que venham a expi·
de dos que tentaram. Que os príncipes, portanto, aprendam a se prevenir
rar os costumes da idade de ouro a lei toma-se necessária•." (1ite-Live.
de conspirações e seus súditos a se engajar nelas com mais circunspec-
I, 3. Pl. p.389.) .,
ção, ou melhor, a saber viver contentes sob os senhores que a sorte lhes
deu. Eu vou tratar este tema com alguma extensão, a fun de nada omitir Este mito da Idade de Ouro é a mat~ria de textos de que o leitor conhe-
do que poSSil servir para a instrução de uns e de outros* 5 • (Tite·Live, ce a temática geral: pobreza e pweza dos costumes fizeram com que a polí-
111, 6. Pl. p.617.) tica do Estado e a moral do cidadão coincidissem.
Portanto, sempre se encontrará, paralelamente às 'pesquisas nas quais ''Que um Príncipe então lance os seus olhos sobre o tempo que
Maquiavel relaciona a política a algumas condições teóricas - pesquisas, aliás, se passou desde Nerva at~ Marco Awélio, que ele compare àqueles que
limitadas por tudo o que dissemos até aqui - um discurso da imanência, onde vieram antes e depois deles, e que ele escolha em seguida a época na qual j
o fato político somente é referido a si mesmo e a seu resultado. Esta imanên- teria querido nascer e na qual teria desejado reinar. De um lado, sob os

j
cia faz o objeto de algumas explicações; seria insuficiente, por conseguinte, bons impeNdores, ele verá um Príncipe vivendo na mais perfeita segu-
ver aí wna opção que seu autor de forma alguma pensaria explicitar, ainda rança no meio de cidadlos sem alarmes, a justiça e a paz reinando no
menos a confessar. mundo, a autoridade do Senado r.,speitada, a magistratwa honrada, o
Façamos imediatamente portanto a constatação que se impõe no que cidadão opulento desfrutando em paz de suas riquezas, a virtude con-
toca às relações maquiavelianas entre moral e política: tanto como não se en- siderada e por toda a parte a calma e a felicidade, por conseguinte, tarn·
contra nos textos uma explicação qualquer (psicológica, sociológica ou "his- bém toda animosidade, toda licença, toda corrupção, toda ambição ex-
tórica") concernente à aparição no tempo da Vutude política, não se encon- tintas. Ele ...erá esta idade de owo em que cada um pode dizer e manter
tra aí o que quer que seja que ponha as apreciações morais numa perspectiva sua opinifo; ele verá enfim o povo triunfante, o Príncipe respeitado e
histórico. A política está no tempo; o juízo moral está fora do tempo. Não brilhante de glória, adorado por seus _súditos felizes.
são de modo algum o bem e o mai que estão sujeitÓs ãs ap~eciãÇões circuns- Por outro lado, que ele examine um por um os reinos destes
tanciadas, ~ bem mais sua relação com a categoria do político. Há no Secretá· outros imperadores; ele os verá ensangüentados pelas guerras, dilacera-
rio coisas que "valem" e outras que "não valem", fora das oportunidades da d.os pelas divisões e todos cruéis também em tempos de paz; tantos
Fortuna e das atuações políticas datadas. Mas então, se é urna relação que é
203
202
príncipes massacrados, tantas guerras, tanto civis quanto estrangeiras;
a Itália desolada todos os dias experimenta novas infelicidades; suas ci-
J
': a se julgar pela conduta de seu Príncipe, pela ambiçfo ou desejo de co-
mandar, desfazer-se de seus rivais.
dades atruinadas e saqueadas. Ele verá Roma em chamas, o Capitólio Esta opinião seria fundamentada se nio se considerasse o fim que
derrubado por seus habitantes, os templos antigos profanados, os ritos Rômulo se proptmha por este homicídio.
corrompidos e o adultério estabelecido em cada casa. Ele verá o mar ~ preciso estabelecer como regra geral que jamais, ou.pelo menos
coberto de exilados, os bancos de areia tintos de sangue. Ele verá Roma
se tomar culpada de crueldades infmitas; a nobreza, a riqueza, as honras
e, sobretudo, toda a Virtude, serem consideradas como crime. Verá a
t.. raramente, viu-se uma república ou uma monarquia serem bem consti-
tuídas desde a origem, ou totalmente reformadas depois, se não foi por
um 11nico indivíduo; é-lhe mesmo necessário que aquele que concebeu o
calúnia recompensada e o ouro dirigindo os servidores contra os senho- plano forneça só ele os meios de execução.
res, os libertos contra seus patrões e aqueles que nio tinham inimigos Assim, um hábil legislador, que pretende servir o interesse comum
traídos por seus amigos.•." (Tite-Live. I, 10. Pl. pp.409410.) e o da pátria mais do que o seu próprio e o de seus herdeiros, deve em-
pregar toda a sua engenhosidade para atrair para si todo o poder. Um
Chegamos à segunda afmnaçã'o que eu anunciava acima. A ordem da espírito sábio jamais condenará alguém po1 ter usado de um meio [01a
moralidade nl'o é, para nosso autor, referida aos escrúpulos de consciência: das 1egnzs o1di1IIÍI'Úis* para estabelecer urna monarquia ou fundar uma
longe de ser isto com relação à qual uma "sociedade civil" deve ser julgada, república. O que é de se desejar é que se o fato o acusa o resultado o ex-
como é o caso em Kant, por exemplo, e nestes próprios termos, a moralidade cusa; se o resultado é bom ele é absolvido; tal é o caso de Rõmulo. Não
é politicamente inativa.!>- consciência moral segundo Maquiavel não é um é a violência que restaura mas a violência que arruma que é preciso con-
juiz pessoal, um cogito moral, etc. denar. . .
Muito ao contrário, a moralidade se transmite do ''exterior" para o "in· O que prova que Rômulo merecia ser declarado livre da morte de
terior~ por uma esp&:ie de mecanismo: a riqueza (exterior e material) cor· seu companheiro e de seu irmão e que o que ele fez foi só pelo bem co-
rompe os costumes, assim como toda a boa educação (pela qual os adultos mum e nio para satisfazer sua ambição é que imediatamente após ele
agem sobre as crianças) mantém as disposições virtuosas. Imediatamente se es- ........,
·~
criou um senado para tomar seus conselhos e a ele conformar sua con-
tabelece uma relação na qual a poHtica deve tomar a cargo a educação moral e duta.. ." '(Tite-Live. I, 9. Pl. pp. 405-406.)8
não o contrário. Além disso, é ainda à política que cabe manter as condições
·,··'
?hi.!..ti.Yfi.S.d.a..moralidade=· ·· ·
r c:

••. . . as leis mais úteis num Estado que quer viver livre sfo aquelas ":_!-

Visto que não analisamos mais a história dos homens como o fez Ma-
que mantêm os cidadãos na pobreza". (Tite-Live. m, 25. Pl. p. 675.) quiavel, visto que nosso método científico de análille de políticas não dispõe
A impotência histórica das apreciações morais deve então ser confron- I ' mais de lugar constituinte para noções corno as de "perversidade", nem mes-
tada com a efetividade dos atos políticos, como se pode fazê-lo no caso de mo de "vontade de livre-arbítrio", corno dar conta da validade permanente
Rômulo, cuja evocação que segue contém fórmulas célebres e sem ambigüi- das descrições que nos deu este florentino d~ olho clínico? Se queremos evi-
dade : tar a abstração vaga e pouco satisfatória, é preciso não se contentar em dizer,
como Nourrisson 9 : "Se o emprego sábio, alternativamente, da duplicidade e
' 'Que um fundador de república, como Rômulo, mate seu irmão,
da força, da crueldade e do ardil; se a substituição fraudulenta ou assassina de
que ele consinta em seguida no assassinato de Tito Tácio, associado por
cálculos do interesse às santas prescrições da motalidade; se, numa palavra, a
ele à realeza; estes dois traços, aos olhos de muitas pessoas, passarão por
desdenhosa negação dos princípios e a procura desavergonhada do sucesso
ser de um mau exemplo: pareceria conveniente que os cidadãos possam,
constituem o que se costumou chamar de maquiavelismo, é incontestável, tris- ·

