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TEORIA DO ESTADO I

Olavo de Carvalho

Aula 6 – 22/05/2004

Há um aluno deste curso – não interessa saber quem é, e se ele estiver presente, peço
por favor que não se apresente – que enviou uma mensagem a um site da Internet chamado
Centro de Mídia Independente (CMI), que é uma organização presente em 120 países e
ligada àquelas passeatas antiamericanas que se seguiram ao 11 de setembro. Esse sujeito
disse que aqui no Paraná havia um curso de Teoria do Estado organizado por um
perigosíssimo grupo de direita, o qual freqüentava para identificar quem o patrocinava, e tão
logo descobrisse, comunicaria ao distinto público do CMI. Quero cumprimentar essa pessoa
(não sei o porquê dele estudar aqui), pois se ela já conhece teoria política ao ponto de não
apenas conhecer os conceitos gerais, mas até de ser capaz de identificar exatamente quais
são os processos, os agentes, numa situação particular e concreta que está vivendo – ela é
um gênio, um gênio fantástico!
Acontece que, no Brasil de hoje, é normal as pessoas pensarem que só se faz algo se
houver um propósito político-eleitoral secreto, organizado, com dinheiro a rodo; no fim das
contas, todos disputam poder, cargo público etc.. Na verdade, acredito que a preocupação do
brasileiro com problemas sociais não é nada mais do que uma extensão de sua obsessão por
dinheiro. Não existe povo mais “dinheirista” no universo do que o brasileiro. Isso não
significa que ele queira ganhar muito dinheiro ou seja ambicioso: mesmo as pessoas sem
ambições especiais, cuja aspiração máxima é um emprego regularmente pago, mesmo essas
acreditam piamente que o dinheiro move o universo e que tudo o que se faz no mundo, em
ultima análise, é visando ao dinheiro. Portanto, as pessoas se dividiriam em dois tipos:
aquelas que querem dinheiro apenas para si mesmas: os malditos capitalistas; e aquelas que
querem dinheiro para todos: as pessoas do bem, os socialistas. Tudo que o ser humano fez
ao longo de sua existência histórica – as descobertas da ciência, as criações da arte, as
grandes realizações dos santos ascetas e místicos – tudo foi por dinheiro; se não, foi um
auto-engano: a pessoa pensava que era por outro motivo, mas no fundo também era por
dinheiro.

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Esse pensamento é tão natural ao povo brasileiro, que ele acredita que o resto do
universo também pensa e imagina que as coisas são realmente assim, de tal modo que tudo
se resume na frase do Millôr Fernandes: “O dinheiro não é tudo. Tudo é a falta de dinheiro” 
O brasileiro não se preocupa com dinheiro, mas se preocupa intensamente com a sua falta, e
como a preocupação com a falta de dinheiro é a sua motivação principal, ela surge como a
explicação das motivações de todo o mundo. É evidente que qualquer povo que pense dessa
forma terá sempre cinco anos de idade mental, entenderá o mundo de uma maneira
absolutamente fantasista e deslocada, estará sempre colocado em último lugar em tudo, por
mais chances que tenha e, evidentemente, terá sempre de explicar seus fracassos e inépcias
pelo fato de que outros possuem mais dinheiro e, sobretudo, de que roubaram melhor que
ele. Se observarmos quase todas as análises – pouco importa o assunto – feitas pela mídia, e
até pelas universidades, concluiremos que essa é a teoria que serve de base e pressuposto
para a nossa sociologia, a nossa teoria política, a nossa psicologia etc.. Eu esperava que pelo
menos os alunos do meu curso de teoria política tivessem transcendido a isso.
Imaginar que por detrás da minha atividade intelectual haja um grupo de pressão, um
grupo interessado, não deixa de ser interessante, porque supõe que a verdadeira iniciativa
intelectual pertence aos detentores de dinheiro e poder: existiria, pois, um grupo empresarial
que já pensou as minhas idéias, das quais sou o retransmissor; na prática, sou um agente a
serviço deles. Sempre imaginei que fosse o contrário: que minhas idéias brotassem da minha
cabeça e que, talvez – se eu falasse para um grupo empresarial ou político – os fizesse
entender um centésimo do que entendi ao longo de quarenta ou cinqüenta anos de esforços.
Logo, este país é uma plêiade de gênios filosóficos absolutamente fantásticos. Nunca
imaginei que a situação fosse tão boa, pois na minha vida diária mal encontro interlocutores,
pessoas com quem trocar idéias. No Brasil, só tenho alunos; interlocutores, só fora. Mas se
eu soubesse que aqui havia tanta gente inteligente – que pensou tudo o que pensei antes de
mim e me assoprou – ficaria feliz, porque teria uma multidão de mestres e gurus. Certa vez,
no Rio de Janeiro, um jornalista chegou a escrever que o verdadeiro autor das minhas idéias
era o Dr. Ronald Levinson, dono da Faculdade da Cidade, que era, como todos sabiam, uma
pessoa extraordinária no campo da ciência. Contudo, o Dr. Levinson deve ser um homem
muito modesto, pois jamais me deixou perceber que sabia tanto. Vejam que uma situação
que à primeira vista parece pontual, após análise, descobre-se disseminada pela sociedade.
Não sabemos se rimos ou choramos ao saber que existe um universitário capaz de pensar
assim.
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O mais bonito foi que ele dissesse que desmoralizar toda a filosofia moderna era
parte da estratégia política adotada para derrotar o PT nas próximas eleições. Seria
fantástico conseguir vencer o PT derrubando Kant, Freud etc.. Não consigo imaginar um
caminho mais tortuoso para se chegar a um resultado político concreto. Lembro-me que, na
última aula – não deste curso, mas do de filosofia –, eu estava desmontando a filosofia de
David Hume, um dos pensadores centrais da corrente conservadora inglesa; porém, era bem
provável que eu a estivesse desmontando com segundas intenções: o que eu queria mesmo
era acertar o PT. Quando uma pessoa é capaz de tal pensamento, demonstra todo seu
despreparo e primitivismo. Hoje mesmo li um artigo de um físico que afirmava que no
Brasil não existe alta pesquisa científica porque os americanos não a permitem: eles nos
pressionam para que permaneçamos atrasados em matéria de ciência. Evidentemente, deve
ser por isso eles sempre alimentaram os nossos institutos com verba, sempre ofereceram
bolsas de diversas universidades americanas. Mas as bolsas para nossos estudantes são de
um curso especial, só para brasileiros. Ciência eles ensinam para os outros, mas para os
brasileiros só ensinam pseudociência, para ficarmos atrasados. O bolsista tem a impressão
de que está tendo acesso ao conhecimento mas, em verdade, o conhecimento lhe está sendo
negado. Imagine a mesquinharia, a pobreza mental e moral de um povo capaz desse
pensamento. Enfim, o brasileiro realmente merece estar atrasado em matéria de ciência e
tudo o mais.
Lembro-me que foi na Romênia (um país absolutamente miserável) onde eu soube o
que é pobreza, o que é miséria – aqui eu nunca o soubera. No Brasil se fala, por ex., em
menino de rua, mas no Rio de Janeiro esses meninos estão todos gordinhos, pois ficam à
porta do McDonald’s pedindo: “Tia, me dá um Big Mac.” No total, contaram-se entre o
Centro e Copacabana exatamente 114 meninos de rua, ao passo que na Romênia víamos
milhares deles. Lá é inútil pedir dinheiro, pois ninguém o tem; por isso eles só pediam a
estrangeiros. Aqueles meninos, que realmente não têm onde morar, durante o inverno se
escondem na rede de esgoto para se aquecerem nas fezes e desse modo não morrerem
[congelados] (em São Paulo se fez uma pesquisa com cinco mil meninos de rua, e chegaram
a conclusão de que dois terços deles tinham casa, família etc.; eles simplesmente haviam
fugido de casa). Lá sim eu soube o que era miséria.
Quando desembarquei lá, no primeiro dia um sujeito aproximou-se a mim e disse:
“Que bom que você está aqui! Há um rapaz que vai apresentar uma tese sobre Aristóteles, e
nós soubemos que você é um estudioso do Estagirita. Por isso queremos convidá-lo para
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fazer parte da banca.” Ao chegar ao local, vi que a banca já contava com oito membros: eu
fui o nono. Finalmente aparece o rapaz, um sujeito de uns 23 anos, e apresenta o trabalho –
um trabalho genial, novo, original, importante. Já estava impressionado com o trabalho dele,
quando os oito componentes da banca começaram suas análises. De repente vi-me sentado
ao lado de oito conhecedores profundos e extensos da matéria – e eu seria o nono a falar (no
Brasil inteiro, em todas as universidades, não há oito pessoas que conheçam Aristóteles
daquela maneira. Quando publiquei meu livro sobre Aristóteles, em 1997, fazia trinta anos
que saíra o último título brasileiro sobre o tema). Olhava para aquilo e pensava: “O romeno
não esperou encher os bolsos de dinheiro para começar a estudar.” Contudo no Brasil
acreditamos que primeiro deve-se ganhar muito dinheiro, resolver os problemas, e depois,
talvez, dedicar-se ao aprimoramento intelectual, que seria uma espécie de cereja no bolo. O
estudo aqui só tem duas funções: (a) a função utilitária de produzir dinheiro ou, (b) a função
ornamental de adornar a fortuna já conquistada. É evidente que se não houvesse tal
premissa, também não poderia haver a crença de que a falta de ciência no Brasil deve-se à
oposição americana – o brasileiro acredita que tudo que o americano faz é também por
dinheiro. Tentar ensinar algo em uma sociedade onde essas idéias estão disseminadas no
coração do povo é um empreendimento e tanto. Era mais fácil quando os jesuítas tentavam
converter os índios: pelo menos os índios não tinham tais idéias na cabeça.
