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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

A786 SILVA, Renato Araújo da. (1973). Arte Afro-Brasileira: altos


e baixos de um conceito. São Paulo: Ferreavox, 2016.

458 p.: il. (diversos); 30 cm.

Foto de Capa: Lasar Segall - Autorretrato


Aquarela, guache e giz de cera branco sobre papel

Ilustração: 1) Espada Ngolo Cortesia do Royal Ontario


Museum, Toronto, coletado por T. Hope Morgan, antes de
1910. [Foto: Coleen Krieger]
Design da capa: Renato Araújo/canva.com
Design e edição de imagens: Tiago Gualberto

Inclui bibliografia: f. (275)

1. Arte Afro-Brasileira. 2. Estética Negra 3. Museus Afro


Brasileiros 4. Arte Negra. 5. África-Brasil-Américas.
I. SILVA, Renato Araújo da. (1973). II. Araujinho. III.
Renatinho. IV. Renatex.

CDU 666 (Universidade das Ruas)

Como citar este texto:

SILVA, Renato Araújo da. Arte Afro-Brasileira: altos e baixos de um conceito. São Paulo:
Ferreavox, 2016. Disponível em: [citar fonte online]
Para a Bela Amanda Carneiro Santos
SOBRE O AUTOR

Renato Araújo (araujinhor@hotmail.com) – diletante brasileiro que


também atende por Renato Araújo da Silva, Araújo, Araujinho, Renatinho
ou Renatex. Graduou-se em filosofia em 2002, pela Universidade de São
Paulo (USP). Outro dia ele disse: “Poucos têm uma noção correta disso,
mas a vantagem em ser um “d-escritor” é que você tem a liberdade e
responsabilidade completas para com a objetividade, para com o
aprofundamento no humanismo e para com as saborosas ligações
improváveis dentro de toda subjetividade possível, mas também é
chamado a tergiversar, como se contasse estorinhas de aventuras para os
Renatex
seus netinhos”. Ligado à tradição libertária e à “literatura de mau gosto”
Iguarapé/MG desde 1989, o autor possui alguns textos disponíveis online:
11 de Set., 2016 http://pt.scribd.com/araujinhor
ÍNDICE

i – Apresentação...........................................................................................................09
ii – Introdução ..............................................................................................................11

1.0. As ondas de Valorização Institucionais do Negro

1.1. As Ondas de Valorização do Negro e seus Surfistas Profissionais e Amadores........24


1.2. As Ondas de Valorização do Negro e seus Resultados Parciais em Arte...................40

2.0. Arte Afro-Brasileira e o Problema de sua Definição

2.1. Nomenclaturando a “Arte”e a “Estética” Afro-Brasileiras.........................................66


2.2. Arte Afro-Brasileira: histórico de uma (in)definição..................................................80
2.3. O Modernismo e a Depuração da “Arte” no “Afro” e Alguns Desdobramentos para a
Arte fro-Brasileira..............................................................................................................89
2.4. (In)definição dos Artistas..........................................................................................110

3.0 A Arte Afro-Brasileira e seus Artistas

3.1. A Sina dos Artistas Afro-Brasileiros.........................................................................145


3.2. Uma Chance à Arte Afro-Brasileira..........................................................................151
3.3. Arte Afro-Brasileira e Política..................................................................................156
3.4. Descentralizando o Eixo Bahia-Rio-São Paulo........................................................177
3.5. Expondo a Arte Afro-Brasileira................................................................................195

4.0. Arte Afro-Brasileira: esboços teóricos e estudos de caso

4.1 Alcance do Conceito de Arte Afro-Brasileira............................................................207


4.2. Exercício em Estética Afro-Brasileira......................................................................226
4.3. Estética Para Além da Estética.................................................................................265
4.4. Como não Ler uma Obra Afro-Brasileira.................................................................278

5.0. Miscelânea

5.1. Um Pouco da Experiência Norte-Americana............................................................304


5.2. O Estatuto do Mestiço...............................................................................................317
5.3. Principais Coleções “Afro-Brasileiras”.....................................................................344

6.0. E agora, José?

6.1. Vejamos se é Mesmo Possível Tirarmos Algumas Conclusões................................357

7.0 Referências

7.1. Resposta à Abujamra.........................................................................................372/382

8.0 Apêndices: um evento sobre arte afro-brasileira

8.1. Proposta: Encontros Sobre Arte Afro-brasileira: (Juliana Ribeiro Bevilacqua e


Renato Araújo).................................................................................................................390
8.2. Encontros sobre Arte Afro Brasileira na Pinacoteca do Estado de São Paulo - nov.
-dez, 2016.........................................................................................................................400
8.3. Resumo: Pina_Encontros: Olhares sobre a arte afro-brasileira, seus conceitos e seus
artistas..............................................................................................................................408
8.4. A Comunicação de Hélio Menezes ..........................................................................411
8.5. A Comunicação de Renato Araújo............................................................................433
8.6. A Comunicação de Marta Heloísa Leuba Salum .....................................................473
8.7. A Comunicação de Roberto Conduru ...............................................................473/475
8.8. A Comunicação de Juliana Ribeiro Bevilacqua ......................................................514
8.9. A Comunicação de Janaína Barros...........................................................................574
8.10. Comunicação de Rommulo Vieira Conceição .......................................................585
8.11. Comunicação de Tiago Gualberto...........................................................................603

9.0. Anexos

9.1. Slides da Apresentação de Renato Araújo................................................................644


9.2. O Conceito da Arte Chamada “Afro-Brasileira”- elucubrações ..............................694
9.3. Pequena Referência às Artes Gráficas Afro-Brasileiras...........................................698
A Libertação do Capital

Escreveu o Prof. José de Sousa Martins: “a noção de liberdade que comandou a Abolição
foi a noção compartilhada pela burguesia e não a noção de liberdade que tinha sentido para o
escravo. Por isso, o escravo libertado caiu na indigência e na degradação, porque o que
importava salvar não era a pessoa do cativeiro, mas sim o capital. Foi o fazendeiro que se
liberou do escravo e não o escravo que se liberou do fazendeiro. ”

(In: CUNHA, Eliel Silveira (Ed.). Brasil 500 anos. São Paulo: Ed. Abril, 2000, p. 557)

Arte “Afro-Brasileira”: altos e baixos de um conceito

Desde sempre, porém, o problema da conceituação dessa arte é polêmico, não apenas no
que toca a sua denominação, mas na determinação de fontes de inspiração,
e de forma, e de função, como também na determinação de autoria.
Todo cuidado é pouco ao discorrer sobre arte negra no Brasil, assim como sobre arte
afro-brasileira, com os termos de um repertório estético que desconsiderou e por tantas
vezes depreciou o mundo negro-africano, por tanto tempo.
(Marta Heloísa Leuba Salum (Lisy) “Negritude e Africanidade na Arte Plástica Brasileira”In: MUNANGA, K. (ORG.) História do
Negro no Brasil vol 1 - o negro na sociedade brasileira: resistência, participação, contribuição, São Paulo:
Fundação Cultural Palmares, 1984.

Definir as artes plásticas afro-brasileiras não é uma questão meramente semântica, pois
envolve uma complexidade de outras questões remetendo ora à história do escravizado
africano no Brasil, ora à sua condição social, política e econômica, ora à sua
cosmovisão e religião na nova terra. (...) se a arte afro-brasileira é apenas um capítulo
da arte brasileira, por que então este qualificativo ‘afro’ a ela atribuído? Descobrir a
africanidade presente ou escondida nessa arte
constitui uma das condições primordiais de sua definição.
Kabengele Munanga “Arte Afro-Brasileira: o que é, afinal? ”
In: AGUILAR, N. (Org.) Arte Afro-Brasileira: Mostra do Redescobrimento. São Paulo: Fundação Bienal, 2000. p.98-9.
Apresentação

Promessa é dívida, mas, devido ao fato de anteceder as minhas férias, com outros
projetos em andamento, o presente texto (“pagador de promessas”) foi escrito ligeira e
descontinuamente em apenas 90 dias, excetuanto os anexos. Assumo, portanto, as
ausências e os erros aqui necessariamente cometidos.
Há exatos cinco meses atrás (26 de julho de 2016) eu recebi um e-mail muito
delicado e sucinto do secretário da diretoria da Pinacoteca do Estado de São Paulo,
endereçado a mim e minha amiga de anos Juliana Ribeiro Bevilacqua, com quem escrevi
o livro “África em Artes” (2015):
Prezada Juliana Bevilacqua e Prezado Renato Araujo,
Boa tarde!

O Sr. Tadeu Chiarelli, Diretor Geral da Pinacoteca de São Paulo, quer marcar uma reunião com vocês para tratar de
uma ampliação do Projeto Territórios, exposição realizado na Pinacoteca.

Por gentileza, verifiquem suas disponibilidades de agenda para dia 09 de agosto de 2016, às 14h30, na Estação
Pinacoteca – Largo General Osório, 66 – 2ºandar.
Aguardo confirmação e estou à disposição para quaisquer esclarecimentos.

Cordialmente, Renivaldo Brito


Secretário da Diretoria

Como eu não conhecia ninguém na Pinacoteca, ao ler o e-mail eu não tinha uma ideia
concreta do motivo pelo qual o diretor de tal instituição de renome fosse querer uma
reunião justo comigo (o Renatex), imaginei, então, que talvez estivessem interessados na
identificação de alguma obra de arte africana perdida (talvez) nos recônditos da reserva
técnica e que tivesse sido recentemente descoberta por alguém, ou algo assim...
Na data requerida, mas, como sempre, super atarefado, chegamos (por minha culpa)
quase que atrasados e ouvimos o Diretor Geral Tadeu Chiarelli gentilmente nos falar a
respeito do seu interesse em ampliar o projeto da exposição “Territórios: artistas
afrodescendentes no acervo da Pinacoteca”, realizada no ano anterior. A essa reunião
seguiu-se mais uma na qual acertamos os trâmites para a organização de um evento que
trataria de revisitar o conceito de arte afro-brasileira, segundo os teóricos do tema, de
acordo a proposta formulada pela Juliana e por mim e apresentada a partir dali. Definidos
os temas, as datas e os convidados e suas respectivas comunicações (um resumo delas
será apresentado no apêndice 3 p. 408) definimos igualmente, em seguida, seu título e
conteúdo: os Encontros: “Olhares sobre a Arte Afro-Brasileira - seus conceitos e seus
artistas” foram realizados em 5 sábados entre os dias 05/11 a 03/12/2016, com 2 horas
cada.
Três dias depois da minha fala neste evento (ou seja, no dia 15/11/2016), numa
conversa entre amigos, a cientista social Amanda Carneiro e o artista plástico Tiago
Gualberto me propuseram que eu fizesse um resumo da minha apresentação e
transformasse-a num texto de divulgação (e-book). Eu ampliei a ideia fazendo uma
espécie de “resumo geral” de boa parte das questões pertinentes que surgiram nesse
último mês de evento com respeito à chamada arte “afro-brasileira”. Agradeço
muitíssimo à Amanda e ao Tiago por me incentivarem a concluir esse texto de divulgação
e pelas conversas intermináveis e também pelo carinho que é, sem dúvida, recíproco.
PARTE I

As ondas de Valorização Institucionais do Negro


Introdução

O epíteto de “artista afro-brasileiro” é um marcador recente. Mesmo no início do século


XX e no final do século XIX, quando os críticos se referiam a determinados artistas
plásticos como “artistas negros”, parece ter havido nesse passado histórico um sentido
menos abrangente do conceito sobre esses artistas ou mesmo sobre essa arte do que
comparativamente passou a ocorrer em épocas subsequentes.

Outra ideia importante, ao pensarmos historicamente nos eventos relacionados à cultura


afro-brasileira em geral, e nas exposições de arte com esta característica temática em
particular1 é que, embora a cultura africana esteja imbrincada (ou “sobreposta”: SALUM,
2000, p.114) no imaginário brasileiro, as artes plásticas relacionadas a esse imaginário
nunca se integraram de fato como elementos da cultura nacional. E nós sabemos bem as
razões disso: fala-se ainda hoje sobre “negritude”, “condição do negro” e sobre a “arte”
produzida no contexto afro-brasileiro – sendo que, sobre este último campo, fala-se
apenas em círculos bastantes restritos – como se a História do Brasil não se confundisse
com a História dos Negros no Brasil ou como se “falar da arte relacionada à presença
africana no Brasil” fosse falar de algo totalmente confundido e restrito ao nosso
“passado” escravista, enquanto país, e , portanto, algo digno de “puxar para debaixo do
tapete”2.

1
Tal como pensava Mário de Andrade e a maioria dos críticos, não devemos tratar a temática de uma obra
como o objetivo fundamental, muito menos único da expressão artística. Ao tecer comentários a respeito da
pintura de “A Negra”, ele disse: Em Tarsila, como aliás em toda pintura de verdade, o assumpto é apenas
mais uma circumstancia de encantação; o que faz mesmo aquella brasileirice imanente dos quadros dela é
a propria realidade plástica: um certo e muito bem aproveitado caipirismo de formas e de côr. Uma
systematização inteligente do mau gosto que é dum bom gosto excepcional, uma sentimentalidade intimista
meio pequenta, cheia de moleza e de sabor forte.(ANDRADE, Mário de. "Tarsila" Diário Nacional (São
Paulo, Brasil), 21 de Dezembro, 1927.) Disponível em: http://icaadocs.mfah.org/ Acessado em 15/11/2016.
2
Pela ação de algum mauvais génie, genericamente, os brasileiros sentem-se mais identificados
culturalmente com colonizador “branco” que é constantemente “embelezado”, “superiorizado”, mas,
dificilmente há identificação com colonizado (não-“branco”, “não-embelezado”, “inferiorizado”). A visão
gandhiana desafia a tentação de igualar o opressor na violência e de readquirir uma autoestima própria
como competidor num mesmo sistema. É uma visão assente numa identificação com os oprimidos que
exclui a fantasia da superioridade do estilo de vida do opressor, tão profundamente enraizada na
consciência daqueles que reclamam falar em nome das vítimas da história. Ashis Nandy (1987:35) Apud.
SANTOS, B de S. & PAULA, M.M. (ORGs.) Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2013. Nota:46.
No máximo, quando esses assuntos negrísticos envolvem a grande mídia (jornais, rádio e
tv), as escolas, as universidades, os museus e as outras instituições sociais mais amplas,
elas desenvolvem uma preferência apenas pelas datas comemorativas, ou seja, dias 13 de
Maio ou 20 de Novembro que sempre imperam naquele quesito: “hoje é dia dos
negros...precisamos falar deles”... Como se fôssemos “assunto” apenas para dois dias por
ano, e, lavada a culpa pelo holocausto anual, é como se nos outros 363 dias
continuássemos não-integrados à sociedade brasileira. Ser negro é ser estrangeiro em seu
próprio país.

Ao contrário, desde pelo menos o ano de 1530, quando chegaram os primeiros dos cinco
milhões de africanos aportados até 1860, e mesmo depois, sabemos que não há Brasil sem
a África3. Derrotada a tentativa de branqueamento da população pela via migratória,
algumas dessas instituições do Brasil, ao fecharem os olhos para a realidade, vivem como
se nada do real fizesse sentido. Além disso, que mal gosto de se fazer atividades
“negrísticas” apenas nessas datas! Dar um “presente” de consolo em data comemorativa é
como presentear nossas mães com uma batedeira no dia das mães ou no aniversário dela -
é colocá-la em seu lugar! Lugar este de consolo inconsolável! Beco de uma solidão que
só as mães suportam.

É óbvio que um grande número de pessoas é ótimo nesses afazeres domésticos - dar
batedeira de presente no dia das mães... como se não tivessem saído direto do ventre delas;
muitos irão falar de índio no dia do índio, da mulher no dia da mulher, fingirão o
interesse num dia específico, como quem cria uma notícia já esperada, para que afinal,
ninguém, dê a mínima importância.... Muitos ofereceram com sorriso nos lábios a
perpetuação daquelas correntes que sustentam abismos entre os seres humanos. Mas não
há nada nem na natureza, nem na história, nem na cultura que indique que sejamos nós a

3
Eu nunca tinha visto isso mas neste ano o MIS-SP preparou evento para celebrar os 100 anos de samba; o
Museu da Casa Brasileira contratou um grupo musical pra tocar musica africana e brasileira além de
lançar um livro com fotografias sobre jazz no sul dos EUA, com direito a música ao vivo; a Casa das
Rosas lançou um livro sobre de cordel sobre Dandara, suposta mulher de Zumbi; o Museu do Futebol,
sem muita imaginação contou contos africanos; o Museu da Imigração, idem, fez um piquenique com
jogos tradicionais infantis; o Museu de Arte Sacra fez uma visita temática sobre o papel das irmandades
de negros dentro da igreja; a Biblioteca de São Paulo fez um sararu ao estilo negro americano de batalhas
slam de poetas e/ou rappers. Enfim, esse 20 de novembro foi bem cheio...
fazê-lo. Entretanto, se se não reconhece o presenteado como sua própria mãe, se se não
reconhece a realidade brasileira para além do centro expandido das grandes capitais, por
que esperar passivamente das instituições racistas centenárias este pertencimento? E neste
“entretanto”, a propósito, haveria arte brasileira sem a África?

Vejamos: foram pelo menos 360 anos de escravidão e bem menos de 130 anos sem. Por
um lado, recebemos dos africanos todo um sistema de crenças, mitos, conhecimentos,
influências linguísticas, heranças das mais diversas nas culturas ditas popular e erudita etc.
No primeiro Censo Brasileiro a incluir a população escrava (1872) indicava-se um Brasil
em formação em que: 38,1% era constituído de brancos, 38,3% de pardos e 19,7% de
negros (http://www.nphed.cedeplar.ufmg.br/). A soma entre pardos e negros ficava neste
primeiro censo, numa maioria de 58%, contra os 38,1% de brancos. Depois da derrota da
primeira tentativa de extermínio negro com as políticas raciais de branqueamento, ao
voltarmos a atingir os 51% da população de negros e pardos (Censo IBGE, 2010),
chegando a 54% em 2015 por auto declaração, chegamos assim, à verdade dos números -
algo difícil de se contornar. Assim, se a arte for mesmo uma manifestação humana e não
garranchos de uma elite branca ou garranchos de uma ralé negra, sequer de uma massa
mediana meio branca, meio negra ou mestiça, então não poderá haver Arte no país, sem
que seja uma arte cujos sentidos mais profundos estejam numa correspondente sintonia
com a realidade do país e que, de algum modo, estejam ligados ao seu tempo e ao seu
“lugar” histórico, em sentido amplo, como que um status verdadeiro de “cidadania
brasileira”.

No entanto, quando analisamos o mapa da história da arte brasileira, bem ao contrário, o


que vemos é ou bem um grande mar que se quis branco e francamente herdeiro de uma
tradição acadêmica europeia, (mesmo entre modernistas, que quiseram diferenciar-se,
com algum sucesso). Além disso, quase sempre, vimos nesse mapa apenas um pontinho
preto aqui e outro ali, como que tímidas ilhotas que por vezes se quiseram negras, por
vezes se dissolveram no mar, por vezes nem tentaram se ancorar. E vimos ainda outras
ilhotas que conseguiram, mas quase sempre sem consciência de sua identidade, com
contornos mal desenhados, com posicionamento mal conhecido e muito mal
cartografadas. Assim sendo, contra o folclorismo, tornamos nossas as palavras de Lisy
Salum: E diante dessa realidade é preciso considerar que a arte
“afro-ibero-luso-americana” nunca deixará de ser exótica enquanto não for assumida
como arte em sua própria atualidade e dentro de seu próprio território (SALUM, 2000,
p. 114).

Neste texto, eu defendo, portanto, não só a necessidade de se fazer essa cartografia de


modo responsável, honrado e técnico quanto defendo com pessimismo esclarecedor que a
condição social e psíquica dos negros artistas (o sentimento de ser o “outro” em ambiente
hostil) e o racismo institucional foram alguns dos grandes entraves para determinação de
uma arte afro-brasileira e que os momentos em que se chegou mais próximo disso
disseram respeito não somente ao talento inescapável dos artistas escolhidos a dedo, mas
se apoiou nas necessidades históricas de contenção do avanço da negritude nas classes
médias. Numa sentença, a história da arte afro-brasileira, quando puder ser contada, terá
como um de seus forçosos guias a história da ascensão social dos negros no Brasil.

Neste momento, que fique claro, nada deverá chegar aos exageros de Aluízio Medeiros:
No Brasil, como já ficou dito, devido a condição do negro, que sempre pertenceu às
camadas econômicas inferiores da sociedade, não tivemos negros autênticos fazendo arte
e literatura negra ... (MEDEIROS, Aluízio. “O negro na literatura e na arte. ” In Crítica;
Segunda Série (1946 - 1948), 9-15. Fortaleza, Brazil: Clã, 1946 p. 11) ...nem ao outro
extremo de Teixeira Leite ao elogiar Agnaldo Manoel do Santos: Quanto a nós, sempre
vimos, nesse pobre artista negro vítima da esquistossomose e da doença de Chagas, um
dos mais altos valores da escultura brasileira contemporânea, até diríamos da escultura
brasileira em todos os tempos. (LEITE, J.R. Agnaldo e a Escultura Afro Americana
GAM: Galeria de Arte Moderna, Rio de Janeiro, n.5, abr. 1967. p. 16).

As artes plásticas no Brasil da virada do XIX para o XX, até meados da década de 1960
sempre teve uma forte demarcação de classe social ou clube acadêmico; esses grupos, de
forma semelhante como ocorre hoje, tendem a ser fechados e muito raramente a mera
ascensão social redundava numa circulação livre de indivíduos de fora dos grupos.
Podemos tomar como base, mesmo já na década de 1910 e 20, os Irmãos Timótheo,
contratados para ornamentar o clube fluminense com suas pinturas, sabiam, como os
pedreiros das grandes cidades modernas atualmente sabem, que aquela será a primeira e
última vez que eles terão acesso a aquele espaço e seu acesso momentâneo e pragmático
não pode ser encarado como inclusão social, senão como uma prestação de serviços. Esse
mesmo estatuto estava reservado aos negros artistas do barroco e até certo ponto da
academia imperial, aos dias de hoje.

Negros artistas são negros. Nunca a esfera lógica da identidade, onde “A = A” (lê-se
remotamente: “A é igual a A”) foi tão crua do que a presença/ausência do corpo negro
nos espaços brancos do país e do mundo a se multiculturalizar. Nós não estamos falando
de supermercados, Institutos Inhotins e shopping centers aqui, estamos falando de
espaços brancos como clubes de elite...estamos falando das Galerias de renome, de
Museus como MASP, os Museums of Art ou os MACs brasileiros, enfim, estamos falando
de uma Pinacoteca do Estado de São Paulo de antes de 1995, ou seja, dos museus antes
da necessidade da propaganda pelo público de massa.

Graças ao atual estágio do capitalismo tardio, finalmente, o negro artista entrou mesmo
nos museus de arte antes altamente dedicados a se proteger ideologicamente de
“enegrecimentos” selvagemente descontroláveis. Porém, esse artista entrou nos museus
pela porta de baixo, juntamente com a necessidade de “inclusão numérica de toda uma
população de consumidores de museus”, com o surgimento das O.S (Organização
Sociais)4 e todo o contexto de massificação e embotamento generalizado das artes
plásticas e da crítica de arte, como vemos hoje. É assim que a arte e suas instituições
artísticas brasileiras trocaram a necessidade da arte pela necessidade do público! Tanto
quanto alguns dos negros artistas ainda necessitados de serem incluídos, trocaram suas

4
A busca pela “eficácia” do Estado é antiga. A criação de técnicas nas quais a ideologia estatista
contemporânea, que prezaria por um maior esvaziamento de suas funções não precípuas, fosse resguardada,
a despeito da generalizada falta de conceitos sobre cultura, em vez de promover a “valorização de
imaginários” pela divulgação, popularização e não vulgarização, apenas empurram para debaixo do tapete
os velhos problemas que continuam no âmago da sociedade brasileira. E assim, o isolamento que separa os
que produzem, expõem, mediam e o “resto”, continua o mesmo.
inquietações artísticas pelos projetos de financiamento público ou privado e seus ardis,
malversação e indolências para com o imaginário cultural brasileiro.

Mesmo assim, ainda que eleitos a dedo5, os negros artistas sempre fizeram parte, contudo,
da história antiga das artes plásticas no país. Do ponto de vista histórico, se considerada
apenas a cor de sua pele e pensarmos não na chamada “arte afro-brasileira” (porque disso
sabemos muito pouco), mas na antiguidade dos artistas afrodescendentes, a maioria dos
quais escolhidos a dedo pelos brancos, podemos nos referenciar aos “pintores escravos”
que atuaram na Bahia entre os anos de 1549-1850, tal como nos relata Carlos Ott6. É
Valladares quem nos lembra no seu “O Negro nas Artes Plásticas” (1968, p. 99) que Ott
assinala, num elenco de 231 pintores, artesãos e artistas do período mencionado, pelo
menos três que eram escravos e apenas um conhecido pelo próprio nome, Felix, e os
demais artistas conhecidos apenas pelo nome de seus senhores, embora não haja indícios
de que pudesse ter restado algo de suas obras.

Saber quem negro foi, quem negro é (Joel Rufino in: ARAUJO, 1988, p.10), portanto,
passou a ser uma das atividades principais da recuperação histórica de quem realmente
somos nas nossas artes plásticas. Uma das técnicas de vasculhar documentos fedorentos
que ainda restaram e estão jogados nos porões das irmandades dos homens pretos, pardos
pelos Brasis setecentistas e oitocentistas (Minas, Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro, São
Paulo, Rio Grande do Sul, etc.) e saber da lista de pagamentos, tributos, doações e
imaginar...sobretudo imaginar... tem sido utilizada, agora, enquanto metodologia dos
universitários e universiotas com objetivo estreito de defender bolsas e exames
universitários. Já que os Museus e outras instituições culturais não se interessaram por

5
Essa história não é nova! Escolhidos meticulosamente “à dedo” para ascender também foram os negros
dóceis e subservientes ao estilo do “pai Tomás” norte-americano, e sobretudo alguns mestiços do período
escravista brasileiro. Reflitamos: é evidente que jamais rejeitaremos o protagonismo negro nas artes, nas
ciências, na história e na cultura em geral. Entretanto, uma análise fria dos motivos pelos quais e de como
houve a inserção de elementos negros em circuitos elitizados, não pode ser uma análise que deixe de levar
em conta algum nível de cooptação ou uso pragmático do negro por interesses mais escusos. Ainda que, é
verdade, isso é algo que nunca será suficiente para abafar o valor emancipatório do talento de todos aqueles
negros artistas que se beneficiaram historicamente ou não das ondas institucionais de sua valorização - mas
não era isso ainda o que podia ser chamado de “arte afro-brasileira”...
6
A Pintura na Bahia 1549-1850, in: História das Artes na Cidade de Salvador. Prof. M. S., 1967, pp. 103 a
105.
pesquisa em sentido estrito, é de se esperar que um dia esses “geniosinhos”
pós-graduandos façam diferentemente do que fizeram seus professores e tirem a bunda da
cadeirada da torre de marfim, o sapato de cristal e saiam a campo para busca do algo
mais...e esse “algo mais” pode estar bem ali diante dos olhos, e não como aquela agulha
no palheiro.

No período pré-acadêmico, por exemplo, entre os ancestrais negros da arte brasileira,


havia artistas como Manuel Ferreira Jácome (1677-1736), com sua belíssima e tetuda
“Iemanjá” da Portada da Igreja de São Pedro dos Clérigos - Recife, PE (1728), que
ademais conversa aquela conversa formal extemporânea com sua serenidade (maternal) e
frontalidade da “Iemanjá” de Nina Rodrigues, do Instituto Médico Legal (IML) estudadas
por (SALUM, M.H.L., 1999, p. 165-66) - extemporaneidade e mito interpretativo;

Manuel Ferreira Jácome


Ornamento da Portada da Igreja de São Pedro dos Clérigos
Recife, PE (1728)
(ARAUJO, E., 2010, p.118)

Estatueta de “Iemanjá” ao centro, 60 cm.


Instituto Médico Legal (IML)
(RODRIGUES, N., 1904, p.02)
Aquela cujos seios enormes dão luz à fonte de uma laguna (Odo Iyemoja) e se entreabre para dar luz a
todos os deuses e deusas7.

o ex-escravo Manuel da Cunha (1737-1809) que, com sua pintura, comprou sua
liberdade8; uns ancestrais da arte brasileira nem tanto, mas outros bem conhecidíssimos
como Leandro Joaquim (c.1738- c.1798); José Theófilo de Jesus (1758 – 1847)9; José
Patrício da Silva Manso (c. 1753 - 1801)10; Francisco das Chagas, o Cabra; Silvestre de
Almeida Lopes (17??-18??)11; Raimundo da Costa e Silva (Rio de Janeiro, 17??-18??);

7
Na versão do mito recolhido pelo Padre Baudin (1884), Obatalá se une a Odudua e seus filhos são Aganju (deserto) e
Iemanjá (mãe dos peixes), que se unem e geram Orungã (“o meio dia, o ar, o firmamento”) - sendo este, o filho que
ultrajou Iemanjá, causando o inchaço do seio da mãe. [depois do ultraje, a mãe corre e o filho sai correndo atrás dela]
(...)pedindo para que ela volte, como ele estava prestes a alcançá-la, Iyemoja caiu para trás, suas duas mamas
desmensuradamente infladas se tornaram duas fontes que deram origem a uma lagoa chamada Odo Iyemoja, Lagoa
Iyemoja, perto de Okladan. Seu corpo tornou-se enorme e se separou. O lugar [em que isso ocorreu] se apresenta em
Ifé, cidade santa dos Yoruba (Ifé significa alargamento). De Ife, isto é, do seio entreaberto de Iyemoja, sairam com
uma extrema confusão todos os deuses e deusas que aqui estão os principais: BAUDIN, Noël (1844-1887). Fétichisme
et Féticheurs. Societé des Missions Africaines de Lyon: Mission Catholiques, 1884. pp. 13-14. Disponível em:
http://www.joaoferreiradias.net/wp-content/uploads/2012/02/livro-baudin.pdf
8
(ARAUJO, E., 2010, p. 16, 18).
9
José Teóphilo casou-se com uma preta forra, natural da Costa da Mina (região da Costa da Guiné, de
onde provinham escravos principalmente do Benim, Nigéria, Gana e Togo) (ARAUJO, E., 2010, p.42). O
casório ocorreu um mês depois da chegada de Dom João VI, da Família Real (e da transferência de todo
Governo Português) ao Brasil. E oito anos depois, em 1816, a mando do Rei, viria ao Rio de Janeiro a
missão artística Francesa, dando início à “sifilização nas artes”.
10
Outro “mulatinho” estudou com Theófilo de Jesus aos 18 aninhos de idade e viria a rivalizar com o
Mestre em talento, anos depois, seu nome: Jesuíno do Monte Carmelo. De temperamento violento (“mal
comportado, grosseiro, ofende a todos”, dele escreveu Mário de Andrade) teria sido assassinado em
Campinas por um carpinteiro a quem humilhara.”(ARAUJO, E., 2010, p.54). Bem feito!
11
Este artista (ativo no Arraial do Tejuco entre 1764 e 1796) e quase desconhecido, tem uma pintura que é
chamada por Teixeira Leite de “[pintura] com sabor popular e mestiço”(ARAUJO, E., 2010, p. 54). Na
historiografia do SPHAN (ANDRADE, R., 1978) foi dito que ele tinha uma “[obra de feição popular que]
se distingue pela vivacidade, às vezes crua, dos contrastes do seu colorido pelas despreocupadas
desproporções e deformações de seu desenho”.(Idem, Ibidem). Certamente, voltaremos a tratar do assunto
“arte negra = deformação primitivista”. Não teremos tempo, contudo, de tratar do verdadeiro início da
crítica de arte primitivista (embora seja um tema sem o qual não se pode falar da chamada arte
afro-brasileira, em função de sua história cheia de tropeços. Erroneamente, eu presumo, costuma-se remeter
as interpretações da crítica de arte das obras de negros artistas ao fim do séc. XIX e suas conclusões são
ligadas apenas ao racismo científico deste período. Contudo, esses mesmos teóricos tiveram também seus
“ancestrais”, desde o período em que a escravidão pôde assegurar o surgimento do iluminismo e inclusive o
surgimento da “crítica de arte”. É na noção de encadeamento dos seres dos enciclopédistes do séc. XVIII
que devemos buscar, portanto, a raiz da crítica de arte “afro”: Buffon, D’Alambert, Voltaire e o inventor da
“crítica de arte”, monsieur Dennis Diderot, são os ancestrais do “flaneur bresilienne”inventor da racismo
artístico Gonzaga Duque-Estrada e seu livro fundamental para o arcaísmo do tema “arte afro-Brasileira”,
com textos ainda do séc. XIX, publicados postumamente na coletânea “Os Contemporâneos, Rio de Janeiro,
1929”. Por conseguinte, a confirmação dessas tendências se veriam nas críticas de arte das ondas de
valorização do negro, pinceladas ao longo do presente texto. Sobre o assunto “afro” entre os
enciclopedistas, que antecede ao assunto “arte” vejam, por favor: CAMPOS, Rafael Dias da Silva;
Apontamentos Acerca da Cadeia do Ser e o Lugar dos Negros na Filosofia Natural na Europa Setecentista.
aqueloutro pré-histórico flâneur des arts, conhecidíssimo Mestre Valentim (1745 - 1813);
Veríssimo de Freitas (1758-1806); o citado Frei Jesuíno do Monte Carmelo (1764 –
1819); Jesuíno Francisco de Paula Gusmão (1764-1819); Francisco Amaral (17?? – 1830);
o próprio Aleijadinho (1730 - 1814) e seus discípulos escravos, a exemplo de Agostinho,
o angola, e o entalhador africano de nome Maurício12; Januário13; Abdias do Nascimento
nos lembra dos nomes do escravo Sebastião (séc. XVIII), do pintor sergipano erradicado
na Bahia Oséias dos Santos (1865-1949) professor da “Escola Normal da Bahia” por 38
anos, dos cariocas Martinho Pereira e João Manso Pereira14; além dos artistas que, seja
pelo talento, seja por sua insistência atuaram e deixaram suas marcas mesmo no período
elitista acadêmico, ademais muito menos elitista e racista do que a academia de hoje.

Figuras de destaque como Manuel Dias de Oliveira (1764/7-1837), relatado como de


origem negra (ARAUJO, E., 2010, p.36), sendo o primeiro professor público de desenho
do Brasil e o primeiro a ministrar o ensino do nu dando aulas em sua própria casa no Rio
de Janeiro. O artista foi afastado do magistério por decreto de Pedro I, em 15 de outubro
de 1822, fundando um colégio para meninos sete anos antes de falecer (ARAUJO, E.,
2010, p.37); temos ainda outros nomes de negros artistas como Vitoriano dos Anjos
Figueiroa (1765-1871); Antônio Joaquim Franco Velasco (1780 – 1883); Joaquim José da
Natividade (finais do séc. XVIII); Bento Sabino dos Reis (17?? - 1843); Domingos
Pereira Baião (1825-1871); Rafael Frederico (1865-1934); Isaltino Barbosa (1867-1935);
José Eloy15; Thebas, de epiteto, o escravo que, segundo Carlos Lemos, José Pinto de
Oliveira (Thebas) era um “homem que sabia das coisas, que era muito hábil e enfrentava
obstáculos da engenharia na cidade sem engenheiros (...) a primeira obra a ele atribuída
refere-se à torre da Sé paulistana [Antiga Catedral da Sé de São Paulo] (ARAUJO, E.,
2010, 103); outro nome seria o de Felipe Alexandre da Silva (ativo entre 1815-22, em

História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Rio de Janeiro, v.21, n.4, out.-dez. 2014, p.1215-1234. Disponível
em http://www.scielo.br/pdf/hcsm/v21n4/0104-5970-hcsm-S0104-59702014005000017.pdf (Acessado em 15/12/2016).
12
Ver: BRETAS Rodrigo, J.F., Traços Biográficos Relativos ao Finado Antonio Francisco Lisboa (O
Aleijadinho). Revista do Arquivo Público Mineiro, Ouro Preto. V.1 p. 169-174), 1896.
13
(SOUZA, G. de M., 1973, p. 24).
14
(NASCIMENTO, 1978, p.402) ver também: http://www.dicionario.belasartes.ufba.br/wp/verbete/oseas-alves-dos-santos/
15
(ARAUJO, 2010, p. 16)
irmandades religiosas do Recife16) mas poderíamos citar duas dezenas de nomes de
negros artistas de Pernambuco citados em (MENEZES, J.L.M., in: ARAUJO, E., 2010,
pp.111-132), outra dezena de pintores negros do Rococó mineiro citados em (SANTOS,
O. R. dos, in: ARAUJO, E., 2010, pp.135-161), entre tantos outros anônimos ou negros a
se “descobrir” e a se “nomear”, enquanto tais17.

Estes são nomes já conhecidos entre os artistas com alguma ascendência africana próxima
(geralmente, mestiços que foram filhos e netos de negros) e que atuaram no
hierarquizante circuito de artes do barroco, neoclássico e pré-modernismo, sem dúvida
nenhuma dirigido por brancos e sobretudo executado por mestiços e negros. Estes são
artistas fundantes de uma obra já relacionada desde o início à “Academia” de uma época
em que, as corporações de ofícios, os mestres portugueses, os especialistas estrangeiros
da própria Igreja Católica apoiavam a cópia e a reelaboração muito interessante das
estampas vindas da metrópole.
A presença negra nas Academia Imperial de Belas Artes e na Escola Nacional de
Belas Artes já tem sido exemplarmente estudada e não cabe aqui senão o mérito de fazer
uma referência básica18. Mas há um assunto correlato ainda não estudado que diz respeito

16
MOURA FILHA, M.B. Artistas e Artífices a Serviço das Irmandades Religiosas do Recife nos Séculos
XVIII e XIX. Disponível em:
http://www.cepesepublicacoes.pt/portal/pt/obras/a-encomenda.-o-artista.-a-obra/artistas-e-artifices-a-servic
o-da-s-irmandad-es-religiosas-do-recife-nos-seculos-xviii-e-xix (Acessado em 15/12/2016).
17
Compare-se numericamente ou qualitativamente a arte dos negros artistas de antes da implantação da
Academia (ora listados), e ainda durante o período acadêmico, com os dos tempos posteriores e tiremos as
nossas próprias conclusões a respeito das razões do aparecimento da necessidade de uma “arte
afro-brasileira” somente na contemporaneidade. Incluamos a isso, uma dúvida sobre o que fez o negro
artista se transformar atualmente em artista negro e vice-versa - as respostas à esas perguntas contribuirão
para a formação de uma história da arte produzida pelos negros no Brasil.
18
Ver: - LEITE, José Roberto. Pintores negros do Oitocentos. São Paulo: MWM Motores Diesel
Ltda./Indústria Freios Knorr Ltda., 1988.
- LIMA, Heloisa Pires. A presença negra no circuito da Academia Imperial de Belas Artes do Rio de
Janeiro: A década de 80 do século XIX. São Paulo, 2000. 171 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia
Social) - Universidade de São Paulo.
- MARQUES, Luiz. O Século XIX, o advento da Academia das belas Artes e o novo estatuto do artista
negro. In: ARAÚJO, Emanoel (Org.). A Mão Afro-Brasileira: Significado da contribuição artística e
histórica. 2ª ed. rev. e ampliada. São Paulo: Imprensa Oficial, 2010, p. 187-208.
- SCHWARCZ, Lilia Mortiz. “Um monarca nos trópicos”: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a
Academia Imperial de Belas-Artes e o Colégio Pedro II. In: As barbas do imperador: D. Pedro II, um
monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 125-57
- VALLADARES, Clarival do Prado. O negro brasileiro nas artes plásticas. In: AGUILAR, Nelson (Org.).
Mostra do redescobrimento: Negro de corpo e alma. São Paulo: Associação Brasil 500 Anos Artes Visuais,
2000, p. 428.
a figuras de menor destaque dentre os acadêmicos, seja por viverem à sombra dos
grandes, seja por desconhecimento da cor de suas peles, ou por falta de espaço, interesse
ou tempo para o estudo, mas raramente por demérito de suas obras. Há um número
bastante razoável de negros e negras que participaram do processo habitual dos estudos
de artes plásticas nas diversas escolas tradicionais para o cultivo das plásticas que ainda
aguardam estudos mais aprofundados19.

19
Estes estudos tampouco serão definidos aqui. No entanto, como a extinção da escravidão implicou num
maior acirramento da peneira social para negros dentro das academias, diminuindo o número de negros
artistas que ascendiam, acreditamos serem frutíferas as pesquisas da herança africana de artistas e artífices
nos Liceus de arte dos interiores do Brasil, poucas das instituições pós abolição cujo acesso ainda não
estava bloqueado aos negros (diferentemente das que ainda hoje sobreviveram e já não mais permitem
praticamente a estes acesso). Estudos que devem abarcar não só quais eram os alunos e ex-alunos de gesso,
desenho, pintura, escultura de Liceus de Artes e ofícios de São Paulo (1873) por onde passaram desde
Victor Brecheret até Adoniran Barbosa; o do Rio de Janeiro (1856), por onde passaram Rodolfo Amoedo,
Carlos Chambelland, Francisco Stockinger...; como também o da Bahia (1972) e do Recife, atuante desde
1880, mas que partiu da antiga “Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais de Pernambuco” (1841), entre
outras instituições de arte Brasil afora. Quantos artífices de trabalho braçal encarregados do desbastamento,
serra e transporte da escultura em madeira entre outras atividades (ditas menores) que seriam reservadas
apeas a ajudantes e assistentes que não devem ter criado, por esforço individual, bojudos artistas feitos uns
“Agnaldos” Manoel dos Santos? Quando for feita, essa pesquisa poderrá focar em fontes como as
associações de ex-alunos, análise de documentação dos Liceus, bibliografia relevante entre outros materiais
que deverão ser os principais guias para identificação desses ex-alunos e professores que poderiam encorpar
os estudos de busca e de reconhecimento de negros artistas. Outras cidades menores não poderiam ser
excluídas desses estudos: além das cidades do açúcar nordestino, as cidades caffeeiras paulistanas também
não tiveram seus liceus de arte? Famílias de mecenas interioranas não financiaram negros e mulatos artistas
obscuros? Cidades sulistas como as ricas e históricas Itu, Taubaté, Londrina, Ouro Preto... que certamente
tiveram seus Liceus ou “liceus” (como as nortistas dos Liceus Paraense, Maranhense, Alagoano, Piauiense,
Paraibano etc. não tiveram em suas cadeiras figuras mestiças ocultadas sob o mesmo prisma que ocultou
negros e mestiços artistas da história da arte brasileira e de forma semelhante como foram apagados
centenas e até talvez milhares de agentes históricos afro-brasileiros? A educação artística nos centros
jesuítas, o apoio informal de professores de arte brasileiros e estrangeiros etc. são inúmeras dentre as
possibilidades que se abrem para esses “novos” estudos de arte do Brasil. Assim, o mesmo esforço que foi
possível estabelecer para serem resgatados atores e ações de homens e mulheres negros do escamoteamento
dos negros dentro da história do Brasil, seria inteiramente possível ser aplicado no resgate de telas,
esculturas, desenhos, gravuras, croquis etc. produzidos por descendentes de africanos e que podem dormitar
hoje em porões de coleções desconhecidas, mas ávidas para retornarem à luz e por pertencerem ao grande
público.
Dentre todos os exemplos de escolas de arte no tocante esse assunto20, o que mais
merece ser chamada a atenção foi a criação do Liceu de Artes e Ofícios na Bahia (1872)21.
Nas palavras de Valladares (1968, p.101), permitiu a existência de “uma verdadeira elite
de homens de côr”. Mas devemos dizer que esta não passaria de uma suposta pré-história
da “arte afro-brasileira”. Por que, quando, e “se” a história dessa arte puder ser contada,
conseguiremos reconhecer que, de um modo ou de outro, a própria história da arte
brasileira esteve entrecortada por afrodescendentes e não-negros com herança africana e
afro-brasileira que foram capazes de fornecer alguns aspectos peculiares às artes plásticas
no país, explicitadas na época sem obrigatoriedades, modismos ou patrulhamento
ideológico, mas em função dessa herança mesma. Peculiaridade essa identificada como
uma raiz de negritude, encontrada sobretudo na cultura popular brasileira em geral, mas
que teve manifestamente algum nível de influência também nas artes plásticas e nas
expressões culturais de elite. Se isso for assim, e eu estiver correto, concordaremos em
gênero, número e grau com as palavras do professor Marianno Carneiro da Cunha quando
ele pretendeu fazer um “Esboço histórico: o elemento negro nas artes plásticas” em seu
monumental “Arte Afro Brasileira”; primeiro texto de fôlego da universidade a tratar da
“estilística dos temas negros”:

Se levarmos em conta o domínio da escultura em madeira e da metalurgia que já


possuíam os africanos que vieram para o Brasil, de um lado, e de outro da
documentação - fragmentária ainda - afirmando a presença de pardos e pretos nas obras
de talha e douração das igrejas barrocas desde a segunda metade do século XVI,
20
Enquanto são aguardados estudos da presença negra nos liceus e academias, alguns estudos preliminares
podem ser consultados. Entre outros, por favor, consultem:
BARROS, Álvaro Paes. O Liceu de Artes e Oficios e seu Fundador no Primeiro Centenário da Grande
Instituição: depoimento histórico. Rio de Janeiro: Liceu de Artes e Oficios, 1956.
BELLUZO, Ana Maria de M. Artesanato, Arte e Indústria - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da
Universidade de São Paulo - FAU/USP, São Paulo, 1988.[TESE DE DOUTORADO]
BIELINSKI, Alba Carneiro. O Liceu de Artes e Ofícios - sua história de 1856 a 1906. 19&20, Rio de
Janeiro, v. IV, n. 1, jan. 2009. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/ensino_artistico/liceu_alba.htm.
LEITE, José Roberto Teixeira. Dicionário Crítico da Pintura no Brasil: Rio de Janeiro, Artlivre, 1988.
LIMA, Heloisa Pires. A presença negra no circuito da Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro:
A década de 80 do século XIX. São Paulo:. Universidade de São Paulo, 2000 [DISSERTAÇÃO DE
MESTRADO].
21
Ver: LEAL, Maria das Graças de Andrade. A Arte de ter um ofício (1872-1996): Liceu de Artes e Ofício
da Bahia. Salvador: Liceu de Artes e Ofícios da Bahia, 1996. Disponível em:
http://www.ppgh.ufba.br/wp-content/uploads/2014/07/A-Arte-de-ter-um-Oficio-Liceu-de-Artes-e-Of%C3%ADcios-da-Bahia-1872-1972-final.pdf
(Acessado em 15/12/2016).
conclui-se que a infiltração do elemento escravo nas artes plásticas brasileiras coincide
com a própria eclosão das mesmas no Brasil. Em outras palavras, o negro contribuiu de
modo definitivo na desvinculação das artes plásticas brasileiras de sua tutela
metropolitana, quando essas assumem as características próprias que as definem nos
séculos XVII e XVIII. Na feição peculiar que apresenta o Barroco brasileiro desse
período, em sua tropicalidade, como diria Gilberto Freyre, já se encontra o elemento
africano. Este será uma constante que acompanhará de modo claro ou velado a curva
evolutiva das artes plásticas no Brasil, pois é um componente essencial de sua dinâmica
interna. (CARNEIRO DA CUNHA, 1983, p.989)

Laroyê! Com a benção e a licença pedida aos nossos ancestrais de luta, precisamos nesse
presente momento, colocar à parte o valioso trabalho protagonista de indivíduos negros
isolados, o trabalho de negros abolicionistas, da imprensa e dos movimentos negros
imemoriais que sonharam com uma verdadeira valorização da cultura afro-brasileira (e
consequentemente com a valorização da cultura artística negra correlata). Porque, ao
pensarmos fora dessa esfera negra militante22, sabemos que nunca atingimos socialmente
um movimento de massa que tivesse um pico cultural ao estilo da Harlem Renaissance
dos negros Norte Americanos (década de 1920) ou qualquer coisa correlata em termos de
nossa própria cultura “cordial”. Não falo isso com inveja, mas com indignação. No Brasil,
quase sempre que essa valorização ocorreu, (excetuando os casos políticos localizados
mencionados acima) seja em pequenas ou grandes “ondas” na história até hoje, ela
ocorreu de algum modo em função de chefes brancos de instituições sociais e artísticas ou
com brancos mecenas como gerenciadores (management) conscientes ou inconscientes

22
Eu não tratarei aqui, portanto, do protagonismo negro em si mesmo e nem especificamente das tentativas
frustradas ou não do movimento negro de incluir a questão artística nas suas pautas. Isso não significa,
obviamente, que eu não reconheça a importância de militâncias como a Associação José do Patrocínio /
BH com Antonio Carlos a frente e que foi atuante em Minas Gerais no período do Estado Novo; a União
dos Homens de Cor / Curitiba e Porto Alegre com Dr. João Cabral Alves (1943); a Associação do Negro
Brasileiro (ANB) / SP, com José Correia Leite, Francisco Góes e Raul Joviano do Amaral (1945) a frente,
sequer me escapa o Primeiro Congresso Nacional do Negro/ RS Porto Alegre (1958) e suas atividades
artísticas Brasil a fora. O que daremos ênfase neste texto não será ao ativismo negro que perturbou a
estabilidade das cercas das artes, mas daremos ênfase aos momentos e motivos pelos quais essas mesmas
cercas diminuiram suas resistências. Para um bom panorâma do protagonismo e militância dos distintos
movimentos negros ver: DOMINGUES, Petrônio. Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos
históricos. Revista Tempo: vol.12 no.23 Niterói, Rio de Janeiro, 2007. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/tem/v12n23/v12n23a07.pdf (Acessado em 15/12/2016)
dessas mesmas ondas institucionais de valorização do negro, as quais por fim acabaram
por beneficiar o aparecimento da arte de artistas afro-brasileiros (e não necessariamente
de uma “arte afro-brasileira”- mas deixemos, por ora, esta última ainda em suspensão).

As Ondas de Valorização do Negro e seus Surfistas Profissionais e Amadores

Em termos didáticos, eu identifico historicamente quatro ondas de valorização


instrumental do negro conduzidas por instituições com interesse direto na manobra da
negritude, com implicação para formação do que irá será se considerar “arte
afro-brasileira”. Eis aqui, por conseguinte, um “pequeno esboço de um ‘pano de fundo’
para a história das artes com herança africana:

1ª. Onda (os anos que antecedem a abolição)23

A primeira grande leva de valorização que surgiu no período da abolição da escravatura,


partiu de uma maioria de brancos liberais e abolicionistas. Esses eram grandes homens
que fizeram grandes coisas pelo país, mas entre elas havia a necessidade de tomar os
negros não mais como vinham sendo tomados nos últimos 300 anos - cativos em massa, e
que eram, na verdade, os fundamentos do grosso da economia brasileira. Os negros
seriam vistos agora como potenciais consumidores que fundariam um segundo estágio
industrial modernizador - mas não como “massa de operários da indústria” que,
sindicalizados no séc. XX, como os paupérrimos imigrantes europeus, tenderiam
perigosamente às classes médias em algumas décadas - mas como “massa de vassalos

23
Em seu livro, Cleveland (2013, p.18) faz uma suma histórica do aparecimento do que ela chama de “arte
negra no brasil” e analisa resumidamente duas grandes correntes desta arte: uma moderna, depois dos anos
de 1920 e outra contemporânea, depois de 1985. Essa seria uma das cinco áreas por ela estudada, as outras
quatro seriam: a) a arte negra além da esfera religiosa, b) os novos artistas e novas mídias, c) arte e
identidade e d) a arte como representação da negritude. Nenhum outro autor estudado aqui ousou tanto.
consumidores”, os negros jamais sairiam de seus lugares “cativos”: propagadores da
docilidade e da subserviência do consumismo24.

A previsão alongada do fim da escravidão (desde a revolta dos alfaiates na Bahia em


1798 até a abolição legal em 1888) implicava em criar modelos valorizadores de um
grupo de pessoas que tinham de ser vistas agora como “livres” desde que não ousassem
fazer algum pedido de indenização pelos trabalhos forçados das últimas 5 ou 6 gerações
ou tivessem meios de ascender, enegrecendo a elite. Apesar disso, a partir de todo o
século XIX e com mais força nos últimos vinte anos, foram os intelectuais, os
republicanos, os liberais e abolicionistas que possibilitaram a 1a. onda de valorização dos
negros graças ao contexto da necessidade de abolição25. Nessa 1a. onda surfaram negros
profissionais...artistas acadêmicos do final do séc. XIX que eram, no geral, muito
queridos nos círculos abolicionistas e liberais, mas a maioria dependia de mecenas, e dos
prêmios e das bolsas e dos concursos acadêmicos - necessidade essa que viria a
acompanhar a maior parte dos negros artistas desde essa antiguidade até os nossos dias - a
dependência dos projetos, bolsas de estudo ou de um “paitrocínio”.

São arautos da primeira onda de valorização do negro artistas que também tiveram ajuda
do Imperador Dom Pedro II26 como Estevam Silva (1845-1891) que, aos vinte e seis

24
Alguns casos isolados ascenderam e havia de fato espaço para o aparecimento de negros como cidadãos
de 2a. ou 3a. classe, porque estavam livres apenas para consumir, porque o direito a voto para a maioria
negra e analfabeta, assim como para as mulheres, seria um direito conquistado apenas com a Constituição
de 1934. Ou seja, ano do primeiro Congresso Afro-Brasileiro, mas isso se refere à década da segunda leva
de valorização do negro patrocinada pelos nacionalistas brancos, que será analisada em seguida.
25
LIMA, Heloisa Pires. A presença negra nas telas: visita às exposições do circuito da Academia Imperial
de Belas Artes na década de 1880. 19&20, Rio de Janeiro: v. III, n. 1, jan. 2008. Disponível em:
http://www.dezenovevinte.net/obras/obras_negros.htm Acesso em: 15/12/2016.
26
Dom Pedro II, o “Imperador mecenas”, ficou conhecido por seu grande interesse nas artes e no uso
político pelo qual a cultura artística pode beneficiar a um governo. Para o jovem monarca, a unificação
territorial do império podia ser insuflada pela unicidade cultural, já que a carência de uma identidade
verdadeiramente nacional poderia resultar, a médio ou longo prazo, em agente de divisão interna ou de
enfraquecimento das instituições do governo; o que repercutiu na necessidade de se adotar uma produção
artística de temática autóctone, que realçasse as potencialidades naturais do país, o índio como habitante
genuíno e elemento da brasilidade, e os temas históricos nacionais. BISCARDI, Afrânio; ROCHA,
Frederico Almeida. O Mecenato Artístico de D. Pedro II e o Projeto Imperial. 19&20, Rio de Janeiro, v. I, n.
1, mai. 2006. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/ensino_artistico/mecenato_dpedro.htm . Naturalmente, para os
negros artistas premiados neste período (em grande parte monarquistas porque desconfiados da burguesia
liberal, associada aos latifundiários escravagistas) interessava, do ponto de vista artístico, a expressão do
paisagismo, das naturezas-mortas de frutas nacionais e do retrato de temáticas da pintura histórica que
anos testemunhou a promulgação da lei do ventre livre (1871) e aos quarenta, a lei dos
sexagenários (1885). Assim, ninguém da “patrulha ideológica”(tão ativa na onda de
valorização negra atual) poderá exclui-lo do panteão dos “negros conscientes de sua cor”
se se considerar que o artista fez referência à “lei do ventre livre” pintando a tela “A Lei
28 de Setembro” - de qualquer maneira ele morreu cedo demais, aos 46 anos de idade,
deixando pouco espaço para compreensão “racial” de seu trabalho e muito para
fabulações27; outro exemplo entre os acadêmicos é o do pintor Firmino Monteiro (1855 –
1888), nascido numa família bem pobre, foi encadernador e caixeiro antes de ingressar na
Academia Imperial de Belas Artes. Firmino, aluno de Victor Meireles e Zeferino da costa,
também obteve ajuda de Dom Pedro II para fazer uma viagem à Europa, com vinte e
cinco anos de idade (1880) e outras duas viagens em 1885 e 1887, ou seja, um ano antes
de morrer aos 33 anos de idade, enquanto pintava uma tela (inacabada) em comemoração
à lei do ventre livre. Outro artista contemporâneo também morto aos 33 anos foi Antônio
Rafael Pinto Bandeira (1863-1896), também discípulo de Zeferino da Costa,
posteriormente foi ele próprio professor de desenho e paisagem no Liceu de Artes e
Ofícios de Salvador (BA) - maior provedor de negros artistas, por razões políticas, mas
sobretudo estatísticas, já que é um dos locais com maior ascendência africana do país
com cerca de 82% de negros atualmente28. Os últimos integrantes desse primeiro período,
os irmãos João (1879-1932) e Arthur Timótheo da Costa (1882-1922), respectivamente

valorizavam os interesses “nacionalistas” ou Imperiais - fazendo frente não necessariamente a suas


inquietações artísticas, mas certamente a um gosto de época que os permitia ser aceitos ou em alguns casos
até mesmo ascender.
27
O grande crítico de arte Gonzaga Duque, com textos escrito antes, mas publicados em 1929, portanto 38
anos depois do falecimento do métre Silva reconhece no modo de expressão das cores em suas naturezas-
mortas como resultantes da cor de sua pele. Diz o crítico: essa prodigalidade de vermelhos, de amarellos e
verdes não é nem póde ser mais que um reflexo transfiltrado do seu instincto colorista, vibrátil as
sensações bruscas, como é peculiar à raza de que veio. E na página seguinte, diz sobre Silva: quem como
elle, vem de uma rude raça opprimida, e vem soffrendo, e vem luctando, não tem a nebulosidade grisata,
difficultosa, meandrica, ennovellada dos finos; vê sempre sanguineo, vê sempre desesperadamente
amarello”(GONZAGA-DUQUE, 1929, P. 97-98). Esse modelo de interpretação estética racialista que,
como eu disse, provém dos Enciclopedistas e do início da crítica da cultura e da arte primitiva atravessou
todo o século XX, como se verá.
28
O Liceu de Artes e Ofício de Salvador, como dissemos, foi inaugurado em 1872, ano do primeiro
recenseamento brasileiro. Embora não tenhamos os dados da urbana Salvador, outrora capital do Brasil,
segundo este censo, a população escrava de toda a Bahia excedia em 1.043.968 de pessoas livres. (a
população indígena contava em 52837, que representava 7,3% da população baiana da época).
(PAIVA,C.A. et.al. Publicação Critica do Recenseamento Geral do Imperio do Brasil de 1872. Núcleo de
Pesquisa em História Econômica e Demográfica - NPHED, Minas Gerais: Universidade Federal de Minas
Gerais, 2012). Disponível em:
http://www.nphed.cedeplar.ufmg.br/wp-content/uploads/2013/02/Relatorio_preliminar_1872_site_nphed.pdf
aos 15 e aos 12 anos tiveram ajuda de Enês de Souza, diretor da Casa da Moeda do Rio
de Janeiro e possivelmente (se eu não estiver errado) o mesmo Enês que era professor da
Politécnica e foi elencado por “Patrocínio, CR, 5 de maio de 1889”, como um dos que
fizeram parte da campanha abolicionista. (Ver: ALONSO, A. Flores, Votos e Balas: O
movimento abolicionista brasileiro (1868-88). São Paulo: Cia das Letras, 2015. Nota:
50)29.

Excluamos de nossa análise os pintores e gravuristas europeus que, independente do fato


secundário de que figuraram negros, estão evidentemente fora do contexto das ondas de
valorização institucional aqui analisadas. Se concordamos com Teixeira Leite quando ele
comicamente diz possuir sangue negro não é o suficiente para se produzir arte negra
(LEITE, 1988, p.13), nós somos ainda mais intrigados com a percepção de que negros
artistas ou artistas não-negros que retratam negros possam elaborar obras que seriam
classificadas, só por isso, como exemplares da “arte negra” ou “afro-brasileira” - no mais
longinquamente possível, podem ser tratados apenas como “ancestrais” destes.
Voltaremos ao assunto. Mas, enquanto isso, excluamos, por exemplo, viajantes
naturalistas e retratistas do Brasil negro dos sécs. XVI, XVII e XVIII tais como
Villegagnon (1510-1571), Carlos Julião (1740 – 1811), Albert Eckhout (1610 – 1666),
Frans post (1612 – 1680), Rugendas (1802 – 1858), Debret (1768 – 1848) etc. etc.
Excluamos ainda viajantes como Emil Bauch (1823-1890) com seu “Cena de Rua”, ou
Bernhard Wiegandt (1851-1918) com seu “Rio de Janeiro”, etc.,
29
Emmanuel Zamor (1840-1917), cinco anos mais velho que Estevam Silva, foi contemporâneo desse
mesmo período de valorização com escolha isolada de alguns negros em ascenção no círculo das artes, mas
constitui um caso à parte, porque, ao ser adotado e levado para a Europa por Pierre-Emmanuel Zamor
(1810-186) (um cozinheiro de origem africana) e Felicity Rose Neveu (1816-185) (uma costureira, nascida
em Sarthe, região noroeste da França), ele faz parte de um outro contexto. Ele estudou música e pintura
desde os 5 anos de idade e cresceu nos períodos de grande ebulição na França, como a revolução de 1848.
Ele foi adotado provavelmente num ambiente de republicanos apoiadores do Rei Luis Felipe e viveu sua
primeira infância sob a Segunda República Francesa. O artista pertenceu à classe média e ele já era
professor de piano em Paris aos 33 anos de idade quando casou-se com a filha de um perfumista, em 1873.

Jean-Marie Fleau - descendente francês de Emmanuel Zamor


http://gw.geneanet.org/attila1301?lang=fr&p=manuel+pierre+hubert&n=zamore
Emil Bauch - Cena de Rua -1858
http://estudospancadao.blogspot.com.br/2009/09/escravidao-urbana.html

Bernhardt Wiegangt - Rio de Janeiro s.d.


(foi a leilão pela Christies em 15 de Dez. deste ano)
http://www.arcadja.com/auctions/pt/wiegandt_bernhard/artist/30669/

porque estes europeus vieram em outras condições que não dizem respeito nem à pintura
institucionalizada, nem pertenciam a um circuito institucional de pintura que pudessem
ser “cooptados” para uma representação do negro30 que pudesse ser caracterizada como
uma “instrumentalização”. E, nesse sentido, excluamos ainda mesmo brasileiros brancos
ou mestiços que pintaram negros no séc. XVIII, como Leandro Joaquim (c.1738-1798),
por exemplo, entre outros, por motivos semelhantes.

Excluídos todos estes nomes, saibamos que alguns pintores e escultores brancos da virada
dos sécs. XIX para o XX e que figuraram negros em suas obras também acabaram por

30
A artista plástica e professora universitária Renata Felinto que, de forma interessante, tenta distinguir em suas
considerações sobre a representação de negros na arte colonial entre o “negro paisagem” e o “sujeito negro” propõe
uma classificação de três momentos distintos, diz ela tanto com relação à finalidade das representações quanto com
relação à cronologia das mesmas. Os três momentos são o documental, o social e o intimista. Pode ser denominada
como documental toda a produção realizada durante os séculos XVII, XVIII e XIX; social é a produção que abarca a
primeira metade do século XX; enquanto intimista é a produção do fim do século XX até o momento atual. (FELINTO,
R. 2012, p.101.
fazer parte importante dessas duas primeiras ondas de valorizações institucionais das
culturas afro-brasileiras. Há uma lista de artistas brancos brasileiros que, premiados pelo
espírito da estabilização republicana de época (1895-1930) contribuíram
inconscientemente, junto com o modernismo, para o surgimento da segunda leva de
valorização do negro em suas telas e esculturas. Artistas como Modesto Brocos
(1852-1936) e sua tela “Engenho de mandioca” (1892) e “Redenção de Cã” (1895), esta
última, amplamente debatida, foi Primeira Medalha de ouro no Salão de 1895; Lucílio de
Albuquerque (1877-1939) com “Mãe Negra” (1912), recebeu a Pequena Medalha de ouro
no Salão de 1912; Abgail de Andrade (1864-c.1890) (mãe de dois filhos de Ângelo
Agostini, seu amante) premiada com primeira medalha de ouro no Salão Imperial de 1884
com 14 obras – eu só tive acesso a duas delas. Ainda assim, apresento uma outra tela não
muito posterior, e mais significativa para nossos propósitos: “Paisagem a Caminho do
Novo Mundo - com morro do Pão de Açúcar ao Fundo”;
Fonte: http://www.dezenovevinte.net/artistas/co_abigail.htm

Armando Martins Vianna (1897-1992) – “limpando metais” (1923), recebeu medalha de


prata no Salão Nacional de Belas Artes;

Armando Vianna Limpando Metais (1923)


Pintura a óleo 99x81cm.
Museu Mariano Procópio - Juiz de Fora

Tarsila do Amaral (1886-1973) – “A Negra” (1923); Antonio Ferrigno (c. 1893-1903);


Mulata quitandeira; Gustavo Dall’Ara “largo do Capim” e “Tarefa pesada” (1913) que foi
Grande Medalha de Prata (1913) ... etc.etc.etc…Todos esses são artistas brancos que
figuraram negros e foram premiados por seus talentos pelo espírito da estabilização
republicana de época.

2ª. Onda (o negrismo conquista um pedacinho do nacionalismo - condições históricas


para o aparecimento do termo “afro-brasileiro”)

Essa onda foi marcada pela herança da militância modernista com a inclusão de
personagens e sujeitos de origem indígena, mestiça, negra e branca proletária, contra a
antiga imposição acadêmica de representação artística da nobreza, realeza, dos heróis e
prelados da igreja. Além dos outros artistas todos, um “trio” de modernistas atuantes no
nacionalismo inclusivista do negro foi composto por figuras como Lasar Segall (1891 –
1957) com sua irretocável tela “Mãe Preta”(1930) e seus autorretratos em que se
representa como um mulato (tela escolhida como capa para o presente texto), etc; Di
Cavalcanti (1897-1976), com a elegante Família na Praia (1935), além de inúmeras obras;
e ainda, Portinari (1903 – 1962), com seu magistral “Mestiço”(1934), entre outras, e
incluo nesse trio, mesmo Guignard (1896 – 1962) que, com sua série de desenhos
“Favelas” dos anos 30, faz ele com alguns dos outros modernistas pertencerem direta ou
indiretamente ao período histórico da segunda grande leva de valorização do negro
(ocorrida nas décadas de 1930-1940). Igual fruto dessa mesma segunda onda que
valorizava a cultura afro-brasileira pela via nacionalista, particularmente na década de 30,
forçosamente após os primeiros Congressos afro-brasileiros (1934 e 1937), foi o grande
momento de ebulição intelectual da antropologia, história, etnografia, sociologia e das
artes negras. A literatura intelectual clássica sobre a cultura afro-brasileira, o
nacionalismo da era Vargas, a atuação da Legião Negra, a intensificação da Frente Negra,
enquanto um partido político e do movimento negro, silenciados posteriormente pela
ditadura varguista, entre 1937 e 1945, ocorreram todos nessa mesma época.

Esse período foi marcado pela nossa “Harlem Renaissance” da elite letrada de maioria
branca com uma série de publicações sobre o negro, uma verdadeira onda de valorização,
pelo menos do ponto de vista do interesse do negro enquanto objeto de estudo. Livros
como os romances “País do Carnaval”(1931), Cacau (1933), Capitães da areia, (1937),
“Bahia de Todos os Santos”(1938) de Jorge Amado; e os títulos técnicos como “Raça e
Assimilação”(1932) de Oliveira Vianna; “Africanos no Brasil”(1935), de Nina Rodrigues;
“Casa Grande e Senzala”(1933) de Gilberto Freyre; a extensa gama de estudos como “Os
Horizontes Místicos do Negro da Bahia”(1932), “O Negro Brasileiro: etnografia religiosa
e psicanálise”(1934), “O Folk-lore Negro do Brasil: Demopsicologia e Psicanálise”(1935),
“As Culturas Negras no Novo Mundo”(1937), “O Negro Brasileiro”(1940), “A
Aculturação Negra no Brasil”(1942), entre outros de Arthur Ramos; “Candomblés da
Bahia”(1935), “Religiões Negras”(1936), “Negros Bantos”(1937) de Edison Carneiro;
“Costumes Africanos no Brasil”(1938) de Manuel Querino; “O Problema Nacional
Brasileiro”(1938) de Alberto Torres etc. etc. etc. Textos estes formulados na 2a. onda de
valorização do negro ocorrida nos anos 30 e que figuram como os textos clássicos para os
estudos negrísticos, sem a leitura dos quais tanto os teóricos da arte afro-brasileira
professores universitários ou não, quanto militantes e criadores de museus “afro” e outros
baixos cleros afins, permanecem sem compreender com segurança nada do que diz
respeito ao negro.

A despeito de que esse período nacionalista dos anos 30, como diz Salum (2000, p.113),
desconsiderava as especificidades culturais, esse período também abriu espaço para a
fundamentação teórica da condição “afro-Brasileira”, contribuindo para o início da
eliminação do positivismo, evolucionismo e do racismo científico em relação aos negros
– e, sem essa porta entreaberta (ainda que ela ainda hoje esteja apenas a meio fio e jamais
se abriu inteiramente) não haveria possibilidade de existência das artes plásticas
produzidas por negros em grandes centros artísticos modernos que não fosse o lugar da
condescendência, do gueto ou das “cotas”.

O termo “afro-brasileiro”, embora não pudemos identificar sua fonte ou origem,


certamente já era popularizado nessa época, no início dos anos 1930. Salum (2000, p. 113)
nos informa que a arte afro-brasileira ganhou nome neste século XX e passou a ser
reconhecida como qualquer manifestação plástica e visual que retome, de um lado, a
estética e a religiosidade africanas tradicionais e, de outro, os cenários socioculturais do
negro no Brasil. Se o termo “arte afro-brasileira” ainda era chamada “arte negra” neste
período e relacionada apenas a objetos de culto, é certo que o termo “afro-brasileiro”
como sinônimo de “negro” já devia ser de algum modo utilizado, embora saibamos, pelo
teor terminológico observado nos trabalhos do Congresso, que “afro-brasileiro” não se
tratava certamente nem de um termo unívoco e talvez sequer popular.

De qualquer maneira, Gilberto Freyre, Arthur Ramos, Édison Carneiro e Solano Trindade
organizaram no Recife o encontro cujo título ficou sendo “I Congresso Afro-Brasileiro”
(1934). Dentre os trabalhos apresentados, alguns continham títulos que já contemplavam
a terminologia proposta pelo Congresso: os autores Apolinário Gomes, Oscar Almeida
(Babalorixás) e Santa (Ialorixá), apresentou o título: “Receitas de quitutes
afro-brasileiros”; Geraldo Osório de Oliveira Andrade, trouxe o título “Psicologia do
afro-brasileiro” e, Gilberto Freyre, além de apresentar um trabalho que intitulou
“Deformações de corpo dos negros fugidos” apresentou um outro específico sobre arte
popular pernambucana intitulado “O negro na Arte popular e doméstica de Pernambuco”,
e por fim, o único assim intitulado que de certa forma também tratou especificamente da
temática foi o de Gonçalves Fernandes, com o trabalho “A pintura e a escultura entre os
afro-brasileiros”- eis os primeiros textos a tratarem os negros como “afro-brasileiros” e os
primeiros que romperam o hiato de 30 anos, recuo da onda de valorização que os
separava do texto seminal de Nina Rodrigues “As Bellas Artes dos Colonos Pretos”
(1904).

Com organização de Gilberto Freyre e Arthur ramos, em 1937, foi publicado o “Novos
Estudos Afro-Brasileiros”, com os trabalhos apresentados como Anais do I Congresso.
Na sequência, um II Congresso Afro-Brasileiro (1937) foi montado na Bahia. Neste
momento que, por fim, que se solidificou a terminologia “afro-brasileira” para a qual
todos nós nos voltamos hoje, em detrimento dos termos “cultura negra”, “religião negra”,
“arte negra”, que ainda faziam parte do imaginário afro-brasileiro de então até meados
dos anos de 198031.

Estávamos na década de 1930; um dos principais objetivos do primeiro Congresso não


era a simples valorização do negro enquanto tal, em termos de uma exaltação, objeto
sexual ou massa de manobra como foram feitas parcialmente as ondas de valorização das
décadas de 1980, 90 e 2000, e sim, o objetivo “era conferir reconhecimento e relevo à
cultura africana no Brasil e o seu direito de manifestar-se em cultos religiosos”32. Por
outro lado, do ponto de vista estritamente artístico, durante os primeiros Congressos já foi
possível também a criação de um “espectro” do que seria considerada arte relacionada às
temáticas negras. Foi Cícero Dias que, além de ser o autor do cartaz do Congresso,
organizou uma exposição de objetos de arte-afro-brasileira no Salão Nobre do Teatro
Santa Isabel - com figas, cachimbos e bonecas de maracatu - Luiz Jardim, Di Cavalcanti,
Noêmia Mourão, Manoel Bandeira, Santa Rosa, Tarsila do Amaral e o fotógrafo

31
Ver: RAMOS, A. Novos Estudos Afro-Brasileiros. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937.
32
VALLADARES, C.do Prado, 1969 In: ARAUJO, E., Negro de Corpo e Alma. 2000, p. 449.
Francisco Rebello também participaram33. Não é bem esta uma exposição de “arte
afro-brasileira”, mas, em termos práticos, embora a primeira onda tenha de algum modo
influenciado a segunda, mesmo em sentido negativo ou especificamente como antítese,
não podemos dizer que a terceira onda seria uma “síntese” senão em termos lógicos, haja
vista que houve um rompimento em termos políticos (analisados mais abaixo) com
relação a outros Congressos ocorridos ao longo do período que vai de 1937 até 1988,
quando do surgimento da 3a. onda de valorização institucional do negro. Assim, não
podemos atribuir uma ligação direta ou mesmo uma influência de algum tipo entre a
segunda e a terceira onda de valorização do negro, como podemos fazer da primeira em
relação à segunda.

3a. Onda (Centenário da Abolição e Brasil 500 anos (1988-2000)

Acredito que nós ainda estamos vivemos sob o influxo dessa terceira onda, sobretudo
porque alguns dos principais agentes desse período ainda estão em atividade - assim,
falaremos de 4a. onda apenas como uma maneira de nos distinguirmos desta em termos
teóricos e não por não reconhecermos que essa onda é insuperável do ponto de vista do
que ela fixou para os estudos sobre o negro especificamente e, por conseguinte, sobre a
noção de quais seriam as bases da arte afro-brasileira em geral. Eu queria lembrar dos
nomes de negros como Kabengele Munanga (1940)(sociólogo, professor aposentado da
USP), Emanoel Araujo (1940)(artista Plástico e fundador do Museu Afro Brasil),
Oswaldo de Camargo (1936), poeta, José Vicente (1959) fundador da Universidade
Palmares, o economista Hélio Santos do Instituto Baobá, a antropóloga Lélia Gonzalez
(1935-1994) e a filósofa Sueli Carneiro (1950) (Umas das Responsáveis pelo grupo de
feminista Gueledés), Nei Lopes (2942), escritor, Henrique Cunha Jr. (1952), engenheiro,
e outros nomes como Roberto Teixeira Leite(1930), que é jornalista e crítico de arte,
Sérgio Guimarães de Lima professor de Arte , Maria Lúcia Montes (1942), socióloga,
Ulpiano Bezerra de Menezes (1936), historiador, Raul Lody (1952), Wagner Gonçalves
(1960), Dilma de Melo Silva (1948?), Marta Heloísa Leuba Salum (Lisy)(1952)

33
Ver: TUNA, Gustavo Henrique. O negro deu régua e compasso: Revista de História da Biblioteca
Nacional, set. de 2005. p.70; PAZ, Clilton Silva. A importância do Primeiro Congresso Afro-Brasileiro do
Recife. Encontro Escravidão Mestiçagem – MG, 2006. p. 44.
antropólogos, etc. Devido a sua importância na determinação do que concebemos hoje
sobre arte afro-brasileira, serei mais enfático aqui com relação a esta e da próxima onda
tratando delas de forma mais diluída em todo texto a seguir.

4a. Onda (a descoberta do frio)

É verdade, se dissessem à minha geração, que começou a trabalhar com esses temas
afro-brasileiros em 1999, 2000 - nós também que vimos antes o surgimento da
massificação em museus em 1995, com a grande exposição de Rodin na Pinacoteca do
Estado de São Paulo - que a cidade seria tomada por mil e um eventos relacionados à
cultura e as artes afro-brasileiras em torno de 2014- 2016 nenhum de nós acreditaria. Não
éramos, contudo, em absoluto, céticos. Acreditávamos sim no nosso futuro, mas enquanto
uma certeza nossa e que não pudesse em tão poucos anos ver toda essa movimentação em
forma de suposta “nova onda”, dessa vez, pela primeira vez, de forma mais massificada,
graças principalmente ao fenômeno do aparecimento do negro na internet34.

Em 2003 foi sancionada a lei 10.639/03 que tornava obrigatório o ensino da história, da
arte e da cultura afro-brasileiras nas escolas públicas e privadas. No ano seguinte, em São
Paulo foi criado o Museu Afro Brasil, não só, mas também para cumprir com a demanda
de formação da verdadeira torrente de professores atrás de um mínimo de informação
sobre essa “novidade” de massa chamada “afro-brasilidade”. O Museu abriu suas portas
para milhares de crianças de 3 a 12 anos, adolescentes de 13 a 19, adultos e mais adultos,
entre eles, universitários, professores de todos os níveis, pesquisadores independentes etc.
O dia em que se fizer uma estatística geral sobre a produção dessa época, e por exemplo,
na verdadeira montanha de artigos, teses e dissertações e livros sobre assuntos negrísticos
(a maioria dispensável, é verdade, mas como estamos aprendendo a nos alfabetizar, temos

34
Algumas pessoas atribuem isso ao alargamento da classe média, fruto das políticas sociais desenvolvidas
na última década
de ver como tentativas absolutamente louváveis que essa juventude negra tenha levantado
essa bandeira por si mesmo... Outros jovens brancos vendo nesse crescimento um novo
nicho de mercado intelectual, também seguiram essa onda... e que bom, pois hoje são a
nova pequena onda de intelectuais que tratam de questões africanas e afro-brasileiras
dentro das universidades num número como nunca houve. Eles formarão a primeira
grande leva de professores nesses temas, pois sabíamos desde o início de que não
teríamos mesmo quase professores negros já que perfazem minoria da minoria na
universidade e poucos se formam ou prosseguem os estudos35.

35
Se me permitem, farei aqui uma digressão: Na filosofia da USP aonde eu cursei nos anos 1990 não
havia nenhum professor negro. O professor Milton Santos e o Kabengele Munanga (Congolês naturalizado)
eram os únicos negros de mais de uma centena de professores. E ainda, alunos negros na filosofia éramos
em torno de oito em todo departamento...acho que eu e mais 2 se formaram até o ano de 2000. Foram meus
professores de cursos optativos tanto o Kabengele (também da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
mas da área de Antropologia e Ciências Sociais), quanto o professor Milton Santos (da faculdade de
Geografia), aliás, que sempre foi também muito ativo na questão negra dentro da universidade e que me
olhava de um jeito estranho e eu correspondia esse olhar silencioso de alguém que parecia estar com o rosto
sempre “sorrindo”: “Estou diante de mais um negro aqui”! Como negro era raro na universidade daqueles
dias! Mulheres negras, então, eram miragem na universidade, eu achava aquilo muito estranho!..Frequentei
por cinco anos um curso de grego antigo na Faculdade de letras, frequentei a ECA (Escola de Comunicação
e Artes), fiz cursos no MAE (Museu de Arqueologia e Etnologia), com importante acervo africano e afro
Brasileiro, fiz cursos na Faculdade de História e nada...Negros são miragem! Eu já estava fora da
universidade quando fizeram a estatística, e já sabíamos que a negritude entre todo o professorado girava
em um mirrado 1% por cento em 2005. Mas gostaria de lembrar rapidamente do movimento negro dentro
do campus, o cursinho do Núcleo de Consciência Negra (no qual eu quase fui um professor de inglês em
1999, mas tive de abandonar por causa dos meus envolvimentos políticos no AMORCRUSP - Conjunto
Residencial da USP, república universitária). Na moradia universitária, aliás, eu conheci alguns artistas
plásticos, historiadores, geógrafos, filósofos, intelectuais negros com os quais organizamos uma ótima
geração de negros uspianos na virada dos anos 90/2000, por exemplo o desenhista e professor, o meu amigo
Marcelo D’Salete da ECA (https://www.youtube.com/watch?v=Cdr8Y8gnl_k); a socióloga Flávia Mateus Rios
(https://www.youtube.com/watch?v=9lh-zenNcpw) (hoje professora da Federal de Goiás) da Sociais; o poeta Allan da
Rosa da História (https://www.youtube.com/watch?v=aU4Jze7TYog), camaradasso que viria a ser posteriormente
fundador da Edições Toró; a belíssima e talentosa dançarina e minha amiga pessoal a antropóloga Luciane
Ramos Silva (a Luly) (https://www.youtube.com/watch?v=jfOx5drsskc) uma das coordenadoras do Menelik 2o. Ato; o
historiador Carlos Machado (https://www.youtube.com/watch?v=P4572nkPC1w), que parece que nasceu ativista da
negritude e nos ensinou muitíssimo naquela época e hoje; juntamente com escritor Luís Fulano de Tal,
(https://www.youtube.com/watch?v=Igkna1ro52U&t=401s) criador do impressionante “A Noite dos Cristais”(1999) que
tivemos a honra de ver nascer...E eu, particularmente, tive a honra de ler seus manuscritos, ter aulas de
francês e ser o “datilógrafo” da dissertação de mestrado dele etc. O Luis fulano de tal, era aquele que 15
anos mais velhos que nós, nos chamava pelo maravilhoso e saudoso sotaque mooquense de: “Ô, belô!”,
além do filósofo especialista em Condorcet, Rodison Roberto Santos
(http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8133/tde-13012014-103312/pt-br.php), hoje professor universitário, e que foi a
única pessoa do departamento de filosofia louco o bastante para estudar Condorcet; e o então menino,
Uvanderson da sociologia, cujos pais tinham relações com Fulano de Tal, o saudoso Gê da geografia, que
só era branco por um acaso do destino, enfim, o sociólogo chato Batista (João Batista de Jesus Felix
(https://www.youtube.com/watch?v=vppggQz9ySg&list=PLA6pp9F581Xbop523yFmnMWXcyEnRKiLK), que hoje também é
professor universitário na Federal de Tocantins e que naquela época nos enfiava “guelas a baixo”(com
palavrões e gírias negras emprestadas dos “negros da perifa”) nos convencendo a nós, mais jovens
(principalmente pelo fanatismo), de que nós éramos: NEGROS, NEGROS E NEGROS...entre outra meia
Listo algumas delas de memória sabendo que estou cometendo mil injustiças: a Cor da
Cultura, com aqueles vídeos biográficos maravilhosos ainda que sucintíssimos... o
Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (RJ), a Casa do Artista Plástico Afro-Brasileiro
(CAPA - RJ), o NUPE (Núcleo Negro da UNESP), a interessante iniciativa dos
Congressos Brasileiros de Pesquisadores Negros (COPENE), da Associação Brasileira de
Pesquisadores Negros, os coletivos negros todos (não os nomearei!, exceto o NEGA -
Núcleo Experimental de Arte Negra e Tecnologia, que são de Minas Gerais), o
portalsoteropreta de Salvador, as maravilhas da CULTNE, Quilombhoje e da Casa das
Áfricas, o Centro Cultural de Cultura Afro-Brasileira de São Carlos, o CONE de São
Paulo (por falar nisso, desculpem-me pelo meu bairrismo, pois mal conheço as estruturas
dos movimentos negros Brasil afora, mas sei que todos fazem parte da mesma 3a. e
sobretudo 4a. onda). AFREAKA, ABNP, CONNEAB, MUNCAB, SEPPIR, quem serão
os inventores dessas siglas todas? Seremos nós os filhos da outra primeira grande sigla:
TEN (Teatro Experimental do Negro? A própria UNB (Universidade de Brasília, com sua
responsabilidade de fazer valer a vontade suposta de seu patrono)... Na Imprensa: a
Revista Raça, a recentíssima Afro-Brasil36, África e Africanidades, Afrobrás, Kultafro,
Mamaterra (mamapress), Correionago, Portalafricas, afropress, Menelick 2o. ato.,
USPRETA...Alma...Agenda Preta, Afrodelia... O tal do empreendedorismo negro37, O
reaquecimento das Pastorais e missas Afros, a revitalização do feminismo negro: desde
grupos mais antigos como as Gueledés (1990), Cecan (Centro de Cultura e Arte Negra

dúzia de pessoas (quase todos negros) de quem eu já não me lembro mais os nomes...E não me lembro
também quem teve a ideia, mas todos os sábados nós assistíamos no Crusp um filme relacionado à questão
negra geralmente norte-americanos, Spike Lee, todos, obviamente, entre outros - isso deve ser coisa do
Batista, do Carlos ou do filmófilo D’Salete? Enfim, esse grupo de intelectuais negros CDF’s (“cus de ferro”,
pra quem não entende gíria dos anos 90) eu os chamava satiricamente de: “Coooiiissssaasss di
neeeegrrruuu”(voz bem fininha aqui) - bom, eles não sabem disso...mas na época, como um “bom”(leia-se
mediano) estudante de filosofia eu achava essa coisa de “negro-ativismo” ou qualquer coisa que me fizesse
sair do “mundo das ideias” algo de muuuuiiitísssimo complicado e mais ou menos inútil...Cá eu hoje, por
razões óbvias, quase vinte anos depois fazendo muito e com vontade isso que eu fazia um pouco, porém,
quase sem vontade, no fim dos 90. Ativismo é terra de ninguém! Quero ver surgir na 5a. onda de
valorização do negro um protagonismo sensacional de um grupo maravilhoso de ativistas que, por razões
históricas, diferentemente de nós, passe 90% do seu tempo na biblioteca e apenas os outros 10% em campo.
36
Da editora Minuano, como dizem no site, uma revista “direcionada para a raça negra
brasileira”. https://www.edminuano.com.br/assinatura_6911 Na verdade uma reedição da Revista Raça, só com outro
nome.
37
Não sei se os primeiros excluem os pardos, mas uns dizem que são 12 % os afroempreendedores
http://bahianalupa.com.br/brasil-afroempreendedor-projeto-reune-empreendedores-na-bahia/, outros já dizem que são em torno de 50%
do total http://g1.globo.com/economia/pme/noticia/2015/11/empreendedores-negros-focam-em-potencial-do-mercado-afro-no-brasil.html
-década de 1970) e outros mais próprios do nosso período, como as inusitadas
videoblogueiras como uma mocinha neo-neo negra que conheci há duas semanas, pela
minha esposa (que gosta dessas coisas) que responde por um canal do youtube chamado
“Afro e Afins” e que seria um exemplo ímpar da onda new black38, blogueiras negras,
casa de cultura da mulher negra, e mesmo o Instituto Feira Preta (como as feiras pretas), e
os saraus pretos, e o Panelafro, que têm demonstrado uma sensibilidade para com a
questão feminina que são no mínimo interessante, e quem mais? A revitalização de
grupos mais radicais como Reaja ou Será Morta/o, aquelas terríveis invasões das aulas da
USP para tratar de racismo, mas que deixam tudo mundo morrendo de raiva39; Mil e um
grupos ligados à religiosidade afro-brasileira ou o afoxé de grupos como Ilú Obá de Min
etc. etc. etc. Entre outros grupos que eu nem conheço direito e ficou bem difícil
historiografá-los assim de cabeça...As ações institucionais: secretarias negras,
universidades como a Universidade Palmares - com 90% dos alunos negros, em 2012,
com sua primeira turma formada só há 4 anos atrás, portanto, eles devem estar na 2 e 3
turmas de formandos (Nunca tivemos tantos negros com curso superior assim em toda a
história do Brasil, e esta universidade, assim como outras particulares e outras públicas
com cotas para negros, polêmicas à parte, tiveram sua contribuição nisso) - como sou de
uma época em que negro era miragem, não tenho como dizer que isso não seja em si bom;
a Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA) de Foz do Iguaçu, na
qual me orgulho de ter um amigo, Rogério Campos, como professor de filosofia antiga lá
e uma amiga argentina formada na mesma instituição, a cientista política Maria José Haro
Sly; A Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), aonde o Kabengele foi dar

38
https://www.youtube.com/channel/UCjivwB8MrrGCMlIuoSdkrQg Juntamente com ela uma montanha de
neo-neo-negros inventores dos esdrúxulos processamentos das que se querem sempre as próximas ondas de
valorização institucionais (não institucionalizadas) as tais da produção afrocentrada, pedagogia afrocentrada,
currículo afrocentrado, moda afrocentrada, bom, como eu já ouvi nessa onda que os gregos plagiaram os
africanos, que Cristo era negro e ouvi ainda falarem até num “amor afrocentrado”, numa “teologia
afrocentrrada”...falta-vos mais o quê, ó filhos da pós-modernidade?
39
Acho que esses grupos não têm um nome específico, ou se têm não os conheço:
https://www.youtube.com/watch?v=P0qAvA8tDOc(eu os acompanho geralmente de longe, porque, como
um quase discipulo de Bahktivinoda Thakura eu tenho uma programação diária bem restrita que se limita a
estudar, escrever, cantar “japas”, refrescar-me em casa, traduzir do inglês, francês, alemão, hindi, bengali,
trabalhar no Museu Afro Brasil, enquanto ainda estiver “no lado negro da força” ou minhas forças não se
esgotarem por completo, voltar aos deveres de marido e pai de três felinas de nomes engraçados: Beauvoir,
Gatai e Lina (de Jesus), tomar meu banho, meu prasada (comida vegetariana), estudar, escrever, fazer amor
com minha esposa e retomar o dia estudando, escrevendo, cantando “japas”...retomando o ciclo
eternamente até morrer. Como vêem, não tenho muito tempo para arrobos juvenis!
aulas depois de se aposentar da USP. O Congresso Nacional de Negras e Negros do
Brasil (CONNEB) eu já falei ou estou me perdendo neste “surf”? O SESC, que eu gosto
de fazer parte principalmente por causa do público geral que sai da piscina ou da
“comedoria” e vai direto para sala de aula assistir aos nossos cursos todo mês de
novembro...Fantástico! Além dos fenômenos hiper recentes, como quê um jogo de vôlei
entre “Coréia do Norte e Nepal”, com “levantamento de saque” das instituições bancárias
como Itaú, Caixa Cultural, Banco do Brasil etc. e com os neo-neo-negros “cortando”...
(“nós jogamos no mesmo time! ”, diz a propaganda)...etc.etc.etc.etc.

Enfim, o problema de começar tal listagem dos filhos da 4ª. onda querendo ser a ainda
inexistente 5a. onda.... É que quando chegamos na metade da metade dessa lista,
percebemos que ela é “infinita”... ou seja, daria pra ocupar umas 300 páginas de bate
papo sobre esse período que nem sequer terminou direito…e os neo-neo-negros...
amiguinhos hiper esvaziados, logotipados mas se querendo a 5ª. onda de valorização do
negro, sem se referenciar a nada do que veio antes, chegam na verdade última da vida, na
orla, o local reservado a toda onda...a crista, a espuma, o borbulhar e o fim.

Não fosse a grande aparência comercial e/ou da vaidade, moda da juventude negra
descolada, poder-se-ia até imaginar que essa tal 5a. onda já começou e bem; com o tão
sonhado protagonismo negro. Mas nossos antepassados ativistas já tentaram as
conferências, a imprensa, as ruas (está sempre em muito menor número de vezes), a
vaidade (pastiche ou refluxo atual do “black is beautiful), ascensão dentro da política
partidária, documentação de verdade e criações de museus...Pode-se até ser otimista e
dizer: “tudo deu certo, não foi?!” Ou “tudo vem dando certo...”, mas a 4a. onda de
valorização do negro diz: vejo um futuro com mais vaidade, interesse comercial e menos
seriedade...assim como eu vejo nesta suposta 5a. onda um museu de velhas novidades. E,
por fim, como eu participei ativamente da 4ª. onda, de certa forma, eu tenho muito a dizer
sobre isso, mas deixo um pouco desta informação que tenho pra transmitir quando eu
tiver uns 90 anos e eu for dar uma entrevista para um jovem pesquisador negro que
nasceu (SIC) daqui trinta anos em 2046... e que provavelmente vai querer saber coisas
bobas do tipo: “como foi participar da 4a. onda de valorização do negro? ” E, como
disse o poeta, pianista Oswaldo de Camargo (1936) em seu livro “A Descoberta do Frio”
(1979), que eu simplesmente lhe declamarei:

“Existia o frio? Muitos duvidavam; outros queriam provas. No geral, contudo, a maioria
se mostrava indiferente ante essa pergunta. O frio, se existente, teria, quando muito, a
importância da sarna que se pega nos bancos da escola primária.
(...)
A pergunta surgiu após seu aparecimento num dos canais de TV da cidade, na primeira
vez em que tentou afirmar a existência do frio – só nós o sentimos”. (p. 23 e 51)

Hoje ninguém pega sarna nos bancos escolares, mas pega-se asco na transformação do
“ativismo negro” em mera “beleza negra”. Enfim, essa onda tão complexa (ou será
complexada?) ainda não pode ser inteiramente avaliada...estamos nesta crista e para os
mais pessimistas (entre os quais eu mesmo me incluo) aparentemente ela já está pronta
para quebrar ou já se quebrara e estamos apenas surfando na inércia... Mas quiçá ainda
sobreviva ou ainda reconquiste novo fôlego a partir de uma nova quebrada de jovens que
encarem isso tudo diferente e com muito mais energia sincera do que todos nós?

Este texto, portanto, não trataria especificamente de como alguma dessas ondas foi capaz
ou não de instituir o termo “arte afro-brasileira”, já que acredito que não há nada de
definitivo nesse sentido. Ao contrário, na 4a. e na suposta 5a. onda não existem críticos
de arte em sentido estrito. O objetivo principal aqui neste texto, portanto, seria bastante
tímido e humilde: de um lado, há o interesse em fazer um pequeno histórico do problema
e do outro, fazer um resumo do que foi levantado no recente encontro “Olhares sob a Arte
Afro Brasileira”, ocorrido na Pinacoteca de São Paulo (nov. /dez. 2016) sem instituir
todas as possibilidades que de fato esse assunto artes plásticas e cultura afro-brasileira
podem suscitar.
As Ondas de Valorização do Negro e seus Resultados Parciais em Arte

A chamada “arte afro-brasileira” no mais das vezes foi tomada sem se refletir seu real
conteúdo e sentidos teóricos. Até a 3ª. onda parece que, de fato, não havia motivos
concretos para o autoquestionamento sobre essa arte, já que ela ainda estava fulcralmente
vinculada aos termos de uma certa religiosidade afro-brasileira. Durante o surgimento da
4ª. onda, com o aparecimento de artistas ligados à academia de artes (mas agora
desprendida dos preconceitos das antigas Academias e Liceus) – justo com esses artistas
contemporâneos, herméticos, autorreferentes, elitizados dentro da tradição histórica da
arte – criou-se a necessidade e até obrigatoriedade de se estabelecer algumas definições
teóricas e distinções estéticas.

Por ocasião da minha palestra no evento “Pina_Encontros: Olhares sobre a Arte


Afro-Brasileira, seus Conceitos e seus Artistas” intitulado “Arte ‘Afro-Brasileira’: altos e
baixos de um Conceito”, ocorrida no Auditório Estação Pinacoteca em 12/11/2016, eu
propus uma atualização de classificação lógica das principais possibilidades teóricas para
a definição do conceito de “arte afro-brasileira” (o evento foi gravado em áudio pela
instituição). Nessa palestra, reproduzida parcialmente aqui, p. 408 e ss. eu acrescento
ainda algumas distinções nucleares entre os teóricos organizando-os pedagogicamente de
acordo com suas definições do termo “Arte Afro-Brasileira”. Assim, em resumo, se o
teórico como Barata assume que Aleijadinho é um artista que faz “arte negra” ou
“afro-brasileira” classifico-o como tendo uma abordagem “historicista”, isto é, aqueles
que remetem esta arte à história registrada mais longínqua e não só restrita à nossa época.
Se o teórico considera, como Barata, esta arte obrigatoriamente temática (exprimindo
religiosidade, identidade, [...] de origem negras], chamamos este teórico de tematista.
Aqueles cuja forma da obra é imprescindível para a implicação no conceito de arte
afro-brasileira, chamamos de formalista. Se o teórico impõe a continuidade entre as
estéticas africanas e as estéticas afro-brasileiras, chamamos de africanista ou
afro-continuísta. Entre os que acreditam numa execução artística afro-brasileira com
soluções plásticas africanas espontâneas ou inconscientes, chamamos espontaneísta. Se
ele encarna a necessidade política de inclusão dos artistas ou explicita sua importância
nacional, independentemente se fazem uma “arte afro-brasileira” ou não, ele é chamado
de inclusivista. Aqueles que, ao contrário de Barata, não restringem esta arte à cor da pele
são nomeados como universalistas (ou cosmopolitas). Se para os teóricos da chamada arte
afro-brasileira ela só pode ser uma experiência contemporânea, e nomeados como
atualistas. Assim por diante. Como será indicado em detalhes abaixo, embora os
“atualistas” se confrontem com os “historicistas”, a maior parte dessas abordagens pode
ser mesclada num mesmo teórico. Por isso não se deve tomar essas classificações como
estanques, elas apenas auxiliam didaticamente a formar as bases da historiografia futura
da arte com fundamentos de herança africana, único objetivo de se utilizar para esses
teóricos rótulos que soam tão cacofônicos... Ainda assim, para além desses nomes
esdrúxulos que tomei apenas como um exercício didático, vale apenas nos conformar
com as nuances que os distinguem e as composições que entrelaçam as abordagens destes
intelectuais, porque, afinal, são elas que nos fazem crer que a constituição teórica do
conceito de uma arte afro-brasileira dependeria necessariamente da tomada de posições
que partiriam destas notações mais básicas para tornarem-se um pouco mais complexas.

Então, eu me fiz essa pergunta: sofreriam os artistas ligados à África em geral e sobretudo
os afrodescendentes da atualidade alguma pressão ou um policiamento ideológico para
que eles se mantenham dentro de certos parâmetros que tentam finalmente de validar
historicamente a expressão artística negra? Ou a pressão ideológica atual é muito mais
complexada, primária, inconsciente dos valores que nos ligam aos africanos e tudo isso
ficaria resumido mesmo à antiga questão aparentemente ainda não exorcizada da cor da
pele, ou das oportunidades que uma moda traz?
Diversas projeções de uma África mítica e de uma negritude foram calcadas de formas
diferentes em determinadas épocas, determinadas ondas e sobretudo essas deixaram bem
demarcadas a realidade disso. Mas cada época teve seu “imaginário afro” ao seu próprio
modo rebuscado. Contemporaneamente, e de forma talvez até proporcional, com o
pequeno aumento numérico de negros dentro das universidades vivenciamos novas
formas de reivindicações ativistas, algumas das quais até revestidas de indisciplina
vociferante... O “problema do negro” que tinha começado a ser entendido como
“problema dos não-negros”, dado a falta de interesse na leitura demonstrado pela
juventude atual, acabou por voltar a ser um “problema do negro” e houve uma reinvenção
da mitologia que nos faria a nós, negros da 4ª. onda, embevecidos com nossa “nova sede
de vitória”, seres mais biologicamente centrados do que outros. Entre os de aparência
branca só os judeus tiveram coragem de fazer esse tipo de coisa, a contragosto de todo
mundo, é verdade, porque não há sangue puro e não há sal da terra, judeus, negros, índios,
brancos etc. urgem pelo mesmo tipo de misericórdia e de perto não passam de refugo
evolutivo que, como acredita-se, a nova era da manipulação genética, o pós-racialismo
político e sobretudo a cibernética tenderão algum dia abstrato a tudo e a todos “superar”.

Não duvido de que haja muitos universitários loucos o bastante pra comprar hoje uma
camiseta com estampa do Marcus Garvey, como eu mesmo quis que existisse uma
estampa de Stevie Biko, em 1992, época em que li “Um Grito de Liberdade” de Donald
Woods. Ouso dizer que isso é antigo. O que significava em partes os quilombos, além de
amor à liberdade, senão a reinvenção de uma certa e impossível África ideal, no Brasil?
Os quilombos estavam nesse sentido, assim como a primeira e toda demarcação territorial
indígena fadados ao fracasso.

Não ignoramos que exista um termo corrente chamado “arte afro-brasileira”, porém,
sabemos que quanto menor for a experiência curatorial cada pessoa que for chamada a
defini-la dirá uma coisa mais ou menos distinta das outras. Sabemos ainda que os artistas
afro-brasileiros existiram e existem, continuaram e continuam buscando “seu lugar ao
sol”. Mas por que termos como “Imprensa Negra”, “Música Negra”, assim como
“Culinária Afro-Brasileira” parecem termos que passaram pelo crivo de uma “censura”
prévia, a ponto de serem hoje conceitos por princípio inquestionáveis? Por que os termos
genéricos “Artes Plásticas Afro-Brasileiras” são termos em torno dos quais haja tanto
questionamento? Um negro, como uma espécie de “Aleijadinho da Literatura” é o
patrono da Academia Brasileira de Letras...Outros negros literatos que vieram depois dele
disseram: “Machado de Assis não faz literatura negra, mas é um negro e, portanto, é
nosso ancestral”. Ao fazerem assim, eles honraram essa ancestralidade e criaram a
“literatura negra”, cercando o conceito de definições hoje suficientemente compreensíveis
e relativamente aceitas academicamente - a literatura negra fala da subjetiva experiência
negra “do lado de dentro da dor”. A “imprensa negra”, por sua vez, não precisou
remeter-se aos ancestrais, porque nela não havia espaço para a apolítica - ela, portanto
nasceu como clássica, nasceu como ancestral. Se a imprensa negra de hoje preferir
mostrar modelos da beleza negra, seus belos corpos, cabelos e sorrisos, como qualquer
outra “Revista Caras” da vida, trocando o ativismo pela vaidade da nova classe baixa
emergente, isso teria algo a ver com “imprensa negra”, ou a “imprensa negra ancestral”?
Ninguém teria dúvidas de que resposta dar a certos questionamentos, mesmo se
perguntados nos EUA ou no Brasil, algo como: - “Dê um exemplo de uma “Música
Negra”? “Que textos podem ser encontrados nos jornais de imprensa negra? ” Assim por
diante.... Deste modo, eu me pergunto, por que o mesmo não pode ser feito com relação
às artes plásticas? O que seriam, então, as artes plásticas negras já que não resistem à sua
própria definição?

Parece-nos óbvio que deva haver algo além do elitismo relacionado às artes plásticas, e a
necessidade de manutenção de um certo purismo em torno dela que a faça um conceito de
tão difícil apreensão. Pôde-se, por exemplo, falar de “arte flamenca” de modo
retrospectivo, assim como, do mesmo modo, pode se ainda falar, sem incorrer no risco de
falar sem objeto, a respeito da “arte bizantina”, “arte rupestre”, “arte grega”, “arte etrusca,
“arte mesopotâmica”, “arte povera” e, além disso, afirmamos de forma corrente conceitos
muito mais delicados como “Pintura Francesa do séc. XIX”, “Pintura Espanhola”, “Arte
Digital”, “artevismo”...etc.etc.etc. Por que, nesse caso, definir a “arte afro-brasileira” nos
parece uma tarefa interminável? Por que o “afro” da arte afro-brasileira? O que é arte
afro-brasileira afinal?
Embora não tenhamos meios fáceis de obter nenhuma dessas respostas, fizemos questão
aqui de reconhecer, num vislumbre dessas últimas cinco semanas refletindo sobre o tema,
que há ainda muito mais perguntas difíceis a se fazer que esboçar respostas fáceis e nos
comprometer. Segundo o faro não das piores respostas, mas das melhores perguntas,
seguiremos durante as próximas páginas tentando assegurar algum caminho de
compreensão histórica para essa que ainda nem foi estabelecida e já recebe
bombardeamentos de todos os lados. Mas como o lado principal do bombardeamento
segue sendo racista, nós contra-atacamos com algumas possibilidades teórico-práticas
dessas manifestações de arte.

Termino esse subcapítulo com um recadinho sempre muito proveitoso de Aracy do


Amaral:

É claro que poderíamos também mencionar que os descendentes de italianos tampouco


teriam marcada, quando artistas, a presença da tradição italiana em pintura, assim
como, dos filhos de árabes, não esperamos uma arte de acordo com os princípios
islâmicos. Nesse aspecto, os países novos da América se apresentam como uma real fonte
de miscigenação e nova realidade. A identidade passa a ser baseada, assim, a partir de
nosso meio ambiente, ou melhor, de nossos processos tumultuados de deculturação, ou
aculturação segundo os modelos dos centros hegemônicos de arte ocidental. Nesse
particular reside igualmente o drama patético da falta de identidade, perceptível na ação
predatória do brasileiro, em relação a seu espaço, em nossa contínua ausência de
memória em relação a nosso passado mesmo que mais recente, implícita igualmente
nessa atitude uma espécie de inferioridade perante nós mesmos. Que resulta na carência
de autoapreço por nossas realizações culturais, evidenciada também como uma
constante, na inexistência de instituições culturais, como museus dinâmicos, por exemplo,
imprescindíveis, do ponto de vista infraestrutural, para a alimentação das novas
gerações de artistas. (AMARAL, A., 2010, p. 49). Recadinho este que, segundo creio,
não requer grandes comentários nem maiores explicações.
PARTE II

Arte Afro-Brasileira e o Problema de sua Definição


O Problema da Nomenclatura

Nada mais simples e superficial do que dizer que o que entendemos por “arte
afro-brasileira”, “arte negra”, e mesmo “arte afrodescendente” sejam conceitos formados
a partir da experiência da escravidão e, portanto, do conflito entre negros e brancos no
ocidente. Não existe, bem entendido, “arte negra” na África tradicional, da mesma forma
que não existe “arte europeia” na Europa ou “arte greco-romana” na Grécia e/ou na Roma
clássicas. Estes são modos determinantemente ingênuos e limitantes da representação
linguística e do sistema lógico do pensamento humano que nos impõe a estas ficções que
só são uteis do ponto de vista didático. Sabemos que ninguém em sã consciência faria
uma fundamentação desses rótulos em termos anacrônicos e com objetivos muito
explícitos como se tivesse de olhar para o espelho para dizer quem se é.

Mas há algo igualmente óbvio, mas que devemos também mencionar: estes são hoje
conceitos totalmente diferentes do que historicamente foram determinados e certamente
significarão mais coisas, na medida em que for (se for) possível o estabelecimento da
fundamentação teórica desta arte. Estes termos foram utilizados de maneira específica de
acordo com a argúcia da junção de conceitos com “negro” e “arte”, distinguíveis antes
por meios das décadas, séculos, como conceitos não problemáticos se ambos
pertencessem unicamente aos seus campos de atuação. E, no entanto, hoje, ano a ano,
com a progressiva humana e cidanização do conceito de “negro” e desumanização do
conceito de “arte” vemos a junção destas terminologias se liquefazerem numa rapidez
impressionante. A condição histórica para o entrecruzamento deste e de uma infinidade
de conceitos aparentemente afastado dos olhos da maioria das pessoas, principalmente
dos ambientes de prestígio, estimulou ainda o tipo de reflexão que ora desenvolvemos.

O mais antigo destes termos é sem dúvida o termo “arte negra”. Porém, não deve ter sido
por acaso que o antigo termo “arte negra”40, amplamente utilizado durante o final da
idade média e durante o período iluminista (grande tributário do desenvolvimento do
40
O parlamentar Britânico Reginald Scot (1538-1599), no início do capítulo XXI de seu livro The
Discovery of Witchcraft (1584) [A Descoberta da Bruxaria], já falava em blacke art practitioners.
“praticantes da arte negra” (com significado de “bruxaria”). Uma curiosidade: este livro foi a fonte de
William Shakespeare em seus estudos de personagens associados à bruxaria.
comércio euro-africano) fosse utilizado na época para designar aquelas “práticas
mágicas” ou especificamente, a chamada “bruxaria” no contexto europeu. Embora este
termo tenha ainda a mesma função de “magia negra”, este último se aplica, obviamente,
apenas à descrição do aspecto supostamente demoníaco da magia medieval europeia. Não
é de nosso interesse traçar aqui a genealogia deste conceito específico, mas
provavelmente esse termo deve ter tido ligações com outros termos como “black death”
(“morte negra”), “black plague” (“peste negra” ou “peste bubônica”) e estes devem se
relacionar a uma antiguidade ainda mais recôndita como o conceito de “bílis negra” da
teoria medicinal dos “humores” criada por Hipócrates (460a.C. - 370 a.C.).

O termo “Arte Negra”, durante o fim da idade média, início da era moderna (que
coincidiu com o início do processo de “desbravamento da África”) relacionava-se,
portanto, à “bruxaria”. Não devemos perder de vista o termo “fetiche” (do português
“feitiço” e do latim “facticius”, do qual provém o termo “fictício”, ou seja, “artificial”) o
qual foi aplicado também, logo de início, aos objetos “de arte” africanos, e teria uma
longa vida até meados do século XX, quando toda terminologia da antropologia fora
questionada e o termo “fetiche”, agora para sempre seria colocado entre “aspas” na
gaveta da “história dos preconceitos culturais”. Este é um termo que está relacionado
igualmente às “artes negras” das mulheres sacerdotisas da Europa medieval, queimadas
em fogueiras pelo patriarcalismo católico, por causa dos seus “artifícios” e suas “artes”,
suas “coisas-feitas” - o uso de objetos e elementos naturais para criação de construtos
com poderes extra-sensoriais - algo que encontraria correspondência na má interpretação
a respeito dos objetos rituais de culturas africanas, chamados sempre, igual e dubiamente,
de “arte negra”, como sinônimo de “fetiche”, até a década de 1960, mesmo no Brasil.

Galgados na experiência medieval, não faltaram espíritos de porco suficiente para


encherem com fraca imaginação e flatulências as ideias que associavam a “cor negra” da
pele dos africanos e suas práticas mágicas e religiosas à noção europeia medieval de
“magia negra”. Os primeiros exemplares da “chamada arte africana” (igualmente
subrepresentada em sua denominação nada autorreferente – isto é, que não diz respeito a
si própria) não eram “peças de culto” apenas, eram principalmente alguns objetos de
interesse pelo seu exotismo ou por se enquadrar na categoria de peças de gosto da
aristocracia e dos sacerdotes europeus, a quem se dirigiam esses objetos como presentes.
Neste momento as “artes negras” não passavam “ídolos”41 na linguagem da época, ou
objetos do cotidiano, artifícios industriais como armas e implementos agrícolas,
instrumentos musicais, entre outros objetos com ou sem função prática definida.

Ficou, por isso, evidente que na vidada dos sécs. XIX/XIX, numa época antes da
publicação do magistral “NegerPlastik” (1915) do anarquista Carl Einstein (1885-1940) o
termo “arte negra” se referia especificamente às práticas bruxas, fossem feitas por negros
(isto é, sua cultura material religiosa), fossem feitas por aquelas mulheres sacerdotisas de
tradições europeias milenares, perseguidas durante os “séculos de chumbo” da Europa
medieval.

Contracapa do livro “Artes Africanas” (1875) do paleontólogo alemão


Georg August Schweinfurth (1836-1925).

Neste livro, Schwinfurth aplica aos objetos de cultura material africana o


termo Kunstfleisses (“artes industriais”), termo comum na arqueologia em
geral para designar objetos manufaturados das culturas paleolíticas e
posterioras. Como era de se esperar a análise geral da sua descrição dos
objetos é a de um paleontólogo, mas em alguns momentos, como por
exemplo, quando analisa um banco Monbuto, ele faz referências estéticas

41
Gostaria de relatar um dos primeiros registros do surgimento da que chamamos hoje “arte africana” e
que, num certo contexto e durante muito tempo, foi chamada de “arte negra” (até, pelo menos, o Festival de
“Artes Negras” de Dacar de 1966). Sabemos que em 1470, o então Duque de Borgonha (Burgundia),
Charles De Bold (1433-1477), cuja mãe era portuguesa, assinou uma ordem de pagamento a um senhor
Português, um tal de Jehan d’Aulvekerque (João de Albuquerque) por meio de um servo (Alvare de Verre),
que o presenteara com uma espada e algumas figuras de madeira utilizadas [pelos africanos] como
ídolos. ”(LAUDE, J. Les Arts de l’Afrique Noire, Paris: Lib. Génèrale Française, 1966. [The Arts of Black
Africa, UCLA, 1971, p.04) Grifos nossos. Ver também: VANSINA, J. Art History in Africa: an
introduction to method. London & New York: Routledge, 1999. p.34 e Connaissance des Arts, Editions
8-11. Societé Française de Promotion Artistique, 1980. p. 88.
como a ideia de que o banco é uma exceção à regra da arte africana de construir a obra
em um único bloco de madeira (p. 58) (ver também: RAMOS, A., 1949, p.192);
(SALUM, M.H.L., 1999, p. 173)

Figura Ancestral Bongo: Schwinfurth é também original quando descreve uma figura
ancestral Bongo do Gabão distinguindo a representação desse ancestral (que ele chama de
“Erinnerungsbilder” ou “imagem memorial”) das peças de fetiche da África Ocidental
que, segundo ele, “não tem nada em comum” com esta.

(SCHWINFURTH, Georg. Artes Africanae: Illustrations and Descriptions of Productions


of the Industrial Arts of Central African Tribes. Leipzig: F.A. Brockhaus, 1875, p.31).42

Os nomes dados às artes plásticas com influências africanas ou afro-brasileiras nas


exposições, livros e artigos especializados sempre variaram, mantendo seu caráter
historicamente ambíguo. Isso se deu, como foi dito, pelo fato de que a arte que chamamos
genericamente de “afro-brasileira” nunca tenha encontrado uma teorização definitiva.
Outro problema é que a passagem da arte africana para as artes afro-americanas se
remeteria necessariamente ao problema da rejeição de valores africanos sem os quais sua
arte se “deformaria” e se transformaria em uma outra coisa, totalmente distinta. Algo
próximo do que afirmou um dos principais críticos da “arte afro-brasileira” Clarival do
Prado Valladares a respeito da história e do processo de assimilação do artista africano na
modernidade, podemos dizer que vale parcialmente para o artista da arte “afro-brasileira”

42
Não é do nosso interesse aqui fazer uma interpretação mais “esteticista” das descrições de Schwinfurth a respeito
da cultura material africana. Não podemos sequer suspeitar de que, ao chama-la de “artes”(Künste) em sentido
peleontológico, seja possível guardar qualquer ilusão de que ele signifique este termo do mesmo modo ou “modos”
como nós o significamos. No entanto, podemos também deduzir de sua previsão do extermínio da cultura africana
tradicional, provocado a partir do contato externo com o Europeu, de que ele já tinha consciência que esse contato
transformaria a cultura material africana a ponto de destrui-la enquanto tal: Heutzutage kann in Afrika nur von
europäischen Einflüssen die Rede sein, und diese wirken zerstörend. Zwar hat sich in diesem Welttheile eine
Verdrängung oder Vernichtung, in dem Sinne, wie sie sich denen der neuen Welt offenbarte, nirgends geltend gemacht,
dazu ist seine Volksmenge zu gross, der dargebotene Spielraum zu unermesslich, der afrikanische Boclen zu wohl
gegen jede Verfolgung gesichert; aber der Verkehr mit der Aussenwelt, statt zu befruchten und zu beleben, hat überall
nur zerstörend auf die autochthonen Künste eingewirkt. Tradução: Hoje em dia só podemos falar de influências
europeias na África, e essas são destrutivas em seus efeitos. De fato, não vimos ninguém daquela parte do mundo que
afirmou que qualquer tribo tenha sido deslocada ou aniquilada no sentido em que tem sido revelado no Novo Mundo -
a população da África é muito grande para isso, a margem de ação oferecida é demasiado imensa, o solo africano é
muito bem protegido contra qualquer perseguição; mas as relações [do africano] com o mundo exterior [leia-se
“contato com europeu, na África ou quiçá nas Américas], em vez de fertilizar e revitalizar, em toda parte, teve somente
um efeito destrutivo nas artes nativas. SCHWINFURTH, Georg. Artes Africanae: Illustrations and Descriptions of
Productions of the Industrial Arts of Central African Tribes. Leipzig: F.A. Brockhaus, 1875. p.VIII).
que pretender justificar seu trabalho contemporâneo com uma aura mítica africana: Ao
rejeitar a tribalidade (para usar o termo proposto por William Fagg), o africano
rebaixou a sua natureza estética, que era genuína, intuitiva e vivencial, anulou a sua
autenticidade universal e passou a produzir, mimèticamente, o receituário estilístico já
superado dos padrões europeus (A Defasagem Africana, 1966, p. 09). Em outro texto
publicado dois anos depois, Valladares identifica a “falta de conotação à cultura negra”
de alguns artistas como a ausência de algo que considera “genuíno”: Ninguém poderá
identificar genuinidade ou remanescência de cultura negra nas obras de Rosalvo Ribeiro,
Firmino Monteiro, Estêvão Silva, João Timotheo, Arthur Timotheo da Costa, Horácio
Hora, Xisto, Valle, Randolfo Barbosa ou nos descendentes negróides que produzem em
nossos dias, na identidade da arte internacional, comandada pela civilização de fora
(VALLADARES, C., 1968, p. 106). Esta “aura mítica” africana calcada ainda nos
princípios da fixação “negroide”, como poderemos constatar mais adiante, chegou a ser
considerada irrefletidamente como o “ponto essencial para a arte produzida por negros” e
em alguns momentos para a arte considerada, por sua vez, como “arte afro-brasileira”.

Voltaremos também a isso, mas não podemos deixar de registrar de antemão que muitos
autores trataram desse tema da “autenticidade” e “genuinidade” africanas como algo que
correspondesse a uma “busca pelas raízes”, em sentido identitário negro (i. é., político) ou
em sentido plástico modernista (i. é, artístico). Essa é uma observação histórica que eu
faço e que percebo nas reelaborações estéticas da África no Brasil e nas Américas; isto é,
o uso que se faz das “artes das Áfricas” nas Américas desde o momento de valorização
que se iniciou no modernismo determinou de forma definitiva a maioria das ações de
“retorno ao primal”. Esse retorno, contudo não se voltava para a cultura africana mesma
com todos os seus valores integrados numa civilização milenar, e muitas vezes com
propósitos completamente opostos aos do ocidente, mas pelo menos esse seria o retorno
imaginário a umas formas que seriam capciosamente “despidas” de sua carga
antropológica e que seriam algo para o qual deveríamos tender se quisermos nos remeter
às nossas “origens” - de qualquer maneira nenhum dos autores aqui avaliados deixa isso
muito explicito em termos de uma sustentação terminológica. Esse “retorno às origens”
que representa em parte as “artes afro-brasileiras”, tal como será avaliado aqui, teve suas
fontes ligadas ao perspectivismo modernista.

Enfim, ao tratarmos a respeito do problema da nomeação da “arte afro-brasileira”


reforçaremos que não só não estamos falando do mesmo lugar quanto não estamos
falando da mesma coisa. A confusão se generalizou porquanto os antigos falavam de
“arte negra” ou mesmo “arte afro-brasileira” para significar basicamente “aquela
produção plástica elaborada por africanos ou seus descendentes que tivesse alguma
influência da África”. Os antigos pesquisadores brasileiros caracterizaram essa “arte
negra” como os próprios objetos hieráticos e de culto (oxê de Xangô, estatueta de
Iemanjá, adereços litúrgicos, etc.) ou senão como reelaborações destes à luz das técnicas
artísticas disponíveis em determinada época propostas por negros e não-negros, e não
meras figurações artísticas simplesmente influenciadas pela religiosidade. Essas
concepções foram posteriormente questionadas em termos contemporâneos para indicar
inúmeras outras possibilidades, dentre as quais aquelas elaborações artísticas de negros
que por sua própria consciência e risco, resolveram trazer à luz de museus artísticos os
novos artefatos da plástica afro-brasileira, alguns das quais parcial ou totalmente distintos
do que se considera ou considerou ser África ou o “afro” no Brasil.

Foi isso que me fez propor aqui uma investigação, ainda que superficial, dos conceitos de
“arte afro-Brasileira” apresentados ao longo da história da apresentação deste problema.
Sem dúvida, com “As bellas-Artes nos Colonos Pretos do Brazil” (1904) Nina Rodrigues
é o autor admirável deste que é considerado o texto inaugural dos estudos sobre o negro
nas artes plásticas no país. Mas quando, em 1904, ele apresenta como título o termo
“Bellas Artes”, ele não se referia às “Belas Artes” no sentido estrito, já que os objetos que
ele apresentou eram, na realidade, peças que ele próprio reconhecia como sendo de
“antropologia” e não o conceito estrito de “arte” (belles arts ou Arts majors), como se
identificava e classificava objetos de arte de seu tempo (isto é, pintura, escultura,
arquitetura, música erudita, poesia de origem europeias). Isso pode ser identificado no
conjunto de seu texto e depurado do seu modelo de análise dos objetos. No entanto, ele
também faz análise, por assim dizer, “artística” das peças referindo-se a elas como.
“Pintura negra”, “escultura negra”, “artistas negros”, “escultura negra do Brasil”, entre
outros qualificativos que foram, ademais, introduzidos por ele nos estudos artísticos
afro-brasileiros.

Assim, nessa análise de Nina não se deve ter a noção de que se trataria de fato de “Belas
artes Negras” e sim de uma certa “Plástica” ou apenas uma “Manifestação artística dos
Negros”, ou seja, o termo “arte negra” aqui não corresponderia senão à visualidade ou à
“plástica da cultura material religiosa”.... Se isso for assim, reconhecer a ancestralidade
teórica da “arte afro-brasileira” neste texto considerando-o também inaugural da teoria de
arte afro-brasileira, seria interpreta-lo de modo anacrônico ou pelo menos de forma não
usual (ou pós-moderno) o termo “arte”. Como o termo “arte ritual”, o que quer que isso
de fato signifique43, não tinha ainda sido inventado à época, o termo “arte negra” até
meados do séc. XX tanto podia corresponder à “magia medieval”, a “arte africana” (como
máscaras e estatuetas...), como a “objetos de culto do candomblé” e em alguns momentos
também passou a significar “obras de arte” em sentido clássico (pinturas e esculturas),
produzidas originalmente por negros no Brasil e nas América para serem expostas em
museus.

43
De forma interessante, Thompson (2002, p. 5) foi o primeiro a associar a “arte ritual” à uma espécie de
“arte de corte” (tal como havia na arte Africana tradicional). Ao meu ver, ela teria mais chances de
prosperar na cultura artística se não ficasse restrita ao plano da corte. O próprio conteúdo do termo “arte
ritual”, que não será discutido aqui, para ter sentido deveria estar, na verdade, associado à arte pós-moderna,
no seu significado “metalinguístico” daquelas artes que ultrapassariam as suas linguagens individuais e
corresponder-se-iam umas às outras numa espécie de “arte total das formas”, sem as fronteiras habituais
entre as linguagens. Haja vista que não há ou haverá um “Museu de arte ritual”, então, para que ela não se
trate nem de um gueto ou de um conceito sem referente, para se estabelecer a chamada “arte ritual
afro-brasileira” teria de encontrar sua própria metodologia (assim como as outras “artes rituais”, por
exemplo, indígenas). Mas, em primeiro lugar, essa arte teria de supor que ela fosse capaz de ser vista fora
ou seja, não só nos terreiros, nas encruzilhadas, mas também dentro dos museus, e sobretudo tentar
encontrar seu suporte não só na estética da “acumulação” que parece ser característica da umbanda (SILVA,
V.G., 2008, p.105); (AMARAL, Aracy. 2006, p.262) e também própria da instalação considerada
esteticamente como “afro-brasileira”, mas na pintura e principalmente no registro fotográfico (mais
adequado para a documentação da “forma ritual”, documentação esta amplamente ligada à essa prática
“artística”) e com uma utilidade prática que dá forma e valor à essa arte; em segundo lugar, a arte dita
“ritual” teria de ampliar as noções de “arte” como, aliás, vem sendo feito desde o fim era “pop” (vigente
principalmente entre o final dos anos de 1950 a 1970-80); e em terceiro lugar, esta arte chamada “ritual”
teria também de se desconvencionar de inúmeros atributos artísticos e de toda a história da arte para incluir
objetos não ligados à artefatualidade consciente dos artistas que, historicamente, sempre foram entendidos
como aqueles que “criam com objetivo de expor”. Dito em outras palavras, a “arte ritual”, para existir
precisaria não só de sacerdotes artistas, mas principalmente de artistas sacerdotes - exigências essas todas
que não sei esta arte poderá algum dia cumprir para que, por fim, possa ser estabelecida em algum circuito
de fato artístico, sem ridicularização artística ou guetificação de “arte”.
Por mais que fazer essa distinção entre “arte africana”(enquanto objetos da cultura
material da África tradicional), “arte negra” (enquanto objetos de culto afro-religioso das
Américas com ligações estéticas africanas), “arte afro-brasileira ou
afrodescendente”(enquanto objetos artísticos para serem expostos em museus de arte
convencionais) exclua alguns artistas da concepção técnica do termo “arte afro-brasileira”,
essa distinção seria pelo menos útil para percepção distinta que se deve ter em diferentes
épocas que essa arte pretendeu se colocar como conceito. Se isso valeu neste passado
remoto, valeu logo em seguida nos “Congressos Afro-Brasileiros” e continuou valendo
no período do centenário da abolição, no qual a questão da inclusão da chamada “cultura
negra” estava totalmente em voga e, por fim, também vale hoje, para aqueles que se
associam a valores políticos ou religiosos da herança africana e valerá ainda no futuro
para a distinção daqueles artistas herdeiros não-negros da África e aos artistas
afro-brasileiros não tematistas, não religiosos, pós racialistas etc. - aqueles que insistirão
em não fundamentar a arte afro-brasileira em sua correspondência histórica com as
religiosidades de matrizes africana e que farão essa arte de maneira mais
despretensiosamente do que foi feita até então.

Ainda assim, os esforços de nomenclatura e definições que culminaram em terminologias


semelhantes cujos significantes seriam distintos para o passado, presente e futuro, embora
se trate de uma nomenclatura com referente facilmente identificado: “Arte Negra”, “Arte
Afro-brasileira”, “Arte Afrodescendente” etc., ainda assim, tratar-se-iam de coisas, no
mais das vezes, completamente diferentes. É por isso que se fez necessário produzir um
levantamento numa listagem com indicativos não só das definições de arte afro-brasileira
dada pelos críticos e teóricos do assunto, mas também tornar explícitos alguns campos
externos ou periféricos que também definam este conceito ou se reporte aos amplos
significados que ele assumiu ao longo dos anos pelos artistas, pelo público, pelos teóricos
e pelos críticos. Proponho um esboço desta listagem mais adiante no sub-item
“Nomenclaturando a “arte” e a “estética” de herança africana” (p.66). Antes, porém,
gostaria de tratar ainda de mais alguns dos tópicos principais que tornam difícil a
proposição desta nomeclatura.
Definitivamente, uma peça de culto num museu de arte está descontextualizada,
desencantada e forçada a participar da “festa da superfície e das formas” proposta pelas
instituições museológicas contemporâneas. Mas isso não era assim fora da
contemporaneidade. Aquela “Iemanjá”, aquele Oxê de Xangô da época de Nina
Rodrigues, assim como todo o restante daqueles objetos rituais coletados na virada dos
sécs. XIX e XX não pertenciam a essa nova contextualização museológica que vemos
hoje. Eles tinham uma fixação própria que eram sua origem, função e formas ligadas a
aqueles valores religiosos que faziam parte da herança artística africana, mas ainda não
faziam parte da herança artista brasileira. Se o Brasil fosse sério e estes objetos
estivessem em museus da época, estariam, por razões óbvias, contextualizados no seu
setor específico, dentro desse museu específico e com um tipo de alcunha (como uma
espécie de “carimbo”) da qual não se teria quaisquer dúvidas: “objeto antropológico”.
Isso tudo se modificou. Como diz Salum (2000, p. 113) hoje, falar em arte
afro-americana, arte afro-cubana e arte afro-brasileira é uma forma que antropólogos e
historiadores da arte contemporâneos encontraram de recolocar a arte [de herança]
africana para além dos limites de uma etnologia ultrapassada.

Ora, resta saber, em que momento de fato esses objetos que eram tratados já como
“Bellas Artes” por Nina, mas em sentido figurativo, passaram a se “enturmar” com outros
tipos de objetos com outras características e campos de atuações dentro das instituições
museológicas? No caso da arte africana, esta temporalidade já não teria sido indicada?
Foi Picasso (1881-1973) quem primeiro “tirou” o que lhe interessava da aura dos objetos
etnográficos e colocou aquelas “formas puras”, “primitivas”, em suas pinturas, à sua
maneira. Ele foi logo seguido por outros [Kandinsky (1866-1944), Braque (1882-1963),
Brancussi (1876-1957), Archipenko (1887-1964), Modigliani (1884-1920), este com
aquelas esculturas de pescoço alongado ao estilo africano, além de Giacometi
(1901-1966), e outros...]
Amadeo Modigliani
Cabeça – 892 x 140 x 352 mm, 41 kg (1911)
Tate Gallery – Londres
Alongamento da face e do pescoço, característica estética da escultura africana tradicional
http://www.tate.org.uk/art/artworks/modigliani-head-t03760

A terminologia que criava a chamada “arte primitiva” nascia daí - mas vale dizer esta é
ainda mais rigorosamente distinta em termos de referente, em diversos lugares e de
diversas maneiras do que “arte negra” ou “afro-brasileira”. Além disso, o espaço crítico
para “arte primitiva” seria muito maior do que é o da arte dita “afro-brasileira” por que,
enquanto a “arte primitiva” foi fonte de influência da vanguarda (daqueles “não
primitivos primitivistas” europeus), a “arte afro-brasileira” para alguns seria “apenas”
uma tentativa de uma classe baixa emergente sair do anonimato para conquistar espaços
já preestabelecidamente ocupados pelos não-primitivos e somente parcialmente
primitivistas, porque influenciados somente indiretamente por essa arte via modernismo44.
Numa análise minuciosa das exposições, cotejada com análise da obra dos artistas
convidados, aliados à leitura do texto curatorial podemos identificar os sentidos dados
para as formas distintas de nomeação dessa arte. Os ditos “primitivos”45 serão chamados

44
Pode-se fazer um paralelo com a falta de boa-fé e má-vontade teórico-prática para com o ingresso da
arte afro-brasileira nos museus com a falta de boa-fé e má-vontade com relação ao ingresso de negros na
universidade. Isso me lembra os argumentos dos sulistas norte-americanos nos anos de 1960: “Servir ou
mesmo dividir um café até pode ser, mas dividir os mesmos bancos escolares, aí já seria pedir demais!”
Transcrito para a discussão do racismo nas artes – “Servir ou mesmo dividir uma influência até pode ser,
mas dividir o mesmo espaço museológico, aí já seria pedir demais!” Como os luso-brasileiros nunca foram
lá muito ligados nas artes plásticas, assim como os afro-brasileiros, essa pesquisa seria difícil, mas num
abstrato dia em que a afrobrasilidade fosse reconhecida na alma brasileira, a então definitivamente chamada
arte afro-brasileira encontraria suas influências paradoxalmente na “primitiva” arquitetura colonial, nos
“reducionistas” azulejos portugueses, nas “selvagens” linhas das pinturas de Amadeo de Souza Cardoso e
na expressividade das linhas de Almada Negreiros etc.
45
Este é um termo que não precisa muito mais de conceitualização no Brasil, desde pelo menos 1949,
quando Arthur Ramos escreveu em “Arte Negra no Brasil” para o qual as Culturas primitivas são, na
realidade, culturas não europeias, e a expressão primitivo, no sentido de anterioridade temporal e
inferioridade específica, vem indicar a existência do preconceito europoide ou ocidentaloide que aferiu os
para arejar a arte moderna e contemporânea; os naïf , serviriam para “surpreender” em
termos de elaboração provinda de pessoas que em princípio “não deveriam ter elaboração
alguma”; são esses os “artistas populares” em geral que, graças ao trabalho do
empreendedorismo dos brancos que tiraram alguma oportunidade com os assuntos
negrísticos em artes, fizeram os artistas negros populares alçarem voos para um mercado
maior de seus objetos e que, conscientemente ou não vem se desconectando um pouco da
visão mercadológica ao se ligarem a uma visão museológica. Estes são os que
persistiriam ainda mais do que quaisquer outros, mas nenhum deles, a meu ver, jamais
conquistaram a Existência Autônoma e o tão sonhado Protagonismo Negro. Todos só
existiriam em contraposição ao que se fez ou se faz nas metrópoles. Sendo assim, mesmo
ao serem destacados apara os museus de arte, eles estariam fadados a serem os
“eternamente outros”.

O ilustrador e artista plástico negro Santa Rosa, por exemplo, o mesmo que foi chamado
ao “primitivismo”, como era pensada a arte dos afro-brasileiros de então, ilustrou obras
como o primeiro livro de Jorge Amado (Cacau – 1933); (o Urugungo – 1933) de Raul
Bopp; a coleção Ciclo da Cana-de-açúcar de José Lins do Rêgo, ainda nos anos 30;
ilustrou também, nada mais nada menos do que a primeira edição de Macunaíma (1928)
de Mário de Andrade; Vidas Secas (1938) de Graciliano Ramos e o artigo Arte Negra no
Brasil (1949), de Arthur Ramos, entre outros. E, no entanto, foi o próprio Santa Rosa
ridicularizado por Darcy Ribeiro como o mestiço que passou pelo “branqueamento social
e cultural” porque acabam por integrar grupos de convivência com brancos, passando-se
por um [branco] e consequentemente rejeitando a sua origem (RIBEIRO, D., O Povo
Brasileiro. São Paulo: Global Editora, 2015.) Esta seria por fim, a sina de todos os
“primitivistas”: ou bem eles se enquadrariam ou sempre seriam os “outros”, para os
outros, tanto quanto também para si.

É por isso que é preciso distinguir as discussões críticas sobre o primitivismo nos museus
do passado, do presente e do futuro. Às noções primitivistas do passado Arthur Ramos e

valores culturais e artísticos pelos seus próprios padrões de civilização.(Os grifos aqui indicados vieram
em itálico no original) (RAMOS, Arthur. Arte negra no Brasil. Cultura, Rio de Janeiro, ano I, n.2,
p.189-211 il., jan. /abr. 1949).
Franz Fanon já responderam, concebendo-as como resíduo do conflito ocorrido no
interior do que chamamos hoje de eurocentrismo; nas discussões quanto ao primitivismo
no presente, de modo sub-reptício, aquelas instituições museológicas que julgavam outros
como “primitivos” hoje estão tratando política-corretamente se livrar de toda “muamba” e
de todo “bagulho” terminológico de seus museus (a começar pelo Quai Branly em 1995,
com a noção de “artes primeiras” desenvolvidas por Jacques Kerchache e todos os
antigos museus da Europa e alguns dos EUA que hoje estão mudando de nome e
supostamente de feição), porque agora não é mais considerado politicamente correto
chamá-los de “primitivos”, “arcaicos” e “ingênuos”, assim, querem se livrar do peso que
o termo “etnologia” traz nos nomes ou nos acervos.

Do nosso lado sul, ainda hoje, mesmo os artistas que não quiserem ser encaixados como o
foram no passado por exemplo, Mestre Didi, Agnaldo dos Santos, Rubem Valentim etc.,
exatamente assim enquadrados, seja como primitivos ou naïfs, o serão quando forem
expor em grandes mostras nacionais e internacionais que apresentarem o mesmo
“carnaval” do Brasil primitivo de sempre. E é preciso distinguir as discussões futuras
sobre o primitivismo no Brasil, porque este “primitivismo” chegando tardiamente só
agora enquanto uma fórmula artística, será sem dúvida enfileirado aos conceitos e
trejeitos do racismo científico europeu do século XIX. Foi exatamente este que, a
despeito de ter muito poucos defensores hoje, estabeleceu a generalização do princípio de
cultura totalizante europeia como o padrão único ao qual não teríamos quaisquer
possibilidades de substituição ou de modificação, dado ao fato de que seu “estilo de vida”
urge (com uma “evidente” sensação de “superioridade” que nos seduz a todos) e que por
isso estaria indefinidamente em voga - ou pelo menos até quando aqueles valores
“primitivos” (tomados por “evidente” sensação de “inferioridade”) fossem finalmente
chamados ao tribunal da história e os “juízos” que residem no interior da alma de cada
um, pudessem finalmente absolvê-los.

A chamada “arte africana tradicional” tem muito a nos ensinar nesse sentido. De início
(antes da colonização da África, meados de 1880), aqueles objetos eram apenas
nomeados como “ídolos”; pouco depois (na era do “conhecer para dominar”, entre os
anos de 1880 ao início do séc. xx), eram tratados simplesmente por “objetos
etnográficos”; quando os modernistas os “descobriram” (de 1907 até a década de 1950)
passaram a ser tratados por “objetos cujas formas lhes eram artísticas”; atualmente, com
as centenas de exposições e curadoria desses objetos, eles passaram a ser vistos de um
lado como “objetos etnográficos artísticos” e de outro apenas como “arte”, sem
qualificativos, mas bastantes distantes do que foram ou seriam em seu contexto de
origem.

E quanto às “Belas Artes dos colonos pretos”? Quando elas tiveram, então, efetivamente,
essa reelaboração teórica e terminológica que as fizeram ser tratadas como “a) ídolos
(fetiche), b) objetos etnográficos, c) objetos artísticos” a se estabelecerem em museus de
arte?

Ora, essa foi uma ocorrência muito, mas muito recente. E a historiografia disto ainda não
foi realmente estabelecida: pode-se mesmo arriscar a se fazer uma datação, se pensarmos
nas amostragens das obras, nos diferentes curadores, artistas e épocas do estabelecimento
dessas exposições, se pensarmos na tentativa pragmática de uso dos negros e da negritude
e sua cultura como “massa de manobra” podemos tirar daí as pistas teóricas que
respondem à pergunta: “arte afro-brasileira quando? ”

Seja lá como for respondida, essa pergunta teórica nos ajuda a perceber que: arte
afro-brasileira não antes do ano 2000, já que o marco (topo?) expositivo desta arte deve
ter sido mesmo o módulo “Arte Afro-Brasileira” na Mostra do Redescobrimento: Brasil
500 anos, na qual também se atingiu o marco teórico nos dois textos seminais para o
estudo atual do assunto, que seriam os textos curatoriais: “Arte Afro-Brasileira o que é
Afinal?” de Kabengele Munanga e “100 anos de Arte Afro-Brasileira”, de Marta Heloísa
Leuba Salum (Lisy).

Em ambos os teóricos, a fundamentação dessa arte passava pela religiosidade, entretanto,


enquanto curadores desta exposição, eles descortinaram a janela de um futuro mais
despretensioso e que não excluiriam aqueles artistas que apresentavam uma “vanguarda”
dentro das elaborações afro-brasileiras, apostando em sua plástica, na desmaterialidade do
tematismo ou da “arte representacional”. Dentre eles, negros ou mestiços mostraram
obras não temáticas por excelência como a Batalha de Verdun (1954) de Pedro Paulo
Leal (1894-1968):

Pedro Paulo Leal (Rio de Janeiro RJ


1894 - São João do Meriti, RJ ca.1968)

http://www.catalogodasartes.com.br/
Batalha de Verdun -1954
Óleo Sobre Madeira 110 X 130cm
Col. Geneviève e Jean Boghici
(AGUILAR, N., 2000, p.135)

E a tela Signos e Símbolos (1967) de Niobe Xandó (1915-2010):

Niobe Nogueira Xandó Bloch


(Campos Novos do Paranapanema,
atual Campos Novos Paulista SP
1915 - São Paulo SP 2010).
http://www.catalogodasartes.com.br/

Signos e Símbolos - 1967


Acrílico sobre tela, c.i.d. 95 x
127 cm Col. Bárbara
Spanoudis46.

46
(AGUILAR, N., 2000, p. 179-80)
Quem eram Pedro Paulo Leal e Niobe Xandó senão os artistas entre outros, escolhidos
para figurarem numa exposição histórica? Segundo mini-biografia da Enciclopédia do
Itaú Cultural Pedro Paulo foi “um autodidata descoberto pelo marchand Jean Boghici
durante suas exposições no passeio público do Rio de Janeiro. A partir de então, passa a
pintar sobre tela, utilizando tinta a óleo de linhaça”47.

Dele disse Salum: Pedro Paulo não representou a população negra em rodas de samba,
mas no seu cotidiano sagrado e profano da mesma época de Heitor [dos prazeres]. Lélia
Coelho Frota observa que ‘o tema dos navios e sua versão trágica dos naufrágios é uma
das constantes da obra de Pedro Paulo, ao lado das cenas de terreiro (umbanda), das
naturezas-mortas, das batalhas, das composições de caráter orgiástico e muitas vezes
criminal do bas-fond carioca’. Do ponto de vista formal [continua Salum] muitas de suas
pinturas parecem surgir de uma perspectiva pensada em dois ou mais pontos de fuga,
formando espaços contrastados por iluminação fantástica, revelando o caráter religioso
desse pintor, que, quando expunha no Passeio Público do Rio de janeiro, fazia-se
identificar por uma tabuleta com a inscrição “Pintor Espiritual”. (AGUILAR, N., 2000,
p.116)

E quanto à artista de pele clara Niobe Xandó? O quanto seriam as suas obras, de fato, não
temáticas? Diz a enciclopédia: Entre as exposições em que se destaca estão a 10ª Bienal
Internacional de São Paulo, de 1969, onde tem sua obra apresentada na sala especial de
Artes Mágica, Fantástica e Surrealista, e a 1ª Bienal Latino-Americana de São Paulo,
realizada em 1978, onde seu trabalho representa a influência das culturas africana e
indígena na arte brasileira48.

Dela diz SALUM, E assim, como na tradição estética da África, a arte de Niobe Xandó
quer efetivamente dizer algo, pronunciar-se e criar um discurso com um ‘letrismo’, que é
como ela chama o conjunto formado por seus ‘tracinhos’, ultrapassando os limites do
desenho e da pintura, da escrita e da tecelagem. (AGUILAR, N., 2000, p.118)

47
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa24420/paulo-pedro-leal Acessado em Novembro de 2016.
48
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa9278/niobe-xando Acessado em Novembro de 2016.
O aparecimento de obras não-temáticas no interior da ambientação afro-brasileira que nos
parecem hoje frugais, era impensável na era (do fetiche etnográfico) de Nina Rodrigues
por razões óbvias, mas era também impensável na era (do objeto artístico ritualista) de
Clarival Valladares já que, quando este buscou as “raízes” da “arte negra”, também o fez
delimitando-se em questões de ordem representacionais ou temáticas49.

Ainda que esses artistas pudessem ser facilmente “enquadrados”, semelhantemente ao


que aconteceu no anos 60, postumamente, com Agnaldo dos Santos, tratados por vezes na
chave do “inconsciente” ou do “primitivismo”, algum espaço foi deixado para que artistas
mais novos pudessem se pautar em suas obras, suas próprias inquietações e sensibilidade,
tendo a possibilidade de seguirem seus próprios caminhos sem o “patrulhamento
ideológico de cor”, inclusive o caminho de negros e mestiços artistas que ao longo da
história da arte brasileira (quiçá sejam até a maioria) não apresentaram em suas obras
propensões ideológicas, políticas, racialistas ou identitárias - sem que isso representasse
algum tipo de problema!

49
Tratando tudo sempre com a mais aberta sinceridade, devo dizer que a ligeireza do presente trabalho
esconde algumas lacunas da qual não temos espaço para tratá-la como se deveria: assim, é possível destacar,
na verdade, duas fases distintas da critica de Valladares. A segunda (1992) seria quando ele atribui a
Agnaldo dos Santos, por exemplo, a noção de “Inconsciente Revelado” (nome de uma exposição do artista
ocorrida com a curadoria de Valladares, em 1992-93, na Pinacoteca do Estado de São Paulo), isto é, a
percepção de que ele teria se “apropriado inconscientemente das formas africanas tradicionais” ao
aplica-las de maneira literalmente “inconsciente” em suas próprias elaborações artísticas. Nesta crítica,
Clarival não perde de vista, entretanto, de que não se trataria de um “atavismo” ou “etnicismo” o uso que
faz Agnaldo da plástica de origem africana (questão que ele quer deixar para uma discussão posterior).
Valladares tem consciência do acesso de Agnaldo às obras africanas; ainda que, como diz o crítico, isso não
fosse suficiente para tornar Agnaldo um “seguidor” dessa estética e nem tivesse um interesse propriamente
ritual nela. Conforme Valladares: perceberemos [em Agnaldo] um nítido parentesco em relação escultura
tradicional africana. Não discutirei aqui atavismos tampouco considerações étnicas, tal seria
extremamente interessante, porém, em outro espaço, mais especializado. Ater-me-ei aos aspectos formais
conteudísticos que se extraem da obra em si tanto na forma quanto na temática e nomeação das peças,
evidente à semelhança com arte africana, sabe-se que Agnaldo conheceu exemplares desta arte, mas não
suficiente para que se tornasse ‘seguidor’ da mesma. (VALLADARES, Clarival do Prado, 1993, s/
paginação) A primeira fase desta crítica (1968) seria quando, em um texto mais antigo, Valladares deixava
evidente que o biologismo prevalecia em sua análise, pois chegava a falar numa noção de temática atávica
(VALLADARES, C., 1968, p. 107) do escultor. Esta fase de Valladares foi muito bem criticada por
BEVILACQUA, Juliana Ribeiro. Beyond the Revealed Unconscious: Agnaldo Manoel dos Santos as the
Protagonist of his Own Art Critical Interventions Journal of African Art History and Visual Culture Vol. 9 -
Issue 2, 2015.
Fora a dezena de nomes do período pré-Acadêmico (anteriores à década da implantação
da missão francesa 1816-1826), teríamos de citar todas as dezenas de negros artistas e
mestiços das Academias: a Imperial e a Escola Nacional de Belas Artes e dos Liceus de
Artes e Ofícios, mas incluímos também aqueles formados em outras academias e escolas
no Brasil ou no exterior, e ainda os que tiveram preceptores e os autodidatas, mas essa
lista acabaria ficando demasiadamente extensa. Cito, por conseguinte, apenas alguns
nomes para que sirvam de exemplo dos que provavelmente não comporiam
suficientemente a chave tematista negra na maior parte de suas obras:
Estevão silva (1845-1891)
Horácio Hora (1853-1890)
Firmino Monteiro (1855-1888)
Antônio Rafael Pinto Bandeira (1863-1896)
Emmanuel Zamor (1840-1917)
Crispim do Amaral (1858-1911)
Benedito José Tobias (1894-1963)
Benedito José de Andrade (1906-1979)
José de Dome (1921-1982)
Antônio Bandeira (1922-1967)
Floriano Araújo Teixeira (1923-2000)
Octávio Araújo (1926-2015)
Hélio Oliveira (1929-1962)
Yêdamaria (1932-2016)
Juarez Paraíso (1934)
Delima Medeiros (1935)
Maria Auxiliadora (1938-74)
Lizar (1939)
Olumello (Willy Bezerra de Mello)
Genílson Soares (1940)
Maurino Araújo (1943)
Manoel Messias (1945-2001)
Justino Marino (1949)
José Igino (1957)
Dias Paredes (1962)
Claudinei Roberto (1963)
Ronald Duarte (1963)
Rommulo Vieira Conceição (1968)
Washington Silveira (1969)
Alex Hornest (1972)
Sidney Amaral (1973)
Tiago Gualberto (1983)

Entre tantos outros...


Para contrapor a esses, tenhamos a coragem de Conduru, baseado na coragem de
Emanoel Araujo para nomeá-los:

Desde meados do século xx, os trabalhos de Carybé, Rubem Valentim, Mário Cravo
Junior, Agnaldo dos Santos, Heitor dos Prazeres, Emanoel Araújo, Abdias do
nascimento50, Ronaldo Rego, Jorge dos Anjos vêm delineando uma produção artística
singular, que é denominada em livros e exposições como arte afro-brasileira. (em itálico
no original) (CONDURU, 2007, p. 65).

E mesmo a coragem de Clarival do Prado Valladares ao dizer que:

Ninguém poderá identificar genuinidade ou remanescência de cultura negra nas obras


de Rosalvo Ribeiro, Firmino Monteiro, Estêvão Silva, Joao Timotheo, Arthur Timotheo
da Costa, Horácio Hora, Xisto, Valle, Randolfo Barbosa ou nos descendentes negróides
que produzem em nossos dias, na identidade da arte internacional, comandada pela
civilização de fora. Do pintor Armando Viana, a não ser retratos de provedores da
Irmandade do Rosário dos Pretos do Rio de Janeiro, incluindo o seu auto-retrato
naquela qualidade, que integravam a valiosa galeria destruída no incêndio da Igreja em
1967, nada se tem de sinal de raça. (VALLADARES, 1968, p.106)

Ou, fiquemos ainda com a coragem de Aracy do Amaral em os nomear e prejulgar:

Na apreciação desses artistas [Hélio Oliveira, Genilson Soares, José Cláudio, Maria
Lídia Magliane, Miguel dos Santos, Ivald Granato, Octavio Araújo e Delina Medeiros],
bem como de seus percursos, pode-se afirmar que, salvo exceções, não existe na arte
brasileira contemporânea uma arte negra, pois a mais diversas tendências se assinalam
nesses artistas de cor. As exceções, por isso mesmo do maior interesse, são artistas que
deixam em suas criações transpirar a ancestralidade do rito afro-brasileiro, em

50
As relações de Abdias do Nascimento com a arte afro-brasileira não serão devidamente tratadas aqui
porque, em primeiro merecem um trabalho à parte por causa da sua importância teórica e na tentativa
frustrada de fundar o Museu do Negro em 1968. Em segundo, como trataremos aqui apenas da questão das
ondas de valorização do negro instituídas, ele, enquanto um ativista direto, teria de fazer parte de um outro
grupo de análise.
afirmação de busca de identidade, como no caso de Rubem Valentim, ou no barroquismo
generoso em sua construção acumulativa em Emanoel Araújo, no misticismo da gravura
de Hélio Oliveira, e na cerâmica e pintura de Miguel dos Santos.(AMARAL, A., 2006, p.
262); (ARAUJO, E., 1988, p. 248).

Foi a cena contemporânea e especificamente, a cena “afro-artística” do nosso tempo,


portanto, que tomou as rédeas de “afro-brasileirismo” em termos de ideologia de inclusão
ou valorização negra, seja dentro dos “cânones” supostos a partir da revitalização do tema
da “macumba”, “ritualidade”, “ancestralidade”, “magia” etc. em arte, seja dentro dos
“cânones” forjados a partir dessa mesma “materialidade”, agora adaptados à assepsia da
arte contemporânea típica das Bienais, que incluía aqueles artistas que trabalhavam na
“revitalização” do problema da (falta de) representatividade negra - pavimentando assim,
os caminhos que os levavam a uma nova paragem chamada “arte afro-brasileira”.

Os artistas desta nova forma de arte senão surgida, pelo menos mais fortemente nomeada
partir de 2000, seriam então os “contemporâneos”, senão aqueles classificados como tais,
porém, para estes, descortinar-se-ia apenas três vias: 1) a via dos “tematistas religiosos”
(destino para todos os brancos artistas assim previamente relacionados - voltarei a isso); 2)
a via dos políticos da “inclusão social dos negros” ou dos “antenados na luta antirracista”
(maldosamente chamados “afro artivistas”); além, é claro, 3) a via dos defensores da
“identidade negra”, do protagonismo negro, da autoria negra e do enegrecimento
representacional em círculos de arte.

Se isso tiver sido assim, ainda que essas linhas a seguir não possam ser historicamente tão
importantes, elas poderão servir como “nomeações pontuais” ou como “eufemismos”
para elementos vislumbrados numa arte com referência “afro-brasileira”. Esta arte mesma
poderia dessa maneira, renunciar ao seu poder coercitivo divulgando suas características
sem necessariamente se apresentar como algo teoricamente fechado. Pensando nisso, a
partir da literatura especializada, desenvolvemos em seguida uma listagem do
aparecimento dos termos relacionados ao âmago deste campo abstrato e ainda não
totalmente dimensionado que é o das artes plásticas com herança africana no Brasil:
Nomenclaturando a “arte” e a “estética” afro-brasileiras (itálicos e grifos nossos)51

Arte Afro-Brasileira; Negro-Brasileira; Afrodescendente

Arte afro-brasileira (NASCIMENTO, A., 1976, pp.54-62)


Arte afro-brasileira (CARNEIRO DA CUNHA, M., 1983, p.994 e ss.)
Arte afro-brasileira; (CONDURU, 2007, p. 10); (CONDURU, 2013, p. 14);
(CONDURU, 2013, p. 21)
A arte afro-brasileira poderá ter várias leituras, como qualquer outra definição que
necessite uma catalogação, excluindo a arte e os artistas de conceitos antropológicos ou
etnológicos. (ARAUJO, E., 2014, p.15)
Arte afro-brasileira [primeira forma de arte plástica afro-brasileira propriamente dita é
a ritual, religiosa] (MUNANGA, 2000, p. 104-105)
Arte afro-brasileira afro-centrada (BISPO, A.A., 2015)
Arte pejorativamente afro-brasileira (CONDURU, 2007, p. 65)
Temática afrobrasileira (SIC) na arte (MATTOS, N., 2014, p.126)
Temática negro-brasileira (MATTOS, N., 2014, p.127)
Transposições visuais afro-brasileiras (BARATA, M. Le Noir dans les Arts..., s.d. início
dos anos 1970, p.72)
Arte afrodescendente (CONDURU, 2007, p. 10); (CONDURU, 2013, p. 14, 22 etc.);
(CALAÇA, 1999); (SILVA, D.M. & CALAÇA, M.C.F., 2007, p.51); (DOSSIN, F.R.
2008, p. 245,249)
Linguagem plástica afro-brasileira (BARROS, J., 2008, p. 102)
Projeto artístico de cunho afro-brasileiro (BARROS, J., 2008, p. 104)
Projeção temática africana (LODY, R., 1995, p. 01)
Projeção africana (LODY, R., 2005, p. 283)

51
Esta lista não é exaustiva, no entanto, ela é capaz de nos surpreender, pois não me parece que a chamada
“arte afro-brasileira” terá algum dia problemas para se estabelecer enquanto “arte para além da propaganda”,
a depender da criatividade com que os autores e artistas a nomeiam. Num mundo aonde quem rege é a
filosofia nominalista, para a qual o universal “a arte da afrobrasilidade” não confundiria ninguém mesmo
que fosse apenas um “fruto de alguma imaginação”, o particular, entendido como “esta-arte-afro-brasileira-
aqui” encontraria na nomeação a condição de sua existência. Sempre lembrando também que tratar o
“branco artista”, essa outra “imaginação” como algo “universal”, ao inclui-lo na “arte afro-brasileira” é
também fazer proselitismo: A sociedade branca brasileira, embora mestiça, considera-se branca quanto
aos padrões, gôstos, hábitos e atitudes culturais assumidas, identificando-se com o cosmopolitismo
dominante que muitos confundem com universalidade. (VALLADARES, C., 1968, p. 103)
Arte Afro-Negra(s);

Convergências afro-negras (ARAUJO, E., 2006, p.241)


Modelos formais e técnicas de origem afro-negra (BARATA, M. Le Noir dans les Arts...,
s.d. início dos anos 1970, p.72)
Tradição afro-negra da escultura (BARATA, M. Le Noir dans les Arts..., s.d. início dos
anos 1970, p.72)
Tradição técnica afro-negra (SAIA, L. 2006. p. 161)

Arte Negra;

Arte negra; (BARATA, Sd., Les Noirs Dans Les Arts..., s.d. início dos anos 1970, p. 69)
Arte negra (RODRIGUES, Nina, 1904)
Arte negra (RAMOS, Arthur, 1949)
Arte negra [expressão hibrida e suspeita] (FLUSSER, V., 1966, p. 31)
A arte negra ela só existirá sendo mensurada na emocionalidade coletiva, imediata.
(VALLADARES, C. 1968, p. 104)
Uma de minhas principais tarefas é a criação de um projetado setor de arte negra.
(BEZERRA, Ulpiano M. Doc. MAE/USP, 1969) [Carta de Ulpiano M. de Bezerra, então,
diretor do MAE-USP ao Dr. A. Jorge Dias (Diretor do Centro de Estudos de
Antropologia Cultural. Rua Jau, 54. Palácio Vale Flor Lisboa – 3, Portugal) ocasião da
formação do acervo para o MAE-USP]
Possuir sangue negro não é o suficiente para se produzir arte negra. (LEITE, 1988, p.
13)
Arte negra como um biologismo (MUNANGA, 2000, p. 108) (LEITE, T., 1988, p. 13)
Arte negra (SILVA, V., 2008, p. 97)
Arte negra (SODRÉ, M., 2006, p. 261, 203)
Arte negra (“black art”) CLEVELAND, 2013, pp.1-45)
Arte negra [em sua pluralidade de expressões provenientes dos vários grupos
de africanos trazidos para o Brasil ] (SILVA, V.G., 2008, p. 98)
Arte Negro Africana; (termo usado até o início de 2000 para referir-se à “arte africana” e,
às vezes, a uma ligação desta arte com a brasileira, mas produzida por negros)

Arte negro africana (MUNANGA, Kabengele. “A Dimensão Estética na Arte


Negro-Africana Tradicional”. In: AJZENBERG, Elza (org.). Arteconhecimento. São
Paulo: PGEHA, 2004, pp. 29-44)
Arte negro africana (DANTAS, Raymundo S. Sentido e Alcance da Arte
Negro-Africana”. Cultura. Brasilia, vol. 2. No. 7, 1972. pp. 68-71).
Criação artística negro-africana ( África Negra. Museu de arte de São Paulo Assis
Chateaubriand, 1988. p.7)
Escultura negro-africana (CARISE, I., 1980, p. 110)

Arte(s) Neo-Africana(s)52;

Elementos residuais africanos e neo-africanos devem justapor [overlap] e intensificar


uns aos outros, mesmo num único trabalho. Isso não é só verdadeiro para a literatura,
mas também para a religião, dança e arte. (JAHN, Janheinz, 1990, p. 195)
Artes neo-africanas na diáspora (BARROS, J., 2008, p. 104)
Estilo neo-africano [arte afro-americana; Caribe, EUA e Brasil] (PRESTON, G. 1983, p.
13)
Estilos neo-africanos (PRESTON, G., 1987, p.41)

Arte religiosa; Afro-Religiosa; Arte-Religião;

52
O primeiro a desenvolver a tese de uma cultura e arte “neo-africanas” como sinônimo do que chamam
hoje, não com menor problemática, arte e cultura “diáspóricas” foi Janheinz Jahn em seu seminal livro
“Muntu: african culture and western world” [1a. ed. 1958] em que diz a negritude é nada mais nada menos
do que o início da consciência da literatura neo-africana (JAHN, J., 1990, p.207 - ver também: pp. 9;
16-17; 21; xxv; 147; 195; 207 e 235).
Arte afro-brasileira de inspiração religiosa [referindo-se a Djanira da Mota e Silva, (uma
branca artista incluída no conceito do pesquisador) Ronaldo Rêgo e Rubem Valentim]
(MENEZES, H., 2015, p.113)
Arte-religião afro-brasileira (SODRÉ, J.M., 2006, p. 37) (SODRÉ, J.M., 2011, p.37)
Arte religiosa negra (CLEVELAND, K.L., 2013, p.36)
Arte religiosa afro-brasileira transitiva entre o campo estético e o religioso (SILVA, V.,
2008, p. 109)
Arte religiosa afro-brasileira (Vagner Gonçalves da Silva. “Arte Religiosa
Afro-Brasileira: as múltiplas estéticas da devoção brasileira” In: ARAUJO, E., 2008, p.
119)
Arte religiosa dos terreiros (SILVA, V.G., 2008, p. 98)
Arte religiosa e étnica (BARROS, J., 2008, p.98)
Arte afro religiosa (LOPES, 2015, p.28)
Arte afro-religiosa (LOPES, 2016, p. 134)
Arte temática afro-religiosa (PÊPE, S. P., 2008)

Arte Ritual/Ritualística; Arte Sacra Negra/Afro-Brasileira; Artistas


Rituais/Ritualísticos

Arte ritual (CUNHA, 1983, p. 990; 1026)


Arte ritual e religiosa (MUNANGA, 2000, p. 104)
Arte ritual afro-brasileira (SOUZA D’SALETE, 2009, p. 28)
Arte ritual [citação] (SODRÉ, J.M., 2006, p. 264)
(...) Podem, por sua funcionalidade efetiva, suas formas estéticas constituir a expressão
mais convincente da ‘arte ritual’ (SODRÉ, J.M., 2011, p. 80)
Arte sacro afro-brasileira (SODRÉ, J.M., 1997); (SALUM 2004, p. 342)
Arte sacra negra (SODRÉ, J.M., 2006, p. 193)
Arte sacra afro-brasileira (SODRÉ, J.M., 2006, pp. 144, 300, 302)
Arte sacra afro-brasileira (AMARAL, R., 2000, pp.256, 261)
Esculturas de inspiração sacro afro-brasileira (SODRÉ, J.M., 2006, pp. 248, 249, 259)
Arte sacra afro-brasileira (SODRE, J.M, 2011, pp.144, 300, 302)
Arte Sacra afro-brasileira (BISPO, A., 2012, p.86)
Artes plásticas rituais (Os artistas rituais definiram o tema afro-brasileiro em seu sentido
Artistas ritualísticos (NUNES, E., 2007, p. 120)
[Artista ritualístico] estrito (AJZENBERG, 2010, p.67 e 68 in: SILVA, 2010)
Arte ritualística (SILVA, D.M. &CALAÇA, M.C.F., 2007, p.65)
Arte ritualística (NUNES, E., 2007, p. 114)
Artista de corte para o terreiro Gantois [sobre alguns trabalhos feitos na Bahia pelo
artista nova-iorquino de origem porto-riquenha Manoel Vega] (THOMPSON, R.F., 2002,
p. 5)

Autenticidade; Legítima, Genuína [arte];

Autenticidade universal (VALLADARES, C. A Defasagem Africana, 1966, p. 09)


A arte negra é incomensuravelmente pródiga. Nela encontramos autenticidade; partindo
dela estaremos dentro de princípios estéticos adequados, genuinamente brasileiros e
afro-brasileiros. (CARISE, I., 1975, p. 68-9)
l'Art nègre y parle tout seul, par ses multiples voix, derrière ses multiples visage. C'est ici
qu'il révèle aussi son authenticité, en tant qu'il est “nègre”, et par le fait même, il affirme
son unité. Tradução: A arte negra fala por si só, por suas múltiplas vozes, por trás de
suas múltiplas faces. É aqui que ela revela também a sua autenticidade, como é “negra”,
e ao fazê-lo, ela afirma a sua unidade. (M’VENG, Engelbert, 1966, p. XVIII).
Autenticidade de grupo excluído [ferreiros negros da Ladeira da Conceição da Praia]
(CARNEIRO DA CUNHA, 1983, p.994)
Obra de Arte [afro-brasileira] autêntica (MUNANGA, 2000, p. 107)
Território da autenticidade [A África permanece cristalizada e inalterada aos olhos dos
afrodescendentes] (FARKAS, S. 2005, p. 16)
Genuínos [artistas, que referenciam a arte africana/afro-brasileira] (LODY, 2005, p.284,
285)
Genuinidade africana (LODY, 2005, p.286)
Arte africana genuína na produção artística do negro brasileiro (VALLADARES, C.,
1968, p. 104)
Arte genuinamente afro-brasileira (BELLÉ, L.A. 2012, p.50,54)
Raros são os artistas negros de formação contemporânea comprometidos à genuinidade
da cultura negra. (VALLADARES, C., 1968, p. 107)
Não existiria hoje uma arte legitimamente brasileira sem a criativa e poderosa influência
do negro (ARAUJO, 2010, p.16)
Autenticidade é o dever de pensar e de fazer por nós mesmos [Lody, citando Mobuto]
(LODY, R., 2005, p. 293)

Continuidade;

Continuidade e trânsito, no campo das artes entre a África, o Brasil e a África.


