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RIBEIRO JR, Roberto - A Errática Tikmu'un - Maxakali - Imagens Da Guerra Contra o Estado
RIBEIRO JR, Roberto - A Errática Tikmu'un - Maxakali - Imagens Da Guerra Contra o Estado
A Errática tikmũ’ũn_maxakali:
imagens da Guerra contra o Estado
Rio de Janeiro
2015
A Errática tikmũ’ũn_maxakali:
imagens da Guerra contra o Estado
Rio de Janeiro
2015
Aprovada por:
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Ficha catalográfica
Romero, Roberto.
A Errática tikmũ’ũn_maxakali: imagens da Guerra contra o Estado / Roberto
Romero Ribeiro Júnior – Rio de Janeiro: UFRJ/PPGAS-MN, 2015.
AGRADECIMENTOS
Uma pesquisa é feita de encontros. No seu percurso, encontramos autores, ideias, lugares,
mestres, amigos... Encontros que não são tanto a consequência, mas a motivação mesmo
daquilo o que fazemos e sem os quais a concepção e realização dos nossos projetos se
revelariam mesmo impossíveis. Sou, portanto, imensamente grato pelos encontros através
dos quais esta pesquisa pôde se desenvolver - ou melhor dizendo, se iniciar - ao longo dos
últimos dois anos. Ao Eduardo Viveiros de Castro, agradeço o interesse, a paciência, a
leitura atenciosa e todos os estímulos à realização deste trabalho. Suas ideias e textos já me
orientavam há algum tempo e de minha parte é um enorme prazer poder continuar esta
orientação pessoalmente. Agradeço-lhe especialmente o conselho telegráfico e crucial:
“vai nessa”.
Ainda no PPGAS, agradeço aos meus colegas de mestrado, Everton, Bárbara, Lucas,
Aline, Marcela, Morena, Gustavo, Guilherme, Vlad e Daniel. Ao Vlad, especialmente, pela
imensa generosidade, organização e eficiência que facilitaram imensamente o nosso
percurso acadêmico e institucional. Ao Gustavo, pela cumplicidade em etnologia e
conversas sempre estimulantes. A partir do PPGAS - e especialmente de todas as “sextas
na Quinta” (e madrugadas de sábado no “Bar Azul”) - tive também a imensa felicidade de
conhecer e conviver com pessoas como Beatriz Matos, Edgar Bolívar, Luisa Elvira
Belaunde, Bruno Marques, Indira Caballero, Oiara Bonilla, Clarisse Kubrusly, Julia
Sauma, Guilherme Heurisch, Marina Vanzolini, Ana Carneiro, Virna Plastino, Leonor
Oliveira, Amanda Horta, Edgar Barbosa e Ana Morim. A todos eles devo momentos
memoráveis, conversas inspiradoras, orientações valiosas, alegrias variadas. À Luisa,
agradeço o entusiasmo com que sempre me ouviu e o aceite em participar desta banca. À
Marina, por ter me apresentado às aulas de dança da querida G’leu Cambria, que fizeram
de mim mais firme e dos últimos anos mais leves.
Na mudança para o Rio de Janeiro, tive a imensa sorte de encontrar Julia Bernstein, minha
anfitriã (hoje irmã) carioca, companheira de todas as horas, com quem tenho tido o prazer
de compartilhar as dores e as delícias dos últimos tempos. A travessia entre BH e Rio,
UFMG e Museu Nacional também não teria sido possível sem o apoio constante de Maria
Luísa Lucas, desde a candidatura ao Programa até a difícil reta final da dissertação. Sua
presença e companhia sempre foram um alento e uma inspiração. À Karen Shiratori,
agradeço a recepção atenciosa, as conversas sempre instigantes, os almoços intermináveis
no centro do Rio, toda sua sensibilidade e ternura. É uma sorte ser contemporâneo seu! À
Ana Fiod, pela amizade, pelo carinho e por me acompanhar até os últimos instantes da
dissertação. Ao Fernando Vieira e ao Maurício Siqueira, pela parceria e companhia
igualmente fundamentais nessa transição.
Em Belo Horizonte, agradeço ao Paulo Maia por acompanhar este percurso com incentivo
e interesse sem iguais. Não teria concluído sem o seu apoio. À Júnia Torres, pela alegria e
carinho que sempre me acolhem e me animam. Ao Ruben Caixeta de Queiroz, que
despertou em mim o interesse pela etnologia. Aos amigos todos da Filmes de Quintal, que
de diversos modos estão na origem e no percurso deste trabalho. Ao Pedro Leal, por
sempre me visitar aqui e me receber aí. Aos meus pais, Cleuza e Roberto, pelo incentivo,
Por fim, porque mais importante, agradeço aos Tikmũ’ũn, por compartilharem comigo suas
vidas, seus cantos, suas histórias. À Sueli e ao Isael, pela generosidade e paciência com
que me receberam em sua casa e por todos os cuidados que a mim dispensaram. À mãy
Maysa, pela acolhida sempre afetuosa e por me fazer sentir em casa. À xukux Noêmia, por
me receber em sua aldeia. À xukux Delcida, por me ensinar as histórias dos Mõnãyxop. À
Jupira e ao Zezão, por cuidarem de mim na aldeia e na mata. Aos amigos Voninho,
Julinha, Elisângela, Paulinho, Elizabeth, Gilmar, Nestor, Sulamita, Tâmia, Bravinho,
Rogério, Alexandre, Ian, Ronaldinho, Mudão, Zé Leão, Cassiano e Sessiano pela
companhia sempre alegre. Aos professores Rominho e Pinheiro Maxakali, pela ajuda
constante. No Pradinho, agradeço a recepção de Guigui, Marquinhos, Manuel Damázio,
Marilton, Damazinho, Pequi e Toninho Maxakali. Aos pajés Mamey, Totó e Gustavo, por
me receberem em seu kuxex e me ensinarem a cantar, comer e dançar com os Yãmiyxop.
Resumo:
Até meados do século XIX, as extensas e densas matas dos Vales do Mucuri e Rio Doce
permaneceram relativamente impenetráveis aos invasores portugueses. Os motivos eram
vários, desde uma certo déficit demográfico inicial, passando pela difícil adaptação dos
colonos aos revezes da vida tropical, esbarrando até mesmo num certo interesse político da
metrópole em manter aquela zona como escudo geográfico contra as temidas invasões
estrangeiras. Mas nenhum deles talvez se equipare ao verdadeiro “terror” que inspiravam
aos colonos o vasto contingente populacional indígena que habitava desde há muitos
séculos a região e que se tornaria o principal “dificultador” para a implantação da empresa
colonial. A partir de uma coleção de relatos históricos de viajantes e administradores
regionais e instigado por uma breve experiência etnográfica entre os Tikmũ’ũn (Maxakali)
e por uma série de suas narrativas, o presente trabalho revisita aquela paisagem regional,
articulando os temas da guerra indígena e da guerra contra os indígenas que ali tomaram
lugar. Movimentos que, por sua vez, conduzem a reflexões em torno das relações entre os
índios e seus outros (os brancos, inclusive) e das metamorfoses rituais tikmũ’ũn.
Abstract:
Until the midst of the 19th century, the extended and dense forests of the Mucuri and Rio
Doce Valleys were kept relatively impenetrable to the Portuguese invaders. The reasons
were many: starting with an initial demographic deficit, including the settlers’ difficult
adaptation to the life in the tropics, and also a certain political interest in keeping that zone
as a geographic barrier against the feared invasions of foreigner countries. But none of
these are compared to the real “terror” inspired to the invaders by the vast contingent of
indigenous people that had been living in that forest for centuries and that would turn to be
the main obstacle to the settling of the colonial enterprise. Through a collection of
historical records written by travellers and regional administrators and instigated by a brief
ethnographic experience among the Tikmũ’ũn (Maxakali) and a series of their narratives,
the present work revisits that regional landscape, articulating the themes of the indigenous
war and of the war against the indigenous that took place there. Movements that leads to
some thoughts on the relations between the Indians and their others (white people
included) and their ritual metamorphosis.
makayok xop pu
com muita flecha
xanet nãmi
todo pintado
ã te mõ ĩy mĩy
eu vou matar
tapu’ux ãpot hã
preparando para o inimigo
hax
ã te mõ ĩy mĩy
eu vou matar
tapu’ux
o inimigo
ã te mõ ĩy mĩy
eu vou matar
tapu’ux
o inimigo
makayok xop hã
com muita flecha
tapu’ux xop pu xanet nami
todo pintado para os inimigos
ya ha i i i
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 13
Entre-guerras 23
Os Tikmũ’ũn atacados 31
O imperativo da vingança 39
Controvérsias canibais 42
Da guerra anti-indígena 51
A conversão à lavoura 65
Conversão e reversão 69
13
INTRODUÇÃO
14
Poucos autores combateram de modo tão contundente esses pressupostos quanto Pierre
Clastres. Em A Sociedade contra o Estado (1974), o etnólogo criticava justamente toda
tendência a encarar as “sociedades primitivas” como versões pálidas ou meros negativos
das modernas sociedades ocidentais, rejeitando os motivos da falta e da escassez –
sociedades “sem Estado”, “sem escrita”, “sem história” - como evidências teórico-
descritivas. Rejeição que não deveria implicar, contudo, a dissolução das diferenças entre
os diversos coletivos humanos, o impulso inverso e simétrico de apontar na vida dos outros
a “lei”, a “ordem”, a “história”, como se a alternativa à concepção da diferença como
inferioridade fosse a sua redução à identidade. Por isso, na “revolução copernicana”
proposta por Clastres, o contraponto teórico e político ao “sem” não é o “com”, mas o
“contra”. Passagem da “ausência” à “agência”, a positividade que o autor reivindicava na
abordagem das instituições indígenas não se contentava, assim, em indicar o mesmo no
outro – esta “outra face do etnocentrismo” – mas revelava-se, isto sim, um esforço de
encarar os outros nos seus próprios termos.
15
Esta não é, com efeito, uma introdução à obra de Pierre Clastres. Mas este brevíssimo
retorno me pareceu importante à guisa de introdução a este trabalho. Não porque ele
consista exatamente numa releitura das teorias clastreanas (uma tal avaliação dependerá
naturalmente do que se entenda por “releitura”), mas porque todo seu desenvolvimento é
atravessado, por assim dizer, por preocupações clastreanas. Preocupações que orientam
desde a sua eleição temática – a guerra e o nomadismo como fios condutores ou pontos de
partida do percurso aqui proposto – como também uma manifesta atitude
“epistemopolítica” interessada sobretudo nas consequências que aquela “revolução
copernicana” (talvez já se possa dizer “clastreana”) instaurava não somente para uma
antropologia “da” política, mas especialmente para uma política da antropologia, isto é,
para a “compreensão de que qualquer antropologia é política” (Lima e Goldman, 2012
[2003]: 24). A recusa do “sem” em favor do “contra” era, desse modo, uma recusa
igualmente em abordar as sociedades primitivas desde um ponto de vista totalmente
exterior a elas - “sempre com referência ao nosso próprio mundo” (Clastres, 2012 [1977]:
202); um ponto de vista eminentemente “de Estado”.
16
17
Já, quando a partir de meados do século XX, os etnógrafos (não muitos, é verdade)
visitaram os índios da região, voltaram suas atenções para essas fontes tendo em vista
sobretudo uma reconstituição cronológica do contato, interessada no mais das vezes na
trajetória histórica de grupos específicos (quando e onde foram vistos pela primeira e/ou
última vez). Os verbetes sobre os povos Pataxó, Malali, Maxakali e Botocudo escritos por
Nimuendaju e Métraux e publicados no Handbook of South American Indians (1946)
ilustram bem essa preocupação. Por sua vez, os trabalhos publicados posteriormente - a
maioria a partir da década de 1970 - costumaram usar estes verbetes como único ponto de
partida, sem almejar o cotejo das fontes históricas e, sobretudo, sem se deter especialmente
no quadro das relações mantidas, no passado, entre aqueles diversos povos. Assim
procederam seja porque estavam mais interessados no histórico do contato entre índios e
brancos (ver, nesse sentido, Rubinger, 1963, 1980; Marcato, 1980 ou Amorim, 1980 para
os Maxakali) ou ainda numa caracterização de cunho mais estritamente etnográfico (como
em Nascimento, 1984, Popovich, 1980, 1988; Álvares, 1992 ou Vieira, 2006 também entre
os Maxakali). Não pretendo, evidentemente, desconsiderar as contribuições que ambas
essas ênfases aportaram à etnologia da região, mas apenas sublinhar que como seu efeito o
interesse por sua “história indígena” (Viveiros de Castro, 1993) ficou, me parece, um tanto
relegado às pesquisas historiográficas, que, por seu turno, detiveram-se mais especialmente
no processo de colonização daqueles “sertões” ou numa certa “história do indigenismo”
local (Paraíso, 1998; Mattos, 2002)1.
Influenciado por essas impressões gerais, este trabalho consiste num experimento em outra
direção. Tratou-se, aqui, de revisitar os principais relatos e documentos históricos
disponíveis sobre a região, colocando-os em relação tanto com algumas preocupações
teóricas/etnológicas atuais, quanto com a etnografia dos índios Tikmũ’ũn, mais conhecidos
como Maxakali. Ao longo do texto, portanto, tais movimentos se combinam e, por vezes,
creio, se confundem, no esforço deliberado de evitar que um deles pudesse predominar ou
englobar os demais redundando, assim, ou numa revisão bibliográfica/histórica que
ignorasse a etnografia ou numa espécie de “linha do tempo” que visasse apenas situar os
Tikmũ’ũn no seu interior. Desse modo, a estrutura perseguida ao longo deste texto reflete a
1
Estou a fazer, naturalmente, um sobrevoo bibliográfico. Para uma apresentação mais detalhada dessas
fontes, ver Vieira (2006). Entre os trabalhos historiográficos, de fato se destacam as teses de Maria Hilda
Paraíso (1998) e Izabel Missagia Mattos (2002), mas há diferenças importantes entre ambos. Este último,
vinculado à tradição de pesquisas em “etno-história”, representa um esforço considerável de aproximação do
“ponto de vista” indígena sobre a colonização e foi uma referência fundamental para o presente trabalho.
18
breve trajetória da própria pesquisa que alternou-se entre um período de campo entre os
Tikmũ’ũn, uma certa imersão na literatura histórica e etnológica das regiões dos Vales do
Rio Doce e Mucuri, além dos cursos que pude frequentar no PPGAS/Museu Nacional.
Permitam-me então retraçar rapidamente esta trajetória antes que eu passe a uma
apresentação mais detalhada do texto que se segue.
***
19
ensaio. O apoio de Rosângela de Tugny foi igualmente fundamental nesta decisão. Assim,
em Janeiro de 2014 eu partia para o Vale do Mucuri por um período, à princípio,
indeterminado.
A visita de um pesquisador, especialmente nesta aldeia, estava longe de ser uma novidade.
Nos últimos anos, os Tikmũ’ũn têm se engajado numa série de projetos associados desde a
políticas educacionais do governo, à formação de professores indígenas nos cursos de
“Formação Intercultural” da UFMG, ou ainda à realização de cartilhas, livros, filmes e
exposições, dentre as quais se destaca a importante Imagem-corpo-verdade: trânsito de
saberes maxakali, coordenada por Rosângela de Tugny entre 2005 e 2009. Com uma
equipe que envolveu professores indígenas, linguistas, etnomusicólogos, antropólogos e
cineastas, o projeto influenciou direta ou indiretamente uma série de pesquisadores que nos
últimos anos contribuíram para um verdadeiro salto qualitativo nas pesquisas entre os
Tikmũ’ũn, apoiado num trabalho minucioso de tradução e análise de alguns dos seus
repertórios de cantos e por uma ênfase especial na relação entre os humanos e os espíritos,
os Yãmiyxop (ver, nesse sentido, Alvarenga, 2007; Rosse, 2007, 2011, 2013; Campelo,
2009, Tugny, 2009a, 2009b, 2011a, Jamal, 2012). Logo que cheguei, portanto, em Aldeia
Verde, ainda um tanto desajeitado e sem saber muito bem por onde começar, um amigo me
interpelou: você veio passear ou trabalhar? E quando disse que tinha vindo à trabalho,
apressou-se em convocar outros três homens e combinar um horário comigo na escola,
onde eu deveria gravar as histórias que desejasse ouvir. Registrar cantos e histórias tornou-
se, assim, a minha primeira e principal atividade em campo.