É claro que esse episódio elucida o conteúdo do que estou ensinando; é evidente
também que o sentido do que seja o critério da verdade, em matéria de ciência, é
praticamente inalcançável para pessoas formadas nesta cultura, é muito difícil. As
exigências da constituição da ciência são incompatíveis com essa mentalidade. Vocês
devem ter reparado que estudar, para a maior parte das pessoas ou mesmo para vocês, é
considerado uma atividade dolorosa, a ser evitada a todo preço. Ler um livro, por ex., é
humilhação fora do comum, uma espécie de tortura, a que as pessoas se entregam apenas na
esperança de ter uma vida melhor. Vida melhor significa ganhar um pouco mais de dinheiro.
Só aceitam estudar sob tal condição. Essa é uma concepção de vida totalmente errada,
deprimente, auto-hipnótica, auto-paralisante – e se o sujeito não se liberta disso no começo,
não vai para frente.
Eu planejei começar esta aula com a explicação do critério bíblico de veracidade
científica. Contudo, pensava eu: “Será que isso realmente interessa?”. Não acho possível
que alguém siga um curso qualquer se tem em vista um objetivo que não seja o de entender
o que está sendo dito. Quando abro um livro de Aristóteles ou de Leibniz, tento fazer uma
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ginástica mental, a qual é ler pensando no que vou ganhar com isso. Evidentemente não
consigo, pois o assunto é muito complexo, a seqüência da exposição tem suas próprias
dificuldades e exigências internas; se eu não esquecer de tudo o mais e não estiver
mortalmente interessado naquele problema que está sendo tratado, não consigo acompanhar
o raciocínio do autor. No entanto, vejo a imensidão de alunos que estão com um olho no
livro de física ou de filosofia, e com o outro em uma motivação muito distante daquela. Não
sei como é possível estudar assim. Eles devem ter um truque que a mim não ensinaram.
Desde que era moleque, nunca parei um instante na minha vida para pensar em como
subir de padrão de vida ou ganhar mais – nunca pensei nisso nem um único minuto da
minha vida. Nunca pensei em como conseguir um emprego melhor ou obter
reconhecimento. Nunca parei para pensar nessa porcaria. Nunca houve na vida, na história
humana, um único homem que produzisse alguma coisa boa – em ciência ou em filosofia –
que pensasse nisso. Quando se estuda as vidas dos filósofos, vê-se que todos eles, se tinham
a sorte de ter uma condição melhor, tratavam de aproveitá-la; se não tinham, não perdiam
tempo pensando nisso. O maior filósofo do Ocidente, Leibniz, sempre ocupou empregos
abaixo da sua capacidade: foi secretário de embaixada, bibliotecário. Se observarmos a sua
correspondência e tudo o mais que se sabe e ouviu sobre ele, não encontramos uma
reclamação sequer. É claro que se ele tivesse uma situação melhor – por ex., se ganhasse
mais dinheiro – aproveitaria isso em prol do estudo, porque estudar era tudo o que ele fazia.
Portanto, a idéia de que o conhecimento possa preencher a vida humana, de que seja um
objetivo, não existe na sociedade brasileira. E se não existe, pergunto-me como alguém vai
motivar-se para os estudos? Por que vai estudar? Por que vai ouvir as coisas que estou
dizendo? Sem conseguir entender ou sintonizar o que digo, o “camarada” vai ter de arrumar
outra explicação. E a explicação tem de ser um interesse financeiro, um benefício social
qualquer ou, melhor ainda, o poder político, que é o dinheiro multiplicado por dois. (Político
não precisa ter dinheiro na carteira, mas pessoas. Quando se abre a carteira dele, está
recheada de pessoas, que são a moeda com que ele paga as dívidas.). Vamos jogar fora essas
idéias, pois não dá certo. Vocês nunca vão entender nada do que estou fazendo, nem do que
nenhum filósofo fez a partir daí. Nunca! Isso é absolutamente impossível.
Voltando ao assunto, admitamos que uma teoria científica seja verdadeira. Após a
decomposição analítica, por lógica, dos conceitos transmitidos e das articulações propostas
por essa teoria, obter-se-á como resultado apenas a análise lógica de conceitos. Se o
resultado dessa decomposição analítica corresponde, ponto por ponto, com a análise
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descritiva do próprio objeto, pode-se afirmar que existe algum elemento de veracidade na
teoria. Ou seja, em uma teoria a possibilidade da veracidade está na coincidência entre
análise e descrição. Por ex., se digo que uma mesa é assim ou assim, darei uma definição de
mesa; a partir daí, é necessário que se encontre na decomposição dos conceitos utilizados a
correspondência estrutural da descrição física da mesa com suas peças, partes, funções e
relações. Dito de outro modo, é preciso, de um lado, analisar logicamente a teoria e, de
outro, analisar descritivamente o objeto. Isso não significa que a teoria seja verdadeira, mas
que ela tem o direito à pretensão de veracidade, cuja evidência dar-se-á pela convergência
de análise lógica e descrição.
Não é necessário dizer que qualquer idéia, qualquer opinião que circule e trate da
sociedade humana, da política etc., ainda que casual ou emitida em uma discussão de
botequim, tem um conteúdo logicamente analisável e, enquanto tal, baseia-se em premissas,
em pressupostos que podem ser identificados. Isso significa que a totalidade das opiniões
circulantes sempre remetem a alguma teoria muito antiga que o indivíduo falante sequer
conhece como tal. Ele a repete sem saber de onde veio ou porque a está repetindo. Às vezes
acredita que acabou de pensá-la, que ela saiu da sua mais profunda espontaneidade criadora.
Mas se há um hábito que o estudioso de ciência política tem de adquirir, é o de rastrear
historicamente as premissas das opiniões circulantes. Somente assim entendemos realmente
o que as pessoas dizem; no caso, entendê-las é saber quais são os pressupostos, as condições
lógicas e objetivas em que aquela opinião se baseia em última análise. Também é claro que
nunca entenderemos uma teoria, uma opinião somente a partir de suas expressões derivadas,
secundárias e banalizadas. Temos de rastreá-las para encontrar qual foi a sua melhor e mais
plena expressão: para cada opinião banal circulante, existe uma expressão melhor que algum
estudioso proferiu há 50, 60, ou mil anos atrás. Evidentemente, ao nos confrontar com a
expressão banal, na verdade confrontamo-nos com o seu original ou sua fonte. Muitas vezes
me valho disso em artigos de jornal, ao analisar as opiniões correntes; sei perfeitamente a
fonte à qual aquilo se remete, quer o indivíduo saiba ou não. Essa é uma espécie de
discussão em dois planos: eu falo com você, mas na verdade estou falando com o seu
ignorado guru. Você repete algo dito por Kant, David Hume ou Thomas Hobbes, mas
desconhece a origem. Portanto, só conseguirei discutir sua opinião e analisá-la se eu
conhecê-la em uma expressão superior àquela que recebo. Quer dizer, a condição nº. 1 para
entendermos qualquer opinião é saber expressá-la de modo superior ao em que a ouvimos, a
não ser que a tenhamos ouvido em sua expressão superior. Por ex., se um indivíduo, ao ver
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que o povo age de forma desonesta, repete a frase banal: “O exemplo vem de cima”,
significa que ele supõe que o assaltante de esquina – um garoto de 12 ou 13 anos – está
assaltando porque vê o estado de corrupção na política brasileira, está desiludido com os
políticos nos quais tantas vezes votou, ficou cansado de votar – “estou cansado de votar e
ficar desiludido” –; após haver votado várias vezes, decide começar a roubar. A idéia de que
“o exemplo vem de cima” não deixa de ser, sob certos aspectos, o eco longínquo de uma
frase de Karl Marx sobre a classe dominante e sua ideologia, frase essa que por sua vez
misturou-se com teorias políticas que afirmam que as elites são os verdadeiros agentes da
sociedade. Misturou-se pois marxismo com teoria das elites. Quando um sujeito diz isso,
está ecoando essas teorias.
Se não conheço uma teoria em sua expressão mais clara, vou discuti-la diretamente
em sua expressão banalizada e popular e cair naquele erro que expliquei na primeira aula:
em vez de se discutir uma idéia, discute-se um compactado simbólico de emoções, o qual
em si mesmo não é passível de discussão. Ou seja, para discutir a idéia de fulano, vou
precisar decompô-la nos seus elementos cognitivos, com os quais, aí sim, posso discutir.