(ARAUJO, E., 2010, p.104)
Continuidade da ancestralidade africana na arte dos seus descendentes afro-brasileiros
(ARAUJO, E., 2010, p. 107)
Continuidade da presença africana na diáspora [revelada através de obras] (ARAUJO,
E., 2006, p. 242)
Continuidade temática (VALLADARES, C., 1968, p. 107)
Continuidades e descontinuidades estilísticas (SALUM, M.H.L., 1999, p. 173)
A escultura africana não continuou viva no Brasil (COSTA e SILVA, 2003, p. 59)

Deformação; Desproporção; Distorcido; Proporção;

Os verdadeiros móveis da deformação plástica da escultura africana estão, porém, no


simbolismo, na abstração, no esquematismo, no expressionismo das suas concepções.
(RAMOS, Arthur, 1949, p. 193)
Deformação plástica do corpo nas estatuetas africanas (RAMOS, Arthur, 1949, p. 192)
Fatores de deformação e distorção [na arte africana] (ARAUJO, E., 2006b, p. 65; 56)
A desproporção no comprimento dos braços, mui peculiar à raça negra [análise da
representação dos braços de um Oxê de Xangô baiano] (BRAZIL, Etienne, 1911, p. 216)
Oxê de Xangô baiano (à direita)
com “alongamento braçal”, referido por
Etienne Brazil como uma “desproporção”.
(BRAZIL, Etienne. 1911, p. 216) republicado de (RODRIGUES, 1904, p.04)
A desproporção entre o comprimento dos braços e das pernas, peculiar à Raça Negra, é
levada, pela imperícia do artista, quase ao extremo da caricatura (RODRIGUES, N.,
2010, p.175)
[Os artistas africanos] exageram e simplificam formas e volumes, buscando a deformação
emocional (...) (CARISE, 1975, p. 66)
Estranhas proporções encontradas nas obras de talha do escultor negro baiano
Vitoriano dos Anjos [sobre relato de Nina Rodrigues em “Bellas Artes dos Colonos
Pretos”] (ARAUJO, E., 2006, p.242)
Formas ancestrais, embora frequëntemente distorcidas, não escondem contudo a matriz
geradora e diversificam-se no que se chamou depois de afro-brasileiro. (CARNEIRO
DA CUNHA, 1983, p. 993-994)

Diversos;

Arte afro-baiana (SODRÉ, J. M., 2006, p. 192)


Arte afro-baiana (BELLÉ, L.A. 2012, p.151)
Arte ancestral [submissão consciente ou inconsciente aos princípios de uma arte
ancestral] (ARAUJO, E., 2006, p. 242)
Arte desvinculada das raízes [Olívio Tavares de Araujo, sobre os artistas Antônio
Bandeira e Almir Mavignier]. In: (ARAUJO, E., 1996, p. 49; versão de São Paulo)
Africanização da e na arte (BELLÉ, L.A. 2012, p. 50)
Arte regressiva [em relação à África] (PRUDENTE, C., 2002, p. 46)
Arte primitiva significando inferioridade cultural (RAMOS, Arthur, 1949, p. 189)
Asserção artística da identidade étnica negra (CLEVELAND, K.L., 2013, p.36)
Coordenadas [artísticas] africanas (CARNEIRO DA CUNHA, 1983, p.1025)
Conhecimento artístico-religioso (Vagner Gonçalves da Silva. “Arte Religiosa
Afro-Brasileira: as múltiplas estéticas da devoção brasileira” In: ARAUJO, E., 2008,
p.130)
Democracia estética [Afrânio Mendes Catani sobre o livro de Celso Prudente]. In:
(PRUDENTE, C., 2002, p. 21)
Teoria de Arte Afro-Brasileira (SODRÉ, M., 2006, p. 303)
Elemento primordial da estética utópica da afro-brasilidade (PRUDENTE, C., 2002, p.
81)
Elo de ancestralidade (ARAUJO, E., 2010, p.17)
Engajamento iconográfico negro-racial (PRUDENTE, 2002, p. 147)
Etno-Estética (MUNANGA, Kabengele. “A Dimensão Estética na Arte Negro-Africana
Tradicional”. In: AJZENBERG, Elza (org.). Arteconhecimento. São Paulo: PGEHA,
2004, pp. 29-44 - Baseado em SOMÉ, R., 1998)
Estético religioso afro-brasileiro (SILVA, V.G., 2008, p.99)
Expressão artística negra (CLEVELAND, K.L., 2013, p.36)
Evidente simbologia da ritualística afro-brasileira (ARACY, A. 2010, p.11) [referência à
policromia de Emanoel Araujo, ao utilizar em seus trabalhos as cores de Exu: o vermelho
e o negro]
Expressões artísticas com raízes africanas (DOSSIN, F. 2008, p. 246)
Expressão artística com raiz negra (SILVA, D.M. &CALAÇA, M.C.F., 2007, p.51)
Heranças Africanas na arte brasileira (NUNES, E., 2007, p.113)
Imaginário de referenciação africana no Brasil (LODY, R., 2005, p.287)
Manifestações plásticas negro-mestiças no Brasil (MATTOS, N., 2014, p.128)
Manifestações litúrgicas e estéticas [Glória Moura, sobre cotidiano religioso baiano]
(ARAUJO, E., 1996, p. 44; versão de São Paulo) ]
Natureza ambivalente na arte negra: forças interiores convivem com as tendências
estéticas e a demanda religiosa (PRUDENTE, C., 2002, p. 51)
Produto mestiço expresso na arte rural da escultura nordestina (RAMOS, Arthur, 1949,
p. 206)
Recuperação de uma estética e filosofia afro entre nós [Renato de Souza Porto Gilioli] in:
(PRUDENTE, C., 2002, p.28)
Trata-se da cultura material dos segmentos negros no Brasil, das obras representativas
da cultura popular de origem africana, das releituras da arte africana tradicional. O
mais importante é que aquilo que se convencionou chamar “arte afro-brasileira” faz
parte do circuito das artes internacionais e, como tal, está livre dos grilhões que
tentaram impor a ela num passado não muito distante. (SALUM, 2000, p. 113)
Senso artístico acentuadamente racial (DOSSIM, F. 2015, p. 243) [crítico de jornal não
nomeado, a respeito do pintor negro Wilson Tibério (1916-2005) ]
Sincretismo artístico (RAMOS, Arthur, 1949, p. 206)
O profundo significado das continuidades encontradas nos dois Continentes (ARAUJO,
E., 2010, p. 108)
Performance artística afro-americana (FRIGERIO, A., 1992, p. 176)
Produção artística negra (CLEVELAND, K.L., 2013, p.45)
Propriedades específicas das obras que são desdobramentos da matriz africana (SILVA,
D.M. &CALAÇA, M.C.F., 2007, p.62)
Recriação plástica de elementos ancestrais (CARNEIRO DA CUNHA, 1983, p.1025)
Soluções negras (MATTOS, N., 2014, p.128)
Soluções plásticas negras (AJZENBERG, E. 2010, p.69 In: SILVA, 2010, p.69)
Tradição artística africana com referência ao Brasil (RAMOS, Arthur, 1949, p. 199)
Tradição artista baseada na África (African-based artistic tradition) (THOMPSON,
1993, p.16)
Universo onírico do artista negro que manifesta consciência de africanidade [sobre a
artista plástica Shirley de Queirós (1943), personalidade impregnada de africanidade
(PRUDENTE, C., 2002, p. 77)

Estética; Estilística; Estilo;

Atributos estéticos (...) da ancestralidade africana (ARACY, A., 2010, p. 49)


[referindo-se a Agnaldo Manoel dos Santos]
Convenções formais [estilísticas] africanas [no Brasil] (CARNEIRO DA CUNHA, 1983,
p.1025)
Estilo afro-brasileiro (CONDURU, 2013, p. 302)
Estilo com marcas visuais convencionalmente chamadas afro e ou afro-brasileiras
(LODY, R., 1995, p. 02)
Estilo escultórico com características análogas (RAMOS, Arthur, 1949, p. 200)
Estilo negro (BARATA, Sd., Les Noirs Dans Les Arts Plastique, p. 62)
Estilo negro [características formais do...] (BARATA, 1957, p. 55)
I’l n’y aurait pas d’Art Nègre (em itálico no original), sans le tissu vivant de styles
Nègres Tradução: não há arte negra, sem o tecido vivo dos estilos negros (M’VENG,
Engelbert, 1966, p. XVII).
Mudanças estilísticas que são operadas pouco a pouco (BARATA, Sd., Les Noirs Dans
Les Arts Plastique, p. 64; 68)
Caracteres estilísticos originais (BARATA, 1957, p. 55)
Convenções estilísticas ligadas à matriz africana (BELLÉ, L.A. 2012, p. 54)
Definição estética fora dos cânones eurocêntricos (ARAUJO, E., 2010, p. 109)
Arte gerada a partir de cânones próprios, por outra via que não a européia (ARAUJO,
E., 2006, p. 242)
Ensaio de uma estética afro-brasileira (BASTIDE, R., 1948) [relacionada a pontos
riscados da umbanda, vèvès do vodu haitiano e alguns aspectos formais religiosos do
candomblé]
Em nosso trabalho, o àsé nos interessa pela sua capacidade de sacralização da produção
estética afro-brasileira (SODRÉ, J.M., 2006, p. 143)
Função estética [das máscaras de madeira na arte afro-brasileira] (PÊPE, S.P., 2008,
p.54)
Linguagem estética cosmopolita. (VALLADARES, C., 1968, p. 106)
Sobrevivências de franca estilização africana (RAMOS, Arthur, 1949, p. 201-2)
Sobrevivências da estilização africana (LOPES, M.A., 2016, p.134)
Tendências estéticas negras (BARATA, Sd., Les Noirs Dans Les Arts Plastique, p. 67)
Estética afrodescendente (LODY, 2005, p. 249)
Arte afrodescendente (FELINTO, 2009, Apud. SOUZA D’SALETE, 2009, p.40)
Outra estética e um imaginário negro próprio (MONTES, M.L. Sentir a Alma. In:
ARAUJO, E., Negro de Corpo e Alma, 2000, p.209)
Princípios tradicionais da Estética das culturas da África negra ou as vezes de seu
imaginário na cultura brasileira. (SALUM, M. H. L.; CERAVOLO, S. M. 1993, p. 169)
Uma outra razão estética, não eurocêntrica [que orienta a talha de Vitorino dos Anjos]
(ARAUJO, E., 2010, p. 105)
Mátéria estética negro africana (SODRÉ, J.M., 2011, p. 66)
Comunicabilidade, ampla e imediata, que é inerente à estética africana (VALLADARES,
C., 1968, p. 104)
Etnoestética (LODY, 2005, p. 255)
Etnoesteta de campo [sobre Clarival Valladares] (LODY, 2005, p. 291)
Etno-historiador da arte (LODY, 2005, p. 280)
Repertório estético cultural afro-brasileiro (SILVA, R.N.R., 2012, p. 03)
Temas de Pensamento [estético] de origem africana (CARNEIRO DA CUNHA, 1983, p.
994)
Técnicas artísticas [africanas] ligadas, sobretudo, aos cultos afro-brasileiros (BARATA,
M., 1957, p.52)
Técnicas e concepções plásticas africanas [aplicadas no Brasil] (BARATA, M., 1957,
p.55)

Ethos Negro/Africano;

Ethos africano (LODY, R., 2005, p. 281)


Ethos negro (FRIGERIO, 1992, p. 184)
Ethos negro (CARNEIRO DA CUNHA, 1983, p.994)
Ethos de uma sociedade, nos seus elementos valorativos, morais e estéticos (RIFIOTIS, T.
A escultura atual dos Makondes de Moçambique como uma visão de mundo. Rev. do
Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 4: 153-166, 1994.
p.154)

Inconsciente; Inconsciente Revelado


Inconsciente [arte ou temática] (MUNANGA, 2000, p. 105) [artistas: Guma e Louco]
Inconsciente revelado (ARAUJO, E., 2010, p. 107)
Inconsciente revelado (QUEIROZ, R. da S. & PEREIRA, J.B.B., 1996, p.240 e 244)
Inconsciente revelado (VALLADARES, C. do P. 1993)

Influências;/ escola;

Criando estilos, uma verdadeira escola [questões autorais de artistas negros] (LODY,
2005, p.291)
Escola racial de arte (RAMOS, Arthur, 1949, p. 198)
Existem pessoas isoladamente que se dedicam a um esforço de reunir obras sob
influência da arte africana o que se constitui numa escola própria (CARISE, I., 1975, p.
68)
Influências negro-africanas (RAMOS, Arthur, 1949, p. 196)

Memória Africana/Ancestral;

Memória africana em terras brasileiras (SILVA, V.G., 2006, p.157)


Memória ancestral impressa em seus vestígios materiais (FIGUEIREDO &
RODRIGUES, 1989)
Memória [africana] (LODY, R., 2001; 2005)
Memória [ como um mecanismo ‘político’ de desvio e evasionismo. Violação de memória]
(Revista do Centro de Estudos Africanos, 2002, p.325)
[A Coleção Arte Africana] estabelece seus compromissos com a memória africana e ao
mesmo tempo sedimenta uma memória próxima, formada nos processos históricos do
homem brasileiro. (Museu Nacional de Belas Artes, 1983, p.23)

Outras Nomenclaturas;

Arte dos descendentes de escravos (DOSSIN, F. 2008, p. 246)


Arte cumulativa dos altares de umbanda (SILVA, V., 2008, p. 105)
Arte acumulativa dos altares da umbanda (Vagner Gonçalves da Silva. “Arte Religiosa
Afro-Brasileira: as múltiplas estéticas da devoção brasileira” In: ARAUJO, E., 2008,
p.153)
Afro nas artes visuais (SILVA, R.N.R., 2012, p. 03)
Afrodescendência artística (CONDURU, 2007, p. 15)
Afrodescendência e negritude nas manifestações plásticas (BARROS, J., 2008, p. 104)
Arte afro-indígena; arte afro-lusitana; arte euro-indígena (CONDURU, 2007, p. 112).
Afrologia brasileira [que seria desenvolvida por Roger Bastide] (SILVA, D.M. &CALAÇA,
M.C.F., 2007, p.64)
Afro-signos [expressão cunhada em 1992 por um crítico não nomeado] (ARAUJO, E.,
2010, p. 106)
Arte afro-influenciada (“African-influenced art”- CLEVELAND, 2013, p.45)
Estéticas étnicas (LODY, R., 1995, p. 03)
Artes visuais afro-orientadas (MENELICK 2º.Ato, Alexandre Araújo Bispo e Renata
Felinto, Julho/ 2014)
Artista negrodescendente (PAULINO, Rosana. 2011, p.23.)
Aspectos africanos [artísticos ou estilísticos] mais ou menos conservados (BARATA, M.,
1957, p. 56)
Cânones da arte paleoafricana (ARAUJO, E. 2006. p.109; 240)
Cânone artístico afrocentrado (CLEVELAND, K.L., 2013, p.33 e ss.)
Colorido negror (CONDURO, 2013, p. 23)
"Expressão de Africanidade" (WALDMAN, M., 1998, pp.219-268)
Inflexão étnico-culturalista específica [dos trabalhos artísticos afro-brasileiros]
Linguagem estética cosmopolita.” [em oposição à uma “arte negra” propriamente dita, a
qual conteria uma “genuinidade” ou uma “remanescência de cultura negra”]
(VALLADARES, 1968, p.106)
Luz do negrume (CONDURO, 2013, p. 16)
Macumba de artista (CONDURO, 2014, p. 121)
Marca e Expressão afro-brasileira (LODY, R. 1995, p. 02)
Manifestações artísticas euro referentes (DEZIDÉRIO, G. 2015b, p.77)
Manifestações artísticas afro-remanescentes (DEZIDÉRIO, G. 2015b, p.78)
Manifestações primitivas da cultura artística (RODRIGUES, N., 2010 p.173) [original
escrito entre 1890-1905, primeira publicação póstuma 1932]
Matéria estética negro africana (SODRÉ, J.M., 2006, p. 66)
Negritude com artisticidade (CONDURU, 2007, p.105)
Negrofilia (CONDURO, 2013, p. 39)
O afro na arte brasileira (SILVA, R.N.R., 2012, p. 08)
Ocidentalização da iconografia africana (CONDURU, 2007, p. 20)
Produção artística afrorrelacionada (CONDURU, 2013, p. 335)
Produção artística de matriz afro (DEZIDÉRIO, G. 2015b, p.77)
Resistência de um grupo (FORD, C., 1999)
Riscadura brasileira (VALENTIM, R. 2001, p. 29)
Semântica Própria aos signos [forma, cores, ícones presentes nos ritos afro-brasileiros]
(CONDURO, 2013, p. 109)
Temas afros (BELLÉ, L.A., 2012, p.53)
Temas negros (CARNEIRO DA CUNHA, 1983, p. 1023)
Temas afrorreferidos (CONDURU, 2013, p. 302)
Temática atávica (VALLADARES, C., 1968, p. 107) [sobre Agnaldo Manoel dos Santos]
Universo cultural artístico nàgô (SODRÉ, J.M., 2006, p. 182)
Visualidade africana no Brasil (LODY, R., 1995, p.03)
Neo-Áfricas (LODY, R., 1995, p. 03)
Produção Material Afro-Maranhense (LODY, R., 1995, p. 03). As festas com uso da
Cazumbá seriam os últimos redutos da máscara africana no Brasil. (SILVA, I.,
No caso afro-brasileiro, a plurietnia em relações interafricanas propiciou um revolver de
tendências estéticas e tecnológicas, fez com que intérpretes tomassem contato com
Áfricas plurais, diversas em espaços também plurais de Brasis (...) (LODY, 2005, p.
284).

Marcelo D’Salete também destaca alguns conceitos que identificou de sua leitura de
(SALUM, 2000) Linguagem emblemática, cromatismo vigoroso, visualidade monumental
ou cênica e um caráter mais conceitual do que objectual são alguns dos conceitos
empregados pela autora para compreender a obra afro-brasileira (SOUZA D’SALETE,
2009, p.10)

Eu gostaria de continuar incluindo outras centenas de referências relacionadas às plásticas


encontradas nos textos especializados da temática do relacionamento artístico entre a
África e o Brasil, no entanto, espero que essa pequena listagem, embora incompleta, sirva
como um bom começo para observarmos o quanto os limites teóricos impostos à essa arte
não são páreos para a grande imaginação que os autores e teóricos da arte afro-brasileira
possuem para se referirem a ela.53

“Arte Afro Brasileira” - Histórico de uma (in)Definição

Como foi reservado um local especial aqui na epígrafe, em seu texto Cem Anos de Arte
Afro-Brasileira, Salum assim a descreve: A 'arte afro-brasileira', é antes de mais nada
contemporânea: ganhou nome neste século XX e passou a ser reconhecida como
qualquer manifestação plástica e visual que retome, de um lado, a estética e a
religiosidade africanas tradicionais e, de outro, os cenários socioculturais do negro no
Brasil. Trata-se da cultura material dos segmentos negros no Brasil, das obras

53
A depender deles, portanto, ainda que até certo ponto não inteiramente definida, esta arte poderá ser
facilmente nomeada. Pensando nisso, talvez seja útil o recado oferecido por Arthur Ramos: A África é o
país dos contrastes violentos, entre uma natureza policroma e a monotonia da pele humana de côr negra,
que é a ausência de côr. Por isso mesmo, a arte africana é uma arte de contrastes plásticos de uma grande
liberdade de expressão. A côr será um complemento. Ela virá depois, para ornamentar os objetos,
impondo-lhes certas qualidades simbólicas para fins mágicos ou religiosos. E por isso, o legado africano
no Novo Mundo teria de ser forma, efígie e sombra. Forma e efígie dos seus deuses, sombras do passado,
de um passado de contrastes, de exaltação mitológica e de desesperos sombrios da captura, do êxodo e da
escravidão. (RAMOS, A. Arte Negra no Brasil. Cultura, Rio de Janeiro, ano I, n.2, jan. /abr. 1949. p. 211)
Talvez essa mesma “sombra” da África supracitada (e evocada por Arthur Ramos ao finalizar seu livro
sobre “arte negra”) seja o motivo pelo qual alguns autores se deleitam na rede dos assuntos negrísticos,
comem bola, inventam quando descrevem, interpretam quando era apenas necessário descrever, e sobretudo
como o professor de artes da escolinha de subúrbio repetem-se e repetem-se sem ficar amargurados. A arte
é terra de ninguém!
representativas da cultura popular de origem africana, das releituras da arte africana
tradicional (AGUILAR, N., 2000. p. 113).

Ao apontar uma delimitação original para a “arte afro-brasileira” Salum a faz


corresponder aos outros modelos de arte das afro-américas. É inevitável, diz Salum,
(2004, p.343): apontar sua origem cultural: arte negra no Brasil é afro-brasileira, ao
mesmo tempo que também é afro-ibero-luso-americana. Por esse motivo, não importa
com que nome, ela nunca deixará de ser exótica enquanto não for assumida como arte
em sua própria atualidade e dentro de seu próprio território.

O uso aqui do termo “território” nos remete ao título da exposição na Pinacoteca do


Estado de São Paulo (Territórios: afrodescendentes no acervo da Pinacoteca - 2015-2016).
Na própria definição da arte afro-brasileira seria, portanto, possível a delimitação de seu
“território”. Assim, seguindo este plano, talvez fosse mesmo possível indicar quais seriam,
nesse “território”, suas práticas e características comuns que pudessem minimamente
integrar a esses artistas e/ou suas obras num denominador comum “afro-brasileiro”.
Embora ainda não seja possível fazer uma “história da arte afro-brasileira” é possível
fazer um histórico de suas exposições que será arrolado mais adiante p.195. Por isso,
talvez ali seja possível encontrar os indícios para esse denominador comum, do ponto de
vista estético, da poética de boa parte dos artistas escolhidos a fazerem parte deste grupo.

Em seu texto “Negritude e Africanidade na Arte Plástica Brasileira” ao tratar num


subtítulo sobre os “Valores e Estilos Artísticos Negro-Africanos: uma visão de mundo”,
Salum, (2004, p. 344) parece diferenciar a “arte negra” da “arte-afro-brasileira”, sendo
que, a primeira teria conotação direta com os objetos de culto e a segunda, abriria espaço
para objetos do circuito convencional de arte. Essa distinção nos parece interessante pelo
menos do ponto de vista da tentativa de historicizar essa arte, por outro lado, como ela
mesmo indica em outra passagem (SALUM, 2004, p. 338), estes termos quase sempre
foram vistos de forma intercambiáveis, e não há nisso um problema em si mesmo.
Nos interessa também que para Conduru (2013, p.21), usar a expressão arte
afro-brasileira [seria] insistir nas ideias de África como origem física discernível e de
brasilidade como essência determinante de quem nasce e vive no Brasil e do que é aqui
produzido. Mas essa seria também uma noção ainda muito abrangente e que precisaria de
outros critérios para ser estabelecida porque, se for algum dia possível que um grande
número dentre os brasileiros se assumissem como são e concebessem individualmente o
seu grau de “africanidade” inerente na sua “brasilidade”, simplesmente por “nascerem e
viverem no Brasil”, como de fato, sonhamos, então, justamente não haveria necessidade
do qualificativo “afro” como é testado hoje do ponto de vista político, antropológico e no
da inserção da negritude na sociedade e, por consequência, nas artes plásticas. Sem uma
mudança social concreta que pudesse dar espaço para inovações desse tipo, finalmente,
este conceito perderia seu sentido para aqueles que o ligam diretamente à “negritude” em
relação ao “Brasil” e não um “Brasil” em relação à “negritude”, ou seja, um país no qual
uma certa negritude não conceituada e, portanto, não abalizada em termos políticos fosse
artisticamente concebida.

Essa aparente aporia parece ter dificultado a fundamentação teórica dos que propuseram
pensar as definições de “arte afro-brasileira”, principalmente do ponto de vista do artista
que a produz. Pois, de modo semelhante, seguindo ainda indicações tanto de Clarival
Valladares quanto de Kabengele Munanga, Salum (2004, p.351) afirma que a arte negra
ou afro-brasileira, não se define pela origem étnica do artista, mas pelo compromisso
dele com o universo (cultural) afro-brasileiro, ou com o universo (social) de
afro-descendentes. (Grifo nosso). Assim, continua ela, Ronaldo Rêgo, tanto quanto
Carybé e Mário Cravo Jr., e também Niobe Xandó, podem ser considerados - no todo ou
em parte da obra, em toda sua vida artística ou em momentos dela - artistas
afro-brasileiros, ainda que não afro-descendentes. ” Anos antes, comentando sobre o
trabalho de Mário Cravo Jr., quando da exposição da Mostra do Redescobrimento, a
africanista havia defendido que as epopeias sobre Cristo e Exu, bem como seus ex-votos
formalmente associados a esculturas de origem africana, não são suficientes para fazer
do eloqüente e polemico Mario Cravo Jr. um artista afro-brasileiro. Mas não há dúvida
de que seu nome está fortemente ligado a cultura afro-baiana, desde que na década de 40
fez de seu ateliê ponto de encontro para artistas e intelectuais preocupados com as raízes
da arte brasileira. (SALUM, 2000, p. 119). O que me parece é que o ponto de fusão entre
uma concepção de arte afro-brasileira produzida por brasileiros independentemente da cor
da pele, o que chamamos de “cosmopolitismo” para fazer jus à conceituação de Clarival
Valladares (1968, p. 103, 106), se encontra mais nas concepções de mundo em que o
artista está inserido do que nas promessas curatoriais que envolvem a percepção subjetiva
da quantidade de melanina na pele dos artistas.
Nesse sentido é a própria Lisy Salum, (2004 p. 342) quem também nos ajuda a
compreender o problema ao evocar o conceito de Gilberto Freyre sobre as “artes ligadas
aos trópicos” (apresentado no seu texto “Arte, ciência e trópico” São Paulo: Difel, 1980 p.
13), em que ele defende a tese da “tropicalização dos valores europeus” em arte, na
língua e na cultura geral. Essa abordagem de Freyre foi balizada em outros teóricos como
Arthur Ramos, que ainda não distinguia adequadamente as terminologias da mestiçagem,
sincretismo e aculturação, porém deixou escritos com conceituações decisivas nesse
sentido54. Outros dos principais autores com esta tendência também é Mário de Andrade55
e ainda outros que vieram depois destes e foram de algum modo influenciados pelos
trabalhos de Freyre, tais como Darcy Ribeiro, por exemplo, que compreendi sobretudo os
fazeres artísticos brasileiros como algo originais não só em relação à metrópole
portuguesa, mas em relação ao mundo, chegando a falar na existência de uma “nova
romanidade” (RIBEIRO, D., 1995, p. 453).

Para justificarmos essa visão, façamos um pequeno passeio nas questões que lhe são
subjacentes. Mário de Andrade, por exemplo, que tinha duas avós que eram de origem
negra é um dos que vai mais longe na aplicação dessas ideias em arte ao dizer que a
“genuinidade brasileira” se encontra nos artistas mestiços do barroco mineiro. Já no ano
de 1928, o criador do “herói de nossa gente” associa a mestiçagem à independência
(cultural e política) e, as soluções estéticas de Aleijadinho, ele as analisa da seguinte

54
VER: RAMOS, Arthur. A mestiçagem no Brasil. Maceió, EDUFAL, 2004.
55
Os trabalhos sobre o mulatismo em Mário de Andrade são bem conhecidos, gostaria de indicar pelo
menos alguns trabalhos sobre o negrismo:
https://www.scribd.com/doc/82686618/Linha-de-Cor-Mario-de-Andrade-1939
https://www.scribd.com/doc/82691982/A-Supersticao-da-Cor-Preta-Mario-de-Andrade-1
938
maneira: Esse tipo de igreja, fixado imortalmente nas duas São Francisco de Ouro Preto
e de São João Del Rei, não corresponde apenas ao gosto do tempo, refletindo as bases
portuguesas da Colônia, como já se distingue das soluções barrocas luso-coloniais, por
uma tal ou qual denguice, por uma graça mais sensual e encantadora, por uma
delicadeza tão suave, eminentemente brasileiras. (...). De fato, Antônio Francisco Lisboa
profetizava para a nacionalidade um gênio plástico que os Almeida Juniores posteriores,
tão raros! São insuficientes pra confirmar. Por outro lado, ele coroa, como gênio maior,
o período em que a entidade brasileira age sob a influência de Portugal. É a solução
brasileira da Colônia. É o mestiço e é logicamente a independência. (ANDRADE, 1984.
p. 41)

Também nessa linha aponta Clarival do Prado Valladares “um artista brasileiro
contemporâneo, se quer ser um representante autêntico de sua época e de seu país, deverá
ser um mestiço cultural, mesmo não sendo necessariamente um mestiço racial” (apud
SALUM, 2004, p. 348). Essas são imposições que, para alguns podem parecer demasiado
radicais, a conceber tanto as heranças genéticas da maioria da população brasileira,
quanto as influências afro-indígenas que perfazem boa parte da constituição cultural do
país, limitando-nos, digamos, ao que sobrou em termos práticos sem esta influência, que
também não é tampouco algo “puro”, terminamos por nos convencer de que a questão da
mestiçagem cultural e genética é uma das principais bases para o entendimento das bases
do campo artístico nacional. É por isso que trataremos do assunto “mestiçagem e arte
afro-brasileira” em um subitem em separado em um momento apropriado mais adiante
p.195.

Antes, porém, para entendermos como a interpretação da identidade também em termos


artísticos passou a ser uma fórmula do senso patriótico e uma forma de granjear os
padrões artísticos formais sem se referir a outros valores culturais, vejamos o que os
teóricos tem a nos dizer em relação à essas determinações estilísticas de continuidade
África-Brasil e até que ponto ela significou a nossa interpretação do “primitivismo”
africano.
Quando pensamos que as pontes culturais entre as Áfricas e Ocidente tal como a Costa
Ocidental e Centro-Africanas e o Brasil construíram correspondências tanto em termo de
valores quanto em termos estéticos (ainda que em ambos os casos de modo
comparativamente empobrecido se o relacionarmos aos seus congêneres africanos de
contexto tradicional) pensamos também que uma arte calcada nessa relação, pode ser
bastante frutífera. Realmente, essa discussão tenderá a culminar nas interpretações
modernistas da arte africana em relação à arte ocidental e, como se verá, também na arte
afro-brasileira.
Marianno Carneiro da Cunha, seguindo Mário Barata (BARATA, M. 1957, p. 52) foi o
primeiro a desenvolver com um pouco mais de sistematização uma teoria da
“continuidade estilística” entre a plástica africana e a afro-brasileira. A execução dos
traços fisionômicos vazados nessas peças [máscaras gueledés baianas] indicam uma
reformulação profunda, mas extremamente próxima ainda dos protótipos originais. Se,
de uma parte, lábios e nariz abrasileiram-se, de outra, os olhos continuam formalmente
africano embora reelaborados. Esta solução plástica ligada à representação naturalista
dos traços fisionômicos, sobretudo dos olhos, no caso que nos ocupa agora, parece-nos
de grande relevância para a decodificação de prolongamentos estilísticos africanos nas
chamadas artes eruditas. (CARNEIRO DA CUNHA, 1983, p. 1017). Ambos os autores
se referem a objetos relacionados diretamente à África porque pertencentes ao contexto
das religiosidades afro-brasileiras. Igualmente, Valladares é um autor atento a essas
formulações afro-continuístas, ao se referir às obras de continuidade temática da cultura
africana implicada aos rituais do candomblé (VALLADARES, C., 1968, p.104)

Mesmo posteriormente, quando se considerou trabalhos artísticos propriamente ditos, já


menos ligados aos valores religiosos, foi possível identificar padrões de continuidade
África-Brasil em outros teóricos. Salum (2000, p. 113) por exemplo, considera que “Hoje,
falar em arte afro-americana, arte afro-cubana e arte afro-brasileira é uma forma que
antropólogos e historiadores da arte contemporâneos encontraram de recolocar a arte
africana para além dos limites de uma etnologia ultrapassada”.
Numa outra direção de seus antecessores na teoria do negro, o artista plástico Nelson
Aguilar, quando da curadoria geral na Mostra do Redescobrimento (2000) tratou do
módulo “afro-brasileiro” apontou a situação artística africana como sendo a “fonte
originária da arte afro-brasileira”, porque ela daria à arte brasileira a consciência de suas
origens. E sua curadoria pretendeu responder à indagação de que, segundo ele “Na 23a.
Bienal Internacional de São Paulo, em 1996, quando são exibidas salas consagradas a
Jean-Michel Basquiat, Mestre Didi, Rubem Valentim e Wifredo Lam, um parentesco
formal supera o fluxo geracional e geográfico. Mais do que nunca desponta a questão
sobre a unidade e a diversidade da arte africana em sua diáspora” (ARAUJO, 2000).
Excetuando talvez por Mestre Didi, em função de que sua diversidade de material e
forma é ancorada na materialidade e na formalidade dos ritos pelos quais suas obras
“falam”, os exemplos referidos por Aguilar corresponderiam a um grupo de artistas
ligados às tradições contemporâneas da arte. Assim, tanto o parentesco formal alertado
quanto a aparente unidade “diaspórica” da africanidade no novo mundo teriam uma
função específica deste lado do Atlântico, o que evidencia sua emergência nas Américas.

O argumento de que lançou mão seu Curador quando quis justificar a existência do
módulo de arte afro-brasileira na Mostra do Redescobrimento perpassa uma noção da
chamada “arte afro-brasileira” como uma nova “busca pelas origens”, aparentemente sem
o cacoete “primitivista” dos modernistas. Diz Aguilar se referindo aos curadores
Kabengele Munanga e Marta Heloísa Leuba Salum (Lisy):

Temos a certeza de que eles optaram apenas por alguns artistas atendendo a pedidos
instantes da curadoria-geral, que solicitou um número sucinto, mas capaz de dar conta
da extrema variedade dessa produção, que, em virtude do poder de seu magma
expressivo, atravessa a arte brasileira de ponta a ponta. Apesar dessa porosidade, fica
algo peculiar: a busca e a consciência das origens. (AGUILAR, 2000, p. 33)

O principal texto de Kabengele Munanga a respeito desse tema foi escrito também como
uma espécie de justificativa para a curadoria do Módulo “Arte Afro-Brasileira” dessa
mesma Mostra do Redescobrimento, no ano 2000. Ali, ao procurar o fio de continuidade
que supera a ruptura provocada pela perda da identidade dos africanos e seus
descendentes no Brasil escravocrata reconhece que a incorporação de valores culturais
africanos no país é um indício da espiritualidade brasileira, promotora da identidade, e
seria ainda vista como uma espécie de “reforço comunitário”. Diz ele: Para que os
elementos culturais africanos pudessem sobreviver à condição de despersonalização de
seus portadores pela escravidão, eles deveriam ter, a priori, valores mais profundos. A
esses valores primários vistos como continuidade foram acrescidos novos valores que
emergiram do novo ambiente. (...) houve um campo cultural muito resistente, no qual se
pôde nitidamente observar o fenômeno de continuidade dos elementos culturais africanos
no Brasil. Este campo, muito estudado pelos especialistas sociais de várias disciplinas, é
o da religiosidade. (MUNANGA, 2000, 101)

Kabengele Munanga prossegue com desenvoltura fazendo uma antropologia da arte


afro-brasileira com algumas observações de caráter sociológico e estético: “Insistimos em
dizer que a primeira forma de arte plástica afro-brasileira propriamente dita é uma arte
ritual, religiosa. Seu nascimento seria difícil de datar por causa da clandestinidade na
qual se desenvolveu. Essa clandestinidade acrescentada ao caráter coletivo dessa arte
deixou no anonimato os artistas e artesãos que a produziram [...] a arte afro-brasileira,
então conhecida apenas como arte religiosa, ritual, comunitária e utilitária, começa a
ampliar seu campo de atuação. Seus artistas, saindo do anonimato, começam a produzir
uma arte não-étnica, com projeção na linguagem plástica universal, embora
conservando vínculos identitários com suas raízes. Entre eles, há os que se utilizam do
tema incidentalmente, os que sistemática e conscientemente orientaram toda sua
produção artística à temática afro-brasileira e os que, além da temática, manipulam
espontaneamente, e não raro inconscientemente as soluções plásticas africanas (Grifos
nosso) (MUNANGA, 2000, p. 104-105).

Para fazer referência em um início de classificação da história da arte afro-brasileira,


poderíamos até assumir com Kabengele o termo “universal” para designar também
aqueles “artistas não negros que comporiam com os negros o ‘universo’ dos artistas em
geral”, mas o termo “arte não-étnica” que ele introduz, eu não podemos aceitá-lo, se este
significar “arte sem temática afro-brasileira, logo, uma temática universal (branca?)”, já
que para aceitá-lo, nessas condições, seria preciso aceitar também a noção de branco
como modelo, suprassumo do “não-étnico”, portanto mais ligado ao “universal” que este
particular da “plástica ou temática afro”. Agora, se o “arte não-étnica” aqui significar
apenas “arte não-ritual”, a passagem de Munanga é intocável. Sendo assim, propomos a
modificação do termo universal, pelo termo “cosmopolita”, tal como foi trazido por
Clarival Valladares (1968, p. 106), assim, facilitamos a compreensão de que há uma
distinção senão teórica pelo menos didática entre o que era feito em termos de “arte
negra” no período de Nina Rodrigues e o que tem sido feito desde a Mostra do
Redescobrimento até hoje, com a inclusão de artistas “universalistas” ou mais
apropriadamente “cosmopolitas”, porque divulgadores negros e mestiços de uma arte
“não-ritualizada” em sentido religioso.

Em outro ponto, depois de um relato sobre o sincretismo religioso, Munanga, demarca


outro aspecto importante para essa noção da ponte artística entre África-Brasil e
Brasil-Mundo. Mesmo que o antropólogo não afirme isso de forma explicita, ele deixa
espaço para a questão da universalização progressiva da “arte negra” para “arte
afro-brasileira” e desta para a “arte” sem qualificativos. Mesmo que não faça uma
indicação disso como se fossem “etapas do desenvolvimento dessa arte”, ele entende que
o centro plástico da aventura afro-brasileira se deu por meio da religião. Teria sido ela
quem sustentou as perspectivas formais dos africanos e descendentes no Brasil. A questão
da continuidade das formas pode ser entendida graças ao cumprimento dos matizes
sincréticos. Segundo Kabengele é dentro dessa correspondência baseada nas
semelhanças funcionais entre santos católicos e orixás que devemos historicamente
situar a questão da continuidade das formas artísticas plásticas africanas e o surgimento
de uma linguagem plástica afro-brasileira. Uma linguagem sem dúvida religiosa
praticada por causa da repressão ideológica e política. ” (MUNANGA, 2000, p.102).
Ora, na medida em que se efetuasse a supressão do conflito ideológico e político referido
para essa arte, como de fato tem ocorrido nas últimas décadas, haveria uma espécie de
deslocamento do seu centro religioso para uma nova linguagem plástica. E essa nova
linguagem encontrou apoio nas evoluções das inquietações artísticas dos modernistas,
algo que será avaliado a seguir.

O Modernismo e a Depuração da “Arte” no “Afro”: alguns desdobramentos para a Arte


Afro-Brasileira

Nina Rodrigues, por exemplo, em seu artigo “As Bellas Artes dos Colonos Pretos do
Brazil” como foi dito no item listado acima, “O Problema da Nomenclatura”, fez
referência às “bellas artes” apenas em sentido figurado. A sinonímia correta do termo
“bellas artes” é “artes plásticas” - por isso mesmo que ele inicia o texto referindo-se à
ausência quase absoluta de conhecimento da arte da pintura africana e também é por isso
que o seu subtítulo ao tema geral é “escultura”. Essa classificação reserva algum tipo de
status estético ao fazer africano e afro-brasileiro que, à luz do que se seguiria em termos
artísticos na Europa influenciada pela África, com consequências significativas para a
arte no Brasil, esse status deve ser corretamente demarcado.

Aliada à essa classificação de Nina Rodrigues, há um tom elogioso e uma tomada de


posição quando diz que, ao contrário do afirmado em seu tempo nas levas de escravos
que, por quatro longos séculos, o tráfico negreiro, de contínuo, vomitou nas plagas
americanas, vinham, de facto, innumeros representantes dos povos africanos mais
avançados em cultura e civilização (RODRIGUES, N., 1904, p.01). Mesmo assim, Nina
Rodrigues, afeito ao seu tempo, também em termos artísticos, e corroborando com um
comentário de Delafosse56 sobre a importância de um “cofre de Iemanjá” fala de uma
“história etnográfica da arte”, incluindo esses objetos de culto e de arte de corte da África
nesta mesma categoria. Embora ele também utilizasse o termo “artista” indistintamente
ali, sua defesa de Delaffose demonstra que aqueles objetos de culto do que chamou de as
“Bellas Artes dos pretos” teriam um escopo etnográfico próprio. Por isso referiu-se em
sua interpretação artística, ao caráter sagrado de certos animais representados nas peças
de culto como “allegoria do escultor negro”, etc.

56
Ver: Maurice Delafosse: Le Trône de Behanzin et le Pportes des Palais d'Abomé au
Music ethnographique du Trocadéro. La Nature. 1090, 21 de Abril de 1894, p. 326.
Não se poderia esperar outro tipo de concepção de alguém que escreve em janeiro de
1904, tendo recolhido os materiais para a transmissão dessas concepções (entre os anos
de 1890-1904) ou seja, bem antes do nascimento de Arthur Ramos (1903). Lembremos
ainda que até Mário de Andrade (1893-1945) tinha apenas 11 anos quando da publicação
das “Bellas Artes dos Colonos Pretos”. Portanto seria errôneo dizer que Nina Rodrigues
antecederia Picasso ou qualquer modernista na percepção estritamente formal da arte
africana. A sua análise formal, ainda que digna de nota, restringir-se-ia ao âmbito
comparativo, seja de exemplares africanos em relação ao Brasileiro (como fez com os
Edan Ogboni e estatuetas de orixás)57, seja em relação à comparação com obras europeias
medievais58. Nina Rodrigues também já foi suficientemente criticado em sua
apresentação de um método visivelmente positivista da arte, (citarei outro exemplo mais
abaixo). O pensamento de época em voga, dito resumidamente, considerava que as
formas africanas, assim como algumas medievais europeias fariam parte do caráter
imperfeito de civilizações ainda não inteiramente evoluídas.

No caso africano e afro-brasileiro, Nina chega a dar uma razão pelas quais as figurações
africanas nos objetos de culto que ele analisa não teriam um caráter que chamamos hoje
de “naturalista”; e ele atribui isso às “imperfeições técnicas dos artistas”:

57
Ver: RIBEIRO, Jr., Ademir. Parafernália das Mães Ancestrais: as máscaras gueledé, os edan ogboni e a
construção do imaginário sobre as “sociedades secretas” africanas no Recôncavo Baiano.São Paulo:
Universidade de São Paulo- MAE-USP, 2008. p.96. Disponível em:
www.teses.usp.br/teses/disponiveis/71/71131/tde.../Dissertacao_AdemirRibeiroJr.pdf
58
Ver: (RODRIGUES, N., 2010, p.290) não pecam menos por exageradas as pretensões otimistas. A
alegação de que por largo prazo viveu a raça branca, a mais culta das seções do gênero humano, em
condições não menos precárias de atraso e barbaria; o fato de que muitos povos negros já andam bem
próximos do que foram os brancos no limiar do período histórico; mais ainda, a crença de que os povos
negros mais cultos repetem na África a fase da organização política medieval das modernas nações
européias (Beranger Feraud), não justificam as esperanças de que os negros possam herdar a civilização
europeia e, menos ainda, possam atingir a maioridade social no convívio dos povos cultos. O intelectual
citado por Nina Rodrigues Laurent Jean Baptiste Bérenger-Féraud (1832-1900), foi um médico cirurgião da
marinha Francesa que atuou no Senegal. Seguindo a ideologia evolucionista social da época, Féraud não era
o único a afirmar sobre as distintas fases das civilizações, que mantinham a África no porão e a Europa no
topo. A frase mais lapidar do pensamento de Bérenger-Feraud, entretanto é aquela que o associa à noção
ideológica clássica da época da implantação colonial europeia na África de “conhecer para dominar”:
À medida que aprendemos mais sobre esses negros, podemos de forma mais segura e com menos chance de
erros do que no passado, exercer nossas ações sobre os países que exigem o nosso comércio, nossa
civilização, oferecendo-nos riquezas incalculáveis http://fr.allafrica.com/stories/201006020395.html
Mandam as regras de uma boa crítica que desprezemos as imperfeições, o tosco da
execução, dando o devido desconto à falta de escolas organizadas, da correção de
mestres hábeis e experimentados, de instrumentos adequados, em resumo, da segurança
e destreza manuais, como da educação precisa na reprodução do natural. Mas, feito o
desconto, nesses toscos produtos, já é a Arte que se revela e desponta na concepção da
ideia a executar, como na expressão conferida a ideia dominante dos motivos.
(RODRIGUES, N., 2010, p.173). Tal “reprodução natural” da que se refere Nina,
encontra reflexo e fundamentação em toda teoria de arte acadêmica desde o
neoclassicismo, cânone que seria modificado apenas com o surgimento do modernismo
europeu nas décadas seguintes.

Um pouco mais adiante Rodrigues indica outro ponto de sua “insatisfação estética” com
relação a uns Oxê de Xangô e outras estatuetas dizendo que: A desproporção entre o
comprimento dos braços e das pernas, peculiar à Raça Negra, é levada, pela imperícia
do artista, quase ao extremo da caricatura (RODRIGUES, N., 2010, p.175). As
observações estéticas de Nina demonstram, mais uma vez um anacronismo indevido, já
que a noção de imperfeição técnica é explicitada na análise de obras cujas convenções
formais não deveriam seguir a convenções naturalistas ao estilo europeu. Essa visão
torna-se ainda mais turva quando Rodrigues explicita seu evolucionismo artístico fazendo
uma comparação entre uma obra medieval europeia com uma cena que representa uma
possessão demoníaca com um Oxê de Xangô que, por sua vez, Nina acredita ser a
representação de uma “possessão” do deus africano, comparado, em termos formais e
simbólicos, ao demônio Cristão:

Aqui a concepção artística do escultor negro pode, com vantagem, suportar confronto
com a concepção similar de uma pintura branca do século V da era cristã, também de
motivo religioso, que figura nos trabalhos iconográficos de Paul Richer e Charcot sobre
o Demoníaco na Arte e representa, como os ôches de Changô dos Negros, uma fase do
mesmo pensamento ou crença religiosa. A gravura cristã mostra o demônio saindo da
cabeça de um energúmeno sob a injunção de Jesus Cristo. O ochê também reproduz uma
cena de possessão; um sacerdote ou feiticeiro africano em cuja cabeça penetrou Changô.
Apenas Changô reveste, não a forma humana que tem o demônio da pintura cristã, mas a
sua forma fetichista de meteorito ou de pedra do raio. Como expressão simbólica, os dois
produtos de arte se equivalem e bem retratam a identidade essencial do pensamento
humano nas diferentes espécies ou raças. (RODRIGUES, N., 2010, p.175)

Jean-Martin Charcot foi um célebre médico a quem Freud se debruçou com respeito,
porque foi professor no Hospital de Salpêtrière em Paris, que desde a Revolução Francesa
servia de hospital psiquiátrico para mulheres. Freud frequentou as aulas de Charcot que
fazia um estudo clínico importantíssimo sobre doenças do sistema nervoso desde 1862,
estudando com ele técnicas da hipnose e aproveitando-se dos estudos iconográficos
(fotografias e desenhos) minuciosos que Charcot fazia das histéricas, criando com isso
uma espécie de “ciência iconográfica” das doenças mentais. Charcot, juntamente com seu
assistente no hospital, o médico e escultor Paul Richer (1849-1933), publicaram um texto,
citado por Nina Rodrigues “Os Demoníacos na Arte” (1887), recolhido numa tradução
em português em 200359.

Cristo curando um possuído


Gravura feita a partir de um marfim do Séc. V
Fragmento da capa de uma bíblia da Biblioteca de Ravenna
(CHARCOT, J-M., & RICHER, P. Les Démoniaques dans l’Art.
Paris: Bourloton Imprimeries reunies, 1887. p.05)

59
CHARCOT, Jean Martin: Grande Histeria . Rio de Janeiro: Contra Capa, 2003. O texto original pode ser
baixado aqui: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6492840j/f11.image
Dois “Oxê de Xangô”, Madeira
(A representação de um Machado de duas lâminas,
Símbolo de Xangô, deus do trovão, que era construído
na África com “pedra de raio” (Sílex ou “pederneira”),
um tipo de pedra que, se friccionada, produz faíscas.
Recorte a partir de (RODRIGUES, N. 1904, p.2)

Nina associa formalmente as duas asas do demônio alado da figura Cristã do séc. V à
imagem das duas lâminas do machado do Xangô iorubano. Essas afirmações de ordem
formais de Nina Rodrigues, todavia, não correspondem de modo algum a uma visão
formalista da arte africana ou afro-brasileira. Uma análise estética com uma visão
estritamente formalista das obras de arte dos povos não-europeus acabaria ocorrendo
finalmente, mas não aqui em Nina Rodrigues, interessado apenas de modo secundário
nestas questões formais. A percepção formal das artes da África ocorreria apenas via
modernismo (que seria o que eu chamo de um perspectivismo da Europa do séc. XX em
relação à uma África “artística”, em detrimento dessa África etnográfica do séc. XIX, que
resvalou tardiamente nos nossos estetas brasileiros).

Ficou evidente desde aí que era preciso reconhecer o esforço teórico de entendimento dos
objetos da cultura material africana (assim como os das afro-américas, que feito
posteriormente) no seu aspecto estritamente formalista. Esse trabalho inicial foi realizado,
de fato, por Picasso, seguido de outros modernistas, e esta atenção aos objetos africanos
ficou conhecida para a Europa como momento inaugural do Cubismo.

Não é preciso nem dizer que o “cubismo” enquanto uma expressão formal não tem nada a
ver com “arte africana” no sentido em que esse termo foi se desenvolver
retrospectivamente depois das observações modernas sobre essas obras africanas. Mas
não foi incomum que, ao longo da história dos conceitos que se referem à cultura artística
ligadas à África, tais como “Arte Negra”, “Plástica Negra”, “Escultura Negra” etc. terem
considerado o olhar do modernismo europeu como um dos termômetros para a análise do
que viria a ser “arte africana” para nós e de alguma maneira também parte do que viria a
ser considerada “arte afro-brasileira”, como se verá.

Uma verdadeira montanha de princípios foi imposta essa arte sem que se pudesse intuir
seu verdadeiro sentido. É como se a determinação histórica da arte, política, economia e
história dos europeus se sobrepusesse também em termos teóricos sobre as denominações
das artes dos africanos, com seus próprios princípios morais, valores éticos e artísticos e
etc... A “arte negra”, desta maneira, se opunha não à “arte branca”, tomada como
referência ou perspectiva para as quais todas as outras “tenderiam evolutivamente”, mas
se oporia à arte mesma, já que aquela seriam vistas inicialmente como manifestações do
fazer primitivo, e a arte europeia, sobretudo depois das elaborações do renascimento,
seria “arte”. Seja esta “arte negra” exótica e naïf como pensava Matisse ou a “arte negra”
natural, imediata e civil, como pensava Picasso60. Ela seria antes de mais nada uma arte
de retomada dos princípios primitivistas para toda uma geração de artistas que acabaria
por modificar totalmente o sentido da arte europeia e mundiais.

A meu ver, como venho desenvolvendo essa análise até aqui, antes do processo de
valorização das chamadas “artes primitivas” perpetrada pelo modernismo, no momento
em que Picasso e outros passaram a observar aqueles objetos etnológicos em suas
expressões formais, em detrimento de suas expressões culturais ou místicas, não foi
possível fazer o “corte epistemológico” entre os “objetos etnográficos” e as “artes
não-europeias”. A convicção de que poderia haver obras de artes não-europeias que
fossem ao mesmo tempo não religiosamente ritualizadas e imbuídas também não só de
formas, mas de valores africanos no ocidente, seria uma ideia ainda a se realizar.

60
Gertrude Stein, in: LAMAIRE, Gérard-Georges. Picasso. Giunti Editore, 1987, p. 22.
No entanto, entre 1907 e 1909, Picasso teve uma fase com forte influência formal da Arte
Africana, sobretudo a partir das máscaras que vira no antigo Museu do Trocadero em
Paris. Esta fase do artista ficou conhecida na história da arte como “Período Africano” de
Picasso. Embora durante boa parte de sua vida ele negara esta influência, foi bem depois,
só em 1937, como afirma com razão a especialista em modernismo e em estudos
afro-americanos Sieglinde Lemke, que ele acabou por “confessar” a André Malraux: “a
Epifania que desencadeou sua criatividade de maneira sem precedentes”[trinta anos
antes, ao se deparar com máscaras africanas pela primeira vez]. Com a palavra o criador
de Les Demoiselles d’Avignon:

Todos sempre falam sobre as influências dos Negros tiveram sobre mim, todos nós
amávamos os fetiches. Vang Gogh disse uma vez, ‘A arte japonesa - todos nós a temos
em comum. ’ Para nós, são os Negros.... Quando eu fui para o velho Museu do
Trocadero, ele era repugnante, como um mercado de pulgas, cheirava mal. Eu estava só.
Eu queria ir embora. Mas não fui. Eu fiquei. Eu entendi que isso era muito importante:
algo estava ocorrendo comigo, certo? As máscaras não eram exatamente como
quaisquer outras peças de escultura, eram coisas mágicas. De forma alguma. Elas eram
coisas mágicas.... Eu sempre olhei os fetiches. Eu compreendi; Eu também sou contra
tudo. Eu também acredito que tudo é desconhecido, que tudo é inimigo! Tudo! Não os
detalhes - mulheres, crianças, bebês, tabaco, o jogo (playing) - tudo o mais! Eu
compreendi para que os Negros usavam as suas esculturas Por que esculpir assim e não
de outra maneira? Além do mais, eles não eram Cubistas! Já que o Cubismo não existia.
Era claro que alguns caras inventaram modelos e outros os imitaram, certo? Não é isso
o que chamamos tradição? Mas todos os fetiches eram usados para a mesma coisa. Eles
eram armas. Para ajudar pessoas evitarem sucumbir sob a influência dos espíritos
novamente, para ajudá-los a se tornarem independentes. O inconsciente (pessoas ainda
não falam muito sobre isso) emoção - eles são a mesma coisa. Eu compreendi o porquê
que eu era um pintor. Todo só naquele terrível museu, com máscaras, bonecas feitas de
peles vermelhas, manequins empoeirados. Les Demoiselles d'Avignon [em Itálico no
original] deve ter vindo comigo naquele mesmo dia, mas absolutamente por causa das
formas; porque ela foi minha primeira pintura de exorcismo (exorcism painting) - sim,
absolutamente. (Malraux, 10-11)61

Pablo Picasso, 1908


Estúdio Bateau Levoir

Em verdade, o princípio pareceu ser o mesmo e este já vinha sendo buscado desde Van
Gogh, como disse Picasso supracitado, na concepção espacial da pintura impressionista
com aquela mudança de perspectiva e de enquadramento etc. Fala-se na subjetivação
representativa do espaço entre os fauvistas (as “feras”), busca pela simplificação das
formas, gestualidade espontânea (espontaneísmo) etc. Enquanto que, no modernismo
picassiano, e dos cubistas que o seguiram, a base foi pelo formalismo da arte africana
também entendida como um “retorno ao princípio”, como Gauguin e os “primitivistas” o
fizeram, aproveitando-se das estampas japonesas que exerciam fascínio sobre Van Gogh
e os expressionistas, mas obviamente, as estampas japonesas não eram o impressionismo;
assim como o “fetiche” africano não era o “cubismo” picassiano. Seja como for, essas
inquietações formais pareciam direcionar a arte europeia para o mesmo lugar: o que eles
consideravam ser “as origens”.

61
LEMKE, Sieglinde. Primitivist Modernism: Black Culture and the Origins of Transatlantic Modernism. New York:
Oxford, 1998. pp.36-7.
Picasso - Les Demoiselles d'Avignon, 1907
243,9 cm x 233,7 cm
MoMa – Nova Iorque
Com planos angulosos e geométricos, decomposição da figura,
planos encarados por si mesmos (independentemente da obra)
e a inclusão de “mascaradas” africanas (nas duas “mulheres” à direita),
esta pintura foi tida como um marco histórico do surgimento da arte moderna.

Máscara pende central, Bandundu


27cm x 22cm
Tervuren (Royal Museum for Central Africa - EO.1959.15.18)
República Democrática do Congo
Slide de aula: Renato Araújo/2015

Em resumo, pode-se perceber as relações dos modernistas com a arte africana


interpretando os principais requisitos pelos quais eles iniciaram e se aprofundaram na
criação do modernismo, particularmente o cubismo:

Arte como busca pelas raízes concretas:

- A visão geral dos africanos como “primitivos”, elaborado pelo iluminismo e


desenvolvido pelo racismo científico, é um conceito que será entendido na modernidade
como “primal”, “original”, “concreto”62.

62
O aparecimento de um “Ensaio de estética afro-brasileira” em Roger Bastide, que será analisado mais
adiante, também partiu desse mesmo perspectivismo modernista. Sua aluna Gilda de Mello e Souza, ao
discutir a análise do mestre sobre “arte ritual”, ou seja, sobre parte do que chamamos hoje “arte
afro-brasileira”, relata a respeito do “concretismo” da estética religiosa do Candomblé. Diz ela pensando na
análise de Bastide: a peculiaridade do candomblé é que ele reproduz esse impulso estético-religioso,
conservando toda a frescura do concreto e da observação do real, característica da mentalidade africana.
- Busca teórica modernista para se contrapor à arte acadêmica e suas “fórmulas”
esquemáticas do belo, do harmônico, do artístico.
- A civilização europeia e o advento burguês trouxe a “falsidade” e a “hipocrisia”; o
“retorno ao primitivo” seria um retorno às raízes do “genuíno”, do “verdadeiro”.

Arte como figuração do elementar:

- Representação abstrata das figuras


- “Desfiguração” ou síntese formal das figuras
- Destaque para angulação (representação do cruzamento das linhas formando ângulos)
- A composição segue mais o volume e menos a forma “literal” ou “naturalista”
- Diferentes noções de perspectiva
- Arte mais direta, sem floreios (não sublime)
- Expressividade das emoções, dos estados psicológicos.
- Representação de tudo que não fora antes muito explorado pela arte acadêmica, tais
como: emoções incontidas, aspectos místicos, imaginação, figuração de pessoas comuns,
trabalhadores etc.

Não é certamente por acaso que a figuração progressiva de trabalhadores (operários,


camponeses e soldados) e o proporcional afastamento figurativo da realeza (duques,
duquesas e papado) demarcou também socialmente o campo das práticas imagéticas
modernistas. Nesse sentido o modernismo, como a arte afro-brasileira também surgiu
como política

Ver: SOUZA, Gilda de M. A Estética Rica e a Estética Pobre dos Professores Franceses. Aula inaugural
São Paulo: FFLCH-USP, 1973. Disponível em:
http://www.revistas.usp.br/discurso/article/viewFile/37845/40572 Acessado em 23/11/2016. Essa noção de
concretude do artista e do africano que até certo ponto tinha um paralelo no iluminismo com a figura do
“bon savage” não aparece por oposição ao abstracionismo, ao contrário, essa concretude parece ser o modo
“reducionista” que boa parte da arte africana tem de depurar a forma, tornando-a “concreta” em sentido lato,
ou que remeta às formas geometrizantes do real. Esse foi o interesse modernista em relação a arte africana
que terá ainda desdobramentos para algumas interpretações da “arte afro-brasileira” como mostraremos a
seguir.
Slide de aula: Renato Araújo/2015 – representação apenas didática de possibilidades interpretativas, que
jamais devem ser tomadas com imediatismo.

Trazendo essa discussão para nosso quintal, isso não foi muito diferente no modernismo
brasileiro, exceto que ele se revestiu também do sentido do nacional63. Por isso, é correto
afirmar que o modernismo brasileiro foi um modernismo-nacionalismo64, em que a busca
pelas “origens” fez Mário de Andrade promover a “viagem ao interior do Brasil”; e fez
Oswald de Andrade instituir o movimento “Pau Brasil”, permitindo todos os
desdobramentos modernos nas outras artes vindos à luz com a “vanguarda tropicalista”;
com o teatro do “Rei da Vela” e a Uzyna Uzona de Zé Celso Martinês Correia – o último
modernista vivo; do experimentalismo corintianos iraraense de Tom Zé, e assim por
diante... Parece que no Brasil só as artes plásticas voltaram inseguramente a figuração
como porto seguro e vê-se muito pouco expressões arrojadas ou do experimentalismo que
se viu no passado.

63
Os artistas modernistas brasileiros, também periféricos no sentido nu e cru do termo, não foram obrigados, como os
artistas europeus, a responderem diretamente à avalanche de 1917.
64
Para evitar o termo, correto, mas cacofônico “nacional-modernista” (MARQUES, L. et. al. Existe uma
Arte Brasileira? Perspective - actualité en históire d’alrt, Institut national d'histoire de l'art n.2, 2013 p. .
Disponível em: http://perspective.revues.org/5543
Naquela época, além do vigor, da fusão entre a emoção e o inconsciente (como disse
Picasso), do gosto pela força “selvagem”, a busca artística do modernismo brasileiro era
concebida como a busca do “genuinamente nosso”, busca do “bom selvagem em nós”...
Não demoraria para se supor que, no seio desse “nosso”, deveria ter lugar para o negro,
enquanto humano concreto e sua arte ou a arte nele inspirada, como parte do que deva ser
considerado genuíno, porque nosso, e vice-versa.

Slide de aula: Renato Araújo/2015

Ora, no Brasil, aonde seria possível encontrar esse “continuísmo” África-Ocidente, em


termos de modernidade?65

Uma das maneiras de avaliar isso foi ao se dar destaques a alguns artistas negros cujas
influências estéticas em relação ao modernismo foram evocadas nesse sentido. Por

65
Embora esse continuísmo da expressividade artística considerada “primitivista africana” aplicada às
artes plásticas brasileiras apareça já em Bastide (1948) e emr Aracy Carise (1975; 1980) as experiências
formuladas por eles foram tão excepcionais que reservaremos uma análise à parte, mais adiante.
exemplo, numa crítica ao trabalho de Emanoel Araujo, Aracy do Amaral chama a atenção
a alguns dos elementos contidos na obra do artista e parece incorporá-los à tradição
afro-brasileira reservando alguns dos critérios formais próprios da arte contemporânea
com enormes ligações com o modernismo. Para a crítica de arte, Araujo “abandonaria,
em início dos anos de 1970, a figuração que trabalhara, embora sempre de maneira
ordenada, na década anterior, através da gravura em madeira. Mas os planos
retangulares que se movimentam amplamente sobre grandes superfícies verticais ou
horizontais, cruzando-se em ritmos sobrepostos, em obliquas ou em articulações
circulares, deixam entrever, na transparência do papel, as direções das fibras da matriz
em madeira, e o materismo da xilo acompanharia todo esse período de sua fase abstrata
construtiva. (...) Aos fins de 1970, continua a crítica, a forma de planos retangulares
justapostos ou em movimentação compositiva ou velada em policromia, que privilegia
invariavelmente o vermelho e o negro, cores de Exu e, portanto, em evidente simbologia
da ritualística afro-brasileira. Datam exatamente desse período os últimos trabalhos que
Emanoel Araujo realizaria, controlados pela moldura retangular que se impõe
frequentemente. Assim, suas formas angulosas, agressivas, dançantes ou hieráticas,
nunca distantes de rituais expressos pelos próprios títulos conferidos pelo artista,
passam a se inserir, na passagem como no espaço, entreabertas ou interrompidas no ar,
em jogo constante de obtenção de formas através dos cheios e vazios, a luminosidade em
seu trabalho sempre limitada pelo escultor, através da policromia obrigatória, em sua
incessante e característica movimentação (ARACY, A., 2010, p.11). Pode-se dizer, sem
sombras de dúvidas, que quando a crítica utiliza termos como “formas angulosas,
agressivas, dançantes ou hieráticas” ela está fazendo uma referência imediata à tradição
escultórica africana sob o perspectivismo modernista que via exatamente assim as
máscaras africanas. Ora, essa tradição foi por mais de um crítico, identificada
formalmente sobretudo nas esculturas de Emanuel Araujo66.

A despeito de sua oposição ao racionalismo burguês da era iluminista, há ainda um


aspecto essencialista (de tipo iluminista) no perspectivismo modernista que é uma velada

66
ver: (PRESTON, 1987, 1991); (ARAUJO, E., 1988) (KLINTOWITZ, J. 1981) (ARACY, A.,
2006);(VALLADARES, C., 1968, 1969, 2000), etc.
identificação do “primitivo” com o bon savage, termo associado posteriormente a
Rousseau67. Mas ninguém critica em si mesma a tentativa dos modernistas de tentarem
encontrar o fluxo da simplificação da forma na ideia de retorno ao primordial. Em si, essa
ideia não só pareceu digna de nota como foi também considerada posteriormente nas
análises acadêmicas deste movimento como essencial para arte atingir um status moderno
que distinguia o que veio antes do que veio depois de Picasso68: é esta África que seduziu
Picasso, Derain, Matissse, Modilgliani, Braque, Rouault, Vlaminck, Picabia, em pintura,
tanto quanto na escultura de um Zadkine, de um Lipchtz, de um Gonzales...encontra seu
caminho sob nova inspiração da arte negra69.

Dezessete anos antes, em 1949 o nosso Arthur Ramos também já estava ciente dessa
fonte de inspiração modernista: Na pintura e na escultura modernas, a influência
africana foi decisiva. A exaustão da arte clássica, cansada de imitar os modelos gregos,
e as desesperadas tentativas de renovar as possibilidades de colorido, por parte dos
pós-impressionistas, levaram os artistas europeus a buscar inspiração plástica na obra
dos primitivos. As primeiras indecisões de CÉZANNE, na sua angústia por novas formas
plásticas, como as tentativas de GAUGUIN procurando inspiração entre os indígenas
dos mares do Sul, conduziram os artistas europeus a novas aproximações cada vez mais
bem-sucedidas. Já então, MATISSE, PICASSO, DERAIN, entre os franceses, como
PECHSTEIN, STERN, FRANZ MARC e outros, entre os expressionistas alemães, se
inclinam decisivamente para as fontes primitivas, principalmente africanas. Mas é entre
os escultores que a inspiração africana se tornou dominante. A procura da terceira
dimensão, do expressionismo plástico, do simbolismo, tão característicos na escultura

67
Dentro da idealização do Estado de Natureza de Rousseau (1712-1778) ele atribui uma bondade original
aos seres humanos, “o homem nasce bom, é a sociedade que o corrompe”, diz ele em seu “Discurso sobre a
Origem da Desigualdade entre os Homens”. Não faltou interpretações iluministas com relação aos povos
primitivos, que estariam ainda sobre o no domínio dessa “natureza bondosa, porque inata”, diferentemente
das civilizações urbanizadas, como dentro do estilo de vida burguês e suas hipocrisias citadinas, garantidas
pelo urbanismo e pelo capitalismo europeu...
68 É óbvio que essas elaborações já se encontravam em “estado de crisálida” no pré-modernismo do
burguês Manet, e naquelas maravilhosas enfant térribles que foram Daumier, Millet, Seurat, Jean Grave,
Paul Signac, Pissarro, Kupka, Luce, Dalou, Tassaert, Jeanron, enfim, todos esses filhos da revolução
francesa, sem esquecermos de Cézanne, claro, o “pai de todos nós” e de Van Gogh, o deus primordial
“suicidado pela sociedade”. Foram exatamente esses patronos párias que iniciaram ainda no séc. xix o
processo que culminaria na ruptura da forma.
69
M’VENG, Engelbert. L’Art Nègre. Sources évolution, expansion. Unesco: Dakar, Paris, 1966. p. xx.
africana, levou artistas como MODIGLIANI, LIPSCHITZ, EPSTEIN, ARCHIPENKO,
LEMBRUCH, BARLACH, abandonar, de todo ou em parte, o convencionalismo da arte
acadêmica70.

E outros tantos anos depois, o nosso Embaixador martelara a mesma tecla: O que
fascinava Vlaminck, Darain, Matisse, Kirchner, Picasso, Braque, Julien Gris, Brancusi,
Lipchtiz, Modigliani e tantos outros artistas, no início do século XX, era a construção
mental subjacente à maioria das esculturas africanas, o geometrismo que regia as suas
formas, a invenção levada a extremos, e a diversidade de cânones estéticos que podia
coexistir no espaço reduzido de uma só aldeia71.

Não foi o socialista Mário Barata que em seu texto “Pintura, trópico e arte brasileira”
(1967) retomou a discussão do primitivismo modernista no Brasil?

A valorização do primitivismo e do primitivo, nas artes, teve bastante importância.


Cassiano Nunes no estudo Características da Poesia Modernista no Brasil, em Espiral
no.9 11/12, X, 1966, informa-nos: ‘Da exaltação das raças primitivas no modernismo
brasileiro, podemos encontrar um dos mais expressivos exemplos numa carta que Raul
Bopp enviou a Abguar Bastos: “0 negro e o índio é que são legitimamente nossos,
porque foram os que estiveram mais em contacto com a terra, um com educação
imemorial de barulho de mato, outro na lavoura e no engenho, desbeiçando a terra. O
branco tinha vergonha de trabalhar. Raça cruel. Impostora. Com preconceitos do nome
de família. Até hoje você ouve êsse “você sabe com quem está falando”, com todos os
aparatos da nossa falsa democracia. (...) Voltemos a dar mais atenção ao índio. Raça
alicerce, subjacente, mas determinando as linhas do edifício. A volta ao homem natural
sem lábias nem artifícios. “Seele” pura [em alemão no original, quer dizer: “alma”] quer
o Klages (uma figura de projeção aqui na Alemanha). Temos ainda o negro, que fez o
papel de sombra no nosso panorama de raças. Negro enraizado à que terra, que veio das
lavouras, dos engenhos, trouxe a macumba e a nostalgia africana. Que sacudiu a nossa

70
(RAMOS, A., 1949, p. 196).
71
COSTA E SILVA, A. da. O Quadrado Amarelo. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo,
2009. p.23.
música e ajudou a fazer o maxixe. 0 branco trouxe a gramática, o bacharel, a lei da “boa
razão”, impostos para El-Rey e o catecismo... Estabeleceu fórmulas para a nossa
sensibilidade. Matou a nossa sensibilidade”. (…). Na pintura moderna, o tipo negro
surgira já em quadro pré-antropofágico de Tarsila, em 1923, hoje no Museu de Arte
Contemporânea de São Paulo, e comparece singularmente na obra de Portinari dos anos
30. 0 movimento regionalista do Recife, desde 1924, segundo Gilberto Freyre, mostrava
o valor do negro como elemento essencial no Brasil, inclusive na arte, revalorizando-se a
sua contribuição à escultura de ex-votos e de figuras e peças de candomblés.
(BARATA, Mário. “Pintura, Trópico e Arte Brasileira.” GAM: Galeria de Arte Moderna
(Rio de Janeiro, Brazil), no. 7 (June 1967): p. 8.)

Por sua vez, de forma indireta Valladares define a arte de herança africana chamando-a
de “arte negra”, ao identificar a “comunicabilidade”, isto é, sua capacidade de ser “direta”,
(realista?) como o aspecto mais singular desta arte: O que mais caracteriza a arte do
negro, isto é, a arte negra, aquela que tem a sua perenidade na cultura africana genuína
e que se manifesta universalmente através das transculturações e sincretismos, é a sua
imensa comunicabilidade. (VALLADARES, 1968, p.103). Mas nem sempre esses artistas
negros, continua ele, “se expressam como cultura negra. Muitos assimilam rápido as
características do estilo em moda e logo se diluem na produção indistinta”.
(VALLADARES, C., 1968, p.104) Valladares, embora não defina neste texto o emprego
que faz do termo “cultura negra”, ele entende que o aspecto “genuíno” da obra de arte
com essas características seria resguardado pelos artistas que se expressassem nos termos
dessa “cultura negra”. Considerando essa proposição de Valladares, na medida em que
“muitos se assimilassem” ou se “diluíssem numa produção indistinta” essa arte perderia
em comunicabilidade e, portanto, deixaria de ser legítima ou genuína. Somente dentro
desta perspectiva de autenticidade que se encaixaria as noções de um “continuísmo
formal” em relação à África. Assim, enquanto o perspectivismo modernista encarava a
autenticidade na “primitivização dos constituintes estéticos da arte”, no perspectivismo
afro-brasileiro seria a “genuinidade da figura popular que traria essa “nova norma estética
para a arte modernista do Brasil”.
Discussões a respeito dos conceitos de “genuinidade”, “legitimidade” ou da
“autenticidade” da arte com heranças africanas aparece em um número significativo de
teóricos dessa estética afro-brasileira72. Essa minha insistência me faz lembrar
paradoxalmente sobre o título de um dos textos de 1966 de Clarival Valladares
“Primitivos, Genuínos e Arcaicos”, que foi republicado por ocasião da Módulo arte
popular da Mostra do Redescobrimento (VALLADARES, 2000). Embora, obviamente,
não se negue as bases populares da arte de heranças africanas, falar de arte popular tanto
quanto falar de “arte afro-brasileira”, “arte ritual”, “arte negra”, como sinônimos, para
muitos dos autores e críticos mais antigos, significou falar de “primitivos, genuínos,
arcaicos e ingênuos”.

Há muitas discussões por trás dessa terminologia, resistirei ao comentário limitando-me


unicamente ao conceito de “genuíno”. Esse termo tem ligações etimológicas diretas com
o termo “legítimo” e “verdadeiro”, “puro” (isto é, “sem alteração”), mas também se liga
mais frouxamente com os termos “natural” e “próprio” (significando “apropriado”). Do
grego γένος “genos” (que também deu origem a outros termos como “genética”,
“gênero”, “general”, “genocídio”, “genitivo” etc.) é um termo que significa “de origem”,
“de nascimento” (em relação à espécie), “raça” (em relação ao “tipo” ou ao “parentesco”)
e assim por diante. Eu quis trazer essas acepções porque de uma forma ou de outra, em
nível linguístico, todas se portam do mesmo modo como se porta linguisticamente o
termo “genuíno” aplicado às artes plásticas. Todas essas acepções se remetem à uma
profundidade estrutural a qual cada uma é ao mesmo tempo fonte, isto é, origem e
manutenção desta unidade original num desdobramento que deve ser tratado como
legítimo (dialética). Dito de outra forma, quando algum objeto contemporâneo é
considerado genuíno, significa que este objeto se modificou ou está descontextualizado,

72
O próprio Valladares o retoma algumas vezes (VALLADARES, C. A Defasagem
Africana, 1966, p. 09); (VALLADARES, C., 1968, p. 104); (VALLADARES, C., 1968, p.
107); mas aparece igualmente tanto em autores antigos quanto em mais recentes tais
como (M’VENG, Engelbert, 1966, p. XVIII); (CARISE, I., 1975, p. 68-9);(CARNEIRO
DA CUNHA, 1983, p.994); (LODY, 2005, p.284, 285, 286, 293); (ARAUJO, 2010, p.16);
(FARKAS, S. 2005, p. 16), entre outros.
mas pertence ou se volta comprovadamente à sua origem de modo direto, preciso e com
enraizamento profundo.

A busca por esse “genuíno” de forma semelhante ao que ocorreu com o trabalho
modernista de busca pelas “origens” se generalizou na prática artística e também na
prática do crítico de arte. A noção de autenticidade da arte afro-brasileira, de acordo com
o que apresentam os críticos, descreve os padrões que a ligam à suas fontes originais e,
mesmo que ela apresente elementos de sua modificação esse “novo” desdobramento deve
estar ligado às suas origens de forma definitiva.

Ora, essas ligações com as origens, por mais que se pretendam rigorosas, podem deixar
espaços para outras variantes que eventualmente podem querer reivindicar “direito de
cidadania” no mundo negro, mesmo que só com muito esforço se possa unir num
denominador comum “afro”, oposições tão rigorosamente explícitas como um Debret e
um Di Cavalcanti, por exemplo, ainda hoje abarcados dentro de uma cultura artística
comum “afro-brasileira”. Mesmo assim, ao responder sobre as ligações atlânticas entre a
África e a América apresentadas em festivais como FESTAC (1977) e FESMAN, é o
próprio Emanoel Araujo quem diz:

“(...) E eu não sei até que ponto essa questão da contemporaneidade, ela pode vir à tona
nesses encontros, porque eles têm já uma marca que eu não gosto muito que é o da
oficialidade. A partir dessa marca da oficialidade, eu não sei, por exemplo, quem
representaria o Brasil, entende? Por outro lado, o Brasil insiste em achar que essa arte
afro brasileira seria a mais abrangente possível, desde Debret até Di Cavalcanti. Ele não
visa um conceito estético vindo ou advindo de uma ancestralidade ou de um artista que
procura essa identificação para construir o seu universo poético”. (SILVA, Nelson 2013,
p. 223-224)

Por outro lado, anos antes, Emanoel foi categórico ao dizer que houve continuísmo
África-Brasil, por exemplo, quando diz que “Chico Tabebuia é a revelação de como a
continuidade africana permanece na diáspora. Os elementos fálicos de sua arte evocam
o culto de Exu, no Daomé e na Nigéria. (ARAUJO, E., 2010, p.17) Só faltou dizer o mais
importante que é a presença do culto de Exu no Brasil, que na verdade deve ser a fonte
real de Chico Tabebuia. Portanto, o “continuísmo” de Tabebuia, apresentado por Araujo,
diria tanto respeito ao “continuísmo da religiosidade” (antropológico), quanto ao
“continuísmo formal” (artístico), já que Exu na África era representado por meio de
montículos de forma fálica, com o pênis como símbolo, pois Exu, sendo uma entidade
mensageira, metaforicamente, o pênis transmitiria a “mensagem da fecundação”.

A questão maldosa subjacente seria, porém, entender por que outras representações de
falos na arte brasileira descontextualizadas da cor da pele do artista ou das tradições
afro-brasileiras, como a representação fálica de Priapus, por exemplo, não seriam
exemplos de “continuísmo formal” com a arte de Roma, muito menos tal artista poderia
ser chamado de um romano-brasileiro? Uma das respostas que se pode dar a esse tipo de
questionamento banal (que costuma aparecer com frequência, inclusive entre críticos de
arte) é a distinção que se deve fazer entre a influências gerais em arte e a manifestação
artística individual de uma identidade. Essas são duas coisas extremamente diferentes.
Enquanto a primeira pode ser desenvolvida livremente a partir de quaisquer fontes que os
artistas julgarem adequadas (como fonte de “inspiração” ou como chamamos hoje
politicamente corretos de “referências”), a segunda só pode ser desenvolvida depois do
rompimento com o colaboracionismo de cunho racista (pela politização). Para um
pequeno grupo de pessoas que estudam ou trabalham com arte, mas que não tem uma
competência mínima em história, sociologia, antropologia para terem uma boa
compreensão do valor supra-artístico da manifestação da identidade em artes, as artes de
heranças africanas não são politizações, e sim meras “fontes de inspiração” ou
“motivações apolíticas” como seriam as formas naturais para a arquitetura e a decoração
para a art nouveau.

A arte grega foi tomada como base da arte renascentista não como forma, mas como
política. No período renascentista, início da transformação identitária da Europa que
implicaria nas próximas centenas de anos na formação dos Estados nacionais e por fim no
bloco comum europeu, a ideia de unidade artística e intelectual foi encontrada na arte
greco-romana. Não se tratava de uma mera “inspiração” no sentido fraco da palavra. Não
se tratava tampouco de um pastiche ou uma imitação. O renascentismo preparou o
pavimento da identidade europeia em termos artísticos e o iluminismo o sedimentou em
termos teóricos (Hitler - e os defensores do racismo científico - o deturpou em termos
biológicos). O fato do renascentismo se encerrar no processo de repulsa da academia e
seus valores autocentrados e narcísicos e o fato do iluminismo se encerrar com o
surgimento do mal na Alemanha de 1933, entretanto, não tiraram do planejamento de
alguns artistas europeus renovarem seus votos para com a identidade europeia, desta vez
não mais como modelo do que resiste em termos de perfectibilidade da arte italiana, mas
como busca pelo universalismo contido no humanismo primitivista.

Em nossos dias, a imposição de certo marxismo é que o negro, para ser aceito como
homem, precisa trocar sua cara negra por uma cara de classe oprimida, "sem cor".
Ontem exigiam que o artista negro esvaziasse seu conteúdo de cultura negro-africana e
pintasse, nas igrejas católicas, santos e anjos "universais", isto é, não-negros. E foi
recebendo no lombo a chibata ideológica da "civilização" que alguns africanos criaram
e nos legaram obras importantes. (NASCIMENTO, Abdias do. Revista GAM - Galeria
de Arte Moderna, no.15,1968)

De forma semelhante, em questões que envolvam estética e filosofia da arte, entre


aqueles que estudam história, sociologia etc. e não tiverem competências mínimas para
tratar do assunto “arte” acabariam também por não ponderar bem as potencialidades de
uma tal arte de herança africana que, em geral, seria para estes uma expressão artística
subutilizada, já que não se pode prescindir da história das formas que se pretenderam
artísticas nem de toda a filosofia que se expressou em termos de reflexão sobre o que se
fez em arte.

Uma das tentativas de encontrar o “búdico” caminho do meio pode ser auferido pelas
junções terminológicas entre “arte”, “afro”, “brasil”, “cultura material”, “cultura
imaterial” (isto é, valores contidos no seio social e que seriam por vezes transferidos
formalmente em arte). Roberto Conduru dá um exemplo importante disso quando diz que
é preciso pensar coisas e ações indicadas pelo cruzamento da arte e afro-brasilidade: de
obras de arte à cultura material e imaterial. Nesse sentido, a expressão arte
afro-brasileira indica não um estilo ou um movimento artístico produzido apenas por
afro-descendentes brasileiros, ou deles representativo, mas um campo plural, composto
por objetos e práticas bastante diversificados, vinculados de maneiras diversas à cultura
afro-brasileira, a partir do qual tensões artísticas culturais e sociais podem ser
problematizadas estética e artisticamente” (CONDURU, 2007, p. 11). Na comunhão e
torsão desses campos plurais de tensões, curadorias seriam como que chamadas para a
diversificação de meios, métodos e práticas artísticas. As poéticas, tornar-se-iam
horizontais não pela diferença, mas pela identidade que as tornaria humanas fazendo
atraentes e possíveis as novas identidades assim universalizadas. O problema da falta de
significação contemporânea de uma infinidade de termos como “cultura”, “valores
culturais”, “sociedade” etc., nos obriga a organizar uma total modificação conceitual
tanto da história das experiências africanas no Brasil quanto dos conceitos relacionados às
artes plásticas advindas dessas experiências. Se essas artes se calcarem em conceitos e
valores da “recente antiguidade”, hoje já obsoletos, elas não serão compreendidas pelas
novas gerações.

Qual é hoje o conteúdo dos termos “continuidade africana”? E pior, qual é o conteúdo dos
termos universalizantes tais como “afro”, “brasilidade” e “afrobrasilidade”? Essas são
questões de difícil apreensão e com questionamentos que ainda persistem e que
persistirão por um tempo indefinido, já que são a areia movediça na qual a arte
afro-brasileira resolveu com orgulho assentar a sua casa.

(In)definição dos Artistas

Foram poucos os artistas que tiveram a chance de serem chamados a opinar sobre a
questão das bases teóricas do conceito de arte afro-brasileira. A maior parte dos que
foram questionados a esse respeito ou que escreveram sobre o tema estão ligados à
universidade73. Esses autores ou bem escreveram sobre isso porque a temática foi
incorporada em suas teses e dissertações, ou bem porque ao se manifestarem dando
entrevistas deixaram entrever parte do que pensam sobre este assunto. Rosana Paulino,
Ayrton Heráclito, Janaina Barros, Marcelo D’Salete, Renata Felinto, Alexandre Araujo
Bispo, Rubem Valentim, Emanoel Araujo, são alguns dos artistas que destacamos em
nossa busca pelo que chamamos solicitamente de “(in)definição dos artistas”.

Para inicia-la, eu gostaria de trazer a definição de arte afro-brasileira tal como foi
indicada por Janaína Barros, num texto de 2008 intitulado: “Uma Possível Arte
Afro-Brasileira: corporeidade e ancestralidade em quatro poéticas”:

O termo arte afro-brasileira relaciona-se com a arte africana tradicional, que é


fundamentalmente religiosa, mas também com outros conteúdos advindos do processo de
adaptação dessa arte nas novas condições históricas. Acrescentam-se ainda, os aspectos
sociais, culturais e econômicos do negro no país, pela configuração de uma vivência que
reelabora e modifica aqueles conteúdos artísticos. (BARROS, J., 2008, p. 95)

Essa concepção que foi defendida em sua dissertação de mestrado apresenta um modelo
de continuidade de ligação África-Brasil. Quando a artista acrescenta a questão social,
cultural e econômica do negro em sua definição, poderíamos julgar que ela estivesse
fazendo uma análise excessivamente historiográfica, mas, em vez disso, ela revela um
conhecimento de causa que me parece importante. Tem-se proposto atualmente e até eu
mesmo estou me convencendo da necessidade de levar em conta, pelo menos nas análises
teóricas, os aspectos biográficos e socioeconômicos do artista. Mas, até que ponto será
mesmo possível falar de “arte afro-brasileira” vinculada ou desvinculada desses aspectos
“extra-artísticos” levantados por Janaína Barros e também intuído por nós?

Ela parece admitir que a vivência do artista é o motor (ou pelo menos um dos motores) de
modificação dos conteúdos artísticos. Se isso for assim para todos ou para a maioria dos

73
Quem foi o desgraçado que atribuiu aquela frase ao “fera” André Derain?: L'art ne doit pas être intelligent; L'art est
un jouisane, un plaisir.
artistas classificados como tal, a própria noção de “arte afro-brasileira” deverá ter como
índice de sua definição a condição social e econômica do ou dos artistas, algo que não se
pensa muito quando se fala sobre arte, exceto nos casos mais extremos. A despeito ainda
da afirmação questionável sobre a “fundamentação religiosa na arte africana”, algo que é
visto também em muitos autores74, em outro ponto, a artista abre espaço para uma análise
da arte afro-brasileira mais desgarrada de sua raiz religiosa A arte afro-brasileira não é
apenas uma arte religiosa e étnica. Perfaz uma releitura de conteúdos de origem
africana e funde-se com questões, que tanto de maneira superficial ou de modo mais
intenso, referem-se a uma temática negra. Trata-se de um conceito aberto de difícil
definição, pois o artista agrega os seus valores ideológicos naquilo que retrata e
dramatiza a sua história no cotidiano. (Idem, p.98) A noção da arte afro-brasileira ser
“um conceito aberto de difícil definição” (CONDURU, 2007, p.09) me parece outro
ponto de destaque e que vem sendo mencionado por outros autores75. No entanto, a artista
também se enquadra na abordagem tematista negra e acrescenta à noção estética de que o
artista agregaria os seus valores ideológicos em sua arte.

Ainda com relação à temática que nos interessa aqui a artista traz também duas
importantes questões que foram retomadas em sua apresentação no evento sobre arte
afro-brasileira na Pinacoteca, que são as questões da autoria negra76 em primeiro lugar e,
em segundo, a ampliação do campo expositivo e temático para a arte afro-brasileira
incluindo questões indígenas e estimulando o aparecimento de exposições fora do grande
circuito de artes, utilizando-se por exemplo, das mídias eletrônicas e outros meios.

Num artigo para a revista Menelick 2o. Ato, Barros, com pensamento em (Carneiro da
Cunha, 1983) ao discutir sobre a questão teórica da arte afro-brasileira ela a associa a
amplitude dessa arte ao dinamismo cultural brasileiro. Segundo ela, esta arte trata-se de
temas ordenados de cunho afro-brasileiro, nomeadamente em seu sentido lato e estrito,

74
CARNEIRO DA CUNHA, 1983, p. 986; MUNANGA, 2004, p. 345; BARROS, José D’Assunção, 2011,
p.44; GUIMARÃES, José. Africa e Africanias: espíritos e universos cruzados,2008, p. 29, 32).
75
(MUNANGA, 2000, p. 99, 107); (SODRÉ, J. M., 2006, p. 262, 292); (SILVA, V.G., 2008, p.97);
(SOUZA, M. de Salete, 2009, p. 10); (ARAUJO, E., 2014, p. 17)
76
A ideia da arte afro-brasileira centrada no indivído negro é também destacada em (FELINTO, 2009 In:
SOUZA, M. de Salete, 2009, p.236)
como a presença cultural do ‘caboclo’ como representação de ancestrais indígenas
presentes nos ritos afro-brasileiros, como por exemplo, na umbanda. Por outras palavras,
são formas demarcadoras de brasilidade ou o processo dinâmico de ressignificação
cultural. (...) o debate étnico-racial nas artes visuais contemporâneas ainda é pertinente
como articulação política na delimitação de uma dada autoria. A autoria traz o sentido
de pertença e reescrita de narrativas hegemonizadas. (...) E a artista assim finaliza: A
exposição Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca propõe a
leitura de uma narrativa hegemonizada que deve ser analisada fora de uma construção
no campo da experiência, da subjetividade, da pessoalidade, da emoção e da
imparcialidade. Pois, é a única forma de descolonizar as diferentes narrativas poéticas.
É imprescindível criar novas estratégias de leitura para repensar outras escritas para
uma produção vista como homogeneizada, não formal esteticamente e aprisionada a
determinados paradigmas eurocêntricos. Só assim é possível analisar criticamente uma
visualidade plural em sua potência criativa, formal e conceitual. (BARROS, J., 2016,
p.23 e ss.).

Num outro texto, lançado com seu parceiro também artista e professor universitário
Wagner Leite Viana, os autores descrevem de forma contundente essa visão original do
protagonismo negro associado à produção autoral do artista negro, lançando o conceito de
“corpo-memória” dentro da definição de arte afro-brasileira.

Consideramos a natureza da obra artística ligada à ideia do corpo como deflagrador de


processos de produção de sentido cruzados com procedimentos de materialidade
artística e construtores de poéticas identitárias. Nesta direção, são construtores de uma
visualidade contemporânea autoral afro-brasileira a produção de artistas Rubem
Valentim (1922-1991), Mestre Didi (1917), Yêdamaria (1936) (...) os quatro artistas
supracitados convergem para um “corpo memória” que foi construído por linguagens
corporais distintas em razão do confronto entre as matrizes étnicas que compuseram o
que seria um corpo formador afro-brasileiro no processo de miscigenação e hibridismo
cultural. Essas linguagens traduzem o idioma desse corpo adjetivado na forma de
atualizá-lo: como o corpo histórico/feminino em Rosana Paulino; o corpo mítico em
Yêdamaria; o corpo emblema em Valentim; ou o corpo sagrado em Mestre Didi.
(BARROS, J. & VIANA, W.L., 2012, p.93)

Outros artistas da mesma geração, bastante ligados à questão afro-brasileira e também


críticos ao eurocentrismo nas artes são o artista e curador Alexandre Bispo e a professora
universitária e artista Renata Felinto. Num artigo publicado numa revista em que ambos,
juntamente com Nabor Jr., Christiane Gomes e Luciane Silva (minha amiga Luly,
supracitada) são alguns dos responsáveis, a revista “O Menelick 2o. Ato”77 os artistas
apresentam parte de suas concepções sobre o tema.

A principal defesa que fazem e que me é bastante cara, diz respeito à presença do corpo
negro, sua identidade e história têm um papel importante nos trabalhos de artistas
afro-brasileiros: a produção contemporânea apresenta artistas afro-brasileiros que,
inspirados em temas, experiências e problemas comuns a si próprios e a população
negra e afrodescendente problematizam em suas obras o corpo, as relações de gênero, a
religiosidade de matriz africana e a memória, história e identidades negras. BISPO, A.
& FELINTO, Renata. O Menelick 2º. Ato. São Paulo, Julho de 2014 Disponível em:
https://issuu.com/omenelick2ato. Neste texto, os autores apresentam a relação entre arte,
sociedade e os seres humanos. Ao elencar esses itens aparentemente coesos, eles
explicitam a noção da existência dos “problemas afro-brasileiros” nas artes. Mas não só
problemas no sentido de “dificuldades e mazelas sociais”; a ideia é destacar que a arte
afro-brasileira é possível graças a um conjunto múltiplo de experiências sociais do negro
que permite aos artistas incluírem com pertinência orientações de tipo “afro” em suas
obras. Para eles, a ligação África-Brasil se mantém no nível técnico, mas esta não é
engessada, pois permite novas formulações e novas proposições estéticas, já que a “arte
afro-brasileira”, enquanto tal seria um conceito em transição e contínua modificação

77
Quando o Nabor me entregou em mãos o primeiro volume, acho que foi em algum evento do museu
Afro Brasil ou numa abertura de exposição da Galeria Oço, eu lhe disse: “Eu amei esse nome! ”O
“Segundo Ato”é não linear e trata-se de um conceito fulcral tanto na ópera quanto no teatro, então, esses
caras devem estar indo no caminho certo, eu pensei! Conheci o bispo quando trabalhávamos numa
exposição da Mary Vieira no Centro Cultural Banco do Brasil, em 2005, tanto ele quanto a Renata Felinto
foram membros também da excelente 1ª. equipe de educadores do Museu Afro-Brasil em sua fundação,
com quem tive o prazer de trabalhar junto e travar “afro-conhecimentos” de 2005 a 2008, 2009 e até hoje,
mesmo que com menor intensidade.
através do tempo. Dizem eles que os artistas deste contexto criam suas poéticas mantendo
noções e técnicas africanas, gestos especializados, mas também é aberta para a
incorporação de abordagens, e cada artista resolve a seu modo os problemas que lhe
interessam. (Idem, Ibidem). Pensando nesse sentido, de forma interessante, a arte afro
brasileira para eles encontra seu palco de atuação na própria abordagem contemporânea
da arte em que há uma menor apropriação externa do trabalho do artista e uma busca por
resoluções plásticas individuais e respostas pessoais para os problemas impostos
socialmente.

Em outro texto o artista e curador Alexandre Bispo apresenta ainda uma definição
inclusivista, isto é, que absorve no seio da arte afro-brasileira brancos artistas que
possuam experiências sociais ligadas à cultura negra. Segundo ele: Uma definição
possível para o conceito de arte afro-brasileira pode ser: produção plástica que é feita
por negros, mestiços ou brancos em função de suas experiências sociais com a cultura
negra nacional. Exemplos clássicos dessa abordagem são Carybé (1911-1997), Mestre
Didi (1917-2013), Djanira da Motta e Silva (1914-1979), cujas obras emergem e ganham
forma em razão do ambiente social no qual habitaram e viveram. (BISPO, A.A., 2015)

Como Felinto e Bispo retomam o sentido dessa arte a partir de Aleijadinho, os


associamos ao modelo historiográfico da arte afro-brasileira, ou seja, aquele que remete a
arte afro-brasileira aos grandes mestres “mulatos” do barroco. Mas, como dizem, definir a
expressão “arte afro-brasileira” é ampliá-la de modo a mostrar as potencialidades dessa
rica produção de arte, então ela não pode pretender reduzir a atividade artística dos
artistas à categoria ‘afro-brasileiros’. Para os autores, no contexto urbano, democrático,
é preciso fazer a distinção entre “arte” e “arte afro-brasileira” e essa distinção seria feita a
partir do caráter social da arte. Sendo assim, o conceito de arte afro-brasileira estaria
ligado, para ele, à ideia de “afrobrasilidade”, “negritude”, “mestiçagem” e “identidade”.
Desde Rubem Valentim (1922-1991), artista que faz o elogio da mestiçagem
inspirando-se nas manifestações africanas no Brasil presentes no Candomblé e na
Umbanda; passando por Mestre Didi (1917-2013), que opera com as técnicas
expressivas e modos de fazer artístico-ritual do Candomblé homenageando os deuses da
terra do panteão nagô; Rosana Paulino (1967) e o tratamento que dá à relação entre
biografia e experiência sócio-histórica feminina negra, a arte afro-brasileira sinaliza
para importância da diversificação histórica da produção de artes visuais no Brasil.
Essa diversificação fica mais explícita na arte contemporânea que há muito vem
ampliando seus interesses. (Idem, Ibidem)

A artista plástica Renata Felinto defende, na verdade, uma posição ainda mais radical na
qual questiona de forma contundente sobre o papel do artista branco no contexto da arte
afro-brasileira, restringindo-o. Em entrevista para Marcelo D’Salete, em 2009, a artista
defende posições muito interessantes. Perguntada sobre como começou o seu trabalho
com Emanoel Araujo ela diz que foi quando foi convidada a trabalhar na exposição
“Porta do Inferno de Rodin” [na Pinacoteca do Estado de São Paulo, 1995] e prossegue,
referindo-se à sua posição sobre arte afro-brasileira:

Um contato um pouco mais próximo eu tive [com Emanoel Araujo] quando fui fazer uma
entrevista com ele para o meu mestrado. Essa foi uma entrevista sobre o trabalho
artístico dele e sobre a definição do termo arte afro-brasileira. Porque na verdade creio
que foi ele quem deu visibilidade para esse termo dentro das artes plásticas. Foi ele
quem também ampliou o uso desse termo porque antes arte afro-brasileira era arte
somente ritual. Ele ampliou um pouco esse prisma ainda que eu tenha algumas ressalvas
quanto a esse termo.

Quais são as suas ressalvas em relação a esse termo especificamente?

Eu penso que ninguém chama a Tomie Ohtake de artista nipo-brasileira, ela é uma
artista do abstracionismo informal apenas. Quando nos referimos a ela nós falamos
muito mais a respeito das características de sua pintura e pelas escolas com as quais ela
dialoga do que pela origem dela. Quando falamos em Cândido Portinari, também não
nos referimos a ele como ítalo-brasileiro. Eu considero, então, que isso pode fechar
várias portas. Conversando com a Rosana Paulino, ela falou que isso acontecia muito
com ela. A Rosana estava em uma mostra de artistas afro-brasileiros e ela não era
chamada para uma de artistas contemporâneos. É como se o afrobrasileiro e o
contemporâneo não fossem palavras que se referem a uma mesma época. Há essa
história do tempo mítico e religioso. Parece que esse conceito de arte afro-brasileira
ficou parado no tempo. Essa é minha discussão do doutorado até. No Museu Afro Brasil
foi que eu tive maior contato com o Emanoel. Mas o Emanoel é uma pessoa muito
reservada. Então, as conversas que eu tive com ele sempre foram conversas muito
pontuais, com diversas outras pessoas. Depois que ele voltou do Benin é que eu fui
almoçar com ele algumas vezes e pude conversar melhor.

Como você considera que o Emanoel lida com o termo arte afro-brasileira?

Eu considero que ele abraça esse termo. Mas para o Emanoel esse termo é tão amplo
que cabe uma grande diversidade de pessoas que penso que, para mim, não poderia. Por
exemplo, o Caribé. Daí você começa a questionar também uma série de características e
problemas para efetivar esse termo. É arte afro-brasileira uma arte que apresenta certas
características? É arte afro-brasileira a arte produzida por negros? A arte que tem um
mesmo tema? A arte que tem como tema as religiões afro-brasileiras? Considero que há
um monte de problemas que, para o Emanoel, ele abarca e entende tudo isso como
afro-brasileiro. Isso para ele é super importante. Foi ele quem deu visibilidade para essa
tendência, essa terminologia. Em uma tendência você consegue citar algumas
características. No caso da arte afro-brasileira não há essa possibilidade. Se você vir a
Yêdamaria, que está lá no Museu Afro Brasil, que é uma amiga particular do Emanoel,
nota que ela faz naturezas mortas. Ao mesmo tempo tem um Mestre Didi, que é um
Sacerdote. A estética dele é ritual, mas a obra não foi sacralizada. O Emanoel abarca
tudo isso. E creio que ele entende tudo isso como arte afro-brasileira.

E o que você acha que deveria ser entendido como arte afro-brasileira? Você consegue
definir como compreender melhor esse termo?

Não. Esse é um caminho difícil e daí você exclui um monte de gente. Nos meus textos, por
exemplo, eu excluo todos os brancos. Eu penso em arte afrodescendente. A matriz é o
indivíduo que produziu a obra. Eu penso muito na perspectiva do negro que pensa a sua
própria trajetória e que de alguma maneira tenta elaborar isso através da pintura, do
desenho, da fotografia, das instalações e performances. Eu tenho pensado mais nessa
perspectiva também por conta da lei, que agora inclui o estudo da cultura indígena.
Antes era uma lei que vinha para diferenciar um grupo, agora ela começa a botar todo o
mundo que não é branco no mesmo saco. Bem, agora eu tenho pensado muito que é
importante apresentar artistas negros produtores. Então, não tem sentido, por exemplo,
estudar Di Cavalcante porque ele pintou mulatas ou estudar o Portinari porque ele
pintou trabalhadores negros ou a Djanira que pintou festas populares ou mesmo o
Ronaldo Rego. Eu penso muito no negro como produtor da arte. Ele como protagonista e
não mais como tema. Quando eu penso nesse termo, que não gosto muito, penso sob essa
perspectiva, focando quem produz. E focando quem produz há uma grande diversidade
de temas. Essas pessoas são artistas e vão colocar isso de diferentes modos na sua
produção. Outros nem pensam em colocar essa discussão em suas obras (...). (SOUZA
M. d. Salete, 2009, p.236-237) A artista promete por fim discutir esse tema no seu
doutorado, defendido bastante recentemente este ano, mas que infelizmente não tive
ainda oportunidade de consultar78.

O professor, escritor e desenhista Marcelo D’Salete79, em sua dissertação de mestrado


sobre a curadoria de Emanoel Araujo versa igualmente sobre o tema da arte
afro-brasileira e, mesmo considerando que nenhuma delas é definitiva, apresenta quais
seriam as suas principais tendências interpretativas: 1) arte afro-brasileira é produzida
por artistas ligados a cultos afro-brasileiros; 2) arte afro-brasileira é produzida por
autores razoavelmente próximos da cultura negra; 3), arte afro-brasileira é produzida
por autores que remetem ao universo plástico e social do negro no Brasil (SOUZA M. d.
Salete 2009, p. 10). Um pouco mais adiante D’Salete toma uma posição que me pareceu

78
A artista trabalha hoje como professora universitária no Departamento de Artes Visuais na Universidade
Regional do Cariri (URCA). Seu doutorado intitula-se: SANTOS, Renata Aparecida Felinto dos. A
Construção da Identidade Afrodescendente por meio das Artes Visuais Contemporâneas: Estudos de
Produções e de Poéticas no Brasil e nos Estados Unidos. São Paulo: Instituto de Artes/UNESP,
2016.[TESE DE DOUTORADO]
79
Como disse acima, eu conheci o Marcelo por volta de 2002 na Universidade. Ele foi alguém com quem
tive orgulho de conviver também como parte da equipe de educadores do Museu Afro Brasil, entre 2008 e
2009.
digna de nota pela originalidade quanto ao termo “artista afro-brasileiro”. Segundo ele:
artista afro-brasileiro [grifo nosso] é um termo que serve para os artistas,
independentemente de sua origem étnico-racial, que produzem obras de arte sob
influência da cultura afro-brasileira. Isso pode transparecer na forma estilística da obra
ou no problema tratado. Enquanto que, prossegue ele, usamos o termo artista negro (em
itálico no original) para nos referirmos aos artistas que não produzem uma obra
diretamente sob o signo da cultura afro-brasileira. Bem entendido, em sua noção de
“artista negro” D’Salete amplia sua definição para que esse possa abarcar, obviamente, a
temática afro-brasileira (mesmo que D’Salete não o tenha afirmado, isso está
subentendido) para garantir com que artistas negros como Olumello, Yêdamaria e
Washington Silveira, presumo eu, que não fazem em suas obras referência direta à cultura
afro-brasileira possam ser enquadrados dentro dessa classificação de “artistas que fazem
obras afro-brasileiras”, especificamente pela condição de negros deles.
Marcelo D’Salete deixa claro que lança mão dessa forma de definição por razões
metodológicas, já que está a fazer ali em sua dissertação a análise das propostas
curatoriais de Emanoel Araujo80. Além disso, essa proposta e todo o trabalho dissertativo
de D’Salete nos deixa entrever as próprias definições de Araujo quanto a inclusão de
brancos artistas tematistas e de negros que chamamos, por falta de outro termo de maior
cientificidade ou significação, de “cosmopolitas” (VALLADARES, C., 1968, p. 106),
isto é, negros que se utilizam de elementos artísticos menos específicos - como os da
afro-brasilidade – em suas obras.
Segundo Valladares, Emanoel Araujo era um dos “cosmopolitas”:
(...)O mesmo se aplica a J. Garbogini Amaglia, nascido na Bahia em 1928; ou a Barros
“O Mulato”, de Pôrto Alegre; a José de Dome (Estancia, Sa, 1921); a Raimundo
Oliveira (Feira de Santana 1930 Salvador 1966); ao gravador José Assunçáo de Souza
(Recife, 1924); ao pintor e gravador José Maria de Souza (Bahia, 1935); ao gravador
Emanuel Araujo (Bahia, 1940); à pintora Yeda Maria; ao gravador-entalhador Edison
da Luz (Ba, 1942); ao pintor e gravador Juarez Paraizo, Marialva e a vários outros

80
De fato, na entrevista que D’Salete fez com Emanoel Araujo em 2009, este diz com todas as letras: eu
diria que Carybé é um artista afro-brasileiro. Porque toda a produção dele está dirigida para registrar
essa cultura. Mas no registro tem uma invenção dele ali dentro e ela está ligada à questão afro-brasileira
(SOUZA, M. de Salete, 2009, p.194)
artistas de descendência negra, plenamente afirmados na linguagem estética
cosmopolita.”(VALLADARES, 1968, p.106)
De certa forma, as teses de D’Salete se contrapõem aos modelos de valorização dos
brancos artistas modernistas em função de alguns deles utilizarem a representação do
negro em suas obras, mas sem fazer uma aproximação geral em relação à cultura
afro-brasileira. Essa é uma outra questão que não aparece em sua dissertação, mas que,
por um fato lógico, podemos enxergar algum tipo de limitação aos brancos artistas dentro
do mundo temático negro. A chamada arte afro-brasileira poderia ser encarada por estes
como um “subconjunto momentâneo da arte”, porque permitiria que o artista negro tenha
uma maior gama de possibilidades dentro dessa arte (utilizando-se de assuntos
afro-brasileiros ou não, sendo livre inclusive para fazer uma arte não-representacional),
enquanto que, ao branco artista, excetuando quando esse encarnasse a temática negra em
suas obras ele não estaria livre para fazer arte não-tematista, nesse contexto. Assim, a
inclusão do artista branco, mesmo que problemática, apareceria como uma “sacada”
metodológica na curadoria de Emanoel Araujo. Eles seriam livres para serem brancos
artistas tematistas no universo afro-brasileiro e ocupariam um lugar especial dentro do
contexto político de valorização afro-brasileiro. Não há de fato motivos factuais para
exclusão do branco artista que faça representações que integram bem ao contexto
afro-brasileiro, no entanto, não há igualmente motivos factuais para inclusão desses
mesmos artistas dentro da esfera conceitual de uma arte dita “afro-brasileira”, apenas por
motivos que lhes seriam impostos como se fossem um “traje a rigor” num baile de gala
ou uma “fantasia” específica num baile de carnaval, sem que esses configurassem como
artistas imbuídos de valores culturais afro-brasileiros que fizessem parte de suas próprias
vidas. Nesse sentido concordamos com D’Salete, porque ninguém pode dizer que Caribé,
o maior de todos os brancos do movimento, não está imbuído desses valores81.
Para a confirmação disso, de forma paradoxal, nos seus textos definitivos da
implantação do Museu e em inúmeras entrevistas, Emanoel defende que o Museu
Afro-Brasil não é um gueto negro, não é um museu de arte africana, não é um museu do
negro, é um museu do Brasil e por isso o ganhou esse nome. Por muitos anos eu próprio

81
Carybé era macumbeiro até morrer! No seu último minuto de vida, ao chegar no terreiro, teve um ataque
cardíaco...Caiu de joelhos diante da casa de Xangô, o Orixá “dono da casa pôs a mão no peito e disse:
“Puta que pariu, me fodi!"(GUERRA, E., (Org.). Carybé & Verger: gente da Bahia. 2008, P. 151).
utilizei essa norma ou como a transmissão da orientação do curador (como sempre
fizemos em arte educação, desde 1995 em diante, concordando ou não com essa visão) ou
como ideologia, sabendo que se devesse como bons marianos morrer pelo “mesticismo”
(entenda-se, “mestiçagem”) e exaltar a afro-brasilidade do Brasil antes que a
afro-africanidade dos afro-brasileiros. “Museu do Brasil”, nessa última acepção não era
para nós pura retórica. Estávamos ali para “puxar a brasa” para nossa sardinha e dizer a
verdade escondida nos porões da história e escancará-la a todos os ouvidos e olhos e
mentes: Brasil=negro, eis a nossa identidade mais forte. Tudo o que for mais,
abraçaremos com amor, porque sabemos como é estar de fora desse abraço nacional e os
esdrúxulos pensamentos separatistas que advém dessa complexidade psíquica, mas
sabemos também que foram esses mesmos braços negros que permitiram a existência de
outros...82
Será ainda que as novas definições das chamadas artes primeiras serão mesmo
suficientes para que essas novas definições sejam capazes de superar os laivos dos
preconceitos trazidos da antropologia e etnologia, livrando as manifestações artísticas
da África e de seus congêneres das demonstrações da “invenção dos selvagens”? Se isso
ajuda a uma nova postura perante o que foi criado por mãos negras, mãos pretas e mãos
mulatas, a nosso ver em princípio definiria a arte afro-brasileira, para que ela própria
possa alcançar seu voo próprio num país hegemonicamente pensado como branco
(ARAUJO, 2014, p. 15).

Em nenhum dos textos publicados sobre o assunto “arte afro-brasileira” por Emanoel
Araujo ele apresenta uma definição rígida sobre o conceito de arte afro-brasileira. Ao
contrário, em algumas entrevistas ele afirma que artistas brancos (Como Carybé fazem
arte afro-brasileira (SOUZA M. d. Salete 2009, p.194) e em outras diz que não, que isso é
impossível, arte afro-brasileira passa pela cor da pele (SILVA, R.A. da 2016). Suas reais
convicções devem ser descoladas e depuradas a partir de textos sobre artistas negros ou
em alguns de seus textos curatoriais, que nem sempre descrevem suas reais convicções.

82
E jamais esqueceremos disso...como dizem mais ou menos os judeus para os alemães, isto é, para o
mundo: Para nunca esquecer...memória de.... Ah, não...essa outra! Os Judeus dizem: recordar para jamais
esquecer, lembrar para jamais repetir.
Já em alguns casos, é bastante claro e lúcido, demonstrando que se quisesse poderia ser
não só um artista, mas também um teórico desta arte:

O que importa aqui é uma definição plausível para os artistas afro-brasileiros ou com
ancestralidade africana. Isso vale para a imensidão das cores criadas para mascarar
essa descendência. (...). É certo que a crítica e as definições acadêmicas obedecem ainda
a cânones eurocêntricos, contudo temos que buscar entre nós mesmos novas propostas
para definir o que [é] um artista afro-brasileiro, quais as suas premissas e descobertas
de um mundo que lhe seja significativo, que coadune com as suas perspectivas, com a
sua identidade. (ARAUJO, E., 2014, p. 17)

A (in)definição dos artistas volta a aparecer quando o artista e curador Emanoel Araujo
foi questionado diretamente numa outra entrevista sobre “o que seria a arte
afro-brasileira? ”. Embora reproduzo a resposta quase que integralmente, tornando a
citação um pouco longa, acredito que vale o esforço, porque, nesta entrevista, finalmente,
ele esboçou uma (in)definição um pouco menos aberta ao dizer: Há tempos, eu pensava
nessa questão da afro-brasilidade nas artes. Hoje já não penso mais. Acho que, dentro de
algumas características em que nasça uma obra, ela pode ser ou pode não ser. Alguns
artistas têm vínculo profundo com a questão das africanidades, até por instinto, ou por
competência, por reflexão ou raciocínio, como Rubem Valentim. Outros, por
compromisso étnico estético, como mestre Didi, Agnaldo Manoel dos Santos, ou como
Maurino Araújo, de Minas Gerais, fortemente influenciado por Aleijadinho, mas que
acrescentou na sua obra expressionista muito de África. Então esses artistas são
exemplos, mas não quer dizer que outros tenham que ser afro-brasileiros em sua arte. O
que seria afro-brasilidade, afinal? (...) João Alves, Júlio Martins da Silva e Madalena
Santos Reinbolt, a despeito de serem intuitivos, são também afro-brasileiros não só pela
cor da sua pele, mas porque eles acrescentaram a suas obras aspectos íntimos e lúdicos
de suas origens. Isso explica muitos artistas que estão aí”(...). Acho que um pouco é isso:
a arte afro-brasileira existe e não existe. Ela existe através desses exemplos que são
quase que históricos hoje em dia, mas não se pode negar que um Estevão Silva, que é um
pintor acadêmico, clássico, filho de escravos, e muitos outros artistas, como Manoel da
Cunha que ele próprio foi escravo, deixassem transparecer na sua obra alguma coisa
ligada à África. Porque a África que nós conhecemos é inventada para a gente. Não é
uma África real, que está do lado de lá do Atlântico. Estevão Silva tem uma cor quente e
a gente pode atribuir a ele alguns aspectos, além da sua própria origem. Mas isso não
quer dizer que a arte dele seja afro-brasileira. É uma arte quente de um artista negro,
com características de sua própria vivência. (...) (FAUSTINO, O. 2014)

Além dessa entrevista preciosa e esclarecedora, no catálogo inaugural do Acervo


Permanente Museu Afro Brasil Emanoel Araujo vislumbra no artigo “Arte Afro
Brasileira” (pp. 239-242) um sentido coerente para a arte afro-brasileira que vale
referirmos a ele aqui. Depois de discorrer sobre conteúdos do catálogo mostrando que a
diferença está na continuidade da presença africana na diáspora revelada através de
suas obras Araujo diz que essa continuidade foi primeiro observada por Nina Rodrigues
em seu “Bellas Artes dos Colonos Pretos” e, do ponto de vista de uma tentativa de
definição da arte afro-brasileira Araujo diz ainda que: submissão consciente ou
inconsciente aos princípios de uma arte ancestral - pouco importa. O que é relevante,
neste momento de grande discussão sobre o multiculturalismo e a diversidade, é que
temos aqui exemplos de uma arte gerada a partir de cânones próprios, por outra via que
não a européia, que nos serve para elucidar o que somos e nos permite entrever uma
possiblidade de mudança em direção a um comportamento cultural comprometido com
uma nova identidade. (ARAUJO, E., 2006, p.242)
Rosana Paulino é hoje a principal artista brasileira que trata em algumas de suas
obras do tema identitário e da representação do corpo feminino negro em arte. Muitas
artistas mais jovens reconhecem na Rosana alguém a quem se espelhar tanto do ponto de
vista do alcance que ela teve em termos da inserção de uma artista negra em circuitos de
arte em geral, quanto do ponto de vista de sua capacidade de tratar de temas que são caros
para as discussões de gênero, identidade e protagonismo das mulheres negras. Parte de
suas ideias com relação às fontes de seu trabalho artístico podem ser encontradas em sua
tese de doutorado em artes visuais defendida em 2011:
Creio que todo este caminhar levou-me a pensar mais a fundo não só o papel da
mulher negra na sociedade brasileira como, principalmente, resultou em que eu
desenvolvesse mecanismos visuais que pudessem falar deste fato e sua importância. O
primeiro fato relevante a despertar minha atenção durante as pesquisas foi o papel
aglutinador desempenhado por estas mulheres. Mães de santo, benzedeiras, parteiras,
comerciantes, depois professoras, costureiras, atrizes, doutoras, pesquisadoras, etc., a
mulher negra tem se colocado na linha de frente do desenvolvimento da população
negrodescendente no país. (PAULINO, 2011 p. 82)

A despeito de toda carga emocional negra de seus trabalhos e de ser tantas vezes evocada
nas exposições para compor o quadro dos artistas afro-brasileiros cuja temática segue o
padrão considerado pelos curadores como suficientes para aparentemente estabelecê-la na
classificação “arte afro-brasileira”, de acordo com entrevista (CLEVELAND, 2013, p. 20)
ela não se identifica com este rótulo. Em todo caso é a própria artista que criou modelos,
abriu caminhos para outras artistas que se auto-rotulam assim, e lançou ainda alcunhas
reutilizadas em textos jornalísticos, artigos e em dissertações acadêmicas cujos temas são
as artes afro-brasileiras, neologismos como “artista negrodescendente (PAULINO,
Rosana. 2011, p.23.); reflexos da escravidão (…) nas negrodescendentes ainda hoje
(PAULINO, Rosana. 2011, p.49.) etc.83

Por outro lado, seguindo as elaborações teóricas da própria artista, fica mais
compreensível seus encaminhamentos em relação as problemáticas advindas das
imposições temáticas externas ao próprio trabalho do artista. Quando Paulino analisa a
questão do “Texto do Artista”, os diversos textos não acadêmicos como anotações, cartas
que dão indícios sobre a produção artística de alguma maneira acabam por permitir maior
entendimento do trabalho que uma explicação ou justificativa acadêmica poderia
estabelecer. Diz ela: (…) é possível, a partir do estudo de obras de artistas que
discorreram sobre seus processos criativos, destacar algumas características que, sob
meu ponto de vista, são importantes para este tipo de documento. Poderíamos, por
exemplo, citar o fato de que em grande parte esta escrita esteja muito mais voltada para
o entendimento do trabalho e não seja sua pretensão preocupar-se em explicar, justificar,

83
Rosana Paulino é base e fonte de inspiração desde trabalhos artísticos, feminismo negro, além de
performances, trabalhos universitários, entre outros.
ou enquadrar o trabalho de arte dentro de determinadas correntes estilísticas,
legitimando assim a produção da obra. Penso que sob esta ótica, o/a artista assume uma
posição na qual não se preocupa em ajustar sua produção a pressupostos teóricos
anteriormente postulados por outros. (PAULINO, R., 2011, p.7-8)
Pensando melhor sobre isso, poucos artistas sofrem menos pressão para que se
mantenham “sempre firmes numa mesma temática” que aqueles que foram inicialmente
conhecidos pelos temas que utilizaram quando começaram a conquistar fama. Esse parece
ser o caso de Rosana Paulino que, com trabalhos de força impressionante como “Parede
da Memória” (1994), acabam às vezes “ofuscando” em termos de referência à sua obra,
comparativamente, aos trabalhos de 5 ou 6 anos atrás como o das monotipias sobre papel
que, mesmo com uma temática “afro”, mas cuja identificação não seja tão imediata e
ainda pelo fato de sua “conversa” com a estética e história da arte se dê nos moldes da
tradição artística mais estabelecida. Essas obras de maior dificuldade interpretativa
estariam, assim, associadas às técnicas de arte mais específicas e que exigiriam maior
treino do crítico, algo complexo que atrai poucos interessados.

Dito em outras palavras, enquanto que do ponto de vista temático a leitura de alguns
poucos textos sobre “herança africana no Brasil”, “identidade negra”, “racismo”, etc. são
minimamente suficientes para uma “crítica de arte afro-brasileira”, do ponto de vista
artístico, não bastaria a leitura de textos genéricos sobre “técnicas artísticas” para se
divulgar uma crítica minimamente fundamentada sobre esses trabalhos. Logo, vê-se, de
imediato que o trabalho de artistas tematistas da afro-brasilidade enfrentam um desafio
bastante forte do ponto de vista da percepção e recepção de suas obras. Os códigos da
história da arte já são suficientemente herméticos para que se inclua sem prejuízo ainda
outros que fossem “afro-brasileiros”...Por fim, complicadores como, por exemplo dezenas
de nomes difíceis de orixás, suas normas, características, cores, comidas preferidas etc.
incluídos no hermetismo artístico afastam também críticos que não estão muito
interessados nessa superabundância de referências tematistas.

Então, o problema todo se resume assim: serão mais facilmente “palatáveis” os artistas
que, dentro de seu próprio ciclo de conteúdos com códigos identificáveis no meio
afro-brasileiro for generoso(a) o suficientemente para que essas identificações e
percepção da obra possam ser difundidas para um número razoável de pessoas, sem que,
além de terem um certo grau de compreensão do savoir fair artístico, terem também de
ser especialistas em tudo o que pode vir a explicitar a chamada cultura afro-brasileira.

Agora, os artistas que, fora do ciclo de conteúdos com códigos identificáveis no meio
afro-brasileiro, mas inda dentro dos círculos de arte, teriam de enfrentar outro desafio: a
boa-fé do crítico de arte que, geralmente advindo de uma classe social em que teve pouco
contato com a cultura afro-brasileira ou dos problemas da periferia negra, teria de ter
grande capacidade de esforço e empatia para assumir mais esses códigos,
universalizando-os dentro de uma crítica de arte. Esse crítico de qualquer maneira, iria
torcer para que os códigos judaicos dos artistas judeus, os códigos “anti-protocolares de
Sião” não exigissem, como a Cabala deles exige, ser homem, ter mais de 40 anos, decorar
por uns 30 anos uns longos trechos dos 12 livros do Talmude, entender por si mesmo o
que há de verdade ou de mentira nos Sêfer Yetzirá (Livro da Formação) e Sêfer HaBahir
(Livro da Iluminação) e se não conseguir fazer isso poderá recorrer às dez mil páginas
dos livros de Gershom Scholem para só e somente depois conseguir fazer uma crítica às
notórias reiterações artísticas de Frans Krajcberg.

E no caso afro-contemporâneo já torcem por isso, já que uma parte significativa do


trabalho do crítico é conter o desejo irrefreável dos artistas que almejam em suas poéticas
garantir seu direito a assumir sua cruel posição de esfinge: “decifra-me ou devoro-te! ”

Ainda não temos suficientes elementos teóricos para afirmar isso, no entanto, se o artista
que escolher como tema algum aspecto afro-brasileiro e quiser ser reconhecido como
artista, parece-me que o grau de facilidade com a expressão, fruição e a leitura da obra
dever-lhe-á ser uma exigência ou uma imposição de difícil gerenciamento. É claro que
isso vale também para a arte em geral, porque, principalmente na modernidade, poéticas
que não geram apelo visual e que ainda contém inúmeras referências mais ou menos
herméticas tendem a ficar num certo limbo, dividido apenas entre os entendidos.
Essa imposição aos artistas negros ou de herança “afro” pode ser estranho do ponto de
vista da história da arte contemporânea, já que aquela visão que comumente associa artes
plásticas ao hermetismo sempre foi um preconceito de regra na contemporaneidade. Por
conseguinte, a implicação de uma certa obrigatoriedade dos artistas afro-brasileiros de
terem uma comunicabilidade que lhes aproxime o máximo possível da chamada arte
popular, força com que a linguagem chamada afro-brasileira se reduza a proposições mais
imediatas, conhecidas do grande público, como representações de orixás, gestos do
candomblé, turbantes, saias rodadas e etc. também lhes pareceria como uma forma mais
ou menos velada de racismo.

Há artistas e artistas; tematistas e tematistas. Para alguns, o tema é uma lembrança da


professora de português que dava notas baixas para aquelas redações que “fugiam do
tema”; para outros, alçados os voos que libertam suas almas artísticas do jugo, da tirania e
da força da gravidade temática, o tema não lhes seriam suas asas, sequer uma delas inteira,
seria somente uma das penas que os permitem “voar” - eles podem prescindir
contemporaneamente de uma, de duas ou de todas elas; e talvez quando estivessem
algumas vezes despidos, encontrariam na nudez algum sentido para suas próprias
inquietações, geralmente indicadas parcialmente nos títulos das obras.

A questão do tema em artes em geral tem sido discutida em termos acadêmicos, tanto
quanto em termos da crítica de arte e no contexto dos grupos de afinidades artísticas e das
antigas escolas e movimentos, mesmo num mundo em que ser “indivíduo” é lindo, ser
“grupo” é feio - ser original é genial; ser tradicional é ser da “manada” indistinta. O
conceito tem uma amplitude maior que o tematismo. O conceito não se limita a “figurar
os componentes de uma história a ser contada”. É por isso que o “assunto” da obra não
pode se circunscrever aos aspectos explícitos da forma das figuras, senão aos conceitos
que elas possam conter em termos amplos, isto é, também em termos por vezes
metafóricos, místicos, eruditos e herméticos, inconscientes, mas nunca limitados a uma só
narrativa com interpretação única84.

84
Quem ousou colocar aquela frase tão anti-freudiana na boca de Freud? “A aceitação de processos psíquicos
inconscientes, o reconhecimento da doutrina da resistência e do recalcamento e a consideração da sexualidade e do
complexo de Édipo são os conteúdos principais da psicanálise e os fundamentos de sua teoria, e quem não estiver em
Para conteúdos que envolvem arte afro-brasileira, por outro lado, ainda não se
desenvolveu crítica suficiente para que as elaborações temáticas passassem pelos crivos
de uma classificação mais técnica. Assim, a função, o alcance, os graus de explicitação e
velamento de uma temática aplicada a questões que transmitem conteúdos africanos e
afro-brasileiros na arte ainda não foram devidamente estudados.

Antes de encerrar esse subcapítulo, eu gostaria de mencionar, en passant, exemplos do


que poderia vir a ser alguns “estudos de caso” contemporâneos, em que há o
aparecimento temático na forma de pertencimento afro-brasileiro para o qual a obra tenha
uma certa objetividade, mas que não necessariamente seja explicitada em termos de uma
temática artística afro-brasileira imediata.

Eu me refiro em primeiro lugar a uma experiência performática e a apresentação de obras


apresentadas numa exposição ocorrida há dois meses, em setembro de 2016, inclusive
num cenário fora do circuito artístico (num Centro Cultural de uma cidade pequena),
exposição esta que foi aberta indistintamente ao público local85.

A inusitada abertura desta exposição, com direito a capoeira, velhos e crianças (quem já
viu algo assim em coquetéis aberturas de arte contemporânea?) ocorreu numa pequena
cidade de pouco mais de 100km2, em Minas Gerais, chamada Iguarapé86. A exposição foi

condições de subscrever todos eles não deve figurar entre os psicanalistas. Se foi ele mesmo quem mais auxiliou os
homens a se livrarem de seus fantasmas: Das Unbewusste ist viel moralischer, als das Bewusste wahrhaben will.(o
inconsciente é muito mais moralista do que o consciente quer admitir.) Sejamos nós, pois, psicanalistas e moralistas e
absolvamos completamente Clarival do Prado Valladares e a todos aqueles que defenderam uma “teoria do inconsciente
revelado” para a arte afro-brasileira.
85
Este é outro detalhe que dá acesso a uma potência inteligente para se responder ao problema do elitismo
interpretativo da arte: a noção errônea de que a fruição pertence a uma única classe social que estaria, por
condição de nascimento, “pronta” para assimilar todas as potencialidades artísticas de uma obra.
86
Igarapé (MG) é uma cidade cuja história está intimamente ligada à escravidão e à mineração, porque, na
época da corrida do ouro em direção à Minas Gerais, a região servia de entreposto e “pousada” para os
tropeiros que intercambiavam artigos de subsistência para as zonas mineradoras, aproveitando-se do
trabalho escravo e demarcando a cultura e a herança genética afro-brasileira local. Conhecida como
“Barreiros” no período escravagista do séc. XVII, a partir dos dados do último censo (2010), a cidade tem
uma população estimada hoje em 40 mil habitantes. Numa recente pesquisa sobre a taxa de homicídio de
pessoas negras (atlas da violência - IPEA - 2016) indicava-se que, em 2008, na porcentagem nacional de
todos os óbitos por homicídio, a dos negros girava em torno de 64,55%. Neste mesmo ano, a taxa de
homicídio dos negros em Igarapé foi de 100%. No último período avaliado, ano de 2013, a taxa nacional de
intitulada “Lembrança de Nhô Tim”, com curadoria e exposição de obras do artista visual
Tiago Gualberto (1983)87. Tiago é um artista que cresceu na região e teve a ideia de
utilizar como obra central uma escultura produzida com cimento e terra com tons ferrosos
por causa do minério contido em sua composição. Essa espécie de “escultura mineral” foi
ironicamente elaborada na forma e tamanho de um geladinho ou chup chup.

Fonte: http://lembrancadenhotim.com.br/

A percepção sutil da presença afro-brasileira88 contida na ideia do trabalho “escravo” da


mineração também é contraposta criticamente com o pagamento dado aos assistentes
locais do artista que, juntos, produziram cinco mil objetos no formato deste “incômodo
sorvete”89. Ironicamente, a “elaboração” em série de cinco mil produtos da mineração
podiam ser vendidos pelos próprios produtores ao preço módico de R$ 4, 99, ou podiam
ainda ser guardados para “especulações futuras”. Com a ideia de que uma obra, assim

óbitos por homicídio de negros estava em torno de 68,04% e em igarapé estava em torno de 88,89%. Fontes
(acessadas em Nov.2016):
http://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=313010&search=minas-gerais|igarape
http://www.deepask.com/goes?page=igarape/MG-Assassinatos-de-negros:-Veja-o-numero-e-a-taxa-de-homicidios-da-populacao-que-
se-declara-pardo-ou-preto-do-seu-municipio
http://lembrancadenhotim.com.br/
http://muse.jhu.edu/article/556982
87
https://www.youtube.com/watch?v=g7UmXMPzMU4
88
A exposição ocorreu numa Casa de Cultura da cidade em que, entre as obras de arte, ocorreu uma roda e
batizado de Capoeira do grupo Congo do Vale; a presença do Dj. Gustavo Borges, muito famoso por agitar
festas de periferias locais e um baile de forró com música ao vivo executada por um grupo chamado
Renascer Terceira Idade - abertura regrada com muito chup chup de vodca e crianças tresloucadas quase
que derrubando uma modernista vitrine na qual estava, como uma joia reservada a escultura principal.
89
Antes dessa exposição ocorrer, o artista e curador Emanoel Araujo (1940), com sua conhecida empáfia,
certa vez admoestou Tiago Gualberto, supostamente citando Picasso ao dizer que: “só se torna um verdeiro
artista depois que se produziu cinco mil obras”. Coincidentemente, cinco mil obras foi também o número
de trabalhos utilizados na implantação do Musée Picasso, em Paris (1986), das quarenta e cinco mil que o
artista deixou no mundo ao morrer. (TILLIER, A., 2016, p.100)
como o minério, pode igualmente ser fonte da ambígua noção imediata ou conjectural de
exploração/especulação; comércio/arte; fruição/lucro90.

A forma e o tamanho desse “sorvete artístico” são paradoxalmente “convidativos” para a


exploração tátil, “degustação”, “fruição” ou “desfrute”, bem como a noção de lucro que
envolve toda atividade mineradora, mas, no primeiro caso, sem que se pese algum tipo de
“contaminação” como resíduo final dessa fruição. Os produtores lucram com a matéria;
os especuladores projetam esse “doce” com o lucro e os consumidores se “contaminam”
com o refugo remanescente desse jogo ambíguo e perigoso, que é a mineração, e que é a
arte.

Traçando a mineração como metáfora para arte e como uma resposta intuitiva para esse
jogo, o artista visual Tiago Gualberto planejou fazer ele próprio uma venda simbólica
performática de algumas dessas esculturas resultantes de sua própria “mineração”
artística. O artista visual (como artista igualmente é o poeta), também não seria um
fingidor? Ora, a performance é o alter ego do vendedor-artista. Sua “venda” ou “lucro”,

90
Parte desses objetos seriam vendidos a R$ 4,99 em vendinhas locais com lucro revertido aos donos dos
estabelecimentos; a outra parte estaria disposta em pequenas ilhas na exposição formando triangulações que
remetiam tanto ao topo dos morros das serras mineradoras, ao triângulo da bandeira de Minas Gerais,
quanto o símbolo gráfico pontual do triângulo que representa áreas de mineração na cartografia. O nome da
escultura como “Lembrança de Nhô Tim” traça um vago paralelo com Sir Timothy, um minerador inglês
que teria morado na área hoje ocupada pelo Insituto Inhotim - Centro de arte contemporânea e paisagismo,
que fica em Brumadinho, apenas 13 km de Igarapé e foi criada pelo empresário Bernardo Paz (1949)
também dono da mineradora Itaminas. O pronome de tratamento em inglês “Sir” (“Senhor”), na forma
curta (corruptela por ablação, aférese) pronunciada pelos escravos e serviçais, traduziu-se por “Nhô”, como
em “Nhô Bento” (“Senhor Bento”) e “Nha Chica” (“Sinhá” ou “Senhora Francisca”), próprios da
afro-brasilidade da língua brasileira (MENDONÇA, R., 2012, p.168). Tal como nos revela o próprio portal
virtual do Instituto Inhotim, uma outra hipótese da origem deste nome também se associa à presença negra
na região. Há ainda o relato da viagem do engenheiro inglês James Wells pelo Brasil entre os anos de
1868 e 1886. Em determinado momento, ele relembra uma conversa com um trabalhador negro em uma
estrada próxima à Brumadinho. O linguajar local indica que a palavra Inhotim poderia ser uma corruptela
da expressão usada pelos escravos para dizer sim senhor: “N’hor sim”. A existência de seis comunidades
quilombolas no município de Brumadinho, quatro delas reconhecidas pela Fundação Palmares, reforça a
hipótese. (ver: http://www.inhotim.org.br/blog/origem-nome-inhotim/). Como uma coincidência trágica, o
artista elaborou este projeto em 2014, mas foi finalista do concurso da edição 2015, recebendo a “Bolsa
Funarte de Fomento aos Artistas e Produtores Negros”; a elaboração do projeto ocorreu um ano antes do
maior desastre socioambiental do mundo provocado pelo rompimento da barragem da mineradora Samarco
em Mariana (também em Minas Gerais). Após a ocorrência do desastre, mesmo que sua obra não tenha
ligação direta com esse acidente terrível, seria impossível não a associar a qualquer crise ou impacto
provocados pela mineração em qualquer parte do globo, o que dá, ademais, uma universalização do seu
objeto de arte (essa questão da universalização da arte foi discutida na comunicação da Professora Lisy
Salum, no evento da Pinacoteca sobre Arte Afro-Brasileira, o qual será referido mais abaixo).
assim como o possível “ágio” ou “deságio” da especulação futura ou mesmo a ausência
de clientela são ambiguamente sua vitória-derrota nesse jogo artístico-comercial.

http://lembrancadenhotim.com.br/

Vestindo o destino monocromático de seus conterrâneos mineiros, suas roupas, o cartaz


que monotonamente empunha, os objetos em exposição de frente ao “trabalhador” que
vende um “minério” (e do artista que expõe e performa) são pigmentos invariáveis,
constantes e uniformes - dir-se-ia que o artista também é minério à venda, e vale R$4,99!
Aliás, literalmente, a roupa uniformizada daqueles que empunham o plantio de seu
trabalho braçal em quaisquer zonas urbanas são evocadas nesses matizes de longe
reconhecíveis: o presidiário, o gari, a empregada doméstica; são tão a “outra pele” deles,
como a pele mesma dos mineradores tendem para esse ocre avermelhado - uma marca,
um destino inescapável.

Os pigmentos que se desviam para esse tom de minério tão abundante tornam-se os tons
artificiais naturalizados do cotidiano. Assim, o “tom sobre tom” da roupa do artista
convertem-se na forma do desagravo aos múltiplos verdes fabricados no paisagismo do
“Instituto de Arte Contemporânea”, igualmente fruto da mineração, tão próximo, mas
também tão falsamente alheio à monocromática e perturbadora cor local prevalecente.
As apreensões da cor, o espectro vermelho terroso que abundam em todos os objetos da
exposição não ressaltam só a hiperabundância do minério sobre a vida da população local,
mas esse “vermelho” estridente se sobrepõe ainda aos tons de “preto” de fundo, como que
numa conversa pictórica entre a própria noção da terra como base da plástica, enquanto
um “magma”, os veios sedentos residuais da mineração escorrem feito um suor pelo
esforço lancinante de sobrevida da terra, numa palavra: na abertura sanguínea dos
“caminhos”.

Fonte: http://lembrancadenhotim.com.br/projeto/

Eis o ponto de fusão inteligente entre a forma plástica e o pensamento de que vimos
tratando. Uma evidência artística que não serve de arremedo teorico-plástico nem de
politização vazia. Ao contrário, neste trabalho, Tiago se apresenta como um dos artistas
que estão imbuídos tanto da questão crucial da presença da população negra de
Igarapé/Brumadinho e vizinhanças (ambos, como experiência populacional de uma época
- a escravidão -, e de um local - um entreposto histórico de mineração) quanto da força
plástica que tem seu trabalho artístico. O que ele cria sobre o fato é a explicitação de uma
humanidade que está “sufocada” pelo resíduo minerador; e que são remanescentes de um
outro tipo de quilombismo, porque, enquanto os quilombolas de um certo passado fugiam
para a conquista de uma certa liberdade, os de hoje, estão apegados demais à viscosidade
que a lavra produz - assim, grudados na impregnação contaminante do minério, eles não
tem para onde fugir. A arte de Tiago Gualberto capta essa amargurosa sina e toda
resiliência humana envolvida, por meio da substituição do abstrato artificialismo do
paisagismo atenuante (ecofraudulento) de Inhotim (porque de um impacto ambiental
irreversível) pelo concreto elemento mineral ferroso misturado ao duro e roliço cimento
da escultura chup chup.

Na edição de julho de 2014 da Revista O menelick 2º Ato os artistas plásticos Renata


Felinto e Alexandre bispo comentam com segurança sobre algumas obras de Tiago:

Gualberto coloca sua própria experiência em jogo articulando-a de modo imaginativo e


inteligente com a história do Brasil. Em seu site lemos: ‘Tiago Gualberto, em pesquisa
sobre sua própria identidade, atravessa a memória do negro e o processo de
miscigenação experimentado em nosso país’. Em sua obra figuram instalações e objetos
e não parece haver predileções quanto aos materiais utilizados, a principio lhe
interessam caixas de fósforo, coadores de café descartáveis, lâmpadas queimadas,
reproduções de fotografias. Por sua vez uma técnica expressiva recorrente em sua
produção é a gravura, meio pelo qual ele cria, ou reelabora diferentes interpretações de
ícones da arte brasileira. (BISPO, Alexandre & FELINTO, Renata, 2014).

Como segundo exemplo, destes “estudos de caso” em que artistas visuais de origem
afro-brasileira que produzem arte sem o apelo de conteúdo ou qualificativos imediatos
como o “afro” em suas obras de arte, está o artista plástico baiano atuante em Porto
Alegre, Rommulo Vieria Conceição (1968)91. Em suas poéticas o artista elabora uma
intrigante teoria da composição que se aproxima de um desdobramento crítico do site
specific em que a construção espacial, por mais que tenha um apelo construtivista,
redunda numa impossibilidade ou numa desfragmentação do código geométrico.

91
Atualmente um doutorando em poéticas visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, foi
finalista http://rommulo.com/
Estruturas Dissipativas/Gangorras, 2013
Fonte: http://rommulo.com/

O artista demonstra interesse na ambientação problemática de interiores e no


geometrismo aparentemente “bem resolvido” contido nos parques de jardim infantis. E,
de fato, absolutamente todos os brinquedos de playground possuem um geometrismo e ao
mesmo tempo criativo e com ocupação espacial atraente, mesmo que num design
modernista com cores kitsch92. Contrapostas a essa aparente “atração” que os corpos
construtivos adquirem no espaço estão as suas chamadas “estruturas dissipativas” (obras
de 2013) feitas em materiais diversos tais como madeira tipo mdf, metais, vidro em
vibrante pintura automotiva) etc., que vão ao encontro da noção desfragmentação
construtiva por causa da negação que fazem da coerência espacial: gangorras de
movimentação impossível, grades de cerca que bloqueiam a travessia da barra de ferro do
brinquedo infantil, banco “de praça” semelhante aos bancos do Museu Afro Brasil, que
são ao mesmo tempo um convite para se sentar mesclado com sua impossibilidade parcial
já que, no caso da obra de Rommulo, um muro de tijolos avança sobre ele... O paradoxo
do espaço, enquanto uma forma de aporia (termo que vem do grego Ἀπορία, onde
“aporos” = “sem poros” - intransponível, intransitável, que não pode passar pelos poros,
que não pode vazar)93 foi muito discutida na arte contemporânea, mas já existia em

92
O resultado de uma simples busca do termo “playground” no google prova isso:
https://www.google.com.br/search?q=playground&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwiPoprc1czRAhVNPJAKHQwEBd0Q_AUI
CSgC&biw=1366&bih=613
93
Daí é interessante reforçar o mal uso que se faz do termo grego “diáspora” (dia= através; pora= poros; ou “passar
através dos poros”, “transpor”, “transitar”, “vazar”) que remete à saída (ou dispersão) forçada e degredo dos judeus do
termos conceituais desde a filosofia grega desde Zenão de Eléia (464/461 a.C)94. Seus
fundamentos podem ainda ser encontrados tanto na sociologia95, na ideia do espaço
público convertido no silêncio contraditório da modernidade, quanto na física
contemporânea96, na qual o espaço bidimensional é “invadido” por um espaço muito mais

Império Romano depois da destruição de Jerusalem (70 a.C) e sua consequente distribuição pelos países do mundo - a
chamada “diáspora judaica”. Não se aplica corretamente aos negros; de modo que, diáspora negra, seria só um termo
emprestado cuja significação hoje, tomada dos intelectuais norte-americanos, significaria “negros fora da África,
especialmente nas Américas depois da escravidão”. A maior prova de que o termo é mal posto é o fato de que não se
fala em “diáspora africana na China”, embora haja muitos estudantes aristocratas e da burguesia africana estudando
hoje lá, principalmente depois do estreitamento de relações comerciais entre países africanos e a China. Quando se fala
em diáspora africana se remete imediatamente apenas às influências culturais africanas nas Américas; diferentemente
da diáspora judaica que, salvo engano, não há país urbanizado no mundo sem um único judeu. É nesse sentido que,
mesmo eu não sendo historiador eu só considero que há uma única diáspora, a judaica, e a ocorrida a partir do ano
70d.C. Tudo bem que o termo foi primeiramente utilizado na Grécia antiga para designar a colonização grega da Ásia
Menor que facilitou o helenismo, contudo, tanto o mundo grego antigo se dissipou em alguns pares de séculos quanto o
mundo hebraico antigo se quis, por ideologia, ser o mesmo em muitos e muitos séculos o mundo judaico reformado em
multiplas tendências, ainda que sem um Estado Nacional que garantisse alguma unidade política; por isso esse conceito
é somente válido para designar a expansão mundial dos Judeus e não quaisquer migrações, mesmo destes, pois na sua
história, não foram apenas duas ou três, como apontam ser o número de diásporas, foram centenas de migrações e,
obviamente, não há centenas de diásporas. Em resumo, “migrações” são conceitualmente tão diferentes de “diásporas”,
quanto exílio e degredo são diferentes de “sequestro seguido de escravidão”; assim, aqueles que quiseram utilizar o
termo indistintamente para negros e judeus, associando a desgraça de um com a desgraça de outro, para uni-los como os
“outros” submetidos aos europeus e seus descendentes, reforçaram essa ideologia.
94
Zenão é o considerado o criador da disputa de ideias, ou “dialética” (chamada erística), discípulo de Parmênides
(530-460a.C), ele defendeu a tese da “imutabilidade do ser”: o movimento no espaço existe, mas não possui verdade
porque ele é contraditório em relação ao ser. Como diria seu mestre: “O que está fora do ser não é ser; e só de uma
maneira se chama o ser; um, portanto, é o ser” (SIMPLÍCIO, Física, 115, 11 - DK 28 A 28 - In: PESSANHA, J.A.M.,
1996, p. 119). O que esses filósofos chamados eleatas defendiam é o seguinte: pense em todas as coisas que existem no
universo, sem excluir nada; este seria o “Ser”, “único”, “imutável” e “imóvel. Se pudéssemos retirar esse “ser” não nos
restaria o movimento, não nos restaria nada. Assim, se o “ser” é, ele é uno, igual a si mesmo, não permitindo a ideia de
movimento. O movimento não tem ser, ele é não-verdadeiro, ele é paradoxal. Em sua dialética, Zenão expõe quatro
argumentos para fazer prova contra a pluralidade, mutabilidade e movimento das coisas. Num desses argumentos,
Zenão imagina um arqueiro lançando uma flecha num estádio e, para provar que a flecha nunca atingirá “realmente” o
alvo, porque ela está parada, diz ele que para a flecha alcançar o alvo ela teria de percorrer metade da distância que a
separa deste alvo, e depois, metade da metade dessa mesma distância e depois ainda, a metade da metade dessa
distância, até ao infinito...nunca chagando a atingir “verdadeiramente” o alvo. “O argumento ‘da flecha’, por exemplo,
mostra que a flecha em movimento na realidade está parada(...) cada um dos instantes em que é divisível o tempo do
voo é formado de espaços idênticos ocupados pela flecha; logo, se esses espaços são idênticos a si, estão em repouso,
portanto, a flecha em repouso em cada um dos instantes está também em repouso na totalidade dos instantes. Nisso
reside a contradição. (PAVIANI, J. 2001, p.27). Kant, Espinosa e Leibniz se debruçaram sobre o problema e, como
disse Hegel em 1805: Zenons Dialektik der Materie ist bis auf den heutigen Tag unwiderlegt. Tadução: “a dialética da
matéria de Zenão não foi até hoje refutada” (Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie - “Preleções Sobre a
História da Filosofia, pp.295-318; In: PESSANHA, J.A.M., 1996, p.150). Envolvido com política, depois de conspirar
contra a tirania de Nearco (?) Zenon foi preso e, como não entregou seus companheiros, foi morto sob tortura.
95
É possível fazer várias menções de casos nesse sentido, (“aniquilação espaço-temporal” HARVEY, D., 1994, p.257
e ss.), (“ansiedade da perda da realidade como alucinógena e intoxicante” JAMESON, F., 1996, p.54) etc., mesmo que
não se refiram diretamente ao trabalho de Rommulo, referem-se a uma mesma prática contemporânea. Então eu
gostaria de citar pelo menos uma prática artística contemporânea que apresenta essa “aporia espacial” que é o trabalho
do artista plástico alemão Andreas Siekman (1961) que confronta as categorias do espaço-tempo, entendidos
criticamente aqui como espaço público privatizado e tempo corporativo cronometrado.
http://www.ppgav.eba.ufrj.br/wp-content/uploads/2014/01/ae26_entrevistaal.pdf
96
Esse é um tema que me é caro pelos meus interesses em astrofísica, mas trarei um exemplo dentro das ciências
humanas com texto de 1937 de Gaston Bachelard (1884-1962) Experiência do espaço na física contemporânea, em que,
atônito, mostra as consequências do abandono das teorias que chamamos “pre-relativistas” da mecânica em que não
havia uma “interdição a certas grandezas” da física. Segundo Bachelard, a descoberta da física quântica mudou não
apenas o nosso modo de conhecer as coisas, mas o nosso entendimento do espaço. Na mecânica clássica havia um
complexo e não se restringe a essas dimensões da percepção habitual - surge aí o
pluriverso e a ambivalência da superposição de vetores espaciais.

As cores gritantes e violentas dos brinquedos se apoiam na mesma esperança de atração


que eles carregam em si, o universo agradável do espaço euclideano. Mas tanto sabemos
que essa é uma tática artística e uma conquista da poética de Rommulo que é quase
irresistível não nos lembrarmos daquela crítica a Estevão Silva que faz Emanoel Araújo,
remetendo ao que disse Gonzaga Duque sobre o pintor acadêmico das “cores excessivas”,
citação que repito aqui por mera satisfação cínica (em sentido grego) devolvendo a
brincadeira do “impasse espacial” numas “ana-crônicas textuais” - porque os textos e
contextos também se adensaram na arte literária da contemporaneidade:

Estevão Silva não toma o negro por tema ou modelo, atendo-se, ao contrário, a uma
temática tradicional, sobretudo pelo gênero em que se especializa, a natureza-morta. E,
nos cânones do gênero, falta-lhe a princípio o que se considera o bom gosto da
composição e a harmonia do todo. Mesmo isso, no entanto, seu extraordinário esforço
pessoal lhe permite conquistar. Mas é sobretudo pela marca característica de suas telas
que sua obra permanece viva: a exuberância de sua cor, o colorido quente e intenso que
imprime aos seus frutos, sem meias tintas e esbatimentos, esse tom pesado e violento que
dá a cada quadro um aspecto de rude, como constata Gonzaga Duque97, é precisamente
o que, longe de constituir um defeito, prova de modo inegável a individualidade de um
estilo [em itálico no original], que o artista abraça como uma conquista pessoal.
(ARAUJO, E., 2000, Negro de Corpo e Alma, p.52).
Na verdade o que faz Rommulo é deslocar a ênfase dos objetos para referir-se ao espaço,
que é parcialmente suprimido num ponto gravitacional específico causando o que
Einstein chamava de deformação espaço-temporal98; mescla-se objetos que outrora
habitavam espaços com distâncias constantes e regulares e que tornavam o nosso mundo
“conhecimento ingênuo do espaço” (BACHELAR, G., 1937, p. 01) a fusão de plano sobre plano no “Nowhere’s land”
da música “Nowhere Man” dos Beatles no filme Submarino Amarelo. https://www.youtube.com/watch?v=MzGELPvlQDc
97
Gonzaga duque (1863-1911), o primeiro crítico de arte “afro-Brasileira” foi quem disse que eram
“rudes”as cores das telas de Estevão Silva, havendo uma prodigalidade de vermelhos, de amarellos e
verdes (...)e disse ainda que: quem vem de rude raça opprimida (...) vê sempre deseperadamente amarello
(GONZAGA-DUQUE, 1929, P. 97-98). Ainda que o crítico tenha morrido aos 48 anos, muitos anos an,
98
https://www.youtube.com/watch?v=l-BVkHRLPfo
seguro e que nos dava uma falsa intuição de que “tudo está nos seus devidos lugares”.
Porém, quando um objeto de grande massa ocupa um espaço ocasiona-se uma
deformação no espaço-tempo permitindo até que se enxergue algo que está atrás do
objeto99. Não é mágica, não é um paradoxo puro, trata-se da física moderna. Não há mais
tantos cheios quanto espaços vazios nessa mesa em que escrevo, não há mais matéria
visível que matéria escura no universo. Habitar ou compor artisticamente um espaço
jamais seria o mesmo daqui por diante.

Já o trabalho de escultura de Sidney Amaral (1973) se relaciona com outro tipo de


problemática, reitera-se questões de ordem pessoais e temáticas da vida urbana
contemporânea que incluem também o “enobrecimento” de coisas cotidianas pelo uso do
bronze. Sidney cria na escultura uma horizontalidade entre os materiais nobres e objetos
da vida do dia-a-dia.…o trabalho com bronze, mármore cria uma espécie de
transcendência levando as pessoas para um outro mundo, mas que toma esse mundo
mesmo como base: um rolo de pintar paredes, um extintor, etc. O trabalho de suas
pinturas lida com inquietações semelhantes, mas de maneira diferente.

Nas pinturas aparecem com força temas como o problema da identidade masculina do
homem, perdida na contemporaneidade, que, até aonde eu saiba, em contraponto com o
feminismo negro de Rosana Paulino, Sidney Amaral é o único artista a tratar dessa
questão. Além disso, aparece ainda o tema do corpo negro, referenciado com frequência
pelo corpo do próprio artista, em “autorretratos” em que ele se coloca em situações de
impasse, embaraço e em alguns casos de violência.
Numa entrevista pessoal em áudio que eu fiz com o artista para a revista norte
americana Calaloo em 2013100, ele me falou de algumas pinturas que estava produzindo

99
https://www.youtube.com/watch?v=8JCKfm_oguE
100
Um resumo da entrevista que eu fiz com Sidney Amaral em 2013, pode ser lido aqui
https://muse.jhu.edu/article/556973/pdf. Embora, como eu não tenho rabo preso com ninguém, eu não
posso deixar de fazer referência à falta de profissionalismo e excesso de desrespeito que algumas dessas
revistas que se arrogam “defensora dos direitos dos negros”, possuem, pois eu fiz a entrevista (que eu
mesmo transcrevi e traduzi para o Inglês num total de 21 páginas) a convite e a pedido direto do fundador
da revista Sr. Charles Rowell, e que eles não se deram ao luxo de mencionar meu nome na publicação (bela
bosta!Claro, mas imaginem... eles fizeram isso mesmo tirando muitos dos encaminhamentos do artigo a
partir de minhas próprias conclusões pessoais a respeito do trabalho do Sidney. Pra acrescentar, eu estou até
naquele período. Quando falava de “Os Quatro Cantos do Mundo” [aparentemente
re-intitulado posteriormente como “Meu Canto pelo Mundo”, ou talvez só um engano no
momento da gravação, mas como sou freudiano eu jamais perco uma só fagulha
inconsciente :)] Sidney descreveu como dava a questão da sua própria negritude em seu
trabalho e como, de forma também indireta e inteligente lidava com questões do
tematismo negro, sem cair em respostas fáceis de pouca criatividade.

Sidney Amaral - Meu canto para o Mundo


Aquarela e lápis sobre papel
https://www.flickr.com/photos/sidney_amaral/8703488257

Aqui estão os “Quatro Cantos do Mundo” em que transformo a “Gargalheira”. Esta


é a profissão que as pessoas geralmente associam aos descendentes afro-brasileiros, né?
Ou eles são jogadores de futebol ou cantores. Ele é um artista! [Sidney aponta para a
representação de si] (Risos) e então eu coloco esses quatro microfones ... Ele está lá com

hoje 11 de dezembro de 2016, aguardando um mero exemplar da revista como pagamento do imenso
trabalho que fiz para eles gratuitamente. Outra revista norte-americana cujo título também me parece
apenas um cacoete malversado chama-se Critical Interventions: journal of african art History and Visual
culture, cujo o igualmente fundador e editor, o Sr. Sylvester Okwunodu Ogbechie, a quem agradeci
pessoalmente pelas correções que fez do meu mal inglês, fez questão de censurar uma crítica à
desigualdade salarial que fiz ao Museu Afro Brasil.http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/19301944.2015.1111581.
Mas que podem ser lidas parcialmente em SILVA, Renato Araujo da. Escritos Afro-Brasileiros. São Paulo:
Ferreavox, 2016. Eu male-male traduzi cinco textos para essa edição da revista. Mas, como nenhuma das
revistas me pagaram um centavo pelo trabalho (a Juliana, coitada, que pagou literalmente o pato, me dando
um dinheiro que eu precisava tanto na época, pela tradução de dois dos textos publicados). Eu fiquei
pensando no eterno solilóquio que eu faço sobre as pessoas, quantas edições eles não devem ter feito às
custas dos outros? Ah, como é fácil editar revistas desse modo... enquanto temos escravos intelectuais
inteiramente a nosso dispor! Shame on you! Y’all new-new Marsters! You will never know the meaning of
critical interventions neither the real flavor of the kallaloo.
uma cara séria, ele não está cantando nada. A “gargalheira” continua sobre os
estereótipos colocados sobre ele. (ARAUJO, R.A., 2013 - depoimento em áudio).

Eu o indaguei, em seguida, dizendo que:


“A questão afro-brasileira aparece muito em suas obras, mas não é superficial
ou algo tão direto. Não há imediatismo. Você trabalha com a questão racial como
uma questão de identidade? ”
No que ele me respondeu:
Primeiro, porque sou negro. Então eu preciso trabalhar nisso. Quando faço um
autorretrato, estou falando
Sobre a cor da minha pele. E tudo isso está me afligindo de alguma forma nesta
sociedade. Então, ele acaba permeando, aparecendo no meu trabalho de alguma forma.
“Seu trabalho está ligado à ideia de identidade, mas o autorretrato é a mesma
identidade também? Quer dizer, você acha que quando você faz um autorretrato
você está mostrando essa identidade negra?
Também. Tenho de mostrar essa identidade negra porque eu sou negro. Não há
maneira de não dizer isso. Embora este problema neste país seja um pouco escondido.
(...)

É sobretudo nos trabalhos mais recentes, digamos dos últimos 5 ou 6 anos que é possível
encontrar uma ponte entre as questões enfrentadas por negros em geral, com as questões
retratadas por ele enquanto artista negro. Mas de forma alguma considero possível reduzir
a obra de Sidney ao conteúdo “afro-brasileiro”, principalmente por conta da sua liberdade
criativa e variação, mesmo que seja em temas aproximados.

Seria demasiadamente óbvio e desnecessário dizer que os negros artistas ou


afrodescendentes em geral com reconhecimento nacional e internacional tais como Bispo
do Rosário (Bienal de Veneza, 1995); Emanoel Araujo (medalha de ouro na 3ª Bienal
Gráfica de Florença, Itália, 1972.); Octávio Araújo (que só não ganhou prêmio
internacional porque ganhou bolsa pra estudar na Academia de Artes da União Soviética
e morou em Moscou por 8 anos, casando-se com uma russa); Rubem Valentim (que
também morou em Roma entre 1963 e 1966 depois de ganhar o prêmio viagem ao
exterior, obtido no Salão Nacional de Arte Moderna - SNAM), etc., conquistaram esse
“posto” antes de adquirirem a determinação de “artistas afro-brasileiros” a despeito do
reconhecimento por vezes da cor de suas peles. Na história de vida dos artistas
afrodescendentes de sucesso, a cor da pele, no mais das vezes foi forçosamente tratada
como secundária ou empurrada para debaixo do tapete do racismo dito “sutil”.

Foi, como dizem, a força de suas obras e o momento histórico em que eles as elaboraram
os determinantes principais da excelência deles enquanto artistas. Talvez por isso também
que um número de artistas contemporâneos brasileiros, ainda que se definam como
afrodescendentes, não querem ser inclusos no circuito dos “artistas afro-brasileiros” ou
dos artistas que produzem a “arte afro-brasileira”. O depoimento da Magliani em
entrevista, é exemplar nesse sentido, quando perguntada sobre o assunto a (in)definnição
da artista foi contundente:

(...)então, eu não entendo muito essa necessidade de gavetinha, entendeu? Eu não


entendo. Eu sempre achei esquisitíssimo quando põe fulano de tal: ‘Artista Negro’. Eu
não sou artista negra ... eu sou artista plástica. Aliás, eu não gosto ... Artista plástico
virou um balaio onde cabe tudo. Eu sou pintora. Não, mas na verdade, hoje em dia, todo
mundo é artista plástico. É uma coisa impressionante. Não existe isso de, por exemplo,
alguém te chama de pesquisadora branca? No jornal nunca sai: ‘Pesquisadora branca’;
‘exploradora branca’. Não sai! E, às vezes, fica bastante engraçado quando tu vês a
coisa, por exemplo, no jornal, uma legenda. Já está lá, o cara azul de preto e põe em
baixo: Fulano de tal, artista negro. Está na cara a cor, que a cor dele é esta. Não precisa
acentuar a coisa. Eu acho que existe uma necessidade muito grande de se separar em
escaninhos. Parece que a gente não consegue se entender se não se botar cada um em
sua gavetinha, sabe? (SILVA, G.F. da.et al.(Orgs.) Rio Grande do Sul Negro:
cartografias sobre a produção do conhecimento. Porto Alegre: Ed. PUC-RS, 2008.
pp.149-50). Ou quando o artista Leandro Machado (1970) (também citado em
CONDURU, 2007) diz em entrevista: Acredita na categorização da arte
afro-brasileira? Me parecem tão perigosas estas categorizações, estes encaixotamentos
da arte e dos artistas [ ou do quer que se trate]. Por correr o risco de reduzirem uma
complexidade de informações, questionamentos, sentidos, vivências a uma única
possibilidade. (MENDES, Z.B, 2013, p.27)

Por outro lado, o mesmo Rubem Valentim (1922-1991) que estudou na Itália, abre o seu
“Manifesto ainda que Tardio - depoimentos redundantes, oportunos e necessários” (1976)
com palavras que podem ser esclarecedoras de sua (in)definição: “minha linguagem
plástico-visual-signográfica está ligada aos valores míticos profundos de uma cultura
afro-brasileira (mestiça-animista-fetichista). Com o peso da Bahia sobre mim - a cultura
vivenciada; com o sangue negro nas veias - o atavismo; com os olhos abertos para o que
se faz no mundo a contemporaneidade; criando os meus signos-símbolos, procuro
transformar em linguagem visual o mundo encantado, mágico, provavelmente místico
que flui continuamente dentro de mim (...). Partindo desses dados pessoais e regionais,
busco uma linguagem poética, contemporânea, universal, para expressar-me
plasticamente. Um caminho voltado para a realidade cultural profunda do Brasil - para
suas raízes - mas sem desconhecer ou ignorar tudo o que se faz no mundo. Sendo isso por
certo impossível com os meios de comunicação de que já dispomos, é um caminho, a
difícil via para a criação de uma autêntica linguagem brasileira de arte. Linguagem
plástico-vérbico-visual-sonora. Linguagem pluri-sensorial: O sentir Brasileiro.
(ARAUJO, E., Herdeiros da Noite, 1996)

A tentativa de um certo universalismo me parece imprescindível a todo artista ligado a


questões culturais nacionais, uma vez que os museus de arte se universalizaram muito
mais rapidamente que os artistas conseguiram sedimentar socialmente toda força
nacionalista prometida pelo modernismo. Ainda assim, essa força, a trancos e barrancos
se mantém. Basta nos referirmos aos princípios que regem o brasil do ponto de vista do
exterior que se verá que estes princípios são ainda em grande parte afro-brasileiros:
samba, “futebol”, mulata, caipirinha, feijoada, Rio de janeiro, Salvador, Frevo
Pernambucano ou a malandragem carioca...” Nada que passe nem de perto a
tradicionalismos sulistas, paulistano, Centro Oeste, Amazônia etc...Estamos falando do
Brasil e, como eu digo, Brasil, strictly speaking, começa do Rio de Janeiro pra cima.
Se será possível que os chamados “dados pessoais e regionais” evocados por Rubem
Valentim possam por si mesmo serem universalizados sem que haja violência cultural,
essa poderá ser a grande chance de inclusão da arte afro-brasileira e brasileira num
circuito maior, em que estas não sejam classificadas numa chave de tropicalidade
amenizadora, mas sim num tropicalismo considerado, talvez, necessário ao mundo.
Sem querer me alongar, eu resumo as (in)definições concluindo que quando a
problemática da arte afro-brasileira esteve restrita a problemáticas como as inclusões e
exclusões das cores da pele, ela acabou por restringir também a arte a propósitos que
extrapolam as suas fronteiras. Isso tudo não seria problemático se os artistas negros e os
relacionados à africanidade de algum modo não estivessem tão interessados nessas ondas
institucionais de valorização do negro, em uma universalização e fama de suas obras,
quanto estão de surfar na possibilidade dessa universalização mesma pela via das
relativamente grandes “oportunidades de negócios para negros e afins”.