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ri'

temente incontestável, que o maquiavelismo n!o tem data, que ele nã'o per-
dar cotno as de Forttma e de Vutude, ela consiste numa intuição insuperável
tence propriamente a nenhum país, que não se poderia atribuir a ninguém
do caráter reltztivamente autônomo do exercício do poder.
a sua infame paternidade. Porque o maquiavelismo é tão antigo, tão difundi-
do, tão universal quanto a perversidade humana". O poder politico é desejável: seu exercício, nele mesmo, já é uma ~­
A necessidade de compreender é para nós tanto mais premente porque tisfaçio. Além disso, ele dirige o acesso a outras satisfações, de que _consti-
tui uma condiçf'o. O maquiaveUsmo poderia ser exorcizado se a política n»
o século XX nos revelou uma novidade histórica: !odos ~- pode!e~ não têm
disse diretamente a realidade. Ora, na verdade, ~ preciso constatar que em
o mesmo conteúdo. Uma teoria dos poderes políticos não poderia negligen-
ciar, diferenciar cuidadosamente os Estados socialistas ·dos Estados burgue- todos os momentos da história vários con'teúdos poUticos são simultansz-
ses. Por conseguinte, e sob pena de grave inconseqüência teórica, não se pode mente possíveis, talvez vizinhos quando slo vistos globahnente mas em todo
caso muito diferentes aos olhos das pessoas que aspiram a este poder po-
afumar que o florentino da Renascença italiana conheceu o poder político em
sua universalidade. No entanto, é forçoso reconhecer que, apesar das diferen- lítico. Conhece-se sem dúvida o mesmo tipo de reflexão quando se fala,
' após todos aqueles que trataram do acaso, do jogo da roleta: se a bola pára
ças que devem ser observadas numa análise posterior, os mecanismos políticos
mantiveram-se quase permanentes. sobre o 8 em vez de se imobilizar no 6, do ponto de vista das forças coloca-
Digamos, portanto, primeiramente, que nosso autor, se não foi um teó- das em jogo a diferença é perfeitamente negligenciável; para mim, a esta inde-
rico dos poderes - neste sentido de que ele não p~deu à sua análise, que terminaçfo negligenciável corresponde uma diferença enorme; no 8 estou ar-
tivesse colocado, por exemplo, o acento sobre as condições de sua apariçao ruinado, no 6, eis-me rico.
Desejável, indeterminado em seus detalhes, em particular e~ sua devo-
e sobre as condições objetivas de variações de seu conteúdo - foi um genial
fenomenólogo. ~ . ' luçfo a tal ou qual: estas são as características reais do poder político. As con-
Para além da análise política científica, Maquiavel nos ensina - e nossa
e
.diçOes do preenchidas pela açlo "maquiavélica". efetivamente numa~
volunttria, que jamais será julgada de outro modo senlo em comparaçlo _a cn-
cotidianidade política nos fornece de maneira ..satisfatória" a conftrmaçlo
térios imanentes, relativamente autônoma com relaçio a qualquer consJdera-
repetida deste ensinamento - que, J!.O nível ~ .seu funcionamehto, todos os
çlo científica ou moral, que cabe apoderar-se do poder e conservai-lo apesar
poderes de Estado. repousam sobre os mesmos mecanismos. Que todas as fi.
da vontade de todos os outros requerentes cujas ..chances" sio igualmente
ChãS -de polícia do mundo cont!m as niesmas informações. Funcioname~to: provtveis. A aç1o maquiaveliana tem seu lugar próprio : ela habita no espaço
eis aí o nível, que também existe teoricamente, em que se desvanece a distin-
que resta quando a ani1ise de poderes possíveis alcançou seu múimo de pre-
çio, aliás, justificada, entre poderes socialistas e poderes bwgueses, regimes
cislo. Quem decidirá o debate entre a aspiraçlo ao poder de uns e de outros,
h'berais e regimes autoritúios. .e evidente~te no período de crises políticas
num momento em que a ordem das coisas torna possível ao mesmo tempo o
ou sociais que é preciso julgar estas coisas: então aprende-ae que o car,ter ..li.
poder de uns e de outros?
beral" é ele mesmo suscetível de variaçOes, conforme a pressão dos con-
flitos seja mais ou menos aauda. Em determinados momentos politicos é " .. . suas divisões nos darto a vitória e suas riquezas, tornadas as
verdadeiro que é o leiteiro que se apresenta às cinco horas. Mas para os opo- I
' ' nossas nos conservarão esta vitória. E não vos deixeis impressionar
, , b
sitores perigosos, para todos os marginais, sempre há um inspetor de polícia, porque vos lançam no rosto ' a antiga nobreza .de seu sangue '.porque
em alguma parte, que também se levantou de madrugada. E um delator, um dos os homens saíram do mesmo lugar, são JgUalmente antJgos, foram
denunciador e um provocador, e há também um funciontrio que, mais tarde construídos de maneira semelhante. Colocai-vos todos nus: vós vos ve-
na manhã, deUnútad as circunscriçOes eleitorais, manipulari o medo, os reis todos idênticos. Colocai-vos seus trapos e neles os nossos: nfo há
privilégios. dúvida, somos nós que teremos o ar de ser nobres e eles de miseráveis.
· Genial fenomenólogo não basta. Vê-se que a verdade maquiaveliana vai Somente pobreza e riqueza nos distinguem.
inais longe ainda. Sem dúvida, expressa em palavras que nos é preciso desven·

206
207
O que me desgosta muito é compreender que h4 af8uns entre vót Dreyfus esclareceria, provavelmente, o "affaire Valpreda". Mas o próprio so-
que, por conscibcla. repetem pecados cometidos e t~m o flnne propó- cialismo, porque ele é também determinado sob a forma do Estado, nlo pa·
sito de nio mais cometê-los de novo; neste caso, se isto é verdadeiro, rece poder escapar mais à danaçlo maquiaveliana de que todos os poderes slo
vós nl'o sois os homens que eu acreditava que vós éreis. No que estes decididamente justificáveis. Nestes círculos dirigentes, quem desfrutará do po-
termos de consci6ncia, de inf"amia, podem vos espantar? Os que vencem, der? Quem decide nele a ordem das coisas socialistas? A legalidade sociaJis.
de qualquer mmeira que vençam, jamais alcançam vergonha? E quanto ta? Para o Estado, considerado em sua totalidade, nlo se pode falar senlo de
à condncla. nós nJo temos de nos preocupar porque nas pessoas indeterminação; nesta margem de indeterminado operam Stálin, Gottwald ou
como nós, cheias de medo, medo da fome, medo da prialo, nJo pode, Rakosi. Aqui como lá, porque aqui como lá o poder é desejável e, objetiva·
nlo deve existir lugar para o medo do ínfemo. mente, indeterminado nos mecanismos de sua devoluçfo 11 •
· Mas quereis portanto olhar como procedem os outros homens: e Só, talvez, uma empresa política cujo objetivo nlo mais seria um poder
todos os que chegam à riqueza, ao poder, vós os vereis chegar aí pela ve- tte &tàdÕ..éscaparia ã prática. nwiwa~Ii~ê técniea q1Ie visa óeéesSariamente
lhacaria e pela força; pois, uma vez que eles os usurparam pela fraude e à conservaçfo dos poderes e à sua extensio indeftnida. No núcleo desta refle·
pela viol!ncia, eles os decoram com o nome de justo ganho. Os outros, xlo, a própria sombrá do Florentino vem nos chamar àordem e nos convidar
aqueles que por sua inépcia ou sua idiotice extrema nlo asem como a cultivar o fato (em lugar de se fazer ciência):
eles, aviltam-se para sempre na servidllo e na miséria: porque os aervido-
" ... sendo minha intençfo escrever coisas aproveitáveis para aque·
~es permanecem para sempre servidores, e os honestós para sempre mi·
les que as entendemo, pareceu-me mais conveniente seguir a verdade
seráveis; e só escapam à servidfo os rapaces e os fraudadores. Deua, a na·
efetiva das coisas, mais do que a imaginaçlo desta coisa. Muitos se ima·
tureza, colocaram estes bens ao alcance destas pessoas, mais acessíveis à
ginlllam Repúblicas e Principados (anarquias, acrescentaríamos nós en·
rapina e às manobras velhacas do que a uma honesta habilidade. Eis
tfo: a palavra aparece em 1840 sob a pena de Proudhon em "O que é a
por que os homens se devoram e por que é sempre o mais fraco que é
propriedade?") que jamais foram vistos nem conhecidos como verdadei·
devorado..." (Histoires /lorefllines. m, 13. Discurso emprestado a um
10 ros. Mas existe tanta distância da sorte que se vive, segundo a qual se de·
ciompo , "um dos mais audaciosos e mais experientes". PI. pp. 1089-
1090.) veria viver, que aquele que deixar o que se faz pelo que se deveria fazer,
aprende melhor a se perder do que a se conservar..." (Le Prince. Cap.
Sem dúvida é vlo evocar a história para exorcizar um maquiavelianismo
15. Pl. p. 335. Texto já ci~.!io, de um outro ponto de vista.)
que se aloja precisamente no espaço da indetermin.açlo históri'CI, do aleatório
lá onde a análise púa e onde uma ordem das coisas, uma legalidade deixam ~ O jovem Marx dos Manuscritos de 1844, por sua vez, compreendera que
decidir. Sem dúvida é preciso tomar seu partido: o maquiavelianismo 6 uma téc· o Estad~ comporta necessariamente _uma zona em que o modo de açfo ade·
nica que corresponde a um nível teoricamente real da aç1o política. Ao atua· quado é o maquiavelismo.__ Não foi para abrir à açlo revolucionária uma pers-
rem nestes momentos em que se defrontam, com igual verossimilhança, as pectiva purificada da hipoteca que aí tinha o velho Nicolau que elaborou nes.
vontades de reinar contraditórias. Mensura-se muito exatamente o que separa tes manuscritos o que deve aparecer também como uma crença de tipo esca·
o cálculo da decislo, a análise política do exercício da políticL tológico? De qualquer maneira, _o tema do "desaparecimento do Estado" per·
~ verdadeiro que os governos e os regimes sem apoio popular são conde- de . . . . nas. obras
sua im,P.Ortância
... .. - .....
da maturidade ...
.. _ .,,..... . . -·
na~os, a~~ como à .sua técnica nativa, a se instalar numa política em que 0
únaco ObJetivo é técruco e consiste em se manter no poder: a prática do erro e
NOTAS
~ intimid~çll'o,. os "negócios" são aí substitutos -ou símbolos- de antago.
rusmos reats e msolúveis; seria fácil estabelecer uma lista na qual 0 incêndio
1. "Se Maquiavel (com sua vida, sua obra e todos os debates em tomo de sua
do Reichstag se aproximaria da morte de lambrakis e em que o processo