Mas quando se trata de uma expressão compactada de impressões, a impressão é geralmente
verdadeira, mas a expressão não guarda uma correspondência exata com ela. O fulano diz
algo porque percebeu; se percebeu, a coisa existe; contudo, ele não lhe dá o nome
apropriado, mas o nome que conhece, o qual é arbitrário. Fica evidente, pois, que aquilo que
sujeito quer dizer nunca é o que ele de fato disse. Daí se vê a total inutilidade das discussões
em família, com os amigos, ou no botequim. Nessas discussões, ninguém diz exatamente o
que viu: conseguir a expressão exata da impressão experimentada seria, no mínimo, uma
realização literária. Ainda que o sujeito expresse um erro, ele teria de expressá-lo com
exatidão. Por ex., o paranóico levará meses até dizer o que sente ao psicanalista. Na hora em
que conseguir, estará praticamente curado. Vejam que até uma impressão enganosa é difícil
de exprimir. Mas se discutimos essa expressão, discutimos palavras que não correspondem
ao que o sujeito viu; por sua vez, o que ele viu ou acha que viu corresponde apenas a um
determinado estado subjetivo que vivenciou, e não a alguma realidade cientificamente
identificável. Grande parte do esforço nesse tipo de estudo é – como expliquei na primeira
aula – a simples passagem de um compactado de impressões para conceitos explícitos, que
possam em seguida ser confrontados com a análise descritiva do objeto. Só aí podemos
dizer se a sentença, a afirmação corresponde a alguma realidade ou não; antes disso, não.

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Não é preciso dizer que, ao longo dos últimos vinte anos, dificilmente encontrei
alguma opinião sobre o que quer que fosse que pudesse realmente ser discutida de modo
objetivo porque, em todo lugar, encontram-se apenas compactados de impressões, expressos
de uma maneira convencional. O que quero dizer com convencional? Quero dizer que o
sujeito acha que expressa a coisa de maneira a evocar no ouvinte uma emoção semelhante a
que ele está sentindo. Mas ele apenas acha. Se por acaso ele acerta – ele conseguiu despertar
em alguém um sentimento parecido ao que ele está sentindo – , considerará tal acerto como
prova de que diz a verdade. Na verdade, há apenas uma coincidência de sentimentos. Ele
sequer sabe se a representação subjetiva de ambos coincide. As pessoas conversam como
quem dança, em que um tem de harmonizar com o outro: o passo de um tem de completar e
encaixar no passo do outro de alguma maneira. Na dança só existem duas pessoas a se
encaixarem, mas em uma conversação a respeito de um estado objetivo de coisas, seria
preciso que os dois se encaixassem a um terceiro. Na hora em que ambos se encaixam, dão-
se por satisfeitos, enquanto o terceiro, que é o assunto da conversa, permanece
completamente ausente. Isso significa que em praticamente todas as conversações e
discussões que temos, seja na mídia, na universidade, em casa, no botequim, só se
confrontam estados subjetivos de ânimos; no fundo, as pessoas estão apenas tratando de se
ajustar umas às outras, o que evidentemente não é uma coisa maligna. Mas o coitado do
assunto nunca comparece. Se, ao contrário, fazemos um esforço de estudo real, objetivo,
científico, o assunto deve predominar sobre nossos estados de alma e também sobre nossas
imaginações. Devemos nos esforçar para que as palavras não apenas suscitem impressões de
acordo – que são suficientes nas conversações diárias – , mas antes uma imaginação e uma
representação identificável do objeto, do assunto, de tal modo que possam ser conferidas
com a representação do outro. A conversação não se dá entre duas pessoas, mas entre duas
pessoas e o objeto, o qual manda em nós. Aqui não interessam nem o professor nem o aluno,
mas exclusivamente o objeto.
No nosso caso, o objeto tem duas camadas: a primeira é a própria teoria política; a
segunda são os objetos sobre os quais ele versa. É evidente que se estudássemos a teoria
política com a única finalidade de entender a teoria política, não entenderíamos coisa
nenhuma, pois a teoria política é um espelho, e nesse espelho deve aparecer um objeto
reconhecível, não só tal como ele aparece na teoria política, mas tal como aparece na própria
existência. Se não for assim, é impossível saber se a teoria política estudada é verdadeira ou
não, pois a teoria política reduzir-se-ia à sua formulação verbal; poderíamos fazer a análise
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lógica, mas não teríamos a análise descritiva do objeto para comparar com ela. A grande
dificuldade é que na teoria política, como em muitas outras ciências, o objeto não é
imediatamente reconhecível pelos sentidos, não é um objeto físico, mas é um objeto que tem
de ser recomposto imaginariamente a partir de uma complexa variedade de experiências e
evocações.
Consideremos um dos conceitos fundamentais da teoria política, que é o conceito de
obrigação. Todos acreditam saber o que é uma obrigação, pois sabem por experiência o que
é uma atribuição que alguém espera que se cumpra. Neste curso existe uma certa obrigação
de freqüência, sem a qual não se obtém o certificado. Todos nós temos alguma experiência
do que seja obrigação. O que não sabemos é se, (a) primeiro, essa experiência que temos da
obrigação não vem misturada com outras coisas que não tem nada que ver com obrigação;
por ex., o fato de uma pessoa gritar conosco quando não cumprimos algo que ela acredita
ser uma obrigação, pode associar em nossa mente a idéia de obrigação com a idéia de
opressão, castigo ou algo parecido. Essa idéia, evidentemente, não faz parte da noção de
obrigação (ela pode ser acrescentada). As pessoas não gritam conosco apenas por causa
obrigações não cumpridas, antes por causa de expectativas que alimentaram e nós não
atendemos. Se há uma pessoa sexualmente interessada em você, mas você não lhe dá
confiança, um dia ela pode acabar brigando consigo. Pergunto: você tem obrigação de
transar com aquela pessoa? Não. No entanto, isso é a maior causa de brigas que conheço (eu
por isso já perdi emprego). Essa noção de opressão, castigo, represália, pode estar associada
na imaginação com a idéia de obrigação – e isso vai nos confundir. (b) Em segundo lugar,
não sabemos se a nossa experiência de obrigação nos revelou o que é importante nessa
noção ou apenas algum aspecto periférico; no próprio repertório de experiências que temos,
já existe uma certa limitação. (c) Em terceiro lugar, existe o problema de saber se, na hora
de formar uma idéia do fenômeno considerado – a obrigação – conseguiremos recordar
tudo, ou se a memória vai nos falhar, nos confundir etc.. Portanto, temos uma série de
dificuldades a transpor. A primeira dificuldade é entender a teoria na sua formulação verbal,
entender o que se disse e saber decompô-lo analiticamente. Isso já é um problema.
Imaginem que eu lhes desse um texto de Aristóteles ou de Thomas Hobbes para ler.
Entender o texto analiticamente é compreender não somente os conceitos, um a um, e suas
relações lógicas, mas compreender as premissas não declaradas, que ou foram dadas por
pressupostas pelo filósofo – ele achou que não precisava explicar aquilo ou que o leitor já
sabia – , ou são premissas que o autor endossou sem perceber que as endossava – premissas
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ocultas até ao emissor da teoria – , ou ainda por outra razão qualquer. Essa compreensão
pressupõe também a capacidade de analisar semanticamente os termos usados, ou seja, saber
qual é a acepção exata que o filósofo está usando em cada termo, e de como isso o afasta ou
aproxima de outras expressões dadas a teorias similares, ou ainda o aproxima dos mesmos
conceitos usados em outras teorias. Tudo isso é um problema imenso: o enunciado em si, o
texto em si, o tecido verbal em si.
No Brasil, quem é capaz de analisar um texto, já pode dar aula, é considerado um
gênio assombroso. Na USP, o curso de filosofia inteiro é constituído de análise de textos. E
os objetos dos textos? Não foram convidados. Os assuntos nunca são convidados porque,
uma vez que não se pode estudá-los pelo método da análise de textos – o único método
conhecido ali – , eles seriam um grande empecilho. Por um lado, há uma análise de textos
muito bem feita, rigorosíssima; por outro lado, não há nenhuma análise descritiva dos
objetos. Dos textos extrai-se o conhecimento científico, e dos objetos somente as impressões
impessoais enormemente confusas. Por um lado, requintes de análise lógica e lingüística;
por outro lado, um total barbarismo da imaginação. A formação uspiana consiste exatamente
nisso. Se após anos desse tipo de estudos, o professor Giannotti chegou à conclusão de que a
principal ocupação da filosofia são os textos, de certo modo ele tem razão, pois essa é a sua
experiência.
Se algum dia a filosofia acessou um objeto, um assunto externo aos textos, não
chegou ao conhecimento dele, ele não foi avisado. Contudo, aviso desde já: após entender o
texto, precisaremos recompor imaginariamente o objeto do qual ele fala, de modo a que ele
possa em seguida ser analisado descritivamente, com a garantia de que, ao analisá-lo
descritivamente, não analisemos apenas seu próprio funcionamento psíquico, mas um objeto
realmente existente, tomado na sua máxima objetividade possível. Vamos tomar, por ex.,
um conceito que é usado nos jornais – o conceito da propriedade. Todos discutem os direitos
de propriedade – propriedade privada, propriedade pública – por meio da mesma palavra
“propriedade”, ou por alguma outra maneira. Cada vez que se discute algo relativo a um
imposto, há referência à propriedade; cada vez que se discutem salários, há referência à
propriedade; cada vez que se discute privatização ou estatização, há referência à
propriedade. Portanto, esse é um conceito que está circulando e, evidentemente, é um dos
conceitos fundamentais da teoria política.