20
Mas se eu não tinha de fato nenhum projeto específico em mente, além do de permanecer
um tempo lá, é verdade que eu fazia uma certa ideia do que eu não pretenderia fazer. Por
um misto de incompetência, limitações de tempo e recurso e o desejo de me enveredar por
algum tema menos enfatizado pelos trabalhos mais recentes, decidi não concentrar meu
foco na descrição de algum ritual específico. Decidi, então, aguardar que ao longo da
estadia em campo algo me chamasse a atenção. Nesse meio tempo, acompanhava os
homens em suas atividades cotidianas, em suas excursões pelas (parcas) matas nos
arredores da aldeia, em suas expedições (frequentemente frustradas) de caça e pesca e nos
rituais praticamente diários, aos quais os Tikmũ’ũn em Aldeia Verde se dedicam com um
ânimo verdadeiramente incansável. O pajé Mamey Maxakali assumiu a tarefa de me
ensinar a língua, os cantos e as histórias dos Yãmĩyxop. Todos os dias, pela manhã, ele me
esperava na casa de Sueli e Isael, onde fiquei todo o tempo hospedado, e num pequeno
caderno pautado listava o nome de uma série de animais, que paciente e jocosamente me
ajudava a memorizar. Com igual paciência e enorme experiência, Sueli e Isael me
ajudavam com a tradução das histórias e cantos. Já não há, praticamente, animais nas
pequenas porções de terra reservadas hoje aos Tikmũ’ũn. Não obstante, sem aprender-lhes
os nomes ou alguns dos seus cantos eu certamente teria tido muito pouco o que conversar
com eles. Muito pouco, pelo menos, que lhes interessasse. Desse modo, prolonguei minha
estadia em Aldeia Verde até maio de 2014, quando retornei ao Rio com um punhado de
anotações, algumas traduções e umas oitenta horas de áudio registradas.
A convivência de quatro meses com os Tikmũ’ũn foi de um enorme impacto para mim.
Não regressei muito certo quanto ao que iria desenvolver, mas várias ideias então me
ocorriam e tudo o que se relacionava a eles e à etnologia em geral ganhava, aos meus
olhos, um renovado interesse. Foi com este espírito, portanto, que passei a me debruçar
sobre a literatura histórica e etnográfica da região, numa leitura que se revelava tanto mais
estimulante porque especialmente motivada por tudo o que eu havia vivido e aprendido
com eles. Muito cedo, porém, eu percebia que não seria o caso de procurar naquelas fontes
simplesmente as continuidades históricas do “povo” estudado ou seu correlato teórico, suas
“rupturas”. Naquelas páginas, eu me deparava, antes, com uma variedade de eventos,
comentários e descrições a partir dos quais me parecia possível suscitar certos “temas”,
dentre os quais a guerra e o nomadismo indígenas aos poucos se destacavam como
contrapontos decisivos ao messianismo civilizatório oitocentista do qual a crônica da
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região é uma fiel expressão. Além disso, as importantes ressonâncias que estes temas
encontravam na etnografia tikmũ’ũn criavam as condições para que eu intentasse perseguir
na (re)leitura das fontes aquela “rotação de perspectiva” a que me referia acima. O
experimento seria assim, para usar uma formulação de Sztutman, o de “(...) cruzar a
história produzida pelos historiadores, com as concepções que os próprios indígenas
possuem de sua ação – ou seja, cruzar a ‘história dos historiadores’ com os termos da outra
história.” (2012: 141).
Mas, o que me parece e o que certamente mais me estimulava nesta tentativa não era tão
somente lançar mão destes cruzamentos enquanto uma combinação metodológica que
pudesse com maior rigor iluminar o passado da região. Em outras palavras, não seria
suficiente ler os cronistas esforçando-me apenas em “purificar” o seu discurso,
submetendo-o ao crivo da etnografia. Ainda que desejável, este seria como que um efeito
do trabalho. Mas seria preciso, além disso, que a leitura se fizesse contra os cronistas e, em
certa medida, “contra a História”. Contra “a convicção complementar de que a história tem
um sentido único, de que toda sociedade está condenada a inscrever-se nessa história e a
percorrer as suas etapas (...)” (Clastres, 2012 [1974]: 202). Nesta “contra-leitura”, portanto,
o “conteúdo ideológico” dos discursos dos cronistas não constituía nem tanto aquilo de que
deveria a todo custo conseguir me livrar nem tampouco o foco principal da análise (uma
“sociologia dos viajantes” ou algo do tipo). Tratava-se, antes, de perseguir nos discursos
dos cronistas as possibilidades mesmas de invertê-los. Daí o interesse todo especial por
tudo o que desprezavam, temiam ou que sobremaneira os escandalizava no convívio com
os índios; por tudo aquilo, enfim, que os incomodava – dos mosquitos aos motins.
Daí, igualmente, a opção por conduzir as reflexões aqui apresentadas a partir da guerra e
do nomadismo, este par que achei apropriado chamar de uma “Errática”, isto é, uma
“ciência do vestígio errático” como definiu Oswald de Andrade em A Crise da Filosofia
Messiânica (1950). A expressão é aqui, com efeito, empregada um tanto largamente e
creio que esteja melhor exemplificada do que definida ao longo do trabalho. Ela aparece, a
meu ver, no movimento incessante destes povos pela mata, na temporalidade própria da
vingança guerreira, na sua recusa obstinada em se deixarem fixar e sedentarizar, nos
“percursos intensos” (Tugny, 2011a) que seus cantos dão a ver... Esta “ciência do vestígio
errático” é, enfim, uma “ciência nômade” (Deleuze e Guattari, 1980).
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CAPÍTULO 01
O estado de guerra
Entre-guerras
Até meados do século XIX, as extensas e densas matas dos Vales do Mucuri e Rio Doce
permaneceram relativamente impenetráveis aos invasores portugueses. Houve,
naturalmente, quem se aventurasse por elas pelo menos desde as primeiras décadas após a
frota de Pedro Álvares Cabral aportar nas praias de Porto Seguro, em abril de 1500. Logo
nos primeiros anos da colonização, “a fama fantasiava ali imensas riquezas, terras
resplandecentes de esmeraldas, rios levando diamantes, lagoas douradas.” (Timmers,
1969). Não tardou, portanto, para que as promessas de riqueza e fartura impulsionassem as
primeiras expedições mata à dentro e que ali fossem abertas as rotas que permitiriam aos
colonos aos poucos se estabelecerem no interior do continente, mais tarde Capitania de
Minas Gerais. Se estas primeiras incursões não encontraram ali todas as pedras e
preciosidades que ambicionavam, depararam-se, contudo, com um vasto contingente
populacional indígena habitando desde há muitos séculos aquelas terras e que se tornaria a
partir de então o principal obstáculo para os objetivos da empresa colonial.
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Logo nos primeiros anos da implantação da colônia, estes povos dariam provas de sua
insatisfação e resistência ao esbulho de suas terras pelos invasores. Nas recentes capitanias
de Ilhéus e Porto Seguro as notícias de ataques e revoltas indígenas eram incessantes. Um
dos primeiros cronistas da região, Gabriel Soares de Sousa, assim descrevera a situação na
segunda metade do século XVI:
2
Assim, “o etnônimo Naknenuk, literalmente “não da terra” (nak = terra, nuk = negação) pode estar
associado ao fato histórico da fixação relativamente recente dos Botocudo naquela zona do Mucuri” e
“Giporok – quase um xingamento, uma ofensa – teria o significado de ‘mau’, no sentido de ‘perverso’, sendo
aplicado pelos Naknenuk aos seus sub-grupos rivais.” (Missagia de Mattos, 2002: 130). Já os Malali,
Monoxó, Pataxó, Cumanoxó e Cutaxó, além da terminação comum à maioria deles, ‘xó’, que remete à
partícula coletivizadora ‘xop’, recorrente nas línguas da família Maxakali, também se assemelham aos nomes
de alguns grupos rituais destes últimos como Mã’ãy, Mõnãyxop, Putuxop ou Kõmãyxop, como sugeriu M.
Hilda Barqueiro Paraíso (1994). Já Poté e Krekmun são provavelmente nomes de chefes indígenas, pelos
quais seus grupos foram igualmente identificados.
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morto estes alarves de vinte e cinco anos a esta parte, que esta praga
persegue estas duas capitanias, mais de trezentos homens portugueses e de
três mil escravos.” (Soares de Sousa, 2010 [1587]: 75).
E por ainda mais tempo não se arriscaram muito além delas. Outros fatores vieram, é claro,
contribuir para este relativo “afastamento”: a descoberta das minas de ouro e diamante
atraíram todas as atenções para as porções meridionais da futura Capitania, tornando os
Vales do Mucuri e Rio Doce por um momento barreiras territoriais e humanas
convenientes para a metrópole, que vivia sob constante ameaça de invasões estrangeiras e
do contrabando de pedras preciosas. Ademais, não se dispunha àquela época de um
contingente populacional expressivo capaz de se impor sobre a população indígena local e
seu território já bastante hostil aos europeus. Como resumiu Teófilo Otoni sobre estas
frentes pioneiras: “(...) nenhuma caravana, por mais numerosa que fosse, tinha podido
sustentar-se na mata em frente dos seus habitadores; nenhuma se retirou sem pagar às
flechas o seu tributo de sangue.” (Otoni, 2002 [1859]: 44). O viajante Johann Emanuel
Pohl, no início do século XIX, também comentava o principal motivo para aquela contida
expansão territorial: “temiam-se (...) encontrar muitas dificuldades e empecilhos por parte
dos botocudos, que puniam com a morte qualquer incursão nas selvas que habitavam e
consideravam como sua propriedade.” (Pohl, 1976 [1817-1821]: 343).
Até o início do século XIX valeria, portanto, a observação de outro viajante e naturalista,
Auguste de Saint-Hilaire, segundo o qual “dois motivos concorriam para afastar desta
região aos que desejassem estabelecer-se nela: o pavor das doenças e dos botocudos.”
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(Saint-Hilaire, 1974 [1779-1853]: 89). Todo este pavor não impediu, contudo, que desde a
recente fundação da colônia se praticassem as chamadas “caçadas” aos índios, com o
objetivo de abastecer a mão-de-obra escrava na plantation canavieira e o intenso tráfico e
comércio de mulheres e crianças que ali se travou durante pelos menos quatro séculos.
Como comentava o engenheiro Pedro José Versiani em uma de suas cartas ao Inspetor de
Terras e Colonização de Minas Gerais:
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“Quando mais tarde se soube que em alguns lugares, no rio Doce, [os
Botocudo] simularam disposições pacíficas, batendo palmas, e depois
mataram traiçoeiramente, com os formidáveis arcos, os portugueses que
dêles se acercaram confiantes nas maneiras amigáveis, extinguiram-se
todas as esperanças de descobrir sentimentos de humanidade entre esses
selvagens.” (Wied-Neuwied, 1958 [1815-1817]: 153).
Nem é preciso dizer que muito mais sangue se derramou à “pólvora e bala” do que a
flechadas em toda aquela região. Ocorre, contudo, que a “cruenta guerra” que ali se travou
não se limitou a essas “duas partes”: índios, de um lado, nacionais e portugueses, do outro.
Aos europeus ou “neo-brasileiros” que passaram ou viveram por ali, espantavam não
somente as notícias de ataques, assaltos e revoltas desferidas pelos índios contra seus
patrícios quanto a “guerra eterna” e a “inimizade” generalizada que aqueles povos
cultivavam entre si:
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“Os Macunis engajados como soldados, são muito úteis nas espécies de
caçada que se fazem aos Botocudos, não só por causa da prática que tem
das florestas, como ainda porque um ódio ilimitado os anima contra os
inimigos.” (Saint-Hilaire, 1975 [1830]: 217).
É certo que a crescente ocupação dos territórios indígenas pelos invasores tenha “excitado”
o ódio e portanto os conflitos entre aqueles grupos, uma vez que estes eram
progressivamente reduzidos a porções cada vez menores de mata onde se refugiar.
Também não pairam dúvidas de que a “situação colonial” tenha introduzido uma série de
eventos, agentes e modos de relação diversas daquela que estes povos mantinham antes da
catástrofe que se lhes abateu. Aqueles, por exemplo, dentre os índios e dentre os
portugueses, que mais rapidamente se familiarizavam com os hábitos, e especialmente a
língua, uns dos outros, tornavam-se figuras centrais nas mediações locais. Lembre-se, por
exemplo, dos chamados “línguas”, como ficaram conhecidos os (em geral índios) que se
especializaram no “contato” e que, muitas vezes aliados aos estrangeiros, colaboravam nas
“caçadas” ou na “atração” de índios em toda a região, ou ainda nas centenas de homens
indígenas feitos soldados “muito úteis” às tropas portuguesas e que às vezes chegavam a
ser maioria nessas expedições.
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Mas, antes de revisitar os episódios, no século XIX, determinantes para que a maioria dos
índios da região “perdessem a guerra”, gostaria de me demorar um pouco mais na
caracterização da guerra indígena, isto é, em como os índios “faziam guerra”, ou o que
podemos especular sobre a guerra que faziam. Pois que o idioma da relação entre índios e
europeus naquele período tenha sido predominantemente o da guerra e da “predação
generalizada” não diz somente da violência que marcou a tônica do contato, mas também
daquilo o que caracterizava os modos de “fazer relação” dos povos que ali habitavam.
Afinal, como ouviu Saint-Hilaire de um proprietário de terras da região – que obviamente
ignorava a nacionalidade do hóspede – “os botocudos (...) são como os franceses, só
gostam de guerra.”
Os Tikmũ’ũn atacados
Os Mõnãyxop foram embora e construíram aldeia noutro lugar. Antigamente, eles não
moravam num lugar só não; faziam aldeias em vários lugares. Hoje, no lugar mesmo
destas antigas aldeias, existem várias cidades. É assim. À noite, os Mõnãyxop decidiram
que se mudariam novamente ao amanhecer. Enquanto um pajé dormia, o espírito do seu
filho apareceu. Veio e bateu nos paus de madeira que fechavam a sua casa. O pajé saiu de
casa e viu o filho, que lhe disse: “meu pai, se o pessoal for mudar, não vá! Yĩmkoxeka vai
matar o pessoal lá!”. Assim ele ficou sabendo e o espírito do filho voltou para o céu. No
dia seguinte, o pessoal se mudou. O pajé tinha arrumado tudo para partir, mas lembrou-se
32
da fala do filho: “Ah! Ele falou pra mim! Não posso ir, estou errado!”. Desfez suas coisas e
colocou de volta no lugar. O genro dele também queria partir e falou para a mulher: “você
fica aqui e eu vou e qualquer coisa volto correndo pra cá”. O índio partiu, mas sua mulher
saiu chorando atrás dele. O pajé, seu pai, pediu que ela ficasse: “Não vá não! Fique aqui!
Deixa ele ir sozinho”. Mas ele não lhe deu ouvidos e seguiu o marido. Os Yĩmkoxeka já
estavam por perto, querendo matá-los.
Anoitecia e uma mulher que foi buscar água avistou os Yĩmkoxeka descendo pelo rio.
Outros também vinham por baixo, cercando a aldeia onde estavam os Mõnãyxop. Quando
chegou em casa, ela contou pro marido: “tem gente descendo o rio nadando”. Mas o
marido não acreditou: “deve ser pato ou kuktuinmip xop (‘caboclo d’água’)”, disse. À
noite, os Yĩmkoxeka já haviam rodeado a aldeia e preparavam o ataque. Um índio que
acendeu um fogo e virou-se para se aquecer foi flechado nas costas e gritou. Outro índio
que fazia o mesmo foi flechado e também gritou. Uma mulher bem velhinha estava em
casa e gritou: “reconheçam de quem é a flecha!”. Acendeu uma tocha de fogo e saiu, mas
antes que pudesse falar sua garganta foi cortada pelos Yĩmkoxeka: grr grr grr.
Os Yãmĩyxop ficaram enfurecidos com as mortes dos pajés e decidiram se vingar. Pouco
antes do ataque, Putuxop (papagaio-espírito) havia chegado no kuxex e saiu para matar
Yĩmkoxeka. Putuxop matava e gritava: yap yap yap yap. Um papagaio (konũg) que morava
na aldeia o imitava: yap yap yap yap yap. Kotkuphi (mandioca-espírito) também saiu para
matar Yĩmkoxeka e gritava: aaax, aaax, aaax. E o papagaio o imitava. Os outros Yãmĩyxop
- Xũ’ũy (preguiça-espírito), Yãmĩy, Xũnĩm (morcego-espírito) Ãmãxux (anta-espírito) - não
tinham experiência de matança, mas Kotkuphinãg (mandioca-espírito pequeno) era
experiente matador e matou os Yĩmkoxeka todos, vingando os mõnãyxop mortos.
33
atingiu o filho de Yĩmkoxeka. O pai ficou zangado e os Yĩmkoxeka saíram correndo, hehe
hehe hehe hehe, lançando flechas em todas as direções. Uma delas acertou de raspão a
testa de Mõnãyxop. Enquanto corriam, um deles olhou para o seu grupo e percebeu que
eram poucos: “vamos embora! somos só um pouquinho! estamos acabando! se
continuarmos vamos morrer todos!”, disse. Eles foram embora, voltaram para suas casas.
