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CADERNO DE RESUMOS EXPANDIDOS

1⁰ CICLO DE DEBATES DO IMAM-UFRJ

LABORATÓRIO DE IMAGEM, MEMÓRIA, ARTE E


METRÓPOLE

ANDRÉA CASA NOVA MAIA


DINAH DE OLIVEIRA
(ORGS.)

RIO DE JANEIRO
27 E 28 DE MAIO
UFRJ
2021

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SUMÁRIO

Apresentação………………………………………………………………………………5
Programação………………………………………………………………………….……7
Resumos Expandidos…..………………….……………………………………..….….10
Índice Remissivo……………………………………………………………………..…149

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APRESENTAÇÃO

O Laboratório de Imagem, Memória, Arte e Metrópole – IMAM – convida


pesquisadoras, pesquisadores e estudantes para seu 1.º Ciclo de Debates, a ser
realizado no formato on-line nos dias 27 e 28 de maio de 2021, com mesas nos turnos
da manhã e da tarde e apresentação de trabalhos artísticos.

Em 2021 o 1.º Ciclo de Debates do IMAM – on-line é um convite para a


apresentação das pesquisas desenvolvidas pelas pessoas integrantes do Laboratório
e convidados de outras instituições de pesquisa. A proposta é uma ação que aglutina
pesquisadoras e pesquisadores, colocando seus trabalhos em debate. O convite a
reflexão em meio ao nosso cotidiano que sofre as consequências da crise sanitária e
humanitária imposta pela Pandemia do Covid-19, reitera o compromisso de trabalho
da universidade pública diante da produção e divulgação de saberes.

Propomos ainda que as mesas de apresentação de pesquisas sejam


compostas por docentes associados e estudantes pesquisadores, com a intenção de
promover um encontro de conhecimentos e trocas mais horizontais.

O grupo de pesquisa IMAM é certificado no diretório de Grupos de Pesquisa


do CNPq desde 2010 e conta com pesquisadores de diferentes instituições de ensino
e pesquisa brasileiras em diferentes níveis de formação.

O grupo se propõe a desenvolver projetos de pesquisa voltados para a relação


entre imagem e história social da cultura, tendo como principais enfoques os estudos
sobre arte, ethos artístico e relações entre política e culturas visuais em diferentes
suportes. Também procura reunir pesquisadores, sobretudo historiadores, mas
também cientistas sociais, antropólogos, arquitetos, geógrafos e outros
pesquisadores ligados à problemática dos estudos sobre as metrópoles e a memória
dos sujeitos históricos que nela vivem. As principais repercussões esperadas, além
da realização de encontros periódicos entre os participantes, é a participação em
diferentes eventos (congressos, simpósios nacionais e internacionais) para
divulgação dos resultados das pesquisas do grupo, bem como a produção coletiva ou
individual de artigos e livros sobre diferentes temáticas voltadas para o campo em

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questão, além da orientação de trabalhos de graduação, mestrado e doutorado por
parte dos professores pesquisadores que participam do grupo e atuam em programas
de pós-graduação. Este é o primeiro de muitos encontros do grupo. Temos como
objetivo também divulgar as pesquisas, projetos e resultados para além da academia,
por isso todas as mesas serão gravadas e disponibilizadas no canal do IMAM-UFRJ
do YouTube. Isso também repercutirá na formação de um quadro de especialistas e
contribuirá para a consolidação dos estudos históricos sobre a imagem, a memória, a
arte e a metrópole dentro e fora da Universidade.

Andréa Casa Nova Maia e Dinah de Oliveira

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PROGRAMAÇÃO

Dia 27 de maio, quinta-feira

Sessão de Abertura - 8h30min


Profa. Dra. Andréa Casa Nova Maia e Profa. Dra Dinah de Oliveira

MANHÃ
Sessão 1 - 9h - 12:30h - VISUALIDADES E Sessão 2 - 9h-12:30h - URBANIDADES
RESISTÊNCIAS E POLÍTICAS

A BATALHA PELO IMAGINÁRIO O ESPAÇO PÚBLICO COMO


POPULAR: OS ACADÊMICOS REBELDES REPRESENTAÇÃO PARA OS
DE 1890. (Matheus Romano Palmieri de SKATISTAS: COLETIVO XV-RJ E
Souza) SALVE O VALE-SP EM PERSPECTIVA
COMPARADA.
O PÁTHOS DA CÂMARA: UMA ANÁLISE (Luciano Hermes da Silva)
DAS REAPROPRIAÇÕES DA
ANTIGUIDADE DOS GRUPOS
ESCULTÓRICOS DO PALÁCIO “DEUS, PÁTRIA E FAMÍLIA”, OS
TIRADENTES PILARES DA NAÇÃO: UM ESTUDO
(Douglas Libório de Souza) SOBRE CARECAS INTEGRALISTAS
(Camilla Maria Silva Cavalcante)
TRANSMISSÕES DE UM MUNDO EM
TRANSFORMAÇÃO (Dinah de Oliveira) CULTURA FERROVIÁRIA SOB O VIÉS
COMPARATIVO: OS IMPACTOS DA
CORPO-MEMÓRIA: RESISTÊNCIA AO PRIVATIZAÇÃO DA RFFSA EM
TEMPO E ESPAÇO ATRAVÉS DA CORINTO E DIVINÓPOLIS - 1975 A
TRANSMISSIBILIDADE (Gabriel Vieira) 2010
(Willian Santos Pereira)
PERTURBAÇÕES TEMPORAIS (Allan
Corsa) MEMÓRIA E DIREITOS EM CIDADES
MINERADORAS (Regina Helena Alves
da Silva)
POR QUE UMA IMAGEM SEMPRE
FALTARÁ? MEMÓRIA E CONTRA-
HISTÓRIA EM RITHY PANH (Roberta
Veiga)

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TARDE
Sessão 3 - 14h-18hh Sessão 4 - 14h-18h - GEOPOLÍTICAS E
ESPACIALIDADES E CULTURAS IMAGÉTICAS

A COMUNIDADE TRADICIONAL
CAIÇARA DO BONETE – PENSANDO AS FONTES E A METODOLOGIA NO
SOBRE AS PALAVRAS E A CULTURA ESTUDO SOBRE OS MEGAEVENTOS NO
INDÍGENA. (Carla Teodoro Costa) RIO DE JANEIRO E A
SOCIOESPACIALIDADE DO CONFLITO
AYAHUASCA, IMAGENS E MUNDOS (Ingrid Gomes)
(Wladimyr Sena Araújo)

TOUJOURS PERDRIX!: PENSAR A MALANDRAGEM E CIDADE:


AMAZÔNIA BRASILEIRA POR MEIO REPRESENTAÇÕES DO RIO DE JANEIRO
DAS IMAGENS NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS DO ZÉ
(Maurício Elias Zouen) CARIOCA (Mario Brum)

DIREITOS HUMANOS E TERRITÓRIOS:


QUILOMBOLAS NA CIDADE: GEOGRAFIAS PLURAIS EM OMÃ
MEMÓRIA E ANTROPOLOGIA (Valnei Pereira)
URBANA NA DIÁSPORA
(Denise Pirani)

Sessão de Atividades Artísticas - 19h às 20h.

Apresentação de Vídeos:
Tempo Suspenso: Mulheres em tempo de pandemia através de um registro
audiovisual (Luciene Carris)
Em março de 2020, fomos surpreendidos com o novo coronavírus que atingiu
o Brasil, batizado de Covid-19, e alterou as nossas relações pessoais e de
trabalho, afetou o nosso cotidiano, aprofundando as desigualdades
socioeconômicas e de gênero. Nesse sentido, pretendemos apresentar o olhar
feminino de onze mulheres através do teaser de um minuto do documentário
“Tempo Suspenso” produzido em 2020.
Link: https://youtu.be/n41oZdsmifo

Performances e ações políticas em vídeo. Curadoria: Dinah de


Oliveira.

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Dia 28 de maio, sexta-feira

MANHÃ TARDE

Sessão 5 - 9h - 12:30h CINEMA, TV e Sessão 6 - 14h-17:30h - MEMÓRIA,


OUTRAS MÍDIAS GÊNERO E IMPRESSOS

O RIO SAMBA EM BRASÍLIA: A RAÇA, GÊNERO E CLASSE NAS


ENCENAÇÃO DA CAPITALIDADE CAPAS DA REVISTA PRESENÇA DA
PELAS CHANCHADAS MULHER (Beatriz Monteiro Lemos)
(Carlos Eduardo Pinto De Pinto)

FESTIVAL INTERNACIONAL DA USOS DO ERÓTICO COMO PODER:


CANÇÃO: INTERNACIONALIZAÇÃO E REPRESENTAÇÕES DO ERÓTICO
MÚSICA POPULAR BRASILEIRA FEMININO NAS ARTES VISUAIS EM
(José Fernando Monteiro) DIÁLOGO COM O BOLETIM
CHANACOMCHANA (Rita Lages
Rodrigues, Barbara Lissa e Bruna
BLOCKBUSTERS, CENSURA E Emanuelle)
PROPAGANDA – INTERFERÊNCIAS
DO DEPARTAMENTO DE DEFESA IMAGENS E TEXTOS, CORPOS E
DOS EUA NO CINEMA DO SÉCULO PROPAGANDAS NA EU SEI TUDO E
XXI (Carlos Cesar de Lima Veras) NA JE SAIS TOUS
(Suzana Oliveira e Lucas Lourenço)
E SE TIETA FOSSE TRAVESTI? A
REPRESENTAÇÃO DAS “EU POSSO FALAR QUALQUER
TRANSGENERIDADES NAS COISA COM ESSA VOZ”: O
TELENOVELAS DOS ANOS 1980 E ENGAJAMENTO POLÍTICO DE NINA
1990(Alberto Freitas) ROSA NO SAMBA CARIOCA (Bruna
Aparecida Gomes Coelho)

O ONTEM SEM FIM: HISTÓRIA E


NOSTALGIA NA SÉRIE DE TV – MEMÓRIAS DE UMA INTELECTUAL:
COISA MAIS LINDA (Silvana Seabra) A HISTÓRIA DE VIDA DE VERA
(Andréa Casa Nova Maia)

COVID-19, DISCURSO E IDEOLOGIA:


REFLEXÕES ACERCA DA PANDEMIA
E AS DISPUTAS POLÍTICO-
IDEOLÓGICAS NO AMBIENTE DAS
REDES SOCIAIS
(Luana Sarto Gomes e Victor
Henrique de Souza Arcanjo)

18H - Sessão de Encerramento e Lançamento do Livro Recortes do


Feminino. Cristais de Memória e História de Mulheres. Rio de
Janeiro: Ed. Telha, 2020, organizado por Andréa Casa Nova Maia.

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RESUMOS EXPANDIDOS

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MEMÓRIAS DE UMA INTELECTUAL: A HISTÓRIA DE VIDA DE VERA

Andréa Casa Nova Maia (UFRJ)

Entrevistei Vera Lúcia de Carvalho Casa Nova, poeta, tradutora, professora aposentada da
Faculdade de Letras da UFMG, minha mãe. Foi para um livro de história oral sobre
envelhecimento e pandemia que será lançado em breve. Porém, antes de realizar o recorte
temático proposto para a história oral, aproveitei a oportunidade para realizar uma pequena
inserção na trajetória de vida dela. Passeamos por suas lembranças de infância e lá
reencontramos memórias de outro Rio de Janeiro, dos anos 1940, 1950 e de bairros do
centro, como a Gamboa e o Santo Cristo. Também redescobrimos a família de imigrantes
portugueses, as tradições, as brincadeiras e o início dos estudos.

A menina vai se tornando moça e passa a estudar no Colégio Pedro II, realizando estudos
clássicos... conhece a literatura francesa também pelos estudos na Aliança Francesa.
Atravessamos memórias de leituras, de livros, de professores, de namoros, de bailes e todas
as possibilidades dos “anos dourados”. Mas rapidamente a entrada na Universidade do
Estado da Guanabara faz ampliar a consciência política, a descoberta de um outro Brasil,
mesmo que também, muito, através da literatura brasileira, com as leituras de Machado de
Assim, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Guimarães Rosa e tantos outros.

Além de estudar, lembra do início do trabalho de lecionar para jovens dos colégios da classe
alta da zona sul da cidade... Mas também, rememora os “anos de chumbo”, os escritos
proibidos, a militância política, o dia que depôs no DOPS... Conta da viagem para a França,
quando vendeu o piano e do retorno para se casar. E veio a primeira filha, o mestrado na
UFRJ sobre Mário de Andrade. A separação e o novo casamento... Outra cidade aparece em
sua vida e permanece: Belo Horizonte.

A vida universitária em Minas Gerais e na Faculdade de Letras vai iluminando amizades,


projetos, cotidiano de militância docente também, de luta para votar para reitor, mas
principalmente, para votar para presidente. E a volta para o Rio de Janeiro para fazer
doutoramento na UFRJ, o memorável comício das Diretas Já na Candelária, o novo projeto
de pesquisa. A morte do pai, a morte da avó e a volta para uma nova casa construída só na
base dos juros da poupança no governo Sarney... A morte da mãe e o nascimento de outra

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filha. Amamentação escrevendo tese de doutorado, defendendo tese entre uma troca de
fralda e outra. Ser mulher, ser mãe e ser pesquisadora e professora universitária.

A descoberta do fazer poesia, do pensar o texto e a imagem. O retorno à França, desta vez
para o pós-doutorado com aquele que viria a ser seu amigo, Georges Didi-Huberman e o
início de um longo caminho de leitura de sua obra, tornando-se sua principal tradutora no
Brasil. Outros projetos, sempre no encontro da imagem e do texto, poesia e imagem de Lygia
Clark, Hélio Oiticica, mas também tantos outros artistas evocados, conhecidos, aproximados
e feito amigos no trabalho de criação coletivo como Marcelo Kraiser e Wilson Avelar.

E fomos chegando ao presente, à necessidade de isolamento, às novas tarefas do cotidiano,


às novas leituras e a vontade de cuidar mais das plantas e dos bichos. Do envelhecimento
junto com o companheiro Túlio, astrofísico e professor também aposentado da UFMG. Da
saudade dos netos. Da saudade de um outro Brasil, mais alegre, mais justo, mais
democrático. Da descoberta da espiritualidade para segurar também um pouco tantas perdas,
tanta violência cotidiana, tantos relatos pelas telas (TV, computador, aparelho de telefonia
celular etc.).

Falarei um pouco nesta comunicação sobre como pode ser rico o uso da metodologia da
História oral na elucidação de como Vera é uma potência de criatividade e dedicação ao
ensino, mas também como conseguiu conciliar a vida acadêmica com o cuidado com os filhos
e como ainda consegue, em meio a esse caos todo que estamos vivendo, produzir poesia e
nos lembrar sempre em seus livros, gestos e falas que é possível manter o horizonte utópico
e que a arte é ainda a saída. Vera continua a nos lembrar sobre a potência da arte em suscitar
levantes por um mundo mais colorido, de maior solidariedade e respeito pelas diferenças.
Numa mesa sobre memória, gênero e impressos, será muito bom refletir sobre seu
depoimento, suas memórias de mulher e também seus debates sobre os impressos, entre
livros e almanaques.

Referências

BOSI, Éclea. Memória e sociedade. Lembranças de Velhos. São Paulo: T.A. Queiroz Editor,
1979.

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E SE TIETA FOSSE TRAVESTI? A REPRESENTAÇÃO DAS
TRANSGENERIDADES NAS TELENOVELAS DOS ANOS 1980 E 1990

Alberto Rodrigues de Freitas Filho (UFRJ)


Com ou sem censura, a dramaturgia sempre permitiu que os limites do gênero
fossem rompidos em nome da arte. De acordo com Trevisan (2018), já havia no
século 18 homens que se travestiam e desempenhavam papéis femininos no teatro
brasileiro. Em função de um decreto de 1780, que proibia a presença de mulheres
nos palcos, “eles” interpretavam “elas”. Isso ocorria, segundo o autor, porque os
teatros no Brasil antigo eram vistos como ambientes de má fama e, portanto,
desprezados pelas classes dominantes. Os elencos eram compostos principalmente
por negros e mulatos (escravizados ou libertos), “cuja condição social degradada se
casa à perfeição com a desclassificada arte cênica – mesmo porque esses párias de
então nada tinham a perder diante da sociedade.” (TREVISAN, 2018, p. 222-223).

Para o autor, a prática do travestismo foi consagrada no ambiente teatral de


forma nada inocente, em um contexto de disseminação da prática homossexual no
Brasil. O travestismo teatralizado teria então evoluído para duas vertentes. A primeira,
meramente lúdica, floresceu no Carnaval, “protagonizada por homens (inclusive pais
de família) vestidos com roupas de suas esposas (ou irmãs, ou mães, ou amigas)
durante pelo menos três dias por ano.” (TREVISAN, 2018, p. 232). A outra vertente
teria se voltado para objetivos mais profissionais, “com o surgimento nos palcos do
ator-transformista, que passou a viver profissionalmente da imitação de mulheres e,
com frequência, tornou-se travesti também na vida cotidiana.” (TREVISAN, 2018, p.
233).

Green (2019, p. 30) lembra que o costume de os homens brasileiros se


travestirem com roupas típicas de mulheres afro-brasileiras já fazia parte do carnaval
há muito tempo. Porém, para além do ato de vestir-se com as roupas emprestadas
de mães, irmãs ou namoradas, havia um caráter subversivo assumido por meio das
personificações de baianas à la Carmen Miranda, tão comuns à época. O gênero ali
representado de forma festiva tornava-se performativo, remetendo a noções de
masculinidade e feminilidade “que desafiavam e ao mesmo tempo reforçavam os

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padrões de gênero no Brasil na primeira metade do século XX.” (GREEN, 2019, p.
32).

Na segunda metade do século, após o advento da televisão, surge a


teledramaturgia, que também virá a desafiar as noções tradicionais de gênero. Entre
1972 e 1973, um homem se travestia pela primeira vez em uma telenovela brasileira.
Em O Rebu, exibida no horário das 22 horas pela Globo, o ator Ziembinski vivia a
velha Stanislava. “A personagem era uma senhora russa, mas por sugestão do
próprio Ziembinski, que era polonês, o autor Bráulio Pedroso trocou o nome de
Natasha para Stanislava Grotovistka, um nome polonês.” (XAVIER, 2007, p. 151).

Anos depois, em 1977, uma travesti de verdade ganhava um papel em uma


telenovela pela primeira vez. Em Espelho Mágico, Claudia Celeste interpretou corista
de um teatro de revista, cujo dono era Carijó, personagem interpretado por Lima
Duarte. Porém, segundo Xavier (2013), a atriz entrou para o elenco da novela sem
que o diretor, Daniel Filho, soubesse de que se tratava de um travesti. “Na época do
Regime Militar, os travestis eram proibidos de aparecer na televisão. Descoberto, o
travesti teve que sair de cena.” O autor acrescenta que Claudia Celeste voltaria a
cena em 1988 na novela Olho por Olho, dessa vez interpretando a travesti Dinorá.

Ainda de acordo com Xavier (2007, p. 186), o público ficou chocado quando
Ney Latorraca, Marco Nanini e Antônio Pedro se travestiram na telenovela Um Sonho
a Mais, exibida pela Globo em 1985 na faixa das 19 horas. Embora se tratasse de
personagens cômicas, “a censura da Nova República não gostou do rumo que as
personagens estavam tomando. Anabela, a personagem de Ney, permaneceu na
novela, mas as moças vividas por Nanini e Antônio Pedro tiveram de sair”. (XAVIER,
2007, p. 186).

Em 1989, a travesti Rogéria fez um participação especial na novela Tieta. Em


uma das cenas do folhetim televisivo, Tieta (Betty Faria) interpela o sobrinho e
amante, Ricardo (Cássio Gabus Mendes), no meio de uma discussão do casal sobre
a identidade de gênero da personagem Ninette (Rogéria). Após ouvir Ricardo afirmar
que “um homem que se vestia de mulher não era uma coisa normal”, Tieta travou com
ele um debate acalorado em defesa da amiga travesti, que visitava Santana do
Agreste, cidade fictícia onde se desenrola a trama.

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A aparição da travesti na telenovela se deu apenas alguns anos após o fim da
Ditadura Militar e a redemocratização. Durante o regime militar, a homossexualidade
e tudo a que ela se relacionava era alvo de censura oficial. Quase vinte anos após a
primeira exibição da telenovela, já não havia censura oficial, embora o
conservadorismo nos costumes estivesse novamente em alta. Desse modo, o
discurso inflamado de Tieta contra a transfobia do amante foi deslocado no tempo,
para uma época em que o mesmo preconceito manifestado por Ricardo ainda se fazia
presente nos setores mais conservadores da sociedade.

A cena foi reexibida no dia 6 de setembro de 2017 durante a reprise da


telenovela no canal por assinatura Viva e o diálogo em questão repercutiu bastante
nas redes sociais. Afinal, as posições defendidas por Tieta há quase duas décadas
ainda faziam muito sentido. No período em que a telenovela era reprisada, o Brasil
era inundado por uma onda conservadora, que levou ao Palácio do Planalto, como
presidente do Brasil, um militar reformado, defensor da família tradicional e contrário
aos direitos da população LGBTQIA+.

Portanto, a fala de Tieta na cena emblemática exibida em 1989 adquiriu valor


de registro histórico quando reexibida, uma vez que nos permitiu enxergar a
continuidade da censura à diversidade sexual e de gênero, que era característica do
regime militar. De acordo com a Comissão Nacional da Verdade, “a falta de modelos
positivos na mídia para contrapor os preconceitos e os estereótipos tradicionais foi
um legado da ditadura para a homolesbotransfobia ainda atual em nosso país.”
(BRASIL, 2014, p. 306).

Assim, é possível inferir que a análise das representações das


transgeneridades em telenovelas exibidas após a redemocratização nos permitirá
avaliar como travestis e transgêneros - e quaisquer outros grupos ou indivíduos que
desafiam as noções de gênero socialmente e historicamente estabelecidas - estavam
inseridos no cotidiano da sociedade brasileira. De acordo com Ramos (2018, p. 82),

“as obras audiovisuais podem servir de fonte histórica, porque


todas elas são produtos de seu tempo, sendo testemunhos do
presente: refletem as ideias e os símbolos da sociedade que os
produziu e consumiu, usando a tecnologia existente na época”.

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Kornis (2007, p. 2), por sua vez, defende que “a televisão firmou-se como
um meio de narração de nosso tempo, não só no telejornalismo mas também na
teleficção e nos programas de viés documental.” Portanto, como fonte histórica, as
narrativas televisivas são a representação de uma comunidade imaginada que tem
como aspectos fundamentais “a língua, a paisagem, os hábitos e costumes, os
problemas e os dilemas contemporâneos além de aspectos da própria história
do país” (KORNIS, 2007, p. 2).

A telenovela, portanto, de acordo com Motter (2001, p. 76), trata-se de um


registro do presente, pois ela “constrói uma memória, ao mesmo tempo documental
– por sua permanência física como produto audiovisual gravado, mas sobretudo por
sua vinculação com o presente, que a impregna com suas marcas.”

Por esse motivo, visando a uma história do tempo presente, a telenovela é uma
fonte documental audiovisual de suma importância, enquanto registro de um cotidiano
socialmente mediado e historicizado. Isso é o que nos leva a considerar a telenovela
como uma fonte que possibilite a análise das representações das transgeneridades,
bem como a sua inclusão ou exclusão no cotidiano dos brasileiros após a
redemocratização, nas décadas de 1980 e 1990.

Referências

BRASIL. COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Relatório: textos temáticos /


Comissão Nacional da Verdade. Brasília: CNV, 2014. v. 2.

GREEN, James. Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do


século XX. São Paulo: Editora Unesp, 2019.

KORNIS, Mônica Almeida. Televisão, história e sociedade: trajetórias de pesquisa.


Rio de Janeiro: CPDOC, 2007.

MOTTER, Maria Lourdes. A telenovela: documento. In: Revista USP, São Paulo,
n.48, fev. 2001. p. 74-87.

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RAMOS, Marcos. As telenovelas brasileiras como fontes históricas: uma análise
audiovisual acerca das religiões. Revista Jesus Histórico, [S.l.], n. XI, v. 21, 2018.
p. 79-93.

TREVISAN, João. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia


à atualidade. 4 ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2018.

XAVIER, Nilson. Almanaque da telenovela brasileira. São Paulo: Panda Books,


2007.

____________. Relembre os travestis e transexuais das novelas. Universo Online,


São Paulo, 22 fev. 2013. Seção TV e Famosos. Disponível em:
<https://tvefamosos.uol.com.br/blog/nilsonxavier/2012/02/22/relembre-os-travestis-e-
transexuais-das-novelas/>. Acesso em: 22 nov. 2020.

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PERTURBAÇÕES TEMPORAIS

Allan Corsa (UFRJ)1

A memória racial fundamentada em nossa existência, distribui modos de


pensar e agir, herdados pelo agenciamento europeu disposto no mundo através da
colonização. Durante os últimos cinco séculos, a violência física e cognitiva, foram e
são, forças de ação implantadas nos corpos racializados durante o período colonial,
reverberando também nos corpos que habitam o presente. O mundo como
conhecemos, foi e é ordenado por posicionamentos hegemônicos, que distribuem na
história, formas de pensar e existir, que excluíram da categoria de humanidade a
própria natureza e o sujeito racializado como possibilidades de expressão,
pensamento e subjetividade. (NATÁLIO, 2016. p.4)
O conceito de raça como sendo uma categoria científica construída pelo
pensamento filosófico moderno (FERREIRA DA SILVA. 2019. p.94), se constitui como
uma ferramenta que posiciona diferentes grupos humanos, em uma hierarquia de
mundo, sendo o homem branco europeu, este que escreve a história em seu formato
hegemônico, localizado no topo desta cadeia. Dentro dessa estrutura, esse sujeito é
inscrito como sendo autodeterminado, que compreende a si próprio como não
faltando nada, um sujeito que pensa e existe, a exemplo do plano cartesiano, e
também um sujeito que pode determinar todas as coisas do mundo através da razão
e do juízo. (FERREIRA DA SILVA. 2019. p.38)
Muitos pensadores que desenvolveram seus programas de conhecimento
filosófico do mundo, sustentaram a categoria de raça, fora do campo de significação
da história, como aponta Denise Ferreira da Silva em seu trabalho A dívida impagável
(2019), no mundo como conhecemos a inscrição do ser racial só é disposta como
força de trabalho, que contribui diretamente na vida do capital global, onde suas ações
no tempo, são impossíveis de acontecer sem serem atravessadas pela violência. Em
uma parte de seu trabalho, Denise desenvolve conceitos específicos que expõem

1
Allan Corsa, artista-pesquisadora do curso de Artes Visuais – Escultura, da Escola de Belas Artes, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.

18
formas de pensar o mundo através da concepção de temporalidade linear, neste caso
ela propõe a noção da Sequencialidade, onde a partir do programa filosófico
desenvolvido por Hegel, expõem a noção dominante de movimento do corpo e
espírito no espaço-tempo.

Figura 1. Encontre, 2020 Espelho e flecha com lascas de Pau-Brasil 30 x 35 cm.


Acervo da artista.

A experiência de tempo constituída pelas ciências corre através de uma flecha,


onde o passado está totalmente separado do presente. Os experimentos visuais que
compõem esse texto funcionam como uma questão em aberto sobre os efeitos
temporais da experiência do corpo no espaço, seja dentro, fora, adiante, acima e ao
lado dele.
Nesta proposição a flecha é invertida pelo espelho, e atravessa a imagem de
quem se pôr diante do objeto. Invertendo a flecha e ao mesmo tempo criando um
embate com essas materialidades que habitam narrativas das quais explicitam
importação de algo trazido de fora, deste corpo, deste território, e de outras histórias.
A concepção de tempo é questionada dentro de nossa contemporaneidade, junto com
esse embate de materialidades e corpos, propondo uma implicação temporal dentro
de um sistema implicado em que todos os corpos estão correlacionados de alguma
forma, e não separados, como proposto pela modernidade, no momento em que o
sujeito autodeterminado se opôs a natureza e ao outro racial. (FERREIRA DA SILVA.
2019. p.43)

19
Figura 2. urbanocoreográfico, 2017. vídeo 59:00’, in
https://vimeo.com/user70780494

Em urbanocoreográfico (2017), o corpo apresentado ocupa o espaço urbano


através de uma coreografia que corre contra a timeline2 na edição do vídeo. O tempo
acontece de forma implicada com outras temporalidades presentes por todos os
corpos que atravessam o quadro, em direções inesperadas. Meu corpo sendo
racializado pode aparecer em destaque no vídeo, justamente porque nesta posição
visual, ele habita o lugar da vigilância no espaço público.
Denise Ferreira da Silva neste sentido identifica esse aspecto, através da
imagem do que ela chama de “Evento Racial”, mapeando os fatos da história que é
sempre narrada por homens brancos, que sempre ocupam uma posição de poder
hierárquico sobre o outro, explicitam a esse outro sempre como algo ameaçador, seja
tanto no período escravocrata quanto em nossa contemporaneidade, onde inúmeros
jovens negros são identificados como sujeitos ameaçadores diante de operações

2
Traduzido como “linha do tempo”, é o nome dado a esta ferramenta presente entre os softwares de edição de
vídeo, onde a linha temporal da janela de edição corre para um único lado.

20
policiais na cidade do Rio de Janeiro. O espaço urbano direciona os corpos em seus
fluxos construídos e pensados para o movimento ordenado dentro da cidade, na
maioria das vezes escoltado pelos agentes de segurança do Estado, criando uma
espécie de coreografia (LEPECKI. 2011. p.46) diária vivenciada pelos corpos que
assim circulam. Essa experiência urbana, e, ou, social é desde sempre performada
por quem constrói as categorias de subjugação e por quem ocupa, não por vontade
própria, essas categorias, criando assim uma “ocupação colonial” (MBEMBE. 2016.
p.135), que se atualiza no tempo, sempre acionando as mesmas maneiras de
intervenção, que distribui papéis de atuação no espaço social em que vivemos, tendo
o corpo racial sempre no papel do outro. Neste caso o corpo se mostra como
“inatemporal” refletindo sempre a forma como o valor que foi dado a ele reverbera de
forma reformulada em nossa contemporaneidade, unindo presente e passado em um
mundo implicado.

Referências

FERREIRA da SILVA, Denise. A Dívida Impagável. São Paulo, 2019.


MBEMBE, Achille. Necropolítica. Artes e Ensaios n.42 - PPGAV/UFRJ. Rio de
Janeiro, 2016.
NATÁLIO, Rita. Acabar o mundo, Torcer o Mundo. Oficina de imaginação
política. 32° Bienal de São Paulo, 2016
LEPECKI, André. Coreo-política e Coreo-polícia. Revista Ilha - UFSC. Santa
Catarina, 2011.

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USOS DO ERÓTICO COMO PODER: REPRESENTAÇÕES DO ERÓTICO
FEMININO NAS ARTES VISUAIS EM DIÁLOGO COM O BOLETIM
CHANACOMCHANA3

Bruna Emanuele Fernandes (EBA/UFMG)

Bárbara Lissa (EBA/UFMG)

Rita Lages Rodrigues (EBA/UFMG)4

Introdução

As representações dos corpos femininos nas sociedades ocidentais modernas


foram marcadas pelo olhar masculino, um olhar que nomeia, classifica, desenha,
pinta, esculpe, e assim cria e reproduz a estigmatização social. A partir do estudo do
boletim (também denominado folheto ou zine) ChanaComChana, uma publicação
independente lésbico-feminista do Rio de Janeiro, resultante do GALF (Grupo de
Ação Lésbica Feminista, 1981-1990) que vigorou entre 1981 e 1987, mostraremos
como, na publicação, uma outra representação (e apresentação) do corpo e do
erotismo femininos foram possíveis.
O boletim constituía-se como dispositivo de posicionamento e afirmação de
mulheres lésbicas e de seus desejos, sexualidades, medos; por meio dele, uma rede
de apoio e trocas intelectuais e afetivas foi criada entre essas mulheres. Uma das
estratégias de construção da identidade e afirmação da sexualidade era a veiculação
de imagens com conteúdo erótico-afetivo lésbico nos impressos, o que desafiava o

3
Um artigo completo com este tema será publicado em breve pela Zines Journal, em inglês, no dossiê Embodied
DIY: Feminist and Queer Zines in a Transglobal World.
4
Bacharel em Letras, com ênfase em Estudos de Edição (UFMG), e mestranda em Artes na linha de pesquisa
Artes Plástica, Visuais e Interartes pelo Programa de Pós Graduação da Escola de Belas Artes da Universidade
Federal de Minas Gerais (PPG-Artes/EBA/UFMG). Bolsista CAPES.
Licenciada em Letras (UFMG), bacharel em Artes Plásticas (Guignard/ UEMG) e mestranda em Artes na linha
de pesquisa Artes Plástica, Visuais e Interartes pelo Programa de Pós-Graduação da Escola de Belas Artes da
Universidade Federal de Minas Gerais (PPG-Artes/EBA/UFMG). Bolsista FAPEMIG
Historiadora, doutora em História pela UFMG, professora de Teoria e História da Arte da EBA/UFMG, trabalha
com temáticas de história da arte, patrimônio cultural, estudos urbanos e história das mulheres. Coordena o Grupo
de Pesquisa Estopim, Núcleo de Estudos Interdisciplinares de Patrimônio Cultural e é co-coordenadora do
Laboratório de Curadoria de Exposições Bisi Silva.

22
moralismo e o conservadorismo heterocispatriarcais da sociedade, além da presença
constante de charges e tirinhas, por meio das quais suas editoras e redatoras
expressavam seu ponto de vista sobre determinados assuntos. O erotismo no
ChanacomChana, ademais, extrapolava o campo da representação de sexualidades
femininas, após reapropriá-lo e ressignificá-lo.
Assim, buscamos desenvolver uma análise do erótico contido na lesbianidade
manifestada nos boletins como locus de afirmação dessas mulheres, em contraponto
político à construção do corpo da mulher na sociedade, no discurso midiático,
veiculado sobretudo em mídia impressa e na história da arte como objeto de desejo
por e para o sistema heterocispatriarcal. Apontamos, ainda, rupturas que ocorreram
na forma como corpos e desejos femininos foram apresentados a partir do momento
em que mulheres passam a se autorrepresentar.

O corpo feminino representado pelo homem: a alienação da mulher da agência


de sua sexualidade

Historicamente, no Ocidente desde o período moderno, transpareceu, na


construção da figura da mulher, a tônica de uma representação do corpo feminino
como o “outro”, alternativo ao “normal” masculino, como substância derivada, e não
derivativa e autoconstitutiva enquanto sujeito social (DE LAURETIS, [1994] 2019). No
contexto do surgimento e estabelecimento de uma mídia autoafirmativamente
feminina e/ou feminista no Brasil, entre o final do século XIX e o século XX, mulheres
buscavam, por essa via, a produção de conteúdos femininos e/ou feministas,
assumindo o papel de agentes na veiculação desses conteúdos sobre si, a partir de
uma perspectiva política.

Quando falamos no erótico, a publicidade, o cinema, a pintura, a história da


arte contêm uma série de representações construídas pelo sistema
heterocispatriarcal, em que a mulher aparece majoritariamente como objeto de desejo
do olhar voyeurístico masculino. Acerca disso, Laura Mulvey, feminista inglesa e
crítica de cinema, desenvolve uma ampla análise da representação da mulher no
cinema, a partir de um olhar patriarcal dos diretores. Segundo Mulvey, todos os filmes
assumem que o desejo do(a) espectador(a) é masculino, o que transforma o público
– independente de gênero – num eterno voyeur falocentrado. Como John Berger

23
apresenta em seu livro Formas de ver, os homens são o expectador ideal e “a imagem
da mulher é desenhada para lhe dar prazer” (Berger, 1972, p. 64).

O erótico como poder: “Mergulho em uma análise gráfico-visual do


Chanacomchana.

Por meio do conteúdo produzido por suas editoras, colaboradoras e


entrevistadas e dos debates por elas propostos, o ChanaComChana pode ser
interpretado como documento de registro abertamente feminista e lesbocentrada,
além de podermos ver, ao longo de suas treze publicações, o “engatinhar” de
reflexões de gênero, do começo de um reconhecimento da interseccionalidade e do
queer como um caminho, e da lesbianidade para muito além do sexual: como um
modo de viver e lidarmos umas com as outras, como uma forma de usufruirmos do
poder do erótico em nossa socialização. Sobre o poder do erótico, discorre Lorde:

O erótico é uma dimensão entre as origens da nossa


consciência de si e o caos dos nossos sentimentos mais
intensos. É um senso íntimo de satisfação, e, uma vez que o
experimentamos, sabemos que é possível almejá-lo. Uma vez
que experimentamos a plenitude dessa profundidade de
sentimento e reconhecemos o seu poder, em nome de nossa
honra e de nosso respeito próprio, esse é o mínimo que
podemos exigir de nós mesmas (LORDE, [1978] 2019, p. 67-68,
grifos nossos).

O erótico como poder foi suprimido da socialização do gênero feminino, o que


impede um processo de tomada de consciência plena de si, de autoafirmação. No
entanto, as mulheres, ao longo da história e por toda parte, têm trilhado o caminho
para fora do cerco, e, para isso, a tomada de consciência da potência do erótico
contido nas existências – na força vital, psíquica, que confere autonomia e confiança
perante elas e a vida – exerce papel central. O erótico, afinal, em essência, como
defende Lorde ([1978] 2019, p. 67-74), é algo bem diferente e maior que o que a
concepção aproximada da pornografia - um dos mecanismos mais usuais de
opressão masculina sobre corpos femininos.

24
No fazer do Boletim, é recorrente a presença de figuras femininas sozinhas ou
compostas, charges, tirinhas, e de símbolos como o lábris e o espelho de Vênus,
sobretudo a figura de dois espelhos de Vênus entrelaçados lateralmente, utilizados
pela militância lésbica. O próprio símbolo do GALF, reproduzido no topo da capa de
cada edição, é o de dois espelhos de Vênus entrelaçados, com suas cruzes formando
o “LF” de “lésbica feminista” (Figura 1)

Figura 1. Mural contendo: espelhos de Vênus entrelaçados; espelhos de Vênus


entrelaçados com o “LF”, marca do GALF; lábris acompanhado de assinatura.
Chanacomchana.

O uso das imagens na composição gráfica do boletim é construído


majoritariamente sob a forma ilustrativa de textos, com um caráter de representação
da mulher lésbica, seja por desenhos com linhas simples ou fotografias de jornal. Os
boletins contêm imagens que representam mulheres indianas, negras, indígenas,
brancas – embora essa representatividade se dê majoritariamente por mulheres
brancas, e mesmo mulheres europeias, com referências a esculturas gregas.
Bastante provocativas para a época, apresentando desenhos que tratam do sexo
lésbico, as imagens são também um veículo de fortalecimento da identidade lésbica,
ali representada a partir de conteúdos afirmativos de sua sexualidade e do erótico.
As representações de interações afetivas entre mulheres – em contexto
explicitamente afetivo, ocasionalmente sexual ou não (Figura 2) – estão presentes. O
boletim ChanacomChana foi um espaço fundamental para as autorrepresentações do
corpo feminino feitas por e para mulheres no campo da imagem e do erótico na
imprensa feminina e/ou feminista brasileira, contrapondo-se a um sistema de
representação, então e ainda hoje vigente, do homem sobre a mulher.

25
Figura 2. Montagem feita a partir de algumas das várias representações de
afetividade e sexualidade femininas lesbocentradas que observamos ao longo de
nossa análise dos números do boletim (ChanacomChana, n. 0-12, 1981-1987).