Que é conceito fundamental em ciência? Conceito fundamental é um conceito
enunciado de tal maneira que grande número de outros conceitos, usados na mesma ciência,
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possa ser reduzido a ele; ou seja, de tal modo que afirmações sobre outros fenômenos se
reduzam a afirmações sobre esse fenômeno. Uma discussão concernente a imposto ou a
salário reduzir-se-á, em última análise, aos conceitos de propriedade e de obrigação. Do que
trata uma greve? É uma discussão concernente a algo que se supõe uma obrigação que não
está sendo cumprida; essa obrigação é determinada justamente pela propriedade disponível.
Suponhamos que uma pessoa não tenha propriedade alguma – nem imóvel, nem móvel – ;
ela terá obrigações salariais a cumprir? Se o sujeito não tem nada, pode-se conceber que
tenha obrigação de pagar salário a alguém? Isso significa que, ao levantar-se uma discussão
sobre salário, discute-se uma obrigação relativa a uma determinada propriedade. Portanto, a
discussão sobre conceitos mais particulares e diferenciados como salário, horário de
trabalho, organização trabalhista etc., é no fundo uma discussão sobre obrigação e
propriedade.
  Eis outro exemplo de conceito fundamental: em física, praticamente todas as
discussões podem se reduzir, mediante análises lógicas, a afirmações sobre um fenômeno
chamado energia. Logo, energia seria um conceito fundamental em física. Cada ciência tem
dois ou três conceitos fundamentais. Quanto menor for o número desses conceitos, melhor.
Melhor porque terá mais unidade. Uma ciência organizada é uma ciência que possui poucos
conceitos fundamentais, conhece-os muito bem e portanto consegue facilmente dar unidade
ao conjunto das teorias circulantes. Mesmos que contenha teorias e hipóteses contraditórias,
a ciência conseguirá dar unidade ao conjunto porque sabe que, em última análise, essas
discussões se referem sempre àqueles pontos centrais.
É claro que a quase totalidade das ciências humanas está muito longe de alcançar
essa unidade. Mesmo com relação aos conceitos fundamentais existe geralmente uma
enorme confusão, sem contar o fato de que a maior parte dos teóricos não consegue
estabelecer conexões, ainda que lógico-formais, entre os conceitos utilizados e os pretensos
conceitos fundamentais. Por ex., tomando-se a obra inteira de Karl Marx, vemos que um de
seus conceitos fundamentais é o materialismo; contudo, se procurarmos pelo conceito de
matéria, não o encontraremos: “O que é matéria?”. Veremos que, na quase totalidade dos
casos, ele acredita que é um materialista apenas por se referir a algo que se chama produção
e economia. Sabemos que nem produção nem economia são conceitos físicos; além disso, é
impossível saber como se daria a transição do conceito físico de matéria para o conceito de
produção. Quando isso acontece, dizemos que a teoria não tem unidade. Ela não é redutível
a conceitos básicos; antes, é constituída de construções lógicas elaboradas em cima de
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conceitos simbólicos. Quando estudamos uma teoria assim, é inútil querer discuti-la: com
efeito, teremos nós mesmos de decompor seu complexo simbólico e completá-la. Após a
decomposição, às vezes obtemos não um resultado, mas dois, três, quatro. Isso significa que
aquela teoria, decomposta nos seus elementos, pode ser não apenas uma, mas duas, três,
quatro ou inúmeras teorias. Sendo assim, é evidente que os próprios defensores, adeptos ou
expositores da teoria não se entendem entre si, e cada um defenderá as coisas mais
diferentes e heterogêneas, dizendo e jurando que a teoria é isso ou aquilo. Isso dificulta
enormemente a discussão; a confusão pode ser tanta que a idéia mesma de refutar ou
comprovar a teoria “já foi pro brejo”.
Na medida em que as várias versões da teoria se disseminam e ganham certa
vigência e popularidade no meio cultural, elas se tornam um componente da própria
realidade social que se está estudando. Daí já não interessa mais saber se a teoria é
verdadeira, mas que há multidões que acreditam nela. Aqui estamos no campo da total
irracionalidade; já não se trata mais de ciência, mas sim de política no sentido prático do
termo. Para a política, no sentido prático do termo, a refutação científica de uma teoria
importa relativamente pouco: os defensores e adeptos da teoria evidentemente não
conhecem a sua fundamentação lógica; portanto, a refutação não lhes diz respeito. Para eles,
o que interessa é ouvir o enunciado da teoria – enunciado já bastante derivado, secundário,
copiado e de terceira mão – e sentir que aquilo se harmoniza de algum modo com o seu
sentimento. O que existe é, pois, um complexo simbólico que confere com outro complexo
simbólico. Não é preciso dizer que, na quase totalidade dos casos, todo sentimento de
adesão ou de repulsa diante de qualquer idéia constrói-se exatamente assim.
Para estudar isso, o aluno deve adquirir uma série de hábitos mentais, que são tão
diferentes das discussões públicas que ele talvez se torne incapaz de participar delas.
Quando assistimos a um debate na televisão, na mídia, na imprensa, no parlamento ou em
casa, instantaneamente captaremos tanta confusão que entenderemos ser impossível lançar
alguma luz no assunto; e mais, se o tentarmos fazer, pararemos muito longe daquelas
pessoas, cujo interesse – subjetivo – é sentir uma concordância e uma harmonia entre
sentimentos.
Aluno: É o que acontece em certos discursos que observo: quando se começa a
raciocinar, percebe-se que eles provêm do mesmo conceito fundamental.
Olavo: Talvez estejam girando em torno dos mesmos conceitos fundamentais.
Aluno: Parecem antagônicos.
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Olavo: Parecem antagônicos, mas não são. Outras vezes parecem concordar, mas de
fato não concordam.
Entenda que o interessado no assunto é o estudioso, e não eles; o estudioso tem de se
advertir e perceber essa concordância não apenas nos outros, mas em si mesmo; o
sentimento de concordância que ele possa nutrir por uma idéia, ao ouvir ou ler um
enunciado, não significa compreensão, mas apenas que quer compreendê-la. Do ponto de
vista do estudioso, esse sentimento de concordância ou discordância não tem importância,
pois é apenas o ajuste entre dois complexos simbólicos: o do próprio estudioso e aquele que
ele acredita estar lá. Para decompor esses complexos em um conteúdo intelectualmente
relevante, requer algum trabalho. Só depois desse trabalho, o estudioso pode dizer se
concorda ou discorda; antes disso, não. A palavra concordar vem do latim cum cordis, e
quer dizer com o coração. A expressão de concordância ou discordância é apenas expressão
de sentimentos, e não a refutação de uma veracidade.
Se soubermos que as discussões políticas, não só na esfera popular mas até na esfera
intelectual e relevante, estão nesse nível, e ainda assim tivermos a cara-de-pau de tentar
participar delas, não poderemos jamais entrar no mérito do que estão dizendo. Se tentarmos
explicar a situação do discurso e mostrar como aquilo é absurdo, as pessoas podem entender
que discordamos delas e que, portanto, há uma divergência de idéias entre nós, quando na
verdade não se trata disso.
Quando consideramos o conceito de propriedade e a sua importância, entendemos
que uma boa parte das discussões públicas gira em torno desse conceito; por outro lado, se
espremermos os vários falantes e perguntar: “o que é propriedade?”, eles podem lhe
responder com uma definição jurídica, enumerando os tipos de propriedade, as condições de
propriedade reconhecidas na lei. Mas em todos os casos veremos que ele alude a um
sentimento que a palavra “propriedade” suscita, mas não descreve a estrutura objetiva do
fenômeno humano, de tal modo que esse fenômeno não seja confundido com nenhum outro
e que possa ser decomposto analítica, descritiva e lógico-analiticamente. Para explicar o que
é propriedade, vamos partir do uso do termo “propriedade” – não no contexto em que
normalmente é usado, que é o sócio-econômico, mas no simples contexto lógico; só após
veremos a analogia que existe entre o conceito lógico e o conceito sócio-econômico de
propriedade.
Em lógica, propriedade significa algum atributo que faz parte do objeto sem estar
contido na sua definição. Por ex., quando estudamos geometria, vemos algumas
13
demonstrações de teoremas. Como se faz uma demonstração de teorema? Toma-se a figura
de um triângulo qualquer, obtêm-se a definição dessa figura; depois, descobrem-se mais
algumas coisas a respeito dessa figura, coisas que não estavam contidas expressamente na
definição, mas que logicamente derivam dela. A prova da veracidade das conclusões é o fato
de elas conferirem com a definição dada: da definição de triângulo, não faz parte a
afirmação de que a soma de seus ângulos internos dará 180º. Existe uma demonstração
lógica para tal afirmação, e tal demonstração se apoia na própria definição de triângulo.