2Ó8 209
obra) nlo colocasse o problema envenenado do fun e dos meios, o problema as leis da justiça são vis entre os homens; elas somente fazem o bem do mau e
das relações entre qualquer política e toda m(jral, n.f o valeria talvez nem uma o mal do justo, quando este as observa com todo o mWldo sem que ~m
h~~ d~ esforço." Assim nos adverte Mounin (op. dt.) em seu Prefácio. g ne· as observe nele. Portanto, é preciso convenções e leis para unir os direitos aos
gbgencia grave de uma matéria importante? g uma maneira de ir diretamente deveres e conduzir a justiça a seu objeto". (Contrat social, I. 6. Capítulo "Da
ao ponto? Lei".)
8. O tema de todos os textos rnaquiavelianos sempre é político. Este capi·
2. '"Ma~hiavel et Marx", conf~rência feita no Instituto Cultural Italiano. Re-
produnda em Contrepoint, n9 4 , verão de 1971. tule se in titula: ''De como é preciso ser somente um para fWldar uma repúbli·
3· I .-M·. Domenach, Le Retour du tragique. Ed. du Seuil, 1967 ca ou para refonná·la totalmente". Para que o leitor possa julgar da argumen·
4. Deste.s equívocos propriamente políticos nós já falamos (~f. "As lin . tação em seu conjunto ele está reproduzido em sua totalidade na parte antoló-
gens da mstauração política", onde eu tento, eu também, compreender)~ gica deste livro.

I/
li
I
co~enta~ores defrontam-5e com todos estes equívocos e compreendem Ma-
qwavel
p
diversamente
"
. Pensador do despotismo?. Do Jaco
or exemplo, Eu confesso
sub tid .
que, supondo os
· b'mtsmo
súditos
·
sempre rfi
·
republicano?
'tam
pe et ente
me os, o mteresse do Prfucipe seria então que 0 povo fosse poderoso a
.
,. 9. Nourrison, Machiavel. Edit. Oidiér. Citado pela maior parte dos comenta·
dores posteriores. '6. preciso assinalar que a bibliografia maquiaveliana com·
porta, duvida-se, aliás, muitas obras plenamente moralizadoras. Em minha bi·
bliografia as obras deste gênero nlo serfo mencionadas: nem Nowrison, nem
I
fun de que. este poder, sendo seu, o tomasse temível a seus ·vizinhos; mas Charles Benoist, nem Marrel Brion, nem Gauthier-Vignal serão aconselhados
'I COrt_IO este m~eresse so~ente é secwutário e subordinado e como as duas su-
~SJçôes sfo tncompatlveis, é natural que os prfucipes dêem preferência à má-
ao leitor.; por uma espécie de respeito por seu tempo e por sua vontade de se
informar.
I.' xuna. • que
· til é M ·
. lhes é mais imediatarnen te u . . • o que aqwavel faz ver com
10. No que conceme ao •<tumulto dos Oompi", ver o capítulo ..As institui·
Jl
eVIdenCia. Ao d'JS~ · u1
~ dar lições aos reis, ele deu amplas aos povos" (Rous-
' ções e os interesses políticos em Florença" .
.I seau, ~ntrat~ soczal). Se Maquiavel não tivesse sido pobre e perseguido ele 11. '6. sem dúvida alguma coisa como um 'exorcismo que Mounin empreende
li ~ã~ tena escnto senão um único livro de ciência política: os DisCUI'$()s As
· · tenam · sido incorporadas nos Discursos." (Conde ·
fazer em seu MachiaveL Ele espera poder prognosticar "o fim do maquiave·
lismo" com o advento de um poder proletário, o proletariado sendo uma clas-
tdé1as contidas no Prmcrpe
1/ se social doravante forte e experiente. ''FJe (o marxismo) não pode reeôrrer
Sforza, Mach~veL Editora Corrêa, 1947.) Para uma revisão sistemática destes
a todos estes meios que são o maquiavelismo, sem que a História (nfo a his·
I equívocos da mterpretação política de Maquiavel, ver Mounín e sobretudo
Oaude Lefort, op. cit. tória) - assim como ela fez es~s últimos anos - não o chame à ordem dura-
I, S. .Este capí~ulo é um dos mais longos do Tito Uvio (20 p~~nas na edição da
Plé1ad.e). Sena fora de questfo reproduzir todas as passagens que 0 merecem
mente" (pp. I 99-200). O requisitório que Vichinslci pronunciou contra .Ka-
menev durante o processo de Moscou de 1936 marca; segundo Mowún, wna
reviravolta nesta superação do maquiavelismo. Meu Deus! Este processo,
li ~~ ltvro como. este. O leitor deveria dirigir-se a ele. Encontraria conselhos di·
ngtdos ao Prfuetpe e outros que devem instruir os conspirador .
como muitos outros, esteve entre os mais maquiavélicos deste século. Vichins-
ki certamente o sabia e Mowún deveria sabê-lo também (seu livro aparece em
6. Cf. oca . pítulo "Natureza humana e história dos homens" pesp 37 ss.
I/ 7 Si 'fi · ' · e 1958, é reeditado em 1966: a ignorância não é mais permitida). Longe de dar
. gru tcatlva convergência de tema em Rousseau' por exemplo, em que o
es t ado de natureza, no que toca o que -..- nnui no• flrflnn t ••apelos ã ordem" é claro para todos que a história (não a História) conferiu
....v_,.,~, em o. mesmo papel algWls encorajamentos e que o maquiavelismo foi, uma vez mais, contribuin·
I que o estado de política "idilica" em Maquiavel: ''O que está be m e confionne
à ordem é tal te. Mais adiante (p. 227): ..0 socialismo, por outro lado, corno o demonstra·
,, ~Ia ~tureza das coisas e independentemente das convenções
rarn os acontecimentos recentes, pode se achar diante' de seus problemas tam-
humanas. Toda !ustiça v:m de Deus, somente ele é sua fonte; mas se nós sou-
bém: o culto da personalidade , os métodos individuais e pessoais de_direçiO
béssemos .recebe·la de tão alto, não teríamos necessidade nem de governo
substituídos pelo estudo científico coletivo das situações e das decisôes, as
nem de leu... A considerar humanamente as coisas, à falta de sanção natural:

210 211
violações da legalidade socialista, representaram as recaídas de um praticisrno
marxista na prática maquiavélica. Vê-se aí o maquiavelismo como a teoria e a
prática que sempre estio prestes a ressuscitar em cada ponto de fraqueza po·
lítica: fraqueza de um dirigente, grande, médio, pequeno, seja qual ele for,
fraqueza de uma análise, fraqueza de uma SOIUÇfo". 8 verdade que uma aná· I
lise coletiva cobriria o terreno em que o maquiavelismo se adaptou se ela
pudesse nfo deixar nenhuma indetennin.açlo nas escolhas, aí compreendi· \
das aquelas que transferem o poder. Por outro lado, n!o é útil negar que exis.
tem técnicas de manipulaç!o das "análises coletivas" mesmo que n!o im·
porta q~ velho senador as pratique em sua escala em sua circwucriçfo. Por-
tanto, é uma falha teórica acreditar que os cá/curo$ podem cobrir todo o cam-
po de ded sões. E uma falha prática, que desarma a vigilância de homens com
relaç!o a seus políticos. Estas duas falhas reunidas preparam, aftnal de contas,
surpresas de baixa condiçã'o.