As autorrepresentações do corpo feminino feitas por e para mulheres no


campo da imagem e do erótico materializam a consciência de si por parte das
mulheres, que se tornam autoras do próprio desejo, contrapondo-se a uma narrativa
visual sobre corpos femininos realizada por homens. A escolha por imagens eróticas
do sexo lésbico no boletim ChanacomChana, e mesmo a escolha do próprio nome do
boletim, aponta um movimento de extrema importância para validar a sexualidade
lésbico-feminina, não só por validar o desejo e a liberdade de expressá-lo, mas por
abrir um campo de discussão no campo da arte, da imprensa, da edição, e mesmo
de representações que circulam na sociedade, pautadas pelo amor romântico
heteronormativo e pela ponografia. Abordamos o pioneirismo jornalístico e histórico
deste boletim, refletindo sobre a força dos eróticos feminino e lésbico ali presente,
que buscava a autonomia feminina a partir do controle sobre os próprios corpos, o
controle de sua autorrepresentação, fundamental para as mulheres existirem como

26
sujeitos e não simplesmente como objetos de desejo de outros, explicitando o caráter
político-erótico do Boletim.

REFERÊNCIAS

BBC. Quem foi Cassandra Rios, a escritora mais censurada da ditadura militar. BBC
News, 31 mar. 2019. Disponível em: <https://glo.bo/3gdBTZZ>. Acesso em: 19 ago.
2020.
BORTOLOTTO, Thaís Helena. O retrato da mulher na publicidade. Anuário 2004,
Leme. Disponível em:
<https://repositorio.pgsskroton.com.br/bitstream/123456789/870/1/artigo%2035.pdf>
. Acesso em: 6 ago. 2020.
DE LAURETIS, Teresa. A tecnologia de gênero (1994). In: HOLLANDA, Heloisa
Buarque de (Org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro:
Bazar do Tempo, 2019. p. 120-155.
BUTLER, Judith. Os atos performativos e a constituição do gênero: um ensaio sobre
fenomenologia e teoria feminista. In: Caderno de Leituras n. 78. Belo Horizonte:
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(Mestrado em Ciências da Comunicação) – Escola de Comunicações e Artes,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004
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o fechamento da exposição. GaúchaZH Artes, Porto Alegre, 11 set. 2017. Disponível
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lazer/artes/noticia/2017/09/queermuseu-quais-sao-e-o-que-representam-as-obras-
que-causaram-o-fechamento-da-exposicao-9894305.html>. Acesso em: 7 ago. 2020.
GALF. Não me envolvam, eu me envolvo. ChanacomChana, São Paulo, GALF, n. 0,
1981.
GALF. Mulher de chuteira | Festival Tem Mulher no Palco | A questão homossexual.
ChanacomChana, São Paulo, GALF, n. 1, dez. 1982.
GALF. Sandra Mara Bigode: a queda para o alto. ChanacomChana, São Paulo,
GALF, n. 2, 1983.

27
GALF: a história de um grupo de mulheres lésbicas (edição de aniversário).
ChanacomChana, São Paulo, GALF, n. 3, 1983.
GALF. Ferro’s Bar, dia 19 de agosto: uma vitória contra o preconceito.
ChanacomChana, São Paulo, GALF, n. 4, 1983.
GALF. Ser ou estar homossexual?. ChanacomChana, São Paulo, GALF, n. 5, nov.
1984.
GALF. Mães lésbicas | E mais poesias, informes, correspondências.
ChanacomChana, São Paulo, GALF, n. 6, 1984.
GALF. Lésbicas e família e mais poesias, informes, correspondência.
ChanacomChana, São Paulo, GALF, n. 7, abr. 1985.
GALF. Lésbicas e trabalho. ChanacomChana, São Paulo, GALF, n. 8, ago. 1985.
GALF. Lésbicas e sexualidade: aids, constituinte, poesia, troca de cartas.
ChanacomChana, São Paulo, GALF, n. 9, dez. 1985/ fev. 1986.
GALF. Conferência Lésbica em Genebra: poesia, troca-cartas, assumindo,
homossexualidade nas leis. ChanaComChana, São Paulo, GALF, n. 10, jul.-set. 1986.
GALF. Entrevista com candidatas: Irene Cardoso, Dulce Cardoso, Cassandra Rios.
ChanacomChana, São Paulo, GALF, n. 11, out. 1986/jan. 1987.
GALF. Entrevista com “Sexualidade e saúde”: feminismo, eleições, linguagem,
poesias, troca-cartas, informes. ChanacomChana, São Paulo, GALF, n. 12, fev./maio
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Outsider: ensaios e conferências. Tradução de Stephanie Borges. Belo Horizonte:
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28
LORDE, A. Idade, raça, classe e sexo: mulheres redefinindo a diferença. In: In:
LORDE, A. Irmã Outsider: ensaios e conferências. Tradução de Stephanie Borges.
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NOCHLIN, Linda. Por que não houve grandes mulheres artistas?. São Paulo: Edições
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PEREIRA, J. Levante ao Ferro’s Bar: o Stonewall brasileiro. Aventuras na História –
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PERROT, Michelle. O silêncio que “fala” pelo corpo da mulher, Entrevista concedida
a Marco Antônio Corteleti, web. Boletim Informativo UFMG, n. 1279, ano 26, p. 4, 07
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em: 7 ago. 2020
PERROT, Michelle.. Minha História das Mulheres. 2a ed. São Paulo: Contexto: 2015.
POLLOCK. Griselda. Modernity and the Spaces of Feminity. In: MIRZOEFF, Nicholas
(Ed.). Visual Culture Reader. London: Routledge, 1998. p. 76.
SATURNINO, Luana. Rosários e vibradores: interferências feministas na arte
contemporânea. In: RAGO, Margareth; FUNARI, Pedro Paulo A. Subjetividades
antigas e modernas. Annablume: São Paulo, 2008.

29
SILVA, Eduardo Cristino Hass da; SILVA, Bárbara Virgínia Groff da. Cena de Interior
II e Queermuseu: cartografias das diferenças na arte brasileira silenciadas em Porto
Alegre (2017). Políndromo, v. 11, n. 25, p. 246-265, set.-dez. 2019.

30
RAÇA, GÊNERO E CLASSE NAS CAPAS DA REVISTA PRESENÇA DA
MULHER

Beatriz Monteiro Lemos (UFRJ)5

Como instrumento de atuação política e de resistência à censura, a imprensa


alternativa ou “nanica” exerceu durante a ditadura militar um papel importante nos
movimentos sociais cujas ideias eram vetadas na mídia hegemônica, elencando
pautas que visavam a atingir a esquerda e muitas vezes uma militância específica -
mulheres, negros, LGBTs, indígenas. Já nos anos 1970, no momento de transição
política da ditadura, tiveram destaque na luta pela democracia os movimentos
feministas e a imprensa dirigida por mulheres, como o Brasil Mulher (1975) – porta-
voz do Movimento Feminino pela Anistia - o Nós Mulheres (1976) e o Mulherio
(1981). Segundo Schwarcz e Starling,

“Os movimentos de minorias políticas alargaram os contornos


da luta democrática e fizeram circular seus pontos de vista em
publicações próprias que combinavam um novo ativismo
político, no qual se reivindicava o reconhecimento da diferença
associado à pauta da demanda por igualdade e universalidade
de direitos, e que introduzia novas categorias analíticas, como
gênero ou sexualidade” (SCHWARCZ; STARLING, 2015,
p.474).

Especialmente com a instauração da Assembleia Nacional Constituinte, em


1987 - na qual o movimento de mulheres foi o primeiro grupo a organizar suas
demandas - intensificou-se o debate no interior das mais diversas correntes
feministas sobre a questão geral versus específico, ou seja, se era o momento de
defender incondicionalmente os direitos “universais” ou exigir o reconhecimento das
diferenças, a partir da compreensão de que as variadas existências demandam

5
Beatriz Monteiro Lemos. Mestranda em História Social no PPGHIS-UFRJ. Licenciada e Bacharela em História
pela Universidade de Brasília. É pesquisadora colaboradora do Laboratório de Imagem, Memória, Arte e
Metrópole do Instituto de História da UFRJ. E-mail para contato: biamonteirolemos@gmail.com

31
variadas atenções.
Nessa conjuntura da Constituinte e com a proposta de interlocução entre
essas duas lutas que pareciam incompatíveis, vêm à público a revista Presença da
Mulher em julho/agosto de 1986. A revista surge em um novo momento para a
imprensa alternativa, agora direcionada especificamente à militância de
organizações ou partidos políticos - a Presença era composta majoritariamente por
mulheres do Partido Comunista do Brasil, o PCdoB.
Este trabalho analisa as capas das primeiras 25 edições da revista, entre 1986
e 1993, assumindo que por meio delas é possível constatar sobre o público-alvo da
revista e apreender quais foram, naquele momento, as principais demandas da
corrente elaborada pelas criadoras da Presença da Mulher, o feminismo
emancipacionista. Essa teoria buscava a correspondência da luta pela emancipação
das mulheres com a luta de classes, em uma elaboração baseada no que alguns
autores marxistas como Mészáros (2002, 2016) e Marcuse (1975) nomeiam de
emancipação humana, e também defendia
a mobilização das massas de milhões de mulheres –
principalmente operárias, camponesas, trabalhadoras em
geral, estudantes, intelectuais progressistas para abraçar a
causa da emancipação da mulher em sua especificidade, mas
interligada com a luta revolucionária rumo ao socialismo, único
caminho capaz de acabar com toda a exploração e opressão
(VALADARES, 1990, p.5).

O trabalho pressupõe que os recursos imagéticos e a linguagem utilizadas


pela revista são fundamentais para analisarmos a trajetória e amadurecimento de
suas principais pautas - como trabalho, racismo, eleições, sindicalismo,
desigualdade de gênero, maternidade, entre outras. Assim, a pesquisa indica que
esse movimento incorporou demandas das mulheres brasileiras especialmente na
conjuntura de restabelecimento da democracia, permeado por crises, e identifica na
revista Presença da Mulher um marco positivo na representatividade das mulheres
brasileiras engajadas na luta pela democracia e por emancipação no âmbito público
e privado.

32
Referências

MARCUSE, Herbert. Eros E Civilização Uma Interpretação Filosófica do


Pensamento de Freud. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975.

MÉSZÁROS, István. Para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2002.

________ A Teoria da Alienação em Marx. São Paulo: Boitempo, 2016.

SCHWARCZ, Lilia Mortiz. Brasil: uma Biografia / Lilia Mortiz Schwarcz e Heloisa
Murgel Starling - 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

VALADARES, Loreta. “A ‘controvérsia’ feminismo x marxismo”. Revista Princípios.


São Paulo: Ed. 18 jun-ago, 1990, p. 44- 49.

PERIÓDICOS

Presença da Mulher. São Paulo: Liberdade Mulher. 1986-1993. Irregular.

33
“EU POSSO FALAR QUALQUER COISA COM ESSA VOZ”: O ENGAJAMENTO
POLÍTICO DE NINA ROSA NO SAMBA CARIOCA

Bruna Aparecida Gomes Coelho (UFRJ)6

Nasce uma mulher sambista

Nina Rosa foi criada na cidade do Rio de Janeiro e desde cedo se envolveu
com a música. Quando estudou no Colégio Franco-Brasileiro teve uma professora
que lhe ensinou sobre músicas indígenas, africanas e outros ritmos brasileiros, além
de ter sido aluna da Escola de Música Villa-Lobos, onde aprimorou seus
conhecimentos de percussão. A família teve sua parcela de influência para a cantora:
o pai tinha uma loja de discos e a avó era mangueirense de coração e levava a neta
aos ensaios da Mangueira e a blocos de carnaval. Contudo, Nina começou a cantar
profissionalmente apenas quando estava estudando na Universidade Estadual do Rio
de Janeiro (UERJ), no início dos Anos 2000. Nesse período ela fundou com alguns
amigos o grupo Samba de Maria, que se apresentava em regiões próximas à UERJ,
como o bairro de Vila Isabel.

Cantora, compositora e percussionista, Nina Rosa faz parte da nova


geração de talentos da música popular brasileira que conseguiu despontar no cenário
do samba devido à sua potente interpretação e notável voz. Já fez apresentações por
todo país e esteve ao lado de grandes nomes como Leci Brandão e Nei Lopes. Soma-
se ao seu repertório canções de variados estilos como samba-canção, samba-de-
roda, bossa-nova, coco, jongo, baião, ijexá e até a defesa de sambas de enredo –
Histórias Para Ninar Gente Grande, samba de enredo da Mangueira em 2019, foi
defendido por Nina ao lado da pequena Cacá Nascimento. Ao longo dos anos foi

6
Bruna Aparecida Gomes Coelho é doutoranda em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ). Desenvolve pesquisas sobre as mulheres do samba, dando visibilidade ao seu engajamento político e
cultural. Este trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES). E-mail para contato: bruna.agcoelho@gmail.com.

34
construindo seu nome musical e no universo sambista das rodas, blocos e escolas de
samba, sendo hoje uma das expoentes do samba carioca.

As escolhas artísticas de Nina Rosa

Para compreendermos o engajamento político presente na obra de Nina


Rosa analisaremos uma entrevista concedida no dia 4 de agosto de 2020 para o canal
Portela Cultural (YouTube), em que a cantora foi entrevistada por Dandara Luanda, e
as seguintes canções gravadas pela artista: Pra Matar Preconceito, Negra Linda, Vale
Saída.

Em determinado momento da conversa a entrevistadora afirmou que, em


sua perspectiva, Nina não desvinculava sua arte de seu posicionamento político, ao
que a cantora respondeu da seguinte maneira:

Você está totalmente certa [...] e é como muita gente me vê


também. [...] Eu acho que a postura em cantar, em chegar em
algum lugar e dizer “eu sou mulher negra, preta, eu sou mulher
que mereço espaço e respeito, sou mulher trabalhadora da
música, do samba”. São essas mensagens que eu passo, que
são muito simples, mas a sociedade complica isso de uma forma
que eu acho que quando você está com o microfone na mão é
uma boa maneira de você explicar para um tantinho mais de
gente. (Nina Rosa, 4 ago. 2020).

É evidente que a cantora avalia que sua música é uma forma de defender
seu espaço na sociedade. Em outro momento, a entrevistadora levantou a questão
sobre existir uma resistência às mulheres dentro do samba e questionou Nina sobre
como a artista lida com tal problema. A cantora fez a seguinte análise:

Eu acho que essa coisa do machismo é em decorrência da


sociedade. É o machismo estrutural. Então ele vai acontecer em
qualquer lugar da sociedade, inclusive no samba que é o lugar
de tantas mulheres, de tantas matriarcas, de tantas tias
importantes. [...] Eu caminho pelo samba como eu tenho que
caminhar, como eu gostaria de caminhar: se pisar no calo a

35
gente canta mais uma música, a gente ganha o samba. (Nina
Rosa, 4 ago. 2020).

Nina admite que precisou aprender a andar nesse território marcadamente


masculino, construindo sua trajetória e vencendo as adversidades através da própria
música. O que ainda acontece, muitas vezes, é uma necessidade de se afirmar diante
dos seus iguais, enfrentando e vencendo desafios para ser reconhecida pelos seus
pares.

Portanto, em sua fala a artista demonstra o interesse por combater duas


questões importantes, que são o machismo e o racismo. Isso é perceptível em duas
músicas gravadas por ela: Pra Matar Preconceito (Manu da Cuica e Raul DiCaprio) e
Negra Linda (Déa Santtos e Hamilton Fofão). A primeira foi gravada em 2016, em
parceria com Marina Iris, e deu origem a um clipe roteirizado pelo Coletivo Bando. Já
a segunda faz parte do primeiro EP do grupo musical Muxima Muato, que foi fundado
em 2018 e do qual a cantora é integrante. O EP recebeu o título de Coração de
Mulher, que é a tradução de Muxima Muato (dialeto africano quimbundo) para o
português.

A música Pra Matar Preconceito já diz a que veio nos primeiros versos: “Na
rua me chamam de gostosa / E um gringo acha que eu nasci pra dar / No postal mais
vendido em qualquer loja / Tô lá eu de costas contra o mar”. Após essa abertura que
fala da objetivação do corpo feminino, especialmente negro, a letra centraliza a
condição da mulher negra e a visão que a sociedade tem sobre elas. Posteriormente,
ao citar importantes nomes como Ciata, Dandara e Quelé, a poesia remete a
importantes figuras femininas da resistência negra. A canção afirma que ninguém
pode dizer o lugar dessas mulheres, e que sua história de resistência é muito antiga.
Há como objetivo conseguir demonstrar a força e altivez dessas personagens que
sobreviveram ao longo dos séculos, construindo suas histórias e contribuindo para a
libertação de seu povo não apenas das correntes físicas, mas também das correntes
sociais e culturais.

A canção Negra Linda é um jongo que exalta a beleza da mulher negra e


ao mesmo tempo suas raízes: “Negra, Linda, Joana, Axé, Saravá / Força, fé em Oxalá
/ Ginga, Maria, Jongo, Benguela, Alujá / Chega de negro só penar”. As palmas e o

36
coro no fundo evidenciam o clima de roda de jongo, reforçando a imagem das raízes
africanas presentes na canção ao mencionarem elementos que compõem as religiões
de matriz africana e citarem povos que foram trazidos da África. É uma música que
remete ao ouvinte um sentimento de empatia e reconhecimento da luta do povo
negro.

Durante a entrevista, Nina pontuou que sua obra artística também tem
relação com o amor, que é um componente principal da última canção mencionada
neste texto. Vale Saída é um samba cadenciado escrito por Ivan da Gamboa e
gravado por Nina em 2020, narrando o possível fim de uma história de amor: “Não
me procura mais, se quer olha pra mim / Nenhuma graça faz, não sei amar assim /
Decide o que fazer: se vai dar atenção / Ou dar um vale saída das garras do teu
coração”. Como a própria artista afirmou em sua entrevista, ela também gosta de
cantar sobre a natureza, o amor e outros temas que atravessem a sua sensibilidade.

Conclusão

Existe uma movimentação no samba carioca em que as mulheres têm


buscado criar seus próprios espaços para se apresentarem como artistas, não
esperando mais a boa vontade de territórios já ocupados e estabelecidos em sua
maioria por homens. É o caso do Encontro Nacional de Mulheres na Roda de Samba,
que teve sua terceira edição em 2020 e contou com a participação de mulheres de
outros países. Um evento criado por mulheres e feito por mulheres para o público em
geral, que se tornou palco para homenagear as grandes mulheres sambistas, além
da oportunidade delas apresentarem suas pautas, projetos e trabalhos musicais. Um
ambiente para terem voz, como a própria Nina disse: “Eu posso falar qualquer coisa
com essa voz, mas é importante que a gente tenha voz” (Nina Rosa, 4 ago. 2020). A
artista busca fazer parte desses novos projetos e ocupar esses territórios como, por
exemplo, integrando o bloco carnavalesco “Comuna que Pariu!” (do qual é instrutora
de percussão) e os grupos “Vibra Negra Voz” e “É Preta”.

Nina Rosa e seu engajamento político no samba carioca é um exemplo


dessa nova geração de mulheres sambistas que não ficam mais esperando que as
oportunidades surjam, mas que as criam e se beneficiam delas. Por se reconhecer
enquanto mulher negra do samba, a cantora faz escolhas artísticas que refletem suas

37
lutas sociais e culturais, pois o palco se tornou um momento para conversar com o
público e ampliar sua voz, fazendo com que outras pessoas ouçam seu discurso e
entendam suas lutas. Desta forma, as fontes apresentadas neste breve texto
exemplificam o seu olhar sobre questões que permeiam o seu cotidiano, como essa
luta contra o machismo e o racismo. É importante ressaltar também a busca dessas
mulheres por recontar a história pela ótica de suas ancestrais, as quais foram
relegadas muitas vezes ao esquecimento ou até mesmo ao silenciamento na
construção desse importante universo cultural que é o samba carioca7.

Referências

BURKE, Peter. História e teoria social. Tradução: Klauss Brandini Gerhardt;


Roneide Venâncio Majer. – São Paulo: Editora UNESP, 2002.

CASTRO, Felipe; MARQUESINI, Janaína; COSTA, Luana; MUNHOZ, Raquel. Quelé,


a voz da cor: biografia de Clementina de Jesus. – 1ª.ed. – Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2017

GOMES, Rodrigo Cantos Savelli. Samba no feminino: transformações das relações de


gênero no samba carioca nas três primeiras décadas do Século XX. 2011. 157 f.
Dissertação (Mestrado em Música) – Universidade do Estado de Santa Catarina,
Florianópolis, 2011.

GRILLO, Bárbara Rodrigues Silva. Um samba que elas querem: A voz das mulheres
sambistas no Rio de Janeiro. 2019. 130 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia com
concentração em Antropologia) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2019.

HARTOG, François. Regimes de Historicidade: presentismo e experiências do tempo.


(Coleção história e historiografia). Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.

7
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. [Tradução Ângela M. S. Côrrea]. – São Paulo : Contexto,
2007.

38
MOURA, Roberto. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro – 2ª edição – Rio
de Janeiro; Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e
Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1995.

NAPOLITANO, Marcos. História & Música: história cultural da música popular. – 3.


ed. – Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. [Tradução Ângela M. S. Côrrea]. –


São Paulo : Contexto, 2007.

WERNECK, Jurema Pinto. O samba segundo as ialodês: mulheres negras e a cultura


midiática. 2007. 318 f. Tese (Doutorado em Comunicação) – Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.

39
“DEUS, PÁTRIA E FAMÍLIA”, OS PILARES DA NAÇÃO: UM ESTUDO SOBRE
CARECAS INTEGRALISTAS

Camilla Maria Silva Cavalcante (UFRJ)8

Introdução e metodologia

No século XX, principalmente na Europa, no contexto social turbulento dos pós


Segunda Guerra, surgem grupos juvenis que compartilham um estilo conhecido como
“Skinhead”9 e partem de uma identidade10 coletiva (CASTELL,1999). No Brasil, na
região dos subúrbios da cidade de São Paulo, um grupo que adota este estilo emergiu
da ruptura com o estilo Punk, na década de 1980. Tratava-se de um grupo
influenciado pelos movimentos Skinheads europeus, sobretudo pelos coletivos de
caráter ultranacionalista e que se expressavam através de simbologias apropriadas,
que faziam referência ao Nacional-Socialismo Alemão da década de 1930. Entretanto,
em busca de uma caracterização nacional e de elementos que os diferenciassem do
movimento Punk, o grupo passou a se chamar “Carecas do Subúrbio”. Hoje em dia,
o grupo não se restringe à cidade de São Paulo. De maneira plural no Brasil, existem
em diversos Estados pessoas que se identificam como Carecas. Uma característica
peculiar aos dissidentes deste grupo, os Carecas do ABC11 , que são o foco deste
estudo, é admitir associações ideológicas com o Integralismo Histórico12.

8
Camila Maria Silva Cavalcante, formada em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro,
mestranda em História Social pelo Programa de Pós Graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
hist.cami@homail.com.
9
Cabeça raspada
10
Toma-se aqui identidade como o processo de construção de significado com base em um atributo cultural, ou
ainda um conjunto de atributos culturais inter-relacionados. o(s) qual(ais) prevalece(m) sobre outras fontes de
significado. Para um determinado indivíduo ou ainda um ator coletivo, pode haver identidades múltiplas. Cf.
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade.; Tradução Klauss Brandini Gerhardt." A era da informação:
economia, sociedade e cultura” v2.1999. p.22.
11
Grupo de Skinheads da cidade de São Paulo. A sigla ABC faz menção às cidades que originalmente
formavam a região industrial da cidade. Santo André (A), São Bernardo do Campo (B) e São Caetano do Sul (C)
12
Na primeira fase a AIB pode ser interpretada, em acepção gramsciana, como um aparelho privado de
hegemonia que aglutinou segmentos políticos de tendências variadas: antissemitas, simpatizantes e seguidores
do fascismo italiano, e nacionalistas ligados ao catolicismo social. Cf. BARBOSA, Jefferson Rodrigues.
Chauvinismo e extrema direita: crítica aos herdeiros do sigma. UNESP,2015,p. 324.

40
Principalmente a partir da década de 1980, há uma intensificação e
diversificação dos discursos políticos dos Skinheads, sendo o nacionalismo uma
característica comum a eles, principalmente aos que possuem associações
ideológicas com a extrema direita. Historicamente o nacionalismo consiste em uma
ideologia surgida na chamada idade moderna e possui como marco de sua ascensão
o rompimento com as estruturas de poder das monarquias absolutistas. Como um
processo econômico e político passa a ser teorizado principalmente após a revolução
Francesa nas mais diversas abordagens. As primeiras teorias focavam em identificar
elementos subjetivos e objetivos que compunham a nação. A partir do século XX
foram surgindo novas abordagens que buscam ir além, para uma compreensão mais
completa do que seria a nação. (BREUILLY, 2000)

As fontes utilizadas na composição desta pesquisa fazem parte das redes


sociais oficiais utilizadas pelo grupo Carecas do ABC. O site oficial do grupo13 e a
rede social, do Facebook14. As publicações sobre a inauguração da página do
Facebook se iniciam em 2013, sendo a inauguração do site no ano de 2016. Ambas
possuem como objetivo político, informar e agregar seguidores “para a defesa da
causa nacionalista”. Circunscrito em um momento de efervescência de manifestações
de junho no Brasil do mesmo ano. O grupo se apresenta na descrição destes sites
como uma organização sem fins lucrativos. Ao assimilar valores de um
tradicionalismo típico da “nova direita”(MIGUEL, 2018, p.509)15, recebem ampla
visibilidade e difusão devido a amplitude dos meios de comunicação. Estas páginas
da internet estão circunscritas no que Fábio Almeida define como “documento digital”
(ALMEIDA, 2011, p. 17)16. O pesquisador do tempo presente tem acesso exclusivo a
esse material, neste sentido o historiador não atua apenas com a análise, mas
também com preservação da informação. Toda a documentação é arquivada em
formato de arquivo PDF, assim como todos os recursos disponíveis devem ser salvos;

13
Disponível em: <http://carecasdoabc.wix.com/carecasdoabc>
14
Disponível em:<https://www.facebook.com/CarecasdoABC/?epa=SEARCH_BOX>
15
Aglomerado ideológico semi-coeso onde se misturam ideias do conservadorismo, do libertarianismo e do
reacionarismo, somadas a ideais que fazem apologia ao eugenismo e à segregação racial. Flertam por vezes de
maneira direta ou indireta aos constructos do nazismo e do fascismo. Esses ideais circulam frequentemente
defendidos sob a justificativa da liberdade de expressão. MIGUEL, Felipe. A reemergência da direita Brasileira
In: SOLANO, Esther (Ed.). O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil. Boitempo Editorial, 2018.
16
O documento é o registro da expressão da experiência humana, em suas mais variadas manifestações,
independentemente de seu suporte material. Podemos considerar que “documento digital” é aquele documento
de conteúdo tão variável quanto os registros da atividade humana possam permitir-codificado em sistemas de
dígitos binários, implicando na necessidade de uma máquina para intermediar o acesso às informações. Tal
máquina é, na maioria das vezes, um computador. Cf. DE ALMEIDA, Fábio Chang.

41
músicas, vídeos e sites relacionados ao principal que se incluem como parte auxiliar
dessa mesma documentação, criando-se assim um banco de dados (Ibidem, p, 25).
Fazem parte da metodologia desta pesquisa planilhas, banco de sites, divisões
temáticas afim de acompanhar os conteúdos que mais se repetem.

Quadro teórico

A pesquisa pioneira sobre os Carecas do Subúrbio produzida por Márcia


Regina da Costa, ressalta as dinâmicas contraditórias e conflituosas do grupo
analisado. Segundo a mesma, há um processo de desterritorialização causada pelas
mudanças da modernidade da globalização e consequentemente de uma cultura de
massas. Ocorre um nomadismo, neste sentido o homem contemporâneo não é
apenas desterritorializado, seu corpo reage como substância informática ao “terror do
mesmo” (COSTA, 1992, p. 216). Assim Punks, Skinheads e Carecas são apontados
como uma espécie de antevisão desse nomadismo produzido pela perda desse
território. Neste sentido, o Estado produz a violência legitimada, enquanto os
Skinheads e Carecas evocam o direito de exercer a violência como expressão
imaginária de uma vontade totalitária.

Segundo Jefferson Rodrigues Barbosa, há diferenças entre o integralismo da


década de 1930 e os integralistas contemporâneos. O autor defende a hipótese de
que mesmo os militantes buscando atualizar seus temas, permanecem seguindo os
princípios integralistas. Assim, as organizações são caracterizadas por um discurso
fortemente moralizador que critica o caráter materialista da vida moderna, fazendo
referência a princípios de ordem simbólica, como a defesa de uma comunidade étnico
cultural que precisa ser resguardada. Como por exemplo, os White Power paulistas e
o Partido Nacional Socialista Brasileiro. Para estes grupos ou organizações que
correspondem a essa primeira vertente tradicionalista, geralmente utilizam o prefixo
“neo” fascista ou nazista. Enquanto a outra vertente busca adaptar a suas concepções
diante da conjuntura contemporânea e algumas vezes negando simbolismos
tradicionais (BARBOSA, 2012).

Segundo Bourdieu, apesar do poder estar presente em tudo, seria necessário


desenvolver técnicas para enxergá-lo nos meios menos aparentes. Este poder
invisível só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que estão sujeitos a ele.
O poder simbólico é uma construção da realidade que tende a estabelecer um sentido

42
imediato do mundo e em particular do mundo social o que contribui para a reprodução
da ordem, a lógica moral. As disputas pelas narrativas, a imposição de instrumentos
de conhecimento, é uma luta para o monopólio “da violência simbólica legítima”
(BORDIEU, 1989, p.12). Assim a linguagem é compreendida como uma forma de
legitimar o poder.

Observamos nas fontes o caráter central que o nacionalismo possui para a


construção do próprio discurso dos Carecas do ABC. O nacionalismo aqui é
compreendido como parte integrante do poder simbólico do grupo. Umut Özkirimli se
propõe a pensar o conceito como uma forma particular de discurso e delimita as
operações do mesmo: 1ª) O nacionalismo divide o mundo em “nós” e “eles”; 2ª) O
discurso do nacionalismo hegemoniza, trata-se de poder e dominação, produz
hierarquias entre os atores sociais, autorizando formulações particulares da nação
contra as outras, ocultando as fraturas e divisões de opinião dentro da nação. 3ª) O
discurso do nacionalismo naturaliza-se. “Valores nacionais não são mais vistos como
valores sociais e aparecem como fatos da natureza”. Isto faz com que a linguagem
da identidade nacional seja transformada em uma linguagem da moralidade e torna o
nacionalismo o próprio horizonte do discurso político; 4ª) A identidade nacional tem
de ser aprendida e interiorizada por meio da socialização (ÖZKIRIMLI, 2005, p, 32-
33).

Estas definições mostram que o nacionalismo é um fenômeno cognitivo, que


funciona através de categorias e conhecimentos. Nesse sentido, as nações só
existem quando os seus membros entendem a si mesmos e o mundo ao seu redor
por meio do discurso nacionalista. No que se refere a minha pesquisa, a ideologia
defendida pelos Carecas, poderia ser parte de uma correlação da violência simbólica
para a violência política (dominação),legitimando assim o Integralismo enquanto
teoria para impor uma versão de um mundo social, conforme seus ideais.
Prestigiamos uma compreensão ampliada da noção de poder que ultrapassa as
categorias da história política tradicional, como Estado, soberania, governo etc., para
considerá-lo também, como efeito do funcionamento e dinâmica de relações e
práticas sociais constituídas entre os sujeitos. Nesta perspectiva, falamos do discurso

43
17
que atua na “periferia da política” (CALSALS apud VIÑAS, 2013, p. 38) e é
protagonizado pelo próprio grupo.

Resultados parciais

Analisando as fontes podemos perceber duas temáticas principais em todo o


discurso dos Carecas do ABC. A primeira é o “anticomunismo” que se apresenta
através do “antipetismo”, marcado também pela intolerância a homossexuais; a
segunda é a “teoria conspiracionista judaico maçônica”. Dentro da análise buscou-se
identificar o encaixe entre todas essas temáticas, o que chamamos de “categorias”
que é a relação Deus, Pátria e Família, slogan do grupo e que possui vínculo com
suas noções de nacionalismo. Entre as trinta e oito obras indicadas no site dos
Carecas do ABC dezessete abordam temáticas associadas ao antissemitismo, isso
sem contar nas panfletagens e recursos imagéticos espalhados pelas páginas. O
grupo afirma se posicionar contra o “racismo” utilizando a justificativa da
“miscigenação brasileira”, exaltando os povos indígenas. Partindo destas análises
podemos ressaltar a forte relação que o grupo possui com o nacionalismo e sua
relação com o Integralismo Histórico, por vezes atualizando temas comuns a
abordagem dessa ideologia política.

Referências

BARBOSA. Jefferson, Rodrigues. Integralismo e ideologia autocrática chauvinista


regressiva: crítica aos herdeiros do sigma. Marília, 2012. Tese (Doutorado) –
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - Faculdade de Filosofia e
Ciências, UNESP, 2012. Disponível em: <https://www.marilia.unesp.br>. Acesso em:
27 de set. 2020
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989.

17
Termo utilizado pelo historiador Xavier Calsals para fazer referência aos espaços que os
skinheads atuam ou ocupam em seus respectivos coletivos políticos. “Periferia de la política”.
CALSALS, X. Neonazis en España (1966-1995), tesi doctoral, Barcelona. Apud VIÑAS,
Carles, Gràcia."Skinheads"a Espanya:Orígens, implantació i dinàmiques internes (1980-
2010). 2013.Tese(Doutorado)- Faculdat de geografia e història, Universitat de
Barcelona.p,38.

44
BREUILLY, John. Abordagens do nacionalismo. Um mapa da questão nacional.
Rio de Janeiro: Contraponto, p. 155-184, 2000.
CALSALS, X. Neonazis en España (1966-1995), tesi doctoral, Barcelona. Apud
VIÑAS, Carles, Gràcia."Skinheads"a Espanya:Orígens, implantació i dinàmiques
internes (1980-2010). 2013.Tese(Doutorado)- Faculdat de geografia e història,
Universitat de Barcelona
COSTA, Márcia Regina da. Os carecas do subúrbio: caminhos de um nomadismo
moderno. Vozes, 1992. Disponível em:<https://tede2.pucsp.br>. Acesso em: 27 de
set. 2020.
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade.; Tradução Klauss Brandini Gerhardt." A
era da informação: economia, sociedade e cultura v2.1999.
DE ALMEIDA, Fábio Chang. O historiador e as fontes digitais: uma visão acerca
da internet como fonte primária para pesquisas históricas. Aedos, v. 3, n. 8, 2011.
Disponível em: <https://seer.ufrgs.br>. Acesso em: 10 ago. 2020.
GALLEGO, Esther Solano et al. O ódio como política: a reinvenção das direitas no
Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018.
ÖZKIRIMLI, Umut. What’s Nationalism? In: Contemporary Debates on Nationalism.
A critical Engagement. New York. 2005.

45
A COMUNIDADE TRADICIONAL CAIÇARA DO BONETE – PENSANDO SOBRE
AS PALAVRAS

Carla Teodoro Costa (PPGHIS UFRJ)18

O Bonete, os boneteiros e a comunidade caiçara tradicional

O objetivo desse artigo é pensar sobre a escolha dos termos ao se tratar de


comunidades tradicionais partindo do exemplo do Bonete, comunidade tradicional
caiçara de Ilhabela, no litoral norte de São Paulo, onde até 2017 eles se reconheciam
apenas como boneteiros e boneteiras, não como caiçaras e tampouco identificavam
seu território como comunidade tradicional, mas apenas como Bonete.

A escolha dos conceitos que seriam utilizados para definir o Bonete e os


boneteiros nas pesquisas realizadas foi escolhido de forma que não ficasse longe do
que é reconhecido por eles, nem fora do que é reconhecido por lei, por outras
comunidades e movimentos sociais, pois reconhecemos que há mobilizações das
diversas comunidades tradicionais com pautas que convergem com as do Bonete e
foi justamente em um momento de luta contra a especulação imobiliária, em 2018,
que o termo comunidade caiçara tradicional se popularizou no Bonete, restrito ao
grupo que se envolveu na contenda pela preservação do território que rapidamente
acabou sem que os boneteiros conseguissem o que estavam exigindo. Por base
nessa experiência de 2018, como moradora da comunidade, foi considerado manter
em qualquer trabalho a ressalva de que são boneteiros e que a comunidade é por
eles reconhecida apenas como Bonete, pois acreditamos que esses termos os
fortalecem como grupo, ao mesmo tempo que respeita seu modo de falar e se
reconhecer e ressalta a importância do território para eles.

Consideramos que as formas de reconhecimento devem ser respeitadas e


mantidas também para manter a representatividade dos boneteiros e sua soberania

18
Carla Teodoro Costa foi professora em comunidade tradicional, é fromada em História pela Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e agora é mestranda no Programa de Pós Graduação em História
Social da UFRJ. carla.teo.costa@gmail.com .

46
para responder pela comunidade ou se posicionar para defender políticas públicas,
mas é preciso reconhecer que o Bonete não é um lugar isolado, nem único e o
relacionar com as demais comunidades tradicionais fortalece o movimento contra
todos os ataques sofridos, desde a falta de políticas públicas que garantam o bem
estar dos povos tradicionais, até a invasão deliberada dos territórios por
empreendimentos privados ou até pelo Estado, como no caso dos Parques Nacionais
e Estaduais. Dessa forma, sabemos que o termo precisa ser expandido para ampliar
seu poder de alcance, por isso no processo de escolha consideramos essa
ampliação. Nesse sentido, concordamos com Guilherme Lima Pachoal, que escreveu
sobre o Bonete, defendendo o uso do termo comunidade tradicional por suas relações
comuns de convivência (LIMA, 2015) e sobre a definição de conceitos afirma:

Entendemos que no atual momento do debate travado por


alguns setores da sociedade, dentre os quais o científico, a
respeito das populações tradicionais, é importante que
lapidemos o conceito que as define, contribuindo para que se
torne mais operacional teoricamente e mais efetivo
politicamente. Em verdade, estamos mais preocupados em
realizar uma proposição teórica que possa abranger uma
grande quantidade de pessoas desfavorecidas pelo avanço do
modelo hegemônico de (re)produzir o espaço, ditados pelas
grandes empresas e pelo Estado, do que em tornar o conceito
tão estreito que apenas poucos grupos específicos possam se
favorecer dos ganhos já conquistados e dos potenciais.

Porém, um conceito muito abrangente pode se voltar contra a


argumentação a respeito da importância e dos direitos das
populações tradicionais e, na prática, pode beneficiar agentes
sociais economicamente favorecidos que queiram se aproveitar
desses ganhos – adquirindo terras, explorando recursos
naturais, solicitando crédito de programas governamentais,
solicitando ao Estado a implantação de infraestruturas, apenas
para citar possíveis exemplos – sem necessitarem. É preciso
encontrar um equilíbrio estratégico. (LIMA, 2016, p. 524)

47
Consideramos que a definição de conceitos não é fechada, por isso
partimos de Bonete e boneteiros e boneteiras, ampliando para outras possibilidades
sem perder o lastro com a especificidade. A questão de serem boneteiros e não
apenas caiçaras ressalta sua ligação com o território e podemos considerar também
sua colocação como indígenas no sentido de estarem ligados à sua terra de origem.

Ser indígena é ter como referência primordial a relação com a


terra que nasceu ou onde se estabeleceu para fazer sua vida,
seja ela uma aldeia na floresta, um vilarejo no sertão, uma
comunidade de beira rio ou uma favela nas periferias
metropolitanas. É ser parte de uma comunidade ligada a um
lugar específico, ou seja, é integrar um povo. (CASTRO, 2017,
p.4)

O termo comunidade tradicional que optamos por utilizar veio do Decreto


6040 de 7 de fevereiro de 2007 que institui a Política Nacional de Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e Comunidades tradicionais. (BRASIL, 2007) e consideramos
que essa nomenclatura é importante para inserção nos movimentos sociais por
possuir aparato legal. De acordo com o decreto, temos a definição de povos
tradicionais.