Logo, a propriedade é um atributo inerente, mas não essencial; essencial é só o que faz parte
da definição. Se não existisse nenhuma relação entre o sentido lógico do termo propriedade,
e o sentido sócio-econômico (é com esse termo que dizemos que uma coisa é minha ou sua,
ou alegamos que um determinado terreno é meu porque tenho escritura), se não houvesse
uma analogia qualquer entre ambos, jamais se teria utilizado o termo propriedade para
definir uma certa modalidade de posse. Sabemos que a posse é apenas um domínio físico,
que pode ser momentâneo. Por ex., o sujeito que lhe roubou está de posse do seu dinheiro,
mas você diz que a propriedade é sua. Logo, a propriedade não pode ser jamais uma posse.
A posse significa apenas domínio; mas a propriedade implica não somente em domínio, mas
em domínio reconhecido pelos outros como legítimo. Suponhamos que a definição jurídica
afirme que “propriedade é a posse legítima”. Se digo que a propriedade é a posse legítima,
dou uma definição jurídica. A definição jurídica é a definição que os juristas usam para
reconhecer a propriedade. Quando o juiz fala de propriedade, ele quer dizer posse legítima.
E o legítimo é o que é reconhecido como tal – evidentemente não pelo proprietário, mas
pelos outros, pela comunidade.
Qual o problema com a definição jurídica? Em primeiro lugar, ela não é uma
definição de maneira nenhuma, mas apenas uma alusão que indica certo traço pelo qual
reconhecemos a presença do objeto: falamos de propriedade quando falamos de posse
legítima. Mas com isso não explicamos qual é a consistência real do fenômeno da
propriedade. Que quero dizer com consistência real? Encontramos a consistência real de um
certo fenômeno quando conseguimos reduzir um conceito abstrato e complexo a certos
dados elementares da experiência humana – tão elementares quanto um dado dos sentidos,
uma emoção primária, quanto o ódio ou afeição etc.. Quando o jurista diz “posse legítima”,
é claro que ele não se refere a fenômenos primários dessa natureza. O conceito de
legitimidade não é um conceito primário, ele depende de milhões de variáveis; os critérios
de legitimidade variam de sociedade para sociedade e, enfim, a legitimidade de uma posse
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nunca é um dado primário reconhecido à primeira vista, mas é o resultado de complexos de
raciocínios. Ao analisarmos tais complexos de raciocínios e os reduzirmos a experiências
elementares, temos a certeza de que estamos falando do objeto em sua consistência objetiva,
e não apenas em seu conteúdo semântico, acumulado ao longo de complexas transições
históricas.
Para saber realmente o que é a propriedade, temos de considerar, em primeiro lugar,
que a propriedade é um fenômeno humano: o reconhecimento de legitimidade só existe
entre seres humanos. Que quero dizer com reconhecimento de legitimidade? Se tenho um
copo e a sua posse é considerada legítima, isso significa que se alguém tentar tirá-lo de mim,
posso apelar a terceiras pessoas para que me defendam. Por que afirmo que tal não existe
entre os animais? Porque qualquer posse que o animal tenha pode ser contestada por outro
animal que seja forte o suficiente para tomá-la. Logo, a posse animal, a qualquer momento,
pode ser contestada por outro animal que, se for mais forte, tomará o objeto do primeiro, o
qual não poderá apelar à comunidade dos animais para que intervenha no caso. Por ex., um
elefante macho possui uma manada de quarenta fêmeas; aproxima-se dele outro elefante,
agride-o, toma-lhe as quarenta fêmeas. Que faz o primeiro elefante? Aceita. Ele não vai ao
tribunal queixar-se do roubo das fêmeas. Ou seja, a posse pela força é considerada legítima;
ou antes, a própria noção de legitimidade não existe, mas somente a posse.
Se entendermos que a propriedade é um fenômeno humano, a noção de propriedade
só pode ser adequadamente apreendida – não na sua definição nominal, mas na sua
consistência real – se tivermos uma noção correta da diferença entre o homem e outros
animais. Se a noção da diferença entre o homem e animal for confusa ou apagada,
perderemos de vista o que é a propriedade ou até chegaremos à conclusão de que ela nunca
existiu, mas é apenas um nome dado a determinados tipos de posse.
Para resolvermos essa questão, não precisamos discutir a diferença entre homem e
animal em toda sua extensão: essa diferença também suscitaria a discussão de outras
diferenças e outros conceitos; não precisamos encontrar a definição dessa diferença, mas
antes encontrar um critério de diferenciação que valha para todos os casos e baste para nos
orientar nessa questão. Portanto, não nos interessa todas as diferenças entre homem e
animal, mas basta uma que, se comprovada, nos forneça o elemento faltante para definirmos
a propriedade. Existe uma diferença que é tão óbvia, que ninguém poderia questioná-la: o
homem nunca chega ao exercício das funções necessárias à sua própria subsistência física,
se não tiver durante uma boa parte do seu período de crescimento o apoio de toda a
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comunidade em torno. Quando digo “apoio de toda a comunidade em torno”, digo que ele
precisará receber certas coisas que, embora sejam dadas por seu pai, mãe ou por quem lhe
esteja criando, não foram inventadas por essas pessoas, nem descobertas nem criadas por
elas, mas recebidas de uma herança histórica.
O primeiro desses elementos é a linguagem. Quando a mãe ensina o filho a falar,
está ensinando algo que não foi ela que descobriu nem inventou. Quando a mãe se volta para
o filho e diz: “Fala com a mãe.”, o filho tem uma dívida não somente com ela, mas com toda
a sociedade e com uma herança histórica que ela mesma não sabe de onde veio. Isso
significa que se o filho não receber esse aporte lingüístico e cultural que vem de inumeráveis
pessoas, ele não consegue sequer lutar pela subsistência. Por outro lado, se a mãe tem algum
domínio da linguagem, suficiente para transmitir ao filho, isso quer dizer que a linguagem
que ela transmite não está apenas na cabeça ou na memória dela, mas está disseminada na
sociedade em torno. Você acredita que a língua que falamos está na memória, na cabeça?
Que conservaríamos a memória dessa língua se ninguém falasse conosco através dela, se
nunca víssemos nem ouvíssemos nada escrito nessa língua? Em suma, se não houvesse
nenhum sinal daquele idioma no ambiente próximo? Esquecê-la-íamos rapidamente. A
nossa memória lingüística não está em nós, mas disseminada no ambiente em torno, graças
aos sinais colocados por outras pessoas.
  Aluno: Uma prova disso seria, por ex., o caso do menino-lobo.
Olavo: Perfeito: retiram o sujeito da companhia humana e entregam-no para uma
loba criar. (A loba é o único animal capaz de criar um ser humano, porque seu leite é
perfeitamente adequado. Os melhores leites são o de loba e o de macaca, mas a macaca não
se presta a isso, pois ela iria querer que o bebê se pendurasse nas costas dela; ela sairia
pulando e, ao fazê-lo, o bebê cairia e morreria, seria o fim. A macaca só poderia criar um ser
humano se o amarrássemos a ela. A loba, não: ela está acostumada a deixar os cachorrinhos
na toca, sair em busca de comida e voltar para alimentá-los). Os meninos-lobos nunca
aprendem a falar, nunca voltam à condição humana. Uma vez lobo, sempre lobo. Isso
significa que o aporte cultural e social tem de ser dado desde pequeno, de maneira insistente,
persistente. Eis o detalhe mais importante: esse aporte não está completamente no portador,
mas também na sociedade em torno.
Se capturássemos um lobo e o separássemos de toda a convivência com os demais,
ele não perderia as habilidades de lobo, já que todas estão na memória dele. Ou seja, se
isolarmos uma loba e, após anos, pusermos um lobinho na sua frente, ela saberá ensiná-lo,
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pois os dados que vai ensinar não estão postos em sinais em volta, mas estão na memória
dela – ela é portadora integral desses dados. Ora, nenhum ser humano é portador integral
daquilo que tem de transmitir à geração seguinte. Essa diferença é material e fisicamente
reconhecível, não há como escapar disso. Entender essa diferença é entender que ela é tão
universal, tão onipresente, que sempre que se compare um ser humano com um animal –
embora ainda haja muitas outras diferenças –, essa diferença estará sempre presente.
Portanto, ela deve estar presente no fenômeno que estamos estudando – a propriedade.