Na aldeia dos Mõnãyxop, vários Yĩmkoxeka estavam caídos mortos, no chão, deitados de
barriga para baixo. Os Mõnãyxop viravam um por um, com a cabeça para cima. Então
cortavam a barriga deles, de onde saía mel de abelha. Acabavam com eles, como eles
faziam com os Mõnãyxop.
***
Foi numa de nossas conversas no kuxex, casa onde se reúnem os homens e os espíritos, que
o pajé Mamey recuperou esta história, um impressionante relato da guerra que os povos da
família Maxakali travaram contra seus inimigos mais próximos, os Botocudo, a quem
chamam de Yĩmkoxeka (yĩmkox, orelha; xeka, grande), “Orelhudos”, também em referência
aos adornos corporais que os distinguiam. Pouco posso ou pretendo especular sobre o
momento histórico no qual o relato eventualmente se passou. Quando narram eventos
transcorridos em tempos muito antigos, os Tikmũ’ũn geralmente se referem àqueles índios,
seus antepassados, como Mõnãyxop. Diz-se hõmã...hãmhitap... para situar um evento num
passado remoto, mas estes marcadores já os ouvi empregados para se referirem tanto ao
“tempo do mito” quanto a algum evento que tenha se passado há não mais que uns vinte
anos, como um casamento. Devo destacar, contudo, a presença do “cachorrinho” (kokex
nãg), raptado pelos Yĩmkoxeka na história. Sabe-se que os índios adotaram os cachorros
como animais domésticos às vezes muito antes de manterem contato intensificado com os
portugueses e que se serviram (e ainda se servem) destes animais como importantes
auxiliares na caça. Não por acaso, “nos seus assaltos aos destacamentos, os cães grandes
eram uma das primeiras coisas que roubavam”, como observou Wied-Neuwied (1958
[1815-1817]: 305). Não fosse, portanto, um “cachorrinho”, talvez o jovem botocudo não
obtivesse a mesma negativa do pai.
Os Yãmĩyxop, por sua vez, são como os Tikmũ’ũn denominam uma miríade de seres ou
“povos” e seus encontros quase diários com eles em suas aldeias, e que costumamos
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traduzir como seus “espíritos” ou “rituais”. São vários e variados e possuem cada grupo
deles um vasto repertório de cantos que trouxeram a partir de diferentes encontros com os
humanos, em tempos ainda remotos. Trataremos destes encontros e dessa formidável
intervenção dos Yãmĩyxop na guerra no terceiro capítulo. Por ora, permitam-me concentrar
nos demais aspectos do combate que esta narrativa permite entrever.
Sobre a “terrível batalha” travada entre eles, podemos acrescentar alguns detalhes. Como
se viu, os inimigos eram constantemente perseguidos e os índios acompanhavam as
movimentações uns dos outros, em busca do melhor momento e localização para o ataque.
Não raro, tais movimentações eram por si só um anúncio de guerra, pois que os limites
35
territoriais entre os diversos grupos eram bastante nítidos para eles: “cada capitão dos
Botocudos se atribui o domínio de certa extensão de florestas para aí caçar e colher frutos.
Não permite que os indivíduos pertencentes a outras tribos apareçam em suas terras, e, na
época da maturidade dos frutos, envia homens para os lindes, a fim de observar se não
foram ultrapassadas pelos seus vizinhos.” (Saint-Hilaire, 1975 [1830]: 255); “As terras que
occupão tem limites entre elles de Serras e Rios. Cada porção he pertencente a huma
Horde governada por hum Chefe que a acompanha, dirige e Commanda (...) Cada Chefe
faz respeitar pelos outros os seus limites: a infração causa a Guerra.” (Marlière, 1825:
231).
Eu dizia que os índios eram atacados desprevenidos. Mas melhor seria dizer que eram
surpreendidos, pois desprevenidos nunca pareciam estar. Os homens eram mesmo
inseparáveis de seus longos arcos e flechas, que chegavam a medir dois metros de altura, e
36
que ainda crianças recebiam de seus pais, em versões menores. Distinguiam-se flechas
para caça e guerra, mas em nenhum dos casos se usava envenená-las. Wied-Neuwied
distingue três tipos delas, “geralmente idênticas em todos os tapuias da costa oriental”, a
saber: as flechas “propriamente de guerra”, feitas com pontas agudas de taquara; outras
com pontas dentadas, feitas geralmente com a palmeira Ariri e ainda um terceiro tipo, de
ponta arredondada, utilizada na caça de pequenos animais. (1958 [1815-1817]: 110).
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“Dois anos, mais ou menos, se tinham passado depois das ameaças dos
índios de Poaia e, como haviam prometido, voltaram em número bem
maior e armados. Mas encontraram o que talvez não esperavam... Todavia
cercaram a casa, ameaçadoramente... Frei Serafim tomou imediatamente
as medidas necessárias; mandou ficarem de prontidão os soldados bem
armados; armou também todos os camaradas índios da casa e ficou
esperando os acontecimentos. Quando os Aranás se aperceberam que pela
segunda vez se tinham enganado, diante daqueles homens armados e
decididos à luta, mudaram de tática e, humilhados, se apresentaram a Frei
Serafim, declarando que tinham vindo passear e que não tinham nenhuma
intenção de brigar.” (Palazzolo, 1973 [1873-1952]: 57).
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Além disso, não é difícil imaginar que, uma vez percebendo sua inferioridade numérica
durante um combate, os índios decidissem recuar e sumirem novamente na floresta, como
fizeram os Yĩmkoxeka do relato: “vamos embora! somos só um pouquinho! estamos
acabando! se continuarmos vamos morrer todos!”. E, ainda que perseguidos pelos
vitoriosos, dificilmente não lograriam escapar, até porque não seria problema esperar, de
uma parte e de outra, para dar sequência à vingança. E, já que voltamos ao tema, é notável
que a velha que morreu nas mãos do Yĩmkoxeka logo no início do relato tenha se apressado
em convocar os seus justamente a reconhecer as flechas inimigas, o que talvez indique uma
preocupação fundamental para os índios: saber contra quem se vingariam.
O imperativo da vingança
O imperativo da vingança e a obstinação com que a tarefa era perseguida pelos índios são
mesmo dos aspectos da socialidade guerreira os mais ressaltados pelos cronistas, aqui e
alhures3. É curioso, aliás, que um tal sentimento tenha sido comumente atribuído a uma
“natureza” antes do que a algum “costume”: “a vingança é neles como uma cousa inata”,
vaticinava o Frei Ângelo de Sassoferato (apud Missagia Mattos, 2002: 404). No que
Giesbrecht lhe fazia coro: “os nossos selvagens são visceralmente vingativos e perversos,
guardam por muito tempo a lembrança do mal que lhes foi feito, dos companheiros mortos
e juram terrível vingança aos seus perseguidores.” (apud Missagia de Mattos, 2002: 65). E
os colonos logo perceberam (e sofreram) as consequências de se envolverem numa guerra
de tal “natureza”: “onde escapa um bugre, testemunha do ataque à sua aldeia e da morte
nele de companheiros, jaz um implacável inimigo, sedento de ódio e de vingança e à
espreita de oportuna ocasião para ofender os seus perseguidores.” (Palazzolo, 1973 [1873-
1952]: 230)4. A proeminência da vingança é tal, entre os índios, que Henri Manizer, que
conviveu com os Krenak já nos idos de 1915, chega mesmo a sugerir que a obrigação de
vingar seria um dos principais vínculos de parentesco, como quem diz que “parente” é
3
Sobre o tema da vingança, entre os Tupinambá, especialmente, ver o artigo seminal de M. Carneiro da
Cunha e E. Viveiros de Castro, “Vingança e Temporalidade: os Tupinambá” (1985).
4
Devido a constatações como essa, desde cedo os perseguidores de índios eram instruídos e incentivados
pela administração colonial a não pouparem os “homens em idade de guerra” em seus ataques. Uma carta do
Governador Geral do Brasil, em 1688, recomendava explicitamente a degolação de todos os homens adultos
“porque poderiam vir a se rebelar no futuro”... (Perrone Moisés apud Paraíso, 1998: 68).
40
aquele cuja morte se deve vingar: “le lien d’origine n’impose q’une obligation: c’est la
coutume de venger la mort d’un parent” (1919: 263).
Assim, é notável que um provável fragmento de mito contado pelos Malali a Saint-Hilaire
quando questionados sobre a origem da guerra possa muito bem ser lido (ou confundido)
com uma certa “origem da vingança”:
41
No relato do companheiro de Frei Serafim, o Frei Ângelo, consta elas terem dito que
“somente arrastadas poderiam sair donde estavam” (Ângelo apud Palazzolo, 1973 [1873-
1952]: 55). Se um tal comportamento se observava, especialmente no âmbito dos conflitos
entre os índios, não se pode ignorar , contudo, que o que se passava nos conflitos com os
brancos era de outra ordem, e que as mulheres não tardaram a perceber o destino que lhes
era reservado na companhia destes: a escravidão, o abuso sexual, os castigos, a separação
de seus filhos... Também por isso as mulheres ficaram conhecidas por uma recusa por
vezes mais obstinada que a dos homens em deixarem seus grupos se aldearem5. E, diante
da recusa, o fim que costumavam obter não era muito diferente do que Wied-Neuwied
relatou num certo episódio: “no ataque dirigido a Linhares, pouco antes de minha chegada,
prendeu-se uma mulher, que não queria se entregar, defendendo-se por meio de dentadas e
arranhões; um soldado abriu-lhe o crânio com um golpe de facão, tão violento, que chegou
a ferir a cabeça do menino que ela trazia às costas.” (1958 [1815-1817]: 312).
De todo modo, tal ressalva não nos impede de notar o comportamento dos homens
eventualmente rendidos ou capturados em combate. Nestes casos, o guerreiro parecia
invariavelmente preferir a morte ao cativeiro: “o único sobrevivente [de um ataque de
Portugueses e Maxakali a alguns Botocudo], para não se matar, foi atado a uma árvore,
onde expirou, finalmente, recusando alimentação por três dias e batendo a cabeça contra o
tronco.” (Moura apud Missagia de Mattos, 2002: 187). Saint-Hilaire registra semelhante
atitude impávida: “quanto aos homens, se acontecia prenderem-se alguns, fechavam os
olhos, negavam-se responder às perguntas que se lhes dirigia em sua própria língua, e
deixavam-se matar.” (Saint-Hilaire, 1975 [1830]: 184). A captura de cativos adultos e
masculinos, como já afirmei, não fora, entretanto, um traço importante ou mesmo notado
no complexo guerreiro daqueles povos. O seu registro torna-se frequente, isto sim, depois
do contato com os colonizadores, que estimulavam com recompensas diversas a
participação dos índios na “caça” e comércio de escravos. A atitude do guerreiro botocudo,
5
Sobre a influência feminina na “etnopolítica” botocudo, ver Missagia de Mattos, 2002, pp. 187-200
42
Controvérsias canibais
A aparência dos índios Botocudo despertava especial repulsa aos olhos dos europeus,
como não esconde, dentre outros, o Príncipe de Wied-Neuwied: “a vista dos Botocudos
causou-nos indescritível espanto. Nunca víramos antes seres tão estranhos e feios. Tinham
o rosto enormemente desfigurado por grandes pedaços de pau, que atravessam no lábio
inferior e nas orelhas.” (1958 [1815-1817]: 52). A esta imagem particularmente
monstruosa que os colonizadores faziam deles, vinha se somar a crescente reputação de
“ferozes”, “belicosos” e “indomáveis”, que em pouco tempo alçou-os a inimigos número
um da colônia. Neste contexto, é difícil discernir no que se disse acerca de seus hábitos o
que é fato do que é juízo. Assim, a pecha de “canibais”, frequentemente atribuída aos
Botocudo, parece no mais das vezes fruto do imaginário do colonizador - para quem, no
limite, todo índio o era - antes que uma prática observada entre eles. A hipótese, contudo,
permanece em aberto, afinal foram em geral poucos, distantes ou muito breves os seus
observadores. Um dos poucos diálogos entre indígenas registrado à época - a fala do
“capitão” pojichá de nome Kan Jirun ao “língua” que tentava dissuadí-lo do combate - não
deixa, por isso mesmo, de soar inquietante:
“Eu não gosto dos brasileiros, eu estou muito bravo. Eles nos são hostis, tu
trouxeste essa gente aqui, que nos são hostis. A gente que trouxeste vou
matar como hostis a nós. Vou fazer o fogo claro e comer a carne dessa
gente. Vou assar a carne dessa gente com bananas verdes. Eu vou matar
essa gente. Outros brasileiros mataram meu pai, eu estou muito bravo.”
(apud Missagia de Mattos, 2002: 573).
Se modo de dizer ou modo de comer, não sei. Mas se praticaram a antropofagia real, esta
muito provavelmente não obteve entre eles os mesmos contornos ou a mesma centralidade
encontrada, por exemplo, entre seus vizinhos e inimigos costeiros, os Tupinambá. Neste
ponto, a atitude do guerreiro botocudo que, frente à captura, recusa a alimentação e prefere
a morte ou mesmo a provoca, contrasta nitidamente com a postura que as fontes deram a
conhecer dos cativos tupi. Não porque estes últimos rejeitassem a morte, mas porque
43
44
“Contou-me então a cena que vou narrar, e de cuja verdade devemos tanto
menos duvidar, quanto mais difícil nos foi conseguir dela sua descrição.
Um chefe de nome Jonué cudgi, filho do famoso Jonué iakiiam,
aprisionara um patachó. Todo o bando se reuniu, o prisioneiro foi trazido
de mãos amarradas, sendo morto por Jonué Cudgi com uma flechada no
peito. Fizeram então uma fogueira, onde foram cortadas e depois assadas
as coxas, os braços e as outras partes carnudas do corpo, que todos depois
comeram, dançando e cantando. A cabeça foi pendurada num poste, por
meio de uma corda, que entrava pelos ouvidos e saia pela boca, de modo a
poder-se erguê-la e abaixá-la. Ali ficou a secar, depois de lhe haverem
arrancado os olhos e raspado os cabelos, com exceção de um tufo sobre a
testa.” (Wied-Neuwied, 1958 [1815-1817]: 315).
O episódio, como se vê, é atribuído por Queck aos ânimos de um chefe em particular e
talvez - por quê não? - à particularidade de um chefe e seu grupo. Se evocarmos mais uma
vez a ameaça canibal que Kan Jirun dirigia a seus inimigos, então talvez possamos sugerir
que a prática do canibalismo estivesse condicionada a certas preferências mais ou menos
individuais, sujeita às variações de humor (isto é, de ódio e raiva) envolvendo a vítima ou
as circunstâncias de sua execução. Sua virtualidade seria, desse modo, inegável, mas sua
efetuação talvez variasse mais ainda do que, mais uma vez, entre os Tupinambá. Recorde-
se que mesmo para estes últimos, tidos como antropófagos inveterados, “forma máxima da
vingança, o canibalismo não era entretanto sua forma necessária. O gesto próprio da
45
Tal hábito talvez nos remetesse ao esfacelamento do crânio pelos Tupinambá. Seriam tais
mutilações e esquartejamentos algo como a “forma mínima” da vingança para aqueles
povos? Que a retalhação dos corpos fosse também uma forma de retaliação não é mesmo
nada improvável. Note-se que tudo o que a história tikmũ’ũn comenta a respeito é que os
guerreiros “acabavam com eles como eles faziam com os Mõnãyxop”. Mas nada indica que
o hábito estivesse associado a algum processo semelhante à aquisição de novos nomes
entre os Tupi, para o qual o esfacelamento do crânio do inimigo era uma etapa essencial.
As mutilações neste caso parecem antes associadas a algumas práticas funerárias
6
Viveiros de Castro (2002a) lança mão deste argumento justamente para demonstrar como foi muito mais
difícil demover os tupinambá da guerra de vingança do que coibir-lhes a prática do canibalismo.
46
Os Tikmũ’ũn, tanto antigos como atuais, receiam igualmente que os mortos, depois de
enterrados, transformem-se em ĩnmõxa, uma espécie de morto-vivo, canibal e ferocíssimo,
cujo corpo é escuro e duro como uma couraça e cujos ossos dos punhos se projetam para
fora como duas lâminas bastante afiadas. Extremamente ágil e veloz, é capaz de matar uma
aldeia inteira em poucos instantes. Essa metamorfose indesejada é sempre associada ao não
cumprimento, ainda em vida, do resguardo. Contudo, ao contrário do que afirmou Manizer
sobre os Krenak, os Tikmũ’ũn se aproximam das sepulturas justamente para conferir se o
morto não se transformou em ĩnmõxa. Se for este o caso, procedem à exumação e
cremação do cadáver. Voltaremos a esses espíritos canibais adiante. Por ora, o que estas
ideias sobre o destino post-mortem parecem sugerir é que o hábito de mutilar e esquartejar
os corpos dos inimigos mortos possa estar associado a este perigo de transformação.