Capítulo4 ·.. ·~
História circular
"Os leitores da hilt6ria antlp sabem que os impérios co-
meçam com N'uno e acabam com Sirdanápalost;
O primeiro era visto como um homem di'vino; o outro foi
encontrado no meio de tel&l serwa, ocupado c:omo uma mu-
lber a lhes distribuir o Unho de fi•· ..
A V'trtude dá a tranqililidade aoa Estados; a tranqüili~e
em seguida produz a moleza e a moleza consome os paues e

as c:-'fun,_,p6s ter atrawaado um período de desordens. as


cidades 'riam a V'trtude renascer em teus muros.
Aquele que goftll\& o universo pennite esta o.rdem de
coisas a fim de que alda seja ou possa ser eatáwl aob o sol:
Viu-se. v~ e w:r-se-i sempre o mal suceder ao bem : o
bem substituir o mal e sempre um será a causa do outro. . •
(L:..tMn d'or. Cântico v. Pl. p.69.)

. possam morrer. Pre·


As condições são preenchidas para que as po lít tcas
c:irias ao mesmo tempo ameaçadoras e amea,...~'!lidas ' as empresas da .virtude es-
.
tio c~ndenadas desde o momento em que elas se determin~ em a~~~ e= ~~­
vestem em corpos políticos, pelo conflito que as opõe a ~ ~atw . es ve .
Elas Ie resentam um momento de iluminaçlo na existanaa mdefirudam~nt~
repetid~ de uma humanidade pré-política: est!o expostas ãs empresas de mdl·

212 213
vidualidades indefinidamente numerosas, mal instaladas no tempo de oca-
ções e suas fronteiras, mas nfo é, como muitas pessoas o crêem, a
siOes afortunadas, elas constroem, para um tempo que lhes é avaliado, quase-
liberdade que as conduz à servidão, é a licença. Porque nem os provedo-
natwezas. No que conceme, nfo à matéria, mas à intenção, elas nfo podem
reS da licença - os popokmi{> - nem os da servidão -os magnatas - re·
sobreviver senão por uma reiteração de vontades civilizadoras. Não a matéria clamam-se outra coisa senão o· nome da liberdade; o que eles todos que·
du políticas: "~ preciso saber mudar com o tempo" 2 ; mas a virtude como rem igualmente é evitar ·obedecer, tanto às' leis quanto aos homens.
vontade nua. "Se se quer que uma religião ou uma república vivam muito Acontece, é verdade mas é raro, que a cidade produz um homem sábio,
te~po é preciso freqüentemente reconduzi-las a seus princípios" 3 :
íntegro, poderoso, que , pelas leis, doma estes ódios entre povo e nobre·
•<g incontes~vel que todas as coisas deste mWldo têm um termo za, ou ao menos os domina e os impede de se corroer; somente entio
em sua exist!ncia; mas somente estas completam toda a carreira que o pode-se dizer que a república é livre e desfruta de um governo firme e
céu lhes destinou geralmente cujo organismo não se desregula mas per· seguro. Com efeito, graças à excelência de sua Constituição e d.e suas
manece tão bem regulado que não se altera, ou ao menos se altera so- leis, ela não tem necessidade, como outras cidades, de fundar sua salva·
mente para sobreviver, nfo para morrer. Como nlo se tratam de corpos ção 5obre a VJJ1ude de um único homem. &ta vantagem de uma boa '
mistos, tais como o Slo as religiões e as repúblicas, digo que estas alte- Constituição foi concedida a várias repúblicas da antiguidade que assim
·~
rações salutares Slo as que as restabelecem em seus princípios. Os cor- puderam manter por muito tempo seu governo em todo seu vigor; mas
pos melhor constituídos e q~ têm uma vida mais longa sfo aqueles
que encontram em suas próprias leis do que se renovar, ou ainda aque-
foi recusada a todas estas repúblicas que jamais cessaram, que de modo
algum cessam de ir e vir da tirania à licença, da licença à tirania. Nem
-~
• \~
les que, independentemente de suas instituições, chegam por acidente um nem outro destes Estados é estável; todos os dois têm muitos inimi· I
11
a esta renovação. ~ igualmente claro como o dia que, à falta de se gos poderosos; um desagrada aos homens de espírito, o outro, desgosta I
Il
4
"i
renovar, estes corpos morrem. Ora, como já disse, esta renovação con- aos homens sábios; um facilmente faz o mal, o outro, se sente mal em .. !
fazer o bem; um concede muita autoridade aos insolentes, outro, aos l
siste para eles em voltar a seu princípio vital. f

Portanto, é preciso que o princípio de religiões, de repúblicas ou imbecis; todos os dois t~m necessidade da mão fume de um homem que '~
de momu;quias tenha em si mesmo uma vitalidade 4 que lhes dê slia tenha a Virtude e a chance , e que a morte pode enlevar ou cujo excesso l..
primeira autoridade, seu primeiro vigor. E como este princípio se gãsta de traballio pode triunfar 7 ." (HistoiTes florentines. IV. I. Pl. pp. 1119· 'j
:I:
com o tempo, é inevi~vel qile o corpo sucumba se nada vem reaniffiá- 1120.)
!o. ~assim que os médicos dizem, ao falar do corpo humano: Quod
quotidie a,ggregatur a liquid, quod qwmdoque indtget CUTatione 5 • (Tite-
Live. Ill, I. Pl. pp. 607-608.)
Pelo fato de que a exist~ncia política deixa subsistir o homem indivi-
dual e pré-político, as instituições e as leis se corróem pela usura da degrada-
O segundo destes textos é $em dúvida alguma o mais longo de todos os
que são citados nas páginas deste ensaio. 1! entretanto indispensável transcre-
vê-lo amplamente, fracionando-o para explicá-Lo, porque é destes - raros, CO·
mo se o observará - nos quais Maquiavel constrói um desenvolvimento cujo
objeto é uma história geral. Evidentemente, as páginas que se vão seguir Slo
i
4
ção dos costumes. Não há dúvida, para nosso Florentino nlo é o poder que se extraídas da obra mais ampla, dos Discunos sobre a primeira década de Ti·
desgasta mas o natural que desgasta todo poder. Dois textos muito claros - to Livio, e o tema da circularidade da história aí figura a propósito das ori·
ao menos no que toca ao pensamento de Maquiavel, se não à realidade da gens das cidades: em I, 2, "Das diferentes formas de repúblicas, quais foram
política: !lós já falamos da "estrutura mítica" da história maquiaveliana -nos as da república romana":
colocarfo em, presença da circularidade da história. " ... Eu devo primeiramente fazer observar que a maior parte dos
"As cidades que se governam sob o nome de repúblicas, sobretu-
que escreveram sobre a política distinguem tr~s espécies de governos:
do quando são mal constituídas, freqüentemente variarn suas institui-
Principados, Optimates8 , governo popular, e ·que o~ legisladores de

