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Quem é Saidiya Hartman, que revoluciona a história


que se conta da escravidão
Frustrações da pesquisadora em viagem a Gana originaram 'Perder a Mãe', que
mistura ensaio acadêmico e relato pessoal

22.out.2021 às 15h55


EDIÇÃO IMPRESSA
(https://www1.folha.uol.com.br/fsp/fac-simile/2021/10/23/)

Walter Porto (https://www1.folha.uol.com.br/autores/walter-porto.shtml)

SÃO PAULO Quando viajou a Gana para pesquisar as cicatrizes da escravidão


(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/09/brasil-foi-o-pior-lugar-para-ser-escravo-afirma-autor-de-bahia-de-todos-os-

negros.shtml),
a americana Saidiya Hartman tentava fazer também uma escavação
muito pessoal das próprias raízes. Se buscava alguma sensação de
pertencimento, encontrou algo bem diferente. "Nunca me senti tão só em toda
a minha vida", confidencia a um amigo a certa altura do livro "Perder a Mãe".

Não era esse o plano, mas a obra acabou construída em primeira pessoa e
repleta de relatos íntimos sobre sua história familiar. Ganhou ar de romance,
mas não se engane, é um ensaio acadêmico robusto, que acresceu à pesquisa a
necessidade consciente de ter sua autora como uma espécie de personagem.

Professora da Universidade Columbia, em Nova York, tornada uma das


principais referências intelectuais (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/05/plano-de-bolsonaro-
para-os-negros-e-o-exterminio-ou-a-submissao-diz-sueli-carneiro.shtml) da
diáspora africana, Hartman
começa agora a ser publicada no Brasil —e aos montes.

"Perder a Mãe" sai pela Bazar do Tempo, que também vai publicar "Vênus em
Dois Atos" e "Cenas de Sujeição" em coedição com a Crocodilo. A Fósforo, que
já editou o ensaio "O Fim da Supremacia Branca"
(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/06/web-du-bois-evidencia-que-a-literatura-negra-sempre-foi-proficua.shtml),

prepara seu premiado "Vidas Rebeldes, Belos Experimentos" para o ano que
vem.
A escritora americana Saidiya Hartman, que publica seu 'Perder a Mãe' no Brasil pela Bazar do
Tempo
- Divulgação

Não é preciso avançar muito na leitura para reparar na sua distinção estilística
(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/09/arjan-martins-reinventa-o-modo-de-representar-pessoas-negras-nas-artes-

plasticas.shtml),
que se emancipa da objetividade acadêmica em prol de um tipo
diferente de produção de pensamento —nascido da criatividade e da
frustração.

Em Gana, Hartman queria colher material para um mapeamento detalhado das


rotas escravistas africanas (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/06/novo-livro-de-laurentino-gomes-
sobre-escravidao-vem-em-otimo-momento.shtml). "Mas a extensão dos registros era tão pequena

que eu percebi que realmente precisava falar sobre a minha experiência, ao me


debater com o que eu sabia e o que eu nunca poderia saber. As lacunas da
escravidão que jamais seriam preenchidas", conta a autora.

"E eu tinha que levar em conta os aspectos afetivos da produção de


conhecimento", afirma. "Pensar o que significa a frustração de entrar numa
masmorra e não encontrar nenhuma informação além de ruínas e resíduos."
Outro abismo importante se revelou à escritora só quando ela cruzou o
Atlântico —a colossal diferença entre a abordagem do legado da escravidão
dentro e fora da África. Ao visitar os principais sítios do tráfico ganês, ela narra
que sentia ao redor "olhares temperados com desdém, diversão ou piedade –
outra estadunidense aqui para chorar pelo que aconteceu há tanto tempo".

Aprender que muito da identidade em Gana "dependia do silenciamento de um


passado no qual elites vendiam plebeus", enquanto a solidariedade que
Hartman sentia com outras pessoas negras dependia precisamente de criar
uma memória da escravidão, despedaçou "qualquer ilusão de uma
unanimidade de sentimento no mundo negro".