Afinal, não deveria ser muito tranquila a ideia, para os índios, de que uma horda de
inimigos assassinados pudesse vir a perseguí-los e exterminá-los nas florestas, sob a forma
destes nanitiong ou inmõxa. E, ademais, como em geral não enterrariam os mortos de um
combate e nem se arriscariam retornar ao local para averiguar o estado de seus corpos, não
é difícil imaginar que optassem por se prevenir.
47
Mas a história que me contou Mamey não terminava ali, quando os Mõnãyxop rasgam as
barrigas dos inimigos mortos, de onde jorra mel7. O seu desfecho é outro: um Yĩmkoxeka
que, flechado, tentou fugir, morreu atravessando o rio, onde seu corpo boiava com a
barriga para cima. Os Mõnãyxop decidiram abandonar a aldeia novamente e viram o corpo
de Yĩmkoxeka boiando. Pisando no peito dele, os Mõnãyxop atravessaram o rio. Pisavam e
atravessavam, pisavam e atravessavam, e assim fizeram todos eles. Como costumam dizer
os Tikmũ’ũn, “essa história tem canto”. Hoje, Putuxop (papagaio-espírito) canta assim
quando vêm visitar suas aldeias:
kukxeka xenex nẽ
atravessando o rio pisando
kukxeka xenex nẽ
atravessando o rio pisando
tapu’ux8 xop
nos inimigos
kukxeka xenex nẽ
atravessando o rio pisando
ax i i ia
tapu’ux xop õm
naquele inimigo
tapu’ux xop õm
naquele inimigo
kukxeka xenex nãmi
atravessando o rio pisando
kukxeka xenex nãmi
atravessando o rio pisando
kukxeka xenex nẽ
7
A imagem do mel jorrando das vísceras dos Yimkoxeka de fato me intrigou. Enquanto traduzíamos o relato,
Sueli Maxakali me explicou que aquilo se devia ao costume yimkoxeka de ingerir água somente misturada
com mel. Manizer notara tal costume entre os Krenak: “dans l’eau de boisson ils mêlent souvent du miel,
mais leur friandise consiste sourtout en larves.” (1915: 259).
8
O termo tapu’ux é como os antigos Tikmũ’ũn glosavam “inimigos”, muito semelhante, de fato, ao termo em
tupi antigo tapy'yîa para glosar “não tupi”, “estrangeiros” em geral. Lembremos que os Tikmũ’ũn estavam
dentre os índios conhecidos como “Tapuias” nas primeiras décadas da invasão portuguesa.
48
tapu’ux xop õm
naquele inimigo
tapu’ux xop õm
naquele inimigo
kukxeka xenex nãmi
atravessando o rio pisando
kukxeka xenex nãmi
atravessando o rio pisando
kukxeka xenex nẽ
atravessando o rio vieram
kukxeka xenex nẽ
tapu’ux xop
nos inimigos
kukxeka xenex nẽ
atravessando o rio vieram
kukxeka xenex nẽ
atravessando o rio vieram
yak hax hia
tapu’ux xop
nos inimigos
tapu’ux xop
nos inimigos
kukxeka xenex nãmi
atravessando o rio pisando
kukxeka xenex nãmi
atravessando o rio pisando
kukxeka hahi
o rio...
49
haaaai i i i i
50
Assim, a história, que começava com um deslocamento, conclui-se com outro. O evento
guerreiro é feito canto. O canto é o próprio evento, o caminhar, o movimento. Terminado o
combate, os homens reparam os arcos e as flechas. Seguem adiante sobre os inimigos
tombados, preparando-se já para os inimigos que virão. Os Yĩmkoxeka que sobreviveram
partiram, furiosos, lançando suas flechas para o ar, hehe, hehe, hehe. Mais cedo ou mais
tarde, voltarão para se vingar. Assim a vida e a guerra seguem... estes dois movimentos
incessantes.
51
CAPÍTULO 02
A Guerra de Estado
Da guerra anti-indígena
“(...) Sendo-me presente as graves queixas que da Capitania de Minas Geraes tèm
subido á minha real presença, sobre as invasões que diariamente estão praticando
os indios Botocudos, antropophagos, em diversas e muito distantes partes da
mesma Capitania, particularmente sobre as margens do Rio Doce e rios que no
mesmo desaguam e onde não só devastam todas as fazendas sitas naquellas
visinhanças e tem até forçado muitos proprietarios a abandona-las com grave
prejuizo seu e da minha Real Coroa, mas passam a praticar as mais horriveis e
atrozes scenas da mais barbara antropophagia, ora assassinando os Portuguezes e
os Indios mansos por meio de feridas, de que sorvem depois o sangue, ora
dilacerando os corpos e comendo os seus tristes restos; tendo-se verificado na
minha real presença a inutilidade de todos os meios humanos, pelos quaes tenho
mandado que se tente a sua civilisação e o reduzi-los a aldear-se e a gozarem dos
52
bens permanentes de uma sociedade pacifica e doce, debaixo das justas e humanas
Leis que regem os meus povos; e até havendo-se demonstrado, quão pouco util era
o systema de guerra defensivo que contra elles tenho mandado seguir, visto que os
pontos de defeza em uma tão grande e extensa linha não podiam bastar a cobrir o
paiz: sou servido por estes e outros justos motivos que ora fazem suspender os
effeitos de humanidade que com elles tinha mandado praticar, ordenar-vos, em
primeiro logar: Que desde o momento, em que receberdes esta minha Carta Régia,
deveis considerar como principiada contra estes Indios antropophagos uma guerra
offensiva que continuareis sempre em todos os annos nas estações seccas e que não
terá fim, senão quando tiverdes a felicidade de vos senhorear de suas habitações e
de os capacitar da superioridade das minhas reaes armas de maneira tal que
movidos do justo terror das mesmas, peçam a paz e sujeitando-se ao doce jugo das
Leis e promettendo viver em sociedade, possam vir a ser vassallos uteis, como já o
são as immensas variedades de Indios que nestes meus vastos Estados do Brazil se
acham aldeados e gozam da felicidade que é consequencia necessaria do estado
social. (...) Que sejam considerados como prisioneiros de guerra todos os Indios
Botocudos que se tomarem com as armas na mão em qualquer ataque; e que sejam
entregues para o serviço do respectivo Commandante por dez annos, e todo o mais
tempo em que durar sua ferocidade, podendo elle emprega-los em seu serviço
particular durante esse tempo e conserva-los com a devida segurança, mesmo em
ferros, emquanto não derem provas do abandono de sua atrocidade e
antropofagia.”
(Carta Régia, 13 de maio de 1808)
Com estas palavras, o Príncipe Regente D. João VI mandava fazer guerra aos índios
Botocudo pouco mais de dois meses após a transferência da corte portuguesa para o Rio de
Janeiro, em março de 1808. A carta é um registro eloquente da orientação que o Estado
passaria a assumir em relação aos povos indígenas das capitanias de Minas Gerais, Espírito
Santo e Bahia ao longo do século XIX. Se a guerra contra os índios, oficial ou não, já se
fazia há séculos naquelas partes, sua ofensiva desta vez declarada pela autoridade máxima
do Império não deixava de ser reveladora dos interesses que ora se voltavam para aquela
que até então fora convenientemente conservada enquanto sua “zona tampão”.
Várias razões justificam este renovado interesse nos territórios até então pouco explorados
que se estendiam entre os Vales do Rio Doce e Mucuri. As minas de ouro e diamante já há
algum tempo davam sinais de esgotamento e, naquele início de século, o declínio da
53
mineração instalava uma crise econômica de grandes proporções, que afetaria radicalmente
os rumos da política interna e externa do país. Outro marco histórico importante, a
transferência da sede do Império para o Rio de Janeiro, também daria novo impulso à
política expansionista e integracionista estatal, mais tímida durante o período colonial
devido à própria distância geográfica da metrópole e suas maiores dificuldades em manter
o controle sob o território. Além disso, era necessário abastecer a população que se
implantava ou crescentemente se acercava da capital.
Mas a nova ofensiva que se anunciava muniu-se igualmente de novas estratégias. Àquela
altura, os administradores regionais já haviam adquirido experiência suficiente para
perceberem que o confronto direto com os índios era ineficaz, que o seu resultado era
somente acirrar os ânimos dos guerreiros e estimular novos ataques, impedindo a
penetração e implantação dos colonos na região. Era preciso, portanto, conquistá-los, mas
não somente através da força e da supremacia bélica como se havia tentado até então. A
9
Lembremos que a primeira medida do Príncipe Regente ao chegar ao Brasil foi declarar a abertura dos
portos às nações amigas e romper, com isso, o exclusivo colonial.
54
Neste tocante, o manuscrito Como se deve tratar os indígenas para trazê-los ao grêmio da
civilização, do Frei Ângelo de Sassoferato orientava: “para atrair o índio à civilização é
preciso presenteá-lo, tratá-lo com lhaneza e jovialidade e, sobretudo, não mostrar-lhe
desconfiança, o que exige do missionário prodígios de habilidade e prudência. Só se lhe
pode impor autoridade com muita delicadeza.” (apud Palazzolo, 1973 [1873-1952]: 229).
O próprio Rei, aliás, vendo os efeitos de tal orientação política renderem os primeiros
frutos nos aldeamentos das margens do Rio Doce passaria a ver com bons olhos a medida e
a recomendar igualmente "(...) captar a amizade e a aliança dos Botocudos mansos e para
por seu modo principiar a fazer aldeias a que depois possam vir sucessivamente
incorporar-se os Botocudos bravos, continuando a fazer-se-lhes uma dura guerra enquanto
não quiserem pacificar-se e viver debaixo da proteção das Leis de S.A.R (...)” (apud
Paraíso, 1998: 245).
Concomitante a essas orientações viria se somar ainda outra tática crucial, e talvez final, de
perseguição aos indígenas: o “devassamento” da floresta. A ordem era avançar sobre o
território, explorá-lo, rasgá-lo em estradas, sesmarias, vilas, aldeamentos... “Desinfestá-lo”,
como se usava dizer no jargão da época, para então aproveitar suas terras, madeiras, couros
e mananciais. Assim, aos poucos, os colonizadores logravam reduzir a exuberante fauna e
vegetação de Mata Atlântica que tanto os assombrava: “ao europeu – escreve Frei Ângelo -
causavam pasmo as árvores seculares do Brasil, de 30, 40 e mais metros de altura e
grossura extraordinária.” (Palazzolo, 1973 [1873-1952]: 42); “essas florestas virgens,
densamente entrelaçadas, em cujo interior reinam trevas quase eternas, são de encher a
alma com arrepio e pavor.” (Spix, 1981 [1781-1826]: 222) 10. Além disso, era muito
10
Rosângela de Tugny (2011b) dedicou um belo texto ao confronto entre os dois modos diametralmente
opostos de relação com a floresta, notadamente o dos indígenas que a habitavam há séculos e o dos colonos e
naturalistas europeus que a percorreram com um misto de terror e desprezo.
55
comum os cronistas constatarem que, por maiores que fossem seus esforços e
investimentos em “seduzi-los”, nada parecia demover os indígenas de retornarem ao abrigo
das florestas e ao convívio dos seus parentes. Nas palavras de Freireyss: “pode-se tirar um
selvagem brasileiro de suas matas e trata-lo de melhor modo, que elle sempre estimará,
acima de tudo, poder voltar para os seus patrícios.” (Freireyss, 1901: 247). E o Barão
Johann Jakob von Tschudi concluía: “(...) não se sentem bem por muito tempo entre os
homens civilizados e têm uma saudade incontrolável de suas florestas.” (2006 [1866]:
265).
Por isso mesmo, os diretores dos aldeamentos, bastante importunados pela inconstância
dos indígenas e por suas frequentes “deserções”, costumavam concluir que “enquanto
houvesse mata haveria correrias de índios” (Gorízia apud Missagia de Mattos, 2002: 399) e
o então Governador de Minas Gerais, Ataíde e Melo, reforçando as ordens de deitar
floresta abaixo, vislumbrava o tempo quando “(...) estes antropófagos se achariam na
precisão de largarem suas habitações; e uma vez perseguidos, se embestariam nos matos à
proporção que estes fossem desmanchando e com o andar do tempo se domariam (se é
possível domar monstros deste toque).” (apud Paraíso, 1998: 180). No mesmo sentido
caminharia a observação de D. João VI em outra de suas cartas às autoridades locais:
É assim que - mais e mais acuados territorialmente, assolados pela fome e pelas doenças,
além de frequentemente ameaçados pelos combates constantes com seus inimigos índios -
aos poucos, vários povos começavam a se “apresentar” nos aldeamentos e vilas da região.
“Jak Jemenuk”, “estamos mansos”, aprenderam a dizer aos Botocudo os portugueses e a
expressão era por eles repetida, como um código de aproximação, acompanhadas
frequentemente por “sincorana”, “capitão paquejú rehe”, “tenho fome”, “o capitão
56
grande é muito bom” (Otoni, 2002 [1859]: 81). Com efeito, a distribuição de presentes -
geralmente foices, machados, facões de metal, vestimentas e alimentos - seria muito mais
eficaz enquanto estratégia de “atração” e os nomes de Guido Marlière e Teófilo Otoni
marcam especialmente dois momentos desta nova orientação política levada a cabo nos
vales do Rio Doce e Mucuri do século XIX.
Marlière era um oficial francês que aportou no Brasil com a família real portuguesa e que
foi alguns anos mais tarde nomeado Diretor Geral da Civilização dos Índios em Minas
Gerais, onde comandou as sete divisões militares distribuídas entre as bacias dos rios
Doce, Suaçuí Grande, Jequitinhonha e Araçuaí. Atuou especialmente entre os índios Puri,
Coroado e Naknenuk e tornou-se conhecido por estimular “relações pacíficas” com estes
grupos, reformando o quadro dos servidores dos destacamentos militares (composto em
sua maioria por homens degredados ou condenados nos tribunais de deportação europeus)
e coibindo as conhecidas práticas de caça ou extermínio dos indígenas tão em voga em
toda a região. Já Teófilo Otoni, comerciante e proprietário oriundo de uma família
tradicional do Serro, seguia carreira política como deputado no Rio de Janeiro quando
convenceu o governo imperial a criar a Companhia de Comércio e Navegação do Mucuri,
da qual foi nomeado diretor. Animado pelos relatos do engenheiro Victor Renault, que
percorrera a bacia daquele rio em 1836, Otoni prometia finalmente cumprir o antigo ensejo
da administração colonial de interligar “o sertão de Minas, do Nordeste Mineiro, com um
pôrto do mar, em linha reta, atravessando as matas virgens” (Timmers, 1969: 12). Com
este objetivo percorreu a bacia do Mucuri em 1847, aonde regressou e se implantou
definitivamente a partir de 1852, fundando a cidade de Filadélfia, assim batizada devido à
admiração do diretor pela colonização da Pensilvânia, nos EUA e mais tarde rebatizada
com o seu próprio nome. Ali, naquele mesmo ano, Otoni se depararia com centenas de
índios Naknenuk:
“Os primeiros cumprimentos que lhes fiz foram uma larga distribuição de
toucinho, farinha e rapaduras. Um dos índios era Poton, cacique de uma
das tribos que ocupavam um ribeirão, légua e meia abaixo daquele lugar.
(...) De Poton declarei-me parente, Poton-Otoni, e êle acolheu rindo a
demonstração de que o éramos. Aceito o parentesco, disse-me que eu
trouxesse os mais parentes, porque as terras eram muitas e chegavam para
todos. Peguei-lhe pela palavra e quinze dias depois abria-se, por conta de
57
58
A chegada nos aldeamentos era ainda acompanhada por sucessivas baixas populacionais,
devido aos surtos de gripe, sarampo e varíola, doenças que dizimavam os índios e contra as
quais não podiam resistir. As numerosas mortes com frequência confirmariam neles os
receios de que os brancos (especialmente os padres) fossem os autores de tamanhos
feitiços, e estas eram sempre ocasiões propícias a ataques e agitações, afinal, “quando entre
eles morre alguém” - observava o Frei Ângelo de Sassoferato - “há sempre pavoroso
alvoroço, vinganças estúpidas, brigas e roubos, tudo acrescido do pranto das mulheres, a
modo das carpideiras judaicas.” (apud Palazzolo, 1973 [1873-1952]: 118). Além disso,
pelas mesmas razões evocadas no final do capítulo um, envolvendo o potencial de
transformação dos mortos em feras canibais, era comum que os índios abandonassem suas
aldeias quando da morte de um parente, geralmente queimando-se-lhes as casas: “(...) pois
jamais ocupam habitações que tenham servido de túmulos” (Wied-Neuwied, 1958 [1815-
1817]: 268). Também por isso, não é difícil imaginar que ao ver dezenas dos seus
sucumbirem e serem enterrados à moda cristã, bem perto de onde viviam, aqueles grupos
logo desejassem partir...