Se a propriedade é um fenômeno especialmente humano, deve haver nela algo que a
vincule a essa diferença que assinalamos. O especificamente humano terá a marca dessa
diferença. Se escapar disso, não é humano. Se o ser humano, até para o exercício das
funções elementares de subsistência, depende de algo denominado “herança cultural”, e se
essa herança é, em princípio, imemorial – não sabemos onde começou –, isso significa que o
ser humano está colocado no ambiente cultural desde o nascimento, mesmo para o exercício
de suas funções elementares. Por ex., qualquer bichinho já nasce sabendo procurar comida,
embora não tenha a força para tanto, mas o ser humano sequer disso sabe: quer dizer que,
para ele, a diferença entre o que chamamos natureza e cultura simplesmente não existe; não
existe um ser humano natural e, em volta e acima dele, uma camada cultural que lhe é
acrescentada: sem cultura, ele não existia nem mesmo fisicamente. No ser humano a cultura
faz parte da natureza. Por isso, a discussão que busca classificar determinados fenômenos
humanos como pertencentes à ordem natural ou cultural sempre falha, já que a característica
fundamental do ser humano é a inexistência de fronteira entre o natural e o cultural. Para
outros animais, essa fronteira existe: animais também participam de uma cultura na medida
em que são assimilados à sociedade humana. Por ex., não faz parte da natureza do urso
aprender a dançar no circo. Esse é um aprendizado – que ele pode assimilar e aprender –
transmitido pela cultura humana. Daí entende-se que há uma fronteira nítida entre o que é
natural no urso e o que lhe acrescentaram pela cultura; tanto que, se não fosse acrescentado,
ele continuaria a ser um urso como outro qualquer. Já o ser humano, se retirarmos o que a
cultura deu a ele, não existiria nem mesmo fisicamente – não duraria dois dias. Como a
cultura é uma condição até para a sua existência física mais elementar, podemos dizer que
uma característica universal do ser humano é a ausência de uma fronteira nítida entre
natureza e cultura.
Vejam as inúmeras discussões sobre o crime: “É de causa genética ou cultural?” Se
me dissessem onde termina uma coisa e começa a outra, talvez pudéramos encaminhar a
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discussão, mas estabelecido nessa base o problema se torna insolúvel. Não se iludam com os
progressos da genética: todos hoje ficam muito impressionados com a genética e acham que
ela explicará tudo. Geneticamente, a diferença entre um homem e um chimpanzé é de
apenas 3%. Quer dizer que somos todos macacos? Não; antes, quer dizer que a ciência da
genética só enxerga 3%. A diferença entre um homem e um chimpanzé é visível com os
olhos da cara, é comprovável por bilhões de meios e métodos, menos os genéticos. Mas
alguém pode ser burro o suficiente para achar que a genética tem mais autoridade do que a
experiência milenar e afirmar que: “Nós sempre estivemos enganados: pensávamos que
éramos diferentes do chimpanzé, mas agora sabemos, realmente, que somos chimpanzé
menos 3%.” – isso seria de uma burrice assombrosa. No entanto, até revistas científicas
dizem que “descobrimos que somos chimpanzés, que estamos próximos aos chimpanzés”;
na verdade, isso significa que a ciência da genética, com seus métodos, não vai além disso.
A diferença entre um homem e um chimpanzé é visível: cada chimpanzé que nasce, nasce
pronto; o ser humano, não. Se não houver a injeção de um elemento milenar, cuja origem é
desconhecida, o homem não vai para frente. Para um chimpanzé existir, basta receber sua
herança genética e aqueles cuidados mínimos que sua mãe sabe sem jamais ter aprendido
(Aquilo que se sabe sem aprender é o que chamamos de instintivo). Mas se a mãe de um ser
humano não tiver em si algum conhecimento – cuja origem é desconhecida e que vem sendo
transmitida de geração a geração desde o começo do mundo – , se nela não houver esse
mistério, o ser humano não sobrevive. A vinculação a uma tradição imemorial, ilimitada, faz
parte da natureza humana, e essa vinculação é uma diferença tão gigantesca que
evidentemente a ciência da genética não pode captá-la, pois sai completamente de seu
âmbito: por definição, a ciência da genética só estuda os fatores genéticos.
Se captarmos essa diferença, entenderemos que ela é universalmente humana. Notem
bem: não definimos a diferença entre o ser humano e o animal, apenas demos um critério de
reconhecimento. Entendemos que esse critério é universalmente válido – ou seja, aplicável a
todos os casos – por si mesmo e independentemente de outras diferenças. O especificamente
humano deverá apresentar esse elemento, e portanto o fenômeno “propriedade”, se for
humano, deverá ter alguma relação com ele. Por outro lado, vemos que o conceito de
propriedade não é aplicável – na prática – somente a elementos materiais: podemos
transmitir, por ex., não um objeto, mas os direitos de uso desse objeto. Se você possuir um
terreno onde há uma fonte d’água, pode contratar com o vizinho o uso dessa fonte durante
vinte anos. Um dia o vizinho morre, mas seu filho herda os direitos, não os direitos sobre a
18
fonte, e sim os de usá-la. Quanto terminar o contrato, ele perderá o direito. A propriedade às
vezes versa sobre propriedades materiais, às vezes apenas sobre a relação que o ser humano
tem com o objeto material. Em ambos os casos, ela tem algo que ver com o direito. Dizemos
que uma coisa é de propriedade de seu fulano de tal, quando reconhecemos o direito dele, ou
de possuir aquilo, ou de pelo menos usá-lo. Entendemos portanto que a noção de
propriedade também está vinculada à noção de direito. (Não vou aprofundar a noção de
direito aqui, pois há uma apostila na minha página, que se chama O que é direito? Por favor,
estudem-na para a próxima aula. Não vou explicar o que é o direito; por enquanto, usem a
noção vulgar, que não lhes diz o que ele realmente é, mas que é suficiente para que vocês o
reconheçam.)
Entendemos que a propriedade é um fenômeno exclusivamente humano, e que ser
exclusivamente humano significa que a sua própria existência física vincula-se a uma
herança simbólica de algo que não se sabe onde começou. Eis a participação no mistério da
cultura (mistério porque não sabemos de onde veio). Alguém sabe onde a cultura começou?
Podem até conjeturar, mas não saber; para nós então continua a ser um mistério. Mistério da
cultura, mistério da linguagem. Alguém sabe quando e como começou a linguagem? Temos
um ponto de interrogação, uma incógnita com que temos de lidar. Em matemática, não
podemos fazer contas com incógnitas? Aqui também podemos raciocinar com incógnitas.
Entendemos que a propriedade, (a) primeiro, tem algo que ver com o direito; (b) segundo,
tem que ver com essa herança imemorial que, por isso mesmo, é especificamente humana;
(c) terceiro, entendemos que a propriedade nem sempre se refere a objetos materiais, mas
apenas a uma certa relação com eles. Ou seja, a relação está sempre presente na propriedade,
a materialidade do objeto não: às vezes o objeto é material, às vezes não é. O sentido
jurídico da relação, porém, está sempre presente.
Vamos dar mais um passo. Quanto à relação jurídica quando alguém diz que tem
direito a alguma coisa, a uma posse, a um uso ou a um benefício, entendemos facilmente
que essa demanda às vezes se refere a um objeto material, às vezes não; logo,
evidentemente, a propriedade não pode ser definida nem explicitada pela materialidade do
objeto: ela deve ser explicitada pela idéia de relação. A relação estabelecida entre o
proprietário e o objeto da propriedade é a da garantia de um meio de ação ao proprietário, ou
seja, ter propriedade significa que juridicamente se reconhece ao proprietário certo poder
sobre o objeto. Ter um objeto material ou imaterial e nada poder fazer com ele é
inteiramente absurdo. Isso significa que a propriedade não garante a materialidade do
19
objeto, mas a possibilidade de algumas ações. Tomemos a definição jurídica de que a
propriedade é uma posse legítima, eliminemos a noção de posse, que estava meio confusa, e
a troquemos pela noção de legitimidade do meio de ação, ou simplesmente, de legitimidade
de certas ações possíveis. Possuir a propriedade de algo passa a significar que a
comunidade, as outras pessoas, reconhece o direito de outrem fazer certas coisas; logo, a
transmissão da propriedade é a transmissão do direito a certos meios de ação.
Ora, se a propriedade é a legitimidade de certos meios de ação, vejam que há
inumeráveis meios de ação que são transmitidos sem que sejam consideradas propriedades,
juridicamente: por ex., a linguagem. Quando se ensina alguém a falar, estão transmitindo um
meio de ação, mas ninguém contestará a sua propriedade; ninguém dirá que: “Você está
usando essa língua, por isso tem de pagar imposto por ela; essa língua é minha, você não a
pode usar”; tal não acontece. Por outro lado, existem objetos que são alvo de propriedade e
de transmissão de propriedade em certas culturas, e em outras não; acabei de citar o
exemplo da água: em certas culturas, o uso de uma fonte d’água pode ser objeto de
transmissão de propriedade, em outras não. Se a água é tão abundante, se ela transcende
infinitamente as necessidades da comunidade, ninguém vai fazer dela objeto de propriedade.
Quando os europeus chegaram na América, eles demarcavam certo território e afirmavam:
“o direito a essa água é meu”; os índios não entendiam do que estavam falando, já que
aquelas pequenas comunidades tinham água em abundância. Não se pode dizer sequer que a
água era de propriedade pública: a água simplesmente não era objeto de propriedade. Objeto
de propriedade eram, por ex., as mulheres – os índios compravam mulheres. De repente
aparece o europeu, para quem era uma imoralidade vender mulher, mas era perfeitamente
normal ter a propriedade da água. Para os índios, era o contrário: sobre a água não havia
direito de propriedade, mas sobre a mulher sim. Ora, se os objetos aos quais se aplica a
noção de propriedade são tão variáveis de uma cultura para a outra, isso nos torna manifesto
que a relação chamada “propriedade” não pode ser definida pela natureza do seu objeto.