Art 3º Para fins desse Decreto e do seu anexo compreende-se


por:

I – Povos e comunidades tradicionais: grupos culturalmente


diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem
formas próprias de organização social, que ocupam e usam
territórios e recursos naturais como condição para sua
reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica,
utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e
transmitidos pela tradição. (BRASIL, 2007)

Esse conceito é relativamente recente e se formou com a necessidade de


defender as comunidades tradicionais durante as fundações dos Parques Nacionais
e Estaduais, a partir da década de 1960, que não consideravam os povos indígenas
como parte do meio ambiente e realizaram diversos ataques a seus modos de vida

48
(DIEGUES, 2008), porantanto reconhecemos a definição como comunidades
tradicionais, mas nos atemos aos perigos de considerar os caiçaras com visões
idealizadas que os colocam como guardiões da natureza ou como remanescentes de
um passado idealizado em favor da cultura hegemônica, como alerta Cristina Adams.

Meu argumento central será de que a “identidade” Caiçara


“ecologicamente correta” é uma representação historicamente
datada, construída pelos antropocentristas com o intuito de
garantir o direito dessas populações à permanência nas
unidades de conservação de Mata Atlântica. A minha leitura,
entretanto, será de que a construção dessa “identidade” terá um
efeito inverso a médio ou longo prazo, e apenas contribuirá para
o enfraquecimento político destas sociedades, a despeito das
boas intenções de seus propositores. (ADAMS, 2002, p. 2)

Realmente percebemos o uso dessa definição para favorecer a colocação


das comunidades tradicionais em em formas que submetem o modo de vida
tradicional à cultura hegemônica, até para favorecer o turismo, explorado por pessoas
de fora das comunidades, como Paulo Stanich, que traz interpretações sobre as
comunidades tradicionais que refletem isso. O autor faz uma coletânea sobre
legislação e interpretações e defende a criação de leis que protejam as comunidades
caiçaras tradicionais, mas utiliza o argumento do congelamento dessas comunidades
no tempo:

O patrimônio cultural é sem dúvida o fator que gera mais


urgência de tutela, e mantê-lo é uma necessidade coletiva para
preservar também a história do povo brasileiro. Essas
comunidades ainda mantêm muitos aspectos que são fiéis ao
modo de vida da época da primeira colônia. Até o sotaque
guarda reminiscências do português arcaico (STANICH NETO,
2016, p. 31).

Essa ideia de transformar em patrimônio cultural é evidentemente um olhar


de fora e mais questionável a afirmação de que é uma cultura que mantém o modo
de vida colonial, o que mostra o objetivo de preservar o passado imaginado da cultura

49
hegemônica, ignorando a forma de vida das comunidades, o que seria no conceito de
Pierre Nora (1993), um “local de memória”, mas criado com a comunidade inteira
como atração.

Nossa proposta é pensar o caiçara tradicional como o que mantém a cultura


e tradição oral, mas reconhecemos que essas comunidades estão em processos de
transformação e até aceleração de tempo e não são repsentação de um passado da
cultura hegemônica, mas resultados de processos de temporalidades específicas
dessas comunidade e devem ter sua cultura, modo de vida e territórios protegidos em
função de si, não de interesses do mercado turístico, embora possam se beneficiar
dele para garantir melhoras para a população.

Referências

ADAMS, Cristina. Identidade Caiçara: exclusão histórica e sócio-ambiental. In:


Atualidades em Etnobiologia e Etnoecologia. Palestras convidados do IV Simpósio
Brasileiro de Etnobiologia e Etnoecologia. Recife: Sociedade Brasileira de
Etnobiologia e Etnoecologia, 2002.

CASTRO, Eduardo Viveiros de, Os involuntários da pátria elogio do


subdesenvolvimento. Caderno de Leituras. Belo Horizonte, n. 65 p. 3-9, maio de 2017.

DIEGUES, Antônio Carlos. O mito moderno da natureza intocada. 6ª ed.São Paulo:


Huctec – Nupaub, 2008.

LIMA, Guilherme Pascoal. Turismo e poder em lugares tradicionalmente habitados


por caiçaras: o caso do Bonete, Ilhabela, SP. 2015. Dissertação (mestrado em
Geografia) – Instituto de Geociências, Universidade Estadual de Campinas, Campinas.

______________________. Populações tradicionais: o conceito em foco. Boletim


campineiro de geografia, Campinas, v. 6, n.2, p. 523-542, 2016.

STANICH NETO, Paulo (org). Direito das comunidades tradicionais caiçaras. São
Paulo: Editora Café com lei, 2016

NORA, Pierre. Entre memória e história a problemática dos lugares. Projeto História,
São Paulo, n.10, 1993.

50
BLOCKBUSTERS, CENSURA E PROPAGANDA – INTERFERÊNCIAS DO
DEPARTAMENTO DE DEFESA DOS EUA NO CINEMA DO SÉCULO XXI

Carlos Cesar de Lima Veras(UFRJ)19

A concepção do filme como agente histórico (FERRO, 2010, pp. 15 – 21) refere-
se às possibilidades de uso do produto cinematográfico com fins ideológicos,
suscetíveis a estimularem e/ou moldarem percepções e compreensões de seus
públicos-alvo; tais interferências podem ser representações que tanto dialogam com
os poderes constituídos quanto atuem como resistência a eles (BARROS, 2012, p.
63), mesmo que seu caráter ideológico não seja explícito (FURHAMMAR, ISAKSSON,
1976, p. 227). Morettin (2003) destaca que, para analisar o produto cinematográfico,
é preciso que o(a) historiador(a) tenha cuidado com o aporte documental e
historiográfico para entender como a(s) obra(s) selecionada(s) dialoga(m) com seu
contexto de produção e recepção (pp. 39 – 40). Com tais considerações salientadas,
é necessário compreendermos em qual contexto os filmes que selecionamos para
esta comunicação estão inseridos, sendo eles Hulk (Hulk, 2003, Ang Lee) e
Transformers III – O Lado Oculto da Lua (Transformers: Dark of the Moon, 2011,
Michael Bay), blockbusters baseados em personagens de sucesso mundial em outras
mídias, como as histórias em quadrinhos e séries animadas.

O início do século XXI nos EUA foi marcado pela Guerra ao Terror, a campanha
militar deflagrada pelo então presidente estadunidense George W. Bush (2001 – 2009)
em resposta aos ataques terroristas cometidos no território daquele país em 11 de
setembro de 2001. Um dos recursos utilizados pelo presidente para mobilizar a opinião
pública de forma favorável às ações militares e seus necessários esforços econômicos
e humanos foi recorrer aos conglomerados de mídia e seus diversos meios de
comunicação de massa, dentre os quais a televisão, a imprensa escrita e o cinema.
Os diálogos com representantes dos estúdios de cinema logo começaram a se
concretizar: dois meses após os atentados, o presidente da Motion Picture Association
of America - MPAA, Jack Valanti, se reuniu com o delegado-chefe da Casa Civil da

19
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, sob orientação do Prof. Dr. José D’Assunção Barros.

51
Presidência, Karl Rove, no intuito de estruturar de que forma a associação poderia
apoiar a campanha de combate ao terrorismo (VALANTIN, 2005, p. 102). Simon
Redstone, acionista majoritário do Viacom, um dos principais conglomerados
midiáticos contemporâneos e proprietário da Paramount Pictures, também se
prontificou a produzir em seus veículos de comunicação de massa conteúdo favorável
à investida militar e condizente com o aspecto de “autodefesa” que a Guerra ao Terror
simbolizaria (DICKENSON, 2006, p. 109). Como consequência, nos primeiros anos
da administração de W. Bush diversos filmes, em sua maioria do gênero ação e
drama, abordaram de variadas maneiras os Estados Unidos ou símbolos em sua
alusão em contextos que remetiam à necessidade de engajamento militar do país,
dentre os quais Fomos Heróis (We Were Soldiers, 2002, Randall Wallace) e Lágrimas
do Sol (Tears of the Sun, 2003, Antoine Fuqua), que evocavam a figura do soldado
como um “guerreiro ético” e obstinado (DODDS, 2008, p. 1626).

Naturalmente, tal interação entre Estado e cinema não consistia em uma


prática incomum nos EUA, mesmo que discursos conservadores e liberais apontem
para uma suposta “liberdade” total na produção cultural de um país capitalista. Na
década de 1930, o Federal Bureau of Investigation (FBI) já contava com um escritório
voltado para o suporte e consultoria da agência para o entretenimento. Em 1947, o
Departamento de Defesa (Department of Defense – DoD) também institucionalizava
seus primeiros contatos diretos com a indústria de entretenimento, expandindo
escritórios similares nas forças armadas e demais órgãos ligados à defesa no país
(JENKINS, 2009, p. 229). Entretanto, ao contrário de uma mera consultoria e
concessões de autorizações de uniformes, equipamentos e locais de filmagens para
os produtores de filmes e televisão, o DoD exige a análise prévia de roteiros e
argumentos, que então tornam-se suscetíveis a modificações ou mesmo censuras de
elementos que sejam considerados indesejáveis, além de alterações que visem
favorecer a imagem das forças armadas (ROBB, 2004, p. 26).

Reconhecermos tais induções ideológicas nas produções estadunidenses nos


leva a dois tipos de implicações: primeiro, em situarmos as produções em sua
recepção no mercado interno e, posteriormente, em entendermos quais são os
possíveis efeitos na recepção das produções nos mercados externos, em um contexto
no qual os Estados Unidos é responsável pelas produções de maior arrecadação

52
mundial. Nye Jr. (2005) nos auxilia a compreender tais possibilidades com seu
conceito de soft power, que consiste na habilidade de um Estado em atrair
indiretamente outros Estados e corpos políticos a partir de seus recursos culturais e
ideológicos, reconhecendo também os filmes como elementos constituintes desse
conceito (pp. 10 – 12). Kellner (2001) reforça essa noção ao apontar que, além da
leitura desses produtos culturais em seus contextos sociopolíticos, é necessário
compreender “de que modo os componentes internos de seus textos codificam
relações de poder e dominação” (p. 76), reconhecendo ainda que os filmes, como
outros espetáculos de mídia, podem demonstrar quem são os que detentores de
poder, autorizados a utilizar a violência, e quem são os que devem se sujeitar (p. 2)
Portanto, ao abordarmos filmes estadunidenses produzidos durante o contexto da
Guerra ao Terror, devemos considerar não somente os possíveis diálogos dessas
narrativas com o público de seu mercado interno, mas também as pretensões voltadas
aos públicos dos mercados externos que contam com ampla presença dessas
produções.

Um conjunto de documentos tornados públicos em meados da década de 2010


nos auxilia a compreender de forma mais sistemática algumas das operações do DoD
junto a produções de grande orçamento. Os autores Matthew Alford e Tom Secker
conseguiram, a partir de petição formulada com base no Freedom of Information Act,
tornar públicos diversos documentos relativos a comunicações, relatórios e dossiês
do DoD junto a produtores de cinema e televisão de diversas décadas. Além de terem
publicado um livro que sintetiza alguns dos resultados obtidos na análise dos
documentos (National Security Cinema, 2017), os autores disponibilizaram os
arquivos em um endereço eletrônico (www.spyculture.com) mantido por Secker. As
documentações nos possibilitam compreender tratamentos distintos dedicados pelo
DoD às requisições dos produtores dos filmes que pretendemos analisar; mais
especificamente, no caso de Hulk os documentos indicam a censura a alguns
elementos do roteiro, enquanto no caso de Transformers III – O Lado Oculto da Lua
temos um tratamento positivo em relação à produção e sua possibilidade
propagandística.

A primeira comunicação da produção de Hulk com o DoD ocorreu em 16 de


janeiro de 2002, no intuito de obter autorização para acessar imagens de arquivo da

53
U.S. Marine Corps para fins de elaboração de algumas cenas do filme. Um relatório
de seis páginas, datado de 3 de fevereiro do mesmo ano, foi enviado em resposta,
orientando alterações narrativas bastante significativas no roteiro. Dentre as
alterações, o DoD solicitou que o roteiro especificasse que o laboratório responsável
por causar a mutação no herói não tinha ligações com órgãos militares, além de
retratar Glenn Talbot, antagonista das narrativas de Hulk desde as histórias em
quadrinhos e então oficial da Força Aérea dos EUA, como um ex-militar e especificar
que ele não estava sob ordens de qualquer força armada. Outra mudança significa foi
a alteração do nome da operação que tinha por objetivo capturar o personagem Hulk:
originalmente chamada “Operation Ranch Hand”, após a solicitação o nome
“Operation Angry Man” foi utilizado no filme. A solicitação no relatório fundamenta a
mudança citando que Operation Ranch Hand foi uma “operação da era do Vietnã”,
mas não especifica que foi o programa responsável pelo despejo de milhões de litros
de produtos químicos, dentre os quais o agente laranja, ao longo da maior parte do
período no qual os EUA estiveram em conflito contra os vietnamitas. Por fim, diversas
alterações pontuais foram solicitadas no intuito de ampliar a importância dos militares
na solução dos problemas que a narrativa apresentava.

Já no caso de Transformers III, um compilado de quase 1400 páginas contendo


relatórios de 2010 a 2015 traz informações relativas às ações do Exército dos EUA
em relação à produção. No geral, os relatórios apresentam dezenas de pequenas
notas que registram detalhes das filmagens e da pós-produção do filme ao longo de
2010, e as informações que nos atentam são as considerações por parte do
responsável em gerenciar a comunicação com a produção do filme acerca da
importância da obra. Além de salientar a receptividade do diretor Michael Bay (notável
por suas produções exacerbadamente nacionalistas) em adotar as alterações exigidas
(tais alterações não são mencionadas no documento), o responsável em acompanhar
a produção do filme salienta que o filme será uma ótima oportunidade de demonstrar
os “valores e a bravura” dos soldados, além da avançada tecnologia do Exército dos
EUA para uma “audiência global”. Curiosamente, nas mesmas considerações acerca
do filme é destacado que ele se trata de um “blockbuster apolítico”. Por fim, em uma
nota presente no conjunto datado entre 2 e 8 de novembro de 2010, é registrado que
foram gravadas cenas com diversos veículos militares no Kennedy Space Center e,
destacando que o filme anterior da franquia alcançou a maior arrecadação em

54
bilheteria em 2009, é expressa a suposição de que o filme “auxiliará nos esforços de
recrutamento do Exército”.

Portanto, a análise das informações dos dois filmes na documentação aponta


dois métodos de uso ideológico de produções cinematográficas por parte do DoD. No
caso de Hulk, elementos foram censurados no intuito de evitar possíveis
representações negativas das forças armadas, em um contexto no qual a Guerra ao
Terror ainda estava em seus primeiros momentos e, portanto, ainda em um período
de validação das causas e objetivos de tal investida militar. Já em Transformers III, o
DoD age no intuito de utilizar o filme como elemento propagandístico de variados
alcances, seja para apresentar o poderio do Exército dos EUA para os espectadores
estrangeiros, seja para exaltar os valores da instituição e angariar novos candidatos à
carreira militar, em um contexto no qual a Guerra do Terror já se encontrava em
desgaste, com suas consequências políticas e sociais expostas.

Referências

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evidence of government control in Hollywood. Drum Roll Books: 2017.

BARROS, José D’Assunção. Cinema e história: entre expressões e representações.


In: NÓVOA, Jorge; BARROS, José D’Assunção. (orgs.). Cinema – História: teorias
e representações sociais no cinema. 2ª ed. Rio de Janeiro: Apicuri, 2012.

DICKENSON, Ben. Hollywood’s New Radicalism. London; New York. I.B.


Tauris, 2006.

DODDS, Klaus. Hollywood and the popular geopolitics of the War on Terror. Third
World Quartely, 29: 8, December 2008. pp. 1621 – 1637.

FERRO, M. Cinema e História. 2ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 2010.

FURHAMMAR, Leif; ISAKSSON, Folke. Cinema e Política. Paz e Terra, 1976.

55
JENKINS, Tricia. Get smart: a look at the current relatioship between Hollywood and
the CIA. Historical Journal of Film, Radio and Television. Vol. 29, No. 2, June
2009. pp. 229 – 243.

KELLNER, Douglas. A cultura da mídia. Bauru: EDUSC, 2001.

MORETTIN, Eduardo. O cinema como fonte histórica na obra de Marc Ferro.


História: Questões & Debates, Curitiba, n. 38, pp. 11 – 42, 2003. Editora UFPR.

NYE JR., Joseph. Soft Power: the means to sucess in world politics. New York:
Public Affairs, 2005.
ROBB, David L.. Operation Hollywood: How the Pentagon shapes and censors the
movies. New York: Prometheus Book, 2004.

VALATIN, Jean-Michel. Hollywood, the Pentagon and Washington: the movies


and national security from World War II to the presente day. London: Anthen Press,
2005.

56
O RIO SAMBA EM BRASÍLIA: A ENCENAÇÃO DA CAPITALIDADE PELAS
CHANCHADAS

Carlos Eduardo Pinto de Pinto (UERJ)20

RESUMO
O trabalho propõe uma análise da chanchada Samba em Brasília (Watson Macedo, 1960),
abordando o modo como o filme tematiza a disputa pela capitalidade entre Rio e Brasília.
Embora todo o enredo se desenvolva na antiga capital, a representação de Brasília ocorre
pela menção a imagens associadas à modernização e ao modernismo, valores agregados à
capital recém-inaugurada. Em contraste, o Rio é equiparado ao samba e à cultura popular de
modo geral. Essa dicotomia se manifesta na trajetória da protagonista, moradora de uma
favela e empregada doméstica, cortejada pelos patrões (pai e filho), que tentam seduzi-la com
elementos atrelados à modernidade (os mesmos relacionados a Brasília). No fim da trama,
ao rejeitar a sedução e preferir ficar na favela, a moça abraça os elementos culturais
associados ao Rio, capital de fato.
PALAVRAS-CHAVE
Rio de Janeiro; Brasília; capitalidade; chanchadas; Watson Macedo.

As reflexões apresentadas aqui são decorrentes da pesquisa (Quase) sem perder a


majestade: a produção de uma história pública sobre o Rio de Janeiro em filmusicais
e chanchadas entre o Estado Novo e a inauguração de Brasília, coordenada por mim
no Núcleo de Estudos sobre Biografia, História, Ensino e Subjetividades (NUBHES),
na UERJ. A proposta geral desta investigação é explorar as conexões políticas entre
a comédia musical carioca e o Estado, por meio da representação visual do Rio de
Janeiro e as subjetividades urbanas atreladas a ela. O filme escolhido para análise é
Samba em Brasília (Watson Macedo, 1960), localizado em um dos extremos do
recorte cronológico da pesquisa, em que o Rio deixou de ser capital, sendo
transformado em um novo ente da federação, o Estado da Guanabara (MOTTA,
2000).
Tal mudança de status envolveu uma reconfiguração da capitalidade carioca diante
da concorrência de Brasília. Segundo Marly Motta (2004, p. 9), a cidade-capital é “o
lugar da política e da cultura, (...) da sociabilidade intelectual e da produção simbólica,
(...) foco da civilização, núcleo da modernidade, teatro do poder e lugar de memória”.
Vale enfatizar, no entanto, que a capitalidade pode ser exercida à parte a ocupação
do posto de capital, como exemplifica o Rio de Janeiro após a construção de Brasília.
Já que a nova capital foi concebida e propagada como a concretização do auge da
modernidade brasileira, houve uma tentativa de reforçar o caráter modernista da
antiga capital, levada a cabo pelo primeiro gestor da Guanabara, Carlos Lacerda
(MOTTA, 2000). O melhor exemplo dessa empreitada é a inauguração, em 1965, do
20
Carlos Eduardo Pinto de Pinto é doutor em História pela UFF. Atua como Professor Adjunto do Departamento
de História do IFCH-UERJ e como Coordenador Adjunto do PPGH-UERJ. Pesquisa as relações entre audiovisual
e história, especificamente a representação do Rio de Janeiro pelo cinema brasileiro (de 1930 a 1970), os filmes
históricos cinemanovistas e a arquitetura no cinema. É escritor de romances, contos e poemas, com o nome
literário Eduardo Chacon. e-mail: dudachacon@gmail.com

57
Parque do Flamengo, concebido em sintonia com os valores da arquitetura e do
urbanismo modernistas. Contudo, no filme analisado o caminho seguido para reforçar
a capitalidade do Rio é outro: a ênfase de elementos da cultura carioca que não
poderiam ser encontradas em Brasília. O samba, alçado ao posto de “ritmo nacional”
pelo Estado Novo (CAPELATO, 2013), foi um dos mais mobilizados.
Tendo essas observações no horizonte, é possível perceber o tensionamento que
Samba em Brasília tematiza, já que o ritmo musical inserido no título representa
também a capitalidade carioca. Ainda que na aparência a modernidade da nova capital
seja louvada pelos diálogos e números musicais, há uma disputa entre dois modos de
conceber a nacionalidade, com preferência pelo Rio, conforme demonstrarei ao longo
do texto.
Samba em Brasília é um dos últimos trabalhos de Watson Macedo, que havia se
formado profissionalmente no estúdio Atlântida nos anos 1940, tendo contribuído para
a criação do gênero chanchada. Tributárias das comédias carnavalescas dos anos
1930 realizadas pela Cinédia – denominadas filmusicais –, as chanchadas tiveram sua
estrutura consolidada na década seguinte. Além dos números musicais e dos
comediantes, já presentes na Cinédia, os enredos ganharam um casal de mocinhos,
cujo enlace era prejudicado por vilões. Estes poderiam ser personagens
sentimentalmente interessadas num dos polos do casal de protagonistas ou pessoas
ambiciosas que, por algum motivo, precisavam sabotar o romance para alcançar seus
objetivos – casar-se com um/a ricaço/a, receber uma herança ou assumir o controle
de uma empresa.
Watson Macedo, enquanto ainda atuava na Atlântida nos anos 1940, acrescentou às
chanchadas as conexões com o cinema estadunidense, por meio da paródia de filmes
hollywoodianos de sucesso (VIEIRA, 2018, e-book). Além disso, adicionou aos
roteiros os jogos de inversões, em que pessoas pobres se passavam por ricas,
ignorantes por sábias, desconhecidas por celebridades e assim por diante. Essa
lógica estava sintonizada com a cultura carnavalesca, que já era a base das comédias
da Cinédia e permaneceu ativa nas chanchadas. Como nos festejos de Momo, os
papéis sociais poderiam ser invertidos, sem que tais inversões sofressem as sanções
que lhe eram dedicadas no restante do ano. Ao fim das tramas, os enganos eram
desfeitos, os vilões castigados (sem muito rigor) e o casal de mocinhos finalmente se
unia.
Samba em Brasília foi realizado fora da Atlântida, já na fase independente do diretor,
em que tinha maior liberdade de criação (RAMOS; MIRANDA, 2004). Ainda assim, a
sinopse disponibilizada pela Cinemateca Brasileira confirma a estrutura tradicional,
conforme se pode ler abaixo:
Tereza, porta-bandeira da Escola de Samba do Salgueiro, briga com
a rival Ivete. Após a briga, Valdo, compositor da escola, a convida para
uma feijoada. A mãe de Tereza ajuda sua irmã Clotilde numa casa
burguesa. Prepara-se uma grande festa para a recepção de Ricardo,
filho de Wladimir e Eugênia, que chegou da Europa. Tereza vai ajudar
a mãe no trabalho de cozinha. Durante a recepção. todos reclamam
da comida, preparada com muita pimenta por Tereza. Wladimir manda
chamá-la para a despedir, mas desiste e passa a cortejá-la. Eugênia
quer despedir Tereza, mas pai e filho a protegem. Como Tereza diz
que seu santo é forte, Eugênia acha que ela é macumbeira e pede um
trabalho para entrar na “lista das dez mais”. Ricardo começa a se

58
interessar por Tereza. Pai e filho marcam um encontro com ela para
um drinque, no mesmo horário e local, sendo manobrados por Tereza.
Ela passa a frequentar menos o morro, e Valdo começa a sentir
saudades. Tereza passeia de carro ou barco com Ricardo, apesar das
recriminações da mãe, preocupada com Virgínia e o desnível social.
Eugênia tenta subornar Tereza para que abandone o filho, mas ela
afirma que só não se casa com ele porque não sabe se o ama. Beatriz
propõe que apresentem Tereza à sociedade como uma grande dama.
Eugênia manda os convites, enquanto Tereza é preparada por
maquiadores e cabeleireiros. Beatriz e Virgínia armam para que a festa
dê errado, mas são derrotadas. Quando Valdo faz sucesso com um
samba e anuncia na televisão que a escola não vai mais sair por falta
de uma porta-estandarte, Tereza resolve voltar ao morro. Na avenida,
Tereza desfila com a escola, enquanto Virgínia e Ricardo
aparentemente ficarão juntos (FUNDAÇÃO..., 2021).

Apesar de bastante detalhada, esta descrição do enredo deixa escapar alguns dados
relevantes para a análise proposta aqui, justamente por trazerem alguns traços de
novidade à estrutura narrativa das chanchadas. O primeiro diz respeito ao fato de que
a atriz que interpreta Terezinha ser Eliana, a principal estrela das chanchadas.
Sobrinha de Watson Macedo, era uma “mocinha” branca e loira, seguindo os padrões
fenotípicos privilegiados por Hollywood (VIEIRA, 2018, e-book). A maioria de seus
papéis era de meninas bem-nascidas encasteladas em mansões ou garotas bem-
comportadas de classe média, como em Sinfonia carioca (Watson Macedo,1955) e
Depois eu conto (Watson Macedo e José Carlos Burle, 1956). Em menor número,
estavam as migrantes pobres, como em Amei um bicheiro (Jorge Ileli e Paulo
Wanderley, 1953) e Rio fantasia (Watson Macedo, 1956), sendo o primeiro um dos
poucos dramas que protagonizou.
A sua escalação para interpretar Terezinha, moradora de uma favela e porta-bandeira
do Salgueiro, estabelece uma tensão racial que não aparece nas outras personagens
pobres de sua carreira. Aqui, a pele branca de Eliana, que é também a de sua
personagem, gera incômodo entre alguns componentes da escola de samba,
sobretudo Ivete, sua concorrente pelo posto de porta-estandarte. Interpretada por
Carmen Montel, uma atriz negra, Ivete explicita seu inconformismo com a necessidade
de ter que competir com uma mulher branca. Durante uma briga ocasionada por esta
situação, uma vizinha interfere afirmando que ali, na favela, se vivia em uma
sociedade democrática, sem preconceitos. A reação violenta de Ivete a essa fala
permite inferir que ela discorda e, de fato, se sente preterida por conta da presença
de uma branca ocupando lugar de destaque numa escola de samba, locus de tradição
afro-brasileira.

Esse tema está diretamente conectado com o segundo ponto que a sinopse ignora –
a representação de Brasília, presente já no título, conforme comentei. O filme foi
produzido e lançado no ano da inauguração da Novacap – corruptela de “nova capital”,
que havia batizado a empresa responsável pela construção de Brasília e, por
extensão, passou a referenciar a própria cidade – e a utiliza como chamariz de público.
Ainda que Brasília objetivamente só apareça em números musicais e nas falas dos
personagens, o filme se refere a ela também ao tematizar a modernização e o
modernismo, tão em voga naquele contexto. Há menções à Bossa Nova nas falas e a

59
presença de pinturas e esculturas modernistas na mansão em que Terezinha trabalha,
além de aparelhos de cozinha modernos.
Em contraste, toda a ação do filme se passa na Belacap, “apelido” adotado para o Rio
em resposta à Novacap. No modo como se dá a representação da ex-capital ocorre o
reforço de traços associados à cultura afro-brasileira que, pela lógica da capitalidade,
haviam sido alçados ao patamar de “cultura nacional”, com destaque para o samba,
especificamente aquele produzido nas favelas pelas escolas de samba.
Importante salientar que Samba em Brasília é uma chanchada tardia, lançada quando
o gênero passava por uma crise – entre outros fatores, a consolidação do TV no país
havia diminuído as bilheterias dos cinemas, sobretudo de filmes brasileiros. Talvez
como estratégia para enfrentar a crise, Macedo entabula um diálogo com outras
vertentes do cinema brasileiro, introduzindo algumas modificações na estrutura básica
do gênero.
Para o tema abordado aqui, o elemento mais significativo é a resposta do roteiro ao
cinema independente carioca, sobretudo a Rio, 40 graus (Nelson Pereira dos Santos,
1955). Considerada obra inaugural do cinema moderno no Brasil, o filme narra o
percurso de cinco meninos negros, moradores de uma favela, ao longo de um dia no
Rio de Janeiro. O diálogo com o neorrealismo italiano aplicado à então capital do Brasil
marcou o modo como se dava a representação das favelas, sobretudo ao ter sido
proibido pelo chefe do Departamento Federal de Segurança Pública, Meneses Cortes:
“O que se disputava nessa batalha era, enfim, o direito à imagem da cidade. Mais
especificamente, o direito a decidir qual aspecto da capitalidade do Rio deveria figurar
nas telas” (PINTO, 2015, p. 130).
A reverberação desse fato pode ser notada em Samba em Brasília: diferente da
maioria das chanchadas, em que as favelas eram representadas de modo estilizado
em números musicais (FREIRE; FREIRE, 2018), o filme apresenta sequências
gravadas – parcialmente – em locações. Além disso, seu roteiro busca, ainda que de
modo limitado, debater questões sociais vinculadas às favelas, como o racismo. O
samba, portanto, acaba conotando mais do que a “carioquice”, sendo usado também
para se referir às favelas, de onde se origina.
Ao fim, ao unir o Rio a Brasília, a película encena a tensão entre capitalidades,
sobretudo durante a execução do samba que batizou o filme, de autoria de Bené
Nunes e Mariano Pinto. Num cenário repleto de referências à arquitetura e às
esculturas modernistas da Novacap, Eliana performa acompanhada por figurantes
vestidos como baianas e “malandros”, figuras típicas da cultura popular carioca (LEAL,
2018; NORONHA, 2003). Se aqui a relação entre as duas cidades e seus índices
parece amigável, o desfecho do filme – com Terezinha preferindo o morro e o samba
à riqueza e modernidade dos patrões – reforça a defesa da capitalidade carioca.
Afinal, os elementos rejeitados pela protagonista estavam agrupados no mesmo
conjunto de valores associados à nova capital – modernização e modernismo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAPELATO, Maria Helena. O Estado Novo: o que trouxe de novo? In: FERREIRA, Jorge;
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves Delgado (orgs.). O Brasil republicano. vol 2. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.

60
FREIRE, Rafael de Luna; FREIRE, Letícia de Luna. As favelas cariocas nas chanchadas: de
berço do samba a problema público. Comun. Mídia Consumo, São Paulo, n. 43, v. 15,
maio/ago. 2018. p. 276-301.

FUNDAÇÃO CINEMATECA BRASILEIRA, Filmografia Brasileira, Samba em Brasília.


Disponível em: http://bases.cinemateca.gov.br/cgi-
bin/wxis.exe/iah/?IsisScript=iah/iah.xis&base=FILMOGRAFIA&lang=p&nextAction=lnk&expr
Search=ID=017538&format=detailed.pft#1. Acesso em: 01/05/2021.

GAVA, José Estevam. Momento Bossa Nova. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2006.

LEAL, Léa Maria Schmitt. A performance da baiana: traje, corpo e persona (1890-1938). Anais
do 14º Colóquio de Moda, 2018. Disponível em: <encurtador.com.br/dgJ19>. Acesso em: 18
out. 2020.

MOTTA, Marly. Rio, cidade-capital. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.

______. Saudades da Guanabara: o campo político da cidade do Rio de Janeiro (1960-


75). Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000.

NORONHA, Luiz. Malandros: notícias de um submundo distante. Rio de Janeiro: Relume-


Dumará; Prefeitura, 2003.

PINTO, Carlos Eduardo Pinto de. Rio, 40 graus: a disputa pela imagem da capital do Brasil
nos anos dourados. Acervo, Rio de Janeiro, v. 28, n. 1, p. 120-131, 2015.
RAMOS, Fernão Pessoa; MIRANDA, Luiz Felipe A. de (orgs.). Enciclopédia do Cinema
Brasileiro. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2004.
VIEIRA, João Luiz. A chanchada e o cinema carioca (1930-1955). In: RAMOS, Fernão Pessoa;
SCHVARZMAN, Sheila (orgs.). Nova história do cinema brasileiro, vol 1. São Paulo:
Edições Sesc, 2018. Edição Kindle.

61
QUILOMBOLAS NA CIDADE: MEMÓRIA E ANTROPOLOGIA URBANA NA
DIÁSPORA

Denise Pirani (ASF-MG/Cedefes)

O discurso oficial da construção de Belo Horizonte sempre se dirigiu aos


esforços de trabalhadores estrangeiros, principalmente italianos, que vieram para a
nova capital mineira na esperança de construir, igualmente, uma nova vida.

No entanto, este discurso oficial sempre negligenciou outras comunidades


também importantes na construção da nova capital mineira: as comunidades
quilombolas! Já alguns anos, muitos pesquisadores estão se debruçando sobre este
aspecto, ou seja, a importância do papel das comunidades negras na construção de
Belo Horizonte.

Neste trabalho, que é fruto de uma consultoria coletiva para a Prefeitura de Belo
Horizonte e para IPHAN-MG, iremos ver a influência de uma comunidade quilombola
na construção da capital mineira e, mais além, a importância desta comunidade
quilombola como memória e patrimônio da cidade de Belo Horizonte. Trata-se do
Kilombo Souza.

Empregando diversas metodologias, mas, principalmente, utilizando a história


oral como a nossa principal ferramenta, vimos o papel fundamental desta comunidade
na história e na memória da capital mineira. Neste estudo, houve a preocupação de
discutir conjuntamente áreas distintas do campo do patrimônio, para assim tratar o
Kilombo Souza como um bem em sua diversidade cultural, a fim sobretudo de apontar
elementos fundadores da história da capital, oriunda de uma narrativa ausente de suas
formas de expressão, que tão silenciada é pouco dita nas histórias da capital mineira,
permitir o aparecimento dessas narrativas é fortalecer e proteger uma memória que
construiu e constrói a cidade até os dias atuais.

Outro aspecto importante a sublinhar é que este estudo contempla para além
de sua imaterialidade, uma discussão sobre aspectos materiais existentes no território
da Família Souza, por sua vez tem um leque de possibilidades para se ler a cidade a

62
partir de uma ótica dos ancestrais, principalmente aqueles que vieram para a
construção da cidade, exemplo disso, a Família Souza, que até os dias de hoje
permanece em seu território original. O Kilombo Souza ilustra a relevância de um
excepcional bem cultural para a capital mineira, e mais ainda, sob a perspectiva dos
negros na construção da cidade nos tempos remotos de sua história. Tendo em vista
que a família Souza, que se instalou em Santa Tereza no início do Século XX,
prestaram seus trabalhos para a capital recém formada, tanto para o trabalho da
agricultura quanto para o trabalho da construção da nova catedral da capital.

Por fim, gostaria de mencionar o papel da diáspora desta comunidade pois ela
tem uma forte ascendência no que concerne à memória coletiva da comunidade e da
capital mineira.

Referências

ESTUDO PARA DOSSIÊ | Kilombo Família Souza – PBH/IEPHA-MG, Belo


Horizonte, 2020.

63
TRANSMISSÕES DE UM MUNDO EM TRANSFORMAÇÃO

Dinah de Oliveira (EBA/UFRJ)21

Trazemos Walter Benjamin ao ambiente desse trabalho no sentido de


investigar o fundamento da tradução (exercício formal de transformação) como uma
forma que, por princípio, deve retornar ao original legitimada pelo índice de
traduzibilidade presente nele. Uma das hipóteses em curso na pesquisa se encontra
em uma base metodológica que opera com a chamada quebra - breakdown
(KASTRUP, 2008) entendida como paragem, ou seja, como cortes epistêmicos
(MOMBAÇA, 2019) que se abrem aos aspectos das diversidades radicais na
linguagem. Então experimentamos uma metodologia menos causal e mais
associativa, mais ensaística na qual noções seminais da teoria da linguagem
presentes em Benjamin emergem como um pensamento em devir. Por meio deste
paradigma inicial, conceituações como médium, a comunicação da essência espiritual
– leia-se, cognitiva – que é uma manifestação de diferença (o novo) comunicada na
língua, no modo, na expressão, na matéria, nos coloca em contato com autores e
autoras do campo de estudos da decolonialidade.

O cruzo epistemológico nos aproxima com as provocações da obra da


professora, filósofa e artista Denise Ferreira da Silva (2019) na recusa do modelo
racional da constituição do sujeito estético moderno kantiano, em favor de uma
apreensão crítica implicada na corporalidade, no espaço e no tempo. Neste sentido
toma-se importante para nós experimentar as condições de possibilidade na
contemporaneidade um atrito com noção de experiência em Benjamin (BENJAMIN,
1996) efetivada sob a vivência, ou seja, como sensibilidade coletiva. A qualidade da
experiência coletiva é investigada na comunidade humana, mas também na extra-
humana, por meio de circuitos de afetabilidade e inseparabilidade manifesta nos

21
Professora e pesquisadora do Ensino Superior na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, no curso de Bacharelado em Artes Visuais/Escultura. Doutora em Artes Visuais pela EBA-UFRJ, Mestra
em Artes Cênicas e Bacharel em Teoria do Teatro pela UNIRIO, é associada do Corpo Freudiano do Rio de Janeiro.
Contato: dinahcesare@gmail.com.

64
trabalhos de arte. A pesquisa alia ainda o caráter destrutivo (BENJAMIN, 1986) como
contraponto pulsional fragmentário à aglutinação racional da determinabilidades do
sentido, em uma dialética infinita de forças. Interessa a expressão de outras formas
narrativas para ir além dos discursos massivos que confinam as subjetividades e a
ameaça que eles representam. Será que conseguimos inventar outros modos de
presença, recriar a dimensionalidade a partir de experiências poéticas?

Tiganá Santana no texto “Tradução, interações e cosmologias africanas” se alia


a noção de interação do escritor e pensador congolês Zamenga B. para propor outras
possibilidades de traduzires, tendo como fundamento determinadas cosmologias
negro-africanas, mais especificamente a cosmologia bantu. O referido artigo faz uma
torsão epistêmica em torno do significante negro, localizando como ponta de lança da
África subsaariana. Recorrer às cosmologias negras é um modo ativo de operar na
implicação entre pensamento e corpo e na produção de temporalidades outras, em
que os tempos ancestrais são atualizados por meio da complexidade estrutural das
diferentes matrizes diaspóricas. Neste sentido, os povos ameríndios também se
apresentam como instância de conhecimento em favor rupturas na cadeia dos
circuitos pulsionais de destruição da hegemonia colonial. Situamos a linguagem como
lugar de disputas pulsionais, na medida em que se trata de uma instância estruturante
do social que opera as divisões dentro do sistema capitalista.

Ao pensarmos em cosmologias negras, concedemos que se


construíram outras matrizes, por meio dos fluxos diaspóricos, ou
seja, não temos nas américas, se quisermos, apenas fragmentos
e vestígios de narrativas existenciais egressas de partes do
continente africano. Urdiram-se novos sistemas, linguagens,
novas materialidades, imaterialidades e impermanências;
fizeram-se, conforme nos lembra Paul Gilroy, criações
inacabadas (SANTANA, 2019, p. 66).

As formas de intensidade das cosmologias negras e sua capacidade


encarnatória de multiplicidades trabalham no desfazimento da hegemonia
eurocentrada, em favor de uma experiência radical de viver ético diante de “Outrem,
sem pulsão ou razão que o aniquilem”. Tinganá resgata o termo Kalunga, da língua

65
bantu, cujo sentido se abre esgarçando a categoria temporal: “Kalunga é a fonte do
poder universal que faz todas as coisas acontecerem no passado, faz as coisas
acontecerem hoje, e, sobretudo, fará as coisas acontecerem amanhã” (SANTANA,
2019, p. 68). No entanto, a reflexão institucional que engendra o discurso criador do
evento da racialidade (FERREIRA SILVA, 2019) não concebe o real por meio desses
saberes como epistemes, alicerçada pela lógica homogeneizante do capital que
precisa mapear muito precisamente a construção de seus consumidores em um
constante processo de hierarquia de culturas, práticas discriminatórias e violências
assimétricas.