Mas, com o tempo, suas estratégias de afastamento e contato também iam se inovando, e
os índios passavam a manipular com habilidade as imagens que os portugueses faziam ou
esperavam deles, servindo-se delas em benefício próprio, como demonstra exemplarmente
o episódio registrado por Saint-Hilaire, envolvendo os “Machaculis” e que vale a pena
transcrever na íntegra:
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“Já há muito tempo que essa tribo se pôs em contato com os portugueses,
fugindo assim como os Malalis, Monochós, Macunis, etc., das
perseguições dos Botocudos, inimigos de todas as demais nações índias.
Os Machaculis procuraram asilo, em primeiro lugar, em Caravelas, onde
se fizeram grandes dispêndios para inspirar-lhes o gosto pelo trabalho.
Preguiçosos como o são todos os indígenas, amigos da independência,
habituados à vida nômade, apaixonados pela caça, não se costumaram a
cultivar a terra. Esses índios, vendo que não eram mais alimentados, e que
tinham cessado de lhes dar instrumentos de ferro e vestimentas,
abandonaram o litoral; meteram-se pelas matas, e chegaram, mais ou
menos em 1801 às proximidades de Tocoios. Quando ainda estavam em
Caravelas, tinham-nos batizados, e aprenderam um pouco de português;
mas querendo encontrar em Tocoios as mesmas vantagens que em
Caravelas, empregaram a astúcia; fingiram sair pela primeira vez das
selvas, e se apresentaram, sem dizer uma palavra em português, fazendo
sinais para mostrar que se queriam tornar cristãos. Os habitantes de Tocois
se enganaram com este embuste e escreveram para Villa Rica que uma
nação indígena, até então desconhecida, tinha chegado à sua povoação;
que mostravam as melhores disposições, e pedia o batismo. Imediatamente
a administração concedeu socorros para civilizar os recém-vindos; deram-
lhes ferramentas e roupas; mandou-se construir para eles uma capela; deu-
se-lhes um sacerdote; encarregou-se um diretor de instruí-los e, ao mesmo
tempo, colocou-se perto de Tocoios um destacamento militar, para manter
a ordem. Apesar de todos esses esforços, não se obtiveram em Tocoios
resultados mais felizes do que em Caravelas; os Machaculis aproveitaram-
se dos benefícios dos portugueses, mas não se tornaram mais laboriosos.
No entanto, o embuste destes índios não permaneceu por muito tempo
ignorado. Foi descoberto pelo capitão João da Silva Santos, que quando
explorou o curso do Jequitinhonha, ficou não pouco admirado ao chegar
ao Tocoios em 1804, de aí encontrar esses Machaculis, com os quais já se
tinham feito tão grandes despesas na comarca onde ele era o capitão-mor.”
(Saint-Hilaire, 1975 [1830-1851]: 271).
60
Desse modo, os pedidos por mais ferramentas, presentes e víveres tornavam-se incessantes
e seriam o motivo de crescente importuno para os seus civilizadores. Como diria o Frei
Palazzolo: “o índio é exigente; quer tudo o que vê e lhe apraz. Na mata, vive da pesca e da
caça como pode, mas, em companhia dos civilizados, é sumamente exigente e, se não lhe
derem o que ele viu e pretende, rouba e se torna até insolente.” (1973 [1873-1952]: 61).
Marlière fornece uma imagem ainda mais vívida do seu incômodo:
“Enquanto essa gente não ficar mais arraigada nos nossos costumes, outras
providências não convém por ora ter-se com ela senão o afago e mimo;
porque pode pela menor desconfiança desprezar todas as comodidades
presentes, principalmente não estando ainda bem estabelecida e tornar a
ser-nos bastante prejudicial (...)” (Mascarenhas apud Missagia de Mattos,
2002: 217).
“As promessas que fizer devem ser observadas porque o selvagem, ainda
que o seja, tem tino bastante para se escarmentar da primeira falta de fé
com eles praticada e desta conduta iníqua dos nossos encarregados da
civilização deles, tem o Estado a enorme perda e falta de tantos braços,
como a história mostra.” ( Ferraz apud Paraíso, 1998: 402).
61
Como os índios não se adaptavam, mesmo após anos aldeados, às atividades agropastoris -
principais práticas econômicas da região - imaginou-se que porventura obteriam maior
sucesso explorando as atividades nas quais os nativos se destacavam, como a guerra, as
derrubadas, a navegação, a olaria ou a pesca. Assim, houve quem chegasse mesmo a
vislumbrar que, senão pela agricultura, quiçá pela pesca se cativaria finalmente os
selvagens...
62
63
Mas a paciência dos colonos com os índios não demoraria a se esgotar. Em grande medida,
a tal política de alianças e relações pacíficas respondia à escassez de mão de obra na região
e só era interesse dos proprietários sustentá-la enquanto não fosse possível atrair para ali
um maior contingente populacional, preferencialmente branco. Além disso, em meados do
século XIX, a penetração naqueles territórios já se encontrava muito mais consolidada e
com a rápida e drástica redução da população indígena, os riscos provocados por sua
inimizade e ataques já se viam relativamente contidos e não eram mais impedimento
suficiente para o estabelecimento dos colonos. Por isso, aos poucos, os políticos e
fazendeiros locais começavam a julgar absurdo dispender recursos com a civilização dos
selvagens – esforço considerado, ademais, lento e inútil - em vez de financiar, por
exemplo, a atração de imigrantes europeus, estes sim “naturalmente laboriosos”:
64
De volta ao Rio de Janeiro, onde desembarcara tomado pela indignação e trazendo consigo
algumas dezenas de imigrantes doentes, o médico procurou imediatamente a corte para
11
Assim os descreviam Tschudi: “(...) gente que nada queria com o trabalho, sujeitos fracassados, criminosos
libertados, prostitutas e somente algumas poucas pessoas ordeiras, pois as promessas lhes deviam parecer, de
antemão, muito suspeitas.” (2006: 308).
65
relatar sua viagem e denunciar a situação que testemunhara na Província de Minas Gerais,
sem poupar críticas à Companhia de Comércio e Navegação do Mucuri e ao seu diretor,
Teófilo Otoni. As providências do imperador foram enviar logo dois emissários à região.
As denúncias de Avé-Lallemant cruzaram o oceano e foram a causa da suspensão da
licença para a remessa de novos imigrantes alemães ao Brasil12. De volta ao Rio, Otoni
rebateria as denúncias e tentaria recuperar a confiança no seu empreendimento. De fato,
chegaria a conseguir um novo empréstimo naquele mesmo ano, mas a crise já estava
instalada. No ano seguinte, outro evento trágico aceleraria o declínio da Companhia: o
vapor de nome “Mucuri”, um dos principais da frota, naufragaria nos mares do Espírito
Santo. Em setembro do mesmo ano, o governo imperial adquiria todas as ações da empresa
e em 1861 as colônias do Mucuri passavam de vez ao seu controle.
A conversão à lavoura
12
“Conta-nos o pastor Bielefeld que o nome ‘Mucuri’ tornou-se uma palavra pela qual a gente, na velha
pátria tinha costume de assombrar as crianças até chorarem: ‘cuidado meu filho, se não obedecer, eu te
mando pro Mucuri!’, um nome que durante decênios na Alemanha era o primeiro citado porque queriam
combater e desgabar a emigração ao Brasil.” (Timmers, 1969: 48).
13
Comparando os capuchinhos seus contemporâneos aos antigos jesuítas, Tschudi escrevia: “(...) os
capuchinhos de nossa época não têm o mesmo espírito que os fransciscanos e jesuítas dos séculos passados.
Falta-lhes a força espiritual, a consciência da importância da missão, a coragem admirável e dedicação
66
ocupação desta região. Além disso, na aurora do século XIX, a própria Igreja Católica já
não desfrutava do mesmo espaço nas esferas de decisão política e devemos lembrar que os
jesuítas, há menos de meio século, haviam sido expulsos de Portugal e de suas colônias por
ordem do Marquês de Pombal. Assim, será a atuação da missão dos frades capuchinhos
que se destacará na Província de Minas Gerais, especialmente a partir do Regimento das
Missões e Civilização dos Índios, publicado em 1845. Sua intervenção vinha alimentar a
esperança de que a expertise e a perseverança próprias da empresa missionária dessem
finalmente conta da civilização do gentio, objetivo que os soldados e administradores
locais já desconfiavam ser impossível alcançar.
abnegada que levaram aqueles indivíduos às profundezas das florestas e às choupanas das tribos mais
selvagens. Os capuchinhos do Brasil (a maioria, alemães da província de Tirol) acham muito mais
confortável e seguro ficar entre os alemães dóceis do que entre os botocudos selvagens, cujas flechas são
muito pontudas.” (2006: 275).
67
que nas “almas” dos selvagens. Mas que a instrução religiosa fosse de fato uma
preocupação secundária não tornava a conversão ao trabalho menos improvável, como já
apontei. E como sua insistência em fixar e civilizar os índios em pouco resultava, os
missionários não demoraram eles também a concluir pela impossibilidade da tarefa,
especialmente em relação aos adultos. Por isso mesmo, os dois métodos que mais
obstinadamente perseguiriam nos aldeamentos eram a educação das crianças indígenas,
devidamente apartadas do convívio com os pais, e o estímulo aos casamentos entre índios e
nacionais:
68
Assim não era raro ouvir os índios lamentarem: “os portugueses (...) levaram-nos quase
todos os nossos filhos, prometeram-nos que eles voltariam, e, no entanto, não os vimos
mais.” (Saint-Hilaire, 1975 [1830-1851]: 258). Muitas vezes, a doação das crianças seria
mesmo a “moeda de troca” para obterem comida e abrigo nos aldeamentos e afirmarem
suas intenções de ali se estabelecerem. Eis, portanto, como eram praticadas as ideias à
época tão em voga da “mestiçagem racial”: uma vez separadas as crianças dos demais
índios, não se esperava destes senão que fossem aos poucos desaparecendo, sendo a tarefa
deixada a cargo das doenças, do alcoolismo, das execuções sumárias e, mais raramente, do
envelhecimento, de modo que, com a morte progressiva dos mais velhos, contavam ver em
breve abolida a distinção entre “índios” e “nacionais”. (Palazzolo, 1973 [1873-1951]: 175).
Mas, obviamente, uma tal indistinção só era desejada se englobada pela distinção, esta sim
intocável, entre “nacionais ricos” e “lavradores pobres”, aos quais os índios deveriam
justamente se fundir. O interesse fica explícito na política de “uniões mistas”14 levada a
cabo nos aldeamentos:
14
Valeria a pena, aliás, analisar detalhadamente os ofícios e censos da época, tendo em vista o sentido destas
uniões e a confirmação de certas tendências, como a união muito mais comum entre mulheres indígenas e
homens brasileiros do que o inverso. Além disso, as uniões entre indígenas e lavradores pobres significava,
no mais das vezes, entre índios e negros. Um tal detalhamento demográfico talvez nos permitisse demonstrar
com maior rigor quem, de fato, se “misturou” com quem na história da por vezes tão elogiada mestiçagem
nacional. Para uma pequena demonstração neste sentido, ver a apresentação de Missagia de Mattos (2002:
483) do progressivo apagamento das origens indígenas nos nomes ou sobrenomes das alunas do antigo
colégio Santa Clara, em Itambacuri.
69
Conversão e reversão
Num ensaio recente e de amplo alcance comparativo, José Antonio Kelly (s/d) distingue
uma das principais características da “máquina da mestiçagem” e de sua influência na
formação das identidades nacionais ou criollas latinoamericanas; trata-se da ideia de que o
processo da mestiçagem age através de um tipo de “fusão consumptiva”, para o qual a
“mistura” entre índios, negros e europeus, se bem que elogiada pelas elites nacionais,
sempre prevê no seu ínterim a absorção dos primeiros pelos últimos. Por isso, a ideia por
vezes tão louvada de que “somos todos misturados” não costuma contradizer, neste
70
71
O que pretendo destacar aqui é somente que, se o “escândalo” diante de tais movimentos
parece tanto maior quanto mais recente eles são – isto é, quando já se presumia que estes
coletivos estivessem há muito e irreversivelmente desligados de suas “origens históricas” –
movimentos de “conversão” e “reversão” foram, entretanto, uma constante no processo de
colonização dos vales do Mucuri e Rio Doce, como as fontes aqui revistas permitem
concluir. Assim, não era menor o incômodo dos missionários, comandantes, governadores,
etc. quando testemunhavam que os índios, mesmo após décadas aldeados, convertidos ou
civilizados, frequentemente os surpreendessem com insuspeitadas reviravoltas:
72
Ora, tais trajetórias individuais nada incomuns encontrariam ressonâncias, por sua vez, em
movimentos coletivos, como nos inúmeros casos de abandono dos aldeamentos já
mencionados ou nas revoltas que com frequência eclodiram nas colônias da região. Não
por acaso, o aldeamento por muitos anos celebrado enquanto o exemplo de maior sucesso e
prosperidade de toda a Província de Minas Gerais revelar-se-ia igualmente o de maior
fracasso. Trata-se da Missão do Itambacuri, fundada em 1872 pelos capuchinhos Frei
Ângelo de Sassoferato e Frei Serafim de Gorízia, aqui já referidos algumas vezes. Ao
longo de vinte anos, os dois padres lograram erguer naquela região um pequeno povoado,
onde vieram se estabelecer diversos povos indígenas, a maioria deles Aranã, Naknenuk e
Pojichá. O aldeamento daqueles povos pouco conhecidos e considerados, ainda na segunda
73
metade do século XIX, como o “terror do Mucuri” era celebrado pela população local
como uma espécie de vitória final sobre os selvagens. Como narrou o Frei Palazzolo: “a
entrada dos índios Pojichás em Itambacuri constituiu, sem dúvida, um grande triunfo (...).
A vasta região do Mucuri estava agora livre de incursões, massacres e depredações; podia
a pacífica população cuidar dos seus trabalhos sem temores.” (1973 [1873-1952]: 143).
Mas, para surpresa de todos, numa noite de maio de 1893, centenas dos índios aldeados - a
maioria deles “meio-civilizados”, como usavam classificá-los - armaram um ataque contra
os padres e os nacionais vivendo no aldeamento. Munidos de seus arcos e flechas, os
corpos pintados com urucu e jenipapo, os índios se esconderam nas matas ao redor do
cemitério local, aguardando que os dois padres voltassem de sua habitual visita à horta da
missão. No caminho de volta, já ao anoitecer, os dois foram surpreendidos com duas
flechas certeiras, lançadas em suas direções. Uma delas por pouco não atingira no peito o
Frei Serafim, penetrando-lhe no antebraço esquerdo. A outra feriu o Frei Ângelo na
espádua, mas sua ponta resvalou. O frade então sacou sua espingarda e atirou:
Meio que por milagre, os dois padres sobreviveram. Ao todo, “foram mortos quatro
nacionais e 7 foram flechados, tendo enlouquecido um, pelo choque de terror (...)” (Gorízia
e Sassoferato apud Palazzolo, 1973 [1873-1852]: 197). As notícias dos ataques não
tardaram a chegar em Teófilo Otoni, de onde partiram imediatamente 20 praças que
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CAPITULO 03
82
Os Tikmũ’ũn também se referem aos Yãmĩyxop como Koxukxop17. Koxuk é a palavra que
empregam para glosar as sombras, os rastros deixados por algo ou alguém no solo, uma
fotografia ou imagem de vídeo, aquilo o que todos os viventes têm e que os mortos são18, e
que os etnólogos também conhecemos como “alma”, “princípio vital”, “duplo” ou
“imagem” - noção praticamente universal em toda a América Indígena. Quando viajam
longas distâncias (como entre a aldeia e Belo Horizonte), os Tikmũ’ũn recomendam
sempre chamar o Koxuk antes de partirem ou regressarem, sob o risco dele não
acompanhá-los. O Koxuk também pode abandonar o corpo dos vivos durante o sono - o
que é mais comum - e perambular por aí, seguindo caminhos muitas vezes perigosos que
conduzem, dentre outros lugares, às aldeias onde vivem os mortos, de onde nem sempre é
16
Digo “chamamos”, no plural, pois adoto aqui em boa medida as traduções propostas por Rosângela de
Tugny (2009a, 2009b, 2011a) a partir de um longo trabalho desenvolvido em parceria com especialistas
tikmũ’ũn ao longo da última década.