Mas mesmo o modelo de D’Salete, o mais inclusivista de todos, mantém a exclusão


lógica dos artistas considerados brancos que não se utilizam da temática negra, fazendo
da arte afro-brasileira, uma sala com uma porta estreita para artistas brancos e larga para
artistas negros e mestiços. Os brancos artistas, assim, poderiam a qualquer momento
deixar de se regionalizar dentro desse grande guarda-sol afro e se “universalizar” dentro
do cosmopolitismo do tipo de Rubem Valentim, tornando-se apenas “artistas
afro-brasileiros que fazem arte” ou que se espelhassem nesta cultura considerando-a ou
não um fundamento da cultura brasileira, mas certamente se desvencilhando de uma
montanha de preconceitos e dificuldades teóricas impostas não pela arte mesma (a arte
está bem acima disso), mas por nós que as teorizamos, nessa espécie de sopa que é esse
assunto de tão fluido, não se deixa materializar.

Já o negro artista, tomado pelo sonho de uma maior liberdade no campo necessário (ouso
dizer, até mesmo confusamente obrigatório do ponto de vista ético) de respeito e honra
aos ancestrais, limita-se a politização para poder evocar com grande fôlego o seu
obrigatório: Axé!101.

101
Não quero perder a oportunidade de me aproveitar de uma nota de rodapé de Marcelo D’Salete que,
apoioado em Jorge Coli [CITAR] nos lembra o quão aberta é a arte. Diz ele: A preocupação em definir os
limites para o conceito de arte afro-brasileira, pelo que vimos, é constante nesses trabalhos. Embora se
tenha avançado nesse sentido, e talvez estejamos próximos de uma definição mais concisa para o termo, é
importante fazer mais alguns questionamentos. O estudo de Jorge Coli, O que é Arte? (1981), procurando
uma definição sobre arte na sociedade ocidental, define que é de suma importância compreender que arte
não é um objeto fechado em si, mas um fenômeno que faz parte de um sistema que lhe atribui significados.
“A arte instala-se em nosso mundo por meio do aparato cultural que envolve os objetos: o discurso, o local,
as atitudes de admiração, etc.” (COLI, 1981, p. 12). A obra de arte depende do artista, do crítico, do
curador, do marchand, da instituição museológica e do público para que possa ser definida como tal. Esse
circuito, sempre repleto de tensões, é responsável por lhe conferir o estatuto de arte. Desse modo, talvez o
uso desses dispositivos possa ajudar também na definição da arte afro-brasileira. (SOUZA, M. de Salete,
2009, nota 14. p. 33)
PARTE III

Arte e seus Artistas


A Sina dos Artistas Afro-brasileiros

Em 1951:

"Um dia, no ateliê, perdi a cabeça. Rasguei os cadernos de desenho, destruí todos os
meus estudos, as telas, esvaziei os tubos de tinta, despejei os óleos de linhaça, os
solventes, quebrei o cavalete e os pincéis a marteladas. Saí do ateliê, deixando atrás de
mim parte de minha vida assassinada. Perambulei com dor na alma, odiando pela
primeira vez a terra que amo, cheio de raiva contra uma sociedade em decadência e
medíocre. Foram quinze dias de purgatório, durante os quais me perdi nas ruas de
Salvador. Um dia acordei tranqüilo. Reencontrei o verde das árvores, ouvi de novo o
canto dos passarinhos, voltei a amar o azul da Bahia. A pé, tomei o caminho de volta ao
ateliê. Senti então uma tristeza amarga, chorei de saudade dos meus trabalhos destruídos.
E novamente aceitei meu destino. Com 50 cruzeiros dados por um irmão, comprei
material de pintura. Voltei a pintar."
(Depoimento de Rubem Valentim que ganhou uma
Sala Especial na XXIIIa. Bienal Internacional de São Paulo, 1996)
http://www.23bienal.org.br/especial/peva.htm

É interessante imaginar quem seriam os primeiros artistas afro-brasileiros. Seriam eles


alguns artistas escravizados que tivessem produzido ainda no cativeiro alguma escultura
decorativa e/ou objeto de culto? Seriam eles os poucos negros artistas livres que ainda no
período da escravidão conseguiram se inserir no circuito das artes plásticas em geral?102

Carlos Lemos (ARAUJO, 1996, p. 38) nos lembra que os santos de “nó-de-pinho” do séc.
XVIII devem ser entendidos como produzido por “artistas escravos”. A influência
artística de tipo banta em regiões como São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, de fato,
ainda não foram totalmente exploradas neste tema das artes. É sabido que o Reino do

102
Escrevendo em fins do século xix sobre o pintor Manuel Dias de Oliveira, cognominado o Brasiliense
ou o Romano, o historiador António da Cunha Barbosa o diz ‘escravo como em geral foram escravos todos
aqueles que naquela época se dedicavam às artes (1898). Devemos entender essa sua afirmação ao pé da
letra ou terá nela entrado um teor de generalização incompatível com a verdade dos fatos? De qualquer
modo, é sabido que dos escravos ou filhos de escravos - e por conseguinte negros, pardos ou mulatos -
foram numero-síssimos os que, no período colonial, se consagraram no Brasil às artes e aos ofícios, muito
chegando a galgar, através dessa prática, patamares mais elevados do edifícil social (José Roberto
Teixeira Leite in: ARAUJO, 2010, p.25). Fica evidente pela quantidade relativa de informações históricas a
respeito desse pintor, que a dúvida quanto a sua herança genética negra tem mais a ver com o volume de
seus grandes feitos para o período do que com a impossibilidade de tê-los feito. Sabemos pela historiografia
mais recente que penetração social de negros e sobretudo de mulatos durante a escravidão foi maior do que
a historiografia mais antiga identificou.
Kongo (que englobava parte dos atuais países da República Democrática do Congo e da
Angola) já era um reino cristianizado pelo menos 15 a 9 anos antes dos portugueses
pisarem pela primeira vez no Brasil (é de 1885 a data da conversão e 1891, a data do
batismo do primeiro rei do Kongo Nzinga a Nkuwu)103 e isso ocorreu até 45 anos antes
da chegada ao Brasil do primeiro escravo advindo dessa mesma região em cerca de 1530.
A elaboração de esculturas de madeira como os Nkissi (plural: Minkissi) e sobretudo a
adoração da escultura de madeira de Santo Antônio de Pádua, que era igualmente
cultuado como “santo casamenteiro” com uso de iconografia e ritos semelhantes tanto em
Portugal, Brasil e Reino do Congo até o séc. XIX, estão no centro de toda discussão
escultórica negra banto-brasileira em períodos que corresponderam e se sobrepuseram ao
período barroco no Brasil.

Mas, eu me questiono, e antes desse período, antes mesmo da formulação do barroco


brasileiro, que espécies de “artistas” poder-se-ia supor existir no país nas viradas dos
séculos xvi, xvii? Talvez possa, em algum momento, a historiografia da “civilização do
açúcar” no nordeste brasileiro (enquanto primeira experiência bem-sucedida depois da
chegada dos portugueses a fixar cultura em larga escala no país), quiçá identificar em
termos plásticos, aquilo que pôde identificar em termos musicais, folclóricos,
coreográficos etc. Muito poderia surgir do estudo do surgimento da plástica das mãos
afro-brasileiras pelas vias decentralizadas, não-institucionais ou distantes dos grandes
circuitos, pois eis uma das sinas profundas dos artistas afro-brasileiros: a sua insipiência
nos grandes circuitos esconde sua presença nos circuitos médios e pequenos de arte.
Antes disso, os artistas desse passado inóspito para com os registros, não passarão de
anônimos cujas sinas mal possam ser totalmente medidas, embora certamente intuídas.

103
Para uma atualização dos estudos sobre a arte cristã congolesa dos sécs. XV-XIX veja: LaGamma,
Alisa. Kongo: power and Majesty. New York: The Metropolitan Museum of Art, New Haven : Yale
University Press, 2015.
Anônimos - Santos de Nó de Pinho, Vale do Paraíba - SP
Sécs. XVIII -XIX
(ARAUJO, E., 2002, 114-5)

Santo Antônio de Pádua séc. XVI-XIX


(Pingente em metal)
Reino do Congo-Angola / 10.2 cm10.2 cm
(LaGamma, A. 2015)
http://www.metmuseum.org/art/collection/search/318317

Santo Antônio
Mogi das Cruzes
Santeiro: José Benedito da Cruz (1919)
(ETZEL, E., Imagem Sacra Brasileira. São Paulo: Melhoramentos, 1979, p. 144)
Mesmo no contexto da própria Academia Imperial, a sina do artista afro-brasileiro
mantém o mesmo fado, destino ou fatalidade. Um dos membros da Academia, um
professor chamado João Maximiliano Mafra relatou em 1839 o seu desejo de que se
importassem europeus para que estes servissem de modelos vivos. Segundo ele, os
modelos negros não seriam belos o bastante para serem representados. Foi apenas no
período em que se ampliou a luta abolicionista que se viu de forma mais contínua a
representação individualizada e personalista de negros nas artes plásticas no Brasil104.

O objetivo principal dessa necessidade de representação viria da construção de uma


identidade negra que não tivesse de vir daquelas representações do período naturalista,
sequer a do período acadêmico, pois era muito associado aos estrangeirismos em relação
ao negro. E que não fosse ainda exatamente, o modelo modernista, que embora não
houvesse mais o “estrangeirismo” da perspectiva estritamente “primitivista”, porque
“nacional”, ainda assim continuava sendo uma forma de “oposição” de tipo sujeito-objeto:
brancos artistas se enraizando vs. Negros enraizados.

“Olhar a si mesmo”, diz Emanoel Araujo (2000, Negro de Corpo e Alma, p.49): O negro
vê o negro, e o retrata. Em termos artísticos a libertação pós libertação, deveria significar
também uma forma de inserção não só do artista, mas também do retratado, como
companheirismo. O termo “Malungo”, conviria aqui, embora ele não aparece entre o
artista e seu modelo, porque as artes plásticas negras não foram diferentes da sua
antecessora acadêmica. A empatia entre o artista e a(o) modelo manteve sim uma
distância pré-calculada. Em todo caso, o resultado final é que deveria ser o grande juiz
dessa relação e não nossas fabulações quanto a real igualdade possibilitada pela
conferência entre tons de peles entre o artista, a(o) modelo.

Por outro lado, o mesmo Emanoel Araujo, quando inflamado pela convicção da antiga
retórica antirracista, discursa com sua forte e vociferante voz os modelos desse passado
essencialista (tão próprio da sina dos negros, e ademais dos negros artistas), indicando

104
Ver: KNAUSS, Paulo. Jogo de Olhares Índios e Negros na Escultura do séc. XIX. História (São Paulo)
v.32, n.1, p. 122-143, jan/jun 2013.
quais seriam os maiores feitos do maior de todos os pintores negros do séc. XIX:
Estevão Silva não toma o negro por tema ou modelo, atendo-se, ao contrário, a uma
temática tradicional, sobretudo pelo gênero em que se especializa, a natureza-morta. E,
nos cânones do gênero, falta-lhe a princípio o que se considera o bom gosto da
composição e a harmonia do todo. Mesmo isso, no entanto, seu extraordinário esforço
pessoal lhe permite conquistar. Mas é sobretudo pela marca característica de suas telas
que sua obra permanece viva: a exuberância de sua cor, o colorido quente e intenso que
imprime aos seus frutos, sem meias tintas e esbatimentos, esse tom pesado e violento que
dá a cada quadro um aspecto de rudea, como constata Gonzaga Duque, é precisamente o
que, longe de constituir um defeito, prova de modo inegável a individualidade de um
estilo[em itálico no original], que o artista abraça como uma conquista pessoal. E não
seria o caso de se ver nesse estilo sem leveza e transições, nessas cores planas e
vibrantes com que pinta suas naturezas-mortas, evidenciando o contraste brusco com
suas sombras de uma escuridão negra, precisamente a emergência inconsciente [grifo
nosso] de uma outra percepção do fato criador, de uma outra estética que distribui
diversamente planos, cores, formas, espaços, como tão bem analisou George Preston
com relação aos cânones da arte africana? Este é o feito maior de Estevão Silva: o de ter
conseguido, dentro dos padrões da arte de um outro [em itálico no original], o
academicismo burguês do Segundo Reinado, encontrar espaço para permitir o aflorar da
expressão de sua alma negra e, com ela, o balbuciar de uma nova arte. (ARAUJO, E.,
2000, Negro de Corpo e Alma, p.52).

Nessa mesma linha, em 2015, ocorreu no Museu Afro Brasil uma exposição intitulada
“Luz e Sombra” do fotógrafo Cristian Cravo, que posteriormente foi premiada com o
APCA daquele ano. Cristian é filho do baiano Mario Cravo Neto com uma dinamarquesa
chamada Eva Christensen. Num texto curatorial dessa exposição105, Emanoel Araujo se
utiliza desse mesmo discurso impulsivo e essencialista, afirmando: Da Bahia vem este
espírito solar em contraponto à sua cerebral ascendência nórdica. Em muitos portais

105
Ver: http://museuafrobrasil.org.br/programacao-cultural/exposicoes/temporarias/detalhe?title=%22Christian+Cravo+%E2%80%93+Luz+%26+Sombra%E2%80%9D
Acessado em 12/12/2016.
virtuais da época reproduziu-se esse comentário, aparentemente sem uma única alma a
problematiza-lo. Mas que bom que podemos ter tido a sorte de receber esse tipo de
comentário porque ele descreve parcialmente as noções de Emanoel Araujo sobre as
convergências entre “arte” e, literalmente, “raça”, conceitos que são explicativos de uma
forma de entender a arte afro-brasileira.

Cito apenas dois exemplos, mas essa ambiguidade de fato aparece em outros autores nem
tão antigos para quem o positivismo da década de 1920 ainda faz coro, pelo menos no
irracionalismo emotivo e nas tentativas quase sempre frustradas de inclusão do negro
artista em circuitos e intramuros de clubes em que, graças à sua sina fatal, ele não tem
condição nem histórica e nem potencial para derrubá-los.

Será se faz parte da “história da arte” o fato de Van Gogh (aquele que Artaud chamou de
o “suicidado pela sociedade”) ter cortado sua orelha esquerda? Necessariamente sim, já
que esse ocorrido aparece em seus autorretratos tornando impossível não se tocar no
assunto, por mais abstratos que queiram parecer os Gombrich, Argan, Bazin e Jorge Colis
da vida.... Se a sina dos afro-brasileiros tiver de fazer parte de sua história, como a gente
tem intuído, não se poderá deixar de conceber toda desgraça associada à cor da pele dos
negros, mesmo artistas periféricos numa periferia chamada Brasil.

A artista plástica Madalena dos Santos Reinbolt Nasceu em uma fazenda em Vitória da
Conquista (BA). Sem educação formal, deixou a Bahia por volta dos 20 anos de idade
para trabalhar com empregada doméstica em Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro e
Petrópolis. Chegou a esta última cidade em 1949 e trabalhou como cozinheira na
residência de Lota de Macedo Soares e Elisabeth Bishop. Começou a pintar durante uma
ausência das empregadoras, que passaram a incentivá-la. Bishop escreveu que a
cozinheira se revelara “uma pintora primitiva maravilhosa, de modo que daqui a mais
algum tempo vamos estar vendendo os quadros dela na 57th Street e vamos todas ficar
ricas”. Ganhou das empregadoras materiais para sua produção artística: primeiro,
tintas e pincéis; mais tarde, agulhas e linhas de lã, com as quais passou a bordar
tapeçarias. Casou-se com o jardineiro da residência, adotando o sobrenome Reinbolt.
Quando a dedicação às atividades artísticas passou a atrapalhar seu serviço como
cozinheira, perdeu o emprego. Não conseguiu se sustentar como artista e viveu até o fim
da vida como empregada doméstica, produzindo suas tapeçarias – muito apreciadas
pelos vizinhos de mesma condição social – num quarto reservado aos caseiros106.

Como já foi algumas vezes demonstrado, a sina dos afro-brasileiros, os relatos


biográficos dos artistas de origem negra revelam fracassos, angústias, desolações, mortes
juvenis e muitos suicídios, como a sina do suicida Rafael Pinto Bandeira enterrado numa
parede como se fosse um mero herege e não um negro artista desesperado para conhecer
o fundo da baía de Guanabara107. Quiçá essa sina não seja um “Karma”, como diria minha
falecida e budista mãe (que tenha reencarnado bem!), mas o que sabemos por experiência
é que, se como disse John Lennon “woman is the nigger of the world, slaves of the
slaves...”, então temos de dizer que os artistas, salvo desonrosas exceções, são visto como
escravos dos escravos das escravas e os negros artistas, pior que isso. E eis a sua sina,
salvo honrosas exceções contadas nos dedos dessas duas mãos de quem vos escreve.

Uma chance à Arte Afro-Brasileira108

A chamada Arte Afro-Brasileira pode ser o que ela quiser. Tanto por seus artistas, nas
suas temáticas, nas suas elaborações visuais quanto por seus fruidores, admiradores e
entusiastas; a variedade é sua marca fundamental. Até por isso, paradoxalmente, até hoje
tem sido difícil o estabelecimento de um campo próprio a ela que não seja um campo
totalmente apartado da arte em geral. É aí mesmo que se encontra o paradoxo: não nos
daremos ao luxo de definir o conceito desta arte. A arte afro-brasileira pode ser tudo o
que ela quiser, só não pode deixar de ser arte. E, enquanto tal, ela terá de responder ao
campo artístico mais geral se quiser ser chamada de arte. Sendo assim, diferentemente
das antigas relações com o circuito de arte como uma “etnografia”, um “primitivismo” e

106
Vejam uma listagem em construção com minibiografias de artistas afro-brasileiros e outros com obras
no acervo do Museu Afro Brasil produzidas por nós em:
http://museuafrobrasil.org.br/pesquisa/indice-biografico/lista-de-biografias/biografia/2016/10/13/madalena-dos-santos-reinbolt
107
Continente sul/sur: revista do Instituto Estadual do Livro, Edições 7-9. O Instituto, 1998. p.232
108
“uma chance” aqui pode ser tanto entendido como “uma [última] chance” ou como “pô, vamu dá uma
chance!” (condescendência).
por fim uma “arte de nicho próprio a ser decodificado” seu compromisso com a arte
contemporânea terá de se desvencilhar de seu histórico de baixa reputação artística para
os círculos de prestígio social brasileiros e das Américas.

Se eu estiver correto, ela poderá de fato se constituir como algo em si mesma capaz de
construir uma narrativa e até mesmo uma densidade que abarque a identidade negra, desta
vez desfeita de seus arroubos que pretendeu definir a fundamentação de uma essência não
diluída na modernidade. Como se o mundo estivesse mergulhado na diluição da crise
identitária e um certo setor inconsciente do movimento negro supusesse ser capaz de
ressuscitar a ideia moribunda de comunidade. Alicerçados na fantasia de luta pelo poder,
agem como se suas ações não os conduzissem ao carreirismo explicito no qual uma mera
elite negra detentora, ademais, de um saber pífio, se arrogasse no direito de construir o
“futuro pós-racial” por meio da elaboração ao mesmo tempo complexada e suprematista
em que a cor da pele fosse um instrumento único de se apontar culpas e a forçar
sentimentos dos que se sentem culpados.

Foi essa mesma má-fé que se viu crescer hoje a ponto de pequenos grupos suprematistas
negros (que meu amigo Marcola chamou de afro-hooligans) quererem impor sua vontade
no mais íntimo dos outros, como o amor, a amizade e o trabalho. Non Passaron! Estes
mesmos que inventaram termos horríveis como “palmiteiro”109 para aqueles
supostamente negros (geralmente homens) que “ousaram” ter relações amorosas com
mulheres suposta ou indubitavelmente brancas110. E no entanto, aonde a falta de
determinação termina começa o princípio da determinação. Talvez este aparente
paradoxo apenas possa ser resolvido pelo Estatuto do Mestiço, aquela ideia que me é
fantasiosamente cara, indicando que num futuro pós-racial longínquo as peles se
escureceriam e os olhos se tornariam mais puxados, vide o alto número da população dos
países com genes dominantes com sede para se multiculturalizar, sair de seus guetos e

109
http://www.afronta.org/single-post/2016/2/1/TU-PALMITAS-E-N%C3%93S-PRETERIDAS
110
Num mundo real em que vivemos e que o sexo e os uivos de prazer provenientes dele tem uma voz mais ativa que
uivos identitários dos novos religiosos e celibatários da cor de pele gosto de me lembrar do Império Romano e suas
repugnantes delícias. Quando não se sabia ao certo se um novo César era um bastardo ou não, quando eram substituídos
os Imperadores, o orador gritava...Ave Indubitate Cæsar. “Ave, o sem dúvida César. Que atire a primeira pedra, aquele
que no Brasil não tiver quaisquer dúvidas.
mostrar seus trejeitos, culturas e fenótipos há muito considerados “étnicos” em centros
urbanos de privilégio e na responsabilidade de não reivindicar, mas inteligentemente
atender pelo menos algumas de suas próprias reivindicações.

Há um ponto que ainda não foi devidamente testado, mas que abre espaço para a
fundamentação de uma arte afro-brasileira que tenha lastro o suficiente para além das
noções de inclusão social, condescendência, nicho de mercado ou a simples valorização
de uma subcultura (ou mais especificamente uma cultura ou, se preferirem, “alta cultura”
de genes socialmente subalternizados).

A perspectiva geneticista ou não dos antigos que associavam a religiosidade ao


fundamento da arte afro-brasileira pode justamente ser reformulada para que esse ponto
de fundamentação da arte afro-brasileira se concretize de modo distinto. Desde Nina
Rodrigues (1904), Mário Barata (Les Noirs Dans la Arts Plastiques au Brésil p.60),
Bastide (1945, 1966, 1967), e, por fim, Munanga (MUNANGA, Kabengele. A criação
artística negro-africana: uma arte na fronteira entre a contemplação e a utilidade prática.
In: SOARES, Arlete (ed.). África negra. São Paulo: Ed. Corrupio, p. 7-9, 1988), que nos
fornece esse ponto de fundamentação a partir da ideia de “utilidade” na arte
afro-brasileira.

Seguindo os modelos de análise da arte africana, podemos de fato constatar de forma


semelhante que a noção de utilidade perpassou as considerações estéticas da maior parte
dos primeiros pesquisadores de arte africana. Exageros à parte, que tentou restringir a arte
africana a uma ideia de “arte utilitária”, o fato dessa arte perpassar o contexto prático,
orgânico, integrado à vida faz dela algo distinto da arte entendida aos moldes do
surgimento dos museus a partir do estabelecimento do Renascimento e posteriormente em
que a opacidade entre sujeito e objeto, a distância abismal entre o apreensível e o sujeito
cognoscente pareceu intransponível.

Como garantir um futuro para arte afro-brasileira sem pensar que este caminho seja sem
paternalismo (mecenato de artistas periféricos) ou racismo (irmandade de cor do tipo “só
preto sem preconceito”? Para Munanga (1988b) A arte não seria apenas algo
relacionado ao belo, até mesmo ao feio [isto é, particular], mas sim, alguma coisa a mais
que deva ser relacionada com a evolução da sociedade. Assim concebida arriscaremos
defini-la como um sistema de símbolos admitidos no seio de uma sociedade, símbolos
esses que refletem a vida dessa sociedade. Se Kabengele Munanga estiver correto, a arte
afro-brasileira que, por sua vez, identificar algum “sistema de símbolos admitidos no seio
de uma sociedade” que reflitam a vida dessa sociedade, ela encontrará um caminho; caso
contrário, não. Assim, para uma arte afro brasileira ser possível ela terá de assumir o
difícil desafio de ser inclusivista, isto é, assumir os braços dados para além da cor da pele.
Numa palavra: deverá ser “universalista” (ou “cosmopolita”, na linguagem de fato mais
adequada de Valladares, 1968, p. 106) mas ao mesmo tempo não julgar a preexistência do
mundo pós-racial, apenas por desejo, já que até hoje, o racismo foi um dos grandes
garantidores de sua existência.

Para que a realidade da arte afro-brasileira se imponha, seria necessário, portanto, que ela
“dançasse” entre o maior “universalismo” ou “cosmopolitismo” que lhe for possível (por
ilusório, às vezes, que este também seja) e, claro, dentro de alguma perspectiva ou
orientação africana ou afro-brasileira que a caracterizasse, mesmo que indireta ou
tenuemente. Mesmo assim, para que isso ocorresse, seria necessário muito esforço,
porque ou bem ela se radicalizaria e se restringiria a conteúdos que seriam considerados
necessariamente “negros” (para negros) e, além disso, manteria em si a obrigatoriedade
de ser um “politicismo identitário negro” ou um círculo “afro-brasileiro” mais ou menos
fechado (cujo núcleo seria centralizado apenas em negros e mestiços) ou bem essa arte
teria de ser não tão radicalizada para “dançar” entre outros limites: de um lado, um
universalismo mais “abstrato” (em que ela não se torne nem necessariamente uma “arte
qualquer”, como as outras artes só parcialmente politizadas e até agora indiferentes ao
afro-brasileirismo – considerando ainda que alguns brancos na arte afro-brasileira,
acabariam mesmo por apresentar em suas poéticas um “afro”, como qualquer turista do
lado de fora da porta faria, já que este pode ir e vir quando quiser ou convier) e, por fim,
de outro lado do limite, que ela seja obviamente, algo também nevralgicamente ligado à
cultura africana ou afro-brasileira (seja o que for que cada artista considere ser isso). Pode
ser que em alguns desses casos ela se defina em relação à uma suposta arte não-negra,
pois todo universalismo ou cosmopolitismo possível dentro dos moldes coloniais e dos
que se supuseram pós-coloniais dormita ainda na cama dos que detém algum tipo de
poder (as instituições), ou seja, a arte vista enquanto modo de pensamento único, vista
pelo prisma das instituições que se mantiveram afeitas ao euro-norte-americanismo
ideológico, para o qual todos nós tendemos como os corpos tendem ao centro de atração
gravitacional do dinheiro.

Por conseguinte, não se baseando hoje em dia estritamente nem no tematismo da


religiosidade, nem na concepção forçosa do maneirismo identitário, as elaborações da
arte afro-brasileira, teriam hoje de encontrar seu próprio caminho se quiserem mesmo ter,
ainda que mínima “uma chance”. Muito antes disso, alguns se sentiriam firmes na
posição fantástica ou não de seus bons motivos para serem enquadrados entre os artistas
da arte que responde à uma “afrobrasilidade, enquanto uma exaltação; outros se
contentarão em ser artistas afrodescendentes que fazem arte “sem qualificativos”, como
dizem meus amigos e correligionários anarquistas e não uma “arte afro-brasileira”
especificamente... E aqueles herdeiros não-afros da cultura afro no Brasil reivindicarão
pertencer à “arte brasileira” distinguindo-se ou não de seus qualificativos “afros”. Mas
todos terão uma chance... Os maneiristas, os essencialistas, os artistas negros-negros, os
negros não-negros, os não-negros mesmos, os artífices e os trabalhadores da arte - desde
que todos “estejam por um”, ou mais especificamente, todos estejam por “ela”: a arte.
Dito de outra forma, sendo possível ou não a fundamentação teórica da arte
afro-brasileira não sejamos nós os não artistas a tentar impor barreiras lógicas ou exigir a
ela fundamentos intelectuais das quais quiçá nem precise, dada a sua superabundância:
quid abundat non nocere111.

Mas quem teria mais chance senão aquela figura cuja Arte grafada em maiúscula fosse
digna deste nome e habitasse mundos cuja habilidade técnica, o processo criativo, a
emotividade implícita (subjetividade), as ideias implícitas ou explícitas (filosofia da arte)
fossem seus guias de preferência aos garranchos mal temperados pela ligação umbilical

111
O que abunda não prejudica. Provérbio latino.
da cultura artística humana? Logo agora que se agarrar num fundo religioso para
fundamentar uma ação identitária se revela como uma tática ideológica, aqueles que
verdadeiramente encontram na arte expressão da vida e da imaginação, verão este tipo de
limitação mental e espiritual consumir seu tino e sua sensibilidade. Outros, com suas
percepções e espíritos treinados para observar a raridade e a imensidão que é a realidade
da vida, não se alinharão senão pontualmente e só quando isso se fizer politicamente
necessário. De resto não farão tanta arte quanto política; embora estas complementem-se
como o feijão e o arroz.

Essa chance à arte afro-brasileira deve de fato ser dada porque nenhuma raça (fenótipos
ou cor de peles) é detentora do monopólio do saber e produzir artísticos. No entanto, se
algum grupo de seres humanos quiserem se reunir numa associação livre e quiserem se
auto intitular “artistas das artes afro-brasileiras”, eles terão defendidos seus direitos de
propor que se olhe para esta arte do ponto de vista da arte e também do ponto de vista das
artes que nos sugerem as Áfricas desdobradas.

Arte Afro-Brasileira e Política

Um fino e requintado desenhista e gravador. Seu fascínio pela figura humana foi
representado magnificamente numa instalação em que imprimiu rostos sobre coadores
industriais de café; rostos gravados em madeira que, além de qualidade da xilogravura,
tinham um compromisso político. Retomando uma das funções políticas da gravura sobre
madeira, (...) seu refinado olhar alfineta politicamente suas propostas artísticas.
(ARAUJO, E. 2010, p.118) [Emanoel Araujo, sobre o artista visual Tiago Gualberto]

A história da chamada arte afro brasileira e as análises dos percursos de seus mais
destacados artistas se confunde com a história da elaboração do conceito de negritude e
está intimamente inserida dentro das reivindicações políticas. Quer que se considere que
este conceito tenha encontrado seu fundamento ou não, quaisquer lados das tentativas de
explora-lo, mesmo a partir de análises estéticas que propõem estratégias de
universalização destas manifestações artísticas, a história deste conceito dificilmente não
esbarrou na busca pela identidade racial em termos políticos.
A pressão exercida pela imprensa negra e pelos movimentos negros no séc. XX fez
emergir a compreensão da necessidade da inclusão concreta dos negros agora libertos,
mas ainda quase que totalmente excluídos nos campos do trabalho remunerado, no 1o., 2o.
e 3o. setor, nas academias no pós-abolição, nas ciências e nas artes. A respeito disso,
pudemos constatar o fato de que, do pondo de vista das artes, foi possível enxergar um
verdadeiro vácuo que separou os artistas do período escravista dos artistas de períodos
subsequentes, da 1a República (a “Velha”), e seus períodos de “valorização” do negro,
entendido como “contenção das reivindicações do pós-abolição”. E a 2a. República (a
“Nova”) caracterizando-se pela valorização do negro pela criação de uma pequeníssima
classe média eleita a dedo pelos editais captadores e cooptadores... A primeira República
foi marcada pela crise econômica, com o “Encilhamento” e o problema das Revoluções
Federalistas, da Revolta da Armada, etc. culminando por fim, na República Oligárquica
cafeeira, que duraria até o período Vargas e o coronelismo que se sustenta e nos
envergonha até hoje112. Mas como essas coisas impactam a ausência negra nas atividades
artísticas? Vou deixar a resposta concreta para os historiadores da arte no Brasil, esses
sonâmbulos que visam fazer historiografia com lentes míopes e quase sempre
subservientes com relação às leituras da história dos grandes estetas coronéis. Vou ficar
apenas com a afirmação de Valladares, que me parece um possível ponto de partida:

No passado o negro e o mulato brasileiro tiveram melhores oportunidades de acesso e


afirmação nas artes - plásticas, urna vez que estas estavam implicadas as obras
religiosas, dirigidas pelas irmandades e confrarias, quando estas correspondiam a
sistemas cooperativistas, assistenciais e de contrôle sôbre a categorização de
profissionais. (VALLADARES, C., 1968, p. 102)

A realidade negra é historicamente determinável. Pode-se concretamente saber em que


momentos e por quais razões houve esta ou aquela onda de valorização negra. Talvez por
isso que os negros racistas e fascistas da atualidade tenham até certo ponto alguma razão

112
Haja vista ao caso Renan Calheiros, um coronel corrupto presidente do Senado, para quem as leis não
atingem e quem detém hoje (dezembro de 2016), para nossa mais intensa vergonha, o imenso aval político
do Supremo Tribunal Federal (instituição que, como a ONU, teve sua função numa época já passada, mas
que hoje caduca na politização feito um bisavô do trisavô do Hamurabi.
em acirrar os seus métodos - só não poderíamos concordar com essa mania em fazer
piquete pra se exigir respeito, como se houvesse algo que os governos pudessem oferecer
senão “ondas de valorização”. Se os livros não forem bons substitutos das armas dos
novos partidos desses neo-panteras negras mau instruídos ou bem se retorna
conscientemente aos planos antigos ou bem se inventam novas fórmulas, pois as antigas
já não mais funcionam e tudo já ficou evidente pra todos. A quase ausência atual de
artistas negros nos círculos artísticos se deveu também pela crença nessas valorizações
como o espaço que coube aos artistas negros e mestiços neste latifúndio das instituições e
dos curadores de arte.

Aracy do Amaral, que foi a primeira acadêmica a fazer exposições relacionadas a artistas
afro-brasileiros em grandes circuitos, durante sua gestão na Pinacoteca (1975-1979) e
ainda de nipo-brasileiros anos antes em (1966 – MAC/USP), também evocou essa
ausência ao dizer: a inexistência de um maior número de artistas plásticos de origem
negra é tão real quanto sua ausência nas universidades brasileiras. (AMARAL, A., 2010,
p. 10). Essa constatação recobra o sentido social que a inclusão/exclusão de artistas
negros impõem; estaria aí um dos limites para a “arte afro-brasileira”?

Não posso deixar de fazer pelo menos uma referência que seria útil para nossos
propósitos aqui quanto a essa relativa “ausência”- não que “ausência” aqui signifique
“falta de presença”, mas essa “ausência negra na história da arte” significaria também
uma mera “falta de referências”. Por isso é necessário refazer os estudos de recuperação
dos artistas ligados a esse contexto e dar atenção um a um, uma a uma. Que artista
afro-brasileiro tem um catálogo individual de suas obras, portfólio publicados?
Necessariamente poder-se-á encontrar mais coisas interessantes a dizer dos artistas
quando suas obras forem publicadas em textos críticos diferentes dos catálogos de
exposições, pois estes, geralmente feitos para exposições coletivas despersonaliza suas
poéticas a tal ponto que, depois de termos em mãos um catálogo desses, temos a falsa
impressão de que conseguimos captar todas as mensagens transmitidas por eles em suas
obras, apenas sabendo de suas existências, folhando catálogos, que ademais, não passam
de revista caras publicadas em papeis mais grossos! Sem estudos críticos produzidos por
críticos de arte, esses artistas ficarão alheios do circuito artístico nacional
indefinidamente.

Nesse sentido, Marianno Carneiro da Cunha, um dos primeiros críticos de arte africana e
afro-brasileira da universidade a notar isso refletiu que: Não se pode, portanto,
negligenciar ou descartar o negro, quando se pretenda fazer história da arte, tanto
quanto qualquer outro tipo de análise de fatos históricos, antropológicos, sociais ou
econômicos do Brasil. (CARNEIRO DA CUNHA, 1983, p. 990). Ele mesmo buscava o
que chamou de justiça ao negro como fator determinante da nossa formação étnica e
cultural (Idem, p.992). Ele mesmo atentou para a ausência de reconhecimento da origem
material das obras de arte nos lembrando ainda que há tanta desinformação no que toca
às suas origens, quanta resistência, por vezes inconsciente, em atribuir-lhes uma
procedência negra, quando facilmente cola-se-lhes uma etiqueta européia, cabocla ou
indígena! A africana, entretanto, como por uma espécie de conaturalidade de destino,
permanece na sombra. (Idem, p.991) ...etc., Porém, como não foi indicado em termos
metodológicos essa ausência (o que seria compreensível já que ele fala da experiência do
acervo do MAE-USP, que não é um acervo de arte), esse talvez seja essa a única ausência
de seu belo texto: é o mesmo Marianno que desconsidera totalmente em sua análise, por
exemplo, a presença negra nas academias Imperial e Nacional de Belas Artes. Talvez ele
pense como eu, que fazer referência aos ancestrais da arte afro-brasileira não é fazer
senão sua historiografia, algo que deveremos deixar para um futuro bem distantes, até que
se possa fazer primeiramente o levantamento dos artistas que assim possam ser
classificados, em segundo lugar, que se possa fazer os catálogos individuais (nem que
sejam aquelas brochuras mais ou menos ridículas da Folha de São Paulo - que eu compro
sempre que tenho dinheiro; tenho umas quatro ou cinco dessas coleções e a de ópera é
maravilhosa, gravações excelentes, traduções de libreto invejáveis.113

113
Mas, ironicamente, pelo que tenho dito até aqui sobre o uso que se faz do artista afro-brasileiro.
Na coleção “Grandes pintores Brasileiros”, um último da lista entrou nela pelas cotas (dos primitivos,
acaicos e ingênuos): http://pintores.folha.com.br/heitor_dos_prazeres-volume_28.html

1. Di Cavalcanti
2. Arcangelo Ianelli
3. Tarsila do Amaral
Como eu dizia acima, geralmente os autores quando falam de “arte afro-brasileira”, estão
falando de coisas por vezes completamente diferentes. Mesmo que este texto de
Marianno seja o livro que separa teoricamente as convicções anteriores de uma arte
afro-brasileira muito pautada ainda da feitura de objetos de culto (a chamada “arte ritual”),
que seriam museologicamente sempre restritas e às convicções dos últimos 30 anos com
convicções mais formais, contemporâneas, boa parte das abordagens de Marianno ainda
resiste ao tempo.

As análises de Marianno permitem ainda o entendimento do quão recente é esta


terminologia que cria o conceito afro-brasileiro na arte. Justamente, seja qual for a
definição teórica sugerida, uma vez que esta terminologia foi estabelecida na
contemporaneidade, a necessidade de inclusão do negro no mundo das artes plásticas por
um lado e a percepção “de quem negro foi, quem negro é”(Joel Rufino in: ARAUJO,
1988, p.10) na história da arte no Brasil, apareceram como fontes cruciais para o

4. Candido Portinari
5. Adriana Varejão
6. Lasar Segall
7. Tomie Ohtake
8. Aldemir Martins
9. Anita Malfatti
10. Beatriz Milhazes
11. Almeida Júnior
12. Hélio Oiticica
13. Manabu Mabe
14. Luiz Sacilotto
15. Vicente do Rego Monteiro
16. Pedro Américo
17. Aldo Bonadei
18. Eliseu Visconti
19. Iberê Camargo
20. Francisco Rebolo
21. Antônio Parreiras
22. Daniel Senise
23. Milton Dacosta
24. Willys de Castro
25. Benedito Calixto
26. Paulo Pasta
27. Hércules Barsotti
28. Heitor dos Prazeres
estabelecimento de um campo específico para esta arte ao mesmo tempo em que,
paradoxalmente, alguns artistas atuais não quiseram permanecer neste campo específico.
Parece que ser um “artista afro-brasileiro” que faz “arte afro-brasileira” e que pode não
estar no circuito de Emanoel Araujo ou de outros que vez ou outra tem aparecido, tem
visto pelos artistas contemporâneos algo que se deve assumir quando for interessante
pragmaticamente e em geral recuar quando inquirido diretamente (eis mais uma das
funções da (in)definição dos artistas: “não sou artista da arte afro-brasileira de fato, mas
sou de direito”114.

114
De todos os artistas entrevistados por Kimberly Cleveland (2013) num dos melhores livros sobre “arte
afro-brasileira”, paradoxalmente, excetuando talvez por Abdias do Nascimento (não entrevistado), nenhum
outro se considera um “artista da arte afro-brasileira” sequer Ayrton Heráclito e Eustáquio Neves. Mesmo
Rosana Paulino, por exemplo, que é o “carro chefe” das exposições consideradas historicamente como
sendo “afro-brasileiras”, desde “Os Herdeiros da Noite: fragmentos do imaginário negro”(Belo Horizonte,
São Paulo, Brasília, em 1994); “Cali”(Colômbia) - Salão Iemanjá, na Universidade del Vale (1997); “A
Rota da Arte Sobre a Rota dos Escravos,/”no Sesc Pompéia; “Brasileiro que nem Eu, que nem
Quem?”MAB-FAAP. Salão Cultural (São Paulo, 1999); a “Mostra do Redescobrimento - Módulo Arte
Afro-Brasileira”(São Paulo, em 2000), a retrospectiva que está ocorrendo agora no Senac Lapa/SP
intitulada“A sombra do País é a escravidão” etc. etc. mostram isso. E a ela é cobrada a implicação de ser
mulher e mulher negra e eu já ouvi que algumas mulheres e homens negros entrem pelas “cotas” do
politicamente correto hoje em dia.…E estes pensam assim: “Olha, está faltando uma mulher negra aqui...é
preciso por...senão vão reclamar...Olha coloca um negro aqui, senão vai ficar feio...” etc...(é só ver os
comerciais, ou as mesas de debate de hoje que todos terão uma ideia evidente disso). Estou falando como se
fosse uma praga nossa sermos lembrados antes pela cor de nossas peles que por nossas inquietações e
esperanças e um certo talento inegável (sem trocadilhos), mas eu conheço bem isso: sendo negros mais ou
menos úteis, nós somos chamados para dar conta de todo “imaginário negro” nos circuitos que estão nos
abrindo as portas atualmente, não importando muito o nosso background ou interesses. Veja por exemplo,
eu mesmo... um menino negro que cantava músicas em japonês desde os 3 anos de idade (segundo minha
mãe e pai que se converteram ao budismo em 1968 me disseram. Eu, portanto, quando nasci cinco anos
depois, sabia com toda certeza de que eu era “japonês”e fui estudar essa que foi minha “primeira segunda
língua”, ainda aos 16 anos - mas por amor a Bashô, Mishima e Tanizaki) ... Um neguinho metido que foi
estudar filosofia na USP (Universidade de São Paulo, dita a principal da América latina – disso eu tenho lá
minhas mega-dúvidas!)... Um neguinho “não-palmiteiro” (termo horrível supracitado que foi inventado há
menos de 2 anos pelo “feminismo” negro pra designar dos homens negros que gostam de mulheres brancas),
porque sou casado há 14 anos com a mesma mulher negra que me orgulha de seu “afro cabelão”– mas que é
tão amada quanto foram aquelas cujos cabelos escorriam no pescoço ou nos ombros... Um neguinho, por
fim, que ouve e entende de óperas (sim, fui músico clarinetista de orquestra por 13 anos – 1986-1999 e dos
famosos eu estudei um pouco com Roberto Sion na Escola Municipal de Música (1989) e aonde davam
aulas na época Camargo Guarnieri, Oswaldo Lacerda, e estudei também na ULM- Universidade Livre de
Música, cujo diretor era o racista antipático Júlio Medaglia e em 1989 o Tom Jobim era presidente do
conselho). Eu, um neguinho metido que trabalha no Museu Afro Brasil por 11 anos (2005-2016) e sempre
que tem de dar entrevistas ou cursos ou escrever e-books etc., ao invés de falar sobre temas que entende de
fato (joias africanas, filosofia antiga, mulheres e ópera) é chamado para falar de racismo, cotas, arte
afro-brasileira , zumbi dos palmares, candomblé e etc. Resumo, não sou o que sou, sou o que acham o
que eu sou, por causa da cor da minha pele. Não há saída; isso é e vai ser assim! Apesar disso, bem
entendido, o lugar que eu mesmo me coloco é o de negro mesmo. Eu aprendi isso nas aulas do professor
Kabengele Munanga (Kabê, para os íntimos): Minha identidade é negra! Minha pele e meu corpo são
negros e eles vão comigo superficial e inteiramente aonde quer que eu vá e em qualquer coisa que eu
faça...E com Sartre, aprendi aquilo que ele falou de um homossexual muito mais fodido de que nós negros
Voltando ao texto de Marianno, ele pula do fim do barroco, citando Miguel Arcanjo
Benício da Assunção Dutra do século XIX (Idem, p. 993) e explicando a ausência de
negros devido ao problema da condição econômica (Idem, Ibidem) para a arte religiosa
levantada por Nina Rodrigues em 1904, que lhe ocupa muitíssimo devido a presença de
peças muito semelhantes no MAE/USP, aonde foi na época responsável pelo Setor
africano, e reforça, por fim, a sua tese africano-continuísta... Ao cabo, antes de culminar
em alguns artistas populares115, Marianno dá outro salto e retoma sua análise para os anos
1930 e 1940, mas restringindo-a ao que chama de objetos indispensáveis ao culto e ao
rito. Os objetos iniciáticos..., que seriam estes na visão dele, enquanto que na arte
africana destaca-se o seu sentido comunitário, a arte ocidental dá mais lugar ao
individualismo. Na religiosidade afro-brasileira, em si comunitária, portanto, seria aonde
os negros podiam “canalizar suas aptidões criadoras no sentido comunitário da arte
religiosa do século VII à metade do século XIX. Com a substituição do Barroco pelo
neoclássico restava, todavia, pouco espaço à expressividade do gênio negro nas artes
plásticas. Marianno indica também nessa mesma linha que, em seu final, a Abolição
retira muito do sentido que as irmandades e confrarias tinham para os negros, que sobre
serem agremiações religiosas, funcionavam igualmente como clubes e centros onde
aqueles podiam, em certa medida, conservar suas diferenças culturais e manter sua
identidade étnica. (CARNEIRO DA CUNHA, 1983, p. 994)

Eis o próprio Marianno que “fecha sua argumentação levantando toda verdade política
para os negros ao dizer que esta marginalização sistemática do negro dentro do sistema

artistas atuais “« l'important n'est pas ce qu'on fait de nous mais ce que nous faisons nous-même de ce
qu'on a fait de nous » Tradução: o importante não é o que fazem de nós, mas o que nós fazemos do que
fazem de nós (SARTRE, J-P., Saint Genêt, comédien et martyr. Paris: Gallimard, 1952. p.55) (Sim, por
graça também sei francês e outras línguas). Por fim, aprendi também com aquela frase da "lei de Murphy"
que cabe muuuito a nós negros ou para aqueles que têm de todas as cores, mas que tem karma de negro:
“Não importa o quanto você faça, nunca terá feito o bastante” (BLOCH, Arthur. A Lei de Murphy —
primeira parte. Rio de Janeiro: Record, 1977. p.69). Resumindo e saindo do muro, não chego nem perto do
afro-deus Lima Barreto, mas será essa minha escrita “negra”? Alguém poderá me perguntar...Aí eu
responderia..acho que nem tanto pelos assuntos, nem pela convicção, mas pelos meus palavrões, bom senso
de afro-humor, sobretudo senso afro-crítico, afro-falta de frescura e contrassenso, sim. (Atenção à próclise
mário andradiana): Mi dixculpem os civilizadox, maix o bon savage tropicalistante me é fundamental!
115
São eles: Mestre Vitalino, Severino de Tracunhaém (CARNEIRO DA CUNHA, 1983, p. 1023), Guma
(1925-) e Louco, além de Heitor dos Prazeres, José Barbosa, Tio Quincas (Joaquim Garcia Lopes), Geraldo
Teles de Oliveira. Abrindo, por fim, espaço para aqueles artistas que mantinham na sua época o ícone
africano ainda com força do idioma original tais como: Mestre Didi, Mário Proença, Glicério Silva e uma
grande maioria anônima (Idem, p. 1026).
econômico e social brasileiros, recorrente tal círculo vicioso, não deixa de ter suas
vantagens também, pois tem funcionado como força motriz e regeneradora de sua
criatividade e fermento para sua identidade. (CARNEIRO DA CUNHA, 1983, p.993). E
entendo que foram os negros norte-americanos que vivenciaram essa “vantagem” da
marginalização sistemática a ponto de poderem criar uma força motriz geradora de uma
arte especificamente afro-americana, como veremos mais adiante.

Por fim, ainda sob esse critério com implicações políticas, Marianno nos alerta também
para outro problema que é a visão do negro artista como uma espécie de concorrente que
o tornaria um “perigo” que devesse ser contido: Acrescente-se a isso que naquele período
o artista já começa a definir-se de modo diferente; já não se trata do artesão capaz não
somente de dourar um painel de talha sacra, como de esculpir uma imagem, pintar um
teto de igreja ou cinzelar um tocheiro de prata, acumulando frequentemente as
habilidades de arquiteto e mestre-de-obras. (CARNEIRO DA CUNHA, 1983, p. 994)
Incluindo ainda de forma velada o problema do dandismo da belle époque (não
mencionado), o amor viciado ao que é estrangeiro ou da metrópole (francofilia), com sua
cultura entendida como refinada, bela, melhor... por oposição ao que é brasileiro da
colônia (complexo de vira-lata), com sua cultura entendida como grosseira, feia, pior...( e
o tipo de dandismo que verá ainda entre os modernistas o ambíguo amor-ódio pelo país,
sendo reforçado em nossa época a tensão pelo nacionalismo e a balança pendendo por
isso mesmo ao negro e ao índio, não como esperanças mesmas mas como desespero
dentro dessa esperança).

O artista redefine-se116 e passa a ser, sobretudo nos grandes centros, como bem viu
Clarival Valladares, ‘aquele capaz de educação dispendiosa, necessariamente no
estrangeiro e de acordo com o gosto dominante da sociedade consumidora (CARNEIRO

116
Uma ótima análise cujo título bem poderia ser “Da Presença e Ausência de Negros nas Artes
Brasileiros da Virada dos Séc. XIX para o XX (análises fotográficas) ” seria uma avaliação de como o
dandismo, o assimilacionismo e o grau de imitação ou afetação com relação aos mitos brancos isolou
mesmo os artistas que já eram incluídos, mesmo que, pelo racismo certo, eles provavelmente mal se
notassem como excluídos. As fotografias elegantes de um Estevão Silva, Firmino Monteiro, Zamor e até
mesmo os, quando já “bêbados”, Arthur e João Timótheo (por “bêbados, entendam, apenas, “Lima
Barreteanos”) comparado a centenas de fotos dos outros negros em geral, artistas fora da academia ou não,
demonstram negros desesperados para serem incluídos.
DA CUNHA, 1983, p.994; ver: VALLADARES, 1968, p.100); com essa explicação de
Marianno oferece uma tese de um dos motivos pelos quais houve a exclusão dos negros
artistas da arte nacional. E eu acrescento a força do racismo científico muito em voga nas
classes abastadas, portanto no círculo artístico e universitário da época, entre outros
motivos políticos. (...) sendo as profissões letradas as que maior interesse desperta ao
brasileiro, é claro que a arte, considerada até há pouco tempo um desprezível ofício de
negros e mulatos, medava em país onde não estão ainda desenvolvidos os luxos e o bom
gosto, ficasse destinada as classes pobres, aquelas que não podiam educar
convenientemente seus filhos para fazê-los entrar nas academias. (GONZAGA-DUQUE,
apud CHIARELLI, 1995, p. 261). Todas essas questões me fazem querer concordar com
Marianno ao falar da importância dos ferreiros negros da Ladeira da Conceição da Praia
como uma autenticidade de grupo excluído, mas sempre reconquistando com a paciência
e pertinácia do artesão, características do ethos negro (CARNEIRO DA CUNHA, 1983,
p.994). Não sei se paciência e pertinácia são características do tal ethos negro, mas o que
sei é que sem paciência e sem pertinácia, sobretudo sem a política, os altos e baixos
sociais dos negros corresponderão para sempre proporcionalmente aos altos e baixos de
sua participação na sociedade e nas artes.

Numa atitude ousada para a época, Gonzaga Duque critica a arte produzida na
Academia Imperial de Belas Artes (AIBA) e o gosto convencional acadêmico. A vinda da
Missão Artística Francesa é vista como um episódio negativo, pois introduz um sistema
de ensino que institucionaliza o neoclassicismo e produz um rompimento com a tradição
visual que se desenvolve, descaracterizando-a. Critica a “incultura estética” brasileira,
o “inesteticismo do meio”. Segundo Gonzaga Duque, a formação social do artista no
Brasil, considerado ofício menor, de negros e mulatos, é uma das principais razões da
incompreensão e desprezo do meio para com a arte117.

Se o negro artista sofre do mesmo mal de inesteticismo do meio não é por razões de suas
invocações políticas; sabemos mesmo que os políticos não estudam. Da experiência que
eu tenho fora das artes, na prática política universitária de que participei ativamente no
117
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa639/gonzaga-duque
passado, me recordo que, em geral, os melhores políticos eram mesmo os piores alunos.
O ativismo, especialmente o partidário era condição para que o aluno tivesse tantas
atividades extraclasse, extra-biblioteca, extra-convivência universitária para além da
convivência entre os militantes que impedia que esse aluno político se reciclasse e se
interessasse por diversificar seus interesses. Muitos deles não terminavam os seus cursos
e penaram depois de mais velhos, desiludidos com a velha política partidária, alguns
retornaram, outros desistiram de tudo, da política, da ciência e da arte.

A “arte política afro-brasileira” sendo uma resposta à “critica racista de arte” e eis uma
das “chances” de legitimidade para a arte afro-brasileira, se têm políticos eu não os
conheço. Arte de protesto pode ser concebida como arte política, mas não compreendo
arte política feita por artistas apolíticos. E, obviamente, escrevendo na ferreavox118 há 17
anos quando eu falo política eu não estou me referindo de modo algum à política
partidária, algo que desprezo quase que inteiramente. Estou me referindo às atitudes
políticas para além da arte, o que descreve bem a metalinguagem que significa a arte
política em geral e a arte-política-afro-brasileira, em particular. Ambas essas formas
artísticas são políticas na forma e no conteúdo, mas nada disso importa mais que a atitude
extra-artística do artista. Em suma, a arte afro-brasileira é tanto mais politizada não nas as
características formais da obra, mas nas atividades políticas do artista.

A expressão sócio-política, o protesto, a sátira, a ironia, a propaganda, etc. são expressões


que podem ser tomadas por quaisquer artistas, politizados ou não. Digamos que o papel
da tela aceita tudo e a massa disforme da escultura pode revelar formas políticas a partir

118
Fundada sobre o grito eterno do non passaron e criada como “Revista de Filosofia e Cultura” em 1999,
a revista anti-facista ferreavox foi aonde eu publiquei meus antigos textos de filosofia; e é ainda hoje a
editora por meio da qual eu tenho publicado meus e-books. O termo “Ferreavox” vem de uma citação que
mistura a referência da Eneida de Virgílio com uma reedição em Cícero e Erasmo de roterdã: Non, mihi si
linguae centum sint, oraque centum, ferrea vox, omnis scelerum comprehendere formas, omnia poenarum
percurrere nomina possim (Tradução: Mesmo que tivesse cem línguas, cem bocas e voz de ferro, eu não
poderia enumerar todos os tipos de loucos, nem todas as formas de loucura). Virgílio (Eneida, livro VI,
verso 625). Para mim, esta não era senão uma “revista de filosofia dos tempos da faculdade”, mas para os
revolucionários franceses do XVIII, que criaram um jornal com este nome, era o único lugar aonde se
“botava a boca no trombone”!
de mãos mais apolitizadas de todas119. A arte está relacionada a uma expressão de
conceitos e formas mais ou menos identificáveis pelos artistas e pelo seu público e é nas
artes plásticas que a retórica ganha um status maior até mesmo do que na literatura.
Sendo a forma do discurso algo mais fechado que a forma plástica, poucos escritores
conseguem elaborar uma forma-escrita que engane seus intuitos sofísticos; enquanto que,
nas formas plásticas, a dúvida política é com certeza uma grande inimiga que está sempre
à espreita.

Mas pode-se pensar ainda naqueles artistas fora do circuito negro, sejam eles brancos
artistas ou negros artistas politicamente mal-acabados, que por uma emoção ou um
sentimentalismo simples se sentem tomados por uma pequena vontade política de “fazer
algo pelos negros”. Essa ação, embora possa ser qualificada como a ação compassiva da
velha cristã rica que dá um pão ao mendigo na porta da igreja e se sente muito bem por
“ter feito algo pelos negros (leia-se mendigos) ”, ainda assim é uma ação que pode ser
dita como, primeiro passo para política: consciência. Ainda que eu considere a
consciência o primeiro instante da política, eu não quero com esse subcapítulo abrir
espaço para discussões intermináveis sobre consciência política, os graus de inserção
política na arte e partir para a definição mais aprofundada do que considero arte
politizada. Minha proposta principal pode ser resumida na frase: a possível arte
afro-brasileira não necessita nem do artivista, isto é, aquele que colore a arte denúncia em
galerias e bienais, nem necessita da esmola dos que acabaram de entrar na “consciência
negra” e julgam preconcebidamente mal a todos os radicalismos.

A arte política sempre esteve ligada às vanguardas europeias, no entanto ela encontra
ecos, tal com descreve o melhor livro120 que tenho em minha estante sobre o tema, desde
a revolução francesa, passando pelos artistas radicais de direita, os anarquistas,

119
Eu acho cômico quando vejo nomes como Vik Muniz (porque trabalha com resíduo de lixo -
“arte-reciclagem”); Sebastião Salgado (porque trabalha fotografando a ralé num sublime preto e branco -
“arte-sentimentalista”); os Gêmeos (porque são pintores que fazem arte na rua - “arte-grafite” etc. etc. etc.,
considerados como exemplos máximos de engajamento político. Eles são sim exemplos máximos, mas
exemplos máximos de como o “papel” aceita tudo.
120
EGBERT, Donald Drew. Social Radicalism and the Arts: Western Europe (Alfred A. Knopf, 1970).
Ver : http://www.thing.net/~rdom/ucsd/3somesPlus/ArtandSocialChange.pdf ; ver também:
http://web.stanford.edu/group/orbisafrica/Latinamerican/PDF-ARCHIVE_files/0-150%202.pdf
comunistas, socialistas (que inclui a experiência soviética do realismo socialista) etc.
Enfim, como eu o manifestei numa resenha que escrevi sobre o livro121, Egberg discute
numa perspectiva histórica não só as influências perpetradas por movimentos
político-sociais libertários, desde os Jacobinos, o socialismo, o comunismo o anarquismo
e etc., mas também muitas outras formas de lutas políticas e propagandas na arte. Uma
passagem que eu gosto de citar descreve uma espécie de angústia que o autor tem, ao
escrever o livro em 1967, percebendo que as modificações no âmbito político-econômico
tinham eliminado a figura do artista de vanguarda e consequentemente (isto não foi dito
no livro) houve a eliminação da figura do artista e de sua arte política. Reflitam sobre a
análise de Egbert, tentando encontrar algum ponto de ligação com a arte afro-brasileira,
enquanto política, ainda que ela esteja afastada da sociedade dominante e que não tenha
sido, até hoje, de modo algum identificada como uma “vanguarda”:

A ideia de uma vanguarda apartada [alienated] da sociedade dominante, essa ideia que,
desde a Revolução Francesa, marcou igualmente o radicalismo artístico e o radicalismo
social, tornou-se tão alterada que perdeu essencialmente o seu significado tradicional.
Tradicionalmente, a ideia de vanguarda tem conotado a rebelião de grupos progressistas
relativamente pequenos contra a autoridade estabelecida - seja absolutista, aristocrática
ou burguesa. Para a vanguarda essa autoridade tem sido responsável pelas injustiças,
especialmente as injustiças de classe [impostas pelas classes dominantes], que impediram
o progresso social e o desenvolvimento da pessoa individual, particularmente o artista
individual ou o trabalhador individual. A reação da [arte de vanguarda] vanguarda tem
sido expressar de algum modo indignação com as “regras” impostas pela autoridade,
quer seja as regras da tradição acadêmica na arte desenvolvidas sob o absolutismo e que
foram assumidas por uma burguesia filisteia ou as regras que determinam o
desenvolvimento econômico da sociedade sob o controle do capitalismo burguês, desde a
Revolução Industrial. No momento em que este livro foi concluído [1967], no entanto, o
‘ultraje’ artístico deliberado se tornou tão lugar-comum, que estava perdendo sua força
no mundo ocidental. De longa data [old late], em quase todos os países ocidentais, o
establishment vem buscando e apoiado a vanguarda como parte da cultura oficial, de

121
https://books.google.com.br/books/about/Social_radicalism_and_the_arts_Western_E.html?id=5m5PAAAAMAAJ&redir_esc=y
modo que a própria concepção de uma vanguarda apartada [alienated] está sendo
completamente questionada no ocidente supostamente burguês. Consequentemente, a
arte de vanguarda tornou-se, por fim, amplamente popular [fashionable] - uma
contradição com o significado tradicional do termo "avant-garde", e que de modo algum
se revela inteiramente benéfico para a arte (EGBERT, D.D., 1970).

Os métodos de cooptação da elite daqueles elementos políticos, artísticos ou outros que a


aparentemente a contestam, mas que acabam por aderirem a ela é antigo. Durante a
revolução francesa, pintores valiosos como Jacques-Louis David (1748-1825), amigo de
Marat e Robspierre, mas um ambíguo pintor oficial da corte de Napoleão. Antes disso,
ele havia sido chamado de “terroriste féroce” (terrorista feroz) depois que votou pela
morte do rei na Convenção Nacional - sua esposa, uma monarquista convicta, pediu o
divórcio, que foi prontamente concedido. Ele teve a honra, ainda no período
revolucionário de participar do movimento político que pedia a supressão de todas as
academias, incluindo a supressão do posto de diretor da Academia Francesa de Roma122.
Ao pensarmos neste lado de sua personalidade, supomos imediatamente se tratar de um
artista político cujas obras reflitam justamente esse caráter, não? De fato, durante o
período revolucionário o pintor jacobino abandona a pintura histórica e mitológica em
busca de maior liberdade expressiva, atingindo seu máximo em termos artísticos e
políticos na sua representação “neoclássica” do assassinato de Marat123. Mas também não

122
MONNERET, Sophie David et le néoclassicisme Paris: Terrail, 1998. pp. 103-4
123
Esse “(hiper) realismo idealista neoclássico”, como diríamos em nossa pós-moderna linguagem de hoje,
foi revisitado posteriormente quando o artista pintou Napoleão cruzando os Alpes, anos depois, quando
ninguém sabia no que daria a segunda campanha da Itália. Mas essa tela havia sido encomendada por um
embaixador Espanhol na França. Se o próprio Beethoven (que riscou a dedicatória a Napoleão de sua
Sinfonia no.3, a Heroica) pôde se enganar com relação ao suposto “herói da república” que se tornaria
tirano, por que todos os outros que o fortaleceram e o eternizaram em termos artísticos também não
poderiam? Em três anos (1801-03), David pinta cinco versões desta pintura (hoje todas clássicas). Quando a
monarquia dos Bourbon foi restaurada, pediram-lhe a cabeça? Não! Foi-lhe concedido um cargo na corte,
que este, prontamente recusou preferindo o autoexílio. Antes de morrer atropelado quando saia de um teatro
em Bruxelas, viveu seus últimos anos burguesa e pacatamente ao lado da esposa cristã, voltando a pintar
coisas do tipo “Cupido e Psiquê”; “Marte desarmado por Vênus e as Três Graças” etc.

Napoleão cruzando os Alpes


5e versão de 1803
Musée du Château de Versailles
podemos ignorar que um artista político revolucionário não o é por esta ou aquela obra, e
não o é muito menos por esse ou aquele ato revolucionário (todos constitutos da
aparência, do fenômeno), mas ele é assim pela “série total das aparições”.

Jacques-Louis David -
A Morte de Marat, 1792

Nesta reflexão não percam de vista o modo como as instituições bancárias atuais tem
apoiado as ondas de valorização do negro e o limite daquilo que elas podem de fato
apoiar. Encontrar quem são os patronos da arte e quem seriam os artistas associados a
eles cruzando o resultado direto de suas obras com o resultado direto de seus
contribuintes seria uma maneira feliz de se fazer história da arte pelo sentido que
interessa: pelo lado de dentro (vísceras).

Há algo que facilitou em muito o trabalho do historiador da arte. A burguesia brasileira


ligada à aquisição de obras é bem restrita, limitada mentalmente e com objetivos
“estéticos” definidos. O mesmo papel que faz hoje o currículo lattes para as academias
faz a pesquisa no google para os compradores de arte - ambos querem saber se são
suficientemente famosos, leia-se “muito produtivos”, quanto mais exposições, mais
artigos, quanto mais exposições em instituições prestigiosas, mais eventos organizados e
mais livros escritos - não há diferença prática. Nunca na história da arte e da universidade
a ideia do financiamento (estudantil ou artístico) sendo sempre ligado à especulação foi
tão forte como na atualidade. A arte seja de vanguarda, seja advinda de outros tipos de
marginalidades, quando incorporada ao ciclo comercial conquista algo que os artistas em
geral vinham sonhando há tempos e perdem no todo aquilo pelo qual eles queriam ser
reconhecidos. Essa alienação do artista é mais bem compreendida e sentida por aqueles
que, tornados conscientes de que sua arte pode ser política (como a atitude da velhinha
cristã ao oferecer um pão ao mendigo), eles a vendem aos grandes bancos incorporando o
autoengano de que sua obra será “mais amplamente vista” ou que agora vê tudo “num
sentido mais amplo” - sendo que eles se tornam, na verdade, meros “pintores da corte” -
equivalente chique do “bobo da corte” (Mozart fez isso por anos, mas ele tinha duas
coisas que não temos: gênio e liberdade real de criação). Agora, quando essa cooptação
ocorre com as obras de artistas radicais isso é muito pior, porque os subterfúgios dessa
cooptação são muito mais sutis, complexos e de difícil acusação, já que se utilizam de
meios e pequenas instituições politizadas, porém ingênuas suficientes para que, ao
tentarem romper com o status quo justamente agem alimentando-o, sem sequer perceber.
Não há vanguarda com colaboracionismo de qualquer tipo; formalmente, os
vanguardistas colaboracionistas existem...vide o exemplo de Jacques-Louis David,
mendigos que precisam de pão também existem, vide os exemplos dos neo-neo-negros
que brilham os olhos ao verem a comiseração das instituições bancárias que se mascaram
em museus.

Ao descrever a noção de negatividade estética em Adorno, Cauquelin aponta que: A


entrada - no terreno da arte - do social, da política, o dever de levar em conta as
condições de sua existência como arte, para não cair em um essencialismo que oculte os
verdadeiros objetivos e chegue até a confundir o papel e a finalidade da arte: tal é o
novo paradigma com o qual a arte deve agora atuar. Dizer isso é invocar o que sempre
foi tido por princípio: a autonomia da arte, da criação e dos 'criadores', em relação ao
que é extra-estético. O desafio adorniano será preservar essa autonomia e ao mesmo
tempo indicar de que maneira é possível articulá-la a suas próprias condições.
(CAUQUELIN, A, 2005, p.82)

Se quisermos iniciar as discussões sobre a historiografia de uma “arte afro-brasileira”


autônoma, devemos nos lembrar que foi somente a partir de 1966, no 1o. Festival
Mundial de Artes Negras de Dacar, no Senegal (organizado por Léopold Senghor) que a
interação entre a “arte afro-brasileira”, a “política” e a chamada “arte negra” mundial,
passou a ter configurações que tornavam possível fazer algumas aproximações em termos
de forma e conteúdo. Artistas como Heitor dos Prazeres, Rubem Valentim e Agnaldo dos
Santos (todos os três com obras no Acervo de Longa Duração do Museu Afro Brasil e
estes dois últimos presentes na exposição temporária “Territórios: artistas
afrodescendentes no acervo da Pinacoteca”) estavam presentes naquela que foi uma
espécie de “Rali Dacar/66”, por negros para o “mundo”.

Quanto a isso, deixemos abertas as críticas negativas com relação à movimentação negra,
chamando atenção à insatisfação do filósofo euro-brasileiro Vilém Flusser quando
percebeu a ausência de artistas brancos neste festival, assumindo uma posição crítica
quanto ao conceito de negritude que o fez afirmar que: “Não existe ‘arte negra’ no Brasil,
embora os organizadores do festival de Dacar, enganados pelo modelo biologizante
ocidental, tivessem tido essa ilusão ao convidar artistas brasileiros ‘negros’ (..) o artista
brasileiro é um ser mais aberto, e pode sê-lo em virtude das influências extra-ocidentais
às quais está exposto. O Brasil oferece, pois, uma alternativa positiva à ‘negritude’.
(FLUSSER, 1966, p. 34) Parecendo intuir o movimento pós-racialista, Flusser tenta
fechar o seu artigo de maneira positiva, fazendo-se substituir a contribuição da negritude,
pela contribuição brasileira, na qual, a negritude estaria subsumida [linguagem minha], e
nesse sentido, o brasileiro também estaria subsumido em “humanidade”, e por que não
dizer a humanidade em todos os seres biológicos (ou o contrário)? E de fato, no fim de
seu artigo, esse mundo ideal preconizado por Flusser, encontra sua saída no conceito
genérico de humanidade. Seus argumentos estranhamente destoam das duras críticas aos
conceitos de “arte negra” e “negritude” (que sempre se apresentaram a si mesmos como
esse novo modelo). Essa análise de Flusser, ainda que seja no fundo uma velada ode à
mestiçagem cultural, destoa em muito de todas as análises abstratas que ele vinha tecendo
com respeito à humanidade (aparentemente sem ódios, porque nada mais é do que a
“humanidade do teórico” e não a humanidade mesma). Segundo ele, há: uma alternativa
que pode ser formulada da seguinte forma: o modelo ocidental que ameaça a
humanidade toda de fechamento na forma do aparelho automatizado pode ser superado
pela abertura a outros modelos, desde que se consiga sintetizá-los. Da síntese pode
surgir um modelo inteiramente novo, e simultaneamente a transcendência de todos os
modelos. Se conseguirmos forçar essa abertura, não seremos nem ‘brancos’ nem
‘negros’, nem cinzentos [por “cinzento” o autor quer dizer mistura amorfa de ‘brancos’,
‘negros’ e ‘pardos’ (Idem, p.33)]. Teremos dado novo colorido a uma realidade que
tende a perder toda côr, cheiro e gôsto. É óbvio que nada garante seja mantida aberta a
janela brasileira. A força do aparelho ocidental procura fechá-la, e é assistida por
tendências como a ‘negritude. Mas é provável que aqueles que assistiram ao festival de
Dacar sentiram o sôpro de libertação na contribuição brasileira. Sentiram talvez que o
Brasil é um dos poucos lugares, nos quais ainda há homens que procuram rebelar-se
contra o condicionamento humano. Que seja esta a resposta à ‘negritude’. (FLUSSER,
1966, p.35). Esta “síntese” propalada por Vilém Flusser nunca ocorreu. Ao contrário, o
que ocorreu nos anos posteriores à sua crítica aos I Festival de Artes Negras, foi
justamente a criação 22 anos depois da sedimentação não só de termos como de ideias
estéticas (por mais que vagas) e estabelecimento clássico dos artistas desta “arte negra”,
chamada de “arte afro-brasileira”, a partir das exposições “A Mão Afro-Brasileira”, de
1988 (para acrescentar a problematização terminológica digna de um I Festval de Artes
Negras de 1966, essa exposição era igualmente constituída de “apenas” por artistas
negros e “supostamente” mestiços). E somente doze anos depois desta, ocorreu a “Mostra
do Redescobrimento” 2000.

Na era do “poder das cores no equilíbrio dos ambientes”, além de ser uma interpretação
social, a cor é antes de tudo uma interpretação cerebral. O estímulo é percebido pelo olho
do curador e pela sua intuição de que pode confiar no artista que assim se deixa
interpretar, resumir, observar, essa cor e as emoções contidas nela são transmitidas como
impulsos elétricos para o cérebro do curador que define: “artista afro-brasileiro” ou
“artista”. Todos sabem das teorias das cores ligadas a ambientes de alimentação nos
shoppings centers, crivados pelo vermelho e as chamadas cores quentes que estimulariam
o apetite e a falta de percepção temporal124. Talvez a tez dos artistas influenciasse um
determinado número de curadores para fazer com que suas emoções combinadas a um

124
LACY, Marie Louise. Poder das Cores no Equilíbrio dos Ambientes Trad. Carmen Fishcer, São Paulo:
Ed. Pensamento, 1996, p. 20
nicho de mercado pudesse unir o útil ao agradável. Aqueles que desconhecem,
desacreditam ou desprezam as potencialidades de influência africanas da arte brasileira
ou mais especificamente preferem não a nomear de acordo com sua influência regional
específica, poderiam ser chamados de pós-racialistas flusserianos, mas os identifico
apenas pela designação de “universalistas” (ou “cosmopolitas”), significando que incluem
não o artista desta ou daquela cor, mas artistas negros e não-negros. Dentre esses, uns
mais radicais, como Flusser, rejeitam o termo “arte negra” e “arte afro-brasileira”, para
quaisquer categorizações possíveis entre os artistas. Para estes, “não existe arte
afro-brasileira, existe arte”125.

Clarival do Prado Valladares, que foi o comissário brasileiro e membro do Júri


Internacional para Artes Plásticas no I Festival de Artes Negras realizado no Senegal em
1966, segue uma convicção semelhante à de Flusser. Para ele: A experiência de um
festival equivale ao conhecimento do mostruário, tanto de objetos como de alocuções,
com prejuízo do diálogo e do entendimento popular. Todos parecem comprometidos com
o desempenho de urna aparência nem sempre a verdadeira, mas urna outra assumida na
visível intenção de urna atitude. O I Festival Mundial de Artes Negras, realizado em
Dacar, entre março e abril de 1966, foi precisamente dêsse tipo de experiência. Em
resumo, mostrou mais anseios que realidade. (VALLADARES, C., Defasagem Africana,
1966, p.03). Além de fazer duras críticas ao conceito de negritude, levantando a suspeita,
por exemplo de que o conceito tenha sido criado pelas elites negras africanas para se
fixarem no poder, Valladares, tal como Flusser chega a reconhecer a relevante ansiedade
de afirmação e de valorização de grupos, nações e elites africanas. (Idem, Ibidem), no
entanto, ele diz que, ao ler os programas oficiais, os temas dos colóquios, entre outros
seminários, programas de apresentações, os regulamentos e as próprias exposições
ocorridos no evento encontrou uma disparidade entre o aparente interesse na

125
Eu gosto da posição apresentada na dissertação de mestrado de Gabriela da Silva Dezidério defendida
no ano passado. Gosto, em primeiro lugar, pela docilidade de heranças infantis umbandistas com que ela
trata do tema e, em segundo, porque considera a categoria arte afro-brasileira como uma construção social
que responde a demandas conjunturais e produz uma estrutura própria, ora se valendo de critérios
regentes em outras categorias do campo artístico, ora utilizando-se de critérios próprios para a
legitimação do artista e do objeto artístico. (DEZIDÉRIO, G. da. Silva. A Construção de uma Categoria
Arte Afro-Brasileira: um estudo da trajetória artística de Mestre Didi. Rio de Janeiro: Universidade Federal
Fluminense, 2015, p. 19. [DISSERTAÇÃO DE MESTRADO]
cientificidade dessas formas de extroversão dos conteúdos do Festival e o que de fato
ocorreu.

Valladares em sua crítica ao conceito de negritude insiste, como Flusser, em considera-lo


uma resposta ao racismo, portanto, fruto mais da sobredeterminação dos brancos sobre os
negros que um decisivo recurso de politização das massas (Idem, p.05) advinda, por
assim dizer, espontaneamente dos negros. A única conotação lógica que permite se
reconhecer a negritude como razão social é a sua validade de atitude anticolonialista.
(Idem, p.04). Como estes textos de Valladares e Flusser foram publicados no mesmo
“Cadernos Brasileiros”, é de se supor que estivessem alinhados no discurso, seja por que
tivessem combinado, conversado a respeito, lido um ao outro, seja porque estavam
simplesmente certos. Mas qualquer um de nós que já participou de congressos e festivais
culturais com temas relacionados, seja na África, seja no Brasil, tende a concordar por
experiência própria com Valladares, quando ele diz que há sempre uma divisão entre os
africanistas (africanos ou europeus), empenhados em estudos racionalistas e científicos e
aqueles com grandes problemas de qualidade, de método, de princípios, e de proposições
e em alguns casos, por despreparo teórico ou metodológico, alguns africanos [e
acrescento brasileiros essencialistas] se empenham em afirmar valôres subjetivos e locais,
e que se dispõe a lutar por urna participação na civilização, creditando-se com
atribuições arbitrárias, emocionais e afetivas. De resto, essa avaliação, que pode ser um
preconceito bem elaborado também pode ser vez ou outra uma evidente constatação.
Ocorre que o paternalismo das direções dos eventos, a dificuldade de tratamento dessas
questões africanas e afro-brasileiras impõe uma disciplina que certamente não é
conquistada por qualquer um e, paradoxalmente, áreas despovoadas seja pelas inóspitas
condições locais, seja pela ausência de infraestrutura e aporte interno e externo, acabam
sendo ocupadas indiscriminadamente por forasteiros, aventureiros, aproveitadores e um
exército de ingênuos.

O modo como Valladares termina seu artigo é tão revelador que peço a vênia de fazer
essa longa, porém importante citação:
Surpreendente foi a premiação em escultura, a arte mais desenvolvida no continente
africano. Dias antes, o júri deliberou negar o prêmio denominado tradição e
continuidade para africanos, por ser óbvio o esvaziamento da ancestralidade, não
havendo tradição preservada nem continuidade legítima. Esta circunstância acresce
especial significação ao grande prêmio internacional da escultura concedido ao escultor
brasileiro Agnaldo Manoel dos Santos. O fato de ser brasileiro não o impediu revelar -se
mais autêntico, em relação ao seu vínculo cultural e ancestral africano, que os próprios
africanos de hoje. A fôrça de sua escultura é a projeção e a universalização da arte
negra, assim como ocorre em relação à música e a dança em vários outros povos. Há, na
obra de Agnaldo dos Santos, essas duas características: o vínculo arcaico-africano, e o
medieval católico, tardiamente manifestado no Brasil. Seus trabalhos revelam o
sincretismo das duas culturas a negra e a ibérica que viria a se constituir no principal
atributo do caráter brasileiro. E um exemplo da universalidade da arte negra,
manifestado e desenvolvido através de surpreendente capacidade de sincretização. E êste
seria o grande caminho para a negritude, bem oposto ao que se intenciona como
revanche ou como valorização racial, anacrônica e anódina. Penso que o caráter de
urna cultura seja mais ponderável que a contingência racial. A presença e as dimensões
universais reconhecíveis na negritude são devidas ao primeiro atributo.
(VALLADARES, A Defasagem Africana, 1969, p. 13).

Ao mesmo tempo desconfiado da defesa identitária da negritude como movimento de


elite e partidário da mestiçagem cultural e atado ao mesmo tipo de idealismo de Flusser
com relação à “possível condição avançada do Brasil”, em relação aos países africanos no
quesito “negritude”, Valladares aponta a assimilação e o sincretismo, presentes na cultura
brasileira como “acontecimentos desejáveis”, ainda que não negue a intranquilidade
racial do país: Com todos os defeitos, com tôdas as deficiências e mesmo com o
comprometimento político que afastou o Brasil da liderança de urna civilização tropical,
frustrada, de qualquer modo êsse país continua sendo o único da alternativa oposta à
negritude. O único que exerce o caldeamento racial numa formação elevada de nova
característica étnica. (VALLADARES, A Defasagem Africana, 1969, p.06). Por fim,
tanto Valladares quanto Flusser demonstraram ser os teóricos críticos do
independentismo do sujeito histórico negro com a acusação de que se trataria de um
“racismo às avessas”, como alguns dizem hoje, ou como eles próprios mais ou menos
disseram, seria uma resposta racista ao colonialismo, compreensível enquanto movimento,
mas rejeitável por falta de cientificidade (essa terminologia foi utilizada por ambos os
autores, que escreveram seus textos em 1966, no período em que ainda estavam vigentes
apartheid na África do Sul, o segregacionismo nos EUA e o mito da democracia racial na
América Latina). Depois das evoluções das luta pelos direitos civis nesses países, o
aumento das classes médias negras e da consequente pressão para a inclusão do negro,
independentemente de quaisquer cientificismos ou logicismos abstratos da “branquitude”,
muito pouco do que os autores disseram foi replicado e, ademais, os intelectuais brancos
ou bem se calaram sobre isso ou bem evocaram também com muita diplomacia e sem
muita cientificidade as loas da negrada, a exaltação da mestiçagem e a necessidade de
uma certa “negritude” controlável por meios de bolsas de estudo, projetos estatais,
secretarias negras desempoderadas e nulas e a permissão para criação de uma “arte
afro-brasileira”, ainda que teórica e politicamente insossa.

Isso não significa que, na atualidade, as teses de Flusser e Valladares tenham perdido
espaço totalmente. O movimento de massa e grande parte das ondas de valorização do
negro que criaram a possibilidade de uma arte chamada “afro-brasileira” de um lado e de
outro criaram sua perpetuação com o essencialismo e a incerteza daltônica do olhar
curador, com frequência viu suas bases questionadas. A ideia de que a arte produzida por
pessoas de determinada cor ou que faz uso plástico de determinado terma possa ser
classificada à parte da arte em geral continuou tendo os seus críticos126.

O que fica claro é que, a despeito das contra-criticas possíveis às teses de Flusser e
Valladares é que, se esta arte for “apenas” politizada como bem nos admoesta Munanga,
não há condições de salvar sua artisticidade: é a partir desta noção mais ampla, não
biologizada, não etnicizada e não politizada, que se pode operar para identificar a

126
Atualmente, essa crítica é insípida e indigna das anterioras. A crítica mais recente adveio de um artigo
da Folha de São Paulo que, no caderno Ilustrada, na véspera do Natal de 2015, um critico injustamente
resolveu tratar a exposição Territórios: artistas afro-descendentes no acervo da Pinacoteca, com a curadoria
de Tadeu Chiarelli, como uma exposiçao que “mantinha um gueto negro”- retomarei essa questão no
apêndice 2 p. 400 e ss.
africanidade escondida numa obra (Munanga, 2000, p.108). Por outro lado, a retirada
alienante do seu aspecto político é igualmente incapaz de trazer “de volta” sua
artisticidade teoricamente perdida. Ela seria, assim, limitada a algum dos planos fechados
da arte ou da política, presa a um escopo, a um polo de resistência isolada ou a um grupo
de combate com tempo de vida escasso em que a luta perpétua entre o artivismo x
formalismo artístico encontraria finalmente na arte afro-brasileira um campo também
eterno aonde se assentar... Mas a existência, no seio do país, do artista “politicamente
negro” ou os “historicamente afro-brasileiros”(termo usado por Munanga para descrever
os não-negros artistas que se assumiram herdeiros da África - (Munanga, 2000, p.109) -
pode vir a trazer novas luzes no plano das artes e da política da vida nacional, a ponto da
sustentação da univocidade do que há entre o Oyapoque e o Chuí como sendo a própria
sustentação do Brasil afro-brasileiro. Assim, apenas a descentralização e distribuição da
atenção plástica à circuitos contra-hegemônicos e a cidades e estados periféricos do país
teria capacidade de ampliar o contexto da arte brasileira a ponto de reconhecer nela a
amplitude de sua afrobrasilidade e figurar algum esboço de sua especial ‘história da arte’.

Decentralizando um Pouco o eixo Bahia-Rio-São Paulo - combate ao essencialismo negro


e à convenção que opõe a ‘erudição ‘versus o ‘popular’, via descentralização da arte
afro-brasileira

A chamada arte afro-brasileira possui em sua denominação três conceitos univocamente


integrados. 1) arte; 2) afro; 3) brasileira. Talvez seja irrelevante tanto do ponto de vista
artístico, quando da nacionalidade que esta arte tenha sido levada em conta em regiões
nas quais o desenvolvimento econômico é motor da produtividade não artística, pois essa
é como a flor de lótus, aparece até ou principalmente na lama, mas da produtividade
crítica e curatorial. O eixo de divulgação dessa arte chamada ainda de brasileira é
centralizado em dois níveis: a) nível econômico (no qual a cidade esbranquiçada como
São Paulo está na vanguarda. b) nível genético (no qual cidades que nasceram negras por
serem igualmente capitais do país, porto de recepção de africanos escravizados e
culturalmente agradável para a descendência africana etc. Permitiram a sequência na
vanguarda da divulgação desta arte chamada, por isso mesmo, de “afro”.
Porém, quando falamos da cultura afro-brasileira em geral, não podemos de forma
alguma prescindir de Estados Federativos chaves para a compreensão mais ampla das
manifestações artísticas com herança negra. Assim como a influência negra na Música
pôde também se descentralizar de modo distinto em Estados como Maranhão,
Pernambuco, Alagoas/Sergipe, Minas Gerais, certamente esses e outros Estados poderão
compor parte do que a influência negra nas artes plásticas (ainda a se descobrir)
decentralizar-se-ão do eixo Bahia-Rio-São Paulo.

Tudo bem que de fato, segundo a pesquisa do PNAD-2005 o Estado de São Paulo
contava em 2005 com a maior população negra concentrada em um Estado do país, em
12,5 milhões de pessoas que se autoproclamaram preto/pardos, mas estes representam
31% da população que também é gigantesca. Assim, relativamente, em termos
comparativos é um dos Estados com menor proporção de negros porque nos outros
Estados as auto-declarações superavam os 50% da população127.

A descentralização do olhar em relação ao que foi e tem sido feito do ponto de vista
artístico em outros Estados do Brasil é o que é mais importante. Ela nos auxiliaria na
análise técnica que pode ser feita a respeito da obra produzida por mestiços e negros a
ponto de incorporar ao mesmo tempo a crítica à concentração de poder de atração das
artes produzidas no eixo Bahia-Rio-São Paulo e da tentativa frustrada de aumentar essa
concentração museológica ou expositiva.

Obviamente, não temos o interesse aqui em esgotar a descentralização desse olhar, apenas
trazemos uns poucos exemplos da fecundidade que pode nos trazer essa prática.
Tentaremos trazer algumas informações básicas desses artistas negros de Estados
tornados periféricos pelos fatores impostos na história da arte e na economia brasileiras e
indicar como as simples referências aos nomes de artistas de circuitos distintos nos
ajudam a combate ao essencialismo negro e a convenção que opõe a ‘erudição’ a cultura
‘popular’ nas artes plásticas.

127
http://produtos.seade.gov.br/produtos/idr/download/populacao.pdf (Acessado em 18/12/2016)
O contexto militante trans-estadual e seus artistas

O primeiro exemplo que gostaríamos de chamar atenção é o de um


artista negro relativamente conhecido em seu tempo, chamado Barros.
O pintor Miguel Barros (O Mulato) (Pelotas, RS, 1913 Mogi das
Cruzes, SP, 2011), com outros intelectuais criou o Centro de Cultura
Afro-Brasileiro, com o objetivo de divulgar a obra de artistas e poetas
afro-brasileiros128. Este pintor merece uma atenção à parte por causa
ativismo negro, a qualidade de suas pinturas frente a de outros
ativistas e por ajudar a organizar a Frente negra Pernambucana
juntamente com Solano Trindade, Vicente, Gerson Lima, entre outros.
Além disso, ele é um dos participantes do I Congresso
Afro-Brasileiro em Recife (1934), aonde denunciou a discriminação
racial no Rio Grande do Sul e fez um relato da situação da mulher
negra no país.129 Sabemos que o radicalismo social e as artes no
Brasil nem sempre andaram juntos e ainda menos com esse grau de
qualidade técnica a percepção de negritude advinda desses outros
meios político-artísticos também fazem parte dessa história que
Jornal gaúcho:
“O Imparcial” precisa ainda ser contada. Fiquei, por exemplo, extremamente feliz em
(07/02/1939)
poder encontrar no acervo do MASC, Museu de Arte de Santa Catarina,
duas belezinhas deste artista, Barros, o Mulato130. A melancolia dos tons, a perspectiva

128
Rachel de Oliveira. Tramas da cor: enfrentando o preconceito no dia-a-dia escolar. São Paulo: Selo
Negro, 2005. p.71.
129
GOMES, A.dos Santos. A Formação do Oásis: dos Movimentos Fentrenegrinos ao Primeiro Congresso
Nacional do Negro em Porto Alegre - RS (1931-1958). Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul, 2008 [DISSERTAÇÃO DE MESTRADO]. Falando especificamente, em sua exposição
Miguel Barros comentou sobre as proibições submetidas aos negros da visitação em lugares públicos tais
como teatros, cafés, barbeiros, colégios etc. Referiu-se ao lugar do negro como o de um “pária social”;
comentou sobre o desdém da elite aos intelectuais negros, bem como o desprezo que tem pelas jovens
negras formadas, que não estavam encontrando emprego, e eram obrigadas a mudar de profissão. BARROS,
Miguel. Discurso do representante da Frente Negra Pelotense. In: FREYRE, Gilberto (org.). Estudos
Afro-Brasileiros: trabalhos apresentados ao 1º Congresso Afro-Brasileiro. Recife, 1935, 1º volume, Ariel –
Editora LTDA, 1935, (p. 269-271). Ver também:
http://www.portalafricas.com.br/v1/dois-grandes-congressos-afro-brasileiros-que-marcaram-epoca-nas-ciencias-sociais/
130
http://www.masc.sc.gov.br/?mod=acervo&ac=autor&id=545 Acessado em 13/12/2016.
turva gerada pelo efeito de névoa em ambas as obras deste artista no acervo dão ao
quadro uma ambientação que o associa aos artistas com grande domínio técnico.

Há uma crítica bastante positiva sobre ele num jornal gaúcho “O Imparcial” de
(07/02/1939), no qual, embora a referência a “uma technica impulsiva” que lhe
caracteriza remeta às tentativas racialistas na estética, o tom geral é cuidadoso, de
aparência sincera e digna de nota, para um pintor negro de Rio Grande do Sul da década
de 30.

Pelotas de Ontem
Barros, o Mulato
Frente Negra Pelotense
Fonte: http://pelotasdeontem.blogspot.com.br/2016/08/barros-o-mulato-e-frente-negra-pelotense.html

Miguel Barros, o mulato


Igreja de Ouro Preto c.1940
30x40cm. Acervo: MASC-SC
Miguel Barros, o mulato
Paisagem de Ouro Preto c.1940
30x40cm. Acervo: MASC-SC

A filha do cantor Dorival Caymmi também relata uma história curiosa a respeito de
Miguel Barros em seu livro “Dorival Caymmi: o mar e o tempo” ao dizer que “O
Mulato”, que era comunista, teve uma livraria na rua Barão de Itapetininga frequentado
em 1946 por Caymmi e passou a se chamar “Clube dos Artistas e Amigos da Arte”
depois que, paradoxalmente, o mulato e Caymmi conseguiram um financiamento nada
mais nada menos do que do Ciccilo Matarazzo131.

O contexto social da época era de fato de muita ebulição. Não o incluo nas ondas de
valorização do negro simplesmente por razões metodológicas, já que trato essas ondas
como ímpetos que tiveram domínio de instituições não dirigidas amplamente por negros e
no fundo se trata de uma crítica a um tipo específico de valorização. Nestes casos em que
um determinado movimento negro ou um movimento artístico modernista do tipo dos
círculos de Dorival Caymmi, Abdias do Nascimento e Solano Trindade, assim como no
tropicalismo, nas práticas performáticas de Oiticica, no teatro da Uzyna, Uzona de Zé
Celso etc. não era possível fazer a distinção entre o que é ‘macumba’/arte,
negritude/branquitude e afro/brasileiro.

Nesses períodos de ebulição muito pode ocorrer na periferia dessas ondas de valorização
que, assim como as grandes ações dos militantes dos movimentos negros, da imprensa
negra etc. Não há uma espera ou uma dependência de instituições amplamente dirigidas
por brancos. Assim, dentre os anos de 1942 a 1970, um exemplo desses militantes que se
decentraliza dessas ondas de valorização é o Maestro negro Abigail Moura (1904-1970),
131
Stella Caymi. Doroival Caymi: o mar e o tempo. São Paulo: Editora 34, 2001, pp.242-243.
um mineiro que conduziu a vanguardista “Orquestra Afro-Brasileira”. Outro exemplo,
ocorrido também 8 anos depois do primeiro congresso afro-brasileiro, foram as ações de
artistas como Abdias do Nascimento e Solano Trindade que começaram a formar grupos
teatrais e de dança compostos exclusivamente por negros ampliando a arte afro-brasileira
da área musical para o Teatro e do Teatro para as plásticas, sendo que o nome de Abdias
se transforma em grande figura desta transição132.

O TEM (Teatro Experimental do Negro) já havia sido gerido desde um ano antes. Mas,
também, em 1945, eles criam juntos o “Comitê Democrático Afro-Brasileiro”, ligado ao
nome de Abdias, que estava na liderança de Congressos “Paralelos” aos Congressos
‘acadêmicos’, ou seja, realizavam uma contraposição aos Congressos Afro-Brasileiros
realizados no Recife (1934) e na Bahia (1937). Essa “cisma” teórico-prática, ocorrida
depois de 1937 fizeram com que pesquisadores os dividissem entre “Congressos
Acadêmicos (34 e 37; conduzido sobretudo por intelectuais brancos como Gilberto Freyre
e Ulysses Pernambuco) e Congressos Militantes (38, 46, 49 e 50, organizados
principalmente por negros como o excepcional Guerreiro Ramos, Edison Carneiro e
Abdias do Nascimento) ”. Quanto aos Congressos “Militantes”, que não tomavam o
negro como “estudo e objeto” e sim, pretendiam se tratar como protagonistas, foram eles
o “Congresso Afro-Campineiro” realizado em Campinas em 1938133, a “Conferência
Nacional do Negro”, realizada em 1946, a “Convenção Nacional do Negro”, realizada no
Rio de Janeiro em 1949. Além do “ Congresso Nacional do Negro” (também chamado I

132
A importância do TEN de Abdias é que este grupo formou a primeira geração de atores negros, entre os
quais destaca-se Léa Garcia, Ruth de Souza, Agnaldo de Camargo, Haroldo Costa, entre outros. Ele foi
também Dramaturgo, publicou as peças Sortilégio e Dramas para Negros e Prólogo para Brancos. Entre
outros livros de poesia, sociologia, etnologia, chagando a publicar O Negro Revoltado (1968) e O
Genocídio do Negro Brasileiro (1978). Foi deputado federal em 1983 e senador da República em 1997.
Além de ocupar um cargo como secretário de Defesa da Promoção das Populações Afro-Brasileiras,
secretaria criada pelo governador Leonel Brizola, no Rio de Janeiro. Mas não percamos de vista outras
trupes que também tiveram sua importância, mas que de uma forma ou de outra tiveram menos implicações
para as artes plásticas: Teatro Folclórico Brasileiro (ou Teatro dos Novos) / RJ (Haroldo Costa) (1949);
Teatro Popular Brasileiro (TPB) / RJ (Solano Trindade) (1950); Associação Cultural do Negro (ACN) / SP
(Geraldo Campos de Oliveira, José Correia Leite, José Assis Barbosa) (1954), entre outras.
133
No ano anterior, o ex-soldado da Frente Negra (1930-32) Abdias do Nascimento, depois de protestar contra a
ditadura do Estado Novo foi condenado pelo Tribunal de Segurança Nacional e cumpriu pena na Penitenciária da Frei
Caneca. Ao sair da prisão em abril de 1938 o Abdias se reúne com ativistas de Campinas como Aguinaldo Camargo e
Geraldo Campos de Oliveira e promovem o I Congresso Afro-Campineiro, numa cidade paulistana em que havia na
época um segregacionismo do tipo norte-americano, como placas de rua indicando “lugar para negros e lugar para
brancos”. http://promemorianegradecampinas.blogspot.com.br/2008/09/congresso-afro-campineiro-1937_13.html
Congresso do Negro Brasileiro)134, realizado também no Rio de Janeiro em 1950, entre
outros, em todos eles de algum modo as questões sociais abriam algum espaço para
discussões de nível artístico.

Se na perspectiva musical destacaram-se os dois textos anteriores, do ponto de vista


relacionado à pintura, um artigo jornalístico expõe de forma detalhada as exposições do
1º Congresso Afro-Brasileiro e os principais artistas: Cicero Dias; Di Cavalcanti;
Noêmia; Manoel Bandeira; Santa Rosa e Lasar Segall. O texto: “A exposição de pintura
no 1º Congresso Afro-brasileiro” de Luís Jardim merece destaque pelo posicionamento
assumido em relação à influência africana na cultura brasileira. Na introdução do
ensaio, o artista pernambucano desenvolveu as suas principais reflexões acerca da
cultura afro-brasileira e dentro de uma ideia essencialista, o artista pernambucano
acreditava que o encontro realizava-se tarde, dada a “experiência” brasileira
caracterizada pelo intenso branqueamento da população negra, o que impossibilitava a
percepção de uma pureza africana ainda presente no Brasil. Frente a esta mobilização
histórica, Luís Jardim lançou mão de um “horizonte de expectativa”, pensando a
alteridade brasileira em ralação aos Estados Unidos, isto é, se por um lado, no Brasil em
um século já não teríamos mais negros em função da constante miscigenação, por outro,
nos Estados Unidos, a forte segregação resultaria no aumento considerável da
população negra. Diante disso, o autor parabenizou os promotores do 1º CAB, que
estavam legando as futuras gerações o estudo de uma raça em extinção no país. O texto
de Luís Jardim corresponde a uma das parcas produções escritas sobre a pintura no 1º
CAB, porém, no campo literário, religioso e folclórico, cinco importantes nomes
produziram seus ensaios para o conclave, ou seja, Mário de Andrade, Jorge Amado,
Câmara Cascudo, Arthur Ramos e Edson Carneiro. Em que pese o 1º CAB ter na figura
de Gilberto Freyre o seu principal expoente e interlocutor, dentro das diferentes

134
SILVA, J. Movimento Social Negro Após o Estado Novo: grupos, conferências e jornais. ANPUH –
XXIII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Londrina, 2005 p.2. Disponível em:
http://anais.anpuh.org/wp-content/uploads/mp/pdf/ANPUH.S23.0535.pdf . Alguns textos desse congresso precisam ser
referenciados: "Estética da Negritude", de Ironides Rodrigues (trabalho ainda inédito, mas apresentado no
1o. Congresso do Negro Brasileiro, 1950), o mesmo congresso em que Mário Barata apresentou seu
seminal "O Negro e As Artes Plásticas", Mário Pedrosa apresentou "O Negro e a Arte Moderna", contando
ainda com trabalhos de Roger Bastide, Gilberto Freyre, Afonso Arinos, Guerreiro Ramos, Luis da Câmara
Cascudo. Ver: http://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/9659/9659_6.PDF
temáticas desenvolvidas, o autor publicou dois textos apenas, ambos no segundo volume
de 1937, ou seja, uma espécie de prefácio contextualizando: “O que foi o 1º Congresso
Afro-Brasileiro? ” (SKOLAUDE, M.S. Identidade Nacional e Historicidade: o 1o.
Congresso Afro-Brasileiro de 1934. XII Encontro Estadual de História ANPUH/RS, 2014.
p.12)

As abordagens artísticas dos congressos afro-brasileiros não se centravam nas artes


plásticas. A maior parte dos poucos artigos publicados nos Anais diziam respeito as artes
no sentido mais genérico, no mais das vezes tendendo para a oposição clássica entre os
padrões eruditos da representação artística ligados à academia e os padrões populares
ligados à uma tradição genuína, porém considerada ingênua, familiar ou “espontânea”.

Nessa chave certamente foi incluído um artista negro “descoberto” por Abdias do
Nascimento, chamado José Heitor da Silva (1937) de Minas Gerais. A respeito do artista
cito uma referência a ele que encontrei na internet. A citação é um tanto longa, mas vale a
manutenção da referência, sobretudo pelo alto grau vaporização e desaparecimento desse
portais virtuais e suas informações ao longo do tempo: “Em homenagem a memória de
Abdias do Nascimento, o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-brasileiros (Ipeafro), em
parceria com o Ministério da Cultura, Fundação Cultural Palmares (FCP) e o Centro
Cultural da Justiça Federal do Rio de Janeiro, realizou a exposição “África-Brasil,
Ancestralidade e Expressões Contemporâneas”. A mostra fez uma abordagem áudio
visual da história, tradição e simbologia das civilizações africanas e suas contribuições
para o legado cultural brasileiro”. Trabalhos de artistas que promovem a valorização da
cultura afrobrasileira foram selecionados para compor o acervo da exposição. Integram
a mostra: José Heitor da Silva (escultura em madeira), Sebastião Januário (pintura),
Luiz Carlos Gá (design gráfico) e Maurício Pestana (cartuns e cartazes). A atriz Léa
Ferraz comparece com o prêmio que ela criou e que foi outorgado a Abdias Nascimento,
em 2007.

O escultor José Heitor da Silva descobriu o seu talento de escultor em uma noite chuvosa
quando ainda um jovem garoto, sozinho em sua casa, começou a fazer escultura de
crianças para lhe fazerem companhia e aplacarem o medo. Depois do ocorrido começou
a se divertir esculpindo os amigos reais durante as brincadeiras, até que incentivado por
uma professora passou a aperfeiçoar os traços utilizando madeira. José Heitor desde
então, constrói e reforma imagens sacras e imagens de personagens da cidade em
tamanho natural como a famosa “Carijó”, esculpida por ocasião do centenário da
cidade, em 1983.

José Heitor é mais um artista alemparaibano que teve que “atravessar a ponte” para ter
seu trabalho reconhecido e foi no posto Cotril que viu sua arte ganhar o país através da
BR116. Contou que levava suas esculturas para expor no posto de gasolina e lá ficava
esperando que surgisse um apreciador. Rosário Fusco, poeta cataguasense e um dos
criadores da Revista Verde, foi um dos que reconheceram o valor de sua arte ajudando a
divulgá-la.

Quando fala da comercialização de suas esculturas, José Heitor é enfático: “Minhas


esculturas são como filhos tem valor, mas não tem preço. Então, quando exponho com o
intuito de comercializá-las peço aos donos das galerias que deem os preços. Não posso
vender meus filhos. (Fonte: Memória Viva da Cultura de Além Paraíba e Região/Andrea
Toledo) https://www.youtube.com/watch?v=gABNkjsfJfI

Alternando entre uma composição comum que o associa aos outros artistas populares que
são batalhadores da arte, isto é, tem uma ciência de onde encontra sua capacidade de
venda das obras, e uma gestualidade vigorosa modernista que faz sua escultura digna de
nota José Heitor um dos maiores escultores negros ainda entre nós que faz associação
direta com sua obra à negritude. Dentre os artistas negros vivos, talvez ele fosse um dos
únicos que não teríamos dúvida em enquadrá-lo no eixo de “arte afro-brasileira” porque
isso é afirmado pelo próprio artista que faz um esforço próprio de identificação com suas
origens negras e sua ligação de amizade com Abdias do Nascimento, entre outras
militâncias negras no campo da arte, nos auxiliando a perceber que a arte afro-brasileira
talvez encontre maior fôlego antes na análise individual dos artistas que em uma
generalização, alimento para todo essencialismo negro135.

No presente esboço dos estudos de arte afro-brasileira, em especial com objetivo na


descentralização do olhar sobre produção de arte com herança africana, não levamos em
conta as distinções hierárquicas das formas. Isso deve ser igualmente distribuído quando
falamos da descentralização do eixo Bahia-Rio-São Paulo. Aos artistas distribuídos em
outros Estados, portanto, valerão os mesmos critérios de análise dispostos até aqui.
Afeitos que somos à avalanche modernista, nas possíveis leituras das obras dos artistas
que honram algum tipo de ascendência africana ninguém mais quase considerou
necessário distinguir dentre obras aquelas que seriam populares das eruditas. Conviria,
entretanto, com vistas apenas em seu posicionamento dentro da historiografia de arte no
país, que apresentássemos razões biográficas que caracterizassem informalmente os
artistas das Academias e Escolas de Belas Artes e os autodidatas e pertencentes a grupos
de transmissão artística familiares em especial em relação a artistas fora de eixos urbanos,
mas que isso sirva tão só para compreensão de suas obras dentro dos interesses e aspectos
que os artistas e as obras manifestaram no seu período de maior ebulição. Essa
metodologia, se seguida à risca também seria útil para a própria definição da arte
afro-brasileira dado ao fato de que ela também encontrou um movimento de má-fé contra
si quando foi feita uma tentativa de colocá-la em seu local de origem “naïf” ou
“primitivo”, no que esses termos se constituíram de excêntricos e distantes do que pôde
antes ser considerado “arte”.

Por trás da discussão sobre o descompasso hierárquico entre a arte erudita e a popular, a
arte afro-brasileira, mesmo a que esteve fora do eixo referido sempre se viu associada a
elementos essencialistas que a configuraram em termos teóricos e a seu modo, racistas.
Enquanto uns querem uma cientificidade para a movimentação negra e as formas
manifestas de sua identidade e outros querem associar à crítica explicações estéticas que
vinculem a cor da pele às elaborações de ordem artística. A exemplo citamos: A negritude
135
Num sensível documentário intitulado “José Heitor - O imaginário em madeira” de Carlos T. Moura há
um relato de primeira pessoa do artista que vale muito a pena de ser assistido e é um exemplo interessante
do que tratamos aqui como uma necessidade da referência afro-brasileira que é a tomada do “artista
individual”: https://www.youtube.com/watch?v=B3pCmmTFPZQ
é muito mais sentimento do que conhecimento. Carece de razão científica, de explicação
histórica, embora se origine de todo o processo compressivo do colonialismo
multissecular. (...) Negritude, embora seja um neologismo ligado ao étimo negro, é mais
urna deformidade da civilização branca. (VALLADARES, A Defasagem Africana,
p.04-05

E, com relação à oposição entre a racionalidade e mito:

Não se trata da sobreposição simples, ambígua e conciliatória de formas afro-brasileiras


e africanas à geometria euclidiana. Valentim reelabora suas referências ao fundir a
geometria mítica das religiões afro-brasileiras à racionalidade construtiva. (CONDURU,
2007, p.70)

Com toda certeza, o essencialismo, o positivismo, assim como as contraposições norte-sul,


mata-cidade, primitivo-civilizado não ajudaram aos negros artistas nem antes e nem
depois, nem hoje e nem nunca os ajudarão a serem eles mesmos. A própria fala de
Emanoel repetida aos milhares de que “o Museu Afro Brasil não é um gueto, não é um
museu do negro, é um museu do Brasil”, indica isso – para serem aceitos nesses círculos
quaisquer sombras de ação política negra engajada, auto referencial na negritude ou
mesmo algum essencialismo artístico, deve ser atenuado por linguagens pomposas
mesmo que com pouco significado.

Essencialista ou não a recuperação de uma continuidade estilística entre as Artes das


Áfricas e as Artes do Brasil ganhou muitos adeptos. Emanoel Araujo acrescenta a
influência dessa “maneira de ser” na arte popular. É só aos poucos que a expressão de
uma alma negra se incorpora às artes plásticas no Brasil. Levaria tempo para que, na
pintura e na escultura, se deixasse para trás modelos de representação eurocêntricos,
onde, aqui e ali, apenas a exuberância de uma cor ou a forma inconsciente de um
desenho e o reducionismo de uma forma traíam a presença da mão afro-brasileira, e em
especial na arte popular. Foi preciso abandonar esses modelos para que se chegasse
enfim à poderosa afirmação plástica da herança africana, na estatuária de corte arcaico
de Agnaldo Manoel dos Santos, no trabalho de Mestre Didi, entre a arte e o objeto ritual,
ou no sofisticado construtivismo de Rubem Valentim, que reinventa ícones de um
imaginário negro, na obra de um Mário Cravo, um Ronaldo Rego, um Carybé ou uma
Maria Lídia Magliani (...). (ARAUJO, E., 2000 Negro de Corpo e Alma, 2000, p.53).

Duas questões nos chamam a atenção nesta passagem. Em primeiro lugar a noção de que
a incorporação da arte afro-brasileira tem sido feita progressivamente e em segundo lugar
a noção de que o abandono dos que Araujo chamou de ‘modelos eurocêntricos’ atingido
por Agnaldo Manoel dos Santos, Mestre Didi, Rubem Valentim, Mário Cravo, Ronaldo
Rego, Carybé e Maria Magliani teriam sido a razão da “afirmação plástica da herança
africana”. É questionável ao observarmos pelo menos superficialmente em que sentido
Rubem Valentim, Carybé ou mesmo a pelotense Maria Lídia Magliani “abandonaram os
modelos eurocêntricos”, mas me perece certeira a perspectiva de que as bases populares
da arte afro-brasileira de certa forma a fundamentou, historicamente ou não. No caso de
Emanoel, parece que est foi uma perspectiva histórica que foi abandonada, eu já acredito,
de forma semelhante a Marianno Carneiro da Cunha (1983, p.995) que essa arte tem
bases populares muito mais profundas, mesmo na atualidade, e a despeito desses “eleitos”
a uma “afirmação” a suposto “eruditismo” afro-brasileiro. Parte dessa análise de Emanoel
Araujo encontra eco, portanto, no maior defensor deste continuísmo, Carneiro da Cunha,
no que diz respeito às bases populares desta arte.

Convém frisar desde já que o que se afirmou da arte africana é igualmente válido para a
arte afro-brasileira, isto é, trata-se de uma arte conceitual, icônica: para a sua justa
apreciação, impõe-se conhecer-lhe o universo simbólico subjacente, as representações
coletivas orientadoras de seu processo criador. Esta arte nos é fornecida de maneira
mais direta na parafernália das divindades afro-brasileiras, no culto dos orixás, logo, em
uma arte considerada ‘popular’. (CARNEIRO DA CUNHA, 1983, p.995)

Não só por essa razão, mas também por causa disso, deve-se compreender a arte
produzida por negros ou a chamada arte afro-brasileira nos recursos a ela dados quando a
classe social do artista o permite ou o impede de se inserir no circuito de artes
principalmente considerando uma maioria de artistas fora do eixo Bahia-Rio-São Paulo,
que deverão ainda se inserir nesse eixo para somente depois, talvez se incorporarem em
circuitos além. Falando dos artistas negros de classe média em Estados em que eles são
maioria como a Bahia e Minas Gerais que conseguem se inserir “nas artes visuais ditas
cultas” Aracy do Amaral, mesmo sem nomear os artistas, nos lembra por outro lado que:
Por antítese, em estados em que o negro é minoria, como no Rio Grande do Sul, ele
frequentemente tem acesso à educação de forma igualitária, obtendo, por essa razão, a
possibilidade de sua inserção na classe média dos meios urbanos mais populosos, sendo
igual fenômeno observável também no Paraná (ARACY, A. 2010, p. 10).

Nos parece no mínimo estranho que se fale ainda hoje de artistas negros ou mesmo de
arte afro-brasileira, sem se cogitar quais são os eixos comumente associados a esse tipo
de produção artística. Não temos motivos concretos para restringir essa produção aos
eixos convencionais, nem por razões numéricas em termos de artistas, obras,
colecionadores e de coleções, nem em função dos artistas supostamente não manifestarem
talentos muito apreciáveis comparativamente aos talentos dos artistas do eixo
Bahia-Rio-São Paulo.

Vejamos por exemplo, o caso de outros artistas gaúchos:

Guma. Nascido em Tapes (RS), em 1924, o artista se sediou em Porto Alegre a partir de
1942. Curiosamente, o artista encontrou algum reconhecimento crítico nos círculos do
eixo, a despeito de sua pele clara e embora tenha vivido toda sua vida no Sul
(CARNEIRO DA CUNHA, p. 1025). Segundo o poeta e crítico de arte Walmir Ayala
“Seus seres são atarracados, telúricos, plantados no chão, de saga simples e anônimos,
simbolizando com candura o biotipo espiritual e físico de uma raça”136

Outra figura emblemática é o pintor, desenhista, artista gráfico gaúcho Adão Odacir
Pinheiro (Santa Maria do Boca do Monte, Rio Grande do Sul, 1938). Ele também foi
gravador, entalhador e cenógrafo. Como sabemos, todas as gerações de artistas (e isso

136
http://www2.camarapoa.rs.gov.br/default.php?reg=1601&p_secao=172 Acessado em 12-12-2016.
não se limita aos artistas negros) certas profissões relacionadas seriam aquelas que
manteriam financeiramente os artistas. O trabalho da cenografia no início do século xx
representava o papel que o magistério significou para os artistas negros no final do século
xx e atualmente e talvez signifique o mesmo que outras profissões desempenhadas pelos
negros artistas para seu sustento daqui para o futuro, profissões ligadas a museus em geral
que tem aberto espaço para artistas negros trabalharem como conservadores de obras,
pesquisadores e até como curadores. Esse dado me parece importante para uma “história
da arte afro-brasileira”, as profissões ocupadas por negros artistas se repetem na
esmagadora maioria das vezes, demonstrando que a origem e os acontecimentos da vida
individual do artista podem implicar na interpretação das definições de arte expressadas
pelos próprios artistas, pelos curadores e pelo público.

Adão Odacir Pinheiro atuou como professor de desenho e entalhe na Escolinha de Arte
no Palácio dos Bispos em Olinda, Pernambuco. Mas também promoveu, de forma muito
interessante um estudo do artesanato popular nordestino e da cultura africana, em meados
de 1968 no Rio de Janeiro. Ele chegou a exercer nos anos de 1980 também o cargo de
diretor da Fundação de Cultura, Turismo e Esportes de Olinda137.

Outro artista interessante do circuito do Rio Grande do Sul que me atrai muito é Djalma
Cunha dos Santos. Ele nasceu em Alegrete, no Rio Grande do Sul- RS (1931 - 1994).
Foi igualmente figurinista, cenógrafo, desenhista, pintor e professor. De acordo com a
descrição de um vídeo-documentário da bela CULTNE Djalma do Alegrete “Concluiu
seus estudos artísticos no Instituto de Belas Artes de Porto Alegre (1957), tendo se
especializado em retratos. Entre 1958 e 1962 criou vários cenários e figurinos para
teatros no Rio Grande do Sul. São também de sua autoria os com os quais, em 1963, Ieda
Maria Vargas conquistou os títulos de Miss Rio Grande do Sul (Porto Alegre), Miss
Brasil (Rio de Janeiro) e Miss Universo (Miami). Foi professor de desenho e participou,
dentre outras, da Exposição de Artistas Gaúchos, no Leme Palace Hotel (Rio de Janeiro)

137
Adão é também um dos que ganharam algum destaque do Eixo ganhando uma referência
mini-biográfica da Enciclopédia do Itau Cultural: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa22154/adao-pinheiro. ver
também: ARAÚJO, Emanoel (org.). A Mão afro-brasileira: significado da contribuição artística e histórica.
Prefácio Joel Rufino dos Santos. São Paulo: Tenenge, 1988.
e realizou várias mostras individuais pelo Brasil138. A estes gaúchos acrescente-se nomes
como Jaci e Antônio Maia, Gilberto Ferreira da Silva, José Antônio dos Santos e a nossa
querida Maria Lídia Magliani, entre tantos outros.139

Fazer o levantamento da cena afro-brasileira nas artes plásticas de outros Estados é tão
prolífica quanto obrigatória, porém, preferindo evitar fazer aqui este levantamento, dado a
humilde análise proposta aqui relativa às questões conceituais das origens do
qualificativo “afro” nas artes plásticas, deixemos este trabalho para os mais jovens
entusiastas da arte brasileira que conseguirão ir mais longe dedicando trabalho específico
de descentralização da arte afro-brasileira ou aquela produzida por negros, mestiços ou
brancos herdeiros da África fora deste eixo.

Mesmo assim, pensando ainda na descentralização com gostaria de oferecer aos leitores
um primeiro levantamento das exposições de artes plásticas relativas às grandes temáticas
afro-brasileiras.140 Durante a segunda metade do séc. XIX e primeira do séc. XX
ocorreram diversos salões de belas artes, mostras esporádicas, concursos de liceus e
exposições anuais das Academias Imperial e a posterior Escola Nacional de Belas Artes –
essas exposições continham negros artistas, mas nenhuma detinha o estrito caráter
“afro-brasileiro”. Muitas outras exposições com essa temática ocorreram durante a
segunda metade do séc. XX e a maior parte delas incluía objetos litúrgicos da
religiosidade afro-brasileira e alguns objetos de arte africana como integrantes de

138
CULTNE - https://www.youtube.com/watch?v=xqYSijVRZPs este mini documentário imperdível é
algo muito precioso, que remete à minha própria noção do que é um artista negro ligado às questões
afro-brasileiras. Este documentário me fez perceber com grande interesse que Djalma do Alegrete está na
vanguarda de Lima Barreto e dos irmãos Timótheo, resguardadas as devidas proporções e desproporções
tão dignas de uma afro-brasilidade despretenciosa, sorridente, sofredora e livre.
139
Para conhecer um pouco mais sobre a cena cultural afro-brasileira no Rio Grande do Sul ver: SILVA, F.
G.; SANTOS, J.A., & CARNEIRO, L.C.C., Rio Grande do Sul Negro: Cartografias sobre a produção do
conhecimento. Porto Alegre: ed. PUC-RS, 2010. Disponível em:
http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/rsnegro/e-book.pdf
140
Com alguma frequência, especialmente (SALUM, 2000, 2004, entre outros textos da autora) é possível
encontrar listagens referentes a exposições deste tipo. Foi seguindo os passos deixados por autores como a
Lisy Salum, que completamos este primeiro levantamento das exposições “afro-brasileiras”, inserindo nesta
lista exposições de instituições periféricas (dado sua importância na apresentação de boa parte excluída dos
grandes centros culturais); incluímos ainda, quando possível, exposições fora do Eixo Bahia-Rio-São Paulo.
exposições genericamente consideradas de “arte negra” entre outras conotações cheias de
dificuldades teóricas.

Mas dizer que a conceituação da arte-afro-brasileira possua critérios que podem, no limite,
colocá-la em cheque não significa dizer nem que não haja uma produção afro-brasileira
enquanto tal ou que não haja uma arte produzida por afro-brasileiros e nem que alguns
artistas afro-brasileiros devam ser excluídos do rol da história da arte por causa de suas
tendências políticas pessoais ou por causa de um certo anacronismo real com relação à
expressão apolítica ou pseudopolitizado do cenário artístico mundial de hoje. O maior dos
cheques que essa arte poderia relegar para sua história seria o de tratar as figuras do eixo,
as únicas figuras ou as que mais sintetizam

Expondo Arte Afro-Brasileira

Talvez alguém preconize um futuro pós racial em que uma “história da arte brasileira”
não tenha muitos de seus capítulos como “história da arte afro-brasileira”. Todavia,
mesmo diante desse futuro possível, jamais poderemos imaginar que a história da arte
produzida no Brasil possa ser contada sem os seus artistas afro-brasileiros.

Se não a arte, pelo menos o artista afro-brasileiro. Dito em outras palavras, haja a arte
afro-brasileira na existência do artista! Falemos, pois, principalmente, dos artistas cuja
ascendência demarcou um espaço de fala para as realidades do país. Assim, as
importantes exposições de artistas afro-brasileiros ocorridas dentro e fora de instituição
tanto quanto dentro e fora do país, que visaram preservar a memória e os desdobramentos
da história da presença africana no país contribuíram por isso mesmo para essa realidade
cultural brasileira. Se estes artistas forem chamados às exposições por serem negros ou
mestiços, que não sejam formadores de um nicho de mercado museológico ou de artes,
como se o ponto de divergência, referência e modelo fosse os artistas brancos e aqueles
ali reunidos representassem “os outros”, ainda que o discurso não seja ambíguo e
pretenda realmente a valorização de algo historicamente desvalorizado, subalterno ou
marginal.

Os artistas afro-brasileiros existem. Seja por merecimento, por um movimento de boa-fé,


seja por dó ou por paternalismo, em algum momento alguns serão incluídos dentro da
história da arte brasileira. Resta saber como ocorrerá esta inclusão. Se for como sempre
tem sido feita, individualmente, caso a caso, então o fator fenotípico, ainda que se
mantenha importante para o artista, deverá ser secundário para a percepção de sua arte. Se,
ao contrário, essa inclusão se der por meio de movimentos ou ações de grupos de artistas,
estes terão de ter a consciência de que nunca na história do conceito de arte afro-brasileira
ou nas práticas dos artistas afro-brasileiros eles se constituíram como um grupo coeso ou
com poéticas similares a ponto de formarem um bloco único ou que defendessem nos
seus matizes alguma coerência de conjunto. Sendo assim, percebemos que esse tipo de
manifestação artística se refere tanto a um momento histórico específico quanto necessita
de impulsos políticos ou identitários ainda maiores como motores dos seus impulsos
artísticos e isso impõe uma enorme tarefa para o teórico do conceito “arte afro-brasileira”
que é não mais fazer uma definição abstrata, mas uma síntese de definição histórica: a
arte afro-brasileira, seja o que for, será resultante de sua própria temporalidade. Como diz
Munanga (2000, p. 99)

“Mas que africanidade é essa, quando sabemos que os criadores dessa arte são os
descendentes de africanos escravizados que foram transplantados no Novo Mundo?
Transplantação essa que operou um corte e, conseqüentemente, uma ruptura com a
estrutura social original. A partir dessa ruptura, que, hipoteticamente, teria provocado
uma despersonalização, ou seja, uma perda de identidade, ficam colocados o problema e
as condições de continuidade dos elementos de africanidade nessa arte, por um lado, e a
questão das novas formas recriadas no novo Mundo e de como essas novas formas
poderiam ainda ser impregnadas de africanidade, por outro. Não há como fazer essa
operação sem situar a chamada arte afro0brasileira no contexto histórico no qual surgiu,
ou seja, sem considerá-la em função de uma época e de uma história que portam a marca
de uma sociedade que foi arrancada de suas raízes. ” (MUNANGA, 2000, p.99)
É fato que não existe o que poderíamos chamar de uma “tradição figurativa” nas artes
plásticas chamadas “afro-brasileiras”. Se algum dia ela se constituir, ela deverá ter em
conta não só a inserção efetiva da herança africana no país, a inclusão de pelo menos
alguns dos artistas afro-brasileiros (já que estes não poderão passar ao largo dela), além
do estabelecimento de exposições que demarquem propositivamente este espaço artístico,
do mesmo modo como ocorreram exposições de movimentos artísticos fundantes dentro
da história da arte.

Assim, se por um lado podemos definir a arte afro-brasileira com a ajuda de sua
descentralização regional também o poderíamos por meio da observação de que tipo de
exposições esses artistas assim referidos participam (colocamos em negrito aquelas
exposições que, por inúmeros motivos, devem ser destacadas):
Expondo a Arte Afro Brasileira
Lista de Algumas Exposições de Arte com Heranças Africanas

*Congressos Afro-Brasileiros: Recife e Salvador (1934-7). Primeira exposição de arte ritual (1934).

*Motivos Rituais Afro-brasileiros, Ministério da Educação, Rio de Janeiro, 1946 - com pinturas de
Wilson Tibério (ver: Diário de Notícias, 29 de Nov. 1946 e Jornal do Brasil, 08 de Dez. 1946)

*Exposição de Arte Negra Museu Paraense "Emilio Goeldi" - Peter Paul Hilbert (1949-50).

*Mostra Artistas Modernos da Bahia, na Galeria Oxumaré. (1956) com obras de Rubem Valentim - no
ano anterior ele havia "descoberto a arte negra", num mesmo ano de valorização do negro em que
recebe o prêmio Universidade da Bahia no VII Salão Baiano de Belas-Artes (1955)

*Módulo “Bahia” na V Bienal Internacional de São Paulo, 1959 - Agnaldo Manoel dos Santos. Primeira
exposição associando Agnaldo ao “primitivismo”.

*Festival Mundial das Artes e Culturas Negras, no Senegal (1966).

*Bienais da Bahia, em 1966 e em 1968 - obras de João Alves de Oliveira...

*1o Festival Mundial de Artes Negras de Dacar (Senegal, 1966/67) - com Heitor dos Prazeres,

Rubem Valentim e Agnaldo dos Santos.

*Exposição do MAN (Museu de Arte Negra) - Abdias do Nascimento- MIS Museu da Imagem e

do Som (RJ) (1968). Exposição de arte com caráter “primitivista” ou “popular”.

*Evento Internacional Arte Afro-Brasileira no Museum of Antiquities – Lagos, Nigéria. (1968)


-Curador: Mestre Didi

*Africa: Arte Negra / peças do acervo do Instituto Fundamental da Africa negra da Universidade de Dac
ar, Senegal (Museu de Arte Moderna, RJ e Museu de Arte e Arqueologia, SP,1969).

*A Mão do Povo Brasileiro - curadoria Lina Bo Bardi (MASP, 1969) com Agnaldo dos Santos, Aurelin
o dos Santos, Madalena dos Santos Reinbolt, Mestre Vitalino, Zé Caboclo, entre outros

*Sacred Art na Exposição Internacional de Arte Afro-Brasileira - Ghana National Museum, Acra, Gana
(1969) - Curador: Mestre Didi.
* L´Art Sacre – Mestre Didi na Exposição Internacional de Arte Afro-Brasileira no Museé Dynamique
de Dacar, Senegal (1969). - Curador: Mestre Didi.
*Exposição: “Artistas Plásticos ao Partido Comunista do BrasI” (Casa do Estudante) Santa Rosa Burle
Marx, Sigaud, Oswald de Andrade Filho, Pancetti, Bruno Giorgi, Augusto Rodrigues,

Mário Zanini (AMARAL, A. Arte e Sociedade, 2005. p. 400).


*African and Afro-American Art: The Transatlantic Tradition (Museum of Primitive Art, 1969).

*Arte Negra - exposição na sociedade Martins Sarmento (1970).

*Art e Culture Afro- Brésiliens - Palácio da UNESCO, Paris, França (1970).

* Brasilianische Tage, Ingelheim, Alemanha. (Módulo Afro-Brasilianische Religione) - (1970) com


curadoria de Mestre Didi, obras dele e de Emanoel Araujo...

*Mestre Didi y el Arte Afro-Brasileño – Galeria Rubbers, Buenos Aires, Argentina (1971).

*Afro-Brazilian Art – African Center, Londres, Inglaterra (1971).

* Mostra Coletiva de Arte Primitiva, Limeira, São Paulo (1972), com obras da artista negra

Conceição Silva.

*Exposição Afro-Brasileira de Artes Plásticas. Museu de Arte de São Paulo, MASP (1973).

*Semana Afro Brasileira (1974) com trabalhos de Mestre Didi.

*Criação do Museu Afro-Brasileiro em Salvador (1974) - primeira experiência brasileira de museu com
heranças africanas - ligado principalmente a religiosidade por razões regionais e por falta de acervo
africano e artístico em seu início.

* Arte Sacra Negra – Palácio das Convenções, São Paulo, SP (1974). (Com obras de Mestre Didi)

* Exposição Semanas Afro-Brasileiras – Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro, RJ (1974) Curadoria
Mestre Didi.

*Arte Contemporânea Senegal (MAM/RJ) FUNARTE (Fundação Nacional de Arte), (1974).

*Mostra Coletiva de Artistas Imigrantes. Saguão da Bienal de São Paulo (1975) - com Conceição Silva
entre outros artistas negros (esta outra chave de classificação dos artistas negros entre os “imigrantes”
aparece em algumas análises periféricas, mas não foram tratadas aqui, por razões óbvias).
*Dimensions in Black Art: African, Afro-Brazilian and Afro-American Art at CSU. Afro-American
Cultural Center, CSU, Winter. (1975) (curadoria Henry Drewal).

*Ideen aus Brasilien (Fluxus Gallery, Selb/Alemanha (1975) - com obras de Genílson Soares.

*FESTAC -African Festival of Arts and Culture, em Lagos/ II Festival Mundial de Arte Negra - com
obras de Rubem Valentim, Emanoel Araujo... (1977).

*Quinzena do Negro - Acervo Afro-Brasileiro: últimas aquisições [MAE-USP] (1977). (SALUM, 2004,
p.343).

*1a. Bienal Latino -Americana (São Paulo, 1978) - Rubem Valentim, Antônio Carlos Fontoura
(cineasta).

*I Encontro de Artes de Osasco “Atelier de Deus” (1979) com obras de Conceição Silva, curadoria de
Waldomiro de Deus - depois de Abdias do nascimento, Waldomiro de Deus se torna o segundo curador
negro a expor obras da então chamada “arte negra”.

*XVII Sãlão de Artes Plásticas de Embu. Prefeitura de Embu, SP (Medalha de Prata para a pintora
negra Conceição Silva) (1980).

*Os Silvas na Cultura Negra (São Bernardo do Campo) (participaram desta mostra Conceição Silva,
Maria Auxiliadora da Silva, Maria Almeida, Vicente de Paulo (in memorian) – ex-marido de Raquel
Trindade, Sebastião Cândido, João Cândido, Gina e Benê (Benedito da Silva) (1981).

* Coletiva: “Arte Negra: Raízes”. Paço das Artes. Maio de (1981).

*Mito e Magia del Colore Salão Nobre do Palácio João Ramalho. Paço Municipal da Prefeitura
Municipal de São Bernardo do Campo- Circolo Italiano de San Paolo Dez. 1982 (expo. itinerante,
Nápoles – Maio/Julho, 1982).

*Os 400 Anos do Mosteiro de São Bento, Escola Baiana de Pintura (1982). Curadoria de Emanoel
Araujo

*Coleção Culto Afro-Brasileiro com Testemunho do Xangô Pernambucano - Raul Lody (Coordenador),
1983.

*Mostra Coletiva da Família Silva (Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, SP) (1983).

*Mostra Coletiva, II Salão Brasileiro de Pintura Ingênua. Centro Cultural São Paulo 1983/ Mostra
Coletiva “Retrato Naïf do Brasil”com família Trindade e Família Silva. SESI – Amoreiras, Campinas,
SP (1983).
*“Bahia África Bahia” - MAM-Salvador (1983). Em entrevista ao poeta Anelito de Oliveira em 15 de
Outubro, 2010, Emanoel Araujo (que foi diretor desta instituição de 1981 a 1983, disse que esta
exposição foi o marco inicial dos seus interesses com esse tipo de exposição: que registrou um fato
muito curioso: levou 1500 pessoas à abertura, num domingo, às sete horas da noite. Entrevista
disponível aqui: http://www.buala.org/pt/cara-a-cara/arqueologia-de-uma-cultura-soterrada-entrevista-a-emanoel-araujo

*Audio-visual “Artes Africanas”, atividade programada no Espaço Cultural Afro-Brasileiro, encontro


promovido pela COOPERCULTURA/ FEA/USP, com apoio da SEC-SP, SCMSP, MAE- USP,
ECA-USP, TV Cultura, Pinacoteca do ESP, CEA-FFLCH da USP. 1983 (LISY, 2004, p. 181).

* I Mostra do Artista Negro – mostra coletiva na Secretaria Municipal de Educação de Cultura, Poá, SP
(1984).

*Primitivism in 20th Century Art: Affinity of the Tribal and the Modern, realizada no MoMA,
(1984-1985).

*Arte Sacra Negra – Vitoria Hall, Salvador, Bahia (1986).

* I Bienal de Arte Negra, no Museu de Arte da Bahia. Promovida pelo Núcleo Cultura Afro-Brasileiro -
Salvador (1987).

*A Estética do Camdomblé (MAC-USP, São Paulo/SP) (1989) com obras de Genílson Soares, Rubem
Valentim...

*A Mão Afro-Brasileira, no MAM de São Paulo (Agosto - 1988) - além dos já citados, incluiu
nomes desde o Barroco, artistas da Academia e contemporâneos - tem sido considerada a principal
exposição de arte afro-brasileira de todos os tempos com curadoria de Emanoel Araujo e texto de
Apresentação de Aracy Amaral (determinou o que ocorreu antes e o que tem ocorrido até hoje). Em
entrevista a Adriano Pedrosa em 08/09/2014, Emanoel diz que esteve na África em 1987, a mando do
presidente José Sarney, em um encontro em Dacar, pois estavam pensando em refazer o FESTAC. Ali
nasceu a ideia da Mão Afro-Brasileira. Visitando a ilha de Goré, no Institut Fondamental d’Afrique
Noire (IFAN), o guia de uma escola nos viu e disse aos alunos: ‘Vejam, esses são nossos primos do
outro lado do Atlântico’. Entrevista disponível em: http://brasileiros.com.br/2014/09/emanoel-araujo-conhecedor-de-arte/

*África Negra: la bague du silence com curadoria de Lina Bo Bardi, Pierre Verger, Marcelo Carvalho
Ferraz e Marcelo Suzuki, MASP, 1988. (Obs.: Marcelo Suzuki é um arquiteto com interesse na África,
ele é irmão do meu ex-professor de Estética e Filosofia da Arte Márcio Suzuki, FFLCH-USP e do
jornalista e apresentador Matinas Suzuki)

*Áfricas - Paço Imperial - Paulo Sérgio Duarte (Diretor Executivo) (1988).

*O Negro na Iconografia Brasileira do século XIX: A visão Européia", Boris Kossoy (Coordenador) e
co-autor com Maria Luiza Tucci Carneiro do livro "O Olhar Europeu: O Negro na Iconografia do século
XIX"(1994). A exposição integrou o evento “Congresso Internacional da Escravidão” (Dep. De História
USP - 1988). (Com itinerâncias sob o título "Regards sur le Noir", em Paris (1990), Strasbourgo (1991),
Lisboa (1992) e Croácia (1993).

* Mitos e Ritos Africanos “, com obras de Tereza D’Amico (1988)

*Iconografia do Negro na Arte Brasileira, Biblioteca Mário de Andrade, SMC, SP. Desenhos, aquarelas
e gravuras que retratam a figura do negro nas artes plásticas: Rugendas, Debret, Portinari, Lasar Segall,
Renina Katz, Emanuel Araújo e outros. Curadoria de João Spinelli. Maio-1988.

*Ser Negro Hoje; Museu Paulista,1988.


*Introspectives: Contemporary Art by Americans and Brazilians of African Descent. Com 100
trabalhos. California Afro-American Museum. Itinerância em Nova Iorque - com curadoria de
Henry Drewal e David Driskell) (fev. - 1988).

*Magiciens de la Terre (Paris, 1989) - Ronaldo Rêgo e Mestre Didi.

* Orixás: Homenagem a Pierre Verger, Memorial da América Latina, SP. 50 fotos de Verger, 20
aquarelas de Carybé, além de 46 objetos de culto afro-brasileiros.(1991)

*Semana Cultural Brasil-Angola. Oficina Cultural do Brás Amácio Mazzaropi, São Paulo.
(Organizadores: Secretaria de Estado da Cutura e Assessoria de Cultura Afro-Brasileira (com obras da
família Silva de Embu das Artes) Arte e Sociedade na África - a se realizar na Estação Ciência, São
Paulo entre 19/09/91 à 30/10/91

*Vozes da Diáspora com :* “Os Pintores Negros do Século XIX (Pinacoteca –Nov. 1992) – Emanoel
Araujo (curador) *“Altares Emblemáticos de Rubem Valentim” (Pinacoteca –Nov. 1992) – Emanoel
Araujo (curador) (Exposição que prestou tributo a Rubem Valentim, morto um ano antes, em 1991)/
*“Brasil África Brasil: Pierre Verger/90 anos (Pinacoteca –Nov. 1992) – Emanoel Araujo
(curador)/Arte Ritual do Candomblé” (Pinacoteca –Nov. 1992) – Emanoel Araujo (curador)/*“Mantra
para Oxalá” Instalação de Regina Vater”, (Pinacoteca –Nov. 1992) – Emanoel Araujo (curador)/*“O
Inconsciente Revelado Esculturas de Agnaldo Manoel dos Santos”. (Pinacoteca - 1992) – Clarival
Valladares (curador).

*Brasil-África-Brasil - Arlete Soares (curadora) Pinacoteca do Estado de São Paulo, 1992 e 1996
(prestou-se uma homenagem a Pierre Verger (1902-1996) pelos seus noventa anos.

*Face of Gods: art and altars of Africa and African American (Nova Iorque, 1993).

*Mostra Coletiva: 3o. Encontro Nacional de Arte Negra - São Paulo, SP (1993).

*Arte e Religiosidade Afro-Brasileira (Frankfurt, 1994).

*I Festival de Arte Negra, Belo Horizonte (FAN-1995). Promovido pela Prefeitura de Belo Horizonte
(http://www.fanbh.com.br/).

*Herdeiros da Noite - Pinacoteca de São Paulo (Jan. 1995).

*Zumbi dos Palmares. Mostra Coletiva na Estação Ciência. Bairro da Lapa, São Paulo – 1995.

* 23a. Bienal Internacional de São Paulo, (1996).

*A Rota dos Escravos - França, África, Caribe, Brasil (1997) com Rosana Paulino.

*Arte e Religiosidade Afro-Brasileira (Frankfurter Kusntverein, Frankfurt, Alemanha) (1994).

*Arte e Religiosidade no Brasil: heranças africanas - Pinacoteca de São Paulo (Nov-Dez, 1997) Mestre
Didi, Rubem Valentim, Pierre Verger e Ronaldo Rêgo.

*Mostra coletiva Projeto Consciência e Liberdade Kizomba, Memorial da América Latina (1999)
Barrafunda, Kizomba.São Paulo -Com organização da Secretaria de Estado da Cultura (1999).

*Brasil 500 Anos: mostra do redescobrimento (2000).

*Brazil: Body and soul, (Nova Iorque, 2001).

*Heroes and Artists, (Cambridge). Com catálogo assinado por Tânia Costa.

Heroes and artists: popular art and the brazilian imagination. Cambridge: Brasil Connects, 2001.

*(49a.Bienal de Veneza) Authentic/ Ex-Centric. Africa In and Out of Africa, com curadoria do nigeriano
Olu Oguibe e do Sudanes radicado nos EUA Sallah Hassan, professor de historia da arte africana e da
diáspora na Cornell University(2001).

*Para Nunca Esquecer: negras memórias (Brasília, 2001-2002). Inaugurada no Rio de Janeiro, essa
exposição percorreu também as cidades de São Paulo e Belo Horizonte.
*Documenta 11 (2002).

*52ª Bienal de Veneza – pavilhão africano (2002).

*São Paulo de Negras Raízes/ Raízes Negras de São Paulo. Museu do Imaginário Brasileiro. São Paulo
(2003).

* Africa Remix (2003)

*II Festival de Arte Negra, Belo Horizonte (FAN-2003).

*Mês da Consciência Negra. Museu do Imaginário Brasileiro, São Paulo (2003).

*Exposição Coletiva – Teatro Solano Trindade. Embu das Artes (2004).

*”Arte Ritual do Candomblé: Mantra para Oxalá” (Pinacoteca do Estado de São Paulo). Mostra
pan-africana de arte contemporânea. Salvador: Museu de Arte Moderna da Bahia (2005).

*III Festival de Arte Negra, Belo Horizonte (FAN-2005) - Re: Territórios Negros.

*Artistes et Vie Associative: l’Année du Brésil em France. Exposição itinerante (2005).

*A Arte Brasileira na França: diversidade sem preconceitos (2005).

*Exposição Coletiva. Faculdade Zumbi dos Palmares. São Paulo (2005).

*IV Festival de Arte Negra, Belo Horizonte (FAN-2007).

*Uma Questão de Raça – representação de negros em museus históricos Museu de História Nacional,
(2008).

*FESMAN (2009).

*África em Nós (Secretaria do Estado da Cultura), 2009.

*V Festival de Arte Negra, Belo Horizonte (FAN-2009).

*Onde Somos África (Caixa Cultural - SP) (2011).

*Mostra Afro-Brasileira Palmares, Londrina, Parana (2011).

*VI Festival de Arte Negra, Belo Horizonte (FAN-2011/12).

*Incorporation – Afro-Brazilian Contemporary Art, Centrale Electrique, Bruxelas (2011-2012)


Curadoria de Roberto Conduru.
*Olumello- Afrografismos, Brasília (2012) curadoria: Nelson Inocêncio da Silva

*A Nova Mão Afro-Brasileira (2013).

*Afro: Black Identity in America and Brazil - Tamarind Institute, Albuquerque - EUA (2013) - com
obras de Tiago Gualberto, Sidney Amaral e Rosana Paulino

*VII Festival de Arte Negra, Belo Horizonte (FAN-2013)

*Afro como Ascendência; Arte como Procedência, Sesc (2013- 2014) Curadoria de Alexandre Bispo,
obras de Janaina Barros, Renata Felinto, Móises Patrício, Sérgio Soares e Wagner Viana.
*Striking Iron: The Artistry of African/Diaspora Blacksmiths. Being organized by the Fowler
Museum-UCLA (2014)

*Art and Identities - National Hispanic Cultural Center, Albuquerque, EUA (2015) com obras de Tiago
Gualberto.

*Histórias Mestiças - Instituto Tomie Ohtake, 2015 - com obras de Rubem Valentim, Sidney Amaral,
Ayrson Heráclito, Emanoel Araujo, entre outros.

*56a. Bienal de Veneza (2015) – curador nigeriano (Okwui Enwezor).

*VIII Festival de Arte Negra, Belo Horizonte (FAN-2015)


*Bandits & Heroes, Poets & Saints (2015) essa exposição que tive o prazer de apoiar pessoalmente,
pois conheço os curadores Barbara Cervenka and Marion Jackson. Ela ficará aberta até agosto de 2020,
sendo uma exposição itinerante que está no momento na Kean University Union, NJ, já esteve na
American University Museum Washington, DC e irá para mais de 20 outras cidades norte-americanas.

* Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca - com obras de Mestre Valentim, Arthur
Timótheo da Costa, Antonio Bandeira, Rubem Valentim, Jaime Lauriano e Rosana Paulino, Rommulo
Vieira e uma sala especial para Emanoel Araujo (2014-2015)

*Orixás. Casa França-Brasil (RJ) (2016) -Pierre Verger, Ayrson Heráclito, Arjan Martins e Thiago
Martins de Melo, Carybé e Rubem Valentim, entre outros.

*Diálogos Ausentes. Itaú Cultural (SP) (2016-2017) - Priscila Rezende (1985), Janaína Barros (1979),
Moisés Patrício (1984), Renata Felinto (1978), Paulo Nazareth (1977), Dalton Paula (1982), Sidney
Amaral (1973), entre outros.
*A Mão do Povo Brasileiro, MAM de São Paulo (Remake, Out.2016-jan.2017).
Lembrando, obviamente que, mesmo que ultrapasse o número de 100 exposições nessa
primeira contagem, essa lista não é exaustiva. Lembremos também que seguimos apenas
pouquíssimas referências sobre contextos fora do Eixo Bahia-Rio-São Paulo que
precisam ser melhores investigados e que demonstram nossa total ignorância do que se
faz em termos de artes plásticas fora desse Eixo e a extrema necessidade de dar
prosseguimento para com essas pesquisas, estimulando o estudo de raízes artísticas em
estados como Maranhão, Minas Gerais, Piauí, Pará, Tocantins, Espírito Santo, Sergipe,
Amazonas etc., todos com população de mais de 70% de negros e pardos, sendo o Pará
76,7% de autodeclarados pretos/pardos141. Mas essa pesquisa será algo que deixarei,
como foi dito acima, para os estudantes e pesquisadores de artes que se interessarem
sobre o assunto.142

Para encerrar este tópico com relação à importância de se estudar as exposições, os


curadores, os artistas e suas obras para uma melhor compreensão do que viria a ser “arte
afro-brasileira” resta ainda fazer uma reflexão sobre os tipos de exposições disponíveis a
artistas afro-brasileiros: contemporaneamente, distinguimos cinco tipos principais de
exposições de arte que queiramos ou não acabam tendo um papel hierarquizante e
demarcador do status do artista que tem implicações nos conceitos sobre arte em geral e
na chamada arte afro-brasileira igualmente, entre outras artes temáticas, em particular:

1) exposições permanentes (ou de longa duração) – são aquelas exposições centrais e


identitárias dos museus já instituídos. Elas são definidoras dos Museus em que as sediam
e são ainda definidoras dos artistas ali expostos, já que para o artista, ter sua obra num
espaço permanente significa fazer parte da história da instituição e, portanto, até certo
ponto da própria “história da arte”;

141
http://g1.globo.com/brasil/noticia/2013/11/para-tem-maior-percentual-dos-que-se-declaram-pretos-ou-pardos-diz-estudo.html
142
As principais Informações sobre circuitos artísticos periféricos de São Paulo foram colhidos do relato
biográfico sobre a artista Conceição Silva colhidos em uma dissertação de mestrado por Marcia Regina
Büll Disponível em: http://livrozilla.com/doc/589054/8-concei%C3%A7%C3%A3o-silva--1938-
Acessado em 28/12/2016. Publicado em: Büll, Márcia Regina. Artistas Primitivos, Ingênuos (Naïfs),
populares, contemporâneos, Afro-Brasileiros. Família Silva: um estudo sobre resistência cultural. São Paulo:
Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2007.
2) exposições individuais – geralmente tidas como as mais importantes para o artista,
porque terá como foco o trabalho individual dele; (aquelas que ainda são seguidas de
catálogos, especialmente com número catalográfico de ISBN para ser incorporado mais
facilmente nas bibliotecas de museus e de universidades - sem o apoio dessas instituições
hoje qualquer artista fica absolutamente isolado e deve amargar com orgulho ou não a
obrigatória marginalização);

3) exposições coletivas – sendo o grosso de todas as exposições podem ou não incluir


tendências, temáticas e conteúdos específicos, a depender da visão curatorial. Mas tem
sido a porta de entrada de quase todos os artistas contemporâneos, especialmente os
negros. Apesar de serem problemáticas do ponto de vista da característica
individualizante que tem as artes plásticas, elas dão a grande vantagem da visibilidade,
uma vez que o artista individual se aproveita da rede de contatos atraída também por
outros artistas participantes;

4) exposição itinerante – aquela que visa alcançar públicos e circuitos distantes. São
geralmente ligadas a instituições já com acervos permanentes, mas são úteis para ambos,
para as instituições, que verão difundidos seus nomes e qualidade de montagem, para os
artistas, que poderão aproveitar-se de eventuais faltas de espaços nas sedes originais das
instituições para incorporar à sua experiência pessoal a ligação com uma instituição do
porte das que faz exposições itinerantes entre outros benefícios implícitos;

5) retrospectiva – aquelas reservadas a artistas experientes cuja trajetória pode ser


revisitada. Talvez seja ignorância minha, mas até hoje só vi retrospectivas de:

*Rubem Valentim. Brasília (Espaço Cultural Contemporâneo), 2002.


*Emanoel Araujo (Tomie Ohtake), 2007
*Emanoel Araujo: autobiografia do gesto: cosmogonia dos símbolos, 2010. (1960/2010)
(Museu Histórico Nacional)
*Rosana Paulino A sombra do País é a escravidão, 2016. (Senac Lapa/SP)
Quando fazemos uma revisão da historiografia das principais mostras de arte com
herança africana percebemos que as chamadas artes afro-brasileiras e afro-americanas,
dentre os diversos tipos de exposições, sendo de “vanguarda” ou não, acabaram por se
enquadrar dentro do modelo temático. Esse enquadramento pode efetuar um duplo
impacto nessa arte, de um lado, ela pode ser um destaque para eventuais artistas fora do
circuito de arte que poderão ser vistos e eventualmente incluídos nesse circuito; mas, por
outro lado, ela pode também se restringir e se tornar um gueto à parte, talvez uma nota de
rodapé de um circuito dominante. Grande parte da história do conceito de arte
afro-brasileira perpassa por essa ambiguidade. Assim, as exposições desses objetos
respondem a busca por: identidade, tematismo, primitivismo, politização etc. e, mais
raramente, houve nessas exposições ênfase no fazer artístico, no estilo, na técnica, na
criatividade, nas intenções dos artísticas, entre outros aspectos individuais dos artistas que
afinal,serão senão os únicos critérios pelo menos os mais importantes para que estes
possam ser melhor integrados à história da arte brasileira.
PARTE IV

Arte Afro-Brasileira: esboços teóricos e estudos de caso


“Alcance do Conceito da Chamada Arte Afro Brasileira”

Talvez o conceito de arte afro-brasileira não se sujeite a uma classificação. Para aqueles
que assim o compreendam, sua defesa, seja ela qual for, tratar-se-ia de um
pseudoproblema. Dentro da história da arte, conceitos semelhantes sofreram o mesmo
tipo bombardeio teórico, sobretudo quando se tratava de escolas cujas tendências políticas
feriam o status quo vigente. Mas se quiséssemos insistir nas fronteiras e limites do “afro”
nas artes, estimularíamos a nossa observação dessas expressões artísticas naquilo que elas
trazem de benefício pra si próprias e para a fronteira que as separam de outras
manifestações de arte.

Mesmo tendo consciência de que quaisquer normatizações ou esquematismos nesse tema


não passariam de enxugamento de um conceito muito mais abrangente, queremos seguir
com uma listagem de algumas possibilidades para essa arte, que servisse tanto do ponto
de vista didático quanto no da organização das fronteiras do conceito de “arte
afro-brasileira”.

Não é preciso dizer que, além de outros itens não indicados aqui serem igualmente
possíveis, alguns destes mesmos itens podem e devem ser intercambiáveis, não
configurando de modo algum um engessamento das propostas estéticas das poéticas
afro-brasileiras. Pelo menos não é o que desejamos com essa abordagem que propomos
em seguida.

Na minha comunicação no evento “Pina_Encontros: Olhares sobre a arte afro-brasileira,


seus conceitos e seus artistas”, fiz uma “brincadeira séria” que, segundo acreditava, teria
alguma função prática para lidarmos com o conceito de “arte afro-brasileira”. Eu propus a
criação de uma espécie de “gráfico didático” no qual se pudesse classificar minimamente
a principal parte do alcance do conceito de “arte afro-brasileira”. Como foi dito, o
objetivo da criação desse gráfico, ora replicado, foi apenas didático e para entretenimento
da plateia presente e não tem o mínimo interesse em se estabelecer como guia único
dessas possibilidades.
Resumidamente, neste gráfico eu propunha os seguintes questionamentos:

“O que seria arte afro-brasileira? Quem seriam os artistas que fariam “arte
afro-brasileira”143:

a) Artistas Negros em geral com ou sem exclusão dos brancos (racialismo político,
identidade abstrata, África mítica, ancestralidade (BARROS, J., 2008, p. 95) -
independentemente do estilo, materialidade, tempo histórico, formação etc. A arte
afro-brasileira é antes de tudo a arte produzida por afrodescendentes. Isso porém não dá
conta das temáticas afro-brasileiras na arte, assunto que não é exclusivos de
afrodescendentes. (BISPO, A., 2012, p.85).

b) Negros Artistas específicos com exclusão dos brancos (consciência negra,


afro-centrismo ou pan-africanismo, identidade concreta, autoria negra (BARROS, J.,
2016, p.23 e ss.) produção autoral negra (BARROS, J. & VIANA, W.L, 2012, p. 93) e
exclusão dos brancos artistas (FELINTO, 2009 In: SOUZA, M. de Salete, 2009
p.236-237) autoria negra pela via não-europeia (ARAUJO, E., 2006, p.242),
essencialismo, influência da religiosidade ou propriamente 'arte religiosa', influência da
cultura negra ou propriamente “arte popular”, “nacionalismo negro”), a “arte
afro-brasileira deve ser feita por negros e dirigida a negros” (negritudismo radical ou
pantera-negrismo).

c) Todos ou alguns artistas brancos ou não-negros em geral, herdeiros da África,


descendentes ou não (representação de negros na arte, valorização perene da dita 'cultura
negra', busca pelo primitivismo, adesão religiosa (BARROS, J. 2008, p.100), adesão
sentimental ou de cunho sexual ao afro-brasileiro - “mulatismo”, ...) Valores e Estilos

143
Para fazer uma tentativa de logicizar algumas possibilidades de resposta a essa pergunta, propomos
listar posições em que esta seria uma arte produzida por: (as provocações estão entre parenteses e, logo
abaixo, faço alguns comentários pessoais em relação a cada uma dessas possibilidades)
Artísticos Negro-Africanos: uma visão de mundo (SALUM, 2004, p. 344) [e não de cor
da pele]; busca e a consciência das origens (AGUILAR, 2000, p. 33).

d) Brancos artistas ou não-negros específicos (pós-racialismo tematista) brancos artistas


que se remetem tematicamente ao universo plástico brasileiro (SOUZA M. d. Salete 2009,
p. 10, 194); (BISPO, A.A., 2015); (SALUM, 2000, p. 119)

e) (deve incluir ou excluir) Arte antiga (isto é, artistas brancos ou negros do barroco,
rococó etc.)

f) (deve incluir ou excluir) Arte moderna (isto é, Segall, Di Cavalcanti, Portinari...)

g) (deve incluir) Arte contemporânea ou popular (Mario Cravo Jr., Guma...) incluir a
arte cosmopolita (VALLADARES, 1968, p. 106) ou universal (MUNANGA, 2000, p.
104-105)

h) (deve incluir ou excluir) Arte pós-moderna (isto é, não simbólica, sem razões
funcionais, sem propostas pedagógicas ou morais)

i) Todos? (Consciência negra, “arte política” ou “arte propaganda”) arte propaganda


como fazem aqueles que ao hipervalorizar utilizando sistematicamente “imagens
positivas do negro” criam situações cômicas, típicas da nossa “era da desinformação”.

j) nenhum? (Pós-racialismo, “não existe arte afro-brasileira, existe arte”, “arte pela arte”,
“arte independente da cor do artista”) (Eu sou pintora. MAGLIANI In: SILVA, G.F. da.et
al., 2008. pp.149-50) não existe arte negra (FLUSSER, 1966, p. 34)

k) (inclui) cultura material do segmento negro, arte ritual ou religiosa (etnografia,


arte popular, releitura da arte africana tradicional, memória coletiva) (SALUM, 2000,
p.113) ;(MUNANGA, 2000, p.102); continuidade temática da cultura africana implicada
aos rituais do candomblé (VALLADARES, C., 1968, p.104); Vagner Gonçalves da Silva.
In: ARAUJO, E., 2008, p.123)

l) (exclui) cultura material, arte popular e se insere na arte acadêmica, belas artes e
arte contemporânea mundial.

m) Quase todas as anteriores (exceto a j): negros e brancos artistas com ou sem
identificação política (ou temática), de todos os tempos Essa classificação (certamente
muito esquemática, porque sabemos que alguns desses itens são mormente
intercambiáveis que excludentes) implica de qualquer forma em certas determinações
lógicas que organiza um pouco o “quintal” dos limites das possibilidades “afro” nestas
artes.

No limite, essa classificação do conceito de arte afro-brasileira ainda que é somente


didática, pode ser útil para ressaltar o imaginário de boa parte da crítica de alguns artistas
e principalmente da maioria absoluta do público desta arte que insiste em visitar os
museus, por exemplo, como o Museu Afro Brasil e questionar se este ou aquele artista
exposto ali é ou não negro144.

144
Por força da curiosidade, façamos uma brincadeira aqui: o número de artistas brancos no acervo de
longa duração do Museu Afro Brasil, por exemplo, instituição que conheço bem, é maior do que o senso
comum pode imaginar. Por exemplo, se vocês fossem visita-lo ainda hoje, quantos brancos artistas vocês
acham que encontrariam expostos no acervo permanente do Museu chamado “Afro” Brasil? Não estou
falando de mestiços que conseguimos identificar como mestiços, ou seja, alguém com tom de pele do
Caetano Veloso para mais escuro, estou falando de pessoas da tez de Roberto Carlos para mais claros...
Vejamos se eu me recordo nominalmente de alguns: Joham Moritz Rugendas, Jean-Baptiste Debret, Victor
Frond, John Mawe, Adriana Medeiros, Aldemir Martins, Marc Ferrez, Anízio Carvalho, Marcelo
Grassmann, Carla Osório, Márcia Magno, Carybé, Cristina Mendes, Felix Labisse, Marcio Périgo, Nelson
Leirner, Paulo Cláudio Rossi Osir, Pierre Verger, Iolanda Huzak, Mario Cravo Neto, Januário Garcia, Jonas
Cunha, Ladis, Lita Cerqueira, Alberto Cidraes, Maureen Bisilliat, Vânia Toledo, Ana Camara Soter da
Silveira, André Villaron, Vantoen Pereira Júnior, Isabel Muñoz, Carmem Calvo, Joaquim Albuquerque
Tenreiro, Antonio Hélio Cabral, Darcy Penteado, Adenor Gondim, Adrian Henri Vital Van Emelen,
Angélica Julião, Alfredo Oliani, Agostinho Batista de Freitas, Quirino Campofiorito, Amando Balloni,
Amaro Francisco Borges, Helena V. dos Santos, Vantoen P. Júnior, Amaro Rodrigues, Angelina Agostini,
Angelo Agostini, Raphael Galvez, Antônio Godoy, Antonio Maluf, Antonio Parreras, Antônio Peticov,
Salvador Caruso, Virgílio Della Monica, Lamberto Scipione, José Paulo Lacerda, Felix Labisse, Antônio
Bernardes Pereira Netto, Antônio Carlos Bettini Liboredo, Madalena Schwarcz, Artur Pereira, Augusto
Rodrigues, T. Franssy, Arlindo Oliveira, Silvio Robatto, Humberto Cozzo, Jean Baptiste Grenier, Juan
Léon Palliere, Benedito Peretto, Barsuglia, V.J. Brodtmann, Pharamon Blanchard, M. Lindermann, Nelson
Lerner, Francisco de Almeid, J. Laurence, Pedro Bruno, Di Cavalcanti, Júlio Guerra, F.J. Stober, Auguste
Earle, Belmiro Barbosa de Almeida Junior, Jules Le Chevrel, Claudio Tozzi, Domenico Klemi
Se formos obrigados a seguir alguma dessas alternativas, seguir-se-á assim, em termos
lógicos, algumas implicações nas quais quem defender que a arte afro-brasileira é:

a) a arte produzida exclusivamente por artistas negros em geral. Este modelo


poderia ser chamado negritudista (incluindo, na verdade, na maior parte dos casos
os artistas mestiços, porque negros são realmente minoria nas artes)
independentemente de sua época, temática, materialidade, estilo etc. ou não. Os
que defendem o item “a)” terão de excluir do seu panteão artístico afro-brasileiro
necessariamente artistas clássicos da temática tais como Caribé, Pierre Verger,
Mário Cravo Neto, Hans Bahia, etc. Contra os que defendem essa tese a (arte
afro-brasileira se restringe a artistas negros, algo que eu retomo no item “c)”, mais
abaixo). Alguns autores, por exemplo, Conduru (2013, pp.14-15)
contra-argumenta com o que ele chama de teoria “inclusivista” da arte
afro-brasileira, incluindo aqueles artistas brancos supracitados e ainda alguns
contemporâneos como: Milton Machado, Cildo Meireles, Anna Bella Geiger e
Ricardo Basbaum (CONDURU, 2013, p.14). Ouros insistem na Identidade [negra
dessa arte] (ARAUJO, E., 2014, p. 17); (FELINTO, 2009 In: SOUZA, M. de
Salete, 2009 p.236-237).

Bonatti,Virgílio Della Monica, Caetano Liberato Lima, Edouard Hildebrandt, Lucilio de Albuquerque,
Jacques Etienne Arago, Eduardo Malta, Claudia Adunjar, Djanira, Henrique Goldshmidt, Carlos Bastos,
Daniela B. leite Filho, Carla Osório, Yuji Tamaki, Arcangelo Ianelli, Dora Masa, Edmundo Francisco
Nicodemo Migliaccio, Félix Farfan, Guilherme Gaensly, Belmonte, Cristina Mendes, Henrique Oswald,
Evandro Carlos Jardim, Humberto Cozzo, Chico Albuquerque, Fausto Chermont, Carlos Sciliar, Jean Leon
Pallière Grandjean Ferreira, Augustin Salinas, Grégoire Huret, Hansen Bahia, Vidal Salichs, Darcy
Penteado, Duda Penteado, Helio Seelinger, José Redinha, Rosina Becker do Valle, Manuel Eudócio
Rodrigues.. Arnaldo Augusto Nora (mais conhecido como “Arnaldo Antunes”, sim o músico, poeta e
compositor! Quantas obras? Uma? Não, 37 obras! Uma série chamada “Vatapá” 2005 – papel, madeira,
tinta e às vezes metal). E dezenas de outros nomes de que me recordo agora, porque estou com preguiça...
mas esperem aí! Sobrou espaço para algum negro, né? Claro que sim! Gente! Não sejam tão maldosos!
Deve ter alguém lá na cozinha...hé hé hé...:) Brincadeira..., mas eu deixo a vocês que conseguiram chegar
até aqui, a curiosidade de tentá-lo descobrir...quem e quantos são os negros artistas do Museu Afro-Brasil?
Vou lhes dizer, eu amo Arnaldo Antunes, vou em show, leio os livros dele e tudo mais... ninguém é contra
que ele também seja “artista plástico” e que haja obras dele no Museu Afro Brasil. Mas, espere aí, os negros
artistas representados no Museu devem pelo menos ganhar em termos numéricos o placar da várzea:
“brancos vs pretos”, né? Pelo amor de Exu, por favor, me digam que sim!!! Se não, eu vou propor mudarem
o nome do Museu pra “Museu Euro-Brasil” (e nisso aqui eu não estou brincando! Porque quem leu o meu
“Escritos Afro-Brasileiros (2016)” viu que eu explico lá o porquê que os funcionários brancos do Museu
Afro Brasil são a maioria e tem de longe os melhores salários em relação à minoria negra... ☹
Aqueles que defenderem tal posicionamento, especialmente a considerar a arte
afro-brasileira como sendo a “arte produzida por negros, com temas negros” (ou ainda
produzida por negros para negros - negritudista radical) esses defensores terão ainda de se
refugiar num tipo de ativismo separatista que teve apoio num curto espaço de tempo e
num pequeno número de pessoas, geralmente muito complexadas nos EUA dos anos de
chumbo da luta pelos direitos civis145.

b) a arte produzida por negros artistas específicos seria uma arte associada à
“consciência negra” e todos os aspectos a ela relacionados. Esse modelo teórico
poderia ser chamado negritudista especifista, já que a arte afro-brasileira para estes só
seria possível se aparecer no seio do movimento negro e, portanto, essa arte só pode ser
uma arte política. O artista afro-brasileiro por esse motivo estaria enfileirado dentro do
movimento em prol da valorização e eliminação das desigualdades de cor. Seria a arte
feita por mãos pretas e mãos mulatas (ARAUJO, 2014, p. 15); é o mestiço, portanto é o
nacional (ANDRADE, M., 1984, p. 41).

Nesse sentido, historicamente, os movimentos de libertação do colonialismo africano


(incluindo o pan-africanismo) e os movimentos negros brasileiros representados
exemplarmente primeiramente pela imprensa negra e, posteriormente, pelo TEN (Teatro
Experimental do Negro) devem ter sido movimentos propositivos deste modelo teórico
(resguardando o anacronismo em impor o termo “arte afro-brasileira” a eles e de querer
que opinem sobre o futuro deles, sobre o nosso presente). Por outro lado, acredito que
tanto o histórico do pan-africanismo do passado quanto ao essencialismo artístico
contemporâneo da negritude tiveram suas bases contestadas pela historiografia da arte
quando esses movimentos atuaram fora do âmbito político. Isto é, nem nas artes, nem na
sociedade como um todo os pan-africanistas e essencialistas artísticos atuaram de modo

145
Porém, conhecendo a história do Brasil, sabemos que nunca houve a criação de elites negras
verdadeiramente radicais. Quando nunca, os defensores deste tipo de projeto separatista (arte e cultura de
negros para negros) também foram em busca de obtenção de vantagens pessoais angariando favores do
Estado, dentro das secretarias negras, ministérios de igualdade etc.. e formulando ou recebendo por seus
projetinhos pseudo inclusivistas, na verdade, falso-separatista, totalitaristas e fascistas que não dizem
respeito à necessidade interna verdadeiramente universalista, isto é, humana, da arte.
convincente e duradouro. Seus fazeres artísticos tanto quanto seus ardis políticos nunca
apareceram de forma dinâmica socialmente a ponto de interferir na vida dos demais
negros, que excetuasse aqueles que estivessem dentro de um específico núcleo de elite.
Estas obras se demonstraram mais propriamente como manifestações audiovisuais de
propaganda com pouca ou nenhuma elaboração artística e que nunca foram acolhidas em
museus. Algo que foi chamado na história da arte igualmente como a “preeminência do
conteúdo pela forma”. E nenhum grupo de “arte negra politizada” mesmo aqueles cujos
conteúdos fossem em si mesmos inquestionáveis chegou a ser incluído na história da arte
brasileira146.