Esse problema também está relacionado à questão de propriedade privada e
propriedade pública. A possibilidade de o estado interferir – ou mais ou menos – na vida do
cidadão está diretamente ligada à idéia do que é propriedade privada e do que é propriedade
pública. Não é possível definir uma coisa sem a outra. Não é necessário dizer que, no
Brasil, toda a discussão gira em torno disso – é o único problema a ser discutido. As
questões estão baralhadas desde o início, de tal modo que, devido à sua natureza, toda e
qualquer posição que se tome leva, em última análise, a contradições. Por vezes tenho a a
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impressão de quem inventou tudo isso foi o diabo em pessoa, para fazer todos de idiota:
“Vocês vão ficar discutindo essa questão que, por definição, não tem solução; façam o que
fizerem, vai dar errado. Vocês passarão o resto da vida discutindo, darão suas vidas, vão
matar e morrer por essas bobagens, quando de fato nada disso existe!”
Aluno: Há muito tempo, ando desconfiado – não só eu, mas muita gente – de que o
grande imbróglio em que estamos metidos não é a dicotomia capital-trabalho, mas antes é o
fato de a sociedade se organizar principalmente pelo eixo da economia.
Olavo: Não tenha dúvida!
  Aluno: Temos de achar outro viés, outro sistema em que não tenhamos de nos
organizar pela dicotomia capital-trabalho.
Olavo: Só que o primado da economia se transformou em uma obsessão, e ninguém
consegue sair dela. Quem inventou esse primado foram os socialistas, mas ele contaminou
os outros também. Há multidões de anti-socialistas, liberais, conservadores etc., que acham
que não precisamos nos preocupar com a China, pois se introduzirmos lá a liberdade de
mercado, ela irá levar as outras liberdades automaticamente. Faz-me rir! Ao contrário, se o
mercado for liberado, é mais um motivo para controlar o resto. Os líderes do partido
comunista concluíram o seguinte: “O socialismo não existe, por isso a economia de mercado
vai ter de existir. Se não deixarmos, vão introduzi-lo sem a nossa permissão, aí nos
desmoralizaremos. Vamos deixá-lo entrar. Mas não entregaremos a rapadura. Há muitas
coisas que não dependem do mercado: a educação, o casamento, a decisão do que as pessoas
vão pensar, do que podem ou não dizer (quais as palavras feias que devemos proibir).” – há
muito a ser legislado. A estupidez humana é um campo formidável para legislação. Quanto
mais entregam o mercado, mais controlam o restante – exatamente o que acontece na China.
Aliás, a mesma coisa aconteceu na União Soviética. Lá também havia liberdade de mercado
– não era oficialmente reconhecida, mas existia – , mas a ditadura se tornava cada vez pior.
Claro que a liberdade de mercado por si só traz liberdade de produzir, comprar e vender,
mas não o resto. Entretanto aquelas pessoas acreditam tanto no primado da economia, que
acham que a economia conduz o mundo. (Mas isso foi inventado pelo diabo: o diabo não é
inimigo de Deus; quem acredita nisso, não entende de Teologia. Deus não tem inimigos;
quem tem inimigos somos nós. A disputa do demônio com Deus é em torno do ser humano:
o diabo quer provar que esse bicho não presta e que todos merecem ir para o inferno, ao
passo que Deus ainda acredita que o que Ele fez não merece tantas críticas assim, ainda dá
para salvar; o diabo fará o que puder para provar que somos galinhas ou chimpanzés – às
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vezes até consegue. Quando vejo isso de primado da economia, há ocasiões em que duvido
da teoria da evolução: não houve evolução alguma. Ao contrário, um chimpanzé jamais
cairia nesse conto. Essa discussão toda é, no fim das contas, uma burrice e uma maldade.)
O primado da economia foi uma decisão política, não uma teoria. O primado da
economia e, portanto, dos estudos sócio-econômicos etc., foi uma decisão de certa camada
governante durante certo período – sobretudo a França do séc. XIX – no qual os
republicanos, herdeiros da Revolução Francesa, pensaram o seguinte: “Teremos de pôr os
fatores materiais, sócio-econômicos, no topo, para derrubar isso de teologia, metafísica, que
devem ser apagados”. A sociedade humana e, sobretudo, a economia, ficará no topo da
concepção humana. Decidiram-no e fizeram-no. As gerações seguintes já não sabem que foi
uma decisão e aceitam como se fosse parte da ordem das coisas. Quando se põem a analisar
uma situação internacional, eles começam pela produção, pela bolsa de valores, acreditando
que isso vai esclarecer o resto – não esclarecerá coisa nenhuma! Estou convicto de que,
historicamente, a economia não determina nada, o fator econômico não tem peso algum. Ele
tem peso em uma situação estabelecida, normalizada. Por ex., o poder econômico só
significa poder caso exista ordem jurídica, estados constituintes, polícia, tribunais etc.. Em
uma situação de anarquia, o dinheiro não tem poder algum; nesse caso, ele é o principal
motivo para alguém ser roubado. Quanto mais dinheiro uma pessoa tiver, mais
desguarnecida estará. O que existe e vai determinar a situação é a violência. Quem estiver
armado e for mais violento predominará; o mais rico será o primeiro a ser roubado e morto.
Então, o famoso poder econômico é derivado, secundário, uma espécie de aparência que se
cria sobre uma situação já determinada por outros fatores: culturais, militares etc.. A
situação econômica de um país depende de um milhão de variáveis que não são econômicas
nem dependem da economia.
Vejam o caso da cristianização da Europa: quando começa, incute nos hábitos
populares certos valores, certas imaginações, certos modos de raciocinar que, muito mais
tarde, terão efeitos econômicos. A discussão sobre a economia de mercado (as pessoas não
sabem de onde surgiu o mercado; as decisões do mercado sempre foram aceitas, mas
ninguém tinha consciência disso) começa no séc. XI. Isso significa que a idéia de um
capitalismo já estava em germe, de certo modo, no pensamento escolástico. Eles
vislumbraram-no muito antes de que qualquer político ou homem de negócio tivesse
pensado nisso.

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Tudo começa na cabeça de algum intelectual, séculos antes de se tornar realidade.
Conosco as coisas também não são assim? O que fazemos não começa como fantasia, como
sonho, como pensamento, para depois virar realidade, se puder? Todos nós somos assim.
Materialmente tem de ser assim. Tudo começa no pensamento, que é anterior à realidade, e
não ao contrário. Mesmo após o estabelecimento de alguma situação social, ela não
determina o curso dos pensamentos humanos. Só o pensamento dos medíocres reflete a sua
época. Se o sujeito é um bobão totalmente cercado pela sua sociedade, ele não é capaz de
conceber nada acima dela. Por ex., as principais influências de São Tomás de Aquino, no
séc. XIII, vieram de Aristóteles e dos árabes. Ele nunca viu nem um nem outros. Em volta,
ele só via irmãos dominicanos. Se ele fosse uma pessoa limitada pela cosmovisão do seu
tempo, nunca poderia ir para além dela. Como é que ele fez para que um grego, que vivera
1800 anos antes, e os árabes, os quais nunca vira, o influenciassem mais do que o meio
imediato? Simples: ele é um homem inteligente e capaz de escolher as influências para as
quais se abre. E, através dele, essas influências penetram no meio em torno. Ele não está
circunscrito pelo meio, mas a média das pessoas está. Quando alguém diz que “o fulano de
tal é um filho do seu tempo, uma criatura do seu tempo”, respondo: “Só os cretinos o são.”
Ao se aplicar isso a todos, está-se fazendo a interpretação cretinológica da história. Será que
eu sou filho da cultura brasileira? 99% do que penso não existem na cultura brasileira. Lao-
Tsé tem mais influência em mim do que o Brasil inteiro. Sou mais herdeiro de Confúcio do
que da cultura brasileira. Estudei Confúcio, que me foi uma influência importantíssima;
acredito mais em Confúcio do que em qualquer coisa que qualquer brasileiro tenha dito ao
longo de toda a sua vida; eu poderia até ser um filho da cultura chinesa, da brasileira não.
Ou seja: se um sujeito for intelectualmente passivo, ele recebe somente as influências que
chegam até ele. Mas se for ativo, ele busca outras, e elas podem ter um impacto
inimaginável sobre ele.
Outro exemplo: hoje em dia todos falam do Islam. Mas quando comecei a estudar o
assunto, há trinta anos, era algo tão esquisito que não havia com quem conversar (na época,
a USP decidiu fazer uma discussão sobre religião comparada e não teve quem convidar. Não
havia curso de religião comparada nem estudiosos). Como isso pode ser a cultura brasileira?
Eu pude, e qualquer um pode, se abrir às influências que bem quiser. Por isso mesmo, acho
que a base da formação é a abertura a todas as influências culturais, desta e de outras
épocas; o contrário disso é o boicote a si mesmo. Porém, a discussão brasileira sempre foi

23
esta: ou somos nacionalistas, limitamo-nos ao nacional, ou nos abrimos à cultura dominante
do momento – a francesa, e depois a americana. Que nos obriga a uma ou a outra coisa?