17
“Os Tikmũ’ũn mostram-me sempre os Yãmĩyxop, os povos-espíritos, com seus corpos pintados chegando à
aldeia, dizendo-me que são ‘Koxuk’ ou Koxukxop.” (Tugny, 2011a: 88).
18
Afinal a morte não é senão uma viagem do Koxuk às terras distantes onde ficam as aldeias dos parentes
mortos, uma dissociação, em suma, do Koxuk e do corpo (ãyĩn).
83
possível retornar. Tais excursões são precisamente os sonhos (yõn kup) e o perigo neles
envolvido é este não retorno (a morte) ou este retorno mais árduo, que implica a doença ou
“quase-morte”19. Quando morrem, contudo - isto é, quando deixam seus corpos (ãyĩn) de
vez - o Koxuk pode perambular ainda algum tempo pelos arredores da aldeia, decidido a
levar consigo algum parente próximo, motivo pelo qual todos redobram suas atenções
nesses momentos, enterrando, destruindo ou queimando os pertences e às vezes a própria
casa do morto ou mudando-se de aldeia; livrando-se, em suma, de todos os seus vestígios
ou de tudo aquilo o que pode evocar sua lembrança e despertar saudades, tristeza (estes
dois sinônimos: yãĩy) nos seus parentes vivos - sentimentos que são como atalhos para a
doença e a morte. Mas com o tempo, os vivos vão se esquecendo dos mortos e os mortos
vão se esquecendo dos vivos. O Koxuk então vai se juntar aos Yãmĩyxop, Koxukxop. Agora
virão às aldeias tikmũ’ũn para comer, caçar, cantar e dançar.
Sobre esta transformação dos mortos em Yãmĩy sei muito pouco. Os Tikmũ’ũn, sempre que
instigados por mim, falavam dela num certo tom de obviedade, sem entrar muito em
detalhes. Frances Popovich (1988:108) afirma que, passado este período logo após a morte,
em que o Koxuk representa uma significativa ameaça aos vivos, seu destino é “escolher”
dentre os bandos de espíritos aquele entre os quais deseja ficar (i.e., se transformar) sendo
tal escolha relacionada ao grupo de cantos/yãmĩy que a pessoa adquiriu em vida. A autora
afirma também que nas situações comuns, o Koxuk do morto é guiado por algum parente
morto pelos caminhos que conduzem até suas aldeias distantes. Bem, esta imagem me
parece indissociável das experiências de “quase-morte”, isto é, dos sonhos ou dos
momentos de perda de consciência, tal como os Tikmũ’ũn costumam descrever. Neles,
muitas vezes, os índios se deparam com um parente morto que os conduzem até suas
aldeias, que em quase tudo se assemelham às dos vivos: as casas são como as deles, feitas
de palha, há fartas plantações de mandioca, batata e banana, a mata é grande e a caça
abundante... Lá são convidados a comer e a participarem dos rituais com eles, convite que
devem a todo custo recusar. Se aceitam ficar por lá, compartilhando de suas comidas e
rituais, adoecem aqui. Se decidem não voltar, morrem. Esta, portanto, parece ser a
“escolha” em jogo. Além disso, como os cantos e, portanto, a posse dos Yãmiyxop
19
A funcionária da Cordenação Técnica Local (CTL) da Funai em Teófilo Otoni recebeu certa vez um
telefonema de uma aldeia tikmũ’ũn comunicando que uma mulher havia sofrido um ataque cardíaco e
morrido. Ela se apressou em providenciar o resgate e em comunicar a morte às autoridades locais quando um
novo telefonema desfez o mal-entendido: “ela morreu só um pouquinho”, corrigiram os Tikmũ’ũn, depois
que a parente despertou-se de um longo desmaio.
84
circulam entre os parentes próximos, poderíamos talvez supor que os mortos se reúnam
eles também, entre os seus, de modo que o destino-yãmiy de cada um seja, como me
pareceu, um tanto óbvio.
Mas o Koxuk dos mortos também podem assumir a forma de animais variados, como
capivaras, pacas, caititus, sucuris, veados, onças... Não por acaso, a palavra para se referir
aos bichos em geral, xokxop, bem poderia ser traduzida por algo como “os mortos”, afinal
o radical “xok” é igualmente o termo para “morto” e xop, como já sabemos, um
coletivizador. Estes mortos-animais, me contou Isael, são especialmente agressivos. Ficam
à espreita dos vivos na beira do rio ou nas trilhas da mata esperando sua passagem para que
possam atacá-los. Quando os vivos visitam a aldeia ou casa abandonada de um morto, é
comum também se depararem com os rastros do bicho. Se são mortos por um caçador e
desavisadamente ingeridos, podem provocar doenças. Será então preciso queimar um
pedaço de seu couro ou osso e untar as cinzas sobre o doente, expulsando o Koxuk do
morto do seu corpo e pedindo que vá embora: apep! apep!
Espíritos, mortos, animais... Como se vê, estamos diante de mais um daqueles casos
abundantes nas etnografias sul-americanas em que tais posições privilegiadas da alteridade
se comunicam ou intercambiam. É bem provável, aliás - como notou Marcela Coelho de
Souza para a noção jê setentrional mekarõn - que a vizinhança entre as noções tikmũ’ũn de
yãmĩy, koxuk e xokxop expressem um semelhante “problema de perspectiva”: “de seu
ponto de vista (em sua aldeia), os mekarõn são humanos; do ponto de vista dos humanos,
no entanto, são animais, a não ser que logrem capturar o humano para o seu próprio ponto
de vista, revelando-se então como espírito de um morto” (2001: 74). Tais inversões de
perspectiva atentam, por sua vez, para a própria impossibilidade de apontarmos definições
estáveis ou definitivas para essas mesmas noções. Por isso, talvez, nossas traduções,
sempre que tentamos nos aproximar destas potências outras, nos pareçam sempre
insatisfatórias, equívocas, parciais... Pois não são apenas múltiplos os “sentidos” de
expressões como Yãmĩyxop. São os Yãmĩyxop eles mesmos multiplicidade. Daí suas
variações aparentemente infinitas, refratárias às nossas tendências totalizadoras,
objetificantes e classificatórias. Assim, pelo menos, entendo a lista que me preparou certo
dia o pajé Mamey, na qual mencionava algumas dezenas de variações ou “qualidades”
existentes somente entre os povos-morcego-espírito, Xũnĩm:
85
86
“Um espírito, na Amazônia, é menos assim uma coisa que uma imagem,
menos uma espécie que uma experiência, menos um termo que uma
relação, menos um objeto que um evento, menos uma figura representativa
transcendente que um signo do fundo universal imanente – o fundo que
vem à tona no xamanismo, no sonho e na alucinação, quando o humano e
o não humano, o visível e o invisível trocam de lugar.” (2007: 326)
Os Yãmĩyxop não têm hora pra chegar e, a rigor, qualquer homem adulto pode “chamá-los”
(xanãhã), embora geralmente comuniquem a intenção aos pajés mais experientes com
alguma antecedência. Estes chamados são feitos a partir de longos assovios que alguém
emite já dentro do kuxex20. Conforme o som ecoa pela aldeia, os homens interrompem aos
poucos os seus afazeres e rumam em sua direção. No kuxex, enquanto aguardam a chegada
dos demais, os pajés mantêm animadas conversas, entremeadas o tempo todo por
brincadeiras e gozações uns com os outros, motivo pelo qual do pátio sempre se ouvem
sucessivas explosões de risos. São nestas horas também que alguns homens mais velhos
costumam contar aos presentes as histórias dos Mõnãyxop - os compridos cigarros de
tabaco enrolados em folhas de caderno circulando de mão em mão. Quando se juntam
20
Quando um dia, desprevenido e um tanto orgulhoso, eu praticava dentro de casa as técnicas de assovio que
havia aprendido no kuxex, fui repreendido por minha anfitriã: “tá louco roberto? chamando Yãmĩyxop aqui
pra dentro?”. O assunto depois virou motivo de piada.
87
alguns homens – em torno de quinze ou trinta - e percebe-se que, por ora, mais não
aparecerão, é hora dos Yãmĩyxop descerem, cantando. Como cantam?
Assim como os regimes enunciativos dos cantos, o próprio desenrolar dos rituais variam
enormemente: podem acontecer pela manhã, à tarde ou à noite, durar algumas horas de
cantoria no kuxex ou estenderem-se por dias (e noites) seguidos; exigirem para sua
realização a morte de bois ou porcos ou somente algumas bolachas com café... Tudo varia
conforme os Yãmĩyxop, as orientações dos pajés, os homens que participam, os cantos que
possuem, a pessoa ou família que chamou o Yãmĩy e que, portanto, deve patrocinar,
preparar e oferecer o banquete (ãmmok xeka), feito no mais das vezes de arroz, feijão,
frango, macarrão, café, biscoitos, bananas e refrescos... Tampouco a execução dos
repertórios de cantos dos Yãmĩyxop respeitam algum ordenamento rígido. Como
igualmente enfatizou Tugny, sua estrutura é sempre instável, cambiante, pois “não existe
88
apenas uma sequência inequívoca e unilinear, entre os cantos de um ritual. Cada canto está
em situação de vizinhança com respeito a vários outros e pode se conectar a outros cantos
de diferentes formas.” (2011a: 207).
Os Tikmũ’ũn desde crianças adquirem cantos doados por seus parentes mais próximos.
Receber um canto é, ao mesmo tempo, vincular-se a um Yãmĩy, tornar-se o seu “pai” (tak)
ou “mãe” (tut), passar a partir daí a “cuidar” deles e alimentá-los sempre que estejam de
passagem pelas aldeias. Por isso os Tikmũ’ũn também se referem aos pajés (ou payexop)
como Yãmĩyxop tak ou Yãmĩyxop tut, “pais” ou “mães” dos Yãmĩy. Quando recebem esses
cantos, é nos seus corpos mesmos que eles vêm habitar. Assim, costumam dizer dos
“grandes” pajés, que conhecem/possuem muitos cantos, que sentem mais fome que os
demais e que, por isso, comem sempre muito, pois os seus Yãmĩy comem com e através
deles. É neste sentido também que podemos dizer que todos os homens e mulheres são um
pouco xamãs, pois todos possuem cantos/yãmiy. Afinal, como afirmou Viveiros de Castro:
“as palavras que traduzimos por xamã não designam algo que se é, mas algo que se tem –
uma qualidade ou capacidade adjetiva ou relacional, mais que um atributo substantivo (...)”
(2004: 322). Que os Tikmũ’ũn, ademais, não vacilem em apontar em suas aldeias quem são
“os” pajés - geralmente homens mais velhos, também chamados yãyãxop – em nada
contradiz essa ideia, pois essa diferença se mantém “de grau” e não “de natureza”. Afinal,
que alguns homens sejam reconhecidos como principais “conhecedores” ou “especialistas”
não fazem dos demais (ou das mulheres) não-xamãs, mas, no máximo, um pouco
“menos”21.
O trânsito dos Yãmĩyxop nas aldeias é ainda fundamental para a construção dos corpos
tikmũ’ũn de uma série de outros modos que a transmissão dos cantos. São eles quem são
chamados para restituírem o koxuk ao corpo dos doentes (isto é, “curá-los”), para fazerem
crescer e fortalecer os corpos dos meninos ou conduzí-los ao kuxex quando atingem a
idade de iniciação; quem expulsam dos arredores das aldeias os temíveis espíritos canibais,
ĩnmõxã, ou instilam “mel de fumo” e fumaça de tabaco nos olhos das crianças e adultos,
fazendo com que suas cabeças se abram e a memória e o aprendizado dos cantos se
21
Vejam-se, por exemplo, as histórias tikmũ’ũn nas quais muito frequentemente os antigos homens e
mulheres tornam-se “encantados” (yãn xãmẽah), transformando-se em Yãmĩyxop – como Yãmĩyhex ou
Mõgmõka. (cf. Tugny et al., 2009a, 2009b).
89
reforcem... São eles, enfim, quem “movimentam” a aldeia, tornando todos alegres, fortes e
vibrantes. Num dos raros dias que presenciei em que os Yãmĩyxop não vieram cantar e
dançar em Aldeia Verde, uma amiga se queixava para mim: “hoje o dia está assim
triste...não tem Yãmĩyxop, a aldeia tá toda parada...”22. Sem este movimento, portanto, que
animam os corpos e as vidas tikmũ’ũn, todos se entristeceriam, adoeceriam... Seus corpos
seriam fracos, a memória ruim, não resistiriam às ameaças que os rodeiam... Fico tentado,
então, a especular: o que fariam os Tikmũ’ũn sem os Yãmĩyxop? Existiriam? Persistiriam?
Fiquemos com a interrogação. Agora que creio ter apresentado em contornos (bem) gerais
as relações entre os Tikmũ’ũn e os Yãmĩyxop, permitam-me antes retomar aquela
impressionante intervenção guerreira dos Putuxop (espíritos-papagaio) e Kotkuphi
(espíritos-mandioca) no combate contra os Yĩmkoxeka (Botocudo) narrado por Mamey
Maxakali e apresentado no primeiro capítulo. Lembremo-nos que, diante do ataque
repentino sofrido pelos Tikmũ’ũn, foram estes Yãmĩyxop quem, furiosos, saíram aos gritos
do kuxex para vingarem a morte dos seus “pais” e “mães”, liquidando assim com seus
inimigos. Vejamos, então, como os Tikmũ’ũn narram as antigas trajetórias destes povos-
espíritos e seus encontros com eles, para voltarmos, em seguida, à participação deles no
combate.
História de Putuxop:
“A mãe dos Putuxop sempre chorava quando eles chegavam em um novo
lugar. Kũ kũ kũm... kũ kũ kũm..., ela fazia, dizendo que ali alguém havia
matado um de seus parentes. Os filhos sempre diziam à mãe que parasse
de chorar e dissesse logo quem encheu barriga comendo o pai. Primeiro
encontraram uma sucuri que matou seu pai. Mesmo que a mãe advertisse
sobre os perigos, os irmãos Putuxop foram onde ela estava e foram
cercados por ela. O mais velho conseguiu, com os dentes de sua flecha
fazendo cócegas em seu ventre, fazer com que a sucuri levantasse e todos
pudessem sair do círculo fechado por ela. Flecharam a sucuri, cortaram em
22
À propósito, é curioso notar a observação de Frances Popovich em sua lista dos “nove principais objetivos
das práticas rituais Maxakali”. Como observa a autora, em primeiro lugar: “play, fun, amusement, excitement
of festivities are important aims of both supernatural beings and the Maxakali. The aim of many rituals seems
to be no more than this.” (1976: 23). No dicionário elaborado pelo casal de missionários (Popovich e
Popovich, 2005), igualmente, o verbo “divertir”, kute’ex, parece muito semelhante ao verbo kutex, “cantar”.
90
Foram embora novamente e a mãe chorou. Disse que foi a lacraia que
matou seus parentes. Os Putuxop foram procurar a lacraia e a viram
correndo atrás dos quatis e das antas. Os Putuxop mataram a anta e
esconderam da lacraia. Quando ela veio, pediu as partes. Um dos Putuxop
jogou a cabeça da anta com muita força na cabeça da lacraia e a matou.
Levaram para a mãe, que cozinhou enquanto eles cantavam: filhote de
anta-fêmea, todo pintado, filhote de anta fêmea, patas cozidas todas
arregaçadas...
91
Putuxop. Quando o filho mais sabido viu que a mãe estava morta, mexeu
nela e ela reviveu. Eles prepararam os morcegos e comeram: morcego
grande é o seu marido, o morcego grande é o seu marido [a mãe dos
Putuxop se casou com o morcego].
92
trouxe suco de meu pai! você trouxe o suco de meu pai! Mãe, traga nosso
suco de milho verdadeiro! você trouxe suco de meu pai! você trouxe suco
de meu pai!