214
215
·-

um povo devem escollier entre estas formas a que lhes parece mais con- Os autores ..mais sábios segundo a opinilo de mw·tas ~ssoas" certa.
veniente empregar.
mente são Aristóteles e Políbio. Ao considerar o q~ ~tes doiS =n~~
Outros autores, mais sábios, segundo a opinião de muitas pessoas, . .dad já escreveram sobre a sucessio de constitwções, 6 p
contam seis espécies de governos, de que três são maus e três que, em- siderar . liano limita a demarcaçlo. Entretanto, será pre·
antigw quee o texto maqwave
bora bons em si mesmos, estãO tãO sujeitos a se corromper que eles
se tomam inteiramente maus. Os três bons são os que acabamos de no- 1! um ·lugar-comum no pensamento político da an tigw·dade a ''varie.
ciso nuançar
mear. Os três maus Sfo somente dependências e degradações dos outros dade de constituições" em seis regimes. Se a encontra em Platio, como se
três, e cada um deles se assemelha de tal modo ao que lhe corresponde pode aqui ler em Aristóteles:
que facilmente se passa de um ao outro. Assim o principado torna-se
''Desde que o governo é a autoridade soberana nos ~t~dos e
tirania,
\ o governo dos melhores toma-se tirania de alguns, e o governo
ssariamente este soberano é um ou vários ou a m31ona, se-
popular se acaba em pura licença. De sorte que um legislador que dá que nece d único ou vários ou a maioria, usa da autorl·
ao Estado que ele funda um destes três governos o constitui por pouco gue-se que, quan o um , ' . ente
dade conforme ao interesse comum, estes governos slo necessanam d
tempo; porque nenhum pode impedir que cada uma destas espécies
bons. mas que os que se conformam ao interesse ou de um só, ou . e
reputadas boas, seja ela qual for, não degenere em sua espécJe correspon-
dente : de tal modo em semelhantes matérias bem e mal podem ter simi·
vário~ ou da maioria, são desvios de bons governo.s. Porque é preciSo
. ·~
Utude". (PI. p. 384.) dizer ou que estes que dele são membros não são etdad!os ou que eles
devem participar no interesse comum. · l .
Os autores aos quais Maquiavel faz referência são os d.a tradição latina Entre as monarquias, dá-se comumente o nome de rea eza aque·
que trataram do problema, em si mesmo idêntico na sua formulação durante la ue tem em vista o interesse comum; e o go~erno. de um pequeno
séculos, da ..diversidade de Constituições". Muito certamente é a Cícero que -q (mas não de um só) chama-se aristocracra (seJa porque são os
numero ' · bem do
é preciso atribuir a paternidade, na cultura do Florentino, desta evocação em melhores que governam, seja porque eles governam pe1o m31/0 .
que concordaram "a maior parte dos que escreveram sobre a polftica". Ao Estado e de todos os membros da comunidade). S.nfun, quan o a m310·
menos, a teoria das tras constituições se encontra, tal como está dada aqui, ria governa no sentido do interesse comum utiliza-se o no~e qu;~ c~-
no De Republica (51 antes de Cristo): todas as formas de governo: a república. (La PolitiqrM!, ' •
mum a EmA . t t mora/e et
1279 a 25-39. Trad. francesa de F. e C. Khodoss. ns 'O e
''Quando a autoridade suprema está nas mãos de um só, ele toma
politique. P.U.F., 1961, P· 1 ~0.)
o nome de rei e esta forma de governo o de monarquia. Ela está entre-
gue a alguns homens escolhidos? Então, a constituiçã'o do Estado é aris- Alguns parágrafos mais adiante: J'
tocrática. O governo popular é aquele em que o povo é tudo. Cada urna · dos q~ acabamos
..Os governos que sã'o desvtos . de. nomear
. ocra-a
sã'o
destas tr!s formas de governo, provido que ela seja fiel ao princípio que . . desvio da realeza· a oligarquia, deSVIo da anstocraeta, a dem
primeiramente reuniu seus membros, sem dúvida nlo é perfeita, nem trra1llll, ' · ·a governa-
cio desvio da república. Com efeito, a tirarua é uma monar~J d
mesmo a melhor possível; mas ao menos ela é suportável e é permitido da, no interesse do monarca, a oligarquia é governada no mt~resse o.s
hesitar entre elas. Porque, ou um rei justo e sábio, ou cidadãos distin- ricos e a democracia no interesse dos pobres; mas nenhum destes re~­
guidos .e escollúdos, ou mesmo o poyo, embora seu governo seja o pior rnes se ocupa da utilidade comum". (Idem. 1279 b 4-10. Em op. at.,
de todos, podem, quando nem paixfo nem injustiça vêm se lançar pelo p.lSl. As palavras foram grifadas pelos tradutores.)
melo, oferecer alguma garantia de estabilidade... (I, 26. Trad. Jean Im·
bert em Hfstoire des institutions et des faits sociaux. Tomo I. pp. 171- Se nível da descrição de formas de governo, os textos do ~llósofo de
172.) Estagira ~:~ o mesmo teor que os escritos pelo nosso Maquiavel sena falso ver
216 217
na empresa deste último como que uma retomada do que fez o Grego. Muitas nia tomou-se hereditária e nio eletiva, os fllhos começaram a degenerar
veies, ·ao contrário, deparamo-nos com propósitos muito significativos que de seus pais. Ao abandonar as empresas da Virtude, eles fizeram consis·
nos ín:terditam compreender que o Florentino pertence à tradição do empiris- tir a situação de Príncipe, somente, em se distinguir pelo luxo, pela in-
mo político. Em compensaçto é incontestável que o autor da PolitiCil inaugu- dolência e pelo refinamento de todos os prazeres. Também Jogo o Prín·
rava quanto a ele uma· pesquisa que conduz às preocupações da "ciência po- cipe conseguiu o ódio comum. Objeto de ódio ele sentiu temor: o te-
lítica", isto é, à recusa de dar à política um estatuto absolutamente autônomo mor lhe ditou as precauções e a ofensa; e viu-se-o erguer a tirania. Tais
de condicionante incondicionado9 • foram os inícios das desordens, das conspirações, dos complôs contra
A seqüência do texto dos Discursos sobre a primeira déct1da de Tito Lf. os príncipes. Ees ~ foram urdidos pelas almas fracas e tímidas mas
vio. de que empreendemos a leitura há algumas páginas, nos conf11mará nas ra· por estes cidadãos que, superando os outros em grandeza de alma, em
zões que ·nos fazem distinguir a conceitualização aristotélica do pensamento riqueza, em coragem, sentiam« mais vivamente feridos por seus ultra-
de Maquiavel. As primeiras linhas sio esclarecedoras a este respeito; no entan· jes e por seus excessos.
to, nós já as encontramos quando nos ocupamos de um outro problema 10 : Sob chefes também po~rosos, a multidão se armou contra o ti-
rano e após derrotá-lo ela submeteu-se a seus libertadores. Estes, abo-
"O acaso deu nascimento a todas as espécies de governos entre os minando até o nome de Príncipe, constituíram eles mesmos o novo go-
homens. Os primeiros habitantes foram pouco numerosos e viveram du·
verno. No início, tendo incessantemente a lembrança da antiga tirania,
rante um tempo ·dispersos à maneira de animais. O gSnero humano, vin-
viu-se-os fiéis observadores de leis que tinham estabelecido, preferir o
do a aumentar, sentiu-se na necessidade de se reunir, de se defender; bem público a seu próprio interesse, administrar, proteger com o maior
para melhor chegar a este objetivo, escolheu-se o mais forte, o mais CO·
cuidado a república e os particulares. Os filhos sucederam a seus pais;
rajoso; os outros o puseram à sua frente e prometeram obedecê-lo. Na não conhecendo as mudanças da FortWla, não tenhdo jamais experi-
época de sua reunião em sociedade, começou-se a conhecer o que é bom mentado seus reveses, freqüentemente chocados com esta igualdade
e honesto e a distingui-lo do que é vicioso e mau. Viu-se um homem fa- que deve reinar entre cidadãos, viu-se-os entregar-se à rapina, à arnbi·
zer mal a seu benfeitor. Dois sentimentos se levantaram no instante em çlo, ao rapto de mulheres e, para satisfazer suas paixões, empregar até a
todas as almas; o ódio pelo ingrato, o amor pelo homem benevolente. violência. Logo fizeram degenerar o governo dos melhores em uma ti·
Censurou-se o primeiro e honrou-se tanto mais aqueles que, ao contrá· rania do pequeno número. Estes novos tiranos experimentaram logo a
rio, mostraram-se reconhecidos, porque todos eles sentiram que pode- sorte do primeiro. O povo, desgostoso com seu governo, pôs·se às
riam experimentar idêntica injúria. Para prevenir semelhantes males os ordens de quem quis atacá-16; e estas disposições logo produziram um
homens se determinaram a fazer leis e a ordenar punições para quem as vingador que foi muito bem secundado para destruí-los.
contrariasse. Tal foi a origem da justiça". (PL pp. 384-385.) A lembrança do Príncipe e dos males que causou era ainda mui·
Desde então instaurou-se uma política, que permite uma história. A que to recente para que se pensasse em restabelecê-lo. Assim, portanto, quem
nível se desenrola esta história, quais s!o seus motores no pensamento de Ma- quer que tivesse derrubado a oligarquia, não quis retomar ao governo de .
quiavel, o leitor poderá julgá-lo pela comparação cuidadosa das linhas que se· um só. Detenninou-se pelo governo popular e por aí se impediu a auto-
guem com a passagem citada na nota 9 da página precedente. Os dois autores ridade de cair nas mfos de um Prfucipe ou de um pequeno número de
estudam, cada um à sua maneira, as "causas da multiplicidade de formas de grandes. Todos os governos, ao começar, têm alguma rnoderaçlo; tarn·
governo"; pode-se assim, comodamente, medir a distância que os separa. bérn o Estado popular se mantém durante um tempo que jamais foi
muito longo e que duraria comumente quase tanto quanto a·geraçlo
"Apenas ela foi (a justiça) conhecida, ela influiu na escolha do que o havia estabelecido. Logo chega-se a uma espécie de licença que
chefe a nomear. Não se dirigiu desde então nem ao mais forte, nem ao lesa igualmente o público e os particulares. Cada indivíduo consultan-
mais bravo, mas ao mais sábio e ao mais justo. Depois, corno a sobera·