A movimentação negra dos anos 1970 (que certamente teve seu papel político para o que
viria depois, não teve influência direta nas artes plásticas nesse mesmo período). A
maioria masculina do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras, da Sociedade de Estudo
de Cultura Negra no Brasil (SECNEB) - com Mestre Didi à frente, já ativa desde os anos
de 1960, do Núcleo Cultural Afro-Brasileiro, da Sociedade de Intercâmbio Brasil-África
etc. Desconheceram as reivindicações femininas. Muitos desses movimentos
vivenciaram o aparecimento de divisões ou outras contraposições no movimento,
culminando em 1978 com o Movimento Negro unificado e o aparecimento do
particularismo feminista negro, a noção de que a mulher negra continha especificidades
que não eram abordadas nem no movimento feminista tradicional de segunda onda
(calcado nos padrões norte-Americanos) nem nos movimentos negros em geral, cuja
postura com relação à mulher, Ademais, permanecia a mesma que a do patriarcalismo
branco.

Associado à fundamentação de que a presença, fala e conteúdo desta fala tenham


necessariamente de ser negras, essencialistas da negritude comportam-se como
pan-africanistas que restringem toda interpretação da cultura negra aos negros. Essa
movimentação mais radical perdeu força, no entanto, nessa 4ª. Onda, em que, jovens

146
Ao contrário, principalmente nos anos de 1960, mas em todas as épocas, muitos grupos de artivistas brancos de
performances, artistas de esquerda, eco-ativistas, mesmo que muitos não tivessem as suas obras museografadas, como
os artistas negros, mas boa parte passou sim para a história da arte a partir de estudos de suas atividades
político-artísticas. Se alguém tiver alguma dúvida leia um dos 3 volumes em que Aracy do Amaral passa em revista a
“arte política no brasil”: AMARAL, A. & TORAL, A. Arte e Sociedade no Brasil (Callis, 2005, 2006).
supostos guerreiros filhos tirânicos de Zumbi dos Palmares, vão a congressos sobre arte e
cultura afro-brasileira apenas para vaiar falas de intelectuais e estudantes que não são
negros ou que, mesmo negros, não utilizam uma porcentagem de textos produzidos por
pesquisadores negros que eles julgariam suficientemente adequados147.

O fascismo negro encontra algum pano de fundo mais sério e na linguagem branda e
ponderada, no entanto, essencialista que considera a “experiência de ser negro no
racismo” individual e intrasferível – o que está mais ou menos fora de questão. Também
está fora de questão que a sensibilidade para determinados temas deve ser buscada em
pessoas imbuídas disso de tal maneira que tomam para si o problema que é de si e é de
todo um grupo que age, senão com racismo, pelo menos com má vontade contra ele. Seria
precisamente a noção de que cabe a um negro e somente a ele caberia o discurso com
relação a cultura negra, ao racismo e a arte afro-brasileira. Algo pelo menos em grau,
muito diferente de dizer que a obra de Benedito José Tobias, pequenos retratos em óleo
sobre madeira do pintor que se dedicou quase exclusivamente ao registro de como um
artista negro vê seu semelhante (ARAUJO, E., Negro de Corpo e Alma, 2000, p. 49). O
artista que enxerga seu semelhante não faz essencialismo, ao contrário faz arte
concretamente. Não chega a ser uma idealização ao estilo de Andrei Jdanov (1896-1948)
de um grupo depreciado. E sim, uma realização de um prestígio do qual não se pode tirar.
A amizade, o companheirismo, a percepção formal e o amor por seres cuja figuração, por
mais inusitada que apareça, retome esses laços cria a verdadeira objetividade. A falsidade,
o carreirismo, a alienação e a falta de percepção de quaisquer tipos diminui a
aproximação humana de seus objetivos.

147
Eu não presenciei nenhum desses congressos, graças a deus (não gosto de ir a clube, chá das cinco e
campos de futebol), mas esse fato ocorreu em duas ocasiões na Universidade de São Paulo, neste ano de
2016. Mal aplaudiram ao final, o trabalho sério de uma pesquisadora de cultura afro-brasileira descendente
de japoneses (aplaudiram aos montes o trabalho de outros comunicadores negros do evento) e em outra
ocasião vaiaram um estudante de pós-graduação negro simplesmente porque em sua fala, este citou
intelectuais franceses e europeus e “não tinha em sua bibliografia intelectuais negros”. A pergunta que não
quer calar é: para o estudante negro, bastaria que das próximas vezes ele cedesse à pressão fascista e
incluísse intelectuais negros em sua fala, ainda que sejam com informações inúteis e não pertinentes para
ser aplaudido. Agora, o que dizer para a estudante descendente de japoneses? Devemos dizer para ela
nascer de novo e negra para ser reconhecida entre os fascistas? Não! Nenhum de nós devemos dar atenção a
isso senão como uma nota de rodapé, para registro. Non Passarón!
A “arte afro-brasileira” assim encorpada, assemelhar-se-ia a um neo-romantismo segundo
o qual a ascensão do eu da identidade negra dita “diaspórica”, no seu “banzo artístico
contemporâneo” qualificado como “saudade daquilo que não conheço, não quero, mas
como quero, almejo um algo que seja isso que não sei”...tratar-se ia de uma busca
semelhante ao poeta romântico (artista afro-contemporâneo) que almejasse uma musa
(África Mítica) inatingível. A propósito, o essencialismo artístico da negritude encontra
um predecessor de grande peso nos primeiros movimentos feministas que, ao buscarem
os significados de “ser homem”, “ser mulher” fizeram proposições de identidades
distintas para as mulheres ressaltando que há uma especificidade no “ser mulher” que não
pode ser intuído pelo “ser homem”. Há experiências vividas pelas mulheres que não
podem ser expressadas de forma idêntica – sendo francamente a solução transgênera a
forma mais viável de superação abstrata do problema da identidade e fundamentação de
gênero148.

De qualquer maneira, essa foi uma teoria que concentrou grande número de defensoras e
críticos. A exemplo da literatura dita “negra”, a importante escritora feminista francesa
Hélène Cisoux, por exemplo, confirmava nos anos de 1980 a existência daquela distinção
corporal entre homens e mulheres referida acima, afirmando a existência da “literatura
feminina”, expressa atualmente na forma da “escritora mulher que trata de temas
femininos femininamente”.

O escritor, como qualquer artista, se expressa através do seu corpo, logo, há aspectos da
experiência feminina que só poderiam ser expressos pelas mulheres. (grifo nosso) Cixous,
Hélène. Conversations. In: Newton, KM (1997). Reprinte from Writing Differences:
readings from the seminar of Hélène Cixous, ed Susan Sellers (Milton Keynes, 1988), pp.
142-54 (para posicionamentos contrários à noção de “essência feminina” ou “escrita
feminina” ver: BUTLER, J. Variações sobre sexo e gênero; Bevauvoir, Wittig e foucault.

148
De forma semelhante, a literatura negra seguiu este padrão segundo boa parte dos teóricos dessa área:
"A literatura negra é aquela desenvolvida por autor negro ou mulato que escreva sobre sua raça dentro do
significado do que é ser negro, da cor negra, de forma assumida, discutindo os problemas que a concernem:
religião, sociedade, racismo. Ele tem que se assumir como negro". LOBO, Luiza (2007). Crítica Sem Juízo.
2a ed. revista. Rio De Janeiro: Garamond. p.266. ver:(Rassegna iberistica, Vol. 37 – Num. 102 – Dicembre
2014 -, p.261).
In: BENHABIB, Seyla, CORNELL, Drucilla (Orgs.). Feminismo como crítica da
modernidade. Rio de Janeiro: Rosa dos Templos, s.d.p.154. O que temos chamado de
“essência feminina”, diz Buttler, “não passa de uma opção cultural imposta que se tem
disfarçado como verdade natural”.149

Trazendo essa perspectiva para a realidade do essencialismo artístico negro, haveria


alguma “essência” na negritude que induzir-nos-ia a conceber que haja experiências que
por serem vivenciadas apenas por negros, elas só poderiam ser expressadas por negros?
Essa proposição é direta ou indiretamente assumida por aqueles que consolidaram a
noção de que a arte afro-brasileira deve ser elaborada por artistas especificamente negros.
Esses mesmos são ainda defensores do que chamo de “tematismo negro duplo
obrigatório”, com o termo “duplo” significando que 1) o artista deve ser negro e 2) a
representação artística deve também ter essa temática negra. Eu só não consigo
contemplar uma noção que faltava a este tipo de teoria de reclusão, a ideia de que os
fruidores desta arte também deveriam ser negros. Ora, não há maldade nenhuma nessa
minha impotência, até porque só mentes furiosamente cegas por sua condição desprezível
como foi a dos primeiros separatistas negros norte-americanos, para supor a necessidade
não só da primeira, da segunda (que já são demasiadas para qualquer artista um pouco
mais que medíocre), mas também supõe a necessidade desta terceira reclusão, algo que
não havia e nem nunca houve em nenhum grupo africano por mais que houvesse desde
sempre mil e uma tentativas de separatismos de tempos em tempos no continente. O
racismo, por exemplo, tal como é encontrado na sociedade brasileira talvez pudesse ser
intuído, suposto ou revelado por um artista branco, mas, de acordo com essa teoria do
tematismo negro duplo obrigatório, essa possibilidade se equivaleria morar num
apartamento de frente da orla, mas se deparar com a janela com tempo
indeterminadamente fechada. Mas não! Ao contrário, talvez o sol não esteja lá fora,
talvez o sol esteja mesmo aqui dentro... mas isso seria algo ainda a se descobrir e me
parece que um bom começo é a noção de produção negra autoral. (BARROS, J., &

149
Quaisquer semelhanças com relação à materialidade do “corpo” negro apresentado por alguns teóricos não deve ser
tratadas como simples coincidência, senão como tecidos de um mesmo campo teórico. Certamente, a considerar o nível
de desenvolvimento teórico dos estudos afro-brasileiros atuais, muito se avançaria se chegarmos ao menos nas
discussões feministas dos anos 60. Assim, dando uma dica, aonde lerem mulher e feminismo nestes textos antigos,
substituam respectivamente por “negro” e “negrismo”.
VIANA, W.L., 2012, pp. 93-99) e (Renata Felinto In: SOUZA M. d. Salete, 2009,
p.236-237)150

c) a arte produzida por brancos ou negros em geral que possua valorização,


referência ou exaltação a algum tema relacionado à África, aos africanos, seus
descendentes foi chamada universalista (MUNANGA, 2000, p. 104-105) poderia ser
chamada cosmopolita (VALLADARES, 1968, p. 106). Conduru, no texto de abertura de
seu livro de coletâneas “Pérolas Negras, Primeiros Fios - experiências artísticas e
culturais nos fluxos entre África e Brasil” (CONDURU, 2013, pp.14-15) atualiza a
necessidade de “universalização” da arte afro-brasileira, a partir da inclusão de brancos
(que poderíamos chamar de tese inclusivista branca ou branquitudismo).

Desta vez, os artistas incluídos, nas palavras de Conduru “não parecem ser e não se
declaram afrodescendentes” (p.15). Ao comentar, por exemplo, sobre a presença de
novos artistas brancos que fazem alusão afro-brasileira de algum modo, tais como Milton
Machado com seu London Snow Africa, London Hole Brazil (1998-99); Cildo Meireles,
Anna Bella Geiger e Ricardo Basbaum em que, na 29a. Bienal de São Paulo, Conduru
alerta que o artista não vincula sua obra, especificamente, à africanidade ou à
afro-brasilidade. Contudo, as conexões aqui aludidas falam da presença de culturas
africanas em práticas cotidianas no país e de sua ressurgência artística, onde, quando e
com quem menos se espera. (p.14). Como crítica a esse modelo diríamos que, mais uma
vez o branco artista serve de modelo para a arte afro-brasileira por que, como diz
Conduru, seu propósito naquele artigo introdutório deste livro seria o de explicitar como,
recentemente, tem-se ampliado a configuração inclusiva dessa vertente artística,
evitando a ideia de raça, pautando-se menos em marcações étnicas e mais por valores
culturais africanos misturados aos demais nas complexas dinâmicas sociais brasileiras.
Ou seja, em conjunções de arte, Brasil e África para além de raça e etnia (p.15) (Grifos
nossos). Com o intuito de não interpretar que para Conduru, nessa passagem, “evitar a

150
É possível que ela tenha defendido isso também em seu doutorado defendido apenas há alguns meses e que, como
eu disse acima, infelizmente ainda não o li. SANTOS, Renata Aparecida Felinto dos. A Construção da Identidade
Afrodescendente por meio das Artes Visuais Contemporâneas: Estudos de Produções e de Poéticas no Brasil e nos
Estados Unidos. São Paulo: Instituto de Artes/UNESP, 2016. [TESE DE DOUTORADO].
ideia de raça” ou pautar-se menos em “marcações étnicas”, seria exatamente incluir na
arte afro-brasileira “mais brancos”, façamos, então, uma inversão teórica dizendo que
talvez convenha mais “ampliar a configuração [negro] inclusivista” não excluindo os
negros da arte em geral, por que seriam estes que estariam “fora do circuito” com a
necessidade de serem universalizados e não aqueles que em geral sequer se identificam
com esta cultura, apenas a ruminam como fizeram as antigas ondas de valorização branca
da cultura negra - sempre, aliás, com interesses obscuros, com uso pragmático ou de
exaltação afastada do núcleo duro da cultura. Resguardadas as óbvias e louvadas
exceções, e com a vênia da brincadeira que é meu próprio estilo, eu vejo a inclusão de
brancos na senda artística afro-brasileira como a imagem a seguir, retirada de uma busca
no google imagens 03/12/2016.

“Print screen” do google imagens com a pesquisa “rainha da bateria”


Uma negra, uma ou outra branca ligada à cultura do samba (como a 1a. e 2a. foto superior da esquerda para
a direita Raíssa de Oliveira (1990) e uma quantidade exagerada de aproveitadoras e uma outra porção de
paga paus bem pagas - paralelo com a inclusão de brancos como um “universalismo” para a arte
afro-brasileira

Mas isso não é bem assim, a substituição mecânica de “rainhas da bateria brancas” pelas
“rainhas de bateria negras” apenas tomando a cor da pele como índice de mudança seria o
que fiz com relação à crítica à inclusão de brancos, substituindo-os simplesmente por
negros; um exagero! E sei bem disso! Principalmente, porque os artistas negros que
encarnam esse mesmo potencial também são igualmente raros, como diz Valladares, com
razão:

Em nosso país raros são aquêles mestiços ou negros, de formaçäo cultural expressiva,
vinculados à temática e a valorização dos atributos de origem, que se mantêm e se
realizam por fé sólida, encontrada nas motivações. (VALLADARES, 1968, p. 107) E
então, ele cita Hélio de Oliveira, Agnaldo, Mestre Didi, Waldeloir Rego e Rubem
Valentim, como exceções à regra.

Certamente muitos negros incluídos nessa esfera acabariam sendo tematistas “afros”,
como diz Valladares “por fé sólida encontrada nas motivações” (Idem, Ibidem), mesmo
que esta característica não seja encarada como critério suficiente para se estabelecer uma
tal arte, não há nada na “legislação artística” que force seus cidadãos criadores a evitarem
a qualquer custo a tematização – os que assim o fazem, o fazem apenas por expertise,
evitando com ela o tão desagradável “enquadramento” no esquema.

d) brancos artistas tematistas ou não-negros específicos - aquela posição em que a


arte afro-brasileira pode ser aquela produzida por brancos artistas envolvidos (ou
especificamente restritos) ao mundo da temática afro-brasileira poderia ser chamada de
tematismo cosmopolita.

Este modelo estaria ligado de alguma forma ao pós-racialismo tematista, uma vez que não
poderá conceber em sua postura teórica o essencialismo negro e nem quaisquer outras
versões politizadas que impõe aos artistas negros alguma tarefa especial e única para
abordagens de tipo africanas ou afro-brasileiras). Esta abordagem contraria toda visão do
radicalismo negro, para alguns dos quais, a arte afro-brasileira deveria ser feita por negros
(ou entendida como aquela que é feita por negros, mesmo que não se exclua Carybé de
fazer arte, apenas do epíteto de “afro-brasileiro”). Outra implicação para este modelo
teórico seria dar solução ao problema referido acima da inclusão do artista branco como
um problema a mais para o conflito, já que o negro artista teria maiores “vantagens
estéticas” dentro dessa arte porque, ao contrário do branco artista, aquele poderia não se
restringir ao tematismo (fazendo uma arte não-representacional) e, portanto, teria maiores
chances de “universalizar” a sua obra, no sentido de torná-la mais amplamente
perceptível para além do formalismo ritual ou representacional.

e) a tendência teórica que achar que se (deve incluir ou excluir) arte antiga (isto é,
sejam artistas brancos, mestiços e negros do barroco, rococó, neoclássico etc. que fazem
representações que podem ser de algum modo consideradas “afro-brasileiras”.

Este modelo teórico está ligado à abordagem “historicista”, isto é, a posição daqueles que
remetem esta arte à história registrada mais longínqua e não só restrita à nossa época.
Poderiam ainda se subdividir entre os historicistas negritudistas e os cosmopolitas
(embora esse último termo se aplique mais corretamente à arte contemporânea). Em
crítica a esse modelo podemos argumentar, como é feito em outras passagens do presente
texto, que a abordagem historicista não leva em conta que a arte produzida por negros até
antes do século XX, exceto por exemplos isolados, não tinha adquirido um convicto e
amplo caráter racial. Este viria a ser adquirido apenas depois das lutas pelos direitos civis.
(nos EUA: Harlem Renaissance década de 1920, e luta por direitos civis, década de 1960;
no Brasil: chamadas “ondas de valorização do negro” ocorridas por volta das décadas de
1880 - período pró-abolição, ainda sem expressão terminológica por ausência quase que
absoluta de exemplos que pudessem ser enquadrados neste contexto, embora tanto
Estevam Silva quanto Firmino Monteiro tenham pintado telas com referência a abolição
da escravatura - aquisição progressiva de terminologia artística afro-brasileira em 1930;
1988 e 2000). E ainda poderiam ser chamados historicistas branco inclusivista ou, para
simplificar, historicismo branquitudista.

f) (deve incluir ou excluir) arte moderna, isto é, uma tendência teórica que teria de
incluir ou excluir artistas do período moderno como Segall, Di Cavalcanti, Portinari
Alberto Guignard, Djanira, Pancetti, Santa Rosa etc. Artistas estes que, com herança
africana como Santa Rosa ou não, como todos os outros, mas, de algum modo, estiveram
todos ligados à representação moderna de elementos negros. A estes repito a crítica
seguinte: classificar a obra desses artistas na sigla afro-brasileira equivaleria a chamar
o Picasso das Demoiselles d'Avignon de afro-francês ou afro-espanhol (CUNHA, 1983,
P.1025) e exclui-los de um certo contexto afro-brasileiro por outro lado, seria excluir do
baralho o coringa. Dado a grande ambiguidade que traz tanto a inclusão quanto a
exclusão de modernistas nesse âmbito, suspendemos o juízo desta tentativa de
nomeá-los, mesmo que fosse tão cacofônica, ou esdrúxula ou cômica, como foram as
tentativas de conceitualizar a defesa de outros teóricos.

g) (deve incluir ou excluir) Arte contemporânea ou popular como foi dito, mesmo
que sua conceituação ainda esteja por vir, é fato que a arte afro-brasileira conquistou boa
parte de sua terminologia no período contemporâneo, embora eu não queira forçar as
minhas próprias conclusões tiradas da Lisy (SALUM, L., 2004, p. 338). Assim,
excetuando para aqueles que ainda fazem a distinção hierárquica entre arte popular e
contemporânea e excluem a própria arte afro-brasileira de uma delas, concebemos que
excluir artistas contemporâneos ou populares como Mario Cravo Jr. ou Ana das
Carrancas do âmbito afro-brasileiro só deveria, em tese, ocorrer no âmbito da cor
da pele, assim, aqueles que assim pensarem, dever-se-iam se encaixar nos itens a, b, c ou
d. Sendo que a) seria a arte produzida contemporaneamente exclusivamente por artistas
negros em geral; b) a arte produzida por negros artistas contemporâneos específicos; c) a
arte produzida por brancos ou negros em geral dos inclusivistas brancos ou
branquitudismo contemporâneo ou d) do tematismo cosmopolita.

h) para aqueles que a arte afro-brasileira (deva incluir ou excluir) Arte


pós-moderna (isto é, aquela arte formal não simbólica, sem razões funcionais,
sem propostas pedagógicas, políticas ou morais produzidas em períodos
subsequentes à década de 1990, frutos do capitalismo tardio de consumo ou
multinacional151. Aqueles que a incluírem também incluirão a arte moderna, pois a

151
JAMESON, F. Virada Cultural: reflexões sobre o pós-moderno. Trad. Carolina Araújo. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2006. p. 43.
maioria dos estetas que assumem a existência do pós-modernismo, assume
também a sua origem no esgotamento ou como pastiche do projeto moderno152.

i) todos? (Consciência negra, “arte política” ou “arte propaganda”) para ser “arte
afro-brasileira” basta referir-se a algum aspecto “afro” com objetivo de valorização da
cultura de herança africana. Dentre os defensores desta, por assim dizer, teoria holística
existiriam os holísticos radicais inclusivistas, aqueles que associariam tudo a arte,
excetuando a arte não-temática ou não-representacional negra.

Como critica evidente, ressaltamos que toda arte propaganda que busca uma
hipervalorização acrítica de aspectos extra-artísticos utilizando sistematicamente, neste
caso, a arte como “imagens positivas do negro” criam situações cômicas, típicas da nossa
“era da desinformação”, em que a forma irrefletida da valorização pela valorização
excluiria a própria noção de arte relacionada aos seus conceitos tradicionais de beleza,
criatividade, intuição, expressão metafórica, estética, etc. substituindo-os pelos conceitos
de narcisismo, modismo, ornamentalismo decorativo, entretenimento dirigido, entre
outros.

j) nenhum? (Pós-racialismo, “não existe arte afro-brasileira, existe arte” ou a “arte


pela arte, independentemente da cor ou temática do artista”). Os “negacionistas” possuem
tese que não exige maiores explicações. Se existisse algo chamado arte afro-brasileira,
assim como pudesse haver algo chamado arte euro-brasileira, essa deveria ser algo
distinto da arte, porque a arte, enquanto um modelo que se supõe universal para estes, não
necessitaria de qualificativos e estes, se aparecessem, seriam subterfúgios ou não
tratar-se-iam de outra coisa senão a mera “propaganda política”, portanto, não-arte.

Entre os negacionistas aqui analisados temos o crítico nascido na República Checa e


naturalizado brasileiro que negou a arte afro-brasileira ao dizer “não existe arte negra”
(FLUSSER, 1966, p. 34) e também que ela seria uma expressão hibrida e suspeita

152
LYOTARD, -J-F., The Postmodern Condition: a report on knowledge. Tras. Geoff Bennington & Brian
Massumi. Preface F. Jameson. Manchester University Press, 1984. p. xviii. Disponívl em:
http://www.abdn.ac.uk/idav/documents/Lyotard_-_Postmodern_Condition.pdf Acessado em: 18-12-2016.
(FLUSSER, 1966, p. 31); embora isso não se repita em outros artigos, posição
semelhante foi tomada por (VALLADARES, C., Defasagem Africana, 1966, p.03) ao
criticar o conceito de negritude.

k) (inclui) cultura material do segmento negro - a arte afro-brasileira para os que


poderiam ser chamados etnografistas pode ser concebida como sendo aqueles objetos
artísticos produzidos no contexto ritual, da etnografia, da arte popular ou da releitura da
arte africana tradicional e de memória coletiva (SALUM, 2000, p.113), arte ritual, arte
religiosa dos terreiros (SILVA, V.G., 2008, p. 98) etc.

Este é um modelo teórico que rejeita a noção de arte imposta pelo eurocentrismo em que
as manifestações artísticas dos povos seriam primitivismo. Os europeus, os criadores da
história da arte, excluíram do seu panteão artístico historicamente a etnografia, o folclore
e a arte popular. Ao se incluir a cultura material do segmento negro como formas de “arte
afro-brasileira”, como defenderam quase todos os intelectuais que se debruçaram sobre o
tema (Nina Rodrigues 1904, Arthur Ramos 1949, Marianno C. da Cunha 1983,
Valladares 1968, Munanga 1988, 1997, Salum, 1993, 2000 etc.) rompe-se com os
modelos de historiografia e historiografia escolar da arte tal como foram instituídos e
seguidos ainda por grande parte das academias e escolas de arte nacionais e
internacionais.

l) (exclui) cultura material, arte popular e se insere na arte acadêmica, belas


artes e arte contemporânea mundial. O esforço em garantir um espaço acadêmico
às artes afro-brasileiras esteve historicamente relacionado à inclusão do negro artista e
de sua arte em circuitos de prestígio e de pertencimento. Não se colocou em pauta a crise
acadêmica de âmbito europeu ou se desejou incorporar métodos e expressões que
estiveram excluídos dos círculos artísticos seja por situações de racismos ou por falta de
condições técnicas de sustentação dessa plástica.

Se excluirmos dessa categoria os artistas negros que não nasceram no séc. XX, foram
poucos os artistas do âmbito afro-brasileiro que seguiram reconhecidos em círculos
“extra-negros”, que inclui exposições individuais, nacionais e internacionais. Santa Rosa
(1909-1956); Abdias do Nascimento (1914-2011)153, Wilson Tibério (1920-2005),
Antônio Bandeira (1922), Rubem Valentim (1922), Edival Ramosa (1940-2015),
Emanoel Araujo (1940), Rosana Paulino (1967) seriam alguns dos principais exemplos.

m) Quase todas as anteriores (exceto a j): negros e brancos artistas com ou sem
identificação política (ou temática), de todos os tempos. De forma semelhante aos
holísticos estes atribuiriam características artísticas universais na arte afro-brasileira,
incluindo até os artistas atemáticos, e sem identificação política. Vê-se que este modelo
teórico depende exclusivamente da percepção crítica do curador, crítico ou do público
para identificar certas obras ou artistas como pertencentes ao âmbito da arte
afro-brasileira.

Tal qual os holísticos radicais inclusivistas, estes também associariam tudo a arte, mas
neste caso eles não excetuariam a arte não temática ou não representacional negra; desde
que alguém de prestígio identificasse determinada obra como pertencente ao circuito das
artes afro-brasileiras. Pelo grau de generalização deste modo teórico, o apelidamos com o

153
Gostaria de fazer uma referência em nota, apenas para que não se perca de vista. Guerreiro Ramos
teceu alguns comentários sobre a pintura de Abdias do Nascimento, primeiramente em 1971 “O mundo
tribal de Abdias” (publicado em 1995) e posteriormente em 1973 em "A fé artística de Abdias" (publicado
em 1975). Devemos pensar com Guerreiro qu e, mesmo se se fundamentasse a chamada estética
afro-Brasileira, dever-se-á reconhecer se e em que grau a temática na arte afro-brasileira é um limitante
para a arte em geral e para o artista. Num famoso texto intitulado “Patologia social do branco brasileiro”.
Jornal do Comércio, janeiro de 1955, o sociólogo Guerreiro Ramos, contrapõe o tematismo do negro ou ao
"negro-tema", sua determinação enquanto objeto de estudo ao "negro-vida", terminologia e concepção que
poderiam advir de um teatrólogo (Guerreiro fez parte do TEN - teatro experimental do Negro de ou de um
poeta: "Há o tema do negro e há a vida do negro. Como tema, o negro tem sido, entre nós, objeto de
escalpelação perpetrada por literatos e pelos chamados “antropólogos” e “sociólogos”. Como vida ou
realidade efetiva, o negro vem assumindo o seu destino, vem se fazendo a si próprio, segundo lhe têm
permitido as condições particulares da sociedade brasileira. Mas uma coisa é o negro-tema; outra, o
negro-vida. O negro-tema é uma coisa examinada, olhada, vista, ora como ser mumificado, ora como ser
curioso, ou de qualquer modo como um risco, um traço da realidade nacional que chama a atenção.
O negro-vida é, entretanto, algo que não se deixa imobilizar; é despistador, profético, multiforme, do qual,
na verdade, não se pode dar versão definitiva, pois é hoje o que não era ontem e será amanhã o que não é
hoje." (RAMOS, 1955, 215). Ver:
https://vinteculturaesociedade.wordpress.com/2012/03/21/guerreiro-ramos-o-personalismo-negro/
O "poeta" falou mais alto do que o sociólogo e no Congresso, em cujo desfecho criou a querela do
negrismo que nos é tão cara até hoje. Na ala dos cientistas sociais e acadêmicos Costa Pinto, Edison
Carneiro, bem como Darcy Ribeiro ...entre outros que, sem compromisso direto com afirmação estética da
negritude e com uma feroz intuição anti-essencialista, defendiam se não o pós-racialismo, pelo menos a
transição para superação da falácia biológica.
proposital cacoetíssimo holísticos radicais inclusivistas generalistas. (Então, está mais
que claro que se o fiz, foi por pura brincadeira! Há há há há há...)

Reforçamos que estas possibilidades lógicas que impõe limites para com a arte
afro-brasileira teve objetivo específico de entretenimento e curiosidade na palestra sobre
arte afro-brasileira realizada na Pinacoteca e já referida acima. Cabe a nós, menos criar
campos lógicos delimitadores para a arte afro-brasileira do que intuir ou vislumbrar um
espaço para que ela possa ser assegurada, ainda que ficasse restrita a alguns poucos itens
acima referidos. Talvez a compreensão estética dessas manifestações artísticas tenha algo
a nos sugerir quanto ao seu problema básico de definição. Se isso for assim, o descreverei
nas próximas linhas.
Exercício em Estética Afro-Brasileira

A raça negra é, esteticamente, uma das mais belas do mundo.


O que vale dizer, como componente de um grupo étnico ou elemento pictórico, o
negro é um dos mais belos tipos da raça humana.

(CARISE, I. A Arte Negra na Cultura Brasileira: Mascaras Africanas. Parte II -


O Sentido da Arte Negra. Arte nova, 1975. p. 65

Nada mais óbvio que numa arte tão diversa e que nunca se constituiu enquanto um
movimento artístico ou uma corrente de direção única com suportes, materiais, técnicas,
os procedimentos, as intenções, as poéticas, as formas, ou suas propriedades sintáticas,
estruturas e também, se quiserem, as noções do belo e do feio etc. é impossível criar uma
regra estética que sirva para todas essas distintas propostas. Aqueles que tentaram
encontrar algum padrão nos meios de expressão vinculados ao imaginário negro ou
africano, excetuando a “arte ritual”154 o fizeram por mil e uma prestidigitação, de um
lado uma exaltação verborrágica e de outros sutis ou aberrantes racialismos.

É impossível ao nosso ver tentar enquadrar na atualidade mais de um ou outro artista


dentro de um mesmo “guarda-sol estético”. Ao observarmos, contudo, tanto tecnicamente
quanto em termos de juízos teóricos obras de artistas tão variados e que mesmo assim,
seja pela esquizofrenia de tomar a cor da pele do artista como índice ou razão suficiente
de sua “afrobrasilidade artística”, seja pela facilidade com que alguns nomes foram
historicamente colocados sob o mesmo “guarda-sol”, a urgência em tentar verificar se há
algum ou alguns aspectos estéticos que coloquem os artistas que se encaixem num tal
“modelo artístico afro-brasileiro”, qualquer que seja ele, poderia significar para alguns

154
Roger Bastide, apresentado logo abaixo, tentou esboçar um quadro geral das categorias
estético-religiosas. Mas de antemão é preciso dizer que suas análises sobre a “bipolaridade mítica” que
fundiria conceitos como: “dança-ritual”; “sério-cômico”; “sagrado-profano”(que seriam uma exigência
estrutural da mentalidade mística, segundo a análise de Gilda de Melo e Souza (1973, p.26) ao relembrar
Bastide) serviriam mais aos critérios da arte ritualista que das artes plásticas como são atualmente
reivindicadas pelos negros artistas ávidos de inserção no circuito prestigioso arte e por isso, em geral vêm
progressivamente debandando do terreiro da chamada “arte ritual”- paradoxalmente, o único território
aonde as representações comuns, a materialidade, os valores e os objetivos culturais comunitários
permitiriam o estabelecimento de categorias gerais formadoras de uma “estética”, em sentido clássico.
uma das potencialidades na suposição de tal estética. Apenas por essa razão, talvez
valesse a pena ocuparmos um pouco sobre esse assunto.

Este subcapítulo, portanto, diz respeito a uma pequena historiografia de tentativas antigas
e recentes de esboçar um estudo da natureza da arte afro-brasileira do ponto de vista dos
seus fundamentos sintáticos, estrutura e propriedades materiais e visuais elaborados pelos
mesmos teóricos aqui tratados, obviamente relacionando esses conceitos a artistas
individuais e não conduzindo-os uma unidade abstrata concebida como “arte
afro-brasileira”.

Apesar de todos os críticos das obras e de artistas relacionados de algum modo à África
no Brasil, desde Gonzaga-Duque (década de 1890), Nina Rodrigues (1904), Arthur
Ramos (1949), entre outros, elaborarem mesmo que sem querer “enunciados estéticos”,
foi apenas em 1947/1948, num artigo de Jornal do Estado de São Paulo, em seis partes,
que Roger Bastide lança as bases do que ele considerou ser literalmente um “Ensaio de
uma Estética Afro-Brasileira”. Porém, mesmo com um belo título como esse, dado pelo
próprio professor francês, aqueles que tentarem encontrar ali senão uma apresentação da
síntese formal de mitos e símbolos religiosos por meio da análise da estrutura dualista do
candomblé (entre orixás velhos e moços), os pontos riscados da umbanda, da macumba
carioca e dos vèvè haitianos poderão, por fim, se decepcionar. Esses textos foram
republicados num capítulo da coletânea Impressões do Brasil pela editora Imesp, 2011 e
são, de fato, impressionantes do ponto de vista dessa primeira tentativa de estabelecer
alguns critérios estéticos para a “arte ritual” (chamada por Bastide de “estética
afro-brasileira”), algo que ninguém tinha realizado até então (e nem depois, diga-se).

Por outro lado, Bastide é aqui, para citar um termo da professora Gilda de Mello e Souza
o representante ou melhor o iniciante da “estética pobre”155 relacionada à arte ritualista
ou popular afro-brasileira. Se de um lado Bastide demonstra em seus textos sobre arte

155
Originalmente levada a público como “A Estética Rica e a Estética Pobre dos Professores
Franceses”(1973), a parte relativa a Roger Bastide foi republicada em: SOUZA, Gilda de M. A Estética
Pobre de Roger Bastide. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros no.20, 1978. Disponível em:
http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i20p151-162
brasileira enorme afinidade plástica com modernistas como Francisco Rebolo
(1902-1980)156 e Clóvis Graciano (1907-1988) etc., de outro lado, Bastide demonstra
igualmente enorme afinidade plástica com a “arte pobre” (ou no termo italiano “arte
povera”). Segundo Gilda de Melo e Souza, Bastide, diferentemente de Jean Mangüé e
Lévi-Strauss (presos à estética da representação) “dá de ombros” para as grandes
manifestações artísticas, e exclui os conceitos de “obra de arte”, “obra-prima”. Como
afirma Gilda157: a estética de Bastide “não destaca, na evolução histórica, momentos
mais perfeitos de arte; não elege, como o mais alto, um determinado ideal de beleza. (...)
A estética de Roger Bastide é, pois, uma estética de antropólogo, de estudioso dos
fenômenos de misticismo religioso. Mas é também uma estética de vanguarda. Na
extrema mocidade Bastide passou pelo crivo do dadaísmo e do surrealismo, pelas
experiências radicais que questionaram para toda a posteridade, os valores extremos da
obra de arte. Era natural pois, que chegando a um país sem grande tradição cultural,
tivesse se dedicado à elaboração de uma estética pobre. (SOUZA, G., 1973, p.30)

Dito de outra forma, Bastide está ligado ao que eu considero o perspectivismo modernista
em relação às sínteses formais desenvolvidas pelos povos africanos em muitas de suas
manifestações artísticas. Essa “estética pobre” aparece à luz daquelas elaborações
europeias de início do séc. XX, que culminaram na desestruturação da forma, entendidas
não como influência propriamente, mas como parceria nos padrões sintáticos das
máscaras e esculturas da África e Oceania.

A querida professora Gilda de Mello e Souza, a quem eu não me canso de me voltar foi
aluna de Roger Bastide (nos cursos sobre Barroco de 1940) e fez um relato emotivo e
perene do seu professor em 1973, numa aula inaugural do Departamento de Filosofia da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
(USP)158.

156
Rebolo é nada mais nada menos do que o criador da “verdadeira obra de arte” que é o símbolo atual do
Corinthians (1933) (acalmem-se, Palmeirenses, eu só estou me referindo à “estética do pobre”!)
157
CANDIDO, A., Revista do Instituto de Estudos Brasileiros no.20, 1978.
158
Gilda de Melo e Sousa (1919-2005) foi a valorosa professora de Estética e História da Arte da
faculdade de filosofia da USP, na qual eu próprio me formei, mas como ela já estava aposentada eu só a
conheci pessoalmente na época em que ela se tornou professora emérita (1999) e trabalhava no IEB. Ela foi
Pontos de Exu analisados por Roger Bastide em “Ensaios de uma Estética Afro-Brasileira” - 1948
(SOUZA, G.M., 1973, p.29)

(BASTIDE, R. Estado de São Paulo, 29/12/1948)

Na figuração estética de exu Bastide se


apresenta o que ele considera um dos
exemplos de arquétipos em sentido
junguiano desenvolvidos nos arranjos dos
pontos riscados. Embora não a nomeie,
mesmo de sua análise, é possível depurar a noção da “redução estética” tão cara à arte
africana, quando ele aponta que o babalaô que se serve de flechas, estrelas, cruzes e
outras formas dadas para composição do arranjo estético da divindade para serem
apreendidas rapidamente e para facilitar o desenho e a memorização. A síntese deste
pensamento apresentada pela profa. Gilda é decisiva nesse sentido:

orientanda em estética pelo Bastide. Uma imperdível aula inaugural dela ministrada em 1973 está
disponível aqui http://www.revistas.usp.br/discurso/article/viewFile/37845/40572 Não deixem ninguém
(seus professores) dizer que a internete não serve para nada e que não se deve citá-la. Caso contrário, peça
para que eles lhes ofereçam os mesmos textos que vocês podem encontrar ali e em quase nenhum outro
lugar, exceto nas bibliotecas gringas dos países desenvolvidos. Viva a internete!
Na maioria dos pontos de Exu, aparece o tridente (em itálico no original). Mas por que o
tridente, emblema das divindades do mar [entre os gregos e romanos], quando Exu é uma
divindade da terra? Porque Exu também é o deus da orientação, dos caminhos, das
encruzilhadas e na África é representado por um elemento em forma de cone,
significando o mastro que liga o céu e a terra. Ora, essa coluna que liga o céu à terra
reaparece no candomblé da Bahia sob a forma de mourão central e nada mais é que a
sobrevivência da árvore da vida do Gênese - a qual é desenhada tradicionalmente com
três ramos e três raízes, estas últimas vistas como o reflexo invertido das primeiras.
Deste modo, o tridente de Exu, com seus três ramos terminais e seu punho com três
pontas menores, sugere-nos imediatamente a árvore do mundo, da vida ou da morte.
Portanto, conclui Roger Bastide, a estrutura paideumática [conceito atribuído a Leo
Frobenius159] da mística do Cosmos, que os antigos iorubas preservam até hoje na África,
sobrevive entre nós na mentalidade popular brasileira. (SOUZA, G. de M., 1973, p. 29)

Dito isso, nos resta questionar se dada a condição da arte ritual, em função de seu atual
estado moribundo e de “abandono”, fora dos seus circuitos, isto é, talvez dentro dos
terreiros, mas fora dos museus de arte, teria algum novo Carybé, Mestre Didi ou um novo
“Zé Diabo” para reanimá-la. Além disso, que a mentalidade popular brasileira preserve
até hoje essa “África viva” em nós, não quer isso dizer que haja, a par de todos os
cosmopolitismos e impulsos internacionalistas que os negros artistas contemporâneos
cobicem, uma linha reta que tangencie a arte ritual tocando-a na arte contemporânea.
Alguns poucos trabalhos de artistas que tentaram fazer isso foram ridicularizados com
termos como Macumba de artista (CONDURO, 2014, p. 121). Manifestações plásticas

159
O sistema de educação formal e ético da Grécia antiga era chamada Paideia. O termo similar Paideuma,
introduzido pelo africanista Leo Frobenius (1873-1938) em seu estudo “Paideuma: Mittellungen zur
Kulturkunde (1923) [reeditado em Stuttgart por Franz Steiner (1998) ]. “Paideuma”traduz-se literalmente
por “auto-educação” ou “aquilo que é adquirido [instintivamente] pela aprendizagem”. Afeito a modelos
positivistas, Frobenius defende que a evolução das culturas segue a um padrão impulsionado por essa força
motriz nomeada Paideuma: A Ergriffenheit (“emoção”), que seria segundo ele o “estágio
emocional-auroral”; o Ausdruck (“expressão”) que seria uma fase madura; a Anwendung, (a fase da
“aplicação”) - um estágio que seria mecânico e materialista, típico da decadência. Ver também: RAMOS,
Guerreiro. O Negro no Brasil e um Exame de consciência - Discurso pronunciado por ocasião da instalação
do Instituto Nacional do Negro. In: RAMOS, G.; et.al. Relações de Raça no Brasil. Rio de Janeiro: Edições
Quilombo; Biblioteca do Instituto Nacional do Negro, 1950. p.39; Disponível em:
http://wp.ufpel.edu.br/grupoicaro/files/2016/05/rel-ra%C3%A7as.pdf; e ainda: NASCIMENTO, Abdias do. Abolição.
Quilombo, n. 2, p. 11, 1949.
que são rascunhos mal elaborados estético-religiosos de quem não compreende nem uma
coisa nem outra, não é fenômeno restrito à arte afro-contemporânea ritualizada, mas
sempre acompanhou todo o inferno da história desta arte e suas boas intenções.

A idéia religiosa não se objetiva na peça artística, nem esta é uma mera função do
religioso. São antes linguagens diferentes que expressam planos complementares de
significados, ou seja, são fatos sociais estético-religiosos. Por isso, insiste-se em que essa
arte, apesar da influência da arte ocidental, dificilmente pode ser entendida como “arte
pela arte” (Vagner Gonçalves da Silva. “Arte Religiosa Afro-Brasileira: as múltiplas
estéticas da devoção brasileira” In: ARAUJO, E., 2008, p.123)

Não podemos, em absoluto, tentar recobrar as variações dos tipos de exercícios estéticos
que estariam na base de uma suposta arte afro-brasileira (muito menos a assim chamada
“arte ritual”), principalmente porque a sua historiografia, se um dia for legitimada, ainda
aguarda para ser escrita. De qualquer forma, depois de Bastide, foi a artista plástica
carioca Iracy Carise quem chamou a atenção de forma original para a questão da noção
de beleza contida na maioria dos julgamentos estéticos afro-brasileiro.

Mas Iracy, cuja fala foi destacada na provocativa epígrafe para este subcapítulo sobre
estética afro-brasileira, apenas de forma ingênua, mas, verdadeira, quis encontrar o
espaço do rompimento do suposto monopólio da beleza contido nas mãos dos brancos de
sua época e de nossa época. Que bonitas palavras ditas por ela, ainda que entendida por
uma generalização apressada ou mesmo por uma verdade relativa, já que as supostas
“raças” de quela trata seriam poucas. Assim, todas elas seriam, em si mesmas, “uma das
mais belas do mundo”:). Mas Carise é de fato paradoxalmente sincera. Sua obra artística,
vinculada à uma “estética negra” que ela buscou também via modernismo (ou como eu
digo, “via perspectivismo modernista”) foi quase que inteiramente apoiada nessa visão de
“estética”160.

160
Em seu livro “Arte Negra na Cultura Brasileira: máscaras africanas” ela lança as bases desta “estética
negra”. Por “arte negra”, como muito de seus contemporâneos e os primeiros analistas da arte produzida
por descendente de africanos, Carise entendia “arte tradicional africana” e suas correlações fora da África.
Isso explica o porquê do subtítulo de seu livro ser o aparente contrassenso ao termo “afro-brasileiro”, que é
Embora a obra desta única branca artista do universo afro-brasileiro seja sim, muito digna
de nota, principalmente pelo seu funcionalismo e pela adaptação que ela empreendeu de
padrões estilísticos e conceitos da arte africana tradicional, Iracy Carise não chega a ser
um “Carybé de saias”, como alguém poderia maldosamente supor. De qualquer maneira,
ela tem pelo menos dois méritos: 1) propor uma interpretação da arte africana e praticá-la
em termos plásticos na arte brasileira; 2) ser a primeira branca artista a se identificar
inteiramente com a cultura e arte africana e afro brasileiras tão integralmente, a ponto da
fusão indentitária de sua obra como sendo uma obra “afro-brasileira”...seria justo, então,
que se existisse uma “arte afro brasileira” assim irrestrita, livre e aberta para quem a
quisesse, que houvesse ainda um espaço de honra reservado à Iracy Carise, não só pelo
pioneirismo, mas também pelo amor sincero aos negros e à sua cultura, como consciência
de que se trata também da cultura dela (Idem, p. 69), ainda que enviesada de
hipervalorização irrestrita do negro, essencialismos vários, indistinção entre africanos e
negros brasileiros e evolucionismo genérico em seu pensamento sobre o negro em relação
ao branco e o indígena.

Apesar também que, por outro lado, as feministas censoras neo-negras da atualidade
dificilmente “admitiriam” seu ingresso na “arte afro-brasileira” por causa desse seu
pequeno e mais que esdruxulo “defeito de cor”. Em sua tese de livre docência, a profa.
Dilma de Melo Silva foi ainda mais dura: A Arte Negra na Cultura Brasileira de Iracy
Carise, infelizmente, o trabalho apresenta inúmeros deslizes metodológicos, utilizando
teorias evolucionistas para comparar as civilizações e culturas negras com ameríndias.
O melhor da publicação são as fotos belíssimas das peças africanas. (SILVA, D. M.,
1989, nota 10.1, p.64). Se é assim, deste livro, eu mesmo prefiro, e entre muitas aspas,
apenas o Glossário (CARISE, 1975, p. 135-159). Concordamos em linhas gerais, em todo
caso, com essa crítica, mas não podemos desconsiderar a originalidade, empenho de

o de “Máscaras Africanas”. Além disso, no final do livro ela indica uma bibliografia sobre “arte negra” e
arrola 29 livros em francês, inglês, alemão e italiano, mas sobre arte africana tradicional. Em entrevista
mais recente para a Universidade da África do Sul - UNISA a artista retoma na mesma linguagem que tinha
nos anos 1970 seu interesse na “arte negra”: “o negro é uma figura essencialmente plástica, a raça negra,
esteticamente, é uma das mais belas do mundo. Disponível em:
https://www.portalartes.com.br/entrevistas/431-iracy-carise.html.
Carise e algumas “melhorias” nesse evolucionismo ao publicar um outro livro bem
interessante: “Arte - Mitologia, Orixás, deuses iorubanos”, saído a público cinco anos
depois daquele, que pareceu ser apenas um livro de estreia (1975) de uma jovem muito
empolgada com a pele negra, eu diria. Livro este bem criticado, afinal, pela professora
Dilma de Melo Silva, quatorze anos depois (1989, p.64)161.

O primeiro aspecto da busca pela formação de uma estética afro-brasileira se relacionou


na historiografia desta arte com a busca por ligações formais e continuísmos temáticos. A
análise de objetos de culto e artistas que relacionavam sua experiência com a linguagem
das artes plásticas modernas e contemporâneas, nesse sentido, se estabeleceu como uma
análise que tornava quase que obrigatória a percepção da identidade como sendo a
religiosidade e seus elementos litúrgicos mais ou menos abstratos. Foi por isso que alguns
autores quiseram excluir artistas como Aleijadinho da “arte negra”, já que pouco ou quase
nada se pôde identificar em sua obra que a remetesse aos critérios do tematismo negro
(CARNEIRO DA CUNHA, 1983; ARAUJO, E., 2010).

Por outro lado, aqueles autores que quiseram estabelecer uma especificidade para essa
arte, seja por questões políticas como compreensão da contribuição dos negros às artes
plásticas brasileiras, seja pela necessidade de criação de um nicho do mercado para essa
arte, foram autores que não só identificaram o que deva ser considerado “arte
afro-brasileira” ou “arte negra”, mas também esboçaram as condições necessárias para
um artista ou uma obra ser considerada como tal.

Baseada em Teixeira Leite, Carise, por exemplo, já em 1975, parecia compreender a


diversidade dessa arte que podia se remeter esteticamente à ancestrais como aleijadinho
ou incluir brancos artistas como ela, Di Cavalcanti e Mário Cravo: Quando se pensou no

161
É preciso querer tirar leite de pedra e criar pedras para que outros tirem leite - e eu sou especialista
nisso. A pior análise, assim como os piores livros acabam sempre nos ensinando algo. Com a morte recente
de Iracy Carise, infelizmente não poderemos mais tentar tirar mais nada dela; enquanto ela esteve por aqui
falando algumas de suas coisas interessantes e outras de suas absurdidades, pudemos ouvi-la e criticá-la; já
a morte, aquela que nos joga de volta aos átomos de carbono (estes sim indecifravelmente evolucionistas), a
morte que nos joga ao primitivismo de nossa fonte biológica é a grande parceira do silêncio.
Museu de Arte Negra162, José Roberto Teixeira Leite pronunciou-se no sentido de que o
museu era uma antiga necessidade “até mesmo dos estudantes, pois ele poderá
converter-se, se tiver apoio oficial, num laboratório de pesquisas capaz de abrir novos
horizontes nas artes plásticas brasileiras”. E acrescenta. “Muito pouco se conhece de
arte negra no Brasil, embora esteja ela presente em todas as manifestações de esculturas
autenticamente brasileiras, como Aleijadinho, Mestre Valentim e Chagas do Cabo, que
tinham sangue negro. Isto, sem se falar na influência que exerceu sobre artistas como Di
Cavalcanti e Mário Cravo. (CARISE, I., 1975, p. 68).

Gostaria de evitar a discussão histórica evocada nessa passagem, porque será retomada
em outro ponto. Quando nos focamos nessa questão que foi muito levantada pelos autores
que é a autenticidade163 encontrada na obra brasileira que consiga atingir algum nível
artístico relevante ou que faça bem a ponte entre a África e o Brasil, percebemos que esta
terminologia tem sido um constituinte importante das formulações estéticas
afro-brasileiras164. Mas, a quase ausência de artistas e curadores com formação em artes
plásticas é patente. Estranhamente, a maior parte dos teóricos que buscaram fazer essa
ponte não vieram da crítica de arte, não eram artistas, nem da curadoria ou por ventura de
museus de arte moderna ou contemporânea (isto é, museus não temáticos que até
recentemente não expunham coletivamente objetos contemporâneos cujos artistas
fizessem neles referência à nossa herança africana) - esses teóricos vieram, ao contrário,
de áreas ligadas a antropologia, sociologia, história, etc. Além disso, como foi dito, a
maior parte deles não apresentam quaisquer distinções em termos da categoria de “arte
afro-brasileira” a objetos bastante díspares como os objetos de culto como “machados de
Xangô”, “estatuetas Ibeji”, “figuras de Iemanjá” com os objetos tomados
museologicamente como sendo ‘de arte’ tais como a “Iemanjá” de Agnaldo M. dos

162
Proposta de criação de cinco museus sob o título “Museu das Origens” elaborada por Mário Pedrosa,
mas que se mostrou infrutífera: http://acervo.memorialage.com.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/1800/RG-0305.pdf
163
(CARISE, I., 1975, p. 68-9); (VALLADARES, C. A Defasagem Africana, 1966, p. 09) (CARNEIRO
DA CUNHA, 1983, p.994); (MUNANGA, 2000, p. 107), entre outros.
164
Os conceitos de Autenticidade, legitimidade, genuíno foram convergidos à questão estética em textos
como o da própria Carise (1975, p. 68-9), mas também do (VALLADARES, C.,1966, p. 09);
(VALLADARES, C., 1968, p. 104) ; (CARNEIRO DA CUNHA, 1983, p.994); (M’VENG, Engelbert,
1966, p. XVIII); (MUNANGA, 2000, p. 107); (FARKAS, S. 2005, p. 16); (LODY, 2005, p.284, 285);
(LODY, 2005, p.286); (BELLÉ, L.A. 2012, p.50,54); (ARAUJO, 2010, p.16) e inúmeros outros.
Santos, as “serigrafias com a presença de símbolos do candomblé” de Rubem Valentim,
ou as pinturas abstratas de Manoel Messias, tampouco a distinção das fases do trabalho
do artista, como o Santa Rosa ilustrador e o Santa Rosa da 2ª. Geração de pintores
modernistas, além do Santa Rosa cenógrafo, figurinista etc. a ponto de que uma
exposição atual sobre eles provavelmente não deixaria de apresentar vergonhosa, didática,
histórica e cronologicamente, todas as suas facetas do artisa, incluindo objetos de uso
pessoal, claro, a gosto do consumidor. Outro dia eu fui numa exposição em que o curador
fez questão de preservar na Mostra uns fetiches bem esquisitos entre os objetos pessoais.

Para contornar tais dificuldades e tentar extrair o máximo de informações de material


tão diversificado, impõe-se, em primeiro lugar, tentar conhecer o protótipo africano que
deu origem ao objeto brasileiro, depois constatar quais os seus elementos que aqui foram
reformulados para, finalmente. perceber-se o leque evolutivo formal em suas varias
etapas, dentro de um mínimo de referencial cronológico. Em outras palavras, só uma
análise iconográfica e formal em nível histórico-cultural é capaz de nos dar conta da
riqueza desse material. (CARNEIRO DA CUNHA, 1983, p.991)

As análises iconográficas feitas nas obras com essas características são em número
esmagadoramente maior justamente nas peças de culto, que não estariam associadas a
museus de arte convencionais. Já a arte relacionada de alguma forma à África
pós-mostra-do-redescobrimento, recebeu muito pouca análise ou crítica. Parece que os
problemas teóricos levantados por essa arte aparentemente impediram qualquer análise
independente ou até mesmo uma “condescendência” da parte dos críticos, quase nada
mesmo. As difíceis questões que urgem por respostas não devem ter abandonado a mente
daqueles que tentaram de algum modo dar um sentido a essas formulações
afro-brasileiras que centenariamente insistem em se colocar no ambiente artístico
nacional. Ainda no campo da “arte ritual” diz Lody: relativizam-se os princípios
ocidentais de arte, ampliando interpretações para uma complexa arte utilitária não
havendo dessa forma hierarquias de objetos sobre objetos. Todos têm sentidos
individuais, contudo somente conseguirão funcionar se integrados ao axé, esse contínuo
de dinâmica vital (LODY, R., 1994, p. 06). Num outro texto mais recente Lody, baseado
em Clarival Valladares, ele insiste numa ideia de projeção africana como uma forma de
“continuísmo” cujos valores estéticos África-Brasil são equivalentes. Diz ele: Sem dúvida,
o valor da arte africana, ou de projeção africana [isto é, “arte afro-brasileira”], está na
mesma, no que ela é para os seus significados, independentemente de buscas,
justificativas, análises estéticas, tentativas de classificações temáticas, períodos
históricos ou de qualquer outra abordagem que tente situá-la nos planos do primitivo, em
visões fora do mundo africano ou da sua diáspora. (LODY, 2005, pp. 283-4). Essa
simbiose, proposta no fundo já por Nina Rodrigues (1904), à sua maneira, apenas
relativamente aos objetos litúrgicos, acabou por “contaminar” as noções estéticas dos
analistas da arte afro-brasileira, que precisaram seguir os mesmos cânones indicados
desde o início desta empreitada aparentemente impossível. Vale dizer que isso se aplicou
sim aos artistas, mas aos teóricos igualmente. Já que poucos são aqueles que fazem
distinção rigorosa entre os modelos da chamada “arte negra” naquilo que ela teria de
extra-museológico em sentido estrito e os modelos da chamada “arte afro-brasileira”,
calcada na especialização, limpidez e “apolitização” politizada próprias da arte
contemporânea.

Afinal, se há uma estética afro-brasileira, como diz Dilma de Melo e Silva como
compreendê-la? A partir das categorias estética das ‘belas artes’ que encaram a arte
como concretização do Belo numa teoria da beleza desenvolvida a partir de Kant, depois
por Schiller, Scheling e Schopenhauer? Contudo, esses autores tinham como referencial
empírico a produção europeia e seus paradigmas dificilmente poderiam contribuir para
nosso impasse metodológico. (SILVA, D.M. 1989, p. 01). Um pouco mais adiante
completa ela: temos aproximado de autores como Cunha (1983) que estudam a arte
afro-brasileira conscientes de que esse objeto se encontraria na categoria de “não-arte”,
a partir da conceituação de teóricos ocidentais ligados às “Belas artes”. Nosso estudo
tem buscado ir além do enfoque da obra, não se limitando à análise do valor estético
consitutivo da forma, mas verificando às condições de produção, da distribuição e do
consumo. (Grifo nosso). Indo mais além , esse aspecto do pensamento da profa. Dilma em
relação à arte afro-brasileira é curiosamente original. Aparentemente ela toma emprestado
o vocabulário do materialismo dialético referindo-se à distribuição dos bens aplicada ao
mercado de arte, vista aqui, presumo eu, não mais como formulação estética (no sentido
das elaborações sistemáticas de arte provindas do seio acadêmico do renascimento e
passando pelas escolas formais até chegar na contemporaneidade) mas como bens
culturais que estariam, segundo ela, afetados por aqueles princípios materiais da equação
produção/distribuição/consumo.

Não há uma elaboração maior destes conceitos introduzidos em sua livre docência,
também não há numa adaptação dos conceitos da economia de troca pré-capitalista que
também poderia ser coesa, visto que praticamente a totalidade das obras do contexto
afro-brasileiro jamais ultrapassou a esfera da projeção de venda, sem entrar efetivamente
no mercado e, sequer Emanoel Araujo, talvez o mais bem sucedido artista negro em
termos financeiros (como ocorreu, aliás, com a maioria dos brancos artistas), jamais pôde
se dar ao luxo de viver só de sua própria produção artistica; mas se pensarmos nessa
adaptação proposta pela Dilma de Melo Silva da transformação dos momentos da vida
econômica em momentos da vida artística do bem afro-brasileiro como condição da
equação produção/distribuição/consumo, talvez encontrássemos uma adaptação que não
teria função estética - ela estava correta em afirmar isso - mas teria inserção desses bens
no processo atual do capitalismo tardio, em que já não há mais “arte” em sentido europeu,
mas bens de consumo que fariam parte desta totalidade representada pela equação
referida.

Nos apontamentos econômicos165 de 1857 e 1858, recolhidos no ano seguinte como


“Introdução à Crítica da Economia Política”, o autor de “Das Kapital” analisa como a
produção mediada pelo consumo e circulação representaria a apropriação dos produtos da
natureza para elaborá-los de acordo com as necessidades humanas - segundo Marx, este
seria o momento em que a pessoa se torna coisa objetivada. (a Versachlichung da qual
falava Luckács166). Em seguida, aproveitando-se objetivamente da organização social, a
parte que cabe aos indivíduos é estabelecida pela distribuição - esse seria o momento em
165
Além de aparecer de forma mais elaborada no Capital, as bases da noção de produção também podem,
obviamente, ser encontradas em outros textos como nos “manuscritos” de 1844 e também nos Grundrisse
completados em 1858.
166
LUKÁCS, Georg. História e Consciência de Classe. Tradução de Rodnei Nascimento. São Paulo:
Martins Fontes, 2003.
que a pessoa é mediada socialmente no interior da ação coletiva. Por fim, subdividida em
duas outras fases, a troca e o consumo, a síntese proposta indicaria a realização individual
desta mediação social (a troca) e a subjetivação da pessoa pelo consumo.

Assim, o artista afro-brasileiro enquanto um produtor de bens de consumo, visando a


subjetivação do resultado de sua atividade individual mediada pela distribuição, pelos
museus/galeria fariam apropriação dos valores africanos e afro-brasileiros
transformando-os em coisa objetivada (a “coisificação”- Verdinglichung) impedindo a
consciência de “classe”, interpretada aqui nessa adaptação como ausência de consciência
ou alienação racial. Inconsciente ainda de que os meios da distribuição de sua
“mercadoria” seriam ainda os meios de apropriação de seu trabalho, os Museus/Galeria,
prestidigitadores que são, passariam por agregadores de valor da obra porque vitrines por
onde se escoasse a produção e fruto de renda real pela propaganda e marketing. Porém,
na condição real de trabalho e do trabalhador, essa alienação do resultado de seu trabalho,
jogado fora em honra de um status museológico (como se o produto já não fosse o
produto antes da distribuição) representaria na verdade, a diferença entre o valor final da
mercadoria produzida e a soma do valor dos meios de produção e do valor do trabalho
(mais-valia).

Já a arte, vista ao contrário, não como objeto de consumo, mas como produto de
elaboração visual de um dado contexto histórico, com significado intrínseco nos faz
recobra a análise da “Iconologia” que faz Panofsky167 sob os critérios considerados hoje
ultrapassados apenas no sentido da universalização do eurocentrismo, mas nos quais, sob
a perspectiva afro-brasileira, parte desses critérios artísticos poderiam ser, de fato,
aventados:

a) o simbolismo (cultura religiosa, cultura política, racialismo); b) a materialidade


(nervura da palmeira, búzios, pano da costa...; c) a forma como conteúdo: estrutura
rítmica que padroniza o simbólico; d) as propriedades formais versus a associação de
ideias; e) a arte não simbólica produzida por artistas negros; f) a leitura da obra

167
Studies in Iconology: Humanist Themes in the Art of the Renaissance (1939)
“afro-brasileira” de acordo com alguns dos critérios da arte contemporânea; g) a leitura
da obra “afro-brasileira” de acordo com alguns dos critérios da arte africana.

Este tipo de adaptação que proponho também não será destrinchada aqui por mera falta
de espaço, mas eu me deterei um pouco mais nestes dois últimos itens (f e g) pois são
justamente aqueles mais referidos quando pensamos na legitimidade do estabelecimento
de alguma “estética continuísta” entre África e Brasil. Quaisquer cânones nesse sentido
que partir de uma diferenciação da prática artística ritualizada, deverá ter em mente que
se trataria de um estudo sob influência de ritmos formais africanos sem uma tendência ou
ligação direta com a África, mas sim, apenas mais uma entre tantas tentativas de
recuperação formal de parte de seu majestoso e tão diverso quanto impalpável fenômeno
visual.

Dito isso, foram poucos os artistas contemporâneos que propuseram um estudo


sistemático das formas artísticas africanas tradicionais para uma reelaboração de sua arte.
A começar pelo problema da quase ausência de livros sobre a estética da arte africana
tradicional - não há nada em nossa língua e, por isso, os negros artistas, advindos de
classes subalternas e sem conhecimento de línguas estrangeiras tiveram sempre suas
formações totalmente limitadas. Também pudera! O primeiro grande livro importante
nesse sentido, Negerplastik foi traduzido como “Escultura Negra” pela UFSC, em menos
de quatro anos atrás - e, pelos superficialíssimos artigos que apareceram baseados na
tradução em português, a minha vergonha alheia se manteve intacta.168

168
Só uma pequeníssima elite composta por historiadores, antropólogos, filósofos e quase nenhum artista
no Brasil teve acesso a livros seminais como:
ABIODUN, Rowland, Henry John Drewal, and John Pemberton III. Yoruba: Art and Aesthetics. Edited by
Lorenz Homberger. New York and Zurich: The Center for African Art and Rietberg Museum, 1991.
BASTIN, Marie-Louise. Introduction aux Arts d'Afrique Noire (Arnouville, France: Arts d'Afrique Noire,
1984)
BIEBUYCK, Daniel. The Arts of Zaire: Southwestern Zaire. 2 vols. (Berkeley, Los Angeles, and London:
The University of California Press, 1985).
BLACKMUN, Barbara W. and Jacques Hautelet. Blades of Beauty and Death: African Art Forged in Metal
(New York: OAN/Oceanie-Afrique Noire, 1990).
DREWAL, Henry John, John Pemberton III, and Rowland Abiodun. Yoruba: Nine Centuries ofAfrican Art
and Thought(New York: Harry N. Abrams, Inc., 1989).
ELISOFON, Eliot, and William Buller Fagg. The Sculpture of Africa. New York: Hacker Art Books, 1978.
FAGG, William Buller. Tribes and Forms in African Art. New York: Tudor, 1965.
Por outro lado, quanto ao fôlego crítico da juventude, este sim sempre me manteve em
prol do orgulho alheio: nos cursos de história da arte ligados à formação de
Arte-Educadores (licenciatura em educação artística) uma análise do currículo
desmonstrou a inexistência e mesmo desconhecimento do tema. Quando em 1986,
propusemos em nosso departamento CCA/ECA, um curso sobre Arte Africana e Arte
Afro-Brasileira, uma docente nos aconselhou a “repensar” a proposta do curso, pois, se
não houvesse interessados, a pós-graduação teria que cancelar o curso, e ficaríamos, eu
e o departamento, numa situação, no mínimo constrangedora. Pergundando à colega a
causa desse possível desinteresse, ela argumentou: “você acha que alguém vai se
interessar por isso? ” O curso foi ministrado em 1986, 1987, 1988 e 1989 sempre com
número razoável de alunos (...) muitos continuam a repetir e a formar futuros educadores
com a convicção de que ARTE é o que se faz segundo os moldes das “Belas Artes”.
(SILVA, D.M. 1989, Nota 8.1. p. 43-44).

A leitura da obra “afro-brasileira” de acordo com alguns dos critérios da arte


africana - a leitura da obra afro-brasileira seguindo esses “critérios africanos” não é nova.
Nina Rodrigues, à sua maneira já o havia feito em 1904 a considerar que tentou tirar o
suprassumo estético-religioso do que chamaríamos agora da “arte ritual” brasileira, de

HERSAK, Dunja. Songye Masks and Figure Sculpture (London: Ethnographica LTD, 1986).
HIMELHEBER, Hans. Negerkunst und Negerkünstler. Braunschweig, West Germany: Klinckhardt &
Biermann, 1960.
KJERSMEIER, Carl. Centres de style de la sculpture nègre africaine. 4 vols. in 1. New York: Hacker Art
Books, 1967.
LEIRIS, Michel, & FRY, Jacqueline . African Art. Translated by Michael Ross. New York: Golden Press,
1968.
LEIRIS, M. & DELANGE,J. Afrique noire: la creation plastique, de M. Leiris et J. Delange, Gallimard
1967.
MAQUET, J.J. Introduction to Aesthetic Anthropology. Malibu: Udena Publication (1971).
MUDIMBE, V. Y. The Invention of Africa: Gnosis, Philosophy, and the Order of Knowledge. Bloomington:
Indiana University Press, 1988.
NOOTER, Mary H. Secrecy. African Art that Conceals and Reveals (New York: The Neues Publishing
Company, 1993).
RUBIN, Arnold. African Accumulative Sculpture: Power and Display. New York: Pace Gallery, 1974.
THOMPSON, Robert Farris. African Art in Motion: Icon and Act in the Collection of Katherine Coryton
White. Los Angeles: University of California Press, 1974.
VOGEL, Suan Mullin. Aesthetics of African Art: The Carlo Monzino Collection (New York: The Center for
African Art, 1986).
E uma série de outros livros-chave que não caberia apresentar dentro de nossos objetivos aqui meramente
exemplificativos.
acordo com seus congêneres africanos. Arthur Ramos leu o escritor e filósofo negro
norte-americano Alain LeRoy Locke (1885-1954), que incentivava os artistas
afro-americanos a se inspirarem na África e a representarem a si mesmos, enquanto
negros, em seus trabalhos. Arthur Ramos seguiu basicamente as teorias propostas por ele,
para identificar quais seriam as características estéticas que tratamos no cacoete “arte da
diáspora” – ou seja, a arte da Afro-Américas, com algumas ressalvas::

Haveria assim uma diferença fundamental entre a arte do negro africano e a do negro
americano. As expressões da arte africana são rígidas, controladas, disciplinadas,
fortemente convencionalizadas, enquanto que as dos afro-americanos são livres,
exuberantes, emocionais, sentimentais e humanas. Embora não se possa aceitar em sua
inteireza êste conceito de Alain Locke, pode-se, contudo, notar que a mudança de
ambiente determinou novas expressões de arte, mas certas características fundamentais
se conservaram, como por exemplo, a espontaneidade, o sentimentalismo, a emoção, a
exuberância ... (RAMOS, A., 1949, p. 197)

Xangô – candomblé da Bahia


RAMOS, A., 1949, p. 198 [fig. IV, prancha i]

Figura de Iansã, em madeira, de frente e de perfil


(Candomblé Bahia)
RAMOS, A., 1949, p. 198 [fig. V, prancha b]
Publicado também em: (RAMOS, A., 1940, p. IV)
A respeito dessas duas estatuetas de “Xangô e iansã” o autor segue a abordagem
estetizante da linguagem concebida com óculos do modernismo quando diz:

Certamente a concepção continua sendo negro-africana, principalmente na


representação dos orixás, com suas insígnias ou suas atitudes características, mas a
escultura já vai perdendo os estilos africanos, nas proporções corpóreas, no realismo, na
perda dos valores expressionistas. (RAMOS, A., 1949, p. 203)

Não faltaram esforços para que fossem feitas as ligações entre as formas primárias
africanas com as elaborações que se seguiram ao modernismo, especialmente em relação
aos artistas que deixavam entrever algum tipo de referência seja no primado das formas
puras ou desestruturadas, o compromisso com a decomposição da figura, o vínculo com
ideias plásticas cujas linhas se destorcem ou se alteram etc. a força da linguagem
emblemática e o cromatismo vigoroso, bem como o caráter monumental ou cênico,
temático e discursivo das artes africanas são vistos como sinais dos mais contundentes
de africanidade, revelando supostamente “permanências” africanas nas Américas. São
essas características estéticas que permitem aos críticos aproximarem artistas plásticos
brasileiros como Lygia Clark e Hélio Oiticica dos chamados afro-americanos Wifredo
Lam ou Jean-Michel Basquiat. (SALUM, 2000, p. 114).

Nos cursos que eu dou sobre o assunto “arte africana”, deixo entreabertas algumas
pequenas portas interpretativas quanto ao modo de como a arte africana foi subutilizada
seja pelo modernismo, seja por teóricos de arte africana com frequência influenciados por
aqueles, seja por alguns artistas norte-americanos169. O processo de estabelecimento da
compreensão da arte africana, partindo da avalanche de incompreensões que se iniciaram
entre os séculos xv-xviii pela visão dos objetos exóticos levados como presentes para a
aristocracia europeia e depois formando os gabinetes de curiosidade, tratados
posteriormente (séc.xix) como provas do crime perpetrado pelos cientistas colonialistas

169
Estes quase sempre superficializados pela carga mesquinha de alguns poucos símbolos africanos mais
evidentes, na falta de símbolo de orixás, utilizando símbolos akan como adinkra, uma tempestade de
“sankofa”, emblemas reais do Daomé, o alfabeto nsibidi e alguns utilizaram ainda dos símbolos dos pontos
riscados do vodoo (os Vèvè), a maioria dos quais são arabescos próprios apenas do Caribe e não mais ao
Benin ou de quaisquer outros países africanos.
que coletaram objetos que fariam parte do conhecer para dominar e referindo-me
também no séc. XX ao importante crivo formal dos modernistas que observaram aqueles
objetos etnológicos como formas artísticas e passando ainda pelo pan-africanismo
idiotizado que se auto-condescendeu com a visão dos modernistas e de outros europeus
para construir uma visão de uma África de um valor reconhecido “europeisticamente”,
culminando por fim, no processo ainda em produção da análise individualizada das
produções, ateliers e artistas de apenas algumas das montanhas hoje depositadas nos
neo-gabinetes de curiosidade para pesquisadores - as reservas técnicas dos grandes
museus etnológicos da Europa. Num curso específico eu falto também como a influência
do dadaísmo e do modernismo do anarquista e judeu Carl Einstein170 acabou por
brincadeira estética ou não acabou influenciando tudo o que se falou em termos plásticos
da arte africana até hoje. Desde Negerplastik escrito em 1915 sobre a influência
psicodélica modernista, passando por Negerkunst und Negerkunstler do Himelheber
(1960), o Centres de style de la sculpture nègre africaine (1967) até chegar na Susan
Vogel e os seus Aesthetics of African Art (1986) e o badaladíssimo Art/Artifact: African
Art in Anthropology Collections (1988)171.

Esse, de qualquer forma, é um terreno muito nebuloso. O processo de pesquisa do artista


pode fazer emergir uma infinidade de formas e cores e gestualidades que refazem o
misticismo e pode em muitas ocasiões gerar mais um desrespeito pelo superficialismo do
que uma séria homenagem ou bom referencial artístico. Por outro lado, nenhum grau de
pesquisa por mais profundo que fosse poderia evocar uma certa África que não fosse
ademais, ainda desconhecida. Não é papel do artista ocidental lançar mão das formas da
África supondo que estaria fazendo uma extensão dessas formas como se fosse um
legítimo herdeiro ou um seu “porta-voz”. Até porque, qualquer que seja o ponto de

170
Como um bom anarquista da época, Einstein lutou entre os anos de 1936-1938 na Guerra Civil
Espanhola. Sendo preso na França, em 1940, para onde tinha fugido depois da capitulação dos rebeldes
espanhois para o exército fascista católico e autoritário de Franco. Ele conseguiu escapar da ocupação
alemã de Paris fugindo para o sul, na fronteira francesa com a Espanha. Com o avanço do colaboracionismo
francês, ele foi mantido preso ali, esmagado entre três fascismos, o alemão, o espanhol e o francês. Por fim,
desprovido de quaisquer outras alternativas dignas de um anarquista, Einstein cometeu suicídio na vila do
Pirenéus de Lestelle-Betharram em 05 de julho de 1940.
171
Para um bom início de conversa, por favor, leiam: MARK, Peter. Est-ce que l’Art Africain Existe?
Revue française d'histoire d'outre-mer Année Volume 85. Numéro 318, 1998. pp. 3-19.
referência dessa voz (considerando que por princípio não se deve falar pelo outro), seus
sentidos necessariamente seriam imprevisíveis.

Ainda assim, os artistas podem por exemplo, aproveitar do esforço já centenário de


reconhecimento dessas formas e dos desdobramentos que elas provocaram na arte do
ocidente. Se pensarmos no que foi auferido das pesquisas sobre arte africana, suas
características, seus alcances, talvez fosse possível conferir algumas das bases de
utilidade para execução artística ou para as soluções plásticas de algum modo inovadoras.

É mais ou menos como diz Preston ao analisar o africanismo da obra escultórica de


Emanoel Araujo: Aquele que está familiarizado com a arte africana, está informado que
esta é essencialmente uma estética reducionista, na qual formas, linhas e massas são
abstraídas ou reduzidas a fim de produzir formas mais simples que aquelas que
observamos na realidade. No plano intelectual, a escultura africana foi criada para ser
vista como invocação de certas idéias, não uma imitação literal da realidade. Isto
explica porque um detalhe saliente da estrutura ou anatomia de uma coisa, ou a redução
do todo a uma essencialização foi motivo dominante na arte africana. (PRESTON, G.,
1991, p.91)

Nas minhas aulas eu sempre chamo a atenção por exemplo de como a arte africana
conquistou planos de análise estilística que destacaram certos rumos interpretativos ao
criarem quase que forçosamente uma orientação estilística generalista para a chamada
“arte africana” como se esta pudesse se enquadrar num quadro tão genérico. Ainda que
esses mesmos rumos não dissessem muito em relação às obras mesmas em seus contextos,
na medida em que estão descontextualizadas em museus de arte, a proposta de criação de
um quadro estético, jamais poderia passar de uma “orientação estilística geral”. Mesmo
assim, eu sempre concordei que, por esta metodologia, aquelas peças poderiam ainda
trazer fruições e respostas sensoriais e intelectivas que poderiam ir além delas próprias,
além de seu contexto original, o que de fato não deve ser a única, mas “a interpretação
delas no ocidente”, ou seja, apenas uma das múltiplas tentativas de sua compreensão e
universalização.
Trazendo exemplos clássicos de peças depositadas nos principais museus de arte africana,
costumo sintetizar em aula alguns dos critérios percebidos pelos estudiosos da arte e
estéticas africanas tradicionais que se instigaram na dupla percepção formal (modernista)
e etnográfica (antropológica) desta arte da seguinte maneira:

Orientações Estilísticas Gerais da “arte” africana172

Código visual173 (aparecimento de uma arte de caráter icônico e conceitual)


O Simbólico174 (uso de alegorias e inclusão de aspectos míticos de uma etnologia
particular)
Frontalidade175 (representação frontal da escultura)
Gestualidade176 (linguagem gestual) (posicionamento corporal que são posturas formais
que remetem a conteúdos pré-estabelecidos culturalmente tais como: respeito, honra,

172
Eu publiquei em 2015 um resumo dessas orientações estilísticas no glossário em BEVILACQUA,
J.R.da Silva & SILVA, R.A. África em Artes. São Paulo: Museu Afro Brasil, 2015. p.50 e ss.
173
LaGAMMA, A. & PEMBERTON. Art and Oracle: African Art and Rituals of Divination. New York:
The Metropolitan Museum of Art. 2000, p. 46.
BLACKMUN, B.W. Values Made Visual: African Art from the Collection of Robert and Patricia Berg. San
Diego Mesa College Art Gallery, 1988 [exhibition Catalog].
174
QUARCOOPOME, Nii O. African Form and Imagery: Detroit Collects. Detroit Institute of Arts, 1996.
p.48; 95.
DREWAL, Henry John. Dimensions in Black Art: African, Afro-Brazilian, and Afro-American Art at
CSUCleveland State University, 1975.p. 07; 20.
175
CARNEIRO DA CUNHA, Marianno. Arte afro-brasileira. In: ZANINI,
Walter (Ed.). História Geral da Arte no Brasil. V. II. São Paulo:
Instituto Walter Moreira Salles, 1983. p. 973-1033.
PEREIRA, Alberto F.M. A arte e a natureza em Moçambique: A arte em Moçambique. Lisboa: Artes e
Letras, 1966. p.34.
VALLADARES, C. do P. Riscadores de milagres: um estudo sôbre arte genuína. Superintendência de
Difusão Cultural da Secretaria de Educação do Estado da Bahia, 1967.
Seguindo as abordagens nomeados por Pierre Francastel como "espaço plástico" em Peinture et société:
naissance et destruction d’un espace plastique de la Renaissance au cubisme, Paris, Lyon, Audin, 1951,
Louis Perrois busca explicar os conceitos de o volume escultural, frontalidade, de representação pictórica e
hieratismo contidos na reflexão que caracteriza a arte plástica do povo Fang do Gabão. PERROIS, L.
Problèmes d'Analyse de la Sculpture Tradittionelle du Gabon. Paris: O.R.S.T.O.M, 1977
p.95.
176
BLIER, S.P., Gestures in African Art. New York: L. Kahan Gallery, 1982. Disponível em:
https://www.academia.edu/14913279/Gestures_in_African_Art_1982_New_York._L._Kahan_
THOMPSON, R.F., African Art in Motion. Los Angeles: University of California Press, 1974. pp. 02 (gesto
para ideia de “prazer”e “alegria”); 48 (gesto para ideia de “estabilidade”); 65 e 68 (gesto ideia de
“permanência”); 73 (compartilhar); 180 (ligação entre os seres humanos);252 (gesto para: “isso que você
fez é vergonhoso”), assim por diante.
ligação ancestral, entre seres humanos, etc. Serenidade177 (expressão meditativa,
sublime ou idealizada da figuração facial) Rigorosidade178 (expressão rude, vigorosa, ou
até mesmo “feia” como índice simbólico para expressão de conceitos de poder, força,
medo, perigo, terror etc.)
Rigor formal179 (permanência e repetição convencional da forma através de gerações)

177
THOMPSON, R.F., Aesthetic of the Cool: Afro-Atlantic Art and Music. Periscope Publishing, 2011.
ver também livro supracitado nota 122 (THOMPSON, R.F., 1974, pp. 43;45)
178
Embora a percepção de “feiúra”e desproporcionalidade adquirida via perspectiva modernista já tenha
sido identificada em Carl EINSTEIN (1915) um dos primeiros especialistas a estudar a intencionalidade da
expressão estética da feiúra na arte africana foi Robert Ferris Thompson (1971, p.379-81). A questão da
"feiúra", também por função do perspectivismo modernista, (ao contrário da "beleza"), é um dos conceitos
estéticos mais estudados em arte africana. Aos interessados neste tema, que leiam, por favor:
ANDERSON, M.G. & KREAMER, C.M. Wild Spirits, Strong Medicine: African art and the wilderness.
Seattle: University of Washington Press, (1989);
BEN-AMOS, Paula. Men and Animals in Benin Art. Man, n.s. 11: 243-52 (1976);
BIEBUYCK, D.The Decline of Lega Sculptural Art. In: GRABRUN, Nelson H.H., Ehnic and Tourist Arts:
Cultural Expression from the Fourth World. Berkeley: University of California Press, (1976 p.346) aqui
Biebuyck inaugura o conceito de "estética do feio", mas exclui a feiura intencional dos estudos estéticos,
_____________. The Arts of Zaire, Vol.2. Eastern Zaire: The Ritual and Artistic Context of Voluntary
Associations. Berkeley: University of California Press, (1986);
BLIER, Suzanne. African Vodun: art, psychology, and power. Chicago & London: The University of
Chicago Press, 1995. p. 369;
BOURGEOIS, A.P. The Art of the Yaka and Suku. Meudon: Alain & Francoise Chaffin, (1984);
EBONG, I.a. The Aesthetics of Ugliness in Ibibio Dramatic aRts. African Studies Review, 38 (3), 1955, p.
51
THOMPSON, R.F. Black Gods and Kings. Los Angeles: UCLA, 1971, p.379-81,
THOMPSON, R.F., African Art in Motion. Los Angeles: University of California Press, 1974, p. 120;
HORTON, R. kalahari Ekine Society: a Boderland Religion. Africa. Volume 33, Issue 2 April (1963) pp.
94-114;
HORTON, R. The Kalabari Ekine Society: A Borderland of Religion and Art. Dept. of. Antiquities (1965);
BRAIN, R. Art and Socieety in Africa. London: Logman Group (1980);
COLE, H.M. "Art as a Verb in Iboland." African Arts 3(1)33-41. 88 (1969);
CONSENTINO, D.J. Mende Ribaldry. Los Angeles; UCLA: African Arts Vol. 15, No. 2, February (1982),
pp.64-88;
HOMMEL, W., Art of the Mende. College Park: University of Maryland Press (1974);
McNAUGHTON, P.R. Bamana Blacksmith. African Arts 12(2): 65-71, 92 (1979);
MESSENGER, J.C. The Carver in Anang Society. In: AZEVEDO, W.L. d'. The traditional Artist in
African Societies. Bloomington: Indiana University Press (1973);
OTTENBERG, S. Humorous Mask and Serious Politics among Afikpo-Igbo" In: FRASER, D.M & COLE,
H.M.(Eds) African Art and Leadership. Madison: University of Wisconsin Press, 99-121, (1972);
PHILIPS, R.B. Masking in Mende Sande Initiation Rituals. Africa 48 no.3 (1978) pp.265-77;
PICTON, J., Art and Artifact in the Niger-Benue Confluence Region of Nigeria. In BASSANI, E. (Ed.) Art
in Africa. Modena: Edizione Panini, (1986). pp.52-57;
VaN DAMME, W., A Comparative Analysis Concerning Beauty and Ugliness in Sub-Saharan Africa.
Africana Gandensia 4. Ghent: Rijksuniversiteit, (1987);
____________., Beauty in Context: Towards an Anthropological Approach to Aesthetics. In: Philosophy of
History and Culture vol.17. Leiden: E.J. Brill, 1996. pp. 41-42; 57; 153-4; 338. etc.
179
EINSTEIN, C. Negerplastik/Escultura Negra. Trad. Inês Araújo e Fernando Scheibe. Ed. USFC, 2011.
Jogo da simetria - assimetria180 (composição que faz contrabalanço proporcional)
Geometrismo181 (uso regular de figuração geométrica em oposição à composição mais
naturalista e orgânica)
Naturalismo182 (uso regular de figuração naturalista em oposição à composição mais
geométrica)
Não-Narrativa183 (ausência de descrição narrativa e a consequente necessidade de
decodificação visual)

Essas são apenas algumas das tendências mais gerais da figuração plástica relacionada
também principalmente às máscaras e esculturas. Outros objetos artísticos ou da cultura
material africana, como as joias, por exemplo, assunto que tenho reservado um tempo
maior para o estudo nos últimos anos, as análises adquirem outras bases categoriais
também. Mesmo nas máscaras e esculturas, questões como a composição abstrata em
oposição à composição realista ou as recomposições das noções do “belo” e do “feio”
como que configuradas somente quando comparadas às tradições europeias, precisam ser
ainda melhor reconsideradas.

A leitura da obra “afro-brasileira” de acordo com alguns dos critérios da arte


contemporânea - o primeiro modelo de compreensão de uma estética afro-brasileira
ligada a critérios e conceitos da arte europeia foi desenvolvido por Iracy Carise (1974 e
1980), mas ela não manifestou com isso um interesse puramente teórico, ao contrário,
Carise sempre demonstrou objetivos práticos ao fazer a adaptação de sua percepção das

CHENG, J. Immanence Out of Sight: Formal Rigor and Ritual Function in Carl Einstein's Negerplastik, In:
PELLIZZI, F. Anthopology and Aesthetics, 55-6, Spring/Autumn, 2009, special issue "Asconding
Objects";
DREWAL, M.T. Yoruba Ritual: performers, play, agency. Bloomington & Indianapolis: Indiana University
Press, 1992 pp. xiii-xvi.
180
BRANDEL, R. The Music of Central Africa: An Ethnomusicological Study: Former French Belgian
Congo, Ruanda-Urundi, Uganda, Tanganika, Reprint of the 1961 edition. Springer-Science-Business Media,
B.V. Photomechanical Reprint, 1973. pp. 101-2;
181
COSTA E SILVA, A. da. O Quadrado Amarelo. Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009. p.23.
182
FROBENIUS, L. The Voice of Africa: Being an Acount of the travels of the German inner African
exploration expedition in the years 1910-1912. In Two Vols. Transl. Rudolf Blind London: Hutchinson &
Co.; Paternoster Row, 1913.
WILLET, Frank. African Art. New York, Praeger Publishers Co., 1975.
183
LEIRIS, M. and DELANGE, J. African art. Thames and Hudson, London, 1969. p. 8.
formas plásticas e culturais africanas ao seu trabalho de artista visual. Em sua fase da
virada da década de 70 para 80, a artista formulou teoricamente suas inquietações de
criação e de trabalho lançando um princípio para esse vínculo entre África e Brasil na sua
obra. Numa nota de trabalho intitulada “Análises e Reflexões”, escrita em Paris em 1979,
enquanto a artista trabalhava numa série de esculturas baseadas em sete peças-módulo ela
define sua obra do período como “iconografia modular da forma”. E toda a série atingiu
um título digno dos melhores momentos da arte construtivista: “interioridade metacentro”.
No entanto, o construtivismo é apenas uma referência vaga no seu trabalho, o que mais
aparece são o que ela chama “metábole”, “imagem lógica, intencional da repetição da
forma ou configuração e representação de uma ideia em termos diferentes (CARISE, I.,
1980, p.103), ao estilo da arte africana galgada por artistas afro-americanos como os do
coletivo AfriCobra na década de 1960, entre outros184.

Essa perspectiva de Carise é notável se considerarmos apenas que ela pertence a um


grupo nada coeso de artistas ligados às academias de artes que se valeram das propostas
estéticas cubistas e modernistas para praticar suas poéticas. A análise da obra de artistas
por um lado (via Europa) como Lasar Segall, Hélio Oiticica, Bruno Giorgi, e de outro
lado (via Brasil) Mário Cravo Jr., Carybé, Hans Bahia, laureados pelo vapor nativista,
primitivista e/ou tropicalista pode talvez se fazer notar teoricamente em algumas obras,
um esforço semelhante ao ofertado por Iracy Carise deste paralelo conhecido como
“reducionismo formal africano” aplicado no geometrismo modernista. Essa “prospecção”,
digamos assim, ainda não foi feita nem sequer como uma curiosidade. Assim, ainda que
nos limitemos apenas ao que disse Carise de seu próprio trabalho, feito como ela mesma
diz para difundir riquezas potenciais da arte negra (Idem, Ibidem), chegamos aos termos
corajosos pelos quais ela quis basear suas atividades enquanto artista, abrindo espaço para
outras empreitadas, inclusive que não sejam ligadas à noção de busca pelas raízes formais
ou “primitivismo” próprios do modernismo. Eu nunca vi, por exemplo, sejam artistas
brancos ou negros que dissessem tão francamente, ainda que essas bases pudessem ser
questionáveis, quais seriam as “reinvindicações negras” de seu próprio trabalho, como o
fez Iracy Carise: O conceito de interioridade, abrangendo teorias apuradas do princípio

184
PATTON, S. African American Art. Oxford History of Art. New York: Oxford University Press, p.216.
de metacentro, que poderia chamar a interioridade da forma e da alma negra - e daí
forjar toda uma derivação de idéias ligadas a mitos, religião, tradições - é sumamente
válido sob o ponto de vista de filosofia formal: meta [em itálico no original] como prefixo
grego, deslocação, transposição ou sucessão. A correlação, o relacionamento,
interligação, justaposição de formas positivas e negativas, interpretações temáticas
dessas formas e espaços que, embora ocasionalmente se distanciem, continuam existindo,
entretanto, como um novo espaço virtual, conseqüente das mutações ou deslocamentos
da forma, constituem-se no que chamaria meta-espaço, ou seja, considerar o conceito de
espaço entre dois corpos e o que eles possam conter como o ponto vital e o que mais
importa - e não simplesmente o conceito de metacentro como ponto determinante de
estabilidade ou equilíbrio desses corpos flutuantes.(CARISE, 1980, p. 103)

A mim me parece evidente que ela está retomando (de forma original) as elaborações
apresentadas no “Negerplastik” (A Plástica Negra)185, que analisa a arte africana
tradicional à luz do cubismo. Einstein faz uma verificação da identidade e do realismo da
escultura negra africana, apresenta a ideia de construção formal na arte da África que
pode ali, diferentemente dos modelos do modernismo, partir de fabulações míticas para
estruturação a obra. Meta-arte (ou espaços, pausas e vãos, respectivamente na arte, na
música, na arquitetura) tem analogias nas formas sensuais dos negros, que realmente
existem para mim, formalmente, como interioridades - como parte essencial de uma ideia:
rosto e seios como contraponto de nádegas e esta como contraponto de nuca devem ser
entendidos na razão direta das definições como características da raça, autóctones,
puras, legítimas, estéticamente coincidentes e perfeitas, mas que têm, também, outro
sentido de derivação exclusivamente como pensamento formal que me fascina e com a
qual tanto me identifico. (Idem, p. 104). Carise diz conter, por fim, a noção de ponto focal
(que ela chama “ponto vital”) como metacentro, ou ponto de partida em torno do qual se
apresenta a expressão do volume. Isso pode ser mais uma forma inventada de “cubisme
brésilienne” do que arte africana ou afro-brasileira, mas não torna impossível a leitura. A

185
EINSTEIN, C. Negerplasatik. Leipzig: Weissen Bücher, 1915. Trad. Escultura Negra. Inês Araújo e
Fernando Scheibe. Ed. USFC, 2011.
empolgada Iracy Carise em viagem à significativa França de 1979186 olhava para o
passado. Ela refazia os planos e passos que o menino Picasso havia feito ali 70 anos
antes:

Os estudos e experiências em busca de novos valores como meio de expressão dentro de


“formas negras”, por assim dizer, que, contendo variáveis, com elas se relacionam,
resultaram numa espécie de iconografia modular da forma a partir justamente delas; o
conceito do mal e do bem como forma positiva e negativa, matéria e anti-matéria,
participando de um todo, o conceito de depuração onde o espaço central é preenchido
por um sentido de atração-meta (seria o meta-espaço?) que se encaixa ou se encontra
entre os dois corpos concretistas (ponto e contraponto), semelhante ao S da simbologia
do taoísmo chinês ou, ainda, a decomposição da cruz gamada [“Suástica”] que encontrei
no departamento “Afrique” do Museu do Homem em Paris, inspirada nos ornamentos
das tribos africanas para a série “construções programadas”- já porque a
“interioridade”, objeto desta fase atual consitui-se em estranhas coincidências de formas
características que surgem através do meu sentimento e de minha sensibilidade. (Idem, p.
104)

Eis o ponto vital da proposta de Carise, ela se baseia em seu sentimento e sua
sensibilidade; e estes, como nos modernistas, estão em grande parte ligados aos modelos
plásticos da arte tradicional africana da Costa Ocidental. No caso de Iracy, não é à toa que
ela inclui em seu título os termos “Orixás, deuses iorubanos”. Trata-se, sem dúvida, da
nagocracia, que foi resultado direto dos estudos negros afro-baianos e nagocêntricos
promulgados pelos intelectuais estrangeiros: Roger Bastide, Pierre Verger, Ruth Landes e
Carybé, fontes certamente não únicas, mas as com grande centro de gravidade por serem
estrangeiros em primeiro lugar, geralmente mais bem aceitos como referência em
quaisquer assuntos, mesmos os afro-brasileiros, mas também por seu talento, carisma e

186
Este foi o mesmo ano em que Pierre vidal-Naquet lidera a luta contra Faurisson e outros
extremo-direitistas que negavam a existência das câmaras de gás nazistas. Foi o ano também da
“revitalização”, chamemos assim, dos Les Halles de Paris, cidade cujo prefeito era Jacques Chirac, que
juntamente com Jacques Kerchache fundariam a empreitada do Museu Quai Branly anos depois (1995), a
primeira pedra do dominó a cair na Europa, o primeiro ponto de fissão nuclear de toda ideia do
primitivismo levantado pelo modernismo.
poder pessoal para se tornarem, praticamente do nada, nas principais autoridades em
assuntos em que as autoridades já estavam, ademais, estabelecidas. Quase tudo que esses
estrangeiros aprenderam e nos ensinaram o fizeram com pessoas que quase ninguém deu,
daria ou dará a mínima. Certamente, o perspectivismo modernista primitivista com
relação à valorização da arte africana serviu igualmente como fonte inspiradora para um
certo perspectivismo “euro”-brasileiro na valorização de algo que somente seria
valorizado a partir do olhar Europeu. Vinícius, Velho, Saravá!

O problema da nagocracia - a criação de uma possível análise estética de uma arte com
heranças africanas impõe desafios semelhantes a aqueles enfrentados pelos teóricos que
implantaram o conceito “arte afro-brasileira”. Para definir quais seriam os critérios para
elaboração dessa estética seria antes necessário definir quais os campos possíveis dessa
influência, já que esta recuperação está relacionada ao rompimento e ao hiato
sociocultural que significou a violência da escravidão. Pouco disso é recuperado em
análises formais, ainda mais quando conceituadas nas fórmulas modernistas,
intelectualistas ou apenas nagocêntricas.

A recuperação, digamos, dos “ingredientes” de uma possível “estética afro-brasileira”, se


possível, devia ser um ato de estabelecimento de uma memória afrodescendente. Sendo
assim, uma das imagens possíveis para a elaboração dessa estética podia ser iniciada pela
imagem histórica do Baobá; origem mítica da constante “perda-recuperação da
identidade”. A noção de que as sinuosidades das formas arbustas corresponderia à
presença-falta identitária, por conseguinte, os altos e baixos dessas referências
corresponderiam à presença e ausência dessa ligação atlântica. O Baobá, a mítica “árvore
do esquecimento” recuperaria a memória perdida no tempo da violência e permitiria com
suas profundas raízes, mesmo nesses tempos eternamente áridos, focar no centenário de
sua existência e na grandiosidade que fez erguer saberes logo abaixo de suas sombras. É
por isso mesmo que havendo ou não um ethos próprio, valores sacros ou mundanos nos
quais se apoiar, é fato que as materialidades constitutivas das culturas das Áfricas nos
Brasis deverão surtir algum efeito colateral nas artes, ainda que não necessite de
qualificativos que a nomeie. No mínimo, essa carga artística, se for mesmo necessária,
deveria conter alguns resquícios de estéticas capazes de propiciar uma reflexão sobre a
visão de mundo africana no Brasil (SALUM, 2000, p. 116). Devemos portanto falar
menos em estabelecimentos teóricos do que em campos, tecidos, contextos de atividade.
Esses campos não foram e nunca deverão ser totalmente estabelecidos porque sua fluidez
é preexistente ao processo identitário brasileiro. Quando nos constituimos enquanto povo,
tarefa essa indefinidamente em contrução, nossa identidade já era projeção ao futuro. Não
foi absolutamente a toa que Stephan Zeig disse: “Brasil, Pais do Futuro”... nossa
identidade é proposta na raíz do passado, mas justificada na enorme diversidade fluida
dos ramos e rumos futuros.

Materiais e técnicas - o paralelismo medieval que criou a fronteira intransponível entre o


mundo material e o espiritual, em voga ainda no período das grandes navegações e
posteriormente nos períodos coloniais na África e nas Américas sobredeterminou que
certos tipos de materiais jamais poderiam ser valorizados. Os objetos em si no mundo
medievo: corpos animais, as folhas, as árvores, as pedras, enfim, toda a materialidade dos
reinos vegetais e animais, o fogo, a água, a terra e o ar187 existiam num mundo em
paralelo e era negativo em relação ao “verdadeiro” mundo que seria o espiritual. Nesse
sentido, Deus e o espírito seriam para os medievais o que é Bom, Puro e Belo; por
oposição, o mundo material e os corpos materiais seriam “feios, sujos e malvados”. Ora,
o uso e valorização de materiais naturais na religiosidade europeia antiga, fizeram com
que os padres da igreja católica na idade média associassem essas práticas com bruxaria e
as sacerdotisas eram por sua vez igualadas às bruxas que pretendiam valorizar objetos
que deviam, na verdade, ser execrados por sua materialidade, por seu mergulho no mundo
“negativo”, nesse mundo natural que seria igualável ao “pó”, na visão daqueles homens.

187
Parte dessa mesma materialidade seria utilizada por artistas relacionados às artes religiosas, voltadas,
como diz Marianno, para a sacralidade da matéria pura: água, terra, pedra, sangue, seiva
etc.(CARNEIRO DA CUNHA, 1983, p.1026). No Nilda Scotti, no texto de apresentação ao livro “Arte
Negra na Cultura Brasileira: máscaras africanas” de Iracy Carise enumera outras dessas materialidades
envolvidas na arte de origem africana: a utilização de material de origem africana resulta em absoluta
fidelidade e riqueza estética: penas, búzios, palhas, couros, peles, contas, dentes de animais – enfim, um
sem-número de sutilezas e nuanças! (CARISE, 1975, p.10). Também a professora Lisy Salum, com
pensamento em Mestre Didi, elenca alguns elementos e emblemas de “orixás telúricos” para os quais os
artesãos e artistas reproduzem formas sagradas do candomblé utilizando fibras vegetais, couro, búzios e
outros materiais orgânicos. (SALUM, 2000, p. 117)
Os povos indígenas e africanos não pensavam da mesma forma que os europeus
medievais. Suas representações artísticas também não evocavam a espiritualidade que
não dissesse respeito a uma integração ao mundo dos vivos e dos mortos. Essa pedra, essa
folha, esse galho, essa substância orgânica pode tanto fazer parte da materialidade da arte
quanto podem ser criadas formas simbólicas nesses objetos que o remetam à figuração
divina. Um exercício estético afro-brasileiro, ainda que ressalvadas as inúmeras
possibilidades de sua criação fantástica em torno de uma África distante, inclui: a) a
análise formal dos elementos constitutivos da aparência africana e afro-brasileira; b) a
materialidade enquanto resistência cultural; c) os elementos míticos, históricos,
memoriais entre outros ligados ao intelecto, isto é, à supremacia e a equivalência dos
sujeitos e objetos.

Ao falar de Mestre Didi, entre outras elaborações relacionadas diretamente à religiosidade


e não à estética propriamente dita, Araujo inicia uma listagem que nos parece importante
do ponto de vista da formação da materialidade da chamada arte afro brasileira, neste
caso, ligada ao culto de ancestrais egungun: no culto de ancestrais e na relação com as
forças da natureza que compõem sua linguagem, seus vínculos religiosos se fundem para
criar obras de grande qualidade, nas quais usa os mais diversos materiais - plástico,
búzios, palha, madeira e barro - para construir volumes, ritmos e gráficos que traduzem
mitos do panteão dos orixás africanos. (ARAUJO, E., 2016, p. 241)

Ainda no âmbito da religiosidade e seu entrecruzamento com a arte, Conduro também


aventa as ligações da materialidade do candomblé com suas possíveis aplicações ou
influências no campo artístico. Segundo ele, somos capazes de conviver também com a
antiga prática dos despachos em encruzilhadas, com garrafas de bebida, potes cerâmicos
cheios de comidas, velas, fumos, flores, frutos. Estamos abertos para investigar como
essas práticas de deslocamento, instauração, instalação e exposição influenciaram não
só o campo da arte, mas também os nossos hábitos cotidianos? (...) Com certeza,
conexões com o campo artístico emergem dessas religiões, como o reconhecimento
público da significação coletiva para além de seus domínios e o relevar de artistas,
mestres, discípulos. (CONDURU, 2007, p.45-46)
Indo em outra direção, alguns autores buscaram “universalizar” a produção artística de
africanos e afro-brasileiros, por exemplo, como o fez Nelson Aguilar ao associar o fazer
artístico de Rosana Paulino com artistas estrangeiros, tido como modelos para o
“universal”, como dizem. Segundo Aguilar, em artigo para o catálogo da Mostra do
Redescobrimento, Paulino criava um conjunto afro-brasileiro feito de retratos de
identidades ou de fotos de criança [e que] constitui [um] mural. Vários artistas
contemporâneos trabalham assim. Por exemplo, o francês Christian Boltanski. (...) se há
algo em comum entre Boltanski e Rosana é a referência a um destino similar em épocas
distintas da história: a deportação. (AGUILAR, 2000, p.32).

Este é um meio bastante utilizado, mas não é o único. Por exemplo, associado ao modelo
continuísta da arte afro-brasileira, padrão que será seguido por várias gerações depois
dele, Mário Barata já havia indicado, na década de 1950 e 60, parte deste projeto de
criação de uma “estética afro-brasileira” baseada estritamente ou principalmente nas
elaborações estéticas das artes africanas, ainda que tenha demonstrado em seu método o
excesso de síntese e o essencialismo geográficos próprios de sua época188 :

No velho continente as concepções plásticas diferiam um pouco de região para região,


havendo nítidamente vários centros de estilos e três tendências predominantes: uma,
realista, uma geométrica e outra, mais recente, expressionista, parecendo forma
secundária de arte, podendo resultar dum contacto entre as duas primeiras. A realista é
complexa, elástica, pois vai dum quase classicismo pela regularidade e harmonia de
expressão, como na arte antiga do yoruba (Ifê) e do Benin até um realismo moderado, às
vêzes expressionista. Na Nigéria, e em parte do Dahomey os Ioruba fizeram também

188
Essas elaborações, na verdade, já vinham sendo teorizadas desde pelo menos 1915, com o Negerplastik,
de Carl Einstein. No entanto, como foi dito acima, o paleontólogo alemão Georg August Schwinfurth
(1836-1925), em seu “Artes Africanae”, mesmo sem a menor intenção de fazê-lo, já havia aberto as
possibilidades da interpretação plástica dos objetos da cultura material africana, ainda em 1875. Essa
abertura pode ser deduzida de seu discurso paleontológico, por meio da identificação dos momentos em que
escapam algumas poucas avaliações formais dentro de seu registro científico-descritivo. Ver:
SCHWINFURTH, Georg. Artes Africanae: Illustrations and Descriptions of Productions of the Industrial
Arts of Central African Tribes. Leipzig: F.A.Brockhaus, 1875. Disponível em:
https://digitalt.uib.no/handle/1956.2/2890 Acessado em Novembro de 2016.
êstes dois últimos tipos, juntamente com os Gêges (Ewês), Achantis (da Costa do Ouro) e
outros povos do Dahomey e da Costa do Marfim. Mas não é sòmente nessa região do
Golfo da Guiné ou Benin que houve uma elástica tendência realista. Outro centro,
produsindo (SIC), é verdade, pegas de estilo particular, é o equatorial ou Bantú, com a
arte de povos do Gabon, do Congo, de Cabinda, de Angola. A arte de tendência
geometrisante é inicialmente do Sudão Francés indo até o norte da Nigéria, incluindo os
povos Dogons, Bobos, etc (BARATA, M. 1957, p. 52)

É certo que essas “três tendências na arte africana” defendidas por Barata: a) realista; b)
geométrica e c) expressionista; possuem um histórico que é bem recente, e por isso pode
ser facilmente identificado. Evitaremos adentrar, contudo, nessas múltiplas questões que
são específicas para a arte africana e tem pouca aplicabilidade nas artes das Américas. De
qualquer maneira, a tentativa de abarcar em termos genéricos o que considerava ser a
África artística de então, é nos uma caracterísitca bastante interessante das análises
estéticas das peças produzidas em contexto tradicional na África e estas podem ter
alguma consequência em termos plásticos fora da África tradicional. No Brasil,
provavelmente, essa foi a terceira tentativa de fazê-lo depois de Arthur ramos (1908) e
Bastide (1945). Porém, não há dúvidas, a meu ver, que Barata esteja seguindo, de forma
semelhante ao que fez seus antecessores, a algum dos principais intérpretes estéticos
estrangeiros da arte africana. Reconheço isso mesmo não tendo tido tempo hábil para
prova-lo integralmente189.

Um pouco mais adiante Barata, ao tentar cruzar essa ponte África-Brasil, tendo já partido
de seu essencialismo geográfico, concentra-se naquela suposta tendência realista ou
geométrica atribuída à África. Ele já parte de uma premissa falsa (por vezes repetida até
hoje), a saber, a de que os povos da África Ocidental tiveram uma “elástica tendência
realista”, sem problematizar ainda o conceito de “realismo” ou sem relativizar ou

189
Em “A escultura de origem negra no Brasil (1957)” ele cita, por exemplo, Madeleine Rousseau, uma especialista
francesa em artes da oceania. Até recentemente, as artes da oceania e as africanas figuravam nas mesmas galerias dos
museus indistintamente. Isso foi absorvido aqui, a ponto do próprio Mário Barata tratar estética ou antropologicamente,
do negro africano e o afro-brasileiro, do mesmo modo como Mdme. Rousseau tratou indistintamente o “negro” da
oceania; o que era comum à época e que, portanto, não era uma ação isolada do Mário Barata. Ele cita ainda umas
pesquisas etnológicas na Bahia feitas por Melville Herskovits, entre outros autores.
enunciar propriamente quais seriam essas tendências, já que até hoje não conhecemos
suficientemente a produção africana tradicional para fazermos ilações tão genéricas. A
isso se soma que o “realismo” atribuído à arte africana ocidental refere-se a peças em
terracota e em bronze (nomeadamente as cabeças de Ifé e do Reino do Benin) e a suposta
ausência naturalista da África Central e Austral refere-se a objetos de madeira, que são
propriamente a maior parte dos objetos recolhidos pelos ocidentais e submetidos à essa
generalização.

Mesmo não levando isso tudo em consideração, de qualquere maneira, a adaptação


estética proposta por Mário Barata da arte africana para a arte negra no Brasil abrangeria
as tendências mais gerais de povos africanos, dentre alguns, aqueles que possivelmente
“exportaram” artistas para cá no período da escravidão, diz ele:

Chamamos a atenção dos estudiosos de etnologia negra no Brasil para três fatos: a) Em
arte os sudaneses pròpriamente ditos se opôem aos géges- iorubas reunidos aos bantus.
b) Inúmeros povos da Africa Ocidental e da Equatorial fizeram uma plástica orientada
principalmente pela terceira tendência, mas seus nomes não aparecem em geral, entre os
das nações dos negros vindos para o nosso país, exceção dos Mandés. Donde podemos
concentrar nossos estudos sôbre certos centros estilísticos. c) A tendência realista ou
geométrica é uma corrente geral, não excluindo peças de um ou outro tipo em cada
grupo. Todavia é entre os Ioruba que encontramos cabeças mais “clássicas”e entre estes
e os Achantis que existe urna arte de gênero movimentada e reprodusindo coisas da vida
corrente. Tratam-se dos pesos Achanti e de figuras sôbre altos de máscara Ioruba
(BARATA, M. 1957, p. 52)

Mesmo que restrito aos objetos de culto, a busca pelas elaborações de modelos artísticos
e de soluções plásticas, enquanto afirmações e incorporações por vezes imperceptíveis
dentro da praxis nacional, Barata afirma que numerosas são estas afirmações de origem
africana que, no curso de séculos, são diluídas pelo país se tornando difícil ou mesmo
imposssível fixar o quantum dimensional e ponderável no domínio estético. (BARATA,
M., Le Noir Dans Les Arts Plastiques au Brésil, S.d., p.59190)

Por outro lado, Mário Barata também foi o primeiro a propor uma classificação do
conceito das artes negras no Brasil. Embora também ligasse esta arte à cor da pele dos
artistas e a sua correspondência (por que não dizer dependência?) estilística em relação à
África, Barata afirma que é preciso datar certas peças para compreender as mudanças
estilísticas que operaram pouco a pouco. Dentre os problemas para esta arte ele destaca:
a) o centro de estilo com o qual as peças são relacionadas (rapport) e b) a época a qual
elas pertencem. (Idem, Ibidem, p.64). Indo mais além, Barata elenca um modelo de
classificação da arte negra no Brasil, a contar o que ele identifica com os últimos 75 anos
(ele escreveu isso no início dos anos 1970) de contato dos negros com outras culturas e as
inevitáveis transformações pelas quais passou o que ele chama de “criação plástica negra”.
São quatro os casos, de arte ligados claramente à África, diz Barata (Idem, Ibidem, p.67):

A) esculturas que obedecem às tendências estéticas negras, com obras de arte, no


entanto, de características diferentes;
B) esculturas que são resultantes da confrontação entre a tradição plástica africana com
aquelas de outras origens e que correspondem, por vezes, à novas necessidades e à novas
situações;
C) esculturas feitas por negros ou seus descendentes diretos, ainda que ligados à
tradição africana, sob diferentes aspectos, mas cuja forma plástica em si mesma já foi
esquecida ou ultrapassada.
D) Esculturas executadas por descendentes de negros mais integrados à cultura de
origem portuguesa, sem aspectos estilísticos africanos

Há pelo menos duas questões que aparecem de forma gritante nessa passagem de Mário
Barata:

190
Ver as seguintes versões: BARATA, Mário. The negro in the plastic arts of Brazil. In: The African
Contribution to Brazil. Rio de Janeiro: Ministério das Relações Exteriores, 1966]. Versão francesa: Le Noir
Dans Les Arts Plastiques au Brésil, p. 59-73. In: La Contribution de l’Afrique a la civilisation Bresilienne.
S.d. p. 59.
1) reparem que em sua classificação da “arte afro-brasileira” Barata é um tematista
historicista já que impõe a obrigatoriedade da ligação com a tradição africana, incluindo
artistas antigos como Aleijadinho e Mestre Valentim.

2) reparem que em sua classificação da “arte afro-brasileira” Barata não abre espaço nem
para brancos, nem para descendentes indiretos de negros. Embora o item “D” abra espaço
para negros “cosmopolitas”, isto é, que se expressariam de acordo com sua integração à
cultura portuguesa. Barata não deixa claro nessa parte, contudo, se ele excluiria os
mestiços de negros com brancos de sua classificação - ainda que rejeite isso nas
entrelinhas, já que chama de “descendentes” os artistas Aleijadinho e Mestre Valentim,
que certamente sempre foram entendidos como mestiços na historiografia de arte e em
suas biografias.

Boa parte da problemática teórico-prática se manteria através dos tempos já que a


complexidade seria a marca principal desta arte que nasceu como “arte negra”,
significando “arte ritual”, chegando-se a unificar como “arte afro-brasileira”, mas sendo
ainda hoje desdobrada entre “arte de culto” e “arte contemporânea”, com a maioria dos
influenciáveis pelo modernismo considerando-as o mesmo. Eis uma das complexidades
ao tratarmos do tema. Segundo Conduru, (2007, p. 10) usar a designação “arte
afro-brasileira” implica em “relacionar idéias, práticas e instituições circunscritas pelos
termos arte e afro-brasilidade, conectar esses campos e suas problemáticas, promover
confrontos e diálogos entre as questões derivadas da escravidão de africanos e
afro-descendentes no Brasil com as transformações no mundo da arte desde a Era
Moderna. O que impõe, de saída, o abandono da noção de estilo, evitando a
caracterização de unidades de espaço e tempo a partir de constâncias tipológicas,
formais e simbólicas”. Ainda que Conduro fale em “abandono da noção de estilo” (2007,
p. 10) e a despeito também das dificuldades que ele apresenta para essa arte, parece que
ele considera pacífico que a fundamentação dessa estética ainda seria possível por meio
do fio de continuidade entre as margens do atlântico.
Em outro texto, o autor, ligado também à corrente estética continuísta entre África-Brasil,
retoma as análises do Negerplastik de Carl Einstein (2008, p.168) dizendo que ele aborda
a indiferença da plástica africana em relação ao espectador. Certa indiferença relativa à
forma que também é observável nas práticas das religiões afro-brasileiras (CONDURU,
2013, p.79). Essa correspondência identificada por Conduru entre a plástica africana e a
plástica da religiosidade afro-brasileira indica que ele não hierarquiza os modelos
artísticos africanos em relação aos objetos de culto. De fato, mais adiante ele reforça: Um
olhar mais atento e aberto aos outros sentidos, nas práticas das religiões afro-brasileiras
emerge uma plasticidade que nunca está dissociada do rito e da vivência. A amplitude
dessas práticas pode, portanto, conectar a plasticidade dos objetos utilizados nos ritos às
artes visuais, mas também, obrigatoriamente, às artes cênicas, indumentária, música,
culinária. Entretanto, pouco sentido há, a meu ver, em insistir na diferença entre artes
maiores e menores, ou, talvez, até entre cultura material e arte. (Idem, p. 80). Por outro
lado, o autor parece manter essa mesma hierarquia entre as obras de arte e os objetos
utilitários, sendo que os objetos utilitários aqui lembrados estão para aos objetos rituais
supracitados, assim como as [supostas] obras de arte estão para os objetos de culto. Mas,
ao comentar sobre a Arte Africana ele afirma: É certo que devemos evitar transpor
imediatamente à categoria de obra de arte aquilo que era - e é - utilitário e imbuído de
dimensão estética, como está tudo o que é fabricado pelo ser humano. (Idem, p. 205).

Trazendo essa discussão para o mundo contemporâneo, ao referir-se sobre a escultura de


Rubem Valentim e à pintura de Abdias do Nascimento, Conduru também dá dicas sobre
as suas convicções estéticas relacionadas ao que chamou de “paleta africana” nesses
artistas: Entre outras questões, seu trabalho [Rubem Valentim] distingue-se por
constituir, ao longo de sua trajetória, um novo léxico plástico a partir da cultura
material dessas religiões. Não se trata da sobreposição simples, ambígua e conciliatória
de formas afro-brasileiras e africanas à geometria euclidiana. Valentim reelabora suas
referências ao fundir a geometria mítica das religiões afro-brasileiras à racionalidade
construtiva. O desenho não é ilustrativo. A cor não é necessariamente naturalista, não
corresponde aos códigos de cor da Umbanda, nem às diversas nações do Candomblé
(Kêtu, Jêje, Angola). Sua paleta é bastante livre; poderíamos arriscar dizendo ser
afro-brasileira porque, assim como na pintura de Abdias do Nascimento, também remete
ao que associamos à paleta africana, com suas dissonâncias intensas, tons saturados,
gritantes e/ou surdos. (CODURU, 2007, P. 70)

Às “dissonâncias intensas”, aos “tons saturados, gritantes e/ou surdos”, que seriam
propriamente associados à essa “paleta africana” o autor opõe à inexistência de um
naturalismo na cor e a falta de correspondência com a religiosidade afro-brasileira.
Percebe-se aí um esforço consciente de demarcação do campo estético que possivelmente
poderia ser assegurado para uma percepção afro-brasileira das obras desses artistas
referidos. Essa percepção, que foi de muitas maneiras testadas ao longo do século xx,
teve no artista plástico e criador do Museu Afro-Brasil Emanoel Araujo, um dos seus
mais ardorosos defensores, embora não tenha teorizado muito sobre o assunto, exceto em
alguns textos curatoriais.

Uma análise que partiu desses meus últimos onze anos trabalhando com ele deduzi que
boa parte das convicções museológicas partiram de suas experiências de juventude,
especialmente com nomes como Lina Bo Bardi com quem trabalhou desde muito cedo - a
curadora de “A Mão do Povo Brasileiro”, tema sugestivo até para o que o próprio
Emanoel faria anos depois não só na Mão Afro-Brasileira, mas nas próprias
formalizações da ausência de hierarquias entre arte popular e acadêmica (excetuando as
pinturas da academia, que Emanoel ainda as mantinha afastada de tudo o mais). Tanto a
metodologia museográfica, quanto os conceitos museológicos de Lina podem ser vistos
de modo “barroco” e levado ao extremo nas exposições relacionadas à arte e à cultura
afro-brasileiras de Emanoel Araujo.

O mesmo não ocorre nas outras manifestações artísticas, incluindo a arte africana,
geralmente apresentadas num estilo mais coeso e afeito às curadorias clássicas desse tipo
de objeto. Exceto por algumas entrevistas, algumas das quais eu mesmo pude executar,
em termos da historiografia e das teorias sobre a arte-afro brasileira, Emanoel não deixou
registro exato sobre suas convicções teóricas. Podemos, no entanto, deduzir de seus
escritos que ele está imbuído do continuísmo africanista tanto quanto deixa entrever a
noção de que a arte afro-brasileira pode ser apreciada à margem das influências africanas
e europeias, instituindo uma identidade e viés próprios: Submissão consciente ou
inconsciente aos princípios de uma arte ancestral - pouco importa. O que é relevante,
neste momento de grande discussão sobre o multiculturalismo e diversidade cultural, é
que temos aqui exemplos de uma arte gerada a partir de cânones próprios, por outra via
que não a européia, que nos serve para elucidar o que somos e nos permite entrever uma
possibilidade de mudança em direção a um comportamento cultural comprometido com
uma nova identidade. (ARAUJO, E., 2006, p. 242).

Do ponto de vista estético, as formulações de Emanoel Araujo sempre vêm


acompanhadas de citações de nomes clássicos da teoria afro-brasileira das artes plásticas.
De todos os nomes, sem dúvida, os mais evocados nesse sentido são os de Clarival do
Prado Valladares, Pierre Verger, Carlos Eugenio Marcondes de Moura, Luis Saia, George
Nelson Preston, entre outros191. É de George Preston (1938) que assume boa parte das
convicções estéticas tanto africanas quanto afro-brasileiras. Preston, artista plástico negro
e professor aposentado da City College que conheceu Emanoel Araujo no fim dos anos
1980, enquanto Araujo morou no Harlem e foi professor visitante daquela instituição,
ministrando aulas de monotipia por dois anos. Preston é também um interprete da obra de
Emanoel Araujo. Talvez sua linguagem dúbia e difícil afaste a maioria das pessoas,
especialmente as que conhecem pouco de arte africana. Mas trata-se de um modelo de
discurso estético que tenta fazer a ponte do continuísmo estético, com uma linguagem

191
É natural que isso tenha ocorrido assim, a considerar que Emanoel tinha 23 anos quando trabalhou com
Lina Bo Bardi na Exposição Civilização do Nordeste, no MAM da Bahia (1963). Outra de suas grandes
referências Clarival do Prado Valladares, fez parte do júri do I Festival de Artes Negras de Dacar, Senegal,
ainda em 1966, escrevendo sobre o assunto arte brasileira e afro-brasileira desde essa época. Emanoel faria
sua primeira visita (que eu chamo “abertura dos olhos” para sua condição de negro e para a percepção da
ausência de negros nas artes) apenas em 1977, aos 37 anos, em que mostrou relevos grandes e aproveitou
também como visitante do II Festival Mundial de Artes e Cultura (FESTAC, 1977 - Nigéria) acompanhado
de Roberto Pontual. Pierre Verger aparece porque é clássico, a despeito da homossexualidade de ambos,
respeito mútuo, uma visita ou outra enquanto Emanoel morava em Salvador, mas eles não se tornaram
amigos. O Marcondes de Moura eu o vejo com frequência no Museu Afro Brasil, a quem é um doador de
livros compulsivo, aliás, além de George Preston, ele é um dos últimos dos grandes intelectuais desta
cultura que ainda frequentem o museu e é amigo do Emanoel, ambos se gostam muitíssimo. Ele é o único
que é recebido com um grito de felicidade. Eu não via isso nem com Yêdamaria, cuja mãe ajudou muito o
Emanoel jovem. Outros aparecem, Olívio Tavares de Araujo, Aguilar, Capinam, etc., com esse último e
inúmeros outros ele vive brigando e às vezes reatando...mas esses são outros assuntos que podem e devem
ficar para um eterno depois.
própria e adequada, apesar de parecer difícil para algumas pessoas que não tem
experiência em textos teóricos sobre arte.

Emanoel cita uma passagem de análise estética feita por Preston num texto sobre arte
africana datado de 1987 quando tenta exprimir-se sobre a iconologia dos santos de
nós-de-pinho, produzidas por escravos do Vale do Paraíba do interior de São Paulo.
Aquele que está familiarizado com a arte africana sabe que esta é essencialmente uma
estética reducionista, na qual formas, linhas e massas são abstraídas ou reduzidas, a fim
de produzir formas mais simples que aquelas que observamos na realidade. No plano
intelectual, a escultura africana foi criada para ser vista como inovação de certos ideais,
não imitação da realidade. Isso explica porque um detalhe significativo da estrutura ou
anatomia de uma coisa, ou redução do todo a uma essencialização, tenham sido motivos
dominantes da arte Africana. (ARAUJO, E., 2006, p. 240. E Emanoel continua:
seguramente, é possível entender a produção de artistas contemporâneos como Rubem
Valentim, Ronaldo Rêgo ou Agnaldo Manoel dos Santos à luz das “teorias da
não-construção, redução, frontalidade e repetição das formas primárias”, cujos
princípios Preston enuncia, descrevendo assim os cânones formais e básicos da arte
peloafricana, que se estendem, segundo ele, à arte neo-africana na diáspora, e que são
assim formulados [em seguida, Araujo continua sua citação de Preston]:
Tensão entre eixo virtual e real;
Tensão entre simetria virtual e real;
Estancamento rítmico, empilhamento de uma forma geométrica primária ou confirmação
de um volume, plano, área espacial em negativo, em formas fechadas ou abertas;
regularidade de um ritmo genérico em um padrão interrompido por motivos aderentes,
arranjados aleatoriamente surpresas formais ou inversões semelhantes à fuga de
unidades básicas de padrão; desconformidade entre áreas pintadas e superfícies de
planos;
Jogos visuais nos quais formas reduzidas se tornam ambivalentes e podem ser lidas como
representação alternativa de uma coisa, seu sinônimo ou antítese;
Motivo pars pro toto que se utiliza de um aspecto evidente de uma coisa para
representá-la na sua totalidade;
Combinações em técnica mista do que ao ocidental aparece como texturas, modelagens,
cores, objetos ou idéias
Correlacionadas de uma forma irracional.

Mais adiante no mesmo texto, Emanoel diz: “Por outro lado, ao analisar [Luis Saia] as
características determinantes da escultura dos ex-votos e seus pontos de contato com a
arte africana - reducionismo, baixo relevo dos olhos e fixação ideográfica de detalhes -
aponta para soluções que são encontráveis também na pequena e extraordinária
produção do escultor baiano Agnaldo Manoel dos Santos (1926-1962). (ARAUJO, E.,
2006, p. 241)192.

Se seguirmos as análises de Emanoel Araujo à risca, percebemos que ele faz uma
adaptação das concepções de George Preston para interpretar esteticamente tanto artistas
de base popular como o Mestre Biquiba Guarany quanto artistas com heranças
acadêmicas como Rubem Valentim. Organizar artistas de tão diferentes propostas numa
mesma perspectiva estética, interpretada sob o prisma e na linguagem do próprio Araujo,
de acordo com o “propósito da escultura africana” é uma atitude no mínimo ousada, mas
certamente generalista, uma vez que une a noção de “estética africana “como uma única
prefiguração, sem ao menos se prevenir de fazer a distinção que foi comum na
historiografia da arte africana (mesmo no Brasil com Nina Rodrigues e Arthur Ramos)
entre a “estética dos povos da Guiné” (leia-se Costa Ocidental Africana; cujas
características são mais aproximadas às noções que George Preston apresenta) e dos
povos bantos (leia-se com a maioria dos Povos do Centro-Sul e Costa Leste-Oeste da
África, cuja “estética”, pelo menos da representação afro-católica do antigo Reino do
Kongo193, para citar um exemplo, talvez possa ser aproximada de algum modo aos santos
de nó de pinho, indicados por Araujo como pertencentes ao mesmo caldo cultural e,
portanto, à mesma tradição estética).

192
Emanoel chama o Mestre Biquiba Guarany de “mestre de Agnaldo dos Santos” e diz que deve ter sido
ele quem influenciou Agnaldo “servindo para a construção do vocabulário da obra de Agnaldo”. (Idem,
Ibidem). Para o trabalho com os ex-votos ver: SAIA, L. Escultura Popular Brasileira. São Paulo: Ed.
Gaveta, 1944.
193
Ver: LaGAMMA, Alisa. Kongo Power and Majesty. Washington D.C.: The Metropolitan Museum of
Art, 2015. p.11
Emanoel vê na “estética reducionista” e na abstração das linhas para efeito de
simplificação formal, próprios da arte africana, como apontados por Preston, como
princípios suficientes para a compreensão da escultura afro-brasileira dos referidos
artistas. Diz Emanoel que esses princípios permitem entender a obra de alguns artistas
contemporâneos - tanto na expressão erudita de Rubem Valentim e Ronaldo Rego como
na expressão popular de Agnaldo Manoel dos Santos e Mestre Biquiba Guarany -, assim
como nos possibilitam compreender o significado da estruturação desses objetos de uma
arte devocional representada pelos ex-votos nordestinos ou pelos santos de nó de pinho
feitos por escravos do Vale do Paraíba no século XIX, tanto quanto pelas
esculturas/objetos de culto produzidos por Mestre Didi na Bahia. (ARAUJO, E., 2010, p.
108).

De forma semelhante, o próprio George Preston (1983, p. 13), ao analisar a obra de


Emanoel Araujo compreende que o atávico em Araújo entrelaça seu trabalho a um
conteúdo derivado de formas clássicas africanas e do laboratório cultural euro-africano
presente no africanismo do Brasil. Nessa análise, Emanoel termina por ser igualado no
sentido da permanência das elaborações estéticas consideradas africanas. Embora Preston
identifique a ideia de continuísmo com a África e nomeie esse continuísmo simplesmente
como “estilo neo-africano”, nem ele nem Emanoel Araujo indicam se essa continuidade
dentro da arte produzida por afro-brasileiros em geral provenha de fato de uma
elaboração teórica erudita (pesquisa formal sistemática das artes da África) ou de algum
atavismo resultante de alguma ontogênese mal explicada, porém visivelmente explicitada
em formas artísticas.

Essa é uma visão de estética da arte afro-brasileira que já aparecia no texto de Emanoel
Araújo na mostra do Redescobrimento, seis anos antes. No catálogo para o módulo Negro
de Corpo e Alma, por exemplo, Emanoel é ainda mais incisivo ao dizer que esse modelo
estético proposto por George Preston é aquele que permitiu, segundo ele, a revelação de
artistas sob um mesmo prisma que insistia numa abordagem estética continuísta em
relação à arte africana. Diz ele: Seguindo tais parâmetros, pudemos revelar artistas,
populares ou eruditos, anônimos ou não, cuja obra poderia ser exatamente definida com
base nesses princípios. É certo que a teoria do Prof. Preston sobre a arte paleoafricana e
neo-africana não deixa de constituir um desafio para os estudiosos da arte, porque ele
inclui uma nova definição estética fora dos cânones eurocêntricos que sempre regeram a
compreensão da História da Arte. Toda vez que uma manifestação plástica do Caribe e
da África se entrelaçam, revelando conexões e paralelismos com manifestações artísticas
brasileiras, podemos seguramente identificar aí o halo comum que as perpassa,
revelando a continuidade da arte africana fora de seus limites de origem. (ARAUJO, E.,
Negro de Corpo e Alma, 2000, p. 43)

Estética para Além da Estética

Pelo visto, alguns autores, sendo muito mais otimistas do que eu, acreditam que já existe
o estabelecimento da arte ritual no campo artístico sem exotismo ou entrada de “cotas”
para o macumbismo em artes que sempre fora, na melhor das hipóteses, uma curiosidade
intrínseca à herança da busca pelo primitivismo modernista.

A assimilação da estética negra e o reconhecimento de sua arte enquanto tal não


garantiu sua assimilação pelo campo artístico tanto no Brasil como em outros países do
ocidente, em condição de igualdade às manifestações artísticas euro referentes. No
Brasil, a construção propriamente de uma categoria específica para agrupar a produção
artística de matriz afro, demonstra distinção ao mesmo tempo em que configura um
cenário onde a estética negra possa ser contemplada e difundida em critérios próprios
(DEZIDÉRIO, G. 2015b, p.77)

Sem, entretanto, querer tecer comentários otimistas ou pessimistas nesse sentido, eu


gostaria, antes de fazer uma digressão estética para além da estética que acredito que terá
implicações para as concepções de “arte afro-brasileira” que vimos tratando até aqui: o
problema da definição de quais artistas abrigar nesse mesmo guarda-sol; prossigo, logo
adiante, trago um texto cômico de “como não ler uma obra de arte afro-brasileira”
(p.278).
Nós sabemos que não precisamos de antemão instituir quais obras ou subconjuntos da
arte devam ser consideradas afro-brasileiras ou mesmo quem seriam de fato os artistas
desta arte, embora, por um movimento de um misto de maldade e boa-fé, possamos assim
designar aqueles artistas escolhidos por curadores ou que aceitaram participar de uma
exposição de arte com esse viés.

A participação em exposições coletivas, eu vou sempre reforçar isso, acabam


determinando a biografia dos artistas, porque, enquanto eles querem se universalizar em
seu individualismo de herança modernista, sua idiossincrasia, sua qualidade enquanto
artista individual, quando ele é posto numa exposição coletiva, parte de sua
individualidade e consequentemente sua independência se esvai, passando a ser não só o
que ele é, mas o que os curadores o determinaram e conduziram o público a determinar
certos pensamentos sobre ele.194

Eu me recordo imediatamente de uma pequena contenda que eu provoquei em artistas


portugueses durante um Encontro de Artistas, na exposição Portugal, Portugueses195.

194
Paradoxalmente, do ponto de vista do artista individual, considero toda exposição coletiva problemática
em si mesma. De um lado ela serve de pedra de toque para construção artística social, de outro, ela é uma
imposição mais ou menos opressora de métodos, meios e objetivos artísticos. Por uma movimentação que
não diz respeito à arte (muito menos à arte do nosso tempo, digamos, pós-contemporâneo), mas sim que diz
respeito a uma herança de um período em que fazia muito mais sentido a ideia de “comunidade” ou de
“comunhão artística”, por sorte, as exposições coletivas atuais ainda mantêm algum senso de unidade
maqueando sua característica impositiva inata quanto ao fazer artístico dominante que impediria a
universalização de certos artistas não centrais. Assim, parece que o artista que se fizesse “afro-brasileiro”
teria de recriar algum tipo de comunhão artística (sem a existência da tal tendência dominadora), na qual
possa propor sua afrobrasilidade e, ao mesmo tempo conquistar algum tipo de universalidade. Acredito que
essa minha análise não vallha tanto para as bienais (ou as “Documenta”, por razões similares), haja visto
que constituem um esforço teórico não de fazer a “unidade na multiplicidade” ou a “unidade conceitual na
multiplicidade de artistas e gêneros artísticos”, mas um esforço teórico de organizar uma exposição díspar
com as tendências dos últimos dois anos: uma apresentação dos novos artistas e de suas novas novidades
e/ou dos velhos artistas e suas novas tendências ou ainda novas abordagens de velhas tendências etc.. Além
disso, para as bienais, ao contrário das outras coletivas em geral, essa ideia se manteria independentemente
das modificações no âmbito político-econômico, no entanto, embora essa questão interfira não diretamente
nas bienais, enquanto recuperação do que se fez em arte nos dois últimos anos, por outro lado, ela
interferiria nos artistas e nos curadores, que são impelidos a dar respostas a uma série imensa de novas e
novíssimas novidades apresentadas coletivamente, voltando-se forçosamente a um ciclo de opressivas
imposições que ocorrem em exposições coletivas...
195
Este encontro foi realizado no Museu Afro Brasil em 09 de Setembro de 2016 e foi registrado em vídeo
pelo fórum permanente: http://www.forumpermanente.org/event_pres/encontros/portugal-portugueses/portugal-portugueses
(acessado em 04-12-2016)
Naquela ocasião, vendo a armadilha provocada pelo título dessa exposição (que aliás
tinha a sublimação horrível num looping infinito do som de uma canção de fado - que eu
amava antes, mas deixei de gostar depois de tanto ouvi-lo), eu perguntei sarcasticamente
aos artistas presentes no evento, que pareciam negar seu “portuguesismo”, se havia algum
elo entre eles, em termos de “arte nacional: O título da exposição “Portugal,
Portugueses” indica alguma identidade entre vocês, e a arte contemporânea, de modo
geral, busca ao contrário, uma certa universalidade. Seja uma universalidade do ponto
de vista dos materiais utilizados, seja uma universalidade no sentido das intenções dos
artistas. Queria fazer uma pergunta sobre a recepção dos artistas, porque o público
geral, principalmente o público das bienais...há uma busca das nacionalidades do ponto
de vista dos curadores...e nas biografias dos artistas vemos comentários do tipo “um
artista que representa Portugal na bienal x, y, z”... Parece que embora a arte
contemporânea tenha uma certa universalidade em si mesma, no entanto, movimentos de
massa, mesmo que sejam artísticos, como a bienal, por exemplo...restringem os artistas
em um mundo restrito, limitado e determinado que são as nacionalidades. Vocês
consideram que a materialidade de suas artes ou as intenções que vocês têm podem ser
limitadas do ponto de vista não só da nacionalidade..., mas numa referência local
específica [dei exemplos que apareceram na exposição: “O pé de feijão” [João Pedro
Vale, Nuno Alexandre Ferreira], “retrato de um presidente da república”[Francisco Vidal].
A resposta, principalmente do artista Vasco Araújo, que percebeu bem a armadilha em
que se meteu foi que eu estava errado e que isso não ocorria. Resumindo, o que ele disse
contra mim foi que os artistas não vão para as bienais como artistas nacionais, mas sim
universais. Eu tentei replicar ao dizer que estava pensando na Bienal de Veneza, mas no
fundo eu estava pensando em todas as bienais porque eu nunca fui a uma bienal que não
tivesse ali descrito o país de origem de determinado artista, então isso me pareceu muito
óbvio: os curadores e o público geral querem enxergar a arte de acordo do local regional
em que ela vem, por mais que entendam desse suposto “universalismo da arte
contemporânea”196.

196
Algumas pessoas acharam que era só um jogo de palavras, mas havia um tipo de problema
semelhante que eu levantei na exposição de arte contemporânea que antecedeu essa: African Africas. Foi
uma exposição de arte contemporânea da África ocorrida igualmente no Museu Afro Brasil e que incitou
alguns questionamentos teóricos que levantei para os artistas participantes de um encontro filmado
Cito como exemplo do que quis dizer com relação aos artistas da arte do nosso tempo
chamados “portugueses” e que se aplica aos artistas da arte do nosso tempo chamado
“afro-brasileiros”: as grandes exposições de arte contemporânea do passado que
congregavam a unidade da multiplicidade já não existem mais. O artista restrito da arte
contemporânea atual quer se universalizar, mas os curadores e o público querem os
compartimentar. Eis o grande desafio do artista afro-brasileiro. Como fazer uma “arte
política” que fala do quintal do seu quintal, de um Brasil dentro do Brasil (Universe in
Universe197 que seja ao mesmo tempo restrito e contemporâneo? Se a arte
contemporânea é dotada de transnacionalismo, tal qual sua aderência imediata ao
capitalismo tardio e às grandes corporações e bancos financiadores das mesmas bienais
de arte internacional, por que e como os artistas nacionais (essência e farol de sua gente)
não serão mastigado no circuito internacional como foram no passado os primitivistas
como Agnaldo dos Santos na IV Bienal de São Paulo em 1957, os naïfs como Véio na
56a. Bienal de Veneza e os sambistas, ou simplesmente os ‘negros’ como Heitor dos
Prazeres no “Rally” -Dakar 66?

Indo mais além, imaginem se houvesse uma bienal internacional, num país com grande
circuito artístico (Itália, Alemanha, França, Inglaterra, etc., mas com exemplares de arte
contemporânea do Butão, Azerbaijão, da Jamaica, do Burundi, de Aruba, da Eslovênia,
das Ilhas Marshal, de Laos, de Seicheles, da Somália, do Timor Leste, da Ucrânia, da
Islândia, das Ilhas Cook, da Albânia, etc.etc. Ninguém em sã consciência deixaria de

igualmente pelo http://www.forumpermanente.org/event_pres/encontros/africa-africans/videos/encontro-3. no “encontro 3”, e que o


senegalês Soly Cissé me respondeu de forma muito interessante. Tratavam-se de artistas africanos fazendo
arte contemporânea. Então, a ênfase, pensava eu, deve ser dada na “arte” e não no local de origem do artista.
Por isso eu queria que aquilo fosse compreendido como “arte contemporânea africana” e não “arte africana
contemporânea”; do mesmo modo no presente assunto eu digo que “é afro-brasileiro artista” e não “artista
afro-brasileiro”. Mas como não quero ficar criando neologismos, mantenho determinações sociais, mesmo
sem apoia-las por causa do modo como foram impostas.
197
“Universo dentro de um universo” Só pra usar um termo que ficou fixado nas Bienais de Veneza quando quiseram
se referir no início dos anos 2000 aos “outros”, ou seja, a nós “os pretos”. Daí surgiram aquelas que eu chamo de
“exposições mea culpea, mea maxima culpea”: “Africa Remix, Documenta 11, Authentic/Excentric, etc...foi na esteira
da movimentação dos Quai Branly da vida, que precisavam dar respostas à uma negritude classse média já inserida nas
sociedades da Europa e se tornaram “a pedra no sapato” cultural da Europa (ex) colonialista, colonialista. A solução foi
dar um pouco de espaço para curadores africanos ligados ao mundo fashion que é o das exposições europeias de obras e
coisas que visivelmente “não são europeias”, e que, portanto, se manterão sadiamente como o “outro do outro enquanto
outro”, como disse Hegel a respeito da dialética de Heráclito..
pensar algo do tipo: “pera aí, o que que é isso? Bienal da inclusão? ”. Aposto também que
alguém da curadoria iria ter a grande ideia fazer uma votação ao estilo “Big Brother” em
que o público comum pudesse dar um apelido para essa bienal e apareceriam coisas como:
“Incerteza Viva”; “Viva a Arte Viva”, “Universo em Universo”, “Como falar de Coisas
que Não Existem”, etc.

A ideia de que arte contemporânea venha de um lugar determinado com características


regionais determinadas e que haja uma expectativa do público ou dos curadores em
determinar esse locus do artista é mais generalizada que os próprios artistas gostariam
que fosse. Isso me parece óbvio, já que o artista contemporâneo “mataria” para ser visto
individualmente e não ser colocado numa “farinha do mesmo saco”, que é o que ocorre
muitíssimo hoje em dia, e por isso o meu “parente” português Vasco Araujo foi
totalmente perdoado por mim por sua má-fé198.

Mas vejam como certas questões semelhantes, embora delicadas podem encontrar seu
termo no desenvolvimento de interpretações menos nacionalisteiras ou biologizantes. Ao
apresentar a cultura dita negra como uma “forma de luta contra a natureza”, aliás, como
todas as outras culturas seriam realizadoras de “mitos”, Flusser (1966, p.31,32) nega a
existência de uma “arte negra” por oposição a uma “arte branca” tenta como diz
“justificar a expressão ‘arte negra’, já que não é obviamente insignificativa” (p.31). Mais
adiante, ele diz: as culturas ao sul do Saara são articulações poderosas de existências

198
Essa característica já vinha sendo observada por mim, numa espécie de “psicologia do artista atual”.
Acredito que ela surgiu depois do fim dos movimentos em arte e que corresponde a uma “psicologia do
isolacionismo contemporâneo” provocada pelo atual etapa do desenvolvimento do capitalismo totalitarista
financista; a transição do poder dos Estados Nacionais para grandes corporações, que tornam vaga ou
sumariamente obsoleto o papel do Estado, e este adquire a função precípua defender os interesses
corporativos; além da conhecida revolução tecnológica nas telecomunicações e informática etc. O artista
isolado contemporâneo, quando faz critica, ele o faz dentro dos padrões aceitáveis para seus financiadores e
sua critica já não chega a ser vazia, senão algo incorporado numa suposta autocrítica de marketing. Dito em
outras palavras é a maior ong ambiental do mundo a WWF e seu ursinho fofo marqueteiro, mas que foi
fundada pela Royal Dutch-Shell, uma das corporações mais contaminadoras do planeta (duplamente, isto é,
uma das que mais contamina e uma das maiores do mundo). É o GreenPeace, que minha amiga Sandra
Salles louva por ter ajudado a desenvolver uma de suas práticas e que tem amiga que vai até a África
arriscar a vida para “salvar as florestas” e todo o pessoal do novo e velho ativismo que são tola ou
conscientemente financiados pelas grandes companhia petroleiras. Os lutadores contra o “aquecimento
global” seriam seus maiores defensores, assim como os elaboradores da arte universal seriam os maiores
nacionalisteiros da paróquia? Quais sabem e quais não sabem que ganham muito ao serem assim cooptados?
Só há saída na cooptação ou há artistas fazendo suas artes e não malazartes?
que se encontraram em determinados mitos. O ritmo potente da sua música, os
movimentos expressivos das suas danças, a virilidade plástica das suas estátuas, atestam
um domínio do espírito sobre a natureza, uma afirmação da dignidade humana em sua
rebelião contra a sua condição, que são muito diferentes das articulações europeias.
Obedecem a categorias diferentes. Dentro dessas categorias não se encontra, creio, a
categoria “arte”. “Arte” é uma categoria europeia da cultura, e mais exatamente uma
categoria evoluída pelo Renascimento. Uma estátua renascentista é uma obra de arte.
Uma estátua gótica já não pode ser chamada de “obra de arte” no sentido estrito,
porque não brota de uma vontade artística, senão de uma fé religiosa. Embora sejam
belas as estátuas góticas, não são obras de arte. Creio que uma estátua da Nigéria ou do
Senegal é ainda muito menos “obra de arte”. A análise de Flusser, aparentemente negro
inconsciente, não deixa de fora a noção do desespero trágico do negro contemporâneo. O
negro tem de valorizar-se diante de um mundo desvalorizado que o desvaloriza. Fazendo
assim, ele tem de criar para si a noção ambígua de que faz arte própria, com caracteres
próprios e valores próprios provocando pela força identitária aquelas tentativas de
superação de sua condição desprivilegiada. É claro que a Flusser escapa todo o processo
de luta pela identificação a qual podemos responsabilizar os movimentos negros
norte-americanos e brasileiros. Algo que está muito além da análise abstrata das noções
de “cultura”, “natureza”, “arte negra”, etc. A experiência do racismo pulveriza quaisquer
abstrações. Passemos, portanto, a largo das noções implícitas da análise de 1966 de
Flusser, a questão hoje já derrocada do “racismo às avessas” imputada às artes, às cotas
universitárias e mesmo aos modos próprios de ser afro-brasileiros, entre outras questões
ainda mais antigas como “racismo não racista”, ou, nas palavras de Flusser inversão dos
valores racistas, mas aceita as coordenadas do racismo (FLUSSER, 1966, p. 31) e outras
imprimeries atadas ao nosso ganha pão. E observemos de perto que a crítica agudamente
correta de Flusser redunda numa questão chave, ainda pertinente da “necessidade de
inserção do negro (artista ou não) nos circuitos que o humanize enquanto homem, e,
também enquanto negro, já que tem ele de responder duplamente a seu complexo de
inferioridade e a todo um mundo de má vontade contra si.
E há de fato, um dos mundos de boa vontade que foi criado com objetivos semelhantes
chamado “arte afro-brasileira”, na âncora das marés de diferentes tentativas de
valorizações. Arte afro-brasileira seria, portanto, aquele espaço vago dentro do
multiculturalismo para que algumas formas nostálgicas de um mundo ainda não
fragmentado pudesse trazer para si e para alguns outros uma pequena dose de esperança
num digno passado. Nesse sentido, um continuísmo era o primeiro passo necessário para
que esse passado pudesse ser habitado por meio de uma ponte (aberta a todos) da qual se
lançaria inúmeros projéteis cujos nomes soariam futuramente como muito engraçados,
tais como “Convergências Afro-Negras” (ARAUJO, E., 2006, p.241); “Arte
Pejorativamente Afro-brasileira” (CONDURU, 2007, p. 65); “Soluções plásticas negras”
(AJZENBERG, E. 2010, p.69 In: SILVA, 2010, p.69) invés de concreta e simplesmente,
“Convergência Africana de um artista Negro”; “Arte Pejorativa de um Afro-Brasileiro”,
“Soluções Plásticas do Negro x, y, z”, etc. Ao contrário, o método dedutivo e a
generalização parece que foi e ainda é mote na “crítica de arte afro-brasileira”. Se se não
distinguir o artista dessa arte e ainda mais radicalmente, distinguir a arte deste artista e
dessa arte, pouco resta nessa arte senão política, antropologia, oportunismo, paternalismo
e por vezes uma farsa teórica e principalmente prática – o biologismo.

Ainda contra o biologismo, Flusser diz que um artista biologicamente ‘branco’ ou


‘amarelo’ pode sofrer suas influências em grau mais marcado que um artista
biologicamente ‘negro’. Isto prova quão falsa é uma explicação biológica no nível da
cultura. Mas esses elementos africanos nunca se isolam dos outros. Pelo contrário,
integram-se organicamente. Uma análise reflexiva pode descobrir traços africanos, ou
orientais, ou indígenas, numa obra de arte brasileira. Mas o artista, ao cria-la, não se dá
conta da sua presença. (...) O artista brasileiro é um ser mais aberto, e pode sê-lo em
virtude das influências extra-ocidentais às quais está exposto. (Flusser, 1966, p.35).
Sendo assim, as análises teóricas a partir das quais será possível fazer ou não a vinculação
“extra-ocidental” às artes do Brasil, poderão dar algum tipo de pano de fundo
interpretativo para indicação dos alcances e limites desta continuidade e vínculos de
influências199.

Valladares já teve uma intuição semelhante com relação à tese do continuísmo: Arthur
Ramos (in Arte Negra no Brasil, Cultura, MEC, 1, no. 2, 1949) admitiu influência das
artes africanas na obra de artistas contemporâneos brasileiros, plásticos e músicos, sem
indicar se eram por continuidade temática ou por simples eruditizaçao, conforme
supomos. Inconcluso, do mesmo modo, parece-nos Mario Barata (in A escultura de
origem negra no Brasil, Brasil Arquitetura Contemporânea, Rio, 9, 1957) quando afirma
sobrevivência, mais na Bahia, de modelos africanos, em madeira e metal, destinados aos
rituais do candomblé e devoções, relacionando influências tribais africanas na arte
negra brasileira. “ (VALLADARES, 1968, p. 107-108)

Outro aspecto do biologismo foram as teorias falta de participação de negros nas artes
plásticas. Quase todos os teóricos antigos até Mário de Andrade, sentiram-se impelidos
em dar sua própria opinião a respeito. Uma unanimidade inicial foi que essa ausência se
devia à própria constituição física, psicológica com anímica dos negros. Este biologismo
ao qual devemos datar para não querermos refutar igualmente todas as outras teorias dos
seus defensores, serve-nos de aviso para que o senso comum, ainda afeito a todo

199
Também ajudariam os estudos de grupos de artistas de herança africana que me vem de memória pouco
ou muito conhecidos, mas que nos auxiliariam nas discussões relacionadas ao continuísmo África-Brasil,
por identificação (comprometimento), por uma certa distância (cosmopolitismo) ou uma certa aproximação
como uma (referenciação sutil); Nomes como Mestre Gabriel (Gabriel Joaquim dos Santos) (1892, São
Pedro da Aldeia, RJ -1985, São Pedro da Aldeia, RJ); Pedro Paulo Leal (1894, Rio de Janeiro, RJ -1968,
Coelho da Rocha, RJ); Hélio de Oliveira (1932-1962) que foi neto do babalorixá Procópio da casa Axé do
Ogunjá; Santa rosa (1909-1956) talvez o mais vigoroso entre os modernistas negros; Manoel Messias
(1945-2001) de fabulação impressionante; o desenhista Olumello, falecido há poucos anos (2012) é um dos
mais impressionantes construtivistas negros, tão importante quanto injustamente esquecido - após sua morte
foi feita em Brasília uma exposição em sua homenagem, com curadoria de Nelson Inocêncio da Silva, a
quem conheci em São Paulo e quem me instigou ao fazer a questão “o que é arte afro-brasileira?” quando
de seu doutorado; Manuel Faria Leal (1938, Rio de Janeiro, RJ). Filho do pintor Pedro Paulo Leal, entre
outros...
biologismo possível, seja alertado de que isso não é novo, ao contrário é bem antigo e
ultrapassado. Destacarei apenas algumas dessas formulações evitando milongas e
comentários desnecessários:

Há especulação científica que tenta explanar por ser o negro mais dotado de estrutura
celular nervosa, referente à junção mio - neural, permitindo-lhe reação reflexa e
comando muscular mais competente. Isto explicaria o sucesso do negro no futebol, no
boxe, na dança, no canto, no atletismo, de um lado, e do outro justificaria sua presença
pobre nas artes plásticas, em tôda a área da estética criativa visual (VALLADARES,
1968, p.102).

“Os esportes, o atletismo, a música e a dança são territórios da emocionalidade coletiva


oferecidas pela civilização, em substituição aos rituais tribais arcaicos. Nesses, o negro
está presente com ampla superioridade e virtuosismo” (VALLADARES, 1968, p.103).

Nem sempre se poderá medir em presença ou ausência a participação dos negros nas artes
plásticas. Essa equação é tão complexa quanto difícil de derivar dado as múltiplas
variáveis envolvidas. Eis um bom motivo para evitar generalizações a esse respeito.
Assim como não pode ser explicado em termos biológicos a insuficiência de sensibilidade
daqueles brancos que sustentaram em vez de permitirem a escravidão, talvez não seja o
caminho correto tentar dar explicações únicas, ainda que supostamente científicas das
razões que se obliteram nos recônditos dos corações humanos. Muitos acabarão tentando
fazer falsas generalizações que passarão por verdades dada sua capacidade imaginativa,
como uma grande lei imutável, mas, seja como for, isso deverá ser visto caso a caso,
artista a artista.

Essa preeminência do corpo encontra seu fundamento em cosmologias africanas em que


o corpo é receptáculo e sede do sagrado, veículo através do qual os deuses, incorporados
em seus filhos, vêm cantar e dançar na terra, entre os mortais. Daí que, no universo das
artes, a expressão de uma alma negra não caiba nos limites das artes visuais, mas
pressuponha uma experiência total dos sentidos, transbordando por sobre as formas da
música, as artes sinestésicas e proxêmicas, nessas expressões sensíveis que falam da
alma através das linguagens do corpo. Sentir o corpo é também dar a ver a alma.
(MONTES, M.L. Sentir a Alma. In: ARAUJO, E., Negro de Corpo e Alma, 2000, p.209)

Depois desse pequeno tour informativo, voltemos a Carneiro da cunha, que afinal, era
quem tinha uma intuição e capacidade crítica acima de qualquer imaginação entre todos
os teóricos da arte afro-brasileira:

Esse rápido sumário histórico indica a atividade do negro desde o século xvii ao xix mas,
desse momento para cá, sua presença nas artes plásticas rarefaz-se, mantendo-se,
contudo, para alguns artistas no século XIX, como Miguel Arcanjo Benício da Assunção
Dutra (1810-1875), de Itu. Por outro lado, o que afirmara Koster em 1810 de que ‘os
negros crioulos eram geralmente os obreiros de todas as artes’, continua válido
igualmente para o final do século. E não só nas artes, mas obreiros de várias outras
profissões, como se pode ver do recenseamento da população, no que concerne às
ocupações dos escravos para o ano de 1872. Todavia os artistas negros são menos
notados nas artes plásticas eruditas no decorrer daquele século e isto por várias razões,
destacando-se dentre estas os fatores econômicos. De fato, a mesma situação competitiva
da mão-de-obra escrava e livre, apontada por Nina Rodrigues, ressurge depois da
Abolição com a vinda dos emigrantes europeus(...) A presença negra, contudo, irá
emergir nas artes plásticas novamente, de modo mais aparente e marcante, a partir dos
anos 40, mas dentro de condições sociais diferentes (...) Vale insistir, no entanto, que
nunca houve solução de continuidade na produção artística negra do anonimato das
forjas das oficinas de marceneiros, carapinas e de ceramistas do Norte, Nordeste e
Centro do Brasil. De onde as formas ancestrais, embora frequëntemente distorcidas, não
escondem contudo a matriz geradora e diversificam-se no que se chamou depois de
afro-brasileiro (CARNEIRO DA CUNHA, 1983, p. 993-994).
De qualquer maneira, essa aparente lacuna apresentada por Cunha entre os anos de 1910
e 1940 é contestada por Carlos A. C. Lemos200, um dos maiores especialistas vivos em
arte sacra e devemos concordar com este.

Ora, em que essa discussão implicaria na arte afro-brasileira de hoje ou, mais
especificamente, aos artistas contemporâneos afro-brasileiros? Como resposta eu citaria
duas questões; nas exposições de arte dita afro-brasileiras se impôs até aqui a necessidade
de:

1) existência de um fio condutor interpretativo que comungasse os artistas sob um


mesmo teto mais ou menos definido.

2) existência de alguma obrigatoriedade ou de uma necessidade dos artistas darem


alguma resposta ao serem granjeados pelos curadores e pelo público.

Dito de outra forma, concebam, por favor, a reflexão seguinte: nenhum público de massa
iria a uma exposição de “arte afro-brasileira” para não encontrar nada de orixás, por
exemplo, concordam? Nenhum curador que se preze no meio, faria uma exposição desse
tipo sem incluir algum artista já definido enquanto tal, ainda que este mesmo artista não
tenha sido durante sua existência qualificado como artista da arte afro-brasileira, bem ao
contrário, a maior parte dos artistas até a 3a. onda, jamais devem ter ouvido falar na
existência de tal arte. Assim como Aleijadinho jamais ouviu falar em Barroco, essa foi
uma designação nossa, geralmente vaga e imprecisa para a arte daquele tempo. Com isso
eu quero dizer que quem inventou a arte afro-brasileira foram os curadores e o público da
3a. onda de valorização do negro e os artistas da 4a. onda, percebendo ali um filão
artístico para expor seus trabalhos, mas não percebendo as dificuldades teóricas impostas,
assumiram isso pela primeira vez e há um refugo com possibilidades práticas e uma
malversação teórica porque esta impõe dificuldades para a prática. Resultado (que tenho
visto nos 12 anos do Museu Afro Brasil, por exemplo): vamos expor, não vamos pensar!

200
(ARAUJO, E., 2010, 103)
E por falar em “Barroco” e outros anacronismos como o “afro-brasileiro”... Sabemos
ainda que, excetuando casos raros de uma arte que já nasce póstuma, uma unidade de
sentido dada em arte é própria de uma reflexão retrospectiva. É dessa maneira que
consideramos o “barroco”, barroco; sem pensarmos de que se trata de uma imposição do
futuro no passado. Estas são nossas formulações em vias de compreensão do que há de
unívoco num dado passado artístico. Eu não me espantaria que em 50 ou mais anos
considerassem essa movimentação para formulação da “arte afro-brasileira” como sendo
um fenômeno da virada do xx para o xix. Assim como movimentos como o dadaísmo e o
surrealismo que pareciam “destruir” a arte no seu âmago para sempre, voltaram atrás e
viram seus artistas envelhecerem e sua brincadeira de “arte” serem vendidas aos milhares
de dólares - quem foi que disse que o melhor método para acabar com uma obra de arte é
torná-la mercadoria?

Não digo que as características determinantes das antigas escolas de arte eram sempre
auferidas do presente para o passado, principalmente as vanguardas artísticas dos sécs.
XIX e XX já nasceram para enterrar suas predecessoras, mas a noção fundamental de
unidade de ingredientes que fazem as afinidades e associações formais e intelectuais
dos artistas e suas obras é uma noção que dificilmente poderá ser instituída num tipo
artístico por tempo indeterminado. Se isso for assim, a arte afro-brasileira terá sua
determinação histórica calcada neste período de necessidade de inclusão social dos
negros? A dúvida quanto a quem é ou não é artista afro-brasileiro contemporâneo deixa
de ser tão relevante se esta arte é apenas fruto de um momento fugaz, porque todo artista
contemporâneo, enquanto um fenômeno urbano, “mataria” para criar o novo, nem que
esse “novo”, para o artista afro-brasileiro seja poder matar a si mesmo201.

201
Eu vejo esse pós-modernismo nos movimentos feministas de hoje como o Femen da Ucrânia (aquelas
moças lindas que tiram os peitos pra fora e gritam slogans mais ou menos inúteis), em que “a” principal
líder é um homem chamado “Victor” e que governa por telefone e com mãos de ferro patriarcalistas essa
organização, a ponto de definir quais mulheres entram, quais saem, aonde elas protestarão, o que dirão, o
que farão no protest, etc. Todo script é determinado por ele.
Sem dúvida, artistas que aceitaram participar de exposições como por exemplo A Nova
Mão Afro-Brasileira202, aceitaram duas coisas, participar do prestigio de se ligar à “velha
Mão Afro-Brasileira (referência à hoje clássica exposição também com curadoria de
Emanoel Araújo “A Mão Afro-Brasileira”, ocorrida em 1988), mas no “combo”,
aceitaram também fazer parte do “simpósio regional dos artistas intitulados artistas da
arte afro-brasileira” (máfia do dendê!).

Os critérios de Emanoel Araujo são emotivos e definidos de momento, então não


podemos tentar criar teorias a respeito, mas não podemos deixar de lembrar que sob esse
guarda-sol incluiu-se artistas tão variados em todos os sentidos (eu não vou falar de
“estilo”, pois seria muita sacanagem com os artistas, mas eles eram variados no suporte,
na figuração, no conceito, na atitude, na composição, na disciplina artística ou capacidade
técnica - e ainda a cor da pele - cito este último aqui por pura provocação!). Foi o critério
da emoção que colocou obras de Sônia Gomes a Rener Rama; de Claudinei Roberto a
Ayrson Heráclito; de Pedro Marighella a Marcos Dutra naquela “farinha do mesmo saco”
que tanto estes devem ter querido se livrar... Que arte afro-brasileira é esta? Como tentar
encontrar fio condutores em artistas que se querem seres individuais senão pelo fio criado
estritamente pelos curadores e pelo público das exposições em que eles querem participar
e, por fim, alguns artistas acabam por se conformar?

Dito isso, nos parece evidente que toda análise estética que se quiser estabelecer na arte
afro-brasileira, como em toda arte contemporânea, terá de se fazer ou muito genérica ou
caso a caso, encontrar algum outro caminho mais humilde. Ninguém encarou essa tarefa
de frente ainda. Nenhum crítico de arte bem experimentado nas artes plásticas em geral
escreveu um livro crítico e sistemático sobre a tal “estética afro-brasileira”. Desta vez não
poderemos acusá-los de racismo e sequer de má vontade para com esses artistas que bem
atualmente se intitulam defensores desta “plataforma”, ainda que brumosa, difusa, de
difícil discernimento, relativamente indiferenciada e em enorme parte indescritível. As
razões deste silêncio, talvez encontraremos não na divisa popular “quem cala consente”,

202
Ocorrida em novembro de 2013 (Eita novembro negro! - Nesta data querida, muitas felicidades,
muitos anos de vida...) no Museu Afro-Brasil (SP).
mas na máxima do ator de Hollywood que faz “suspensão de juízo” ao ser perguntado
sobre o vestido feito inteiramente de carne, vestido pela Lady Gaga no MTV Music
Awards, de 12 de setembro de 2010: “no comments”

Cantora Lady Gaga (MTV Music Awards, 2010)


Fonte: caras.uol.com.br

Como “NÃO LER” Uma Obra Afro-Brasileira

Se mantivermos em mente que toda tentativa de definir o homem


É também tentativa de degradá-lo, poderemos recorrer a definições
Como armas na luta pela dignidade humana.

Vilém Flusser. O Problema do Negro: da Negritude, Cad. Brasileiros. 1966. p.29

Tudo pode se ignorar numa obra de arte, exceto a urgência que ela soluça. Em arte não
haveria, portanto, apenas um único modo de “ler”, “interpretar”, “sentir” etc., porque não
haveria um único modo “correto” de testemunhar essa urgência. E, no entanto, em muitas
manifestações artísticas, embora não haja um modo “correto” de “ler”, “interpretar”,
“sentir” há um modo “correto” de não ler, interpretar, sentir - um deles pode ser aplicado
à manifestação artística dita afro-brasileira.
Não se fala, por conseguinte, do “modo correto”, mas é possível falar que o “modo
incorreto” de observação dessa arte seria trata-la como uma antropologia, religião,
sociologia, história, etnologia, arqueologia, mediunidade, macumbismo, atavismo,
determinismo geográfico ou de outros tipos203; trata-la como ciência genética, biologismo,
eugenia, evolucionismo pior ainda! Pense num campo de saber. Se este campo de saber
não for “arte”, então esse modo é o incorreto para tratar da arte afro-brasileira. E reparem
que, mesmo conseguindo afirmar isso, ainda não me dei inteiramente por satisfeito
quanto a condição sui generis de seu conteúdo [ou falta de conteúdo] teórico - mas
deixemos o resultado da minha ignorância em suspenção, pois como um amante da
ciência astronômica, sei que não há vergonha em não saber a resposta para uma pergunta,
há vergonha em fingir miticamente que sabe a resposta para todas as perguntas - enquanto
não sabemos, abrimos espaço para que o que seja, por meio da ciência se mostre como é.

Pode-se ter algumas dicas interpretativas dadas por artistas ultra experts (ou, como se diz
lá no meu amado Rio de Janeiro, “ixxxpértux”). Quando o artista afro-brasileiro cooptado
para o circuito da “afrobrasilidade em artes” facilita a vida dos curadores se inserindo nos
movimentos artísticos convencionais a leitura de suas obras se tornam tão clássicas
quanto o prestígio clássico que esses movimentos possuem. Reparem que os artistas que
se arrogam no direito de se enturmar em termos de movimentação artística, geralmente o
fazem porque tem algum talento para fazê-lo e, portanto, este é o maior modo de ler uma
obra de arte afro-brasileira, porque ela lhe permite reinserir esta que jamais teria de ter
saído do campo de onde ela saiu - não do campo dos movimentos, pois esse é puro
didatismo anacrônico mesclado ânsia de classificação e conformação de identidade - ela
não devia ter saído do campo da arte.