Os patos ficaram muito bravos e foram chamar uns aos outros. Fizeram
pontas nos paus e puseram dentro do rio. Chamaram os Putuxop para
banhar. Queriam que as pontas matassem os Putuxop. Os patos deslizavam
em cima do rio e chamavam os Putuxop que ficavam agachados perto do
rio. Quando um dos patos tentou empurrar o Putuxop, ele se esquivou e o
pato caiu na ponta do pau. Os outros ficaram bravos e vieram todos com os
passarinhos. Os Putuxop atiraram flechas neles e eles ficaram com o nariz
furado.” (Tugny et al., 2009a: 412)
História de Kotkuphi:
Era yãmiyxop que chama Kotkuphi que fez aquilo para ele. Kotkuphi não
existia antes. Tinha Putuxop, Mõgmõka, Po’op. Então kotkuphi veio e
deixou gavião na armadilha para encontrar o homem e marcar um dia em
que iria à aldeia dele. O kotkuphi deixou o gavião e ficou escondido na
árvore que estava perto. O homem veio pegar o gavião e também sabia que
93
iria acontecer alguma coisa. Quando abaixou para pegar o gavião já sabia
que atrás da árvore havia alguma coisa. Ele se levantou e viu kotkuphi
atrás da árvore. Ele pensou que Kotkuphi iria matá-lo e falou: “- Você não
vai me matar?”. Mas Kotkuphi falou: “- Eu não vou matar você”. Kotkuphi
queria ir ficar com ele na aldeia. O homem não conhecia Kotkuphi e ficou
com medo. O Kotkuphi falou para ele levar o gavião, comer e ficar
esperando na casa de religião. Ele mostrou o gavião à esposa e contou tudo
à ela. De tardinha o homem pegou o fogo e foi até o Kuxex. Os outros
homens já tinham ido todos morar em outro lugar. Ele ficou sozinho lá,
sem yãmiyxop. Juntou lenha e acendeu. Kotkuphi tinha falado para o
homem esperá-lo no kuxex. Ele foi e esperou. Ficou olhando na estrada,
olhando pra lá, mas Kotkuphi estava vindo por baixo da terra. Ele olhava
pra lá e ia escurecendo e Kotkuphi saiu perto dele, espalhando a fogueira
dele, saindo debaixo da terra. Cada Kotkuphi saiu gritando, assoviando.
Um saiu e falou assim: rêc, o outro, assoviando, o outro saiu e ficou
gritando assim: uôôôôô, o outro saiu e ficou gritando também: uôôôôô.
Até saírem todos. Descansaram e depois cantaram. De noite, escurecendo,
cantaram as músicas deles até nove horas, nove e meia, e pararam. Aquele
homem então ficou amigo do Kotkuphi. Ficou sendo seu dono. De
madrugada kotkuphi cantava de novo. De três até cinco horas. Aí eles
saíram, os Kotkuphi saíram sem falar nada para o dono dele. Eles são bons
de flecha. Jogam flecha e acertam. Saíram cedinho e voltaram, eu acho que
em cinco minutos. Não demoraram. Acharam um beija-flor e trouxeram
gritando. Chegaram e entregaram para o seu dono. Saíram de novo e
trouxeram macaco, trouxeram para dar ao dono dele.
94
95
Cantos-movimento
23
Lembremos, igualmente, do pajé que, alertado em sonho pelo espírito do filho, não acompanha o bando
que partia e, sem saber, ia de encontro aos inimigos Yĩmkoxeka, no relato de Mamey Maxakali.
96
cantar, tornando-se assim seus aliados. Como comentou certa vez o pajé Toninho
Maxakali:
As histórias tikmũ’ũn são, portanto, como vestígios destes constantes deslocamentos e dos
encontros inesperados, na mata, com os Yãmĩyxop – estes povos igualmente nômades, que
traziam como seu maior bem os vastos repertórios de cantos acumulados ao longo de suas
contínuas viagens ou expedições guerreiras. A história dos Putuxop é bastante alusiva
neste sentido. Note-se que em sua estrutura não há, a rigor, início nem fim, mas sucessivos
encontros/combates, articulados como numa “espiral interminável de vinganças” (Carneiro
da Cunha e Viveiros de Castro, 1985: 200), na qual o canibalismo é o meio por excelência
da aquisição dos cantos que são feitos como que “exalar” do cozimento dos inimigos por
eles capturados (Tugny, 2011a: 36). “É assim o canto do Putuxop” - acrescenta Toninho
Maxakali - “cada canto conta história do Putuxop matando. (...) Por exemplo, canta a da
anta que ele também matou. Canta a da cobra. (...) Assim, Putuxop, Xũnĩm e outras
religiões cantam, contando história.” (apud Tugny, 2011a: 33).
24
Os Tikmũ’ũn também costumam traduzir Yãmĩyxop como “religião”, kuxex como “casa de religião” e o
mastro que alguns yãmĩy transportam até as aldeias, o mĩmãnãm, como “pau de religião”. Não sei se porque
nos últimos tempos passaram a ter mais contato com antropólogos e etnomusicólogos do que com
missionários, mas tenho notado um uso mais frequente da tradução por “rituais” por algumas
lideranças/professores atuais. De todo modo, me parece que ao traduzirem Yãmĩyxop como “religião”, os
Tikmũ’ũn visam sobretudo contrapor um certo discurso da “escassez” e as tentativas missionárias de
conversão apoiadas muitas vezes na ideia de que os índios não teriam religião ou que seus “espíritos” e
“rituais” não seriam “religião”. Por isso é comum ouví-los afirmar “os yãmĩyxop são nossa religião”, assim
como, inversamente, afirmam que as diversas religiões não indígenas são “os yãmĩyxop deles [dos brancos]”.
97
Há, portanto, - me parece - toda uma cinemática nestes cantos-movimento tikmũ’ũn. Como
se o que eles dessem a ver fossem justamente as imagens destes deslocamentos incessantes
dos Mõnãyxop e Yãmĩyxop em suas expedições pela floresta. Associação, enfim, entre
canto e nomadismo que não me parece tão distante do que autores como Pedro Cesarino
(2006, 2011) têm enfatizado a partir de seus estudos em torno dos cantos xamanísticos
ameríndios, nos quais as ideias de “deslocamento” e “caminho” possuem um considerável
rendimento conceitual. Como observa o autor, tendo em vista especialmente o amplo
recurso ao paralelismo na estrutura destes cantos: “(...) cada linha nada mais é do que
fragmento de uma imagem maior em que vemos a pessoa do cantador se deslocar por
25
As exceções mais notáveis, como igualmente notou Tugny (2009a, 2009b, 2011a), são as histórias de
ĩnmõxa e São Sebastião, exatamente aqueles seres com quem os Tikmũ’ũn não aprenderam cantos.
Comentarei as histórias de ĩnmõxa mais adiante.
26
Ora, não era uma definição semelhante a que me oferecia acima Isael Maxakali para o termo yãmĩy? Algo
em si fazendo, “formando, formando...”, sem conclusão?
98
posições outras do cosmos.” (Cesarino, 2006: 106). Rosângela de Tugny afirma algo
semelhante acerca da experiência musical tikmũ’ũn: “(...) quando cantam coletivamente
com os espíritos, estão ao mesmo tempo refazendo com eles seus caminhos e encontrando
com eles imagens que povoam esses caminhos.” (Tugny 2011: 114). Cantar e deslocar
seriam assim duas atividades aparentemente inseparáveis. Por isso, talvez, os Yãmĩyxop
“cantam, contando história”.
Relações perigosas
Desejados e aguardados em suas aldeias, os encontros com os Yãmĩyxop não são nem por
isso ocasiões livres de perigos. Isso porque os espíritos – como os “Outros” em geral - são
marcados por uma intensa ambiguidade, entre afins e inimigos, mansos e ferozes, “bons” e
“ruins” 27 ... Putuxop e Kotkuphi, por exemplo, são dois povos-espíritos reputados
especialmente ferozes e agressivos pelos Tikmũ’ũn. Exímios cantores e caçadores, são
também guerreiros e canibais. Sua violência inicialmente incontrolável teria sido o motivo
pelo qual, num passado recente, foram eles os autores de frequentes agressões contra os
humanos:
“The Kotkuphix ‘Manioc Stalk’ spirit has orange and black stripes all over
its body. It is one of the most vicious spirits. Some spirits have
superhuman sexual appetites and are sexually abusive to women. The
Putuxop ‘Parrot’ Spirit has an enormous male sexual organ that it uses to
punish incest or just to rape a woman for pleasure. Rape by theses spirits
are always fatal.” (Popovich, 1988: 103)
“One myth tells how the Putuxop ‘parrot’ spirits punished a woman for
comitting incest with her brother. It seems the brother slept through the
entire process, so only the woman was guilty. The spirits raped the woman
with their immense sexual organ and killed her.” (Popovich, 1988: 50).
“Kotkuphixnãg used to kill and eat people but does not do so today.
Kotkuphix ate children and kotkup mãnã looked for a child sacrifice.”
(Popovich, 1976: 15).
27
Os Tikmũ’ũn por vezes se referem aos yãmĩyxop como “max” (bons, belos) ou kumuk (ruins, feios).
Embora fosse possível identificar alguns deles entre uma “classe” ou outra, creio que o mais importante aqui
é a ambiguidade que estes espíritos revelam entre um polo e outro.
99
28
Os Tikmũ’ũn chamam cachaça (e por vezes a própria pessoa embriagada) de kaxmuk, literalmente, “som
ruim” (kax = som; muk uma contração de kumuk, ruim) em alusão à fala ou canto desarticulados das pessoas
em estado de embriaguez.
100
a um os pajés foram conduzidos até o pátio, onde os Yãmĩyxop os açoitaram com finas
varas de pau, à vista de todos.
Chamo atenção para estes eventos para reforçar justamente a ambivalência dos Yãmĩyxop.
Ambivalência que não é senão a marca da condição de estrangeiros que estes espíritos,
antes de tudo, são. Notemos, por exemplo, o sentimento de medo frequentemente evocado
nos relatos de seus primeiros encontros com os Mõnãyxop na mata, bastante explícito na
história de Kotkuphi quando o índio revelava-se mesmo um tanto surpreso ao constatar que
a intenção do forasteiro não era matá-lo. “Você não vai me matar?” - perguntava um tanto
incrédulo. É com temor, igualmente, que os parentes do Mõnãyxop recusaram-se à
princípio ir de encontro aos Kotkuphi na aldeia que haviam há pouco abandonado,
suspeitando que acabariam todos mortos. Mas não obstante um tal temor, ao entardecer,
todos decidiram voltar e se aproximar do kuxex, onde os espíritos dormiam. Que medo é
esse, portanto, que ao invés de afastar, atrai? Que em vez de pura repulsa é também
desejo? 29 Creio estarmos diante daquela “forma de medo” que, como comentou Viveiros
de Castro: “(…) muito longe de exigir a exclusão ou a desaparição do outro para que se
recobre a paz da auto-identidade, implica necessariamente a inclusão ou a incorporação, do
outro ou pelo outro (pelo também no sentido de “por intermédio do”), como forma de
perpetuação do devir-outro que é o processo do desejo nas socialidades amazônicas.”
(Viveiros de Castro, 2011: 889).
Notemos ainda na história de Kotkuphi que tão logo os espíritos são recebidos na aldeia
para cantar com os homens, estes se tornam os seus “donos”. Os espíritos escolhem, como
disseram, “quem iria com quem” antes de partirem todos para caçar. Sem querer me
enveredar aqui numa longa discussão em torno de noções como “dono”, “pai” ou “mãe”
dos espíritos – o que certamente exigiria maior atenção – o que gostaria de destacar é essa
continuidade entre os rituais, a caça e a guerra, essas formas privilegiadas de relação com a
alteridade. É para uma tal continuidade, afinal, que a intervenção dos Putuxop e Kotkuphi
29
Ainda sobre o medo, é curioso notar que é ele o sentimento evocado em vários comentários dos cronistas
acerca da relação dos índios com seus “entes sobrenaturais”. Pois, se bem que não cressem em nada – isto é,
em nenhum “Ser Supremo” – temiam, isto sim, muitas coisas. Veja-se, por exemplo, a observação de
Freireyss sobre os Coroados: “Não adoram Deus algum bom, mas temem um gênio mau que elles se figuram
na trovoada.” (1901: 245) ou a conclusão de Hartt sobre a vida religiosa dos Botocudo: “I was unable to learn
that the Botocudos had any idea of a God. The moon, which they call Tauru, is an object of fear, the Indians
believing that occasionally it falls upon the Earth, destroying men, and that it sends storm and famine.”
(1870: 599, grifo meu).
101
A intervenção de Putuxop é me ainda mais sugestiva por alguns detalhes. Os cantos que
surgiram a partir do combate narrado por Mamey Maxakali são associados ao repertório
deste povo-espírito. Lembremos da imagem evocada por um deles, em que é justamente o
“chefe dos papagaios” quem repara o arco e as flechas, preparando-se para os inimigos:
Além disso, quando os Putuxop visitam as aldeias tikmũ’ũn hoje em dia, são
acompanhados pelos Yĩmkoxeka. São eles que saem do kuxex para abater a flechadas e
bordunadas o porco que é atado a um poste no pátio do ritual. Segundo Tugny:
102
Em sua interpretação da antropofagia tupi, Viveiros de Castro insistiu mais de uma vez que
o que estava em jogo na “tragédia canibal” não era simplesmente a incorporação das
potências do Outro ao Eu, mas especialmente uma alteração do Eu enquanto Outro. Em
suas palavras: “a fusão entre o matador e o inimigo pressupõe um devir-outro do primeiro:
o espírito de sua vítima jamais o deixa.” (Viveiros de Castro, 2002: 279). A posição do
matador confunde-se, portanto, com a do inimigo. Matar é também morrer um pouco. Daí
o perigo eminente evocado pela figura do homicida e as interdições de diversas ordens
(alimentares, sexuais, rituais) que sobre ele costumam pairar, modos de evitar justamente
que o processo incorra numa transformação descontrolada. Nesse sentido, acumular
sucessivas mortes – o “ponto de honra” do guerreiro – equivaleria a morrer sucessivas
vezes.
Entre os Araweté, é justamente esta relação íntima do guerreiro com a morte que garante
ao guerreiro morto um outro estatuto ontológico. Ao contrário dos comuns dos mortais, o
matador, moropï’nã, não é devorado pelos Maï, os deuses canibais, quando atinge as suas
moradas celestes. O seu destino é passar diretamente ao banho da imortalidade e tornar-se
um Iraparadï, entidade temida e respeitada pelos próprios Maï. Como concluiu Viveiros
de Castro (2002c: 280), é justamente por já conter em si esta “fusão complexa” de
inimigos que o moropï’nã morto dispensa a devoração pelos Maï. Pois, sendo ele próprio
um canibal, ele já é ele mesmo um Maï. O matador é, em suma, um “deus antecipado”
(2002: 280). Matar é, assim, outra maneira de tornar-se espírito. O paralelo entre guerra e
xamanismo30 é evidente: ambos são modos particulares de alteração ou “exteriorização do
eu”, modos de perpetuar, enfim, o “devir-outro”.
30
Como observou Viveiros de Castro: “a guerra indígena pertence ao mesmo complexo cosmológico que o
xamanismo, na medida em que envolve a incorporação do ponto de vista inimigo.” (2011: 908).
103
É nesse sentido, portanto, que consigo vislumbrar uma aproximação entre as figuras do
“matador-espírito”, tal como o moropï’nã araweté, e dos “espíritos-matadores”, tal qual os
Putuxop ou Kotkuphi entre os Tikmũ’ũn. Pois, assim como os primeiros tornam-se espíritos
matando, estes últimos parecem tornar-se espíritos para matar. Em ambos os casos, o que
parece crucial é a necessária ocupação do ponto de vista de outrem que a experiência
guerreira coloca em ação. Experiência, ademais, inseparável de sua atividade cantora e
caçadora. Afinal, se todo homem é um pouco pajé/cantor - porque contém em si os
Yãmĩyxop - todo homem também é idealmente guerreiro e caçador.
Os brancos canibais
31
Lembremos que a ausência de algum “Ser Supremo” o qual venerassem ou idolatrassem – constatação
praticamente unânime entre os cronistas - foi muito frequentemente apontada pelos missionários para
justificar a dificuldade de converter o gentio. Dois exemplos desta constatação entre os índios do Mucuri e
Rio Doce: “Os Botocudos parecem ter uma ideia vaga da imortalidade; mas são, provavelmente, estranhos à
de um ser supremo (...).” (Saint-Hilaire, 1975 [1830-1851]: 253); “Embora os Macunis que atualmente vivem
na aldeia sejam todos batizados e tenham, portanto, nomes cristãos, possuem contudo uma ideia muito
superficial e material de um Ser Superior. Quando se pretende dar-lhes uma explicação a respeito, a sua
primeira pergunta é se no Céu nascem batatas, que é o seu prato predileto” (Pohl, 1976 [1817-1821).
