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Vanda Bellard Freire - Horizontes de Pesquisa em Música
Vanda Bellard Freire - Horizontes de Pesquisa em Música
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conferir “cientificidade” à pesquisa, pois acredita na profunda e inevitável
interação sujeito – objeto.
Entra, então, em questionamento, o próprio conceito de verdade que,
na pesquisa de caráter subjetivo, é considerada como relativa, motivo pelo
qual as pesquisas desse tipo não são afeitas a obter resultados generalizáveis,
aplicáveis a toda e qualquer situação similar. Ou seja, não se busca obter res-
postas “verdadeiramente” definitivas e generalizáveis. Isso implica, também,
em uma compreensão da concepção de conhecimento como instância dinâ-
mica e em permanente transformação, matizada pela subjetividade de quem
o constrói. Essa posição relativista diante da realidade e da verdade não sig-
nifica falta de compromisso ou de cientificidade na pesquisa, nem significa
que, como a abordagem é subjetiva, “qualquer coisa” pode ser afirmada, já que
a subjetividade não pode ser questionada.
Bressler (2006, p. 61) observa, a esse respeito, que
o propósito da investigação qualitativa não é descobrir a realidade, uma vez que isto re-
sulta impossível através da argumentação fenomenológica. O propósito é construir uma
memória experiencial mais clara e ajudar as pessoas a obter um conhecimento mais sofis-
ticado das coisas. […] Naturalmente, a compreensão alcançada por cada indivíduo será,
até certo ponto, única para o observador, mas grande parte se manterá em comum. Ain-
da que a compreensão que tentamos obter é de nossa própria criação, esta é uma criação
coletiva. Cada um de nós busca uma compreensão afinada; uma compreensão que resis-
ta sob novas construções humanas[…].
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sendo atualizada por novas escutas, novos entendimentos, novas concep-
ções, novos momentos da história etc. Os próprios limites da performance
são considerados relativos, pois alguns aspectos do ritual da interpretação,
assim como a interação com os expectadores, entre outros aspectos, podem
ser ou não incluídos nesses limites.
O pressuposto de uma realidade dinâmica aponta para outro pressupos-
to, o de transformação permanente dessa realidade, de mudança qualitativa
de suas condições. Ou seja, movimento é também um pressuposto dos en-
foques subjetivistas, para os quais a dinâmica dos processos é especialmente
importante, mesmo quando focalizam um estudo de caso.
A singularidade das conclusões da pesquisa, em contraposição às pre-
tensões de generalização dessas conclusões, é também uma característica dos
enfoques subjetivistas. A pesquisa qualitativa não adere à generalização como
princípio.
Resumindo, podemos apresentar os aspectos essenciais das pesquisas
qualitativas segundo Flick (2009, p. 23, 24 e 25):
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Apesar das possíveis trocas entre abordagens quantitativas e qualitativas,
é importante perceber que, do ponto de vista epistemológico, ou seja, da na-
tureza do conhecimento envolvido, as diferenças são significativas e mere-
cem ser explicitadas pelo pesquisador, para segurança maior dele mesmo, e
para melhor compreensão dos resultados da pesquisa, por aqueles que tive-
rem acesso a esse material.
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Métodos de pesquisa em música e subjetividade
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designadas como quantitativas têm sido apropriados pela pesquisa qualita-
tiva e ajustados aos seus propósitos. E vice-versa, ou seja, a pesquisa objeti-
vista também tem relativizado alguns de seus princípios e procedimentos,
face aos questionamentos da abordagem qualitativa ou subjetivista. Observa-
mos, assim, que a pesquisa de origem positivista e de natureza objetivista (ou
quantitativa, como alguns a designam) tem recebido algumas permeações
das concepções subjetivistas (ou qualitativas), ao longo do século xx, embora
o predomínio do enfoque objetivista e de seus pressupostos permaneça sub-
jacente. Processo similar se deu com a abordagem subjetivista.
Muitas vezes, é possível partir de uma base quantitativa (objetiva) pa-
ra construir uma interpretação qualitativa (subjetiva). Dados numéricos po-
dem servir a leituras subjetivas, embora, geralmente, as abordagens qualitati-
vas deem preferência a outros métodos que não são voltados para resultados
quantificáveis e que já têm embutida a perspectiva de subjetividade, como é
o caso das entrevistas quando realizadas segundo a perspectiva subjetivista.
Tão importante, contudo, quanto a configuração dos métodos e téc-
nicas empregados é o caráter originário da pesquisa. A natureza da questão
formulada já aponta a tendência do pesquisador, tendência essa que, inevi-
tavelmente, percorrerá todo o processo de pesquisa e estará subjacente aos
métodos, à interpretação dos dados e às conclusões formuladas.
Por exemplo, diante da obra de um determinado compositor, pode-se
interrogar sobre as reais intenções dele, o que indica um pressuposto, cons-
ciente ou não, de que há uma verdade “em si” contida na obra em questão,
definida pelo compositor no ato da criação, e que cabe ao pesquisador reve-
lá-la, configurando, assim, uma abordagem objetivista da obra.