203
Eu cito pelo menos mais um exemplo de determinismo: a contraposição que alguns fundamentalistas fazem entre
arte afro-brasileira e arte. Tratar de fazer essa distinção é tratar a arte afro-brasileira como instrumento do
pan-africanismo ou de um involucionismo africanista. Mesmo no campo da arte e não só da sociologia e da
psicologia do movimento negro, aparece esse tipo e convicção. Para aqueles, a arte afro-brasileira seria
como que uma “arte povera”, uma ação crítica consciente que se contrapõe em termos materiais e em
termos intelectuais com a arte convencional. Está aí outro modo de não tratar a arte afro-brasileira. Não se
deve tratar a ‘Arte Afro-Brasileira como “Arte povera” não no sentido do uso de materiais, pois estes não se
encaixariam em regras pré-definidas, nem no sentido de sua comum, eventual e real precariedade artística
em termo técnicos e em termos materiais, pois a arte afro-brasileira sempre flertou com a arte popular, em
termos da pouca ou má formação artística contraposta à “genialidade espontânea” dos autodidatas;
incorreto seria tratá-la como “arte povera” ou uma arte que ocupe um canto especial contrastada com a arte
convencional que não se equivaleria: resultando num determinismo artístico.
Por mais perigosa que seja a brincadeira de classificação, sabemos que as artes visuais
foram melhor digeridas e encaradas emocionalmente como mais bem palatáveis ou
menos intragáveis quando foram inadvertidamente colocadas nas caixinhas como a do
academicismo204, pré-modernismo205, modernismo206 o impressionismo e
expressionismo207, o surrealismo208, construtivismo209, a pop art210, a optical art211, arte
popular212, pós-modernismo213, etc.
Com isso eu não quero fazer classificação da chamada arte-afro-brasileira, quero apenas
destacar que uma de suas potencialidades é se desvencilhar de todas as nomenclaturas a
elas referidas e pelo menos, repito, pelo menos, se inserir dentro de movimentações
artísticas, pois estas são as que mais se fixam nas cabeças do público que quer, ademais,
se emoldurar em compreensões mais palatáveis. E essas demarcações, por mais que sejam
incompletas, incongruentes e permitam tráfego entre elas, são capazes de se fixar nas
cabeças dos críticos também, porque estes não foram treinados (por mais que pudessem
incluir isso secundariamente) em fazer observações de submundos de teorias
antropológicas de individuação, personalismo e identidade, submundos da eugenética,
história da escravidão e seus lamentos poetizados, submundos religiosos e suas mesclas,
fusões 200 divindades com seiscentos atributos, cores, danças, comidas e apetites
diferentes, etc. - eles foram treinados para fazer observação de arte e um dos modelos se
não correto, pelo menos autêntico é inserir o artista, o máximo possível, dentro de alguma
tradição artística, por mais que os artistas pós-modernos, desejosos por serem encarados
em si mesmos, odeiem isso, e com toda a razão.

204
Estevão Silva, Firmino Monteiro, Horácio Hora, Antonio Rafael Pinto Bandeira, Emmanuel Zamor,
entre outros (reparem que esta lista é imensa, já que a inserção real do negro em circuito artístico se deu nos
períodos e em locais aonde a cor da pele influenciava, como sempre influencia, mas que não era o primeiro
muito menos o único critério de inclusão.
205
Arthur e João Timótheo da Costa
206
(Modernistas tardios) Carybé, Wilson Tibério...
207
Benedito José Tobias
208
Octávio Araujo
209
Emanoel Araujo, Rubem Valentim, Olumello, Jorge dos Anjos, Rommulo Conceição
210
Antônio Miranda
211
Almir Mavignier
212
Abdias do Nascimento
213
Rosana Paulino, Sidnei Amaral, Tiago Gualberto (Eles vão me odiar por isso, mas quais outros
supracitados também não odiariam?!)
Um Exemplo de Como não Ler uma Obra de Arte com Qualificativos “afro”

Resumo:
Ao tentar fazer aqui uma avaliação da força com que modelos artísticos clássicos
auxiliam negros artistas a se estabilizarem em círculos não periféricos, utilizo para isso
como exemplo uma obra de Rubem Valentim.

A arte construtivista é uma maneira de fazer a ocupação elaborada de um dado espaço. O


modo como cada artista o faz varia, porém, os meios são geralmente os mesmos e
historicamente parte-se do uso intrincado ou não das formas geométricas. O termo
construir advém da arquitetura. Embora tivesse uma conotação utilitária, desde sempre
não se distinguia imediatamente sua forma de seu conteúdo. “Construir” seria, por isso,
aliar a forma e o conteúdo no espaço; erguer, produzir, arranjar e estruturar essas formas
para que configurem uma trama, um desenlace ou um intrincamento; numa palavra, uma
“construção”. Tanto nas artes plásticas construtivistas quanto na arquitetura, não se pode
prescindir da ideia de projeto. Elaborações mentais espontâneas, figurações automáticas,
rabiscos da impertinência não fazem parte da arte construtivista.

Parece que os teóricos entraram em consenso em atribuir às elaborações plásticas de


Rubem Valentim (1922-1991) à modelos construtivistas. Ora, se assim o fazem não é
porque ele teria sido iniciado no candomblé, porque ele tenha alguma porcentagem de
“sangue negro”, ou porque ele elaborou formas que são símbolos da religiosidade
afro-brasileira. Ele é assim classificado porque ele aplica em seus trabalhos algumas das
normas formais da arte construtivista. Os elementos de sua figuração, sua maneira
ordenar ou seja, sua composição, seus aparatos técnicos não fazem representações
imediatas de figuras do mundo natural, por isso, estas obras o associam a essa corrente
artística chamada construtivismo.

Ainda que se possa retomar historicamente o nascedouro desse movimento artístico entre
os russos, com Vladimir Evgrafovič Tatlin (1885 - 1953), para efeitos do que muito
depois se portou como africanidade e afrobrasilidade nas artes modernistas do ocidente, o
nome de um outro russo naturalizado alemão e francês Wassily Kandisky (1866 - 1914),
deve ser neste caso evocado.

A construção é algo cognoscível, mas não uma réplica do real, do natural, do figurativo.
Quando, juntamente com Agnaldo Manoel dos Santos e Heitor dos Prazeres, Rubem
Valentim foi indicado para participar do I Festival de Artes Negras, ocorrido no Senegal
em 1966, ele selecionou entre suas serigrafias a seguinte obra:

Reprodução de uma serigrafia de Rubem Valentim


VALLADARES, Clarival do Prado. A defasagem africana ou crônica do
I Festival Mundial de Artes Negras. Cadernos de Crítica, [S.l.], p.1966. p.14.
Quando Rubem Valentim aplica (de forma excessiva e até repetitiva, é verdade) fórmulas
modernistas em seus trabalhos ele começa a ser palatável, pelo menos para seus críticos,
estetas e para os educadores de museus, que acabam por ter mais alguma coisa a dizer. A
prevalência das formas sob o suposto ou certo (mas nunca imediato) conteúdo
candomblezístico, das cores não animistas e nem personalizadas no acordo entre
iorubanos e os mitos de seus orixás, das linhas contrapostas originalmente como linhas
que perfazem o seu sentido geométrico antes que representações de símbolos sugeridos
dentro dessa mesma tradição, e a prevalência das texturas da composição artística são
alguns dos elementos presentes na obra de Valentim que, desculpem pela escrachada,
cagam e andam para arroubos afro-interpretativos. Por incrível que pareça, eis um dos
grandes valores de Valentim, poder ser “compreendido” mesmo fora do âmbito
afro-brasileiro e ser louvado dentro deste mesmo âmbito, mesmo que ele se repita como
um velho chato que esquece que já disse o que está voltando a dizer e redizer novamente.

O reconhecimento de alguma colagem como figuração na arte construtivista não pode ser
dado de imediato. Seu compromisso não está na encenação de um símbolo ou numa
reprodução ipsis literis de uma imagem como uma estampa que corresponde à sua matriz.
Por estranho que possa parecer para neófitos das artes plásticas, é por isso que o modo de
não ler a obra de arte construtivista como a de Rubem Valentim é utilizar termos como:
essa obra retrata, simboliza, reproduz, descreve, equivale, traduz, denota, relata, se
refere...etc. Atentar para os significados das palavras fariam certos textos curatoriais e
mediações de educadores um pouco mais atentos e sinceros para com os artistas. Em sua
ambiguidade, “Retratar”, enquanto um verbo transitivo direto e pronominal seria por um
lado revogar, anular, retirar algo que se disse anteriormente - isso muitos curadores e
mediadores poderiam fazer quando disseram que a arte de Rubem Valentim “retratam os
emblemas dos orixás”. Mas “re-tratar” no sentido de “tratar de novo”, enquanto uma
representação, reprodução, imagem refletida, simbolização etc. Não diz respeito ao
modelo construtivista de expressão artística pela simples razão que “retratar” nesse
sentido contrairia a norma de limitação figurativa no construtivismo.
Por outro lado, há termos intermediários como “mostrar, apresentar, trazer” que são
termos que podem ser utilizados com cuidado e parcimônia, porque permitiriam
elaborações lógicas que integram parcialmente os requisitos para a arte dita construtivista,
mesmo para essa conscientemente ambígua obra construtivista de Rubem Valentim, que
nos impõe um cuidado maior.

Assim, falas tais como “essa obra mostra” (seriam possíveis dependendo do que se fosse
dizer em seguida. Se se disser, por exemplo, que “essa obra mostra um oxê de Xangô, que
é um deus iorubano que usa um machado, e seu símbolo está representado ali”, este seria
o modo incorreto de ler esta obra. Se se dissesse, por outro lado que, “essa obra mostra
formas numa composição que combina o concêntrico e o excêntrico num equilíbrio
geométrico. E, nas formas de ferramentas de orixás, por exemplo Xangô, que é um deus
iorubano que usa um machado como símbolo, pode-se ver uma triangulação que de forma
semelhante se opõe e que também não deixa de ter um equilíbrio geométrico, embora sua
função seja completamente diferente do de uma “obra de arte” que foi formulada por
alguém conscientemente para que as pessoas percebessem essa composição...etc... Essa é
a forma correta de ler uma obra. A forma incorreta seria dizer: “está vendo esse círculo?
Ele apresenta um útero fecundado por uma forma fálica, que é apresentada aqui como
uma flecha de Oxóssi, que é um deus iorubano da caça”. A forma correta de dizer seria
“está vendo esse círculo? Ele apresenta uma das formas geométricas abstratas que
corresponderia mais aproximadamente a uma dimensão do espaço que vai além da altura,
largura e profundidade. Assim, enquanto essa seta apresenta um fino retângulo terminado
por um triângulo, que aponta para o círculo; este apresenta de forma perpendicular, vários
espaços numa linha. É aproximado abstrata e geometricamente à chamada “quarta
dimensão”...214.

214
Esta parte da geometria é um tanto mais complexa para se explicar de modo sintético, mas utilizando-se
das tecnologias modernas pode-se apresentar modelos construtivos que são capazes de fazer qualquer um se
aproximar do significado de conceitos como quarta dimensão. Vejam, nesse sentido, uma projeção feita em
3D da sombra de um hipercubo em que “realizando uma rotação simples em torno de um plano que corta a
figura de frente para trás [latitude e longitude] e de cima para baixo [altitude]”aproxima-se do que
chamamos de “quarta dimensão”. https://pt.wikipedia.org/wiki/Quarta_dimens%C3%A3o#/media/File:8-cell-simple.gif
(acessado em 10/12/2016). Ver ainda:
PONTUAL, Roberto. Cinco Mestres Brasileiros. Tarsila Do Amaral, Alfredo Volpi, Milton Dacosta,
Arnaldo Ferrari, and Ruben Valentim. Livraria Kosmos Editora, 1977 p.10.
Valeria também cruzar informações dignas de nota ao dizermos que o círculo como
forma de direcionamento para uma quarta dimensão aparece também em Kandisky. O
que mostra ser correto aproximar artistas que possuem inquietações aproximadas, ainda
que capacidades intelectivas ou uso e abuso de uma mesma técnica de forma distintas. O
artista afro-brasileiro torna-se finalmente universal. Ele é “lido” pela nacionalidade e é
lido pela universalidade. E se isso foi possível com Rubem Valentim, tal como foi entre
aspas possível com nossos pintores nacionalistas (embora saibamos com resignação de
que os nossos gênios não são nada na Europa) então será possível, dentro do limite que
nos cabe e o abraçamos muito bem, para artistas que se quiserem afro-brasileiros.

Sendo assim, insisto, os termos melhor elaborados seriam aqueles que dariam chances
para que aquela arte satisfaça as características impostas pela inquietação do artista (e não
do crítico, não do curador e não do “movimento” que, no mais das vezes respondem mais
a anseios de segmentação, teorização e classificação anacrônica ou pelo menos a
posteriori, passando ao largo da “arte e dos artistas”).

Seus relevos brancos de antes, como seus objetos emblemáticos de agora, que Valentim
reúne no seu 'templo', são os momentos mais fortemente 'religiosos' de Valentim e ao
mesmo tempo mais fortemente construtivos. [...] Religião sem altar, missa sem rito,
oração silenciosa e branca. O silêncio favorece o diálogo com a divindade, o branco
capta a luz. A arte construtiva, como todas as religiões, quer construir um mundo claro,
luminoso, justo, coerente, verdadeiro. [...] Valentim se autodenomina 'teólogo
não-verbal', querendo, com isso, aludir ao caráter religioso de sua linguagem
essencialmente visual. Frederico Morais, 1978 In: FONTELES, Bené; BARJA, Wagner.
Rubem Valentim: Artista da luz. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2001, p. 58-59
[catálogo de exposição]

SHORT, Christopher. The Art Theory of Wassily Kandinsky, 1909-1928: The Quest for Synthesis. Oxford;
Berlim; New York, 2010. p.178. Nota 7.
TAYLOR, Mark C. Disfiguring: Art, Architecture, Religion. Chicago; The University of Chicago Press,
1992. p.72.
Igualmente, Ronaldo Rego (1956), por seu suporte ser o mesmo das artes plásticas
convencionais, deve ser incluído nesses mesmos moldes de “não-leitura”. O que devemos
fazer é excetuar casos hiper raros como os ultra cooptados para cena artística Mestre Didi
e José Adário, que se tornaram “artistas” graças ao interesse curatorial ritualista,
primitivista, todos os “artistas” que já foram classificados dentro desta categoria geral
“afro-brasileiro” e se encaixarem também nesse modelo de não “leitura” devem
espontânea e conscientemente entrar nesse “campo” (no sentido de Bourdieu) aonde se
faz o “juízo” ou a “fruição crítica” da obra. Por razões distintas, ambos os “artistas”
foram cooptados a transformarem seus objetos de culto, suas manifestações que já
nasceram como elaborações plásticas, mas sem intenção artística nenhuma, em “obras de
arte”.

O modo, portanto, de “não-leitura” das obras desses artistas que compõem a exceção
seria lê-los de antemão como “obras de arte”, no sentido daquelas elaborações plásticas
que partiram do renascimento italiano e que fundaram as escolas de pensamento artístico,
os museus de arte, depois os movimentos, os contra-movimentos, e toda retórica centrada
no conceito, intenção do artista etc.

C'est ce n'est pas une Didi

O talento, a técnica e a expressividade de Mestre Didi (1917-2013) e José Adário dos


Santos (Zé Diabo) (1947) são conduzidos não pela capacidade de dar respostas às
formas-matérias-conteúdos aparecidas no relevo da história da arte, mas sim pela
capacidade de dar respostas às formas-matérias-conteúdos impostas e limitadas pela sua
religiosidade. Estas só poderiam ser vistas como “obras de arte” depois de
descontextualizadas de suas cenas religiosas e como um exercício feérico de colocar
intenções na cabeças dos “artistas”, intenções estas que seriam em grande parte
preconceitos em termos artísticos porque uma associação direta com mecanismos que
pertencem à religião e não à arte.
Um ibiri de Nanã, um Oxê de Xangô, um objeto não identificado (“agulha”de Obaluaê?), uma campânula.
(BARATA, M., 1957, p. 53)

c'est ce n'est pas une Didi

Na descrição desta imagem, Barata (1957, p.54) anuncia:


Tratamento de volumes e de linhas no espaço em peças de macumbas do Rio
(Museu da Polícia do D. F. S. P.)

A “mão” e a genialidade de Mestre Didi não estão no alongamento deste e daquele bastão
“Ibiri” de Nanã; a elaboração desta delicada curvatura do cabo, por onde se supôs o
manejo da ferramenta fecunda da orixá anciã que remexe a lama dos pântanos
primordiais não é “obra” de Mestre Didi. Quando Didi ainda era o menino com nome de
gente grande Deoscóredes Maximiliano dos Santos, e mesmo cem anos antes do menino
nascer, a forma do Ibiri, parte de seus apetrechos e a sua singularidade por assim dizer
“estética” já habitava entre os iorubá da Nigéria - ao Mestre Didi não cabe a fama da
forma. O que cabe ao Mestre Didi é a aura sacerdotal, a sabedoria centenária algum
adereço decorativo e sobretudo o amor puro à devoção ancestral que são elementos
constitutivos da obra, que é de fato, de Didi, mas não pertencem ao domínio artístico
senão como corporificação e aura simbólica. Algo como o problema deixado pelos
séculos de representação de Cristo na pintura que forçaram os pintores do romantismo
abandonar a forma da retidão apresentada no leve alongamento facial de seu rosto pela
figuração esguia e corpo sedutor do Nazareno. A forma é a mesma, a arte ritual
igualmente, mas as implicações e determinações extra-artísticas, por assim dizer
direcionam o sentido formal e assim, conduz a arte por essas limitações formais.

Mestre Didi (1967)


Fonte: SANTOS, J.E. (Org.) Ancestralidade Africana no Brasil.
Mestre Didi: 80 anos. Salvador, 1997. p.188

E eu digo isso tudo porque, ao contrário do que a maioria afirma, não foi o Mestre Didi
que “inventou” aquelas formas (até por isso ele não poderia ser considerado artista senão
naqueles termos de descontextualizarão referidos acima). Muito antes do Mestre Didi
propor modificações materiais em suas elaborações de homenagem aos ancestrais, tanto
as formas quanto boa parte da materialidade já existiam no contexto religioso. Elas não
foram elaborações de um “artista original”. Não queremos aqui, obviamente, tirar o
aspecto original das obras dele, apenas dizer que essas formas já faziam parte, não da
tradição artística, mas da religiosa - e é preciso distinguir uma da outra, senão se fará o
que temos visto no Museu Afro Brasil tanto quanto se vê nos museus de “arte” sacra:
ajoelha-se diante da obra de arte como se ajoelha diante de uma obra de altar.

O movimento de cooptação/adesão desses sacerdotes e ferreiros como também “artistas”


foi a maneira de criar espaços de prestígio em que aquelas manifestações da religiosidade
pudessem ser observadas em seu aspecto plástico, formal, estético. Isso não é nada novo.
Também a arte africana, durante o modernismo, também foi dessa mesma maneira
descontextualizada e tornada “arte”, sendo que não tinha sido criada com esse tipo de
intencionalidade que valoriza antes as formas plásticas que sua significação e força
imbuída numa cosmovisão muito mais holística que uma mera constituição plástica possa
querer supor abarcar.

Por favor, não me confundam ou mal me compreendam! Quando Metre Didi aparece no
Módulo “Arte Afro-brasileira” da Mostra do Redescobrimento ele a justifica enquanto
Mostra de Arte. A despeito de tudo que eu disse acima sobre ele e de outros
artistas-sacerdotes, um ponto deve ser destacado que é a legitimação da originalidade da
obra, que geralmente é feito também institucionalmente.

Mais uma digressão e já volto ao Didi: como eu sou libertário, isto é, crítico às
instituições, geralmente, abordo os temas sob a perspectivas individuais, mas acho que
também tenho deixado claro nesse texto que falar de arte afro-brasileira é também fazer
crítica institucional. A arte afro-brasileira, assim como seus artistas, depende do circuito
em que estão inseridos ou excluídos, granjeados ou aderidos, seduzidos, incorporados ou
alojados como sem-teto, apenas provisoriamente.... Assim, falar deles pelo menos até
agora, tem sido falar mais das suas dificuldades teórico-práticas do que falar de suas
obras. A leitura atenta que eu fiz nos últimos dois meses (sim, sou nerd!) de mais ou
menos tudo que já foi escrito sobre o assunto, nos indica que a crítica de arte
afro-brasileira ainda está para ser feita. Também pudera, ainda a arte afro-brasileira está
para ser feita para além das ondas da valorização do negro que apontei, já que essas ondas
dizem geralmente menos respeito aos negros em si mesmos que as necessidades de
cooptação ou mesmo inserção deles (nossa) na humanidade.
De outra feita, o campo fluido entre objeto litúrgico, arte ritual, arte popular, arte
afro-brasileira pode ser estabelecida também por meio do carimbo institucional. É assim
que as mil e uma peripécia dos curadores são dimensionadas no campo estrito de suas
fabulações tomadas como “arte” nem sempre em sentido contemporâneo, como um
“apelo à fixação das formas do tempo”, mas como “quanto pior melhor”, ou “mamãe eu
coloquei uma melancia no pescoço! ” ou ainda ao estilo de manchete “imperdível” do
facebook “urso de cueca, abaixa as calças e faz sucesso! ”.

No sentido mesmo de dizer que as paredes vazias de uma tal “bienal do vazio” estariam
ali para outra coisa que não serem pixadas mesmo. O argumento na época não foi a
verdade de que a Bienal estava devendo R$2 milhões e que as paredes vazias refletiam
isso...O argumento retórico foi ao estilo de Andy Warhol do filme The Doors de Oliver
Stone (em 1991, portanto, mais de 20 anos antes dessa bienal):

Andy, que numa festa freak dos anos 60, contava uma estória maluca para seus asseclas
de que fez uma exposição em que começou a chegar tanta gente, tanta gente que
abarrotou a sala expositiva...e, enquanto todo mundo poderia pensar...”puxa, que
legal...essa exposição é realmente um sucesso de público! ”. Ao contrário, como
explicava o doidão do Andy Warhol: Mas havia tantas e tantas pessoas naquela
exposição, que as pinturas começaram a ficar esmagadas na parede, então, as pinturas
começaram todas a cair...e isso parecia realmente muito legal.... Aí, um secretário tipo
“Relações Públicas” e puxa saco do Andy Warhol diz: Restaram só as paredes? As
paredes em branco... Andy era a arte nessa exposição. Um dia ele deve fazer uma
exposição somente com as paredes. [Arte] hoje é realmente sobre pessoas, não o que elas
fazem. É o astronauta que importa, não a viagem, é o ator, não o filme - como se diz, é a
viagem, não a chegada.

A despeito de toda irreverência dessas paredes em branco de um Warhol freak do filme,


nessa toada da bienal vazia (http://entretenimento.uol.com.br/arte/bienal/2008/) e de
outros entretenimentos ritualísticos para as massas, tem-se relegado a arte mesma para
um outro ambiente, algo que nós frequentadores de bienais nunca fomos chamados...
clubes de elite nos quais para se entrar paga-se muito, para ficar paga-se mais e para
expor, paga-se com a vida.

Não se trataria, pois, de participar de megaexposições no Itaú Cultural, Centro Cultural


Banco do Brasil e nos outros museus e espaços comerciais que visam somente o público
massificado. Eles têm dinheiro para trazer coisas fantásticas para atração de
consumidores. A questão está em saber se de agora em diante a arte precisará das
multidões para ser exposta e só poderá ser exposta de acordo com o gosto da multidão.
Exposições do lixo do hiper-realismo como Ron Mueck, na Pinacoteca de São Paulo ou a
exposição “Corpos” ocorrida na Oca do Parque do Ibirapuera, com corpos humanos
empalhados e ouso dizer, até o ilusionista Anish Kapoor no Centro Cultural Banco do
Brasil, ou seja, aqueles “dispositivos ilusionistas” alertados por (GOMBRICH, 1986, pp.
114-115) etc. estão mais pra “feira de ciências” que pra "exposição de arte”.

As Bienais de São Paulo, por exemplo, estão ficando muito ruins, num biênio deixam as
paredes vazias, noutro colocam urubus vivos pra nos sondar, noutro eles falam que um
restaurante é uma obra de arte215. É muito gostoso e barato, por sinal, (já que também sou
vegetariano-vegano), mas se pelo menos fosse gratuito, não tivesse aquela atendente
chata e mau humorada com sotaque castelhano (Chile?), ou tivesse a cozinha aberta pra
visitação, vá lá!)216. Mas, enfim, essas exposições de massa só se salvam por causa de
artistas com obras excepcionais e inesquecíveis como a performance "Piano Surdo” de
Tatiana Blass, o interessante Prabhakar Pachpute que foi capa de cartaz e Gil Vicente
estavam intrigantemente ótimos tecnicamente, Qiu Zhijie com aquele mapa gigante com
figurações fantásticas de geografias absurdas “golfo da anarquia, república de Platão, ilha
utópica..etc” nos ganhava pela curiosidade e pelos risos, a vídeo instalação da artista
israelense Michal Helfman “Running Out of History” da Bienal desse ano foi o que
realmente em tudo me impressionou. De fato, as videoinstalações nas bienais geralmente

215
Nada contra a ideia pós-moderna do simpático e atencioso Jorge Menna Barreto. Mas se o ambiente de
massas não é também muito barulhento para se fazer arte, certamente o é para se fazer estética experimental
metabólica. Tavez a culpa seja mesmo do Niemayer.
216
Os excelentes audios pós-modernistas foram feitos pelo meu amigo carioca Marcelo Wasem, a quem
esta critica, obviamente não cabe.
arrasam, difícil não aproveitar 90% delas...eu me lembro de cor de vários vídeos das
últimas 3 ou 4 bienais...e tenho saudade de todos eles. Porém, não se faz bienal ou
qualquer megaexposição com uma, duas, nove obras..., Mas com 1, 2, 900 mil pessoas se
faz sucesso217!

As megaexposições contemporâneas em geral tem a ver com sucesso. Mas nem sempre
sucesso tem a ver com arte. Sucesso é outra coisa. Geralmente gosto de ir experimentar o
poder da presença, mas gosto mais quando revejo as imagens depois...não sei de onde é
que eu tirei isso, mas acho que pra bienal funcionar pra mim, ela tem de ser digerida...
como vou apenas umas 3 vezes numa mesma bienal, dependo da digestão posterior feita
por meio de imagens tiradas por visitantes ao longo dos meses de exposição.

Fechando o parêntese desta digressão e voltando ao Mestre Didi. Não há nada em termos
de fruição, elaboração estética, percepção artística composição, intenção, solução plástica
etc. que diferencie a obra do artista Deoscóredes Maximiliano dos Santos da obra do
sacerdote Mestre Didi. Como da obra de quaisquer um desses artistas não ritualísticos ou
mesmo quaisquer artistas das bienais, por exemplo. Essas obras estão diluídas na massa.
Nesse sentido, que saudade não teriam os modernistas com relação à pequetitica
massificação dos "Salões de Arte” do passado!

Mas, enfim, a arte educadora Gabriela da Silva Dezidério demonstra uma intuição
interessante quando trata da institucionalização da arte em seu artigo “Legitimação em
arte afro-brasileira”. De forma inteligente, ela foi buscar no argumento da autoridade os
conceitos de “campo artístico” e “habitus” de Pierrre Bourdieu para fazer a determinação
do reconhecimento da obra do Mestre Didi. Nesse sentido, concordo em gênero, número
e grau quando ela diz a respeito sacerdote baiano que:

Todo esse cabedal de influência no campo intelectual baiano e afro-brasileiro, sua

217
Tá bom, eu vou fazer um pequeno esforço de não mentir que há em mim algum apreço ou
especificamente amor-ódio pelo que foi apresentado nessa 32a. Bienal, particularmente em Ana Mazzei,
Bárbara Wagner, Heather Phillipson, Hito Steryerl, e alguns poucos outros, só que prefiro evitar.
representatividade dentro do contexto religioso do candomblé [Na verdade não é
candomblé, mas sim Culto a Egungun] e as referências que trouxe dele, para a ideia de
legitimação da arte a partir da disputa subjetiva entre esferas de poder, somado ao
prestígio de alguns dos agentes que atuaram na projeção de Mestre Didi como artista,
com toda certeza determinaram sua legitimação como tal. É possível que este contexto
favorável tenha sido o diferencial no reconhecimento que este artista conquistou em
detrimento de outros tantos indivíduos que produzem objetos religiosos afro-brasileiros
imprimindo nesses, traços de originalidade, ainda que por vezes mais presos ao
utilitarismo destes objetos, que são estéticos por natureza, devido ao fato de serem
oriundos de culturas onde não existe a dissociação da arte de outras esferas da vida
social, como a religiosa, em oposição ao que ocorre na arte secularizada que se
desenvolveu na sociedade ocidental a partir da modernidade. (DEZIDÉRIO, G. 2015b,
p.82)

Ao contrário do que eu digo, em nossa época relativista, desconstrutivista, destrutivista e


nadificante toda forma se equivaleria, toda intenção fosse ela intencional ou não,
pertenceria ao mundo da cooptação artística. Nesse sentido, coloque-se um cesto-de-lixo
e preencha-o com o que geralmente se coloca dentro de um cesto assim - o resultado
plástico, segundo nossa época relativista seria “arte”. Veja a configuração dos livros de
sua estante, a bagunça do seu quarto, o modo como a tela do windows está configurada,
as cores do seu aparelho de tv, a sombra da porta do seu quarto e a “composição” entre
seu corpo, a casa ou prédio aonde você mora, o bairro, o país, o planeta, o sistema solar, a
galáxia, o conjunto de galáxia, o universo e além dele - tudo isso seria “arte” e, portanto,
nada seria.

Enquanto algumas pessoas distantes da noção de que arte tem como uma de suas
prerrogativas ser aquelas expressões comunicativas que fazem parte de uma tradição,
tentaram transformar irresponsavelmente tudo em arte, confundiu-se as formas da
natureza, por exemplo, com arte. Do latim ars é traduzido como técnica, portanto um
construto humano. Uma coisa é a representação do natural, ou mesmo a fotografia de uma
forma natural; outra coisa é o natural mesmo sem ser contextualizado museologicamente.
A arte não estaria nesse sentido na natureza, nas inúmeras invenções formais das
religiosidades etc. A arte ritual só poderia ser consequência dessas manifestações
contextualizadas nos museus. Mas aí ter-se-ia de se conformar com a fórmula limitada do
gueto que por vezes passeia fora do seu circuito, mas que só é compreendido sem ser
cansativo dentro dele mesmo. Assim, as ondas de valorização do negro continuariam a se
perpetuar na falta de sapienza que iguala a ausência de intencionalidade ao pleonasmo da
arte intencional.

Assim, José Adário dos Santos, que não é um artista contemporâneo, porque
comicamente ele “não participaria de vernissages” e sequer tem consciência de que suas
“obras” compõe museus de arte e o pior, não tem ideia das coisas que são faladas a
respeito das formas de seus ferros pode ser um artista se assim ele e/ou alguém desejar e
fizer proposições formais com intuito de serem apreciadas, observadas, fruídas etc. Bem
como não teriam o ridículo título de artistas aqueles escultores de todos os Oxês de
Xangô, as estatuetas de divindades, de Nina Rodrigues e companhia, além de toda
inconsciência do que se faria das máscaras rituais africanas, objetos indígenas, objetos
decorativos e de consumo do mundo ocidental, embora esses não se igualem no
subconjunto dos objetos plásticos não artísticos. Isto porque, estes não são “arte”, seriam
apenas objetos de culto tornados em arte pela descontextualização, cooptação,
genialidade de artistas e de admiradores e por vezes, por mero oportunismo curatorial.

É verdade que as peças de Mestre Didi, por exemplo, possuem a força de serem
construtos no espaço que dialogam em termos formais e de sua materialidade com
elaborações da arte contemporânea. Mas é antes a arte como é contemporaneamente feita
que se alia à obra de mestre Didi e não o contrário. Propor qualquer simbiose aqui que
não seja pura coincidência é propor um atavismo da história da arte na cabeça de um
sacerdote de culto ancestral - isso não pode. Digamos que o Mestre Didi tivesse estudado
história da arte218 ou tivesse algum tipo de talento psíquico para se inserir nesse circuito

218
Longe de mim querer exigir isso dos artistas, se historia da arte fosse a solução, as histórias insípidas,
vídeos domésticos ou garranchos poéticos ineptos (JAMESON, Frederick. Reificação e Utopia na Cultura
de Massa. Revista Crítica Marxista no. 1, Ano: 1994 p.03. Texto Disponível em:
http://www.ifch.unicamp.br/criticamarxista/arquivos_biblioteca/artigo43artigoCM_1.2.pdf) seriam a
de forma espontânea (ainda que fosse possível “inconscientemente”), as suas elaborações
teriam de ser tanto mais originais quanto a realidade demonstra que elas não o são
totalmente. Ainda assim, excetuando quando foi chamado para participar de exposições
aonde o primitivismo brasileiro é evocado, sem dúvida suas elaborações não deixam de
ser originais não só pelo que ele acrescentou em termos de soluções formais aos já dados
objetos de culto, mas também ele é original na capacidade imaginativa, na sua riqueza de
concepção e na multiplicidade de obras. Eu diria que Mestre Didi só é um artista porque é
um trabalhador incansável da arte, mas não porque faz objetos rituais que servem
esteticamente a museus. Na medida em que fez milhares de obras isso demonstra que ele
teve consciência de que produzia para os museus de arte. Mestre Didi, em resumo, é um
artista porque há mais obras dele em museus que em terreiros.

Para os curadores, filhotes aproveitadores ou entusiastas da noção de primitivismo dos


modernistas, tanto as elaborações da arte africana, quanto às dos sacerdotes artistas
puderam ser descontextualizadas, colocadas em museus para que nessas obras pudesse
não saudar as cosmovisões que estiveram antes ali presentes, mas para dirimir nossa
curiosidade quanto a esses objetos. Os seres humanos são maiores que as religiões que
eles inventam. A arte, portanto, enquanto uma técnica de produzir a expressão de sua
sensibilidade, não pode se limitar a contextos e descontextos que estão fora da mente,
coração e percepção dos artistas. Dito de outra forma, a cooptação serve a deuses
distintos daqueles que os sacerdotes-artistas, religiosos-artistas louvam. É quase
impossível louvar a Mamon, Baal, a Shell, as nossas tataravós e a Jeová ao mesmo tempo
e sob o mesmo aspecto.

Dormitava ali, portanto, na visão desses curadores que criaram esses “artistas”, uma
prática que respondia bem à uma noção autêntica, mas também antiquada e limitante de
“arte afro-brasileira” segundo a qual a religiosidade seria a principal (quando nunca única)
fonte possível de “inspiração” para a maioria dos artistas herdeiros da África. Assim, do

vanguarda. justo eu que vivo dizendo que Sócrates, o filósofo, teve um discípulo que foi o inventor da
academia e no entanto nunca precisou de um diploma para ser o mestre, e o discípulo inventor da academia
foi mestre de Aristóteles, mas poucos acadêmicos chegaram aos pés dos três mestres. Igualmente, Sócrates,
o jogador de futebol, jamais frequentou a escolinha do Corinthias, muitos outros, entretanto frequentaram e
alguns poucos foram jogadores, nenhum foi Sócrates.
mesmo modo como os artistas brancos da arte afro-brasileira estariam reclusos no mundo
da temática, já que “careceriam” de pigmentação, os artistas sacerdotes estariam reclusos
no mundo temático de suas próprias religiões, primitivistamente apartados de toda
legitimidade formal e imaginativa que promove e permite a arte, quando livre dos
cânones de algo tão dubiamente artístico quanto a religião.

Que a religião tenha sido mesmo um ponto central nas plásticas afro-brasileiras porque de
todas as manifestações culturais ela foi a que mais tocou profundamente a experiência
dolorosa da escravidão a ponto de servir de ponto de apoio a todo desespero. Em qual
outra arte com herança africana que a religião manteve sua força? Vimos falando de arte
afro brasileira no âmbito das artes plásticas, mas não poderá nos parecer útil falarmos de
uma conceituação estética nas plásticas, reservando nessa mesma reflexão um espaço
universalizante que integrasse nisso, pelo menos uma outra das principais expressões
artísticas nas quais se encontra artistas herdeiros da África?

A crítica responsável por esse tipo de análise pode, enquanto essa análise for uma de tipo
formal exigir certos critérios que orientem seus resultados críticos de acordo com cada
especificidade das diferentes expressões. Por exemplo, as análises musicais que
identificam ritmos, frases, acordes, melodias e outras construções associadas à tradição
africana no Brasil na música de compositores brancos eruditos como Camargo Guarnieri
(que substituiu Mário de Andrade no Congresso Afro-Brasileiro, e nos presenteou com
inúmeras peças “afro-brasileiras” como “três poemas” Turuê - Kinjajá - Apanaiá, “Sai
Aruê” e “Mofi-la-dofê”, etc.)...Interessantemente ele foi alguém que eu conheci
pessoalmente em 1988 uns cinco anos antes dele morrer, quando eu fui aluno de clarinete
da Escola Municipal de Música, aonde ele era professor (assim como o foram Oswaldo
Lacerda, Roberto Sion e outros com que pude aprender música lá); Villa-Lobos (e suas
fabulações "Farrapós", "Kankukus" e "Kankikis”(1914-15) - aquelas alegrias
afro-indígenas - propriamente cafuzas - Caripunas); Francisco Mignone (com seu “Canto
de Negros”(1932) e sua ópera “Café” ou a “Dansa de Negros”(1940), babaloxá e batucajé
(1936) entre outros, o seu excepcional “Quizomba” que me faz chorar de tanta paixão)219,
entre tantos outros compositores que refletem harmonizações de temas afros ou uso
folclórico afro-brasileiro de ritmos como o maxixe, côco, maracatu, lundu, forró, frevo,
baião, xaxado, afoxé, samba, etc. etc.... por esses e outros compositores a recuperação da
influência da África na música popular e erudita pode ser perfeitamente identificável
tecnicamente e com eventuais abertura para uso de seus resultados em outras linguagens
artísticas220. E ninguém jamais criticou ou exigiu deles grandes formulações teóricas para
sua afrobrasilidade.

Se pensarmos por exemplo, em literatura, sua análise formal já tem sido histórica e, como
não poderia deixar de ser, as reflexões sobre ela tal como nas artes plásticas contém os
mesmos tipos de problemas gerais cujos desdobramentos sempre passam pela questão da
escravidão, a identidade negra, cor da pele dos literatos, sua presença e ausência em
círculos de elite e assim por diante. A possibilidade de listar numa acepção aproximada
esses problemas mais gerais indica que talvez se encontre alguma legitimidade na
elaboração de conceitos estéticos válidos universalmente para as diferentes linguagens
artísticas afro-brasileiras. Música, Artes Plásticas, literatura etc. Nós não faremos isso,
tampouco encontramos qualquer sombra disso em quaisquer teóricos analisados, no
entanto há que se deixar em aberto essa empreitada.

Quanto à literatura negra, por exemplo, para Roger Bastide num texto de 1944 a não
existência de uma “linha de cor” oficial no Brasil, tal como houve nos EUA, “impede

219
Em 1939, em pleno nacionalismo da era Vargas foi montado no Theatro Municipal (RJ) o espetáculo
intitulado “Maracatu de Chico Rei”, inspirado nos causos relacionados à construção Nossa Senhora do
Rosário dos Homens Pretos, em Vila Rica, sendo que a “Quizomba” apareceria no ballet "Maracatu do
Chico Rei" ou a dança do Rei Chico com a Rainha N'Ginga; composição de Francisco Mignone (1897-1986)
com argumento de Mario de Andrade (1893-1945). E com um vídeo que foi tão lindamente remixado e
produzido pelo cantor baixo Joel Nelson que canta nesta versão aqui:
https://archive.org/details/Quizomba-FranciscoMignone_623
220
Ver BITTENCOURT-SAMPAIO, S., Música em Questão. Rio de Janeiro: Mauad x, 2015.
PAES, Priscila. A Utilização do Elemento Afro-Brasileiro na Obra de Francisco Mignone. São Paulo: ECA
- Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo- USP, 1989. [DISSERTAÇÃO DE
MESTRADO]
PAULO, José Roberto de. Bajo el Trande de la Música Negra: Una comparación de la creación musical
bajo la influencia de la música afrobrasileña en los compositores Francisco Mignone y Camargo Guarnieri.
Barcelona: Universitat Autònoma de Barcelona - UAB, 2012. [DISSERTAÇÃO DE MESTRADO]
conflitos de que resultariam valores novos, e poderia ter apontado como um dos
principais empecilhos à eclosão de uma poesia original afro-brasileira”221. Os teóricos da
arte afro-brasileira não deram a atenção devida a Roger Bastide, mas ele é um dos mais
importantes estudiosos a ser destacado, não só por seu alcance dentro da sociologia e da
sociologia da arte brasileira e afro-brasileira em geral, mas pela profundidade
originalidade de suas análises.

Ao analisar os aspectos da herança afro-brasileira nas artes, Bastide flertou com a estética,
psicologia e antropologia do negro brasileiro fundindo no melhor dos sentidos possíveis
esses três campos do saber ao apresentar suas teorias estéticas da arte afro-brasileira. Se
essas teorias podem ser sistematicamente reavaliadas principalmente do ponto de vista da
nova antropologia, isso não impede de vermos no velho Bastide, as bases para o
lançamento também de uma nova estética afro-brasileira ou, no limite, talvez
encontremos nele pelo menos um dos três primeiros maiores estetas da arte afro-brasileira,
com Nina Rodrigues e Manoel Querino. Ainda que não perdemos de vista nosso inteiro e
irresponsável anacronismo a recobrar o sentido “afro” atual para esta arte feita por negros
do passado. Portanto o que vale para Querino, vale igualmente para Nina: Tratar Manuel
Querino como um historiador da arte afro-brasileira, igualando-o a Emanoel Araújo,
este sim, responsável por um trabalho de reconhecimento da arte produzida por negros
no país, é uma deformação historiográfica que não ajuda a compreender a obra do
primeiro, antes a mitifica, pois se trata de um historiador da arte que é afro-brasileiro e
não como tem sido afirmado, de um historiador da arte afro-brasileira. (NUNES, E.
2007, p.256). De qualquer forma, quando Querino identifica a cor da pele dos artistas
negros não é uma “consolidação do mito” vê-lo como historiador de arte afro-brasileiro,
bem ao contrário, ele contribui duplamente, como um elo na valorização do artista negro
(independente do uso do qualificativo “afro” em sua arte) e como uma referência a
possíveis artistas fora do contexto contemporâneo que, por arroubos políticos, se tivesse
vivido no “período Emanoelino”, talvez correspondesse muito bem ao qualificativo
“afro”, como muitos artistas (principalmente das novas gerações) parecem querer se

221
“A poesia afro-Brasileira” in: “Estudos Afro-Brasileiros”, 1973, p.10.
corresponder. Acho que está cheio de gente que morreria pra ser chamado “afro” hoje.
Afro está na moda!

Ainda assim, há que se pensar um campo em que as análises estéticas propostas para a
literatura dita negra tenha algum tipo de adaptação para as artes plásticas e vice-versa.
Enquanto questionamos a existência das artes plásticas afro-brasileira, parece que o termo
literatura negra, literatura afro-brasileira (não discutido aqui) encontra melhores bases
teóricas em função primeiramente dos grandes movimentos artísticos politizados da
literatura – ao contrário da hesitação dos artistas plásticos negros, os escritores nunca
encontraram muitas dificuldades devido ao seu posicionamento francamente político. E
em segundo lugar, não houve ondas de valorização do negro nas quais os escritores
precisassem surfar em grupo ou individualmente, porque o escritor é um artista que tem
maior consciência de sua solidão e é de difícil cooptação. Se as artes plásticas quiserem
se aproveitar dessas bases e conseguirem encontrar algum ponto de apoio em teorias
literárias mais estabilizadas, pode ser que talvez se beneficie.

Esse tipo de análise global, que levasse em conta as especificidades resguardadas a cada
forma de arte, mas que encontrasse o algum tipo de universalismo da experiência negra,
se mostraria útil, por exemplo, para a formação de uma “teoria estética geral
afro-brasileira” calcada na história, antropologia e na sociologia etc. Bastide, por exemplo,
encontra traços de seu método sociológico para uma interpretação da poesia
afro-brasileira, nas próprias palavras dele “menos em Freud e Rank do que em obras
como “L'Homme du Ressentiment” de Max Scheler222. Isso pode parecer significativo do
ponto de vista artístico já que Otto Rank (1884-1939), um psiquiatra discípulo de Freud
considerava o neurótico como uma espécie de artiste manqué, (“artista frustrado”) ou seja,
alguém cuja falha criativa (não um impulso biológico ou ambição social) na expressão da
personalidade foi frustrada ao negar sua individualidade em vez de afirmá-la223. Porém, o

222
BASTIDE, R. Estudos Afro-Brasileiros. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1973. p. 08.

223
RANK, Otto. Beyond Psychology. New York: Dove Publication Inc., 1958, p.50.
filósofo Max Scheler (1874-1928), o ressentiment224 (ou ressentimento, em sentido
Nitzscheano225) seria um “envenenamento psicológico” decorrente de uma reação
encalacrada e contida no interior do indivíduo ressentido que o remoeria nesta injúria a
ponto de provocar, por meio de uma função narcísica, acuada e indefesa aderir à opressão
ou no mais raro dos casos, promover o que Bourdieu chamou de “revolta submissa”. Mas
não é exatamente aí o ponto de Bastide, ele quer na verdade se livrar da necessidade de
interpretação subjetiva do inconsciente Freudiano no literato negro.

Para explicar o seu método Bastide lança mão de um argumento tirado diretamente do
livro “Del'amour” de Stendhal. Diz Bastide “Nada nos repugna mais que esta psicologia
da inspiração, herdada da doutrina romântica do vate e do mago (...) Mas, por outro
lado, (...) os dados fornecidos quer pelo mundo exterior (observação), quer pelo mundo
interior e, muito frequentemente, os dados do mudo externo não podem ser diretamente
aproveitados pelo escritor. É preciso decantar, purificar, submetê-los a uma preparação.
Ora, esta, só permitirá o mergulho momentâneo nas profundidades do “eu”; como o
ramo stendhaliano das minas de Salzbourg que volta recoberto de cristais ou como a
velha tábua de um navio morto que se pesca do fundo do mar, estas sensações voltam à
consciência envoltas em algas marinhas, em florações desconhecidas, em viscosidades
glaucas, não mais um ramo senão fulguração de pedrarias. Digamos mais rapidamente:
a criação precisa da colaboração do “eu” consciente e do “eu” inconsciente226.

Cada escola literária traz consigo o seu bricabraque: o romantismo, seus castelos feudais,
suas igrejas góticas, seus amores tuberculosos, suas folhas mortas; o Simbolismo, seus
ciprestes, e seus cisnes, seus violinos chorosos e suas águas paradas. (Idem, p.06)

224
SCHELER, Max. L'Homme du Ressentiment [l912]. Paris: Gallimard,1958.
225
A moral de rebanho, moral dos fracos que Nietzsche associava à moralidade Cristã seria fruto do
ressentimento que o fraco nutre pelo forte. Dessa paixão decorre o interesse pela vingança e outros
sentimentos ligados ao rancor e a impotência, característica dos fracos. Nietzsche também opunha à essa
moral, chamada também de moral de escravos, a noção de moral dos Senhores. Maldosamente ou não, por
anos não faltou teóricos para criarem paralelos interpretativos com relação ao complexo de inferioridade
dos negros escravos e seus descendentes em relação aos seus senhores brancos e seus descendentes como
uma evidente justaposição da oposição Nietzschiana da Moral dos Senhores (Herren-Moral), fortes, ateus e
brancos e a Moral de Rebanho (Herden-Moral) fracos, judaico-cristãos e negros.
226
BASTIDE, R. Estudos Afro-Brasileiros. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1973. p. 05.
Um pouco adiante, questiona-se Bastide: “Estes ensaios merecem o nome de crítica
literária? À primeira vista eles parecem mais derivados da Psicologia que da dogmática.
O método permite, no entanto, julgamentos de valor. Com efeito, o valor de uma obra
depende em boa parte dos obstáculos ultrapassados. Estes obstáculos não são somente
regras técnicas, leis do gênero, rimas ricas, expressões de ideias difíceis, mas também
obstáculos interiores que impedem a inspiração de saltar livremente, mas a forçam a
tomar mais impulso, concentrando-se, lutando para achar uma brecha, acabando por
tomar formas mais suntuosas. (Idem, p.9)

Bastide vai além demarcando a fronteira entre a arte e o “ofício, artesanato”, indicando a
“consciência” como esta linha limítrofe: Pode-se ignorar o obstáculo, porque não é
consciente. Então a arte se reduz ao ofício, ao artesanato: faltam à obra estas harmonias
sentimentais, estas músicas em surdina, estas ressonâncias na profundidade que dão
tanto encanto aos escritores mais ricos. A criação se faz no plano único da vontade, terá
sempre duas dimensões. (Idem, p.9)
É certo que o melhor aprendiz é aquele que aprende com os erros tanto quanto com os
acertos do professor. Por séculos um modelo de civilização e de arte tentou se sobrepor
tiranicamente em termos de procedimentos artísticos, controle das intenções, cerceamento
das obras de arte, sobredeterminação das formas, patrulhamento de suas propriedades
sintáticas, estruturas e também, imposições de regras para o belo e para o feio. O
“professor” envelheceu, tornou-se caquético, tropeçou em seu próprio calcanhar e meteu
seu nariz ao chão. O que resta ao aprendiz em vez de alimentar-se pelos sentimentos de
vingança, senão ancorar-se em sua própria juventude para meditar sobre o
envelhecimento, cuidar de seu calcanhar e criar proteções morais e intelectuais para que
quando a velhice chegar ele não converta sua arrogância juvenil em arrogância senil,
aprendendo por fim, com as experiências das gerações passadas?

Desde o Iluminismo, a academia europeia inebriada pelos próprios avanços científicos e


artísticos que foram possíveis naquela altura do campeonato graças a uma imensidão de
mortes e de dores, pensou-se eterna em sua potência máxima. Veja-se os grandes artistas
da Europa e EUA de hoje e o tamanho do desprezo levado ao cubo (1-modernismo, 2-
arte pop, 3-arte pós-moderna) com relação a toda empáfia e majestosidade empolada que
criou maravilhas indescritíveis e venenos igualmente letais. Nenhum artista jovem hoje
quer passar sequer um doze avos de tempo que o pior dos renascentistas passou soando
para depurar sua obra para torná-la pelo menos medíocre para sua época. Os copistas do
séc. XIX estão hoje ganhando nomes de artistas mal compreendidos de sua época. Se eles
tivessem acreditado em si mesmos, então, e também na vingativa e irônica passagem do
tempo eles saberiam que a arte não se mede pelo talento e nem pela técnica - estes são
apenas recursos importantes para si e por si mesmos, mas não para uma competição entre
artistas de épocas e técnicas e recursos diferentes; a arte se mede pela capacidade criativa
que ela gera e, nesse sentido, todos os artistas se igualam, principalmente em termos do
limite artístico, em sua criatividade em comum.

Todas aquelas excelências do passado se igualaram na visão geral da contemporaneidade


a trabalhos medianos e simples. Após o declínio do modelo Ítalo-Francês e ascensão do
modelo neo-germânico (do pragmatismo Britânico e Norte-Americano) ninguém quer
conservar muito mais as excelências de hoje (salvo a violência que advém da defesa dos
grandes estetas que identificam genialidades seguindo a critérios antigos) que as
medianidades do passado. O tratamento museológico médio dispendido para obras
conservadas de Seurat, Paul Signac, Lasar Segall etc. não é menor do que o das obras
conservadas de Francesco de’ Rossi (Il Salviati), de Jacques-Louis David ou de Victor
Meirelles.
Porque eles queriam fundar um
Império da arte. Mas, neste,
eles perderam a terra natal,
e, atrozmente, a Grécia, beleza suprema, arruinou-se.

Friedrich Hölderlin - Sämtliche Werke. Hg von F. Beissner (Stuttgart, 1943), VOL. II, p.228).
PARTE IV

Miscelânea
Um pouco da Experiência Norte-Americana

Aqui no Brasil, um tanto diferente de como ocorre na arte afro-americana dos EUA,
questões sub-reptícias estão sob o manto mais geral do problema da arte afro-brasileira. A
primeira delas é a própria questão da definição do que é “afro-brasileiro”. Todos temos
uma ideia geral que “afro” faça referência à Àfrica e, portanto, deve dizer respeito à cor
de pessoas com essa ascendência. Mas, por vezes as definições oficiais, as definições do
senso comum, a autodeclaração e a intuição das pessoas sobre o conceito de “cor” não só
se diferem entre si, como por vezes são definições que se opõe. Nesse sentido, foram
muito produtivas aquelas pesquisas que mostraram nossa mais completa confusão sobre
esses termos. Ainda que quase todos soubéssemos que não há um rigor científico nos
termos “raça”, “afrodescendência” e incluamos a maleabilidade subjetiva do termo “cor”,
trata-se da percepção (interna e/ou externa) dessa cor, aliada à autodeclaração politizada
ou não que indicam os sentidos dessa definição.

Em termos oficiais, o IBGE, que insistiu em dividir a população, por suas próprias razões
institucionais “por cor ou raça, segundo o sexo e os grupos de idade”. Em termos raciais,
o instituto faz 5 distinções: Branca Preta Amarela Parda Indígena Sem declaração227. Os
mestiços de negros com brancos são negros. Segundo a definição que chamo de
“politizada”, isto é, aquela definição semelhante aos modelos da luta pelos direitos civis,
que incluía numa mesma categoria de exclusão os negros e mestiços de brancos com
negros (mas que são chamados pelo cacoete neutro de “pardos” pelo IBGE, uma
instituição desenvolvida, gerida e desafiada apenas por brancos e que não tem negros em
seus quadros). É um fato que no caso dos EUA a definição de que os mestiços são negros
tem sido a própria definição oficial desde que foi instaurada a lei do “one-drop rule”
(regra de uma gota de sangue) de 1910.

Os negros americanos são um pouco mais de 11% da população. Mas, pra “piorar” a
situação, testes de DNA comprovaram que mais da metade dos negros Estadunidenses
(58%) tem pelo menos 12,5% de ancestralidade europeia (equivalente a ter pelo menos

227
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/caracteristicas_da_populacao/tabelas_pdf/tab3.pdf
um tataravô de ancestralidade europeia)228. Muito curioso e lamentável, por isso mesmo,
o fato ocorrido em 2015 com a líder pelos direitos civis dos negros Rachel Dolezal, chefe
do National Association for the Advancement of Coloured People, or NAACP, na cidade
de Spokane, no Estado de Washington. A líder pelos direitos dos negros foi acusada por
seus pais de não ser “negra”, como ela afirmava ser: “Rachel queria ser alguém que ela
não é. Ela escolheu simplesmente não ser ela mesma mas se auto representar como uma
mulher afro-americana ou uma pessoa biracial. E isso simplesmente não é verdade”,
disse sua mãe, Ruthanne Dolezal, a uma rede de televisão229. Bom, enquanto é certo que,
como nós, os norte-americanos estão patinando na questão racial, eles não estão
patinando na questão da identidade artística racial nem em termos teóricos nem em
termos práticos.

Quando os norte-americanos falam em “Black Art” na atualidade, ou seja, no último


século desde o Renascimento do Harlem (décadas de 1920-1930) eles se referem a um
movimento social e artístico que visava historicamente a valorização e o orgulho do
legado racial afro-americano nas artes, especialmente a literatura porque, tal como no
Brasil, esta era uma área mais facilmente penetrável para os negros dentro da sociedade
norte-americana no sentido de que ter um lápis e papel na mão e uma ideia na cabeça
eram suficiente para se formar um movimento artístico negro. Foi nesse sentido que o
mais perto que um grande número de pessoas de uma certa camada da população pôde
chegar das artes plásticas foi fazendo ilustração, desenhos e charges. De fato, como uma
forma de ganha pão, artistas “negros” do mundo todo se associaram à publicidade e
propaganda com objetivo de “levar o leitinho das crianças pra casa”.

As Academias de Arte norte-americanas eram mais fechadas que que a Academia


Imperial de Belas Artes no Rio de Janeiro. Isso se deveu principalmente pelas leis
segregacionistas, mas isto não impediu que alguns artistas se aproximassem esteticamente
do espírito classicista do mesmo modo como alguns negros artistas livres do séc. XIX

228
Henry Louis Gates, Jr., In: Search of Our Roots: How 19 Extraordinary African Americans Reclaimed
Their Past (New York: Crown Publishing, 2009), pp. 20–21.
229
http://www.telegraph.co.uk/news/worldnews/northamerica/usa/11670528/White-woman-posed-as-black-civil-rights-leader-in-years-long-deception.html
brasileiro conseguiam posições no circuito de artes, ou seja, pelo seu talento excepcional
e/ou por meio do auxílio de algum mecenas.

Do ponto de vista teórico, as noções de arte afro-americana (bem entendido, arte


afro-norte-americana) variam formalmente do mesmo modo lógico com que variam as
teorias da arte afro-brasileira. Poder-se-ia dizer que num plano mais básico ambas as
formas de arte tanto quanto ambas as formas de crítica ou de tentativas de fundamentação
teórica se encerram nuns princípios comum a todas. Ouso destacar alguns mais óbvios: a)
experiência escravista; b) racismo; c) dificuldades de inserção num circuito artístico
como consequência direta da dificuldade maior de inserção no circuito social, entre
outros.

A temática afro-norte-americana, entretanto, não pode ser convincentemente aplicada


integralmente na temática afro-sul-americana como se essas fossem francamente
alternáveis. Não só em função das diferenças de profundidade “afro” hereditária na
cultura entre os lados sul e norte do continente americano, particularmente o Brasil, a
Colômbia, as ilhas caribenhas, da América Central, e os EUA. Mas também em função
dos inúmeros sentidos que são aplicáveis para um modelo e não a outro. Cito apenas uma
das divergências que é a influência islâmica entre os negros norte-americanos, algo que
nunca ocorreu no Brasil, mesmo à época em que havia por aqui alguns poucos negros
islamizados, antes do extermínio dos malês e companhia. A herança africana não só é
vária como é mutável, inconstante e no limite tributária de um período de “renascença”,
aparentemente sem o qual essas fórmulas abstratas de origem, identidade, pertencimento
são nada mais do que formulas abstratas.

Patriarcas intelectuais de Robert Farris Thompson, o nosso Arthur Ramos, que fez
amizade com outro fanático pelos “africanismos” nas Américas, Herskovits esteve no sul
dos Estados Unidos por um ano, fazendo pesquisas. Ele relatou o reconhecimento da
noção continuísta africana naquele país nas artes plásticas de negros da Georgia:
O exame das gravuras do livro nos revelou a existência de uma verdadeira tradição
plástica entre os negros da Georgia. Predomina a escultura em madeira, como figuras,
máscaras, objetos de uso doméstico, bastões, instrumentos de música. A tradição dos
velhos artistas escultores é conservada; e êles declararam ter aprendido a sua arte com
seus antepassados africanos. Muitos traços africanos são conservados nessa arte, como
o aproveitamento longitudinal de um segmento cilíndrico de madeira, a falta de
proporção das várias partes do corpo, certas estilizações simbólicas, etc. Entre as
figuras de madeira, pode-se observar a disposição dos braços ao longo do corpo, ou
dobrados em ângulo reto, naquela expressão de oferenda, tão tipicamente africana.
(RAMOS, A., 1949, p. 198). Mais adiante ele impõe um vaticínio que bem poderia ser
adaptado para nossa modernidade, mas que, pelo visto, não deve ter passado pela cabeça
dele (anuviada ainda pela descoberta do africanismo nas artes plásticas) sobre a forma
indireta com que a arte da África passou a ser referenciada na arte das Américas se
pensarmos no Brasil.
De um modo geral, porém, as tradições da arte plástica africana se perderam nos
Estados Unidos. O negro artista prefere imitar os modelos europeus, e se há algum
movimento modernista, primitivo entre êles, terá vindo de fontes eruditas, e não como
uma preservação de traços africanos. (Idem, Ibidem) E Arthur Ramos
surpreendentemente nos dá um nome a essa tendência artística continuísta: “Escola
Racial de Arte”. E cita como exemplo o Ethiopia Awakening da artista negra norte
americana Meta Vaux Warrick Fuller (1877-1968), considerada predecessora do Harlem
Renaissance.

Ethiopia Awakening
Meta V. Warrick Fuller, Bronze, 1914

Arthur Ramos reforça, não sem um aparente orgulho de que o africanismo em outras
partes das Américas (ou a “tradição tribal”, na linguagem dele) foi conservado em maior
ou menor grau não apenas nas sobrevivências religiosas, mágicas, cerimoniais,
recreativas, lingüísticas, mas também na cultura material e artística, na indumentária e
decoração, nas artes plásticas e nas artes industriais. (RAMOS, A, 1949, p. 199).

Robert Farris Thompson (1932)230

https://yalealumnimagazine.com/articles/2919-professor-of-mambo

O primeiro intelectual a defender a tese da correspondência entre a arte africana e


afro-americana em geral foi o historiador e professor aposentado da Yale University
Robert Farris Thompson (nascido em 1932). Sua primeira publicação nesse sentido foi
escrita num artigo em 1958 em que tenta encontrar os laços entre a África e Cuba a partir
dos ritmos e da terminologia utilizada nas artes da dança e da música. O artigo “Portrait
of the Pachanga: the music, the players, the dancers”. Saiu pela Saturday Review
(October 28, 1961) pp. 42-43, 54. Outros textos do autor se seguiram a esse, com ênfase
na arte africana ou nas religiosidades ligadas pelas margens de ambos os lados do
atlântico, tornando Thompson um dos principais interpretes da arte ritualística de
influência africana nas Américas, especialmente Iorubá e Kongo.

Como disse dele Susan Vogel, outra das grandes especialistas da arte africana tradicional
e contemporânea Thompson dedicou sua vida e carreira para entender como ideias e
formas artísticas que se lançaram da África têm sido transplantadas e transformadas nas
Américas. (THOMPSON, 1993,

Thompson escreveu livros que hoje se tornaram clássicos para o estudo do paralelismo
entre a arte produzida na África e a produzida nas américas:
*African Art in Motion: Icon and Act in the Collection of Katharine Coryton White
(1974): com ênfase na tradição iorubana, tem uma excelente análise sobre os aspectos

230
http://www.arthistory.yale.edu/faculty/faculty/faculty_thompson.html
http://www.forumpermanente.org/convidados/robert-farris-thompson ( Acessado em: 12/12/2016)
artísticos da tradição egungun, suas vestimentas, sua coreografia e sua ligação com a arte
de corte.

*Flash of the Spirit: African and Afro-American Art and Philosophy (1984) –

De leitura obrigatória para quem estuda arte e religiosidade africana e da afro-américa,


este é, de longe, o seu livro mais conhecido, com publicação recente em português. Neste
livro ele analisa a maneira como algumas (cinco) civilizações africanas moldaram as
culturas no novo mundo.

*The Four Moments of The Sun: Kongo Art in Two Worlds (1981 ) – catálogo de
uma exposição homônima ocorrida na National Gallery of Art, em Washington D.C., no
início dos anos 80. Neste texto Thompson analisa o “cosmograma bakongo”231, associado
à continuidade espiritual e renascimento, que tanto apareceu nas artes plásticas
afro-americanas dos Estados Unidos do Norte dos anos 60 ao 80. Por exemplo, na pintura
de Basquiat, entre outros artistas tais como Renée Stout, Jim Biggers, e Keith Piper, que
fizeram elaborações plásticas que tenderam na mesma direção. Essa é uma atitude
artística semelhante ao que foi e tem sido feito aqui no Brasil, em relação aos símbolos do
candomblé, os pontos riscados da umbanda, o sakofa, caracteres adinkra, entre outros
itens da tradição Ashante, e outras.

*Face of the Gods: Art and Altars of Africa and the African Americas (1993) – (a
capa da edição de 1993 tem uma foto de um despacho de umbanda, tirada numa praia do
Rio de Janeiro, quando Thompson esteve aqui em 1984. Neste livro maravilhoso de mais
de trezentas páginas, que nos interessa particularmente por trazer análises sobre a arte
ritualista de um artista-sacerdote afro-cubano José Bedia (THOMPSON, 1993, p. 60 e ss.),
o professor Thompson foca nos altares das religiões africanas, fazendo comparações tanto
com a arte, religiosidade das américas (Cuba, Brasil, Suriname etc) e com altares cristãos
da Europa.

231
https://lisakyleclark.wordpress.com/category/kongo-cosmogram/ ( Acessado em: 12/12/2016)
*Tango: The Art History of Love( 2005) –conversei com ele a respeito quando ele
esteve aqui no Brasil em 2010, mas eu não li este livro, deve ser maravilhoso...Eu amo o
Tango, já sabia de suas referências e influências africanas e já aguardávamos há algum
tempo o lançamento de um estudo sobre o assunto com a qualidade técnica de Thompson.

*Aesthetic of the Cool: Afro-Atlantic Art and Music (2011) – retomando um artigo
publicado em 1973, Thompson aprofunda a ideia antiga desenvolvida por ele a partir das
noções estéticas e filosofias africanas tradicionais da figuração da serenidade ligada ao
conceito de ordem, controle e estabilidade social. Segundo ele, essa seria uma metáfora
básica da África Ocidental aplicada na arte afro-Americana como uma forma de
realização estética: o conceito “cool”232.

Certamente Thompson é um dos autores que dá muito pano pra nossa manga para
ampliação das discussões sobre estética africana e afro-americana, as quais evitei passar
por elas em função do grau de complexidade que está além dos nossos interesses neste
texto, bem mais humilde, que procura apenas passar em revista alguns dos aspectos
ligados à teoria da arte afro-brasileira, em especial, revisitando aquilo que já foi tratado
sobre o assunto aqui no Brasil.

Henry Drewal233

http://www.henrydrewal.com/bio-cv.html

Henry Drewal bacharelou-se em Francês no início dos anos 60 pela Hamilton College,
obtendo especialização em Belas Artes. Logo depois que se graduou, ele se juntou ao

232
No ano seguinte a essa publicação de Thompson, o próprio Douglas Fraser ao apresentar a teses da
“arte africana como filosofia”reata as análises de Thompson (FRASER, D. African Art as Philosophy
Columbia University. Dept. of Art History and Archaeology. NY: Interbook, 1974 p. 115).
233
http://www.henrydrewal.com/index.html
Corpo de Paz, ensinando francês e inglês em acampamentos de artes de férias na Nigéria.
Depois de um período de dois anos na Nigéria, entrando em contato com escultores
iorubanos, ele ingressa na pós-graduação na Universidade de Columbia em Estudos
Africanos fazendo uma especialização em história da arte africana, antropologia e história,
sendo aluno de Douglas Fraser, Paul Wingert, Hans Himmelheber, Monni Adams,
Margaret Mead, Graham Irwin e David Scanlon. Fez dois mestrados (1968/69) e um
doutorado na Columbia University em 1973.

Entre os anos de 1973 a 1990, ele foi leitor na Universidade Estadual de Cleveland, aonde
foi presidente do Departamento de Arte, desenvolvendo uma coleção de arte da diáspora
africana sendo curador em diversas exposições. Drewal atuou ainda como curador de arte
africana de vários museus. Desde 1991, atua como professor de História da Arte e
Estudos Afro-Americanos na Universidade de Wisconsin-Madison.

Principais textos de Drewal relativos aos temas de arte afro-brasileira e de


inspiração africana nas Américas são:

Como Editor: Dimensions In Black Art: African, Afro-Brazilian And Afro-American


Art At CSU - Afro-American Cultural Center Cleveland State University Catalog which
accompanies permanent collection (1975)
Como Autor: Gelede: Art And Female Power Among The Yoruba (1983)
Editor: Dimensions in Black Art -- Addendum. Cleveland: Afro-American Cultural
Center, Cleveland State University (1984)
Introspectives: Contemporary Art By Americans And Brazilians Of African Descent
(1989)
Autor: "Art History, Agency & Identity: Yoruba Transcultural Currents in the Making of
Black Brazil," in: Black
Autor: Brazil: Culture, Identity, and Social Mobilization. UCLA Latin American Center
Publications, pp. 143-174. 1999. [Republicado como "The Afro-Brazilian Mind", 2007]
"Cultura Visual-Conceitos" - Cultura Visual (UFBA-Universidade Federal da Bahia), 1, 1,
pp. 19-20. 1999.
Autor: "Ogun and Mind/Body Potentiality: Yoruba Scarification and Painting Traditions
in Africa and the Americas," (with John Mason) in S. Barnes, ed. Africa's Ogun (2nd rev.
ed.), pp. 332-352. 1997.

Destaco ainda dois artigos de sua autoria:

*Signifyn' Saints: Arts and Agency in Afro-Brazil" UC- Santa Cruz, February 5. (2014)
*Afro-Brazilian Arts and Culture - Museu Afro-Brasil, São Paulo, 2011. (Inédito)
[Eu fui um dos organizadores deste evento que chamamos "I Encontro Afro-Atlântico na
Perspectiva dos Museus", no entanto, este texto ainda está inédito, em função de atrasos e
outros problemas vergonhosos que ainda hei de relatar em outra ocasião. Drewal desistiu
de sua participação neste evento. Uns dois anos depois eu me encontrei com ele em Nova
Iorque e conversamos sobre o assunto. Ocorreram certos desencontros e mal-entendidos
que o impediram de vir ao Brasil nessa ocasião].

George Preston (1938)234

http://old.ragazine.cc/2013/04/george-nelson-prestonprofile/

Professor aposentado do City College de Nova Iorque, aonde lecionou arte africana por
33 anos (1973-206), escreveu o livro “Emanoel Araujo Brazilian Afrominimalist”, no
qual desenvolve suas teorias de arte afro-brasileira. Inicialmente ligado à tradição literária,
no final dos anos de 1950 abriu um galpão na 48 East 3rd Street, em Nova Iorque, o
lendário Artist’s Studio235 , aonde realizavam-se leituras de poesia de jovens beatnicks.
Em 15 de fevereiro de 1959, estavam presentes no Estúdio de Preston, figuras hoje

234
http://www.museumofartandorigins.org/photo-gallery/george-nelson-preston-nana-okomfo-yaa-fosia-in-ecstacy-at-topre-edidi-feast-of
-topre-tutelar-deity-of-akuapem-mamfe-ghana-2003-digital-print/
http://www.forumpermanente.org/convidados/george-nelson-preston
235
clássicas como Jack Kerouac, Allan Ginsberg, LeRoi Jones, Gregory Corso, Garcia Villa,
Orlovsky, Ted Jones, entre outros.

Alguns dos conceitos estéticos que aparecem na fala de Emanoel Araujo, foram
desenvolvidos por George Preston. Conceitos como Arte paleoafricana (ARAUJO,
E.(ORG.) Museu Afro-Brasil - um conceito em perspectiva. São Paulo: Ipsis Gráfica e
Editora, 2006. p.240) ou arte neo-africana (ARAUJO, E., Negro de Corpo e Alma, 2000,
p. 43). Apesar de George Preston ter uma importância indireta para a evolução teórica da
arte afro-brasileira devido à influência que provocou nas concepções desta arte por
Emanoel Araujo, não há um texto específico no qual ele indicasse quais seriam as suas
concepções mais gerais, não da obra de Emanoel, como dito, já determinado no livro
“Emanoel Araujo Brazilian Afrominimalist”, mas formulações teóricas que
demonstrassem suas ideias de um continuísmo estilístico entre a África e o Brasil, em
particular e entre a África e as Américas em geral. Algo que fez, por exemplo, Thompson,
cuja orientanda, a fotógrafa Petra Richterova foi assistente de Preston; e o especialista em
arte africana Henry Drewal; e até certo ponto o colecionador de arte africana Reynold
Kerr, interessado também na ponte afro-atlântica - eu conheci todos esses na casa de
George Preston no Harlem, Nova Iorque há alguns anos atrás. Desde nossa última
conversa em julho deste ano (2016) aqui no Brasil, Preston prometeu-nos publicar um
texto sobre o assunto. Disso decorreu, a seu pedido, a vinda ao Brasil de sua nora, a
jovem pesquisadora de musicologia Memphis Washington para colher informações sobre
vários artistas ligados ao tema, tais como Rosana Paulino, Ronaldo Rego, alguns artistas
contemporâneos do Benin, entre outros. Aguardemos, portanto, essa publicação.

Mikelle Omari-Tunkara

http://www.u.arizona.edu/~aasp/
Professora da Universidade do Arizona, ela dá aulas sobre teoria e método da história da
arte africana e da diáspora – um tipo de cadeira inexistente no Brasil, mas que um dia
eventualmente alguma universidade crie236. Com uma dissertação de mestrado em história
da arte defendida em 1979 sobre a historiografia da arte iorubana no Brasil pela
Universidade da Califórnia (A Historiography of Yoruba Art in Brazil and the
United States) e com uma tese de doutorado sobre arte ritual brasileira defendida em 1984
(Cultural Confluence in Candomble Nago: A Socio-Historical Study of Art and Aesthetics
in An Afro-Brazilian Religion) a intelectual tornou-se, juntamente com Henry Drewal e
Robert F. Thompson, uma das principais brasilianistas americanas a discutir as questões
que envolvem a arte brasileira sob a perspectiva africana. Minha primeira visita à Nigéria
teve um grande apoio dela como intermediária entre mim e Wándé Abímb Rlá.

Dentre seus principais textos, destacam-se:


OMARI-TUNKARA, Mikelle S. From the Inside to the Outside: The Art and Ritual of
Bahian Candomble, Monograph Series No. 24, Museum of Cultural History, University
of California, Los Angeles, 1985.
__________________________. Solutions: Afro-Brazilian Women, their Power, and
their Art, in Sacred Dimensions of Women’s Experience. Editor, Elizabeth Dodson Gray.
Wellesley,Mass: Roundtable Press, 1988.
__________________________. YEDAMARIA: Aspects of An Afro-Brazilian Artist.
Exhibition Brochure, California State University, Northridge, Ca., 1991.

236
O Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (IFCH) criou há dois anos um programa de
“história da arte não-europeia”, que a princípio me pareceu interessante, mas não acompanhei o seu
desenvolvimento e nem sei de seu estágio atual. Parece que contrataram professores estrangeiros (que eu
considerei de forma indiferente, como só “uma escolha”, embora não podemos de deixar o registro de que
já tivéssemos pesquisadores de mais de 10 e 15 anos sobre assunto aqui no Brasil. Cito como exemplos a
mestre em arqueologia Corina Rocha, com sua dissertação de mestrado sobre os Tchokwe, defendida em
2007. O historiador Ademir Ribeiro Júnior, doutorando-se atualmente no Rio de Janeiro, especialista em
Edan da associação iorubana ogboni. A historiadora e antropóloga Maria Paula Fernandes Adinolfi,
doutoranda da universidade de Vrije, Amsterdam com tese sobre política cultural e exposição de cultural
material afro-brasileira. A historiadora Juliana Ribeiro Bevilacqua, com o doutorado sobre os Sobas do
Museu do Dundo, Angola. Maria Cecília Feix Calaça, Doutora em Educação pela Universidade Federal do
Ceará - FACED/UFC, professora da Faculdade Latino Americana de Educação, FLATED, Brasil. Única
negra do deste grupo. Respectivamente:
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/71/71131/tde-05072007-102226/pt-br.php
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/71/71131/tde-22092008-150603/pt-br.php
http://www.revistas.usp.br/africa/article/view/74412
http://www.teses.usp.br/index.php?option=com_jumi&fileid=17&Itemid=160&id=A7A3A0DDEFEA&lang=pt-br
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4751206H5
Kimberly Lynn Kleveland (1979)237

(Cleveland, k., 2013, contra-capa)

Professora assistente de história da arte na Universidade do Estado da Georgia, Kimberly


é a mais jovem pesquisadora da arte afro-brasileira e até onde eu saiba, juntamente com
Mikelle Omari-Tunkara, da Universidade do Arizona em Tucson são as únicas mulheres
fora do Brasil a tratarem da arte afro-brasileira.

Baseando-se também num depoimento de Rosana Paulino, Kimberly Kleveland (2013, p.


139) utiliza o termo “arte negra brasileira” de preferência a “arte afro-brasileira”. Embora
suas justificativas sejam sensíveis a distinção que ela faz não resolve o problema teórico
envolvendo esse tipo de produção e devolve ao público leigo brasileiro uma linguagem
que ele próprio rejeita atualmente, aparecendo distintamente apenas em autores antigos e
indistintamente na maioria dos teóricos atuais. Diz ela: No sentido de distinguir alguma
produção do rótulo homogêneo “brasileiro”, sem deixar de reconhecer os riscos
inerentes ao alcance [do uso] de um outro termo repleto de simplificação excessiva,
proponho uma categoria de produção que é mais adequadamente e com maior precisão
referida como “arte negra”. Ao oferecer esse termo como uma alternativa preferível e ao
aplicar este rótulo principalmente às obras238 que discuto neste estudo, eu não
prentendo fazer uma recuperação de seus tons negativos originais. Ao contrário, eu sigo
o padrão brasileiro de privilegiar antes o tema que a raça. Eu acredito que a questão da
influência forma o núcleo desta distinção. Seja no tema ou na abordagem, esta produção
revela-se profundamente enraizada no popular. Sua natureza fala à ideologia racial

237
http://clals.gsu.edu/profile/kimberly-cleveland/ (Acessados em: 12 e 13/12/2016)
238
Entre os artistas que Cleveland enquadra no circuito da arte negra estão Rubem Valentim, Eustáquio
Neves (embora reforce que este não se identifica com o rótulo “arte afro brasileira”(p.20), Rosana Paulino
(que igualmente, segundo Cleveland, Rosana não se identificaria como “artista afro-brasileira”(p.20),
Abdias do Nascimento, Ronaldo Rego, Ayrson Heráclito (que é ambivalente quanto ao rótulo “arte
afro-brasileira”p.20), entre outros.
nacional e à formulação de significantes raciais dentro do campo popular, em vez [de se
centrar na] formação do artista. (CLEVELAND, K.L, 2013, p. 17).

Não vejo como essa escolha possa “seguir o padrão brasileiro de privilegiar antes o tema
do que a raça”, bem ao contrário, “arte negra”, aos meus ouvidos, sugerem mais uma
“arte ligada à cor da pele dos artistas que a produzem” do que a um tema que seria
“negro”. Por outro lado, igualmente, o termo “arte afro-brasileira” também não responde
aos problemas teóricos que a envolvem. Suponhamos que ela se referisse tanto aos
artistas afrodescendentes quanto aos brancos artistas cuja temática fosse elaborada em
torno da herança africana, o problema do regionalismo nessa arte ainda prevaleceria.
Chegaria talvez ao esdrúxulo critério de seleção percentual para artistas com temática
identitária, religiosidade, algum aspecto da África tais como fauna, flora, etnias, ativismo
político. Ou seja, a insatisfação com o privilégio de um tema sobre o outro ainda manteria
a problemática conceitual desta arte.

Poder-se-ia facilmente argumentar que o estado relativamente embrionário do discurso


sobre a arte negra brasileira, cada vez mais discutido como “arte afro-brasileira” nos
últimos dias, é um indício do seu valor percebido tanto para a produção artística
nacional quanto para os afro-brasileiros, em grande parte em posição subalterna na
sociedade brasileira. (CLEVELAND, K. L., 2013, p.1). Para Kimberly Cleveland, uma
observação mais profunda da arte negra brasileira revela que esta arte está
“Intrinsecamente enredada em uma série altamente complexa e interligada de fatores
sociais, econômicos, políticos e históricos que se estendem para além do âmbito de uma
discussão com bases só raciais. A arte não pode ser extraída de seu ambiente polivalente
e deve ser examinada novamente neste quadro” (Idem, p.02). Com isto a pesquisadora
quer dizer que essa arte, embora não deva ser baseada meramente na questão racial, ela
não tem como ser distinguida de seu contexto de produção político e histórico. É por isso
que ela fala de intersecção entre “arte, política e raça” e faz retomar aos
desenvolvimentos políticos da primeira metade do século xx.
O Estatuto do Mestiço

Para falar de arte afro-brasileira não podemos deixar de falar de que, até pela ordem da
razão prismal brasileira, em que os mais claros possuam maior “nobreza, a esmagadora
maioria dos “aceitos” eram, na verdade, mestiços. E para falar de mestiçagem no Brasil
geralmente os doutos voltam seus olhos mormente aos antropólogos e às estatísticas. Seja
como for, não se pode e nem se deve falar de mestiçagem no Brasil sem começar por
Mário de Andrade.

Aquele que seria menos de 10 anos depois, o autor de Macunaíma, o mestiço herói de
nossa gente, quando tinha 26 anos (em 1919), empreendeu uma viagem a Minas Gerais
que mudaria a história da compreensão do significado do país. Ao mesmo tempo que essa
viagem determinou um encontro consigo mesmo, ela determinou a concepção estética
que viria a dominar o pensamento do jovem intelectual Mário de Andrade; e a força
gravitacional que o fez orbitar foi a descoberta da plástica genial do grandioso rei da
mestiçagem brasileira, Aleijadinho (1730 - 1814).

Reforce-se que o que Mário encontrou não foi o barroco brasileiro, o barroco negro ou
qualquer “barroco”, o que ele encontrou foi Aleijadinho. Como diz o hoje aposentado,
professor de Estética e filosofia da Arte com quem estudei nos anos 90, Leon
Kossovitch239, sendo nós os “periodizadores”, não há um barroco enquanto um
movimento artístico consciente de si mesmo. Obviamente é um anacronismo o que
fazemos ao dizer que Aleijadinho tinha consciência de seu “barroquismo mestiço”, de seu
“negrismo” e de que era um herói. Essas inconsistências históricas são cometidas por nós
com grande facilidade porque costumamos ser historicistas e acabamos por abusar da
história para fazer nossas visões prevalecerem.

239
Leon Kossovitch. “O barroco inexistente”. Entrevista com Joaci Pereira Furtado. In: Cult. Revista
Brasileira de Literatura. São Paulo, Lemos Editorial, maio 1998, págs. 60-61. O Leon, como chamávamos
sempre foi muito querido, guardo dele a técnica de mostrar os livros mesmos em vez de projetor de slides,
daquela época ou o nossa apresentação em “power point”. É dele um texto crítico sobre o Método de Mário
de Andrade que trata da questão mestiça de forma diferente da qual tratamos aqui ver: KOSSOVITCH, L.
As Artes Plásticas: Mário de Andrade e seu Método. Revista Discurso Vol.01, no. 1, 1970. pp.83-94.
Disponível e: http://www.revistas.usp.br/discurso/article/view/36378
Por isso mesmo, provavelmente, não devemos tentar procurar as raízes da arte
afro-brasileira no barroco só pelo fato dos seus expoentes máximos como Aleijadinho e, o
quinze anos mais novo, mas que morreu um ano antes daquele, e já flertando com o
neoclássico, Mestre Valentim (1745 - 1813), ou como as outras figuras secundárias do
período, somente por elas serem mestiças ou terem ascendência africana.

Se esse limite talvez possa ser questionado no período contemporâneo pelas razões que
forem, parece que dos sécs. XVI ao XVIII, pelo menos antes da chegada da academia e
antes da aproximação do fim da escravidão, ou seja, antes de uma preeminência política,
fica difícil sustentar quaisquer fundamentos “afros” ou “mestiços”, enquanto um
movimento político-artístico dessas épocas, senão como os que apareceram em pruridos
irônicos de um Mestre Ataíde, que era branco, mas que pintava anjinhos mulatos ou uma
Virgem Maria que, segundo dizem, tinham as feições de sua esposa e filhos240.

Não sabemos a recepção que tiveram essas obras, mas, embora não pareça haver, em tais
pinturas, especialmente as das Virgens Mestiças, um projeto consciente de reinterpretação
dos cânones tridentinos, provavelmente essas elaborações nos chamam mais atenção
retrospectivamente do que na época, já que não há propriamente um rompimento com os
cânones da igreja. Provavelmente os padres e bispos alguns até mestiços,
condescendentes com a negritude generalizada de seus fiéis em Minas Gerais, mesmo
aqueles mestiços pobres livres que eventualmente enriqueciam com o ouro e
eventualmente faziam doações para Edir Macedo nenhum botar defeito, deviam ter
vendado os olhos para o contínuo e depois quase sistemático “enegrecimento da arte
sacra do Brasil”. Estudos com apontamento demográficos da Minas Gerais do início do
xix indicam, por outro lado, uma população negra suficientemente expressiva e
fortemente ligada às irmandades católicas e isso também é um indício de que o negrismo,
de qualquer forma, já era um bebezão que cresceria e por fim se colocaria como um
adolescente definitivo no coração artístico do Brasil.

240
FROTA, Lélia Coelho. “Vida e trabalho de Manuel da Costa Ataíde”. In: __________ & MORAES,
Pedrode. Ataíde : vida e obra de Manuel da Costa Ataíde. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 29 e ss.
As novas feições do Barroco brasileiro, ou seja, a sua aclimatação aqui no Brasil se deu
por meio de mãos negras, que, segundo o próprio Mário que supôs a quase “ausência” de
negros nas artes plásticas, teria sido o primeiro rasgo de plástica genuinamente brasileira.
Foi logo, em 1928, que ele associou a mestiçagem à independência (cultural e política).
Reparem que, quando o Mário de Andrade esteta reflete a respeito das soluções plásticas
de Aleijadinho, ele o faz da seguinte maneira: Esse tipo de igreja, fixado imortalmente
nas duas São Francisco de Ouro Preto e de São João Del Rei, não corresponde apenas
ao gosto do tempo, refletindo as bases portuguesas da Colônia, como já se distingue das
soluções barrocas luso-coloniais, por uma tal ou qual denguice, por uma graça mais
sensual e encantadora, por uma delicadeza tão suave, eminentemente brasileiras. (...) De
fato, Antônio Francisco Lisboa profetizava para a nacionalidade um gênio plástico que
os Almeida Juniores posteriores, tão raros! são insuficientes pra confirmar. Por outro
lado, ele coroa, como gênio maior, o período em que a entidade brasileira age sob a
influência de Portugal. É a solução brasileira da Colônia. É o mestiço e é logicamente a
independência241.

Foi no ano seguinte à essa primeira viagem de descoberta do Brasil, em 1920 que Mário
publicou o livro resultante de sua visita a Minas Gerais e também de uma conferência que
organizou no ano anterior sobre “A Arte Religiosa no Brasil”. Nesse texto é um marco
para a busca dos parâmetros daquela que ele considerará, nas palavras dele, “a maior
mulataria” presente nas artes plásticas dos setecentos e oitocentos. A busca por uma arte
genuinamente brasileira faz o autor considerar que Aleijadinho, “é o único artista
brasileiro que eu considero genial, em toda a eficácia do termo” (Idem, Ibidem).

E por falar em mestiçagem e independência…Jamais me esquecerei do dia em que


acordei do meu sono dogmático com relação às “raças” formadoras do país. Estávamos
por volta do ano de 2007, 2008 quando atendi um finlandês que caiu de paraquedas no
Museu Afro-Brasil, porque na Empresa pela qual ele veio fazer negócios no Brasil
disseram que havia um museu assim e assim que ele deveria conhecer. Como ele não

241
ANDRADE, Aspectos das Artes Plásticas no Brasil p. 41.
sabia nada do Brasil tive de iniciá-lo em tudo. Para se ter uma ideia, tive de definir termos
como Capoeira, Ama-de-Leite, Orixás, Umbanda, Candomblé, Navio Negreiro, Abolição,
Aleijadinho...porque eram termos que ele estava ouvindo pela primeira vez. Falei da
chegada dos Portugueses, das três matrizes raciais formadoras do brasil, o branco o negro
e o índio, ao estilo de como aprendemos na escola...

Como ele era muito inteligente, pude ir mais fundo e fazer discussões de ordem racial que
o deixava de sobrancelhas em pé, espantadíssimo sobre a condição dos negros no país.
Ora, depois de uma hora e meia de um monólogo incrível que eu sei bem fazer com
minha herança francesa de prolixidade mais ou menos inútil eu me dava por satisfeito
encerrando essa grande aula sobre a história do Brasil. Quase que ao nos despedirmos, ele
fechou o seu rosto nórdico com aqueles pelinhos quase brancos de tão loiros no rosto,
num ar bastante intrincado e cheio de dúvidas... Como eu não comentei nada sobre sua
expressão facial, depois de alguns segundos, hesitantemente ele soltou a pérola que me
fez acordar: - Mas vocês acham os portugueses brancos?

Temos, assim, de voltar nossos olhos mestiços para um passado ainda mais distante. O
estatuto do mestiço, ou propriamente o estatuto da mestiçagem não encontra seu ponto de
apoio nem nos povos ibéricos (Português e Espanhóis), nem nos povos africanos
escravizados e sequer nos grandes troncos étnicos indígenas. A história da mestiçagem é
tão generalizada e antiga quanto as esposas africanas e orientais do Rei Salomão. Mas os
Ibéricos, principais atores e responsáveis iniciais da nossa mestiçagem por imposição
violenta242, tiveram uma história pregressa ao seu aparecimento enquanto “sujeitos de
experiência genética e cultural” no Brasil e nas Américas. E essa história mestiça, pelo
menos a registrada por fontes primárias, ocorreu desde a conquista e influência cultural e
genética dos Romanos na península ibérica (período que compreendeu seis séculos 194
a.C - 476 d.C) e, posteriormente, nas Invasões Mouras (isto é, africano-árabes, num

242
É um terrível paradoxo que o principal índice de unificação universal tenha provindo de uma violência.
Mas se pensarmos nessa violência como uma contradição inerente ao conceito da criação civilizatória, esse
seria apenas mais um dos refugos que permitiram chegarmos até aqui. Caso contrário teremos de conceber
teorias nihilistas que julguem certas Síndromes de Estocolmo” as responsáveis por amarmos nossa alma
saudosa e fadista - a bela violada torna-se consciente e revolucionária liberta a fera opressora e
conservadora e ambos se emancipam - já li esse conto de fadas em algum lugar.
período que compreendeu sete séculos (711 d.C. - 1492 d.C - provou antes alguns graus
menos massificados de miscigenação cultural e genética. Atentem-se a isto, o Brasil tem
516 anos, e foram 781 anos de invasão africano-moura na Europa. Se Pedro Álvares
Cabral fosse Mouro e nós os “europeus” invadidos faltaria ainda hoje 265 anos para
acabar essa invasão. Ora, me parece impossível a manutenção de tantos anos de domínio
econômico, social, intelectual e a mestiçagem artístico-cultural etc. (tão evidente na
arquitetura, música e culinária de muitas cidades mediterrâneas e ibéricas) sem a
mestiçagem na cama.

O mesmo ocorreu com todos os povos latinos durante a Pax Romana, em que para ser um
romano, não era necessário ter esta ou aquela cor da pele, nascer neste ou naquele país,
bastava falar latim e pagar tributos aos imperadores. Não havia racismo no mundo antigo,
tal como o entendemos hoje, enquanto suposição de inferioridade de algum tipo por causa
da cor da pele e/ou da condição racial. Isso era matéria da arrogância iluminista do séc.
xvi e xvii (pela necessidade de se embebedar com os próprios feitos e de se ancorar na
elevação mental que representava a “luz da razão” (instrumental) - o racionalismo, o
cientificismo e a luta contra a superstição - contrapostos aos nativos que seriam
“irracionais, míticos e supersticiosos. E o outro lado da culpa pelo racismo europeu vinha
dos cientisteiros e positivistas do séc. xix. que ainda pretendiam justificar a escravidão e o
triunfo da ciência sobre a natureza, do civilizado sobre o selvagem, do bem contra o mal...
lembrando bem aqueles filósofos e monges da antiguidade que pretendiam se livrar a
qualquer custo de suas próprias paixões acusando os outros de serem materialistas,
sensuais e devassos.

Portanto, pode-se até mesmo generalizar parafraseando Mário de Andrade quando ele
disse a respeito de Aleijadinho que ele representava “o mestiço e o nacional”, sim, é o
mestiço, o nacional e o universal. Já que, excetuando alguns rincões suíços protegidos por
cadeias de montanhas quase intransponíveis e alguns poucos pontos mundiais como
algumas aldeias no Himalaia, tudo o que veio depois do imperialismo romano, no mundo
todo pode profundamente significar mestiçagem cultural e genética.
O exemplo Brasileiro, a despeito de também fazer surgir o mito da democracia racial,
pretendeu, em termos teóricos, ser exemplar: a experiência de mestiçagem contribuiu
para a criação de algo novo a ser imitado, criando adensamento, complexidade, mas
sobretudo desconfiança dos conceitos fundamentalistas como raça, nação, imperialismo,
identidade, religião, etc.etc.etc. Aprendemos que TUDO É FUGAZ; TUDO É MESTIÇO
e isso foi muito antes mesmo de aprendermos que “tudo que fosse sólido se desmancharia
no ar”. Deste modo, se as análises sociológicas do sujeito na modernidade líquida de
Sigmund Bauman fossem, ao estilo antigo, análises culturais, o sujeito líquido não seria
outro senão o mestiço. Afinal, não foram os filósofos africanos Filo de Alexandria,
Apuleius, Eratóstenes, Calimaco, Carnéades, Santo Agostinho, Senghor, Cheikh Anta
Diop, Anton Amo, Henry Oruka, Wole Soyinka e outros a seu modo como Louis
Althusser, Derrida Frantz Fanon quem nos ensinaram que “origem geográfica não é
‘documento’”?

Não quero fazer o histórico disso pois já foi muito bem documentado243. Mas no ringue
histórico dos que, no início do contato multicultural se pesou os “prós e contras” com
relação à mestiçagem, ocorrido tanto entre intelectuais do Brasil quando na França e nos
EUA, um fato dessa briga deve ser destacado: para além dos prós e contras históricos, o
fato destes também representarem entre si o paradoxo de suas próprias defesas e

243
Pra início de conversa ver:
ALENCASTRO, Luiz Felipe. Geopolítica da mestiçagem. In: Revista Novos Estudos, São Paulo: CEBRAP
(11):49-63, jan., 1985.
ALMEIDA, Eneida de. Mulato: negro não negro e ou branco não branco. São Paulo: Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, 1997[Dissertação de Mestrado].
MOREIRA, Viuva Juliano. Juliano Moreira e o problema do negro e do mestiço no Brasil. In: FREYRE,
Gilberto et al. Novos Estudos Afro-Brasileiros. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, p.146-50, 1937.
MUNANGA, Kabengele. Mestiçagem e identidade afro-brasileira. In: Revista de Cultura Vozes,
93(4):42-60, Petrópolis/RJ: Vozes, 1999.
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil. Identidade nacional versus identidade
negra. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1997[Tese de Livre Docência].
PAIVA, Eduardo França. Por meu trabalho, serviço e indústria: história, crioulos e mestiços na Colônia
Minas Gerais, 1716-1789. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1999 [Tese de Doutorado].
RIBEIRO, Darcy. Sobre a mestiçagem no Brasil. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz e QUEIRÓZ, Renato da
Silva (orgs). Raça e Diversidade. São Paulo: EDUSP/Estação Ciência, p. 187-211, 1996.
SCHWARCZ, Lilia Katri Moritz. Usos e abusos da mestiçagem e da raça no Brasil. IN: Afro-Ásia.
Publicação do Centro de Estudos AfroOrientais. Salvador: UFBa, nº 18, 1996-1997.
STRAUMANN, Patrick (org.). Rio de Janeiro, cidade mestiça: nascimento da imagem de uma nação. São
Paulo: Companhia das Letras, 2001.
WEFFORT, Francisco C. Cultura brasileira, cultura mestiça. In: Palmares em Ação, Revista da Fundação
Cultural Palmares, ano I(1):17-25, agosto/setembro, Brasília, 2002. Entre outros...
afirmações é prova de que há muita irracionalidade na defesa pró e contra a mestiçagem,
já que não é ela a minoria, o estranho, o outro, o objeto e sim a norma.

Um exemplo do irracionalismo na “solução mestiça” aparece na fala do Marquês de


Chastellux (1734-1788), militar que atuou na guerra de independência dos EUA. Ele que
teve a excelente ideia de se livrar dos negros canalizando seu fim por meio dos
casamentos mistos, até que a cor negra fosse progressiva e totalmente dissipada do seio
Americano. Mendel descobriria a lei da recessividade e dominância 77 anos depois da
morte de Chastellux, que morreu sem desconfiar que a cor da pele negra, assim como
uma série caracteres herdados de alelos dominantes “negros” possuem uma característica
multigênica que é chamada “aditiva” e tem implicações no fenótipo negro dos
descendentes mestiços, independentemente da presença de outros genes. Foi a tal da
dominação racial e política branca levando uma rasteira da dominação genética e
fenotípica: filhos de brancos com negros possuem fenótipos negros mais acentuados
genericamente.

A falta de comprometimento mulato, que vale para o mundo social tanto quanto vale para
o mundo das artes, diferentemente da falta de comprometimento negro, refere-se aos
mecanismos seletivos que destacaram mais fortemente no prisma cutâneo entre aqueles
que “passam por um ou passam por outro” (os “quase brancos, quase pretos” da música
“Haiti” de Gil e Caetano). Ora servindo a isso, ora servindo a aquilo. Toda
superficialidade cutânea é um imbróglio sobretudo ao mestiço, porque cabe a ele
decidir-se e, no entanto, ele não tem muita margem de decisão. Não resta dúvida, diz
Munanga (1997, p.109) de que esses mecanismos seletivos quebraram a unidade entre os
próprios mulatos dificultando a formação de identidade comum do seu bloco já dividido
entre os disfarçáveis (mais claros) e os indisfarçáveis (mais escuros) e o resto dos
visivelmente negros.

No período da escravidão tanto quanto hoje, quando comparados no prisma que separa os
privilegiados dos desprivilegiados, participar da proximidade da tez branca pode ser
bastante benéfico principalmente espaços de privilégio brancos. A indecisão dos outros e
a do próprio mestiço é um dos motivos pelo qual eles são cooptados a não se rebelarem
contra esse estado de coisas. É certo que os de matizes mais escuras dependem daqueles
de matizes mais claras para não se perderem no escuro de sua própria desgraçada
condição pré e pós-abolição. Mas, uma vez que os mestiços não conseguiram encontrar
uma unidade em sua diversidade eles nunca se viram ou foram vistos como uma unidade
integral, se não o fizerem tanto do ponto de vista político ou do ponto de vista artístico
não haverá o Nacional, de Mario de Andrade e insisto, nunca haverá o Universal,
segundo eu próprio, o Renatex.244

Uma vez que não conseguiram fazer como os “mais brancos” e os “mais negros” de que
eles, esses mesmos “mais brancos” e os “mais negros” seriam os “mais próximos das
extremidades de matizes” e os que não se importaram com a variação relativa que os
diferenciava criando a unidade abstrata de forma política, no caso dos grupos que assim
se congregaram, seja por razão das reivindicações sociais ou por razão de insuficiências
identitárias entre outras, o mestiço jamais se fez unidade abstrata na forma política;
jamais se reivindicou em termos de movimento de massa.

Essa unidade na diversidade, no caso do mestiço, frequentemente se resolveu no interior


da politização dos movimentos negros. Esses movimentos iniciais, seguidos pelos outros
mais recentes de alguma forma de modo inconsciente foram pautados pelo biologismo
norte-americano da “one drop rule”, em efeito cascata de sua ambiguidade que parou na
América do Sul e Brasil como modelo de luta política aonde “mestiço e negro” sejam
entendidos politicamente como “unidades na diversidade”. Concomitantemente, a
resolução brasileira destaca em termos oficiais os matizes do preto, do branco e do pardo
(o IBGE, por exemplo, lida assim). Do ponto de vista da movimentação política negra,
por sua vez, o termo preto e pardo se resolve no termo negro, enquanto um conteúdo
político congregador da identidade daqueles que sofreram e sofrem socialmente o
racismo. Nesse sentido, a arte afro-brasileira compreende tanto prática quanto
teoricamente as figuras do pardo e preto como “negritude”, conceito político encampado

244
O mesmo pode-se dizer daqueles que se encontram nos extremos dos matizes, enquanto eles não se
posicionarem ao centro não haverá nacional e muito menos universal. Haverá o que sempre houve, a ilusão
de ótica, a verdade pós-racialista, hoje ainda bastante duvidosa, de que a cor está nos olhos de quem vê.
por “tigres” ou “panteras” que “pulam sobre suas presas”, sim, mas antes de pular se
identificam como negras e agem em conjunto. (Queria voltar a isso, mas devo apenas
remetê-los às discussões sobre o conceito de negritude em Aimée Cesaire e sua crítica no
não por acaso, internacionalmente premiado Wole Soyinka)

Por outro lado, a “mestiçagem como solução” também teve em seus arautos da
nacionalidade étnica245 forçando uma implicação teórica a priori em relação ao mestiço
social e o mestiço artístico. Ainda que encontrados contrapontos em correntes divergentes,
por exemplo entre um Gilberto Freyre e um Euclides da Cunha a primazia do
irracionalismo na análise das “cores do brasil” ainda é um importante caldo de potências
sociais que se alternam na forma de políticas de fomento e políticas do esquecimento. E o
histórico simbólico deste irracionalismo é resumidamente o seguinte:

Enquanto Freyre fazia apologia da mestiçagem, o Euclides da cunha a via igualmente


como uma solução, mas como uma solução negativa, já que pensava que: A mistura de
raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial. Ante as conclusões do
evolucionismo, ainda quando reaja sôbre o produto o influxo de uma raça superior,
despontam vivíssimos estigmas da inferior. A mestiçagem extremada é um retrocesso. O
indo-europeu, o negro e o brasílio-guarani ou o tapuia, exprimem estádios evolutivos que
se fronteiam, e o cruzamento, sôbre obliterar as qualidades preeminentes do primeiro, é
um estimulante à revivescência dos atributos primitivos dos últimos. De sorte que o
mestiço – traço de união entre raças, breve existência individual em que se comprimem
esforços seculares – é, quase sempre, um desequilibrado246.

245
Dentre outros nomes importantes que lidam com o tema, encontramos o filósofo mestiço Silvio Romero
(1851-1914 , o médico legista evolucionista que inaugurou os estudos artísticos afro-brasileiro Nina
Rodrigues (1862-1906), o jurista Alberto torres (1865-1917), O médico e sociólogo Manuel Bomfim
(1868-1932), que ousou fazer frente a Nina Rodrigues e a criticar Silvio Romero ao fazer a apologia do
mestiço 30 anos antes de Gilberto Freyre, o médico João Batista Lacerda (1846-1915) que frequentou o
Congresso Universal das Raças ocorrido em Paris em 1911, com o artigo “Sur les métis au Brésil”, em que
disse O mestiço, produto da união sexual do branco e do negro, não constitui uma raça verdadeira, mas
um tipo étnico transitório, apresentando a tendência de retornar a uma das duas raças-fonte que o
produziram ver: http://www.fflch.usp.br/sociologia/asag/Batista%20Lacerda.pdf , além do médico e antropólogo Edgar Roquete Pinto
(1884-1954), o importante sociólogo Oliveira Viana (1883-1951), e o imprescindível antropólogo Darcy
Ribeiro (1922-1997), entre outros.
246
CUNHA, Euclides, Os Sertões. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1968, p. 82
Não fazendo distinção entre a fantasia e o fato, para Euclides da Cunha, se “mestiçar”,
portanto, era sinônimo de “evoluir”. A nossa evolução biológica, diz Euclides, reclama a
garantia de evolução social. Estamos condenados à civilização. Ou progredimos, ou
desaparecemos”. (Idem, p.54). Freyre, por sua vez, justificando factualmente o estatuto
que pertence virtualmente a todas as realidades cutâneas, recorre à explicação da
mestiçagem por meio da fatual escassez de mulheres brancas na história do Brasil. De
forma semelhante o fazemos em nossa análise em relação às colônias exploratórias, e do
patriarcalismo dos primeiros portugueses aqui, para os quais a presença da mulher branca
foi secundária (isolada nos confins da casa grande e dos sobrados).

Logo, o aparecimento da “civilização brasileira”, em termos luso-brasileiros, só poderia


se constituir no aparecimento da necessidade de assentamento e criação de laços e
organizações sociais complexas que incluíam a família branca e melhor demarcação da
sempre obscura linha de cor, algo que só o final do séc. XVI e durante todo o séc. XVII o
ciclo da cana-de-açúcar possibilitou. Mas em termos genéticos, quase cem anos a partir
desse período, a mestiçagem já estava garantida como elemento constitutivo factual da
realidade brasileira. Assim, a indecisão mestiça no campo político tanto quanto no campo
estético, jamais poderia desde então, se sustentar como um fator de “aniquilação da
identidade negra brasileira” (MUNANGA, 1997, p.140 e ss.), porque, apesar de poder
compor sua própria identidade de grupo, também ela seria para sempre indecomponível
com a própria experiência afro-brasileira e quiçá, venha a ser identificada como
fundadora da experiência da afrobrasilidade, vista agora não mais como um índice
calcado neste ou naquele matiz (pele mais ou menos negra ou branca), mas na segurança
em que todos encontram ao se identificarem com o simplesmente, “mestiço”.

A filosofia do Renatex, portanto diz: o que devemos falar a partir de sempre, portanto, é
da universalidade da mestiçagem, o fato do seu melanismo global fundamental: a)
mestiço como maioria; b) mestiço como o irreversível; c) mestiço como o universal.
Assim, o ponto de apoio do estatuto do mestiço não este ou aquele povo, cultura ou
genética, mas sim é sua universalidade, seu entrecruzamento de mundos
genético-culturais; devemos então acrescentar: “é o mestiço, e, portanto, o universal”.

Se alguém necessita ainda de outros “juízes” para a definição ou identificação de quem é


ou não negro podemos nos aproveitar da análise mais ou menos isenta dos estrangeiros.
São os estrangeiros que nos dão a importante subjetividade do olhar para o estatuto do
mestiço. Essa subjetividade, por mais que seja esperada, sempre vem carregada de uma
certa carga emotiva da nossa parte. Alguns considerados brancos no Brasil são
considerados negros nos EUA, por exemplo; alguns considerados negros no movimento
negro, podem até ser considerados brancos também. Por exemplo, foi nesse sentido que
Nina Rodrigues se espantou em seu texto (As Bellas Artes dos Colonos Pretos do Brazil,
1904) quando disse que: O mulato fluminense, Felix Souza, o primeiro chá chá de Ajuda,
foi declarado officialmente pelo rei Guêso, 'o primeiro dos Brancos'. Ora, nada mais
justo, porque o Chachá Felix de Sousa (1754-1849), mestiço de negros com brancos, num
período e local aonde ter pele num tom mais claro que os outros significava não sua
“mestiçagem”, mas justamente a sua “branquitude” em relação aos demais aproveitou-se
desse privilégio e aprontou o escarcéu com os africanos - qualquer um de nós faria o
mesmo na posição de tom de pele dele. Então, nada mais justo que Ghezo o tome por
branco, já que é aculturado e até a pompa de dominador traficante de escravos ele tem, tal
qual a maioria dos brancos que lá aportaram e aportam até hoje como turistas.

Temos de cuidar para que os conflitos de miopia não se sobreponham aos interesses
artísticos assim como os conflitos de ordem econômica de gestão de financiamento
público-privado se sobrepuseram à questão da arte afro-brasileira. A exclusão do mestiço
nas artes ainda precisa ser estudada em paralelo com a falta de identificação mestiça que
nós brasileiros, brancos e negros ainda temos. Nós negros não nos identificamos como
mestiços por razões politicamente óbvias, pois ao vivermos na era racial em que o
pós-racialismo ainda não passa de uma quimera mais ou menos digna para todos, assumir
a mestiçagem para muitos significaria abrir mão da negritude. E este termo tem tantas
cargas tão amáveis, principalmente aquelas que nos fizeram tirar do jugo do homem
branco e hoje conseguirmos galgar o longo caminho que nos levará a ferro e a fogo ao
nosso reconhecimento dentro da humanidade. De modo que é inteiramente compreensível
que haja até uma maioria de negros que julgue esse abstracionismo mestiço uma balela.
Por outro lado, os brancos que viveram e vivem sob inúmeros privilégios tais como o
monopólio da beleza, a herança de determinada riqueza familiar advinda em enorme parte
de períodos escravagistas, pertencer a uma minoria que se diz e se convence como
maioria, ter entre si e sobretudo entre os outros uma condescendência racista GIGANTE
para com suas faltas e relativa venda nos olhos diante da incompetência de alguns etc.
São brancos que viveram e alguns ainda vivem não num paraíso, mas quase. Para esses, a
ideia da mestiçagem como o universal deverá parecer-lhes equivalente à loucura.

Como a capital da Bahia que já foi Capital do Brasil, Salvador, hoje tem cerca de 85% de
sua população negra, digamos que aquelas cantoras baianas brancas que aparecem na TV
algum dia toquem no assunto racial de maneira sincera e sinceramente levantem a
bandeira da mestiçagem, talvez a ponto de se casarem com homens negros ou verem com
bons olhos que suas amigas, ou amigas de amigas, filhas etc. seguiram por esse caminho
que é antigo e ao mesmo tempo considerado eternamente novo pela ideologia racista.
Digamos ainda que essas mesmas cantoras não percebessem que o mundo de privilégio
branco delas (que sempre limita a presença negra na TV, mesmo que da negra Bahia)
estariam ruindo com essa nova velha era. Ela e todos os seus adoráveis fãs que estavam
tão acostumados a ver o festival de olhos azuis na tv brasileira247 ficariam
necessariamente um tanto quanto aturdidos pensando o cômico, sem perceber: O que
aconteceu com o Brasil?

Ora, ninguém quer se livrar de um privilégio, deve-se tomá-lo ou extingui-lo. Mas como
isso tudo se dá sobretudo em ordem psíquica, não sejamos nós, os filósofos, os
antropólogos, os historiadores e os artistas que encaremos esses fatos, deixemos essa

247
Parece que ter olhos azuis ou verdes é um evidente privilégio para os atores. Se eu tivesse um filho com
olhos azuis, eu o faria ser ator, porque as chances destes neste espaço de privilégio branco é tamanha que
mesmo sendo inteiramente burro, ele pode vir a ser milionário. Como não terei filhos, muito menos com
olhos azuis, digo aos meus sobrinhos, vão jogar futebol ou serem músicos, como eu mesmo fui, essa
sempre foi quase que a “nossa única chance”.
“luta” para aqueles que trabalham a psique: esteja com os teatrólogos, a mídia,
marqueteiros, psicólogos, psiquiatras etc. a tarefa de modificar isso.

A exclusão e o isolamento do mestiço da mente dos supostos não mestiços tem


implicações devastadoras para as artes plásticas em geral e para a chamada arte
afro-brasileira em particular. Esse passo a ser dado é problemático e perigoso, porque ele
equivalente à esterilização dos mestiços ocorrido na Alemanha de 1933. Seria como
esterilizar os mestiços na arte dar razão para as cantoras baianas brancas e os atores de
olhos azuis (nada contra) de que o privilégio deles deve ser mantido a todo custo...248

Embora eu particularmente remeta a criação da chamada arte afro-brasileira ao evento da


“Mostra do Redescobrimento”, momento áureo aonde finalmente a negritude começa a
ser lembrada para além de seu gueto periférico de 13 de Maio e, posteriormente, 20 de
Novembro, poderia concordar com o primeiro historiador da arte afro-brasileira, que
nascerá no ano de 2046 que essa arte nasceu na boca daquele que primeiro evocou a
“busca do mulatismo” como cerne da arte nacional. O objetivo estrito dele, contudo,
como muitos que fizeram observações raciais nesta “antiguidade”, estava antes localizado
no posicionamento dos mulatos e posteriormente dos negros, num local de maior
prestígio. Há um ditado que diz que para tornar um pau menos torto para a direita,
deve-se força-lo de forma extrema na outra direção. Mas há outro ditado que diz, pau que
nasce torto nunca se endireita. Assim, a hipervalorização do negro haveria, portanto, de
ter um limite e um fim tal como as políticas afirmativas se se prestarem a entender, não
digo que eu pensa assim, que a arte afro-brasileira seja como que uma “política
afirmativa” (como são as cotas para negros nas universidades). Se isso for assim, os
artistas negros que também fizerem exposições fora das cotas, isto é, fora do circuito de

248
Dizem que a televisão dá aquilo que o público pede. Tenho lá minhas dúvidas, mas presenciei o amor
irracional à cantora Ivete Sangalo vindo de um amigo soteropolitano negro, ligado ao candomblé, o
Andrezinho, que de tão inexplicável chegava às raias de uma espécie de loucura. Acho que a adaptação
brasileira do fenômeno musical pop, enquanto um pastiche, talvez seja uma das forças que ainda mantenha
o privilégio branco na área da música. Haja vista que excelências artísticas vindas de negras como Daúde,
Margarete Menezes, Virgínia Rodrigues, das que tive a satisfação de assistir aos shows e outra dezena de
nomes de cantoras negras da Bahia, que eu desconheço, mas sei que também jamais serão “pop”, no sentido
que a televisão quer, isto é, sem tocar em temas “tabu”: cor, religião afro-brasileira, mulheres negras,
questões sociais ou raciais - isso não é pop porque até hoje não tinha ainda vendido produtos. Na nova era
de valorização do negro, essas coisas tendem a mudar. Quem vir ver verá.
“inclusão” ou de “condescendência”, em outros ambientes de prestígio, esses se
tornariam negros artistas sem qualificativos, mas darão uma chance à arte afro-brasileira.

A primeira inclusão determinante de artistas mestiços numa exposição com determinação


“afro-brasileira” foi a exposição “A Mão Afro-Brasileira, no MAM de São Paulo (1988).
Dezenove anos antes, a sempre impressionante Lina Bo Bardi já havia feito a “Mão do
Povo Brasileiro”, que certamente marcou Emanoel Araujo profundamente, como foi dito,
tanto em termos práticos da expografia quanto em termos teóricos, já que a 1a. dama da
arquitetura paulistana, assim como o arauto baiano já rompia com a hierarquização das
obras de arte acadêmicas das obras de arte populares, desagregava a hierarquização dos
núcleos expositivos, incluindo uso de madeira rústica, e, para citar pelo menos mais um
elemento em comum, ela já alçava voos museológicos feéricos na exposição de
instrumentos musicais, adornos, brinquedos, figuras religiosas junto com pinturas e
esculturas de variadas origens e graus de elaboração por vezes numa mesma vitrine; essa
mesma qualidade por assim dizer “mestiça” da expografia, pôde ser observada em muitas
exposições de Emanoel Araujo, incluindo o Acervo de Longa Duração do Museu Afro
Brasil – essa visão museográfica já fora chamada por nós de barroquismo de Emanoel
Araujo, e ele ainda não reclamou deste epíteto. Como no Barroco, a museografia de
Emanoel Araujo não prende o olhar, perfaz suas dobras aqui e ali de forma
não-hierárquica, aparentemente caótica, mas na verdade interimbricadas e muito
brasileira (sem aspas).

Eu estive naquela exposição do Brasil 500 anos como visitante e me reservo a dizer que
comecei a me ligar nessas coisas naquela época, mas já pressentia que aquela música
“barroca” na exposição do “barroco” sublimava a arte. Emanoel “pecou” duas vezes
nesse sentido, ao meu ver, na exposição “Universo Mágico do Barroco” na Fiesp (1999)
em que fui como visitante e oito anos depois na Exposição de arte sacra em que trabalhei
como educador: “A Divina Inspiração Sagrada e Religiosa – Sincretismos” (2007).
Dispensável talvez dizer o que eu pensei desde a exposição de 1999 e sobretudo esta de
2007, que se pretendiam de Vanguarda: ouvir música do séc. XVII vendo obras do séc.
XVIII – (eu tive de dizer um reverberado não! Nem se fosse música erudita
afro-brasileira249)! Exceto em casos raríssimos como vídeo-arte ou performance, deve-se
evitar usar a música para sublimar as artes plásticas – geralmente esse é um recurso ótimo
para excitar o gosto popular, mas considero ofensivo para ambas as artes.

Falando positivamente, do ponto de vista da abordagem cultural e histórica, como afirma


Salum (2004, p. 341) a mostra do Redescobrimento foi a primeira vez em que se
estruturou uma perspectiva cronológica e o mesmo tempo dialética na apresentação do
Módulo Arte Afro-Brasileira “assim denominado diante da ambiguidade existente entre
origem e identidade cultural, tendo como diretriz curatorial a idéia de que a arte
afro-brasileira ou 'negra', enquanto categoria conceitual, perpassa toda a arte
brasileira”. A africanista fala da eficácia que seria a inclusão da arte afro-brasileira nos
[francamente brancos] circuitos de arte do Brasil podendo inclusive servir de força
definidora da própria arte brasileira. Fato é que essa Mostra pôde representar um marco
ou uma ponte para fora dos guetos a qual esses artistas puderam finalmente cruzar. Diz
ela: procuramos nesta montagem chamar a atenção para a importância e eficácia que o
discurso sobre a arte afro-brasileira tem na definição da arte brasileira em geral.
(SALUM, 2000, 115)

Dito isso, fica evidente que seria preciso fazer uma análise do estatuto do artista branco
na esfera afro-brasileira (Carybé, Hans Bahia, Pierre Verger, Mario Cravo Jr. Tatti
Moreno, etc.), principalmente porque nenhum artista branco pôde aparecer por querer sob
o guarda sol “afro” antes da 3a. onda de valorização do negro. Que explicação seria
suficientemente satisfatória para explicar por que a presença da negritude perpassou as
duas primeiras levas a largo dos artistas brancos, enquanto que nas duas últimas se
fizeram estabelecer como modelos não só da teorização como da prática artística
afro-brasileira central?

Outra questão que nos espanta e que torna o problema ambíguo é que enquanto os artistas
brancos tornam-se modelos centrais nas últimas duas ondas de valorização institucional

249
Segundo o Maestro Marcelo Antunes, a quem sigo em gênero, número e grau, toda música erudita
brasileira relevante até o séc. XVIII era feita por negros. Logo, toda música erudita brasileira deste período
é afro-brasileira. http://www.sinfonieta.com.br/site/ (acessado em 20/12/2016)
do negro ao mesmo tempo eles são excluídos da libertação do tematismo e
consequentemente encarcerados na “arte representacional negra”. É justamente por isso
que consideramos o “artista branco” como um problemático na esfera da chamada arte
afro-brasileira já que, dentro de sua teorização, artistas como o argentino Carybé, que
sonhou o sonho de Gauguin.250 da América do Sul e o francês Pierre Verger, que esteve
de fato no Taiti em 1933, Tailândia, Camboja, Laos e Vietnã em 1938 e indo parar como
correspondente no Senegal em 1940, quando começou a sua saga negra aos 38 anos, são
ambos artistas incluídos de forma restrita à arte afro-brasileira, apenas em termos
temáticos251.

Chegamos então num paradigma participativo que podemos chamar de “modelo branco
inclusivista”, “estrangeirismo”, “amigos brancos baianos do Emanoel” ou, numa sentença:
tese do artista branco baiano perfeito: se isso for assim, para ser um artista branco no
círculo de arte afro-brasileiro seria preciso ou bem ser estrangeiro branco, isto é,
pertencer à clausula pétrea da versão tupiniquim do wasp (white anglo-saxon protestant -
branco anglo-saxão protestante, existindo aqui como “branco-judeu-candomblecista”); ou
bem é preciso ser amigo do Emanoel Araujo e gozar de outro dos inúmeros privilégios da
aqui sim dita sem aspas raça branca.

Eu já não citei aquela frase bombástica de Emanoel na exposição do filho do Mário


Cravo Neto, o fotógrafo de olhos azuis porque um baiano mestiço descendente também

250
Por uma coincidência austral, o inventor do sintetismo (Gauguin) entendia afro-brasilianamente que
arte deve, entre outras coisas, deve considerar os 'sentimentos do artista' sobre o tema que ele expõe .
251
Não percamos de vista o uso “afro-brasileiro” que se fez de outros artistas brancos do circuito
nordestino (portanto, mais palatavelmente considerado como ‘negro por natureza’, mas em função mesmo
da sua temática, adesão ou religiosidade e não por puro regionalismo ao qual a Bahia esteve e está
condenada) como Mário Cravo Jr., Hansen Bahia etc. Por causa do ufanismo tolo, uma análise do
isolamento do branco artista baiano não regionalista explicaria o porque hoje sabemos de cor quem está
namorando a Cláudia Leite, Ivete Sangalo, Daniela Mercury e mesmo quem seriam as esquecidas Sara Jane,
Cátia Guima, Renata Guerreiro, etc. E não temos a menor ideia de quem sejam Toninho de Souza (1951),
Eunibaldo Tinôco de Souza (1936-2002), Alberto José Costa Borba (o Bel Borba - 1957) e Carlito Palmeira
(1944) que é negro mas tem o “defeito dos olhos claríssimos anti-regionais em si mesmos”, entre outros.
Ver respectivamente:
http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=artistas_biografia&cd_verbete=3432&cd_idioma=
28555&cd_item=3&CFID=21649277&CFTOKEN=48117256&jsessionid=f230323e63b528c5bc6c
Dicionário dos Artistas Plásticos, de Roberto Pontual
http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,e-bel-borba-fez-a-america-imp-,945263
http://www.carlitopalmeira.com/index.html
https://pt.wikipedia.org/wiki/Categoria:Pintores_da_Bahia
de nórdicos Cristian Cravo? “Da Bahia vem este espírito solar em contraponto à sua
cerebral ascendência nórdica”252. Eu absolutamente não sei o que é ser um artista baiano
perfeito, mas quando Emanoel Araujo utilizou verbas públicas do Museu Afro Brasil para
cobrir total ou parcialmente os custos das exposições de brancos como Raul Seixas, de
Carmen Calvo (2006), Rubens Ianelli (2007), Rogélia Péres (2007 e 2016), Francisco
Brennand (2007), Dias Sardenberg (2009), Hector Bernabó (2006), Césare Pérgola
(2011), Gal Opido (2011), Frans Krajcberg (2011), Fernando Goldgaber (2011), Orlando
Azevedo (2011) Tetê de Alencar (2011), David Glat (2010 e 2011), Babinsky (2012),
Renata Amaral (2012), Evandro Teixeira (2014) Akira Cravo e as exposições dos
estrangeiros como José de Guimarães, José Balmes e Garcia Barrios (2007), Kazuhiro
Mori (2007), Uiso Alemany (2010) Hans Sylvestre (2013), Zani (2013), Regastein Rocha
(2014), Afred Weidinger (2014), Mitsunashi (2016), Christopher Rauschenberg (2010),
etc.etc.etc. Todo mundo foi mais ou menos contra, menos eu. Bom, eu também fui contra
a do Hans Sylvestre, mas vamos abafar o caso.... Já, quando ele fez a exposição da
belíssima e loura Marilyn Monroe, eu fiz questão de escrever um artigo de mais de 20
páginas a favor. Além de termos feito 3 exposições de arte portuguesa: Sangue e Água
(2012), Cartografia do poder (2014), Portugal Portugueses (2016), umas 3 exposições
sobre o Japão (ukiyo-e, entre dois mundos e uma outra de quimonos cujo nome não me
recordo); uma Espanhola Caminho de Santiago de Campostela (2008), uma Líbia do filho
do ditador Khadaf, que hoje está preso provavelmente condenado a morte. Digamos que
alguém ainda tenha dúvida quanto ao privilégio branco e não queira saber de nada disso,
de que em 12 anos o único diretor das 3 diretorias, duas das quais com alta rotatividade
do Museu Afro Brasil (destaque ao termo “afro”) só o Emanoel é negro e que dos oito
coordenadores de área de lá só um é negro...etc. Talvez ninguém queira saber que a
escrava mais conhecida do Brasil é branca e tem nome Isaura. Ninguém quer saber...

Parte do conflito hodierno para arte afro-brasileira se resume nisso: alguns artistas
afrodescendentes que querem se destacar, distanciam-se de sua identidade de negros
artistas para se “universalizarem”, dissolvendo-se na abstração que substitui o epíteto

252
http://museuafrobrasil.org.br/programacao-cultural/exposicoes/temporarias/detalhe?title=%22Christian+Cravo+%E2%80%93+Luz+%26+Sombra%E2%80%9D
“artista contemporâneo afro-brasileiro” pelo mais chique e com melhores condições de
sucesso: “artista contemporâneo brasileiro”. Por sua vez, o branco artista tido como
modelo, não precisa portanto se universalizar nem antes e nem depois, já que “arte”, já
era o que ele antes fazia, então, quando ele fora inserido no epíteto temático “afro”, ele
não só não deixou de ser “branco”, quanto também figurou entre os artistas todos como
um artista modelo - duplamente referente, uma em relação ao negro artista tematista e
outra em relação ao artista negro específico, que se quis independente, atemáticos, ou seja,
aqueles que criaram a abolição da cor de sua pele em sua arte. Como diz o Chicó de
Suassuna, “eu só sei que é assim”.

Reforçamos, contudo, que enquanto a arte abre espaço para esse tipo de imaginário, a
sociedade, afeita ao racialismo e apenas sonhando com o pós-racialismo e a eliminação
do racismo num longínquo e talvez até quimérico futuro, enquanto um sonho, esse tipo de
imaginário socialmente não passaria de uma mera fantasia artística.

Mas sejamos inteligentes como aqueles artistas que não precisaram da direção no sentido
imediatista do tematismo e recobremos um caso singular do passado: Nise da Silveira e o
artista negro (ou se quiserem mestiço) Almir Mavignier (1925), foram os criadores da
“Seção de Terapêutica Ocupacional” do Centro Psiquiátrico do Engenho de Dentro (RJ)
cujos trabalhos de alguns pacientes acabaram tendo uma influência importante na arte de
Ivan Serpa, Francisco Brennand e o próprio Almir Mavignier. O resultado prático dessa
parceria ficou bastante conhecido por todos e pode ser ainda hoje estudado a partir da
criação do Museu do Inconsciente.

Alguns daqueles pacientes eram negros, a esmagadora maioria não tinha nem passado,
nem futuro artístico, mas aquele presente, galgado pela genialidade de Nise e Mavignier,
ainda que periférico, pode dar novo fôlego para as artes brasileiras a ponto de fazer hoje
parte da história da arte do Brasil253.

253
Um pequeno documentário acadêmico conta parte da história: A psiquiatra e o artista: Nise
da Silveira e Almir Mavignier encontram as Imagens do Inconsciente (Vídeo produzido para defesa de
mestrado no Instituto de Arte por José Otávio Pompeu e Silva)- 2013
https://www.youtube.com/watch?v=hrR2x33Afe8
Nise e Mavignier
Fonte: https://toacademico.wordpress.com/tag/almir-mavignier/

Adelina Gomes (1916-1984) - uma negra com problemas psiquiátricos


tornada artista porque humana, vai à Bienal de Veneza (1981)

Cópia em gesso de modelagem em barro, 1950.


Fonte: http://www.sociedadesemear.org.br/?pg=evento&setor=cultura&cd_Agenda=266
Fernando Diniz (1918-1999) - um negro esquizofrênico
Tornado artista porque humano,
Fonte:https://blogdaboitempo.com.br/2016/03/02/desencontro-com-nise-da-silveira/

Fernando Diniz
Sem título, óleo sobre tela
38.00 x 46.00 cm,
Fonte: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa23088/fernando-diniz

Não deixarei ninguém dizer que, estando em capitais urbanas do Leste ou Oeste, em
quaisquer países do oriente ou do ocidente, da África do Norte à África do Sul, a cor não
tenha influência no meio. Sendo que o racismo moderno tentou prevenir que o estigma
pudesse ser identificado por meio de, entre outras técnicas, verificação da tez de
determinadas peles mais escuras que outras. Portanto essa coisa de que a cor é algo que
está nos olhos de quem vê é balela pós-racialista de ingênuos idealistas e sinceros não
racistas que devem rever os seus conceitos, não em relação a si ou aos outros e seus tons
de pele, mas em relação à cultura geral e suas reproduções e retroalimentações.
No evento da Pinacoteca “Olhares Sobre a Arte Afro Brasileira” (Nov/ 2016) eu comentei
que quando estive nos EUA eu comprei um livro que me agradou muito Social
Radicalims and the Arts de Donald Drew Egbert (1967). E contei também como fiquei
bastante comovido quando li, no final do texto sobre a negritude do artista plástico
brasileiro Almir Mavignier254. Em 2013, eu li com interesse as 821 páginas desse livro e,
quando já estava há umas 20 páginas do final, eu levei um pequeno susto ao ler o termo
“negro” associado ao de Mavignier.

Almir Mavignier (Mestrovic foi estimulado e ajudado por um pintor do Brasil, um Negro
chamado Almir Mavignier que de 1953 a 1958 estudou na Hochschule für Gestaltung em
Ulm, Alemanha, que desenvolveu a tradição da Bauhaus desde que abriu em 1953-54,
sob seu primeiro diretor Max Bill255.

Mavignier havia mesmo se identificado assim na época (2010), mas nesse momento eu
imaginei que ele estivesse fazendo um charme como eu sempre costumo ouvir das
pessoas brancas que sinceramente querem dizer que não são racistas: “todos nós somos
um pouco negros”; “todos temos o pezinho lá”...essas coisas... mas, era mais que
isso...Mavignier se considera negro porque é mestiço, mas eu precisei que um professor
universitário norte-americano me acordasse do meu sono dogmático e fizesse eu perceber
que enquanto nós flutuamos na nossa maionese indistinta e apolitizada, os
norte-americanos e os policiais sabem distinguir quem é ou não negro no nosso país. Pelo
menos eu pensava assim, até ler outros relatos sobre as cores dos artistas. Eu vi que esses
relatos, por mais que sejam sinceros, demostram o quanto pode ser confusa a tentativa de

254
Eu já tinha conhecido pessoalmente Mavignier na época de sua exposição “Docugrafias”, lançada no
Museu Afro Brasil no dia da consciência negra de 2010. E eu tinha podido conversar com ele sobre essa
questão racial no Brasil. Era óbvio para mim que, como a maioria dos brasileiros, o tom de pele mais
morena dele advinha de alguma herança seja indígena, mediterrânea ou afro-brasileira, confesso que nem
pensei muito nisso, porque não me surgiu o interesse. Lembro-me de duas situações que não dizem respeito
ao tema em curso, mas que me fizeram ter muito apreço pelo artista que é um verdadeiro gentleman. A
primeira lembrança que tenho dele é que ele corrigia meu alemão, palavra por palavra, de modo muito
meigo. A outra foi num almoço em que ele me contou como recebeu de presente uma boneca Akuaba (uma
boneca de Fertilidade do povo Ashanti de Gana) do colecionador Ladislas Segy nos anos de 1960.
Curiosamente, dias depois, a esposa dele disse que estava grávida de quem viria a ser o artista Delmar
Mavignier.
255
EGBERT, D.D. Social Radicalism and Arts - Western Europe. nota:130 p. 783.
tentar definir exatidões conceituais numa plataforma de arte nebulosa e que se baseie
estritamente na cor da pele de seus artistas.
De Almir Mavignier, artista pardo nascido no Rio de Janeiro em 1925, residente e bem
sucedido na vanguarda européia, nada nos permite um diagnóstico de origem.
(VALLADARES, 1968, P.106)

E outro:
Mavignier [a vida o carregou para] a Alemanha, onde se acha radicado e talvez hoje mais
remotamente brasileiro que alemão por sua gradativa aculturação germânica. (ARACY,
A. 2010, p.10)

São falas que redundam na imensidão da ideologia que impõe ao artista negro uma
origem, uma referência localizada regionalmente ou na tez de sua pele. Esse é um dos
casos sutis de racismos pelos quais todos presenciamos e manifestamos desigualmente,
mas que também mais ou menos nos identifica. Seria minha amada artista mineira branca
Mary Vieira (1927-2001), que viveu 50 anos na Suíça até morrer, chegando lá novinha
aos 24 anos para estudar com Max Bill, “uma remotamente brasileira”? Não seriam as
curvas e principalmente os movimentos daqueles “polivolumes” um “brasileirismo”
introduzido na cruel e rigorosa escola de Ulm?

Meu caso de “engano” em relação à auto-identificação negra de Almir Mavignier


demonstra que nós brasileiros não nos livramos dessa nébula identificatória quando
tratamos de pessoas mestiças. Acrescente-se ainda artistas brancos que reelaboram esses
conteúdos em suas obras, como o artista carioca Ronaldo Rêgo, envolvido com os cultos
de Umbanda. (BARROS, J. 2008, p.100) Tanto Ronaldo, o fenômeno, quanto Neymar
(entrevista ao jornal Estadão, abril de 2010) e assim como a maioria dos jogadores de
futebol e outros brasileiros mestiços distantes das noções políticas raciais declaram-se
branco. Curiosamente, porém, segundo o Datafolha 64% dos brasileiros consideram
Ronaldo preto ou pardo, igualmente Zeca Pagodinho, quando inquerido a respeito da
pesquisa indicar que para 52% ele era considerado pardo e 22% o consideraram negro,
ele respondeu: Eu sou gente...Eu não vivo esse mundo de cores...Eu sei o que é o
preconceito (...) Ainda afeito à noção esquizóide do mulato com véu de maia para o
próprio espelho O artista foi então informado pela Folha de que sócios de um dos clubes
mais exclusivos de São Paulo iniciaram movimento contra show dele, programado para
ocorrer em um salão nobre. Zeca tentou uma explicação: “Eu sei o que é o preconceito.
Embora eu não tenha cor, sou sambista e do subúrbio. Quer dizer: sou preto”..256

É realmente muito confuso quando percebemos que aquele que consideramos negros são
considerados brancos para alguns e considerado pardo para outros. Além do aspecto
visual da obra, às vezes a associação é suficiente para merecer a inclusão na categoria
de arte afro-brasileira. Esse é o caso de Ronaldo Rego, um artista branco (SIC) e pai de
santo na religião afro-influenciada da Umbanda. (CLEVELAND, K., 2013, p. 14). Nessa
mesma linha, a autora indica que, juntamente com Rosana Paulino, Yêdamaria e Maria
Lídia Magliani, a artista plástica Eneida Sanches é uma das uma das poucas artistas
negras (SIC) mulheres a serem capazes financeiramente de se dedicarem exclusivamente
ou mesmo principalmente para a produção de seu trabalho. (Idem, p.37)

Paradoxalmente o fim dessa confusão na minha cabeça se deu quando eu fui visitar
exposição “Adornos do Brasil Indígena: resistências contemporâneas” no
SESC-Pinheiros. Logo na parede à direita quando estamos de frente para a rampa de
entrada podíamos ver grandes grafites do artista visual (negro?) Nunca (Francisco
Rodrigues da Silva). Eu o conheci numa exposição do Museu Afro Brasil chamada
“Territórios” ele me chamou a atenção pela beleza e também porque se parecia com um
amigo meu da USP, um moçambicano que apelidamos Beto Moçambique. Como se
aquele enorme mural afro-indígena não bastasse, para quem viesse dos elevadores do hall
direto ao segundo andar, daria de cara, no “fim” da exposição de arte indígena, algumas
fotografias do (negro?) Paulo Nazareth (MG, 1977). Negro aqui eu coloquei em
interrogação mais por falta de outros marcadores mais precisos, porque (só por
sacanagem) quando fazemos uma pesquisa do seu nome no google uma das primeiras
páginas (Wikipédia) indica que sua avó era índia e talvez por causa de seu trabalho de

256
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/especial/fj2311200827.htm
http://globoesporte.globo.com/platb/marvio-dos-anjos/2014/05/01/neymar-nao-se-acha-negro-canalhice-ou-desinformacao/
2013 na Décima segunda Bienal de Lyon na qual se destacou com seu trabalho “Cadernos
de África”, a participação em “Territórios” na Pinacoteca, a mais significativa e talvez
sua participação no ambíguo afrotranscendence.257

Então tudo ficou mais, literalmente claro para mim. Eu estava velho aos 40 anos e meus
referenciais teóricos era de um velho que não entendia os antigos critérios que aprendi
nas aulas com Kabengele Munanga de que “minha identidade é negra”, já não mais valia
para as novas gerações...Foi assim que, em entrevista à pesquisadora Kimberly Cleveland
Ayrson Heráclito pós-modernamente se definiu, de forma semelhante como o fez Paulo
Nazareth:

“I define myself as Afro, Ítalo, Brazilian aboriginal, Lusitanian. I’m a mixture. In Europe,
people think I’m Tunisian. I think it’s great! ”258

Ao mesmo tempo com boom econômico produzido pela civilização do açúcar e do ouro,
respectivamente nos séculos XVII e XVIII, a quase ausência de mulheres brancas em
períodos anteriores, a derrocada final a partir do senso 2010 da política de branqueamento
e incluindo as novas levas de imigrantes não europeus, sobretudo africanos e bolivianos,
o estatuto do mestiço implicaria na salvação e na derrocada da arte afro-brasileira. Quero

257
Um dos vídeos, produzidos pela minha jovem e querida amiga Hana, pode ser visto aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=aFA5A21E6HA&t=3s
Eu entendo bem os interesses imagéticos e sem objeto da geração “y” que declararam (não sem razão) uma
guerra total à palavra escrita e ao sentido lógico das construções mentais. De qualquer maneira, este foi um
tipo de projeto de 5a. onda, que na minha geração, quando íamos tomar chá de cogumelo nas cachoeiras,
chamávamos carinhosamente de “viagem astral”. Embora assistir a aqueles vídeos não foi exatamente o que
me fez sentir saudades de ser jovem. Prefiro mais os vídeos em que eu aparecia apanhando da polícia
militar (sim, aquele policial o Rambo, se é que eu o reconheci, já me deu uns bons tapas na cara e me
colocou no chilindró por umas 2 intermináveis horas, em 1995, junto com amigos, alunos universitários,
professores de filosofia de colégio que éramos, então - quando ele me deu o primeiro tapa eu o xinguei por
dentro, mas o perdoei imediatamente, pois estávamos mesmo com o bagulho! E, afinal, naqueles dias era
“olho-por-olho, dente por dente”...sabíamos das regras... e regras são regras: “que diabo é isso de professor
de filosofia preto, cara? ”disse o policial antes e depois de algumas bofetadas. Eles roubaram o toca-fitas de
um amigo e todo do pouco dinheiro que tínhamos no bolso - qualquer dia eu lhes conto essa história que é
uma verdadeira “afro-trans-sem-dente”). Mas parece que, com efeitos alucinógenos semelhantes, a geração
“y” prefere o facebook às drogas; como diria o meu preto avô Benedito Bento (nascido em Cambuí, em
1907): uns gostam dos olhos, outros da remela. Fazer o quê?
258
Hesitei porque em inglês fica mais bonito, mas lá vai: “Eu me defino como Afro, Ítalo, indígena
brasileiro, Lusitano. Eu sou uma mistura. Na Europa, as pessoas acham que eu sou Tunisiano. Eu acho
ótimo! (Entrevista de 24 de Maio de 2009. CLEVELAND, 2013, p.123)
dizer que, se por um lado, a transformação do elemento branco em minoria (alçados ao
status de “etnia” e que em muito breve terá seus pedidos de reivindicação falados e
ouvidos) provocasse a derrocada da arte afro-brasileira, isso teria um efeito negativo,
porque mesmo enquanto uma arte de maioria, esta arte ainda se manteria dentro do status
quo como uma forma de conquista de benefícios de inserção ou benesses de uma elite;
mais do que uma forma de reconhecimento de uma realidade do Brasil.

Por outro lado, a transformação do elemento negro em maioria (perdido o status “étnico”,
mesmo sem ver diminuir tanto os seus espaços reivindicativos por causa da persistência
inevitável do racismo) a derrocada da arte afro-brasileira apareceria como o fim da
percepção dela enquanto um nicho de mercado. Isso tudo se deve e se deverá à amplitude
da mestiçagem. Além de todo valor que ela congrega de criadora da nacionalidade (quiçá
universalidade), congregadora dos prismas das cores de pele e outras texturas fenotípicas,
em suma síntese da Arte do Brasil - a mestiçagem pode ajudar a pôr um fim nos
qualificativos artísticos que se posicionaram como uma forma de reação, mas que tem
muito pouco ou mesmo nada a ver com arte259.

Todavia, não podemos pensar no futuro sem uma bola de cristal. Então, quais espaços
existem hoje para as produções de negros artistas que não estejam associados a um
ativismo ou a uma ideia de “África”? Seriam todos esses conflitos assim tão difíceis de se
conceber a ponto de nossa sensibilidade tornar-se tão embotada que não nos
convencemos mais nem pela “matemática da coisa”? Por exemplo, acompanhem meu
raciocínio: você é mais ou menos branco, mais ou menos negro, estou certo? Pois bem,
estando no Brasil, sua família sendo antiga, isto é, tendo vindo ao Brasil até o final do
século XIX, ou seja, com cinco ou seis gerações passadas no Brasil as chances de uma
herança familiar da negritude aumentam em muito.

259
O poeta Ferreira Gullar, que faleceu há alguns dias atrás, escreveu em 2000, no mesmo ano do
“nascimento da arte afro-brasileira” no módulo da mostra do redescobrimento: Acho difícil entender o que
pode significar "arte mestiça". Ninguém discorda de que o povo brasileiro é de raça mestiça, mas mesmo
que isso aconteça, a idéia de que suas criações artísticas sejam também "mestiças" parece ser um
argumento que pode ser lógico, mas não é verificável na prática. (GULLAR, F., An Overview of Brazilian
Art. Diogenes, Oxford (UK); Maiden (US): Blackwell Publishers. no. 191, Vol. 48/2, 2000).
Considerando que 87% dos brasileiros apresentam pelo menos 10% de origem comum
africana, demonstrando que, por seu alto grau de miscigenação na proporção do
parentesco em que a ascendência pode ser medida proporcionalmente ao número de 4
avós (paternos e maternos), 16 tataravós, 32 tatataravós e outros 64, 128.... Ancestrais em
comum é virtualmente impossível que alguns deles não sejam negros.

Obviamente, esse exemplo vale à exclusão de alguns poucos dos imigrantes europeus
após 1830, frutos da política do embranquecimento e que permaneceram em suas
colônias, sem se misturar, e ainda alguns poucos povos indígenas isolados e por isso
mesmo resistiram ainda ao extermínio e/ou a aculturação e miscigenação.

Munanga, em sua tese de livre docência evidencia que o estatuto do mestiço é dependente
de diversas conotações sociológicas a ele imposta que redundam em inúmeras
formatações ideológicas. É claro que assim como ocorre com todos os outros tons de pele,
que aparecem no espectro de cores da sociedade como espécies de “carapuças (por que
não dizer “arapucas”?) cutâneas” (esse termo é meu) as formas ideológicas impostas
também a estes são formas definidoras de sua posição na sociedade estamentária. Mas o
artista mestiço que faz arte afro-brasileira, enquadrado ou contido no universo negro tem
para si a responsabilidade de se livrar das imposições ideológicas sobre si; apenas quando
brancos, negros e mestiços forem desembaraçados dessas ideologias sobre eles seria
possível o estabelecimento analítico de suas posturas e lugares sociais. Diz Munanga: A
mestiçagem não pode ser concebida apenas como um fenômeno estritamente biológico,
isto é, um fluxo de genes entre populações originalmente diferentes. Seu conteúdo é de
fato afetado pelas ideias que se fazem dos indivíduos que compõem essas populações e
pelos comportamentos supostamente adotados por eles em função dessas ideias. A noção
de mestiçagem, cujo uso é ao mesmo tempo científico e popular está saturada de
ideologia. Por isso, seria importante, antes de qualquer análise, deixar claras as diversas
conotações. (MUNANGA, 1997, p. 13)

Como eu sou psíquica e socialmente mais concretamente negro que abstratamente


mestiço eu deixo o comentário para alguém que se descobriu mestiço, mais ou menos
recentemente, já que enquanto escritor fez algumas referências à escravidão e à questão
racial (sua primeira esposa, Ruth Cardoso, na juventude estudou a família japonesa - eu
próprio a ouvi falar disso num evento no Paraná, o que me trouxe interesse de ler sua
dissertação posteriormente, muito boa por sinal) e enquanto presidente não se recordou de
fazer alguma política pública racial que “brancos” que vieram depois dele, como o Lula e
a Dilma o fizeram.

Palavras do ex-Presidente

A esse respeito, uma pequena história conclusiva: o papa João Paulo II visitou o Brasil
quando eu ainda exercia a presidência. Ao chegar ao aeroporto do Galeão, no Rio, onde
fui recebê-lo, ajudei-o a impedir que a brisa constante levasse do púlpito as páginas de
um primoroso discurso. Nele, o Santo Padre fustigava tudo que fosse discriminação e
desprezo pelos indígenas e pelo direito que têm ao uso de suas terras. No dia seguinte
tive o prazer de receber o papa no Palácio das Laranjeiras. Antes de o levar à presença
de dezenas de convidados, recebi-o só com meus familiares e, em amável conversa,
houve referência a seu discurso. Elogiei-o só pois era uma página em defesa dos direitos
humanos, mas ponderei que no Brasil a questão mais numerosa, embora nessa matéria
não se deva contar por números, era a questão dos negros e seus decendentes, posto que
cerca de metade da população é composta por estes. Para ser mais convincente, tomei as
mãos do Santo Padre e aproximei as minhas das suas. Perguntei-lhe, fazendo-o olhá-las:
o senhor é branco, alvísismo, disse. Acredita que minha pele seja igual à sua? Não foi
preciso ouvir a resposta. Um sorriso bondoso anuiu com o significado do que eu queria
transmitir-lhe. De um jeito ou de outro, somos todos mestiços, senão de sangue, de alma.
(Fernando Henrique Cardoso, in: ARAUJO, E. A Mão Afro-Brasileira. São Paulo: 2ed.
Imprensa Oficial: Museu Afro Brasil, 2010. p.11)
Principais Coleções “Afro-Brasileiras”
(Dispersas, extintas ou renomeadas)260

* Coleção Perseverança de Alagoas


Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas
920, Rua do Sol, 382 - Centro, Maceió

* Feira de São Joaquim


Calçada, Salvador - BA,
http://www.saojoaquim.sc.gov.br/

* Museu Cafuá das Mercês (Museu do Negro) - Museu Histórico e Artístico do Maranhão
Rua Jacinto Maia,54 – Bairro Praia Grande São Luis, Maranhão
http://www.cultura.ma.gov.br/portal/mham/index.php?page=mcafuam

*Fundação Gilberto Freyre


R. Dois Irmãos, 320 - Apipucos, Recife - PE
https://www.facebook.com/fundacao.gilbertofreyre/

*Fundação Instituto Feminino da Bahia


R. Politeama, 2 - Politeama, Salvador - BA,
http://www.institutofeminino.org.br/home/index.php

* Fundação Museu Carlos Costa Pinto


Av. 7 de Setembro, 389/391
Salvador - BA

* Museu Afro Brasil


Avenida Pedro Álvares Cabral, Portão 10, s/n - Parque Ibirapuera, São Paulo. Avenida
Pedro Álvares Cabral, Portão 10, s/n - Parque Ibirapuera, São Paulo.
http://www.museuafrobrasil.org.br/

*Museu do Percurso do Negro, Porto Alegre – RS (obras públicas)

260
Esta é uma lista não exaustiva cujas referências foram atualizadas a partir de
(CARNEIRO DA CUNHA, 1983, p.1032). O objetivo de incluir na listagem coleções e
espaços museológicos que já foram dispersados é contribuir para a análise da
ausência/presença de coleções ligadas a seu modo à África e que sofrem descontinuidade,
redefinições e descalabro público. Por outro lado, a lista pretende ainda chamar a atenção
para aquelas instituições que podem vir a abrigar a exposição, pesquisa e extensão das
chamadas artes africana e afro-brasileira. Notadamente, os centro culturais e instituições
de pesquisa e de fomento que possuem o espaço de sua sede razoavelmente grande, pelo
movimento das ondas de valorização e pelas promessas de participação em editais,
tendem a seguir os passos dos museus já instituídos formando não só espaços expositivos
como até mesmo acervos - a análise crítica com relação à aquelas instituições que
abarcam objetos sem valor museológicos deve ser permanentemente mantida.
Mercado Público, Chalé da Praça XV, Praça da Alfândega, entre outras em Porto Alegre.

*Museu Afro-Brasileiro de Salvador (UFBA)


Praça Ramos de Queirós, s/n - Largo do Terreiro de Jesus, Salvador - BA
http://www.mafro.ceao.ufba.br/
https://pt.wikipedia.org/wiki/Museu_Afro-Brasileiro

*Muncab - Museu Nacional de Cultura Afro Brasileira


Rua do tesouro S/N Salvador
https://www.facebook.com/muncab

*Museu Afro-Brasileiro de Sergipe


R. José do Prado Franco, 380, Laranjeiras - SE
http://itabi.infonet.com.br/museusemsergipe/modules/sections/index.php?op=viewarticle
&artid=10

*Museu Arthur Ramos da universidade Federal do Ceará


Fortaleza - CE
Avenida Professor Artur Ramos 195, Pilar, Alagoas
http://www.ufal.edu.br/extensao/equipamentos-culturais/museus/museu-theo-brandao
http://culturadigital.br/arthurramos/

*Museu Câmara Cascudo - UFRN


Av. Hermes da Fonseca, 1398 - Piró, Natal - RN
http://mcc.ufrn.br/

* Museu da discoteca da biblioteca da lapa (atual Biblioteca Mário Schenberg)


Rua do Catão, 611
São Paulo - SP

* Museu da Polícia
Maceió - AL

* Museu de Arqueologia e Etnologia da USP


Cidade Universitária
São Paulo - SP

* Museu do Estado de Pernambuco


Av. Rui Barbosa, 960 - Graças, Recife - PE
http://www.museudoestadope.com.br/

*Museu de Folclore Edison Carneiro


Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular
Rua do Catete, 179
Catete - Rio de Janeiro (RJ)
http://www.cnfcp.gov.br/interna.php?ID_Secao=2
*Museu do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia
Av. 7 de Setembro, 94
Salvador Bahia

* Museu do Instituto Histórico de Alagoas


Rua João Pessoa, 382
Maceió - Al
http://ihgal.com.br/

* Museu do Homem do Nordeste


Av. Dezessete de Agosto, 2187 - Casa Forte, Recife - PE
http://www.fundaj.gov.br/index.php?option=com_content&id=250&Itemid=238

*Museu Estácio de Lima do Instituto Nina Rodrigues


Rua: Alfredo Brito
Salvador - BA

* Museu Histórico e Artístico Maranhão


R. do Sol, 302 - Centro, São Luís - MA
http://www.cultura.ma.gov.br/portal/mham/

*Parque Memorial Quilombo dos Palmares


Serra da Barriga, Km 9 - União dos Palmares - AL
www.palmares.gov.br

*Museu Imperial de Petrópolis


Av. 7 de Setembro, 94 e 220
Petrópolis - RJ

*Museu Senzala Negro Liberto


Redenção - CE
http://museu-senzala.blogspot.com.br/ (não oficial)

* Museu Nacional
Quinta da Boa Vista - São Cristóvão, Rio de Janeiro - RJ,
http://www.museunacional.ufrj.br/

*Museu Treze de Maio


Rua Silva Jardim, 1407 Bairro Nossa Senhora do Rosário Santa Maria - RS
http://museutrezedemaio.com.br/

*Museu Nacional de Belas Artes


Av. Rio Branco, 199 - Centro, Rio de Janeiro - RJ
http://www.mnba.gov.br/portal/
*Memorial dos Pretos Novos
Rua Pedro Ernesto, 34 e 32 - Gamboa
https://www.facebook.com/ipn.museumemorial

*Museu Paraense Emílio Goeldi


(Coleção de Angola)
Av. Independência, 364 (atual: Av. Gov. Magalhães Barata, 376 - São Bráz, Belém - PA)
http://www.museu-goeldi.br/portal/

* Associação Cultural Cachoeira


Rua Monte Alegre, 1.094.
Rua Bartira, 347
Perdizes. São Paulo. SP
http://www.cachuera.org.br/cachuerav02/

*Casa das Áfricas


Rua Harmonia, 1150 - Sumarezinho
http://www.casadasafricas.org.br/

*IPEAFRO – Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros


Rua Benjamin Constant, 55/ 1101 - Glória, Rio de Janeiro
http://ipeafro.org.br/

* CEAO - Centro de Estudos Afro-Orientais - UFBA


Praça Gen. Inocêncio Galvão, 42 - Dois de Julho, Salvador
http://www.ceao.ufba.br/

*Centro de Culturas Populares e Identitárias


Praça José de Alencar, nº 12, Largo do Pelourinho
http://www.centrodeculturas.ba.gov.br/

*Centro Cultural Solar Ferrão


R. Maciel de Baixo, 43 - Pelourinho, Salvador
https://dimusbahia.wordpress.com/solar-ferrao/

* Coleção Museu de Magia Negra (Museu da Polícia Civil do Estado do RJ)


Também chamado "Museu da Magia" ou "Museu Mefistofélico"
Centro, Rio de Janeiro
http://www.policiacivil.rj.gov.br/museu/
https://www.facebook.com/pg/policiacivil.museu.rj/about/?ref=page_internal

*Espaço Mario Cravo Parque das Esculturas


Rua Antonio Manoel Galvão, s/n Ed. Portal, Espaço Mario Cravo, Parque de
Pituaçu-Orla Marítima Patamares Salvador
http://espacomariocravofmc.blogspot.com.br/

*Instituto de Artesanato Visconde de Mauá


Av. Oceânica, 36 - Barra, Salvador
(será provavelmente extinto e construída a "Coordenação de Fomento ao Artesanato"

*Casa de Memória Daniel Pereira de Mattos


Rua São Sebastião, 524
Vila Ivonete - Rio Branco - Acre
http://museus.cultura.gov.br/espaco/7014/

*Museu Lasar Segall


Rua: Berta, 111 - São Paulo
http://www.museusegall.org.br/

*Museu Histórico e Artístico Maranhão


R. do Sol, 302 - Centro, São Luís - MA
http://www.cultura.ma.gov.br/portal/mham/

*Museu de Artes e Ofícios


Praça Rui Barbosa 600 Centro, Belo Horizonte-MG
http://www.mao.org.br/

*Museu Mineiro
Av. João Pinheiro, 342 - Centro
http://www.museumineiro.mg.gov.br/

*Museu Aleijadinho
Rua Bernardo Vasconcelos 40. Ouro Preto - MG
http://www.museualeijadinho.com.br/

*Museu de Arte e Oficio de Itabirito


Rua do Rosário, nº 04 Bairro Boa Viagem, Itabirito
https://www.facebook.com/pages/Museu-de-Arte-e-Of%C3%ADcio-de-Itabirito/1580868
608901190

* Museu Intercontinental ÁfricaBrasil - São Matheus ES


Porto- Ladeira São Gonçalo, 7 São Mateus (Espírito Santo)
https://www.facebook.com/africabrasilmuseu/
Museus Terreiros261
*Axé Ilê Oba
Rua Azor Silva, 77
Jabaquara - São Paulo, SP
http://www.axeileoba.com.br/

*Centro Cultural do Candomblé Pai Toninho de Xangô


São Paulo - Rua do Bosque, 246 - Barra Funda
Recife: Av. Pernambuco, 788 Ibura Ur1 - Recife - Pernambuco
http://www.paitoninhodexango.com.br/site/index.php/o-centro.html

* Museu Ilê Ohun Lailai (Ilê Axé Apô Afonjá)


Rua Direita de São Gonçalo do Retiro, 557 – Cabula. Salvador
https://www.flickr.com/photos/secultba/sets/72157625808627226/

*Terreiro Pilão de Prata


Rua Tomás Gonzaga 298 – Boca do Rio

Memoriais

*Centro Cultural Africano


Rua Anhanguera, 551 - Piratininga
http://www.centroculturalafricano.org.br/

*Memorial Kisimbiê Terreiro Mokambo


Rua Heide Carneiro, nº 89, Vila Dois de Julho, Paralela. Salvador
http://terreiromokambo.org.br/

261
O conceito de Museus Terreiros é recente e, portanto, ainda não foi estudado. Não sabemos aonde isso
vai dar e as conclusões práticas da ausência efetiva de acervos museológicos dignos de nota e de
profissionais de conservação e pesquisa também são evidentes empecilhos para que se estabeleçam como
instituições museológicas. Que as instituições listadas sirvam de esboço, haja vista que não é de nosso
interesse fazer uma busca sistemática por essas instituições. Por outro lado, não podemos ser
suficientemente hipócritas para exclui-las do rol das instituições que valorizam a afrobrasilidade e nem
supor que algum dia esses Museus-Terreiros não se enquadrem dentro do espectro dos Memoriais e dos
Museus-Casa, que já começaram ser a estudados. Parece-me que a participação dos Institutos de
Patrimônios Estaduais e Federais tem tido algum papel centralizador ou financiador dessas iniciativas ainda
muito recentes para se formar algum juízo. Para uma listagem mais exaustiva, por favor, ver: livro do
IBRAM: MIRANDA, R.M. de. Guia dos Museus Brasileiros. Ministério da Cultura; IBRAM, Brasília,
2011. Disponível em: http://www.museus.gov.br/wp-content/uploads/2011/05/gmb_norte.pdf Acesso:
29-12-2016.
* Memorial das Baianas do Acarajé
Rua do Açouguinho, 8 - 1º andar, Pelourinho Salvador
https://www.facebook.com/pg/ABAM-Associa%C3%A7%C3%A3o-Nacional-das-Baianas-de-Acaraj%C3
%A9-181638245253165/photos/?tab=album&album_id=216866841730305

*Memorial Lajoumim, Terreiro Pilão de Prata


Rua Thomaz Gonzaga, nº 298, Alto do Achundé, Estrada do Curralinho, Boca do Rio
http://museus.cultura.gov.br/espaco/6816/

*Museu Comunitário Mãe Mirinha do Portão


Rua Queira Deus, nº 78,
https://www.facebook.com/nossosancestrais/posts/781170838629451

*Casa-Museu Solar Santo Antônio


Rua Direita de Santo Antonio, 177 - Santo Antônio Além do Carmo, Salvador
http://dimitriganzelevitch.blogspot.com.br/p/solar-santo-antonio.html

*Casa De Angola
Praça dos Veteranos - Centro, Salvador - BA
http://www.casadeangolanabahia.com.br/

* Museu Capixaba do Negro (MUCANE)


Espaço provisório: localizado na Rua Graciano Neves, 191, Centro, Vitória - ES.
http://museucapixabadonegro.blogspot.com.br/

*Fundação Casa de Jorge Amado


Largo do Pelourinho, 51 - Pelourinho, Salvador
http://www.jorgeamado.org.br/

Museu da Abolição
Rua Benfica, 1150 – Madalena. Recife
http://museudaabolicao.museus.gov.br/

*Museu do Homem do Nordeste


Av. Dezessete de Agosto, 2187 - Casa Forte, Recife - PE
http://www.fundaj.gov.br/index.php?option=com_content&id=250&Itemid=238

*Museu do Homem Sergipano


R. Estancia, 228 - Centro, Aracaju - SE
http://muhse.ufs.br/pagina/149

*Museu Lasar Segall


Rua: Berta, 111 - São Paulo
http://www.museusegall.org.br/

*Museu Arthur Ramos


Av. Washington Soares, 6055 - Messejana, Fortaleza - CE,
http://culturadigital.br/arthurramos/

*Museu Théo Brandão


Av. da Paz, 1490, Centro, Maceió - Alagoas
http://www.ufal.edu.br/extensao/equipamentos-culturais/museus/museu-theo-brandao

*Museu Hansen Bahia


R. Treze de Maio, 197-373, Cachoeira - BA
http://www.hansenbahia.com.br/

*Museu da Ordem Terceira do Carmo


Praça da Aclamação, s/nº – Centro
http://bahia.com.br/outros_servicos/museu-da-ordem-terceira-do-carmo/

*Museu Regional de Arte


R. Conselheiro Franco, 66
http://www.mra.uefs.br/

*Museu Regional de Caeté


Rua Israel Pinheiro, 176, Centro
http://www.apontador.com.br/local/mg/caete/museus/C40687681F455O4559/museu_regi
onal_de_caete.html

*Museu Casa do Sertão


Universidade Estadual de Feira de Santana
Av. Transnordestina, BR-116, km 03, s/n - Novo Horizonte, Feira de Santana - BA
http://www1.uefs.br/sertao/

*Museu do Oratório
Adro da Igreja do Carmo, 28, Centro
http://museudooratorio.org.br/

*Galeria de Arte Carlo Barbosa


Rua Conselheiro Franco, 66 - Centro, Feira de Santana - BA
https://www.facebook.com/GaleriaCarloBarbosa/

*Museu Regional do São Francisco


R. Américo Alves - Centro, Juazeiro - BA
http://museus.cultura.gov.br/espaco/9057/

*Fundação Casa de Jorge Amado (de frente para o largo do pelourinho)


Casa do Rio Vermelho
R. Alagoinhas, 33 - Rio Vermelho, Salvador - BA
http://casadoriovermelho.com.br/

*Cepaia - Centro de Estudos Afro-Indígenas Americanas


Largo Do Carmo, 0, Barbalho. Salvador - BA
http://cepaia.webnode.pt/pagina-inicial/

Digitais

* Museu Afro Digital (Rio de Janeiro)


http://www.museuafrorio.uerj.br/

* Museu Afro Digital (Maranhão)


http://www.museuafro.ufma.br/site/

*Museu Afro Digital (Bahia)


http://www.museuafrodigital.ufba.br/

* Museu Afrodigital (Mato Grosso)


http://www.fundaj.gov.br/index.php?option=com_content&id=250&Itemid=238

*Museu Afro Digital - Estação Portugal


https://museudigitalafroportugues.wordpress.com/

Entre outros...

Temos ainda auxiliado ao longo deste ano de 2016 e continuaremos no próximo ano de
2017 no apoio técnico ao projeto de criação de um museu no Quilombo Ivaporanduva.

Historicamente, existiram também, do meu conhecimento pelo menos três propostas de


criação de museus relacionados ao tema Arte Afro-Brasileira, mas que não obtiveram
sucesso:

1) Mário pedrosa (Museu do Negro - 1978) com características precisamente ligadas não
à arte afro-brasileira, como a supomos hoje, com artistas plásticos e suas obras
individuais calcadas na arte contemporânea, mas sim seria um museu com um Acervo a
se constituir a partir de peças trazidas da Africa e das criadas aqui no Brasil,
principalmente nos cultos religiosos, onde são usadas262

2) Abdias do nascimento (Museu de Arte Negra263, formulado a partir de 1950264) - uma


proposta bastante interessante e que se tivesse vingado talvez pudesse congregar ideias
interessantes do ponto de vista político, algo que falta aos museus relacionados à
temáticas africanas e afro-brasileiras abertos hoje.
Nascimento elenca algumas obras que fariam parte de seu acervo pessoal e que seriam a
primeira base do museu: (coloquei em negrito os artistas com obras no Museu Afro Brasil
de hoje)

(...)uma cabeça de Agnaldo dos Santos, um painel de Júlia Van Roger, o Cristo
Favelado de Otávio Araújo, os Omulus, de Cleoo, a capoeira, de Lúcia Fraga, a
Lugudedé, de Manoel Bonlim, o Exu de Aldemir Martins, o Rei Negro, de José Barbosa,
a casa vermelha, de José de Dome, a favela, de Lara, as crianças brincando, de Agenor,
o casamento, de Nilza Benes, a via sacra, de Zu, as estrélas, de Lilo Cavalcanti, soltando
balões, de Heitor dos Prazeres. Obras de Maria Albuquerque, de Roberto, Gildemberg,
Elsa, Holmes, Estevão, Juarez Paraíso, Emanuel Araújo, J. Tarcisio, João Alves, Gérson,
Solano Trindade, A. Maia, Darcílio e muitos outros que a falta de espaço obriga
omitir266.