Sob a ótica epistêmica que nos aponta Tiganá Santana, não podemos
pensar então em um real da linguagem naquilo renovado incessantemente enquanto
falamos? A poética da artista Castiel Vitorino Brasileiro na série Corpo-flor22
materializa o caráter da linguagem como inscrição corporificada da constante
transformação implicada no mundo humano e extra-humano. Em sua diferença
radical, Corpo-flor denuncia como os discursos comunicacionais são produtores de
políticas de globalização camufladas de epistemes. Corpo-flor nos interpela de tal
modo com sua liminaridade e efemeridade! Exaustão é o que vai aparecer no fracasso
de toda linguagem como sistema totalizante de sentidos – circunscrição simbólica, no
entanto agressiva, justamente na medida em que quer dar conta com seu processo
de significar, em detrimento do caráter pulsional da linguagem que é o mostar seu
caráter sempre liminar. O modelo construtor da cultura imposto pela invasão do
europeu, engendrado pela aniquilação do Outro ameaçador, se mantém de pé pela
destruição de todo um regime discursivo e visual.

Desdobrando o problema Walter Mignolo entende o advento da


modernidade como uma transformação de duplo cenário. Se a ordem mundial até o
século XV se estrutura de forma policêntrica e não capitalista, a torção moderna vai
constituir um processo globalizado com o qual coexistem formas múltiplas e
diversificadas “de movimentos, projetos e manifestações contra a globalização
neoliberal” (MIGNOLO, 2017, p. 2). A pesquisa se aproxima de Mignolo na
contrapartida das esferas istitucionais de produção acadêmica de conhecimento
eurocentrado, operando com com deslizamentos em seus mecanismos internos. A

22
Site da artista: https://castielvitorinobrasileiro.com/sobre. Faço notar que o que escrevo aqui sobre o trabalho
da artista pertence mais ao que o trabalho provoca e menos a qualquer possibilidade de autoria minha.

66
noção de Pachamama, constituinte da cosmologia das pessoas do povo anauta
quíchuas e das pessoas do povo yatiris aimarás, se contrapõe a separação natureza
e cultura – fenômeno cristão ocidental disseminado pelos padres Jesuítas.
Pachamama é fenômeno em que humanos e extra-humanos se atravessam, ou seja,
não se concebe a distinção entre a natureza e a cultura.

Nossa pergunta sobre a transmissibilidade contemporânea em arte aponta


para regiões do sensível em que as formas hegemônicas dos enunciados e dos
corpos, das visualidades e materialidades resistem e propõem alternativas aos
processos do capital e suas economias de acumulação. Terminamos aqui com a
transcrição de um trecho da Cartilha da Mezinhagem - reunião de receitas de bom-
viver da senhora ribeirinha do Xingú, Raimunda Gomes da Silva, ativista desalojada
pelo empreendimento da usina de belo monte que nos dá notícias de Pachamama:

Os espíritos das águas, eles são como o vento. Você não vê,
mas você sente. Você vê o vento? Mas você sente. É o espírito
das águas. Você não vê, mas você sente. Às vezes a gente tá
sentado assim na porta de casa, e ele faz assim, bem na sua
perna, devagarzinho. Aqui na nuca, fazendo um carinho,
fazendo alguma coisa. Ou agradecendo por algo que você fez.
E você sente algo. Uma vez, mas você sente. Coisa boa ali, lhe
abençoando. Quem sabe até lhe cuidando. A pessoa tristinha
olhando para lá, aquele ventinho vem, você olha para baixo,
para um lado para outro, você vê um escorpião, você vê uma
cobra. Ele tá te avisando. Entendeu como é? O Xingu é isso.

67
Referências

BENJAMIN, Walter. O caráter destrutivo. In:_____. Documentos de cultura,


documentos de barbárie: escritos escolhidos. Seleção e apresentação Willi Bolle;
tradução Celeste H.M.Ribeiro de Sousa (et al.). São Paulo: Cultrix/Edusp, 1986.
p.187-188.

_____. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da


cultura. Trad.: Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1996.

FERREIRA da SILVA, Denise - A Dívida Impagável, (São Paulo: 2019).

KASTRUP, Virgínia. Políticas da cognição. Porto Alegre: Sulina, 2008.

MOMBAÇA, Jota. A plantação cognitiva. São Paulo: Edição 2020 @ Museu de Arte
de São Paulo Assis Chateaubriand e et al.

MIGNOLO. Walter D. Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade. Trad.:


Marco Oliveira. RBCS Vol. 32, número 94 junho/2017.

SANTANA, Tiganá. Tradução, interações e cosmologias africanas. Cad. Trad.,


Florianópolis, v. 39, nº esp., p. 65-77, set-dez, 2019

68
O PÁTHOS DA CÂMARA: UMA ANÁLISE DAS REAPROPRIAÇÕES DA ANTIGUIDADE
DOS GRUPOS ESCULTÓRICOS DO PALÁCIO TIRADENTES

Douglas de Souza Liborio (UFF)23

Com sua construção iniciada em 1922 para ser a nova sede da Câmara dos
Deputados do Brasil no Rio de Janeiro (então capital federal), o Palácio Tiradentes
teve sua inauguração realizada no dia 6 de maio de 1926, integrando as
comemorações do Centenário do Poder Legislativo Brasileiro. Projetado pelo
arquiteto Archimedes Memoria em parceria com o Franscique Couchet, o novo
Palácio da Câmara foi um dos ícones do Ecletismo tardio carioca, mantendo o furor
das formas arquitetônicas remanescentes da Exposição Internacional do Centenário
da Independência em 1922 e apresentando grandes inovações, como o uso do
concreto armado em sua estrutura.
Localizado no centro da cidade do Rio de Janeiro, no eixo conhecido como
Centro Antigo, o Palácio Tiradentes se localiza no sítio da antiga Casa de Câmara e
Cadeia, edifício que abrigou o Senado da Câmara e a Cadeia da Relação do Rio
Colonial entre os séculos XVII e XIX. O prédio também foi sede da Assembleia Geral
Legislativa durante o Império e a Câmara dos Deputados nos primeiros anos
republicanos. A “Cadeia Velha” - como veio a ser conhecido o espaço - notabilizou-
se por ter sido o local da prisão do alferes Joaquim José da Silva Xavier (1746-1792),
- o Tiradentes - devido ao seu envolvimento no movimento contestatório a Portugal,
conhecido como Conjuração Mineira. Tal fato ensejou que o Palácio fosse nomeado
em sua homenagem após a demolição do casarão colonial, em 1922. O Palácio
Tiradentes funcionou como o espaço do poder legislativo federal até 1960, sendo
palco de eventos de relevante importância política como as Assembleias Nacionais
Constituintes de 1934 e 1946 e as posses dos Presidentes da República. Com a
transferência da capital federal para Brasília, abrigou a Assembleia Legislativa da
Guanabara (Aleg) entre 1961 e 1963. Após a fusão do estado da Guanabara com o

23
Douglas de Souza Liborio é bacharel e licenciado em História pela UFRJ, Mestrando em História pelo Programa
de Pós Graduação em História da UFF. Atualmente desempenha as funções de Historiador e Pesquisador na
Subdiretoria-Geral de Cultura da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), sendo um dos
responsáveis pela Exposição Permanente “Palácio Tiradentes: ugar de memória do parlamento brasileiro”. E-
mail: douglasdesouzaliborio@gmail.com.

69
estado do Rio de Janeiro, em 1975, o Palácio, se tornou a sede da nova Assembleia
Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), criada em 197514, função que
mantém até a presente data (BELOCH; FAGUNDES, 1996).
Sendo um dos primeiros prédios de autoridade republicana construído no
início do século XX, o Palácio foi concebido como uma arquitetura narrativa, típica
da linguagem historicista do ecletismo, com grande destaque para os elementos
decorativos. O programa artístico do Palácio teve grande relevância no âmbito
artístico carioca de então, por constituir uma ampla gama de artistas, da pintura à
escultura, além de contar com a contribuição dos Estados da Federação para erguer
o novo espaço. A fachada do edifício foi coroada com grupos escultóricos colossais
e com abundância de relevos ornamentais, com a ideia de narrativa com pompa do
Poder Legislativo Brasileiro:

Figura SEQ Figura \* ARABIC 1. Palácio Tiradentes. Fonte: Acervo Alerj. Fotografia: Thiago Lontra,
2017

A Independencia e a Republica déram ao Brasil o Poder


Legislativo: para que a Autoridade e a Liberdade se apoiem na
Lei; para que á sombra da Lei se desenvolvam a Agricultura, o
Comemrcio, a Viação e a Industria; para que, em base solida,
sob a protecção do Direito, que é Força e Verdade, se
estabeleça a Ordem, e sob a égide da Paz, que ampara o
Trabalho e a Prosperidade, se assente o progresso. (BRASIL,
1926, p. 94).

70
Há na fachada, uma abundância de elementos típicos de uma iconografia do
poder republicanizada como barretes frígios e alegorias femininas da República. Os
motivos, porém, ressaltam uma excessiva referência ao mundo romano: a alcunha
“Lex”, duas colunas com gigantescas Vitórias aladas, de autoria de Paulo
Mazzucchelli e uma presença intensa dos fasces lictores romanos, nos ornatos,
relevos escultóricos e desenhos dos mosaicos.

No coroamento dos pilones, encontram-se os grupos escultóricos


“Independência” e “República”. Escolhidos por concurso público, são modelos do
escultor Hildegardo Leão Velloso, sendo executados por Modestino Kanto e
Magalhães Corrêa. Os grupos representam D. Pedro I e Deodoro da Fonseca em
pose equestre, trajados à romana e num ladeados por um cortejo de figuras
inspiradas e trajadas à maneira clássica, como José Bonifácio e Benjamin Constant.

Em suma, a questão que se ergue é a seguinte: qual é o significado da


Antiguidade clássica para a cultura artística carioca da década de 1920? Entre os
meios de ampla circulação e a fachada do Palácio da Câmara, qual seria o “espírito”
do Antigo? As ideias presentes no Livro do Centenário da Câmara dos Deputados
que justificam a estilização à antiga do Palácio são cruzadas com a circulação da
tradição clássica no cotidiano carioca da década de 1920. Busca-se enfatizar a
instrumentalização e crítica à noção apolínea de Antigo winckelmaniana a partir das
reações à disposição dos grupos escultóricos “Independência” e “República”, com
base na sua carnavalização e não inclusão nas estilizações definidas. A discussão
da crise da tradição do Ecletismo nas primeiras décadas republicanas será associada
às diversas discussões de um projeto de “moderno”. O Palácio se tornando um
símbolo de um deslocamento, de uma não categorização na história dos estilos
tradicionais.

A atuação dos escultores da fachada em sua manipulação da tradição clássica


vem sendo revista através dos modelos vigentes, que busquem reconstruir a
ideialização do páthos triunfal. Os suportes e eventos de circulação, como os
modelos classicizantes para o Carnaval carioca serão dignos de atenção, buscando-
se compreender o intercâmbio cultural entre as camadas sociais. Tal visão menos
“idealizada” de uma pureza das formas permite um diálogo com a própria dinâmica
da sociedade antiga e a desterritorialização das fronteiras, que teve seu significado
71
instrumentalizado para fins políticos a partir do surgimento dos Estados nacionais.
Aqui, se deseja pensar a Nachleben de uma Antiguidade “dionisíaca”, deslocada e
recalcada (utilizando os termos warburguianos) e a pórpria ideia de “greco-romano”,
como concebida por Paul Veyne para se conceber a Antiguidade.

Com a construção dessa linha de atores e circulação de imagens, se busca


compreender as formas de transmissão do modelo da marcha triunfal da Antiguidade,
através da associação de imagens cívicas no século XIX e início do XX, dando-se
ênfase aos modelos franceses e latinoamericanos (Monumento a Independência em
São Paulo, Monumento a Constituição de 1812 em Cádiz, etc.). O modelo do Atlas
warburguiano é o que inspira tal associação. Se busca discutir os usos e
apropriações da parafernália do triunfo antigo: indumentária, ornamentos,
organização espacial, etc. e como isso é ressignificado nas personalidades
brasileiras da fachada. A partir disso quer se estabelecer a linha do páthos da marcha
triunfal romana – configurado como o “carro alegórico da Câmara” -, com os préstitos
do Carnaval carioca.

Referências

BELOCH, Israel; FAGUNDES, Laura R. (coord.). Palácio Tiradentes: 70 anos de


História. 2. ed. Rio de Janeiro: Memória Brasil, 1996.
BRASIL. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. Livro do centenário da
Câmara dos Deputados (1826- 1926). Rio de Janeiro: Empreza Brasil Editora, 1926.
DIDI – HUBERMAN, G. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos
fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.
WARBURG, Aby. A presença do antigo: escritos inéditos. v. 1, Tradução de Cássio
Fernandes, São Paulo: Editora Unicamp, 2018.
_______________. A renovação da Antiguidade pagã: contribuições científico-
culturais para a história do Renascimento europeu. Tradução de Markus Hediger, Rio
de Janeiro: Contraponto, 2013.
_______________. História de fantasma para gente grande. São Paulo:
Companhia das Letras, 2015.

WINCKELMANN, J. J.. Reflexões sobre Arte Antiga. Porto Alegre: Movimento, 1975.

72
CORPO-MEMÓRIA: RESISTÊNCIA AO TEMPO E ESPAÇO ATRAVÉS DA
TRANSMISSIBILIDADE

Gabriel Vieira (UFRJ)24

A pesquisa corpo-memória: Resistência ao tempo e espaço através da


transmissibilidade está vinculada ao projeto de pesquisa PIBIC que iniciou em 2020 e
ainda está em andamento, nomeada Transmissibilidades contemporâneas: arte,
pedagogias e tecnologia, orientado pela Prof. Dra. Dinah de Oliveira. Em linhas gerais,
a principal questão da pesquisa é sobre os modos de transmissibilidades possíveis
nos campos da arte e da pedagogia, por meio de compartilhamentos presenciais e
ambientes virtuais. Procedendo disso, o objetivo geral aqui é analisar mediante um
repertório conceitual o caráter enunciativo da modernidade e suas afetações na
cultura, e através disso rastrear e inventar uma transmissão por meio de cooperação
artística com o projeto Margens – sobre rios, Buiúnas e vagalumes.

A metodologia aplicada tem um cunho teórico-prático e neste sentido investiga


a transmissibilidade ligada às transformações no campo da arte, juntamente com as
alterações na percepção do sujeito e do coletivo tomando conceitos mais ensaísticos
de Walter Benjamin, em interlocução e complemento com questões da colonialidade
e modernidade abordadas por Walter Mignolo, e como esse modus operandi aparece
no campo da cultura e ainda intercruzamentos com Ailton Krenak, Déborah Danowski
e Eduardo Viveiros de Castro.

Benjamin tomará as transformações que atravessaram o período anterior e


posterior à Primeira Guerra Mundial (1914-1918) no texto Experiência e Pobreza,
escrito em 1933. Neste artigo, pensa sobre a existência dos provérbios, das parábolas
e histórias naquele contexto histórico, e elucida a importância da transmissão de
experiências e conhecimentos que eram disseminados boca a boca entre familiares e
parentescos, e como esses tipos de experiências transmissivas passaram a se

24
Gabriel Vieira, graduando em Artes Visuais/Escultura pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do
Rio de Janeiro. contato: gabblazar@gmail.com.

73
empobrecer com o silenciamento que a guerra trouxe, e com as evoluções culturais e
tecnológicas da modernidade. Já em O Narrador (1996), discorre sobre a narrativa
oral nos contos de Nikolai Leskov e indica em passos históricos como o sistema
capitalista, em especial com o aparecimento da burguesia que implicará no
desaparecimento desse narrador oral dando lugar a outro tipo de narrador mais atual,
os romancistas.

Contudo, o semiólogo argentino Walter Mignolo irá assinalar que o complexo


projeto da modernidade e o termo colonialidade (elaborado durante a Guerra Fria junto
com o conceito de “descolonização”), partindo do sociólogo peruano Anibal Quijano
(1928-2018), como sendo ambos intrínsecos e indissociáveis em sua introdução do
livro Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade.

Mignolo conjurará por meio de relações históricas a origem desse projeto, na


Europa renascentista do século XVI, passando pelo Iluminismo e seus
desdobramentos com a globalização até o século XXI. Não obstante, com a exaltação
desse projeto particular muitas vezes não abordam seu lado mais obscuro, ou é
ocultado dessa narrativa, que é a própria colonialidade, marcada pelas invasões
europeias que formaram as Américas e o Caribe; o tráfico de africanos escravizados
e os conflitos pelas partições imperiais da África no final do século XIX e início do
século XX, que provocou a Primeira Guerra Mundial, e os 500 anos de violências
sobre os povos nativos da América do Sul. O teórico segue nesse fio condutor e com
a concepção da historiadora britânica Karen Armstrong, que estuda o Islã, pensando
nas conquistas ocidentais pela história desde o século XVI. Dentre elas, sublinha dois
pontos que se destacam: a economia (o capitalismo) e a epistemologia (ciência
enquanto conhecimento e arte enquanto significado). O primeiro vem com a ideia de
aumento da produção com base nos recursos das colônias, e o segundo, relacionado
à revolução científica no século XVI, que permitiu aos renascentistas maiores
domínios sobre a natureza e a propagação da ideia de salvação e novidade.
Entretanto, penso nesses pontos epistêmicos informados como dicotômicos por
Mignolo, dialogando com Armstrong, como convergentes, pois a ciência teve trocas
intensas no momento da Renascença com a arte. Assim, creio que a ciência e a arte
possam ser consideradas ambas como produtoras de conhecimento e significados.

Além disso, existe uma outra camada da colonização que o teórico apresenta,
que é a do tempo e do espaço:
74
Entre os dois cenários descritos acima surgiu a ideia da
“modernidade”. Apareceu primeiro como uma colonização dupla,
do tempo e do espaço. Estou também argumentando que a
colonização do espaço e do tempo são os dois pilares da
civilização ocidental. A colonização do tempo foi criada pela
invenção renascentista da Idade Média, e a colonização do
espaço foi criada pela colonização e conquista do Novo Mundo.
(DAGENAIS, 2004 Apud MIGNOLO, 2017, p. 4)

Dessa maneira, pela América não ser um lugar a ser descoberto, então esse
lugar explorado e apropriado violentamente, alicerçado na bandeira da missão cristã,
foi um cenário em que a modernidade veio junto com a colonialidade. Quijano irá
pensar no MCP (patrón colonial de poder – matriz colonial de poder) como quatro
domínios inter-relacionados em que seus interesses são as instâncias da economia,
da autoridade, do gênero e da sexualidade, e por fim do conhecimento e da
subjetividade. Contudo, podemos considerar um quinto domínio da matriz colonial,
separando-a da economia: a natureza. Há diferentes lutas políticas e elaborações
epistêmicas pela retomada ou desvinculação da MCP, contudo, vemos na
Constituição da Bolívia e do Equador um pensamento que não está associado a um
partido ou uma luta social em específico, mas sim é imanente à visão dos povos
nativos, líderes e intelectuais indígenas, a seguinte manifestação descolonial:

Para os aimarás e os quíchuas, fenômenos (assim como os


seres humanos) mais-que-humanos eram concebidos como
pachamama, e nessa concepção não havia, e não há ainda hoje,
uma distinção entre a “natureza” e a “cultura”. Os aimarás e os
quíchuas se viam dentro dela, não fora dela. Assim, a cultura era
natureza e a natureza era (e é) cultura. Assim, o momento inicial
da revolução colonial foi implantar o conceito ocidental de
natureza e descartar o conceito aimará e quíchua de
pachamama.5 Foi basicamente assim que o colonialismo foi
75
introduzido no domínio do conhecimento e da subjetividade.
(MIGNOLO, 2017, p. 7)

O pensamento relatado pelos cristãos em relação ao conceito de natureza,


entendido como separado do sujeito humano, existia em contraposição à cultura, e
em Novum Organum (1620) de Francis Bacon nota-se a proposição de que a natureza
estava ali para ser dominada pelo sujeito. À vista disso é que Mignolo verá os
estudiosos nesse papel de agir no domínio hegemônico da academia em que a ideia
de natureza permanece como algo fora dos humanos, e nessa mesma orientação
acredito haver relação com o que é proposto por Donna Haraway, Isabelle Stengers
e Bruno Latour quando pensam no papel dos artistas, frente ao Antropoceno, de
imaginar ou figurar novos futuros possíveis. Quanto ao futuro, o intelectual indígena
Ailton Krenak, pensa:

“(...) imaginar outro mundo possível, é no sentido de


reordenamento das relações e dos espaços, de novos
entendimentos sobre como podemos nos relacionar com aquilo
que se admite ser a natureza, (...)” (KRENAK, 2019, p. 32).

Compreendo que talvez não consigamos retomar o tempo e o espaço (já


colonizados) de forma literal, ou mesmo adiar o fim do mundo, mas podemos inventar
ficções ou mitologias em relação ao presente, pois segundo Danowski e Viveiros de
Castro a semiótica do mito não se importa se o conteúdo empírico ali é verdadeiro ou
falso e aparece dentre os humanos sempre que sua existência se levanta como
problema para a razão. Assim, continuam:

Pois estamos aqui diante de um problema essencialmente


metafísico, o fim do mundo, formulado nos termos rigorosos
dessas ciências supremamente empíricas que são a
climatologia, a geofísica, a oceanografia, a bioquímica, a
ecologia. Talvez, como Lévi-Strauss observou repetidas vezes,
a ciência, que começou a se separar do mito por volta de três

76
mil anos atrás, terminará mesmo por reencontrá-lo (...).
(DANOWSKI, Déborah; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo,
2014, p. 17)

Como resultado parcial desta pesquisa houve a elaboração de um trabalho de


experimentação artística em confluência com o projeto Margens – sobre rios, Buiúnas
e vagalumes associado à pesquisa Transmissibilidades Contemporâneas. O projeto
Margens visa em um dos seus objetivos a produção de uma cartilha que tem como
ponto guia as mezinhas de Raimunda Gomes da Silva, ativista ribeirinha do Xingú, em
que nos apresenta a prática da mezinhagem, uma série de receitas que foram
adquiridas por ela através de sua mãe e sua avó. Tais receitas, passadas a ela por
meio da oralidade, estão se materializando nessa cartilha através de uma transcrição.
Pensando com Benjamin, investigamos o que ainda é possível narrar frente a
iminência do pueril que a colonialidade impõe sobre esses conhecimentos, processo
legitimado muitas vezes pela academia.

Cheguei a uma proposição do que poderia ser transmitido: um objeto que


funcionasse como uma membrana de proteção para a cartilha, uma cápsula do tempo.
As cápsulas para a botânica funcionam como envoltório de sementes e de grãos. Já
uma cápsula do tempo é um tipo de contêiner que irá armazenar objetos seletos como
representantes do tempo agora, enterrados para serem descobertos no futuro. A
cápsula do tempo enquanto produção de objeto de memória. Um invólucro que tem
fim de guardar e proteger um pedaço do presente para o futuro. Um corpo-memória.
Finalmente, a coletividade revela-se como um campo transmissível de entre-saberes.

Referências

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política. Trad: Sergio
P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1996.

77
DANOWSKI, Déborah; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Há mundo por vir? Ensaio
sobre os medos e os fins / Déborah Danowski, Eduardo Viveiros de Castro. -
Desterro [Florianópolis] : Cultura e Barbárie : Instituto Socioambiental, 2014. 176p.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo / Ailton Krenak. – 1ª ed. – São
Paulo : Companhia das Letras, 2019. ISBN: 978-85-359-3241-6

MIGNOLO, Walter D. COLONIALIDADE: O lado mais escuro da modernidade. Rev.


bras. Ci. Soc., São Paulo, v.32, nº 94, 2017.

78
AS FONTES E A METODOLOGIA NO ESTUDO SOBRE OS MEGAEVENTOS NO
RIO DE JANEIRO E A SOCIOESPACIALIDADE DO CONFLITO

Ingrid Gomes Ferreira (UFRJ)25

O trabalho irá discutir como os megaeventos esportivos, Copa do Mundo e


Olimpíadas impactaram, sobretudo, a cidade do Rio de Janeiro, sem negligenciar a
escala nacional e as problemáticas experienciadas em outros territórios, ocasionando
um cenário de conflito social decorrente das intervenções no espaço urbano para a
realização desses Megaeventos. Os dados e informações que serão apresentados e,
posteriormente, analisados foram recolhidos, majoritariamente, de plataformas digitais
que estavam ligadas à produção formal de informação variando entre veículos de
comunicação que noticiaram a ocorrência dos conflitos. Como, por exemplo, jornais e
revistas ligados a mídia hegemônica, e documentos oficiais disponibilizados pelo
Estado em seus sítios eletrônicos de transparência26 contendo ações, gastos,
propostas e planejamentos para os megaeventos.
Porém, houve um levantamento de documentos que eram dotados de um
caráter de denúncia sobre os impactos negativos que a população e o espaço
sofreram ao longo das obras e remoções. Estes foram produzidos pela mídia
informal/alternativa, ressaltando o Comitê Popular da Copa e Olimpíadas e blogs
investigativos, além das cartas de denúncia, dossiês e documentários.
Após esse processo foi adotada a metodologia de criação de tabelas, com
diferentes atributos dentre os quais se destaca: localidade, data, tipo de conflito,
motivo(s), protagonista(s), antagonista(s), tipos de organização e manifestação.
Assim possibilitando uma análise cronológica dos conflitos, na primeira tabela,

25
Graduada em História (Universidade Federal Fluminense- UFF) e mestranda em História Social pelo Programa
de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHIS/UFRJ). E-mail:
igomes020@gmail.com.
26
As fontes utilizadas contendo a valor dos gastos dos empreendimentos da Copa do Mundo e Olimpíadas,
acrescidos dos dados sobre as desapropriações e realocações oficiais por conta de tais interferências foram
retirados do Portal da Transparência, disponível em: <http://www.portaltransparencia.gov.br/programas-de-
governo/20-copa-----?ano=2014>, Rede Nacional do Esporte, disponível em: <http://www.brasil2016.gov.br> e
Prefeitura do Rio de Janeiro, disponível em: <http://prefeitura.rio/web/transparenciacarioca>. Acesso em: 20 dez.
2018.

79
observando a sua espacialidade, os seus agentes e as estratégias/táticas por eles
empregadas. Nas outras quatro tabelas seguintes ocorreu uma divisão entre os gastos
e intervenções para eventos específicos, Copa e Olimpíadas, enquanto o restante do
material foi direcionado para as intervenções urbanas, as remoções e os despejos27.
Essa sistematização dos dados obtidos permitiu criar tipologias condizentes
com as categorias de investimentos, a espacialidade e de empreendimentos
construídos. É importante destacar que essa parte da análise foi correspondente a
documentos como matriz de responsabilidades (copa e olimpíadas), plano de políticas
públicas- legado (olimpíadas) e o relatório de situação dos jogos olímpicos (elaborado
pelo Tribunal de Contas da União).
Tomando como ponto de partida a temática trabalhada, buscou-se entender a
relação entre espaço e ações sociais, em especial o papel desempenhado pelos seus
agentes produtores, observando com atenção as práticas e estratégias adotadas
pelos protagonistas na dinâmica da disputa pelo espaço geográfico, nesse contexto
caracterizado pelo urbano, e também, por direitos frente aos seus antagonistas.
Articulou-se essa relação com a severa interferência na vida urbana de milhares de
brasileiros, a partir das intervenções no campo da mobilidade, moradia e renovação
urbana, que se colocaram no epicentro da estrutura para receber esses megaeventos
em detrimento do tão prometido “legado”.
Os conflitos decorrentes das intervenções sócio-espaciais por conta dos
megaeventos esportivos28 no país realizados em forma de protestos, manifestações,
remoções e os despejos compuseram esta parte inicial da pesquisa. O referido
conjunto de fatores foi observado como diretamente ligado ao período de surgimento
de um novo panorama na conjuntura política do país, contendo uma conflitividade29

27
A exposição da apuração do material será dividida em três segmentos: o primeiro é concernente aos projetos,
às intervenções urbanísticas, as remoções e aos despejos restritos a cidade do Rio de Janeiro baseado nas
Olimpíadas de 2016. Enquanto, que o segundo traz uma abordagem em escala nacional, levando em consideração
as doze cidades que receberam as partidas de futebol da Copa do Mundo de 2014, observando as tipologias dos
gastos, os motivos dos conflitos e modalidades das obras. Já o terceiro, por fim, irá dialogar com os aspectos gerais
e específicos verificados promovendo o entendimento dos pontos comuns e das diferenças tanto em escala local
quanto em escala nacional, enfatizando os executores dos papéis de protagonismo e antagonismo que levaram aos
conflitos no Brasil contemporâneo (2013-2016).
28
Os Megaeventos aqui analisados são os referentes à Copa das Confederações- 2013, a Copa do Mundo FIFA-
2014 e aos Jogos Olímpicos de Verão- 2016. Contudo, vale ressaltar a realização de outros eventos no Brasil de
grande porte e mobilização, localizados principalmente na cidade do Rio de Janeiro, como o Rock in Rio-2013 e
Jornada Mundial da Juventude Católica- 2013.
29
Cf. RAMOS, Tatiana Tramontani. A geografia dos conflictos sociais da América Latina e Caribe. In:
Informe final del concurso: Movimientos sociales y nuevos conflictos en América Latina y el Caribe. Programa
Regional de Becas CLACSO. 2003.

80
que até os dias atuais pode ser percebida na expansiva polarização da sociedade
brasileira.
Toda a reflexão foi produzida a partir do modelo teórico-metodológico advindo
da articulação que se deu entre os campos da Geografia Histórica e Geografia dos
ativismos sociais, assim as categorias de tempo e espaço, por serem elementos
indissociáveis, são colocadas como primordiais para a tentativa de elucidação da
dinâmica das ações humanas na produção e modificação do espaço. A opção pelo
diálogo com a Geografia dos ativismos sociais permitiu a ruptura com a análise
comum voltada para o setor econômico que acaba, por muitas vezes, privilegiando os
componentes das altas classes sociais e detentores do capital, para amplificar a voz
emanada de uma considerável parcela da população que é silenciada e marginalizada
em diversas esferas não só da sociedade, mas também na pesquisa acadêmica.
Portanto:
É da experimentação concreta das condições objetivas e
subjetivas de existência que homens e mulheres formulam
ideias e noções de direitos que acreditam ser legítimas de serem
instituídas e conquistadas. Dessa experiência concreta e
cotidiana são construídos projetos políticos e identidades que
dinamizam a ação social e impulsionam esses protagonistas
para o campo dos conflitos e lutas sociais, constituindo os
ativismos sociais. É desse processo crítico e conflituoso que
surge a possibilidade do surgimento do novo, da realização de
transformações conjunturais e estruturais nas relações de poder
e na organização sócio-espacial (RODRIGUES, 2015, p. 243).

Os resultados parciais obtidos surgiram da sistematização dos dados


analisados a partir das fontes citadas acima. Portanto, o empreendimento que mais
recebeu investimentos foi o Porto Maravilha, de acordo com o documento Plano de
Políticas Públicas Legado, cujo valor aproximado foi de 8.200 bilhões de reais. A
região que teve o maior valor de investimentos foi a Barra da Tijuca totalizando, de
acordo com a Matriz de Responsabilidades, 6.024,8 bilhões de reais, em categorias
como instalações esportivas do Parque Olímpico da Barra, Vila dos Atletas, outras
instalações não esportivas e energia elétrica. Ainda tendo como base este documento

81
observa-se que 42% dos investimentos se concentraram no campo da mobilidade,
sendo que este setor concentrou a captação dos recursos financeiros, justamente, por
conta da abertura de 153 quilômetros para o funcionamento dos novos serviços de
transporte, 29% em renovação urbana e 21% em instalações esportivas e não
esportivas.

A análise do Plano de Políticas Públicas- Legado em conjunto com a Matriz


de Responsabilidades foi de suma importância, pois permitiu entender a proposta que
o poder público utilizou em sua retórica para implantar a partir da realização dos
megaeventos diversos projetos urbanísticos na cidade do Rio de Janeiro. As
intervenções que tiveram um maior impacto sobre a urbe e a vida dos seus habitantes
estiveram presentes na temática da mobilidade e renovação urbana, que não se
restringiram apenas ao recebimento de investimentos, mas também promoveram o
maior número de remoções e conflitos sociais sob a justificativa do traçado dos
projetos.

Referências

RAMOS, Tatiana Tramontani. A geografia dos conflictos sociais da América


Latina e Caribe. In: Informe final del concurso: Movimientos sociales y nuevos
conflictos en América Latina y el Caribe. Programa Regional de Becas CLACSO.
2003.
RODRIGUES, Glauco Bruce. Geografia histórica e ativismos sociais. In:
GeoTextos, vol. 11, n. 1, julho 2015. pp. 241-268.

82
FESTIVAL INTERNACIONAL DA CANÇÃO: INTERNACIONALIZAÇÃO E MÚSICA
POPULAR BRASILEIRA

José Fernando Saroba Monteiro (UFRJ)30

RESUMO
A música popular brasileira, em sua imensa trajetória, teve muitas fases e níveis de
internacionalização. Desde os tempos da colonização, a música formada no Brasil a partir da
confluência de diferentes culturas encontrou aceitação em outros países. Cada vez mais
consolidada e com uma identidade fortalecida, ainda que híbrida e diversa, a música popular
brasileira se internacionalizou de diferentes modos e através de diferentes gêneros. Estes
pontos de convergência são encontrados na modinha, no maxixe, no samba, na bossa nova
e também na MPB que, notadamente, teve nos festivais da canção um lugar privilegiado e
plataforma de lançamento para países estrangeiros, em especial, por meio da fase
internacional do Festival Internacional da Canção, como pretendemos comprovar.

PALAVRAS-CHAVE
Música Popular Brasileira; MPB; Internacionalização; Festiva Internacional da Canção; fase
internacional do FIC.

Música Popular Brasileira e internacionalização

No período colonial, a confluência das culturas ameríndia, africana e europeia,


resultou no surgimento de uma musicalidade própria, com raízes na então colônia
portuguesa da América, mas que, devido ao pacto colonial que também incidia sobre
a cultura, seguiu para a metrópole e, de lá, para outros países europeus e outros
domínios portugueses no ultramar. Vieram para o Brasil as modas, as cantigas, as
coplas portuguesas e os batuques dos africanos que se fundiram com a musicalidade
ameríndia já aqui existente. Destas interações surgiu, por exemplo, a modinha
brasileira (fusão entre a moda portuguesa e o lundu dos negros) que chegou em
Portugal e foi aceita pela nobreza e sociedade portuguesa setecentista, além de

30
José Fernando Saroba Monteiro, Pós-Doutorando em História Social pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Doutor em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, com período sanduíche pelo Centro
de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Universidade de Lisboa, Mestre em História do Império
Português [e-learning] pela Universidade Nova de Lisboa, Licenciado em História pela Universidade de
Pernambuco, autor dos livros Modinha Brasileira: Trajetória e veleidades (sécs. XVIII-XX) (2019) e Mini História da
Música Popular Brasileira (2016), jfmonteiro2@hotmail.com.

83
assimilar a ópera italiana. Para o famoso Jornal de Modinhas, editado em Portugal no
século XVIII, contribuíram músicos italianos, ingleses e franceses. Há diversos
registros de viajantes (ingleses, alemães, russo, entre outros) que incluem a modinha
em seus escritos e também foram encontradas partituras de modinhas na até mesmo
na Biblioteca Nacional de Paris. Há referências ainda de que a modinha teria
influenciado na formação da música de Cabo Verde, à exemplo da morna. E o lundu
teria seguido o mesmo caminho, surgido entre os negros escravos no Brasil, mas
depois indo para Portugal onde, devidamente adaptado, foi praticado e apreciado pela
corte portuguesa

No final do século XIX o Brasil seria um grande receptor de músicas estrangeiras.


Chegaram neste período a polca, a schottisch, a quadrilha, a mazurca, a habanera, o
tango espanhol, entre outros. Logo, entretanto, devido aos usos e abusos dos músicos
e improvisadores brasileiros, originariam-se gêneros e ritmos autenticamemte
brasileiros como o choro, o tango brasileiro e o maxixe. O tango brasileiro,
evidentemente, iria aos poucos desaparecendo em virtude de sua pouca prática e do
maior desenvolvimento de seu vizinho mais famoso, o tango argentino. No caso do
choro, de vida mais longa, se tornou referência da música brasileira e consagrou
inúmeras canções mundo a fora. O maxixe, por sua vez, surge na Pequena África, no
bairro da Cidade Nova, no Rio de Janeiro, mas depois de ter sua dança estilizada por
Antônio Lopes de Amorim Diniz, o Duque, “triunfou em Paris”, passando a ser
interpretado em muitos outros lugares e até para grandes autoridades. Os dançarinos
Fred Astaire e Ginger Rogers interpretaram o ritmo brasileiro no filme Voando para o
Rio [Flying Down to Rio], de 1933, e neste contexto, podemos ainda destacar Apanhei-
te Cavaquinho, de Ernesto Nazareth, que foi interpretada pela organista Ethel Smith
em uma animação de Walt Disney, A Culpa é do Samba [Blame it on the Samba], de
1948

A partir do maxixe se desenvolveu o samba que é inaugurado com Pelo Telefone, de


Donga, gravada por Bahiano em 1917. Mas, se inicialmente possuia uma forma
amaxixada, aos poucos vai ganhando forma própria e muito ao gosto do povo que a
produziu, tornando-se sinônimo de ‘brasilidade’, reconhecido hoje em todo o mundo
como expoente da identidade musical e cultural brasileira, difusão esta que também
se deve a figura de Carmem Miranda que, mesmo sendo de origem portuguesa,
representou, com seu Bando da Lua, a imagem do Brasil no exterior, se consagrando
84
como uma estrela hollywoodiana. Aos poucos o samba-enredo e o carnaval também
começam a ganhar terreno no plano internacional, caracterizar a imagem do brasileiro
e do samba e atrair cada vez mais visitantes para o Brasil para conhecer o que
frequentemente se referencia como “o maior espetáculo da terra”.

Da fusão entre o samba e o jazz temos a criação da bossa nova, sem dúvidas um
outro grande expoente da internacionalização da Música Popular Brasileira. A tríade
Vinícius de Moraes, Antônio Carlos Jobim e João Gilberto, foi responsável pela
composição de obras conhecidas e reconhecidas em todas as partes do mundo.
Garota de Ipanema, de Vinícius e Tom, tornou-se a segunda canção mais executada
de todos os tempos, perdendo apenas para Yesterday, dos Beatles. Outras como
Felicidade, Chega de Saudade, Desafinado e Eu Sei que Vou te Amar, também são
facilmente identificadas mundo a fora. Contribuiu bastante para o princípio da
internacionacionalização da bossa nova, a apresentação de artistas brasileiros no
Carnegie Hall, em Nova York, em 1962, facilitando a troca de informações com artistas
estrangeiros e a mimese por parte destes. Vale destacar que a internacionalização
da bossa nova gerou uma contra-ofensiva dos militantes da chamada canção de
protesto, percebidas em canções como Marcha da Quarta-Feira de Cinzas e Influência
do Jazz, ambas de Carlos Lyra, dissidente da bossa nova.

Em meio a estes embates emerge uma musicalidade nova, que procurava maior
aproximação com a tradição popular brasileira, sem deixar de ser moderna, uma
canção ao mesmo tempo erudita e popular, crítica e comercial, que se caracterizou
como uma música autenticamente nacional, mas que rapidamente se
internacionalizou, encontrando nos festivais da canção seu lugar comum e uma
plataforma de lançamento para essa internacionalização.

Festivais da Canção e internacionalização

Desde o início da chamada “Era dos Festivais” já havia a pretensão de se levar a


música brasileira para além das fronteiras nacionais, como revela o jornal Folha de
São Paulo ao noticiar o I Festival Nacional de Música Popular Brasileira da TV
Excelsior, realizado em 1965, na qual se lê: “Pela primeira vez firmas comerciais
resolveram inverter parte de suas verbas de propaganda numa promoção que premia

85
o esforço de compositores populares, e até, se bem encaminhada, projetará o Brasil
no exterior.” (Folha de São Paulo [Acervo Online], 08 abr. 1965).