218' 219
do somente suas paixões, cometia-se todos os dias milhares de injusti- dos. Os diversos males de que sfo trabalhados os fatigam, lhes elimi-
ças. Enfun, premido pela necessidade, ou dirigido pelos conselhos de nam progressivamente a força e a sabedoria e os subjugam rapidamente
um homem de bem, o povo procurou os meios de escapar a esta licença. a um Estado vizinho cuja Constituiçfo acha-se mais ~- Mas se eles che-
Acreditou encontrá-los voltando ao governo de um só; e deste, volta~ gam a evitar este perigo, se os verão voltar ao infmito neste mesmo
ainda ã licença, ao passar por todos os graus que se seguira, e da mesina círculo de revoluções.
maneira pelas mesmas causas que indicamos". (lbid., Pl. pp. 384-386.) . Eu digo portanto que todas estas espécies de governo são defei-
tuosas~ Aqueles que qualificamos de bons duram muito pouc9. A na-
A maneira maquiaveliana de consider~ a evolução das políticas remete,
tureza dos outros~ serem maus .. :" (Ibid., Pl . pp. 386-387 .)
portanto, bem mais do que a Aristóteles, a Políbio. Neste último, igualmen-
te11, a monarquia se apresenta primeiramente como uma reunião natural ao
mais forte e se moraliza ao se legalizar na adesão ao mais sábio. Esta realeza,
NOTAS
cedendo à paixão do monarca, torna-se tirania. Tirania destruída pela revolu-
çlo dos melhores a quem vai, em recompensa, wn poder aristocrático; a' in-
1. A Assíria antiga está enquadrada por personagens em boa parte legendá-
temperança das gerações que se seguem faz dele uma oligarquia. A revolta do
rias. Ninus, cuja própria existência 6 discutida, homem "virtuoso" que consti~
povo dá então nascimento a uma democracia, animada pela liberdade e pela
tuiÜ um gigantesco poder; Sardanápalo~, que se imolou pelo fogo em seu palá-
igualdade; logo corrompida pela demagogia, ela engendra crises da licença, de
cio, com toda a sua casa, e abandonou assim Nútive aos insurretos.
onde nascerlo de novo os seis regimes precedentes. Cada um dos três regimes
2. Sobre a Virtude e suas determinações em fenômenos políticos, cf. o capí-
saídos das revoltas contém em si mesmo o princípio de sua degenerescência,
"como a madeira o verso". tulo "A Virtude".
3. A matéria do presente capítulo remete ~guramente ao que dela é uma
Todavia, o quadro geral no qual se inscrevem as "constituições" que se
aproximação, ou uma preparação, ou ao que constituiria um primeiro conhe-
sucedem em Políbio nfo é conforme a visão maquiaveliana da história Wli·
cimento de Maquiavel: "Natureza humana e história dos. homens".
versa!: das tr~s pot6ncias que atuam na história, Poh'bio faz uma teoria cuja
4. A respeito da utllizaçfo que Maquiavel faz do "modelo naturalista" de
funçfo 6 permitir uma compreensão cósmica das sucessões políticas. A Vir-
corpos políticos, cf. o capítulo "A naçfo, crença e força".
tude e o acaso desempenham aí o papel que encontramos nos textos d~ ~o­
S. "O que todos os dias se acumula convém purgá-lo de tempos em tempos."
rentino; mas o conjunto de jogos desta Vutude e deste acaso está referido ã
6. Fornecedores de autorizaçfo: os ''populares", favoráveis ao "partido do
Fomma-Providência, isto 6, ao destino. Este destino 6 o próprio mundo,
povo", segundo um estereótipo político bastante antigo, e aliás sempre pre-
como o era no antigo estoicismo. Para o Grego amigo de Cipião, há na sorte
sente numa certa representação.
das armas e das iristituições de Roma uma vida atuante. Não 6 mais necessá-
7. Os discursos gerais de Maquiavel sempre sfo, ao mesmo tempo, textos cir-
rio, após ter encontrado tantos textos e temas concordantes em Maquiavel,
cunstanciados. O livro IV das Histofresflorentines intitula-se: "Florença, Cle-
insistir sobre o fato de que a mutação que constitui sem dúvida todo o ma-
mente VD, a quem são dedicadas estas 1tistórias', é também um Médici".
quiavelianismo se traduz em seu pensamento pela desaparição de qualquer tu-
8. ''Optimates" é o nome de aristocratas romanos. Mesma raiz das palavras
tela do destino. Nós insistimos sobre outras traduções, tio reais, embora me-
"arístocratas" e "optirnates": os melhores.
nos percebidas pelo próprio Secretário 12 •
9. Por exemplo: "Qual é a causa desta multiplicidade de formas de governo?
"Tal é o círculo que estão destinados 13 a percorrer todos os Es- e o grande número, em toda <idade, de partidos. Primeiramente vemos que
tados. Raramente, é verdade, se os vê voltar às mesmas formas de go- . todas as cidades são compostas de famt1ias . Em seguida, em toda esta popula-
verno; mas isto vem de que sua duração não é bastante longa para que ção, é inevitável que uns sejam ricos, outros pobres, outros, enflm, numa si-
eles poss~ Sofrer várias vezes estas mudanças antes de serem derruba- tuacão média. Depois, ricos e pobres se dividem por sua vez em militares e ci-

220 221
vis. No povo, uns sfo cultivadores, outros mercadores, outros openúios. Entre
os notáveis, há •gual.mente diferenças segwldo a riqueza e a importância da
propriedade (por exemplo, a capacidade de manter cavalos, o que nfo é fácil
se não se é rico; é por isso que, nos tempos antigos, governos oligárquicos se
estabeleceram em todas as cidades que tinham sua principal força em cavalos;
deles se serviam nas guerras conba os vizinhos; é o que faziam os eritreus, os
caloedônios, os magnesianos que habitavam perto dos rios do Meandro e mui-
tos povos da Ásia).
Vê·se assim por que é necessmo que haja várias formas .de governo, de
espécies 4iferentes. S que suas partes também são de espécies diferentes. A
constituiçlo, com efeito, é a ordem que rege os poderes: estes slo repartidos
entre todos ou segundo a capacidade dos participantes, ou segundo uma certa
Igualdade comum (eu quero dizer: igualdade entre os pobres, ou entre os ri·
e,
cos, ou comum aos dois). portanto, muito necessmo que haja tantas for·
mas de governo quanto há ordellS possíveis segundo as superioridades e as
diferenças que distinguem os membros da sociedade". (Politique, IV, 3. 1289
b 27-a 13. Em op. cit., pp. 147-148) Sobre o que Maquiave1 entende, por sua
vez, por "divisões", cf. o capítulo "Corpo político e indiVidualidade dos ho- Conclusão
mens" e texto da p. 216.
10. Cf.p. 87.
11. Histolres rofTJIIines, VI, 3-9. Nio é certo que a palavra "Renascença" seja muito útil: ao menos é o
que pensa um bom número de historiadores modernos no que toca em geral
12. Cf. p. 80. Maquiavel herda intelectualmente uma problemática histórica
(portanto, cosmológica e antropológica) que lhe vem de nto Lívio e de Poll-
ao período que esta palavra pretende definir. .
NÍo é a nós que cabe, evidentemente, decidir o que quer que seJa nesta
bio: â que toca ao papel da Fortuna. Uma mutação no interior do mito (mito da
Virtude coritra mito da Fortuna) é, do ponto de vista da tnosofta da histó- questão; para quem fez, muito mais especialmente, a matéri.a deste livr~, é to-
ria, a obra explfcita de Maquiavel. Mas esta mutação ~ quer temas davia possível colocar a questão· há, nos tempos de Maqwa~l, uma liga~
pensados também, mas por outro lado e sem ligação consciente com esta topológica da realidade do passado histórico? Maquiavel fo1, no que fo1 o
"ftlosofm da história", quer conteúdos que não poderio ~ncontrar sua ex·
pressfo adequada (não-mítica) senfo depois.
J objeto de suas preocupações, uma con.sciência reflexiva?
~ justificada esta tradição do comentário que quer que cada um dos ho·
I 3. Tradução inexata do texto de Maquiavel, que é: "Tal é o círculo no qual, mens estudados por uns e por outros seja apresentada como "fundador" de
ciclicamente, foram governados e se governam ainda todos os Estados". (E uma ciência ou de uma atitude que se apressa em definir nos termos em que
questo e cerchio nel quale girano tulte le republiche fi sono govemate e d sllo nossas ciências e nosSDs atitudes? Tantos ''inventores'' da sociologia; tan·
govemano.) A expresslo "estio destinados" presta-se a falso sentido, a me- tos ''fundadores" da ciência política... Não é tranqiülizador, a bem dizer,
nos que nlo se a compreenda numa acepçio puramente literária. nem para a história, a qual parece faltar julgamento, nem par.a a ~ociologia o~
a ciência política, às quais parecem decididamente faltar cnténos de defiru·
ção. Sem dúVida e mais simplesmente, capricho da ~s~ori~afia intelectual
que não escapa, ela não mais, ao mito dos. tempos ~ngtnános e ~o culto dos
grandes iniciadores. A disposição de concettos políttcos que, ma1s tarde, tor-
222
223
. ·-t