262
Mário Pedrosa: Proposta de criação do “Museu das Origens” fls 2. Disponível em:
http://acervo.memorialage.com.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/1800/RG-0305.pdf
263
Abdias lançou as bases teóricas para este museu num artigo que o considerava “uma resultante da teoria
da negritude” NASCIMENTO, Abdias. “Cultura e estética no Museu de Arte Negra.”GAM: Galeria de
Arte Moderna (Rio de Janeiro, Brazil), no. 14, 1968, p. 21.
264
http://ipeafro.org.br/acoes/acervo-ipeafro/secao-man/
266
(NASCIMENTO, A., 1968, p. 21).
Agnaldo dos Santos - Cabeça de Animal
Fonte: (NASCIMENTO, A., 1968, p. 21)

Exposição “Ocupação Abdias do Nascimento” (Itaú Cultural) - 2016/17


Fonte: http://ipeafro.org.br/

Atenção aos desejos de Abdias do Nascimento porque podem ser úteis a quaisquer
museus, negros ou não:

Não é e não será o Museu de Arte Negra um órgão de acumulação ou depósito de um


arquivo morto. Sob o critério da seleção estética, informado de Negritude, mas,
fundamentalmente sujeito às imposições do humanismo, o MAM não se limitará ao
campo exclusivo das artes plásticas. Será instrumento de pesquisas no amplo e vasto
universo cultural afro-brasileiro. Aberto a tôdas as colaborações, desdenhará, entretanto,
a incompreensão surda e muda dos conselhos de cultura, esterilizado na burocracia,
prematuramente fenecidos no seu academismo original, ignorando que o típico, o
autêntico, o significativo e especifico da arte brasileira vem, indubitàvelmente da emoção,
da sensibilidade do negro traduzidas em sua manifestação viva de arte, nos seus
produtos culturais e estéticos densos de fascinação e amor. (NASCIMENTO, A., 1968, p.
21)

3) Marta Suplicy/Agnelo Queiroz e Fundação Palmares (Museu da Memória


Afrodescendente). Marta Suplicy esteve no Museu Afro Brasil como ministra da Cultura
da Dilma Roussef durante o lançamento de um projeto de fomento a produtores negros no
dia 21 de novembro de 2012. Nesta ocasião, presenciamos ela convidar Emanoel Araujo
a montar um “Museu da Memória Afrodescendente” em Brasília. Eu não conheço muito
os meandros da criação desse museu, apenas sei que quando o Mandela era Presidente da
África do Sul e esteve em visita ao Brasil, acho que em 1993, foi feita uma doação para
criação desse museu, mas eu só soube disso em 2011 e lembro-me de ter ficado muito
feliz na época, imaginando que de fato isso iria ocorrer. Eu tinha uma grande amiga
indiana com casa em Brasília e até cogitei a ideia de que seria interessante trabalhar lá
neste novo museu em formação - começar um museu do zero é sempre muito
emocionante e eu queria correr esse risco na época. O fato foi que, soube depois, esse
museu não teria acervo, seria um Museu Virtual.... Eu não sabia o que isso significava até
que ocorreu o incêndio do Museu de Língua Portuguesa e eu entrei em estado de choque
pensando em primeiro lugar nas pessoas que trabalhavam lá e em segundo, justamente,
no acervo. Quando, dois dias depois soube que a maior parte do acervo não se passava de
plotagens e arquivos digitais e que o museu poderia ser reconstituído sem danos, eu
entendi bem o que significava um “Museu virtual” e imediatamente não me interessei
nada por isso, considerando que se a moda pegasse seria o fim do museu enquanto tal. E
de fato, esse “museu” ainda não saiu do papel e com a atual crise econômica, nem creio
que sairá, pelo menos não em 10 ou 20 anos - quando sair, se sair, e se for “virtual”, terá
menos força e menos poder político que o mais fraco dos museus supralistados.
PARTE VI

E então?
Vejamos se é Mesmo Possível Tirarmos algumas Conclusões

Intimamente questiono se valerá a pena sofrer o “espaço


vazio entre a evolução e os que estacionaram no tempo
(seria o meta-espaço-tempo?) - porque difícil é estar diante
desse meu tempo, tolerar incompreensões e injustiças, lutando
tenazmente pelas coisas do espírito; projetando, sonhando
com museus e centros culturais - alguns empreendimentos
difíceis de captar - para, no acerto final, merecer algo quando
nada mais existir?
Porém, estarei plenamente compensada se lograr
fecundar a semente germinadora da arte e da beleza negra.

(Iracy Carise em: Arte-Mitologia, Orixás, deuses Iorubanos, 1980. p.104.)

Tanto supomos ter avançado na discussão sobre arte afro-brasileira que temos de voltar
para o nosso ponto de partida. A invenção e as condições históricas para o aparecimento
de uma arte chamada “arte afro-brasileira” serviram como massa de manobra da
negritude, nas ondas de sua suposta valorização. Mas nosso ponto de partida não deve ser
exatamente Nina Rodrigues, muito ligado que era à distinção crucial entre os objetos de
culto e os objetos de arte, nem mesmo retomemos à Marianno Carneiro da Cunha, que
aventou a possibilidade de ambos, objetos de culto e objetos de arte fazerem parte deste
mesmo campo artístico. Retomemos para todo início de prováveis (in)conclusões a Mário
Barata que, inserido no meio termo entre esses dois autores, levantou, em 1957, certas
dúvidas históricas das quais ainda mal tivemos coragem para supor aonde encontrar suas
respostas:

Um dos objetivos de estudo da dinâmica da arte negra no Brasil pode ser o da


comparação de suas transformações com as da vida religiosa. Terão predominado as
formas de culto e as plásticas da mesma origem? O sincretismo religioso ter-se-á
efetuado no mesmo plano do escultórico? O abandono de tradições plásticas terá sido
mais rápido que o das religiosas? Seus contactos com a cultura branca ou – caso terão a
averiguar – com a indígena, produzido (SIC) resultados paralelos ou semelhantes? Terá
tido a arte negra menor influência nas artes populares brasileiras e na formação da
nossa cultura que a religião? (BARATA, M., 1957, p. 53)
Mas, como vimos, apenas com muita dificuldade se delineou a “Arte Afro-brasileira”
como tratada posteriormente. Como afirmou Gabriela Dezidério: Em síntese, a categoria
“arte afro-brasileira” propõe critérios próprios de legitimação, assim como nos
apresenta “convenções” específicas. A produção artística passa a existir em torno de
outros eixos, que para além da pertença racial do artista, vai ter na memória e na
religião um ponto nevrálgico. (DEZIDÉRIO, G. 2015b, p.82)

Em função da conceituação e mesmo uso do termo “arte afro-brasileira” ser recente, de


autores antigos ou que trataram essa arte de forma indissociada da religiosidade como
Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Mário Barata, Clarival Valladares, entre outros, só
pudemos identificar indiretamente suas próprias convicções a respeito do problema
teórico inerente a esse tipo de manifestações artísticas.

Vimos ainda que a arte afro brasileira foi uma “invenção” dos “padrões de cooptação de
elite negra voltada às artes” que ficariam presas num impasse insolúvel que as apartaria
de sua ascendência nobre (artistas do barroco e neoclássico - tanto na música quanto nas
artes plásticas - fundamento das artes no Brasil, portanto referência fundamental da arte
brasileira, não capitulo, não vertente, mas “A Arte Brasileira”, sem qualificativos porque
nevralgicamente “afro”) e a manteria em sua dependência estatal, hoje representada
também pelas grandes corporações, bancos e financiadores de uma certa
“curanderia”(SIC) “falsos curandeiros que se passam por verdadeiros ‘curadores’ só por
causa da cor negra de sua pele e principalmente por sua vontade de potência carreirista,
seu desejo de ‘pôr no currículo’, de ‘estar no mercado’ etc. O desafio do artista
identificado como afro-brasileiro seria, então, “cuidar de seu jardim e mesmo assim ser
universal”; fazer arte afro-brasileira e ser cosmopolita. Mas como fazer isso? Não
apresentamos aqui muitas respostas, porém ficamos felizes de pelo menos começarmos a
desvendar algumas das falsas soluções.

Sendo assim, talvez nunca tenhamos critérios válidos de como dizer que haja ou definir o
que seja uma arte chamada “afro-brasileira”, mas temos de concordar que há e podemos
entender que houve muitas tentativas de deduzir o que o afro-brasileiro artista tem como
resultados de suas próprias experiências, enquanto um negro num mundo de brancos e a
explicitação consciente ou não de sua realidade em termos plásticos. Enquanto houver
surpresas essencialistas ou primitivistas do tipo: “olha, aquele negro faz arte...”, “veja
como é competente...”, “estranho, este aqui não apresenta a herança de seu sangue...”,
“estes aqui sim, um dos verdadeiros artistas afro-brasileiros, olha como ele honra a
estética negra...” etc. o problema da arte afro-brasileira será ainda maior do que já é em
termos teóricos (na estética e filosofia da arte) e em termos práticos (na materialidade da
obra e em suas exposições).

Passagens como : (...) não deixam entrever, através de suas obras, qualquer traço, ainda
que remoto, de suas raízes africanas, de sua ancestralidade, como inclusive parecem
repudiá-las, ou ao menos cuidadosamente disfarçá-las, ao adotarem como meio
expressivo, a pintura; como técnica, a boa cozinha pictórica267... nos ajudam a perceber o
quanto os teóricos estão distantes da noção de “negro como objeto de estudo”, seres
primitivos, naïfs e ingênuos cujos regionalismos lhes são naturais, atávicos, portanto, com
uma “alma” ou um modo de ser que são facilmente verificáveis por questões sanguíneas,
biológicas. Ora, caminhos tortuosos que consideraram possível empreender a busca por
“traços de raízes africanas” superficialmente deverão tornar-se cada vez mais humildes
nessa área, porque nenhuma arte que refletiria a negritude poderia ser intuída senão por
requisitos muito rigorosos que impediriam supor facilmente na obra alguns “ingredientes
étnicos” como uma fixação ou ideia fixa pelo 'sanguíneo' próprio dos sistemas eugênicos
e positivistas de um passado não tão distante.

A maioria negros e seus descendentes sempre tiveram em posição subalterna na história


do país, subalterno social e político, mas também do ponto de vista das artes, apenas de
forma subalterna o negro apareceu nas mentes dos intelectuais e ele próprio apenas
subalternamente pode alçar voos intelectuais porque suas vozes não foram devidamente
ouvidas; isso não teve como ser diferente dentro da história e das instituições de arte, que
sempre refletiram o racismo já existente. Como se não bastasse a ausência quase que

267
LEITE, J.R.T. In: ARAUJO, E., Vozes da Diáspora, 1992, p. 05.
completa de artistas formalmente treinados, as manifestações artísticas que quiseram se
referir ao conceito político de raça o fizeram ou bem a despeito da arte, para se impor
enquanto artistas, ou bem para se incluírem num circuito criado recentemente (no
pós-1988) que foi o olhar para a cor da pele dos artistas brasileiros e destacar aqueles cuja
tez evocasse algumas realidades e certos sonhos míticos a respeito de nossos
antepassados que pudessem ser úteis em termos de formação de novas curadorias e que
lhes fossem dada, por seu talento evidente, alguma atenção que a história lhes devia.

Não é preciso dizer que os carreiristas, interesseiros, oportunistas existem e eles têm
múltiplas cores, incluindo a preta de todos os tons e as suas nuances mais claras até aonde
os olhos não podem mais distinguir diferenças. O fato é que quando a chamada arte
afro-brasileira se viu às voltas de “olhos da culpa estatal”, fato ocorrido sobretudo depois
da abertura política e de dois grandes acontecimentos do ano de 1988 a promulgação da
nova constituição, com itens relacionados a preocupação quanto ao “problema do negro”
e o centenário da abolição da escravatura as oportunidades de negócios também no
mundo artístico, por ínfimo que fosse, começaram a aparecer.

Foram os chamados projetos de valorização da cultura afro-brasileira que apareceram,


primeiramente em função da luta do movimento negro por igualdade racial no país, mas
que foi travestida da criação e manutenção de uma elite negra que se arrogou merecedora
de alguns “privilégios” na obtenção de benefícios de “sedução” estatais e privados. Essas
benesses eram e são advindas de projetos, prêmios, editais, museus, secretarias negras,
entre outras atividades com financiamento público ou não, mas que somente
dubitavelmente nos últimos 30 anos estiveram de acordo com suas intenções iniciais dos
antigos militantes, que queriam uma real igualdade racial e não uma criação de uma elite
consumidora.

Eu insisti nesse tema ao longo do texto porque para muitos envolvidos, embora não
exprimam, a arte afro-brasileira, assim como as ondas de valorização do negro servem,
como é sabido apenas como uma forma de ascensão ou de aproveitamento dos que
ascendem. Isto é o que eu chamo de nicho de mercado como pseudopolítica. Os discursos
se torcem, mas a verdade sempre aparece. A elite negra escolhida a dedo e os
consumidores da classe média negra são os principais endereços para onde se encaminha
o “discurso igualitário” tanto dos governos, das mídias, e das instituições financiadoras e
sobretudo das instituições museológicas e artísticas.

Para que uma arte elaborada por herdeiros da África seja incorporada no movimento geral
das artes no país é preciso se livrar da noção de que haja um “problema negro” e, portanto,
da prevalência da cor da pele dos artistas sobre os atributos de sua arte. O chamado
“problema negro”, como foi dito em antropologia, trata-se na verdade do “problema
branco”. Na história da África, por exemplo, jamais houve o “problema da cor” antes da
chegada dos invasores estrangeiros. Não havia, portanto, ali, nenhuma oportunidade de
surgir uma “arte negra”, já que esse problema ainda não estava dado. Ora, se a “arte
negra” nas américas toma como referencial uma outra arte que não seria “negra”, então
essa arte só tem como pressuposto um posicionamento político, já que não há atavismos,
determinações ou implicações imediatas possíveis entre essa pele específica e essa
elaboração artística determinada.

Se este ou aquele artista que se identifique com alguma herança africana se expressar
dessa maneira isso não cria imediatamente um movimento artístico coeso. E se um artista
com ascendência africana tomar sua consciência identitária e expressar a sua negritude
por meios artísticos essa lhe seria uma decisão pessoal e sobretudo uma resposta ao
ambiente que vive e não a um biologismo que forçasse seu fazer artístico. Uma arte que
se queira “independente afro-brasileira” não pode ser sobredeterminada pelos brancos que
a racializam. Se ela for racializada pelos negros, como foi dito, esta racialização lhe
aparece da mesma forma que aparece a racialização no âmbito social, isto é, como um
procedimento político e jamais biológico ou enfático a ponto de ter alguma preeminência
em relação aos outros atributos artísticos. Assim, a “arte independente afro-brasileira”
está livre de racialismos biológicos, ainda que o apresente em termos políticos. Essa arte
seria dessa maneira uma forma de resistência política e também cultural, já que foi o
racismo também que relegou os aspectos culturais africanos, sua estética, sua
materialidade à planos subalternos. E a apresentação desses planos subalternos no âmbito
de prestígio das artes de fôlego, resistência e honra a esse modelo cultural.

Contudo, não resta dúvidas de que, no seio da sociedade brasileira, exista música negra,
imprensa negra, dança “afro”, cultura afro-brasileira, etc. Para além dos altos e baixos do
conceito de arte afro-brasileira, eu me questionei se, nos momentos em que a arte
produzida por aqueles que pretenderam “valorizar” a presença africana e afrodescendente
no Brasil, essa arte se viu ou bem em paralelo com a arte produzida no país ou bem
constituiu mesmo apenas um “capítulo”(TEIXEIRA LEITE, 1962); (MUNANGA, 2000,
p.107) uma “vertente”(CONDURU, 2013, p.122), “um segmento”(BISPO, A. &
FELINTO, R., 2014), mas jamais parte integrante da arte brasileira...Em outras palavras,
a arte afro-brasileira seria para sempre “apenas uma nota de rodapé” da arte do Brasil?

Seria preciso uma revolução nas artes para se fazer o reconhecimento de um brasil
afro-brasileiro? Seria preciso falar não só da cor, mas do DNA em si mesmo de todos os
artífices do macunainismo cultural e transcultural? Assim como o jazz dos negros
norte-americanos só foi possível a partir das canções francesas que os negros
modificaram e sua gravação, mostras televisivas, em jornais e cinematográficas só foram
possíveis graças aos judeus donos das gravadoras, televisões, jornais e da indústria
cinematográfica, as artes plásticas produzidas por negros no Brasil dependeram,
dependem e dependerão de oportunistas ou entusiastas brancos que, ancorados nos
benefícios e malefícios que uma negritude possa trazer para realidade branca brasileira
(deste que é um país de brancos povoado por negros, indígenas e indigentes) concederiam
à produção plástica negra um lugar ao sol além do gueto ou do pátio carcerário.

Por necessitarem viver fora dos círculos restritos, porque historicamente não houve
possibilidade de criação de um movimento negro separatista ao estilo norte-americano,
soçobrou poucos espaços para o protagonismo negro diante da patrulha ideológica que
pretendeu mantê-lo aonde ele sempre esteve. E esta foi a principal atividade das
instituições brasileiras: controlar com rigor extremo por meio cães de guarda do status
quo ou por meio de pequenos benefícios à uma elite negra selecionada a dedo - para que
aquela não “enegrecesse” verdadeiramente, mas que pudéssemos falsear a “brasilidade”
como “afrobrasilidade”- foi necessário assim, pincelar aqui e ali uma elite negra
moderada, insossa e mal enraigada na sua própria cultura para que o efeito “cultura
negra” fosse comandado remotamente; reservado para épocas propícias para uso
comercial, carnavais e festas populares interioranas, pseudoprojetos sociais, projetos de
blá blá blá acadêmicos ou as ondas de valorização do negro como as que vimos relatando
ao longo deste texto.

Pelo menos três distintos desafios foram relatados para a arte afro-brasileira. Vimos que
para alguns, a especificidade da “voz” ou da “expressão do negro” demonstraria a
necessidade da existência de uma arte afro-brasileira, porque esta seria comparável à
literatura dita “feminina”, com a especificidade da voz ativa da mulher. Vimos ainda que
seja o que for definido pelo qualificativo “afro” na arte brasileira, para alguns a cor da
pele passa a ter menor significado no conceito ou ao menos é tomada como uma forma
secundária na definição dessa expressão artística comparativamente à uma temática ou
um conteúdo que remeta às matrizes africanas. E também observamos que, com o
aparecimento de um “segmento de mercado” para uma tal arte produzida por
afro-brasileiros ou herdeiros não-negros da África, concebida ainda assim como “arte
afro-brasileira” (seja como “propaganda de enaltecimento” ou como uma “ sociologia”,
isto é, na forma de “inclusão do artista negro que está fora do mercado de artes”) foi
criado também o problema que torna a arte mesma secundária em relação ao mercado.

Vimos que na arte afro-brasileira a chamada arte ritual considerou a religiosidade como
homenagem (arte como referenciação) mais do que uma religiosidade como fé, ou como
se diz (arte sacra). A Arte Afro Brasileira enquanto “Arte Sacra Afro-brasileira” muito
apropriada aos museus-terreiro, sempre teve às voltas do guetismo do ponto de vista
artístico e, portanto, sempre teve seus dias contados. Outrora fonte inspiradora principal
dos meios e dos fins do artista afro-brasileiro, ainda que por ser inesgotável possa e até
deva fazer parte de uma grande parte dos artistas, ela já não é mais obrigatória, nem
sequer a mais buscada pelo público que não é do círculo. Isso tem um motivo, e se liga ao
problema da indistinção incorreta entre uma ferramenta de orixá e uma obra de arte
contemporânea (que alguns teóricos insistem em fazer) e esse motivo chama-se “ondas de
valorização do negro”.

Nas diversas ondas de valorização, o topo máximo sempre se viu às voltas da religião. Há
inúmeros livros que demonstram o poder das religiosidades afro-brasileiras sobre fiéis e,
por assim dizer, simpatizantes. Ouça música popular brasileira das décadas de 1960, 1970,
1980 e perceba a intensidade com que a música de axé (e não o axé music) foi mastigada,
invertida, remexida, deturpada e/ou revisitada. Nas artes plásticas isso não poderia ser
diferente. O impulso religioso, ademais, continua sendo forte, mesmo em nossa época que
todos nós nos sabemos mais ou menos ateus... Mas o balanço é ritmado, o ritmo
emociona, e muitos dos que se dizem fiéis são simpáticos, então, axé...simbora lá!

Com relação aos artistas plásticos ocorre algo de semelhante. Aliás, ouso dizer que,
exceto pelo Mestre Didi e os que são um caso à parte, em que suas obras são de fato de
“culto”, salvo engano, nenhum artista seja realmente um religioso... Dificilmente um
artista plástico que usa de uma religião, a segue. Ao estilo de Pierre Verger, Roger
Bastide e outros antropólogos que eu conheço e fazem isso ainda hoje, penetra-se nos
recônditos das religiões afro, menos pelo axé mesmo do que pelo conhecimento que isso
pode trazer, conhecimento musical, visual, mítico etc.etc.etc. que sobretudo possa ser
usado fora do terreiro (universidade, palco, museu etc.)

E esses foram os meus questionamentos: uma vez que a religiosidade prevalece em


principio em boa parte da chamada arte afro-brasileira, os artistas que acrescentam em
suas obras aspectos dessa religiosidade devem ser religiosos? Esta arte é em suma uma
arte sacra? Mestre Didi, sacerdote de culto ancestral egungun; Ronaldo Rego, ligado à
umbanda; Rubem Valentim, ligado ao candomblé, esses são artistas religiosos ou
religiosos artistas? Que peso teria a arte e que peso a religião nas obras deles, já que a
obra deles não é um estimulo ao proselitismo ou a uma confirmação do que já existe nos
terreiros? A questão que se coloca não é: se esses artistas não fossem religiosos a arte
deles seriam ou não seriam “afro-brasileiras”? Uma pergunta ainda mais interessante
seria: os artistas influenciados pela religiosidade e seu público é um público estrito senso
religioso, tributário desta religião ou mero simpatizante?

Em vez de tentar responder a perguntas difíceis, pode-se fazer uma análise em relação às
ondas de valorização institucional da cultura afro-brasileira e associá-la ao aumento das
atividades artísticas ligadas à afrobrasilidade, tal como eu próprio fiz. Mas pode-se
também fazer o caminho inverso e identificar os recuos e influxos desses momentos de
valorização, que seria muito legal de ver.

Vimos que o processo de valorização institucional da cultura afro-brasileira é


inversamente proporcional ao processo de desvalorização dela provocada pelo racismo. A
“arte afro-brasileira” de Nina Rodrigues, a despeito surfar na primeira onda, como foi
calcada na múltipla e teologicamente deficitária religiosidade “afro”, não foi incluída no
circuito nacional da época por causa do racismo e por causa do cristianismo e por causa
da escravidão. Ao contrário, aquelas manifestações plásticas de cultos afro-brasileiros de
fato não são “arte” e nunca foram, principalmente se se respeitar as noções de arte da
época e as nossas, mas se essas religiosidades fossem mesmo consideradas as nossas
próprias religiosidades, elas bem que poderiam ser consideradas a nossa “arte” sacra, só
que não. A “arte afro-brasileira” da onda dos modernistas, não foi de fato incluída no
circuito nacional também por causa do racismo, porque excluía os negros268, não tinha

268
Para dar apenas um item do privilégio artístico branco do séc. XX, uma investigação atenta aos prêmios
de viagem internacional com financiamento público (ou seja, o sofrido dinheiro angariado também da
maioria negra e mestiça brasileira) ofertados aos artistas da classe média “estrangeira”, ítalo-brasileira
paulistana e luso-carioca, entre outros, no início do séc. XX, coloca a valorização negra do modernismo
entre aspas. Se os artistas brasileiros viajantes no séc. XIX, muitos deles negros, não conseguiam se
“inspirar” pelas inovações artísticas europeias, certamente os do séc. XX, quase todos brancos, financiados
pelo Estado, fizeram o oposto. A onda modernista de representação do “primitivismo negro”, já era,
portanto, “inclusivista branca”. E propomos, aliás, uma análise diferente da que faz Conduru (2013, p.15),
mesmo que ele nessa passagem não se refira aos modernistas, mas sim ao que chamamos aqui de “quarta
onda” (a valorização negra do tempo presente). Na verdade, todas as ondas de valorização eram
“inclusivistas brancas” na medida em que sempre foram os brancos que as conduziram em termos de
financiamento, enquanto modelos ou como “sujeitos” a quem os “predicados” se voltam, ou mesmo em
função de serem os brancos artistas os que figuraram negros, formal ou tematicamente. Desta forma, incluir
os brancos na “arte afro-brasileira” não era fazer a “apropriação dos valores afro-brasileiros”, como quis
Conduru, nem mesmo especificamente a ampliação da arte afro-brasileira “evitando a ideia de raça,
pautando-se menos em marcações étnicas e mais por valores culturais africanos misturados aos demais
nas complexas dinâmicas sociais brasileiras (CONDURU, 2013, p. 15). A inclusão de brancos na “arte
voz própria...era apenas massa de manobra, instrumento político do nacionalismo branco
- eram apenas as “mulatas” do maravilhoso Di Cavalcanti, servindo todos não ao precioso
banquete antropofágico da identidade nacional, mas reduzidas somente ao apetite do
turismo sexual que as fantasias pela “cor do pecado” atiçariam não nas telas do Di, mas
na carregada “aura” do sentido da mulata já existente e que, por fim, a arte modernista
não seria jamais capaz de modificar. A “arte afro-brasileira” da onda do centenário da
abolição não foi incluída no circuito nacional igualmente por causa do racismo.

Dito de outra maneira, quanto mais certa época tenha o racismo menos coagido, menor
será o processo de valorização institucional do negro e vice-versa. Mas eis que aí reside a
ambiguidade, porque quem mais estimula o racismo não são os povos, são as instituições,
porque são elas desde o primeiro, ao quarto, quinto e sexto poderes. São os poderes e seu
racismo que impediram a fundamentação da arte afro-brasileira. No entanto ainda me
pergunto quem fez mais mal à essa arte se a inclusão de brancos sem vínculos senão

afro-brasileira”, na verdade, tanto para a primeira onda, quanto para a segunda, até mesmo para a terceira e
sobre tudo para a quarta onda, era chamar erroneamente de “universalismo”, como uma apropriação
superficial das formas e das temáticas negras por artistas brancos ou a apropriação superficial de formas
e/ou temáticas das artes plásticas de herança euro-americana por artistas negros brasileiros - ou seja,
racismo, porque dependendo da cor da pele, o artista será cobrado distintamente - para o negro artista a
“arte afro-brasileira”, para o branco artista “qualquer coisa”, porque este é um modelo “universal”... O fato
é que essa inclusão criou dubiamente a integração necessária de brancos e negros artistas em torno da arte
brasileira, mas ao mesmo tempo inflou o esvaziamento da problemática racista das instituições de arte
(problemática esta que está sempre além do tematismo e do formalismo artístico, quase sempre cooptado
por interesses obscuros). Assim, excluindo todos os brancos artistas do passado que, como Pierre Verger,
faziam tudo por aquele amor erótico pela África, encontrada num Brasil africano um tanto mais próximo da
Europa (e da França de Verger) e era mais próximo das possibilidades de integração que qualquer país
africano de suas épocas; e considerando ainda que Pierre Verger, na verdade, era um etnólogo e
antropólogo, ou seja, alguém que por profissão assimilava a cultura negra, como a maioria dos outros
artistas brancos e negros que viviam à distância dos “valores negros vitais” para a cultura afro-brasileira e
que não apareceram desta maneira na arte, concluímos que a inclusão de oportunistas artistas brancos ou
negros na arte afro-brasileira só pode ocorrer de maneira ambígua: Esses artistas assimilacionistas por
“profissão de fé” surfaram na onda de valorização do negro dizendo a si e aos outros que não se deve
“confiar” artisticamente nele porque essa “prancha”, essa “cultura afro” lhe servia apenas de instrumento
para outro fim; excluindo por fim, os cinco grandes da arte brasileira Carybé, Jorge Amado, Hélio Oiticica,
Glauber Rocha e Zé Celso, poucos foram os brancos que, venhamos e convenhamos tomaram a cultura
afro-brasileira para além da forma e tema, salvo engano meu num caso aqui e ali; de fato a incorporando
como nossa e não para simplesmente fazer o que historicamente fizeram as ondas de valorização: a
superficial representação do negro, a macumba artística clean - que, bem entendido e reforçado, muitos
artistas negros que não incorporaram aqueles valores, por moda ou não, também a fazem. O modernismo
precisou que um mulato que jamais saiu do país, Mário de Andrade, colocasse o dedo na ferida e
reconhecesse a fundamentação mestiça para além do mero tematismo ou da mera formalidade artística. Por
que não aprendemos essa lição? Que outra palavra evocar senão a que devemos ter muito menos vergonha
ou decência de dizer e gritar? RACISMO, RACISMO, RACISMO!
institucionais de valorização ou os negros que se excluíram de seu ativismo com medo de
enfrentarem o racismo (que rima com ostracismo)269.

Foi o governo real Português que instituiu o racismo à lá terra brasilis, em cerca de 1530,
foi o governo imperial independente Brasileiro que o fundamentou (1822); foi o governo
republicano brasileiro que o sedimentou (de 1889 em diante) e por fim são os governos
atuais constituídos pelos poderes de Estado e nós que os perpetuamos em: racismo
executivo; racismo legislativo; e racismo judiciário, bem como o quarto poder, o racismo
de comunicação de massa; o quinto, o racista sistema econômico e o racismo das grandes
corporações; e o sexto poder, que nada mais são do que os micro poderes regionais
isolados que incluem o racismo comunitário étnico, mas endereço também nessa leva as
organizações sociais dentre elas o racismo museus, o racismo ongs, o racismo
universitário e das escolas, os racismos de grupos de pressão, interesse e lobby, blogs, etc.
Os poderes se organizam para se ajustar aos anseios do poder econômico. Mas,
justamente, em relação ao sexto poder, sua atuação é desviada pelo poder mais
manipulável de todos: o quarto. Se houvesse movimentações populares e associações
livres de artistas negros, brancos, mestiços e outros que encarassem nossa realidade
histórica independentemente de flertaram com a sedução dos 6 poderes, o quinto poder
recuaria em seu racismo permitindo forçosamente espaço para ondas e mais ondas de
valorização de nós mesmos. O quinto poder é sem dúvida manipulável. Sofre pressão

269
Eu não sou poeta não, mas pensando em Oswaldo de Camargo que, naquela época eu tinha conhecido há dois anos
e estava lendo todos os seus livros, eu escrevi um pequeno poeminha de um livro de poemas que divido de primeira
mão com vocês:

Poesia Raça (para Oswaldo de Camargo)

raça racha ração raca (1)


raça graça e desg´raçada

geni genoux obligataire


elãn melito melan colérico

riso rijo piso ritmo


riso raca ost´racismo

Renato Araújo
18/02/2008
---------------------------------
1 - raca = [Caldaico S.m. Termo injurioso empregado no Evangelho de S. Mateus. Significação primitiva: "vazio",
"chocho" ou "conspurcado".
como qualquer outro poder. Mas porque nenhum tirano vive para sempre também o
quinto poder é capaz de criar por si só ondas de valorização da brasilidade se pressionado.
A ponto de que a principal fonte de possibilidade e impossibilidade tanto da integração da
cultura afro-brasileira quanto da integração dos artistas afrodescendentes e sua arte dentro
da cultura nacional, sem o sétimo poder das associações populares livres, dependerão
integralmente deles. Sem o quinto poder, tudo está absolutamente perdido para a cultura e
para a arte afro-brasileira270.
Outra questão que se coloca e que não temos tivemos tempo de aborda-la, embora
saibamos que ela não faz parte da história do conceito de arte afro-brasileira tampouco é
um problema dos artistas, mas faria parte dos tropeços da história da arte afro-brasileira:
Por que os negros artistas da academia aparecem com maior expressividade durante o
período pré-industrial? Por que a necessidade de financiamento artístico entre os negros e
mestiços menos privilegiados se deu no passado por meio das irmandades, dos mecenas
dos acadêmicos e no presente pelos projetinhos de fomento à cultura? Será o artista
afrodescendente um eterno tutelado e dependente de núcleos de apoio a ponto de criar-se
historicamente como uma elitezinha minúscula de negros artistas, que ademais,
acabariam por excluir os outros artistas negros que não fariam parte dessa mesma elite de

270
Por favor, meus queridos e queridas artistas da afrobrasilidade, estudem! Arte foi, é e sempre será algo
de uma inquietação do artista e, portanto, sempre muito, muito burilada, trabalhada e estudada antes de ser
executada. Parece que hoje se “executa” literalmente a obra antes de se saber minimamente de seu alcance,
proporção, senso próprio. Como músico, antigamente nós ensaiávamos, ensaiávamos e ensaiávamos, antes
de ir para o estúdio. Do ponto de vista das artes plásticas, parece que se quer antes ir para o estúdio e dizer
que isso é o “ensaio”, isso é a “experimentação”, que encarar os fatos da temporalidade paralisante e se
autoconvencer do verdadeiro-prático artístico: “ensaiarei o quanto der...” Na minha geração a
“experimentação” se fazia fora do estúdio e quando o “experimento” tinha minimamente se garantido,
mesmo que como “mero experimento” apenas, e não como “forma”, chamávamos e tomávamos a gravação
simplesmente de “experimento”: como os antigos classicistas da música colocavam as coisas em seus
lugares: o “divertimento”, o “estudo”, a “dança”, a “suite” ou “bailado” se complementavam à sua maneira
e em seus lugares, com o “concerto”, a “sinfonia”, e a “ópera”.. Hoje, a noção de “pesquisa” para burilar
uma obra que esteve presente em quase todos os artistas até o modernismo, parece que vem perdendo tanto
fôlego que mal se sente qual é a “respiração” dos artistas atualmente. Não me refiro à necessidade da
desestruturação formal iniciada no pré-modernismo desde Cézanne. Acredito que a falta de burilação da
arte atual diz tanto a respeito da falta de bom senso quanto da falta de pendor artístico que faz vovós
inocentes dizerem que o seus trabalhos são um lixo e que o neto dela faria bem melhor...infelizmente,
alguns artistas não reservam espaço para argumentações em contrário. Então, por favor, meus queridos e
queridas artistas da afrobrasilidade estudem e coloquem em pauta antes a satisfação de suas próprias
inquietações enquanto artistas, do que as questões prementes dos policiamentos ideológicos da moda que
invadem vez por outra o campo das artes, para eles sempre sagrado, que é ademais o campo mesmo de suas
próprias inquietações artísticas. É esse campo da Arte (com A maiúsculo) que, com ou sem qualificativos,
permanece sempre acima de nossos fracassos humanos, enquanto nós, réles mortais, com as mãos para o
alto, permaneceremos querendo sempre almejá-la mais e mais..
“escolhidos”? Que espécie de modificações ocorreram na academia que, apesar da
ampliação da perspectiva teórico-prática proporcionada pelo modernismo, a tornaram
ainda mais elitista e, portanto, mais branca? Por que temos notícias apenas de Wilson
Tibério como o último dos grandes pintores negros acadêmicos e, por fim, a branquitude
venceu, e se generalizou na arte brasileira da segunda metade do século XX até hoje?

Wilson Tibério - Dia de Feira na Bahia


Jornal “A Manhã” Suplemento “Letras e Artes”. 08-12-1946 p. 04.

Eis aqui uma das inúmeras obras vistas na exposição individual “Motivos Rituais
Afro-brasileiros”, Ministério da Educação, Rio de Janeiro, 1946. Esta é a primeira
exposição de um negro (Wilson Tibério) com críticas de outro negro (Santa Rosa), que
não deixa de registrar isso em nota de jornal:

“É no Ministério da Educação que esse pintor negro apresenta o resultado de seus


trabalhos. Muitos trabalhos e por isso mesmo, bastantes resultados. Talvez abordando
temas por demais fora de sua capacidade técnica (trata-se de um instinto) nem por isso
escapam à sua intuição certas belezas, o que antentifica (SIC)[autentifica] o artista. Por
paus e por pedras vai Tibério abrindo o seu caminho. Preocupado, inspirado nos temas
de sua raça, integrado na Roma Negra, nos seus candomblés e rituais, sentindo
fortemente esse veio condensado de símbolos para êle, Tibério tem aí o seu ponto forte.
Em quadros de uma compaixão fraterna como no de no. 61 - Imitação de Vida -, ou em
outros da série de Festas, especialmente, a Festa de Oxalá - todo em branco, Wilson
Tibério deixa entrever a sua latente disposição pitonia. Há aquarelas realizadas com
certa maestria, e nos óleos de representação popular descubro muitas afinidades com a
obra de Figari. Tibério demonstra que o trabalho ajuda o dom. Além do mais apura a
sensibilidade e os meios de expressão, cujos resultados estão indicados na tela 24 - Volta
da Missa - sem dúvida uma tela delicada, a primeira entre tôdas.
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=114774&PagFis=297

O velho trabalhador da arte Wilson Tibério foi o único artista afro-brasileiro a expor ao
lado de Picasso, numa coletiva na Galerie Henry Tronchet em Paris, em 1951.

Poema Emparedado “Cruz e Souza”

Artista? Podes lá isso ser se tu és da África


tórrida e bárbara, devorada insaciavelmente pelo deserto,
tumultuada de matas bravias,
arrastada sangrando no lodo das Civilizações despóticas,
torvamente amamentada com o leite amargo
e venenoso da Angústia!

(In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Aguilar, 1995. p. 672).


PARTE VII

Bibliografia
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Pensando naquela pergunta do velho Abujamra quando terminava o programa


Provocações da TV Cultura: “Qual autor você ainda não encontrou?”

No que respeita os artistas relacionados à essa ambientação afro-brasileira, precisamos


ainda encontrar, o que me dá uma vontadezinha (apenas como um entusiasta de arte, mas
não como um pesquisador dela de verdade) de escrever o livro “História da Arte Por Seus
Artistas Negros, ou Quase” ou, especificamente, “Altos e Baixos da História dos Negros
Artistas” ou ainda mais especificamente, como uma homenagem ao baiano Caetano
“Subsídios para uma História da Chamada Arte Afro-Brasileira ou Não”.
Mulheres Artistas - e dentre esses artistas, não poderia faltar falar sobre as mulheres. E
certamente eu me referi na minha palestra sobre arte afro-brasileira na Pinacoteca sobre o
Estatuto da Mulher Negra Artista.

Enquanto uma boa parte dos homens artistas descendente de africanos tomaram a
identidade religiosa como elemento crucial na realização de suas obras, essa temática que
parecia central para a conceituação da arte afro-brasileira até o séc. XX, a gama de
temáticas das artistas femininas de ascendência negra, ainda que se constituíssem numa
minoria, tenderam para uma ampliação desse protótipo de “afrobrasilidade”.

Caberia aqui, por isso mesmo, uma análise em separado da “participação feminina de
herança africana nas artes plásticas”, no entanto, o tempo que me resta para tratar do
assunto não é digno para a amplitude desta questão. Não posso terminar este texto sem
pelo menos iniciar um pequeno levantamento de artistas negras e mestiças que possam
talvez compor este quadro da arte afro-brasileira, com destaque a algumas personalidades
desconhecidas, abrindo espaço para que outros possam acrescentar nomes que tenham me
escapado por mero desconhecimento271.

Adelina Gomes (1916-1984) Bienal de Veneza (1981)


Aline motta (Rio de Janeiro)
Aryani Marciano (São Paulo, 1996)
Ângela Correa (São Paulo, 1954) Madalena dos Santos Reinbold, (1919, Vitória da
Angélica Dass (Fotógrafa, Rio de Janeiro, 1977)
Barbara Wagner, (Brasília, DF-1980)
Érica Malunguinho (Pernambuco, 1982)
Sônia Gomes, (Caetanópolis, MG, 1948) (ARAUJO, E., 2010, p.199)
Fabiana Lopes (curadora) (São José do Rio Preto/SP),
Renata Felinto (São Paulo, 1978) (ARAUJO, E., 2010, p.199)

271
Desnecessário dizer que nomes conhecidíssimos de artistas populares que fazem parte do acervo do
Museu Afro Brasil como Ciça, as três irmãs Cândido e inúmeras outras eu simplesmente não inclui, mas
por nenhuma maldade e sim porque já há uma classificação bem feita dessas mulheres artistas.
Dona Jacira
Diane Lima (Designer e curadora, Mundo Novo, Bahia, 1986)
Eneida Sanches (Salvador, 1962)
Gabriela Guerra de Almeida (Minas Gerais)
Yêdamaria (Salvador, 1932- Salvador, 2016)
Mãe Detinha de Xangô ( Salvador, 1928, Salvador, 2014)
Rosana Paulino (São Paulo, 1967)
Priscila Rezende (Minas Gerais, 1985)
Tainá Lima (Minas Gerais, 1990
Ivonete Dias Morbeck (Paraíba, 1937 - Bahia, 2000)
Janaína Barros (São Paulo, 1979)
Lídia Lisboa (Guaíra, Paraná, 1971)
Goya Lopes (Salvador, 1954)
Maria Lídia Magliani (Pelotas, RS, 1946-2012)
Madalena dos Santos Reinbolt (Vitória da Conquista, 1919 – Petrópolis, 1977)
Adriana Ribeiro
Paulla Bomfim (Salvador, 1981)
Maria Adari (1938) ver: (AMARAL, A., 2010, p. 48);
Naara Nascimento (ARAUJO, E., 2010, p. 199 vol.I; Idem, p.144, Vol.II );
Conceição Aparecida dos Santos (Conceição Silva - 1938),

Conceição Silva para a II Semana Cívica Afro-Brasileira


Esta artista participara tanto da Mostra Coletiva de Arte Primitiva de Limeira (SP) (1972),
quanto da “Exposição Afro-Brasileira de Artes Plásticas”– Museu de Artes de São Paulo
(MASP) – uma coletiva ocorrida em 1973. Essa artista, como a própria Maria
Auxiliadora da Silva (1935-1974), Raquel Trindade (Recife, 1933), entre outras figuras
do circuito de Embu das Artes, tal como os artistas negros de Pelotas, os artistas negros
Maranhenses do antigo CENARTE (Centro de Artes e Comunicações Visuais do Estado)
e outros circuitos maranhenses merecem um capítulo à parte272.

Efigênia Rosária, que disse lindamente “Quando pinto parece um sonho... Entro na
estória do quadro. Participo da cena.... Quando acabo saio e acordo. ” (BÜLL, M.R., 2007,
p.136);
Michelle Mattiuzzi (São Paulo, 1980) (https://www.youtube.com/watch?v=-IYnXBt8ZaE);
Juliana Santos (São Paulo, 1987) (LOPES, F., 2015, In: CHIARELLI, T., 2015, p. 40)
Millena Lizia (1986) (LOPES, F., 2015, In: CHIARELLI, T., 2015, p. 40)
Palomaris Mathias Manoel (São Paulo)
Olyvia Vitoria Bynum (São Paulo)
Eunice Coppi (25/02/1959) (PRUDENTE, C., 2002, p.114)
Shirley de Queirós (05/10/1943 (PRUDENTE, C., 2002, p. 76)
Malema (Maria Aparecida Lemos Martins) (14/05/1943) (PRUDENTE, C., 2002, p. 44)

Entre outras...
E outros, que ainda preciso conhecer mais...como os apresentados por Abdias do
Nascimento como Sebastiao Januario, Yara Rosa (pintora e faz trabalhos com tapeçaria),
Celestino, Cleoo, Agenor (escultor), Manoel Bonfim (NASCIMENTO, 1978, p.400) e os
inúmeros mais ou menos esquecidos, mais ou menos escamoteados:

272
Com 74% da população formada por negros, nada mais justo que lado a lado com a Bahia, Maranhão tenha um
peso significativo dentro das artes relacionadas à africanidade, peso este que eu próprio não posso dimensionar, por
conhecer pouco. Mas como o Brasil é racista, essa porcentagem é uma falácia, já que é mais fácil encontrar artistas
negros do sul do que do Maranhão (eu arrolo alguns desses nomes numa lista incompleta no final deste texto). Mas
leiam, por favor, como um princípio desses estudos, o livro do Ferreti chamado Maranhão Encantado, apresentando
ilustradores brancos e negros. Disponível em:
http://www.gpmina.ufma.br/site/wp-content/uploads/2017/03/Livro-ilustrado.pdf e o texto do mesmo autor:
“Contribuição Cultural do Negro na Sociedade Maranhense”, disponível em:
http://www.gpmina.ufma.br/arquivos/CONTRIBUICAO%20DO%20NEGRO.pdf
Adão Ribeiro (ARAUJO, E., 2010, p. 46-47)
Antônio Bandeira (Fortaleza CE 1922 - Paris, França 1967)
Arjan Martins (Rio de Janeiro, 1960)
Antonio Bandeira (Fortaleza, Ceará, 1922-1967)
Cacosta (Clóvis Affonso Costa) (Rio de Janeiro,1956)
Carlos Augusto da Silva Gute (Porto Alegre, 1958)
César Romero (Feira de Santana, 1950)
Chico Diabo (Carlos Francisco de Almeida Sampaio) (Bahia, 1940)
Cicinho (Inocêncio Alves dos Santos, Cincinho) (Muritiba, BA, 1907-1990)
Cosme Martins (São Bento, Maranhão, 1959)
Dalton Paula (Brasília, DF,1982)
Daniel Lima (Natal, 1973)
Delima Medeiros (Pernambuco, 1935)
Edmílson Ribeiro (Vitória da Conquista, BA)
Edísio Coelho
Edinízio Ribeiro Primo (Ibirataia, BA, 1945 – Búzios, RJ, 1976)
Edison da Luz - (e o grupo Etsedron)
Fory (Carlos Alberto Dias do Nascimento) (cachoeira, 1959)
Francisco Santos (Pintor, Santo Amaro da Purificação)
Gervane de Paula (Cuiabá, 1962) [chamado ‘neofauve’ pela Aracy do Amaral (2010,
p.29)
Gilson (escultor, Bahia, 1955) - aluno de Olga Koppings, estudou na Escola Parque
Helô Sanvoy (1985) (Goiânia, GO) (LOPES, F., 2015, In: CHIARELLI, T., 2016, p. 40)
Zé Darci (José Darci Barros Gonçalves) (Rio Grande do Sul,1960) e os artistas do
Quilombos Urbanos de Pelotas
Izidório Cavalcanti (Cameleira, PE, 1965)
Jaime Lauriano (São Paulo, 1985)
Jameson Pedra (Valença, Bahia, 1938)
Januário, (pintor) nascido em Dores de Guanhaes (NASCIMENTO, A., 1968, p.22)
João Alves (Ipira, BA, 1906- Salvador, 1970)
José Heitor da Silva (Além Paraíba, Minas Gerais, 1937) profissão - Ferroviário
João Altair de Barros (Porto Alegre, 1934-2013)
João Alves (Ipirá BA 1906 - Salvador BA ca.1970)
José Barbosa (Olinda, 1948)
José de Dome (Estância, SE, 1921 - Cabo Frio, RJ, 1982)
José de Jesus Santos (Ilustrador, Maranhão)
José Cláudio (Ipojuca PE 1932)
José Igino (Niterói, Rio de Janeiro, 1957)
Juarez Paraíso (Arapiranga Bahia,1934)
Justino Marinho Sobrinho (Salvador, Bahia, 1949)
Lafaete Rocha Ribas (Paraná, 1934)
Leonel Barreto (Capão Bonito, São Paulo, 1942)
Leandro Machado (Porto Alegre, 1970)
Luis Carlos Lima Santos ( São Luis, MA, 1940)
Maria Auxiliadora da Silva (1938-74) e os outros pintores da “família Silva”, da qual me
orgulho pertencer: Vicente Paulo da Silva (1930-1980); Benedito da Silva (1953-1980);
Sebastião Cândido da Silva (1928); João Cândido da Silva (1933); Ilza Jacob da Silva;
Conceição Aparecida da Silva (1938); Natália Natalice da Silva (1948) - poetisa;
Georgina Penha da Silva (a “Gina”); Efigênia Rosário da Silva (1937)
Manoel Messias (1945, Aracajú, Sergipe - 2001, Rio de Janeiro, RJ)
Mirim Santos (nascido em ouro preto MG, atua em Pirenópolis/ GO)
Moisés Patrício (São Paulo, 1984)
Nhô Caboclo (Manoel Fontoura c.1910, Águas Belas - PE / 1976, Recife - PE)
Neco Soares (Franco da Rocha, SP, 1986)
Otávio Francisco dos Santos - Otávio Bahia (1943-2010)
Pelópidas Thebano Ondemar Parente (Pintor do Rio Grande do Sul, nascido em 1934)
Paulo Correa (Pelotas)
Paulo Chimendes (Tapes, RS, 1953)
Peter de Brito (São Paulo, SP, 1967)
Rommulo Vieira (Salvador, Bahia, 1968)
Sidney Amaral (São Paulo, SP, 1973)
Sérgio Soares (Salvador, Bahia, 1968)
Tamba (Cândido Santos Xavier) (Cachoeira, 1934 – Cachoeira, 1987)
Tiago Gualberto (Betim, Minas Gerais, 1983)
Vandico -Elvandir Santos Caldeira (Pelotas, 1943)
Wagner Viana
Waldeloir Rêgo (Salvador, 1930 - Salvador, 2001)
Washington Silveira (Curitiba, Paraná, 1969)

Quisera eu poder acreditar que meus leitores teriam ainda a paciência de que eu
aumentasse indefinidamente essa lista e falasse mais alguns parágrafos de cada um desses
e dessas artistas ou apresentasse alguma seleção de suas obras, e fizesse ainda alguma
análise que pudesse compor melhor a conclusão deste tema que é sempre “tão
inconclusivo”, mas que a cada obra, cada artista que conhecemos e nos envolvemos, nos
aproximamos mais e mais dessa que nos anima e nos deixa tão felizes: a arte. Mas não o
faria da forma que estes artistas listados mereceriam nesses poucos dias que me dispus a
escrever esse texto, ao estilo antigo da saudosa “escrita automática” de André Breton,
meu grande amigo das horas vagas de juventude. Então, eu fico por aqui e dando-me, por
hora, satisfeito.
PARTE VIII

Apêndices: um evento sobre arte afro-brasileira


Apêndice 01 - Proposta Encontros na Pinacoteca: olhares sobre a arte afro-brasileira,
seus conceitos e seus artistas.

Como foi dito na apresentação, eu devo a existência deste e-book há um evento ocorrido
na Pinacoteca do Estado de São Paulo, nestas últimas cinco semanas (de 05 de Novembro
a 03 de Dezembro de 2016). A criação do evento partiu do atual Diretor Tadeu Chiarelli,
que demonstrou interesse em investigar melhor essa temática das artes afro-brasileiras,
embora possa também ter tido ainda algumas pressões da secretaria do Estado da Cultura
para criar uma atividade relacionada à cultura afro-brasileira no mês da consciência negra
deste ano. Com o evento, Chiarellli deu prosseguimento às discussões aparecidas na
instituição após a exposição “Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da
Pinacoteca” (2015-2016)273.

O texto imediatamente a seguir foi escrito em duas versões por mim e pela Juliana
Ribeiro entre Setembro e Outubro de 2016. Apresento essa que foi a nossa proposta final,
ajustada à proposta da Pinacoteca e aos nossos próprios critérios que por fim, também
consideramos “boa”, dado às circunstâncias, sobretudo dos limites orçamentários.

Juliana Ribeiro da Silva Bevilacqua e Renato Araújo da Silva

Apresentação

Discussões sobre o conceito de “arte afro-brasileira” e a exposição de um tipo de obra sob


essa rubrica possuem um histórico relativamente amplo. Desde pelo menos o início do
século XX há uma procura pelos significados e sentidos de algumas das manifestações
artísticas brasileiras que tomam como referência o continente africano ou as suas
heranças culturais no Brasil. Essa busca se materializou em livros, artigos, dissertações
acadêmicas, catálogos de exposições, matérias de jornais e revistas, entre outras
publicações dedicadas ao tema. Esse corpus teve como uma das principais preocupações
observar quais seriam a materialidade dessa arte, sua base formal, suas temáticas, as

273
Com obras de Arthur Timótheo da Costa, Mestre Valentim, Antonio Bandeira, Rubem Valentim, Jaime
Lauriano e Rosana Paulino, Sidney Amaral, Paulo Nazareth, Flávio Cerqueira, Rommulo Vieira Conceição
e Emanoel Araujo, entre outros.
intenções dos artistas, a recepção de suas obras e as convenções que viriam a compor essa
produção doravante denominada “arte afro-brasileira”.

Essas preocupações parecem se manter ao longo do tempo, no entanto, novas questões


podem e devem ser lançadas para o avanço dessa reflexão. Na atualidade, denominações
que pretendem evocar uma África mítica parecem ter sido compartilhadas tanto por
curadores e críticos quanto por alguns artistas. Qual o sentido em recorrer no século XXI
a uma ideia abstrata de África ao mesmo tempo em que há um reconhecido avanço nos
estudos africanistas no Brasil? Quais espaços existem hoje para as produções de artistas
negros que não estejam associados a um ativismo ou a uma ideia de “África”? Quantos
dos artistas denominados “afro-brasileiros” têm suas produções expostas em mostras de
arte contemporânea que não estejam relacionadas à ideia de negritude? E finalmente, suas
produções são de fato avaliadas como “obras de arte” ou estão alimentando sobretudo um
novo nicho de mercado?
Assim, como um desdobramento da discussão apresentada na exposição “Territórios:
artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca” e na tentativa de recuperar o histórico
desse conceito, a Pinacoteca de São Paulo convida os seus visitantes a ampliar a
discussão sobre “arte afro-brasileira” em cinco encontros, que incluem apresentar um
panorama dos autores e suas obras dedicadas a discutir a questão, bem como situar e
(re)pensar as produções existentes no acervo desse Museu e fora dele.

Justificativa

Até recentemente a maior parte das iniciativas relacionadas à arte afro-brasileira estava
associada a datas como a abolição da escravatura, o Dia da Consciência Negra, além de
outras datas comemorativas. Apesar da inegável importância dessas comemorações na
ampliação do número de encontros, exposições e publicações sobre essa temática, hoje a
urgência dessa discussão tem ganhado espaço em instituições que não são dedicadas
exclusivamente aos assuntos relacionados ao negro no Brasil. Um dos exemplos é a
exposição “Histórias Mestiças” realizada no Instituto Tomie Ohtake, em 2015, e mais
recentemente a exposição “Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da
Pinacoteca”. O presente evento está, portanto, atento à urgência dessa discussão, que
extrapola os limites colocados por uma exposição de arte.

Encontro 1 e 2: 15h às 17h (05/11/2016 e 12/11/2016)


Revisitando o conceito de arte afro-brasileira
Nomes: Renato Araújo da Silva e Hélio Menezes

Os dois primeiros encontros têm como proposta apresentar e discutir os principais autores
que desde o início do século XX vêm se debruçando sobre a produção artística de
referência africana ou afro-brasileira. Embora as primeiras publicações se restringissem
principalmente às questões de ordem antropológica e de cultura material, elas
apresentaram alguns aspectos plásticos elaborados pelos africanos e seus descendentes no
Brasil. Dentre os autores que se debruçaram sobre o conceito de “arte negra” ou “arte
afro-brasileira” destacam-se Manuel Querino (1851-1923), Raimundo Nina Rodrigues
(1862-1906), Arthur Ramos (1903-1949) e Marianno Carneiro da Cunha (1926-1980),
entre outros.

Encontro 3: 15h às 17h (19/11/2016)


(Re)pensando o conceito de arte afro-brasileira hoje
Nomes: Roberto Conduru e Marta Heloísa Leuba Salum
Mediação: Juliana Ribeiro da Silva Bevilcqua

O encontro tem como objetivo apresentar ao público a visão de dois intelectuais que se
dedicam ao tema. Marta Heloísa Leuba Salum, professora Museu de Arqueologia e
Etnologia da USP (MAE-USP) e responsável pelo setor de Arte Africana da mesma
instituição, foi curadora do módulo “Arte afro-brasileira” na Mostra do Redescobrimento
(2000) e é autora de diversos artigos, tais como Cem anos de arte afro-brasileira (2000);
Des-en-terrando achados: vistas sobre a África das diásporas (2012); Que dizer agora
sobre a arte africana? A África nas exposições da virada do século XX para o XXI, no
Brasil e no exterior (2014), entre outros. Roberto Conduru, professor de Teoria e História
da Arte na UERJ, foi curador da exposição “Incorporations - Afro-Brazilian
Contemporary Art” e é autor do livro Arte Afro-Brasileira (2007) e Pérolas Negras -
primeiros fios (2013), dentre outros artigos dedicados à temática.
Encontro 4 - 15h às 17h - Arte afro-brasileira na Pinacoteca (26/11/2016)
Nome: Juliana Ribeiro da Silva Bevilacqua

O objetivo desse encontro é apresentar ao público um histórico das principais iniciativas,


tais como eventos e exposições voltadas para a temática “afro-brasileira” ao longo da
existência da Pinacoteca de São Paulo. O trabalho de pesquisa nos arquivos da instituição,
especialmente nos dossiês de exposições, revelou que a preocupação em inserir essa
temática na sua agenda vem desde pelo menos a década de 1970, não sendo, portanto,
particular de uma única gestão. Isso sublinha a importante contribuição histórica da
Pinacoteca no fortalecimento desse campo no país.

Encontro 5 - 15h às 17h - Caminhos e descaminhos da arte afro-brasileira


(03/12/2016)

Esse encontro visa apresentar um diálogo com um grupo de artistas que apresentam
diferentes trajetórias e perspectivas em relação à chamada “arte afro-brasileira”. Em
muitos casos, apesar de compartilharem obras numa mesma exposição, são distintos os
modos pelos quais esses artistas querem ser reconhecidos.
Nomes: Tiago Gualberto, Rommulo Vieira e Janaína Barros
Mediação: Renato Araújo da Silva

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http://www.dezenovevinte.net/
http://www.revistadehistoria.com.br/secao/perspectiva/pintores-viajantes-e-cronistas
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/
http://www.catalogodasartes.com.br/Detalhar_Biografia_Artista.asp?idArtistaBiografia=
202
Apêndice 02 - Encontros sobre Arte Afro Brasileira na Pinacoteca do Estado de São
Paulo - Nov.-Dez, 2016 (pequeno registro histórico)

Imagem com o cartaz de divulgação do evento produzido pela Pinacoteca, 2016


http://www.pinacoteca.org.br/pinacoteca-pt/Upload/file/02.jpg
Questões como a levantada (aliás, já vai fazer um ano!) por um crítico de arte da folha de
São Paulo (Fabiano Cypriano - Folha de São Paulo, Ilustrada: 24-12-2015274) que julgou
de forma negativa e grosseira até, a exposição “Territórios” dizendo que ela “mantinha o
preconceito com gueto negro” nos fazem pensar o quanto ainda temos a enfrentar... Para
começar, por que “arte afrodescendente” seria criação de um “gueto” e “A Mão do Povo
Brasileiro” da Lina Bo Bardi, cuja reedição está ocorrendo agora, não o seria? “- Talvez
porque a expressão “o povo brasileiro” não se trataria da referência a uma “raça”!,
poderiam me retrucar, não é mesmo? Mas então, por que não ouvimos respostas
atravessadas como aquele artigo quando vamos à uma exposição de “Arte Flamenca”?
Por exemplo. Será que o prestígio dos flamengos e de sua arte seriam um mote suficiente
para que eles fossem sempre respeitados quando assim se identificassem historicamente
ou como nós os identificamos?275 O que o crítico não sabia, obviamente por não ter
conhecimento na área é que se há uma identidade afrodescendente, a identidade
afrodescendente na arte também é possível. O que o crítico ignorou é que a exposição
recolhia certas fissuras sociais encontradas no seio do circuito cultural das artes - a ideia
de lançar luz a figuras que, sem esta lanterna corajosa, não poderiam sequer ter algum dia

274
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/12/1722562-fmostra-da-pinacoteca-mantem-preconceito-com-gueto-negro.shtml
(Acessado em 19-11-2016). Vinte e oito anos antes, (07 de Setembro de 1988) o Jornalista da Revista Veja
Wagner Barreira, “ancestral” direta de Fabiano Cypriano, criticou a escolha de Emanoel Araujo em colocar
“apenas” artistas negros na exposição “A Mão Afro Brasileira”...Os brancos da elite peulistana também
torceram o nariz quando Emanoel Araújo um triplamente indesejado, negro, baiano e homosexual assumiu
a diretoria da Pinacoteca e tiveram a pachorra de fazer um abaixo assinado e enviá-lo ao então Governador
Fleury para revogar a nomeação...Não se quer arte afro-brasileira ou a arte feita por negros, não só por
questões teóricas válidas, não se quer essa arte também por racismo...talvez até por isso a arte
afro-brasileira faça mais esse sentido - demarcação de existência negra na produção de arte.
275
Alguém por favor, dê um livro de história da arte para este critico. Há umas dezenas de exposições cujo
recorte possibilita enxergar detalhes curatoriais que de outro modo não seria possível. A exigência por um
universalismo abstrato, se levada a sério, não haveria mais possibilidades outras senão a exposição de arte
pela arte e arte total e universal. Eis também um requisito para a arte afrodescendente, porque ao fazer uma
observação especial selecionando determinados artistas desde que resguardados claramente os objetivos de
se fazer isso, não seria fazer racismo, nem particularismo, nem gueto e nem não-arte. Caso contrário,
porque instituições tão dignas de nota fariam exposições como “Exposição da Jovem Arte Contemporânea”
– Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (SP);
Exposição de Jovem Gravura Nacional – MAM – (RJ); Bienal Latino Americana; não fosse o interesse
curatorial em dar ênfase a aspectos não artísticos em artistas que fazem uma arte também porque são jovens,
também por que são latino, também porque são afro-brasileiros. Resta saber porque apenas o afro-brasileiro
não pode se unir para fazer arte e dar um nome a isso, mesmo que não tenham tendências, estilos ou ideias
comuns enquanto que os resquícios de movimentos artísticos atuantes também abundam em
fragmentação, descentralização do sugeito e crise representacional? Se dadaísmo, porque não
afro-brasileirismo?
a possibilidade de figurar na documentação histórica...Gente muito boa que não aparece
por causa de sua invisibilidade de cor de pele ou de classe.

Com “Territórios”, os artistas dizem na boca de Tadeu Chiarelli “Olha, eu tenho essa cor
e eu existo! ”. Quer isso dizer que esta arte é “afro-brasileira”? Quer isso dizer que esse e
aquele artista faz questão desta denominação e qualificativo? Não foi isso o que a
exposição mostrou. Aliás, com o uso cuidadoso do termo “artista afrodescendente”
evitando o termo da chamada “arte afro-brasileira” foi também digno de nota do ponto de
vista da suspensão de juízo em relação à essa pré-conotação, já que, como acho que ficou
demonstrado no meu texto “Arte Afro-Brasileira: altos e baixos do conceito”, embora já
exista a arte por existir o artista, a sua fundamentação estética ainda precisa ser
explicitada para que configure não a arte, pois esta depende só do artista e de sua obra,
mas de sua condição estética que lhe permita apresentar-se como sujeito histórico desta
arte. Sendo assim, um dos fazeres afro-brasileiros seria compensar a fragilidade teórica,
mal percebida em qualquer círculo, na força identitária afro-brasileira, bem conhecida nos
círculos negros, mas aparentemente desconhecida em outros círculos, especialmente o
artístico e ainda mais desses zé roelas que pintam e bordam nos jornais como se
soubessem do que estão falando.

Ainda assim, o questionamento do crítico de arte da Folha de São Paulo pode se tornar
contundente se modificado e introjetado na sempre importante autocrítica. Se isso for
assim, esse questionamento reformulado exigiria uma resposta à altura: seria correto
manter em um rótulo racial a prática artística não numa curadoria específica, mas
indefinidamente, enquanto uma forma de arte? Quando vemos isso de forma abstrata,
vimos que não. Não há nada na arte que implique que seu artista tenha de ter essa ou
aquela cor de pele, utilize-se deste ou daquele recurso temático. Mas, visto de forma
orgânica podemos esboçar outros tipos de respostas: O “correto” ou “incorreto”, em arte,
não é como o “correto” ou “incorreto” em termos sociais ou morais. Se, em vez disso,
perguntarmo-nos: “Por que Tadeu Chiarelli não colocou brancos artistas todos juntos,
numa mesma exposição, como sempre se faz, para que não tivéssemos de ler artigos
críticos antirracistas na Folha de São Paulo, só porque esses afrodescendentes unidos
numa sala foram nomeados enquanto tais são tão irresistivelmente criticáveis? ” Aí sim
chegaríamos na reflexão sumária: somente com a crítica às instituições racistas, e não só
aos seus “cães de guarda” que será possível a manutenção do projeto de estabilização dos
conflitos raciais. Nós não temos obrigação e nem mesmo “direito de resposta”, mas
acredito que tocamos algumas vezes nesses assuntos neste evento, que deve ser
memorado e, por essa razão, eu vou dedicar algumas das minhas horas vagas para o
registro dele.

O título final do evento na Pinacoteca foi “Pina_Encontros: Olhares sobre a arte


afro-brasileira, seus conceitos e seus artistas”. Mas minha ideia inicial, tinha sido
“Colóquios na Pinacoteca - conceitos de arte afro brasileira em revista”, mas isso sem
saber qual verba teríamos e qual o limite efetivo de participantes com o qual o evento
toparia. Confesso que eu sonhei alto demais e imaginava fazer um grande “Congresso de
Arte Afro-Brasileira” chamando artistas e teóricos nacionais e internacionais para dar
vazão a todos os itens e subitens, linhas e entrelinhas arrolados aqui...quiçá algum dia isso
possa ser feito.

A par das restrições todas, soubemos que não poderíamos pagar passagens sequer para
teóricos brasileiros que estavam fora da cidade de São Paulo, como Kabengele Munanga
(residente atualmente na Bahia) e Roberto Conduru (no Rio de Janeiro). Assim, esse
sonho se restringiu em fazer uma grande redução de gastos e controle do tempo de evento
há 5 encontros saturninos de duas horas cada. Acabou que Kabengele disse que não
poderia vir a São Paulo, mesmo que eu tenha me oferecido pessoalmente em pagar sua
passagem…O Roberto Conduru, a quem a Juliana Ribeiro se ofereceu pagar a passagem
deu nos uma alegria utilizando de sua verba da FAPESP para poder vir ao evento. Aliás,
além de eu ter comemorado muito isso, não posso deixar de fazer um agradecimento,
portanto, à FAPESP, que indiretamente acabou sendo uma financiadora do evento
também.
Com a ausência do Kabê, por outro lado, nos deixou literalmente acéfalos, pois
considerava à época imprescindível a sua presença. Julgávamos no início também que a
presença do Emanoel Araujo, tanto enquanto artista, curador, mas principalmente como
um dos criadores da noção de “arte afro-brasileira” por causa de suas exposições sobre a
temática, e ainda em função dele ter sido diretor da Pinacoteca seria uma presença
impactante. Ele, portanto, foi um nome cogitado desde o início da organização do evento.
Eu insisti quase que até o fim da necessidade dele, mas no final fui convencido e eu
mesmo achei melhor não o chamar, uma vez que a própria Aracy do Amaral, nome
também aventado desde o início, não poderia participar. Ambos ex-diretores da
Pinacoteca com grande expressão na exposição de artistas afro-brasileiros, eles seriam
convidados para participar deste evento na condição de diretores da instituição que
tiveram iniciativas ligadas à arte Afro-Brasileira em suas gestões: respectivamente Aracy
do Amaral (1975-1979) e Emanoel Araujo (1992-2002). Detalhes dessas ações podem ser
vistos na “Comunicação de Juliana Ribeiro “Arte Afro-brasileira na Pinacoteca
(26/11/2016), apresentada mais abaixo, p.514.

Outros nomes indicados inclusive por Tadeu Chiarelli foram o da Renata Felinto e
Fabiana Lopes, que estavam fora de São Paulo. Nós indicamos ainda Rosana Paulino, que
não pôde participar, porque estava envolvida com outros compromissos, provavelmente a
sua retrospectiva no SENAC.

Bem, da minha parte, ainda acho imprescindível a existência de um evento que congregue
a maior parte dos artistas do circuito e que eles mesmos pudessem apresentar seus
argumentos não só com “prós” e “contras” à chamada “arte afro-brasileira”, mas que eles
falem de seus próprios trabalhos e que deixassem também um espaço ao público se
manifestar sobre o assunto. Nomes como os dos colegas Sidney Amaral e Claudinei
Roberto, obviamente foram levantados, mas queríamos distinguir este evento do evento
de abertura da exposição “Territórios” (do qual estes também tomaram parte) e queríamos
ainda ampliar o número de participantes, chamando inclusive alguns que não
participaram da mostra. Seja por revisão dos participantes ou um “deslize” da curadoria,
o artista Tiago Gualberto, por exemplo, já tinha sido cotado para participação na
exposição Territórios e tinha ainda chegado a termo uma doação de uma de suas obras
para participar da exposição. Eu imaginava que essa doação ainda não tivesse tido baixa
no acervo, mas, de acordo com conversas que eu tive com Chiarelli e com o próprio
artista sobre o assunto - Tadeu Chiarelli não tinha certeza se a obra dele já havia sido
doada, e Tiago Gualberto supõe que Chiarelli, com quem almoçou meses antes para fazer
os acertos desta exposição, deve ter se esquecido de colocar sua obra na Mostra...não
sabemos...enfim, essa ausência que a nosso ver, de qualquer forma, não passou
despercebida, foi bastante frustrante). E a presença do Tiago no debate recompensou em
partes a sua ausência na Exposição.

Fizemos no total duas reuniões com Tadeu Chiarelli na presença do Museólogo e curador
Pedro Nery e uma delas do Renivaldo Brito, Secretário da Diretoria. Conversando com
Juliana Ribeiro Bevilacqua, com quem dividi a coordenação do encontro, nós fomos
reorganizando o evento de acordo com o posicionamento do Tadeu Chiarelli, que nos
deixou bastantes livres para formularmos o que quiséssemos, claro, dentro de algumas
perspectivas que abarcassem os interesses institucionais da própria Pinacoteca também.

No meu projeto inicial, cujo título era “Colóquios na Pinacoteca - conceitos de arte afro
brasileira em revista” eu previa que o evento poderia seguir a trilha deixada pelos
intelectuais e artistas que se debruçaram sobre a questão afro-brasileira e as artes plásticas,
mesmo que fosse um desdobramento da exposição “Territórios: artistas afrodescendentes
no acervo da Pinacoteca”. Uma das prerrogativas institucionais propostas seria a de que
fosse possível fazer uma discussão pública ampla do tema “arte afro-brasileira”
considerando não só o Acervo do Museu, mas também a história daqueles artistas e obras
que estariam de algum modo relacionados a esse importante aspecto da história da arte no
Brasil. Por outro lado, sabíamos que nenhum evento seria completo o bastante para dar
vazão a todos os leques de opções que o assunto permite. Discussões sobre o seu conceito
e a exposição de um tipo de obra de arte sobre a rubrica “afro-brasileira” possui um
histórico relativamente grande. Sabíamos também que, desde o início do séc. XX até hoje,
livros, artigos, dissertações acadêmicas, catálogos de exposições, matérias de jornais e de
revistas, entre outras publicações têm sido dedicadas ao tema de maneira expressiva, mas
sem que houvesse um esforço de encontrar pontos de convergências e de divergências em
toda essa produção. O objetivo inicial doo evento na Pinacoteca, portanto, seria fazer esse
primeiro levantamento e estimular os estudantes de artes e pessoas interessadas a
continuar o desenvolvimento dessas pesquisas que visam alcançar um nível de
profundidade bem maior do que já foi alcançado até aqui, além de visar a criação de uma
espécie de base para que seja escrita a história dessa arte...algo que não vimos, não só por
quaisquer descuidos, mas porque ela ainda não foi suficientemente debatida e mesmo
academicamente há muito poucas discussões, seminários, congressos e outras atividades
discentes a respeito.

Na busca pelas significações e sentidos de algumas das manifestações


artísticas brasileiras cujo envolvimento com as heranças genéticas ou culturais africanas
de algum tipo puderam ser explicitadas formou-se um corpus que pretendeu observar os
sentidos dessa arte chamada “afro-brasileira”. Qual seria o alcance, o que definiria, quais
características puderam ser identificadas nas obras ou nos artistas que puderam ser
destacadas para que uma obra de arte fosse classificada como tal? Com o encontro
deveríamos ser capazes de passar em revista o histórico das principais exposições a arte
de temática afro brasileira ocorridas no Brasil, além de fazer um levantamento inicial dos
seus conceitos e definições trazidas pelos intelectuais e artistas que se debruçaram sobre
essa questão. Além disso, partindo do Acervo, por assim dizer, “afro-brasileiro” da
pinacoteca e das diferentes exposições com essas temáticas ocorridas na instituição
pretendíamos sublinhar o papel pioneiro que a Pinacoteca do Estado de São Paulo teve ao
lidar com velocidade este tema na atualidade...deixando no pit stop o Museu Afro Brasil,
que é uma instituição que aparentemente dormita atualmente nesses e outros assuntos
relativos ao negro.

Essas preocupações parecem se manter ao longo do tempo, no entanto, novas questões


podem e devem ser lançadas para o avanço desta reflexão. Na atualidade, denominações
abstratas que pretendem evocar uma África mística parecem ser compartilhadas tanto por
curadores e críticos quanto por alguns artistas. Qual o sentido em recorrer no século xxi a
uma ideia de África abstrata ao mesmo tempo em que há um considerado avanço nos
estudos africanistas no Brasil?

Até que ponto as obras de arte assim intituladas se estabeleceram nas instituições para
além da luta política pela valorização de nossas ligações com a África, a ponto de elas
serem observadas esteticamente, conquistar espaços museológicos e que fossem avaliadas
antes como “obras de arte” do que como um nicho de mercado?

Desde as primeiras publicações que trataram do tema, embora se restringissem


principalmente nas questões de ordem antropológica e de cultura material, apresentou-se
alguns dos aspectos plásticos elaborados pelos africanos e seus descendentes no Brasil
que formaram as bases teóricas do problema. Com a releitura de nomes como Manuel
Querino (1851-1923), Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), Mario de Andrade
(1893-1945), Arthur Ramos (1903-1949), Gilberto Freyre (1900-1987); Roger Bastide
(1898-1974), Pierre Verger (1902-1996), Ruth Landes (1908-1991), Marianno Carneiro
da Cunha (1926-1980), Clarival do Prado Valladares (1918-1983), Kabengele Munanga
(1940), Emanoel Araujo (1940) e muitos outros, poderíamos dar o pontapé inicial para
essa reconstituição histórica...E tivemos tudo isso em mente ao reelaborarmos os ajustes
finais, mesmo que com os pés mais no chão pudéssemos atingir um pequeno púlpito que
nos permitisse olhar um pouco mais adiante.
Apêndice 03 - RESUMO: Pina_Encontros: Olhares sobre a arte afro-brasileira,
seus conceitos e seus artistas (05/11/2016 - 03/12/2016)

“Olhares sobre a arte afro-brasileira, seus conceitos e seus artistas”


Fotografias tiradas no evento, entre os dias 05/11/2016 e 03/12/2016
Renato Araújo
Hélio Santos Menezes Neto276

Formado em Relações Internacionais (IRI-USP) e


Ciências Sociais (FFLCH-USP), desde a graduação
em sua pesquisa de Iniciação Científica intitulada:
“Arte afro-brasileira ou falando de raça: a
experiência do Museu Afro-Brasil de São Paulo”
vem desenvolvendo estudos relacionados à arte,
especialmente as com temáticas afro-brasileiras.
Atualmente é mestrando em Antropologia Social
(PPGAS-USP) com o título: “Zabé come Zumbi, Zumbi come Zabé: arte afro-brasileira e relações raciais
no Brasil” e é ainda pesquisador do Núcleo de Estudos dos Marcadores Sociais da Diferença
(NUMAS-USP) e do Etno-História (USP).

Hélio Menezes (05-11-2016) - foto: Renato Araújo

“Olhares sobre a arte afro-brasileira, seus conceitos e seus artistas”

276
Quem presenciou os eventos percebeu que eu odeio fazer “apresentações”, principalmente porque eu penso que uma pessoa viva
é sempre indecifrável e nunca se pode deduzi-las. Dizer quem uma pessoa é, é uma responsabilidade, no mínimo, de Deus - então,
como um ateu, eu passo a minha vez na rodada... Mas como sei que para algumas pessoas isso é importante aqui coloquei um pequeno
resuminho nada “lattes”..
Fotografias tiradas entre (05/11/2016 e 03/12/2016) - Renato Araujo

O convite ao jovem pesquisador Hélio Menezes, que havia frequentado nossos cursos,
mas com quem eu só tinha conversado apenas uma única vez nos corredores da
administração da FFLCH, na defesa do doutorado da Juliana Ribeiro (em abril deste ano
de 2016), tinha sido uma escolha bastante entusiasmada dela. Ela e a própria Lisy (Marta
Heloísa Leuba Salum) já haviam me falado dele com grande entusiasmo antes de eu
conhecê-lo e eu fiquei bastante feliz de compartilhar com elas essa alegria em tê-lo
conosco neste evento. Considerei sua presença fundamental, porque eu já conhecia o
trabalho do Marcelo D’Salete com relação à curadoria do Emanoel Araujo e o da Renata
Felinto e seu trabalho sobre a escravidão africana na arte contemporânea brasileira, e de
alguns outros autores jovens, mas jamais tinha conhecido alguém que desde a graduação
já manteve o foco nessa temática das artes afro-brasileiras...por isso eu achei fundamental
a sua presença.

Ele está desenvolvendo um mestrado com este mesmo tema e acredito que o evento foi
pra ele tão útil quanto ele nos foi importante para trazer uma perspectiva mais técnica do
assunto. Pensando nisso, inicialmente, nós o chamaríamos apenas para falar das
“ausências no acervo da Pinacoteca”, apresentando artistas afro-brasileiros que não
apareceram na exposição “Territórios” ou que não faziam parte do acervo. Na medida em
que tivemos aquelas ‘baixas” supracitadas, decidimos por bem que eu dividisse com ele o
aspecto mais histórico e teórico da arte afro-brasileira como ela foi tomada no Brasil
pelos seus intelectuais, curadores e nas exposições. Assim, o Hélio abriu o evento
tratando das primeiras tentativas de determinação do conceito de arte afro-brasileira e eu
o segui no outro sábado fazendo um resumo dos estudos de arte afro-brasileira desde a
década de 1980 até os nossos dias.
A Comunicação de Hélio Menezes
(Auditório Pina_Luz: 05/11/2016)

- Hélio Menezes iniciou sua fala evocando a necessidade de se voltar às discussões que se
iniciaram com Nina Rodrigues277 como forma de compreensão de que essa discussão de
um século atrás tem um fundamento.

- Em seguida evocou a exposição “Territórios: artistas afrodescendentes do Acervo da


Pinacoteca” (2015) dizendo que ela era dividida em três ilhas: matrizes ocidentais,
matrizes africanas e matrizes contemporâneas, ressaltando “todos os problemas e
qualidades que essa divisão enseja”. Nessas três ilhas foram apresentados trabalhos de
enorme diversidade formal, semântica, dispostas no tempo e num espaço que parece não
resumi-los a uma categoria unificadora: compondo-se desde artistas do Séc. XVIII, como
Mestre Valentim até alguns contemporâneos como Rosana Paulino, Flávio Cerqueira... -
o critério que abrigava todos eles era o fato de todos serem brasileiros e todos serem, o
que a exposição chamou na época, “afrodescendentes”.

- Hélio evocou o burburinho que ocorreu na época a respeito disso e um artigo


(supracitado) publicado na Folha de São Paulo278 na véspera de natal. “Talvez só para
azedar o nossa ceia naquele dia”, afirmou Hélio. No artigo, continuou , “o crítico não via
problemas nas divisões dos temas, mas via sim um problema grave que era a seleção dos
artistas a partir de um critério de uma ascendência comum. Estratégia bastante
questionável, para esse crítico, porque ela manteria o preconceito, em vez de auxiliar na
inserção dos artistas com essa ascendência africana, que são constantemente
discriminados. A exposição, para ele não passava de uma ‘ação de Marketing

277
No texto: As Bellas Artes dos Colonos Pretos do Brazil, Revista Kósmos, Rio de Janeiro, a.I, n. 8,
p.11-16, 1904 1904.
278
politicamente correta’. Por outro lado, muitos elogiaram a exposição e alguns até
comemoraram, pelo fato de ser um tipo de exposição com um arranjo incomum, pelo
menos nos nossos ‘trópicos’, pensando as exposições a partir de outros recortes que não
sejam os pautados em escolas, gerações, movimentos ou correntes artistas, mas trazendo
temas que são um pouco escamoteados, colocados à margem, como gênero, raça,
sexualidade etc.”

- Hélio apresentou um slide com uma natureza morta de Estevão Silva datada de 1888,
presente na exposição Territórios. Ele cita o crítico Gonzaga Duque Estrada que dizia
dois anos após da morte do pintor: Não há ninguém no Brasil que faz naturezas mortas
como Estevão Silva. Estevam é um descendente de africanos conservando ainda traços
profundos e radicais que teve o papel de lutar corajosamente contra os preconceitos
estúpidos de sua cor. Cor e traços que seriam determinantes para o crítico no resultado
das obras do artista.

- Hélio mostra que o crítico não identificava nas obras de Estevão méritos estéticos ou
frutos de sua criatividade subjetiva, mas sim condicionamentos raciais: essa
prodigalidade de vermelho de amarelos e verdes, não é nem pode ser mais que um
reflexo transfiltrado de seu instinto colorista, vibrátil às sensações bruscas como é
peculiar à raça de que veio. (...) quem como ele vem de uma raça rude, oprimida, e vem
sofrendo, e vem lutando, não tem a nebulosidade grisata, dificultosa, mandria, enovelada
dos finos. Para o crítico Gonzaga Duque, Estevam silva, vê sempre Sanguíneo, vê sempre
desesperadamente amarello. Essa era a visão desse critico também em relação aos outros
pintores negros da época, explicou Hélio.

- O Crítico, comentou Hélio, não estava ainda falando sobre arte afro-brasileira, ou arte
afrodescendente ou arte negra. Mas ele já mostrava, desde então, uma tendência bastante
consolidada na crítica de arte no Brasil até hoje, de ver com olhares racializantes para
certas obras ou certos autores. Como se características raciais e expressões artísticas
fossem dois lados de uma só moeda.
- Afinal o que a expressão “arte afro-brasileira” quer dizer? Às vezes confundida, às
vezes preterida por termos vizinhos com “arte negra”, “arte afrodescendente”, “arte naïf”,
“popular”, “diaspórica”, ou às vezes mesmo “arte africana”, pura e simplesmente, essa
expressão “arte afro-brasileira” parece mais convidar ao questionamento do que
realmente esclarecer qualquer ponto. Não é fácil definir o que ela seja ou se possui
alguma especificidade.

- Diferentes modos de defini-la foram historicamente propostos: ora com base no fenótipo
do produtor (se ele é negro ou não), ora pelo viés da reprodução de cânones estéticos
especificamente africanos, ou ainda pelo conteúdo latente das obras independente dos
modelos formais empregados ou da ascendência racial dos seus produtores; às vezes uma
combinação de tudo isso.

- Pierre Verger seria um caso dos que buscava as raízes africanas a partir de sua rolleiflex,
capturava prioritariamente uma série de temas, objetos, situações que ligavam os dois
lados do atlântico negro muitas vezes sob o mesmo ângulo e perspectiva. A tônica da
reprodução da África ou de uma determinada ideia de África no Brasil iria se reproduzir
em todos os campos de interpretação africana nessas terras, seja no candomblé, na
culinária, na musicalidade ou nas formas plásticas. (a sociedade brasileira foi
africanizada)

- O conjunto de autores que tomam o tema das artes afro-brasileiras, ou de inspiração


africana ou de origem africana no Brasil, a pesar da pluralidade de suas perspectivas é
unânime em reconhecer o texto de Nina Rodrigues “As Bellas-Artes dos Colonos Pretos
do Brazil” (1904) como uma espécie de “certidão de nascimento” desse campo.

- Nina, apesar de seu enfoque bastante racista e determinista foi o primeiro a ver nesses
objetos da produção escultórica dos terreiros de Salvador, uma intenção artística.

- Apesar de Nina ser uma espécie de “autor maldito”, que não se pode citar, até hoje se
faz referência a ele sem citá-lo, por isso a necessidade de revisitá-lo.
- Há três aspectos levantados por Nina que se reproduzem ainda hoje:

A) A centralidade das peças destinadas ao culto religioso (Nina chamava de “arte negra”)
B) Entre essas peças, aquelas de matriz iorubana são aquelas valorizadas como as mais
autênticas (passando por cima de outras matrizes africanas que também chegaram ao
Brasil) - tornando-se “um medidor de africanidade” das artes afro-brasileiras.
C) Subsunção de todas as peças a uma etnia ou grupo racial sem dar qualquer atribuição
de autoria ou reconhecimento de seus produtores.

- [está por trás desse item c] a ideia de que se trata de uma África atávica, uma arte que se
reproduziria racialmente de geração em geração, cujos temas, motivos, soluções plásticas
e estilísticas se radicariam na ordem da natureza e não nos condicionamentos sociais ou
culturais de seus produtores (por pertencer a uma “raça” toda essa produção prescindiria,
portanto, da identificação de autoria.

Dois “Oxê de Xangô”, Madeira


(RODRIGUES, N. 1904, p.2)
...para Nina, essa desproporção do cumprimento entre os braços e as pernas é peculiar à
raça negra. Levada pela imperícia do artista quase ao extremo da caricatura.

- O termo “caricatura” é importante de ser ressaltado porque, para Nina, essa era uma
tentativa mal sucedida de reproduzir naturalisticamente o que é um corpo humano para
uma obra de arte. Sem perceber que não se tratava de uma reprodução de cunho realista,
de cunho naturalista, mas de outros cânones estéticos e que não poderia ser, portanto,
subsumidos à categorias mais comuns europeias. Segundo Nina essa seria uma fase
primitiva da evolução humana, um retrato distorcido de um modelo humano real.

uma estatueta atribuída a Oxum


(RODRIGUES, N. 1904)

...resultado de um produto artístico mestiço, segundo Nina Rodrigues. Essa mesma peça
foi “relida” por Marianno Carneiro da Cunha que diz: se a gente tira essa saia e coloca
um biquini, eis a imagem de uma pombagira contemporânea.

- A mestiçagem na análise de Nina se coloca como um problema. Apenas difícil decidir


se o mestiçamento é aqui do produto reproduzido ou das concepções do artista. A
associação dos caracteres das duas raças que entre nós tão largamente se fundem teria
recebido uma realização fantasiosista da imaginação do artista negro ou limitou-se este
a copiar a realidade em espécimes oferecidos pela natureza?
- Hélio compara, a seguir, a representação dos olhos das duas peças supracitadas.
Marianno diz que a representação dos olhos do Oxê peça mostra um formato losangular e
de grão de café - esta forma de representação dos olhos, diz Hélio, comentando Marianno,
“é um cânone estético tipicamente iorubano”.

- Menezes afirma que a representação dos olhos e dos seios da estatueta de Oxum
apresentam formatos mais tendentes à curva - menos geométricos como os de matriz
iorubana mais tradicional. Também as suas proporções corporais se distanciam do padrão
africano mais frequente caracterizado por cabeças grandes, pernas curtas... assim como
sua forma aparece de modo geral menos rígida que a de seus congêneres africanos
elaborados também na Bahia ou no Rio de Janeiro no final do séc. XIX, início do séc.
XX.

- Como contraponto à leitura evolucionista e de um racismo científico de Nina Rodrigues,


Hélio traz o historiador da arte Manoel Querino que em seu livro “Costumes dos
Africanos no Brasil”. Seus estudos e seus escritos seriam o primeiro conjunto de obras
que analisam de maneira positiva a participação dos africanos e seus descendentes na
conformação do país. Dizia Querino: Foi o trabalho do negro que aqui sustentou por
séculos e sem desfalecimento a nobreza e a prosperidade do Brasil. Foi com produto de
seu trabalho que tivemos as instituições científicas, letras, artes, comércio indústria etc.
Competindo lhes, portanto, um lugar de destaque como fator da civilização brasileira.

- Diferentemente de Nina Rodrigues que limitou em seus estudos às peças de matriz


religiosa, Querino vai biografar em seu livro “Artistas Baianos” uma série de artistas dos
mais variados ramos, não só da parte escultórica religiosa, mas também escultura,
marcenaria, música, pintura, entalharia etc.

- Se, para Nina Rodrigues, a mestiçagem se confundia com degeneração, para Manoel
Querino não, era da mistura entre brancos e negros que resultaria o mestiço, nas palavras
dele, uma verdadeira glória da nação.
- Arthur Ramos é um assumido seguidor de Nina Rodrigues e que escreverá o primeiro
estudo sistemático e especificamente voltado à arte negra ou à arte afro-brasileira (ele usa
os dois termos de forma indistinta, nos lembra Hélio). Ramos encabeçou, junto a outros
intelectuais baianos como Edison Carneiro a “Escola Nina Rodrigues” responsável pela
retomada de uma série de estudos de Nina, rivalizando na época com Gilberto Freyre e
seu grupo de intelectuais pernambucanos.

- Tanto Gilberto Freyre quanto Arthur Ramos contribuíram igualmente, mesmo que de
uma maneira um tanto distinta, para a propagação da imagem do Brasil como uma
democracia racial. Advogando pela tese de contatos raciais relativamente harmoniosos
entre brancos e negros. A disseminação de mestiçagem entre nós funcionaria como uma
espécie de prova e penhor dessa imagem de um Brasil racialmente democrático.

- Em seu livro “Arte Negra no Brasil” (1949) ele indica que a “arte negra” seria aquela
feita por negros não porque o seu estilo seja reproduzido racialmente e biologicamente de
geração a geração, como aliás era o modo como Nina entendia. Mas porque, segundo
Ramos, todos esses artistas, escultores da época passavam por uma experiência social
aculturativa comum.

- Ao substituir a ideia de biologia e raça pela ideia de contato e de cultura [“abordagem


cultural”] Ramos faz essa troca de termos, que pode parecer uma avanço, num campo
bastante minado porque por trás da ideia de aculturação sobrevivia uma ideia de
dominação e desigualdade.

- A análise de Ramos parece positiva quando diz que essas propriedades artísticas não se
passam biologicamente, se passam pelo contato entre culturas. Mas ele mesmo que diz
que é exatamente por isso que devemos deixar tal como está. Implicando com isso que os
artistas negros à época não deveriam assumir outros espaços que não os já reservados a
eles. Ao lado da ideia de reconhecer uma cultura própria também se criava a ideia de um
gueto próprio. “De um lado cria-se pontes sociais e de outros muros sociais”, diz Hélio
Menezes.

- Ramos também realça a participação do negro na modificação dos cânones de origem


europeia distinguindo: a) peças de arte negra sobreviventes no país (puras); b) produto
mestiço expresso na cultura rural da escultura nordestina.

- Dando ênfase à arte negra ele diz que ela tem uma origem fora da África: essas formas
tem uma origem mais antiga. Parecem estar ligadas à serie de representações egípcias,
sumerianas, orientais dos enfeites de cabeças de touros, num processo de transformações
sucessivas que teria se originado em Creta, na Grécia, passado pela Arábia para então,
posteriormente, penetrar na África. Mas essa é uma tese que não se sustenta hoje, diz
Hélio. Sabemos pelas obras mesmo que são de origem africana.

- Toda vez que “questão negra”, se colocava como uma tensão, um problema, um campo
de disputa mais amplo no debate social, também as peças feitas por essas pessoas vão ter
suas leituras retomadas. Há um pouco mais de cem anos de história de leitura e
interpretação dessas obras pra chegar na exposição Territórios na Pinacoteca. Então, toda
aquela discussão inicial que a Pinacoteca gerou, que o crítico da Folha de São Paulo
escreveu, na realidade são questões que tem origem bem mais antiga e que vão mudando
a partir da interpretação que a sociedade deposita ao que ela própria entende do que é
cultura africana ou afro-brasileira no Brasil.

- O crítico e historiador da arte Mário Barata, publicou uma controversa tese no artigo “A
Escultura de Origem Negra no Brasil” (1957). Esse artigo se insere no momento de
retomada dos estudos artísticos sobre o negro no Brasil.

- Mário Barata foi leitor de vários autores que contribuíram ao tema. E ele se dedica a
realizar uma análise formal da plástica do negro brasileiro, ainda enquanto se pudesse
conhecê-la, visto que, segundo um de seus diagnósticos pessimistas, essa produção
plástica já se encontrava, então, em via de declínio dada as suas transformações depois
de seu contato com a cultura do branco.

- As expressões arte plástica negra, artes plásticas do negro, estilo negro, arte atual de
tradição africana e arte afro-brasileira são termos usados pelo Mario Barata de forma
totalmente intercambiáveis, espécies de conceitos gêmeos cujos significados são
co-extensivos.

Hélio Menezes (o fotogênico ) expondo passagens de Mário Barata no Evento da Pinacoteca


Foto: Renato Araújo 05-11-2016

- Aleijadinho é ainda hoje talvez de maneira não explicita um marco a partir do qual se
pensa uma série de ouras produções artísticas, inclusive no ano de 2016. [ele tem uma
pertinência a arte afro-brasileira]
- Neste contínuo em que Mário Barata estabelece quatro tipos: dos mais negros aos
menos negros; seja na forma, seja na composição étnico-racial dos artistas que estão
produzindo, o Aleijadinho vai ser localizado como pertencente ao polo “mais branco” ou
ao “menos negro”, segundo Barata, porque não apresentaria nenhum indício estilístico de
origem africano. Aleijadinho estaria totalmente ligado às formas plásticas de origem
europeia.

- Mário de Andrade, em seu famoso ensaio chamado “O Aleijadinho” (1928) enaltece


esse que ele chama de “artista mulato”. Aleijadinho é importante porque ele seria uma
espécie de mito fundador das artes nacionais. A origem dessas artes se localizaria para o
Mário de Andrade e para Antônio Cândido, posteriormente, não na Escola Imperial de
Belas Artes, como a história oficial do Brasil tem tratado ainda hoje, mas no Barroco
Mineiro do séc. XVIII. É óbvio que Minas ser no interior do Brasil, com toda essa ideia
que o interior guarda de brasilidade latente, brasilidade originária, vai ser determinante
dessa escolha.

- Para Mário, a origem étnico-racial era um fator fundamental para compreensão de suas
obras, um elemento condicionante do seu fazer artístico: o Aleijadinho coroa como gênio
maior o período em que a entidade brasileira age sob a influência de Portugal. Para
Mário de Andrade, Aleijadinho é a solução brasileira da colônia. É o mestiço e é,
logicamente, a independência, abrasileirando a coisa lusa, lhe dando graça, delicadeza,
e dengo na arquitetura. Mário destina um enorme prestígio à essa categoria que Mário
identifica como “Mulatos”, começa com Aleijadinho, mas será reforçado nas Missões
Folclóricas

- Pode-se perceber na posição de Mário uma ambiguidade: de um lado ele apresenta uma
forte convicção da influência determinante dos africanos e seus descendentes na
conformação das mais diversas expressões culturais do Brasil, incidindo também nas
artes plásticas, de outro Mário também guarda um certo tom racialista, racializado em sua
critica de arte - invertendo o que antes era algo negativo em algo positivo.
- Depois de Mário desviar o foco do surgimento da arte no Brasil da Academia Imperial
de Belas artes para o Barroco de Minas Gerais, com o mulato Aleijadinho como ‘carro
chefe’, Luis Saia, o sucessor de Mário, mantém a mesma linha de raciocínio, mas vai
buscar a “genuinidade”, “originalidade” brasileira no nordeste, analisando, por exemplo,
os ex-votos naquilo que eles tem de africanidade (um esquema representativo que é
avesso ao naturalismo, tendência ao abstracionismo, características da arte primitiva).
O homem nordestino soube ser um indivíduo antropologicamente mestiço, acusa
nitidamente também uma cultura mestiça.

- Aqui já podemos pensar na ampliação da categoria dos tipos de objetos que cabem na
caracterização de arte afro-brasileira. O repertório de objetos listados desde Nina
Rodrigues, com peças de culto religioso, os ofícios listados por Manoel Querino, as
esculturas religiosas ou não analisadas pelo Arthur Ramos e pelo Mário Barata, e
chegamos ao campo da arte erudita, com Aleijadinho de Mário de Andrade e o campo da
chamada arte popular com Luis Saia e seus ex-votos.

- É certo que o Mário de Andrade não se dedicou a fazer uma análise ou uma obra
específica sobre o que seria arte afro-brasileira, mas em seus escritos nós podemos pinçar
uma série de palpites e ideias do que ele sugere. O Mário, aliás, diz Hélio, eu apostaria
que jamais falaria nesses termos de uma “arte afro-brasileira”, até porque o termo parece
negar um dos seus próprios projetos que é pensar, pesquisar, se dedicar a uma arte
brasileira sem prefixos, nacional.

- Há distintas visões de Aleijadinho. Emanoel Araujo, por exemplo, se pergunta: de onde


poderia vir senão da África aquela força expressionista contida na força das obras de
Aleijadinho, a sua escultura reducionista, geométrica, talhada com energia angulosa à
maneira dos escultores nigerianos pode ser resultante da influência dos três escravos que
trabalhavam com ele, mas mesmo assim, o inconsciente que dominava o próprio
processo de criação era o inconsciente de aleijadinho. [grifo nosso]
- Marianno Carneiro da Cunha, tal como Emanoel, vai ver certos traços estilísticos
africanos na obra do aleijadinho: a deformação convencional e sistemática, o
expressionismo exagerado, o não individualismo e a conceitualidade seriam traços,
segundo Marianno Carneiro da Cunha, de origem africanos. Para Marianno, houve uma
infiltração de elementos plásticos africanos na obra de Aleijadinho, mas não pela via do
inconsciente. Segundo ele, apelar para a ideia de inconsciente, que um artista
“reproduziria cânones por meio não intencional” seria reduzir essa produção há um vago
atavismo, uma vez que essa cultura se transmitiria pelo contato e pela vivência e não
biologicamente.

- A infiltração do elemento escravo nas artes brasileiras coincide com a própria eclosão
das artes no brasil. Sem essa mão escravizada, portanto, não se pode começar a analisar a
produção de arte no Brasil. Marianno associa diretamente o surgimento das artes no
Brasil ao modo de fazer de origem africana.

- Pela primeira vez, aparece uma análise que conjuga interpretações formais,
iconográficas, a uso, a símbolos, re-inscrição e releitura que no Brasil se faz dessa matriz
africana. Ao analisar as peças Ibeji, por exemplo, Marianno reconhece rigidez da forma,
frontalidade da atitude, uma representação antes conceitual do que visual ou
naturalística do corpo humano, ausência de expressões faciais de emoções, a não
identificação do indivíduo representado, os braços sempre paralelos aos corpos, a
figuração dos olhos com as pupilas dilatadas...etc. São alguns dos aspectos mais comuns
que ele identifica nos dois lados do atlântico negro.

- Robert Farris Thompson ao consultar informantes iorubanos com respeito aos conceitos
que eles têm de suas obras, lista cerca de 20 itens que ajudam a compreender a noção que
eles teriam de suas artes. Marianno também segue alguma dessas possibilidade. Citemos
alguns: conceito de “Jijora”279 que poderia se traduzir por uma “semelhança moderada ao

279
Ver: THOMPSON, R.F., Aesthetics in traditional Africa. In: Art and aesthetics primitive society, JOPLING, Carol
F. (Ed.) New York, 1971, p.375-376.
______________________. Black Gods and Kings: Yoruba art at UCLA. Los Angeles: UCLA, 1971.
______________________. African Art in Motion: Icon and Act. University of California Press, 1974. N. do E.
modelo, um equilíbrio entre os extremos do retrato e da abstração. “Gigun”, uma postura
correta e um arranjo simétrico nas partes sem excluir o mínimo de assimetria nos detalhes
menores.

- Ao contrário de Nina, Mário Barata e outros, Marianno diz que essa assimetria vista
nessas obras não é uma imperícia técnica eles estão seguindo à risca o mais próximo
possível aos cânones que deram origem à essas peças. Essa ideia de uma simetria à
distância e de uma assimetria na proximidade vai ser encontrada em quase toda a
produção escultórica africana em que pese a sua diversidade regional.

- Segundo Hélio Menezes, “o procedimento que Marianno irá adotar serve como um bom
guia metodológico para seguir com as pesquisas:

A) Conhecer o protótipo africano que deu origem às peças no Brasil


B) Ver o que há de comum em aspectos tanto estilísticos quanto do uso simbólico no
Brasil e na África
C) Comparar essas transformações”

- A categorização e definição canônica de Marianno com relação à arte afro-brasileira:


arte afro-brasileira é uma expressão convencionada artística que ou desempenha função
no culto dos orixás ou trata de tema ligado ao culto. (...) dos artistas cobertos em geral
por essa definição muitos são brancos, outros são mestiços e relativamente poucos são
negros. Poderíamos subdividi-los em quatro grupos:

A) um termo afro-brasileiro em sentido lato:

1) aqueles que só utilizam temas negros incidentalmente


2) Os que fazem de modo sistemático e consciente
3) Artistas que se servem não apenas de temas mas de soluções plásticas espontâneas e
não raros inconscientemente
B) um termo afro-brasileiro em sentido estrito:

4) Os artistas rituais

- Marianno articula critérios tanto formais quanto semânticos de classificação se


afastando, portanto, da ideia de ascendência africana do artista como o único recorte
definidor possível desse campo de estudos para focar em diferentes graus de ascendência
africana da obra. É a transmissão de signos, faturas e cosmologias presentes nos produtos,
mais do que supostamente a transmissão hereditária e biológicas de aptidões artísticas dos
seus produtores que é posta em primeiro plano aqui.

- Mas afinal, o que é arte afro-brasileira? É feita por afrodescendentes? É aquela derivada
de soluções plásticas, formais africanas? É definida pelo tema e o conteúdo que expressa,
independente da sua forma e da sua autoria? Ou talvez uma mistura entre todos esses
critérios? Mais do que isso, quais são os rendimentos e os limites do uso de uma tal
categoria como arte afro-brasileira para agrupar artistas de todo heterogêneos com
diferentes intenções, técnicas, suportes, temas e influências artísticas e ainda por cima
historicamente distanciados? O que faz afinal com que algo seja considerado o que é?

- É também Marianno Carneiro da Cunha que no final do seu artigo vai afirmar que o que
ocorreu com a arte afro-brasileira é o que acontece fatalmente com toda arte. É o produto
de pressões históricas, escolhas, invenções e adaptações e, acrescentaríamos, de revolta.

Sessão de perguntas (transcrição de áudio)

Renato Araujo da Silva - Obrigado Hélio, nosso tempo está um pouco avançado, mas
gostaria de abrir para as perguntas.... Falem o nome e...
Participante 1; Paula Camargo - Boa tarde, eu gostaria de agradecer ao Hélio por essa
fala toda organizada. Pra mim tudo é novo. Eu não tinha esse contexto e achei ótimo. Eu
queria fazer uma pergunta um tanto óbvia.... Você falou que as mesmas peças foram
sendo relidas pelos críticos. Por que?

Hélio Menezes - algumas dessas peças foram repetidamente avaliadas, mas não foram
todas. Eu diria que foram alguns motivos, especialmente dois:

- O Nina Rodrigues que foi o primeiro a analisar essas peças, tem um peso central no
Brasil ainda hoje, apesar de todas as suas manifestações bastantes racistas, ultrapassadas,
questionáveis, mas foi o primeiro a se dedicar a pensar esse tema. É um campo, apesar de
sua importância e de sua expressão, como tentei mostrar, na arte popular, na arte dita
erudita, na arte religiosa e assim vai, muito pouco tratado. Muito pouco questionado,
muito pouco pesquisado. De modo que, uma série de análises que o Nina fez e pareciam
pertinentes vão reaparecer nos autores seguintes que vão limpando, digamos assim, todas
as impregnações racistas e evolucionistas que o Nina tinha, daí a importância talvez de
pegar as mesmas peças e revisa-las.

- Por um outro lado, todas essas peças são de matriz iorubana. Todas da África Ocidental;
essas que se repetem principalmente com Nina e até Marianno Carneiro da Cunha. E aí
há uma explicação que talvez fundamente ainda mais. Se voltarmos para aquele primeiro
mapa da África [apresentado em slide]. Se é verdade que o Brasil recebeu muitos
africanos ocidentais como escravizados, especialmente dessa região iorubana, essa
localização não é equânime no Brasil. Os iorubas se assentaram basicamente na Bahia.
Teremos registros de assentados iorubás nessa macrorregião. O iorubá é um termo que
junta uma série de povos étnicos da África Ocidental - a maior parte deles ficou na Bahia.
A escravização no sudeste, por exemplo, não é de maioria iorubá.

- Então, porque essas peças iorubás são repetidamente analisadas? De fato tem-se essa
ideia de que a Bahia centraliza e é uma espécie de Meca da africanidade no Brasil. Então,
quando se pensa em África, se pensa em Bahia e falar em África na Bahia é basicamente
falar da África Ocidental, especialmente os iorubás, mas também por um projeto dos
próprios iorubás. Isso é importante sublinhar. Uma série de intelectuais, artistas, políticos
iorubás, ainda no final do século XIX e ao longo do século XX, vão fazer uma espécie de
autopropaganda bastante eficiente que bate não só nó Brasil, mas em toda América. Se
formos à Cuba, pensar em arte afro-cubana é pensar em arte afro-cubana de origem
iorubá, se formos ao sul dos EUA, pensar em arte afro-americana religiosa de origem
africana, é arte afro-americana de origem iorubá. Apesar de Cuba ter recebido bastantes
iorubás tal como a Bahia, os EUA não tem esse registro. Como se explica, portanto?

- Se ainda hoje a gente pensa os iorubás como centrais, e de fato eles são importantes, não
quero com isso diminuir a fala. É que os iorubás tinham, diferentemente de outros grupos
étnicos, uma arte de corte, por exemplo, uma arte real patrocinada pelo Estado. Tinham
uma série de artesãos, artistas, escultores pagos pelas dinastias pra fazer de um lado,
especialmente na região do Benim. Mas também os iorubanos vão patrocinar por todas as
Américas como uma arte das mais evoluídas. Como uma arte que, mesmo na África, é
aquela de melhor execução. Óbvio que há uma série de questionamentos pra isso, mas
isso de fato pegou.

- A repetição das peças se dá por uma tradição dos estudos, por Nina Rodrigues, e a
Bahia ser essa espécie de Meca da africanidade no Brasil, mas também por uma espécie
de agência dos próprios iorubás que definiram sua arte como a mais desenvolvida da
África, ao invés de outras expressões regionais. Mas sua pergunta não tem nada de óbvia.

Juliana Ribeiro Bevilacqua - Primeiro eu gostaria de lhe dar meus parabéns, Hélio, pela
sua fala, acho que foi muito importante. Eu queria que você voltasse, quando você fala do
Arthur Ramos e das imagens que mostrou...

Hélio Menezes - que não são iorubá, né? É importante marcar...

Juliana Ribeiro Bevilacqua - ...só chamando a atenção...O Hélio mostrou durante a fala
dele sobre o peso dessa produção iorubá. A gente pode perceber também que esse peso se
mantém mesmo quando as peças não são de origem iorubá. Aquelas duas peças de baixo
são claramente de origem Congo. Aí, se vocês olharem a legenda está: “Orixás do culto
gêge-nagô”. Ou seja, não adianta mostrar outras peças porque elas vão ser interpretadas
nesse momento como sendo de origem iorubá. E a de cima, não sei se o Renato saberia,
eu acho que já tem uma...

Hélio Menezes - eu acho que é um erro do Arthur Ramos também. Ele define como
iorubá, mas não são.

Juliana Ribeiro Bevilacqua - e eu não consigo...

Hélio Menezes - eu diria que já é peça brasileira...

Juliana Ribeiro Bevilacqua - Né? identificar mais claramente...

Renato Araújo da Silva - [problemas com microfone]

Hélio Menezes - xxiii...a coisa é com você, hein Renatinho! (risos)

Renato Araújo da Silva - o tempo tá um pouco avançado. Eu vou retomar esse problema
da “nagocracia”, como a gente chama, que aparece nesses textos teóricos sobre arte
afro-brasileira ou arte africana no Brasil. Mas é evidente, os estudos de arte africana no
Brasil estavam nesse período só no começo. Se hoje é muito difícil a gente fazer
identificação dessas obras senão sob um prisma de uma classificação... a partir de
classificações que já foram feitas, então a dificuldade é muito grande. Nesse período
havia uma infinidade de erros de identificação e definição do que seriam essas obras. Mas
eu gostaria de retomar isso no próximo encontro.

Hélio Menezes - enquanto você leva lá [o microfone] Renatinho, eu só queria fazer um


comentário sobre isso. O Arthur Ramos erra aqui, explicitamente nas peças da fileira de
baixo. Ao atribuir como orixás o que definitivamente não são e as de cima eu acredito
que são peças brasileiras. Ainda estão pra serem analisadas. Ninguém retomou essas
peças, mas acho que já são peças brasileiras.

Participante 2 280
- eu queria agradecer pela palestra que foi muito boa. Eu queria fazer
uma pergunta, na verdade, voltando para o Mário de Andrade. Eu não sei se vai dar
tempo da gente discutir, né? Pelo que eu tô entendendo aqui, né? Não sou da área, mas
acho que tem um segundo complicador, eu acho, sobretudo essa expressão
“afro-brasileira”, né? Você mostrou como a primeira parte da expressão é complicada,
não é? O que significa esse “afro”? Né? Se é fenótipo, se é cultural, o que que é? Enfim,
mas tem uma segunda parte da expressão que é complicada também, não é? O que é o
“Brasileiro”, não é? E daí...eu não sei como formular a pergunta de forma mais objetiva,
mas...No texto sobre o Aleijadinho, o Mário de Andrade tem uma certa ambivalência,
vamos dizer assim, inclusive ele chama o Aleijadinho de “aborto luminoso”281, não é?
Quando você se referiu ao Mário você disse alguma coisa sobre “o interesse por uma arte
autenticamente brasileira” etc., não é? A questão é que pro Mário essa arte brasileira não
é prévia à intervenção crítica dele, digamos assim. É uma espécie de programa...né? E ele
vê no Aleijadinho, uma espécie de solução colonial..., modernista, né? Pra ele.... Que
teria acontecido lá, mas que não virou tradição, não é? (...) Se a questão afro-brasileira já
é complicada por si, qual é o papel disso no cânone de uma arte brasileira, digamos assim,
se serve pra especificar uma arte brasileira que é o caso, talvez de Mário de Andrade, né?
Que vê na mestiçagem uma espécie de caminho. Que lugar ocuparia essa [arte]

Hélio Menezes - infelizmente, como o tempo era curto e também não queria roubar as
falas dos meus colegas, a gente parou hoje nos anos [de 19]80. Mas tem uma vasta
produção pós Marianno Carneiro da Cunha até os dias de hoje. Eu assinalaria que, pra
essa questão de o que que tem de “afro” nessa dita “arte brasileira” e o que tem de
“brasileiro” e qual o seu papel na configuração, importância das artes brasileiras e

280
Homem branco, cerca de 36 anos não identificado.
281
Mário de fato afirma isso em “ANDRADE, M. Aspectos das artes plásticas no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia,
1984. p. 41). N. do E.
nacionais, como é que seja...Eu acho que ainda hoje a publicação mais importante...ou o
debate mais importante sobre esse tema vai ser “A Mão Afro-Brasileira” de Emanoel
Araujo. É um projeto ao menos na primeira edição que conta com a introdução preciosa
de Joel Rufino e que desaparece na segunda edição dessa publicação, não sei por
que283...Mas a pergunta é: e se fizéssemos um levantamento para mostrar “quem negro foi
e quem negro é” nas artes. Essa a pergunta que animava. Tratava-se no meu ponto de
vista, menos de entender essa reprodução de formas, se o olho é assim ou assado, se se
transforma de lá pra cá, mas mais de falar: “temos um problema” que no campo das artes
do Brasil, da critica das exposições, das instituições e das publicações é marcadamente
branco. Seja quem tá escrevendo, quem tá produzindo, quem está sendo exposto, etc. etc.
Então a ideia era falar: “olha, temos muita coisa qui encoberta. Temos uma participação
negra encoberta, não revelada ou que precisa de pesquisa para irmos lá ver se tinha ou
não”. A Mão Afro-Brasileira, essa publicação seguida de exposição marcada nos cem
anos da Abolição em 88 vai trazer uma nominata gigantesca, aqueles que conhecem a
obra sabem o que eu estou falando, são dois volumes enormes, com muita imagem e com
uma lista gigantesca com vários campos de produção artística de quem foi negro no
Brasil e quem é e produz arte. Independente se o tema é de origem africana, se a forma
dialoga ou não. E ali, essa discussão acho, sobre Aleijadinho vai aparecer de uma maneira
um pouco mais circunscrita. Por que? Porque, o Aleijadinho, em toda crítica, com
exceção do Mário... vão sempre ver o Aleijadinho como: “aqui... formas Ibéricas...formas
italianas...possíveis de ler...etc. Mas tem algo que sempre intrigou os críticos fora do
Brasil ou dentro que foi: por que raios esse barroco, dito barroco dele, é tão diferente do
barroco Ibérico? O que é que tem de particular? As primeiras respostas que ainda hoje se

283
Com relação a isso eu acho que devo evocar a minha opinião pessoal aqui: eu contribui diretamente na publicação
da segunda edição de a “Mão Afro-Brasileira” em 2009 e 2010, embora meu nome não apareça lá...como já aconteceu
com outros textos publicados pelo Museu Afro Brasil (voilà! Santo de casa não faz milagres!). Mas além das questões
óbvias de ajustes editoriais, eu nunca tinha visto realmente, que numa segunda edição “ampliada e revisada” se tirasse
textos ou artistas outrora publicados. É claro que a ampliação e a revisão supõe algum critério de edição. Por outro lado,
certos desafetos do Emanoel Araujo não fizeram parte da nova edição, o que poderíamos dizer por “vingança” mesmo.
No meio do caminho, Emanoel Araujo brigou com várias pessoas, outras colocaram o Museu e ele mesmo na Justiça
por “n” motivos e ele disse peremptoriamente que não tinha interesse nenhum em divulga-los. Agora, ele nunca brigou
com Joel Rufino, que eu saiba, mas ele sempre esteve de nariz torcido para a academia em geral, incluindo Joel
rufino...Vejam por exemplo que Milton Santos (ainda que in memorian), Kabenguele Munanga e o próprio Joel nunca
foram integrados (como deveriam) diretamente ao Museu. Quando o Joel morreu fizemos uma homenagem muito
tímida (para dizer o mínimo) a ele, mas não foi nem no acervo, foi no hall de recepção do Museu. Depressivamente, até
hoje, não há no Museu Afro Brasil uma única referência a esses três maiores intelectuais negros que a minha geração
teve a honra de conviver - e tudo isso se deve a desafetos particulares do diretor, meu chefe, aliás! N. do R. S. L.
(Nota do Renatinho Sem Papas na Língua).
mantém é: O Aleijadinho, como a própria alcunha dizia, tinha problemas físicos e aquela
deformação era decorrência de sua forma física...que é uma...enfim, é de um tapacitismo
ridículo…né? E que não poderíamos, eu acho, do meu ponto de vista, biologizar a
questão e de maneira bastante equivocada. Vai ser o Mário de Andrade e depois o
Marianno Carneiro da Cunha, mas também o Emanoel e outros que eu não pude trazer
hoje mas que dos anos 80 pra cá vê em Aleijadinho que se de fato dá pra ver traços
Ibéricos identificados, traços italianos no barroco dele - á diferença, o porque que é tão
diferente... É porque ali existiria uma infiltração de elementos plásticos africanos.

- É uma tese controversa ainda hoje no campo das artes, não é todo mundo que aceita isso.
O que tentei demonstrar, ao menos nos anos 80, o debate sobre o Aleijadinho, a partir
dessa perspectiva de identificar uma “mão afro-brasileira” nele vão se dar em dois polos:
de um lado, se ele era mestiço obviamente a sua arte assim será. - uma concepção
bastante funcionalista e biologicizada dessa produção. Com uma outra vertente e aí, de
fato o Marianno Carneiro da cunha é o primeiro a afirmar com convicção de que não se
trataria de uma produção inconsciente, de uma reprodução biológica. De que não é pelo
fato dele ser mestiço que sua arte seria mestiça. É de que ele estava ali, infiltrando,
colocando soluções plásticas africanas que ele via na confecção de outras peças da Minas
Gerais do séc. XVIII. Que ele fazia a partir de seus assistentes escravizados ou não, uma
série de outras peças que talvez esses mesmos caras faziam porque era o modo de fazer. E
nisso é o ponto em que o Renatinho sempre marca284 e hoje eu também não trouxe,
talvez por falta de tempo, é que boa parte do tráfico negreiro, especialmente pra algumas
regiões do Brasil era um tráfico especializado. O que eu quero dizer com isso? Que
buscava mão de obra especializada, que buscava tecnologias específicas de diferentes
regiões da África pra vir ao Brasil, não interessava aos escravistas e aos senhores trazer
por exemplo, escravizados da África que não soubessem lidar com técnicas de agricultura
pra implantar aqui. Ou não interessava trazer aqueles que fossem super especializados em
técnicas de agricultura para levá-los para Minas Gerais, por exemplo, que é um outro tipo

284
Agradeço ao Hélio por essa lembrança, acredito que ele esteja se referindo a um texto meu SILVA, Renato Araújo
da. Isto não é Magia; é Tecnologia: subsídios para o estudo da cultura material e das transferências tecnológicas
africanas‘num’ novo mundo. São Paulo : Ferreavox, 2013. Disponível em:
https://drive.google.com/file/d/0B9wUkEM8utvwU05qWWdKQnZPRzA/view?usp=sharing
de produção. Se a gente acompanha com detalha aquele site que eu mostrei dos
mapas[slavevoyages.org/] a gente consegue ver isso com bastante clareza. Pra cada
região do Brasil vai ter áreas específicas da África, inclusive na área de tecnologia. Quem
tiver a oportunidade de visitar o Museu Afro Brasil, inclusive, vai ver que um dos modos
que o Museu apresenta o tema da escravidão é muito pouco pelas marcas da subjugação,
da tortura, do trabalho exausto, mas, por outro lado, mostrar como a escravidão também
trouxe tecnologias preciosas da África pra cá e de outro modo não conseguiríamos ler a
história do trabalho e das artes no Brasil se não fosse por essas especialidades.

- Então, o que que eu quero trazer com isso? Também vieram nesse bojo artistas. Artistas
consagrados na arte, inclusive. Que a gente imagina consagrados pela importância que
essas esculturas tinham em algumas regiões e que vinham pra cá igualmente e vão tá nas
igrejas barrocas, mas que também vão tá nas peças escultóricas, vai tá na música, na
arquitetura, etc. etc. etc. Então, se o Aleijadinho, portanto, de um lado foi visto como “se
é mestiço, logo a sua arte é mestiça”, isso vai sendo desmentido por pesquisas um pouco
mais precisas que vão mostrar: ali talvez tenha uma arte mestiçada, no melhor sentido
aqui de mestiço, ou seja, uma arte que tem recursos estilísticos europeus, Ibéricos, mas
também recursos estilísticos africanos se ali infiltravam não pela via da reprodução por
ele ser um mestiço...não é sanguíneo...não é biológica a questão...mas outra...E essa outra
é cultural, portanto de aprendizagem diário de oficinas..., de técnica, de reflexão..., de
reprodução... de visualizar a imagem, de reproduzir...tá muito mais próximo, acredito eu,
de entender porque que o Aleijadinho tem esse papel de definir...

Mas só pra responder a sua última questão...porque o tempo tá apertado...o Aleijadinho, a


partir do Mário, certamente, e muito mais com Antônio Cândido, será considerado como
uma espécie de “mito fundador”. Ali começava uma arte nacional. O próprio Marianno
Carneiro da Cunha, apesar de ser esse autor dedicado à arte afro-brasileira como ele foi,
termina o texto dele falando, o que talvez esse termo [arte brasileira?] já não se aplique
mais. Deveriam usar apenas “arte afro-brasileira”, fica a questão, né? ...Não sei se
respondi.
Renato Araújo da Silva - bom, nosso tempo infelizmente se esgotou, mas gostaria de
reforçar, então que, na semana que vem não será aqui, será lá na Estação Pinacoteca, no
mesmo “bate horário”. Certo? Mas eu vou falar mais uma última coisa...só uma frase a
respeito da questão da identidade brasileira né? Quando a Carmem Miranda voltou dos
EUA disseram a ela que ela estava “americanizada” (risos)..E ela disse [em resposta] uma
coisa bem interessante que eu acho que vale a pena pra gente discutir o que seria essa
“arte afro-brasileira” né? Uma arte “afro” mas que tem esse epíteto também “brasileiro”.
Bom, a gente vai tratar disso na semana que vem, mas Kabengele Munaga que é um dos
teóricos desse assunto ele trata a arte afro-brasileira como uma espécie de capítulo da arte
brasileira. Mas, com toda certeza, “brasileira” qual, né? “brasileira” quê? A Carmem
Miranda mesma quando ela voltou ela falou, não “eu sou do camarão e do ensopadinho
com chuchu”. Brasileiro pra ela, naquele momento era isso. Pra muitos outros momentos
serão outras coisas. Pra nós certamente não deve ser o “camarão ensopadinho com
chuchu” (risos)

Participante - ela era portuguesa

Renato Araújo da Silva - Isso! (risos) Mas, essa identidade no fundo no fundo é uma
identidade histórica, né? Então, ela tem uma determinação, ela tem um movimento, né?
Ela vai e vem, não é um movimento como um progresso, mas alguma coisa que vai se
configurando ao longo do tempo seja pelos teóricos, seja pelos artistas, seja pelo público.
Então, as próximas sessões vão tentar levantar um pouquinho desses problemas aí,
Problemas teóricos, mas também problemas estéticos levantados por essa arte chamada
arte afro-brasileira.

Hélio Menezes - Vocês podem ver que na semana que vem tem gente muito mais
especializada falando…(risos) não percam!

Renato Araújo da Silva - (risos) pelo contrário, eu estudo outras coisas...O especialista é
ele.
A Comunicação de Renato Araújo
(Auditório Pina_Estação: 12/11/2016)

“Os frutos da Arte negra não poderiam pretender mais do que documentar, em peças de real valor
etnográfico, uma fase do desenvolvimento da cultura artística.

(RODRIGUES, N., Os Africanos no Brasil. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2010.
p.180
Renato Araújo (araujinhor@hotmail.com) – diletante brasileiro que
também atende por Renato Araújo da Silva, Araújo, Araujinho,
Renatinho ou Renatex. Graduou-se em filosofia em 2002, pela
Universidade de São Paulo (USP). Outro dia ele disse: “Poucos têm uma
noção correta disso, mas a vantagem em ser um “d-escritor” é que você
tem a liberdade e responsabilidade completas para com a objetividade,
para com o aprofundamento no humanismo e para com as saborosas
ligações improváveis dentro de toda subjetividade possível, mas também
é chamado a tergiversar, como se contasse estorinhas de aventuras para
Renatex
os seus netinhos”. Ligado à tradição libertária e à “literatura de mau
Iguarapé/MG gosto” desde 1989, o autor possui alguns textos disponíveis online:
11 de Set., 2016 http://pt.scribd.com/araujinhor Renato Araújo é também pesquisador da
Associação Museu Afro Brasil desde 2009, tendo também pertencido
com orgulho da equipe de educadores dessa instituição por quatro anos entre 2005 e 2009.
Tem experiência nos campos de arte africana, com ênfase em joias e em filosofia da
Grécia pré-clássica: ele atua principalmente com os seguintes temas: joias africanas, artes
africanas, arte e joalheria afro-brasileiras, dinheiro primitivo, acervo de joias do Museu
de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), antropologia
econômica, arqueologia, acervos de museus e catalogação, bem como desenvolve
pesquisas sobre filosofia pré-socrática, Demócrito e atomismo antigo. É astrônomo
amador e tem como hobby a literatura, a tradução de textos antigos e a legendagem de
filmes, músicas e documentários: https://www.youtube.com/user/renatoaraujinho

Destacamos aqui três textos apropriados à temática Africana e afro-brasileira:


*SILVA, Renato Araujo da. Isto não é Magia; é Tecnologia: subsídios para o estudo da
cultura material e das transferências tecnológicas africanas ‘num’ novo mundo. São Paulo:
Ferreavox, 2013.
[Discussão sobre a temática da transmissão de tecnologias africanas para o Brasil e para
as Américas https://drive.google.com/open?id=0B9wUkEM8utvwU05qWWdKQnZPRzA ]
* SILVA, Renato Araújo da. Escritos Afro-Brasileiros. Vol. I. São Paulo: Ferreavox,
2016. [Primeiro de dois Volumes da coletânea comemorativa de textos sobre África, arte
africana, arte afro-brasileira, joias, joalheria africana e outros itens de exposição do
Museu Afro Brasil – escritos entre os anos de 2006 a 2016.
https://drive.google.com/open?id=0B9wUkEM8utvwYm0wZTQxNUwwMUk
*SILVA, Renato Araújo da. Arte Afro-Brasileira: altos e baixos de um conceito. São
Paulo: Ferreavox, 2016.

(transcrição de audio) Tadeu Chiarelli - Boa tarde a todos. Obrigado pela presença. A
gente tá dando prosseguimento à série de encontros: Olhares sobre a Arte Afro-Brasileira:
seus conceitos e seus artistas, que de fato é uma decorrente, uma continuidade, vamos
dizer assim, dos trabalhos iniciados sobre a questão da arte afro-brasileira iniciados com a
exposição Territórios que foi inaugurada o ano passado aqui na Pina_Estação, dentro da
comemoração do 110 anos da Pinacoteca do Estado. Então, foi realizada aquela
exposição, depois um seminário que contou com a colaboração dos artistas e dos
intelectuais envolvidos com o jornal O Menelick [2o. Ato]. E agora reafirmando o
interesse da instituição na questão, nós entramos em contato com a Juliana e com o
Renato, aqui do meu lado, pra que pensassem conosco uma possibilidade de dar
continuidade às discussões relativas a esse assunto, nos preocupando agora com uma
questão historiográfica, que a gente achou que seria conveniente, que seria oportuno fazer.
Então, foi iniciada essa série de encontros. A gente tá bastante contente de ter, apesar de
todos os problemas que afligem o país (risos) e as instituições hoje... [a gente tá feliz] de
tá dando continuidade a essa preocupação da instituição.

Hoje nós teremos a fala do Renato Araújo que na verdade é uma sequência, né Renato?
De certas questões que foram levantadas por Hélio Menezes no último encontro:
Revisitando o Conceito de Arte Afro Brasileira. O título dessa fala [de hoje] é: “Arte
Afro-Brasileira: altos e baixos de um conceito”. O Renato é formado em filosofia pela
Universidade de São Paulo. Ele desenvolve há quase 16 anos estudos sobre arte africana
com especialidade em joias africanas e o Renato é pesquisador do Museu Afro Brasil há 7
anos e trabalha lá há 11 anos. Bom, enfim, acho que é a pessoa ideal para aprofundar as
questões aqui que nos interessa. Então, vou passar a palavra a ele, muito obrigado pela
presença.

(baseado em transcrição de áudio)


Renato Araújo da Silva

- Boa tarde a todos. Muito obrigado Tadeu Chiarelli por essa oportunidade de falar um
pouquinho a respeito desse tema que é na verdade um grande tabu e um “vespeiro”
realmente, porque não se trata de um tema apenas acadêmico. Se fosse acadêmico seria
interessante e até natural tratar de “vespeiros” e assuntos que são um tanto quanto
complexos do ponto de vista teórico. Mas é um tema que diz respeito a todos nós. De
uma forma ou de outra nós brasileiros temos uma ligação histórica com esse tema. Por
que? Como a gente percebeu na semana passada, algumas pessoas estiveram presentes...,
tratamos desse tema a respeito da arte afro-brasileira e o Hélio demonstrou que esse tema
está muito fortemente imbrincado na própria história do Brasil. A própria noção de
identidade brasileira ela perpassa um pouco também pela questão da arte brasileira e arte
afro-brasileira seria, de acordo com alguns teóricos, uma espécie de vertente da arte
brasileira.

- Nós vamos tratar um pouquinho a respeito deles. O Hélio já tocou... pra quem não
esteve presente na semana passada, [em questões] a respeito de alguns autores. Os
primeiros autores e teóricos que analisaram desse conceito. Ele tratou também de Nina
Rodrigues com o texto de 1904, central também dentro dos estudos de arte afro-brasileira:
“As Bellas Artes dos Colonos Pretos do Brazil”. Perpassou também por vários outros
autores como Mário Barata, Mário de Andrade, Arthur Ramos e outros e finalizando com
Marianno Carneiro da Cunha, do qual eu gostaria de pegar essa “tocha” dessa olimpíada
(risos) e retomar um pouquinho do Marianno Carneiro da Cunha pra seguir também um
pouquinho com outros autores.
- Obviamente nós fizemos uma seleção. Uma seleção, como sempre ela é indigna de
todas as pessoas que já trataram do tema... o tempo é sempre muito curto, nós temos de
fazer uma seleção obrigatoriamente, então, sequer passamos pelos principais autores.
Num levantamento que fiz com a Juliana na nossa bibliografia já passava o número de
quarenta autores que seriam os básicos. (risos) Eu trouxe também uma listinha de alguns
autores - tenho uma bibliografia [específica] também.

- Eu sou bem informal. Não gostaria de fazer uma palestra formal, então, por favor, me
interrompam a qualquer momento...se quiserem comentar...eu também vou deixar uns
minutos finais pra gente poder discutir um pouquinho, mas vocês podem me interromper
a qualquer momento para discutir seja o que eu estiver falando ou qualquer ideia que
vocês tiverem eventualmente.

- Eu gostaria de começar pensando um pouquinho numa citação da Marta Heloísa Leuba


Salum que nós chamamos Lisy, né? Que tem umas ideias bastante interessantes sobre arte
afro-brasileira que é uma espécie de epígrafe que eu deixei aqui para esse trabalho.

Desde sempre, porém, o problema da conceituação dessa arte é polêmico, não apenas no
que toca a sua denominação, mas na determinação de fontes de inspiração,
e de forma, e de função, como também na determinação de autoria.
Todo cuidado é pouco ao discorrer sobre arte negra no Brasil, assim como sobre arte
afro-brasileira, com os termos de um repertório estético que desconsiderou e por tantas
vezes depreciou o mundo negro-africano, por tanto tempo.

(Marta Heloísa Leuba Salum (Lisy) “Negritude e Africanidade na Arte Plástica Brasileira” In: MUNANGA, K. (ORG.) História do
Negro no Brasil vol 1 - o negro na sociedade brasileira: resistência, participação, contribuição, São Paulo:
Fundação Cultural Palmares, 1984.

- Só nessas pequenas linhas a Lisy apresenta algumas das questões que acabaram
perpassando toda a história dos estudos de arte afro-brasileira. Que nome dar? Arte Negra?
Arte Afro-Brasileira? Essa é uma das questões. Essa arte ficou por muito tempo à parte
ou [passou] à largo da chamada arte brasileira. Seria ela uma espécie de periferia da arte
brasileira? São discussões que a gente pode encontrar dentro de alguns autores dentre os
quais [sobre alguns] a gente tem falado desde a semana passada, e eu vou apresentar
alguns outros hoje.

- Marianno Carneiro da Cunha foi um desses autores que, eu concordo totalmente com o
que o Hélio disse na semana passada, é um autor central dentro dos estudos de arte
afro-brasileira. Tudo que veio antes e o que veio depois um pouco foi demarcado pelas
intuições que o Marianno Carneiro da Cunha tinha. Eu trouxe aqui, não sei se todos
conhecem, mas esse é um dos dois volumes do livro chamado “História Geral da Arte no
Brasil”. Eu gostaria de passá-lo para que eventualmente alguém queira folhar esse texto.
Eu deixei ele marcado com alguns posts it para facilitar a leitura... e ser um pouco melhor
[inteligível] o que eu quero dizer.

- Marianno Carneiro da Cunha, assim como vários teóricos do período, eles pensaram a
respeito dessa herança africana nas artes plásticas do país. Ele diz o seguinte:

Não se pode, portanto, negligenciar ou descartar o negro, quando se pretenda fazer


história da arte, tanto quanto qualquer outro tipo de análise de fatos históricos,
antropológicos, sociais ou econômicos do Brasil. (CARNEIRO DA CUNHA, 1983, p.
990)

- Para as pessoas que já acompanham essa questão dos estudos africanos no Brasil, já é
um dado pacífico a ideia de que não se pode prescindir dos estudos no negro no Brasil
quando a gente pensa em questões da antropologia do Brasil, né? A questão social do país,
ou principalmente os assuntos [históricos e] econômicos. Foram quase quatrocentos anos
de escravidão. O Brasil foi o último país a acabar com a escravidão [Atlântica]. Logo, a
escravidão determinou muito do que somos nós brasileiros. Do ponto de vista econômico
principalmente, por que não se acabou com a escravidão, praticamente cem anos antes de
quando acabou finalmente, pelo menos em termos oficiais? O Império Bbritânico fazia
uma pressão muito grande para finalização da escravidão e no entanto essa escravidão
não terminou tão rapidamente. Teve motivos, um deles é que a escravidão estava tão
fortemente imbricada na civilização brasileira, na cultura brasileira e particularmente na
economia que era quase impossível acaba-la da noite pro dia. Por isso foi preciso fazer
escalonamentos para poder encerrar a escravidão aos poucos. Em primeiro lugar, foi dado
espaço para os sexagenários (1885), para a lei do ventre livre (1871), assim por diante, e
foram ocorrendo várias leis que facilitaram de um lado o término da escravidão sem uma
violência do tipo revolucionária e ao mesmo tempo foi feita uma organização dentro da
economia para que essa libertação dos escravos não causasse um impacto muito grande.

- Mas o que Marianno Carneiro da Cunha diz é o seguinte: que não se é só na Economia
ou na antropologia ou nos Estudos Sociais que a cultura negra ou o negro deve ser deve
ser identificado ou analisado. Ele indica que é preciso fazer esses estudos na arte também.
Esse é um tema bastante recorrente em vários outros autores e eu os trouxe aqui pra
mostrar, justamente, muito daquilo que a gente vai chamar de arte afro-brasileira
dependeu dessa noção de que é preciso incluir o negro também nas artes. E eu vou
desenvolver isso a partir de agora.

- No seu texto “Arte Afro Brasileira” (CARNEIRO DA CUNHA, 1983) Marianno faz a
primeira demarcação do que seriam os estudos de arte afro-brasileira. E ele faz uma
definição para essa arte afro-brasileira. É uma definição que na verdade estava muito
ligada aos estudos dessa arte nos anos de 1970, que era uma arte que estava vinculada à
estritamente à questão religiosa. Não estranhem se este autor que é um dos mais
importantes para essa definição e pras questões históricas da arte afro-brasileira tenha
uma definição que seja um pouco old school. Uma definição muito antropologizada da
arte. Ele diz o seguinte:

- arte afro-brasileira é uma expressão convencionada[mente] artística que ou


desempenha função no culto dos orixás ou trata de tema ligado ao culto. (...) dos artistas
cobertos em geral por essa definição muitos são brancos, outros são mestiços e
relativamente poucos são negros. Poderíamos subdividi-los em quatro grupos:
- Eu coloquei aqui um grifo, para mostrar que quando ele fala aqui de “orixá” ele quer
dizer os cultos afro-brasileiros em geral. Então eu quero abrir um parênteses aqui e
aproveitar pra falar aquilo que eu tinha prometido que faria na semana passada que era
discutir um pouquinho bem rapidamente sobre essa questão da “nagocracia” que a gente
chama, né? O termo “nagô” significa “culturas iorubanas no brasil”, particularmente a
cultura religiosa. Então, quando se fala, por exemplo, “candomblé nagô”, diz respeito ao
candomblé de origem iorubana [ou candomblé cujas divindades - orixás - são de origem
iorubana, da Nigéria].

- Nagô é um termo que tem várias possibilidade etimológicas, mas uma das que eu mais
considero é aquela que diz respeito a um período em que os iorubanos na Nigéria tiveram
uma disputa bélica com os fon do Benim e os iorubanos que eram capturados eram
chamados de “maltrapilhos” e uma das línguas de povos do Benim, particularmentee o
Ewe, o termo “anago” significa “maltrapilho”. Quando ocorriam guerras entre povos
africanos que tinham contato com os Eeuropeus, particularmente com os Pportugueses
eles vendiam os povos que eram conquistados. Então, por exemplo, os iorubanos
guerreavam com os fon e [se] venciam a guerra, eles vendiam os fon para os
Pportugueses para serem tratados como escravos aqui nas Américas. Os cativos então,
eram vendidos para serem escravizados. Neste caso aqui, muitos iorubanos que eram
escravizados no Brasil vinham porque eram cativos de guerra dos fon. Então, eram
chamados “maltrapilhos” e, portanto, nagô.

-Os nagô cultuavam os orixás. Então a “nagocracia” tem um histórico. Eu costumo dizer
que ela começou porque os grandes intelectuais estrangeiros que tiveram aqui no Brasil
(Pierre Verger, Roger Bastide, Ruth Langues, o próprio Carybé e outros) se eles tivessem
a grata satisfação de ter pisado num terreiro de candomblé vizinho que não fosse de
cultura iorubana e sim de culturas banto, toda a história da cultura afro-brasileira em geral
seria completamente diferente. O que fez o Pierre Verger, principalmente, foi estudar
povos que tinham chegado muito mais recentemente aqui no Brasil, portanto a imagem da
cultura deles estava muito mais evidente, muito mais viva.
- Todo mundo pode ter uma experiência disso, né? Imaginem por exemplo, que uma
família de japoneses chegaram aqui no Brasil. São japoneses, falam a língua japonesa,
detém totalmente a cultura japonesa, os seus filhos também vão falar japonês porque eles
conversam com os pais em japonês, mas tem colegas brasileiros e começam, portanto, a
se abrasileirar. Os netos, provavelmente eles não sabem a língua dos avós, as vezes não
gostam da cultura, da comida e acabam se abrasileirando cada vez mais, assim como os
bisnetos, tataranetos e assim por diante.

- Ora, quando Pierre Verger esteve na Bahia nos anos de 1940, ele estava diante de
pessoas que muitas delas eram descendentes diretos dos iorubanos e até tinham pessoas
que eram velhos iorubanos residentes ali, em Salvador, na Bahia. Então, essa cultura
iorubana acabou sendo determinante, porque esses primeiros intelectuais das gerações
mais recentes acabaram estudando mais essa cultura iorubana e acabou dominando os
estudos não só de arte, mas a cultura afro-brasileira em geral.

- Por isso que nos anos de 1980 ainda tinha isso. Então, quando Marianno fala de que
essa arte afro-brasileira “desempenha função no culto dos orixás” - na verdade ele está
falando do culto a todas as outras divindades. Por exemplo, você tem inquices e outros
tipos de deuses...

-Seja como for, você tem uma definição que tem uma fonte inspiradora que é a ideia da
religiosidade. Mesmo assim, Marianno diz que esse critério religioso de componentes
tanto místicos quanto históricos deixa na sombra outras continuidades, por exemplo, na
ourivesaria, nas artes decorativas em geral. O componente religioso é importante, é
determinante, mas Marianno tem consciência de que ele não pode ser o único, mas ele
ainda considerado central para Marianno.

- Marianno vai além dizendo que o que se afirmou para a arte africana vale igualmente
para a arte afro-brasileira, ele faz uma ligação direta entre o que seria arte africana e arte
afro-brasileira (o que eu chamei de abordagem continuísta - a abordagem que prevê a
continuidade das formas e características estéticas da arte africana para a arte
afro-brasileira). Claro que isso é discutível, mas os primeiros estudos de arte
afro-brasileira se pautaram muito nessa ideia de continuidade. Ou o que o Marianno
mesmo dizia ser um prolongamento estilístico entre o que seria arte africana e arte
afro-brasileira.

- a despeito de ser uma definição old school, essa arte já deveria obedecer o que ele
chama de protótipos fixos. Seriam os primeiros indícios de determinação estética dessa
arte. E a variação estética dela se daria pela variação formal desses protótipos.

- Esses protótipos são, para Marianno Carneiro da Cunha, coisas que devem ser
decodificadas.

- Na definição de Marianno Carneiro da Cunha do que seria a arte afro-brasileira, em


primeiro lugar, aparecem as ideias de: a) continuidade estilística; b) protótipos fixos (que
podem ser determinados); c) decodificação desse protótipos (para maior compreensão da
arte afro-brasileira).

- Embora ele lance todos esses critérios, esse texto de Mariano Carneiro da Cunha é um
texto póstumo. Ele não desenvolveu essas ideias. Não podemos esperar dele, infelizmente,
quais seriam esses protótipos, quais seriam os critérios para a fundamentação da arte
afro-brasileira.

- Infelizmente, na verdade, essa é uma outra questão que gostaria de trazer pra vocês: eu
fiz filosofia, muitos de nós que tratamos desse tema somos historiadores, mas precisamos
muito que os artistas falem desse tema. A esmagadora maioria dos teóricos da arte
afro-brasileira vem de áreas das ciências humanas mais clássicas. São pessoas que tem
um valor, mas que nem sempre entendem muito de arte (risos). Eu me incluo entre elas.
Nós somos entusiastas da arte. Nós gostamos da arte. Mas para falar dela, digamos, nós
falamos da nossa “gavetinha”. Nossa gavetinha sociológica, nossa gavetinha
antropológica, nossa gavetinha historiadora. Então nós temos as nossas limitações pra
tratar desses temas. Então, na verdade, esses critérios [de que falava antes] não foram
estabelecidos. Até hoje nós estamos à espera de que críticos de arte ou bons historiadores
que entendam bastante de arte possam fazer esses estabelecimentos. Se é que se vá
acreditar que é possível.

- Então, na definição de arte afro-brasileira para Marianno ele levanta dois aspectos gerais:
em primeiro lugar seriam objetos de arte conceitual que seguiriam um “esquema de
pensamento de origem africana” e em segundo, seriam objetos das artes plásticas com
prolongamentos estilísticos africanos (míticos ou históricos). Ele reforça isso porque, não
só do ponto de vista mítico em termos das lendas que os povos criam para fazerem
explicações da realidade. Ele fala mítico também no sentido da África mítica, né?
Aquelas fantasias que se tem quando se quer criar alguma identidade. Então esses
prolongamentos também podem ser fantasiosos, não há nenhum problema, porque a arte
também faz parte do imaginário humano. Assim, você pode ter essa mitologia em termos
de lendas mesmo, por exemplo, mitos dos orixás ou de inquices e outros tipos de
divindades ou você pode ter também alguns elementos históricos nessa arte.

- Eu trouxe um detalhe aqui que eu considerei importante. [que diz respeito ao


escamoteamento dos artistas descendentes de africanos na história das artes plásticas no
Brasil]. Marianno Carneiro da Cunha faz referência a uma publicação oficial “Quem é
Quem nas Artes e nas Letras do Brasil” - Ministério das Relações Exteriores, 1966. Ele
percebeu que de um total de 298 nomes de artistas a partir de 1945, apenas 16 são negros
ou mulatos]. Do ponto de vista oficial, mesmo nos anos 60, ainda não havia essa noção de
que esses negros artistas precisariam ser incluídos dentro da história da arte no Brasil.
Esse dado é particularmente importante se a gente pensar em todo esforço que foi o
nacionalismo modernista no Brasil, a partir de 1922, principalmente aqui em São Paulo.
Essa é a ideia de que precisaria ser incluído na história da arte no Brasil e não só nela,
mas na própria noção de identidade brasileira, era preciso incluir o “indigenismo” e o
“negrismo”, digamos assim. E no entanto, num livro oficial sobre arte, apenas 16 deles
eram negros.
- Não vamos pensar em “arte afro-brasileira”, mas os descendentes de africanos que
trabalharam na Academia, seja na Academia Imperial de Belas Artes, seja na Escola
Nacional de Belas Artes ou nos variados Liceus que tivemos em algumas das capitais do
Brasil esse número de artistas afrodescendentes vai muito mais além dos meros 16
indicados na publicação oficial de 1966.

- Marianno Carneiro da Cunha faz uma abordagem histórica ao analisar alguns artistas
que podem ser incluídos historicamente dentro da arte, criando um espaço para o que
seria chamado de arte afro-brasileira.

José Roberto Teixeira Leite identifica que essa questão da cor da pele nas artes não é algo
decisivo para a noção de arte afro-brasileira. “Possuir sangre negro não é suficiente para
se produzir arte negra” (LEITE, 1988, p.13). Isso é algo importante não por causa dos
teóricos, porque a esmagadora maioria deles leva em questão de que a cor da pele não é
irrelevante, mas é secundária, ao tratar da arte afro-brasileira. Mas quando a gente pensa
no público, isso é importante. Por exemplo, lá no Museu Afro Brasil recebemos um
publico das mais variadas origens. E muitos se espantam, pensando que o Museu Afro
Brasil é um museu de negros, ao ver que muitos desses artistas que tratam desse tema são
brancos. De fato, se fizermos uma estatística no acervo permanente de quantos artistas
brancos existem, muitos visitantes comuns se espantariam.

- Cinco anos depois da morte de Agnaldo dos Santos, Teixeira Leite tece alguns elogios à
obra do artista dizendo que Agnaldo “elaborou uma obra escultórica que se impõe pela
qualidade e pela quantidade e que além do mais constitui o exemplo mais elevado da
escultura afro-americana no Brasil”. A despeito de todo esse tom elogioso...esse
exemplo “mais elevado”, pode ser discutível, mas seja como for, essa ideia de que há uma
escultura afro-americana é uma determinação que vai ser desenvolvida depois por outros
autores como Robert Farris Thompson que dizem que há uma unidade, ou uma
integridade estética mesmo entre os afro-americanos.

- Diz Teixeira Leite: “Quanto a nós, sempre vimos nesse pobre artista negro, vitima de
esquistossomose e doença de chagas, um dos mais altos valores da escultura brasileira
contemporânea, até diríamos da escultura brasileira em todos os tempos”285.
Percebemos que Roberto Teixeira Leite defende uma abordagem “inclusivista”. É um
artista negro, mas ele está dentro de todo o ciclo de arte brasileira em geral - e é isso o
que ele defende. E ele vai mais além dizendo que com Antônio Francisco Lisboa, José
Maurício Nunes Garcia, Machado de Assis ou Cruz de Souza “é que se pode aquilatar o
quanto se deve à sensibilidade nacional ao generoso sangue negro puro ou mesclado ao
sangue de outras raças”. Dando aqui, mais uma vez um desconto para essa linguagem um
tanto antiquada.

- Ele escreveu esse texto em 1988. Então, tem uma demarcação também importante em
termos ideológicos, foi justamente no centenário da abolição. Vocês podem ligar o rádio
no 13 de Maio. Liguem o rádio no dia 20 de novembro. Sempre vai ter alguém falando
bem de negro. (risos) Porque tá na moda...nessas datas...Aqui é um pouco isso também.
Você tem de valorizar, então, quando você valoriza, você tem de valorizar demais para
poder ser um pouquinho valorizado.(risos)

- Kabengele Munanga foi um dos curadores da Mostra do Redescobrimento, pra quem é


mais jovem, saibam que foi uma das mais importantes exposições que acabou
determinando [um pouco] o que seria [visto como] arte afro-brasileira. Porque tudo o que
veio depois acabou seguindo as linhas do que foi determinado nesse momento. Então,
Kabengele Munanga, junto com Marta Heloísa Leuba Salum e o próprio Emanoel Araújo,
um pouco configuraram não só em termos teóricos, mas também em termos práticos [ou
curatoriais], na escolha de artistas para essa exposição o que seria indicável a determinar
o que seria a arte afro-brasileira.

- Esse é um texto interessante porque é o primeiro que começa a se questionar…é texto


crítico a respeito do conceito de arte afro-brasileira. O próprio título “Arte Afro-Brasileira
o Que é Afinal?” Já dá a entender que a noção crítica desse tema é importante pra ele.

285
LEITE, J.R. Agnaldo e a Escultura Afro Americana GAM: Galeria de Arte Moderna, Rio de Janeiro, n.5, abr. 1967.
p. 16). N. do E.
Esse texto é uma espécie de justificativa do porquê ele escolheu determinados artistas
para essa exposição e não outros.

“Para que elementos culturais africanos pudessem sobreviver à condição de


despersonalização de seus portadores pela escravidão, eles deveriam ter, a priori,
valores mais profundos. A esses valores primários vistos como continuidade foram
acrescidos novos valores que emergiram do novo ambiente. (...) houve um campo
cultural muito resistente, no qual se pôde nitidamente observar o fenômeno de
continuidade dos elementos culturais africanos no Brasil. Este campo, muito estudado
pelos especialistas sociais de várias disciplinas, é o da religiosidade”. (MUNANGA,
2000, 101). Mais uma vez, percebam que o Munanga, imbuído também dessa noção de
arte afro-brasileira, vai encontrar a ideia da religiosidade como o fator central dentro
dessas abordagens artísticas.

- a considerar esse ato violento que foi a escravidão, nada mais justo que qualquer tipo
de recuperação em termos materiais, por exemplo, as formas artísticas, elas teriam de ser
reconstituídas aqui. Na medida em que há necessidade de construção dessas
características civilizatórias, a religiosidade foi um dos primeiros elementos de
permanência do que seria a identidade para esses africanos. Então, nada mais natural que,
para aqueles que acreditam que a arte afro-brasileira tenha como seu ponto central a
religiosidade interpretem também que qualquer arte afro-brasileira possível ela tenha
também necessariamente de resguardar essa que foi por tantos e tantos séculos aquilo que
era considerado a identidade africana no Brasil.

- Então, os primeiros teóricos respondem à essa centralidade ou ao “suprassumo” da arte


afro-brasileira com a noção de religiosidade.

“Insistimos em dizer que a primeira forma de arte plástica afro-brasileira propriamente


dita é uma arte ritual, religiosa. Seu nascimento seria difícil de datar por causa da
clandestinidade na qual se desenvolveu. Essa clandestinidade acrescentada ao caráter
coletivo dessa arte deixou no anonimato os artistas e artesãos que a produziram [...] a
arte afro-brasileira, então conhecida apenas como arte religiosa, ritual, comunitária e
utilitária, começa a ampliar seu campo de atuação. Seus artistas, saindo do anonimato,
começam a produzir uma arte não-étnica, com projeção na linguagem plástica universal,
embora conservando vínculos identitários com suas raízes. Entre eles, há os que se
utilizam do tema incidentalmente, os que sistemática e conscientemente orientaram toda
sua produção artística à temática afro-brasileira e os que, além da temática, manipulam
espontaneamente, e não raro inconscientemente as soluções plásticas africanas (Grifos
nosso) (MUNANGA, 2000, p. 104-105).

- Essas distinções inicialmente desenvolvidas por Mariano Carneiro da Cunha aqui


referidas nos permitem perceber que Munanga indica 3 momentos dessa arte
1) a primeira forma de arte afro-brasileira como arte ritual e religiosa faz referência
sobretudo a objetos de culto do candomblé. (desde os objetos recolhidos por Nina
Rodrigues)
2) Depois de ser reduzida da casa de culto, a arte afro-brasileira começa a sair dessa
“clandestinidade” e esses artistas abandonam a esse anonimato, utilizando-se do conceito
da chamada “arte popular”, “arte primitiva”.

- Esses termos são bem interessantes do ponto de vista da arte afro-brasileira quando a
gente pensa nas exposições. Muitas exposições internacionais por exemplo, em que
chamaram artistas afro-brasileiros, eles incorporaram essas exposições como artistas
primitivos. Ou a chamada “arte naïf”. eles não foram chamados enquanto artistas
afro-brasileiros. Talvez não se trata-se de “Arte Afro-Brasileira” (algumas exposições não,
mas boa parte delas talvez não se tratasse). Então, esses termos que começam a aparecer,
quando esses artistas saem da “clandestinidade”, no fundo eles saem de uma
“clandestinidade” para entrar em outra.

- Então, até que ponto a arte afro-brasileira ela não é um nicho? Não só um nicho de
mercado, porque esse é um fato histórico das artes em geral. Mas um nicho como um
gueto, vamos dizer assim: um grupo de pessoas que precisam se incluir na sociedade ou
precisam se firmar enquanto artistas e eles encontraram uma maneira de ter uma força
para se posicionar e encontrar meios de se fazer serem vistos.

- Todas essas questões aí do conceito das chamadas “arte popular”, “primitiva” ou “arte
negra”, “arte afro-brasileira”, perpassam esses mesmos problemas. São problemas que no
fundo não tem a ver com arte. São problemas sociais. Então, essa questão que o
Kabengele levanta é bem interessante porque chama a atenção para questões que não são
propriamente artísticas.

3) Kabengele Munanga fala de uma “arte não étnica” (que foi possível a partir desse
momento em que esses artistas saem da clandestinidade).

- Foi quando eles começaram a encontrar, o que Munanga chama de uma linguagem
plástica universal (seja lá o que isso signifique também) (risos) Mas seja como for, eles
passaram a ter essas abordagens artísticas que poderiam ser melhor identificadas por
pessoas que não fossem aquelas que sabiam decodificar aqueles símbolos [africanos] dos
quais falava Mariano Carneiro da Cunha.

- A arte afro-brasileira se for provinda da cultura afro-brasileira ela têm vários e vários
códigos. Só pra decorar o nome dos orixás já dá um enorme problema, não é? Imaginem
estar diante de uma obra e saber por que que determinado artista escolheu essa e aquela
cor? Ou por quê essa cor prevalece sobre as outras? Por que existem essas e aquelas
formas? Então seria preciso talvez até frequentarmos algum curso de algum tempo pelo
menos para podermos decodificar determinada obra se ela tiver todos esses critérios. No
entanto, nessa linguagem plástica dita “universal”, seria eventualmente mais fácil esses
artistas serem mais bem aceitos.

- Kabenguele inclui alguns artistas que não são negros, mas que fizeram representações
de negros ou que incidentalmente se utilizam dessa temática afro-brasileira: Tarsila do
Amaral, Lasar Segall e dezenas de outros artistas associados ao modernismo e que
valorizam a “cultura afro”.
- Mas se pensarmos na academia, nos viajantes, que já se vinham fazendo representações
de negros, percebemos que não basta fazer representações de negros para pertencer à arte
afro-brasileira. Seja como for, em termos classificatórios a gente têm de identificar
também que alguns artistas [principalmente modernistas] fizeram essas representações e é
muito interessante, muito bom mesmo, aproveitar dessa onda [modernista] neste
momento em que se precisava fazer esse tipo de valorização do negro.

- Para nossos interesses aqui. A conclusão de Mariano Carneiro da Cunha via Kabengele:
“Classificar esses artistas [modernistas] na sigla afro-brasileira, equivaleria a chamar
Picasso da “Les Demoiselles d'Avignon” de “afro-francês” ou “afro-espanhol”. Esse é um
ponto bem importante porque quando a gente chama de “afro-brasileira” as telas das
mulatas de Di Cavalcanti a gente está comentando uma certa....a gente está forçando um
pouquinho a barra...E é muito simples de identificar isso...E essa frase de Carneiro da
Cunha que o Kabengele usou ela é primorosa nesse sentido.

- Em segundo lugar, alguns artistas que utilizam essa temática de modo sistemático e
consciente, Kabengele identificou alguns artistas brancos também Carybé, Héctor
Bernabó, Mário Cravo Jr., Hansem Bahia, Di Cavalcanti, assim por diante.

- Em terceiro lugar, nessa classificação proposta por ele, diz que alguns artistas utilizam
essa temática da arte afro-brasileira de modo espontâneo e até “inconsciente”. Aí ele
indica Guma, um artista gaúcho e Louco, que é um artista que a gente chama hoje de
artista popular.

- Curiosamente, no sentido dessa classificação Kabengele diz que: “Só seria útil fazer
uma classificação na medida em que ela pudesse fornecer alguns critérios objetivos
capazes de nos auxiliar na tentativa de conceituação da arte afro-brasileira. À luz dos
poucos escritores existentes podemos tentar caracterizar sumariamente alguns deles”. Aí
ele cita o que ele tinha, no momento em que ele escreveu esse texto, (alguns que ele tinha)
disponíveis. No entanto, não é que fossem textos altamente críticos ou que fizessem
elaborações sistemáticas sobre arte afro-brasileira, mas eram textos que ele tinha
disponíveis. Então, ele identificou quatro desses artistas que tinham esses “critérios
objetivos” e com isso daria pra fazer o que seria a “primeira [tentativa de] fundamentação
da arte afro-brasileira”.

- Mas ele também não avança tanto em termos teóricos a respeito disso. Mas ele diz o
seguinte “qualquer tentativa de definição seria sempre provisória”. Então, ele dá um dica
preciosa pra nós que tentamos fazer esses estudos: “é difícil classificar”. Fazer definições
também é difícil. Elas acabam tendo um caráter provisório. E para ele, o que dá esse
caráter provisório é esse dinamismo de qualquer arte.

- De qualquer forma, alguns postulados básicos, diz ele “devem ser colocados para que
essa arte, que constitui o grande capítulo à parte dentro da arte brasileira, possa merecer
conservar um atributo e qualificativo ‘afro’. Então, mesmo que essa definição seja
provisória, mesmo que seja difícil fazer essa classificação, alguns postulados básicos vão
ter de ser determinados.

- Kabengele rabisca alguns desses postulados. É um sociólogo “rabiscando” esses


postulados estéticos que seriam os seguintes... E ele menciona: “a forma, o estilo, as
cores, o seu simbolismo, a temática, a iconografia, as fontes de inspiração, todos
harminosiosamente articulados através do domínio de uma técnica capaz de dar corpo e
existência a uma obra de arte autêntica”. Taí outro tema que ele utiliza. Existe uma arte e
uma obra afro-brasileira autênticas e elas terão de recorrer senão a todos, pelo menos aos
mais relevantes aspectos tais como a forma e o tema relacionados à obra afro-brasileira
para serem autênticas” .

- Podemos perceber, então, que ele tem uma abordagem um pouco formal e temática
também da arte afro-brasileira. Uma arte que não tivesse conteúdos relacionados aos
critérios que ele propôs aqui, por exemplo, do que seria a arte ligada à cultura
afro-brasileira, não poderia ser chamada “arte afro-brasileira”. Nós sabemos que hoje isso
não é entendido da mesma forma. Não é percebido assim, pelo menos para a maioria das
pessoas.

- Para Munanga, a arte afro-brasileira se tornou uma das expressões da identidade


brasileira. Nas palavras dele: “a arte afro-brasileira é uma vertente da arte brasileira”,
portanto, ela tem de ser identificada como uma abordagem inclusiva e nacionalista
também. E isso nos remete a Mario de Andrade, na medida em que ele fala do
Aleijadinho como “o autor genial na maior eficácia do termo”; e ao mesmo tempo é o
mestiço e o universal. Ou é o “mestiço e o nacional” pro Mário. [quem falou aqui
“universal” foi eu.... Freud Explica...(risos) Seja como for, a gente pensa nisso mesmo...
O mestiço é para muitos autores é o suprassumo do nacional. E o que o Kabengele está
dizendo aqui é que essa qualificação da “arte negra” ela tem de perpassar por isso, porque
ela é uma das expressões da identidade brasileira, portanto falar de arte brasileira é
também falar de arte afro-brasileira, em função de ser uma dessas vertentes importantes.

- Outra autora, como ela vai falar pra gente na semana que vem, vou só resumir um
pouquinho do que ela fala sobre arte afro-brasileira (...) Marta Heloísa Leuba Salum, eu
gostaria de pelo menos citar alguns trechos dela:

- Diz Salum: “ao nos empenharmos na compreensão dos fundamentos da arte negra ou da
arte afro-brasileira, constataremos que ela é, antes demais nada, uma arte contemporânea.
Ganhou nome nesse século xx, quando passou a ser reconhecida como manifestação
plástica e visual da identidade cultural.”

- essa noção de que a “arte afro-brasileira” é algo contemporâneo também, uma


manifestação visual da identidade cultural nos diz muito a respeito. E é [uma ideia] muito
interessante porque a gente começa a nos dissipar um pouco das noções abrangentes de
arte afro-brasileira. Por que? É comum e até natural que alguém que queira defender essa
chamada “arte afro-brasileira” remeta imediatamente aos grandes mestres da Academia,
né? Por que? Porque há uma aceitação mais evidente, mais imediata. Por exemplo, se a
gente evocar o Aleijadinho, como o “mais importante artista afro-brasileiro”, ok!
Raramente você irá encontrar alguém que possa discordar. Mas se você disser que o
Aleijadinho é o mais importante artista da arte afro-brasileira. Aí temos um pequeno
problema. Se a arte afro-brasileira foi algo denominado de modo contemporâneo, atribuir
esse qualificativo para aleijadinho seria alguma coisa complicada. Por que a arte
afro-brasileira digamos, ela é algo que foi determinado ao longo desse período histórico e
ele é algo [determinado] de acordo com a visão de um ou de outro.

- Como eu tenho mostrado aqui. Os teóricos divergem nessa noção de arte afro-brasileira,
mas a gente tem de avançar e pensar um pouco no público. O público ele identifica a arte
afro-brasileira como aquela arte feita por negros. Ou temos de pensar nos artistas...Quais
aqueles artistas que realmente se pensam com o artistas que fazem “arte
afro-brasileira” ...E quais artistas que não são afro-brasileiros e que se reconhecem como
artistas que fazem arte afro-brasileira?

- Então, pensando um pouco nessa ideia cronológica, definição e adaptação do conceito.


A gente tem de fazer uma organização um pouco melhor. Essas são coisas que foram
desenvolvidas melhor pela Lisy, pelo Roberto Conduru. São as duas pessoas chaves aqui
no nossos encontros. Nós chamamos também o professor Kabengele, mas ele estava
ocupado com outras atividades, novembro é um mês difícil, porque acontece tudo ao
mesmo tempo e fica difícil conciliar as atividades.

Num outro texto chamado “Cem Anos de Arte Afro-Brasileira” a Marta Heloísa Leuba
Salum, a Lisy, diz o seguinte: “a arte afro-brasileira ganhou nome neste século XX e
passou a ser reconhecida como qualquer manifestação plástica e visual que retome, de
um lado, a estética e a religiosidade africanas tradicionais e, de outro, os cenários
socioculturais do negro no Brasil. Trata-se de uma cultura material dos segmentos
negros do Brasil, das obras representativas da cultura popular de origem africana, das
releituras da arte africana tradicional286.

286
(Ver: Salum, 2000, p. 113) N. do E.
- Seguindo Clarival e Kabengele, a Lisy diz o seguinte: “A arte negra ou afro-brasileira
não se define pela origem étnica do artista, mas pelo compromisso dele com o universo
cultural afro-brasileiro, ou com o universo (social) de afrodescendentes”287. Mais uma vez
a gente vê aqui uma abordagem que é universalista. Ela inclui artistas que não
necessariamente sejam negros. É uma abordagem tematista porque ela mantém a ideia de
que é preciso fazer sim uma referência à essa cultura afro-brasileira. Mas ao mesmo
tempo ela inclui aí a ideia política, identitária que é a ideia do compromisso. O artista
afro-brasileiro que não tenha o compromisso com a cultura afro-brasileira não poderia ser
chamado de artista que produz arte afro-brasileira.