No ano seguinte, empataram na finalíssima do II Festival da Música Popular da TV


Record, de 1966, as canções A Banda, de Chico Buarque, e Disparada, de Geraldo
Vandré e Théo de Barros. A Banda conheceu uma rápida propagação internacional,
o que, deve se salientar, não ocorreu por meio do Festival da Record, o qual venceu,
e sim em decorrência do Festival Internacional da Canção (FIC), promovido primeiro
pela TV Rio e depois pela TV Globo e que era dividido em duas fases, uma nacional
e outra internacional. Mais especificamente, foi em virtude da fase internacional do
FIC, em que concorriam artistas de diversos países, para os quais A Banda foi
reprisada em uma apresentação de Chico Buarque, então presidente do júri
internacional, que ocorreu essa difusão.

Em uma matéria, sugestivamente intitulada O Mundo verá A Banda passar, publicada


no jornal Correio da Manhã, se afirmava que poucos eram os artistas estrangeiros,
concorrentes da fase internacional do FIC, que não estavam “com A Banda em suas
malas” e que, pelo visto, a canção de Chico iria “rodar o mundo” (Correio da Manhã,
30 out 1966). “O que realmente ocorreu, sendo A Banda regravada em diversos
países como Argentina, Estados Unidos, França, Portugal e até na Escandinávia.”
(MONTEIRO, 2014, p. 07). “Era o início de uma expansão internacional da “Moderna
Música Popular Brasileira”, depois reconhecida e conhecida, inclusive
mercadologicamente, como MPB.” (MONTEIRO, 2020, p. 51).

A pesquisadora francesa Anaïs Fléchet destaca que os festivais contribuiram com o


alcance global da música brasileira, por “abrigarem fases internacionais nos certames
[...] e por repercutirem e terem sido transmitidos para diversos países, via televisão,
imprensa escrita, etc.” (FLÉCHET, 2011, p. 161). Fléchet ainda afirma que “os festivais
tiveram um papel de destaque no processo de globalização, favoreceram as
transferências culturais entre diversas áreas culturais e definiram um lugar para a
formação de uma cultura jovem, em ruptura com a ordem estabelecida” (FLÉCHET,
2011, p. 161). E o próprio FIC também ambicionava atingir proporções globais. O
idealizador e organizador Augusto Marzagão, chegou a declarar que tinha como
“sonho e lema”, conseguir uma canção que fosse cantada “da Patagônia aos Urais”
(MARZAGÃO apud Veja, 08 out. 1969, p. 76).

86
Dentre os primeiros estrangeiros, que chegavam ao Rio de Janeiro para participar no
FIC, era unânime a ideia de que a bossa nova e o samba se caracterizavam como a
mais autêntica representação da música brasileira. Alguns, até um pouco saudosos,
lamentavam que o Brasil não produzisse mais João Gilberto’s (Correio da Manhã, 26
out. 1966, p. 09). Aos poucos, entretanto, percebe-se uma alteração nos discursos
dos visitantes que, cada vez mais anseavam por conhecer os artistas que surgiam e
representavam uma nova música popular brasileira, muito mais moderna que o samba
e muito mais enraizada na tradição popular que a bossa nova. Os estrangeiros
chegavam atempadamente para acompanhar a fase nacional do FIC e auscultar o
que se estava produzindo de mais recente na música brasileira. Em linhas gerais, o
FIC terminava “trazendo ao Rio uma quantidade de nomes”, que seguramente
promoveriam “a música popular brasileira no exterior.” (Veja, 16 out. 1968, p. 60).

A partir daí, na verdade, tornaram-se comuns as regravações das músicas dos


festivais por artistas estrangeiros e os convites para apresentações de brasileiros em
outros países. Para além de A Banda ter sido uma das canções mais gravadas no
mundo naquele tempo, Maysa, Gutemberg Guarabyra, Milton Nascimento e Geraldo
Vandré, são alguns dentre os muitos dos que tiveram suas canções concorrentes nos
festivais regravadas em outros países ou receberam convites para apresentações e
gravações no estrangeiro, propagandeando ainda mais a música e os músicos
brasileiros. Edu Lobo, Hermeto Paschoal e Egberto Gismonti, contribuíram com o jazz
internacional. Elis Regina, Jorge Ben, Os Mutantes, entre outros, receberam convites
de forma crescente para se apresentar no MIDEM (maior encontro empresarial de
música do mundo) e foram muitos os que excursionaram pela América e Europa, por
vezes incluindo África e Ásia. Tudo isso, portanto, confirma os festivais da canção, e
mais especificamente a fase internacional do FIC, como um centro difusor da música
popular brasileira para o exterior. Mais diretamente, se pretendeu evidenciar que os
festivais catapultaram a “moderna música popular brasileira”, depois conhecida como
MPB, caracterizando uma nova fase de internacionalização da música brasileira.

87
Referências

ARAÚJO, Mozart de. A modinha e o lundu no século XVIII: Uma pesquisa histórica e
bibliográfica. São Paulo: Ricordi, 1963.

“‘Arrastão’ venceu facil festival, mas outra musica de Vinicius não convenceu. Folha de São
Paulo [Acervo Online], 08 abr. 1965. Disponível em:
http://almanaque.folha.uol.com.br/ilustrada_08abr1965.htm Acesso em: 20 maio de 2015.

“Com Eles é Briga na Certa”. Veja, nº 06, 16 out. 1968, pp. 58-60.

“Dori não esperava vencer, mas agora vai comprar casa”. Correio da Manhã, 26 out. 1966,
1º Caderno, p. 09.

EFEGÊ, Jota. Maxixe: A dança excomungada. Rio de Janeiro: Funarte, 2009.

FLÉCHET, Anaïs. Por uma história transnacional dos festivais de música popular: Música,
contracultura e transferências culturais nas décadas de 1960 e 1970. Patrimônio e Memória,
UNESP-FCLAs-CEDAP, vol. 7, nº 1, junho de 2011.

GALVÃO, Walnice Nogueira. Ao Som do Samba: Uma Leitura do Carnaval Carioca. São
Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2009.

MELLO, José Eduardo (Zuza) Homem de. A Era dos Festivais: Uma parábola. São Paulo:
Editora 34, 2003.

MONTEIRO, José Fernando S.. História Global e Festivais da Canção: Brasil e Portugal. In:
anais [eletrônico] do 28º Simpósio Nacional de História – ANPUH-SC. Florianópolis:
ANPUH, 2014. Disponível em: http://www.snh2015.anpuh.org/site/anaiscomplementares
Acesso em: 20 nov. 2015.

MONTEIRO, José Fernando S.. A Modinha Brasileira: Trajetória e Veleidades (sécs.


XVIIIXX). Curitiba: Editora Appris, 2019.

MONTEIRO, José Fernando S.. Festivais RTP e Festivais da MPB: Entre a tradição e a
modernidade (1964-1975). 2020. 467 p. Tese (Doutorado em História - Programa de Pós-
Graduação em História (PPHR), Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ),
Seropédica, RJ, 2020. Disponível em:
https://repositorio.ufrn.br/bitstream/123456789/12320/1/PercepcaoAmbientalMuseus_Costa
_2014.pdf. Acesso em: 29 março 2021.

“O Mundo verá A Banda passar”. Correio da Manhã, 30 out 1966, Feminino, p. 01.

“Os Sons de Sempre”. Veja, nº 57, 08 out. 1969.

“Quero ver isso de Maxixe! Das origens na Cidade Nova à internacionalização do maxixe”.
por José Fernando Monteiro. Musica Brasilis [portal], s/d. Disponível em:
http://musicabrasilis.org.br/temas/quero-verisso-de-maxixe-das-origens-na-cidade-nova-
internacionalizacao-do-maxixe Acesso em: 06 mai. 2018.

SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: Transformações do samba no Rio de Janeiro, 1917-


1933. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/UFRJ, 2001.

VIANNA, Hermano. O Mistério do Samba. 6ª edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.:
Editora UFRJ, 2007.

88
COVID-19, DISCURSO E IDEOLOGIA: REFLEXÕES ACERCA DA PANDEMIA E
AS DISPUTAS POLÍTICO-IDEOLÓGICAS NO AMBIENTE DAS REDES SOCIAIS

Luana Sarto Gomes (UFMG)31

Victor Henrique de Souza Arcanjo (UFMG)32

APRESENTAÇÃO

Esse trabalho objetiva compreender como a falta de tecnologias e de


conhecimentos necessários para criar estratégias de combate a crises sanitárias, no
sentido de tratar de forma mais assertiva as moléstias que atingem a humanidade,
coloca as doenças e o conhecimento sobre elas dentro do campo de disputas
ideológicas. Dessa forma, relacionando ciências humanas e coleta de dados, o nosso
principal objetivo consiste em compreender a mobilização dos discursos ideológicos
em torno da pandemia de Covid-19 nas redes sociais. Foram considerados e
analisados perfis de diferentes médicos, onde buscou-se entender a forma como o
rigor científico é mais ou menos utilizado dentro da defesa de um ponto de vista,
sendo este estruturado ideologicamente através dos discursos presentes nas mídias
sociais. Assim, são trazidas reflexões sobre como a pandemia de COVID-19 foi
mobilizada além das implicações na saúde pública, em meio a politização e
ideologização da ciência principalmente através da conformação destes discursos no
ambiente digital, tendo em vista seu grande alcance e essencial fundamento na
formação de opiniões, assim como também suas peculiaridades.

A metodologia utilizada nesta pesquisa consiste em pesquisa bibliográfica em


produções sobre ideologias, formação dos discursos, as mídias e o ambiente virtual
e a pandemia de Covid no Brasil. Além disso, os resultados da pesquisa foram
baseados na coleta e análise de dados quantitativos dos perfis de oito médicos (sendo
estes os perfis do Dr. Álvaro Galvão, Dr. Alain Dutra, Dr. Drauzio Varella, Dr. Felipe

31
Aluna da graduação em História na Universidade Federal de Minas Gerais.
32
Aluno da graduação em História na Universidade Federal de Minas Gerais.

89
Ades, Dr. Fernando Gomes, Dr. Julio Pereira, Dr. Lair Ribeiro e Dra. Lucy Kerr) que
produzem conteúdo nas redes Instagram e Youtube, principalmente os que se
referem ao engajamento e repercussão em suas publicações. Neste sentido,
buscamos compreender através destes dados e da bibliografia as implicações dos
perfis de tais médicos com relação à pandemia de COVID-19 no Brasil, tendo em vista
sua posição de autoridade em saúde assimilada pela população, tornando-se líderes
de opinião no referente contexto de crise sanitária global.

O conhecimento científico que ganha corpo racionalista a partir do século XVII,


e maior intensidade no XVIII, assume caráter de rigor (LUZ, 2019, p. 90). A
observação sistêmica e o controle da produção de conhecimento das ciências
naturais adquiriu uma perspectiva de isenção tendo em vista a possibilidade de
verdade baseada no dado (LUZ, 2019, p. 90). Na valorização do empirismo e da
laicidade, afastou-se a ideia das disputas ideológicas que estão nos processos de
construção dos saberes. Alguns trabalhos do campo da historiografia, como o de
Anny Jackeline Torres Silveira em seu estudo sobre a Influenza de 1918, tem alertado
para as disputas no campo do conhecimento científico. Nesse estudo é apontado
como a falta de aparatos técnicos na descoberta do agente causador da moléstia,
colocou em xeque a teoria bacteriológica a retomada da teoria miasmática. Ela alerta
para a complexidade da construção do conhecimento científico que nem sempre se
relaciona com evidências laboratoriais, levando em conta outras variáveis como o
peso da autoridade. A conciliação de outros fatores que não somente o rigor da
ciência e de defesa de ideologias também se faz presente no contexto da pandemia
de Covid-19 (SILVEIRA, 2005, p. 91-105).

A partir de Dijik e da compreensão de ideologia como pensamentos e crenças


fundamentais de um grupo e seus membros caracterizado por representações
sociais, pode-se afirmar que o uso da linguagem e do discurso são importantes
elementos condicionados pela ideologia, sendo esta constituída como importante
fundamento das práticas sociais (DIJIK, 2003, p. 14-17). Neste sentido, têm-se a
compreensão das mídias como instrumentos de construção do discurso e do
acontecimento (CHARAUDEAU, 2013, p. 189-190). Nelas são conformadas também
as controvérsias, tendo na ampliação das redes e no surgimento do ambiente digital
a complexificação desta dinâmica, com a facilitação do ganho de visibilidade e maior

90
conformação dos chamados líderes de opinião. Assim, a formação discursiva a partir
de tais controvérsias (MANNHEIM apud MAZUCATO, 2020, p. 109) bem como a
multiplicidade de leituras que se tem sobre a realidade pandêmica e que, conforme
Mannheim e Berger apontam, do conflito e disputas entre estes diferentes meios, seja
por mudança ou permanência daquilo que predomina no momento, é criada uma
“crise de sentido” em meio a politização da pandemia, em narrativas que são
construídas não mais no âmbito científico, e sim político da situação (MAZUCATO;
ANTÔNIO, 2020, p. 109-122).

Quando da instauração da crise sanitária mundial, surgiu a necessidade da


elaboração de medidas para controle da pandemia. O anseio por respostas às
cobranças da população mundial e do sistema capitalista de produção elencou a
corrida científica. Por um lado a busca por vacinas, por outro lado tratamentos com
pouco ou nenhum respaldo no rigor da ciência. Ao passo que foram surgindo
mundialmente a discussão de que a hidroxicloroquina e a cloroquina pudessem ser
úteis no tratamento contra o coronavírus, tal perspectiva encontrou respaldo por
agentes importantes do Governo brasileiro. No dia 21 de março, o presidente Jair
Bolsonaro, abertamente a favor do uso da droga e incentivador enfático de sua
ministração, declara que o laboratório do Exército brasileiro estaria produzindo o
medicamento em larga escala.

Partindo desta consideração, é importante destacar que os desafios políticos


e de comunicação que se apresentam em situações de epidemias são anteriores ao
COVID-19. Em artigo organizado por Flávia Thedim Bueno sobre o debate em relação
a epidemia de Zika e Aedes aegypti, Mónica García destaca as incertezas e
divergências existentes no campo científico frente a uma nova doença e que, ao
contrário do que se infere inicialmente, as decisões políticas em saúde são tomadas
antes de se dispor efetivamente de evidências científicas e consenso entre os pares
pois a demanda social exige que algo seja feito. A necessidade de respostas rápidas
eficientes requer uma comunicação responsável, no qual a articulação entre ciência
e organismos de decisão política deve ser estabelecida com seriedade e clareza para
que se estabeleça agendas prioritárias e se transmita informações coerentes e
efetivas à população. García aponta que sem a legitimação do público, a ciência não
encontra sua utilidade prática, fato este que essencializa a comunicação como

91
instrumento fundamental para a aplicabilidade e desenvolvimento de pesquisas
(COSTA; GARCÍA, 2017, p. 1167).

No entanto, esta comunicação pode ser dificultada por conflitos que possam
vir a se estabelecer na articulação ciência-governo. Neste sentido, o teor ideológico e
político de uma epidemia influem na comunicação dos emissores autorizados sobre
medidas de prevenção, combate e controle da doença, seja pela desvalorização e
deslegitimação pública da ciência, pela disseminação de informações falsas, pela
tomada de decisões desarticuladas, entre outras situações que tendem a agravar a
situação epidêmica do local e que caminham conforme a disputa de discursos em
relação aos acontecimentos e a polarização virtual da pandemia.

A partir da compreensão dos dados coletados e tratados pelos pesquisadores


do Departamento de Ciência da Computação da Universidade Federal de Minas
Gerais dentro do Projeto Covid Data Analytics, foi percebida a disputa entre discursos
controversos nos perfis das mídias sociais dos médicos propostos para análise. De
um lado a defesa (até prescrição) do chamado tratamento precoce por médicos como
Álvaro Galvão e Alain Dutra, do outro a afirmação da não efetividade de tal tratamento,
como no perfil de Dráuzio Varella. Esta contradição também engloba diferentes
posicionamentos de tais médicos no que diz respeito ao isolamento social e às
medidas nacionais e estaduais de combate à pandemia, divergindo em tais aspectos
e exercendo influência sobre aqueles que acompanham os conteúdos, podendo esta
ser visualizada através dos comentários coletados nas diversas publicações destes
médicos em suas redes.

Por um lado, alguns profissionais utilizam de sua posição enquanto líder de


opinião para construir discursos em favor de tratamentos precoces e de
medicamentos como a Hidroxicloroquina. Há também atuação de médicos em suas
redes sociais que utilizam de sua profissionalização como forma de autenticação
daquilo que se afirma e guiam esta disputa além do campo político da ciência, tendo
efeitos conflituosos e desordenados no corpo social. Logo, a disputa assume
contornos políticos quando da análise dos comentários nos quais torna-se o
“antipatriota”, “o comunista” ou os “bandidos contra a cloroquina”, o que está no lado
oposto da tensão. Por outro lado, os perfis com nenhuma adesão aos tratamentos
precoces e uso de medicamentos respaldam-se mais de órgãos científicos que

92
legitimam suas comunicações, como a Organização Mundial de Saúde e
universidades, como no caso do Dr. Dráuzio Varella.

Ao final da pesquisa, concluímos que a incompreensão popular sobre como se


dão as formações dos conhecimentos e conformidades científicas, o afastamento
destes profissionais para com o público amplo, e o uso deliberadamente manipulado
das controvérsias naturalmente surgidas neste campo, seguindo um rumo de
compreensão ideológica e servindo a fins políticos fez com que as redes sociais se
convertessem em ferramenta para a criação de um campo aberto de rivalidades e
contestações, justamente em um momento em que o essencial seria a articulação
conjunta de todo o corpo social a partir dos meios disponíveis para mitigar o quanto
fosse possível os efeitos arrasadores desta moléstia.

Neste sentido, os perfis demonstram que mesmo a controvérsia fazendo parte


do próprio fazer científico, a mobilização discursiva dessas contradições dentro das
disputas políticas em que o país já presenciava anteriormente contribuiu para uma
desarticulação das políticas de prevenção, contenção e combate ao vírus, bem como
para desagregação de informações e ideias dentro da sociedade civil engajada neste
processo.

Referências

COVID Data Analytics. Departamento de Ciência da Computação da Universidade


Federal de Minas Gerais (DCC/UFMG). Disponível em: http://covid.dcc.ufmg.br/. Belo
Horizonte, 2020.

DIJIK, Teun A. Van. Ideología y discurso: Una introducción multidisciplinaria. Editorial


Ariel S. A, España. 1º Edição, 2003.
COSTA, Flávia Thedim; GARCÍA, Mónica. Zika e Aedes aegypti: antigos e novos
desafios. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 24, n. 4, 2017, p. 1167.
SILVEIRA, Anny Jackeline Torres. A medicina e a influenza espanhola de 1918.
Tempo, v. 10, n. 19, p. 91-105, 2005.

93
MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos discursos. Tradução Sírio Possenti. - São
Paulo: Parábola Editorial, 2008.
MAZUCATO, Thiago Pereira da Silva; DE ANTÔNIO, Gabriel Henrique Burnatelli.
Ideologias, utopias e cultura política-elementos para a compreensão da disputa
ideológica no Brasil em tempos de Coronavírus. Simbiótica. Revista Eletrônica, v. 7,
n. 1, p. 107-126, 2020.
LUZ, Madel T. Natural, racional, social: razão médica e racionalidade moderna
[recurso eletrônico]. Rio de Janeiro: Fiocruz; Edições Livres, 2019. 184 p. (Coleção
Memória Viva).
CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. Tradução Angela M. S. Corrêa. 2ª ed.,
2ª reimpressão. - São Paulo: Contexto, 2013.

94
O ESPAÇO PÚBLICO COMO REPRESENTAÇÃO PARA OS SKATISTAS:
COLETIVO XV-RJ E SALVE O VALE-SP EM PERSPECTIVA COMPARADA.

Luciano Hermes da Silva (PPGHC-UFRJ)

De um ponto de vista amplo, a pesquisa, da qual este texto deriva, pretende


problematizar a prática do skate em espaços públicos, tema pouco explorado em
Ciências Sociais.

Mais detidamente, propõe-se aqui uma pesquisa sobre dois casos em que a
prática do skate em espaços públicos sofreu interdição. Serão considerados os casos
da Praça XV de Novembro33, no Rio de Janeiro e o Vale do Anhangabaú, em São
Paulo. Em ambos os casos se pode inferir que as ações dos gestores urbanos, bem
como dos skatistas, seguiu alguns padrões, os quais se demostrará mais adiante.

Ambos os espaços derivam de projetos de modernização das estruturas viárias


nas áreas centrais dessas capitais.

O Vale do Anhangabaú, localiza-se entre o viaduto do Chá e o viaduto Santa


Efigênia. De acordo com Brandão (2020, p.21), no início da década de 1980, a
Prefeitura de São Paulo realizou um concurso público para eleger o projeto
urbanístico que transformaria o Vale do Anhangabaú num espaço livre de construções
e de fluxo de veículos. O projeto vencedor propunha-se a “revivê-lo como uma área
de permanência, com ares de um grande boulevard”.

A Praça XV adquiriu suas feições e funções contemporâneas como resultado


de transformações que se confundem com significativos eventos da história brasileira.
No final dos anos 1990, a construção de uma via subterrânea para o tráfego de
veículos deixou livre para pedestres toda sua extensão, adequando suas formas a

33
Doravante Praça XV.

95
seu uso predominante. Isto é, espaço de intensa circulação de pessoas que
embarcam e desembarcam dos diferentes meios de transporte que a servem34.

Em virtude das novas qualidades materiais atribuídas ao Vale do Anhangabaú


e à Praça XV, esses espaços converteram-se em locais privilegiados para a prática
do skate de rua, atraindo skatistas de todas as regiões das cidades, de outros estados
e mesmo estrangeiros. O Vale do Anhangabaú foi primeiramente utilizado para a
prática do skate ainda durante as obras35. De acordo com Brandão (idem.), já em
1993 era um local bastante utilizado pelos skatistas, tendo diversos registros na mídia
especializada impressa e audiovisual. Na Praça XV não foi diferente. Mesmo antes
do fim das obras, alguns skatistas conseguiram andar no chão liso e tão logo aberta
aos pedestres, os skatistas se fizeram presentes, ainda no ano de 199736.

Os dois espaços considerados diferem em muito entre si. Se na Praça XV a


amplitude do espaço livre e de chão liso é de mais de 30 mil m², no Vale do
Anhangabaú, os skatistas se concentravam nas arquibancadas e eventualmente,
pelos estreitos caminhos de chão liso que cruzavam a praça. Em que pese o fato de
que a prática do skate era em grande maior parte, confinada às arquibancadas, o
skate só foi proibido no Vale durante um breve período, no início do ano 200037.

A prática do skate na Praça XV de Novembro foi proibida pelo Decreto


Municipal n° 17746 de 199938. Contudo, a proibição não resultou no abandono da
Praça XV pelos skatistas. O que se seguiu foi o uso da praça pelos mesmos em
horários de baixa visibilidade. Com o aumento do número de praticantes e,
principalmente, pela veiculação de imagens captadas na Praça XV em diferentes
canais de comunicação da mídia especializada em skate, a Praça XV se tornou cada

34
Trata-se de intervenção no âmbito do projeto Rio Cidade (1993-2000).

35
Conforme depoimento de David Toledo, o primeiro skatista a utilizar-se das arquibancadas no Vale do
Anhangabaú (PRIETO, 2020, P.26).
36
Segundo relatos de alguns skatistas locais.

37
“...Na virada do século, o Bank Of Boston assumiu temporariamente a manutenção e conservação dos degraus.
Durante alguns meses, enormes seguranças, trajando ternos pretos, ficavam postados em diversos pontos,
mesmo debaixo de sol intenso, impedindo qualquer tentativa de sessão no local. Foi a única época que o skate
foi proibido no Anhangabaú...” (CEMPORCENTOSKATE, 26 de setembro de 2017)
38
Art. 4° O exercício de atividades recreativas e esportivas tais como ciclismo, jogos de bola, "skate", dentre
outras, nas praças, parques e jardins da Cidade do Rio de Janeiro, está limitado aos espaços especialmente
destinados e sinalizados pelo Poder Público a tais fins, quando houver (RIO DE JANEIRO, 2012 [1999])

96
vez mais um pico cobiçado e teve sua frequentação paulatinamente intensificada.
Assim, a repressão por parte da Guarda Municipal se tornou igualmente mais intensa,
culminando em episódios de violência e de apreensão dos skates.

Ao longo do período de proibição, alguns skatistas frequentadores da Praça


XV iniciaram o processo de organização de um coletivo com o objetivo de conquistar
junto à Prefeitura o direito ao uso da praça. O Coletivo XV tem em seu histórico três
manifestações realizadas na forma de ato público, nas quais se percorria de skate o
centro da cidade do Rio de Janeiro, até a Praça XV, fazendo paradas temporárias
para a realização de sessions39 de skate em diversos equipamentos urbanos situados
ao longo do caminho. Essas manifestações, ocorridas entre os anos de 2008 e 2010
se realizaram na segunda quinzena do mês de junho, em concordância com a data
de 21 de junho, quando é celebrado em todo o mundo o Go Skateboarding Day40 .

O Coletivo XV representa uma forma de organização de praticantes do skate


que não reivindica a construção de novas pistas de skate, tampouco a manutenção
das pistas públicas. Pelo contrário, o que o I Love XV reivindica é o direito ao uso dos
espaços públicos da cidade do Rio de Janeiro.

Para tanto, o coletivo XV elaborou um projeto de adequação do mobiliário


urbano da Praça XV para a prática do skate. A adequação consistiria na aplicação de
cantoneiras de metal nas bordas dos degraus, a fim de evitar o desgaste produzido
pelo impacto e atrito de partes do skate contra o material que pavimenta a Praça.

A prática do skate permaneceu proibida na Praça XV até o ano de 2011,


quando foi liberada. Devido à repercussão das mobilizações dos skatistas, a
Subprefeitura do Centro do Rio de Janeiro e a Secretaria Municipal de Esportes
autorizaram a prática do skate na Praça XV. A partir de 2012, as mobilizações dos
skatistas mudaram de caráter. De protestos tornaram-se celebrações. Em cada um
desses eventos, à praça foram acrescentados novos mobiliários de interesse dos

39
De acordo com Olic (2010), session é o termo nativo que designa o ato de andar de skate.
40
Data em que se realizam internacionalmente confraternizações e sessions de skate. No site da
organização Go skateboarding day o evento é definido como: “uma cooperativa de eventos
descentralizados que acontecem ao redor do globo (...) Skatistas ao redor do mundo criam seus
próprios eventos e tradições para celebrar o skate” (tradução do autor).

97
skatistas, autoconstruídos ou financiados com recursos de empresas atuantes no
mercado do skate. O skate segue liberado na Praça XV.

No Vale do Anhangabaú, por outro lado, a prática do skate se deu sem


interdição de maior monta durante pelo menos 27 anos41. Foi somente quando do
início das obras do Projeto de Requalificação e Reurbanização do Vale do
Anhangabaú e Entorno42 que a prática do skate foi subitamente interrompida. De
acordo com diversos relatos (PRIETO, idem), não foi realizada nenhum tipo de
consulta junto aos frequentadores, ou audiência pública.

Os skatistas organizaram a campanha “Salve o Vale43” e realizaram um ato em


frente à Prefeitura, em junho de 2019. Tal como no caso da Praça XV, a repercussão
midiática pressionou o Poder Público a receber os representantes dos skatistas na
reunião com os representantes das empresas envolvidas na obra. A participação dos
skatistas foi no sentido de reivindicar a permanência das arquibancadas no novo Vale
do Anhangabaú. Tal demanda não poderia ser atendida, já que o subsolo do Vale do
Anhangabaú estava sob intervenção e toda a superfície havia de ser removida. O
acordo se deu em torno do reaproveitamento das pedras de mármore que constituíam
as arquibancadas para a construção de um “Memorial”. Ou seja, o pico mundialmente
conhecido seria se não restaurado, pelo menos homenageado em um novo projeto.

Da mesma forma como o Coletivo XV, a ação do movimento Salve o Vale é


orientada para a produção social do espaço público:

Durante anos, compartilhamos desse espaço com todo tipo de


pessoas e situações que se pode encontrar em lugar esquecido
pelo poder público. Demos vida ao Vale e o vale moldou nossas

41
A considerar o ano de 1993 como marco inicial das publicações na mídia especializada de imagens de skatistas
no Vale do Anhangabaú.
42
A transformação do espaço público do Vale do Anhangabaú se insere no bojo de um conjunto de obras de
adequação subterrânea de cabeamentos de energia e de comunicação na área central da cidade de São Paulo.
Assim, todos os novos atributos materiais não são, a rigor, mais do que obras de acabamento da reforma infra
estrutural levada a termo. (Gestão Urbana SP – Prefeitura Municipal de São Paulo, disponível em
https://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/projetos-urbanos/anhangabau/processo-participativo/).
43
Trata-se de uma mobilização convocada nas redes sociais, que contou com a participação de skatistas
internacionalmente reconhecidos. A mobilização teve grande repercussão, reunindo mais de 6 mil assinaturas e
milhares de compartilhamentos do vídeo no qual se faz uma paródia das publicidades de lançamentos imobiliários
(https://www.youtube.com/watch?v=Gjy1CnqDbcc).

98
vidas. No espaço público da nossa casa, o Vale do Anhangabaú
é a nossa sala. É a nossa escola. É a nossa história. Nenhum
de nós foi sequer comunicado antes da destruição desse lugar.
Agora nos resta pedir o mínimo e o óbvio:
1. Não queremos uma pista padrão, queremos uma obra de
arte "skatável" que homenageie o projeto da arquiteta Rosa
Kliass, utilizando-se das pedras originais e que tenha caráter de
espaço público. Nos confinar em uma pista - um espaço artificial
feito somente para skate é diminuir não só a nossa prática, mas
também a função social que exercemos. E também ignorar a
história da cidade e sua cultura. Queremos uma homenagem ao
projeto original, estética e conceitualmente. Queremos o Vale
com o valor que nós, cidadãos paulistanos e skatistas, demos a
ele através da nossa reinterpretação de sua arquitetura e do
espaço público. E isso que o torna especial não só para nós,
mas também aos olhos de urbanistas, arquitetos e amantes de
skate do mundo inteiro. É isso que o coloca ao lado do Museu
de Arte Contemporânea de Barcelona, da Court House na
Filadélfia, do South Bank em Londres... A sua pedra marrom é
não só nossa memória afetiva da cidade, como também a
garantia material que dará o devido valor ao novo projeto.
2. Queremos que haja instrução e estratégia na retirada de
todas as pedras que restam para que não ocorram perdas
irreparáveis que representariam um total descaso com tudo dito
até aqui.
3. É essencial que haja skatistas frequentadores do local
encarregados de ajudar na implementação dessa obra. A
especificidade da prática de skate no Vale torna indispensável
essa medida, sendo impossível qualquer resultado satisfatório
que não adote essa postura. (Klaus Bohms, skatista profissional
em sua fala na audiência na Secretaria de Municipal de São
Paulo, junho de 2019, In: PRIETO, idem, pp.98-99)

99
Os skatistas representantes do movimento Salve o Vale participaram do
processo de elaboração e construção do Memorial, que teve a abertura para o público
realizada na segunda quinzena de fevereiro de 2021.

Referências

BRANDÃO, Leonardo. Quanto vale? Uma história de bordas, gaps, viadutos e


chás. In: PRIETO, Douglas (org.). Vale TXT. São Paulo: Flanantes, 2020, pp. 17-24.

CEMPORCENTO SKATE. Skate: 10 fatos sobre o Vale do Anhangabaú. 26 de


setembro de 2017. Disponível em: https://cemporcentoskate.com.br/fiksperto/skate-
10-fatos-sobre-o-vale-do-anhangabau/

OLIC, Mauricio Bacic. Entre o liso e o estriado: skatistas na metrópole. São Paulo:
PUC-SP (Dissertação de Mestrado), 2010.

PRIETO, Douglas (org.). Vale TXT. São Paulo: Flanantes, 2020.

RIO DE JANEIRO. Decreto n° 17746 de 22 de julho de 1999. Dispõe sobre a


regulamentação do uso das praças, parques e jardins da Cidade do Rio de Janeiro.
Disponível em: http://smaonline.rio.rj.gov.br/ConLegis/ato.asp?4657.

SÃO PAULO. Lei Municipal 1.6050/2014, de 31 de julho de 2104. Aprova a Política


de Desenvolvimento Urbano e o Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo
e revoga a Lei nº 13.430/2002. Disponível em:
https://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/arquivos/PDE-Suplemento-
DOC/PDE_SUPLEMENTO-DOC.pdf

SILVA, Luciano Hermes da; DINIZ, Nelson; CAMPOS, Maicon Gilvan Lima. A
apropriação do espaço público pelo skateboarding no centro do Rio de Janeiro:
o Coletivo I Love XV e a conquista do direito à cidade. Lima: XIV Encontro Latino-
Americano de Geógrafos, 2013.

100
SILVA, Luciano. Hermes da; DINIZ, Nelson. O skate e a produção social do espaço
público. Vitória: VII Congresso Brasileiro de Geógrafos, 2014a. disponível em:
http://www.cbg2014.agb.org.br. Acesso em: 16 jan. 2017

101
Tempo Suspenso:
Mulheres em tempo de pandemia através de um registro audiovisual

Luciene Carris (Casa Azul)44

Em março de 2020, fomos surpreendidos com o novo coronavírus que atingiu


o Brasil. O vírus mortal, conhecido como Covid-19, alterou profundamente as nossas
relações pessoais e de trabalho, afetou o nosso cotidiano, aprofundando as
desigualdades socioeconômicas e de gênero, algo já advertido por muitos estudiosos.
O mais grave disso tudo é que a pandemia se tornou a principal causa mortis no
território nacional. Em meio a situação caótica, nos deparamos com um período
marcado por um retrocesso político das instituições democráticas com discursos e
pautas notadamente autoritárias com características neofascistas. Nessa conjuntura,
a propagação ideológica de fakenews, de censura à imprensa, de revisionismos e de
negacionismos ganharam, como até nunca visto antes, uma repercussão negativa e
inigualável. Aliás, o negacionismo tem funcionado como um instrumento de
manutenção de poder de governos populistas nos últimos tempos e representam um
perigo para a democracia de seus países (Fancelli, 2021).
As mídias digitais e os veículos tradicionais como a televisão e os jornais,
diariamente, noticiam as recomendações necessárias para evitar o contágio do novo
coronavírus, assim como contabilizam as cifras diárias de infectados e de óbitos,
ultrapassando no último mês de abril a cifra de 400 mil mortos de acordo com os
dados oficiais. Os historiadores não ficaram imunes a essa situação, pois é algo que
afeta a nossa sociedade e o mundo, a existência da própria humanidade. Então, me
indaguei sobre qual o papel do historiador em tempos de pandemia. Pois, lembrando
Marc Bloch, se a história é filha do seu tempo, qual seria o ofício do historiador ou da
historiadora nesse obscurantismo que nos circunda (Bloch, 2001).
Não por acaso, em 2020, me envolvi em um projeto de um documentário de
curta-metragem sobre a política de quarentena adotada naquele primeiro semestre.

44
Luciene Carris é Doutora em História pela UERJ com estágios pós-doutorais em Geografia Política FFLCH/USP
e pelo Departamento de História da PUC-Rio. Pesquisadora associada do Laboratório de Imagem, Memória, Arte
e Memória (IMAM) do Instituto de História da UFRJ. É historiadora, pesquisadora e documentarista. Produziu os
documentários Recanto (2019) e Tempo Suspenso (2020), é também uma das idealizadoras do canal no Youtube
Entreconexões e do podcast Sarau da Casa Azul. Correio eletrônico: lucienecarris2016@gmail.com

102
A ideia era compreender o olhar feminino de onze mulheres de diferentes formações,
de gêneros e de origens socioeconômicas distintos sobre a pandemia. Mulheres dos
estados do Rio de Janeiro, de São Paulo e de Minas Gerais, que apontaram olhares
sobre as suas cidades e sobre como o cotidiano foi afetado com a nova divisão do
trabalho doméstico e com o teletrabalho. A metodologia empregada para registrar os
seus depoimentos partiu de um questionário previamente elaborado, seguindo a
História Oral.
O ponto em comum a essas mulheres é que praticamente todas trabalham ou
trabalharam, excluindo a mais jovem que havia acabado de se graduar. O perfil
escolhido foi variado. Mulheres casadas ou solteiras com profissões diversas:
professoras universitárias, advogadas, psicólogas, biólogas, historiadoras,
comissárias de bordo, artistas, cuidadora de idosos e aposentadas. Das onze
mulheres, apenas uma delas abertamente relatou como a quarentena interferiu na
relação com a rotina religiosa, que se restringia aos encontros virtuais e aos cultos
através de plataformas digitais. Em todos os depoimentos, a fala se repete sobre a
divisão das tarefas domésticas, a prática de exercícios físicos ou não, o desafio de
aprender a cozinhar para si ou para a toda família ou ainda a impossibilidade de
encontrar pais, filhos, netos e amigos, bem como a insatisfação com a conjuntura
política. Um período que aprofundou reflexões existenciais como o enfrentamento da
solidão e do cansaço. Aliás, sentimento vivido por uma delas que tinha acabado de
ser mãe solo, uma situação vivida por mais de onze milhões de mulheres no território
nacional.
A pandemia da Covid-19 afetou diretamente a economia mundial e as relações
interestados. Naquele primeiro semestre de 2020, pouco se sabia sobre o
funcionamento do vírus e a vacinação não estava ainda no horizonte possível. As
recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) se restringiam à adoção
de determinados protocolos como a quarentena, o distanciamento social, o uso de
máscaras e do álcool gel. De fato, tais precauções não foram tão bem assimiladas
por muitos indivíduos.
O certo é que o vírus acentuou as desigualdades socioeconômicas do Brasil
como comentado inicialmente. Uma das nossas entrevistadas é moradora de uma
comunidade da zona sul do Rio de Janeiro, a Rocinha, que possui mais de cem mil
habitantes e perdeu naqueles primeiros meses um parente próximo. O seu
depoimento e as imagens por ela gravadas demonstram como ali foi e é praticamente

103
impossível de serem adotados rigidamente as recomendações médico-sanitárias por
razões diversas. Assim, evidencia-se a necessidade de sair de casa para ganhar o
sustento de cada dia e a dificuldade de manter o distanciamento social em casas
pequenas com poucos cômodos e com muitos familiares de idades diversas
convivendo sob o mesmo teto.
A aviação comercial foi um dos setores econômicos atingidos, a interrupção do
tráfego aéreo, bem como a redução de demanda dos voos, atingiu milhares de
trabalhadores e trabalhadoras do ramo. Podemos constatar a consequência desse
acontecimento nas vidas de três mulheres que atuam como comissárias de bordo e
acumulam outras profissões como historiadora e artista de lettering. Uma delas é
solteira e optou por se mudar para o sítio de seus pais octogenários em outra cidade,
apesar de possuir uma família extensa. A sua condição como mulher e solteira,
aparentemente, determinou a sua condição como cuidadora de seus progenitores. As
outras duas formam um casal. Os seus depoimentos revelam que vivenciaram a
quarentena unidas e compartilhando fraternalmente as tarefas domésticas e o
cuidado com o animal de estimação. São falas que manifestam uma certa resiliência
ou que escondem em seus meandros a realidade daquele melancólico momento
vivido.
De todo modo, as falas femininas apontam para os olhares sobre o momento
vivido no Brasil naquele momento, por outro lado, revelam as dificuldades já
conhecidas pelas mulheres. A pandemia acentuou as dificuldades enfrentadas como
a divisão dos papéis domésticos, ou seja, a tradicional divisão sexual do trabalho, o
aumento da violência doméstica e do feminícidio, amplamente difundidos pelos
jornais e nas diversas mídias digitais. Muitas mulheres perderam seus empregos ou
tiveram redução salarial. Além disso, o aumento da sobrecarga de trabalho tem
causado problemas de saúde mental.