Outro pesquisador pode, diante da mesma obra, interrogar sobre dife-
rentes concepções dessa obra, segundo diferentes receptores (um deles po-
de ser o próprio pesquisador) ou ainda segundo diferentes intérpretes (que
são, também, receptores da obra). Neste caso, não há o pressuposto de um
significado único e definitivo atribuído à obra pelo compositor, nem o pro-
pósito de revelar uma “verdade” ali contida, e sim o pressuposto de que a
obra de arte é sempre aberta a diferentes percepções e significados, confor-
me o sujeito que a recebe, uma vez que ele é um sujeito condicionado social
e historicamente. Ou seja, há um pressuposto subjacente referente à pos-
sibilidade permanente de atualização da percepção e dos significados atri-
buídos à obra.
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Observamos, assim, que além das perguntas que dão origem à pesqui-
sa sinalizarem sua natureza ideológica, os conceitos e teorias adotados co-
mo referencial teórico devem ser coerentes com essa natureza, assim como
os métodos e técnicas deverão, também, ter uso pertinente. Conceitos como
“tempo”, “forma”, “significado”, “representação”, “avaliação”, “cotidiano”,
“contexto”, “estrutura”, “continuidade”, “descontinuidade”, “memória”, en-
tre outros, podem ser tomados como integrantes do referencial teórico. A
concepção adotada será uma condicionante de toda a pesquisa, desde os ob-
jetivos aos métodos e às conclusões. Ou seja, tanto as teorias (explicações)
como os conceitos que elas articulam são os fundamentos (referencial) que
irão subsidiar a pesquisa, sendo que os métodos e técnicas adotados devem
ser coerentes com esse referencial.
Podemos destacar, entre os métodos e técnicas mais usados pelas pes-
quisas qualitativas, a observação (sobretudo a participante) e a comparação,
a entrevista, os questionários, a análise qualitativa, a descrição etnográfica,
sempre utilizados e manipulados de forma adequada à natureza da pesquisa.
O simples fato de colher depoimentos, através de entrevistas, por exemplo,
não é suficiente para que a pesquisa seja considerada subjetivista, pois essa
característica está relacionada a outros fatores. Ou seja, além do referencial
teórico, a forma como são concebidos e utilizados os procedimentos de pes-
quisa é que a identificam como subjetivista ou objetivista.
Flick (2009, p. 29, 30, 31 e 32) identifica três perspectivas principais,
no que se refere às tendências das pesquisas qualitativas, e identifica alguns
métodos como mais relacionados a cada uma delas:
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Certamente, iremos encontrar, como já comentado, métodos e técnicas
similares aos que foram citados até este momento em pesquisas de outro teor
(como as quantitativas/objetivistas), mas sua formulação, aplicação e fina-
lidades serão essencialmente diferentes. Assim, cabe destacar que essa clas-
sificação que Flick apresenta não é totalmente “fechada”, pois os métodos
priorizados por uma perspectiva de pesquisa podem ser utilizados por outra,
ainda que de maneira diversa e com propósitos diversos.
André (1995) destaca três tipos de pesquisa que aparecem associados
à abordagem qualitativa, ou seja, os métodos empregados nessas pesqui-
sas partem de pressupostos abordados no capítulo anterior, tais como os da
não-neutralidade e da não-separação sujeito-objeto, pressupostos esses que
estarão subjacentes aos procedimentos metodológicos, assim como ao refe-
rencial teórico e a todo o processo da pesquisa. São os seguintes os tipos de
pesquisa destacados por André:
1) pesquisas do tipo etnográfico, cuja ênfase estaria, de modo geral, na des-
crição de práticas, hábitos, crenças, valores, significados etc., de um grupo so-
cial, tendo a observação participante como um dos métodos predominantes.
2) estudo de caso, também muito ligado à pesquisa etnográfica, uma
vez que aplica a abordagem etnográfica ao estudo de um caso (cabe lembrar
que nem todo estudo de caso utiliza a abordagem etnográfica e, portanto,
nem todos se encaixam nesta descrição).
3) pesquisa-ação, voltada principalmente para, a partir da coleta e análise
de dados e do diagnóstico de problemas, planejar ações para sua superação.
Nos três casos destacados por André, os procedimentos metodológi-
cos, assim como as questões que originam as pesquisas, relacionam-se dire-
tamente aos pressupostos e fundamentos metodológicos mencionados nos
capítulos iniciais deste livro.
Quanto aos métodos empregados, podemos dizer que os procedimen-
tos básicos de qualquer pesquisa são observação e comparação e estarão pre-
sentes, explicitamente ou não, em pesquisas quantitativas ou qualitativas
(Freire & Cavazzoti, 2007). Outros métodos ou técnicas, como a experi-
mentação ou a análise estatística, por exemplo, são mais afeitos às pesquisas
quantitativas, enquanto a descrição etnográfica ou a análise fenomenológica
estão no âmbito das pesquisas qualitativas. Passaremos, a seguir, a apresen-
tar alguns aspectos básicos referentes a alguns métodos mais usuais nas pes-
quisas em música, na perspectiva da pesquisa subjetivista.
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