t
;..

nou-se nossa ciência política, Aristóteles foi seu primeiro artesão? Maquiavel?
Sem grande contestação, esta organizaçã"o em campo epistemológico é mais
l respostas maquiavelianos são atuais ou diretamente fundadoras de nossa mo-
dernidade.
tardia e, numa boa parte, nós a devemos a Montesquieu 1 • No que .toca a nosso O conjunto de problemas postos por nossos políticos modernos germina
florentino, a leitura atenta de seus textos;--óemaio paciente de reconstruir sobre um terreno que Maquiavel percorreu. Para medir o que esta frase tem de
para nós mesmos o que poderia ser pensado em sua época, me convenceram nlo-retórica, que se queira tentar substituir o nome de Maquiavel pelo de Bos-
finalmente que não era tanto ligando-o cust~sse o que custasse à tradiçio ''po· suet, por exemplo, de que entretanto a Politique tirée de L 'écriture sainte é
sitiva" da pesquisa política que ele se revelava em sua importância; mlti que c;ento e cinqüenta anos posterior ao Príncipe. Assim como Descartes exprimia
havia mais a responder se se lhe perguntasse o que sua visão tão perfeitarneílte ao mesmo tempo as condições da possibilidade de um idealismo da alma -
política requeria de urna antropologia e de urna cosmologia raramente explici- :I que a escola apresenta freqüentemente como o único conteúdo real do car-
. tadas. Dado isto, Maquiavel me pareceu mais próximo do que mais tarde se ,.,.. tesianismo - e as de um mecanismo materialista em geral passado sob silên·
.tomaria o pensamento de Rousseau que do que ·diria Montesquieu: eu quis ct'o; assim como Darwin encerra em seus escritos uma teoria bastante progres-
desde então evitar que, sob a semelhança d~ algumas formas isoladas, se pu- sista da evolução biológica das espécies, mas parecia também avalizar um
desse ser tentado por anacronismos e acredi.tei mais útil estabelecer algumas "darwinismo social" de que o objetivo evidentemente nada tem de liberador;
relações entre o "cidadão de Genebra" e nosso autor para ler um pelo outro &$sim como, enfl1D, os trabalhos de Pavlov avançam, num mesmo passo, o es-
homens que, através dos tempos, se esclarecem um ao outro; não foi involun- tudo de mecanismos de aprendizagem e as práticas demagógicas; do mesmo
tariamente que me proibi evocar, para compreender Maquiavel, as obras do · modo, Maquiavel pode sem dúvida ser posto a serviço de totalitarismos como
barão bordeleuse. pode ser citado pelos teóricos de uma política liberal. Em outros termos, diga-
Também não me pareceu muito fecundo interrogar o Florentino a res- mos que nossos maiores problemas políticos podem se exprimir em termos
peito do problema que certamente tomou-se diretor de urna reflexão - e de maquiavelianos, mesmo se nossas melhores soluções não se mantém mais na
.uma luta - posteriores às suas, mas que nele não tem um lugar cardinal: prin· formulação - teórica e prática - que foi operada em Florença. Nós lhe alcan-
cipado ou república? Pode-se mesmo ir um pouco mais longe sobre este pon- çamos o essencial.
to preciso, ao notar quantos comentadores estão em condições favoráveis a Maquiavel ilustra uma posição geral concernente à antropologia que
fazer de Maquiavel um prático de uma política principesca e do autoritarismo, convém chamar de ..pan-política". De m~~Í!~. alg~a que o homem seja aí
enquanto eles têm uma facilidade igual para avançar um acordo manifesto um "animal político": seria ainda uma maneira de dar ao homem uma defi·
deste mesmo homem com as instituições da Roma republicana. A facilidade que
;!Ç~ se ~Jg>ritniD'ª~m termos cqsmicos e naturalistas; mas_o ~om~~ -~aí
com que é possível dizer tudo a este respeito com uma verossimilhança quase .;m} demiurgo político, um "deus político", deus-para-si-mesmo e deus cole-
igual deveria entlo incitar mais freqüentemente a colocar uma interrogaçlo tivo. se·r -c~ja principal referência é acósmiCa, tal é o homem segundo Maquia-
tendo por objeto o caráter tópico de tais comentários. Eu tentei, de meu lado, vel, cuja humanidade se expande na constituiçlo de um quase-cosmo; deste
mostrar que é mais tarde, quando os burgueses alcançaram um nível superior quase-cosmo não há arquétipo. E isto deve ser dito compreentlendo nele tudo
de desenvolvimento, que o pro~~ema da róiina 'i:Je-g~;~~-~- ooÍÕoouPãra o que isto leva e tudo o que isto nega: negação da possibilidade de uma analí-
ei~ê-o -governo- prinCipesco realmmte 5e oPôs aÕgovemo~xepÚl)Hcano ­ tica das "necessidades" -se elas fossem políticas -,negação da reivindicação
COmpreendidO, aliásL~traVéS de Uma determinaçãO Posterior: 0 goyem~de­ de uma existência individual, etc.
mociá"tico". Bntlo ~ sem irande interesse colocar em Maquiavel um certo No quadro deste reconhecimento fundamental que a história dos ho-
gênero de questões que não foram as suas; sem com isto contentarmo-nos mens nlo é, se se quer tomá-la política, isto é, especificamente humana, uma
com um pseudo-respeito universitário - de uma wúversidade mal vivente, ~xistência natural, concebe·se que a ruptura principal, ativa e geradora da re·
aliás -de homens do passado, devemos dizer que é num outro nível que as novaçlo de um bom número de problemas, concerne a todos os naturalismos
pelos quais o mtmdo é um modelo ou uma garantia, ou um feixe de causas;