O cenário da pandemia despertou reflexões sobre a


organização da vida cotidiana, uma vez que o prolongado
isolamento exigiu das mulheres trabalhadoras estratégias para
atender ao trabalho fora e dentro de casa. A participação
feminina no mundo do trabalho produtivo sofreu certa ameaça
no sentido de que não houve medidas institucionais que
garantissem o apoio às famílias e às mulheres trabalhadoras,

104
particularmente as das camadas menos privilegiadas (Bueno,
2021, p. 1548).

Contudo, a cenas foram gravadas a partir dos celulares de cada uma das
participantes, o que pode conferir aspectos interessantes e particulares de suas
narrativas. A nossa intenção é divulgar o teaser de um minuto do documentário
“Tempo Suspenso” apresentar um registro histórico da pandemia, que ainda assola o
país, e discutir o papel do historiador nesse momento, o que nos permite repensar as
atividades possíveis de atuação profissional, a relação da história e o universo do
audiovisual como um registro do tempo presente. O curta-metragem é uma produção
independente e foi produzido, dirigido e roteirizado em parceria com a jornalista Leila
Meirelles. A responsabilidade pela edição e montagem coube ao videomaker Luis
Felipe Mano.
A relação entre o cinema e a história foi abordado no estudo clássico do
historiador francês Marc Ferro em Cinema e História, que ressaltou que o filme é um
documento histórico, mais do que uma obra de arte, pode contribuir na construção de
uma contra-história, de uma história considerada não oficial. Assim, como um produto
da história constitui:

um excelente meio para a observação do ‘lugar que o produz’,


isto é, a sociedade que o contextualiza, que define sua própria
linguagem possível, que estabelece seus fazeres, que institui
suas temáticas. Por isso, qualquer obra cinematográfica – seja
um documentário ou uma pura ficção – é sempre portadora de
retratos, de marcas e de indícios significativos da sociedade que
a produziu (Barros, 2011, p. 180).

Para concluir, o documentário como um gênero pode ser entendido como um


“lugar de memória”, relembrando aqui Pierre Nora, cuja narrativa incita
questionamentos e digressões sobre o passado e o presente, contribuindo para uma
interpretação sobre o mundo e a realidade social.

105
Figura 1. Cartaz do documentário com os nomes das entrevistadas e da equipe.

106
Referências:

BARROS, José D´Assunção. Cinema e História: considerações sobre os usos


historiográficos das fontes fílmicas. In: Comunicação & Sociedade, Ano 32, n. 55, p.
175-202, jan./jun. 2011. Disponível em https://www.metodista.br/revistas/revistas-
ims/index.php/CSO/article/view/2324/2504 Acesso em: 05 maio 2021.

BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar Editor, 2001.

BUENO, Wilma de Lara. História das mulheres em tempos de pandemia. In: Filosofia
e Educação. Campinas, São Paulo, v.12, n.3, p. 1544-1564, set./dez. 2020.
Disponível em
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/rfe/article/view/8661985/25879
Acesso em: 05 maio 2021.

FANCELLI, Uriã. Populismo e negacionismo como ferramenta para a


manutenção do poder populista. Curitiba: Appris, 2021.

MORETTIN, Eduardo; NAPOLITANO, Marcos; KORNIS, Mônica Almeida (orgs.).


História e Documentário. Rio de Janeiro: FGV, 2012.

PERROT, Michelle. Mulheres públicas. São Paulo: Editora da Unesp, 1998.

______. Os excluídos da historia: operários, mulheres, prisioneiros. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 1988.

107
REPRESENTAÇÕES DO RIO DE JANEIRO NAS HQS DO ZÉ CARIOCA

Mario Brum(UERJ)45

RESUMO
O presente resumo trata das representações sociais sobre a cidade do Rio, especificamente
sobre sua população mais pobre, que habita os morros e periferias da cidade, a partir das
histórias em quadrinhos do “Zé Carioca”, personagem dos Estúdios Disney. Para tal,
analisamos toda a trajetória de criação e produção do personagem, desde a sua origem norte-
americana, passando pelas diversas fases de publicação dos quadrinhos no Brasil com foco
principalmente na produção da década de 1970 quando as visões sobre os hábitos e os
cenários do personagem, arquétipo do malandro carioca, são refletidas nas histórias de
alcance nacional, que nos servem de exemplo das representações sociais e do universo
cultural do período e, dentro dele, do lugar das favelas, da cidade do Rio e dos mais pobres
nele.

Palavras - chaves: Zé Carioca; História em Quadrinhos (HQ); Representações;


Favela.

Trataremos nesse paper das representações da cidade do Rio de Janeiro e do


cotidiano do morador da cidade através das histórias em quadrinhos (HQs) do Zé
Carioca. O personagem foi criado pelo estadunidense Walt Disney durante sua visita
ao Brasil no começo da década de 1940, dentro da Política de Boa Vizinhança
promovida pelo governo dos Estados Unidos como forma de angariar simpatia da
América Latina para alianças no esforço da II Guerra Mundial. A primeira aparição do
personagem se deu no filme Alô, Amigos!, no episódio Aquarela do Brasil, em que
fauna, flora e paisagens tropicais surgem ao som da voz e música de Ary Barroso,
até que o papagaio surge à frente do Pato Donald para ciceroneá-lo num passeio pelo
Rio: Pão de Açúcar, Cristo, Floresta da Tijuca, Urca, calçadão de Copacabana, a
Praia de Copacabana

No entanto, logo na primeira tira destaca-se outra característica marcante da


cidade, como podemos ver nos recordatórios (as caixas de texto que contêm a
narrativa da história): “Rio de Janeiro, uma joia incrustada no Atlântico azul! Cidade
de praias maravilhosas e arquitetura arrojada.../ Hotéis de luxo e finos restaurantes!

45
Professor de Teoria e Ensino de História da UERJ, Doutor em História pela UFF com Pós Doutorado em Educação (UERJ) e
Planejamento Urbano (IPPUR-UFRJ), pesquisador associado do IMAM-UFRJ e do INCT Proprietas. Contato:
mario.brum@uerj.br

108
Muita riqueza, luxos e romance! / Mas, como em todas as cidades, existe uma parte
que leva outro tipo de vida.” (1). Nessa tira vemos no primeiro quadrinho o Pão de
Açúcar, cartão postal da cidade; no segundo, o calçadão de Copacabana com seus
restaurantes; e no terceiro, os famosos barracos da cidade, que convivem ao fundo
com chaminés de fábricas e ‘o outro tipo de vida’. E é sobre as tentativas desse outro
tipo de vida participar da sociedade de ‘luxo e riqueza’ que se desenvolve todo o
enredo dessas primeiras tiras. A malandragem e a pouca ou nenhuma aptidão para
o trabalho são características presentes nessa primeira fase, que Santos (2002)
classifica como a fase americana, composta pelas tiras semanais e mais histórias
fechadas ocasionais publicadas em gibis nos Estados Unidos e exportadas para
outros países. O papagaio fazia sucesso em países latinos e, particularmente, no
Brasil.

De modo que, em 1950 quando a Editora Abril é fundada, sua primeira


publicação, a revista em quadrinhos O Pato Donald (publicação mais longeva do
Brasil, tendo chegado ao número 2435 em setembro de 2014) trazia em sua capa,
além do famoso pato, o ‘brasileiro’ Zé Carioca, como apelo de vendas e identificação
com o público alvo.

A capa foi ilustrada por Luis Destuet, argentino, que foi o autor das capas e das
primeiras histórias Disney produzidas no Brasil a partir de 1951, inclusive as do Zé
Carioca. Nas mãos de Destuet, entretanto, Zé Carioca perde as primeiras
características de malandragem e vadiagem da fase americana. Da mesma forma, o
Rio de Janeiro ou qualquer de seus elementos a ele associado não fazem parte das
histórias. Em “A Volta do Zé Carioca”, publicada originalmente em 1955, por exemplo,
Zé Carioca abre uma loja de instrumentos musicais e convida os amigos para virem
à inauguração, avisando-os que os esperará no ‘Aeroporto de Congonhas’. (1) Esse
Zé Carioca ‘trabalhador’ e ‘correto’ será mantido também nas primeiras histórias
escritas por brasileiros, principalmente, as primeiras do paulista Jorge Kato.

Com a entrada de Waldyr Igayara de Souza como roteirista e desenhista_ em


companhia de Izomar Camargo, existe uma maior adesão a temas brasileiros. Mas
será com a entrada de Carlos Edgard Herrero no final da década de 1960, e
principalmente, das parcerias entre Renato Canini e Ivan Saidenberg no início da
década seguinte que o Rio e a malandragem passam definitivamente a compor o

109
personagem, agora com um olhar brasileiro, retomando então a trilha das primeiras
tiras de Zé Carioca.

Esses artistas usaram a ‘outra cidade’ como local de moradia do papagaio e


suas constantes tentativas de ‘melhorar de vida’, não através do trabalho, mas de
golpes e calotes em diversos cenários cariocas. Foi Canini que, por exemplo, aboliu
os clássicos paletó, chapéu-panamá e gravata borboleta dos primeiros tempos do
personagem e vestiu-lhe de leveza com uma camiseta branca e calças. Além disso,
fixou a moradia de Zé Carioca na fictícia Vila Xurupita, dotadas de diversas
características então atribuídas às favelas: o barraco, a pobreza de seus habitantes,
a cor negra de personagens e figurantes, um time de futebol e uma escola de samba
(vale dizer que outros artistas optaram por manter o visual tradicional).

Assim, o ‘morro’ e a favela ganham relevância fundamental nas histórias. Mais


do que mero cenário, era o ambiente onde muitas histórias se desenrolam e/ou
começam, construindo o universo de Zé Carioca naquela que é considerada por
críticos e leitores a sua melhor fase, a de Assimilação (Santos, 2002). A cidade do
Rio ganha maior dimensão como ambiente onde as histórias se desenrolam e,
principalmente, a Vila Xurupita como arquétipo da favela carioca. Nessa fictícia
vila,estruturam-se a escola de samba Unidos da Vila Xurupita (3) o Vila Xurupita
Futebol Clube, a festa junina (4), a feijoada(5)... diversos elementos tidos, embora
não de modo exclusivo, como típicos das favelas.

A noção da Vila Xurupita como morro se destaca na fase de assimilação. Na


verdade, na primeira metade da década de 1970 há uma indefinição quanto ao local
de moradia do personagem, ocorrendo algumas vezes de situá-lo no também fictício
‘Morro do Papagaio’ (6). Com o passar do tempo, porém, a Vila Xurupita foi se
consolidando nas histórias e, junto a isso, a descrição do local em que ‘morro’ e
‘favela’ eram tratados como sinônimos.

Nesse período, a Vila Xurupita tem uma arquitetura altamente irregular, com
barracos à beira do abismo e precariamente equilibrados. Mas a ideia de pobreza e
irregularidade das moradias da favela não eram apenas o fundo da cena ou o
ambiente das histórias. O barraco de Zé Carioca, embora não fosse desenhado
uniformemente nas histórias, era caracterizado como apertado e/ou de material

110
precário. Essa imagem da pobreza e precariedade era largamente difundida no
período, alimentando os desejos por parte de setores mais abastados da sociedade
carioca de eliminar totalmente a favela da paisagem carioca. Emblematicamente, o
tema da remoção ligado ao da especulação imobiliária é tratado em algumas histórias
desse período.

Ao tratarmos as visões sobre a favela refletidas nas HQs de Zé Carioca,


compreendemos os quadrinhos como uma representação da realidade, ainda que por
vezes fortemente estilizada. Assim, as HQs podem ser compreendidas como uma
demonstração de visões de mundo e de um imaginário social. Nas histórias de Zé
Carioca, com autores que roteirizaram e desenharam temas extremamente
contemporâneos e relacionados ao cotidiano das favelas.

Percebemos uma inflexão nas histórias ao final da década de 1970, em que


gradualmente o morro/favela sai das histórias e a Vila Xurupita vai ganhando
características físicas de um bairro simples, similar ao subúrbio, embora ela nunca
sido declaradamente localizada nele. A saída de Renato Canini, contratado no
começo dessa fase e de grande importância nessa caracterização (Santos, 2002, p.
65) dos quadros da editora é elemento e sintoma dessa inflexão em que as HQs de
Zé Carioca estariam se afastando demais do ‘padrão Disney’.

Nesse sentido, os barracos e a irregularidade do terreno vão dando lugar a


casas de alvenaria. Inclusive a moradia dos amigos e a do próprio Zé Carioca vão
ganhando esses contornos, embora as HQs mantivessem os elementos atribuídos à
cultura popular na Vila Xurupita. A vestimenta ‘clássica’ do personagem, de casaca,
chapéu e gravata borboleta, voltou a ser usada de modo alternado à vestimenta mais
informal (as edições comemorativas de 20 e 25 anos, da revista, respectivamente de
1981 e 1986, apresentam o personagem vestido de modo diferente em cada uma).

Em “Como mudar uma casa”, a referência à moradia anterior na favela por


parte do personagem ocorre a partir de uma foto descoberta pelos sobrinhos em que
Zé Carioca empurra um barraco. Ao ser indagado sobre a foto, ele diz: “Ela me lembra
uma passagem chata da minha vida! / Foi no tempo em que eu morava no morro...”(7).
O enredo trata de Zé que, cansado de subir o morro, quer levar seu barraco para
baixo, desenhado como uma rústica construção acompanhada de vários outros

111
barracos precariamente pendurados no morro. Numa história comemorativa dos 40
anos do personagem que trataria de sua infância, o personagem como narrador de
sua própria biografia conta aos sobrinhos: “Vivi num dos mais belos locais do Rio de
Janeiro”. Essa frase, num recordatório, era acompanhada da visão do Pão de Açúcar
do alto do morro sendo visto por um Zé ainda bebê. No quadro seguinte, o
recordatório complementa “Dependendo do ângulo do qual a gente olhava, é claro...”
sendo esse ‘outro ângulo’ os barracos da favela.(8)

Foi justamente a caracterização do Zé Carioca do morro, preguiçoso,


malandro, apreciador do futebol e do samba que tornou o personagem sucesso de
vendas, com a revista se tornando quinzenal entre as décadas de 1970 e 1980. Entre
os Anos de Chumbo e o fim da década de 1990, Zé Carioca vivenciou os contrastes
dos brasileiros, da torcida pela seleção na Copa, da venda de jogadores para o
exterior ou da ameaça a perda do ‘campo de pelada’ para a especulação imobiliária;
se endividou, cantou, sambou, perdeu casa, foi ‘removido’, morava ‘longe’... A
produção brasileira de Zé Carioca, principalmente entre as décadas de 1970 e 1990
mostraram, de forma leve e humorada, e nem sempre inocente, experiências e
dramas reais de milhões de brasileiros que vivem nas ‘Vilas Xurupitas’ de todo o
Brasil.

1 “Como Almoçar de graça” Zé Carioca: 70 anos – volume 1. Ed. Abril, 2012. pp.12- 16
2Pato Donald n 165. Ed. Abril, janeiro de 1955. Ver http://coa.inducks.org/story.php?c=B+PD++165-D Consultado
em 11/09/2014
3 “O sucessor” Zé Carioca n. 1423, fevereiro de 1979. pp. 3 - 9
4“Zé Carioca e o Coroné Zé Buscapé” Zé Carioca n. 1649, junho de 1983 pp. 3 - 12
5
“O campeão da feijoada” Zé Carioca n. 1663, setembro de 1983 pp. 3 - 10
6Vemos isso, por exemplo, na história “Agência Moleza de Investigação” Zé Carioca n. 1233, junho de 1975, pp.
3 - 11
7“Como mudar uma casa” Zé Carioca n. 1581, fevereiro de 1982. pp. 3-9
8 “A infância do Zé Carioca” Zé Carioca n. 1589, abril de 1982. pp. 3-12

Bibliografia:

DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da história


cultural francesa. São Paulo: Paz e Terra, 2015.

112
LEITE, Sidney Ferreira. O filme que não passou: Estados Unidos e Brasil na
Política da Boa Vizinhança – a diplomacia através do cinema. 389 p.Tese
(Doutorado em História) – Programa de Pós Graduação em História Social,
Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP, 1998.

PEGORARO, Celbi. A criação do Zé Carioca. In: Zé Carioca: 70 anos. volume 1. Ed.


Abril, 2012. p.3-8

SANTOS, Roberto Elísio dos. Para Reler os Quadrinhos Disney. Rio de Janeiro:
Paulinas, 2002.

113
A BATALHA PELO IMAGINÁRIO POPULAR: OS ACADÊMICOS REBELDES DE
1890

Matheus Romano Palmieri de Souza (UFRJ)46

No ano de 1890, no Largo São Francisco de Paula, um grupo de artistas da


Academia Imperial de Belas Artes realizou uma exposição particular e ao ar livre,
coberta por tendas brancas, pela estátua de José Bonifácio e pelo antigo céu da
capital do Império. Evadindo suas produções iconográficas dos muros destroçados
da Academia, eles afirmavam que a instituição da qual faziam parte já não mais era
capaz de representa-los, nem muito menos (e mais importante) suas obras de arte.
Retiravam da AIBA, com aquele gesto simbólico, sua mais importante e imponente
ferramenta: a sua capacidade de representar, de acordo com os padrões culturais e
sociais de seu universo de influência, uma classe de artistas genuinamente brasileira.

É importante ressaltar que tratamos de um período extremamente conturbado


das estruturas políticas que regiam a sociedade brasileira. A República, recém
instaurada pelos militares e pela elite intelectual do país, tentava sorrateiramente
penetrar a sociedade e impregnar-se na alma dos habitantes do antigo Império.
Aqueles que venceram a disputa ideológica pelos caminhos políticos que trilharia
nossa Primeira República, durante a década de 1880, tinham muitos problemas em
suas mãos, e um dos mais imediatos deles, se levarmos em consideração a
velocidade com a qual trataram de resolvê-lo, era o de reorganizar as antigas
instituições cujos laços estavam imbricados (política, cultural e materialmente) à
Monarquia. Uma dessas instituições era a Academia Imperial de Belas Artes,
responsável por patrocinar e cultivar um verdadeiro arsenal de soldados na batalha
pelo imaginário popular brasileiro.

Em 1890, o ministro responsável pela instrução pública (Benjamin Constant)


comandou a elaboração de uma reforma institucional que pudesse revigorar e
reinterpretar o papel da nova Academia, que agora se chamaria Escola Nacional de

46
Historiador graduado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, atualmente mestrando do Programa de Pós-
Graduação em História Comparada (PPGHC – UFRJ)

114
Belas Artes. Dotados de certa autonomia na demarcação de suas demandas como
uma classe, os professores Rodolpho Bernadelli e Rodolfo Amoedo erigiram o
documento em formato de Projeto de Reforma que viria a estabelecer os parâmetros,
métodos, regulamentos e objetivos da nova sede simbólica da classe de artistas
oficializados e brasileiros. A velocidade com a qual o projeto foi demandado e
aprovado (menos de um ano havia se passado desde a proclamação) demonstra a
possível compreensão, especialmente do ministro responsável (Benjamin Constant),
de que uma reforma educacional e artística era extremamente necessária.

Outras evidências para pressupor a urgência dessa reorganização podem ser


encontradas em outros Projetos de Reforma e em textos de articulistas e críticos da
arte contemporâneos aos acadêmicos rebeldes de 1890. Em várias publicações
impressas do período, tais quais jornais e revistas de grande circulação como “O
Paiz”, “Gazeta de Notícias” e “Revista Ilustrada”, ficam evidentes os
descontentamentos (por vezes radicais) de parte significativa do universo artístico
carioca. Nomes como os dos pintores Pedro Américo e Ângelo Agostini, do articulista
Pardal Mallet e dos críticos Gonzaga Duque e Júlio Verim, em diversas ocasiões
manifestaram seu completo desânimo com a organização e com a própria existência
da Academia Imperial de Belas Artes. Os pintores e acadêmicos Montenegro
Cordeiro, Aurélio de Figueiredo e Décio Villares, para além de exporem suas críticas
publicamente, resolveram tomar para si a missão de erigirem sua própria reforma
“extraoficial”, ou melhor, sua própria proposta de extinção da Academia, que deveria,
de acordo com eles, ser substituída por escolas livres espalhadas pelo país e
articuladas de maneira descentralizada.

Foi em meio a esse estado das coisas (e ainda esperando pela aprovação do
Projeto de Reforma escrito por Bernadelli e Amoedo), que um grupo de alunos
resolveu inaugurar um “barracão”, de acordo com Frederico Barata, que funcionasse
como um “Ateliê Livre” onde aulas gratuitas seriam ministradas por professores como
Zeferino da Costa e os próprios Rodolpho Bernadelli e Rodolfo Amoedo. Esse
barracão, que servia como local de exposição e sala de aula ao ar livre, foi escolhido
por ter sido o local onde Aurélio de Figueiredo (ironicamente, um dos “opositores” do
projeto de reforma oficial) expusera pela primeira vez sua obra “A Redenção do
Amazonas”. E ali, no Largo São Francisco de Paula, por baixo da estátua de José
Bonifácio, aquele Ateliê, (inspirado certamente nas experiências que muitos daqueles

115
acadêmicos obtiveram em países como França e Itália) funcionou por dois meses, até
que a prefeitura o proibisse de funcionar por motivos de segurança. Ao invés de
desistirem da empreitada, os rebeldes foram se reunir na rua do Ouvidor, mantendo
viva a fagulha de suas demandas.

É possível afirmar que a fundação daquele “Ateliê Livre” era mais do que uma
simples forma de propagandear suas produções artísticas. Quando analisamos esse
evento em consonância com as manifestações de outros membros relevantes e
influentes da comunidade artística e acadêmica carioca daquele último quarto de
século, é possível perceber uma tendência sociocultural quase generalizada: de uma
forma ou de outra, os descontentamentos daquela parcela da população brasileira
encontravam suas raízes na exclusão do universo das artes da sociedade brasileira.
Desde os anos de Manoel de Araújo Porto-Alegre como diretor da AIBA, na década
de 50, é essa a principal, a mais latente demanda da classe dos artistas oficializados
no Brasil: expandir a esfera de influência das doutrinas artísticas (fossem elas quais
fossem) e penetrar as almas de uma sociedade pouco familiarizada com elas. Essas
doutrinas, ou métodos e estilos, transformar-se-iam durante as décadas, e os meios
com os quais desejou Porto-Alegre expandir a influência de sua instituição eram
radicalmente distintos daqueles propostos por Amoedo e Bernadelli, mas obedeciam
ao mesmo descontentamento: o Brasil não era uma nação devidamente educada por
seus líderes políticos, e a única forma de fazer expandir o universo do qual retiravam
legitimidade (o universo artístico acadêmico carioca dos finais do séc. XIX), era por
meio de um sistema educacional e artístico que pudesse englobar todas as classes
que compunham a sociedade brasileira. O Ateliê Livre de 1890 representava o
apogeu desse desejo, pelo menos naquele século, e inaugurava uma tendência que
jamais regressaria ao seu estado original: a demanda por educação imbricava-se
agora, inegavelmente, a uma demanda por liberdade.

A importância dessa demanda e o motivo pelo qual foi renomeada aquela


Instituição não podem ser ignorados: os artistas acadêmicos do Rio de Janeiro
daquele último quarto de século eram mais do que pintores ou escultores: eram (e se
interpretavam como tais) agentes sociais, providos de uma ferramenta poderosa.
Eram capazes, por meio de sua formação artística, de atribuir significados a símbolos,
construir temáticas e elaborar representações que pudessem exaltar aqueles que os
patrocinavam. No Brasil do século XIX, ou melhor, na época do nascimento das várias

116
ideias de Brasil que iriam confluir durante as décadas na direção do que podemos
reconhecer hoje como a República sul-americana da qual fazemos parte, a utilidade
dessa ferramenta é imprescindível. “Substituir um Governo e construir uma nação,
esta era a tarefa que os republicanos tinham de enfrentar” (CARVALHO, 2007, P. 25),
afirmou o historiador José Murilo de Carvalho, e a segunda parte de sua afirmação é
que mais nos interessa. Não foi a primeira vez que uma nação teve de ser inventada
nessas terras, e a cada reinvenção do que significa ser e estar no Brasil, soldados
são convocados. Mas não se tratam de soldados convencionais, munidos de armas
e canhões. Não: a época de construir nações é também a época da manipulação dos
símbolos, das transformações de representações, de formação das almas, da
transfiguração do imaginário popular. É a época dos soldados ideológicos, providos
de armas capazes de penetrar o coração dos homens e fazê-los perceberem-se não
só como Brasileiros, mas como súditos de D. Pedro I, de D. Pedro II ou como cidadãos
de uma República.

Referências.

BARATA, Frederico. Eliseu Visconti e seu tempo. Z. Valverde, 1964.


CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas: o imaginário da República no
Brasil. 2ª edição. Companhia das Letras. São Paulo. 2007. P. 25
CAVALCANTI, Ana Maria Tavares. Os embates no meio artístico carioca em 1890 -
antecedentes da Reforma da Academia das Belas Artes. 19&20, Rio de Janeiro, v. II,
n. 2, abr. 2007. Disponível em:
<http://www.dezenovevinte.net/criticas/embate_1890.htm>. Acessado em
22/02/2021.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. As Barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos
trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

117
TOUJURS PERDRIX!: PENSAR A AMAZÔNIA BRASILEIRA POR MEIO DAS IMAGENS

Maurício Elias Zouein (UFRR/IMAM)47

A imagem como fonte histórica

Autênticos monumentos-documentos, as imagens fotográficas, fotografias1 e


xilogravuras na Amazônia brasileira entre 1865 a 1908 correspondem a ferramentas
de construção da condição científica da memória. Por meio daqueles que foram
modelos para imagens, dos que produziram imagens e das próprias imagens
encontramos expressões visuais profundas e poéticas que surpreendem na
manifestação do esforço humano em interpretar. Tais imagens revelam na Amazônia
brasileira2 os ângulos das dinâmicas ideológicas mais impressionantes. Percebe-se
nas imagens as diretrizes das práticas sociais. Pela escolha das cenas, pressupomos
que o olhar de quem as produziu se comoveu diante das cores da gente daqueles
lugares, dos mistérios míticos, da história se revelando, da estranha malícia sedutora
que habita como um símbolo a essência da verdez amazônica. Na exposição do
momento por meio da imagem, a realidade se pôs em desfile. Presunçosa à frente
dos instrumentos e do seduzido.

Ora, a imagem – pintura, gravura ou fotográfica – não apresenta o fato. Ela


apresenta a si mesma e representa o fato. Se aquele que a percebe desconhecer o
contexto (onde e quando a imagem foi produzida e consequentemente o
objeto/sujeito/evento representado) dificilmente conseguirá interpretar o conteúdo
imagético conforme o tempo histórico em que ele foi concebido. O máximo que
poderá fazer é crer nos elementos empáticos expostos entre as margens indiscretas
da tela, da página ou da fotografia. Além disso, se, por um lado, acreditamos na
intenção como ação indutiva do aparato visual. Por outro, admitimos a imposição da
imagem ao olho humano. Utilizando o pensamento flusseriano3: Ao olharmos para a

47
Coordenador do Núcleo de Pesquisa Semiótica da Amazônia e Curso de Comunicação Social-jornalismo
(UFRR-RR), Membro do Programa de Pós-Graduação em Comunicação; Líder do Grupo Linguagem, Cultura e
Tecnologia – Linha de pesquisa Visualidades Amazônicas, Mestre em Psicologia Social (UCB) e Doutor em
História Social (UFRJ). Cursos: Seeing Through Photographs - The Museum of Modern Art (MoMA - USA),
Understanding Research Methods - University of London (UK), membro do Laboratório de Imagem, Memória, Arte
e Metropole.

118
circumstantĭa4 de uma distância, que pode ser subjetiva, o que percebemos e a
imagem que, por sua vez, transforma a circunstância em uma skēnē5. Confinamo-
nos, então, a nossa capacidade interpretativa e/ ou imaginativa provocada por meio
da imagem. A partir de tal distanciamento surge o que Wittgenstein (1889-1951)
nomeou de Sachverhalt6 e Heidegger (1889-1976) batizou de verhältnisse7. Então,
as imagens passam a ser uma espécie de mediação8 da circunstância. Com a
mediação assomam tanto a capacidade de representar quanto a de ocultar9 a
circunstância. E, quando a imagem assume a postura de deturpar o que precisamos
imaginar, imaginamos imaginar. Id est, a alienação10 se manifesta.

Minha preocupação recai por sobre o que foi renegado e/ ou ocultado


oficialmente e destinado ao inconsútil disfarce do ideológico. Com tal preocupação fui
forçado a refletir sobre a tessitura existencial da imagem emaranhada a personalidade
ardilosa da memória. Ambas, imagem e memória, orientando e sendo orientadas pelo
olhar. Perceber a vida, confeccionada pela imaginação, é um contexto que prima pelo
relacionamento. As imagens possuem uma aura densa de magia11. Por tanto tais
relacionamentos possuem um caráter mágico. Repensar o armazenamento é a única
habitação possível para podermos carregar o fardo de testemunhar uma experiencia
imagética.

Desde tenra infância a humanidade procura enxergar na imagem a conquista


sobre o logos12. Uma necessidade que remodela, com o passar do tempo, as
associações sígnicas que o ser humano faz com a realidade. Não importa se
enaltecemos ou lastimamos tais associações. O importante é não as desprezar.

Para demonstrar como tratamos a imagem em nossa pesquisa tomemos a


xilogravura13 (imagem 001) como exemplo no paradigma pré-fotográfico. Ora, a
imagem/estampa apresenta a si mesma. E sim, é uma representação14, por meio do
conteúdo sígnico. Ela é signo de alguém, de um fato, cenário e/ou circunstância como
é signo de si mesma. Quem a percebe, ao desconhecer o lugar e momento cuja
imagem/estampa é signo, é improvável que conseguirá interpretar o conteúdo
imagético em concordância com o tempo histórico que ela é percebida como
vorslellung15. Quem se dispor a interpretar a obra necessitará crer nos elementos
empáticos expostos por entre a impertinente moldura enclausuradora da imagem.

119
A técnica utilizada na xilogravura requer habilidade, paciência e concentração.
Conhecimento dos tipos de madeiras, instrumentos de entalhe, tintas etc. Tais
qualidades humanas revelam a imisção do artista/criador na obra. Então, acredito que
concordamos... neste paradigma a ação humana direta, na elaboração do signo
imagético, é considerável. Seja para instigar a imaginação ou para poupar o esforço
do imaginário no sentido de aproximação com a realidade16.

Imagem 001 - Toujurs perdrix! (Rio Madeira). Gramatura do papel 110g/m2, tons de
cinza, porém, com o envelhecimento do papel a tonalidade se modifica - Dimensões:
9cm x 12cm. Autor - Franz Keller-Leuzinger in “The Amazon and Madeira Rivers:
Sketches and Descriptions from the Note-Book of an Explorer” - 1875, p. 87. Fonte:
Acervo particular.

No caso da obra Toujurs perdrix! do engenheiro, desenhista, xilogravurista, e


fotógrafo, Franz Keller (1835-1890)17 a imagem/estampa tenta reproduzir uma
experiência que também foi descrita em palavras:

Aconteceu-nos muitas vezes no baixo Madeira ter em roda do


fogo de nossa cosinha tartarugas de todos os tamanhos, desde
as que mediam um metro de comprimento até ás que não
excediam de um metro de um palmo; preparavam-se com todos

120
os molhos, inteiras ou em fragmentos, em sopa ou assadas, de
panella, ao espeto, ou como se podia melhor desejar. Um banho
no rio imediatamente depois da comida, passou para todos
estes indios ao estado de segunda natureza; não vi um unico
que sofresse por isto o mais ligeiro incommodo. (Keller-
Leuzinger, 1875, pgs. 88,89).

Ler o texto, após a imagem/estampa, causa a impressão de que o artista/autor se


preocupou em evidenciar imageticamente as tartarugas (inteira, no canto esquerdo;
em pedaços, no espeto um pouco mais a frente e somente o casco, no centro) e os
artefatos utilizados no preparo e consumo delas. Eram Tartarugas18, Suruanãs19,
Tracajás20, Cunhamucus21, Aperemas22 e Jabutis23. Iguarias cujos ovos serviam para
o fabrico de óleo utilizado na cozinha e iluminação da época. Em 06 de outubro de
1850 escrevia Henry Walter Bates24 (1825-1892):

A flecha usada para matar tartarugas tem robusta ponta de aço,


em forma de lanceta, adaptada a uma cavilha que penetra na
ponta da seta. A cavilha é presa à seta por um torçal feito de
fibras de folha de ananás, caprichosamente enrolado em torno
do corpo da flecha. Quando o missivo entra na carapaça, a
cavilha se destaca e o animal desce com ele para o fundo,
deixando a seta a boiar na superfície. Feito isto, o caçador rema
em sua montaria para o lugar e delicadamente puxa o animal
pelo torgal, comprazendo-se em largar a rédea quando ela
mergulha, até que é de novo trazida á superfície, quando a fere
com segunda flecha. Com o auxilio de duas cordas não tem
mais dificuldade em trazer para terra a presa. Até ao meio dia
os homens tinham morto umas vinte tartarugas quasi adultas.
(BATES 1863, p. 248)

O conhecimento de Keller em xilogravura somado a experiência adquirida


durante a viajem no Madeira resultou nas imagens/estampas de determinadas
circunstâncias. No caso, as formas de se alimentar com os quelônios. Há de se
reparar que escolher a circunstância precede a construção da imagem. Ao contrário,
com a fotografia, existe a possibilidade de escolhermos entre várias imagens

121
fotográficas aquela que melhor possui a capacidade de ser a vorslellung da
circunstância.

A semelhança proposta por parte da imagem não é competente o suficiente


para carregar consigo a dimensão da realidade. Tal semelhança é a porção finita da
infinitude do real. O tempo e espaço indicados na imagem atuam no consciente com
uma performance distinta da que desempenharam antes do Unbewusste25. Ao
adentrarem a consciência ocidental, as associações sígnicas nos conduzem a
aceitarmos que possuímos pouca experiência da imagem/estampa e estamos
confinados a capacidade humana de interpretar, de imaginar.

Considerações finais

Trata-se de uma constante audição das vozes inconstantes que ressoam no


tempo, oscilam, nos níveis, entre a imagem com segundas intenções, um pouco
presumida, e uma seriedade muita enérgica que avança rumo à história. cada imagem
experimenta a ação e, ainda a sua ação própria; logo, segue-se um movimento
polimagético, introduzido pela afirmação paradoxal acerca da constância, que também
seria uma forma de oscilação mais lenta. Esperamos que novas pesquisas possam dar
continuidade a proposta de se pensar a Amazônia brasileira por meio das imagens. Por
mais que a nossa humilde intenção tenha sido correspondida o processo revelou novas
interrogações e intenções. O privilégio do contato com as fontes primarias adquiriu um
significado esperançoso, do ponto de vista da inquietude, para a pesquisa histórica; pois
a imagem fotográfica visa com sua aptidão de encerrar-se em qualquer todo, a pesquisa
da condição do que foi fotografado, e manifesta, assim, o princípio heurístico do qual
utilizamos continuamente, inconsciente ou consciente, quando estamos empenhados em
entender a Amazônia por meio da expressão visual, seja contemporânea, seja longínqua
e histórica; aplicamos-lhe as hierarquias que a nossa própria experiência nos proporciona
de tal forma que nosso conhecimento da história, do que foi reproduzido por meio de
imagens, depende profundamente do nosso conhecimento, de nós mesmos enquanto
atores sociais e da amplidão do nosso horizonte interpretativo. Aliás, a expressão Toujurs
perdrix! compreende o sentido de satisfação ou empanzinamento.

Notas

122
-Imagem fotografia = conteúdo, representação do que foi fotografado. Fotografia = objeto
palpável, materialidade.
2-Para este trabalho entendemos por Amazônia brasileira a divisão territorial conhecida
em 1850 por Amazonas e Grão Pará. E a divisão regional estabelecida em 1945 para a
Região Norte que compreende: Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima.
3-Vilém Flusser (1920-1991).
4-Do grego: περίστασις - Combinação de acontecimentos em dado momento.
5-Cena e/ou construção de cena.
6-Para Wittgenstein, Sachverhalt, é o que entendemos por uma proposição
elementar, ou se esta é uma verdade. E, o conjunto de proposições elementares, foi
definido como Tatsache.
7-Envolvimento e organização do cidadão com as circunstâncias próprias de seu
mundo.
8-Do grego διαμεσολαβητής - diamesolavitís ou do latim “mediatio”, (para ambas as
formas = intervir).
9-Do latim occultāre - “dissimular, reservar, manter secreto”, formado por ob-, “sobre”,
mais cellare, “esconder, tirar da vista”.
10-Do lat. alienatĭo,ōnis 'alienação, transmissão do direito de propriedade, delírio etc.
Conforme o pensamento hegeliano, processo essencial à consciência através do qual
o observador comum da realidade vislumbra o mundo como sendo constituído de
coisas independentes umas das outras.
11-Do latim magia, proveniente do grego antigo mageía (μαγεία) que por sua vez do
antigo persa magush, possuidora da raiz magh- ("ser capaz", "ter poder"). Conforme
Paracelsus, (Philippus Aureolus Theophrastus Bombastus von Hohenheim 1493-
1541) a imaginação (imaginatio) é uma ferramenta que mobiliza à vontade e adequa
a exteriorização da magia no universo.
12-Do grego antigo: λόγος (trad. – lógos). Conforme os escritos heraclitianos: lógos
pode ser entendido como justa medida ou razão.
13-Gravura em relevo sobre madeira
14-(lat. Repraesentatio; ingl. Representation; franc. Représentation; al. Vorslellung).
Vocábulo de origem medieval para indicar a imagem (v.) ou a ideia ([v.] no 2." sentido),
ou ambas as coisas. O uso do termo foi sugerido aos escolásticos pelo conceito de
conhecimento como "semelhança" do objeto. "Representar algo, dizia S. Tomás,

123
significa conter a semelhança da coisa" (De Veríi., q.. 7, a.5). (ABBAGNANO 1970,
pg. 820).
15-“O substantivo Vorstellung não é termo de uso culto e vernacular, nem pertence
ao jargão especializado da filosofia ou da psicologia. Trata-se de termo de uso
coloquial, para designar a palavra "idéia" ou "concepção" (no sentido de "idéia
visualizada"/ "imagem")”. (HANNS 1996, pg. 386).
16-Algumas interessantes inquirições de Charles Sander´s Peirce sobre realidade
podem ser encontradas no The Collected Papers of Charles S: CP, 4.28; CP, 5.65;
CP, 5.310 a 5.317; CP, 8.12
17-Um dos aprendizes, sobre fotografia, mais famosos de Keller foi Marc Ferrez
(1843-1923) que possivelmente foi igualmente incumbido de ensinar ao jovem Walter
Hunnewell (1844-1921), integrante da expedição de Jean Louis Rodolph Agassiz
(1807-1873), a técnica de fotografar.
18-“A longa história de uso da tartaruga permite identificar pelo menos quatro fases.
Na primeira fase (1700-1860), estima-se que foram colhidos 12-48 milhões de ovos
por ano para a produção de óleo. Na segunda fase (1870-1897), a produção caiu para
1-5 milhões de ovos por ano”. (REBELO 2000, pg. 01)
19-Tartaruga do mar
20-Espécie com carapaça e pele negras e possui manchas amarelas na cabeça
21-Tartaruga, fêmea e jovem que ainda não pôs ovos.
22-Espécie de casco relativamente fino e a cabeça com pequenas manchas
vermelhas e amarelas.
23-Espécie de casco alto e patas cilíndricas.
24-Explorador/naturalista inglês. Viajou pelo norte brasileiro entre 1848 e 1859
25-Palavra alemã para designar o termo Inconsciente (do latim inconscius) concebida
por Friedrich Wilhelm Joseph Schelling (1775-1854) na obra System des
transzendentalen Idealismus (1800)

124
Referências

BATES, H. W. The Naturalist on the River Amazons: A Record of Adventures, Habits


of Animals, Sketches of Brazilian and Indian Life, and Aspects of Nature Under the
Equator, during eleven years of travel. Londres: John Murray, 1863.
KELLER, Franz. The Amazon and Madeira Rivers: Sketches and Descriptions from
the Note-Book of an Explorer. London: Chapman and Hall, 193, Piccadilly, 1875.