As reações a "Perder a Mãe" foram fortes, diz Hartman, porque as pessoas


preferem "histórias arrumadinhas" ao desconforto de uma narrativa que
incorpora certa desordem (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/07/claudia-rankine-se-recusa-a-ser-
didatica-com-brancos-em-so-nos.shtml). Um sintoma disso é a pujante indústria turística que

Gana ergueu para atrair afro-americanos em busca de suas raízes, algo que no
argumento da autora só servia para calar o passado.

"Um guia nos levou a um tour dos pontos importantes do escravismo em


Benim, e tudo termina numa estrada cheia de bandeiras dos Estados Unidos.
Para uma americana, chegar à África e ser recebida por isso foi uma enorme
dissonância cognitiva."

tudo a ler
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Segundo a pesquisadora, aquelas rotas turísticas foram todas "moldadas pela


linguagem do Departamento de Estado dos Estados Unidos" —ela relata até
excursões à Gâmbia e ao Senegal organizadas pela rede McDonald's.

"Ou seja, o mesmo país que não quer lidar com o legado da escravidão no seu
próprio território faz isso no país dos outros, modelando os termos da história
do colonialismo."
A pesquisadora lembra que o Juneteenth, data que celebra o fim da escravidão,
se tornou oficialmente um feriado americano
(https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021/06/pela-1a-vez-eua-celebram-feriado-nacional-que-marca-fim-da-escravidao-no-

pais.shtml) há pouco. "Os parlamentares republicanos mais racistas e reacionários


apoiaram essa medida ao mesmo tempo em que tentavam tirar direitos dos
eleitores negros. Eu não preciso de um feriado nacional sobre a escravidão
enquanto ainda estou sofrendo as suas consequências brutais. Que memória é
essa que você quer celebrar?"

O tom ecoa uma desilusão que toma conta de boa parte de "Perder a Mãe",
escrito em 2006 e imbuído da sensação de que a janela para mudança
significativa já tinha se fechado (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/06/negros-nao-sao-vistos-
como-humanos-mas-objetos-diz-autor-de-afropessimismo.shtml).

"Nos anos 1960 ainda era possível acreditar que o passado podia ser esquecido,
pois parecia que o futuro, finalmente, havia chegado", diz um trecho do livro.
"Enquanto na minha época a impressão do racismo e do colonialismo parecia
quase indestrutível."

Mas, conforme a obra avança, a impressão de que qualquer projeto de futuro


está fadado ao fracasso se dissipa, algo que Hartman reforça 15 anos depois. "O
começo do livro discute o que uma certa imaginação política falhou em
produzir, falo do panafricanismo, o movimento por direitos civis
(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/08/icones-martin-luther-king-e-malcolm-x-ganham-nova-profundidade-em-

livros.shtml).
Quis sublinhar os limites desses projetos. Mas no meu último capítulo,
particularmente, penso os novos termos da nossa imaginação de liberdade."

Vale contar um caso pessoal da escritora para ilustrar o movimento que ela
propõe.

Nascida há 60 anos como Valarie Hartman, durante a faculdade ela mudou seu
nome para Saidiya —a pronúncia é "sadia", com o "i" alongado—, adotando uma
palavra de origem suaíli para contornar os impulsos europeizantes de sua mãe.
Mais tarde percebeu que o novo nome também era "uma ficção de alguém que
jamais seria —uma garota sem a mácula da escravidão e a decepção como
herança".
A história de Hartman se afina a sua teoria de que é preciso construir uma
identidade que não busque ignorar a chaga do escravismo nem retornar para
um idílio anterior à violência colonizadora —mas que nasça a partir da perda
fundamental produzida pela escravidão.

"O assassinato da memória criou também um novo sentido de identidade", diz


ela, sorrindo da sala de sua casa. "A consciência negra é inseparável de uma
imaginação da liberdade, que é um presente para o mundo. É uma cultura
moderna que tem a mesma magnitude do terror que a produziu."

PERDER A MÃE: UMA JORNADA PELA ROTA ATLÂNTICA DA ESCRAVIDÃO

Quando Lançamento em 1º/11


Preço R$ 69,90 (364 págs.)
Autor Saidiya Hartman
Editora Bazar do Tempo
Tradução José Luiz Pereira da Costa

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