104
Como nos dizia Toninho Maxakali, antigamente não havia Yãmiyxop, espíritos. Não havia
Xũnĩm, Po’op, Putuxop, Kotkuphi... Do mesmo modo, antigamente não havia ãyuhuk, os
brancos. Os Mõnãyxop encontravam estes estrangeiros ao longo de suas excursões pela
mata e de seus constantes deslocamentos. A história de Kotkuphi, mais uma vez, é quanto a
isso exemplar. Desejoso de conhecer a aldeia dos Mõnãyxop, o espírito como que subvertia
uma armadilha feita especialmente para capturar aves terrestres, atando a ela o supremo
predador dos céus, o gavião. Com isso, é como se a armadilha se invertesse e sua
“atração”32 se voltasse justamente contra o caçador que instigado pela improvável captura
retornava no dia seguinte, feito uma presa, e deparava-se finalmente com o espírito. Mas
poderia ainda evocar a história de Xũnĩm, o espírito-morcego, para outra imagem destes
encontros:
Os Tikmũ’ũn, como se vê, são portanto bastante experientes na “arte dos encontros” e
talvez não deveria nos surpreender se o contato com os primeiros invasores europeus não
tivesse passado para eles justamente disso: uma surpresa. Ou, como afirmou Marilyn
Strathern sobre o contato entre melanésios e europeus, “a surprise, but not a special
surprise” (1990: 31). Afinal, estamos tratando de mundos (o melanésio e o ameríndio,
notadamente) em que, ainda nos termos da autora, “people constantly take themselves by
32
Esta imagem de uma armadilha (e sua inversão) mediando o “contato” me parece, aliás, especialmente
intrigante. A mim não deixa de evocar os “presentes” que os brancos espalhavam pela mata para “atrair” (a
coincidência verbal não parece, justamente, uma coincidência) os indígenas.
105
surprise.” (1990: 30; grifo meu). Mas que não se conclua daí que todo encontro é
irrestritamente desejado e positivado, entre os índios. Pois há também encontros que são
“mau-encontros”, aqueles precisamente em que a relação e a troca se demonstram total ou
praticamente impossíveis. Assim, se os brancos foram com efeito encarados enquanto
“espíritos” não foram, entretanto, tomados por um espírito – isto é, um Outro - qualquer.
Os Tikmũ’ũn afirmam que os brancos surgiram dos espíritos canibais ĩnmõxa. Conta o mito
que antigamente um dilúvio inundou toda a floresta e apenas um Mõnãyxop sobreviveu
abrigado no tronco oco de uma árvore. Quando a água finalmente cessou, o homem preso e
faminto foi socorrido pelo demiurgo Topa, que percorria a mata sob a forma de um
besouro. Após resgatá-lo, Topa o alimentou e o ajudou a procurar uma mulher. O homem
encontrou finalmente um veado fêmea, com quem copulou e teve vários filhos. Assim
surgiram os Tikmũ’ũn. Já os brancos surgiram dos ĩnmõxa. Têm os corpos peludos como
os deles. Topa ofereceu o rifle aos Tikmũ’ũn, mas como eles não souberam manuseá-lo,
acabou legando a arma de fogo aos brancos, e deixando os primeiros de posse do arco e
flecha. 33 Além disso, os brancos - atualmente chamados ãyuhuk - são também
frequentemente associados às onças (hãmgãy): “uma vez questionei porque, em
determinados momentos de rituais, a onça é também o homem branco. Disseram-me que
eles não esperam, não conversam. ‘O branco pega logo o revólver, assim como a onça não
espera’”, conta Rosângela de Tugny (2008: 05).
Os Yãmiyxop, como vimos, podem ser ferozes, matadores e canibais, mas em seus
encontros com os Mõnãyxop na mata interessavam-nos sobretudo conhecer suas aldeias,
ser recebidos em seus kuxex, caçar, cantar e dançar com os Tikmũ’ũn. “Eu não vou matar
você”, dizia Kotkuphi, revelando que sua intenção era ser recebido na aldeia dos
Mõnãyxop. “Venha pra nossa casa de cantos comer bastante bananas!”, convidava o
Mõnãyxop, por sua vez, ao Xũnĩm que encontrara no bananal, curioso para conhecer o
repertório daquele povo. Com os ĩnmõxa, brancos e onças, entretanto, as coisas se passam
de outro modo. Não há “espera”, troca, diplomacia ou aliança possível. Ou pelo menos é
essa a imagem que prevalece na relação com esta difícil categoria de seres. Os brancos
somos, assim, os “mau aliados por excelência”, gente com quem não se troca cantos,
comida ou casamentos, mas que mata, rouba e escraviza gente (Viveiros de Castro, 2000).
33
Para uma versão estendida desta narrativa, ver Harold Popovich (1976b).
106
Mas, ainda sobre os ĩnmõxa, é importante acrescentar que não se tratam apenas de criaturas
estrangeiras, inimigos ferozes e inconciliáveis a aterrorizar as aldeias tikmũ’ũn, mas
igualmente uma forma de alteração descontrolada a qual estão sujeitos os próprios
Tikmũ’ũn ainda em vida. O descumprimento do resguardo de sangue após o nascimento de
um filho, a ingestão excessiva da “larva de taquara” kutekut (um poderoso alucinógeno)
ou ainda o consumo exagerado da cachaça são alguns dos principais motivos apontados
para essa transformação indesejada. A pessoa “enlouquece” (yãy hã putox kumuk), passa a
vagar sozinha pelos arredores da aldeia, não reconhece mais os parentes, o humor e corpo
se alteram e um apetite desmesurado por carne crua começa a lhe acometer. Os espíritos-
lagarta, Tatakox, e o som potente dos seus aerofones podem ser chamados para impedir
que uma tal transformação se efetive, mas em alguns casos nem mesmo eles conseguem
evitá-la. A pessoa terá então assumido a perspectiva ĩnmõxa:
107
Desse modo, ĩnmõxa e tikmũ’ũn não distinguem duas entidades substantivas, mas antes
qualidades perspectivas, posições, ou pontos de vista suscetíveis a inversões. É por isso
que, como afirmava acima, a possibilidade de “tornar-se ĩnmõxa” implica como seu
contraponto lógico a possibilidade – um esforço permanente, aliás - de “tornar-se
tikmũ’ũn”. Caberia, portanto, indagar, “o que faz dos tikmũ’ũn, tikmũ’ũn?”, uma vez que
esta não é uma condição inata? Uma vez que tal condição deve ser, como afirmou Marcela
Coelho de Souza (2001: 90), “ativamente construída, isto é, diferenciada de outras formas
de vida igualmente possíveis para todos os sujeitos (...)”?
Dois episódios vivenciados por mim, em campo, talvez nos ajude a tangenciar essa
questão. Durante uma reunião das lideranças indígenas com a equipe de saúde da Sesai, em
janeiro de 2014, uma das principais queixas direcionadas aos funcionários era de que eles
34
Essa etimologia foi-me igualmente proposta por Isael Maxakali. Rosângela de Tugny sugere algo
semelhante: “Tik sendo possivelmente a contração de tihik e mũ’ũn uma variante de ũgmũg, nós mesmos”.
Vale ainda notar que tihik é um termo frequentemente usado para glosar igualmente “parentes” ou “índios em
geral”.
108
frequentavam muito pouco as casas da aldeia: “vocês não tomam café com a gente, não
comem a nossa comida, ficam só lá presas no posto, por isso vocês não aprendem a falar a
língua!”, queixava-se então a cacique da aldeia, Noêmia Maxakali. Em fevereiro do
mesmo ano, viajei para a aldeia Vila Nova do Pradinho para participar de um Encontro de
Pajés. Na ocasião, eu já arranhava algumas frases na língua e tive igualmente a
oportunidade de aprender um pequeno repertório de cantos, que os pajés me ensinavam
com grande entusiasmo. Ao me verem progredindo no aprendizado da língua e dos cantos,
ouvia várias vezes os homens me dizerem: “homet paye”, “homet yãmiyxop tak”, “homet
tikmũ’ũn”, “roberto é pajé”, “roberto é pai dos yãmĩyxop”, “roberto é tikmũ’ũn”.
Afirmações como essas parecem dizer algo justamente sobre o que significa “tornar-se
tikmũ’ũn” ou, se quisermos, “humano de verdade” para os Tikmũ’ũn. Coisas,
precisamente, como morar, comer e, especialmente, cantar juntos... Tudo o que remete,
enfim, a um certo grau de proximidade e consubstancialidade. Como observou Aparecida
Vilaça, a partir de um episódio muito semelhante a esses que relato:
Digamos então, parafraseando a famigerada frase de Simone de Beauvoir, que não se nasce
tikmũ’ũn: torna-se. E torna-se, precisamente, a partir desta “fabricação contínua do corpo”
(Viveiros de Castro, 2002b: 390), garantida pelo resguardo, pela dieta alimentar, pela
residência compartilhada, pelo intercurso sexual, pela aquisição dos cantos e realização dos
Yãmĩyxop... O que torna, portanto, alguém tikmũ’ũn (para os tikmũ’ũn) são precisamente
aquelas coisas que fazem de alguém um “parente” ou um “vivente”, pois “estar vivo (e não
morto), ter um corpo humano (e não de onça, anta, veado ) e ser aparentado — relacionado
de uma maneira determinada — aos outros humanos são três coisas equivalentes.” (Coelho
de Souza, 2001: 71). Mas, dentre os “requisitos” apontados, gostaria de destacar
109
Frances Popovich, num curioso questionário, indagou algumas dezenas de pessoas nas
aldeias do Pradinho e Água Boa quais seriam as características de um “bom” Tikmũ’ũn. A
autora estava razoavelmente familiarizada com as características negativas, isto é, com
aqueles traços que afastavam alguém do comportamento ideal, coisas como “avareza”,
“deslealdade” ou “raiva”. Mas revelou-se de fato um tanto surpresa com as respostas
praticamente unânimes que recebeu à questão que então propunha:
“I was unprepared for the broad consensus of what a good person does.
After their initial surprise at being asked such an obvious question, the
answers varied very little. A good person builds a ritual center and carries
out the souls-of-the-dead [yãmiyxop] rituals. This answer was given by an
overwhelming majority of the seventy respondents.” (Popovich, 1988:
132).
Mais adiante, a autora listava ainda as cinco respostas mais frequentes ao mesmo
questionário:
110
Marina Guimarães Vieira (2006) e Douglas Campelo (2010) comentam algo semelhante, a
partir de suas experiências iniciais e igualmente “iniciáticas” entre eles:
A importância dos cantos e dos rituais no regime de diferenciação tikmũ’ũn, destacada por
comentários como esses, não contradizem, entretanto, a centralidade dos corpos como
“lugar de emergência da diferença” (Viveiros de Castro, 2002: 388). Para isso,
precisaríamos assumir que os cantos/yãmiyxop seriam algo da ordem da “cultura” ou do
“imaterial”, veículos da “socialização” de corpos “naturalmente” humanos. Mas não é isso
o que a etnografia tem enfatizado. Ao contrário, como afirmou Tugny, “estamos aqui em
111
uma instância da atividade acústica bem diferente daquela impalpável, abstrata, em que
normalmente é pensada a atividade musical (...). Os cantos entre os Tikmũ’ũn são pura
materialidade (...) substâncias, coisas palpáveis que passam a integrar o corpo da pessoa.”
(2011: 43; grifos meus). A autora também chama a atenção para a semelhança entre os
verbos kutex (cantar) e kutet (cozinhar). Lembremos ainda, como eu destacava acima, que
os Yãmiyxop habitam os próprios corpos dos Tikmũ’ũn e se alimentam através deles. Desse
modo, cantar juntos ou doar cantos seriam outros modos de consubstanciação, outras
formas de “particularizar um corpo ainda demasiado genérico” (Viveiros de Castro, 2002:
388) ou ainda de relacionar pessoas entre si, isto é, de “fazer parentes”. Por isso mesmo, a
circulação dos cantos entre os Tikmũ’ũn é indissociável do processo do parentesco. Mas
não somente, me parece, por alguma ênfase particular no vetor vertical da “transmissão”,
mas porque possuir cantos/yãmĩy é um dos modos, por excelência, do “tornar-se tikmũ’ũn”
(humano, parente, vivente...). Podemos então retomar a questão que deixava em aberto no
início deste capítulo: o que seriam dos Tikmũ’ũn sem os Yãmĩyxop? Existiriam?
Persistiriam?
112
CONSIDERAÇÕES FINAIS
113
Este relato Noêmia Maxakali me contou algumas vezes quando de nossas conversas em
Aldeia Verde, onde dois anos depois desses eventos seu grupo veio finalmente se
estabelecer. Pareceu-me propício concluir este trabalho com ele por dois motivos em
especial. Em primeiro lugar, porque ele afasta daqui justamente qualquer pretensão a uma
“conclusão”, apontando mesmo para toda uma série de desdobramentos que se poderia
extrair a partir daí e do percurso que espero ter aqui iniciado. Seria, assim, preciso passar à
constante fragmentação guerreira na qual os Tikmũ’ũn continuam firmemente engajados,
seja examinando mais cuidadosamente os seus deslocamentos ao longo das décadas mais
recentes, seja acompanhando como “diferenças horizontais” atravessam a constituição e
dissolução dos grupos locais, que se põem, portanto, em perpétuo movimento e
reconfiguração. Ainda que não tenha podido me aprofundar nestes desdobramentos aqui,
não tenho dúvidas de que segui-los constitui um desafio etnográfico dos mais instigantes.
Mas o presente relato – praticamente uma “transformação estrutural” daquele relato sobre
o combate contra os Yĩmkoxeka - igualmente retoma e de certa forma condensa aquelas que
acredito terem sido as linhas mestras deste trabalho, a saber, as continuidades entre guerra,
ritual e nomadismo. Continuidades que foram aqui exploradas tendo em vista tanto uma
caracterização da guerra travada entre os diversos povos indígenas que no passado
conviveram naquela região (capítulo um), quanto algumas de suas consequências ou
implicações para se (re)pensar as relações entre os índios e seus outros, os brancos dentre
eles. Assim, se no segundo capítulo tratou-se de se extrair essas consequências tendo em
vista especialmente os empecilhos que a mobilidade guerreira impunham ao avanço do
projeto colonial, o movimento traçado no terceiro e último capítulo intentou situar o
advento dos brancos a partir da série de encontros e deslocamentos que as narrativas
tikmũ’ũn costumam perfazer. O objetivo era assim não somente enquadrar esta categoria
de outros - os brancos - em algum esquema preconcebido pelos índios, mas explorar o que
a vizinhança entre brancos, espíritos e inimigos poderia dizer sobre os seus modos de
relação com a alteridade.
É neste contexto, ainda, que o parentesco sugerido pelos Tikmũ’ũn entre os brancos e os
espíritos canibais ĩnmõxa parece-me permitir uma abordagem do problema do “tornar-se
branco” próxima daquele do “tornar-se ĩnmõxa”. Problemas que, por sua vez, remetem a
um outro: o do “tornar-se tikmũ’ũn”, isto é, o esforço contínuo por fabricar e asseverar o
114
115
Não faria sentido, desse modo, opor aqueles que estivessem “virando índio” recentemente
aos índios que, por assim dizer, nunca teriam deixado de “sê-lo” (os “índios da Amazônia”,
por exemplo), como se a indianidade ou “identidade étnica” desses últimos fosse “natural”
ou “dada” e a dos primeiros “fabricada” (“inventada”, “construída”, “performada”, etc.).
Ao contrário, sugeria o autor, ambos estavam “virando índio exatamente do mesmo jeito”
(1999: 134) precisamente porque “índio” não é um “modo de ser”, mas antes, um “modo
de devir”. Assim, como refraseou recentemente:
“os índios que “ainda” são índios são aqueles que não cessaram de
perseverar em seu devir-índio durante todos esses séculos de conquista. Os
índios que agora “voltam a ser” índios são os índios que reconquistam seu
devir-índio, que aceitam redivergir da Maioria, que reaprendem aquilo que
já não lhes era mais ensinado por seus ancestrais. Que se lembram do que
foi apagado da história, ligando os pontos tenuamente subsistentes na
memória familiar, local, coletiva, através de trajetórias novas, preenchendo
o rastro em tracejado do passado com uma nova linha cheia.” (Viveiros de
Castro, n/d)
O fato dos Tikmũ’ũn estarem há séculos convivendo bem de perto com os brancos e serem
ainda hoje detentores de um repertório linguístico e musical próprios, além de exímios
caçadores e guerreiros costuma frequentemente despertar um misto de surpresa e
fascinação em seus interlocutores. Como sobreviveram? – a questão vez ou outra
reaparece. Não intento, obviamente, respondê-la, mas creio ser possível (e talvez
desejável) reformulá-la, pois à luz do que tentei propor aqui, não se trata tanto de indagar
como os Tikmũ’ũn puderam manter-se iguais ao que sempre foram – como se disso se
tratasse – mas sim como puderam, apesar de viverem hoje num mundo arrasado, manter
em ação os seus modos de transformação e diferenciação, isto é, seus modos de
“perseverar em seu devir-tikmũ’ũn”. E, se como insisti, estes modos de transformação
parecem mesmo indissociáveis dos Yãmĩyxop, talvez então devêssemos estar dispostos a
considerar, quem sabe, que os rituais (chamemo-nos assim) não somente “sobreviveram”
com os Tikmũ’ũn como os Tikmũ’ũn sobreviveram com (isto é, “através dos”) rituais.
116
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