125
MEMÓRIA E DIREITOS EM CIDADES MINERADORAS

Regina Helena Alves da Silva (UFMG)

Os territórios das cidades mineradoras, podem ser abordados como sistemas


complexos, abertos e dinâmicos. Para isso, eles possuem componentes ambientais,
econômicos, sociais, político-institucionais e culturais estreitamente entrelaçados e
interatuantes, que interagem influenciando uns aos outros, direta ou indiretamente,
em maior ou menor grau, em outros e no sistema como um todo. A partir disso, os
territórios se concebem como construções histórico-culturais com identidade e tecido
social próprios, que resultam de interações entre pessoas e elementos da natureza.
“O território é o chão e mais a população, isto é, uma identidade, o fato e o sentimento
de pertencer àquilo que nos pertence" (SANTOS, 2004, p. 96-97).

Nesta perspectiva, seguindo o que conceitua Milton Santos, falar de território é ter em
mente um "território usado, utilizado por uma população" (Ibidem). Seu
desenvolvimento pode ter distintos graus de sustentabilidade ambiental, econômica,
social, político-institucional e cultural. A conjunção desses fatores internos e as
condições exógenas podem contribuir para essa sustentabilidade e para um
desenvolvimento territorial equilibrado e integral. Para entender o território
precisamos antes entender os fluxos, e para entender os fluxos, precisamos
compreender as redes - as relações entre os objetos que compõem a multiplicidade
do município. A Cartografia Social que temos em mãos consiste numa proposta
conceitual e metodológica que se propõe a construir um conhecimento integral de um
território, utilizando-se de diferentes instrumentos técnicos e vivenciais. Trata-se de
um instrumento que privilegia a construção de um conhecimento simbólico e cultural
da população do território que pode expressar seus diversos anseios e desejos, além
das diferentes percepções sobre assuntos que se mostram relevantes para a
construção social do território. A ideia e a prática desse tipo de cartografia social
compreendem o estudo de como um determinado lugar se organiza tanto espacial
quanto temporalmente.Trata-se, assim, de pensar a geografia pela história e a história
pela geografia dos territórios em formação. Tal relação entre as ciências do espaço e
do tempo é atravessada por uma série de interfaces e de controvérsias sociais entre
diferentes atores humanos (indivíduos, famílias, instituições) e não humanos
(elementos da fauna, da flora e do espaço “natural”) (LATOUR, 2012). Ainda que as
políticas públicas sejam focadas em territórios-zona, nos quais é possível
territorializar programas institucionais e recursos do Estado, os espaços vivenciais e
relacionais devem ser vistos como territórios-rede, espaços gerados por interações
humanas com significado e que são recorrentes ao longo do tempo.

126
Uma questão fundamental para uma cartografia de um território é sua
multiescalaridade: a) os territórios-zona podem ser locais, municipais ou estaduais e
também podem ser associados a bacias ou sub-bacias hidrográficas, regiões de
planejamento, unidades político-administrativas, ou regiões transfronteiriças e/ou
grupos de países (como nas proposições que criaram os ODM e os ODS) b) os
territórios-rede têm alcances sociais e espaciais muito variados, desde redes
territoriais muito localizadas, baseadas em relações presenciais, e/ou com outras
coberturas, como as possibilidades de existir a partir das tecnologias da informação
e da comunicação (por exemplo, vimos em todo o mundo várias dessas redes
atuarem durante a pandemia como forma de minimizar o impacto do isolamento).

Um desenvolvimento territorial sustentável, com base em uma governança inteligente,


abarca as diversas faces entrelaçadas da vida no território: 1) precisa ser participativo,
porque é necessário um envolvimento ativo da comunidade com capacidade
propositiva e decisória, de atores sociais privados e institucionais, e 2) também
necessita de redes formais e informais que atuem no município. Nossa análise do
território de Paracatu se baseia na Teoria Ator-Rede (ANT), uma teoria social que
examina o relacionamento, as motivações e as ações entre os atores de uma rede.
Esses atores podem ser entidades humanas ou não-humanas, incluindo tecnologias,
elementos da natureza, minério, rios etc., que desempenham papéis que fazem
diferença ou atuam na rede. A ANT se preocupa em mapear as ações e papéis desses
atores em uma rede (Idem).

É importante ressaltar, contudo, que as conexões são sempre próprias de cada


contexto, sendo necessária uma análise única para cada território que se vá
investigar. Uma rede é construída para atingir um objetivo e, por meio de um processo
de tradução, produz o alinhamento dos atores a partir do construtor da rede. Durante
a tradução, os atores focais enquadram um problema, analisam as soluções possíveis
e definem uma delas como o ponto de passagem obrigatório de todos os outros
atores. Em seguida, os atores focais iniciam um processo de negociação com os
demais atores a fim de manter os interesses alinhados, definem seus papéis e
assumem o lugar de representantes da rede, mobilizando os atores para a ação. Os
atores focais mobilizam, negociam e persuadem outros atores a agirem para atingir
um objetivo específico.

Essas ações podem determinar o sucesso ou o fracasso de uma rede. Quando os


resultados da rede se tornam irreversíveis e tidos como certos, surgem o que Latour
denomina de “caixas-pretas”. A proposta da ANT é estudar a construção daquilo que
normalmente é tido como certo (Idem) - “caixas-pretas” -, o que aparentemente está
consolidado e é muitas vezes o ponto de partida para estudos e diagnósticos.

127
Como a História é dinâmica, novas controvérsias podem surgir dessas caixas-pretas,
questionando determinações já tidas como certas. São situações em que os atores
discordam e, para fechá-las, deve surgir um consenso entre eles. A noção de
sustentabilidade é um desses tensionadores da “caixa-preta” da economia extrativa
no mundo.

Ela lança diferentes desafios: é possível uma economia extrativa que leve em
consideração a preservação ambiental? É possível um desenvolvimento territorial
sustentável em regiões de mineração como Minas Gerais? Qual tipo de
sustentabilidade é fundamental para a economia? Qual o papel dos atores para o
desenvolvimento sustentável? Para Latour, as “polêmicas são os fenômenos mais
dinâmicos da vida coletiva” e “precisam ser exploradas no tempo” (Idem). As
controvérsias instaladas em disputas revelam incertezas e convocam à cena pública
novas linhas de pesquisa e proposições para o futuro.

Elas também podem colocar em evidência os eventuais processos de tensão


enfrentados pelas caixas pretas. Nossa escolha metodológica, neste trabalho, optou
por uma Cartografia Social das Controvérsias, que é um conjunto de técnicas
desenvolvidas a partir da ANT, para mapeamento e representação das
complexidades dos debates sociais e das disputas públicas. Um exercício necessário
para a observação da vida social que permite a construção de cenários da vida social.
Um conjunto de técnicas introduzido como forma de produzir análises que levem em
consideração os atores humanos e não-humanos que estabelecem diversos tipos de
interação entre si e nos possibilita traçar um território. Uma controvérsia pode ser
definida da seguinte forma: são momentos de disputa nos quais podemos observar a
formação do social, quando “as coisas” não estão ainda estabilizadas. São ocasiões
de conflito, negociação e debates, nas quais os atores discordam entre si, ou mais
ainda, quando compreendem que estão em desacordo.

Neste trabalho, a Cartografia visa mapear a percepção social, econômica, política,


ambiental e cultural das comunidades de duas cidades minerárias - Brumadinho e
Paracatu, sobre a vida nesse lugar, bem como compreender os entendimentos e
perspectivas da população local em relação ao processo de desenvolvimento. Para
tanto, busca-se apreender o imaginário que se tem das atividades econômicas
desenvolvidas no município e as dinâmicas territoriais e sociais decorrentes.

128
Uma cartografia parte de perguntas gerais, desafios a serem respondidos. Com
relação ao município de Paracatu, algumas questões se impõem: a) quais os desafios
típicos de um desenvolvimento territorial sustentável? b) como potencializar, em
diversas escalas, as sinergias do município levando em consideração seus elementos
de diversidade? c) quais programas e projetos são importantes e viáveis para
valorizar e reconhecer, econômica e socialmente, as potencialidades de diversos
tipos do território? d) o que é necessário e possível de ser feito para que se
estabeleça, efetivamente e de maneira generalizada, uma relação dialógica entre o
conhecimento técnico-científico e o conhecimento tecnológico local para que se possa
promover processos de inovação com sustentabilidade, apropriados ao território? e)
de que modo os conflitos e tensões socioterritoriais surgem, estabilizam-se e
renascem ao longo do tempo e manifestam-se atualmente? Quais os grupos e
antigrupos envolvidos no sistema?

Tais temas e questionamentos envolvem o objeto de estudo aqui especificado e


guiam o olhar para as problemáticas de pesquisa: o desenvolvimento sustentável de
Paracatu, sua diversificação econômica e o futuro do município após o término da
mineração. Tendo tais questões como pano de fundo, procura-se identificar as
diferentes perspectivas dos atores sobre a vida no passado, presente e futuro, em
relação ao agronegócio, à mineração e seus riscos, à aposta em outras
potencialidades, à vida cultural e social dos múltiplos territórios e à percepção de tais
processos.

Referências Bibliográficas

LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à teoria do Ator-Rede.


Salvador.Edufba,2012; Bauru, São Paulo:Edusc, 2012.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência


universal. 11ed. Rio de Janeiro: Record, 2004.

129
POR QUE UMA IMAGEM SEMPRE FALTARÁ?
MEMÓRIA E CONTRA-HISTÓRIA EM RITHY PANH

Roberta Veiga (UFMG)48

Após um acontecimento traumático, o cinema não pode reparar o dano social


e histórico, mas pode conceder uma possibilidade de enfrentamento do passado. Por
meio da partilha de imagens que rememoram a experiência da dor, na experiência da
espectatorialidade, tal sofrimento é redistribuído coletivamente. Um vínculo, um
comum, é criado e, com ele, uma brecha para elaboração, para o caminho do luto
coletivo, se abre. Porém, é preciso que no processo de criação cinematográfica (da
concepção à montagem) a memória encontre formas de se manifestar e de existir
tanto em meio aos achados materiais e imateriais do passado - os arquivos físicos e
as lembranças – como frente a falta deles49.
Sabemos com Marcel Proust e Walter Benjamin que a memória opera
dialeticamente: ao lembramos nos damos conta que esquecemos (no processo de
rememorar se faz sentir a ausência, constituinte da memória), ao mesmo tempo, para
lembrar é preciso esquecer. Não por acaso, Jean-Marie Gagnebin escreve “que as
formas de lembrar e de esquecer, como as de narrar, são os meios fundamentais da
construção d50a identidade, pessoal, coletiva ou ficcional” (2014, p. 218, grifo nosso).
É em meio ao esquecimento – essa forma exposta da falta - que outras imagens são
imaterialmente criadas no sentido de preencher a lacuna mnemônica e de produzir
imaginário. Nesse sentido, quando concebemos o cinema como um dispositivo
potente entre as políticas da memória – no sentido de dar voz e visibilidade aqueles
que sofreram violência histórica - é preciso esclarecer melhor uma dinâmica positiva

48
Roberta Veiga – Professora Dra. do Dep. Comunicação e do PPGCOM (UFMG); editora da Devires – Cinema
e Humanidades; coordenadora do Poéticas Femininas, Políticas Feminista (UFMG-Cnpq). Introduziu e leciona
Cinema e Feminismo (graduação) e Estéticas Feministas (pós); traduziu o livro Nothing Happens: Chantal
Akerman’s Hyperrealist Everyday, de I. Margulies, escreve artigos sobre “cinema: memória, escritas de si,
feminismo”, e capítulos (Feminismo e Plural: mulheres no cinema brasileiro e Mulheres de Cinema).
49
50
“Benjamin exige, primeiro, a humildade de uma arqueologia material: o historiador deve se tornar trapeiro (...)
da memória das coisas. Simetricamente, Benjamin exige a audácia de uma arqueologia psíquica: pois é com o
ritmo dos sonhos, dos sintomas ou dos fantasmas, e com o ritmo dos recalcamentos e do retorno do recalcado, das
latências e das crises, que o trabalho da memória se afina, antes de tudo” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 117).

130
própria ao esquecimento como condição de ser da memória e outra negativa pois
imposta pelo fora.
Consciente da falta fundamental que constitui a memória, o cineasta que faz
de seu cinema dispositivo de rememoração precisa lidar também com a natureza “isso
foi” (passada) do acontecimento violento (do crime contra a humanidade) que quer
reconstruir. Após fracassar na busca por uma imagem concreta de crianças
trabalhando forçadamente nos campos liderados pelo Partido Comunista da
Kampuchea (CPK), entre 1975 e 1979, no Camboja, Rithy Panh retorna a esses
campos, onde, nos anos 70, viveu parte de sua infância e adolescência, submetido à
repressão do regime comunista. Uma vez na aldeia, Panh não é capaz de conectar
sua lembrança de um espaço povoada de terror ao território que seus pés tocam 40
anos depois. Diante dessa dupla falta de imagens – a foto das crianças e a que guarda
dos campos - como manter seu projeto de filme, como filmar o evento passado e
rememorar o trauma? Filmar os campos que não mais correspondem à força de seus
piores afetos? Buscar outros arquivos?
Para Panh, a saída será a invenção pelo cinema. Se o espaço é só ausência,
não há como encenar a terrível vivência dos cambojanos, é preciso criar imagens a
partir do jogo da memória entre lembrança e imaginação. O cineasta vai reconstruir o
território perdido de parte de sua vida, onde sua família foi morta, povoá-lo de
bonequinhos feitos de argila, e dispô-los para a câmera. Se, do ponto de vista dos
arquivos, a imagem que Panh perseguia também não está lá, mais uma vez a falta
que o impulsiona a buscar outras imagens. Não é nenhuma surpresa que em meio a
rolos e rolos de película (como os que vemos na abertura do filme) só haja imagens
produzidas pelos ditadores do CPK, e que os arquivos sejam aqueles feitos para
maquiar o sofrimento dos cambojanos submetidos a várias formas de tortura, exibindo
o trabalho forçado como um esforço engajado para uma sociedade igualitária. Resta
novamente ao cineasta a invenção pelo dispositivo cinematográfico, o uso dos
arquivos a contrapelo, ou seja, para desconstruir a história dos dominantes (os líderes
do movimento comunista ditatorial do Camboja) era preciso montar as imagens com
outras cenas e textos que as interpelassem em sua contradição, em seu engodo, em
sua farsa.
Além dessa dupla falta imagética que move o filme, vimos que a imagem “real”
de um trauma coletivo vivido na infância sempre faltará, não só aquela que é a origem
de tudo – a cena primitiva irrecuperável -, mas qualquer imagem que se arrogue capaz

131
de representar o absurdo dos fatos vividos no massacre da ditadura comunista no
Camboja. Como diz Robert Antelm sobre a desproporção entre a realidade no campo
de concentração nazista e a realidade das formas de comunicação: “parecia-nos
impossível preencher a distância que descobrimos entre a linguagem de que
dispúnhamos e essa experiência que, em sua maior parte, nos ocupávamos ainda em
perceber nos nossos corpos” (1957, p 9). Todavia, outras imagens involuntárias ou
inconscientes - convocadas e desencadeadas pelo processo cinematográfico de
narrar, montar e colocar em cena - vêm atender ao chamado político de Panh de
reencontrar os seus pais, irmãos e companheiros mortos, e salvá-los do apagamento
completo. Tais imagens só podem surgir quando a falta potencializa a imaginação. “A
imaginação é chamada como arma que deve vir em auxílio do simbólico para
enfrentar o buraco negro do real do trauma. O trauma encontra na imaginação um
meio para sua narração” (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 70), tamanha a irrealidade e,
portanto, o coeficiente de incomunicabilidade do vivido.
Nessa perspectiva, a hipótese aqui lançada é a de que imagens outras surgem
na medida em que a ativação da memória e a reencenação das lembranças
aconteçam através de um dispositivo cinematográfico que também parta da falta. Isto
é, um cinema que se reconhece incompleto, portanto, que seja humilde para se deixar
levar tanto pelos vestígios e como pelas ruínas da memória material e imaterial. Se
por um lado a falta é a ausência da ou na imagem, por outro, como dissemos, ela é
produtiva, pois pode fazer do filme devir memória.
A imagem que falta (2013) foi feito após a trilogia do massacre, os filmes:
Bophana, uma tragédia cambojana (1996), S21, A máquina de morte do Khmer
Vermelho (2003), Duch, o mestre das forjas do inferno (2011). Todos eles abordam a
experiência do totalitarismo no Camboja, da tortura e do genocídio promovido pelo
governo de Pol Pot, o líder máximo do Khmer Vermelho [nome dado aos seguidores
do Partido Comunista da Kampuchea (CPK) ou do Angkar, a organização], que tomou
o poder naquele país do ano de 1975 até 1979. Trata-se de uma das histórias mais
terríveis de ditadura violenta. Nessa época, estima-se que 1,7 milhões de pessoas
foram mortas (25% da população cambojana) e que milhares foram torturadas.
Em Bophana, uma tragédia cambojana, Rithy Panh investiga uma jovem
torturada e executada por ter enviado cartas de amor a seu noivo que aderiu aos
khmers vermelhos. Durante a filmagem de Bophana acontece o encontro entre um
sobrevivente do massacre cambojano, o pintor Vann Nath, e um de seus antigos

132
torturadores, Him Houy, e é esse confronto que se tornará o projeto do próximo filme:
S21, codinome do centro de detenção de Tuol Sleng onde 14 mil pessoas foram
interrogadas, torturadas e executadas. Através de Nath, Panh solicita aos carrascos
da época que reencenem suas ações contra os prisioneiros e falem de seus motivos
incitados por documentos e fotografias. Em Duch, o mestre das forjas do inferno, o
cineasta busca entender - através de um documentário também feito de entrevistas
incitadas por arquivos da época, dessa vez conduzidas por ele mesmo - o que levou
um “homem culto” como Duch se tornar um dos líderes do Khmer Vermelho e chefe
do centro de tortura S21.
A imagem que falta assim como os outros filmes da trilogia também remonta
história coletiva do regime ditatorial comunista no Camboja, porém é o primeiro que o
faz com um acento claramente autobiográfico, um exercício mnemônico através do
qual o cineasta se coloca em obra. Panh conta que durante a realização de Duch
encontrou a confissão do cinegrafista do regime, Ang Sarun, de que ele teria filmado
as crianças cambojanas de modo a denunciar a tortura (até então escamoteada nas
filmagens) constante nos campos de trabalho, e que o desejo por essas imagens o
moveu em direção ao próximo filme. Ele imaginava que alguns desses filmes velados
tivessem sido guardados como prova da traição do cinegrafista, e foi em busca de
uma imagem concreta que, ao final, constituiria a falta que o levaria se voltar para a
própria infância. Porém, ele deflagra a ausência da imagem do massacre cambojano,
e coloca o cinema como um processo, uma busca por outra, aquela que irá “fabricar”,
a que o cinema “permite”.
Para que dessa falta surja algo é preciso recontar a história e ao mesmo tempo
criar o mecanismo que a faça existir – daí a possibilidade de que vidas apagadas
ressurjam e se possa dar voz as vítimas, e por aí elaborar um trauma vivido
coletivamente. Perscrutamos, pois, dois aspectos metodológicos nos quais a falta (e
sua multiplicação) se insinua nos procedimentos fílmicos de abordagem do passado
e se faz sentir no filme, provocando uma escrita a contrapelo: 1) pelos arquivos: se
durante a ditadura do Khmer Vermelho não se filmou as doenças, as torturas, as
mortes, será preciso interpelar os filmes de propaganda do governo de forma que
essa falta se faça sentir e que o embuste do registro seja denunciado; 2) pelas
miniaturas: os bonequinhos de argila que Panh usa como personagens de sua história
ao preencher as ausências do povo cambojano acenam para falta em suas diversas
formas, entre elas a da infância.

133
Referências

AGAMBEN, G. Infância e história. Destruição da experiência e origem da


história. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.
ANTELME, R. L’espèce humaine. Paris: Gallimard, 1957.
BAZIN, André. O cinema: ensaios. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991.
BENJAMIN, W. Obras escolhidas vol.I: Magia e técnica, arte e política. São Paulo:
Brasiliense, 1994.
BOHLEBER, Werner. Recordação, trauma e memória coletiva: a luta pela recordação
em psicanálise. Revista Brasileira de Psicanálise, Vol. 41, n. 1, 2007.
BUCK-MOR SS, S. Dialética do olhar: Walter Benjamin e o projeto das
Passagens. Trad. Ana Luiza de Andrade. Belo Horizonte: Editora UFMG; Chapecó:
Editora Universitária Argos, 2002.
COMOLLI, Jean-Louis. A última dança: como ser espectador de Memory of the
camps? IN: Revista Devires – Cinema e Humanidades. UFMG-FAFICH, v.3, n.1,
2006.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das
imagens. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2015.
ENDO, Paulo. Pensamento como margem, lacuna e falta: memória, trauma, luto
e esquecimento. Revista USP: São Paulo, n. 98, junho/julho/agosto, 2013.
KEHL, Maria Rita. Tortura e sintoma social. IN: TALES, E. e SAFATLE, V. (org.) O
que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010.
MAIA, Carla e FLORES, Luís Felipe (org). O cinema de Rithy Panh. São Paulo; Rio
de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil; Ministério da Cultura, 2013.
SILEGMANN-SILVA, Márcio. Narrar o trauma. A questão dos testemunhos de
catástrofes históricas. Revista Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, vol.20, n.1, 2008.
VEIGA, Roberta. Já visto jamais visto: devir memória ou a potência histórica na escrita
de si. DEVIRES – cinema e humanidades, Universidade Federal de Minas Gerais.
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich) – v.14 n.2 (2017)

134
O ONTEM SEM FIM: HISTÓRIA
E NOSTALGIA NA SÉRIE DE TV - COISA MAIS LINDA

Silvana Seabra (POSCOM – PUCMINAS)51

RESUMO

Este trabalho é uma pesquisa, ainda inconclusa, sobre nostalgia na série “Coisa
mais Linda”. Tomando como partida a ênfase das sociedades atuais nos assuntos
da memória, essa proposta pretende discutir brevemente o conceito de nostalgia e
apresentá-lo como hipótese para interpretar a série em tela. A nostalgia tem sido
considerada um tipo de memória, que têm cada vez mais atraído os pesquisadores
sem, contudo, fixar sem entendimento. No caso da série, que se situa nos anos de
“50”, os aspectos nostágicos se mesclam às questões sobre a modernização
brasileira, produzindo um quadro social da época que provavelmente responde mais
aos tempos atuais do que a aspectos de tom realista.

PALAVRAS-CHAVE

memória, nostalgia, séries televisivas, globalização, série “Coisa mais Linda”

Nas últimas décadas, os estudos sobre memória se desenvolveram como um


campo interdisciplinar. Os debates identificam processos de memórias coletivas, que
se enredam nas formas culturais, políticas, e históricas, e no sentido mais amplo, são
sempre "mediadas". Como objeto e tema de pesquisa, uma revisão bibliográfica
mostra a temática associada a duas questões básicas: à formação das memórias
coletivas nacionais e, após a Segunda Grande Guerra a discussão sobre traumas
coletivos advindos de guerras, perseguições e genocídios. Nas últimas décadas, já no
século XXI, uma nova frente começou a se formar, agora associada às novas
configurações resultantes das Novas Tecnologias da Informação. De fato, a mídia teve
um papel fundamental tanto no primeiro como no segundo contexto histórico, mas os
estudos do campo comunicacional ainda tratam a memória como assunto periférico,
quando comparados a outros temas mais clássicos. No entanto, com a rápida

51
Professora do Programa em Pós-graduação em Comunicação Social da PUCMinas.
Pesquisadora do tema da memória e materialidade, especialmente na mídia. Participa
do Grupo de Pesquisa (DGP-CNPq) Mídia & Memória, com várias publicações na
área.

135
ascensão das novas formas de comunicação, o tema tem se colocado de forma
crescente.

Nesse contexto, a televisão ocupa um papel muito importante, não apenas por
sua capacidade de imaginar, evocar, citar, mostrar ou repetir aspectos do passado,
inclusive os seus, mas também porque é simultaneamente um meio de esquecer. Não
há memória total. A TV também pratica o jogo da memória, onde o esquecimento faz
o par com a lembrança. No entanto, a televisão pode renovar imagens passadas
"reais", se forem arquivadas, e inventar um passado imaginado através da estética e
das narrativas de uma série. O armazenamento de mídia o salva e, portanto, torna-o
repetível e memorizável hoje em dia. A televisão, nesse sentido, é uma máquina do
tempo complexa que oscila entre um presente efêmero, um futuro desconhecido e um
curioso passado (NIEMEYER, 2011).

Nas últimas décadas a TV, que se imaginava teria sua audiência espoliada pelas
plataformas sociais, se renovou dramaticamente. Não apenas soube se conectar com
as Novas Mídias Sociais, como também se alterou profundamente em relação à sua
própria forma de fazer TV. Ao longo desse período as séries de TV têm alcançado um
sucesso sem precedentes, tanto em termos de audiência como de crítica.

A “sofisticação das formas narrativas, o contexto tecnológico e o consumo


desses programas conformaram um cenário que pode ser chamado de cultura das
séries” (SILVA, 2018, p. 5). As razões do sucesso se projetam desde a inauguração
da TV a cabo, passando pelos recursos tecnológicos, e incluem as novas formas da
estrutura narrativa, que foram introduzidas a partir dos anos 90- TV complexa
(MITTELL, 2015) i .

Muitos autores vincularam a nostalgia a um passado irrealista, na medida em


promoveriam seu retrato exclusivamente com sentimentos positivos. Mas a televisão
em geral e as séries de televisão em particular têm uma relação mais complexa com
a nostalgia. Uma série nostálgica é muitas vezes o objeto do desejo de seu público.
Ao mesmo tempo, a nostalgia parece ser um dos assuntos preferidos das séries de
televisão por envolverem os públicos em variados níveis. Tanto num caso, como no
outro, as séries, devido principalmente às suas características estruturais e temporais,
é particularmente adequada para fazer surgir múltiplas dimensões da nostalgia.
Uma das principais mudanças nas séries televisivas, que nos permite avaliá-
las como uma TV complexa é o abandono do fechamento episódico e a adoção de
uma narração em série. (MITTELL, 2012, p. 31). Essa formatação também é propícia
às narrativas históricas. Não à toa, esse é um dos mais candentes debates na
historiografia, que objetiva analisar a especificidade de como se entrelaçam os modos
de pensar a história e a forma de escrevê-la. Além disso, a nostalgia parece ser um
conceito que se encaixa sem restrições as características estruturais da serialidade
televisual. Como pressuposto a série sempre evoca um sentimento de nostalgia,
porque eles são baseados no imperativo de sempre deixar um vazio. Além disso, a
permeabilidade e complexidade narrativa (MITTELL, 2012) parece coincidir também
com o aumento das preocupações com questões da esfera pública, sejam essas
ligadas a males sociais ou as que tematizam a vida política, e que podem ser
históricas. Segundo os Estudos Comunicacionais e os Estudos Culturais (MITTELL,
2015), as novas formas de contar histórias serializadas, ligam-se, portanto, a um maior
interesse pelos assuntos políticos, constituindo-se numa espécie de “virada” da TV” ii.

136
Aqui também a questão da história, com nuances nostálgicas, podem apontar para
algo mais do que uma simples estratégia da indústria cultural. Assim, seja pelas
lacunas que não podem ser preenchidas, ou pela sua estrutura serial narrativa, a
nostalgia pode ser entendida não apenas a preservação do passado, mas pode ser
dirigida também para o futuro ou mesmo para o presente (BOYM, 2001) instável.
O sujeito nostálgico se volta para o passado para encontrar / construir fontes
de identidade, agência ou comunidade, que são sentidas como ausentes, bloqueadas,
subvertidas ou ameaçadas no presente. A nostalgia, tal como a entendemos aqui, se
situa dentro dos estudos sobre memória e identidade social. Lembrando de Huyssen,
que afirma que o “boom da memória” nos alerta para efemeridade do moderno, a
nostalgia também se localiza nesse espaço, sendo ao mesmo tempo, efeito colateral
da modernidade quanto uma causa potencial de hostilidade ao esquecimento.
Apesar dessa inegável importância, os estudos sobre as séries televisivas, no
geral, e aquelas de cunho nostálgico em particular, não correspondem na mesma
dinamicidade. Seja em função da rapidez com que o sucesso dos seriados se fez, ou
talvez por serem esses programas, muitas vezes, considerados produtos triviais e
ideológicos da cultura de massa moderna, o fato é que os estudos acadêmicos ainda
se ressentem de um certo aprofundamento nessas pesquisas.
A maioria das pesquisas sobre o tema da nostalgia, no âmbito das questões
afetas aos processos sociais de memória ainda são tímidos. No tocante aos estudos
comunicacionais também não são escassos. O debate sobre a nostalgia surge nas
Ciências Sociais, ainda na década de 70 do século passado, com o clássico trabalho
de Davis (1979). Nessa pesquisa, o sociólogo analisou as rupturas sociais dos anos
1960 na sociedade americana, principalmente com relação aos rápidos desafios às
crenças sobre aquilo que se considerava ‘natural’ (raça, gênero, sexualidades e estilos
de vida). Davis argumentou que as reações nostálgicas se deviam às percepções que
consideravam certas mudanças como ameaças à continuidade da identidade. Mais
recentemente o trabalho de Boym (2001) tem sido considerado também uma obra de
referência. Na história das ideias, Stauth & Turner (1988) produziram artigos em
relação ao pensamento intelectual na sua conotação nostálgica, como resposta às
configurações sociais do que chamamos de Alta-modernidade ou pós modernidade.
E na área dos Estudos Comunicacionais, mais recentemente surgiram trabalhos que
tentam compreender o fenômeno nostálgico na sua relação específica com as novas
mídias.
Tentando compreender a nostalgia em tempo contemporâneos, a proposta
desse trabalho é estudar o tema da nostalgia como uma prática de memória singular,
que deve ser estudada no âmbito dos fenômenos globais da cultura. Esse processo
será pesquisado através da série de TV brasileira Coisa mais Linda (2019). A pesquisa
contemplará uma análise quantitativa e qualitativa sobre a recepção da série, com o
objetivo de verificar a presença e a dinâmica de regimes de temporalidade (HARTOG,
2014), que geram, por sua vez um sentimento de nostalgia. Contudo, nesse trabalho
apresentaremos apenas uma breve introdução ao debate sobre o conceito de
nostalgia, tentando mostrar sua pertinência à cultura atual, bem como associá-lo como
mote elucidador para a série “Coisa mais Linda”.

_______________________________________
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

137
BOYM, Svetlana. The Future of Nostalgia. New York: Basic Books. 2001
BURKE, Peter. A escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: Editora
UNESP. 1992
COOK, Pam. Screening the Past: Memory and Nostalgia. London and New York:
Routledge, 2005
DAVIS, Fred. Yearning for Yesterday: A Sociology of Nostalgia. New York: Free
Press, 1997.
DIJCK, José van. Mediated Memories in the Digital Age Cultural memory in the
presente. Stanford: Stanford University Press, 2007.
HARTOG, François. Regimes de Historicidade: Presentismo e experiências do
tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela Memória. Arquitetura, monumento, mídia. Rio
de Janeiro: Aeroplano. Editora. 2000.
MITTEL, Jason. Complexidade narrativa na televisão americana contemporânea.
Revista Matrizes, nº2. 2012. Disponível em:
http://www.journals.usp.br/matrizes/article/viewFile/38326/41181
MITTELL, Jason, Complex TV: The Poetics of Contemporary Television Storytelling.
New York: New York University Press, 2015.
NIEMEYER, K. Media and Nostalgia: Yearning for the Past, Present and Future.
London: Palgrave Macmillan, 2014.
SILVA, Marcel Vieira Barreto. Cultura das séries: forma, contexto e consumo de
ficção seriada na contemporaneidade. Revista Galáxia (São Paulo, Online), n. 27.
2014. Disponível em:
https://revistas.pucsp.br/index.php/galaxia/article/viewFile/15810/14556. Acessado
em 03/05/ 2021.
STAUTH, Georg, TURNER, Brian S. Nostalgia, Postmodernism, and the Critique of
Mass Culture, Theory, Culture & Society 5(2–3): 509–26, Television, Memory and
Nostalgia, 1998

I “TV de qualidade” não é um termo consensual (Mitell, 2015). Seu uso tornou-se associado à TV a
cabo ou por assinatura, quando da publicidade da HBO, em 1996, com seu logo “Não é TV. É HBO” –
It’s Not TV. It’s HBO. (Akass; Mccabe, 2018).
II O termo “virada” (turn) tem sido usado nas Ciências Humanas para designar ênfases em
determinados assuntos, como, orginalmente, a “virada linguística”.

138
IMAGENS E TEXTOS, CORPOS E PROPAGANDAS NAS REVISTAS ILUSTRADAS EU SEI
TUDO (BRASIL) E NA JE SAIS TOUT (FRANÇA)

Suzana Barreto de Oliveira (IH-UFRJ)52

Lucas Lourenço Rodrigues (IH-UFRJ)53

RESUMO

A revista Eu Sei Tudo começou a circular no Brasil em 1917, encerrando-se em 1958. Estava
integrada à realidade urbana do Rio de Janeiro e era composta de artigos, contos, romances,
ilustrações e propagandas. Sua inspiração talvez tenha sido a revista francesa Je Sais Tout,
criada em Paris e que circulou entre 1905 e 1939. Este trabalho procura discutir o papel da
revista na propagação de determinados padrões de comportamento para a sociedade
brasileira na Primeira República, com ênfase na circulação de ideias, suporte de memória e
formação de opinião pública e sensibilidades sociais, já que iremos compará-la com a revista
de mesmo nome publicada na França. Analisaremos as características das revistas em
sintonia com às transformações da imprensa da época e o papel dos textos e imagens, não
somente de propaganda, mas também de outras ilustrações.

PALAVRAS-CHAVE
Eu Sei Tudo; Je Sais Tout; Revistas Ilustradas; Primeira República.

O PROJETO DE PESQUISA

Esta proposta é um dos resultados do projeto de pesquisa “História e Imagem em Eu


Sei Tudo (Brasil) e Je Sais Tout (França): Sobre circulação de ideias e cultura visual
em duas revistas ilustradas na primeira metade do século XX”, desenvolvida no grupo
de pesquisa do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico) - IMAM, Laboratório de Imagem, Memória, Arte e Metrópole do Instituto

52
Suzana Barreto de Oliveira é graduanda em licenciatura e bacharel em História pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro e bolsista de iniciação científica do CNPq (PIBIC) na pesquisa “História e imagem em Eu Sei Tudo
(Brasil) e Je Sais Tout (França): sobre circulação de ideias e cultura visual em duas revistas ilustradas na primeira
metade do século XX”, sob orientação da Profª. Drª. Andréa Casa Nova Maia. E-mail: suzanalisa@hotmail.com.

53
Lucas Lourenço Rodrigues é graduando em licenciatura e bacharel em História pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro e bolsista de iniciação científica da universidade (PIBIC) na mesma pesquisa e orientação. E-
mail: lucas200921@gmail.com

139
de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IH-UFRJ).

O projeto advém de um vasto percurso e inúmeros trabalhos acadêmicos acerca da


temática da história do uso das imagens nas revistas ilustradas brasileiras, a exemplo
do livro “O mundo do trabalho nas páginas das revistas ilustradas” (Ed. 7 Letras,
2015), trabalho que, sob apoio da FAPERJ (Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado do Rio de Janeiro), procurou pensar o mundo do trabalho nos magazines;

E artigos da pesquisa “Cidades Submersas – História das inundações em perspectiva


comparada (Rio de Janeiro, Buenos Aires, século XX)”, que procuraram pensar as
imagens e textos sobre as inundações no Rio de Janeiro em perspectiva comparada
com Buenos Aires nas revistas ilustradas, com destaque para a Caras y Caretas (BA)
e Fon-Fon, O Malho, Careta e Kosmos (RJ).

AS REVISTAS

A revista Eu Sei Tudo começou a circular no Brasil em 1917, encerrando-se em 1958.


Editada no Rio de Janeiro pela Companhia Americana, estava integrada à realidade
urbana da cidade e era uma revista mensal ilustrada composta de artigos científicos,
contos, romances, ilustrações e propagandas. Sua inspiração talvez tenha sido a
revista francesa Je Sais Tout, que circulou entre 1905 e 1939. Uma característica
marcante da revista brasileira era a grande quantidade de propagandas que
apresentava, com destaque para os reclames direcionados ao público feminino, como
produtos para o lar, além de artigos de moda e cuidados com os filhos também a este
público. Dessa forma, a revista Eu sei Tudo possuía muitos elementos de uma revista
feminina, buscando-se nas capas e nas fotografias de mulheres o ideário da mulher
moderna.

Enquanto a revista Je Sais Tout foi criada em 1905 por Pierre Lafitte circulando até
1939, embora tenha deixado de ser impressa entre Agosto e Dezembro de 1914 e
tenha saído posteriormente, em novo formato, publicada pela Editora Hachette entre
1969 e 1970. O periódico francês também apresentava-se enquanto enciclopédia
ilustrada. Je Sais Tout é um marco de uma transformação cultural e de marketing do

140
período, na medida em que foi repentinamente um sucesso popular e adotado na
França, logo replicado ao redor do mundo.

METODOLOGIA, BIBLIOGRAFIA E RECORTE TEMPORAL

A fim de trabalhar as revistas em uma leitura que articule seus elementos internos,
imagéticos e discursivos, a seus contextos materiais de produção, contamos com uma
base teórico metodológica heterogênea: no campo da análise dos discursos, das
noções de representação, e dos signos verbais e não-verbais presentes na revista,
utilizamos os trabalhos de Roland Barthes (1992) e Roger Chartier (1990); além disso,
baseados nos estudos de Georges Didi-Huberman (1994) e Walter Benjamin (1987),
utilizamos o método de leitura das imagens como montagem e remontagem do tempo
vivido; por fim, também evocamos os estudos acerca da imprensa e a circulação de
ideias em uma perspectiva transnacional, como trabalhados por Tânia de Luca (2005),
bem como a pesquisa sobre a revista francesa Je Sais Tout realizada por Daniel
Couégnas (2018).

Para este trabalho o recorte temporal será o período entre guerras, que se extende
do fim da Primeira Guerra Mundial até o início da Segunda Guerra Mundial, entre os
anos de 1918 a 1939. Este é o único momento de comum disponibilidade dos
exemplares digitalizados tanto da Eu Sei Tudo, quanto da Je Sais Tout e que facilita
a comparação entre as revistas. Todo o acervo destas revistas ilustradas encontra-se
digitalizado pelas hemerotecas digitais da Biblioteca Nacional no Brasil e pela Gallica
e RetroNews, biblioteca digital da BnF (Bibliothéque Nationale de France) e IRIS, a
biblioteca digital da Universidade de Lille. A ferramenta é um facilitador, pois, depois
de escolhidos os dois periódicos que serão analisados, basta realizar a pesquisa na
base de dados de ambos sítios acessíveis pela internet.

Referências

BARTHES, Roland. Elementos de Semiologia. São Paulo: Cultrix, 1992.

BENJAMIN, Walter. Rua de Mão Única. Obras Escolhidas vol.2. São Paulo: Brasiliense,
1987.

CHARTIER, R. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, 1990.

141
DE LUCA, Tania Regina. “A grande imprensa na primeira metade do século XX”. In:
MARTINS, Ana Luiza & LUCA, Tania Regina (orgs.). História da imprensa no Brasil. São
Paulo: Contexto, 2008.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Devant L’Image. Paris: Les Éditions de Minuit, 1994.

FEYEL, Gilles. La Presse en France des origines à 1914. Histoire politique et. matérielle. Paris,
1999, Éditions Ellipses.