Aluno: Há pouco tempo, nós estávamos conversando sobre a legitimidade de uma
cultura e a proposta ufanista pela cultura nacional Eu trouxe de Portugal um trabalho do
Paulo Rónai. Em um trecho, ele afirma que a cultura francesa só é francesa exatamente por
causa das influências inglesas, alemãs, suecas que sofreu durante a sua formação.
Olavo: Aqui no Brasil estamos aleijados mentalmente; acreditamos que assimilar
palavras estrangeiras faz mal para nossa língua. No inglês somente 1/5 das palavras são de
origem anglo-saxônica: o resto é alemão, francês, italiano etc.. Eles assimilam tudo porque
não são idiotas. Já aqui não podemos fazer isso. Há uma lei, de autoria do Aldo Rebelo, que
proíbe essa assimilação. Ele é um maluco, acha que está fortalecendo a língua, quando na
verdade a está enfraquecendo. Só no Brasil se acredita nisso. Se contássemos isso em outros
países, as pessoas não acreditariam. Metade das palavras romenas são francesas. A Romênia
é considerada um país francófono, pois a influência francesa é enorme e todos sabem falar
francês; não obstante, dificilmente se encontra uma cultura mais autêntica, mais arraigada
nela mesma, mais diferente do que a romena.
A cultura não se compõe dos elementos assimilados, mas da forma que lhes é dada.
Proibir a assimilação de elementos é proibir o sujeito de comer: “Eu não vou comer nada
para não receber influências estrangeiras. Quero ser estranho, não quero ser influenciado.
Não como, não ouço.” Já fiz a seguinte conta: peguei a primeira página do New York Times
e contei o número de palavras diferentes, e fiz o mesmo com um jornal brasileiro: o jornal
americano tinha 10 vezes mais palavras diferentes. A amplitude das palavras que eles usam
no dia-a-dia é enorme. E aqui procuramos restringi-las: “Não, esta palavra está em desuso.”
Está em desuso porque ninguém usa. Como se traduz “elsewhere”? Alhures. Pode-se
escrever “alhures”? Se um repórter escrever “alhures”, perde o emprego. Não pode escrever,
porque é pedante. Há quem acredite que isso é um princípio estilístico, o de não usar
nenhuma palavra que os outros não estejam usando. De geração em geração, o número de
palavras tende a diminuir – e é o que está acontecendo.
Certa vez, a mulher de um amigo meu (ele era jovem) teve um problema político.
Ele foi obrigado a fugir do país. Esse meu amigo ficou trinta anos nos Estados Unidos.
Quando retornou, permaneceu apenas alguns dias. Declarou ele: “Cheguei à seguinte
conclusão: o Brasil só é exemplo de como não se deve fazer as coisas, o Brasil existe para
isso”.
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Algumas pessoas dizem que os americanos estão tomando a Amazônia, mas lá não
há americano nenhum: há alemão, há belga; no fundo, elas queriam que os americanos
estivessem lá: estão sentido falta, sentindo-se desprezados, por isso estão com raiva.
Antigamente, existia uma agência da USIS (United States Information Center) em cada
esquina – havia a presença do governo americano – , mas de repente sumiram. “Eles não
ligam mais para nós, só querem saber do Saddam Hussein.” Estão querendo os maridos de
volta, daí vão sossegar... Este é um país de loucos!
Conclusão: algo deu errado aqui, não sei o que é, mas sei que quando observamos as
coisas das quais os brasileiros reclamam, e observamos a conduta diária de cada um,
entendemos que a situação não poderia estar melhor. Outro dia, escrevi: “Não é verdade que
todo povo tem o governo que merece, mas o Brasil tem. Até um pouco superior ao que
merece.” Acho que o nosso governo, por pior que seja, é melhor que a nação. Qualquer
governo que tenhamos – seja militar, seja o do Lula – é melhor. Já observei isso lá na
Romênia, vendo a situação dos diplomatas brasileiros (participei da fundação Brasil-
Romênia, uma fundação de comércio internacional): o primeiro escalão do funcionalismo
público é de altíssima qualidade. Qualquer um deles, em comércio exterior, dava um banho
nos outros diplomatas; na década de 30, Getúlio Vargas fez o DASP (Departamento de
Administração e Serviço Público), que oferecia uma formação profissional impecável – isso
não existia em nenhum outro lugar. O DASP fez uma geração de burocratas maravilhosa;
são poucas pessoas, alguns milhares. Nos departamentos técnicos do Itamaraty só há gênios.
Se algum desses conversar com um diplomata francês, dá de 10 x 0. Nosso governo é muito
bom, só falta ter um povo para governar. Mas, pensando bem, sempre foi assim. O primeiro
governador do Brasil, Mem de Sá, ao chegar já trazia consigo uma constituição – as
Ordenações do Reino –, um ministro da justiça – o Ouvidor-Mor –, um ministro da fazenda
– o Provedor-Mor. Já havia estado, mas não havia país. A organização burocrática veio em
primeiro lugar. Constituíam a população macacos, tatus-bola e minhocas. O brasileiro não
tem de reclamar do governo: todos eles foram muito bons.
Este é um país onde a democracia vai em sentido contrário à eficiência e à realidade.
Quanto mais democrático, pior é a situação. É o único país onde isso acontece. O tempo do
Médici era o pior período da ditadura, havia mais repressão, mas o país cresceu 15% a.a.,
sobrava dinheiro. Todos estavam satisfeitos: o Médici tinha 85% de aprovação, foi o
governo mais popular da nossa história. Por que o ditador mais durão era o mais popular?
Porque seu governo funcionava.
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Aluno: Do ponto de vista econômico.
Olavo: Não só do ponto de vista da economia, mas da administração, da segurança
pública, da saúde pública, da educação – tudo funcionava.
Nos outros países simplesmente não é assim: todas as ditaduras que se instalam são
ineficientes, todas ruins, todas irracionais; constitui-se então um governo mais democrata,
que atenda melhor os interesses da população. Aqui funciona ao contrário: quem atende o
interesse popular é o ditador, o sujeito impopular. Quem age mais impopularmente é o mais
popular. Isso é absurdo, há algo de errado. O brasileiro não sabe direito o que lhe convém.
Por isso, ele terá sempre o governo que merece: o governo determina-o, e não ele ao
governo.
Atualmente existe outra hipótese: “Até agora só escolhemos pessoas aptas, e elas
governaram mal; a solução então é eleger um sujeito inapto. Se os doutores falharam, vamos
eleger um analfabeto”. Mas o sujeito não falhou porque era doutor, mas por outro motivo.
Podem dizer: “O Collor era doutor”; ele não era doutor, era malandro. É claro que não
vamos curar o Brasil, mas ao menos as nossas vidas de estudiosos podem ser diferentes
dessa palhaçada. Ninguém vai entender o que estamos fazendo, vão atribuir-nos os motivos
mais esquisitos. Mas, e daí? Vocês acham que agradar uma multidão de idiotas é a
finalidade da minha vida? Tenho mais que fazer do que cuidar da popularidade. Não que eu
a despreze necessariamente, não vou fugir dela, mas também não vou atrás. Para mim tanto
faz se gostam ou não de mim. Se um dia existir uma camada de intelectuais, de estudiosos
capazes de pensar assim; se formos capazes de colocar ordem nas idéias, nos estudos –
talvez esse exemplo frutifique.
Nós não começamos mal. O fundador do Brasil, José Bonifácio de Andrada e Silva,
era um cientista de primeiríssima ordem, um homem importante no panorama mundial. Os
fundadores dos EUA foram Thomas Jefferson e George Washington; os seus livros e
discursos são de domínio público; existem milhões de edições. Um dia procurei as obras de
José Bonifácio; delas só havia uma edição comemorativa, em volumes enormes, feita pela
prefeitura da cidade de Santos – onde ele nasceu – e da qual imprimiram uns dois mil
exemplares, que custavam os olhos da cara. E mais: não existia nenhum para vender, mas só
em bibliotecas. Quer dizer, os escritos do fundador do país são proibidos. Se tivéssemos um
pouco de cabeça, veríamos que o país começou ali e que nossas idéias, nossas discussões,
deveriam começar a partir das idéias do fundador. Vamos ver o que ele pensava e fez, para
saber o que vamos fazer agora. Mas não, nem se sabe o que o sujeito pensou lá atrás. É
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culpa dele? Claro que não. Culpa do governo? Claro que não. O governo fez isso? Não, foi o
povo mesmo. No Brasil, qualquer critico de qualquer governo está sempre errado. Governar
um país como este é impossível, absolutamente impossível. Na França, Charles de Gaulle
uma vez disse que era impossível governar um país que tinha 4 mil tipos de queijo.
Comparem a confusão francesa com a nossa confusão. Acho injusto criticar qualquer
presidente. Aliás, não tenho criticado nosso presidente de maneira nenhuma, e se disserem
que ele bebe, digo que faz muito bem; eu faria a mesma coisa: estaria bêbado o tempo todo.

Transcrição: Rafael Machado.


Revisão Preliminar: Luiz de Carvalho.

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