Ela incluiria então, Ronaldo Rêgo, Carybé e Mário Cravo Jr., e Niobe Xandó, porque eles
podem ser considerados [diz ela] - no todo ou em parte da obra, em toda sua vida
artística ou em momentos dela - artistas afro-brasileiros, ainda que não
afro-descendentes. ”288

Outra teórica que trata dessa questão é Dilma de Melo e Silva é uma professora da ECA,
ela tem uns trabalhos a respeito do tema. Sua própria livre docência foi sobre esse
assunto.

Um dos Grandes méritos da Profa. Dilma é o trato original que ela reserva ao ensino e ao
caráter pedagógico da arte afro-brasileira.

Do ponto de vista de sua definição terminológica, seus textos indicam a abordagem


histórica, isto é, aquela que remete a arte afro-brasileira aos grandes mestres do barroco.
E abordagem africanista, isto é, com continuísmo estilístico.

“Se fomos traçar um breve esboço da presença do negro africano em nossa trajetória
artística, verificamos que, devido à sua competência na escultura e na metalurgia,

287
(Ver: Salum 2004, p.351) N. do E.
288
(Ver: Salum 2004, p.351) N. do E.
ocorreu "a presença de pardos e pretos nas obras de talho e douração das igrejas
barrocas desde a metade do século XVI. 0 Barroco brasileiro mostra sua matriz africana
em anjos e madonas com traços negróides; ou mesmo quando os temas e imagens negras
escondem-se nas dobras dos mantos ou sob o peso do ouro da estatuária, como “otas em
seus nichos”. Centenas de exemplos poderiam ser dados. A iconografia dos santos
Cosme e Damião são reformulações dos Ibejis do Benin; a representação de Nossa
Senhora da Conceição, ostentando cornos na cabeça e segurando emblema de Xangô, os
oxês. Artistas negros e mestiços como Antônio Francisco Lisboa, Valentim da Fonseca e
SiIva e Francisco Chagas são representantes conhecidos do Barroco e têm registro na
História da Arte brasileira. Mário de Andrade, ao analisar o Aleijadinho, nos fornece
pistas para a compreensão da vertente africana escondida em nossa produção plástica.
(SILVA, D., 1997, s.p.)

- Resumindo um pouquinho daquilo que eu queria dizer, a gente percebe que existe um
ambiente histórico para o aparecimento dessa arte chamada “afro-brasileira”. Eu
rascunhei alguns desses momentos, houve uma grande fase inicial entre os sécs.
XVI-XIX: nesta, dentro de uma abordagem histórica, há o protagonismo e a
representação de negro, do ponto de vista do protagonismo há o aparecimento dos negros
artistas acadêmicos e da representação, divide-se no retratismo, na pintura histórica, no
período acadêmico, e o período pré-modernista e modernista. Depois, numa segunda fase,
há o reaparecimento dos temas negros, ou, como diz Oswaldo de Camargo, os temas
“negrísticos”: temos a abordagem contemporânea, tematista e a universalista (ou
cosmopolita)

Abordagem contemporânea

- Nacionalismo (década de 1930) - Estado Novo (momento de revalorização do


nacional, com um grande aumento do número de trabalhos relacionados à questão negra.
Textos de antropologia, história da África e da cultura afro-brasileira, etc.)
- Congressos Afro-Brasileiros (1934, 1937, 1946)
Abordagem tematista (momento de revalorização do próprio artista afro-brasileiro)

Negros: - Abdias do Nascimento, Mestre Didi, Ronaldo Rêgo, Rubem Valentim,


Emanoel Araujo, Rosana Paulino

- eles se voltam diretamente para a questão da religiosidade, sobretudo. Por isso que esses
artistas que são considerados os artistas “mais clássicos” da arte afro-brasileira são
artistas que tratam da temática de religião. Isso é interessante também pra gente pensar do
ponto de vista da curadoria. Porque quando um curador vai buscar algum artista
afro-brasileiro para fazer uma exposição de arte afro-brasileira, pode ser que ele
identifique que a arte afro-brasileira seja aquela arte que tenha um cunho religioso
também. Ou pelo menos vai tratar esses artistas que tenham um cunho religioso como
algo especial, como algo mais “clássico”. E outros artistas que não têm nada de religioso,
não têm nada de que visivelmente se possa identificar, por exemplo, da questão
afro-brasileira ou a questão da cor da pele, talvez estes não sejam tão “clássicos”. Talvez
estes não sejam vistos, eventualmente, como artistas afro-brasileiros, dependendo do
curador.

Abordagem universalista (ou cosmopolita)

Brancos tematistas: - Carybé, Pierre Verger, Mário Cravo Jr. ...


Negros universalistas: Olumello, Mavignier, Yêdamaria....

Por isso que eu trouxe essas abordagens tão distintas, mas que às vezes conversam entre
si. Por exemplo, eu trouxe essa abordagem universalista em que você tem brancos
tematista, mas ao mesmo tempo você tem negros chamados “universalistas”.

- É preciso falar do Estatuto do Mestiço. O mestiço tem um papel importante, se


pensarmos no acervo permanente do Museu Afro-Brasil, por exemplo, a minoria lá é
negra, mas a maioria é mestiça, então, na arte afro-brasileira é preciso também incluir o
mestiço. Porque a gente os inclui do ponto de vista político aos negros, isto é um fato
obrigatório, inclusive, fazer uma inclusão do mestiço na categoria negro. Assim como o
IBGE interpreta hoje, a partir de 2010, 51% da população majoritariamente
afrodescendente, que seria o grupo genérico para mestiços e pra negros.

- O primeiro mestiço que falou do mestiço de forma radical foi o próprio Mario de
Andrade. Temos algumas imagens do escritório dele na Rua Lopes Chaves, em que ele
guardava alguns objetos de culto afro-brasileiros, como o Exu Sete Flechas, o Oxê de
Xangô etc.

- Mário identificou o que ele chamou de “a maior mulataria” presente nas artes plásticas
dos setecentos e oitocentos. Foi a primeira vez em que se valorizava pra valer o mestiço.
E isso ocorreu no período modernista e Mário foi a cabeça teórica que fez essa
valorização.

- Por fim, eu digo o seguinte: Talvez o conceito de arte afro-brasileira não se sujeite a
uma classificação, porque é um conceito muito fluido... quanto mais a gente tenta pegá-lo
ele escorrega de nossas mãos. É preciso estabelecer os critérios estéticos, algo que não foi
feito ainda. Eu não vou me arrogar ao direito de fazer. Eu espero que algum crítico de
arte, um artista possa fazer isso (se isso for possível).

- Mas para aqueles que pensam, então, que este seja um conceito que não se sujeita à
classificação nenhuma, a sua defesa, seja ela qual for, ela trataria de um pseudoproblema.
Então, muitos vão dizer, sinceramente, ou bem eu não sei o que é arte afro-brasileira ou
bem ela não existe.

Como definir então o conceito de arte afro-brasileira? O que é arte afro-brasileira? Quem
seriam os artistas que fariam arte afro-brasileira? Pra fazer uma tentativa de provocações
em âmbito lógico, sem querer propor classificações para a chamada arte afro-brasileira,
destaquei alguns limites que pudessem identificar algumas das noções da arte e do artista
que desenvolve a poética afro-brasileira. Dentre esses, as possibilidades tais como os
artistas negros em geral que elaboram quaisquer poéticas; os específicos que elaboram
poéticas temáticas ligadas às tradições ou aos compromissos afro-brasileiros; seriam
artistas da arte afro-brasileira todos ou alguns artistas brancos e não negros tematistas
também?; seriam os artistas da “raça humana”, como se diz, (e não negra, já que não há
biologicamente raças)?; essa arte afro-brasileira poderá remeter sua ancestralidade à
Aleijadinho e aos outros negros artistas mais antigos? Essa arte incluiria pré-modernos e
modernos não identificados à negritude ou que nunca ouviram falar de termos como “arte
afro-brasileira”, como Arthur Timótheo e Santa Rosa)?; essa arte incluiria artistas
contemporâneas que passariam por brancas como Sônia Gomes, Bárbara Wagner... que
passaram por exposições temáticas com cunho mestiço ou afro-brasileiro; daria pra gente
incluir um certo “pós-modernismo”, imaginando que “pós-modernismo” significaria aqui
aquela arte que não se interessa muito por simbolismos ou por razões funcionais ou que
não tenha alguma proposta pedagógica, moral ou social como muitos interpretes da arte
afro-brasileira exigem dessa arte ter esses tematismos, ou mesmo até o racialismo? Ou
todos e qualquer um faria parte dessa arte, bastando que tenha alguma “consciência
política” ou “consciência negra”...ou seria uma arte de propaganda? Ou nenhum faria
parte dessa arte (estamos num pós-racialismo, vamos parar com essa coisa de “negros” e
“branco”, vamos começar a pensar só na arte) – esta seria até uma tentativa interessante
pra começarmos a pensar, mas considerando que o Brasil, que a gente sabe que é um país
racista, talvez essa proposta seja um tanto quanto utópica, pra falar pouco. Essa arte
afro-brasileira incluiria a cultura material do segmento negro? Seria uma etnografia? Uma
arte popular? Seria uma releitura da arte africana tradicional? Seria uma “memória
coletiva”, como diria a Lisy Salum? Essa arte excluiria a cultura material popular ou se
incluiria ou se inseriria na arte acadêmica, nas Belas Artes, na arte contemporânea
mundial?

- Se formos para nos posicionar, teríamos de escolher alguns desses postulados, entre
outros, que talvez eu não tivesse pensado bem sobre. Em termos lógicos um eventual
curador terá de pensar isso na hora de escolher quem são os artistas da chamada arte
afro-brasileira. Quem seriam os defensores dessa arte afro-brasileira? Eles precisarão
seguir um desses critérios lógicos que são certos impositivos para que uma arte seja
chamada “afro-brasileira”.
- Numa brincadeira de curadores. Se todos fôssemos curadores, chamaríamos essas
crianças loiras de cabelos lisos, de olhos azuis para fazerem parte de uma exposição de
arte afro-brasileira se elas fossem futuras artistas? São “futuras artistas” de Pernambuco,
de Olinda, eu tirei uma foto da internet, como uma brincadeira...É claro, é uma criança
albina. Do ponto de vista biológico ela é negra, no entanto, do ponto de vista da nossa
percepção visual ela branca, de olhos azuis, cabelos lisos. Eu fiz essa brincadeira um
pouco pra gente reforçar a nossa ideia de que, “pra não restar dúvidas”, alguns artistas
classificados como afro-brasileiros pelos curadores, talvez não seriam classificados como
afro-brasileiros para pessoas comuns e para nós também, pois se alguma dessas crianças
batessem em nossas portas de curadores buscando fazer uma exposição talvez
disséssemos: “ah, você não é tão neguinha quanto eu imaginava”(risos). E, no entanto,
graças aos bons deuses esses artistas (Almir Mavignier, Antônio Bandeira, Sônia Gomes
etc.) puderam ser identificados como “afro-brasileiros”. Mavignier, por exemplo, se
identificou completamente a esse qualificativo, a despeito de sua obra (optical art) não
fazer referência direta a isso. É um artista que se identifica como afro-brasileiro, embora
ele não tenha muita aparência não...

- Um caso intrigante é o da ativista “negra” (que coloquei entre aspas) Rachel Dolezal,
presidente pelo Estado de Washington da NAACP, sigla norte americana para
(Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor) – um grupo ligado ao ativismo
da luta pelos direitos civis e pelo avanço material dos negros norte-americanos. Os pais
dela se encheram de ter uma filha “negra” e a “desmascararam” ao publicar uma foto dela
mais jovem em que se mostra loira. Mas ela se identifica com a cultura negra
norte-americana e foi ser ativista negra, portanto, ela é uma ativista “negra”.

- Então, talvez, quando a gente for falar de arte afro-brasileira, talvez a gente tenha de
abrir esse espaço para identificação. Por que? Porque dessa forma a gente vai
considerar...não [para] esvaziar a cultura afro-brasileira...e não [para] esvaziar as ideias
que foram produzidas neste tema ao longo do tempo, mas a gente vai ampliar um pouco
mais esse leque e vai perceber que a arte afro-brasileira pode ser em parte aquilo que o
Kabengele falou, pode ser uma vertente da arte brasileira, um aspecto dela. Não é um
movimento artístico, não é um grupo de vanguarda exatamente, mas ele pode ter aspectos
de brasilidade que pode ser divulgado e difundido por todos.

Sessão de perguntas (transcrição de áudio)

Renato Araújo

- Gostaria, então, para encerrar, abrir para nossas conversas...e nossos diálogos...a
respeito dessas questões que eu comentei. Eventualmente vocês possam ter alguma
pergunta...crítica, sugestões...todas são bem vindas...mesmo que sejam críticas
destrutivas... (risos) sendo destrutivas do ponto de vista teórico e não físico, serão
também bem vindas (risos).

- Alguém tem alguma pergunta?... Olha, se não tiver pergunta, vou continuar falando
aqui...(risos)...nada? ... Dei mais um nó na cabeça do que esclareci coisas, né? ... nada?

Tadeu Chiarelli

- O que você acha de uma frase do Caetano Veloso, que ele falou uma vez nos EUA. Ele
declarou não me lembro agora aonde que “nos Eua, branco é branco, preto é preto e a
mulata não é a tal”289?

289
Essa frase de Caetano Veloso indiretamente faz referência à uma música dedicada à linda cantora negra
brasileira Maria d’Apparecida. A marchinha de carnaval de João de Barro e Antonio Aleida foi premiada
em 1948 e, ao contrário da frase de Caetano dizia: “Branca é branca, preta é preta, mas a mulata é a tal”
https://www.youtube.com/watch?v=iTIrCFdgPpE . E Caetano, num discurso incidental declamado ao vivo numa
execução de um cover do Michael Jackson, “Black or White”, apresenta um discurso que foi chamado de
“Americanos”. É um discurso muito interessante, talvez na mesma linha crítica do discursos que o próprio
Veloso fazia nos shows nos anos 60. Neste caso ele dizia essa máxima americanizada que nega joão de
Barro dizendo que nos EUA “a mulata não é a tal”.
https://www.youtube.com/watch?v=WLt--v6Xs-E N. do E.
Renato Araújo

- hum, hum. Maravilhosa a frase! Não é só uma frase de efeito. É uma frase de
reconhecimento antropológico. Teve um histórico para os EUA serem o que são.
Historicamente no Brasil, quando pela primeira vez os portugueses vieram pra cá, eram
só homens. Eles tinham aquela mentalidade da idade média em que lugar de mulher era
em casa. Então os homens saiam para as grandes aventuras, ficavam um ano, dois, três
anos fora de casa, tinham relações com as nativas, né? Com as indígenas. Logo depois do
Brasil aportuguesado em 1530 começam a chegar as primeiras mulheres africanas, logo
os primeiros [luso]afro-brasileiros. O nosso país teve essa ligação cultural com a África,
mas também uma ligação genética desde o seu princípio. Então, qualquer família que está
há mais de 40, 50, 60 anos no país, pode começar a desconfiar, mesmo com a pele bem
clara, pode ter alguma herança africana do ponto de vista genético também. Quem dirá as
famílias mais antigas do séc. XIX, XVIII, XVII, assim por diante. Nos EUA, foi bastante
diferente. Claro que houve também uma miscigenação bem grande, mas houve também
uma separação bem grande. Por exemplo, com os colonos. A ideia de colonização nos
EUA, havia, claro a ideia de colonização extrativista...aquela ... exploratória, como houve
aqui no Brasil, mas também havia muitas famílias que iam pra lá. Eram grupos familiares
britânicas, francesas, espanholas que iam aos EUA construir um novo modelo econômico,
civilizatório e exploratório. Então, eles tinham o que eles chamam de linha de cor. Essa
linha de cor era ultrapassada de tempos em tempos, porque, afinal, os seres humanos
quando estão juntos [não estão competindo] eles se pegam (risos). Eles não se ligam
muito nessas determinações que são históricas. Então sempre tem aqueles que acabam
ultrapassando essas fronteiras. E de forma interessante nos EUA, essas fronteiras foram
passadas, mas em períodos históricos específicos. Até a Guerra Civil norte-americana
essas misturas eram mais comuns. A partir do momento em que houve a Guerra Civil
entre o Sul que era escravocrata, atrasado, pré-industrial contra os EUA do Norte,
avançado, que não tinha escravidão, burguês, industrialista…na medida em que houve
esse conflito, e no final vencendo o Norte, as noções de quem era negro, quem era branco
acabaram se acirrando muito, principalmente no sul dos EUA [forçados a libertar seus
escravos]. Então foram criadas leis para evitar o que eles chamam de ligações
inter-raciais, muitas dessas leis acabaram só durante os anos de 1960. Então, por exemplo,
a lei de segregação de que se você for um artista por exemplo, você não poderia ocupar o
mesmo espaço de um artista que for de outra cor... né? Um artista branco não ocupa o
mesmo espaço de um artista negro, nem o espaço de um artista indígena. Então, houve
um momento de separação brutal entre o que seriam os brancos de um lado, os negros de
outro. Então quando Caetano comenta sobre essa ideia de que o mestiço não é algo
bem-vindo nos EUA, ele está se pautando no ponto de vista histórico na ideia de que de
fato até a década de 1960, começa-se a primeira abolição de fato da escravatura. Porque
aí aquela ideia de separação acaba sendo minimizada em termos legais. É claro que em
outros tempos isso era mais fluido, mas o sul dos EUA, eu fiz um intercâmbio lá,
justamente para discutir a questão racial...eu fui em muitas cidades dos EUA, inclusive
cidades do Sul e a relação entre pessoas de cores diferentes é um tabu até hoje. Tanto para
negros quanto para brancos. Isso tem a ver com esse histórico de segregação e um
histórico bastante violento, inclusive.... Porque, eu vou citar muito rapidamente, um
exemplo que eu gosto bastante. Uma das grandes ativistas do movimento negro foi
Marylin Monroe (risos) para espanto de muitos. Por exemplo, quando Ella Fitzgerald
queria sair daqueles botecos em que ela cantava para ganhar alguns poucos dólares...ela
sabia da força da voz que tinha e queria conquistar uma audiência maior, mas não tinha
na época grandes audiências negras para as quais ela pudesse cantar e ganhar uns
trocados. Então ela queria tocar naqueles locais que eram os locais clássicos do jazz nos
EUA. E [a maioria] eram geridos por brancos. Então, mesmo que os empresários
quisessem ter Ella Fitzgerald cantando nesses bares, muitos frequentadores desses bares
não queriam que pessoas como ela estivesse cantando lá. E a lei ainda era muito recente,
chamavam de “lei de segregação nos palcos”. A gente tem históricos aí, podem ler
qualquer livro de jazz que se fala a respeito disso, até os anos 60, era muito raro ter uma
banda de jazz com pessoas de cores diferentes. Era uma banda de brancos ou era uma
banda de negros. Isso determinou muito da história do jazz também em termos de estilo,
etc. Mas, de qualquer forma, o que que fez a Marilyn Monroe? Ela ligou pro dono do bar
e falou o seguinte: “Olha, se você contratar Ella Fitzgerald no seu bar, eu prometo a você
que vou me sentar na primeira fila” – Com um argumento desse ele imediatamente
contratou Ella Fitzgerald, mesmo que fosse ilegal. E eu digo que a Marilyn Monroe é
ativista pelo movimento dos negros porque muitas mortes ocorriam com brancos que
simplesmente andassem do lado de um negro. Eram chamados de “amantes de negros”
milhares de pessoas brancas foram estranguladas e mortas, penduradas em árvores no Sul
dos EUA, porque eram chamadas de “amantes de negros”. Então esse histórico do....

Tadeu Chiarelli

Você não acha que nesse comentário do Caetano estaria embutido veladamente uma
crítica a essa democracia racial brasileira...

Renato Araújo

- Sim!

Tadeu Chiarelli

- Porque aqui também essa multiplicidade de cor... tem um trabalho muito interessante da
Adriana Varejão, que trabalha a partir das cores com que as pessoas se
identificam...segundo o censo do IBGE... “Qual é a sua cor?” Branca, negra, parda,
pardinha, feijão, enfim, as pessoas vão dizendo as palavras, então, ela faz as tintas... Não
sei se você viu esse trabalho...?

Renato Araújo

- Hum, hum!

Tadeu Chiarelli

Enfim, e essa segregação me parece um pouco paupitadamente escondida, do Caetano, na


hora de contrapor....não sei se você concorda.
Renato Araújo

- É...eu concordo. Eu concordo com essa ideia. Mas se eu fizer essa interpretação eu vou
ter de chamar o Caetano de gênio. Ele é um gênio musical...,mas de qualquer forma, acho
que cabe realmente essa interpretação. Ela é perfeita. De fato, nós não temos uma
democracia racial. Basta abrir os olhos pra perceber isso. Essa questão da linha de cor no
Brasil também existe. Ela é factual. Esse dado que você trouxe é bem interessante. Por
exemplo, fizeram essa pergunta aos jogadores de futebol, se eles se consideravam negros,
então, perguntaram para o Ronaldinho, não o gaúcho, né? O Ronaldo. E ele disse que não.
Que ele é branco. É bem curioso porque a auto-identificação ela pode dizer muito do que
que é o país, pode dizer muito da própria pessoa também. Muitas pessoas lá no Museu
Afro Brasil não gostam muito de ter coisas do Pelé lá por exemplo, porque ele nunca quis
falar muito dessa questão de ser negro. Essa questão da identidade é uma coisa que está
sendo criada ainda. Sendo construída. Então, por exemplo, por que que no censo de 2010
começa a aparecer essa ideia de que há uma maioria de negros no Brasil ou uma maioria
de mestiços no Brasil? Talvez por conta dessa noção de identidade começar a ser
repensada, reavaliada, organizada. Então, embora por um lado essa discussão foi um
pouco imposta nesses grandes momentos: os períodos de luta pela abolição da escravatura
no fim do séc. XIX, depois o período nacionalista de 1930, depois você tem os períodos
dos anos 60 em que há uma fluidez maior e por isso há oportunidades de retomar o
tropicalismo, o nacionalismo e depois em 1988 você tem o centenário da Abolição. Então
são momentos em que há essas ebulições dessa africanidade no Brasil. Mas são só esses
momentos. Parece que eles pipocam depois eles um pouco adormecem. Então há um
movimento um tanto quanto....é...como “ondas”

Tadeu Chiarelli

- De altos e baixos...como o título da sua apresentação...


Renato Araújo

- Isso! (risos) Um pouco isso...esse “Altos e baixos” que eu tratei [do conceito] da arte
afro-brasileira. São altos e baixo que a gente vai ter de conviver com eles, porque eles
dormitam sobre a cama do racismo. No fundo...aí é preciso sempre se posicionar em
relação a eles, porque independentemente da cor da pele que a gente tenha, vivendo no
Brasil, a gente se depara com isso. Então, independentemente da nossa cor da pele, a
gente também é determinado pelo racismo. O racismo também nos determina. Então ele
também fundamenta...seria uma cama que estaria aí dormitando...na medida em que o
Brasil não se reconhece com suas características bem mais amplas do que a gente quer
tratar. A gente quer se identificar com o vencedor e não, digamos, com o vencido. Há
uma naturalidade nisso. É bem comum. Você quer ir para o Shopping JK (risos) e não
para o Shopping Itaquera. Mas é preciso reconhecer isso. O problema não tá nessas
intuições que a gente tenha em relação ao outro e sim no que você vai fazer dessas
intuições que você tem. Sou eu aqui, o Renatinho, saindo na madrugada, eu vejo um
Renatinho vindo na minha direção e eu já fico daquele jeito [apreensivo], eu vejo...sei
lá,...uma figura qualquer lá e já me sinto mais tranquilo. Essa coisa é natural. É o racismo.
Nós somos racistas. Nós vivemos num mundo que é um mundo racista. Então, a gente
tem de identificar isso. O problema não é o racismo que temos dentro de nós, porque
fomos treinados para sermos racistas...a questão maior é o que que a gente vai fazer com
isso. Como que a gente vai organizar esses sentimentos...esses “instintos” que a gente
aprende na sociedade e como a gente vai identifica-los. Em que momentos a gente vai
fazer sair aqueles que já são a priori, não vai identificar a questão tal como ela é nos seus
fatos.

Thaís

- Renato, eu me chamo Thaís e a sua fala me provocou muitas coisas...Eu estou


estudando agora ficou até difícil de dizer...(risos)...exatamente. Mas eu estou estudando
artistas negras e antes eu dizia que elas eram contemporâneas, mas você me provocou
tanto que já tenho essas dúvidas. Mas, enfim, o que eu queria perguntar a partir da sua
fala é que você fez uma lista de mulheres artistas...negras...ou afro-brasileiras, né? Eu
acho que foi esse o termo que você utilizou para coloca-las na lista e eu concordo com
você. Existe muito essa crítica de que não existem mulheres negras na arte, aonde elas
estão....? etc..etc...E quanto mais eu tenho estudado e ido em exposições, conhecido obras
etc. Eu tenho percebido que elas existem, elas não entram nesses espaços e eu acho que
dizer que é só por uma disparidade de gênero e raça...enfim, [mesmo] só de gênero se a
gente pensar nos espaços que colocam artistas afro-brasileiras...eu acho que não responde
a questão...Eu acho que tem mais coisas para além do tema de gênero. E isso, enquanto
uma mulher negra e militante...ativista etc. é muito difícil se discutir...como pesquisadora
é um tema que eu tenho que enfrentar necessariamente. E eu queria ouvir um pouquinho
da sua opinião, assim. Como que... A pergunta é essa: a barreira de gênero ela existe e ela
impede que essas mulheres entrem em algumas galerias ali nos Jardins, impede que elas
entrem em galerias em Pinheiros etc. Mas e, não tem mais coisas? O que mais que têm
pra além disso? O que você acha?

Renato Araújo

- Obrigado pela pergunta. De fato, eu concordo totalmente com o que você disse. Acho
que a barreira de gênero não é a única barreira que existe para a mulher negra artista. Há
outras.... Não sei se consigo, mas vou pensar em uma, por exemplo...que é bem
importante. Que vale também para o artista negro homem. Que é a questão de estarem
ligados justamente a estudos artísticos. Virem de escolas de arte. Muitas dessas artistas
que eu até listei aqui são pessoas que tem o seu talento, tem o seu valor.... Eu não vou
nem fazer aqui essa distinção entre o que é artista popular e artista erudito...que a gente já
concebe bem...de forma bastante tranquila dizemos que não há uma obrigatoriedade de
fazer esse tipo de distinção. Mas seja como for, pra expor e pra pertencer a determinadas
seleções sabendo que os espaços, por maiores que sejam eles sempre selecionam. Essa é
uma obrigatoriedade também e o curador tem sempre uma dura tarefa de colocar uns pra
dentro e outros pra fora, mas certamente aquelas mulheres ou aqueles artistas que vêm de
tradições artísticas ligadas a estudos...escolas...tem uma chance maior...Por umas razões
que fazem parte da história da arte contemporânea. Fazendo uma brincadeira que a gente
ouve muito nos museus, né? Aquela ideia: “ah, esse rabisco aqui...meu sobrinho também
faz!” Certas pessoas tem muito talento, já outras tem um talento pra elas próprias, que a
gente chama de vontade. Certas pessoas ficam com a vida inteira com aquela vontade e
ela confunde ou faz uma simbiose dessa vontade do fazer artístico com o talento e a
identificação do talento é algo que depende de vários e vários critérios. Um dos critérios
utilizado nas exposições que a gente tinha mostrado aqui era a cor da pele. Por exemplo,
bastava ser negro que você já estava lá. Para muitas dessas exposições você tinha alguns
artistas que não eram lá essas coisas (risos) ou porque não conheciam a história [ou
técnicas] da arte, ou porque o talento estava muito restrito a determinados tipos de
movimentações artísticas um pouco ultrapassadas. Isso é esquisito mas existe. Se você
tentar hoje fazer uma arte acadêmica ou uma espécie de imitação de algum período
artístico você vai ser considerado uma excrescência, digamos assim, dentro dos círculos
de arte, exceto se você tiver talento. É possível também fazer isso, no entanto, esse
talento não vai ser eu quem vai dizer o que é. Mas certamente o curador vai ter de
identificar qual é. Então, de uma forma ou de outra, claro, a barreira de gênero é evidente,
porque ela faz parte da sociedade. Assim como a barreira do racismo em geral, ela existe,
é evidente porque faz parte da sociedade. Não criemos ilusões de achar que os
equipamentos culturais não façam parte da sociedade...eles fazem. Então essas barreiras
existem. Existem muitas outras, no caso, para a mulher negra. Mas a questão do estudo
das artes é um fato. Se você ir para as escolas de arte hoje é muito difícil encontrar uma
mulher negra só pra ser uma pedagoga...

Tadeu Chiarelli

- Só pra dar um depoimento...Já faz 35 anos que eu dou aula no departamento de Artes
Plásticas [USP], e eu tive duas estudantes negras...

Renato Araújo
- Nos 35 anos???

Tadeu Chiarelli

- Uma foi a Rosana Paulino e a outra foi uma garota a Aline, que ainda é aluna. Acho que
isso explica muito...

Renato Araújo

- É...eu tô impressionado também, porque eu não imaginava que era uma questão tão
premente...já imaginava que era grande...

Tadeu Chiarelli

- É só um dado que eu queria...

Renato Araújo

- É.…então, dito isso...Esse é um ponto importantíssimo...Por que? Porque a gente sabe


que o talento é raro, né? Infelizmente. O talento é bem raro. Então se você não tiver uma
ampliação do talento com o estudo, as chances elas diminuem muito, muito...então, a
falta de inserção dos negros em geral para as artes plásticas tem de ser colocada em
questão essa problemática do estudo da arte. O artista é aquele que tá burilando sua arte, a
busca do talento é uma coisa que demora muito tempo; muitos não tem esse tempo.
Socialmente a gente sabe que os negros ainda constituem uma subalternidade do ponto de
vista social. São poucos os que podem largar tudo para viver da sua arte (risos) não só os
negros, mas.... Seja como for, as escolas de arte são ainda nichos, são elites mesmo ainda.
Então, essas dificuldades ainda são grandes. É diferente nos EUA, por exemplo, aonde
você tem possibilidades maiores, aberturas maiores... Então o número de artistas
mulheres [negras] americanas é excepcional...é um número muito, muito grande. Não só
essas que fazem esse tipo de representações consideradas “ingênuas, naïf ou...seja o que
for... de arte popular”, mas essas artistas que participaram das tradições clássicas das
escolas e dos liceus de arte. Então, talvez seja mais um exemplo pra gente se
espelhar...perceber um pouquinho de como fazer essas barreiras, pelo menos se elas não
se romperem, a gente fazer um pequenos espaços aí...pra gente penetrar...

Renato Araújo

- Mas alguma questão? Temos mais alguns minutos...

Juliana Ribeiro Bevilacqua

- Então eu vou fazer uma.

Renato Araújo

- Obrigado.

Juliana Ribeiro Bevilacqua

- Renato, você falou dessa baixa...dessa retomada dessa africanidade...e eu não sei a sua
consideração, mas eu vejo hoje um movimento muito forte e até muito parecido com o
que a gente via na década de 30, 40...e ali você conseguia entender esse negro que agora
não é escravo e também não é cidadão e aonde ele se apoia. Se é africano, ser vinculado
ao africano era muito melhor do que se assumir como negro brasileiro porque você tem
uma valorização do outro. Então, você se reconhecer como o outro naquele momento
fazia todo o sentido. Aí você vê a força das casas de Candomblé, desses estudiosos que
vem pro Brasil e se apoiam, escrevem...e essas mães e pais de santo utilizam esses
escritos pra justificar a sua força. E eu vejo hoje um movimento...esse grupo de artistas
afro-brasileiros e parece que [para eles] essa africanidade é quase que obrigatória. Tem
obviamente um grupo que tá traçando outras trajetórias, mas a gente vê até uma cobrança
entre eles mesmos de que é preciso trazer essa africanidade. É como se denovo, tivesse
valor...fosse mais autêntico em termos de valor mesmo...se essa africanidade estiver
presente ou na obra ou pelo menos no discurso. Aí eu queria saber de você se você acha
que no fundo a gente nunca rompeu com esse movimento que vem da década de 30 e 40.
Acho que o Hélio na semana passada mostrou o quanto ainda concordamos com Nina
Rodrigues, o que é terrível, mas a gente precisa assumir isso. O quanto a gente ainda
difunde essas ideias...ou você acha que a gente tá de novo nesse movimento em que essas
conquistas ainda são difíceis e é preciso se apegar a isso pra ter espaço. Não sei se ficou
claro...

Renato Araújo

- Obrigado pela pergunta. Bom, infelizmente eu sou um pouco pessimista. (risos) Eu sou
um pouco pessimista com relação a esses movimentos...digamos, movimentos de
identificação, Primeiro porque são movimentos um pouco psicológicos...movimentos
necessários, claro, movimentos do tipo, você olha pro espelho e diz: “nossa, eu sou eu!”.
São movimentos necessários, que todos tem de passar. A gente passa individualmente por
isso, mas do ponto de vista mais social, quando esses movimentos acabam criando espaço
ou acabam aproveitando-se de espaços para se fazer valer. Eu identifico isso como uma
espécie de oportunidade e num aspecto um pouco menor como um oportunismo. O que
eu quero dizer? Concordo, com você, exatamente, todos esses movimentos de
identificação com o negro eles ocorreram como uma espécie de “prenúncio de um futuro
melhor”, mas acabaram morrendo na praia. Não foi por culpa própria dos movimentos.
Pensem por exemplo, que bonito um Congresso Afro-Brasileiro, mas olhando pelas
imagens vemos que foi na verdade uma maneira de demonstrar....”Olha só que
bonito...temos danças...temos música...temos festas...” demonstrar a identidade. Olha só
como o eu “é” eu...em outras palavras....Olha só como aquilo que está no espelho é aquilo
que eu estou vendo...sou eu. Se vocês repararem em todas essas festas que lidam com
questão afro-brasileira...[por exemplo] Em algum momento eu estava numa
reunião...deixa eu tentar lembrar agora com quem foi...estava comentando sobre...foi uma
antropóloga...estava comentando sobre uma festa sobre o Brasil e... ela vive na França e
ela estava um pouco chateada porque toda festa sobre o Brasil tinha de ter uma mulata
sambando e rebolando...teve até aquela coisa do politicamente correto, né? Ela falou
“Não que eu não goste de uma mulata rebolando, sambando, mas por que que o Brasil
tem de ser sempre isso?” O questionamento dela é válido, porque para os estrangeiros, a
noção de identidade do Brasil, nada mais é do que samba, carnaval, mulher rebolando e
assim por diante. É claro que essa é uma visão superficial do Brasil, é claro que existem
mais coisas no Brasil, mas é a gente mesmo enquanto brasileiro que precisamos nos
esforçar muito pra descobrir o que mais temos de interessante, o que mais podemos
considerar como coisas nossas. Eu fiz até uma brincadeira na semana passada, né? Porque
para a Carmem Miranda falaram que ela tinha voltado americanizada, que estava com “o
burro do dinheiro, que estava muito rica...” E ela falava: “não, imagina, eu sou brasileira”.
(né? Embora Portuguesa), “eu sou do camarão ensopadinho com chuchu”. Agora, para
nós, contemporâneos aqui. Podemos pensar qual é esse Brasil que se identifica com o
“camarão ensopadinho com chuchu”. Por uma curiosidade, alguém aqui já comeu
camarão ensopadinho com chuchu?

Uma senhora
Eu já... (risos)

Renato Araújo

Aí, ó.…uma brasileira! (risos) finalmente...Encontramos...Muito bom. Precisamos


conhecer sobre o Brasil que você conhece.... Porque a noção de identidade é uma noção
histórica e é muito difícil dela ser sedimentada. Os EUA têm a mesma constituição desde
sempre. É uma coisa estranha pra gente. Como é possível isso, né? Essa noção de que “eu
sou assim, cheguei pra ficar, esse sou eu, e pronto acabou” É uma coisa que não é muito
nossa. Por isso que eu sou pessimista. Pessimista-Otimista, vamos dizer assim, sou meio
Mario de Andradiano...sou meio Mariano...O Mário, quando foi fazer aquelas missões ele
recolheu um ditado que é assim: “negro é parido, mulato é cagado” (risos). Quando ele
recolhe esse tipo de ditado popular ele está sendo esse otimista-pessimista, porque ele
sabe o que é a cultura brasileira, ele sabe que essa cultura é uma cultura racista, mas é
essa cultura que ele quer valorizar, não o racismo em si, mas o fato de nós sermos nós
mesmos. É um pouco aquilo que os revolucionários da Irlandeses falam o Sinn Féin, quer
dizer, “nós, nós mesmos” é um partido que eles criaram lá. Eles falaram, “olha, tudo bem
que a gente faz parte do Império Britânico, mas há alguma coisa de irlandês em nós
mesmos que é o que eles queriam valorizar” A gente não fez esse partido. A gente não
passou por isso ainda. Eu acho que na medida em que a gente vai descobrindo um pouco
essas possibilidades desse Brasil a gente começa a perceber que nem só de festa vive o
brasileiro, existem mais coisas...e aí a gente pode também, talvez vislumbrar esse futuro
de identidade que possa ser celebrada a despeito dessas superficialidades que aparecem
por aí.

- Não sei se respondi sua pergunta, mas pensando um pouquinho nisso...essas


ondas...esses movimentos atualmente, principalmente, a gente percebe isso um pouco em
função da internet. São movimentos que são movimentos de valorização. Nem sempre
são movimentos pautados em termos teóricos, na verdade é mais um oba oba, alguns
deles são mais um oba oba, ou movimentos que estão se aproveitando da questão dos
nichos de mercado que estão abrindo...Eu quando era criança eu não via negros na
televisão, tampouco nas propagandas. Hoje tem. Porque você sabe que tem uma classe
média negra que tá emergindo. E aí, são consumidores em potencial, logo eles vão
aparecer. Agora, quer isso dizer que “olha finalmente agora a TV está valorizando os
negros? ” Valorizar “pra quê”, não é? (Risos). Depende muito do interesse...né? É por
isso que eu encerro dizendo uma frase de uma filósofa brasileira muito importante
chamada Chica da Silva: “Como as palavras se torcem conforme o interesse e o tempo”290.

290
Essa frase filosofal está na Cecília Meireles “Romanceiro da Inconfidência” que está entre os primeiros
10 dos meus mil livros de cabeceira. Ela reaparece na boca de Xica da Silva num dos 10 dos meus 100
filmes de cabeceira “Os Inconfidentes”, de Joaquim Pedro de Andrade, um filme com o falecido José
Wilker, magnífico no papel de Tiradentes. Agora, se não for considerado errôneo retomar o que eu dizia
(risos) Alguma pergunta?

Juliana Ribeiro Bevilacqua


- Não temos mais tempo, Renato. (Risos) Por ele a gente ficava aqui, né? Ad aeternum...

Renato Araújo
- Mas lembrando então. Nós teremos outros encontros. O próximo, não se esqueçam, vai
ser na Tiradentes, no outro prédio da Pinacoteca.

Juliana Ribeiro Bevilacqua


- Fiquem atentos, por que é lá, é cá...e às vezes...[se confunde] então olhem atentamente o
convite pra vocês não errarem o lugar.

- Eu acho que vai ser muito importante a gente ter contato com duas pessoas que se
debruçaram sobre esse tema e que escreveram...A Lisy em 2000, um texto muito
importante e aí? dezesseis anos depois em que que ainda ela concorda ou discorda e o
Conduru a mesma coisa, um livro de 2007, dez anos depois, o que que mudou? O que que
a gente pode debater hoje em 2016 a respeito disso tudo, já que a gente teve muitas outras
exposições...acho que o debate tem caminhado bastante bem, instituições como a
Pinacoteca tem cada vez mais investido em trazer esse debate como algo que é da
sociedade mesmo e não de espaços [fechados]...como o MASP agora também realizou
um seminário muito importante [Histórias da Escravidão – 28 e 29 de Outubro 2016]...e
agente tá....Eu sou mais otimista...né Renato? Do que você...é que filósofo...

(justamente porque a nenhum dos participantes foi dado o mesmo direito), digo apenas que o meu
pessimismo, como resposta à Juliana não tomava a ideia de que a arte afro-brasileira não pudesse
absolutamente existir, mas que, para além das ondas de valorização institucionais do negro [descritas no
texto “Arte Afro-Brasileira Altos e Baixos de um Conceito”] vimos que para ela existir, teria de assumir
critérios que lhe foram impostos de fora e que os artistas envolvidos até hoje ainda não tiveram em
conjunto o interesse e nem a vontade de manter sobre si este rótulo de “artistas da arte afro-brasileira” - isso
foi invenção dos teóricos e dos curadores, mas não dos artistas.
Renato Araújo
- Eu vou me aproveitar do seu otimismo, então (risos)

Juliana Ribeiro Bevilacqua


- E apesar que... a gente, é muito parceiro... acho que por causa disso também, né?

Tadeu Chiarelli
- Então a gente se vê no próximo sábado.

Renato Araújo
- Obrigado por vocês serem os heróis e virem aqui nessa véspera de feriado...(risos)
As Comunicações da Marta Heloísa Leuba Salum e Roberto Conduru
(Auditório Pina_Luz: 19/11/2016)

Durante muito tempo, Roberto Conduru e Lisy Salum foram um dos poucos com
coragem de tratar teoricamente do tema “Arte Afro-Brasileira” depois da mostra do
Redescobrimento. Eu fico pasmo, por exemplo, com a quantidade de artigos relacionados
ao assunto que Conduru dedicou. Essa tarefa é somente comparável à de outro carioca, o
Raul Lody, a respeito da religiosidade afro-brasileira (eu li em algum de seus textos que
ele já tinha publicado a impressionante marca de mais de 500 textos sobre esse assunto!).
No caso de Conduru, uma boa parte dos seus artigos foram coletados no seu livro
“Pérolas Negras, Primeiros Fios – experiências artísticas e culturais nos fluxos entre
África e Brasil” publicados pela EDUERJ em 2013. Dos 42 títulos republicados o autor
converge os temas da religiosidade, musealização, cultura e arte africana e
afro-brasileiras entre outros.... Seus artigos datam desde 2001 a 2013. Embora os artigos
apresentem uma renovação da problemática das artes afro-brasileiras e tenha o mérito de
tentar incluir alguns brancos artistas do círculo contemporâneo dentro de uma perspectiva
“afro” e ainda chamar a atenção para artistas negros do Rio de janeiro e outras partes do
país que estão excluídos do circuito paulistano, os textos são inconclusivos do ponto de
vista da definição teórica e do aspecto estético possíveis a esta arte chamada
afro-brasileira. O autor deixa claro tanto nos seus textos quanto em sua comunicação no
Evento da Pinacoteca a dificuldade teórica enfrentada por aqueles que se aventurarem
neste tipo de direção.

Tadeu Chiarelli

(...) e a gente dá prosseguimento ao nosso seminário. Então se vocês não viram as


exposições, vocês podem ver depois das apresentações. Temos dois convidados muito
especiais hoje, a quem eu agradeço especialmente e eu passo a palavra à Juliana, então,
pra que ela dê prosseguimento aos trabalhos.

Juliana Ribeiro
- Bom, boa tarde à todos. Obrigada Tadeu. Hoje a gente dá continuidade à nossa
programação, pra quem não veio nas outras duas primeiras. O Hélio tratou de uma
discussão muito bacana sobre os autores que se debruçaram na arte “afro-brasileira” ou
“arte negra”, enfim, na variação de conceitos. O Renato na semana passada deu
continuidade fazendo uma fala bastante provocadora, do jeito que a gente gosta. E hoje a
gente segue com duas pessoas importantíssimas que se debruçaram também sobre esse
tema e eu vou chamar a Lisy Salum (Marta Heloísa Leuba Salum), mas conhecida como
Lisy Salum. A Lisy é Professora do MAE-USP (Museu de Arqueologia e Etnologia) é
responsável pelo setor de arte africana. Foi uma das curadoras do módulo arte
afro-brasileira da mostra do redescobrimento em 2000. E é autora de diversos artigos
como, um deles bastante conhecido “Cem anos de Arte Afro-Brasileira”, entre outros. O
segundo convidado é o Roberto Conduru que é professor de Teoria e História da Arte da
UERJ. Foi curador de diversas exposições como “Incorporation of Afro-Brazilian
Contemporary Art” e é autor de diversos artigos e livros dentre eles “Arte
Afro-Brasileira” de 2007 e “Pérolas Negras” de 2013. Podem vir, por favor.

- A gente vai começar com Roberto Conduru...que é o...Vamos fazer que nem banca, né?
Sempre quem vem de mais longe tem o privilégio de começar, então vamos seguir essas
[tradições]. Então eu vou avisando em relação ao tempo, pra gente deixar um tempo pro
debate no final.
Roberto Conduru – Universidade Federal do Rio de Janeiro291
(Auditório Pina_Luz: 19/11/2016)

- Boa Tarde. Eu começo dando os parabéns ao Tadeu Chiarelli e à equipe da Pinacoteca


pelas Exposições, as duas que inauguram hoje e as outras, que me deixaram muito
impactado. Acho que é um momento muito interessante para a Pinacoteca e acho que eu
tenho esse prazer. E vai ser um prazer de poder aqui participar dessa série de debate.
Infelizmente não pude estar antes e não poderei voltar para os outros debates, mas fico
aguardando os desdobramentos. A Juliana nos enviou esse tema “Repensando a Arte
Afro-Brasileira Hoje”. Pois bem, eu devo confessar que tenho muita implicância com a
terminologia da história da arte. Acho que a história da arte é uma disciplina que desde
que ela tentou se consolidar primeiro academicamente e depois cientificamente no séc.
XIX, ela assimilou determinadas práticas classificatórias muito em voga, então, que tem
afetado a ação de quem faz a história da arte (os historiadores). E no meu entender, isso é
um problema. Essa taxonomia. E, particularmente, me incomodam as designações dos
estilos artísticos e sempre vale lembrar como barroco, rococó, cubismo, fauvismo e tantos
outros são nomes que nascem com cunho pejorativo, ou seja, é uma disciplina que a
princípio tem toda uma tradição humanística, mas que em seu próprio linguajar já guarda
uma marca de preconceito de aversão, de tensão com aquilo com que ela trata. Ou seja,
temos aí o problema das sínteses que esses nomes enfeixam. Por isso, quando eu comecei
a me interessar por esse campo lá no início dos anos 2000, e tive de formular
academicamente como um projeto na Universidade em que trabalho, e eu equacionei uma
questão que era uma relação entre África-Brasil e Arte. Entendendo que essa relação
aberta, ela podia gerar várias respostas porque ela lida com três tópicos socioculturais

291
Entre outras coisas, a comunicação do prof. Roberto Conduru teve o mérito de melhor responder à questão
formulada a respeito da aplicação e dos rumos que a chamada “arte afro-brasileira” tem se encaminhado. Ressaltou
sobre os fundamentos problemáticos dessa arte e suas bases socioculturais de difíceis determinações como África,
Brasil e Arte; ressaltando a importância de se dar ênfase à essa última questão, algo que não tem sido feito no país. Sua
resposta ao público quanto às diferenças entre produzir pesquisa, historia da arte e crítica no Brasil foi bastante
interessante porque revelou um grande censo crítico quanto à nossa “auto-colonização”, especialmente a universitária,
já que, enquanto nós só olhamos para a arte euro-norte-americana, os EUA tendem a olhar para a arte do mundo,
criando várias especialidades em história e critica da arte mundiais, algo que não há aqui. Outro mérito de sua fala é a
insistencia na trasnversalidade da arte, o alargamento das margens que definem o afro-brasileiro e a exploração de
campo. Aquilo que para a marioria de nós seria arriscado e até mesmo perigoso, parece não abalar a seus testes.
Acredito que nenhum de nós, por exemplo, traria pra pauta nomes como Oswaldo Goeldi ou Volpi, Antonio Henrique
do Amaral ou, talvez até Antonio Gomide. Algo que Conduru traz também em seus textos e quando apareceram em sua
fala na Pinacoteca ficaram mais compreensíveis e legitimos os motivos exploratórios de um campo de arte no qual ele
empreende.
bastantes problemáticos. E que, em geral, pra serem respondidos enquanto questão,
necessitam a articulação de outros temas, de outros tópicos...

Não preciso falar muito para evidenciar como África é um tópico problemático. Não
apenas a diversidade que há na África no tempo e no espaço, dependendo se você a pensa
de dentro daquele continente, se você pensa fora. Se você toma a África como um
continente ou não. As várias dimensões que a África assume nos diferentes imaginários,
em diferentes lugares, em diferentes momentos. Então, a África está longe de ser algo
resolvido, algo estabilizado, algo que possa ser compreendido de maneira tranquila. Algo
de semelhante se processa com relação ao Brasil. O Brasil também é algo em formação.
Se nós formos pensar quando é criado o que a gente chama de Brasil, não tinha essa
conformação que tem hoje, basta lembrar que haviam duas colônias portuguesas na
América, uma era a colônia do Brasil a outra era a colônia do Maranhão e do Grão Pará.
Depois foram unificadas, grande parte do que era o território, perdeu um pedaço...a
Colônia do Sacramento, hoje Uruguai, ganhou outras coisas depois. Então, é assim,
geograficamente, não é algo estável há um longo tempo e sobretudo não é algo pronto,
estabilizado em termos de imaginário. De novo, o imaginário sobre o Brasil é algo que
começa a se pensar mais seriamente a partir do Império e também, no meu entender, é
uma equação em aberto.

E acho que quando você pensar essa relação entre a África e o Brasil, dependendo de
outros termos que você coloca...você pode colocar gênero, você pode colocar sexualidade,
você pode colocar religião.... Você pode chegar a muitas perguntas. E a muitos resultados.
E, ao longo do tempo que eu tenho trabalhado, exatamente essas diferentes respostas, elas
me mobilizaram muito. Então, chega por exemplo a artistas como [Oswaldo] Goeldi, que
a princípio seria um artista completamente longe desse mundo ou então [Alfredo] Volpi...
E ao contrário, me interessava exatamente pensar tanto Goeldi quanto Volpi são artistas
que tinham peculiaridades diversas e algumas próximas representaram afrodescendentes.
Eles são artistas que estão fora disso que se chama “arte afro-brasileira”, mas pra mim me
interessava também procurar isso que estava fora dessa margem.
Com relação aos temas...Uma pergunta que eu acho que pode ser feita e deve ser feita é
em que medida há temas específicos relativos à essa relação com África no Brasil. São
temas específicos? Com certeza os temas são específicos. Há temas específicos: há a
questão do tráfico de pessoas da África para o Brasil. Há a questão da escravidão. Tudo
que decorre dela. As culturas africanas desdobradas no Brasil em particular as religiões.
Mas, se a gente pensar como não existe Brasil sem África, não seria possível também
dizer que tudo diz respeito à relação entre a África e o Brasil. No Brasil, no sentido de
que qualquer questão em alguma medida vai tá marcada por isso que é uma chaga ainda
aberta na sociedade brasileira – essa da escravidão.

Não é interessante, por exemplo, pensar, e aí a gente olha de outra maneira os chamados
pintores negros do séc. XIX que estavam expostos no ano passado aqui naquela excelente
exposição Territórios Negros. Em que medida o fato que eles não assumiam, não
tematizavam diretamente uma questão afro, não era o modo exatamente de explicita-la na
medida que se colocavam na alteridade da alteridade; se colocavam no lugar de falar de
tudo e será se não devemos com aqueles pintores, o Estevam Silva, o Timótheo da Costa,
o Firmino Monteiro...? Justamente pensar todas essas questões a partir desse viés e aí
seria um prisma pra olhar a sociedade de outro modo? Eu sei que parece vago isso, mas é
que eu sou muito dedicado por esse tema, encantado por ele que me parece que é possível
olhar à nossa arte à contrapelo a partir dessas questões. Com certeza, uma questão chave
é a questão da religião. Das religiões chamadas afro-brasileiras ou as religiões com
matrizes africanas no Brasil. Alguns estudos que vem sendo feito justamente sobre o
catolicismo marcado pela questão negra eu diria que seria fundamental repensar quais são
as contribuições africanas não apenas o Aleijadinho, Mestre Valentim, e alguns outros
mais destacados, mas de toda a produção de artistas vinculados às ordens religiosas,
sobretudo as ordens terceiras, na construção desse imaginário católico no Brasil, uma área
que me parece que tem sido pouco estudada. Foi mais no passado. Aqui em São Paulo
teve o trabalho fundamental do [Luis] Saia sobre os ex-votos, mas me parece que na
medida em que o modernismo refluiu e com ele todo interesse pela arte do período em
que o Brasil era uma colônia, esse campo deixou de ser muito investigado e aí
recentemente encontrei em Brasília um artista chamado Antônio Barros. Muito
interessante, porque a obra dele parte justamente desse imaginário católico numa
perspectiva negra contemporânea com performances, objetos e acho esse um veículo
muito rico. Pra não falar das chamadas religiões afro-brasileiras que no meu entender,
desde o trabalho do Mestre Didi e sobretudo com as ações mais recentes, especialmente
com Ayrson Heráclito vem ganhando dimensionamento muito forte, para além apenas da
representação icônica e um sentido mesmo de confluência, no caso do Didi, entre objetos
do mundo religioso, objetos do mundo da arte, no caso do Heráclito, performances
artísticas e rituais religiosos – as interfaces disso, as confluências disso. Acho que é uma
questão, um veio muito interessante que vem sendo feito.

Mas com certeza, acho que o que tem se destacado muito fortemente é a questão do
ativismo político. A questão política é uma das que vem nos últimos anos, crescendo mais
e mais. Se até bem pouco tempo, o que mais havia era uma tematização da religião e
havia uma dimensão política e há uma dimensão política nisso.... Acredito que essas
religiões são cerceadas, elas são perseguidas, muitas vezes elas são atacadas com
violência, o simples fato de representar uma divindade ou um ritual é em si uma obra que
tem uma dimensão política. Mas diferente é o fato de que hoje muitos artistas e curadores
têm focado especificamente essa questão dos direitos, de uma justiça social, de uma
igualdade social, por meio da arte. Isso vem crescendo mais e mais e isso é um campo
que eu diria, muito interessante...muito... No sentido mesmo de algo que nos últimos anos
tem renovado esse campo se a gente pensar na tradição. Se a gente for pensar na questão
da representação das religiões, isso existe há muito tempo...isso existe há mais de um
século, de modo que, sim, foi crescendo ao longo do tempo, não se deu sempre com a
mesma intensidade, mas aqui e ali isso aparecia, com mais preconceito, com menos
preconceito, visto de fora, visto de dentro, mas isso se tornou excessivo. No caso político,
o oposto, né? Eu penso, aqui estando em São Paulo, na obra de Antônio Henrique Amaral,
uma gravura que fala muito dessa tensão entre negros e brancos... Mas isso é quase um
fato raro, quer dizer, você pode pensar em que medida isso atualmente tem surgido em
função, eu não diria como efeito, mas como parte de uma outra dinâmica do movimento
negro na sociedade brasileira. E com certeza em conexão com toda uma discussão sobre a
conjuntura pós-colonial e mais especificamente sobre as propostas de descolonização. Aí
vale a pena pensar em vários trabalhos como Jaime Lauriano, ou então o próprio
“Coletivo Presença Negra”, à frente desde fevereiro com trabalhos que vão renovar esse
campo muito com essa questão de um ativismo. Acho que não por acaso eu fiz questão de
falar de grupos e de artistas aqui de São Paulo porque eu acho que é um fenômeno nesse
pouco tempo que eu tenho estudado esse campo, São Paulo recentemente ganhou uma
outra emergência. Não que não houvesse no passado...eu citei o Antônio Henrique do
Amaral, podia ter citado obras do Antônio Gomide que tratam disso, ou então o Segall
que está exposto aquele maravilhoso retrato de um negro, um antigo escravo, ou a própria
Tarsila, quer dizer, há uma tradição. Mas recentemente o que me causa, assim, muito
interesse é observar tanto por parte dos artistas quanto por parte das instituições, um outro
fôlego relacionado a isso. Basta pensar o que a Pinacoteca tem feito, a exposição do ano
passado [Territórios], o debate do ano passado, este debate, mas também pensar no
MASP, no Itaú Cultural, as várias unidades do SESC. E eu diria que olhando da
perspectiva do Rio de Janeiro isso é absolutamente distinto do que ocorre no resto do
Brasil e acho que é um dado muito interessante e que pode e deve ser estudado. Além de
ser experimentado, vivido, mesmo como algo que não tem em termos de intensidade em
outro lugar. Você pode dizer que vai a Salvador e encontra um orgulho cultivado há
muito tempo de ser negro, transpirando na cidade que é bem diferente e também é
inigualável no Brasil. Mas, você não tem essa quantidade de esforços que estão sendo
feitos em termos expositivos e de debates, seminários como eu tenho visto aqui. E acho
que esse é um diferencial e eu diria que esse é um ponto numa dinâmica que você
encontra mais forte em várias cidades brasileiras e na medida em que nós vivemos
momentos em que muitos retrocessos estão aí pairando, é preciso se preocupar em que
medida a gente vai continuar tendo essa dinâmica espraiada no país todo e com essa
intensidade particular aqui ou se isso vai ter uma reversão, enfim, é uma questão pra
própria dinâmica política. Nesse sentido, eu diria que uma questão chave que emergiu
nesse tempo, mais recentemente é a questão do protagonismo negro. Não é mistério
nenhum, imagino que nas outras sessões que examinaram os conceitos relativos a esse
campo de como essa ideia de arte afro-brasileira há muito tempo foi sendo entendida
desde artistas afrodescendentes, mas também artistas não afrodescendentes e até
estrangeiros que lidavam com temas “afro”. E isso é um pouco o que se tornou um lugar
comum. Marianno Carneiro da Cunha, no meu entender, em 1983 conceitua no livro do
Walter Zanini, naquele capítulo Arte Afro-Brasileira, ele conceitua o que alguns anos
antes Ruben Valentin havia proposto em seu ‘Manifesto ainda que tardio’ e que o Abdias
do Nascimento já havia delineado na ideia de Museu de Arte do Negro. E isso se torna
um pouco o lugar comum. Recentemente, é interessante encontrar um livro como o da
Kimberly Cleveland, professora nos EUA, quando ela propõe o uso renovado da
expressão de “arte negra”. Ainda que eu não concorde tanto com as razões que ela postula,
me parece muito interessante a consonância entre essa pauta, essa reivindicação da
prioridade do protagonismo dos artistas negros, de críticos negros, de curadores negros
com o retorno de uma designação que foi a primeira que apareceu nos textos de Nina
Rodrigues, os textos do Arthur Ramos e exatamente até no projeto do museu de Abdias
que é o Museu de Arte do Negro. Ainda que a Kimberly não queira retornar à ideia de
uma marcação fenotípica, nem queira abandonar a possibilidade de artistas não
afrodescendentes tratarem do tema. Enfim, acho que essa é uma questão que por vezes se
acirra. Lá mesmo na universidade que eu trabalho, algumas ações têm tido, assim, uns
limites em que se ultrapassa e acho que um ponto que talvez a gente possa conversar,
porque me parece que é um ponto “quente”. Até que ponto essa ideia da prioridade do
protagonismo [negro], ela pode resvalar numa ideia de uma exclusividade. E isso já
apareceu lá por exemplo, na UERJ, aonde eu trabalho isso já apareceu recentemente e aí
isso seria uma reversão do que tem sido a prática no Brasil. E pra mim isso seria
interessante pensar se eu for tomar isso a partir do campo mesmo da história da arte... a
gente poderia também falar isso também do campo da antropologia, tanto a arte quanto a
antropologia pressupõe uma determinada exterioridade. É óbvio que você pode ter uma
antropologia urbana, como a formulada por Gilberto Velho, em que trata não tanto da
alteridade, mas das próprias sociedades aonde o antropólogo vive. E também [é óbvio que]
a gente possa falar de uma história do presente, uma história do contemporâneo, mas em
princípio, como diz o Stephen Ban, “o passado é um país estrangeiro para o historia” e o
historiador, muitas vezes, lida com um fenômeno com o qual ele não participa. Então,
você pode estudar a arte da armênia sem ser um armênio, você pode estudar a arte da
China sem ser um Chinês e você poderia estudar a arte afro sem ser um africano ou um
afrodescendente. Então, e isso é interessante, essa questão, porque ela me parece muito
“quente” hoje porque no Brasil isso foi formulado antes de outra maneira, basta pensar
que Pierre Verger, um francês e Carybé, um argentino naturalizado, são dois nomes que
são encontráveis em toda e qualquer organização ou exposição ou obra de referência aí à
esse tema. Também é fato a questão do pertencimento ou não das religiões. Porque a
pessoa pode não ser afrodescendente, mas ser um adepto, ser um iniciado nessas religiões.
Aí pra pensar num outro caso paradigmático disso, a pessoa que defende que pra falar das
religiões tem de ser das religiões, um dos textos clássicos é da Juana Elbein dos Santos,
que é a esposa do Mestre Didi e original da Argentina, entende? Então essa questão do
pertencimento, ela me parece...como essa questão do protagonismo negro ela é uma que é
muito forte hoje, é muito interessante e muito importante pensa-la à luz até do que há
consolidado no Brasil.

Mas já encerrando, pra não me alongar muito pra justamente ouvir a Lisy e depois
conversarmos, quando eu falei que eu montei nesse meu projeto uma equação que
relacionava três termos socioculturais problemáticos eu acabei falando brevemente dois
deles: África e Brasil. E justamente não falei do terceiro: Arte. Porque também me parece,
já que a Juliana colocou pra gente esse desafio, o que que eu acho que é interessante
pensar hoje nesse campo, eu diria que eu acho que a gente deveria pensar mais em arte.
Porque muitas vezes basta qualquer coisa relacionada à religião...e basta qualquer coisa
vinda...E acho que é preciso haver uma diferença entre o que é uma expressão cultural
válida. E aí é o direito de todo ser humano...é isso que a gente tem de garantir...que todo
mundo possa se expressar sobre sua condição ou sobre o que quer que pense na liberdade
de expressão, outra coisa é o campo da arte. Muitas vezes me parece que nesse domínio,
mas não exclusivamente nele, eu diria também que no próprio campo antigo há
uma...flexibilização...pra não dizer que há quase que um esquecimento sobre o que é arte
e o que não é. Obviamente eu sei que não é fácil dizer o que é arte. Ao contrário, pode
dizer o que não é... Mas, muitas vezes parece que nesse campo a chamada arte
afro-brasileira há muito essa discussão do que é afro-brasileiro, do que é negro
afro-brasileiro, quem pode falar quem não pode, mas pouco se discute efetivamente a
dimensão artística do que é proposto como arte afro-brasileira e acho que é esse...também
se eu sou chamado a pensar os temas “quentes” que eu vejo nesse campo um eu diria que
é justamente esse: pensar a dimensão artística. Enfim, é isso o que eu tenho pra gente
começar a conversar, tá bom? Obrigado.

Marta Heloísa Leuba Salum (Lisy) – Museu de Arqueologia e Etnologia da USP292


(Auditório Pina_Luz: 19/11/2016)

A minha fala vai um pouco na direção da parte final da fala do Conduru e eu vou falar em
que aspecto. Eu acho que o problema da conceituação da arte afro-brasileira…acho que o
tema é esse né?

Roberto Conduru

“Repensando o Conceito de Arte Afro-Brasileira Hoje”

Lisy Salum

- É...“Repensando o Conceito de Arte Afro-Brasileira Hoje”. Então, eu tive o desafio de


pensar isso no ano 2000. Eu acho que era uma circunstância diferente. Não só do ponto
de vista daquilo que a gente entende como África no Brasil, mas em termos identitários
ou como uma referência no campo das artes, que eu acho que é muito importante, como
disse o Roberto Conduru, pra gente pensar nessa que é uma questão prioritária, porque
senão a gente não tá falando de “arte afro-brasileira”. Essa é que é a grande questão, né?

292
É da Lisy a melhor reflexão dos cinco encontros. Sua profundidade que vai além da analítica e do
discurso de encadeamento previsível, diz que a arte afro-brasileira está enfrentando desde sempre um
dilema: Ela quer ser identitária (no mundo da desconstituição do sujeito), apresenta-se como uma forma
política (como se alguma arte não o fosse) e o principal, esta arte exigiu uma unidade de tema e estilo; algo
que desde a pintura holandesa do séc. XVII não se via constituída dentro e muito menos fora dos circuitos
da academia. Eu gostaria de destrinchar essas três fortes acusações à pretensão de fundamentação
da arte afro-brasileira pensando que talvez não seja isto o que tenha querido a Lisy, destruir as bases
estéticas ainda inseguras desta arte, mas pensar essas acusações como desafios para o artista afro-brasileiro
e aos herdeiros emocionais e estéticos da África frente ao problema da arte mundial. Essa contribuição da
Profa. Lisy ao debate foi muito importante: os artistas envolvidos com essa arte têm como desafio se
posicionar enquanto um dilema. Trata-se de uma inclusão comunitária numa época sem comunidades; uma
percepção racialista numa era pós-racial, um fenômeno artístico, isto sim, mas sem vanguarda ou
movimento unificado. Algo que não devia estar ali, mas está. Uma curva fora do padrão. Além disso, outra
ideia original que partiu historicamente da Lisy Salum é a noção de que “a arte afro-brasileira é
contemporânea ao seu tempo” - essa noção apresentada em seus textos e que reaparece aqui nos ajuda a
repensar a arte afro-brasileira e as dificuldades de sua conceituação de acordo com as necessidades de cada
época.
E naquele momento, cabia à gente fazer uma conceituação que de certa forma, nos seus
posicionamentos políticos que os artistas têm definido como caminho à sua própria arte.
Penso assim hoje, [mostra] que o problema da arte afro-brasileira fica no vazio ou fica
nessa conceituação que cabe ao estudioso, ao crítico, ao curador. Mas esses processos
curatoriais mudaram tanto aqui quanto na África, quanto no mundo inteiro. A gente vê
hoje por exemplo, o tratamento das artes da África e dos artistas africanos
contemporâneos sendo ainda tratado ou “mais do que nunca tratado” face ao problema da
arte africana tradicional, que é aquilo que na verdade é o “soldo” do período colonial que
ficou lá trás. Então, é uma mescla dessas coisas... E ao mesmo tempo os artistas africanos
contemporâneos tentando se desvencilhar dessa identidade com essa produção outra. O
que que é esse mundo contemporâneo, afinal de contas? Ele é um espaço de indefinição
de identidades! Como é que você, então, vai produzir uma arte de agora, com esse
objetivo de definir essas identidades e largando todos esses processos de construção
artística? Do fazer...(risos) não gosto de falar isso... do particípio...Do fazer artístico, que
fica sempre relegado e eu acho que dentro de uma diluição, no sentido dessa coisa que
você [Conduru] fala dessa territorialidade, mas [a respeito] do que significa esse processo
todo? Se a arte africana sempre foi realmente um conceito…Acho que [no termo] arte
negra... que aí a Kimberly volta numa nova perspectiva, ela não resolve o problema,
como não resolve o problema [o termo] “artes primeiras”, como não resolve o problema
“a pluralidade, a diversidade das artes na África” ou mesmo nas “Américas, na diáspora”.

Então, quando eu volto àquele momento [Mostra do Redescobrimento, 2000] eu acho que
era um momento necessário, para que você considerasse na verdade, a arte brasileira na
sua pluralidade. Aquele momento da mostra do Redescobrimento tinha um sentido de
pegar todas as ramificações possíveis, sendo que “as artes negras”, as “artes
afro-brasileiras”, todas as modalidades que vinham sim, que eu acho muito bem
colocadas... Não sei se eu concordo com você Roberto, mas muito bem colocadas pelo
Marianno Carneiro da Cunha, que ele explodia daquilo que o Clarival do Prado
Valladares, cada vez mais eu me convenço disso, que ele tenha sido um grande inventor
da diáspora nas artes. Você tinha lá desde Nina Rodrigues, aquela coisa da arte dos
colonos pretos, você tinha as artes dos antigos candomblés que eu, hoje em dia, tô
achando que ela poderia ser a “essência da arte afro-brasileira”. Porque lá você vê a
presença dos artistas. Aos poucos, a gente vai descobrindo as mãos de artistas…a gente já
não sabe mais os nomes... como também se perdeu na África… mas a gente começa a
identificar, a partir de Marianno Carneiro da Cunha que você tinha gente que trabalhava
com isso, que desenvolvia um trabalho estético…gerado sabe lá onde... não era criado
nos paralelos, por exemplo, que Pierre Verger fazia entre arte africana e arte
afro-brasileira. A gente sabe que em primeiro lugar não é uma questão formal. Em
segundo lugar, ele nem conseguia ver a coisa do “formal”. Eu acho sim, que a gente tem
que olhar agora esse problema de arte… (risos) depois que eu sai do campo da arte e fui
para a antropologia... e agora eu nunca consigo deixar de voltar, eu acho que a gente tem
que ver [e] que apesar de você ter as várias modalidades já enunciadas pelo Emanoel
Araujo em 1988, na [exposição] “A Mão Afro-Brasileira” e que se perdia na questão
temática, se perdia na questão estilística, na questão formal... Quer dizer, o que é que
aquilo poderia caracterizar? Aquele moço que foi chefe da educação… que trabalha
com uma coisa de uma arte acadêmica identificando, né? O que que na arte negra [e na de]
alguns artistas negros da academia do séc. XIX poderiam na forma identificar o que
poderia ser ou que que continha ali na forma…Sabe quem é?

Renato Araújo

Claudinei Roberto

Lisy Salum

- O Claudinei! Ele tem toda uma análise... Não conheço muito bem, eu já vi ele expor
isso. Quer dizer, existem outras formas de você usar os recursos da crítica da arte, os
recursos da historiografia pra você trabalhar com isso. Agora, eu acho, que na verdade a
gente já tá num momento em que a própria definição “afro-brasileira” ela pode
justamente fugir daquilo que pode caracterizar propostas estéticas...eu nunca vi
nenhum...estamos pra ver algum memorial que se paute em alguma coisa pra que as
identidades negras se expressem através da arte. Eu acho que a arte e a arte afro-brasileira,
quando ela é admitida como tal pelos artistas, ela tá sendo só um veículo de um discurso
que não opera através da arte. É isso! É isso o que eu tô achando... Então, eu acho que do
ponto de vista conceitual eu ainda [acho que] mantém alguma coisa... eu nunca vou
fugir....a gente não foge...a gente sempre fala a mesma coisa...Mas eu acredito que uma
coisa que eu nunca mais faria é poder falar de arte brasileira ou arte afro-americana,
digamos assim, e as artes que sejam de qualquer diáspora do passado, do presente...como
as contemporâneas, por exemplo, dos artistas de hoje, do nosso tempo, da África ou do
Brasil e das américas...Eu já não conseguiria pensar numa relação entre uma coisa e outra.
Isso não! Por que eu acho que tá na hora da gente incorporar na arte brasileira, ou ver
incorporado...Ou não precisar definir conceitos que são separatistas por outro lado, pra
definir uma arte que...sempre...Na verdade, sempre uma arte vai ser uma expressão
identitária. Mas ela é uma arte do artista. É uma identidade do artista e ele pode até se
sentir um representante de um grupo, de um setor e tudo isso, mas aí ele tá fazendo uma
arte para outras finalidades, né? Eu estou falando arte enquanto um instrumento de
expressão. Eu não estou querendo também restringir e nem discutir o sentido da arte,
porque eu não sou especialista na matéria. Não tô aqui querendo definir [a] arte, mas eu
acho que a arte e o discurso político...Acho que nós temos vários veículos e várias mídias
possíveis hoje em dia e que isso é escalonado. Se no meio artístico (eu tô usando uma
expressão que é autoral) mas digamos, eu estou falando do circuito, das pessoas que
privam...[estou falando] da apreciação, do métier...seja aonde for, nos museus, nas
galerias...nos espaços públicos e tudo isso...Eu acho que no momento de hoje a gente não
pode falar que a intenção do artista ou a intenção da obra....É tão difícil a gente modular
ou é impertinente a gente modular o que que é a gente faz com a criação, com as
possibilidades de pensar o mundo de uma abrangência tal e qual, ou numa direção tal e
qual...que é um caminho que sempre pertenceu à arte de forma direcionada...e achar que
isso é o veículo da intenção desse artista determinado ou de um grupo que ele representa.

Eu tenho feito uma autocrítica nesse sentido, mas é uma autocrítica relativa porque eu
acho que naquele momento a gente precisava recoletar o que tinha sido feito, não como
um historiador. Historiador nenhum de nós éramos. Mas eu acho que [o objetivo era ]
tentar situar esse tema dentro desse campo maior de arte afro-brasileira. Eu não sei até
que ponto isso é agora necessário. Eu acho que dentro de determinadas propostas como
essa coisa da territorialidade...e dentro de um espaço de arte, isso sim é possível, mas pra
mim isso é circunstancial, não é uma coisa que vai definir processos. Eu acho que o que
vai definir processos é quando esses artistas negros, afro-brasileiros,
afrodescendentes...aqueles que se empenham e fazem do seu trabalho como um
instrumento de auto-identificação...[a gente vai definir processos] quando a gente
começar a voltar de novo os olhos para o que que é a arte. Com que papel os artistas
podem intervir melhor? Em última análise, implica no acumulo construtivo e na
qualidade. Nas qualidades de linguagem, nas qualidades de se melhor colocar dentro do
caminho que se está. Por que eu acho que às vezes o discurso, ele se sobrepõe. E o
discurso chega num ponto em que ele é tão autocentrado, vamos dizer, nisso que acaba
por não fazer o processo de integração. Eu acho que todo esse movimento que veio
historicamente no século XX era um exercício de todos os sujeitos envolvidos. Todos os
agentes sociais envolvidos nisso...de integrar isso. E isso não tá integrado ainda.
É...[quanto tempo eu já falei?](risos)

Agora, e quando eu falo isso, eu falo um pouco pensando também sem querer associar
mais à problemática do “afro-brasileiro”, eu não sei até que ponto eu associava
diretamente, não era uma questão formal, era uma necessidade de conceituação. Mas eu,
agora, enquanto uma pessoa que se detém sobre isso, eu prefiro olhar ou tenho mais
facilidade de olhar como está acontecendo na África e com os artistas contemporâneos na
África face à arte tradicional do que aqui no Brasil, porque eu não vejo ainda um
movimento igual ao que está acontecendo [lá].

O que que acontece com os artistas contemporâneos africanos? Eu vou falar isso em
público e eu acho que já falei isso...também eu não preciso “dar nome aos bois” (risos)...
Na época da Mostra do Redescobrimento, teve gente que entrou num módulo....Na
verdade, a gente tentava trabalhar em várias vertentes. A ideia era que a arte
afro-brasileira ela tá numa dialética entre a escravidão e a colonização. Ela carrega tudo
isso.... Ela tem um pouco da religiosidade... da temática negra... as comunidades
negras...Veja por exemplo, um dos primeiros artistas que foi considerado afro-brasileiro
Heitor dos Prazeres. Que é um cara que tem lá um quadro com os pontos riscados e foi
um esforço pra achar esses pontinhos lá pra gente associar ele ao campo da religiosidade.
Mas se você for estudar a história dele, ele está muito mais ligado ao modernismo. E aí,
eu sei, como você [Conduru] poderia ver nele como eu vejo em outros. Você deu uma
sugestão muito boa, eu vou ler mais sobre o que você escreveu sobre Goeldi, mas pode
ser muito boa essa relação com essa afro-descendência na arte. Agora, o caso do Heitor
dos Prazeres, que eu dizia, em relação às temáticas, ele era um cara situado aí porque ele
expressava coisas que estavam ligadas às comunidades negras. Naquela época a gente
não pensava, por exemplo, nas populações que já foram consideradas negro africanas e
que eram ligadas por exemplo, à mineração, e que possui uma cultura material e estética
que raramente foram levantadas. Depois você tem outros campos...Além disso, você tem
outros contextos negros africanos que vão além desse da religiosidade, ou das populações
urbanas como o povo do Embu, como esse pessoal ligado também ao teatro do negro de
Abdias do Nascimento.

Então era nessa linha que a gente trabalhava. Só que tinha essa coisa de ressaltar os
artistas contemporâneos, os pilares da arte afro-brasileira. E esses pilares tinham de ser
escolhidos diante de toda uma relação entre todo esse acumulo sobre o que era arte
afro-brasileira como um centro de arte africana que acabou não sendo escolhido por nós,
mas uma pessoa que era associada a nós. Uma pessoa com quem eu trabalhei [durante]
muito tempo também. E que optou pelo modelo norte americano do Thompson como
pegar as coisas que são dos Congo, dos Iorubá e vão pegar outra coisa que tava lá na
Europa em preocupação mais ou menos [com o que] acabava de nascer e estava sendo
desenvolvida que era o tema da arte africana enquanto veículo do poder, arte de corte e
aquelas coisas todas que apareceram em 1980... 80 avançado... Então, me trazem aqui um
núcleo muito interessante e importante que a gente tinha [e] também podia associar ou
não... mas eu acho que não tinha a intenção de associar e sim equiparar o que que era
afro-brasileiro, o que que era africano. Mas de repente, o que é que você tem? As artes
dos reinos, que é... o Reino do Benin não tinha muito, mas estava representado por uma
produção iorubana, ou você tinha lá também o Reino do Congo, representado...o Reino
do Daomé, representado. Repetindo muito essa coisa da diáspora e que visto nesse
aspecto de identidade e ainda se colando nos candomblés era pra “colar” e não “colava”.
Por outro lado, você tinha aqueles que eram os “pilares da arte afro-brasileira”, entre eles
muitos que não queriam estar presentes. Duas ou três pessoas não queriam estar presentes.
Uma enfaticamente: Eu não faço arte afro-brasileira! Sou negro, mas não faço arte
afro-brasileira. Esse processo acaba desenvolvendo outras tendências e que as vezes são
de oportunidade...o problema é esse, de galgar poder.... Então, aí eu coloco essa outra
questão. Há o problema identitário, que é perfeito, eu acho que a construção de identidade
é um processo sistemático, ininterrupto e que é de todos nós. Agora, você tem a outra
coisa que é poder e arte. Como é que nós vamos tratar dessas coisas pra gente rever essa
expectativa da produção artística, como recolocar? Vocês vão me dizer: tá, na arte
contemporânea no mundo [aliás] contemporânea já caiu de madura naquela época. Eu tô
falando da arte do nosso tempo... Essa arte do nosso tempo é uma arte que acaba sendo
universal. É um dilema isso! Porque depois isso pode levar às outras “formas universais
de arte” admitidas na tal da “estética ocidental”, [que] continua a mesma...todos nós aqui
estamos sentados em mesas e bancas ocidentais... Descolonização do conhecimento não é
retórica! Quais são as posturas que têm de ser feitas não só no campo da política, no
campo da arte? Ai.., eu tô enrolando ou não? (risos) Eu posso parar? Quanto tempo eu
falei?

Juliana Ribeiro
[Ininteligível]

Lisy Salum

Quantos minutos eu tenho mais...? (...) Não. Então não precisa mais! Vocês me
perguntam o que for útil... O que eu queria dizer é isso eu acho que é importante a gente
saber que essas coisas do conceito de arte afro-brasileira elas são contemporâneas do seu
tempo. Nunca caberia, por exemplo, lá no tempo de Nina Rodrigues ficar pensando
nesses casos. Nunca caberia para Clarival dos Santos Valladares, ficar pensando fora do
campo da diáspora africana. Isso eu descobri a muito pouco tempo, mas se você vai ler, é
isso mesmo. E o Rubem Valentim? O Rubem Valentim é um cara que fala lá dos
grafismos...da escritura e mais não sei quê... mas ele fala, “eu sou um cara universal”.
Então, até que ponto a questão da identidade tá no campo da arte? Não é que o artista não
pode expressar o seu processo de construção de identidade através da arte. Ele pode
expressar o que ele bem entender. Mas não é isso o que caracteriza como negra, afro, ou
seja, o que for a arte dele, o que caracteriza é o lugar aonde ele... Se ele é brasileiro, a arte
dele é caracterizada na contribuição que ele pode dar na construção, no desenvolvimento
dessa arte. Então eu acho que falta isso. Eu não tô aqui julgando, eu tô aqui refletindo
sobre o canal por onde passa a coisa...e como esse canal pode se desdobrar e a gente tem
de saber pra onde ele tem de convergir também. Passar a mensagem da gente a gente
pode passar por qualquer lugar...se eu tô fazendo marketing, se eu tô dando aula, se eu tô
vendendo produto, se eu tô criando...né? Agora, eu não acho que a arte que vai
caracterizar nem pela forma, nem pelo veículo adotado... O que eu acho muito importante?
É que a arte africana (e eu não gosto de ficar falando de pluralidade, eu não falo! Não vou
falar de que acho diversa...porque eu não vou ficar substituindo expressão uma pela outra)
a arte africana de todos os tempos, ela sempre foi mesmo diferente...ela sempre foi muito
mais abrangente, mas isso por quê? Porque as sociedades africanas, elas são
antropocêntricas. Elas têm uma vida em totalidade muito maior que a dos outros povos,
inclusive nós. Nós temos um componente...E se a gente percebe isso é porque a gente tem
um componente africano...a gente também é de certa forma africano…em várias
modalidades, senão a gente não tinha compreensão disso.... Agora, a gente vive numa
sociedade que não tem inteireza.... Ela não pensa em totalidade...ela é cartesiana...como
são todas as sociedades de base ocidental. Agora, o grande trunfo, é que no campo
expressivo, que a gente chame de arte ou não, mas que tem uma coisa que move nossos
pensamentos, nossas sensações...e que isso provavelmente vem da África...vem dos
nossos componentes que pelo menos não são os ocidentais, por mais sangue europeu que
se tenha...ou menos ou mais.... Não é um problema de sangue. É um problema de
concepção de mundo e isso sim, isso sim é coisa da arte. Eu vou parar.

Sessão de perguntas
Juliana Ribeiro
- Obrigada Lisy. Eu vou abrir pro público e também tenho algumas questões... Já de
antemão eu tenho uma questão que eu já conversei um tanto com Hélio Menezes sobre
isso, já fiz essa pergunta pro Renato e queria fazer essa pergunta pra vocês, já que tanto a
Lisy quanto o Conduru trouxeram questões relacionadas ao protagonismo negro e da
questão da definição de identidades e eu, atualmente, tenho me debruçado muito os meus
estudos voltados para a década de 30 e 40 e pensando nessa relação dessa construção
desse africano... Por que que se volta tão fortemente para essa África? E aí uma das
explicações está ligada à essa questão de cidadania que esses africanos ou já brasileiros,
mas descendentes de africanos que conseguem após a abolição...não têm um lugar, ainda
colado, então uma forma de reconhecimento era trabalhar no campo do outro que era o
africano. Era muito mais legítimo e muito mais valorizado nessa sociedade. Essa não é
uma fala minha, são vários estudos, um deles é da Beatriz Góes Dantas... E aí eu quero
saber de vocês, se vocês...pensando nessa questão das identidades...Eu vejo um
movimento muito..., claro que não é o mesmo da década de 40, é óbvio, mas de uma
necessidade de projetar essa África, de trazer essa África, de trazer essa África de novo. E
vejo isso muito nos artistas afro-brasileiros, mesmo aqueles que não trabalham
diretamente...ou trabalham muito mais com a questão de um viés político. Mas que no
campo do discurso existe a necessidade de voltar de alguma medida para essa África. Às
vezes, nada relacionada à obra... E por que não assumir essa posição enquanto negro
brasileiro. Eu acho que a obra traz problemas que não são dos africanos, mas do que é ser
negro do Brasil. E vejo isso muito na exposição “Territórios”. Um território que trouxe
mais esses artistas jovens e contemporâneos algo muito forte do que é ser negro brasileiro.
Quais são as questões latentes que se traz? E ao mesmo tempo por que essa necessidade
hoje de voltar à essa África? Então, eu queria...não sei se fui muito clara..., mas eu queria
ouvir um pouco vocês, mas eu acho que a gente pode ouvir as perguntas... Acho que as
duas falas foram muito importantes pra gente pensar. Acho que também é um momento
muito oportuno…Alguém tem alguma pergunta que vai nesse caminho ou eles já
podem...? Querem esperar pra puxar o gancho a partir disso...? Então tá bom. Quem?
Conduru, quer falar?
Lisy Salum

- Eu tô pensando... Não, eu posso... Então a história é.…Então, enquanto não tem uma de
posicionamento, tudo isso...O discurso é aquela volta àquela África imaginaria, né? Não
dá pra saber por que, né Juliana? Mas o que acontece é que quando você busca uma coisa
que é imaginária...você ou um grupo de pessoas...aquilo se consolida como uma coisa que
pode ser até coletiva...é uma imaginária isso, né? Porque, você está buscando se situar....
Você não tá situado no seu tempo... Eu não sei. Quer dizer, quando eu falo isso também,
aí você vai poder também...eu posso tá comprometendo a eficácia do trabalho do outro. É
complicado a gente falar nisso, mas essa referência num tempo passado e ainda mais
construído...é imaginário isso. Porque os caras que viveram esse momento...eles mesmos
tinham esse momento imaginário de existência... aqueles que viveram no passado. Existe,
eu acho sim, um desconforto na existência do mundo hoje, né? Eu imagino que pros
jovens é pior ainda. Porque você tá sempre diante de muitas seduções que não foram
construídas no seu tempo. E que você não tem um lugar pra se assentar. E eu acho que
isso se cola um pouco na questão genérica, permanente no tempo-espaço do negro frente
a sociedade branca, digamos assim. Isso aí é aquela coisa da décalage [deslocamento] do
Balandier293, não tem jeito. Tá aqui tradição, e aqui a gente põe as sociedades que não são
hegemônicas. As classes ou sociedades...E daqui do lado você tem um fosso...Isso daí é
um dilema permanente.

Roberto Conduro

- Quando o Hans Belting, um historiador da arte, quando ele fala da arte global, ele vai
defender que a arte na construtura (SIC) globalizada ela é pós-étnica e essa é uma
afirmação que me parece bastante polêmica frente a pergunta da Juliana. Causa uma
polêmica, né? Obviamente ele tá enunciando isso a partir de uma diferença que ele
estabelece entre uma situação anterior onde havia a arte ocidental e a arte mundial ou seja

293
O sociólogo Georges Balandier (1920-2016), professor de sociologia africana na Soborne em 1962, ao estudar os
processos à instabilidade do sistema social analisou nos anos 50 e 60 os fundamentos dos conflitos, crises e tensões que
provocam esse “afastamento” [decalage] entre a ordem e a desordem, principalmente com relação aos conflitos da
situação colonial. N. do E.
a arte dos outros e uma situação recente na qual a linguagem da arte se unificou, como a
Lisy falou na sua apresentação. E ele diria que, portanto, que não existe mais a arte do
outro e a arte do ocidente, porque a linguagem da arte ocidental, que eu prefiro chamar de
Euro-Norte-Americana, porque é uma linguagem que foi consolidada nessa passagem da
Europa para os EUA, na segunda metade do século XX. E isso se tornou a linguagem da
arte hoje. A gente poderia dizer o “esperanto artístico”, aquela língua que se queria que
todo mundo falasse e todo mundo fala. Só que a realidade me parece que é diferente do
que quer o Hans Belting. Porque, ao contrário, quando você encontra esse clamor pela
identidade negra, eu digo, a arte não é pós-étnica. Eu sou um historiador da arte eu não
invento arte, ao contrário, eu tento entender a arte que existe. E existe uma demanda por
identidade. Quando eu olho um trabalho como o da Rosana Paulino eu vejo ali muitas
identidades se colocando. A identidade da mulher, a identidade negra, a identidade social,
a identidade religiosa. E eu diria que, como todos vão concordar, que existe uma questão
da mulher que produz, do homossexual que produz...de situações sociais...dentre elas a da
identidade negra. Então, eu acho que ela é um dado que precisa ser pensado. Eu achei
muito interessante esse depoimento que você trouxe, Lisy, de um artista afrodescendente
que não queria ser associado a esse campo. E acho que isso é muito distinto do quadro
que a gente encontra hoje... Onde os artistas...

Lisy Salum

- É!

Roberto Conduro

...estão fazendo questão de assumir essa condição digamos, étnico-racial. Eu entendo...


imagino entender que isso tá amplamente conectado com toda uma luta da sociedade
brasileira, sobretudo do movimento negro, para que a problemática do negro seja
resolvida, que a gente ultrapasse essa condição. Então, eu diria que é mesmo uma parte da
luta. Então, é uma questão fundamental pra ser pensada. Por isso que eu vejo essa
reivindicação de mais curadores negros, mais críticos negros, uma outra presença de arte
negra e acho interessante, como eu disse, eu não concordo com a formulação lá da
Kimberly. Acho que não é trocar o nome de afro-brasileiro...pra mim tanto faz um ou
outro. No livro que eu publiquei o título é esse porque a editora falou: ‘Não, o título vai
ser esse...é um nome consolidado, não queira inventar um nome, vamo com esse mesmo”.
E foi, porque pra mim isso é o menos importante. Ou não era tão importante assim lá, não
é? Mas eu acho que é interessante essa consonância entre ela propor agora vamos nomear
isso como “negro” e haver esse movimento de tantos artistas que estão querendo...e não
são só os artistas. É uma questão da sociedade... de uma outra situação para os
afrodescendentes para a sociedade brasileira. Então eu acho que na minha perspectiva é
uma questão de tentar entender isso. Sabe? E tentar pensar de como essa questão
identitária é fundamental. O que eu acho curioso, tal ponto que eu toquei, já relançando a
polêmica. O exemplo que a Lisy trouxe é interessante, porque o artista afrodescendente
naquele momento em 2000 ele queria ser o artista apenas. E muitas vezes hoje, o que a
gente vê, é que o negro que aí está e não enfatiza tanto a dimensão artística, mas a
questão identitária. E aí minha pergunta é: será se a gente não vai avançar se, junto com
essa reivindicação étnico-racial, vier também uma reivindicação artística? Entende?

Lisy Salum

- Pois é, porque você sabe que eu fiquei falando muito do lado da arte, do artista. Mas se
você vê, pega esse exemplo que eu dei no ano 2000. A pessoa não queria [participar]
porque queria ser artista contemporâneo... (risos). Eu sou artista contemporâneo...não
tem jeito...eu não sou afro-brasileiro...nem essa linha...nem essa linha...não adianta me
explicar que tem essa linha... Agora, naquele momento pode ser.…e aí a gente olha para
outro lado...que se tivesse criando...quer dizer, a gente sabe que estava acontecendo isso...,
mas que era um momento fundamental de mudança do meio artístico, de maneira a
transformar esse espaço, mesmo para uma reivindicação naquele caso não dada. É outro
momento em que talvez não pese o fato de você ser.… ou se não...pode ser que alguma
coisa estrutural faça com que a pessoa tenha o sentido de pertencimento no meio artístico
por ela manifestar uma identidade, como você diz “étnica”, por ter esse lado étnico. É
possível que isso esteja se consolidando. Eu acho estranho a gente colocar isso do ponto
de vista teórico, porque, eu não sei se a gente consegue estabelecer laços históricos,
antropológicos, assim, agora. Pode ser que no futuro a gente veja isso, agora, é uma
mudança... Naquele momento, a pessoa citada, precisava de um espaço no meio artístico
e ela não via outro jeito de fazer sua arte senão por ali. Ela achava que a questão
identitária não pesava... agora, um monte de artista, a grande parte, eles estão no discurso
identitário. Tá faltando, eu acho que tá faltando... Eu tenho visto. Eu sou professora, já vi
lá em curso do programa que eu tava dando aula que é o de Estética e História da Arte
[Interunidades – ECA-USP], tem uma concentração de artistas. Você vê que é um
problema...é um problema...não sei como você pode chamar aquilo de uma produção
artística tão engajada...eu não tô querendo desvalorizar, minimizar nada, não é isso. Mas
é tão no nível de engajamento, da postura, do discurso do artista. Ele tem de ser inteiro!
Ainda mais ali, naquele campo. Então, vai ver que a coisa esteja mudando um pouco de
viés. Enquanto essa coisa do...você falou : “não, hoje em dia...eu falei desse discurso...”
não é verdade também, porque você sabe que não é... (risos) não me olha com essas
cara!...Não...Porque, na verdade, o que você tem é a diferença do tratamento dos artistas,
você tem uma parte hegemônica, uma parte não hegemônica. Então, não é uma igualdade.
Porque nisso não cabe a universalidade. Não é todo mundo que tem espaço. Se a arte
fosse tão universal hoje, que permeasse tudo, então, não havia problemas, todo mundo
tava lá. Não é uma questão.... Essa arte universal não é nem atribuída a todos, nem
compartilhada entre todos, porque permanece as diferenças. O problema é esse. As
diferenças não são mais aquelas da academia em que era uma pintura clássica,
rígida...não... as diferenças são sociais...elas pintam como sociais...apesar de serem
muitos artistas negros que conseguem a projeção, que conseguem fazer a presença da sua
arte, a presença daquilo que ele representa, é muito pouco. Aqueles que conseguem
galgar as possibilidades de fazer…de desenvolver... o seu trabalho na sua plenitude...

Renato Araújo

Alguma pergunta?
Alexandre Araújo Bispo

- Obrigado à Juliana por mediar esse bate papo. À Lisy e ao Roberto Conduru, por estar
aqui. Porque, afinal, no seminário que nós organizamos anteriormente no Menelick 2º.
Ato, o Roberto não pôde tá, não é? Então, era uma grande expectativa vê-lo falar. Acho
que o Roberto fala uma coisa bastante importante e que eu gostaria que você comentasse
um pouco mais isso. O que é o artístico efetivamente, como qualificar isso que é artístico.
Porque a gente sabe que a gente vive num momento de bastante promiscuidade de
apropriações. Quer dizer, a arte se apropria de coisas que são próprias do universo da
política. A política, a gente vê isso...acho que uma das manifestações mais claras é como
as pessoas na arena pública, na construção de um espaço público se apropriaram por
exemplo das cores da bandeira brasileira para se dizerem brasileiros [movimentos
apartidários da nova direita que se manifestam desde 2013 com a camisa da Seleção
Brasileira de Futebol, cantam o Hino Nacional e têm aversão à cor vermelha294]. A cor aí
é um problema de longe, de muito tempo... um problema pra própria história da arte, não
é? Quer dizer, a gente vê a discussão sobre a evolução da cor na Europa. Tem todo um
universo aí. Se a gente trouxesse a discussão sobre cor no universo do Candomblé, a
gente sabe que o Candomblé tem uma paleta de cores interditadas para pessoas, os filhos
de santos não podem usar essa, não podem usar outra...Certas cores são para
determinados dias...Tá todo mundo, enfim, o que eu quero pensar aqui é um pouco como
nesse trânsito muito político a apropriação da camiseta ou a negatividade do vermelho...
que a gente viu que o vermelho de luxo católico, de cor operatória das elites europeias
(risos) virou uma coisa do mal explicitamente? Assim, quase um perigo de ter uma
mobília vermelha. Porque uma mobília vermelha poderia significar algo muito negativo.
Quer dizer, perdeu-se um sentido anterior que tinha...A gente viu uma manifestação essa
semana [17/11/2016] de uma mulher olhando símbolos da bandeira nacional e o símbolo
da bandeira japonesa que estaria em Brasília comemorando a imigração japonesa no

294
Dentre os diversos relatos nos últimos 3 anos sobre ataques a pessoas com camisas vermelhas,
especialmente em São Paulo chegou-se ao limite de um pai com uma criança no colo ser agredido
verbalmente por manifestantes “só” porque usava uma camiseta vermelha.
https://noticias.terra.com.br/brasil/politica/com-bebe-no-colo-ex-cqc-e-hostilizado-por-paneleiros-em-sao-paulo,3560be06f32821d425
e3eaf620d79352fs27RCRD.html Casos semelhantes e outros mais agressivos se repetiram em outros momentos.
N. do E.
Brasil e ela atribuiu àquelas cores e àquela forma uma negatividade muito pesada295. Eu
falei aqui da cor, exatamente porque eu quero que vocês pensem um pouco comigo sobre
isso. Como também conseguir distinguir nesses processos de apropriação, eu dei um
exemplo entre política, as performances que a gente vê na rua e o exemplo de arte. O
quanto a arte, e eu acho que a Lisy tem insistido muito nisso, nessa produção de
identidade, o quanto que a gente tem uma arte também apropriando muito dos discursos
políticos, enfim, pra construir identidade, pra construir lugar no mundo, pra se situar.
Diria o [Aby] Warburg, sobre a astrologia, mas pra que serve astrologia? O historiador da
arte, o historiador da cultura, Warburg: “Bom, mas serve pra se situar no mundo” Não é?
Eu acho que a Lisy colocou isso muito bem. Então eu queria um pouco entender o que
que é próprio do artístico, em que sentido a gente pode ver esses artistas conseguindo
refinar algo que é artístico a ponto da gente falar sobre qualidade da produção estética,
quando a gente olha um Firmino, por exemplo, e lembre que um Machado de Assis
escreve um texto sobre Antônio Firmino, que é aqui do acervo da Pinacoteca, falando que
ele tinha um domínio do desenho, ele tinha um domínio da cor, um domínio da
composição. Mas o Emanoel Araujo vem depois e diz, “o Antônio Firmino não tinha um
domínio da figura humana como se esperava que da academia que ele vinha ele tivesse”.
Então, quer dizer, a minha pergunta é um pouco sobre como conseguir nesse processo
purificar um pouco o que é uma coisa do que é a outra... A mesma pergunta serviria pro
problema do que que é a África? E que a gente o tempo todo usa de uma maneira mais
monolítica, mas a gente sabe que a África são muitas Áfricas. Eu acho que a Lisy fala
muito bem quando diz “é um problema de eficácia do imaginário...” Quer dizer, é preciso
olhar pra o artista, ver o que ele está mobilizando. Que África que ele quer mobilizar do
ponto de vista do imaginário que pode corresponder ou não a uma “África real”? Não é?

Lisy Salum

- Não importa! Não importa!

295
Entre os manifestantes que pediam a volta da ditadura militar, uma chamada Rosangela Elisabeth Muller atribuiu
ao sol vermelho da bandeira japonesa ao comunismo e criticou em vídeo que era uma tentativa de modificar a bandeira
do brasil para o símbolo “comunista”. https://www.youtube.com/watch?v=NojHBPe10ks No dia seguinte à invasão
da Câmara ela se explicou: https://www.youtube.com/watch?v=OOw-3kJSopo
Alexandre Araujo Bispo

- Não importa! Exatamente, qual que é a eficácia do trabalho? Então, pra pensar na ideia
da eficácia do imaginário que vai pra obra de arte, mais o problema da promiscuidade
entre os campos, justamente, a política e a arte eu queria saber como distinguir as coisas.

Renato Araújo

- Diga o seu nome...

Alexandre Araujo Bispo

- Alexandre

Renato Araújo

- Eu vou pedir pra vocês falarem o nome na frente. Ele é Alexandre Bispo, ele é
conhecido. É um dos responsáveis da revista O Menelick 2º. Ato. Eu gostaria que vocês
se identificassem porque esse dia está sendo gravado, então, para que possam ser
identificados posteriormente, por favor...

Roberto Conduru

- Ô, Alexandre, prazer. Enfim, eu toquei nesse ponto, porque eu acho que ele é um ponto
que diz respeito à questão da arte em geral hoje. Não há uma discussão sobre o que é o
artístico. E justamente por esse fenômeno que você marcou. Várias contaminações...a
gente poderia...A Juliana Marquese uma vez formulou uma expressão que é interessante,
ela chamou de “artivismo”, essa arte que quer ser também um ativismo e num texto que
fiz numa outra vez, a partir daquela exposição “Macumba de Turista” eu criei uma
expressão “Macuma de Artista” pra designar coisas que eu vi em muitas pessoas, muitos
artistas, que não entendem nada das religiões, aí vão lá... vão ao terreiro uma vez e aí
decidem fazer um trabalho com aquilo. Sabe? E aí, respeitam ou desrespeitam porque às
vezes procuram saber um pouco mais do que que é e fazem o trabalho, ou seja, tem um
campo aí que ele é borrado. Ele tá...eu usei essa expressão..., ele tá contaminado. Eu estou
usando ela muito em resposta ao que você falou de purificar. Eu acho impossível
purificar. E pra tomar uma outra expressão, do Hélio Oiticica “a pureza é um mito” sabe?
Não vai dar pra tornar claro. E talvez a gente não queira mesmo porque esse era o sonho
do modernismo. Esse que, atualmente, quase todo mundo ataca, aquela ideia de separar o
artístico e a arte ser algo que se desdobra apenas sobre si mesma. A questão que me
parece é que nunca há uma reflexão...ou quase nunca há uma reflexão sobre as dimensões
artísticas daquilo que é feito. Que uma obra...E essas exposições que estão aqui na
Pinacoteca são muito interessantes, e tem obras dos anos 60 e 70 no Brasil é óbvio que
aquela é uma produção muito marcada por uma luta política. E não por isso ela é menos
arte, algumas obras talvez, mais do que outras, mas, enfim, acho que a questão aí é ter um
juízo crítico. Isso me parece que falta não apenas nesse campo, mas falta em geral. Como
seria isso? É difícil, não tem receita. Mas, a princípio a questão é mesmo em que medida
as proposições se inserem nisso que é uma tradição do campo da arte, seja uma visão
mais histórica, mais antropológica. Não que seja uma tradição fixa, pré-estabelecida,
imutável, ao contrário, partindo de Karl Einstein, que é quem publica o primeiro livro
sobre arte da África que ele também chamava de “arte negra” ele diz, que “a arte inventa
o seu passado”. E aí ele vai exatamente explorar como essa arte africana aparece por
conta...do que Picasso, Matisse fizeram com relação àquela produção. Então, eu não tô
aqui dizendo que há uma tradução artística estabelecida e que é frente a ela que a gente
vai pautar o que é o artístico nessa produção. É na dinâmica do que feito hoje com o que
existe, que a gente tanto vai rever o passado quanto vai pensar essa dimensão artística.
Mas o que me parece é que a gente tem de pensar isso. E pensar nessa condição impura,
sabe? Para ficar no seu termo. E assumindo ela, mas observando no trabalho o que há de
ativismo ali e o que há de religioso. Isso é muito interessante. Por exemplo, eu marcaria
questões muito diferentes entre o que eu vejo, por exemplo, na cena baiana e o que eu
vejo na cena paulistana. Entende? O que aqui essa questão social do negro é muito mais
forte. Não é que ela não exista na Bahia, mas lá ela ainda é uma ênfase cultural muito
maior. Você começa a ver trabalhos que ou associam ambas as questões ou que dão
prioridade social, enquanto que aqui, na produção que eu vejo em São Paulo...ou eu
poderia pensar no trabalho do Arjan Martins que é em pintura lá no Rio que é muito a
questão do tráfico, da condição marginalizada dos negros na sociedade. Então, aí eu acho
que é o exercício crítico mesmo que vai dar...de você olhar os trabalhos, mas pra isso é
preciso pensar como aquele trabalho se insere no campo artístico e não simplesmente
assumir: “Ah, tá isso aqui é o campo da arte afro-brasileira, que tem de existir, tem sua
legitimidade, a gente coloca esse trabalho ali e ele não precisa ser confrontado com a
questão artística de maneira geral”, não, ao contrário, eu diria que, sim ele tem esse lugar.
Esse lugar é... Mas ele com certeza vai ultrapassar esse lugar. No exemplo de Rosana
Paulino que eu dei é esse: eu tenho um colega de departamento que estuda poéticas do
arquivo e em questão de dois anos ele começou a fazer entrevistas e textos com a Rosana
Paulino, porque, no entender dele, ela é uma das artistas que lida com a poética do
arquivo. Então, você vê são duas pesquisas que partem de lugares muito distintos e
pensam os mesmos trabalhos. Porque os trabalhos estão aí pra isso; para serem pensados
nessa abertura e não serem postos num gueto. Sabe? Ainda que, sem olhar como um
gueto, mas como um campo, uma vertente importante e eu diria até, a partir até mesmo
do que foi feito na Bahia, mais de cinco gerações que se dedicaram a isso, consolidou o
campo. Que não podem ser desprezados de qualquer maneira. E que podem ser pensados
com relação àquilo e também pra criticar aquela tradição de Verger, Carybé, Cravo Neto
e tantos outros. Sabe? Eu não sei se eu te respondi...mas...

Juliana Ribeiro

- Eu vou...Só pra fazer uma observação, Ale, só pra ficar mais claro. A minha questão é a
seguinte: e até que ponto, e aí...Por isso que eu tô... tentando essa questão da África,
porque acho que esses artistas... e aí aproveitando a fala do Conduru, pegando por
exemplo o exemplo da Rosana Paulino, que eu acho que uma artista absolutamente
formidável e que não vai por esse discurso dessa vinculação da África, é muito mais essa
questão da mulher negra, enquanto mulher negra brasileira. Mas eu fico pensando...minha
preocupação é até que ponto essa ideia de África é uma demanda dos artistas ou ela é
uma demanda dos curadores e críticos que abrirão espaço se tiver essa vinculação. E te
digo por que da minha preocupação. Porque na exposição “Territórios”, o território que
era de matriz africana, o único artista vivo era o Emanoel Araujo. E eu fico pensando até
que ponto aqueles outros artistas, se tivessem vivos, gostariam de ser colocados...[ter]
vinculado seus trabalhos nessa matriz? Um Rubem Valentim, um Octávio Araújo, porque
tem uma estatueta de Akua’ba, ela é de matriz africana? Então a gente coloca um monte
de artista nessas vinculações imediatas. Entende? Então é nesse sentido que é a minha
preocupação. Que espaço será que esses artistas terão ou têm se eles deixam...se eles
quiserem...se eles optarem. Eu acho que os artistas têm de poder optar... De se
desvincularem disso. Que espaço eles terão? Será se eles vão ter o mesmo espaço? Eu
acho que o caso do Rommulo Conceição é muito interessante, é um artista de Porto
Alegre, que vai um pouco num movimento contrário interessantíssimo...a gente vai ter
uma fala dele nesse seminário. Porque o Rommulo faz o caminho inverso... Ele participa
de muitas exposições de arte contemporânea (ponto) e pra ele é uma grande novidade ser
colocado numa exposição de “território”, onde a palavra “afrodescendente” ou
“afro-brasileiro” precisa tá demarcada. Então, a minha preocupação é essa.

Lisy Salum

- É..mas tem que haver....

Juliana Ribeiro

- ...de mercado, mesmo. De lugar....Porque...

Roberto Conduru

- Mas é interessante porque...eu tenho conversado com o Rommulo. E ele fala de como é
interessante ver esse outro enquadramento do trabalho.... Me lembra muito de uma fala de
Jorge dos Anjos, artista de Minas que é pouco falado. E o Jorge que foi aluno de Amílcar
de Castro e acho que é como falar hoje que a arte é muito icônica e muito marcada por
uma figuração, por causas e a obra do Jorge vem dessa matriz pós-concreta, ele tá muito
vinculado a uma questão construtiva. Então, seria um pouco deslocado. Mas o Jorge é
curioso, porque ele diz que faz os trabalhos, fazendo...a partir de determinadas questões
de como lá processos de linguagens vão se desdobrando, mas aí ele se coloca a pergunta.
Isso ele me disse uma vez numa entrevista: “Se eu sou negro e eu fiz esse trabalho, então
o que esse trabalho tem de negro? ” E acho que esse tipo de pergunta também pode ser
feita em relação ao trabalho do Rommulo Conceição. Em alguns, eu acho mais difícil,
mas em outros é muito fácil. Não é que é muito fácil, mas eu acho que assim, há portas de
entrada... E acho que assim, por que recusar esse tipo de questão, sabe?

Juliana Ribeiro

- Sim

Alexandre Araujo Bispo

- Inclusive, Roberto, acho que no caso do Rommulo tem uma coisa no trabalho dele que é
notável, parece assim, uma coisa do Piaget, aqueles parquinhos...Quer dizer, aquele
mundo super segregado...Aquela é uma experiência negra por excelência...quer dizer, não
precisa constranger aquele trabalho e dizer, “aquilo é de um negro, aquilo é de um
branco”. Quer dizer, o trabalho parece muito “branco”, ele comentou disso inclusive.
Tem gente quando olha e ele é negro [dizem] “você não faz aquelas outras coisas?” É que
ali, eu acho que ali, tem uma capacidade de imaginação urbana, que a gente pouco
consegue atribuir a uma mão negra, no sentido das dimensões parece, assim, quer dizer,
ele consegue abordar um problema de um ângulo tão inusitado pra olhar o problema da
cidade de segregação espacial, aquilo diz muito do modelo de cidade que a gente
construiu no Brasil, especialmente São Paulo, a partir dos anos 70, o modelo do
condomínio, por exemplo, mas acho que o trabalho tem muito inclusive de segregação
espacial e a segregação espacial no Brasil ela é uma experiência muito fortemente negra,
dentro de variados bairros, quer dizer, você fica fora da casa cuidando do casarão. Você
fica pra fora do condomínio ou você fica na guarita cuidando de uma estrutura com grade,
enfim...eu não quero...

Roberto Conduru

Você falou em imaginação... é curioso porque, eu tô fazendo um projeto sobre a Bahia.


Estava fazendo pesquisa lá e ali, bem no Campo Grande tem um prédio em que
exatamente tem uma unidade dessa de brinquedo de criança em frente uma grade. Eu
passando, fotografei e mandei pro Rommulo. Quer dizer que você fez um trabalho....
Vocês sabem que o Rommulo é baiano, né? Ele vive em Porto Alegre, mas é baiano. E
conversando com ele, ele faz questão de se manter à parte dessa linhagem de exaltação da
cultura afro-baiana, mas é incrível porque o trabalho dele tem tudo a ver com o modo de
segregação dos afrodescendentes. Sim, você tem toda a razão. É nas sociedades
brasileiras mesmo que você encontra isso vivo em Salvador. Obviamente deve encontrar
vivo aqui, como no Rio, mas isso tá lá. Entende? Por isso eu fotografei e mandei pra ele,
porque é uma coisa assim, o teu trabalho tá aqui, ele é mais baiano do que qualquer
outro...sabe? Porque aquilo tá lá vivo em Campo Grande.

Juliana Ribeiro

- Não é só...fazer a separação do que é o problema do negro brasileiro. Segregação é um


problema do negro brasileiro, não necessariamente do negro africano. Entendeu? É nesse
sentido. Não sei se ficou claro...

Alexandre Araujo Bispo

- Eu acho que a gente tem um gosto de África meio Cheikh Anta


Diop...Meio...Pan-africanista.

Juliana Ribeiro
- Não acho que é problema, Ale...Não acho... Eu concordo com a Lisy eu acho que a
questão do imaginário é fundamental pra construção de identidade e as identidades são
sempre, como diz Homi Bhabha, né? “Deslizantes”...Então, essa questão é... a minha
preocupação é só essa...Até que ponto isso é uma demanda de fato...é isso (risos)

Roberto Conduru

- Só pra pensar, né. O [Yambo] Ouologuem296 tem uma citação que é muito boa, eu já
citei várias vezes: “se a ideia de África é boa para os Europeus, porque a ideia de África
não pode ser boa para os africanos?” Indo muito contra essa ideia que as pessoas falam:
“Mas África não é uma, a África é muitas. Não tem que forçar essa unidade”. Aí, a partir
do que você está falando eu diria assim, se a conexão EUA e Ásia é tão boa pra costa
leste dos EUA, porque uma conexão com a África não pode ser boa? Por que um diálogo
Sul-Sul não pode ser bom? Então, assim, e sobretudo se África, como isso que a Lisy está
dizendo, vem a partir de uma questão de um imaginário. Que tal os artistas imaginarem
uma outra África e oferecerem pra sociedade uma ideia de África, mesmo que seja
imaginária, mas diferente desses preconceitos que ainda existem na sociedade? E aí
pensar um pouco de como o campo artístico tem essa possibilidade de intervir no campo
social de outro modo propondo outros modelos. Eu tô dizendo que nunca estranhei
essa...e eu diria que, por exemplo, uma das questões que eu acho muito interessantes
nessa tradição baiana é como se fosse não obrigatório, mas muito cultivado o enlace com
a África. E é algo que tá presente na trajetória dos artistas baianos, irem à África...entende?
A ida à África mobiliza trabalhos...sabe? Nutre produções como a do Didi, do Carybé,
Verger, do Heráclito, então, será que também não seria bom o Brasil pensar mais na
África, e artistas de outros contextos? Sabe? Aí, independentemente do que os
historiadores e do que o mercado quer...

Juliana Ribeiro

296
Yambo Ouologuem (1940) romancista malinense.
- Eu concordo com você. Eu acho que é uma questão...a minha questão é da escolha. É só
isso. Eu acho que não pode perder a questão da escolha. Isso o Rommulo também coloca,
que ele não quer ser vinculado, e eu acho que a Rosana foi muito decisiva nesse sentido,
porque ela falou: “Gente para!” Houve uma cobrança, né Alexandre, dele...” Não, mais,
você, olha... as cores que você usa...” vinculação...E a Rosana falou: “Gente, para! Para,
agora eu vou falar como artista. Ninguém vai aqui decidir o que que ele vai escolher
como trabalho ou como tema ou como vinculação ou sem vinculação”... né? Então, o que
me preocupa só a questão dessa liberdade de escolha.

Roberto Conduru

- Mas minha pergunta é, será se alguém pode escolher? Porque aí eu lembro do


“coeficiente artístico” de Marcel Duchamp, que ele diz que a obra de arte é tudo que o
artista quis fazer e não conseguiu fazer, mas tudo que ele não pensou e pôs. Então, será
que o Rommulo e qualquer outro artista tem a capacidade de dizer assim, eu vou fazer um
trabalho que não é negro. Entende? Ou será que isso tá ali e as pessoas veem, mesmo que
não esteja conscientemente? Daí, tanto o Alexandre quanto eu, olhamos aquilo e
pensamos, bom isso tem tudo a ver com a condição segregada da cidade e isso toca
especialmente a população afrodescendente e quando eu conversei isso com ele, ele disse
“Ué, tem tudo a ver”. Entende?

Juliana Ribeiro

- Sim, sim.

Alexandre Araujo Bispo

- Acho que aí inclusive há um incômodo, talvez, no trabalho dele, daí eu lembro aqui do
texto do Machado de Assis chamado “A Exposição do Sr. Firmino Monteiro” escrito em
1885, porque ele justamente vai falar de uma exposição do Firmino Monteiro, acho que,
num prédio público no Rio de janeiro. Justamente, o que é muito interessante ali é ele
encara ali o que é próprio do domínio de um artista acadêmico, o desenho, um tipo de
racionalidade...ele não domina a figura humana, não. Mas ele é um grande paisagista, ele
é um grande colorista. Quando a gente vê um trabalho do Rommulo é tão desconcertante.
É tão desconcertante porque ele não tem o apelo simbólico melhor estabilizado pela
tradição da arte afro-brasileira – seria remeter à religião, aquelas cores poderiam
simbolizar muita coisa e tal, né? Ele não tá falando disso, ele tá falando de imaginação
urbana. Eu penso e acho que tanto o Roberto quanto a Lisy estão sugerindo isso e a
Juliana também, quer dizer, é preciso um trabalho crítico, é preciso esforço de entender o
que tá em jogo, é preciso colocar aquele trabalho em face de outros trabalhos. Do
Amílcar, por exemplo, da nossa tradição concreta no Brasil. Quer dizer, é preciso colocar
aquele trabalho em relação à nossa tradição e ver o que que ele diz que soa discrepante.
Porque o que incomoda um pouco naquele trabalho é que a gente talvez não tivesse a
expectativa de que um artista brasileiro negro, consiga alocar tantos recursos...se fosse a
Ana Maria Tavares não seria um problema, mas um artista negro brasileiro conseguir
fazer uma instalação enorme que tem as dimensões de uma sala de cinema? A gente
quase não tá preparado para isso. A gente já tá preparado pra ver a Kara Walker nos EUA,
fazer uma coisa enorme que é a “mommy” dela [“The Sugar Sphinx”], quer dizer, uma
crítica ali à figura da ama-de-leite, mas fazendo em dimensões egípcias, monumentais.
Mas, de fato, talvez até alguns artistas africanos...a gente vê aquelas coisas enormes do
Yinka Shonibare, por exemplo. Mas o Brasil permite, por exemplo, um artista negro
ocupe aquelas dimensões do mundo, como é o caso do Yinka Shonibare na Inglaterra, um
país imperialista e que tá na cara que aquele artista tá num país imperialista...ele pode
mobilizar quantidades enormes de tecido. Ele pode ter um corpo de baile inteiro pra ele
mobilizar, mesmo sendo negro. Ele pode mobilizar um mundo daquelas dimensões. O
que eu fico pensando aqui é quanto o Rommulo...Eu não conhecia o Rommulo, eu o
conheci na exposição [“Territórios”], justamente, o quanto é uma novidade pra gente
alguém conseguir fazer algo que já não tá mais na parede...mas também não é uma
performance... É um objeto de grandes dimensões à lá Mestre Valentim, assim, sabe? O
Chafariz das Marrecas. Quer dizer, é uma coisa grande que ocuparia a cidade. Acho que
isso que intriga tanto e eu tendo a achar que é preciso mesmo um esforço crítico, é
preciso curadoria, é preciso, como diz o Jaime Lauriano, talvez pegar a Categoria e nesse
momento e defende-la. Talvez um dia ela já não faça mais sentido, mas hoje faz... e hoje
faz muito sentido pros artistas brasileiros fazerem referência a um tipo de África, que tem
muita eficiência na economia do trabalho, na economia simbólica e plástica...

Lisy Salum

- É... eu acho que o papel de artistas, curadores e críticos, eles são cruzados, né? Eles não
são mais... Na hora que começaram a aparecer os curadores, que foi no começo dos anos
2000 a gente poderia pensar na formulação de caminhos e vê isso que você [Juliana] teme
já mais consolidado. Não que não existe. É evidente. Vai depender dos processos e dos
curadores. Mas eu acho que hoje existe essa partilha e por isso que a gente fica
confuso...não é confuso...fica na expectativa do que vai dar porque...Quando você
[Conduru] falou nessa coisa de política e arte...nessa inteiração...quer dizer.. Na verdade,
a arte sempre teve interação com a política...Tá certo? Desde sempre, né? Então, não tô
querendo nem voltar atrás, nem....anular tudo... Mas eu acho que chegando num desfecho
disso a gente tem de lembrar disso: que a arte sempre teve uma ligação com a política.
Agora, o que tá em jogo não é só a produção artística e como ela se propaga, se multiplica,
se difunde. Está em jogo também os personagens da história. Né? Antes você tinha a
figura do mecenas que financiava... lá...bem antes...né? Você tinha o mecenas...o artista
era importante porque era quem produzia. Mas hoje você tem um monte de coisas...você
tem as figuras institucionais, você tem o curador, você tem o crítico, você tem o artista,
você tem o produtor... você tem o outro que trabalha junto...porque o outro vai trabalhar
com a crítica, junta com não sei quê...tá certo? O público entra no meio da estória... Então,
eu acho que isso que diferencia e traz uma nova modulação pra essa relação, essa
dinâmica entre arte e política no discurso artístico, mas que recebe intervenções nos
outros discursos externos a isso. A Juliana no começo estava falando “o cara faz uma
coisa e no discurso é outro” é isso que eu tava falando, quer dizer, enquanto artista ele faz
uma coisa, enquanto indivíduo ele faz uma outra coisa.
Paulo

- Eu queria fazer uma pergunta...Vocês falaram sobre o Brasil como um local de


produção artística, né? A Lisy falou de rede de produção artística... de toda essa rede. Eu
queria que vocês falassem um pouco do Brasil como um local de crítica e de produção de
pesquisa artística. Quer dizer, o que que diferencia o historiador de arte, o crítico no
Brasil, por exemplo, em relação a um homólogo nos EUA. Os EUA, por exemplo, com
seus processos identitários hifenizados [“afro-”/ “nipo-” / “ítalo-” etc.]. E aí, falando dos
EUA, eu queria também que vocês comentassem um pouco da ideia de diáspora, né? A
gente falou bastante de “afro-brasileiro” e a palavra “diáspora” não foi mencionada.
Vocês veem algum papel pra ideia de arte diaspórica? Eu penso, por exemplo a ideia de
um museu diaspórico africano nos EUA...e gostaria que vocês comentassem um pouco.

Roberto Conduru

- É complexa essa sua primeira pergunta sobre a comparação entre história, arte e
pesquisa, no Brasil e nos EUA. Porque ela é muito ampla, né?

Paulo

Me interessa menos a comparação que o local de produção Brasil. Não precisa ser uma
comparação, mas o que diferencia você produzir pesquisa e produzir crítica no Brasil e
não em outro espaço? ...se há alguma diferença...

Roberto Conduru

- Então, diferença há. Mas são tantas que assim, quando você fez a pergunta o primeiro
ponto que me veio: “por que escolher os EUA como ponto de referência e não a Europa?”.
Se você pensar que o campo da história da arte, da reflexão mais crítica. O suposto
primeiro texto é a palestra de Manoel de Araújo Porto Alegre, discipulo de Debret fez na
Academia Francesa na primeira metade do século XIX, e que foi publicado nos anais da
Revista da Academia Francesa e depois publicado no Brasil, incluído, inclusive, no livro
do Debret: “Viagem Histórica” [Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil]. Então, teria uma
tradição aí que é essa tradição que vem da França. Mas, muito dela é essa tradição em que
você teria uma tradição de literatos, que você não tem esse campo tão formado na
Academia...basta dizer que os cursos de História da Arte são muito recentes, muito
diferente do que acontece na cena Norte Americana, onde devido a segunda guerra
mundial e a migração de grande parte dos historiadores da arte judeus da Alemanha, basta
pensar Panofsky e tantos outros...isso consolidou a Academia muito forte, a partir
inclusive daqueles métodos, então, o caso do Brasil, essa pesquisa ou ela vinha por esse
mundo de literatos em relação com a França ou você tem casos como o do Patrimônio
Histórico, com a presença da Hanna Levy...e aí isso tem outro sentido de pesquisa...né? A
pesquisa que visa toda uma questão da eleição do que é o patrimônio nacional e aí, aqui
em São Paulo tem a figura chave do Mario de Andrade...Luis Saia...de como isso era
mobilizado...? Aí, eu não tenho conhecimento de como isso difere do caso americano.
Quer dizer, isso é uma particularidade brasileira. Uma particularidade em São Paulo, uma
particularidade no Rio, com o trabalho da Hanna Levy que formou tantas pessoas...Num
determinado momento os trabalhos, por exemplo, de história da arquitetura e de pesquisa,
são muito mais fortes na Revista do Patrimônio, com esses colaboradores e outros...Gente
do nordeste, Pernambuco, da Bahia, do que propriamente do que é feito na universidade,
a universidade não é o lugar...isso é diverso do que acontece nos EUA. Recentemente, a
academia aqui se tornou mais forte e aí segue dependendo do contexto você vai ter mais
vinculação de determinados autores e modas francesas ou aos norte-americanos ou a
ambos. Mas eu diria que esses são os polos. Então, talvez uma questão seria uma
diferença que marcaria bem pra provocar. Diferentemente dos americanos que não
prestam atenção em nós ou pouco prestam. No Brasil a Academia adora prestar atenção e
tá mais interessada muitas vezes no que está sendo formulado lá, do que propriamente os
artistas estão fazendo aqui enquanto dinâmica. Mas eu não sei Paulo, por que aí seriam
tantas as questões que eu talvez terminaria com essa... Porque eu acho bem provocativa,
sabe? De talvez hoje quando você pensa a globalização, o campo norte americano tem
essa preocupação de ter especialistas em várias áreas do mundo inteiro...Enquanto que no
Brasil o discurso que tem de arte, de formação de artista e de historiador da arte eles tem
basicamente a arte Euro-Norte-Americana e da arte do Brasil. Poucos são aqueles que até
estudam...raros...arte das Américas antes da ocupação colonizadora. Então isso, por
exemplo, é muito distinto e nesse sentido ainda é muito provinciano. E ainda é muito
colonizado. Enquanto que, talvez não na perspectiva da colônia, mas da ex-colônia,
centro do império, o ambiente norte-americano ele é muito mais de pensar...querer pensar
o mundo inteiro, enquanto que aqui ainda há muita...o campo da historiografia da arte é
muito marcado por pensar a si. E isso é uma tradição que já tem bastante tempo, esses
estudos sobre a arte no Brasil. Eles já até avançam, mas com um peso um tanto
nacionalista, porque, muitas vezes, há desconfiança dos estrangeiros fazendo a história da
arte do Brasil e, ou então, a arte dos colonizadores. Sejam os antigos, sejam os atuais.
Entende?

Paulo

- Só pra explicar a questão dos EUA. Vocês compararam, por exemplo, 2015. Anos
depois, uma situação em que um artista se permitia dizer que não tinha nenhum vínculo,
não via sua produção nenhum vínculo com a arte afro-brasileira...Aí você comentou que
hoje em dia isso seria impossível, praticamente, E no meu entender, nos EUA por esse
processos identitários hifenizados é impensável um artista afro-americano, pensar dele
que não tenha nenhum vínculo com a África. É cobrado dele, já faz parte do processo. A
minha pergunta, na realidade, era pra tirar um pouco desse eixo e trazer a ideia: no Brasil
há um espaço pra produção de pesquisa, produção crítica, não um espaço para produção
de arte propriamente dita, sobre a África? Quer dizer, se há tão pouco espaço pra África
ainda nas diversas áreas, na história, na antropologia, história da arte, assim por diante.
Quer dizer, qual o papel do...o local de produção sendo no Brasil, se há um papel especial
pra gente cumprir.,. talvez produzir pesquisa sobre autores que não sejam
necessariamente norte-americanos ou europeus, então, um pouco, entender qual é o papel
de nós Brasileiros que atuamos em estudos africanos, nosso papel é só compilar e analisar
autores norte americanos e europeus ou há algum espaço além disso? Era um pouco essa
ideia. Porque quanto mais a gente dialoga com os norte-americanos, mais impressionado
a gente fica com esse processo de hifenização tão marcado.

Roberto Conduru

- Há quem diga que essa insistência na afro-descendência, na negritude e nessas


marcações étnico-raciais tão polarizadas, contrárias à tradição de algum tempo no Brasil
do elogio da miscigenação...que isso provém da referência norte-americana. Aí eu acho
que vale sempre pensar nos blocos carnavalescos baianos. Que obviamente tem toda uma
questão ali da luta da autoconsciência, dos vínculos com a África...que tem em alguma
medida um rebatimento do movimento negro norte americano, mas também resultava de
questões processadas na Bahia antes. Entende? Se pensar de todo o cultivo das relações
com a África, por exemplo com a Mãe Senhora, a mãe do Mestre Didi, fazia com a África.
E tudo que Verger tinha a ver com isso e pesquisas...entende? Então eu acho que é mais
complexo, por um lado a gente pode pensar que essa marcação tão radical tem algo a ver
com os EUA, mas ela também deriva, como a Juliana marcou aqui, a questão dos negros
no Brasil. E elas surgem a partir daí. Com relação à pesquisa eu vejo que há muito a
contribuir e muito diferentemente do que é feito lá. Primeiro porque eu acho que há um
campo enorme a ser feito. Ele ainda é...sem desmerecer, tudo que foi feito antes, ao
contrário, eu acho que é uma tradição muito rica... e eu me esqueci... Eu tinha anotado,
mas me esqueci. Mas a Lisy trouxe o nome do Nina Rodrigues que é muito criticado e
deve ser por conta de todos os preconceitos, mas eu até...tinha anotado o nome dele por
que? No que é considerado o primeiro texto sobre arte afro-brasileira ele propõe que o
que os colonos pretos produzem é belas artes. Ele chama aquilo de belas artes, então ele
tá propondo incluir aquilo como arte. E não é...Também acho muito boa a lembrança
desse texto de Machado de Assis e tudo...mas aí era um artista formado na Academia, o
que o Nina Rodrigues tá chamando de arte é o que ele encontrava nos terreiros em
Salvador naquele momento. Então, e era algo que ainda hoje...você tem Mestre
Didi...ninguém mais...é um deserto. O Mestre Didi funciona como exemplo que confirma
a regra: “o que se produz no terreiro não é arte. À exceção do Mestre Didi. Com ele
estamos satisfeitos, não precisamos nada mais!” Ora, será que é assim? Será que não
temos exatamente que investigar um pouco isso? Tem uma tradição muito rica, ainda que
sejam poucos textos...e daí talvez dá pra você compilar isso num volume. O Nina
Rodrigues, o Arthur Ramos, um texto de Mário Barata,...vem...vem...vem...vem...o texto
crucial do Marianno Carneiro da Cunha e aí mais recentemente começa a ter um volume
maior, mas tem uma tradição que não significa que não tenha um campo enorme aí pra
ser estudado. Imenso! E, tentando tocar um pouco na diáspora, que eu acho que a gente
um pouco falou. Eu acho que uma questão chave que faz falta hoje é justamente pensar
quais contribuições a diáspora trouxe pra a formulação disso que a gente entende como
um “campo artístico” disso que a gente chama Brasil, num período da colonização?
Porque, a história da arte, quando ela estuda esse período ela tende a ver o que são os
modelos Europeus e o que há os modelos do Brasil, sem nunca pensar, “afinal, o que os
africanos e as africanas trouxeram pra cá?” Tudo bem, eles não puderam, pelas razões
que todos sabemos, trazer as instituições, mas nem tudo existe em instituição, né?
Existem as brechas, existe um modo de operar nos modelos, a partir dos modelos. Quais
são as dimensões africanas do que foi feito aqui. Você pode pensar, “ah, tá...as relações
de ordens de ofícios das corporações, tudo isso seguia uma legislação portuguesa”. Sim,
com adaptações, mas em que medida o cotidiano ali, não tava infiltrado, na medida em
que eram africanos ou afrodescendentes? É uma questão pra ser pesquisada, sabe? O
problema é que, todo mundo sabe, o que você produz depende da pergunta com que você
vai pro arquivo. Se você vai pro arquivo querendo saber como é que os artistas
responderam ao modelo europeu, você nunca vai se cogitar a pergunta de saber o que
houve aqui...se há alguma coisa...Então, quer dizer..., depende da pergunta... E nesse
sentido, eu acho que essa questão da diáspora ela é fundamental ela é fundamental,
porque ela permitiria renovar esse campo de estudos daquele período. Não é o campo que
eu trabalho, mas é um campo no qual eu vejo que há muito a ser feito. Não que nos outros
não haja, mas eu acho que há muito a ser feito.

Lisy Salum

- Sabe o que eu acho? Eu creio mesmo. Eu creio de verdade, que apesar de a gente viver
numa sociedade de modelo ocidental... Desculpe se eu estou usando expressões
retrógradas, mas é isso mesmo. É modelo ocidental que...não gosto de falar de arte
não-ocidental, odeio! Eu creio de verdade que todos nós...todos nós...temos formulações
diferentes... concepções diferentes...por causa de uma diversidade cultural em que a gente
tá e, claro que por causa das minhas relações... Eu sempre me dediquei aos estudos
africanistas, então, é claro que eu puxo a coisa pro lado da África. Mas têm as sociedades
indígenas, têm x os imigrantes...têm tanta coisa...né? Que faz esse Brasil diverso. Agora,
então eu creio de verdade que a gente têm...pra usar o seu termo, eu não gosto de
“diáspora” também. Nós temos um lado diaspórico. E esse lado diaspórico que poderia
ter um espírito...Ai, eu vou usar só jargão, mas vamos lá. Trazer, realizar concretamente a
descolonização do conhecimento... que todo mundo fala...e fala...e fala... né? Mas não
larga do toco... por que? Porque eu acho que na história da arte, na crítica da arte, na
antropologia da arte o trabalho se faz com “o artista”, “o artista”. Ele tá dentro do
processo. Mas ele toma uma postura diferente. Por exemplo, a gente...Não tô falando
você não Roberto, pelo amor de Deus, a gente...Por que a gente não vai lá estudar
literatura Árabe...? (risos) Entendeu? As fontes Árabes...eu falei pra ele [Paulo]...eu
estava escrevendo um texto...agora eu quero por fonte Árabe nos meus textos. Tem! Por
que não? Por que que a gente tem de usar só o Dapper e não vai usar lá o Léon l'Africain,
e que é do séc. XVII, mais tarde, né? Que os árabes também...porque... tem gente que
produzia esse negócio... Mas, tem a literatura árabe lá do séc. VII ele [Paulo] tá ajudando
a traduzir também...tem um monte de gente traduzindo...tá certo? Então, e porque que a
gente tem que ficar olhando só pra essa literatura. Outra coisa... coisa que eu tenho
conversado muito com a Juliana. Tem gente que tenta fazer um trabalho aqui no Brasil
porque não conhece o que tá sendo feito na nossa área. Vem em congresso e seminário e
conta coisa de site do Museu de História Natural dos EUA ou então, Nova Iorque.
Material pronto. Vem, coloca...é professor de federal em outro estado... (risos) isso pra
mim é uma vergonha...uma vergonha porque não pesquisa, entendeu? Porque acha quem
tem um olho é rei... Agora, vai lá fora fazer trabalho sobre isso. Claro que não é aceito...
mas não é aceito também, não só por má intenção ou inépcia do trabalho...às vezes,
coitada, a pessoa, é bem intencionada e não percebe. Mas têm uns que fazem isso porque
querem aproveitar da oportunidade de poder se realizar na exclusão que tem
também...todos acabam passando pela exclusão. Porque existe uma exclusão lá fora.
Então, qual é o modelo a seguir? Agora, a primeira coisa é ter consciência disso, sabe
Paulo? Porque as pessoas não tem não. As pessoas vivem ou na desconsideração
disso...na ingenuidade...É difícil a gente pensar na ingenuidade quando se tá mexendo
com arte com política, não sei quê... Mas, as pessoas precisam fazer um esforço e
perceber que a gente tem de olhar um pouco pra nossa realidade também. Os americanos
falam: “Ó, vem trabalhar com arte afro-brasileira...Arte africana é o meu assunto”
Entendeu? Não é assim? É assim em várias áreas. Mas, aproveitar-se disso pra olhar pro
próprio umbigo mesmo, porque, como diz aí ó, na nossa área...eu tenho um monte de
coisa pra estudar nos estilos. Eu gosto de fazer isso e tô fazendo...vou achando as
coisinhas...os caminhosinhos... Entendeu? E tem muitas outras, que a gente pensa que não,
mas existe. Por que? Porque o que existe é aquilo que já tá aqui. Eu já não sei até que
ponto isso pode se aplicar ou eventualmente se aplique à produção artística. Pode ser. O
que eu vou falar agora, vou começar a falar sempre isso. É coisa pra gente pensar. (risos).

Renato Araújo

Bom, muito obrigado. Infelizmente nosso tempo tá esgotado praticamente. Eu adoraria


poder abrir pra mais alguma pergunta, mas a gente tá com o tempo bem apertado mesmo.
Gostaria de lembrar que na semana que vem nosso encontro será aqui mesmo, não na
Estação, tá bom? A gente tem alternado, né? Mas é importante lembrar que será aqui
nesse mesmo espaço...no mesmo horário. Muito obrigado pela presença de todos.

Juliana Ribeiro

Gente, quem tiver perguntas muito urgentes, aproveitem os dois aqui pelos
corredores...acho que tá tudo certo. Tá bom? Muito Obrigada! E espero que vocês voltem
na semana que vem.
A Comunicação de Juliana Ribeiro297
(Auditório Pina_Luz: 26/11/2016)

298

Renato Araújo – (transcrição de áudio)


- Boa tarde a todos. Vamos dar então continuidade aos nossos encontros. Dessa vez com
a Juliana Ribeiro, historiadora... Eu não vou apresentar porque nós já fazemos trabalhos
juntos já há 16 anos, então me sinto envergonhado. (risos) Deixa ela falar...(risos)

Juliana Ribeiro

297
A Juliana fez uma apresentação bastante importante inclusive para a própria Pinacoteca. Ao trazer os
resultados de pesquisa feita há alguns anos atrás no setor de documentação, com seu bom tino
historiográfico conseguiu recuperar informações que ficaram encobertas pela própria história da Pinacoteca,
que é repleta de grandes acontecimentos para o circuito de arte de São Paulo e do Brasil. A questão que ela
coloca sobre a recepção das obras africanas e afro-brasileiras nos museus foi uma das mais importantes de
todo evento. Ela fazia uma crítica quanto ao descuido com a exposição de peças de qualidade duvidosa ou
ausência de pesquisa na identificação das peças: “será que temos que aceitar porque instituições
importantes estão abrindo espaço pra arte africana ou arte afro-brasileira, temos que aceitar qualquer
coisa?” A única resposta que podemos dar é que não. Até hoje foram poucas as exposições que olharam
para essas produções com o respeito merecido e as análises de juliana Ribeiro com relação à algumas
exposições como uma do MASP na diretoria de Teixeira Coelho. (“Do Coração da África - arte iorubá”,
jul.-dez. 2014 - coleção do prof. Manoel Robillota, com curadoria do próprio Coelho) e Juliana cita também
a problemática da exposição da própria Pinacoteca na diretoria de Ivo Mesquita, que antecedeu a atual
gestão. (“Gênese e Celebração: coleção de peças africanas”, nov. 2012, jan.2013 - coleção de Rogério
Cerqueira Leite, com curadoria do prof. Marcos Tognon e da arquiteta Renata Sunega), essa exposição foi
catalogada pela CPFL Cultura. Resguardando um pedido da Juliana, a apresentação de slides dela não será
divulgada aqui, pois a pesquisadora fará outro trabalho com os slides futuramente.
298

http://www.museuafrobrasil.org.br/noticias/detalhe-noticia/2014/08/18/pesquisadora-do-museu-afro-brasil-participa-de-debate-sobre-p
atrim%C3%B4nio-afro-brasileiro
- É como casamento, sabe gente. Chega num momento da relação que ninguém mais sabe
quem é o outro. (risos) É isso...

Renato Araújo

- (risos) Vai que eu esqueço alguma coisa, aí ela vai me pegar, né?

Juliana Ribeiro

- Boa tarde, eu vou, então, me apresentar brevemente, né? Eu sou Juliana, eu sou
historiadora. Mestre e Doutora em história social e venho desde mais ou menos 2000
pesquisando arte africana e minha grande mentora tá aqui que é a Lisy Salum, que falou
na semana passada. Eu devo a ela minha grande paixão...por esse caminho que eu trilhei e
foi por causa de uma disciplina que eu fiz com ela que o mundo se abriu... Eu não quis
fazer outra coisa mais...E aí, eu fui desenvolver a pesquisa. Eu trabalhei durante 10 anos
no Museu Afro Brasil, fiquei desde a inauguração em 2004 até 2014 e atualmente eu
leciono na pós-graduação na Escola de Belas Artes daqui de São Paulo. E também sou
pesquisadora do Programa MASP-Pesquisa, um programa muito bacana do MASP, onde
eu pesquiso coleções africanas e as exposições que aconteceram lá ao longo da trajetória
do MASP.

Então, estamos aqui hoje, pra falar sobre a questão da arte afro-brasileira na Pinacoteca. E
o meu interesse começou, na verdade, em 2013, quando eu fui convidada pela Isabel
[Ayres], que é a bibliotecária aqui da Pinacoteca, pra falar num evento chamado “roda de
conversa”, onde a pauta era justamente as publicações de arte afro-brasileira que
existiram na Pinacoteca e as ações. Então foi um universo também muito novo pra mim,
onde fui pro arquivo e descobri coisas extraordinárias. Porque eu acho que a Pinacoteca,
ela foi muito marcada pela gestão do Emanoel Araujo [1992-2002], né? Se a gente for
pensar nas ações de arte afro-brasileira e eu acho que tem mesmo que marcar, porque
vocês vão ver a gestão dele foi fundamental e marcou mesmo a trajetória dessas
produções aqui no Brasil, mas isso começa anteriormente. Então, eu vou comentar com
vocês sobre isso. (...)

Eu queria falar rapidamente sobre a pesquisa de arquivo aqui, porque às vezes tem
alguém interessado, né? É muito interessante porque a Pinacoteca tem um movimento de
organizar seus arquivos e disponibilizar pro público, então, muitas exposições, é possível
consultar o seu dossiê. Então, as correspondências, listas de obras, enfim, ou às vezes é
um projeto que foi modificado, e quando a gente vê a publicação não se tem ideia do que
que aconteceu no meio do caminho. Então, pros interessados é um bom percurso pra
conhecer mais. E aí, é a partir disso que eu começo apresentando a vocês uma exposição
que aconteceu aqui em 1977. E isso eu estou falando da gestão da crítica de arte,
professora, enfim, uma figura extremamente importante que é a Aracy Amaral. E ela
encabeça um momento muito novo pra Pinacoteca, onde ela diz: Acredito que a função
da Pinacoteca do Estado deva ser mais que conservar, preservar, expor, e pesquisar a
arte brasileira. Considero que paralelamente a estas suas atribuições primeiras, e
justamente a fim de poder alcançar esse objetivo junto ao grande público, sobretudo o de
não-iniciados, os que residem nos bairros circunvizinhos, ela deva tentar atrair essa
população para nela despertar o interesse pelas coisas da cultura. Pelas coisas que o
homem realiza paralelamente à sua luta pela sobrevivência, e que através dos sentidos
alimentam o espírito. [“A Imprensa Negra em São Paulo: 1918-1965” (1977) – Catálogo
de Exposição]

Eu acho que essa fala da Aracy é muito reveladora no sentido das ações que ela vai trazer
pra Pinacoteca, não só vinculada a questão dessa inserção do negro, mas também de uma
ideia de América Latina, que ela também investe. E nessa exposição “A Imprensa Negra
em São Paulo” ela convida uma figura extremamente importante que é o Eduardo de
Oliveira Oliveira pra fazer a curadoria dela. Pra quem não conhece, o Eduardo de
Oliveira Oliveira foi um sociólogo negro que acabou sendo um pouco esquecido porque
tinha no mesmo grupo dele o Abdias do Nascimento, o Clóvis Moura, e então essas
figuras ganharam um destaque maior e o Eduardo de Oliveira Oliveira acabou ficando um
pouco esquecido. Mas ele, na década de 70, teve um trabalho importantíssimo, não só de
fazer exposição aqui na Pinacoteca, mas também no MASP, por exemplo, no MAE
(Museu de Arqueologia e Etnologia da USP) ele tem algumas ações em conjunto...Só que
a trajetória do Eduardo de Oliveira é muito triste, porque ele se forma em Ciências
Sociais na USP, ele faz o seu mestrado (décadas de 1960 e 70) ele é professor na
Universidade de São Carlos, ele chega a organizar a fundação de um Centro de Estudos
do Negro... e ele abandona a Universidade no começo da década de 80 e ele começa a
desenvolver doenças psiquiátricas...que não é raro se a gente for pensar na trajetória de
muitos intelectuais e artistas negros. E no final da década de 80 ele simplesmente morre
em sua casa e até hoje não se tem uma explicação de qual foi a motivação mesmo da
morte dele. Então, eu fiquei muito feliz de resgatar essa exposição porque imaginem
vocês a Pinacoteca na década de 70, que tipo de público que ela atraia e fazer uma
exposição sobre a Imprensa Negra onde a Aracy faz uma “Quinzena do Negro”, que era
um conjunto de ações voltadas pra uma reflexão...esse papel... eu trago aqui um texto do
Eduardo de Oliveira Oliveira, uma apresentação dessa exposição, onde ele questiona,
justamente, a questão da memória e ele questiona: “Por que uma quinzena do negro se
todos os dias são dias de negro?”. E é uma exposição voltada...quando ele traz a questão
da imprensa negra, é pra trazer um protagonismo, né? De um grupo de intelectuais, enfim,
de pessoas que estão interessadas em mostrar sua própria cara, em mostrar as suas ações.
Alguns dos jornais expostos eram o Bandeirante...e aí, gente, a data ao lado é a data de
fundação desses jornais: O Bandeirante (1918), A Liberdade (1919), O Kosmos (1922),
Elite (1922), Clarim da Alvorada (1924), Auriverde (1928), A Voz da Raça (1933),
Tribuna Negra (1935), Novo Horizonte (1946), Mundo Novo (1950), O Mutirão (1958).
Foi uma exposição muito grande que contemplou o período de 1918 a 1965. No arquivo
há as fotografias de partes desses jornais que foram expostos. (...). Um dado importante
que eu acho que é bastante significativo. Lá no Centro de Documentação de Arquivo, há
um projeto que parece que ia ser feito no lugar da exposição da imprensa negra. Parece
que era a ideia inicial, justamente, chamado “Pintores de Ascendência Africana” e isso,
então, a gente tá falando de 1977. Não sei por quais motivos houve essa mudança, mas eu
acho que é bastante significativo pra gente pensar que dez anos antes da “A Mão Afro
Brasileira” organizada por Emanoel Araujo, onde ele coloca esses pintores negros, já se
tinha um projeto. Esse projeto, infelizmente, ele não tá assinado eu não sei se alguém
oferece ou, enfim, [se] foi a própria Aracy que fez junto com alguém, mas eu achei
bastante significativo isso [aparecer já] na década de 70. Nisso a Aracy teve a ideia de
trazer temas relacionados não só à questão das artes plásticas em si, ela traz um evento
chamado “Candomblé, Culto Afro-Brasileiro”, lembrando que a exposição da imprensa
negra era em comemoração aos 90 anos da abolição da escravidão que seria em 78. Não
sei também quais os motivos que levaram ela a ser realizada um ano antes. Em 1979,
você tem o Candomblé, Culto Afro-Brasileiro”, que foi na verdade, um conjunto de ações
organizadas por Carlos Eugênio Marcondes de Moura e contou com o apoio do MAE
(Museu de Arqueologia e Etnologia da USP) sob a coordenação do Marianno Carneiro da
Cunha. Marianno Carneiro da Cunha que o Hélio já tinha falado, pra quem tava aqui no
primeiro encontro, discutiu um pouco o texto dele, muito importante, publicado na
“História Geral da Arte no Brasil” do Zanini, e que o Renato recupera no segundo
encontro. Esse evento, contou não apenas com exposição, mas também com ciclo de
palestras onde várias figuras bastantes importantes, até pra se pensar hoje a questão da
arte afro-brasileira, foram falar: a Juana Elbein dos Santos, que pra quem não conhece é
uma antropóloga argentina, mais conhecida como a esposa do Mestre Didi, mas que tem
publicações bastantes relevantes também. Outra palestra chamada “Tipos Psicológicos no
Candomblé”. Pensem isso na Pinacoteca na década de 70, né! “O Tambor de Mina do
Maranhão”, com Mariana Pereira Barreto. “O Candomblé Visto de Dentro” uma
avaliação de Adilson Pedro que era pai de santo. “Magia e Contra-Magia no Candomblé”,
do Marianno Carneiro da Cunha. E “O Culto dos Orixás na África e na Bahia” com a
presença do Pierre Verger que não se concretiza porque, eu consegui ver as trocas de
correspondências…ele pede pra ser o ultimo a falar…Porque ele estaria numa viagem à
Europa e ele realmente não consegue voltar a tempo, então, a fala dele foi cancelada. E
houve a projeção de filmes em parceria com o museu de imagem e do som. Todos os
filmes ligados à questão do Candomblé. Por causa do próprio tema do evento. E alguns
filmes bastantes importantes como o do Nelson Pereira dos Santos, “Tendas dos
Milagres” e o “Amuleto de Ogum”, entre outros. Essa exposição também conta com
fotografias de terreiros, onde esses fotógrafos Maurice Jacoel, Deodato de Melo Freire e
Nazareno expõe essas fotografias. Essa exposição é aberta com essa obra da Djanira,
chamada “Três Orixás” que é uma obra de 1966. E interessante porque eu procurei mais
informações sobre esses fotógrafos e eu não consegui achar absolutamente nada, assim.
De que eles continuam trabalhando e fotografando e com estúdio de produção…enfim,
parece que…não sei se alguém teria outras informações...299 E uma exposição de peças
rituais do MAE-USP. Eu trago aqui a lista de obras...E o interessante é pensar como que
essas exposições eram feitas praticamente com custo zero e amizade 100%. O Marianno
Carneiro da Cunha empresta as vitrines, ele empresta as obras, e aí alguém vai lá buscar e
depois devolve... Então, é feito de uma forma muito na vontade mesmo. Se vocês
observarem e aí é algo pra gente começar a perceber, que é: “que África é essa que
começa a ser mostrada?”. O Emanoel segue esse caminho. Isso a gente tá vendo
também muito já com a influência de Pierre Verger e de Marianno Carneiro da Cunha
que com ele já tinha discutido sobre isso...Que é uma África muito associada às regiões
da África Ocidental, principalmente Nigéria e Benim. Não por acaso o nome do evento é
“Candomblé, Culto Afro-Brasileiro”, Mas a gente pode começar a perceber qual é a trilha
que se dá aqui no sudeste também....de como essas ideias migram de certa forma da
Bahia e vem parar aqui, a partir desses baianos inclusive. Com Pierre Verger e o Emanoel
Araujo.

- Em 1982, aí a gente já tá falando de outra gestão... E às vezes é difícil porque a


cronologia da Pinacoteca tem uma série de lacunas, às vezes, de direção...Então, às vezes
tem datas de... “Ah, saiu em 1988, saiu em 87... aí tem um vácuo de dois anos que você
não sabe quem que assume...Mas parece...tudo indica que era a época de Fábio
Magalhães...Pedro [Nery] me corrija se eu estiver errada, que é 1979-82.

Pedro Nery
- Pode estar mas...foi na troca...

Juliana Ribeiro

299
Maurice Jacoel é formando da turma de 1973 de um curso de fotografia do MASP/SP, segundo uma orientanda do
Tadeu Chiarelli em sua dissertação de mestrado (SOARES, Carolina C.Coleção Pirelli MASP fotografia: fragmentos de
uma memória. São Paulo: ECA-USP, 2006, p.167). Deodato de Melo Freire Jr., juntamente om Nazareno S.N.S. Santos
estiveram na Exposição “Grande São Paulo/76) nesta mesma instituição em 1976, (Idem, p. 174). Salvo engano em
caso de um homônimo, Deodato de Melo Freire consta dos arquivos secretos do Governo Brasileiro no âmbito da
CGI-Comissão Geral de Investigações, recentmente disponíveis para consulta. N. do E.
Também não, né? Porque foi bem o período de mudança para Maria Cecília, né? França
Lourenço...Parece que era 1983, mas às vezes a data marcada a partir da publicação da
saída oficial...né?

Pedro Nery
- Quer que eu fale?

Juliana Ribeiro
- Pode! (risos)

Pedro Nery
- É...como eu já pesquisei isso, algumas vezes, até pra aqui internamente... Muitas vezes a
gente não sabe entender... se publica no diário oficial é a data que realmente
assumiu...tenho a impressão que muitas vezes, tinha umas trocas alguém assumia pra
assinar papel e não efetivamente... Então, é difícil mesmo determinar... Algumas vezes às
pessoas ficam realmente perdidas...pra saber quem é o responsável.

Juliana Ribeiro
- É, eu tive dificuldade.

Lisy Salum
- O Fábio Magalhães, qual é a época dele?

Juliana Ribeiro
- De 1979 a 82.

Lisy Salum
- o Fábio chegou a ir pro MASP também?

Pedro Nery
- Não sei...
Juliana Ribeiro
- Acho que não...E só pra gente perceber como havia uma comunicação entre museus,
nesse mesmo ano 1979 aqui na Pinacoteca é realizado uma exposição de fotografias a
partir de uma viagem do Pierre Verger com a Manoela Carneiro da Cunha e o Marianno
Carneiro da Cunha chamada “Da Senzala ao Sobrado”... fotografias tanto da Nigéria...
afro-brasileiros... quanto da República Popular do Benim. E essa exposição aconteceu no
MASP em 1978. Então, a gente não sabe porque uma mesma exposição acontece em dois
espaços, só com uma diferença de um ano, aqui em São Paulo. Em 1982...eu quis trazer
essa exposição da Maria Lídia Magliani porque ela é uma artista que de certa forma foi
recuperada a partir do Emanoel Araujo... de colocar alguma coisa no Museu Afro, mas
que ficou um tanto desprezada. Infelizmente...E há uma individual dela aqui...de
desenhos...E um dado bastante curioso. Apesar da Pinacoteca ter realizado uma exposição
individual dela, nesse momento não se adquire nenhuma obra dela...nem de doação... nem
de nada.... Não há nenhum tipo de relação. Todas as 6 obras dela...eu fiz um
levantamento, elas foram adquiridas só a partir de 1984. E mais pra frente a gente vai ver
o papel do Emanoel Araujo nisso...eu fiz uma busca... uma tabelinha pra gente ver como
que ele de fato traz esse peso. A Maria Lídia Magliani morreu alguns anos atrás, ela era
de Pelotas.... Ela acabou sendo uma artista que ficou bastante esquecida.

Lisy Salum
- Juliana, eu posso falar uma coisa?

Juliana Ribeiro
- Claro!

Lisy Salum
- Voce disse que é um exposição de desenhos, mas tem duas pinturas atrás.

Juliana Ribeiro
- É, aqui eu trouxe só a fotografia dela.
Lisy Salum
- Ah, não tem nada que ver com o trabalho dela.

Juliana Ribeiro
- Não. Aliás, o problema do arquivo...porque dificilmente você consegue ver a lista de
obras. Tem exposições que a gente vai ver, que a gente não consegue recuperar
absolutamente nada. Nem o convite, nem o nome de um artista...Às vezes tem assim,
“vamos fazer a exposição tal”. Às vezes tá na planilha de Excel das exposições realizadas
na Pinacoteca. Agora, quem realizou? Quais artistas o que que foi mostrado? Não...E aqui
eu trouxe só pra gente pensar...

- Em 1988, tem o centenário da abolição da escravidão. E eu acho que é bastante


interessante a gente pensar como essas ações estão vinculadas a quem é que tá, enfim, na
gestão, na diretoria. Você tem o centenário da abolição da escravidão, onde a Pinacoteca
faz uma exposição chamada “Mitos e Ritos Africanos”, obras de Tereza D’Amico, que
era uma artista que vai pra Bahia em 1957, ela fica simplesmente enlouquecida, na Bahia.
E começa a fazer obras vinculadas a esse universo da religiosidade afro-brasileira, do
Candomblé, então a Pinacoteca traz as obras da Tereza D’Amico ligadas à figura de
Iemanjá, de outros orixás, ligados, enfim, a esse universo das religiões e da
religiosidade afro-brasileira. Uma segunda exposição que acontece nesse mesmo ano
artistas plásticos de Angola. A terceira exposição “A Consciência Negra”, que a gente vai
passar um pouquinho e “O Negro na Coleção da Pinacoteca”300. Essa exposição que
aparentemente parece ter um grande interesse pra gente, não há nenhuma documentação a
respeito dela. A única informação que eu consegui encontrar é que o Portinari entra com
uma obra. Agora, o fato é que são exposições onde é a figura do branco trazendo a
representação do negro. Exceto “A Consciência Negra” que a gente vai ver que tem as
duas coisas e essa exposição “Artistas Plásticos de Angola”, que a gente vai falar um
pouquinho.

300
Essa exposição teve uma critica positiva numa edição da Revista “Visão”, em Maio de 1988.
https://books.google.com.br/books?id=UJn4VK1h3osC&q=O+Negro+na+Cole%C3%A7%C3%A3o+da+Pinacoteca&dq=O+Negro+n
a+Cole%C3%A7%C3%A3o+da+Pinacoteca&hl=pt-BR&sa=X&redir_esc=y
- É interessante como que muitas vezes é mais tranquilo você trazer uma exposição de
africanos do que lidar com a questão do negro brasileiro no centenário da Abolição.
Então, parece que a Pinacoteca faz uma parceria com o CESA, que é o Centro de Estudos
de Sociologia da Arte da USP e traz dezesseis artistas plásticos da UNAP, que é a União
Nacional dos Artistas Plásticos de Angola. É interessante pra gente pensar nesse
momento em que essa União Nacional dos Artistas Plásticos de Angola é fundada em
1977, logo após a independência, que se dá em 1975. E um dado curioso é que tipo de
gravura... e aí nesse caso eram gravuras...que tipo de gravura que era feita nesse momento.
Do final da década de 70 já pegando a década de 80. Há uma recuperação dos ícones do,
dos símbolos, da questão da construção de uma nação Angolana. Então você recupera
figuras de uma estatueta iombe. Você tem uma série imensa de máscaras tchokwe que é
um povo cuja produção artistica ficou bastante...foi considerada a grande produção da
arte angolana. Virou um símbolo da nação angolana. E esse caso de angola não é um caso
particular. No MASP, você tem ainda em momentos anteriores, porque se a gente pensar
que independência do Senegal é bem anterior, se dá na década de 60...de também trazer
esses artistas e o peso da gravura. No caso de Senegal você tem inclusive um gravurista
brasileiro que é Rossini Péres que vai pro Senegal em 1974 ensinar gravura pra esses
artistas. E poucos anos depois é feita uma exposição de gravura de artistas do Senegal,
que viaja o mundo inteiro.

Lisy Salum
- Xilo? (...) É Xilogravura!

Juliana Ribeiro
- Xilogravura! Exato... Então, e Angola segue o mesmo caminho. É um empenho muito
grande. Não sei quem é que leva, né? A gravura pra Angola. Mas no caso do Senegal é
um artista brasileiro. E essa próxima exposição que se dá no centenário da Abolição
“Consciência Negra” , há um dado muito interessante, porque há um registro da ausência
de artistas negros no acervo. Então, esse texto que não está assinado fala “o acervo da
Pinacoteca demonstra, embora de modo parcial, que se é numerosa a população negra
no país é pequena a presença dessa nas atividades culturais. Nosso acervo dispõe de
poucas obras que tomam por tema a cultura negra e menos ainda de obras de artistas
negros. A Pinacoteca partindo do estudo da “Consciência Negra” em seu acervo, reúne
no Gabinete do Papel, obras de Octávio Araujo, gravador negro brasileiro; e obras de
autores como: Sergio Ferro Pereira, Candido Portinari, Livio Abramo e outros que
utilizam como temática o Negro. É estranho que um museu do porte da Pinacoteca tenha
um número tão reduzido de obras sobre o negro, demonstrando talvez a presença do
racismo na própria visão dos artistas, que, embora brasileiros, sofrendo a influência de
escolas europeias, tenham assimilado o olhar preconceituoso do europeu”. Então, eu
acredito que esse texto seja da Iracy Carise, porque ela teve uma função muito importante
nessa mostra “Consciência Negra” e ela traz, então, dois objetivos. Isso eu até cito.
A visão da consciência negra analisada por dois aspectos. Isso eu estou citando o
documento, tá? : a visão do artista negro, através do gravador Octávio Araújo. (Inclusive
se não me engano é essa obra que estava na exposição “Territórios”. Que chama “Iemanjá
- Rainha do Mar”, uma obra de 1972). E obras de autores diversos que utilizam o negro
como temática. Então, esses outros artistas eu trago duas obras, essa é do Lívio Abramo
“A Negra” de 1951, que estava na exposição, e essa do Sérgio Ferro, “Hamã”, de 1975.
Vejam ainda a dificuldade que se tem apesar de uma vontade..., de conseguir integrar, né?
numa exposição, obras que depois Emanoel Araujo vai conseguir reunir de uma forma
bastante diferente. Mas essa percepção dessa ausência, ela já é notada muito antes de
1992, que é quando o Emanoel assume.

E aí a gente entra um pouco na discussão da gestão do Emanoel Araujo. Emanoel é


diretor da Pinacoteca entre 1992 e 2002. São dez anos....onde, assim que ele assume, no
primeiro ano ele organiza “Vozes da Diáspora”. Vozes da Diáspora, na verdade foi um
conjunto de quatro exposições mais uma Instalação da Regina Vater chamado “Mantra
para Oxalá”. Aliás, um trabalho lindíssimo. Eu queria ver...não sei se é do acervo...mas é
um trabalho muito bonito, assim. E então, ele traz uma exposição “Brasil-África-Brasil”
do Pierre Verger, comemorando seus 90 anos, “Os Pintores Negros do Século XIX”,
então, de certa forma é a concretização daquele projeto da década de 70, da Imprensa
Negra; “Altares Emblemáticos de Rubem Valentim”, lembrando que Rubem Valentim
falece em 1991, então é também uma homenagem. E isso está colocado no próprio
projeto. E “O Inconsciente Revelado”, trazendo a própria produção de Agnaldo Manoel
dos Santos. Se a gente olha esses quatro...são espécies de folderes, catálogos, pequenos
catálogos a gente vê que Emanoel estava quase que completamente ligado à sua
exposição que aconteceu quatro anos antes no MAM daqui de São Paulo chamada “A
Mão Afro-Brasileira”... até das escolhas...Então, uma academia que traz até a década de
88 esses pintores negros a segunda seção arte popular. Então entraria a obra do Agnaldo
Manoel dos Santos que depois vira uma individual e arte contemporânea com a obra do
Rubem Valentim. A exposição “Vozes da Diáspora” , eu acho que Emanoel começa aqui
a concretizar de forma mais profunda, o que se concretizaria depois como o Museu Afro
Brasil. Eu costumo dizer que a gestão do Emanoel aqui na Pinacoteca foi um grande
laboratório pra ele ir testando o que ele achava que funcionava ou não.

- Eu trago duas fotografias da Mão Afro-Brasileira...Isso aqui é uma raridade... Eu


consegui essas duas fotografias tem algumas outras, mas eu acho que aqui fica muito
claro de como Emanoel vai começar a testar essa não hierarquização da obra de arte. E
isso depois é levado até o extremo no Museu Afro-Brasil. Isso começa em 1988. Quem
me conhece sabe e aí eu acho importante a gente começar a colocar algumas questões,
quem me conhece sabe do quanto eu sou crítica à essa noção de inconsciente revelado, ao
analisar a produção do Agnaldo Manoel dos Santos. E isso não é uma criação do Emanoel.
Isso desde os escritos da década de 50 há essa interpretação da obra dele, justamente pelo
fato do Agnaldo não ter frequentado uma educação formal e também ser um artista negro.
Mas a gente precisa pensar que o Agnaldo Manoel dos Santos tá inserido num circuito
das artes plásticas na Bahia, onde ele tem como seu grande mentor o Mário Cravo Jr., que
tava convivendo com Carybé, que tava convivendo com Pierre Verger de forma muito
intensa. Jenner Augusto, Calasans Neto, Jorge Amado. Então toda essa turma atuante aí
na década de 50... o Agnaldo tá produzindo. E os documentos mostram que ele de fato,
estudou bastante até, arte africana pra fazer suas produções. Pierre Verger fornecia livros
de arte africana para o Agnaldo. Essa é uma visão que o Emanoel se mantém até hoje,
tanto é que as obras do Agnaldo no Museu Afro Brasil não estão na parte da Mão
Afro-Brasileira, estão na parte de religiosidade, mesmo que grande parte das obras do
Agnaldo que está lá, elas não dizem respeito a nada relacionado à religiosidade
afro-brasileira. São figuras de mãe e filho, pai e filho, enfim. Então tem uma...A gente
começa a mapear de quando Emanoel começa a sustentar essas ideias, de quando isso vai
sendo reapresentado em outras exposições. Assim como Pierre Verger. Pierre Verger tem
uma importância muito grande nas exposições do Emanoel Araujo, porque o Emanoel tá
muito ligado nessa ideia de fluxo e refluxo que é apresentada pela primeira vez com a
grande tese do Pierre Verger, que é o que? A ideia dessas trocas quase que diretas entre
Brasil e essa região da África [Ocidental] principalmente Nigéria e Benim. O Emanoel
faz na Pinacoteca se eu não me engano três ou quatro exposições com a fotografia de
Pierre Verger que justamente mostra essa relação. Pra quem não conhece Pierre Verger,
ele é um fotógrafo francês que ficou muito conhecido por fotografar a Bahia e fotografar
essas regiões africanas e mostrar essa semelhança. Isso a gente também pode ver numa
parte bastante significativa no Museu Afro Brasil com essas fotografias, então, a gente
vai...percebam o percurso dessa arte afro-brasileira no Brasil, de que África que a gente tá
falando.