GUIMARÃES, Valéria. Revistas francesas no Brasil, caminhos da modernidade: catálogos e


mediadores (Rio de Janeiro e São Paulo, séculos XIX e XX). Revista Territórios e Fronteiras,
Cuiabá, vol.9, n. 2, julho-dezembro, 2016.

MAIA, Andréa Casa Nova. "Eu sei tudo: cultura, ciência e história em uma revista ilustrada
na época de Vargas". In: FERREIRA, Jorge. (Org.). O Rio de Janeiro nos jornais:
ideologias, culturas políticas e conflitos sociais (1930-1945). Rio de Janeiro: 7 Letras, 2014.

OLIVEIRA, Cláudia de; VELLOSO, Monica Pimenta; LINS, Vera. O Moderno em revistas.
Representações do Rio de Janeiro de 1890 a 1930. Rio de Janeiro: Garamond, 2010.

142
DIREITOS HUMANOS E TERRITÓRIOS: GEOGRAFIAS PLURAIS EM OMÃ

Valnei Pereira (Golder)54

Resumo
A reflexão busca nexos entre direitos humanos e territórios à luz de estudos realizados
entre 2019 e 2020 no Oriente Médio, fronteiras de transformações socioculturais,
econômicas e políticas materializadas em espaços em mutação do novo urbano
industrial. Nestas paisagens, temas como gênero, migração internacional, mudanças
climáticas, ativismos sociopolíticos e processos de reassentamento humano
involuntário são atravessados por sistemas particulares do mundo árabe (kafala
System) vis a vis preconizações à princípios e guidelines multilaterais internacionais
em direitos humanos.

Palavras-chaves: direitos humanos, territórios, geografias culturais, Omã.

Omã: geografias de direitos humanos em contexto

Conheci o Oriente Médio em diferentes oportunidades, especialmente o Líbano e a


Turquia. Entre 2019 e 2020 uma experiência de trabalho me levou à Omã para uma
avaliação internacional focada em direitos humanos. Essa experiencia de alteridade
me fez analisar, em perspectivas multi e transescalares, geografias plurais da
diferença. Omã é um sultanato hereditário, no qual o Sultão possui o poder absoluto.
O Serviço Interno de Segurança – “Mukhabarat” – e o Escritório de Segurança Real
intervêm diretamente em todas as outras instituições.
Segundo o relatório “The state of democracy in Oman”, elaborado pelo The Omani
Centre for Human Rights (OCHR, 2019), Omã não é um país democrático, apesar do
estabelecimento do “quase-parlamentar” Conselho de Omã (OCHR, 2019).
A ausência de democracia afeta a garantia dos direitos humanos no país nos
seguintes aspectos:

54
Geógrafo (IGC/ UFMG), Mestre Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/ UFRJ) e Doutor pela FAU/
USP.

143
¡ A formação de partidos políticos e organizações, assim como a liberdade para
participar deles é considerada crime pelo Código Penal de Omã (art. 116). Não
existem organizações independentes de Direitos Humanos no país, exceto uma
organização governamental não parcial (não nomeada no OCHR, 2019);

¡ As críticas ao governo são vistas como danos ao prestígio do Estado e


perturbação da ordem pública,

¡ Não existe separação de poderes;

¡ Não existe liberdade de imprensa;

¡ Omã não assinou o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1976),
documento que confere legitimidade internacional aos direitos humanos e às
premissas democráticas, entre elas, o direito à autodeterminação; a liberdade de
associação e expressão; o direito de não ser submetido à prisões arbitrárias; à
tortura, entre outros (OCHR, 2019).

Segundo o OCHR, a situação dos direitos humanos em Omã se deteriorou ainda mais
desde 2011, depois do evento da “Primavera Árabe” no país, como resultado de
restrições impostas pelo governo em assuntos vinculados à liberdade de opinião,
expressão e associação (OCHR, 2019).
No entanto, existem grupos em posições e situações de maior vulnerabilidade no país.
Representando 44% da população nacional, o coletivo migrante em Omã tem os seus
direitos básicos ameaçados pela ausência de proteção legal específica – Omã não
ratificou as principais Convenções Internacionais de Direitos Humanos para a
população migrante –; pela vigência do sistema de patrocínio (Kafala) e a prática de
retenção de passaportes; assim como pela intensificação nos últimos anos do
processo de Omanização da força de trabalho.
Com respeito às mulheres, avanços foram realizados na garantia de direitos – direito
ao voto, ao estudo, ao trabalho, à propriedade privada, licença maternidade – mas
falta muito ainda para alcançar a equidade de gênero, com destaque para a baixa
participação laboral e política.
Com relação à liberdade de sindicalização dos trabalhadores e trabalhadoras,
avanços significativos foram realizados desde a entrada do país na Organização
Mundial do Comércio (OMC) em 2000, e com a posterior aprovação da Lei Trabalhista
em 2003. Ainda assim, a não ratificação de normas internacionais fundamentais e
144
específicas representa um risco à garantia e proteção ao direito de livre associação e
organização sindical.
Por outro lado, o meio ambiente vem sofrendo diversas alterações desde o início do
processo de industrialização na década de 1970. O complexo industrial e portuário de
Sohar é a maior unidade portuária do país e compreende em sua estrutura diversas
indústrias emissoras de gases poluentes que afetam a qualidade do ar local
repercutindo sobre a saúde dos habitantes do entorno. O rebaixamento do lençol
freático como consequência da atividade industrial no local; a contaminação e os
distúrbios marítimos também geram impactos diretos às comunidades e às práticas
tradicionais de agricultura e pesca.
O processo de industrialização também acarretou êxodo rural e adensamento das
cidades omanis, em especial no eixo Liwa-Sohar aumentando o risco de expulsão dos
agricultores e das práticas tradicionais, alterando o uso e ocupação do solo das áreas
localizadas próximas ao desenvolvimento industrial. Omã, pela sua formação múltipla
em termos étnicos, possui em seu território uma diversidade de comunidades
nômades. A não ratificação da Convenção 169 da Organização Internacional do
Trabalho, que trata do respeito e proteção das tradicionalidades dos povos originários,
representa um risco adicional à manutenção e ao bem-estar desses grupos.
A seguir, apontam-se com mais detalhe esses temas mais sensíveis para os direitos
humanos no país

1.1 MIGRAÇÃO INTERNACIONAL, RELAÇÕES DE TRABALHO E


ORGANIZAÇÃO SINDICAL

A história recente da migração em Omã está marcada por um intenso fluxo imigratório
associado à descoberta de poços de petróleo exploráveis em território nacional em
1964 e a sua subsequente produção em 1967, a partir da criação da Petroleum
Development (Oman) Ltd. (PDO).
Até os dias de hoje, a economia do país continua fortemente apoiada no trabalho
migrante. Em novembro de 2018, a população total de Omã era estimada em
4.655.366 habitantes, dos quais 2.047.690 (44%) eram migrantes estrangeiros. A
maioria dos trabalhadores e trabalhadoras migrantes provém do continente asiático,
principalmente de países como Índia, Bangladesh e Paquistão que, juntos,
representam 86% da força de trabalho migrante no país. O setor empresarial é o que

145
mais emprega mão de obra migrante: em 2018, 86% dos trabalhadores e
trabalhadoras migrantes foram empregados/as no setor, somando 90% dos homens
empregados e 17% das mulheres (DE BEL-AIR, 2018).
O segundo setor com maior empregabilidade de mão de obra migrante é o setor
doméstico. Desses trabalhadores, mais de 80% são mulheres (HRW, 2018).
Entretanto, a relevância da migração laboral no país não vem acompanhada de um
projeto nacional e políticas locais de proteção e garantia dos direitos humanos dessa
população. Ao contrário, o Estado tem contribuído à sua vulnerabilização a partir da
não ratificação de normas internacionais fundamentais à garantia dos direitos
migrantes55.
Apesar do país ratificar as principais convenções internacionais sobre o trabalho
forçado – Convenção sobre Trabalho Forçado ou Obrigatório (n.º 29) e Convenção
sobre a Abolição do Trabalho Forçado (n.º 105) – e integrá-las parcialmente à
legislação nacional56, o sistema e os mecanismos de fiscalização e responsabilização
ainda não estão de acordo com os padrões internacionais57.
Além do mais, a punição não se aplica no caso dos e das trabalhadoras domésticas,
uma vez que a lei nacional de Regulamentação do Trabalho Doméstico de 2004 não
menciona o trabalho forçado. O trabalho forçado também não é criminalizado pelo
Código Penal de Omã (HRW, 2016).
Outro elemento que vulnerabiliza a situação e a condição migratória no país é
a vigência do sistema de patrocínio, mais conhecido como Kafala (Lei
Trabalhista/Royal Decree No. 35, 2003: arts. 18, 19, 20). Assim como em outros
países da região do Golfo, a migração de trabalhadores e trabalhadoras de baixa
renda e baixa qualificação é viabilizada por meio de patrocínios de seus
empregadores para emissão de vistos, transporte, moradia e trabalho regular (KHAN,
2011).

55
Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias (OHCHR, 1990);
Convenção relativa aos Trabalhadores Migrantes (n.º 97) e Convenção relativa às Migrações em Condições Abusivas e à Promoção da Igualdade
de Oportunidades e de Tratamento dos Trabalhadores Migrantes (n.º 143)
56
Art. 12 of Oman’s Basic Statute of the State, issued by Royal Decree no. 96/101, provides: “It is not permissible to impose any forced labor on
anyone except by virtue of a law, for rendering a public service, and for a fair remuneration.” See text at Ministry of Legal Affairs website,
http://mola.gov.om/eng/basicstatute.aspx (accessed June 21, 2016).
Royal Decree no. 74/2006 amending some provisions of the Labor Law, adds art. 3(bis) under chapter 2 of the Labor Law: “The employer is
prohibited to impose any form of compulsory or coercive work,” and art. 123: “Failure to observe article 3(bis) will result in imprisonment of a maximum
of one month and/or a fine of 500 OMR. The penalty will be doubled in case of recurrence.”
57
Estudo da Human Rights Watch de 2017 destaca penas muito leves para quem impõe trabalho forçado, como a pena de prisão de um mês e o
pagamento de multa no valor de 500 reais omanis (HRW, 2017a).

146
A lei omani ainda estabelece punições àqueles que deixam o trabalho
sem o consentimento do empregador/patrocinador, através de multas, deportações e
proibições de regressar ao país de trabalho (DE BEL-AIR, 2018).
Em 2011, o governo de Omã reportou ao UN Human Rights Council que está
buscando alternativas ao sistema (HRW, 2018) e fazendo esforços para proibir a
prática da retenção dos passaportes58. Dados de 2013 apontam que apenas uma
minoria da população (14,7%) migrou sob o sistema de Kafala (DE BEL-AIR, 2015),
porém, especialistas em direitos humanos confirmam a continuidade da prática de
retenção de passaportes (HRW, 2018, 2019).
A vigência do sistema de Kafala no país abre espaço para relações de trabalho
abusivas, inclusive relações análogas ao trabalho escravo, principalmente dos
trabalhadores mais vulnerabilizados e invisibilizados como os terceirizados (cadeia de
valor) e os trabalhadores domésticos.
A mão de obra estrangeira em Omã não está presente somente nos setores de baixa
qualificação. Há também um ressentimento latente de omanis em relação ao papel
desempenhado pelos estrangeiros na economia nacional (WORRAL, 2012). Desde
2003, o governo vem intensificando o processo de omanização da força de trabalho,
por meio de políticas de substituição de mão de obra estrangeira pela força de trabalho
local59.
Apesar dessas medidas, as insatisfações dos omanis endossaram a Primavera Árabe
de Sohar em 2011, que culminaram em 2013 na determinação pelo Conselho de
Ministros do limite populacional do país de 33% de migrantes, dentre outras medidas
de pressão pela omanização do setor privado60.
Complementarmente, a garantia do direito à sindicalização, organização e negociação
coletiva se vê limitada pela ausência de ratificação e compromisso com as principais
convenções internacionais sobre o tema61. A Lei Trabalhista de Omã não dispõe

58
Em 2003, Omã introduziu uma lei que tornou ilegal o “empréstimo” de empregados a outros empregadores, mas ela foi insuficiente para promover
uma mudança desse sistema. A Decisão Ministerial N°2 de 2006 emitida pelo Ministério do Trabalho de Omã proíbe empregadores de reter
passaportes de trabalhadores estrangeiros. Em relação a permissões de saída, é requerido pelo governo de Omã que o empregador envie para a
autoridade competente um pedido de saída patrocinada do trabalhador duas semanas antes da expiração da permissão de residência do
trabalhador, no caso da não-renovação ou cancelamento da permissão. Caso haja a não-renovação nem o cancelamento, o empregador é obrigado
a pagar o empregado pelo período em que estava sob sua tutela, e nestes casos, as cortes de Omã tem sido estritas contra terminações injustas
de vínculos, e em processos onde hão a falta de evidências para o fim do contrato, em muitos casos, tem determinado a compensação financeira
ao empregado igual ao mínimo de três meses do salário bruto com máximo indefinido, dependendo de cada caso. Em 2011, o governo de Omã
reportou ao UN Human Rights Council que está buscando alternativas ao sistema kafala (HUMAN RIGHS WATCH, 2018).
59
Através da criação de cargos de trabalhos para a população local e da imposição de cotas às empresas para a contratação de omanis (DE BEL-
AIR, 2018). Em 2003, a Lei Trabalhista de Omã (ROYAL DECREE NO. 35/2003) estabelece uma multa de 250 a 500 OMR às empresas que não
cumprirem com as porcentagens de omanização estipuladas (art.114).
60
O Conselho de Ministros além da determinação dessas medidas, estipulou leis com o objetivo de desincentivar a migração, como as que preveem
o aumento da taxação das remessas transnacionais, por exemplo. Em 2016, o Ministro do Comércio e da Indústria inicia uma pressão para que as
empresas privadas aprovem a meta de 35% da omanização da sua força de trabalho (DE BEL-AIR, 2018). O Conselho de Ministros estabeleceu o
salário mínimo para os nacionais que trabalhem no setor privado. Os trabalhadores migrantes foram excluídos dessas regulações (HRW, 2016).
61
Liberdade Sindical e Proteção ao Direito de Sindicalização, 1948 (OIT, No. 87) e Convenção sobre o Direito de Organização e de Negociação
Coletiva, 1949 (OIT, No. 98).

147
sobre o direito à sindicalização de trabalhadores/as migrantes e domésticos62, o que
restringe ou até mesmo impede a sua participação (HRW, 2017a); e ainda concede
ao Ministério do Desenvolvimento Social poderes para negar o registro de
associações sem a necessidade de uma fundamentação formal.

1.2 RELAÇÕES DE GÊNERO E TRABALHO DOMÉSTICO

Em Omã, as mulheres representam 33,98% da população local, cifra que é


condicionada pela alta migração laboral masculina no país (WORLD POPULATION
REVIEW, 2019). O boom petroleiro e as reformas modernizantes iniciadas na década
de 1970, foram acompanhadas de avanços nos direitos das mulheres, como a
concessão do direito ao voto; direito ao estudo; direito ao trabalho e o direito à
propriedade privada (ALOMAIRI; AMZAT, 2012).
Em 2018, a UNICEF reconheceu a paridade de gênero nos cursos primários e
secundários no país (UNICEF 2017, 2018), assim como o crescimento do número de
mulheres no ensino superior: 55% (UN, 2015). Esses direitos reforçaram a entrada da
mulher no mercado de trabalho. Em consonância com a ratificação da Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW,
1981), a Constituição Nacional de 1996 (art.17) e a Lei Trabalhista de 2003 (art.80)
preveem a não discriminação de gênero em geral, e em particular no âmbito laboral.
Não obstante, distintos organismos de direitos humanos apontam a discriminação
laboral como uma realidade no país. Em Omã, a participação das mulheres no
mercado de trabalho é bastante inferior à masculina: 29% comparada a 83% (UNICEF,
2018). Também são identificadas discriminações de gênero nas publicidades de
emprego (CEDAW, 2017); restrições de horas de trabalho para as mulheres,
especialmente no período noturno (ROYAL DECREE NO. 35/2003, art.81) e de certas
atividades determinadas pelo Ministro do Trabalho (ROYAL DECREE NO. 35/2003,
art.82). Apesar da Lei Trabalhista garantir licença maternidade remunerada (art.83), o
período de 50 dias é inferior aos standards internacionais63 (CEDAW, 2017).

62
Omã não ratifica a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas
Famílias (OHCHR ,1990), que em seu art. 26 dispõe sobre o direito dos trabalhadores e trabalhadoras migrantes à associação e organização
sindical. A Regulamentação do Trabalho Doméstico de 2004 não regula a participação sindical das trabalhadoras e trabalhadores domésticos.
63
A Convenção sobre a Proteção da Maternidade, 2000 (OIT, No.183) estabelece o período não inferior a 14 semanas de licença maternidade
(art.4). Omã, até o presente momento, não ratificou a Convenção.

148
Outro ponto crítico relativo ao direito das mulheres em Omã é o que se refere ao
trabalho doméstico. O trabalho doméstico não está regulamentado pela Lei
Trabalhista de Omã (Royal Decree No. 35/2003). Sendo majoritariamente exercido
por mulheres (mais de 80%), o trabalho doméstico não está amparado e protegido
legalmente, o que permite a exposição dessas trabalhadoras a relações de trabalho
abusivas.
No caso das trabalhadoras domésticas, o elemento de discriminação de gênero se
articula com o de raça/etnia e potencializa ainda mais a sua vulnerabilização, já que
grande parte do trabalho doméstico é realizado por mulheres migrantes (HRW, 2016).
Além do mais, as Diretrizes de Omã para os Empregadores sugerem que os
trabalhadores domésticos homens devem receber mais que as trabalhadoras
mulheres (HRW, 2016).
Também são identificadas outras situações que põe em risco os direitos das mulheres
no país, quais sejam:
¡ Participação política limitada: apenas uma mulher eleita dos 85 membros do
Conselho Consultivo (Shura), em 2015 (UNICEF, 2018);

¡ Discriminação quanto aos direitos civis, em questões como divórcio, herança,


guarda dos filhos/as e tutela legal, segundo a Lei do Status Pessoal (Personal
Status Law); (HRW, 2019). Para a obtenção de passaporte, a mulher necessita
da autorização do cônjuge (UN, 2015).

¡ Ausência de legislação sobre violência doméstica: o Código Penal de 2018 não


possui disposições que proíbam a violência doméstica;

¡ O não alcance dos standards internacionais mínimos para a eliminação do tráfico


de pessoas, onde mulheres e crianças são os grupos mais vulneráveis (CEDAW,
2017). Muitas mulheres foram vítimas de tráfico de pessoas na fronteira entre
Emirados Árabes Unidos e Omã para a realização de trabalho forçado (HRW,
2016).

1.3 MEIO AMBIENTE E COMUNIDADES/PRÁTICAS TRADICIONAIS

Como resultado dos processos econômicos recentes, muitos parques industriais que incluem
indústrias petroquímicas, metalúrgicas e siderúrgicas emergiram em Omã, sendo o principal
deles a Zona Industrial de Sohar.

149
Essa Zona Industrial estabelecida em 2006 inclui complexo industrial e portuário. Tais
indústrias potencialmente emitem poluição atmosférica com gases tóxicos, como dióxido de
enxofre (SO2), óxidos nítricos (NOx) e compostos orgânicos voláteis (VOC). Tais gases, em
concentrações e taxas de exposição acima de certos limites, podem causar efeitos nocivos à
saúde de pessoas residentes em áreas poluídas incluindo aumento da morbidez e mortalidade
por causa de doenças respiratórias e cardiovasculares.
Por outro lado, os adensamentos urbanos relacionados ao setor industrial são primariamente
abastecidos por águas subterrâneas. A redução da quantidade e qualidade de água doce
subterrânea representa um risco inerente premente na região de Sohar que pode ser
agravada pelas atividades da empresa.
A taxa de intrusão salina pode ser exacerbada pelas abstrações destinadas ao abastecimento
de populações e trabalhadores da empresa (SCHOUT, 2012). A contribuição da empresa a
tal risco pode afetar primordialmente os modos tradicionais de vida da região, especialmente
das comunidades que praticam a agricultura tradicional.
A população de pescadores tradicionais e comerciais da região de Al-Batinah foi estimada em
10.028 sendo 1892 em Sohar e 473 em Liwa. Os riscos inerentes da atividade portuária sobre
os recursos pesqueiros podem ser exacerbados pelas atividades da empresa por potenciais
liberações de efluentes químicos advindos das instalações terrestres, derramamentos de óleo
e fluxo de embarcações ao longo das áreas de pesca tradicionais (ALBHASI, 2012).
Na formação do sultanato de Omã tanto a agricultura costeira quanto o comércio marítimo
contribuíram para a ocupação do litoral do país e a formação de suas principais cidades.
O adensamento das cidades, unido ao processo de industrialização, promove o risco de
expulsão voluntária e involuntária das populações tradicionais agricultoras desses espaços.
As cidades cresceram historicamente em torno dos aquíferos costeiros, que permitiam o
acesso à escassa água doce e a prática da agricultura. Como resultado, o país tem se
mostrado menos autossuficiente na produção de alimentos e dependente de importações. Por
esse motivo, desde a década de 1980, o Sultanato de Omã está estimulando práticas
produtivas mais intensivas em tecnologias de irrigação, fertilização e de defensivos agrícolas,
tornando menos representativas as práticas produtivas tradicionais.
A convenção 169 da OIT, não ratificada pelo Estado de Omã, aplica-se aos povos tribais e
indígenas (descendentes de populações tradicionais, que mantenham suas tradições
integralmente ou parcialmente) de países independentes, e estabelece diretrizes para que os
governos destes países, objetivando igualdade, efetividade de direitos e auxílio no combate
de diferenças socioeconômicas, dentre outros mecanismos de proteção e garantia da
perpetuação da tradicionalidade destes povos. A não-ratificação, consequentemente, põe em
risco diversas esferas de patrimônio material e imaterial constituído pelos costumes, ritos e
tradições componentes da vida desses povos.

150
A tribo Harasis (Beduínos), por exemplo, vem se deslocando continuamente desde o início da
exploração petrolífera e de gás no país (CHATTY, 1994). Eles foram impedidos
progressivamente de acessar áreas de pastagem como o Santuário Órix da Arábia, região
desértica de grande biodiversidade de Omã. Embora o governo atual tenha reconhecido o
direito de mobilidade dessas tribos, as dificuldades encontradas por suas famílias ao longo
das décadas de manutenção da produção de subsistência têm levado muitas famílias
nômades a buscarem empregos e se fixarem nas cidades.
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152
AYAHUASCA, IMAGENS E MUNDOS

Wladimyr Sena Araújo (Unirio)64

O “vinho dos mortos”, a “liana dos espíritos” ou, ainda, “cipó com uma alma”,
significados para a palavra quechua ayahuasca, são apenas alguns dentre inúmeros
sentidos para a bebida que produz forte visões/imagens aos que fazem o seu
consumo de forma sagrada.

A bebida é considerada um enteógeno. Esta palavra é oriunda do grego e


significa “deus dentro”. O termo servia para expressar um estado de espírito onde a
pessoa se encontrava inspirada ou possuída por um ser divino que usa seu corpo
como receptáculo. Era aplicado a transes proféticos, à paixão erótica e à criação
artística, bem como a ritos religiosos nos quais estados místicos eram experienciados
através da ingestão partilhada da essência divina (LABATE e ARAÚJO, 2002;
MACRAE, 1992).

Esta tecnologia vegetal, confeccionada com a decocção de um cipó


(Banisteriopsis caapi) e de uma folha (Psychotria viridis) já foi chamada por alguns
moradores das florestas acreanas de “cinema de caboclo” ou “cinema de índio”, visto
os efeitos imagéticos que produz.

Há um campo de usuários de ayahuasca que inclui indígenas,


caboclos/vegetalistas, seringueiros, terapeutas, neo – pajés, neo-ayahuasqueiros e
religiões brasileiras que utilizam a substância de forma sacramental, a exemplo do
Santo Daime, União do Vegetal e Barquinha.

Neste trabalho pretendo falar de como imagens da Umbanda e Pajelança


Cabocla amazônica reaparecem, por meio de imagens, no Centro Espírita Luz, Amor

64
Mestre em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e Doutorando em História
Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Autor da obra “Navegando sobre as
Ondas do Daime: História, Cosmologia e Ritual da Barquinha (Campinas: EDUNICAMP, 1999). Co-organizador da
Coletânea “o Uso Ritual da Ayahuasca” (Campinas: Mercado de Letras, 2002). Coordenou e trabalhou como
técnico em inventários nacionais de referências culturais, ZEEs, Identificação e Delimitação de Territórios para
comunidades tradicionais, meio ambiente e mudanças climáticas, dentre outros campos de atuação.

153
e Caridade, da linha de Daniel Pereira de Mattos, a Barquinha, como se popularizou
a partir da década de 70 (ARAÚJO, 1999).

Me apoiarei na proposta do Atlas Mnemosyne de Aby Warburg e do conceito


de naschleben (sobrevivências) das imagens que, para Didi – Huberman (2013), traz
um passado que não para de sobreviver. Neste caminho, as imagens não devem ser
encaradas como continuidade em sentido linear, mas observadas como “sintomas
fantasmais”, à sua própria morte: desaparece num ponto da história, reaparece muito
mais tarde, num momento em que talvez não fosse esperada, tendo sobrevivido, no
limbo ainda mal definido de uma “memória coletiva” (DIDI – HUBERMAN, 2013:45).

No Centro Espírita Luz, Amor e Caridade, local desta pesquisa, as imagens se


tornam elementos da memória e remetem a tempos e mundos diversos. Desta forma,
conectadas pelo uso da ayahuasca, elas reaparecem no extremo ocidental amazônico
brasileiro e são experienciadas por meio de rituais.

Este Centro foi instituído em 1967 por Juarez Martins Xavier, natural de Capim
Grosso – CE e Maria Rosa de Almeida, nascida no sertão de Jacobina – BA. Ambos
migraram para Rio Branco, capital do antigo Território Federal do Acre durante o
período da Segunda Guerra Mundial, quando homens eram recrutados para trabalhar
como soldados da borracha nos confins amazônicos. Eles se conheceram no Acre
onde se casaram e frequentaram uma religião, criada na zona rural da capital do
Território, entre 1958 à 1963, pelo maranhense Daniel Pereira de Mattos. Ele era
negro, filho de escravos, oriundo da Freguesia de Vargem Grande – MA e pertenceu
à Marinha Mercante brasileira.

O espaço sagrado de Juarez e Maria Rosa se localiza até os dias atuais na


Área de Proteção Ambiental (APA) do Amapá, na margem esquerda do rio Acre. Ele
é um dos lugares de uma “cidade florestal”, como pode ser designada Rio Branco,
visto que os seus moradores têm identidades e memórias que pertencem à floresta.

O uso do chá se associa a práticas religiosas e filosóficas diversas que incluem:


Umbanda, Pajelança Cabocla, Pajelança Indígena, Catolicismo Popular, Tambor de
Mina, Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento e do Kardecismo. Trataremos,
especificamente das duas primeiras relacionando as imagens aos êxtases.

154
O Daime (nominação desta religião para ayahuasca) é usado em vários rituais.
Porém, farei um recorte para as Obras de Caridade, onde se pratica limpeza,
orientações espirituais e procedimentos voltados à cura. O enteógeno possibilita
acessar três tipos de êxtase durante os trabalhos no terreiro: miração, irradiação e
incorporação.

A miração é um estado sinestésico onde ao tomar o Daime o participante do


ritual pode ter visões. Simplesmente mirar, no infinitivo, representa olhar e miração,
representa o conjunto de imagens espirituais obtidas por meio do êxtase com a
utilização do chá. Possivelmente a palavra é advinda da região fronteiriça entre Acre
(Brasil), Peru e Bolívia (MONTEIRO DA SILVA, 2000).

Para Fernandes (1986), o indivíduo obtém transcendência para alcançar


lugares de planos cosmológicos visíveis e “invisíveis”. Ainda assim, Mercante (2012)
observa que as mirações são imagens mentais espontâneas e ocorrem onde há
experiências transcendentais dos participantes dos rituais onde é consumido Daime e
desempenham um forte papel no desenvolvimento pessoas dos frequentadores.

A incorporação também é um dos elementos da Umbanda que ocorre no ritual


das Obras de Caridade deste Centro. Neste contexto, o corpo dos médiuns é tomado
pelo sagrado, dando a ele forma que identifica seres e, também, a lugares míticos.
Neste caminho, o corpo representa os mundos e se torna um microcosmos. Além
disso, ele metaforiza o passado (SENNET, 1997) por meio de expressões
manifestadas nas crenças.

A irradiação completa esta tríade extática. Ela consiste em obter sensações


advindas de lugares espirituais e é marcada pelo contato com entidades. Desta forma,
ouvir e sentir, por exemplo, constituem elementos decorrentes do processo de
irradiação, que também é possível por meio do uso do Daime.

Os êxtases, na maioria das vezes, se relacionam aos planos cosmológicos


desta religião: céu, astral, terra e mar que, apesar de quatro, são chamados, também,
de “três mistérios”. Sendo assim, os dois primeiros são considerados de planos do alto
e são um, com macroníveis de elevações espirituais. Desta forma, o céu, corresponde
ao mundo do Deus criador cristão, sendo designado como plano de plena luz, onde
os seres só poderão alcançar após o dia do Juízo Final. O astral, por sua vez, também
está no alto e é composto por muitos lugares, moradas, cidades, reinos. Neles, é
155
possível encontrar santos do panteão católico, a exemplo de São Francisco de Assis,
mentor espiritual da religião, São Sebastião, São José, dentre vários santos. Se
encontram no astral, também, os orixás e muitos encantados de religiões afro-
brasileiras. Moram, ainda, reis, rainhas, príncipes, princesas, médicos, líderes
espirituais de religiões ayahuasqueiras e tantos outros que poderiam aqui ser
nominados (ARAÚJO, 1999).

O astral rege os planos da terra e do mar. É na terra onde vivem não apenas
os humanos, mas em realidade paralela, é permeado por entidades tais como exus,
caboclos e pretos velhos, além de espíritos de pessoas já desencarnadas. No mar há
vários encantos que incluem, dentre outros seres, as sereias.

De um lado, por meio do uso do Daime, os adeptos e frequentadores podem


fazer voos astrais e visitar e conhecer lugares dos planos míticos do astral, terra e
mar. Afirmam que podem alcançar cidades e reinos, assim como ver, ouvir e sentir os
ambientes e os seres que permeiam os lugares encantados. Desta forma, acreditam
que por meio das mirações é possível conhecer castelos, lagos, vales, montanhas e
uma diversidade de topônimos. Por outro lado, são manifestados no corpo, por
intermédio de incorporações e irradiações, elementos sagrados de mundos dos “três
mistérios”.

BIBLIOGRAFIA

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cosmologia e ritual da Barquinha. Campinas: Editora da Unicamp, 1999.

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156
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SENNET, Richard. Carne e Pedra. Rio de Janeiro: Record, 1997.

157
CULTURA FERROVIÁRIA SOB O VIÉS COMPARATIVO: OS IMPACTOS
DA PRIVATIZAÇÃO DA RFFSA EM CORINTO E DIVINÓPOLIS - 1975 A
2010.

Willian Santos Pereira(PPGHC-UFRJ)65

O desenvolvimento de várias cidades mineiras dialoga de forma íntima com os


trilhos, é o caso de Corinto e Divinópolis. No decorrer de todo o século XX o cotidiano
dessas localidades foi entrelaçado com as atividades ferroviárias na região, o que
acarretou no desenvolvimento de uma forte cultura ferroviária que moldou o dia-a-dia
de várias famílias que tinham alguma relação direta ou indireta com a Rede. A
desestatização da Rede Ferroviária Federal (RFFSA) na década de 1990 foi um
acontecimento importante para esses municípios, muitos ferroviários foram demitidos
ou transferidos após o encerramento das atividades da Rede em Corinto, alguns,
inclusive, foram realocados para Divinópolis. Pretende-se, a partir desse projeto,
compreender mais a respeito da cultura ferroviária, costumes e condições de trabalho
nessas cidades, analisando as transformações e permanências desses itens após o
fim da RFFSA.

A história dessas cidades tem alguns pontos em comum: as duas localidades,


quando ainda eram pequenos povoados, receberam uma estação cada para a
chegada e partida de passageiros: a estação de Curralinho (Corinto) e a estação de
Henrique Galvão (Divinópolis). Anos mais tarde, ambas receberam oficinas para
manutenção de máquinas a vapor e equipamentos, se tornando assim referências em
todo o estado.

Uma forte cultura ferroviária nasceu em Corinto e Divinópolis e gerações


inteiras de famílias trabalharam na ferrovia: filhos, pais, tios e avós. Todos com o
cotidiano intimamente ligado às atividades nas oficinas. Práticas diversas foram
desenvolvidas dentro e fora do âmbito de trabalho: clubes, salões de festas,
campeonatos esportivos e escolas profissionalizantes fizeram parte do cotidiano do

65
Willian Santos Pereira, mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro,
graduado em História pela Universidade do Estado de Minas Gerais. E-mail para contato:
williansantoshistoria@gmail.com.

158
ferroviário e movimentaram as cidades. As greves, as lutas por direitos e os entraves
políticos locais também marcaram a classe de trabalhadores que, apesar do prestígio
entre os cidadãos, tinha condições de trabalho desfavoráveis, sofria com atrasos em
seus pagamentos e com acidentes rotineiros (CORGOZINHO, 2013, p. 197).

A desestatização da RFFSA no durante a década de 1990 teve como


consequência o encerramento definitivo das atividades da ferrovia em Corinto. A
privatização fez com que a cidade, que já tinha perdido parte da sua malha ferroviária
no decorrer dos anos, fosse afetada em diversos sentidos. Muitos trabalhadores foram
demitidos, outros foram transferidos para as demais oficinas, inclusive para a de
Divinópolis. Algumas famílias corintianas inteiras migraram para o centro-oeste
mineiro. Este é um ponto primordial para a pesquisa aqui proposta, que nos faz
levantar os seguintes questionamentos: Como era a cultura ferroviária em ambas as
cidades? Como a desestatização foi experienciada pelos trabalhadores? A cultura e
os costumes ligados à ferrovia permaneceram após a privatização da Rede? Como
ficou a sua situação do ferroviário que foi desligado da RFFSA? Como foi a
transferência e a adaptação das famílias que foram de Corinto para Divinópolis?

A problemática aqui apresentada dialoga de forma direta com a História


Comparada. Justifica-se a aproximação com essa modalidade historiográfica pela
natureza da pesquisa proposta, que utilizará da abordagem comparativa para tentar
entender a cultura ferroviária nessas cidades e as transformações na vida dos
trabalhadores a partir de um mesmo marco temporal.

A Histórica Comparada, seguindo a linha aprimorada por March Bloch, permite


a análise de sociedades contíguas, partindo de um problema em comum entre esses
lugares. Neste modelo, o pesquisador pode analisar diferentes recortes espaciais
dentro de um mesmo recorte temporal. Essa análise permite que o historiador
perceba as semelhanças, diferenças, influências e particularidades de cada situação
apresentada.

A partir desse modelo, podemos pensar a análise de sociedades contíguas


como forma de entender parte da questão aqui discutida. Ambos os lugares têm algo
em comum: a atividade e a cultura ferroviária; Passam pelo mesmo acontecimento:
a privatização da Rede, mas cada espaço reage de uma forma, sendo que um chega
a ter influência sobre o outro, criando assim um elo entre eles.

159
Apesar disso, a complexidade da questão vai além da comparação entre as
cidades e seus trabalhadores. Ainda existe certa comparação dentro de um mesmo
recorte temporal, já que um dos problemas da proposta de pesquisa é o antes e o
depois da RFFSA e como a cultura ferroviária foi influenciada por este acontecimento.
Este projeto propõe não apenas a comparação entre duas culturas ferroviárias em
espaços diferentes, mas também propõe a análise a partir de dois momentos
diferentes dentro do mesmo recorte temporal.

O uso da História Oral será de grande relevância para o desenvolvimento


dessa pesquisa, sendo a principal metodologia aqui abordada. A análise do
testemunho poderá evidenciar traços da cultura, dos costumes e das transformações
causadas pela estatização da RFFSA nessa geração de ferroviários, além da
possibilidade de descobrir novos detalhes do objeto abordado. Nada mais justo do
que entender a cultura ferroviária a partir dos relatos dos próprios trabalhadores. Abrir
esse espaço de fala por meio da entrevista permite ao pesquisador descobrir uma
ampla variedade de informações, relatos, curiosidades e vivências.

A partir do contexto apresentado justifico esta proposta de pesquisa. É de


grande importância analisar e compreender a cultura ferroviária do final do século XX.
É necessário entender como a privatização da RFFSA modificou e impactou o
cotidiano desses trabalhadores. A pesquisa se mostra relevante, pois busca
evidenciar práticas, memórias, costumes condições de permanência do objeto em
estudo. A análise comparada dessas realidades poderá evidenciar tendências e
diálogos em comum, mas também vai salientar as diferenças e particularidades de
cada situação aqui apresentada. Por fim, a pesquisa pretende contribuir com a
produção historiográfica dos temas aqui citados, principalmente sobre Corinto e seus
ferroviários, tendo em vista que existem poucos estudos aprofundados sobre o tema.

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Belo Horizonte: Gráfica Literatura Ltda., 2006. 368 p. v. 1.

THOMPSON, Edward Palmer. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos.


Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2001. 372 p.

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ÍNDICE REMISSIVO DOS AUTORES

Andréa Casa Nova Maia (UFRJ) .................................................................................................... 11


Alberto Rodrigues de Freitas Filho (UFRJ) ............................................................................... 13
Allan Corsa (UFRJ) ............................................................................................................................. 18
Bruna Emanuele Fernandes (EBA/UFMG) ................................................................................ 22
Bárbara Lissa (EBA/UFMG) .......................................................................................................... 22
Rita Lages Rodrigues (EBA/UFMG) ............................................................................................. 22
Beatriz Monteiro Lemos (UFRJ) .................................................................................................... 31
Bruna Aparecida Gomes Coelho (UFRJ) ..................................................................................... 34
Camilla Maria Silva Cavalcante (UFRJ) ..................................................................................... 40
Carla Teodoro Costa (PPGHIS UFRJ) ........................................................................................... 46
Carlos Cesar de Lima Veras(UFRJ) .............................................................................................. 51
Carlos Eduardo Pinto de Pinto (UERJ) ........................................................................................ 57
Denise Pirani (ASF-MG/Cedefes) .................................................................................................. 62
Dinah de Oliveira (EBA/UFRJ) ....................................................................................................... 64
Douglas de Souza Liborio (UFF) ................................................................................................... 69
Gabriel Vieira (UFRJ) ........................................................................................................................ 73
Ingrid Gomes Ferreira (UFRJ) ....................................................................................................... 79
José Fernando Saroba Monteiro (UFRJ) ..................................................................................... 83
Luana Sarto Gomes (UFMG) ........................................................................................................... 89
Victor Henrique de Souza Arcanjo (UFMG) ............................................................................... 89
Luciano Hermes da Silva (PPGHC-UFRJ) .................................................................................... 95
Luciene Carris (Casa Azul) ........................................................................................................... 102
Mario Brum(UERJ) .......................................................................................................................... 108
Matheus Romano Palmieri de Souza (UFRJ) .......................................................................... 114
Maurício Elias Zouein (UFRR/IMAM) ....................................................................................... 118
Regina Helena Alves da Silva (UFMG) ...................................................................................... 126
Roberta Veiga (UFMG) ................................................................................................................... 130
Silvana Seabra (POSCOM – PUCMINAS) ................................................................................... 135
Suzana Barreto de Oliveira (IH-UFRJ) ...................................................................................... 139
Lucas Lourenço Rodrigues (IH-UFRJ) ....................................................................................... 139
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Valnei Pereira (Golder) ................................................................................................................. 143
Wladimyr Sena Araújo (Unirio) ................................................................................................. 153
Willian Santos Pereira(PPGHC-UFRJ) ...................................................................................... 158

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