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ruptwa também, e decisiva, com as compreensões nas quais o sentido do des- ..... as ciências humanas não receberam de herança um certo domínio
tino coletivo dos homens é recebido ou imitado. O homem maquiaveliano nlo J' desenhado, delimitado talvez em seu conjunto, mas deixado em pousio, e
tem nenhum lugar atnõuível numa história natur~ t-axÕnômica, numà "épis- que teriam tido por tarefa elaborar com conceitos enfim científicos e méto-
témé" da classificação por gêneros: deste ponto de vista, se está no oposto do dos positivos; o século XVIII nio lhes transmitiu sob o nome de homem ou
que era a tematização de Aristóteles; não se está muito longe do que se toma- de natureza hwnana Um espaço circunscrito do exterior, mas ainda vazio, que
nf, mais tarde, o "abandono" dos existencialistas. &tá-se também num •u papel em seguida fosse cobrir e analisar. O campo epistemológico que per-
uni~erso mítico: digamos, para usar da linguagem própria a este universo, que correm as ciências humanas nio foi prescrito de antemão: nenhuma filosofia,
a política segundo ~aquiavel, desprovida de modelos e desprovida de valores· IWIIhuma opção política ou moral, nenhuma ciência empírica seja ela qual
cósmicos, privada de garantías no tempo, é a chance para o homem de ser 0 for, nenhuma observaçlo do corpo humano, nenhuma análise da sensação, da
lugar de sua ansiedade. lmlginaçlo ou das paixlles jamais encontrou, nos séculos XVII e XVIII, algu-
d\a coisa como o homem; porque o homem não existia (não mais que a vida, a
Jlnsuagem e o trabalho)..." (p. 355).
O ensaio que se acaba de ler deve alguma coisa a este texto e principal·
O homem de Maquiavel é uma vontade que se eleva: por conseguinte, o mente à passagem que aí grifei. Se se designa sob o nome de problema aJ.
que se toma central é a ruptura que se instaura entre este homem e as condi- awna coisa que nasce num espaço intelectual em relação ao qual ele é somen-3
ções de sua inserção no mwtdo. As relações da Fortuna e da Virtude colocam, , te enunciável, deve-se dizer que o homem nio era possível na épistémé clás-
com wna clareza que ammcia genialmente desenvolvimentos que lhes serlo llca. Mas se ..o homem" apareceu sob a forma de wn ·~r a instaurar", preci·
posteriores, problemas que reconhecemos como nossos: referem« a todas as \
aamente no espaço deixado livre fora dos limites reconhecido1 - mais ou me·
rupturas e a todas as ambigüidades da fmalidade cultwal, técnica, retórica, p01 implicitamente - das "tpistémés" constituídas? Se certas atitudes im-
política. Sem dúvida, pela primeira vez todo um pensamento se articula sobre pücavam este reconhecimento nlo obteríamos, do ponto de vista da inteli-
esta constataçlo: é sobre uma base de representações finitll$, portanto, ne· Jincjo, uma definiçfo do homem, ao menos negativa? A1 pt~/avrru e as coütu
cessmiamente obscuras, que se trata, todavia, de construir o programa de um4 llo as condições que pennitirão {no s6culo XIX, segwido seu autor) uma apa-
humanidade à qual nada está dado que possa lhe fazer as vezes de "natureza •: riçlo do homem na inteligibilidade:
Michel Foucault, numa obra que com justiça fez época e que é absoluta· "O discurso que, no século XVII, ligou um ao outro o 'eu penso' e o 'eu
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mente magistral nas pesquisas às quais se dedica , afuma que o homem está eou' daquele que o empreendia, estã.discuno permaneceu, sob uma fonna vi·
ausente da representaçã"o até o fun da idade clássica. Ele traz como prova des- aível, a ·própria essência da linguagem ~ica porque o que nele de pleno
ta conclusão um estudo admiravelmente documentado da "história natural", direito se estabelecia eram a representação e o ser. A passagem do 'eu penso'
da análise das riquezas, da representação do discurso: "No pensamento clás- 10 'eu sou• se completava sob a luz da evidência, no interior de um discurso
sico, aquele para o qual a representaça-o existe e que se representa a si mesmo ele que todo o domínio e todo o fimcionamento consistiam em articular um
nela, ao se reconhecer nela como imagem ou reflexo, aquele que liga todos os eobre o outro o que se representa e o que é. Portanto, nllo M que objetar a
fios entrecruzados da 'representaç!o em painel' - este não se encontra ele 11ta passagem nem que o ser em geral não está contido no pensamento, nem
mesmo jamais presente. Antes do fim do século xvm. o homem não existia" que este ser singular tal como está designado pelo 'eu sou' nlo foi interroga-
(p. 319, a palavra "homem" é grifada pelo autor). do nem analisado por si mesmo. Ou melhor, estas objeções podem bem nascer
Deve-se bem dizer, com efeito, que o homem nlo é o mais antigo pro- e fazer valer seu direito mas a partir de um discurso que é profundamente ou-
blema que existe; encontram-se idades inteiras, culturas inteiras, nas quais o tro e que nfo tem por razão de ser o laço da representação c do ser; somente
homem não é um ser que, como tal, possa aparecer e ser reconhecido. U17UZ problemática que contorna a representação poderá formulJzr semelhantes
ob/eçõe!.*••. (pp. 322-323.)

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Parece-me ter mostrado que este demo estava realizado no pensamento rrur fl resolver, a relação do homem com a natureza sendo a política. Na histó-
de Maquiavel. No quadro de uma problemática que Foucault não analisou, ria dos pensamentos políticos ele representa o vefculo de urna reivindicação,
que nio 6 nem a ideologia, nem a economia, nem a lingüística, mas que é a oposta à ideologia das classes dirigentes pua quem, no conjunto, o funda·
política: sem dúvida era neste campo que apareceu, antes do fun da idade 6
mento da ordem política está dado num arquétipo natural • Até que a histó-
clássica, uma imagem na qual o homem é homem. Talvez mesmo, isto seria ria tenha recebido um estatuto que toma possível o fato de que urna ciência
para estabelecer, urna reflex!o como a de Epicuro, no quadro de um projeto cSa cultura rekztivamente autônoma se constitua, esta reivindicação não se in·
ético, reportaria mais alto ainda no tempo uma verdadeira presença do ho- veatiu nos estudos de apoio das ordenações conceituais mas, ao contrário, em
...
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mem a si mesmo, precisamente pelo jogo de um reconhecimento dos limites
de todas as outras representações.
retratos demiúrgicos do homem. No que toca à política, a mais ilustre tenta-
tiva deste gênero foi evidentemente a de Maquiavel: ela foi rica, sobretudo
.
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A imagem do homem que se apercebia de Sant'Andrea in Percussina de- 'ara o campo que ela liberava para construções positivas e críticas posterio-
limita bem, en crewc, o que hoje compreendemos sob o nome de história. Cer- na.
tamente a história segundo Maquiavel nio tem todas as conotações que deter-
minarão positivamente o conceito numa inteligibilidade científica. Mas ao me-
nos sabe-se, por ela, a partir de iluminações de abandono coletivo, o que esta NOTAS
. história não é: ela nfo é uma história natural; além disso, ela já compreende o
que sempre subsistirá quando ela se tornar um conceito elaborado: que o ho- . , 1. O estado das questões sobre Montesquleu é ao mesmo tempo resumido e
mem aí se apresenta como exigência de um problema a resolver. Bela prepara- promissor num pequeno ensaio de Louis Althusser: Montesquieu. la politique
çio se faz para a elaboração de uma problemática do que chamamos cultura, et l'histoire. P.U.F., 1969, Coleção "Iniciação filosófica" . O leitor que se re-
pela qual a tripla ruptura maquiaveliana é uma condição necessária: ruptura \ meter a ele encontruá, além disso, urna bibliografia.
de cosmologias globais, de escatologias transcendentes e de empirismos meca- 2. Michel Foucault, Les Mots et les choses. N.R .F., 1967, Coleção "Biblio-
nicistas. Nesta condição! possível pensar a cultura como qualitativamente di- teca das ciências humanas" .
f~r~te d~ _natureza, sem que estes dois termos sejam opostos em sua antino- 3. Epistéme: palavra grega para "ciência". Aqui, modo de compreensão pos-
mia clássica e estática4 • ' - - -· -- · aível e determinante de urna certa organizaçio das representações de urna
4poca. Designa também o campo recoberto pela inteligibilidade e organizado
~egundo as leis de um certo tipo de ligação.
4. As melhores lições, sem dúvida, nos silo dadas, a este respeito, pelos etnó-
ÀJ épistémé horizontais a história do pensamento político nos convida logos, como se pode julgar, por exemplo, ao ler muito atentamente: Leroi-
muito mais a substituir "tipos" pelos quais o tempo ftlosófico-antropológico Gourhan, Le {]este et la paro/e. Albin-Michel, 2 volumes, 1964 e 1965.
é atravessado em sua quase-totalidade e não leva em conta diferenças históri- S. Cf. o muito penetrante estudo conduzido por Nizan, num pequeno li-
cas que sobrevêm no não-filosófico. vro: Les Matérialistes de l'antiquité. Edit . Maspero, 1968.
Para o primeiro destes tipos Q fato político é pensado numa natureza 6. Compreendido aí sob a forma sutil do liberalismo que se apresenta como
(ou o que é, pua a inteligência, equivalente): .!J~Olíti~-é ~~~~~o. ~ad~t;;:­ a forma econômico-política que deixa jogar as "desigualdades naturais",
m!n..!Çio. ~!_ ~ssência CÓsmica ~O f!o~_!tn. }!.la permeia nos pensamentos" PelOs fazendo-lhes um apelo - aliás estranho às idéias de Darwin - à "seleção dos
quais o político tem um modelo de referência não-cultural. mais aptos".
O segundo, tão antigo quanto o pensamento de que guardou traços es-
critos5, recebeu urna ilustraçl'o particular no pensamento de Maquiavel. A
existência humana em geral, e política em particular, aparece aí corno proble-

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