- Aqui eu trago uma exposição que aconteceu em 1994, apesar dessa exposição não ter
acontecido na Pinacoteca, vai ser fundamental pra gente entender uma série de mostras
que aconteceram em 1997. Durante a Feira de Livro de Frankfurt, onde o Brasil era o
tema, o Emanoel e o Carlos Eugênio Marcondes de Moura são convidados a fazer uma
exposição na feira de Frankfurt e que ganha o nome de “Arte e Religiosidade
Afro-brasileira”. Emanoel leva principalmente Agnaldo Manoel dos Santos, Ronaldo
Rego, que é um artista ligado à Umbanda, do Rio de Janeiro, Rubem Valentim, Mestre
Didi, que também já estava na “A Mão Afro-Brasileira”, Waldeloir Rego, que além de
antropólogo era bastante conhecido pela produção de joias, ligadas a temas
afro-brasileiros, Aurelino dos Santos, e José Adário dos Santos, que é um ferreiro, que eu
particularmente eu sou completamente apaixonada, quando eu vou pra Bahia eu volto
carregada com ferramenta de Orixá, não sei como ainda eu não fui parada no aeroporto...
Porque é o último grande ferreiro de ferramenta de orixá...vivo...que fica na Ladeira da
Conceição. Emanoel, então, resgata essas figuras e resgata essas figuras como artistas e
como arte. O José Adário, se eu não me engano, ele não está presente na Mão
Afro-Brasileira. Ele aparece pela primeira vez nessa exposição de 1994. Nesse mesmo
ano, ou seja, Emanoel fazendo exposição em Frankfurt, nesse mesmo ano ele faz na
Pinacoteca a exposição “Herdeiros da Noite - fragmentos do imaginário negro” que é
uma exposição que apontava...e aí eu acho interessante...que apontava para “uma estética
vista por outros cânones que não os tradicionais da arte ocidental e permitia que ela fosse
vislumbrada pelo viés da ancestralidade, esse “halo” que permanece no inconsciente
coletivo e pelo qual o artista negro se torna a um só tempo o grande receptor e o maior
executor de cânones que remontam à arte paleo-africana ou se refletem na arte
neo-africana na diáspora”. Esses conceitos, gente, de arte “paleoafricana”, “neoafricana”
Emanoel traz esses conceitos a partir do contato dele com o professor George Preston,
que é um norte americano que convida o Emanoel pra dar aula em Nova Iorque e que
inclusive faz a curadoria de uma exposição do Emanoel no MASP, fortalecendo esses
conceitos...até hoje, pra ser bem sincera eu nunca consegui entender o que George
Preston quis dizer com isso, porque eu acho que é uma piração tão grande que...E olha
que eu já fui atrás disso, viu ! Mas, pra mim não faz muito sentido não.... Mas, enfim, o
Emanoel, ele tá sempre recuperando essa visão, essa “arte paleoafricana”, ou “neo
africana” na diáspora...Eu acho um pouco...trazer essa ideia de uma continuidade...né? Eu
sempre fico um pouco apavorada quando a questão do protagonismo, da escolha do
artista é colocada em segundo plano, né? “Inconsciente coletivo” tivesse uma atuação tão
grande quase que como o artista não tivesse como escolher... né? É só um receptor
daquilo e a partir do que ele recebe, ele faz as suas obras.

- Um dado muito interessante, aí já por um outro caminho...é pensar, gente, que o


Emanoel Araujo, e sua documentação deixa muito claro, ele vai adquirindo as obras a
partir das exposições que ele faz. Então, não há uma exposição que ele pede obra
emprestada que depois ele não compra. Então, tem pedido de como.... essa máscara
mesmo que é uma máscara maconde tá lá no Museu Afro Brasil. Nessa época ela era de
um colecionador privado. Então, um dado muito interessante, pro pessoal do Museu Afro
Brasil, que está aqui presente, é mapear a trajetória desses objetos a partir da
documentação que tá aqui presente... que a gente tentou fazer um pouco quando eu tava lá,
mas que pelas poucas exposições que são feitas anualmente no Museu Afro Brasil...todo
mundo fica muito livre né? (risos)301
Lisy Salum
- Nós estamos fazendo só que você não pode esquecer de participar do Convênio302

Juliana Ribeiro
- É verdade... Depois a gente vai falar um pouco disso....Desse convênio do Museu Afro
Brasil com o Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, onde a Lisy e o Renato
coordenam, o Renato no Museu Afro Brasil e a Lisy no MAE...

- Então, além de um grande laboratório de testar a curadoria do Emanoel a gente percebe


as escolhas que o Emanoel vai fazendo de acordo com essas exposições, onde ele vai
adquirindo essas obras. De novo, gente, vejam o que que tá...quais artistas que tão
representados nesta mostra. Agnaldo Manoel dos Santos, Mestre Didi, Ronaldo Rego,
Rubem Valentim, Hélio Oliveira, Edival Ramosa, Rosana Paulino, George Preston, Colin
Chase, Pierre verger, José Adário dos Santos. Vejam que há uma recorrência de artistas e
isso, gente, é claro que ao longo dos anos Emanoel vai ampliando, mas há sempre um

301
Em seu final speed de corredor de longa distância, Emanoel Araujo, aos 76 anos é sem sombra de dúvida o
artista-curador que mais fez exposições na história da arte brasileira. Dos anos que eu presenciei trabalhando com ele
desde 2005 até este ano de 2016, acho que 2011 foi o recorde. Pelos meus cálculos, entre itinerantes e temporárias
pequenas e grandes, foram 27 exposiçõe num único ano! Isso dá uma média de 2 exposições e um pouquinho por mês!
Pergunta-se muito como nós conseguimos fazer isso: uma exposição nova, pesquisada, legendada, montada, exposta e
mediada de 15 em 15 dias? O fato é que eu próprio não sei! Excetuando os problemas psicológicos, psiquiátricos e de
doenças físicas de parte significativa de funcionários, em geral, aqueles que lá são trabalhadores e não chefes, sempre
mal remunerados, todos que por lá passaram (só de educadores que eu contei, no meu texto “Escritos Afro-Brasileiros”
foram mais de 100 em 10 anos), só estes sabem a dor e a delícia de fazer parte deste “algo” grande e que ao mesmo
tempo não tivemos ainda a consciência de seu significado concreto...quem sabe em uns 30 anos saibamos ou não? A
despeito de estar muito aquém do ideal, eu tenho consciência de que o Emanoel foi foda, e de sobretudo nós
trabalhadores fomos foda - aquela marcenaria e montagem é digna de nota, a salvaguarda, a pesquisa, todos os outros,
mas principalmente a educação. Há quem diga, com razão, que a qualidade sempre prima sobre a quantidade. Mas eu
entendi também, um tanto tardiamente, que essa coisa de “enaltecimento negro” é e sempre foi apenas “uma onda” que
num piscar de olhos se esvae...assim, quanto mais se fizer num curto período de tempo de bonança, isso poderá ser útil
à próxima onda que poderá vir, quiçá, mais fortalecida e conseguir assim derrubar alguns arrecifes e bancos de areia
artificiais, colocadas no meio do caminho e que fomos aqui atrás incapazes de ultrapassar. Foi por isso que eu fiz
quantitativa, superficial e rapidamente (em 5 anos) também a minha tetralogia: “Isto não é Magia é Tecnologia”(2013),
“Escritos Afro-Brasileiros”(2016), “Arte Afro-Brasileira: altos e baixos de um conceito”(2016) e “Compreensão do
Museu Afro Brasil” (no prelo), quis imitar o speedy de Emanoel Araujo e dizer que faço orgulhosamente parte da
família desesperada dos “Araújos”...estes que embaixo da língua aquecem continuamente a palavra “urgência”. Mas
como diz com razão a minha linda e loura parente, a atriz Renata Araújo, que trabalhou lá como produtora: “quem é do
mar é Marujo, que é do ar é Araújo” - façamos, então, o que é necessário e ademais o que é simplesmente o nosso dever!
N. do R. (nota do Renatinho)
302
Convênio MAE-USP (2015-2017), ainda em andamento, sobre correspondência entre as obras de arte africana dos
dois museus. Coordenados por Renato Araújo a Lisy Salum e iniciado também por Juliana Ribeiro, enquanto ainda
fazia parte dos quadros de funcionários do Museu Afro Brasil. N do E.
grande domínio desse grupo de artistas. Isso é uma questão também que eu acho que é
importante a gente falar, porque, como a gente tem no Brasil uma grande figura que faz
as principais exposições, que traz o tema, a impressão que se dá é que se Emanoel coloca
existe, se Emanoel não coloca, não existe. E quando a gente vai, por exemplo, pro
arquivo da Bienal aqui de São Paulo, que tem dossiês interessantíssimos, inclusive
dossiês da Bahia, você descobre uma quantidade de artistas que simplesmente
desapareceram ao longo do tempo. E aí, a questão é: esses artistas morreram? Eles estão
expondo? O que que aconteceu? Porque o fato do Emanoel por “n” motivos que eu
também não sei dizer, não ter optado por colocar dá impressão que eles deixaram de
existir, muitos deles cairam no anonimato. Ou estão fazendo exposições tão localizadas
que não chegam ao grande público.

Lisy Salum
- Permaneceram no anonimato. Porque o Emanoel traz do anonimato.

Juliana Ribeiro
É, então...Mas o que que acontece, Lisy, esses artistas, por exemplo, muitos deles nas
décadas de 50 e 60, eles estão atuando na bahia. Eles estão saindo em jornais, eles estão
dando entrevistas em jornais.

Lisy Salum
- Regionalmente sim. Tem alguns...

Juliana Ribeiro
Então, tem uma grande visibilidade. Entalhadores, gente, uma quantidade de
entalhadores...Eu tô agora recuperando os nomes dessas figuras...

Lisy Salum
- Aqui tá faltando um...

Juliana Ribeiro
Não, é... Provavelmente, tá faltando vários... Quer falar?

Lisy Salum
- Não! Era desses aí, está faltando um importante, eu não tô lembrando o nome...

Juliana Ribeiro
Se você lembrar você fala...
Esse também é o perigo da gente ter no Brasil ainda uma grande figura que vai fazer as
escolhas, né? Do que que vai ou não pra uma exposição. Na mostra “Herdeiros da Noite”,
que depois...no ano seguinte vai pra Bahia e também vai pra Belo Horizonte e pra Brasilia,
o Emanoel traz pra Pinacoteca uma mesa redonda chamada “Ausências Presenças, o
Conhecimento sobre as Artes Afro-brasileiras”, onde ele já tá trazendo essa discussão. E
quem que ele convida? George Preston, a antropóloga Maria Lúcia Montes, que durante
muitos anos trabalha... braço direito do Emanoel. Tânia Macedo e Joel Rufino dos Santos.
Infelizmente, eu não consegui encontrar absolutamente nada desse encontro. Mas esse
encontro é talvez o primeiro que aqui na Pinacoteca que discuta a questão da arte
afro-brasileira, a questão da presença e da ausência. Aqui a gente tem duas fotografias
que a equipe do CEDOC [Centro de Documentação e Memória da Pinacoteca de São
Paulo], cedeu gentilmente, onde a gente já começa a perceber as cores nas paredes e que
depois vira uma grande marca do Emanoel. Na “Mão Afro-Brasileira” essas cores ainda
não aparecem. Ainda é o uso da parede branca... que vai ser uma das marcas das
curadorias do Emanoel Araujo. Aqui também, acho que o pessoal tá reconhecendo
algumas obras que tão no acervo do Museu [Afro Brasil] essas bandeiras asafo, mesmo
que são de Gana, ali em cima... são fanti-ashanti, eram da coleção do próprio George
Preston. Embaixo você tem algumas bandeiras do Haiti. Então, dá pra perceber...

- E aí em 1997, a gente recupera a exposição “Arte e Religiosidade no Brasil: heranças


africanas” que é o quê? Nada mais é que uma ampliação da exposição da Feira de
Frankfurt, que era [chamada] de “Arte e Religiosidade Afro-Brasileira. Ele muda um
pouco o nome. É o Projeto [chamado] Pinacoteca no Parque, curiosamente essa exposição
acontece onde é atualmente o Museu Afro Brasil, porque a Pinacoteca tava em reforma
nesse período. E a ideia aqui “para que se pudesse se aproximar do sagrado e profano,
verificando como a incorporeidade de símbolos transitivos que os perpassam pode
adquirir um profundo significado no ato criador artístico em obras que se valem desses
símbolos para resignifica-los através de um uso criativo”. Vejam que as exposições do
Emanoel trazem sempre essa concepção de Sagrado/Profano, de inconsciente coletivo,
dessa ancestralidade, né? É uma das marcas dele até hoje. Novamente, se a gente observa,
artistas como Agnaldo Manoel dos Santos, Mestre Didi, Ronaldo Rego, e aqui eu chamo
atenção pro Mário Proença, que apesar do Museu Afro Brasil ter obra, mas é colocado
como...é quase como cenografia. O Museu não traz o Mário Proença que faz esse adorno
de orixá, ele não traz como um artista dedicado a esse tipo de produção. É quase como
parte da cenografia. Além disso, tem a figura do Adenor Gondim, novamente Pierre
Verger, Hélio Oliveira, enfim, uma recorrência.

- Esse projeto “Arte e Religiosidade no Brasil: heranças africanas”, na verdade, é um


grupo de exposições. Como “Cosmologias e Altares” que pra quem...não sei se vocês
lembram, mas no início do Museu Afro Brasil esses altares... parte deles estavam
presentes. Os pejis, bastante próximos aliás, você pegam esse catálogo “Cosmologias e
Altares” tem construções muito próximas da que foi colocada no Museu Afro Brasil sete
anos depois, quando ele é inaugurado. Fotografia do Luis Paulo Lima, chamada
“Fragmentos”...que é um fotógrafo negro também. Eustáquio Neves da série “Arturos”,
que tá presente no Museu Afro Brasil. Acho que foi uma das primeiras séries que o
Emanoel leva já para o Museu. E Adenor Gondin, com a “Irmandade da Nossa Senhora
da Boa Morte” e se vocês viram a exposição que aconteceu na FIESP, em 2003, e
anteriormente, em 2001, no Rio de Janeiro é a fotografia símbolo da exposição. Então dá
pra gente ir percebendo o caminho...essa trajetória do Emanoel Araujo. E curiosamente
ele traz Lamberto Scipione, que é um artista italiano, parece que é um convite pra um
olhar estrangeiro a partir dessas heranças africanas no Brasil.

Lisy Salum
- Será se esse aqui...não era isso o que ia falar, mas será se esse aqui não se apresentou
naquela Mostra de Paris? (...) Anterior...?
Juliana Ribeiro
- De Frankfurt?

Lisy Salum
-De...Não...Eu tô falando de outro...mas de... Frankfurt...

Juliana Ribeiro
- De Frankfurt?

Lisy Salum
Não. Tinha aquela de Paris também

Alexandre Araujo Bispo


- Não é Magicien de la Terre, de Paris?

Lisy Salum
- É, Magicien de la Terre

Juliana Ribeiro
- Sim, mas quem?

Lisy Salum
Este...[aponta a capa do catálogo “Arte e Religiosidade no Brasil: heranças africanas”
Lamberto Scipioni - Santa Rosa dos Pretos, Fotografias - Pinacoteca]

Juliana Ribeiro
- O Lamberto Scipioni?

Lisy Salum
- Sabe por que que eu tô perguntando isso? Eu ia te fazer outra pergunta...uma observação
e uma pergunta ao mesmo tempo...Eu não me lembro quando é que foi publicado o livro
do Robert Farris Thompson...sobre os altares..., mas eu acho que eu já tinha pensado...

Juliana Ribeiro
- É início da decada de noventa...o Face of Gods?

Lisy Salum
- É...altares...foi antes dessa exposição.

Juliana Ribeiro
- Foi noventa...

Lisy Salum
- Eu acho...foi isso, porque eu já tinha me atentado pra isso e eu lembro que quando eu
fui atrás eu acho que é o Face of Gods.

Juliana Ribeiro
- Então, mas essa...O “Cosmologias e Altares” eles tiram do Face of Gods... o
cosmograma...

Lisy Salum
- Totalmente! Então, isso é importante porque é uma outra coisa que aí o Emanoel vai
incorporando em sua trajetória...

Juliana Ribeiro
- Isso...Isso...E o Robert Farris Thompson passa a ter uma relação muito importante com
o Brasil, ele é um estudioso da Universidade da Yale e que o grande estudioso da arte da
diáspora e ele é um grande especialista de arte iorubá. E que de fato, Lisy, você lê o
Cosmologias e Altares e você vê o Cosmograma Kongo que o Robert Farris Thompson...
Lisy Salum
- Ja tava trabalhando desde aquela que foi...

Juliana Ribeiro
- Exato, na década de 80...quase que reproduzido. E tem também um Cosmograma Iorubá.
Nessas publicações...muito bem lembrado, Lisy. E aí a gente tem outras exposições
durante a gestão do Emanoel Araujo que a gente poderia ficar aqui horas e horas falando...
mas a gente tem uma limitação de tempo...De novo em 1996 ele faz Bahia-Africa-Bahia:
Pierre Verger...É uma homenagem ao próprio Pierre Verger, que morre em 1996. Então,
ele faz uma em 92. Essa em 1996, são 75 fotografias de Verger. Em 1993, tem “Isso foi
Angola, isso é a África”. Essa exposição aconteceu depois no Museu Afro Brasil com
cartões postais e fotografias também do José Redinha. Vocês Lembram?303 - Uma em
1996, uma “Antologia da Fotografia Africana” - fotografias de Eustáquio Neves, uma
individual dele. Em 1997, uma do Rotimi Fani Kayodê que também tem obras no Museu
Afro Brasil...Alex Hirst também. [Em] 1998, “A África por Ela Mesma”, que eu não
consigo me lembrar dessa exposição...não consegui encontrar absolutamente nada. E
2001, Rubem Valentim “Artista da Luz”. Chama a atenção pra uma exposição que
aconteceu em 1997 do Sedou Keita, que veio da Fundação Cartier pela arte
contemporânea e em comemoração ao mês Internacional da Fotografia. O Emanoel o já
tinha feito então, uma exposição de antologia da fotografia do Keita e em 1997 traz essa
individual do Sedou Keita. Pra quem não sabe, o Mali tem uma tradição muito importante
de fotografia com obras bem relevantes. E a sua Bienal, a bienal de Bamako de fotografia
é ainda hoje uma das mais importantes no tema.

Sandra Salles-
- Essa de 1996 você tem mais informações, porque eu achei que essa tivesse sido do
Sedou Keita

303
Essa pergunta foi direcionada aos funcionários do Museu Afro Brasil presentes na plateia, eu mesmo,
um veterano de 11 anos de casa, Sandra Salles, veterana de 6 anos, Beatriz Yoshito, veterana de 5 anos,
Andrea Andira, veterana de 4 e o ex-funcionário Alexandre Araujo Bispo que trabalhou por 3 anos no
Museu de 2005 a 2007. A exposição a qual Juliana se refere foi chamada “África em Cartões Postais” que,
ao durar só dois meses, foi uma das 27 exposições do cansativo e prolífico ano de 2011.
Juliana Ribeiro

- Não. É...Sandra, exite um catálogo imenso, até..Se você quiser eu até te empresto, eu
tenho esse catálogo. É uma antologia que reúne diferentes fotógrafos, não só do... Mali,
também tem mais a do Sedou Keita é uma individual. E aí, gente, de novo, eu saio um
pouco da Pinacoteca, mas eu acho que é fundamental também pra gente entender essa
trajetória, enquanto diretor. Emanoel, ele é curador do módulo “Negro de Corpo e Alma”.
Apesar da grande relevância que essa exposição teve, eu não acho que foi a exposição
definidora do que foi o projeto do Museu Afro Brasil. Eu acho que o “Para Nunca
Esquecer: negras memórias, memórias de negros” foi uma exposição sinteses, para no
ano seguinte abrir o Museu Afro Brasil. Eu acho que o Museu Afro Brasil tem todos
elementos diretos dessa exposição que eu vou falar a seguir, mas é claro que “Negro de
Corpo e Alma” é a grande exposição da chamada “arte africana e afro-brasileira” que
atrai um público inimaginável. Ocupa também o prédio que viria a ser do Museu Afro
Brasil, né? Se eu não me engano...foi lá o módulo...Negro de Corpo e Alma, não foi? E,
paralelamente a Lisy estava, junto com Kabengele Munanga e outros curadores fazendo o
módulo de arte afro-brasileira

Lisy Salum
- Esse módulo surgiu muito depois, na verdade.

Juliana Ribeiro
- É... sim.....

Lisy Salum
- Tanto que nós mudamos a curadoria...

Juliana Ribeiro
- Exatamente.

Lisy Salum
- Eu ia falar isso a semana passada, nós tivemos de mudar o projeto de curadoria do
módulo arte afro-brasileira porque este aqui [“Negro de Corpo e Alma”] surgiu depois de
três anos de trabalho da primeira equipe, nós éramos só 14 curadores, ela virou uma
equipe enorme, de repente entre 1999/2000, dezembro pra janeiro. Pra poder inaugurar,
mas quem tava trabalhando antes éramos nós. E, Emanoel Araujo tava com o Frederico,
trabalhando arte popular.

Juliana Ribeiro
- Frederico Pernambucano

Lisy Salum
- É, com o Frederico Pernambucano, da Fundação....

Juliana Ribeiro
- Joaquim Nabuco

Lisy Salum
- É, Joaquim Nabuco. E, então, o que que a gente teve de fazer? Era começo de janeiro,
fevereiro, assim, tivemos de mudar tudo. Porque, toda a pesquisa que tínhamos feito e era
isso que pretendíamos pegar todas as modalidades possíveis toda essa pesquisa entrou pra
esse módulo...

Juliana Ribeiro
- Tanto é gente, que...

Lisy Salum
- Inclusive seleção de obras...

Juliana Ribeiro
- Isso! É isso que eu ia falar.
Lisy Salum
- Ficava catando lá nas reserva... (risos)

Juliana Ribeiro
- Você percebe esse conflito...

Lisy Salum
- Quer dizer, eu não quero com isso desmerecer absolutamente. O Emanoel já tinha uma
prática de curadoria e já conhecia muito melhor as coleções do que eu.... Eu tava me
iniciando naquilo, mas sem dúvida algumas peças que nós escolhemos pra expor, elas que
eram completamente inéditas. Inclusive uma que foi carro chefe um ex-voto de cabecinha
virada fui eu que achei lá no depósito.

Juliana Ribeiro
- Que saiu no módulo...nem saiu no módulo “Negro de Corpo e Alma” saiu no módulo
“Arte Populares”

Lisy Salum
- Saiu no módulo “Negro de Corpo e Alma”

Juliana Ribeiro
- Não.

Lisy Salum
- Tava no setor deles...

Juliana Ribeiro
- Não.

Lisy Salum
- Saiu no arte popular?
Juliana Ribeiro
- Arte popular! Eu tenho certeza porque eu já trabalhei com esse ex-voto...E isso é um
dado interessante que a Lisy tá falando, por que? O que que você percebe nessa Mostra
do Redescobrimento? Você tem, por exemplo, Agnaldo Manoel dos Santos no Módulo de
Arte Popular, você tem Agnaldo Manoel dos Santos no Módulo Arte Afro-Brasileira,
você tem Agnaldo Manoel dos Santos no “Negro de Corpo e Alma”. E outras obras
também...né? Isso mostra não só uma questão de conflito, né...de escolha...Mas a
dificuldade que é você localizar alguns tipos de produções e de artistas...elas transitam...
podem fazer esse trânsito...ou que esse trânsito é feito por “n” motivos, mas que de certa
forma completa essas produções. Esse conflito, ele fica muito evidente se você compara
os dois catálogos, porque você olha a “Arte Afro-Brasileira”, o Módulo que...a Lisy foi
uma das curadoras...Traz uma coleção extraordinária de arte africana. No módulo de Arte
Afro Brasileira, né? Que vem do Museu de Tervuren, vem da Sociedade de Geografia de
Lisboa. Obras que nunca tinham saído... então, pro Brasil é inimaginável...né? E aí você
percebe, “opaa...tem alguma coisa acontecendo”, mas não se sabe bem o que que é...mas
eu acho que tem algumas questões...não acho que há necessariamente um conflito em
termos de concepção. Não vejo tanto de concepção... mas, eu digo em relação a arte
afro-brasileira...não acho que tem uma grande discordância nesse momento, pelo menos
tão grande. Mas de curadoria, claro. Mas tem esse jogo de ter arte africana no módulo
“Negro de Corpo e Alma” e tem arte africana, essa coleção preciosíssima no módulo de
“Arte Afro-Brasileira”.

Alexandre Araujo Bispo


- Juliana!

Juliana Ribeiro
- Oi?

Alexandre Araujo Bispo


- Só um comentário. Elas estão em prédios também diferentes porque o Módulo Arte
Afro-Brasileira tava na Bienal e ele convivia [Alexandre faz um sinal de que não precisa
do microfone]

Juliana Ribeiro
- É porque tá gravando...

Alexandre Araujo Bispo


- ele convivia porque eu trabalhei na “Mostra do Redescobrimento” e daí quando a gente
ia montar os roteiros, você tinha o séc. XIX embaixo, você tinha o “Olhar Distante”, tinha
a “Arte do Inconsciente” no mesmo prédio que você chegava...

Lisy Salum
- Lá em cima. Arte do Inconsciente precedia o último módulo que a Arte Afro-Brasileira.

Alexandre Araujo Bispo


- Exatamente. Então você tinha ali o século xx.... Um negócio muito híbrido. Também,
tudo era muito hibrido. Então foi legal você apontar aqui o Agostinho [Agnaldo] Manoel
dos Santos, tava distribuído entre prédios. E por outro lado, a Arte Afro-Brasileira tava no
último andar do ponto de vista da organização daquele espaço, né?

Lisy Salum
- Que a gente não conseguiu...tinha gente que não ia...não aguantava ir lá...

Juliana Ribeiro
- Subi aquilo tudo...

Alexandre Araujo Bispo


- E tinha gente que tava muito impactada...porque eu fiz muitos roteiros trabalhando lá
dentro. Tinha gente que tava muito impactada com algumas coisas que viam como por
exemplo, aquelas figuras de nkissis do Congo cheios de pregos em cima, pra algumas
pessoas, inclusive pros vários colegas que trabalhavam e tinham de fazer roteiros...Aquilo
tudo era muito nebuloso também. Era um mundo muito novo...

Juliana Ribeiro
- É, porque depois, né, Ale? Essas obras aparecem com uma força muito grande só
em2003, 2004 no Brasil. Com a mostra de Berlim, do Museu Etnológico de Berlim.

Alexandre Araujo Bispo


- É. do CCBB [Centro Cultural do Banco do Brasil], não é?

Lisy Salum

Juliana Ribeiro
- Porque até então, aonde que você ia ter contato com isso? Qual acervo brasileiro.

Lisy Salum
- Não tinha internete...A gente não tinha acesso aos livros. Lembra como é que era? Aos
catálogos...

Juliana Ribeiro
- Exato. Então, assim, né? Era um...E de coleções preciosíssimas... que eu não sei se as
pessoas se deram conta nesse momento. Eu acho que elas vieram num tempo errado.
Assim, no momento errado, porque, não consigo...

Alexandre Araujo Bispo


- Eu me lembro que no Museu Afro Brasil foi justamente você que passou a chamar
atenção dentro do Museu Afro Brasil como ele não tinha uma coleção super importante,
tinha uma coisa meio de aeroporto ali, né? Um maneirismo ali, cópias...tal...Mas uma
coleção muito importante era essa que tinha circulado...Anterior ao do CCBB, né?
Juliana Ribeiro
- Claro.

Alexandre Araujo Bispo


- E você falava: “a coleção do Museu Afro Brasil de arte africana propriamente dita ela
não é forte, assim. ”

Juliana Ribeiro
- Não

Alexandre Araujo Bispo


- Não tem um enorme...Até porque a gente não tem uma tradição imperialista

Juliana Ribeiro
- Claro... claro...

Alexandre Araujo Bispo


- Como teve Berlim, como teve Portugal...

Juliana Ribeiro
- E nem o dinheiro dos Americanos pra comprar, né? Que não saquearam diretamente,
mas tem muito dinheiro pra comprar, né?

- Então, voltando, eu trago aqui também alguns artistas representados na Mostra do


Redescobrimento, onde há então a recuperação também desses pintores negros, como
Estevam Silva, Emmmanuel Zamor, que quem resgata a figura dele é o MASP, numa
exposição da década de 80 se não me engano. Faz uma individual dele. E tem, eu trago
essa obra aqui, porque uma das vertentes de “Negro de Corpo e Alma” são essas imagens
perversas de propaganda, ou de representações muito pejorativas do negro que é uma
coleção preciosa do Emanoel que ele tem até hoje; que ele expôs algumas vezes no
Museu Afro Brasil em alguns momentos a gente teve problemas bastantes sérios assim da
exposição ser interpretada de maneira equivocada com problema de texto e que dava uma
margem muito ampla pra múltiplas interpretações do que o Museu estava de fato
querendo mostrar. Mas [aqui é] o primeiro momento que o Emanoel mostra essa coleção,
né? E aí sim, tem a exposição “Pra Nunca Esquecer: Negras Memórias, Memórias de
Negros” que em São Paulo ela acontece em 2003, mas ela acontece inicialmente no Rio
de Janeiro. Essa sim eu considero uma exposição síntese de todos esses anos anteriores e
que vira o grande projeto do Museu Afro Brasil. Pra quem não foi, essa exposição
aconteceu no prédio da FIESP era um espaço bastante pequeno em comparação à
quantidade de obras que o Emanoel Araujo...É quase um Museu Afro Brasil hoje. Aquela
exposição da FIESP. Porque o Museu Abre com mil e cem peças, num espaço imenso
que é o pavilhão do Museu Afro Brasil e essas, praticamente mil e cem peças estavam
nesse espaço da FIESP. Então, só que hoje o Museu tem hoje mais de sete mil peças. Mas
é onde eu acho que é a grande síntese do Emanoel e onde que ele encerra essa gestão aqui
na Pinacoteca. De novo essa fotografia do Adenor Gondim que é o carro chefe, que já
tinha sido na exposição da Pinacoteca no Parque em 1997. Vejam que os artistas eles se
repetem. Emanoel obviamente, vai sempre incorporando novas obras, mas há um
núcleo duro que dá sentido a esse discurso do Emanoel e que de certa forma permanece.
Eu particularmente não vejo grandes transformações ao longo do tempo, em termos de
curadoria, de discurso do Emanoel da concepção dele em relação à essas produções.

- E aí, gente, apesar de eu ter buscado ações anteriores. É inegável que foi o Emanoel
Araujo que fortalece essa presença desses artistas negros no acervo. Eu fiz um exercício,
né Pedro [Nery] , se isso tá atualizado...já não deve tá tanto...por que é muito difícil
atualizar essa questão de aquisição de obras, mas eu fiz uma busca das obras e comecei a
perceber quantas delas tinham sido adquiridas. E aí, gente, quando eu falei de aquisições
eu tô falando de diversas...ou como doação, ou doação do próprio Emanoel que ele doou
muita obra pra Pinacoteca, então vejam, Arthur Timótheo da Costa tem seis obras, quatro
foram adquiridas na gestão Emanoel Araujo. João Timótheo da Costa as duas existentes
foram da gestão. Estevam Silva também [seis obras]. Maria Lidia Magliani de seis, três
foram na gestão do Emanoel. Edival Ramosa, duas também. Octávio Araujo tem bastante
obras, de trinta e sete, nove foram adquiridas. Rubem Valentim, curiosamente, eu levei
um susto porque eu não imaginava que...Aí eu vi uma grande exposição em dois mil e...
quatorze? Impressionante, muito recente...assim, uma quantidade imensa de obras de
Rubem Valentim, então, das vinte oito obras, três...foram durante a gestão do Emanoel
Araujo e o Mestre Valentim, foi as duas obras que tem aqui.

Pedro Nery
- Ju, tem uma diferença...as três do Emanoel são altares. São esculturas. E as outras são
um conjunto. Um conjunto de serigrafias.

Juliana Ribeiro
- Mas, Pedro, essa de 2014 que é aquela série branca.

Pedro Nery
- Isso.

Juliana Ribeiro
- Então, mas tem mais...que foi recente...entendeu? Eu levei o maior susto, porque foram
muitas obras...não foram poucas, sabe? Bem interessante, eu até fiquei curiosa pra saber
como é que de repente essas obras...por que que se volta pra esse interesse... se a sala já
tinha saído, né? Quando sai a sala?

Pedro Nery
- Isso. Continua a sala, vem as brancas, mas as Serigrafias... são os Emblemas eles são
mesmo adquiridos [ininteligível “talvez mesmo”(?)] pra sala, mas houve uma exposição
deles na época do Marcelo [Araújo].

Juliana Ribeiro
- Então...acho que foi depois disso, então. É.
- E o período após a gestão Emanoel Araujo, tem a exposição de Aleijadinho e Mestre
Piranga [2002]. Essa de 2004 Itaylê Ogum de fotografias do Adenor Gondim. Isso eu
quero chamar atenção a Pinacoteca tem uma tradição muito forte de trazer... fotógrafos
negros.... Eu não sei se isso foi um projeto, era um projeto do curador de fotografias
daqui da Pinacoteca, mas algo que é notável. Independentemente de semana da
consciência negra, de mês de novembro. Tem uma presença bem marcante. E essa do
“Invoke Ogoun” [2004 que era] de fotografias de Jorge Luis Álvares Pupo, que é um
cubano.
- E aí, gente, eu quero chamar atenção pra uma exposição que aconteceu aqui em 2012,
apesar de não ser relacionada à arte afro-brasileira, é uma exposição de arte africana que
foi feita chamada “Gênese e Celebração” a partir de uma coleção particular que depois foi
incorporada pela UNICAMP em comodato.

Sandra Salles
Já foi embora.

Juliana Ribeiro
Já foi embora? Então ,ficou em comodato nesse período. Eu vi até o contrato, tá no
arquivo em 2011 e que foi uma exposição bastante complicada...Que eu acho que tem
uma questão muito séria. Não é porque é uma instituição muito importante como a
Pinacoteca abra espaço ou uma instituição como o MASP abre espaço pra receber que
pode receber de qualquer forma...que pode receber sem rigor...que pode receber sem uma
avaliação...Então, eu considero essa exposição, um grande desserviço, por que, primeiro o
lugar onde ela ocupou...acho que era aqui...um lugar que era completamente “vamu abri
um puxadinho pra colocá”. E o lugar aonde se escolhe uma exposição ela é reveladora de
muita coisa. Segundo vejam que ela foi uma espécie de caixotes...onde essas obras foram
colocadas...enfim, um espaço muito pequeno pra uma quantidade muito grande de obras.
Aparentemente poderia ser uma questão curatorial, mas não me pareceu que era isso. Era
mais uma questão de “vamos achar um espaço, temos que comemorar o mês da
consciência negra...oh, meu Deus! Vamos ver o que é que a gente faz!” E o mais grave.
Erros grotescos de classificação. Se a gente pega o catálogo e olha tem erros absurdos de
classificação dessas obras. Tudo bem, muito provavelmente essa exposição veio de fora..
já veio com.. Mas eu acho que as instituições elas têm um papel muito importante de
checar o que que está chegando...o que que ocupa o espaço. O catálogo hoje...outro dia eu
vi no facebook uma professora postando... “olha, os alunos...eu estou dando aula de arte
africana...os alunos estão lendo...” e eu “pelo amor de Deus, abandona esse catálogo!”
não dá pra esses alunos! Porque ele tá completamente equivocado, assim. É difícil uma
obra que tenha uma classificação correta. Então, isso demonstra o que, gente? Que em
2012 a gente ainda tá relegando uma importância muito inferior. A esse tipo de produção.
Seja a própria qualidade dessa produção que eu acho que dá pra gente ficar aqui
discutindo também...e olha que eu não sou uma pessoa relacionada a nenhum purismo de
achar que tem que ser uma obra autêntica...que isso...aquilo...Que nem é o caso aqui...que
a gente pode expor... mas a gente tem de ser honesto com aquilo que a gente tá expondo,
né? Então, na época eu até mandei um e-mail, não tive resposta, mas eu acho que a gente
tem que tomar cuidado. E falo mesmo da exposição que foi realizada recentemente pro
MASP de arte iorubá, que apesar da coleção ser muito diferente, que é uma coleção com
peças bastante importantes, inclusive publicadas pelo Robert Farris Thompson e que
participou de exposições importantes e que a qualidade das obras são até inquestionáveis,
mas o tratamento dado...então a questão que eu coloco é: “será que temos que aceitar
porque instituições importantes estão abrindo espaço pra arte africana ou arte
afro-brasileira, temos que aceitar qualquer coisa?” Então, vamos ficar homenageando os
nossos ancestrais iorubás sendo que tem erros grotescos de classificação e vamos fingir
que não estamos vendo tudo isso. Ou talvez não estamos vendo isso porque não temos
condição de ver...né? Então, eu acho que a gente tem que...

Lisy Salum
- Homenagear os curadores. Nominalmente esse senhor é um professor importante, já de
muitas décadas. E que tem um dos artigos pioneiros a partir da década de 50 sobre a arte
africana. Quer dizer, ele pelo menos...pelo o que a gente conhece...eu conheci o professor
Mário Barata só muito rapidamente, então, eu acho que a produção dele dentro do cânone
dos “africanismos” ou os seus estudos africanistas são muito mais consistentes que o do
doutor Roberto...é...

Juliana Ribeiro
- Cerqueira Leite.
Lisy Salum
- Cerqueira Leite. Mas o doutor Roberto Cerqueira Leite também é um historiador de arte
de peso, importante, tem uma tradição no desenvolvimento da história da arte. A única
coisa é que não é por isso que as instituições não devam também se amparar de outros
conhecedores...de uma literatura ou de outros que conhecem um assunto assim tão
específico e tão inusitado. Embora tardio, de aparecimento tardio, né? E tão importante.

Juliana Ribeiro
- E aí, a gente fecha, com a exposição “Territórios”, que eu não vou falar bastante, mas
que eu acho que é uma retomada fundamental do que a Pinacoteca quer pra ela. Isso é
louvável assim, eu acho que...inclusive em termos de aquisição de obra. Eu acho que
depois da gestão Emanoel Araujo, aonde a gente viu o crescimento bastante grande dessa
presença eu vejo uma atuação também do Tadeu Chiarelli, na aquisição de obras de
artistas e aí eu acho muito bacana ele tá trazendo obras de artistas jovens, não é? Apesar
de ter trazido também uma obra de Heitor dos Prazeres eu acho que tem que trazer
mesmo. A luta agora pra adquirir um Agnaldo... eu tenho falado com...imagina, teve uma
individual aqui tenho que adquirir um Agnaldo. E trazer essa discussão de novo. Eu acho
que foi uma exposição pra quem não viu, ela tava dividida em matrizes, mais
contemporâneas, matrizes europeias, matrizes africanas. Vejo muitos problemas nessa
divisão por matrizes, vejo principalmente problemas com relação a essa questão de
matrizes africanas. Tenho birra mesmo desse esvaziamento do que é africano, porque se
tudo é africano, nada é africano...né? E essa necessidade de relacionar rapidamente ícones
pra justificar uma presença. Acho que todos esses artistas aqui já estariam muito bem
justificados nessa exposição independentemente de matriz alguma, mas eu acho que o
grande ganho dessa exposição primeiro foi a reflexão que ela causou e trazer uma figura
muito conhecida na área da história da arte e crítica da arte, como o diretor Tadeu
Chiarelli. Então é uma figura já importante, mas que se coloca de uma outra forma. E traz
essa reflexão de fazer um seminário antes da abertura da exposição. Esse seminário foi
numa tarde que foi muito bacana, muito boa pra discutir...onde ele apresenta e houve um
debate muito interessante. E depois essa série de seminários, encontros e parcerias com o
pessoal da revista O Menelick [2o. Ato], que o Alexandre [Bispo] tá aqui muito bem
representando esse veículo que está fazendo muitas ações e os desdobramentos que são
esses encontros. Eu ainda acho que a gente tem de superar o mês de novembro. Acho que
é um caminho urgente a seguir. Tem muita coisa no mês de novembro, o resto do ano,
não se fala mais...né? De arte afro-brasileira, ou arte africana...acho que tem muita coisa
acontecendo então, acontece sempre e as pessoas ficam meio perdidas...e eu acho que a
gente precisa começar a levar essas discussões permanentemente. Tem que fazer parte da
pauta...dessas instituições. É mais ou menos isso que eu queria falar e quem quiser
complementar em alguma coisa eu agradeço. Obrigada.
Sessão de Perguntas

Renato Araújo
- Gostaria de Abrir pras perguntas, então. Temos ainda mais uns vinte e poucos
minutinhos ai pra conversar.

Sônia

- Juliana, você citou uma série de exposições que abriam e as datas me intrigaram. Você
citou 75, 77, 78, a gente tá vivendo aí, embora o regime militar, né? Como eu estudo mais
a ditadura, eu fiquei curiosa em saber como é que a ditadura e essas exposições parece
que desafiavam essa lógica, como é que a gente entende a relação da ditadura com essa
busca de uma identidade afro-brasileira se houve alguma...por que não antes...quer dizer,
a gente vê isso na questão de gênero, né? A ditadura não perseguiu só a esquerda
comunista, mas a comunidade trans, lgbt, enfim, se esse marcador político existia em
relação à arte e à cultura afro-brasileira.

Juliana Ribeiro

- Sônia, é o seguinte. Por incrível que pareça, o período da ditadura, principalmente na


década de 70 ela foi muito rica na reaproximação entre o Brasil e África. Eu posso te falar
que é claro que você tem um interesse econômico muito forte...nesse momento... de
estreitar as relações. Mas você tem...essa aproximação que se dá a partir da década de 70
ela se dá a partir da cultura, então, o que que eu vou te falar? A gente tem um
diplomata...enfim, não sei se ele era diplomata, o Gibson [Mário Gibson Alves Barbosa
(1918-2007)]. Enfim, do Ministério das relações exteriores. E ele faz uma viagem pra
vários países africanos. Ele vai pro Senegal, ele vai pra Costa do Marfim, se eu não me
engano ele vai pra Gana. Enfim, ele faz uma viagem justamente de estreitamento de
relações. Essa viagem dá muitos frutos. Três frutos, pelo menos, bastante conhecidos. Um
dele, por incrível que parece, a criação do Museu Afro Brasileiro de Salvador na Bahia, O
Museu vai ser aberto praticamente dez anos depois...estou falando da década de 74, se
não me engano, mas a assinatura da criação do Museu Afro Brasileiro se dá a partir...

Lisy Salum

- É 71. Não...que eles começam a formar acervo... Acho que é 71.

Juliana Ribeiro

- Eu acho que é um pouco depois, Lisy. Se eu não me engano é 73 ou 74...

Lisy Salum

- As réplicas do Museu de Tervuren, vieram em 71.

Juliana Ribeiro

- Mas já tinha assinado o Museu? Ou tá ligado ao Centro de...

Lisy Salum

- Pode ser pro CEAO [Centro de Estudos Afro-Orientais]

Juliana Ribeiro
- Porque em 59 você tem a criação do Centro de Estudos Afro-Orientais

Lisy Salum

- Que ele é fundado em 84

Juliana Ribeiro

- É...é..e na década de 70, essa figura do Ministério das Relações Exteriores vai pra
Salvador e assina a criação do Museu Afro-Brasileiro que vai abrir em 83....84...Então,
você tem aí quase 10 anos, provavelmente, de muitas questões que foram colocadas...

Lisy Salum

- É 82 ou 84?

Renato Araújo

- É 82. Acho que é 82.

Juliana Ribeiro

- É 82? Isso eu tô falando do início da década de 70...e a gente tá falando...isso...O MASP


recebe duas exposições nesse mesmo projeto, uma delas se dá em 73 que é uma
exposição da Costa do Marfim que tem mais de 500 obras do Museu de Abidjan. Toda
ela vinda a partir da relação Brasil-África e a partir dessa mesma figura do Gibson.

Renato Araújo

- E com direito à presença de autoridades do regime militar.


Juliana Ribeiro

- Exatamente, exatamente. Mais tarde você tem a exposição Arte Contemporânea do


Senegal. É claro que há um interesse muito grande de estreitar relações comerciais,
econômica e tal. Mas ela se dá muito fortemente pela via da cultura.

Renato Araújo

- Mais alguma pergunta?

Lisy Salum

- Eu queria, se der tempo...só falar uma coisa depois...

Ouvinte não identificado [ homem branco em torno dos 60 anos]

- Querida, foi um prazer imenso ouvir você. Houve coisas aqui que não consegui
acompanhar bem porque minha iniciação aqui ela é muito rasa, não é. Mas eu fiquei
intrigado com algumas coisas ditas aí por você. E você dizia da necessidade de
diferenciarmos o que é a África mesma do que é a afro-brasileiro, né? E pra quem não é
tão bem iniciado como vocês, como eu vejo pessoas aqui na plateia, como eu vejo você...
né? É algo muito complicado. Por que vocês não pensam na hipótese de um curso pra
explicar isso melhor? (risos) muito obrigado... Eu gostei muito mais eu fiquei muito a
nadar sem perceber coisas.

Juliana Ribeiro

- Claro, e olha, eu agradeço muito a sua fala, porque...é o seguinte. Essa não é uma
questão individual sua. Essa é uma questão nossa, dos brasileiros, porque infelizmente a
gente não teve formação...na escola... E muitas vezes, nem na Universidade. Se a gente
pensar na cadeira de África na História da USP é da década de 90 quem se formou antes
lá, viu a África daquela forma..., né? Então, assim, eu acho que existem cursos...eu não
sei se a coisa tá um pouco parada também por causa da crise das instituições, mas existem
cursos. Tem até um curso bastante interessante que é do Centro de Estudos Africanos da
USP. E que é aberto pro público, professores... Mas eu acho que você tem razão. A gente
tem um problema de falta de familiaridade mesmo, e é muito interessante, porque apesar
disso tudo tá tão próximo da gente, ao mesmo tempo tá tão distante, né? Em alguns
aspectos se a gente não vai tá se dedicando, se debruçando a isso, né? É uma proximidade
e ao mesmo tempo um estranhamento muito grande, né?

Mesmo ouvinte não identificado

- Você nos mostra um retrato do Emmanuel Zamor e diz assim: “por conta de título de
exposição, pintores negros do século XIX na Pinacoteca”, mas só de ver, na verdade a
imagem, a gente fica a se perguntar: “qual é a vinculação disso de fato...se é que eu tô
falando de uma coisa com cabimento, me desculpe...eu não tenho nenhum...

Juliana Ribeiro

- Não, imagina...

Mesmo ouvinte não identificado

- ...até que ponto pela imagem a pessoa tem na verdade uma vinculação com a ideia de
negro que nós temos hoje em dia. Não tem! É um dândi, um europeu...

Lisy Salum

- Exatamente!

Mesmo ouvinte não identificado


- E lindíssimo...eu não tô...por favor...não tô desprezando nada...

Juliana Ribeiro

- O Zamor ele foi criado na França, né? Ele foi adotado por uma família francesa... Mas e
você tem também, às vezes, autorretratos que esses artistas se colocam às vezes muito
mais italianos do que afrodescendentes...por muitas questões. Imagine o que que é você
encarar uma academia de belas artes. No séc. XIX, no Rio de Janeiro, sendo um pintor
negro...Tanto é, não é por acaso que muitos deles acabaram loucos...literalmente loucos,
né? Então, é um momento onde esses.... o Rafael Pinto Bandeira se suicida...Então você
imagina se hoje você tem...a gente tá aqui ainda...discutindo nesses encontros a
dificuldade da inserção dos artistas negros nos acervos nas instituições, você imagina isso
no séc. XIX, no séc. XX. Eduardo de Oliveira Oliveira estudou na USP, fez mestrado, foi
o primeiro aluno bolsista da Fundação Ford....morre de desgosto...em 1980. E era
professor da Universidade Federal de São Carlos. Então, a coisa é muito mais pesada do
que a gente... Mas eu adoro...adoro particularmente essa fotografia...

Alexandre Araujo Bispo

- E uma coisa importante sobre Emmanuel Zamor, o Emanoel Araujo dá uma entrevista
sobre como ele chega ao Emmanuel Zamor. Não sei se alguém aqui já teve a
oportunidade de ver...ele dá uma entrevista, assim, bastante bonita. Não sei se é um texto
dele ou se é uma entrevista de fato, mas tá num site chamado Vitruvius304, que é um site
da área de produção arquitetônica e tal... Então na época da exposição dos pintores negros
acho que há uns dois anos atrás... no Museu Afro Brasil...faz pouco tempo...

Juliana Ribeiro

- Não, acho que foi em 2008 ou 2009...

304
http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/09.100/107
Alexandre Araujo Bispo

- Ok. Nesse momento o Emanoel comenta...

Juliana Ribeiro

- Então eu acho que é 2006...

Sandra Salles

- Então você tá falando dos “Timótheos”.

Andrea Andira

- 2012

Alexandre Araujo Bispo

- Acho que é 2012! É mais recente...porque eu tava no Museu em 2006, por exemplo, e
2007. Ele fala como o antiquário [Rafael Kastoriano] compra a obra do Emmanuel Zamor,
no leilão, aparece uma série de obras e esse antiquário fica interessado na obra...E quando
vai fazer um levantamento...primeiro que ele compra o lote todo, né? Ninguém conhecia
quem era esse artista e quando ele vai fazer um levantamento a partir daquele lote ele
descobre que era esse cara... e avisa pro Emanoel Araujo...se eu não me engano...Avisa
que ele descobriu um pintor que ele acha que era negro, enfim, que vivia em Paris e até
esse momento que o Emanoel, que acho que não conhecia, o Emmanuel Zamor, só tinha
ouvido falar...descobre o Emnanuel Zamor pelo lote305. Eu queria falar sobre outra coisa,

305
Na realidade, esse primeiro contato do Emanoel Araujo com a obra do Zamor é mais antigo. Durante sua gestão na
Pinacoteca (1992-2002) certamente esse contato já havia sido feito. A primeira publicação que eu tenho notícias com
obras do Zamor ocorre em 1985, no mesmo ano em que suas obras são mostradas pela primeira vez no MASP, sob a
direção de Pietro Bo Bardi. Em seguida, duas publicações do crítico José Roberto Teixeira Leite “Dicionário Crítico de
Pintura no Brasil”, que saiu no Rio de Janeiro pela Arlivre em 1988 e “Pintores Negros dos Oitocentos”, que saiu em
São Paulo no mesmo ano pela Edições MWM-IFK certamente foram de conhecimento imediato do Emanoel. Além
disso, Zamor esteve presente desde pelo menos durante a exposição “Para Nunca Esquecer: negras memórias,
Juliana, se me permite. A colega comentou sobre a ditadura e a Juliana respondeu de uma
maneira muito precisa...Olhando para as exposições, olhando pras relações Brasil-África,
mas é importante a gente lembrar que a gente teve no governo Jânio, no início de 1960,
um embaixador negro, o Raimundo de Souza Dantas [1923-2002] que também vai fazer
intercâmbio com a África, mas vai ter enormes dificuldades...por ser negro, porque com o
início da ditadura, com a queda do Jânio Quadros ele vai ter momentos muito difíceis no
continente africano... eu não vou me lembrar em que país ele tava nesse momento306, mas
ele é um cara que vai escrever muita coisa do período dele africano...Há uma
documentação dele que infelizmente foi oferecida pro Museu Afro Brasil, que não foi
recebida e que tá na mão da família...um cara do ABC, né? Os descendentes deles estão
no ABC. E eu me lembrei de uma outra situação que é nesse momento em que a ditadura
tá agindo no Brasil, as lutas da comunidade negra, elas são vistas como não legitimas,
mesmo pela esquerda. Existe uma concepção mais em geral no Brasil que não existe
racismo. Portanto, se eu sou de um grupo de esquerda, se eu sou do Partido Comunista,
mas eu não tô demandando discussões em torno das relações raciais, isso não é bem
aceito nem pelos comunistas, porque eles não veem como a pauta o preconceito racial do
Brasil. Existe uma ideia de que de fato no Brasil existe uma democracia. Então, aquela
pauta não faz sentido... Acho importante demarcar também que ainda nos anos 70...Em
1978, a gente tem a fundação do Movimento Negro Unificado já com a resposta ao
processo de abertura do país que tava se desenhando...Então eu acho que a gente tem uma
cena aí muito rica que dá pra ver de variados ângulos, mas grandes intelectuais negros
estão se formando nesse momento...grandes feministas negras como a Lélia Gonzáles e
outras figuras como Beatriz Nascimento, por exemplo também tão emergindo. Nesse
momento

Juliana Ribeiro

- É a década de 70...

memórias de negros” com curadoria do Emanoel (2002). Obras suas constam neste catálogo na p.222. E, obviamente,
ele reaparece nos catálogos de exposições posteriores já no Museu Afro Brasil, “Um Conceito em Perspectiva”, 2006, p.
256; “Negros Pintores”, 2008, p. 12. Etc. N do E.
306
Em Gana. N. do E.
Alexandre Araujo Bispo

- Década de 70...

Lisy Salum

- Fim de 70...

Juliana Ribeiro

...junto com Eduardo de Oliveira Oliveira...A formação dele é em 1960 e a atuação


dele...muito forte... ele tá na USCAR trabalhando pra fundar um Instituto do Negro.

Lisy Salum

- Ele tá falando dos jovens. Esses que ele tá citando são todos jovens

Juliana Ribeiro

- Sim!

Lisy Salum
- E eles têm um caminho aí da entrada da multiplicação dos partidos.

Alexandre Araujo Bispo

- Justamente!

Lisy Salum
- Então, ao mesmo tempo em que o movimento negro surge, nesse momento, em 78, ele
também já tá assim inserido dentro dessa discussão do...Eram dois partidos... né? Então, e
aí você vê uma participação não só política que já havia desde a década de 60, mas que
era...eu acho que até...[ininteligível] essa participação que faz com que esses movimentos
negros ganhem visibilidade.

Alexandre Araujo Bispo

- (...) Especialmente a cidade de São Paulo, tem uma imprensa negra muito importante.
Quer dizer, no arrolamento daqueles jornais [ Mostrado em Slide, pela Juliana Ribeiro]
não estava presente o Menelick, por exemplo, que é o mais antigo de todos...A gente sabe
da atuação do José do Patrocínio, por exemplo. A gente sabe da atuação no séc. XIX do
Francisco de Paula Brito, primeiro editor do Machado de Assis e primeiro editor livre do
Brasil, não é? Quer dizer, e todo o problema do acesso à leitura...dentre os Malês, por
exemplo, que liam... né? Enquanto que esses senhores de Engenho não liam... Mas eu
acho que é importante no debate...na ditadura dentro do Brasil é que as lutas negras não
são legitimas...

Voz feminina não identificada

-Aos olhos dos militantes de esquerda

Alexandre Araujo Bispo

- ...não é legítima para usarmos uma militância de esquerda...E no debate de grupos


negros estarem articulados...Vocês imaginam que nos anos 50 o Roger Bastide está
escrevendo “Negros e Brancos em São Paulo” e ele traz exemplos de pessoas assim, de
casais de namorados...namorando no parque do Ibirapuera...isso nos anos 50
ainda...namorando no parque do Ibirapuera...a polícia chegar e prender...A polícia chegar
e prender um grupo de três pessoas negras...empregadas domésticas na av. Paulista que se
não fosse um dos moradores do prédio identificarem uma das empregadas a polícia
prendia...Então a gente tem uma cena ainda pouco discutida...eu acho que a Juliana
falou...bem de protagonismo. Um tema aí é que não há legitimidade nas mulheres negras
nas suas demandas, enquanto as brancas estão rasgando sutiã dizendo “queremos ir pro
mercado de trabalho”, as negras estão exauridas de trabalho e talvez queiram um sutiã.
No sentido de um desejo de um objeto, também. De uma espécie de uma compensação de
outros dramas da vida social. Então, era pra fazer um adendo, porque eu acho que a
discussão foi muito rica.

Renato Araújo

- Mais alguma questão? E aquela questão que você ia fazer?

Lisy Salum
- Ainda cabe? Eu também tenho...meio com dúvida...mas acho que faz sentido eu colocar
porque tem que haver com o histórico da coleção da Pinacoteca que é um dos pontos
centras aqui... Aquela tabela lá de aquisição que você mostrou...de antes...depois...com o
Emanoel e antes do Emanoel. Não! Na verdade, não. É o que tem hoje e o levantamento
do que ele trouxe, né? Pra Pinacoteca. Então, aí se a gente olhar isso...vocês estavam
olhando pro Rubem Valentim e eu tava olhando pro Octávio Araújo. Você vê o Octávio
Araújo que é um negro que tem um surrealismo...Surrealismo...não sei se ele é
classificado não... mas é uma pintura surrealista. Ali consta trinte e sete obras do passado
até hoje e nove durante a gestão do Emanoel, será se foram adquiridas outras depois?
Porque o número trinte e sete é um número forte. Por que ele foi escolhido pela
Pinacoteca tão distintamente assim?

Juliana Ribeiro

- Então, em 88 você tem a exposição dele, né? E aí...não sei se o Pedro sabe explicar
melhor, que era essa seção de gravura, né Pedro?... tinham espaços dedicados a...

Pedro Nery
- Bom, é... não sei se eu consigo explicar tudo...Mas eu acho assim, que também essa
tabela só não tá bem ilustrada, porque não tem o período em que foram adquiridas...quer
dizer... sem essa série de obras, eu posso dizer que as primeiras foram compradas pelo
Emanoel. E a partir daí houve uma continuidade do processo que ele instaurou. Acho que
nunca se parou...a gente teve uma retomada.... o processo nunca se interrompeu.

Juliana Ribeiro

- Mas você tem anteriormente do Octávio Araujo.

Pedro Nery

- Teve...teve, mas não é tanto assim. Tem uma diferença clara. Mas eu acho que há uma
continuidade. O Marcelo, ele continuou as aquisições. Tem outras obras inclusive que
não estão aí que eu sei...de artistas...que foram comprados pelo Emanoel e que talvez não
tenham entrado na exposição e talvez não estejam tão bem representados no acervo ...
Uma série de questões. O próprio Agnaldo a gente tem um comodato. A gente não tem o
trabalho. (risos) Mas existe uma peça em comodato. Mas eu acho o seguinte... Então, esse
caso de quantidade, é o mesmo caso do Rubem Valentim. Essa quantidade é de
gravuras...então, enfim, eu acho que...o do Rubem Valentim acho que é outro caso... Teve
uma sala reservada pra ele ficou por muito tempo exposta. Mas o do Octávio Araújo tem
um gabinete de gravura.

Juliana Ribeiro

- Gabinete de gravura... Exato!

Pedro Nery
- Teve uma série de exposições... Então ele vai entrar nesse hall, enfim, tem outros
artistas que a gente tem...

Juliana Ribeiro

- Eu tenho a impressão também que essas de gravura são bem mais fáceis, né Pedro?

Pedro Nery

- Exatamente! E outra coisa também que muita gente não sabe, mas a Pinacoteca tem esse
nome Pìna-co-teca307...mas eu posso dizer que 70% do acervo deve ser papel. E o Octávio
Araujo tem muito desenho também. Desenho um pouco também que não é bem um
desenho acabado....é meio de estudo....entra aí nesse bolo.

Juliana Ribeiro

- É o dilema se entraria isso no Centro de Documentação ou Acervo, né?

Pedro Nery

- É...enfim, esses desenhos têm...se a gente pegar o acervo, por exemplo, dos Bernadelli,
dos irmãos Bernadelli, que a gente tem aqui por causa do espólio...É um número que dá
600 peças...dessas 600 pra outras...quinhentas são desenhos...enfim...esboços...Só pra
esclarecer um pouco...

Lisy Salum

- Tá ótimo! Muito obrigada.

307
Do grego πινακοθήκη – pinacotheke, de “pina = pintura” e “teke- coleção”, como em biblioteca
(coleção de livros). Pinacoteca seria o local de “coleção de pinturas” na Acrópolis grega antiga. N. do E.
Voz feminina não identificada [mulher branca de 30 e poucos anos]

- Eu só quero falar uma coisa...Eu sou professora de história da faculdade de arquitetura e


eu estava conversando com os alunos a respeito de como a arquitetura neoclássica do séc.
XIX era excludente, enfim, e que pessoas frequentavam, então, essa arquitetura à la
francesa, “bellepoqueana”, enfim, e mostrando a questão dos trabalhadores, né? Porque
eu trabalho tanto lá quanto cá...né? Assim, né? Eu mostro o outro lado da moeda da
história. “Ah, professora, aonde ficava então, os pobres, tal...” E aí, nessa onda de século
XIX, a gente vai trabalhando lei do ventre livre, lei dos sexagenários, né? Que eu acho
que as pessoas...acho que até é uma piada dessa legislação, mas enfim, chegou então,
oficialmente, o 13 de maio de 1888. Então, eu era escrava e hoje eu sou livre. Eu, meu
corpo negro, minhas feições negras.... e tal...Fiquei discutindo com eles a questão de
trabalho, o que acontecia e o que não acontecia...e tal...Aí os meninos olharam pra mim e
disseram assim, foi até o Wesley: “Professora! Se eu tivesse nessa época, eu arrumaria
emprego?” Porque, tem a questão dos anúncios de jornais...pra arrumar emprego...e aí o
jornal que eu trouxe e que circulava pela cidade foi “boa aparência”. O que significava ter
boa aparência pra você arrumar emprego...tinha emprego de copeira, chofer, até de
jardineiro, enfim...nos casarões e palacetes...você podia ser uma empregada ali
dentro...tal...Aí eu olhei bem pra carinha dele (risos) e falei assim: “posso ser sincera,
Wesley? Não.” Porque é assim, ele tem a cor branca, mas o traço afrodescendente. E aí
eles ficaram olhando pra mim “E eu? E eu? E eu”... Fiquei assim na sala...A gente quer
saber...E são adultos já...Embora tenham alunos mais jovens como esse menino...Eu
falava assim: “você não, você não, você não, você não...”. E aí, sobrava assim, tipo, três
quatro pessoas e eu com uma ascendência árabe-cigana que também acho que (risos)
ficaria no exotismo...E, assim, tem a questão do 20 de novembro agora que foi a
consciência negra...eu trouxe uma pequena fala pra eles também, porque eu gosto muito
dessa questão do “porta a dentro” no nosso trabalho de arquitetura...E aí eu fiquei
pensando...Meu Deus! Como que a cultura...os traços dessa africanidades subsaariana...ali,
abaixo da África branca, ela está presente nos corpos, ela está presente nas feições...eu
me deparei olhando pro rosto daqueles alunos...E falei, meu Deus, como isso tudo é
muito bonito...Né, como que a gente carrega essa herança...E agora, você falando tudo
isso, eu vim acompanhar ela [Sônia] e fez se passar um filme na minha cabeça de quanto
isso é extremamente rico, de quanto isso é maravilhoso. Porque quando eu fiquei olhando
pro rosto dos meus alunos, eu falei, mas como isso é tão bonito, né? Esse hibridismo, mas
como essa africanidades está presente nos traços das pessoas...então eu queria te
parabenizar pelo seu trabalho.

Juliana Ribeiro

- Obrigada. É...essa questão do pós-abolição ela é muito complexa...né? No Museu Afro


Brasil a gente até...quando ia falar dos italianos, a gente até brincava, né? Parece uma
cena, uma peça de teatro, em que os escravos saem de cena e entra os italianos, né?
Dançando, enfim, como as novelas da Globo, né? Enfim, há um apagamento...

A mesma voz feminina

- Você conhece um livrinho do autor...eu não lembro o nome dele, mas... “Nem Tudo Era
Italiano”308

Juliana Ribeiro

- Isso é uma coisa inclusive de São Paulo, né? Quando eu cheguei em São Paulo... que eu
fiquei sabendo dessa coisa de Italiano, porque pra mim...ó...isso fora de São Paulo é
completamente irrelevante. Essa questão da presença italiana... Isso não tem a menor
importância pra quem é de algumas regiões de Minas...tal...Mas eu acho que você tocou
num ponto bem importante. Porque, você tem a abolição...né? É um marco muito
importante, só que muitas dessas pessoas continuaram muito ligadas à esses ex-senhores...
porque, tem uma questão de sobrevivência, tem uma questão de que muito dessas
relações se mantém... não é por acaso que isso se reflete hoje...agora... Essa coisa de tá
muito presente nos traços... devia ser muito rico, mas é justamente isso que você falou, né?

308
Carlos José Ferreira dos Santos. Nem tudo era italiano: São Paulo e pobreza 1890-1915 São Paulo: FAPESP, 1998.
N. do E.
A marca dos traços que faz a polícia saiba que é ou não suspeito... né? Que é aquela coisa
não declarada, mas que pra qualquer policial quem que ele pararia ou não...ele...né? são
questões...

A mesma voz feminina

- Muito sérias...

Juliana Ribeiro

- Muito sérias...E muito longe de serem resolvidas se é que vão ser em algum momento,
né?

Sabrina

- Você estava falando do poder ou da capacidade que esse olhar do Emanoel tem de
iluminar a obra de certos artistas.... Ou seja, de trazer à luz e alguns que acabam, enfim,
sendo esquecidos, acabam caindo no anonimato. E aí eu fiquei pensando também como
essa narrativa que o Emanoel vai construindo sobre o que é arte afro-brasileira vai se
tornando predominante. E o quão perigoso é isso também. E aí lembrando um pouco do
que a Lisy falou na semana passada, quando ela fala de alguns artistas que não querem
ser vistos como afro-brasileiros... eu acho que tem também um movimento pra escapar a
essa narrativa, sabe? a esse enquadramento que vai se tornando, enfim, de fato
predominante, né?... e um pouco que vai eliminando a possibilidade de múltiplas de ser
afro-brasileiro, né? Afinal o que é isso? Acho que coloca no início de sua fala também.

Juliana Ribeiro

- É Sabrina... Quando não existe um debate há sempre um perigo muito grande. Porque o
que que acontece? Quando se tem uma voz, muito marcante, e geralmente uma voz que é
considerada pioneira, uma voz de muita força. Porque tem uma circulação muito grande,
há até uma espécie de...qual que é a palavra que eu vou usar?... um “receio”, não é bem
essa palavra, mas eu vou usar...é uma espécie de “receio” de mexer em caixa de
marimbondo, sabe? E aí, o que que acontece? Você tem quase que um endeusamento das
figuras que eu acho que elas precisam ser desconstruídas. Porque só uma desconstrução
que permite outras possibilidades, outros olhares, outras maneiras de se colocar, né? Tem
artistas, e a Lisy não deu o nome... mas, que não queriam ser considerados...não queriam
entrar em exposição de arte afro-brasileira..., né? Será que hoje, qual é a escolha que se
tem quando [não] se é abençoado pelo Emanoel Araujo? Quem é que rompe, quem é que
tem condição de romper com isso, quando se participa de uma exposição de peso, como
uma Mostra do Redescobrimento, né? Ou quando vai...

Lisy Salum

- Que dá certo, né? Que dá certo....

Juliana Ribeiro

- Exato. Então, você vê que agora que a gente tá começando com pequenas ações. Mas se
você for pensar, mesmo aqui na pinacoteca, eu noto um pouco de constrangimento de
falar nesse tema, como se o tema tivesse dono. E isso é muito complicado. Então, assim,
até a exposição “Territórios”, foi o que? Uma homenagem ao Emanoel Araujo. Eu
entendo. Tá na Pinacoteca, o Emanoel foi diretor, fez uma gestão que essa presença foi
muito marcante...tal mas até que ponto essa exaltação não é quase que uma necessidade
de pedir uma benção para falar...uma certa autorização...Eu não sei se é isso, entende? Eu
nem conversei isso com o Tadeu ainda. Espero que eu tenha a oportunidade, mas, eu vejo
muito isso, vejo isso em “Histórias Mestiças” [Exposição do Instituto Tomie Ohtake] em
que há quase “olha...Então, vamos lá...ó...pedir uma autorização”

Sabrina

- Isso acaba implicando muito nos artistas, né?


Juliana Ribeiro

- Claro que é...

Sabrina

- Eles ficam limitados a um certo tema...às vezes eles não querem...

Juliana Ribeiro

- E não só Sabrina, sabe o que acontece? Quando Emanoel não quer, por “n” motivos
mais aquele, aquele artista vai pro limbo. Porque fica tão associado à figura desse curador
poderoso...Aquele que descobre de fato...ele tem um papel relevante nisso... Ninguém tá
aqui pra desprezar a importância dele...se a gente tá aqui hoje sentado...é porque a gente
tem uma história aí, né, que ele em algum momento começou. E não começa na Mão
Afro Brasileira, começa em 1981, se não me engano, no Museu de Arte da Bahia, né?
Que é uma exposição pouco falada. Mas você tem toda razão. Por que? Porque você
delimita ainda mais os espaços...de atuação e de se colocar...e eu vejo hoje um caminho
ainda mais complicado...de artistas que trilharam outro caminho, que não conseguiram
seu espaço e de repente tá todo mundo aí fazendo instalação de terreiro de
candomblé...trazendo temas...Eu fico perguntando mesmo: “pode ser um interesse real da
pessoa? Pode! ”. As pessoas mudam, as pessoas são livres, os artistas são livres pra criar,
pra se interessar, às vezes se conecta a outros artistas e vê que aquilo é relevante. Agora,
até que ponto também esses artistas negros não começam também um tipo de produção...

Sabrina
- E os problemas do...[inaudível]

Juliana Ribeiro
- Exato, exato! Que é isso que eu tô batendo aqui na tecla várias vezes e às vezes eu sou
má compreendida no que eu falo...mas tudo bem, porque também a gente não vai ser
nunca aceito por todo mundo, e nem quero. Mas eu acho que a gente precisa falar disso.
Entende Sabrina, a gente precisa falar. A gente precisa colocar isso em pauta. Porque é
saudável e é com isso que a gente vai dar um passo a frente. Enquanto a gente ficar
nesses encontros trocando gentilezas e achar que “ah, de repente um artista não participa
de uma exposição porque a obra dele é ruim, não é só porque ele é negro” a gente vai
começar a falar de tudo...de tudo isso...a gente precisa começar a expor essas questões.
Sabe? Porque é isso que você tá falando. Quais são as possibilidades hoje que um
artista negro tem de se definir como artista afro-brasileiro. Como é isso? Que espaço ele
tem? Que lugar que ele pode ocupar? Que demanda que existe e a minha preocupação é
sempre essa. E quando eu falei na semana passada que eu acho que é um debate muito
rico essa coisa de África. E ontem, por acaso, eu peguei um diálogo da Bibi Silva, quem
não conhece a Bibi Silva ela é uma curadora nigeriana...que tem um Centro...Ela é
diretora de um Centro de Arte Africana em Lagos. Hoje eu acho que é uma das curadoras
do continente africano mais atuantes. E ela agora tá fazendo uma curadoria de uma
exposição do El Anatsui na Holanda e ela colocou justamente isso, pra você ver que não é
mais uma questão pros africanos e sim pros europeus, nesse caso...Que ela coloca assim:
“ vieram me perguntar” – ela reproduz... da africanidades.. você viu?...da
africanidades....”Ah, aonde que tá a africanidade dele?” E ela responde assim...E onde
está a sua...

Lisy Salum
Europeidade...(risos)

Juliana Ribeiro

- É mais foi no sentido de demarcar que era um holandês que estava falando. Não
interessa! Isso não é relevante! Isso eu tô falando de uma perspectiva de uma
africana...entende? Não tô falando da perspectiva de uma brasileira, porque eu acho que a
gente tá num outro caminho. Vejo mesmo que a gente tá numa outra etapa...ou num outro
caminho... eu não sei se é uma etapa que a gente vai passar pra uma próxima, ou se é um
caminho que por “n” motivos tá escolhendo trilhar...mas pra ela, ela desprezou...E aí,
uma outra questão que ela coloca é...que o Anatsui faz obras monumentais e vieram
perguntar: “ai, o senso de comunidade...né? É quase uma obra coletiva...” Ela diz “Ô
minha filha, o El Anatsui é um homem muito rico, muito poderoso ele tem
assistente...você já ouviu falar em assistente de artista? É assistente! Ele paga...é
pago...esses assistentes todos são pagos...É trabalho...” Então, sabe Sabrina...essa coisa de
aí o senso de comunidade...Como eu brinco: “Menas...Menas...”(risos) Sabe, eu sempre
brinco...”Menos...” não é “Menos” é “menas...” porque, né? São questões que precisam
ser discutidas. Ninguém precisa concordar comigo, com você, mas a gente precisa
falar...a gente precisa debater. A gente precisa ter vozes discordantes...sempre...sempre...
Se não a gente não dá um passo adiante. Isso serve, retomando...ao próprio Emanoel.
Porque eu Sabrina, eu tive o privilégio de por “n” motivos discordar do Emanoel
trabalhando no Museu Afro Brasil, o que não significa que o Emanoel de fato, me acolhia
ou acatava alguma coisa que eu falava...porque as brigas fenomenais que eu tinha com ele,
no bom sentido, sobre o Agnaldo daí a pouco saia um catálogo que tava lá...”ah, porque o
Agnaldo...o inconsciente...baixou...nã nã nã..”.Agora, imagina alguém dizendo isso
falando da obra do Emanoel, de que ele não é protagonista ele não escolheu aquilo, foi o
inconsciente...imagina...

Renato Araújo

- Eu queria até aproveitar pra fazer uma pergunta em relação a isso. Você falou sobre o
tratamento dado pros artistas afro-brasileiros e pra arte africana nas instituições. Eu
queria fazer uma pergunta em relação à recepção dos artistas afro-brasileiros, né? E eu
gostaria de lembrar que você escreveu um artigo, infelizmente tá em inglês, numa revista
americana Critical Internventions309 sobre o Agnaldo e você comentava no seu artigo a
respeito dessa visão que foi histórica a respeito dele, né, o fato dele nunca ter ido pra
África no momento em que ele começou a fazer essas esculturas dele e tinham uma

309
Juliana Ribeiro Bevilacqua: “Beyond the Revealed Unconscious: Agnaldo Manoel dos Santos as the
Protagonist of his Own Art” (2015)
http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/19301944.2015.1111558?src=recsys&journalCode=rcin20 N. do E.
característica muito próximas às artes africanas e isso seria uma espécie de um atavismo
ou entre aspas uma espécie de um “espiritismo” ou um “inconsciente negro” ou um
“sangue negro” dele [que] estaria falando alto e ele conseguiu, sei lá, baixar um certo
“espírito africano” e ele conseguiu fazer as obras...Você não imagina que isso é [um tipo]
de recepção do artista, né? Você não acredita que isso apareceu em muitos outros artistas,
né? Por exemplo, a ideia do primitivismo, ou mesmo a concepção das diferenças entre a
arte popular e a arte dita erudita...Essas ideias todas não estão muito próximas...? Você
não acha que há uma proximidade muito grande nesse tipo de recepção? Além disso,
parece que o artista tem que ser negro pra ter esse tipo de interpretação, né? Parece que
nunca ninguém falou que um Parreras...

Juliana Ribeiro

- Um Flávio de Carvalho, por exemplo, que nunca frequentou as grandes


escolas...Ninguém interpreta que “Olha, é o inconsciente que...”

Alexandre Araujo Bispo

- Embora o Flávio de Carvalho use uma terminologia como essa, né? A ideia de um
inconsciente...

Juliana Ribeiro
- Mas ninguém fala do Flávio de Carvalho a partir dessa perspectiva... Muito menos em
2016...
Lisy Salum

- É.

Juliana Ribeiro
- Porque o que o Renato tá falando é importante...Você entender esse tipo de discurso na
década de 50, tem um contexto que você localiza... porque essa emergência dessa ideia do
primitivismo e tal...Agora, em 2016, é muito complicado... a gente continuar...Porque não
há nada mais racista do que você tirar o protagonismo de um artista negro. Quando você
explica uma produção pelo inconsciente, você tira qualquer possibilidade daquele artista
ter escolhido fazer aquilo. E outra coisa, eu tenho pedido e falei isso na “Conversa com
Objetos” do Instituto Goethe, que por acaso era uma obra do Agnaldo. Eu falei...eu acho
tão interessante o inconsciente...como ele é seletivo...porque ele só atua no artista negro
que não passou pela educação formal ...ele escolhe a dedo....ele escolhe a dedo...Eu não
tô dizendo com isso que essa herança africana e no caso do Agnaldo que conviveu, que
era do Candomblé, que estava na Bahia, onde esses temas e essa vivência no presente...eu
não tô desprezando isso na obra dele...mas de jeito nenhum! Não acho que nenhum artista
tá fora da sua sociedade, do seu entorno... mas você explicar, e ainda mais o Agnaldo,
onde eu consegui provar, pelo menos, com duas obras...porque é gritante a presença...uma
é uma máscara tchokwe, e a outra uma obra Fang,.. claramente...sem tirar nem por...pena
que eu não tenha aqui pra te mostrar... E você recusar a possibilidade daquele artista ter
estudado... pesquisado, só porque ele vem de uma origem humilde... é no mínimo...é no
mínimo...

Lisy Salum
- Aviltante!

Juliana Ribeiro
- É. Exato! E eu acho que até a arte popular, Renato, tá começando a rever. E esses
artistas...

Lisy Salum
- Sem dúvida! Pega o pessoal do Rio de Janeiro...

Juliana Ribeiro
- Do Museu, né?

Lisy Salum
- Museu de Arte Folclórica...Instituto de Pesquisa e Artes Populares...Folclóricas...Então,
eles têm outra noção das coisas...

Juliana Ribeiro
- E aí o que é que acontece, você pega os escritos da década de 50...desde a época que o
Agnaldo tava vivo...50, 60, 70, 80, 90, 2016....Tá falando da mesma
coisa...Agora...Porque que também fala a mesma coisa...Por que ninguém vai pra arquivo.
Vai pra Bienal! Eu fui pra Bienal eu olhei os arquivos do Agnaldo. Eu li as entrevistas
dele...Ele tem um Oxóssi recusado pelo pai de Santo porque usa espingarda e não arco e
flecha...e aí ele fala na entrevista: “Ora, você acha que Oxóssi hoje ia caçar com arco e
flecha tendo uma espingarda?” É o que eu falo: “a gente tá preso no arco e flecha, mas o
Agnaldo já tá na espingarda...ele já tá ó, tá avançando...” porque ele tá ali, ele tá ligado no
seu tempo... então, “você acha que Oxóssi ia caçar com arco e flecha?” Então, eu acho
que...são concepções muito sutis e muito perversas, justamente porque elas são sutis.
Agora, vai hoje o Emanoel ser interpretado qualquer escultura dele como inconsciente pra
ver. O que não quer dizer que eu esteja negando uma herança africana. Ou de uma
obrigação, no caso dele, com as religiões afro-brasileiras...uma coisa não tem nada a ver
com a outra...mas você falar que é “o Inconsciente Revelado”, um cara que conviveu com
Pierre Verger, que dava livro pra ele...com Mário Cravo que tava fazendo orixá nesse
mesmo período.. Levando pra Bienal figura de Omolu...com Jenner Augusto que tá
esculpindo um Oxê de Xangô e pede pro Agnaldo terminar porque ele não conseguiu.
Onde tá o protagonismo de um artista em que tudo é explicado pelo inconsciente?

Alexandre Araújo Bispo


É...interessante a pergunta que o Renato faz do ponto de vista das recepções...

Juliana Ribeiro
- Claro!

Alexandre Araújo Bispo


- O que que as épocas querem fazer...como elas querem ver.. Porque no final a Pinacoteca
hoje, não tem um Agnaldo, senão no esquema de comodato... Porque é cara um obra...por
exemplo...

Juliana Ribeiro
- Mas tem outras muito mais caras que adquirem...não é?

Alexandre Araújo Bispo


- Sim. Sem dúvida nenhuma... Mas é significativo também quando o Pedro [Nery] mostra,
também já sabia, que uma grande parte do acervo, mais de 50% é papel. que gente sabe
que no universo da arte não é o maior valor, o maior valor é a escultura...tá. Mas eu tô
pensando aqui também, que tipo de...que a revisão só [que] permite, né? Eu acho que
quando eu vejo essa seleção que você fez...quando eu entrei no site da Pinacoteca eu
fiquei muito deslumbrado pelo nível de organização, porque você conseguia capturar a
entrada de uma obra, quem doou em alguns casos...já nos anos 50, quem doou, que a
gente mal conhece...porque não era um figura importantíssima...tal... não é? Então, tem
uma coisa que você falou, que é justamente superimportante, que são os arquivos e a
possibilidade que a gente tem hoje de rever criticamente as coisas e conseguir explicitar a
maneira de ver de uma época, do ponto de vista da recepção o que a época quis ver, como
ela quis ver...não é?

Juliana Ribeiro
- E por que que se mantém?

Alexandre Araújo Bispo


- Daí o problema, né? Uma continuidade que eu acho que você tá fazendo uma crítica
muito bem...Porque há muitas descontinuidades, mas houve uma aposta...A minha
preocupação é um pouco porque quando eu tava no Museu já era uma
preocupação...Como o Emanoel vai reproduzir o seu discurso naquela instituição, não é?
Como ele com o seu tipo de mentalidade muito específico, o que que ele tá deixando de
escola...não é? Seja de escola pra reproduzir uma certa maneira de ver...que eu acho que
você mostrou muito bem...um pouco capturar a gênese das pinturas das paredes...que a
gente sabe que é muito marcante na obra [museográfica] do Emanoel, um negócio tão
marcante, que desmonta o esquema do “Cubo Branco”, tão importante pras
galerias...Muito importante...elas não seriam nada...se elas não tivessem as suas paredes
brancas, mas o Emanoel aposta...não é que elas não seriam nada...elas são a partir de um
discurso localizado na vida moderna....localizado na arquitetura moderna...e na forma de
exibir a arte moderna. Mas é muito legal pensar agora com essa provocação do Agnaldo
dos Santos que é como ver essas recepções em outros momentos, que a gente não tá com
estudos nesse nível, a gente não tá falando dessa maneira. Inclusive, eu acho que você tá
alertando pra isso, é o perigo também de uma forma...quase uma Chimamanda Adichie
falando dos “Perigos de uma Única História” 310
. A gente tendo uma história muito bem
continuada...muito bem sustentada em cultura material, em obra de arte...o Emanoel faz
isso tão bem e com tanta consistência, mas é muito difícil aceitar descontinuidades nesse
discurso tão firme, né. Que eu acho que você deixou aqui muito claro, né? Museu Afro
Brasil tem sua gênese.

Juliana Ribeiro
- É, exato.

Renato Araújo
- Bom, infelizmente, o nosso tempo tá mais do que esgotado. Mas gostaria de lembra-los
que nós continuaremos esses nossos encontros...pelo menos por mais uma última vez, na
semana que vem e essa próxima vez será lá na Estação, no mesmo horário as 15 horas, no
sábado que vem. Muito obrigado pela presença de todos...Obrigado Ju...

310
Imperdível: https://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story?language=pt-br N. do
R.
Comunicação final: Caminhos e descaminhos da arte afro-brasileira

Renato Araújo

Boa Tarde a todos, podemos começar? Bom, eu gostaria de iniciar os


trabalhos...pensando um pouquinho rapidamente, a respeito do que tratamos... esse é o
último dia hoje...a respeito do que tratamos nos últimos cinco sábados passados...Eu não
vou falar muito... eu gostaria de dar a palavra pros artistas o quanto antes...Mas pensando
um pouquinho quem não esteve aqui nos últimos quatro encontros nós tivemos, vamos
dizer assim, modéstia à parte a “coragem” de tratar desse tema que não é um tema
simples...absolutamente não é um tema simples. É um tema que na verdade é como se a
gente mexesse num vespeiro, né? Porque falar de arte afro-brasileira é falar de muitas
outras coisas além da arte...se a arte em si mesma já é um problema da gente tratar por
palavras, né? Tratar de arte afro-brasileira, então, o problema acho que é bastante
maior...Bom, nós tivemos essa coragem. Nós não tivemos o interesse de fechar o
assunto... Absolutamente não...É apenas sempre um começo...né? No primeiro e no
segundo encontro eu e o hélio nós dividimos a tarefa de falar um pouquinho a respeito
das questões teóricas envolvendo a arte afro-brasileira. No terceiro dia a professora Lisy
Salum juntamente com o professor Roberto Conduru trouxeram algumas ideias
convergentes, divergentes que sempre foram muito ricas pro desenvolvimento do
trabalho... da questão afro-brasileira atualmente...no quarto dia na semana passada a
Juliana Ribeiro tratou um pouquinho das exposições que tivemos aqui na Pinacoteca ao
longo de sua existência...né? Tratando especificamente dessa questão afro-brasileira. E
por fim hoje, infelizmente o último dia, mas no fundo, no fundo, terminando essa questão
na verdade é um início. Nós devíamos iniciar, na verdade por aqui, porque pouco importa,
entre aspas, o que foi dito antes, mas o que for dito a partir de hoje tem uma importância
maior. Por que? Porque eu acredito que não há arte afro-brasileira sem os artistas. (risos)
Uma coisa óbvia, mas também não há arte afro-brasileira sem o público, então,
gostaríamos de chamar os artistas aqui pra falar um pouquinho de suas obras. Um
pouquinho a respeito de suas noções de arte afro-brasileira que tiverem, se tiverem...né?
Ninguém é obrigado também... E o público que nós somos aqui...somos os entusiastas
dessa arte, independentemente dos qualificativos que ela possa ter...afro ou não...ou
qualquer outro. Então, primeiramente eu gostaria de chamar à mesa Janaína Barros.
Palmas pra ela! Eu não preparei nada, então, mas conheço a Janaina há algum tempo...Ela
é formada em artes pela....metodista?

Janaína
Unesp

Renato Araújo
Sim, mas na graduação foi a faculdade....Ah tá, a graduação e também o mestrado foi na
Unesp e agora...atualmente ela tá fazendo o doutorado na USP no programa de
pós-graduação em Estética e História da Arte no Interunidades. Estou correto? (risos) Ok!
Gostaria também de chamar à mesa o Rommulo Conceição que também...Interessante
que ele também é um baiúcho, como a minha sobrinha..(risos) né? Nascido na Bahia, mas
hoje residente no Rio Grande do Sul, já há uns 16 anos...Também formado em Artes e
também com mestrado em artes e tem também uns trabalhos em multimeios..bastante
interessante que os três artistas aqui têm trabalhos com vários backgrounds, vamos dizer
assim, então vai ser bastante interessante ouvi-los...a respeito do seus trabalhos. E, por
fim (risos), mas não menos importante, Tiago Gualberto, gostaria de chama-lo aqui pra
mesa. (risos) também formado estudou artes na Escola de Belas Artes em Minas Gerais e
também estudou moda aqui na USP-Leste e atualmente também faz parte do quadro da
pós-graduação...mestrando...em Estética e História da Arte pela ECA – Escola de
Comunicação e Artes. Ok?

Estando completa aqui a nossa mesa, eu gostaria de começar na verdade pelas mulheres,
né (risos) ladies first. Então, eu gostaria que você apresentasse a sua fala. Muito obrigado
pela presença de todos e gostaria de dizer que nós teremos mais ou menos uma meia hora
para cada um dos comunicadores. Vou controlar bastante o tempo porque eu sei que
nossa tendência muito natural de estender o tempo é comum e a gente gosta muito, mas
vamos ter que dar uma controlada. Tudo bem? Vamo lá!
A Comunicação de Janaína Barros311
(Auditório Pina_Estação: 03/12/2016)

Imagem de Vídeo pausada:


(“Entrevista com Janaína Barros”.
O Menelick 2º. Ato – Nabor Jr. 2013. 2’’:31’.
https://vimeo.com/80947194

- Boa tarde! Bom, eu gostaria de começar agradecendo aos pesquisadores Renato Araújo
e à Juliana Ribeiro pelo convite...E fico bastante feliz de dividir a mesa com artistas que
eu tenho acompanhado a produção. E, bom, antes de começar a falar, eu gostaria de
mostrar um material, uma performance, que se chama o “Cântico da Paixão de Cláudia” e
a partir daí eu vou falar mais sobre esse trabalho e um pouco de outras questões que eu
gostaria de trazer. Eu produzi também um texto e eu vou lendo esse texto, fazendo
algumas considerações.

(Exibição de vídeo-performance com Janaína Barros e Wagner Viana)

- Bom, essa performance aconteceu primeiramente dentro de um evento político-artístico


organizado pela empresa Cubo Preto, na figura da artista e pesquisadora Renata Felinto.
E a gente no caso, eu e o Wagner [Viana], a gente tem um trabalho que é colaborativo…

311
A comunicação de Janaína Barros foi bem profunda. Reflexões como o protagonismo do negro artista, em especial
da mulher negra artista destacada dentro do conceito de autoria e da associação de seu projeto poético, narrativas e
visualidades faz coro com as análises de Janaína em seus escritos sobre o tema. Ela retoma a noção de superação da
limitação social imposta aos negros artistas, a apresentação do corpo negro e com trabalhos críticos em relação à
manutenção das estruturas coloniais na percepção do negro. Minha interpretação é a de que a artista traça paralelos
entre os conflitos racialistas nos quais se exige o protagonismo negro com as teorias de emissão, função de linguagem e
referência, nas quais se exige um emissor e um receptor da linguagem: o ocorrido se presume pela divisa interrogativa:
“quem fala”, “de quem se fala”, “sobre quem se fala”?; pois, se o receptor não se torna também um emissor de
linguagens, isso sugeriria um impasse; a autoridade estaria numa busca continua pelo referencial negro enquanto
assunto, tema, emissor negro, enquanto sujeito de sua própria atividade histórica e o meio físico seria o campo por meio
do qual as linguagens artísticas (ou a mensagem) seriam transmitidas.
Então, além do meu trabalho pessoal eu tenho um trabalho também em parceria, e esse
registro acontece no “Instituto de Pesquisa e Memória dos Pretos Novos do Rio de
Janeiro”, na Gamboa, na zona portuária. E ali era um antigo cemitério até o séc. XVIII e
início do séc. XIX. E isso foi redescoberto recentemente, então, negros africanos quando
vinham pra cá eles ficavam nesse espaço, era um espaço de quarentena. Então essa
questão de “pretos novos” era justamente essa questão de não-escravizados. Aí, eu vou
trazer aqui um texto que foi escrito pelo Wagner eu vou fazer a citação aqui sobre esse
ato:

O ato performático “Cântico da Paixão de Cláudia” aborda sobre a necessidade de


reatualizar e redimensionar o lugar de desumanização de grupos hegemonizados.
Encontra narrativas que dignifiquem uma história individual e coletiva cheia de
estigmas.

Então, nesse sentido a gente retoma a história da Cláudia da Silva Ferreira312 e pensando
justamente nessa relação aí do genocídio. Pensando na história da escravidão e pensando
essa relação contemporânea. Então, é pensar justamente em tensionar essas histórias e
enfim, pensar nessa possibilidade de reesctritas. Então, eu começo o texto que eu produzi
aqui:

- Pensar o autor é referendar as suas histórias e suas possibilidades de reescritas. A minha


história localiza-se, enquanto artista, em consonância com outras visualidades que
retomam de certo modo, em suas perspectivas visuais uma interseccionalidade de raça,
gênero e classe. São muitos nomes, mas gostaria de citar alguns - fora os artistas aqui da
mesa, né? O Rommulo e o Tiago... Rosana Paulino, Renata Felinto, Priscila Rezende,
Olyvia Bynum, Gabi Guerra, Érica Malunguinho, Michelle Matiuzzi, Sônia Gomes, Lídia
Lisboa, Aline Motta, Wagner Leite Viana, Peter de Brito, Jaime Lauriano, Sidney Amaral,
Paulo Nazareth, Dalton Paula, Moisés Patrício, são muitos nomes...

312
Em 16 de Março de 2014, uma trabalhadora carioca, mulher negra, auxiliar de serviços gerais foi atingida no tórax
por uma bala perdida advinda da arma de um policial. Ao ser socorrida de forma desastrosa e desumana, ela foi
colocada na parte de trás de um camburão da polícia, mas a porta do camburão se abriu em movimento e ela acabou
caindo, sendo arrastada por 350 metros, chegando morta ao hospital:
https://www.youtube.com/watch?v=D2KL2q7kQNA N. do E.
Essas escritas formam-se a partir de uma série de camadas que envolvem o projeto
artístico onde nele encontram-se as motivações pra produzir uma determinada obra, como
também, as referências poéticas os repertórios ou as referências pessoais. Ao mesmo
tempo, é o que implica diretamente numa prática artística que se dá no ato de sistematizar
e informalizar uma obra. Seja na escolha dos seus itens técnicos, tangentes à essa
definição de materialidade e suportes que se adequam a determinado projeto poético.
Sejam essas escolhas que possam estabelecer diferentes articulações conceituais que
fundam o corpo de uma obra. E ainda, sem deixar de citar, os modos de legitimação de
uma visualidade e como acontece, a sua possibilidade de leitura, de fruição e de
circulação deles.

Vou passar adiante algumas questões como forma de delimitar certas considerações sobre
os “caminhos e descaminhos da arte afro-brasileira”, que é o tema dessa mesa. Então eu
elaborei algumas questões aqui.
-O que forma uma narrativa poética?
-Quais questões instigam e materializam uma produção visual?
-Por que é necessário destacar o papel da autoria, explicitando aspectos étnicos em
determinados atores sociais dentro da arte contemporânea brasileira?
- Qual relação é possível estabelecer entre autoria e autoridade?
- De que modo a autoria se articula na construção de epistemologias e metodologias na
produção visual?
- Quais referências estão presentes na constituição de repertório poéticos?
- Quais são os percursos metodológicos que acessam a minha visualidade.

Dessa maneira, o termo arte afro-brasileira encontra o seu aspecto formal e conceitual
numa multiplicidade de visualidades e narrativas que imprimem um território político
quando sinaliza e visibiliza a cor de pele de autores negros e autoras negras. Uma história
hegemônica e permeada de simetrias na história brasileira contemporânea.
Retomo o texto “Descolonizando o Conhecimento” da pesquisadora Grada Kilomba ao
tratar a cerca da população colonial em torno de uma história dita universal, objetiva,
neutra, racional, imparcial. Aqui se estabelece uma relação hierárquica e racializada
sobre aquele que é considerado o “outro” cultural. Deste é excluída a pertinência sobre
seu conhecimento e saberes onde são colocados numa condição de distanciamento e
deslegitimidade de sua ciência, tecnologia, filosofia, qualquer produção de conhecimento.
Delimita-se seus aspectos sociais apenas ao lugar da experiência, da subjetividade, da
pessoalidade, da emotividade e da parcialidade. A partir dessa construção sociocultural
que se funda na biologia, na história e na educação. A importante e referendada autoria
numa produção visual está na reafirmação de um determinado protagonismo, ao tomar
para si a responsabilidade sobre sua história e os modos possíveis de apresentação dessa.
Nesse sentido, essas narrativas perpassam de maneira implícita e explícita numa
interseccionalidade de raça, classe e gênero que demarcam o território político de
legitimidade ou autoridade – de quem fala, sobre quem fala.

O termo autoridade aparece no dicionário Caudas Aulete definido como: direito ao poder
ou prerrogativa de tomar decisões, dar ordens. Ou ainda, a pessoa que tem esse direito ou
poder. Assim, inevitavelmente, sobre a legitimidade de um autor negro, retomo a figura
da escritora mineira Carolina Maria de Jesus, que aborda em sua narrativa auto-biográfica
a presença do seu corpo negro, feminino, em meio a outros corpos negros estigmatizados
e subalternizados por uma narrativa hegemônica, que a impacta cotidianamente. Na obra
“Quarto de Despejo”, de 1960, numa das passagens do seu diário, a autora diz que “só é
possível saber o que é a dor da fome, quem passa por ela e sabe qual é a sua dor”. Logo,
só é possível falar com legitimidade aquele que protagoniza uma dada experiência.

-Então esse é um ponto de partida para que eu pense na minha “escrita”, enquanto artista
e os caminhos que formalizam o projeto poético. Vou colocar aqui alguns trabalhos...

[Apresentação de Fotografias de objetos de arte]


Vejo a minha experiência social atrelada a uma condição de imaginário cordial e perverso
sobre meu corpo de mulher negra, impresso uma série de tessituras confrontadas e
tencionadas no cotidiano com seus afetos e desafetos...Possíveis e impossíveis interações
sociais. Na mesma medida, alinhavadas com outros saberes, não considerados científicos,
que permearam a minha memória e as diferentes experiências cotidianas...são hiatos
temporais, são fragmentos de narrativas...tais como a avó paterna, alagoana benzedeira. A
bisavó materna, mineira benzedeira. O tataravô materno mineiro, também benzedeiro. Ou
ainda sobre esses saberes e o modo de aprendizagem a minha reminiscência do período
de minha infância. Lembro-me de minha mãe mostrando um tecido de algodão pequeno
poído e desgastado pelo tempo. Uma espécie de amostra de diferentes pontos de bordado
que tinham como finalidade ornamentar pano de uso para cozinha. Eu podia bordar
observando a minha mãe e com a minha prima me ensinando a fazer ponto cruz. Essa
relação com a manualidade, aparece também quando vi a minha avó materna mineira,
durante o período de férias escolares juntando retalhos de tecidos coloridos, compondo
por meio da técnica de costura e de tricô, colchas e tapetes...Interessa-me rever as
maneiras de produção de conhecimento e tecnologia que constituem a minha produção
como micronarrativas que não são perceptíveis na minha visualidade, mas que me
apresentam como epistemologias e metodologias na minha produção visual. No entanto, a
manualidade, aparece inserida numa história que a associa diretamente ao gênero
feminino. Mas revisitada numa reescrita que propõe estratégias conceituais e críticas
sobre representação e a noção de feminino no discurso visual. As imagens produzidas por
meio do desenho do objeto e da performance, parte de uma constelação de referências
mapeadas e coletadas em materiais relativos à ciência, à educação, à literatura. Onde a
constituição de um imaginário, carregado de estereótipos sobre o corpo negro é
fundamentado em teorias biológicas. As teorias criam hierarquias sobre valores estéticos,
culturais, morais e intelectuais. E, consequentemente, naturalizam desigualdades em
diferentes atores sociais não-brancos, visto como racializados numa história hegemônica.
No qual está em questão é o tensionamento a cerca de uma história de manutenção de
poder.

[Apresentação de fotografias de outros trabalhos]


- Então esse aqui é uma série...que essa questão do texto aparece aqui...a questão do texto
pra imagem. Aqui é uma série de 2010. Aí eu vou voltar, porque eu quero mostrar os
trabalhos iniciais aqui. Então, são umas séries aqui que têm essa questão do bordado, essa
questão da manualidade também… da ideia do livro, essa questão que tem um caráter
mais intimista também…, então a ideia dos objetos ligados mais ao espaço
doméstico...Vou só voltar...que eu queria mostrar...aqui.

Então, esse é um trabalho recente, feito também...é um trabalho colaborativo...[ruídos e


problemas no microfone] Não sei se fiz alguma coisa aqui errada (risos)...Acho que tudo
bem, né? Então, aqui é um trabalho chamado...é uma performance, é chamada “Novos
Ancestrais” é um trabalho colaborativo com os artistas visuais Cacheu Vitorino, Intolá,
Rincon Sapiência e Thiago El Ninho realizado no programa de imersão e laboratório
criativo chamado “Afrotranscendence”, que é organizado pela plataforma no Brasil da
curadora e diretora criativa Diane Lima. Então, a ação se elabora sobre as diferentes
formas de espiritualidade, através as experiências sociais de cada artista referendando a
memória coletiva, a individual, a ancestralidade, vida, morte e renascimento. Ao mesmo
tempo, aborda sobre a materialização de uma poética e a sua aproximação com diferentes
tecnologias. E também como conhecimento ele articula linguagens artísticas e confronta
diferentes corpos nos espaços. Então foi uma performance que misturou projeção de
vídeo, que é justamente a Cachéu aqui bordando...e são as roupas que estamos aqui
vestindo, eu e o Itolá e ao mesmo tempo essa relação com a música também. Que no
caso é o Rincon Sapiência e o Thiago El Ninho também, que eles aparecem logo aqui no
início.
Cartaz de chamada para a exposição:
“Sobre Arremedos e Territórios”
https://www.facebook.com/aparelhaluzia/

Então eu cito agora a exposição intitulada “Sobre Remendos, Afetos e Territórios” [2016],
que é uma exposição que ainda permanece lá no Aparelha Luzia e a curadoria é do
Wagner Leite Viana e da Érica Malunguinho. Aparelha Luzia é um espaço que fica na
Rua Apa, na região central, entre o Metro Marechal Theodoro e o Metrô Santa Cecília.
Então, esse lugar defini-se, de acordo com a gestora cultural, artista e pesquisadora Érica
Malunguinho, como um “Quilombo Urbano” e na sua carta de apresentação que se
encontra no facebook, que é datado do dia 27 de Março, ela coloca também como “um
espaço que se configura como um território de mediação, espaço de criação e lugar de
circulação”. E ainda, são as palavras dela É um território da paulicéia dos visiveis, lugar
de visíveis que no cotidiano estão a se expressar pelo risco de rua, de trabalho, de estudo,
do ativismo, da vida doméstica, da rua, da casa, do cárcere. São visíveis que vivos estão.
Visíveis negados. Invisibilizados enquanto produtores de saberes.

Então, na verdade, tem um caráter panorâmico, essa exposição... são trabalhos de


2010-2016, essa é uma imagem de uma foto-performance. Então, aqui é uma vista do
espaço. E os trabalhos vão integrando um pouco uma dinâmica do que é ali… uma casa.
Em meio a outras obras de outros artistas também. Então, o título da exposição parte das
considerações conceituais de um trabalho intitulado “Psicanálise do Cafuné”, que é um
trabalho de 2016, que apresenta como linguagem vidual, desenho, objeto e
foto-perfornmance. O título do projeto referenda-se ao título do ensaio “Psicanálise do
Cafuné: estudo sobre sociologia estética brasileira” de 1941, do sociólogo Roger Bastide.
Então, essa citação é retomada nessa pesquisa [problemas com o microfone...] acho que
eu mexi em algum cabo aqui, né? (risos). Então, essa citação é retomada nessa pesquisa
visual como micronarrativas e macronarrativas de uma história colonial que determina os
lugares sociais, invisibilizados... Racializa apenas negros, indígenas e que se encontram,
fundamentalmente, relacionados à chave da afetividade ou cordialidade, no qual se
localiza as relações de poder. Então essa série aqui, são uma série de desenhos, são uma
sequência de seis desenhos e esses desenhos vão ter uma referência...são justamente os
mapeamentos de imagens que eu vou coletando..Então, alguns são livros que vão trazer
essa relação de caráter aproximado com ciência, a Biblia Vulgata313, enfim, a questão
também com a religiosidade...e que aí, pra se pensar justamente como se dá essa
construções também de um projeto, como o caso...quando a gente pensa Santo Antônio e
que tenta [mostrar] a história colonial...deixa eu mostrar o trabalho...Eu vou mostrar os
desenhos, são seis desenhos, e essa relação com a Bíblia Vulgata. Então, essa relação
também com os materiais que eu vou buscar aqui nos livros de ciência e que também essa
relação com as plantas...pensando essa ideia dos saberes, então, quais são as funções
dessas plantas dentro de determinados cultos. Então, pensando essa ideia
da...como...enfim, os nomes científicos também...que eu vou colocando e jogando com os
nomes populares...

Eu vou só pular, porque eu queria mostrar...Então, aqui que é essa série...os objetos, estão
aqui...entram as camisolas. São três camisolas...essa aqui especificamente faz referência à
essa questão dos...eu chamo de “Psicanálise do Cafuné”, que ainda é o título da exposição
“Remendos, Afetos e Territórios”. E “banhos para o amor”. E que aí eu vou jogando com
os nomes que tão aqui...com os nomes científicos, com os nomes populares, na
escrita...Aqui é a visão geral, e aí eu não tenho uma imagem mais próxima, mas uma é
“Orações para o Amor” e que faz uma referência, por exemplo, a uma oração à Santo

313
Vulgata significa “popular”. Refere-se à tradução mais difundida da Bíblia. O antigo testamento, por exemplo, foi
escrito em grego. Quando recebeu sua tradução latina mais popularizada, feita por São Jerônimo, que viveu entre
(320-420 d.C.), se chamou “Vulgata” e acabou se tornando a versão canônica da Igreja Católica Apostólica Romana,
sendo posteriormente ratificada pelo Concílio de Trento (entre 1545 a 1563). N. do E.
Antônio e o Santo Antônio dentro dessa estrutura colonial, ele torna-se o santo
casamenteiro, mas a gente tá falando aqui de um projeto em que essa relação ligada à essa
imagem, tá muito ligada à uma ideia de expansão demográfica. Aí, quando a gente pensa
essa ideia da expansão demográfica a gente pode pensar a relação do matrimônio, mas
qual que é essa ideia justamente de “quem”, “sobre quem” que se fala essa ideia do
matrimônio, do casamento, como ideia de linhagem, a ideia de relação de poder, ou a sua
manutenção? E aí o outro é o “Livro Cor de Rosa”, que é justamente essa referência à
uma ideia de literatura como por exemplo, “Jéssica”, “Sabrina”314, que cria todo um
imaginário também sobre a criatividade, sobre o feminino. E aí eu vou só retomar aqui o
texto...aí é como eu pensei aqui um pouco...essa relação com a citação desse nome
“Psicanálise do Cafuné”... que vai buscar justamente aqui, quando eu penso no título
do...pensando Roger Bastide, essa relação entre escravizados que trabalhavam na Casa
Grande e senhores e senhoras de engenho no jogo entre um pretenso afeto e a
perversidade do cotidiano colonial. Então, é pensar aí essas relações entre o passado e o
presente. Então, é necessário olhar o passado pra gente construir o presente. Então, o
termo cafuné, de acordo com a pesquisa: “Falares Africanos: um vocabulário
afro-brasileiro” da Ieda Pessoa de Castro, é uma palavra de origem Banto, que se refere
ao ato de coçar de leve a cabeça de alguém, dando estalidos com as unhas para provocar
sono. É a palavra “cafuna”. Aí essa questão do verbo, “cafunar” do Quicongo, [vem] do
“cafanili”, “cafa”, ação de bater e estalar com os dedos. Que é um pouco o que o Roger
Bastide vai trazer isso que é um pouco essa...é da onde essa referência que eu parto pra
justamente pensar minha poética.

“O título em consonância com a imagem e a materialidade tece formas simbólicas sobre


reescritas e modos de contar histórias, como células de discursos visuais que dialogam
com diferentes linguagens artisticas para refletir o presente sem se distanciar do passado.

314
Sabrina, Júlia, Bianca... são livros de uma coleção de romances populares “para mulheres”
lançados a partir de 1977 e que fizeram muito sucesso com várias gerações de meninas
adolescentes até os anos noventa – um tipo de literatura popular com enredos adocicados,
sedutores e com final feliz, geralmente associado ao casamento com um homem, rico, bonito e
gentil. N. do E.
São narrativas políticas e estéticas junto com o tornado possível, dignificado, legitimado
em suas falas em trânsito constante”.

Então esses trabalhos, enfim, eu entendo como um projeto que envolve essas imagens que
eu estou mostrado agora, que é uma série fotográfica que ela acontece lá na Cachoeira do
Batuque lá em Minas Gerais, em Airuoca. E é num lugar...pra mim a ideia das
performances, a ideia do lugar também entra assim, como título. O título vai criando
algumas narrativas também. Ele vai somando as narrativas da imagem. E ele cria também
um texto paralelo…, mas um texto também amalgamado. E aí, nesse caso aqui, esse
espaço é aonde acontecia casamentos de escravisados e libertos. É uma região que não é
de tão fácil acesso....assim, né? E aí, é um pouco pensar essa relação primeiramente que
eu tinha com a pintura, então, antes de começar produzir objetos e bordar, eu pintava. E
pra mim, eu vejo que essa relação de cores, e aí também essa questão das estampas, elas
vão ganhando sentido, vão dando forma. E aqui, também, pra mim essa relação pictórica
também aparece com esse meu corpo nesse espaço. E o próprio sentido que o lugar
também traz. Aí eu vou só voltar porque eu mostrei rapidamente outro trabalho...E aí eu
já tô indo já pra finalização...

Pra mim é um pouco...entra essa questão da...Eu mostrei inicialmente a performance que
eu fiz juntamente com o Wagner Leite Viana, que é essa relação da Performance, esse
corpo no espaço é uma maneira tmabém de pensar esse corpo quando eu penso o bordado,
quando eu penso o objeto com avental, que é um corpo que não tá ali presente, mas é um
corpo que tá sendo falado... Mas essa relação também com esse diálogo dos corpos nesse
processo de tensão. E como se dá justamente essa minha construção de mulher negra,
dentro dessa história. Então, aqui é uma foto-performance, essa aqui acontece em São
Paulo, em Pirapora do Bom Jesus. Aqui é uma sequência...vou só mostrar aqui...é uma
série que eu dei o título “Eu que sou Exótica”, então, a Carolina Maria de Jesus pra mim
também é uma referência. “Recortaria um Pedaço do Céu pra Fazer um Vestido”, que é
uma citação a um texto dela, dentro do “O Quarto de Despejo”....ou ainda “O Jogo das
Probabilidades”. E aí eu retomo o termo “exotica”, nesse sentido desse estereótipo que é
criado dentro desse imaginário. Me interessa muito pensar essa ideia de imaginário. E é
um imaginário sobre o negro, então, é um pouco esse lugar em que eu me encontro. E
essa performance ela acontece num lugar que é estremamente assim, inóspito, enfim, é
um espaço...é uma areia...uma terra branca, enfim, e já modificada também, por conta da
intervenção humana...e é um pouco esse jogo que eu penso aqui...Cada objeto que é
encapsulado...é um pouco pensar como células de ação, então, essas células podem ser
montadas de diferentes maneiras, mas elas também indicam um jogo das imagens.
Eu...seria eu aqui...com uma boneca preta. Então é essa sequência de imagens...

Então, só pra finalizar mesmo...Esse texto foi um pouco pra tentar organizar meu
pensamento também... trazer algumas coisas que eu penso...nesse lugar como artista,
como eu me vejo dentro desse cenário...Como a gente pensa essa relação dessa arte
afro-brasileira...E aí a gente pensar essas diferentes vozes... esses diferentes
caminhos...esses diferentes caminhos...essas diferentes leituras...essas produções...E ao
mesmo tempo, né? Esse espaço, esse cenário, é ao mesmo tempo pensar na minha
micronarrativa e que ela perpassa uma história que não é uma memória apenas individual,
mas que de repente ela entrelaça com uma história também. E que essa história ela me
coloca no cotidiano, enfim, acho que é um pouco pensar em todas essas tensões e todas
essas questões que eu vejo, quando a gente pensa nessa ideia de descolonizar o
conhecimento, de repensar os curriculos, de repensar a história, né? Aquilo que a gente
aprende, como que a gente olha...né? Então é a própria ideia do que é o saber, o que é de
repente pensar uma arte feminina quando eu escolho o bordado...ou o que é de repente
pensar ser negra...Então eu acho que é pensar todas essas relações pra mim no campo da
política, é um pouco isso o que eu gostaria de dizer e agradecer a atenção de vocês.
Obrigada.

Renato Araújo

Muito Obrigado, Janaína, pela sua exposição. Eu gostaria de propor que nós
chamássemos os outros artistas para que no final a gente pudesse fazer as perguntas pra
poder organizar bastante o tempo aqui, tudo bem? Então, eu gostaria de chamar à mesa
Rommulo conceição pra fazer a sua exposição.

A Comunicação de Rommulo Conceição


(Auditório Pina_Estação: 03/12/2016)

Foto: Omar Freitas / Agencia RBS (2015)

Primeiro eu gostaria de agradecer a todo mundo...principalmente à mesa, enfim.... os


organizadores...eu acho à Pinacoteca, à toda estrutura...aos artistas...a vocês
também...Juliana… a gente troca muita coisa...Enfim...eu vou tentar ser breve, mas eu
não vou conseguir...então...(risos) alguém faça alguma coisa...assim...(risos)...

Renato Araújo
Pode deixar essa parte comigo...(risos)

Rommulo conceição315

315
A exposição do Rommulo me deixou bastante empolagado, porque talvez, como ele disse, ele não quissesse falar
de sua história pessoal, mas como ele acabou falando, ela se demonstrou muito importante para o entendimento de suas
posições em relação ao problema da definição do termo “afro-brasileiro”. Em primeiro lugar porque, quando ele chama
a atenção sobre a origem de seu pai (que é negro) relacionada a um estupro, nós, enquanto brasileiros negros também
nos identificamos, mesmo que não possamos caracterizá-los em duas ou três gerações, já que pelo menos de cada “x”
números de “afro-brasileiros”, ou de “negros” ou de “mestiços” ou de “brancos” com ascendência negra conhecida ou
não, fomos frutos de estupros nos últimos 500 anos de história...e dentre muitos de nós (longe dos circuitos de arte,
porque muito próximos dos circuitos negros) que não só reconhecemos o estupro de tericeira geração, mas de segunda,
de primeira...Quais dentre nós negros periféricos não somos filhos da violência? Será que a arte chamada
“afro-brasileira” responde a esse tipo de gravidade? O que o Rommulo parece dizer é que não. Existem muito mais
coisas não referenciadas nessa terminologia que deixa esse terreno muito nebuloso. Sendo assim, sua crítica à
terminologia e à referenciação da “arte afro-brasileira” é muito digna de nota, sobretudo sua noção original ao
questionar de seu modo: “de que datação é esse negro de que se fala na arte afro-brasileira?” Percebemos que não
temos resposta a dar ao Rommulo, “Que arte afro-brasileira é essa?” Por isso, ele permanece totalmente com razão. E,
assim, os teóricos permanecem com um grande problema não resolvido em suas mãos...
É… Então, eu vou pedir desculpa pra vocês pelo seguinte...eu achava que eu ia conseguir
acessar o site aqui e a gente está com o problema da internet, então, resolvemos fazer o
seguinte, eu fui lá embaixo eu peguei algumas imagens que eu achava interessante pra
conseguir construir uma linha de discurso e a gente trazer pra cá e depois eu dou o site316
pra você, então...eu não vou conseguir ser breve, mas me ajudem. (risos)

Então, toda a vez que a gente pensa em arte afro-brasileira, né? Eu tenho essa dificuldade
assim, de pensar sobre isso de uma forma muito clara...não é muito claro pra mim
realmente, não é muito claro pra mim...E porque, quando a gente olha pro contexto
brasileiro e olha essa produção artistica afro...Eu tenho um problema também com a
palavra “afro-brasileiro”...eu gosto muito do “negro”...Eu gosto muito dessa palavra
“negro” eu vou tentar explicar porque, e a gente pode desdobrar isso, e tudo mais...

Eu acho que quando eu olho essa produção, a gente tem uma...eu tenho...eu Rommulo
tenho uma visão de que existe um lugar esperado por ela...Existe um lugar aonde ela
consegue proliferar e se expor e trabalhar...Eu tô olhando muito pra vocês [Janaína Barros
e Tiago Gualberto] também por que acho que a gente vai desdobrar muito essa
conversa...Mas tem uma coisa também que é um pouco esperada pelo público, esperado
pela instituição...Parece que é alguma coisa já esperada pela instituição. E aí a gente
podia também falar sobre isso... Então... e tem também essa outra coisa que é esse negro
fazendo arte...ele fica um pouco diluído...porque, bom eu tenho 48 anos, eu acho que o
negro que tem 48 anos não é o negro que tem 20 anos. Nem o negro que tem 25 anos ou o
negro que tem 30 anos no Brasil. E tem uma coisa que eu acho fantástica que foi uma
tentativa de resgate da autoestima negra...né? Isso aconteceu realmente, acho que ainda
falta muito pra acontecer...Mas eu sou de Salvador...Morei muito tempo em Salvador e eu
morei em Salvador numa época que era muito difícil ser negro. Embora, tinha antes em
torno de 80% da população [negra]… embora tenha tido entrada de bastante gente de
fora...Então, diluiu um pouco isso...mas era muito difícil ser negro numa cidade que tinha
80% de negros, onde, bom...o Hélio [Menezes] tá ali também, então… eu achava muito

316
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difícil morar nessa cidade...Então, eu não ia falar, mas eu acho que eu tenho de trazer um
pouco do meu histórico...né? Como pessoa...

- Então, eu sou filho de uma família meio maluca… meio estranha... porque, meus pais,
eles não são de Salvador, então, a minha mãe é de porto seguro, é de Trancoso...bom... Eu
conheci Trancoso antes de ser o “Trancoso” de hoje. E o “Trancoso” daquela época éra
um arraial... Eu tinha cinco anos de idade... Então era um quadrado... onde era uma
colônia... um vilarejo português... né? Então, você tinha os portugueses... o Brasil tem
500 anos, a gente tem uma história de 500 anos... Então, era um Domigues e um Vieira,
domingues com “s”, Vieira...né? nomes bastantes portugueses e “de Sá” é minha mãe.
Então, é isso ái. Já o meu pai era de uma região do recôncavo baiano, que é aonde você
tem um história da Bahia bastante interessante... aonde ocorrem as guerras, aonde
ocorrem as revoluções de independência da Bahia que a gente sabe que essas
independências desses Estados, na verdade, eles caracterizaram a independência do
Brasil... né? Houve a independência do Brasil, mas não houve a Independência... teve que
haver várias guerras, uma delas aconteceu na Bahia...etc... Então, nessa região do
recôncavo baiano, a minha avó é uma negra... filha de uma negra e de um índio... e o meu
avô é desconhecido...Então, na carteira de meu pai, que é um negro consta “pai
desconhecido”. Depois de muitos anos, né? Muito até, talvez... recentemente...a gente
descobre que o meu pai na realidade é filho de um estupro...né?... que vai acontecer...
então ele é o primeiro filho dessa situação... e é muito engraçado...então, o que que
acontece? E essa eu acho que é a coisa do Brasil que o Brasil não consegue ver… que é:
“que negro é esse que existe...que ainda...que em 48 anos que seja, a minha vida, ou
em...sei lá... meu pai deve ter vivido setenta e alguma coisa anos...e minha mãe vive
oitenta e dois anos... então, dentro de uma escala temporal de oito décadas, de nove
décadas, ou de sete décadas...Essa manifestação negra ainda se manifesta como resultado
de tudo isso que a gente sabe, né?...desse acervo cultural, da forma como o Brasil foi
construído, mas que ela ainda se manifesta nesse dia a dia que é muito no presente e que
dentro de algumas histórias essa resconstituição histórica ela é impossível. Ela é
absolutamente impossível porque ela quase que não há… E qualquer reconstituição
histórica realizada sobre isso leva a uma…afasta essa história…Na minha cabeça, o que
acontece? Falando como artista negro, né? Na medida em que eu endereço essas questões
eu acho que tudo é válido, tudo tem que ser feito. Mas pra mim, Rommulo produzindo
arte etc…Na medida em que eu me afasto de mim mesmo…eu me afasto do negro porque
eu não vou conseguir contar essa história…eu não vou conseguir olhar pra trás. Não
existe um passado histórico na minha família que possa ser contado por várias
situações…

- A minha família embora tenha sido construída assim, a minha mãe saiu de casa com
cinco anos, o meu pai saiu de casa com doze, eu saí de casa com quinze. Treze, quatorze
e quinze… tem uma briga e eu sou expulso de casa e a partir daí você vai construir
alguma coisa. Então, quer dizer, dentro de quarenta anos, de quase cinco décadas você
tem históricos que são repetidos de forma talvez traumática, talvez não tão dramáticas,
depende de como você vai viver sua vida… são traumáticas obviamente…Esse negro
brasileiro ele ainda tá exposto a tudo isso. Ele tem esse trabalho… enfim. Dentro desse
histórico, então, desse Rommulo que vai ser reconstruído em função dessas coisas todas
ele ganha uma característica totalmente agnóstica. Talvez até ateu, assim… De falta de
crença, de falta dessa crença que possa… Ontem eu tava falando sobre a palavra
“paróquia”. Essa palavra paróquia é muito interessante…as coisas “paroquiais”. Você
tem o conforto religioso… ele é muito interessante porque na realidade ele congrega essa
paróquia…né? Então, as relações que se dão…Eu moro no Rio Grande do Sul e eu vejo
isso, os luteranos…de uma forma fantástica. Fantástica não no sentido… eu não tô
querendo critérios de valor…se é bom ou se é ruim… não interessa isso aqui… Fantástico
porque eu acho que é estremamente forte. Então, você tem aquelas paróquias e
principalmente no interior isso se mantém… uma relação paroquial onde as relações se
dão naquela paróquia… Onde o conforto se dá naquela paróquia. E uma vez tirado aquele
símbolo de união, aquela paróquia [se] desestrutura…Ela tem que recuperar uma nova…
[problemas no microfone]… Então, eu estava falando sobre a paróquia, né? As relações
com os amigos… o conhecimento sobre a sua futura mulher ou seu futuro marido. Essa
coisa que vai se dando e que vai abastecendo essas propriedades e que se mantém e que
na realidade faz parte de toda a nossa história e como as coisas são muito protegidas
também…
E bom, nesse emaranhado todo, o que é que sobra? Nesse emaranhado todo de construção
de identidade brasileira, o que é que sobra? Na minha cabeça sempre sobra o indivíduo
consigo. O que eu posso dividir com o outro. E como o outro me deixa eu dividir aquilo
com ele ou com da forma como eu deixo ele dividir aquilo comigo… estabelecendo
códigos. Então, a gente vai ter de estabelecer códigos de convivência pra poder
estabelecer algum processo de relação. Só que, por sua vez…, eu tô deixando essa
imagem aí parade porque eu acho que ela é um código.

Da Série: “Representatividade: o óbvio”


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Por sua vez, esse código em si, ele é um código também... Então as minhas relações com
qualquer outra pessoa ou dela pra mim, elas são estabelecidas através de códigos…existe
um código do entendimento. Nós vamos estabelecer que eu tô diante de uma mesa
vermelha que talvez é mais ou menos vermelha para mim… talvez mais ou menos
vermelha pra vocês, mas eu vou estabelecer um código do que é essa mesa vermelha e eu
vou ter de compartilhar com vocês esse código. Mas alguém inventou esse código….
alguém estabeleceu esse código, para que nós possamos compartilhar… e que talvez
mexer nesse código seja interessante. Talvez, colocar ele em risco… colocar ele à
prova… colocar ele sob suspeita, porque talvez o código pode ter sido inventado por uma
forma de poder. Talvez ele tenha sido criado para que eu sobressaia, em termos de poder,
em relação a outra pessoa. Enfim, aí eu fiquei pensando muito nisso, ao longo da
trajetória... e tudo mais… esses desenhos, são desenhos muito simples… né? Então, eu
trabalho com algumas mídias, mas principalmente com essas instalações em 3D, mas eu
gosto muito do desenho…Eu sempre volto um pouco pro desenho, pra pintura, eu acho
que eles são … tem uma coisa da arte que ela tem na minha cabeça, a arte tem a
especificade dela que é uma coisa tão forte e ao mesmo tempo tão… um pouco esquecida,
mas ela volta…Tem uma especificidade…Vocês vão me matar, porque eu sou meio
Greembergniano317, mas eu acho que… aquilo tudo tá estranho… mas eu acho que a arte,
tem uma especificidade dela… que só ela vai poder fazer. E aí eu ficava pensando sobre
essas formas de representar o espaço…né? As formas ocidentais de representar o espaço.
A gente tem uma forma que sempre tem esse espaço que eu vou ter de comungar com
vocês, né? Qualquer pessoa… Todo mundo compartilha esse espaço…mas como é que a
gente vê esses espaço? Como a gente representa esse espaço? Na hora de representá-lo eu
tô trabalhando com códigos… né?

E a gente vai ter, por exemplo, pega uma pintura da “Independência do Brasil”. Você tem
Dom Pedro I empunhando uma lãmina... uma espada, vários cavalos e você representa
aquele evento de uma forma que não deve ter sido. Mas ela tem o significado da
representação daquilo. Ele foi feito pra representar aquele evento e nos empoderar
daquele evendo da independência brasileira. Então, tudo ao meu ver é movido por
códigos de representações e de crenças que a gente vai estabelecer comungando dessas
crenças…né? Comungando desses códigos e compartilhando esses códigos, mas ao
mesmo tempo esses códigos nos conduzindo a esse statos quo¸ a continuar com esse
statos quo…sei lá... esses desenhos aqui, na realidade, são desenhos que eu tava

317
Clement Greenberg (1909–1994), critico de arte estadunidense que defendeu o expressionismo abstrato e a
autonomia da arte numa visão formalista, já a partir da década de 40, visão esta segundo a qual a separação entre a arte
e a política seria uma condição sine qua non da arte de qualidade. Greenberg foi criticado posteriormente nos anos 60 e
70. A “culpa” para a necessidade da arte “se fechar sob si mesma” seria atribuída por Greenberg à modernidade que
forçaria a arte se distanciar da precondição engajada para se absorver de si mesma, num campo “puro”, autônomo. N.
do E.
trabalhando com a perspectiva, que é um código muito bem estabelecido para o ocidente,
mas não é nada estabelecido para o oriente… por exemplo. Ele tem um código de
representação totalmente diferente. E aí a gente tá falando de culturas distintas…quando a
gente pega o Brasil nessas diversas culturas que a gente consegue traçar relações de
forma muito ruins ainda, porque eu acho que poderiam ser mais interessantes…eu acho
que a gente vai vendo que a na medida em que eu imponho ao mundo um determinado
código eu imponho uma forma de poder. Então se a gente conseguisse começar a destruir
esses códigos, o que que aconteceria com eles? O que que aconteceriam com nossas
ações? O que que aconteceria com as nossas visões de mundo? O que que aconteceria
com os nossos contatos, com os nossos…o que que aconteceria com esse tipo de relação
que ele traz com os outros e de como a gente vive… né? Então, na realidade, esses
desenhos são muito simples. Na realidade eles falam exatamente isso, dessa
impossibilidade talvez, quando a gente olha esse desenho e vê essa cadeira maior, que
dentro de um código de perspectiva ocidental ela estaria na frente,… o fato dela estar tão
“desmaiada”, joga ela atrás em um plano irreal. Então, a gente começa a fazer uma certa
confusão do código de perspectiva. Tem dois pontos de fuga... né? Tem um ponto de fuga
à direita, tem um ponto de fuga à esquerda…Vai estabelecendo esse desenho bem
arquitetônico. Eu não vou mostrar toda a série, a série é bem grande, inclusive uma delas
foi adquirida pela Pinacoteca…ela [a imagem] vai poluindo bastante... né? Mas na
realidade, é uma tentativa de corromper esse código e ao mesmo tempo ratifica-lo.
Rapidamente a gente identifica o código de perspectiva, rapidamente a gente traça
relações de posição no espaço que é totalmente 2D, criando uma representatividade 3D
num espaço 2D, já é uma obliteração da coisa…mas ainda é uma representação. E a gente
não tem lugar pra colocar essa cadeira fantasma, a gente não sabe se ela tá atrás ou se está
na frente, porque o código da pintura joga ela pra trás das veladuras, mas o código da
perspectiva joga ela pra frente. E ela tá toda em perspectiva, então, eu acho que esse
desenho, por mais simples que seja e por mais bobinho, é feito todo e régua, com
canetinha…eu acho que ele sintetiza muito do meu pensamento como artista. Então, a
ideia aqui [é a seguinte]: se a gente desconfigurar esse código, o que é que sobra? Se a
gente pega esse código que foi tão bem estabelecido pra que nos possamos nos
comunicar… o que que sobra desse código? Será se a comunicação vai ficar melhor? Será
se a gente vai descobrir novos códigos mais flexiveis, mais temporais, mais corriqueiros,
mais fugazes? Será se a gente conseguiria fazer isso? Não sei!

“Quarto e Cozinha” (2006)


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- Aqui é um outro trabalho… Esse é um trabalho de 2006 e durante esse período o


trabalho ficou muito tautológico. Ele se chamava o que ele era, então, aqui é um “Quarto
e Cozinha”. Ficou um tanto tautológico. É um quarto e cozinha. Não tem outro nome. E
foi o primeiro trabalho dos trabalhos “3D”, assim… Mas eu fazia muita coisa de site
specific onde eu usava um determinado espaço e complicava aquele espaço...repetia
aquele espaço dentro dele mesmo e complicava... depois eu comecei a fazer coisas mais
de esculturais, pra ver... coisas mais “cortáteis” nas dimensões de instalações e esse aqui
foi o primeiro de todos. Então, toda vez que eu volto pra esse trabalho eu penso na
história da cozinha brasileira. Eu penso muito nessa história da cozinha brasileira. Pra
mim, ele é tautológico é quarto e cozinha...beleza...mas ao mesmo tempo você oblitera os
dois, você pega um quarto que...ele tem outras coisas que eu acho bacana. Ele tem uma
representação... Nada disso é verdade...nada disso é. Mas é uma representação de um
quarto que pode ser uma intimidade, um lugar mais íntimo do indivíduo. E eu pego uma
cozinha que é um lugar mais público e um lugar de trabalho e na realidade, a gente coloca
tudo isso junto, a gente pega esse lugar e coloca junto. Se a gente pegar a história da
cozinha brasileira a gente vai pegar a cozinha fora da casa, coloca pra dentro da casa...lá
atrás...depois coloca ela na sala... e hoje a gente tem uma “cozinha gourmet”. A cozinha
gourmet é um símbolo de status. Se eu tiver uma cozinha “gourmet” você sabe quem eu
sou. (risos) E eu não vou receber meus amigos na minha sala de visita, na minha sala de
jantar, eu vou receber na minha ‘cozinha gourmet’. Então eu acho que a cozinha pra mim
foi muito...ela tem um aspecto da cultura brasileira, mas que vem de um lugar que é o
símbolo do trabalho...que a gente vai tirando esse trabalho, mas eu não sou mais o meu
empregado que cozinha na minha cozinha que tava lá atrás. Hoje eu sou habilitado a fazer
pratos supersofisticados na cozinha que era do trabalho. Hoje eu escondi esse trabalho. E
esse quarto por sua vez é o quarto em que eu deveria ser um pouco mais reservado.
Porque é um pouco da minha intimidade que tá ali, mas eu exponho ela. Eu atrapalho ela.
Eu complico ela...Eu atravesso ela por uma coisa que é pública e que dá uma noção das
minhas relações e do meu poder etc.

- Então, esse trabalho vem de umas questões que são bacanas. Eu ficava pensando nessa
coisa também da casa...da família. Essa casa, essa família...essa forma de organizar a
sociedade. Essas proteções familiares. Então, eu ficava tentando quebrar essas estruturas.
Talvez por esse passado que eu contei pra vocês, talvez porque essas minhas estruturas já
tivessem sido quebradas...ao meu querer ou não. Então nada disso fazia muito sentido,
mas eu acho que guarda também alguns elementos do que faça sentido. Dessa parte
individual... e dessa parte mais pública e dessa parte mais intimista. Então, tem outros
trabalhos que vão ficar tautológicos e vai por aí...
Depois também eu achei que eu tava tão empoderado que comecei a fazer coisas bem
grandes (risos) e eu comecei a trabalhar com aeroportos e cruzar com outras coisas. Eu
queria pegar um aeroporto e colocar outra coisa lá... Depois eu comecei a diminuir a bola
e fiquei pensando nessas grandes instituições. Será se eu consigo pegar espaços que são
altamente institucionais e meio que bagunça-los e tirar esse código do que ele representa.

“Supercinema” (2011)
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- Então esse trabalho é de 2011 e que se chama também tautologicamente “Supercinema”,


porque é um supermercado e um cinema, todos colocados num mesmo lugar. Então,
enquanto o outro não sabia o que era...uma coisa muito íntima, uma coisa mais exposta ao
trabalho, a intimidade. Aqui eu acabei misturando duas coisas que são duas instituições
“supermercado” e “cinema” dentro de uma terceira que é um instituto de artes que é um
instituto filantrópico que é o Santander Cultural de arte. E por ser um instituto
filantrópico...que não pode ter lucro, os trabalhos não podem ser vendidos. Mas, como é
que esse trabalho foi construído? Então, eu tive que abrir uma empresa chamada
Supercinema, eu tive que comprar todos os produtos. Eu tive que pagar funcionários.
Daqui a pouco a gente vai dar uma olhada em imagens. Eu queria filmes Blockbusters318,
então eu tive que pagar os direitos autorais de vários filmes...foram muitos filmes. Mas eu
queria também filmes considerados cult, tipo Wood Allen, essa turma, Wim Wenders,
produzidos na mesma... mesmissima indústria. A indústria que produz o Batman é a que
produz o Wim Wenders. Os filmes mais alternativos produzidos mesmo com uma
produção manual, aí eu não peguei... aí é outro tipo de indústria... é outro lugar... Mas não
faltou o Wim Wenders, não faltou o Woody Allen, não faltou essa turma toda, né? Ao
lado de vários outros... Do lado de Ex-Men. (risos) do lado de outras coisas. E tinha uma
programação, que saia no jornal e os produtos... tinha que ter a Coca-Cola, mas tinha que
ter a Pepsi, eles são concorrentes... Mas a gente sabe que não é tudo isso, né? Por que é a
Vonpar que vai fazer tudo isso, por uma questão logística, [criando] esse contraste pra
vender mais. E tava dentro de um Instituto Santander Cultural que em princípio não pode
vender nada e aí eu achei uma brecha na lei que o Santander Cultural como o MAC,
vários museus...eles podem ter uma lojinha do Museu aonde eles vendem. Então, essa
loja estava dentro do Museu, sendo exposta no Museu. Então eu tive que abrir essa
empresa como se fosse uma lojinha do Santander. Que vendia esses produtos, dentro do
próprio Museu e não era uma coisa meio anexa, era dentro do próprio Museu. Então, o
que que esse trabalho tem? Esse trabalho é feito em 2011. Aquele período de 2011 o
Brasil estava vivendo um gap no mercado de artes. Não sei se vocês se lembram. As
feiras começaram a aparecer, não é? Aquela década de 2010 começaram as primeiras
feiras, depois as feiras vão pro Rio de Janeiro. O mercado de artes começa a crescer
gigantescamente...e eu queria pensar nesse mercado, onde a arte é vendida por uns preços
absurdos ou por preços mais simples, e como é que essa dinâmica do mercado se dá.

318
Filmes de apelo comercial. N. do E.
“Supercinema” (2011)
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“Supercinema” (2011)
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“Supercinema” (2011)
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Então a ideia foi fazer isso...foi criar esse mercado chamado “Supercinema”, o Cinema
era gratuito, mas os produtos não. E tinha...bom...a luz pelo menos desse lugar era só
iluminada pelos letreiros que tinha lá. Super Cinema. As pessoas assistiam ao filme. Elas
poderiam assistir ao filme. Elas não poderiam consumir no local...né? Mas elas poderiam
e elas compravam produtos eu tive de pagar essa pessoa aqui. Eu tive de pagar os
encargos sociais dela. Uma pessoa vale o dobro, né? Porque você paga o salário dela, mas
ela vale o dobro porque tem todo o encargo social...Ela era funcionária do “Supercinema”,
ela tinha um crachá, ela tinha um horário de trabalho...(risos) tinha um turno, porque
tinha três funcionários, então, eles cobriam...o trabalho levou três meses, quase quatro...E
ali tem uma pessoa no “Supercinema”, pela primeira vez ele tinha entrado no Santander
Cultural, porque ele sabia que ali tinha um supermercado que ele podia comprar o lanche
dele do meio dia (risos da audiência). E começou a acontecer essas coisas que as pessoas
começavam a entrar pra comprar o produto para o lanche da tarde...[pessoas] que nunca
tinham entrado no Santander. E aquela coisa começou a aumentar. E a exposição tinha
que acabar, eu tinha que falir. Pra poder fechar a empresa... Eu tinha aberto e não podia
fechar a empresa, eu tinha que falir a empresa. E aí a gente anunciou uma liquidação no
jornal e os comerciantes fora do Santander foram no Santander para dizer: “Não
pode!Você está quebrando o nosso mercado!” Mas eu vou ter que falir... eu vou ter que
criar... Eu falei assim, entendeu? Então, eu estava vendendo produto abaixo do valor do
custo, mas esses produtos que estavam sendo vendidos, eu não trouxe as imagens. A
gente não tem as imagens das sacolinhas que viraram meio fetiche das pessoas. As
pessoas diziam “Eu não consigo comer aquele feijão, porque eu comprei no
Supercinema”. Então eles guardam as sacolinhas que tem o rótulo do Supercinema, mas é
uma sacolinha boba assim... Então, o quanto que me interessava esse código...de novo
volto ao código...O quanto que esse código “arte”...que é sei lá...”Pai João”...não sei qual
é o feijão mais comum...”Tio João!”...Tio João, junto com outro que não seria “Tio João”,
tem a concorrência...tem o valor mais caro, tem o valor mais barato...tem aquele que
vende porque tá no nível dos olhos. Tinha toda essa estratégia de mercado. Mas o feijão
é o “Tio João”, entendeu? É um feijão que você compra num outro supermercado
qualquer. Algumas pessoas guardam o “Tio João” desse Santnader, mas não guarda o
“Tio João” sei lá....do supermercado da esquininha...Eu tive que assinar trocentas sacolas
(risos) que não era pra assinar. “Ah, por favor!”... Pediam pra assinar.. “Mas não tem
nada a ver! Ah, tá!” Assinei... Porque era a brincadeira do fetiche, assim. Era a ideia
desse código que vira um certo fetiche, nesse lugar que é um espaço cultural e que hoje
abriga esse lugar. Então, sei lá...esse código feito pela especialidade, pela funcionalidade
dessas instituições cruzadas nesse mesmo lugar. Com todas elas ocupando o mesmo lugar.
Então, de novo a ideia era mexer nesse código. Então, qual é o tipo de sociedade que dá
algum valor pro “Tio João” do Santander e não dá o valor pro “Tio João” da esquina?
Qual é o tipo de coisa que a gente faz que o feijão do Santander valia mais... não sei... eu
não entendo. Mas são coisas que eu acho bacana de pensar.
Estruturas Dissipativas/Gangorras, 2013
http://rommulo.com/

- Bom, aí tem outros trabalhos que a gente pode falar...e aí vai pra outros lugares. E a
ideia desse trabalho aqui é um pouco fragmentar a ideia do lugar em si, quarto, cozinha,
sala, supermercado, aeroporto, blá blá blá, e deixar só fragmentos das coisas. Então,
balanço, gangorras, que seriam elementos lúdicos que remeteriam talvez à nossa infância,
mas eles são agigantados pra nossa infância, né? O tamanho deles é muito grande pra
nossa infância, então eu acho que é um... embora remeta... a um bom... o que é que é essa
infância também, né? Quando você chega nesses brinquedos que são do tamanho de um
adulto talvez eu queira brincar...não sei... Acho que talvez não remeta tanto à infância,
mas a gente tem a gangorra como um elemento da infância...não sei se a gente tá
remetendo à infância. Mas esse é um elemento muito forte na infância. Ao mesmo tempo
você cruza com alguns elementos...Banquinho de Praça...E tem uma coisa que me toma
muito a atenção e que a gente não conseguiu muito se livrar no Brasil, embora todos
nossos processos de modernização eles tenham rodado um tanto ao fracasso... né? Que é
a grade. Então, a gente cria essa grade ali que cria um elemento corriqueiro... vai ficar
ainda um tempo... Que eu acho que ele representa denovo esse privado e público. Ele faz
um limite entre o que é meu o que é seu: “Não entre!” Ainda nesse sentido de uma
propriedade... como é que a gente codifica essa propriedade entre nós... assim, essa noção
do que é meu, é impenetrável... eu não divido com você. Daqui a pouco quebra esse
negócio com a introdução desses elementos lúdicos... quebra essa agressividade com a
própria que é a cor da grade... que é lilás...” Uau!...” que é meio dourada aquela
lança...quebra com essa coisa muitos chamativas que é muito da pintura..são estratégias
da pintura..quebra a agressividade junto com essa coisa lúdica, com esse elemento que
poderia resgatar uma infância agigantada. Nos colocando aí numa situação muito clara de
adulto. Ou uma mesa que se você compartilhar não vai dar certo porque aquela gangorra
vai bater na cabeça de alguém...Então, (risos) torna uma coisa impossível de usar e torna
aquela coisa...por ser tão polido e ser tão brilhante, toma um desejo de uso... mais uma
impossibilidade de uso... uma coisa meio perversa...uma coisa agigantada mas que me
embobece..me idiotiza um pouco também...se eu for usar isso e ficar subindo e
descendo...o nome é “Estruturas Dissipativas e Gangorra e Balanço”, porque, na realidade
você não vai pra lugar nenhum...você vai pra frente pra trás, pra cima e pra baixo e
anulou o negócio! A ideia era pegar alguns elementos infantis que promovem
movimentos, mas que não sai do lugar e que esses elementos fossem muito lúdicos
brigando com outras questões... com questões de fora e dentro... de agressivo e lúdico...
dessa grade que “é meu e ninguém toca” e o que é que tá fora e o que que tá dentro. Se eu
olhar daqui, aquela gangorra tá fora, mas se eu fizer o inverso...sei lá...quebrar o código
de “fora”, “dentro”, quebrar o código de interface...

- E aí vem esses trabalhos que estão derivados em série. Eu geralmente trabalho muito
com série...geralmente eu faço três, quatro...ou mais...no começo do ano passado eu
pensei nesse trabalho e eu desenvolvi só no finalzinho do ano passado. E ele ganha esse
título....então os títulos deixaram de ser tautológicos e ganham um títulos meio frases..né?
Mas eu queria trazer...os outros eu não trouxe...os títulos, mas desse aqui eu trouxe
porque é onde eu tô pensando muito nisso...né? Então, vou dar uma olhada nesse título:
“A fragilidade dos negócios humanos pode ser um limite espacial incontestável” (2015)
http://rommulo.com/

“A fragilidade dos negócios humanos” é um conceito da Hanna Arendt, que ela vai falar
o seguinte: quando o ser humano ou a comunidade perde o sentido da religião ou o
sentido do poder...por exemplo, o que que sobra pra ela? Por exemplo, se eu não tenho
mais um Deus que vai me punir se eu fizer alguma coisa errada... eu não acredito... de
novo, eu sou um agnóstico pelo menos...não sei se por religião... Mas se eu não tenho
esse Deus pra controlar os meus pecados, o que que sobra para minha ação no mundo se
eu não vou mais ser punido? Como é que eu estabeleço essa relação contigo? Então, isso
vai acontecer num certo modernismo. Ela vai falar isso na II Guerra Mundial, que teve
aquelas atrocidades. Teve aquele julgamento [De Nuremberg] ela vai ser bastante atuante
naquele julgamento. Em pensar nesse soldado que obedece ordens, mas vai lá e mata e
tortura...porque ele tá obedecendo ordens...e qual é o sentido de ética? Então, a gente sabe
dessa novela... a gente sabe desse contexto. E dentro de tudo o que ela escreveu sai a tal
da “fragilidade dos negócios humanos” que é quando tudo isso se perde, quando a gente
acaba perdendo tudo isso, a gente volta mais radical. A gente volta precisando disso de
uma forma muito mais avassaladora. Eu acho que é o momento Brasileiro. Quando a
gente tava na eminência de talvez conquistar espaços reais, e no momento que a gente
tem uma certa liberdade, você encontra a sua antiga faxineira pegando avião contigo,
você encontra o travesti tomando café do teu lado...você encontra o transgênero, você
encontra todas as possibilidades que podiam ser, todas as religiões, muito próximas...
você se apavora, e você nega tudo isso e você é mais voraz, você é muito mais perverso,
você tem medo dessa liberdade. E você vai buscar de novo algo que te estabeleça. Se não
você vai ficar sem a sua identidade. Eu sou o quê? As coisas ficam mais agressivas...a
gente tá vivendo uma coisa meio esquizofrênica... Então vem esses trabalhos que volta a
grade e vem uma parede que é uma parede totalmente fechada. Isso me chama muito a
atenção nas cidades brasileiras que todo mundo reconhece essas mansões ou essas
propriedades grandes que são deixadas...o que que os caras fazem? Eles são famílias, eles
fecham essas propriedades com tijolos e deixam o negócio cair... ruir... né? Porque se for
tombado é ruim, se esse patrimônio for tombado é ruim para eles porque perde o valor de
comércio...cai bastante. E se você deixar aberto você vai ter uma apropriação. Aqui em
São Paulo houve muito isso...né? A gente tá acompanhando muito isso... né? No Brasil
houve bastante disso. Então, você cria esses selos... você cega a porta, você cega a janela,
impede a pessoa de entrar, deixa esse negócio ruir... destrói. E ele ganha um valor
imobiliário significativo. É isso que vai acontecer. Então esses trabalhos, de todos...são
essas paredes e são várias ideias de paredes e de móveis totalmente lacrados por esses
tijolos, que tem essa face interna e face externa. Tem uma overdose de coisas que pra
mim é um símbolo brasileiro. E do outro lado ele apresenta um oposto disso que são esses
elementos gráficos que eram do nosso modernismo que pregava uma outra coisa. Toda
construção moderna, concreta brasileira tava pregando outra coisa. Estava pregando uma
espacialização, uma utilização do espaço público, uma comunhão do espaço público.
Parece que quando o Brasil resolveu desenvolver umas características culturais próprias
de pensamento. E isso vai repercurtir na indústria, vai repercutir na ciência, assim, vários
outros lugares... parece que a coisa se tornou apenas estética. E a gente não se apropriou
do conceito estético, a gente não se apropriou do conceito estético. Então, toda vez que eu
usar um padrão geométrico dessa ordem, Athos Bulcão319, sabe? Quando vocês
começarem a ver esses...eu tô falando sobre essa cultura brasileira...Que parece que não
vingou...Virou um padrão estético, mas que em princípio era uma ideia estética. Mas nós
não nos apropriamos dessa ideia e nós quase que esquecemos que nós tivemos essa ideia
algum dia. E aí volto pra esse negro produzindo arte...Pesando nessas relações e o que
que é a arte negra brasileira ou a arte afro-brasileira?... como seja....Eu vejo umas
relações muito mais no dia a dia, então, por exemplo, dessa família de português e
português negra e...esse cara que..pô, meu avô era um italiano! Ou seja, são três brancos e
uma negra: 25% está impresso em mim, na minha pele e quando me manifesto eu me
manifesto com esses 25%. Então a gente tem algumas trajetórias...desses 25%...mas elas
são... é assim que eu me expresso. É assim que eu vejo o mundo. É assim que o mundo
me vê. É asism que eu fico a vontade... Ou não, é o conviver...Então, tá dentro dos meus
48 anos, não tá dentro de um passado remoto ali...ele se repete dentro dos meus 48
anos...em estratégias de códigos muito contemporâneas...as estratégias de códigos...o
pêndulo...as tensões de poder e de força elas são medidas muito nessas 24 horas, elas são
medidas nos seus dois segundos...elas são medidas nessas conversas (risos) que a gente tá
tendo aqui por exemplo...Então, isso me interessa muito como identificar esses códigos?
E como quebrar esses códigos? E como deixa-los mais fugazes? Mais flexíveis, acho que
é por aí...não sei se consegui contribuir o bastante com isso aí..., mas enfim.
Renato Araújo

319
Athos Bulcão (1918-2008) pintor e escultor que foi assistente de Portinari no painel da Igreja de São Francisco na
Pampulha (MG) (1945), trabalhou com Niemayer na construção de Brasília (1955), fazendo os azulejados da primeira
igreja de Brasília com padrões de repetição modernistas. N. do E.
Eu ia evitar formalidades, mas acho que algumas pessoas não chegaram no início. Esse
será agora o Tiago Gualberto, vai apresentar agora um pouco do seu trabalho.

A Comunicação de Tiago Gualberto320


(Auditório Pina_Estação: 03/12/2016)

https://www.flickr.com/people/tiagogualberto/?rb=1

320
O que me chamou a atenção na comunicação de Tiago Gualberto foi sua capacidade de cruzar em sua
fala temas complexos como circuito de arte, inclusão social ao circuito artístico, circulação do objeto,
especulação em arte, a relevância dos temas políticos, a afirmação e resistência artística, etc. Entre outros
momentos, essa complexidade apareceu quando ele confluiu sua experiência pessoal de artista utilizando-se
de multimeios para tornarem diluídas as barreiras entre a plástica do trabalho artístico, a performance
artística e a comunicação desse mesmo trabalho. A sua manifestação de companheirismo com relação a
seus assistentes ficou patente, e certamente deve ter sido entendida por ele também como complexidade.
Seus assistentes não são o “precariado”. Eles ganham pelo seu trabalho e podem se incluir entre os
artistas-fruidores bem como especuladores totais de uma possível valorização em torno da consciência de
que o valor nominal de R$4,99 necessariamente gera em si mesmo uma microeconomia especulativa –
expectativa no sentido de se auferir lucros bem como também num exame artístico e na fruição de uma obra
de simplicidade complexa que é o chup chup. Esse intrincamento apareceu ainda quando ele
corajosamente questionou as instituições seja nas experiências neo-coloniais de “caça ao negro artista” seja
mesmo quando o artista se pergunta: Se eu não sou um afro-brasileiro, o que eu sou? Apenas um artista?
Ao se referir a si mesmo enquanto indivíduo frente a institucionalidade, Tiago Gualberto indaga sobre o
alcance lógico da problemática afro-brasileira, o que ele em outras palavras diz é: “somos livres para
sermos o que somos. Mas se alguém é, por que não ser o que se é?” Tiago coloca-se como o artista que dá
conta de sua produção e como o intelectual que se autoquestiona não impõe para si rótulos, mas não
suspende o juízo quando este lhe é posto à prova. Esse jogo de questionador/autoquestionador pôde ser
sentido por mim em quase que a comunicação inteira. Ao apresentar a sua crítica incisiva ele mostra que
busca compreender de que forma as estruturas que perpetuam a violência, a exclusão, o desequilíbrio
social, a falta de acesso a formação intelectual e material promovida ao longo dos séculos contra as
populações negras também se manifestam no campo da arte.
Bom, boa tarde. Quando o Renato me convidou e a Ju, eu fiquei pensando muito o que
que seria pertinente, né? E ter vindo a alguns encontros, eu não vim em todos...me
provocou muitas perguntas. Então, eu tentei escrever um texto pra me orientar e
aproveitar o máximo do tempo, mas é curioso porque a gente começa a ouvir os colegas e
começa a pensar tantas outras possibilidades que eu não sei se o texto que eu escrevi seria
a minha melhor fala...Mas enfim, (risos) a vida é assim... né? Então, eu vou tentar me
guiar pelo que eu escrevi, mas eventualmente eu tente me corrigir ao mesmo tempo...

Bom, a primeira coisa é de fato agradecer ao convite do Renato, da Ju... Por tá ao lado do
Rommulo e da Janaína...O Rommulo que eu não o conhecia, né?... aqui nessa série de
encontros na Pinacoteca. Eu quero agradecer também institucionalmente, né? Ao Tadeu
Chiarelli e à equipe da Pinacoteca pela oportunidade... que afinal, é um espaço muito
privilegiado no circuito paulistano... né? Então, eu anotei aqui que eu queria fazer questão
de agradecer a vocês por ter topado vir numa tarde de sábado, né? Meu texto aqui tá
escrito um sábado ensolarado, mas eu fui ao banheiro e vi que tá chovendo muito (risos).
Mas reforço aqui minha gratidão por vocês terem enfrentado esse dia que tinha uma
promessa de ser tão bonito e ter ficado aqui, né? Ouvindo a gente... e eu falar...

Bom, então eu realmente, espero que eu consiga dar sequência à riqueza do debate e que
vocês possam pensar essas urgências que a discussão do tema afro-brasileiro tem trazido.
Minha intenção hoje não é localizar os artistas afro-brasileiros numa história da arte
nacional, algo que como pesquisador do Museu Afro Brasil é um exercício que eu e o
Renato temos feito e muito menos definir o que que é um artista afro-brasileiro que
também é uma tarefa gigantesca. Mas como eu disse o que eu pretendo é pensar questões
complexas que me foram despertadas a partir de um olhar da antropologia, da sociologia,
da filosofia, especialmente a partir das falas da Lisy [Salum] do Roberto [Conduru] e do
Renato [Araújo].

Neste aspecto, parte destas falas apresentaram como inevitável a reflexão sobre os lugares
impostos historicamente ao negro no Brasil. Bem como as diversas manifestações do
racismo, cada vez mais sofisticadas, e que se fazem presentes nas estratégias de exclusão
desta imensa população que perfaz mais da metade da população brasileira. A escravidão
não é uma mancha em nosso passado que precisa ser apagada. Ela é uma ferida aberta em
todos os cantos de nossa sociedade. Basta olhar em nossa volta, no percurso que cada um
de nós fez até aqui. Quem são as pessoas dentro dos vagões do trem, quem são as pessoas
em frente a porta do Parque da Luz? Quem são as pessoas que estão na recepção da
pinacoteca carimbando tickets, varrendo o chão? Quem são, majoritariamente, os artistas
que expõem aqui na Estação [Pinacoteca]? Quem são as pessoas em cargos diretivos,
quem está sentado ao nosso lado? Quem somos nós e qual lugar ocupamos neste percurso
até chegarmos aqui?

Estas perguntas nos impulsionam a pensar em uma gama extensa de temas, muitos deles
tratados em profundidade por diversos pesquisadores, ativistas e intelectuais. Elas
envolvem o debate em torno de nossas identidades, a ideia de mestiçagem ou de
meritocracia, por exemplo. Portanto, este pequeno exercício que eu tô propondo, nos faz
pensar a nossa sociedade brasileira e a nossa história. Refletir sobre estes temas é
absolutamente fundamental em um mundo que busca o respeito a diversidade, a
igualdade e o equilíbrio frente às injustiças sociais. O que torna esta série de encontros na
Pinacoteca de São Paulo muito especial e oportunos, de fato.

Mas estes temas nos fazem pensar sobre arte? Acho que essa foi uma das questões me
pareceram mais pertinentes ao longo dos encontros...O que esses pensadores da arte
afro-brasileira também salientaram é o quão importante e ao mesmo tempo difícil é olhar
para os trabalhos artísticos e pensar de que forma estas questões passam a ser importantes
para estas produções ou para a sua compreensão. E surgem também questões sobre a
relevância destes temas políticos e sociais para os artistas. Vendo de outro ângulo,
existiria uma obrigatoriedade dos artistas contemporâneos que se auto intitulam
afro-brasileiros a tratar de temas ligados ao pertencimento étnico-racial, identitário ou
ancestralidade? Se eu não sou um afro-brasileiro, o que eu sou? Apenas um artista? O que
significa adotar ou rejeitar esta recente categoria de nossa história da arte: a de artista
afro-brasileiro?
Se não bastasse essa confusão, eu tenho que lembrar que o que chamamos de circuito
artístico não é composto exclusivamente pelos artistas ou por seus trabalhos. Outros
importantes agentes estão em jogo. E não me refiro apenas ao mercado de arte, ao público
que frequenta as exposições, mas também as variadas instituições que neste momento,
mais do que nunca, passam a expor e a caçar artistas afro-brasileiros num esforço muitas
vezes de aparente representatividade, que julgo muitas vezes paliativo, em meio a este
contexto de tamanho desequilíbrio histórico de nossa sociedade.

Há momentos, em que somos tratados como espécies raras, onde curadores,


pesquisadores e acadêmicos saem em corrida com suas bermudas ou saias de sarja bege
pelas periferias imaginárias em busca da espécie mais exótica. O capturado deverá ser
capaz de demonstrar o quão audacioso é o projeto curatorial de representação da
diferença. Isto também vale para algumas galerias de arte. O contraditório é que em uma
caçada verdadeira, as presas costumam correr.

O que parece ocorrer na atualidade é exatamente o contrário, é a regulação de nossas


identidades, formas artísticas e interesses profissionais. Manipulam-se nossos dramas e
histórias frutos desta violência cotidiana que vivemos, e organiza-se uma escala de
tolerância da forma e da profundidade que devemos aplicar a estes assuntos em nossos
trabalhos. Este controle é perverso por que assimilamos estes limites e prescrições
temáticas como sinônimos de nossa subjetividade. Interiorizamos estes mecanismos de
representação e ao replicá-los somos incapazes de criticar as deficiências artísticas de
nossos próprios projetos, em detrimento de uma piedade que logramos ao tema do
esforço.

Neste cenário da arte contemporânea, o artista afro-brasileiro passa a ser, muitas vezes,
um comentarista de dramas pessoais ou coletivos e não alguém que compreende o próprio
trabalho. Reforço aqui, como o fiz na minha introdução que estes problemas econômicos,
sociais e psicológicos que atingem as populações negras, e por consequência aos artistas
negros, são verdadeiros e requerem sim remediação. Não é a questão da justiça social que
está em cheque em minha proposição. Mas sim a consciência que nós artistas, estes
mesmos que se intitulam afro-brasileiros ou que mesmo sem se nomear como tal, aderem
a estes circuitos expositivos, precisamos manifestar frente ao campo da arte e aos seus
inúmeros agentes.

Desde já, digo que esta tarefa não é nada fácil. Eu procuro enfrenta-la todos os dias e
diversas vezes, sem sucesso. E, assim como uma capa, a fala do artista pautada em
elementos externos ao seu próprio trabalho pode, ao invés de protegê-lo, por fim,
acobertá-lo. Em muitos momentos, utilizando uma metáfora de Boris Groys321, este
esforço temático discursivo, na maior parte das vezes, tende a encobrir a própria nudez do
trabalho artístico. Para a ânsia de uma representatividade paliativa, esta superficialidade
pouco importa. Ao contrário, quanto mais explícita e imediata ela for, mais fácil ela irá
ser digerida pelo desejo de sanar a desiquilibrada configuração de acervos, e a construção
de uma imagem pública tolerante às diferenças. Desde que isto permita que o que se fazia
antes, seja feito da mesma forma.

Deste modo, gostaria de esclarecer que não vejo o abandono das causas políticas e sociais,
por exemplo, como uma fórmula de geração de autonomia da esfera artística dos meus
trabalhos. Ao contrário, busco compreender de que forma as estruturas que perpetuam a
violência, a exclusão, o desequilíbrio social, a falta de acesso a formação intelectual e
material promovida ao longo dos séculos contra as populações negras também se
manifestam no campo da arte.

Neste sentido, localizo os meus trabalhos artísticos em um processo de afirmação e


resistência contínuos. Eles também podem ser vistos como testemunhas das condições
que enfrento diariamente para a realização da tarefa de ser artista visual. Desta forma,
minha produção deve ser entendida como pertencente a uma série de conquistas
individuais e coletivas, figurando assim, uma correlação com um campo pré-existente,
cercado de conflitos, tensões e contradições. Isto inclui, não apenas o mergulho em
questões autobiográficas, meus distintos pertencimentos, mas sobretudo a outras

321
Boris Efimovich Groys (1947) filósofo e critico de arte alemão radicado nos EUA. Groys foi um dos primeiros
teóricos a avaliar o realismo socialista e a arte pós-moderna sem propor juizo de valores. N. do E.
experiências artísticas e ações de impacto coletivo realizadas em variados campos da
sociedade brasileira.

Então em casa, eu fiquei pensando, como é que eu poderia trazer informações que ao
invés de esclarecer exatamente sobre o meu trabalho, [mostrasse] como eu me inscrevo
nesse circuito. E como, de uma certa forma, eu já me vejo desde o início cooptad positiva
e negativamente pelo rótulo “afro-brasileiro”. Então, Um exemplo primordial pra mim
sobre essa inscrição envolve a participação no programa Ações Afirmativas na UFMG
em 2002.

Simone Meireles Nilma Lino Gomes322


(2005)
https://www.ufmg.br/online/arquivos/000902.shtml

https://www.ufmg.br/online/arquivos/001942.shtml

Essas duas imagens são de 2005 e do lado esquerdo a Simone, que na época era estudante
de Pedagogia e minha colega nas “Ações Afirmativas”... Bom, aquele flyier foi muito
especial pra mim porque ele é o flyier do II Seminário Nacional de Ações Afirmativas e
tem também a programação do I Encontro do DCE [Diretório Central dos Estudantes]
chamado “Negando a Indiferença”. Tem esse trocadilho maravilhoso...e aquela imagem
que ilustra é uma xilogravura minha que também ilustrou um outdoor que ficou em frente
a Escola de Belas Artes.

322
(que lindas! ) N do R. (nota do Renatex)
Foi no Ações Afirmativas que eu descobri que as inúmeras dificuldades que enfrentei
para dar sequência aos meus estudos faziam parte de uma história compartilhada por
muitos e muitos. Embora eu fosse o único estudante de arte presente no grupo, naquele
período, toda a equipe formada por alunos e professores de diversos cursos foi
fundamental para a minha inserção artística. Dois anos depois da minha entrada na
UFMG [Universidade Federal de Minas Gerais], eu realizei a minha primeira exposição
individual durante esse Seminário. Claro que aqui eu dispenso apresentações...A Nilma
ela era coordenadora. Ela quem faz a minha entrevista pra entrada nas ações afirmativas e,
enfim, é nessa exposição que eu exponho pela primeira vez esse trabalho que tá no Museu
Afro Brasil,
http://museuafrobrasil.org.br/pesquisa/indice-biografico/lista-de-biografias/2016/04/07/tiago-gualberto---obras

na verdade ele faz um percurso curioso porque eu exponho no DCE em 2004. Em 2005,
eu o inscrevo numa exposição que ocorreu no Parque do Ibirapuera com a curadoria da
Flávia Vivacqua e do Cláudio Mubarak e que depois seria meu professor de gravura. E
em 2006 ele passa a fazer parte de uma exposição do Museu Afro Brasil e é aonde ele
está desde então. São doze anos que ele tá nessa parede. E isso obviamente me orgulha,
mas me traz muitas questões: Mubarak numa disciplina que eu realizei com ele, ele falou
uma vez que um trabalho só começa a envelhecer quando ele faz doze anos...né? Eu me
lembrei disso...eu não sei se eu concordo com o Mubarak, apesar da coincidência, mas de
qualquer modo, essas xilogravuras impressas em filtro de coar café, elas precisam ser
manuseadas. Para acessar as xilogravuras, encobertas por outros filtros carimbados com
expressões do nosso cotidiano, é necessário erguer as impressões gravadas, apenas as
impressões impressas no lado interno. Ver esses objetos marcados...rotos...esmaecidos...E
eu tenho colegas aqui que conhecem...já estão cansados de ver esse trabalho, é um desafio
para o próprio Museu. Talvez os meus colegas não saibam disso, mas o Marcelo
Grassman, uma vez me encontrou, numa situação muito casual e ele disse e não sei se ele
estava querendo me agradar, mas ele disse que as minhas xilogravuras eram os trabalhos
mais próximos de uma artista russa chamada käthe Kollwitz e eu fiquei muito
impressionado com isso...óbvio que eu sabia quem era Käthe Kollwitz, mas também sabia
que ele tinha sido amigo do Oswald Goeldi então...Mas ele, obviamente, ele fez questão
de me dizer uma coisa...ele disse peremptoriamente “mas imprima isso num papel de
verdade!”(risos).

Autorretrato – xilogravura, 1923 Autorretrato – Xilogravura, 1950


Käthe Kollwitz (1867-1945) Oswald Goeldi (1895-1961)
http://www.centropa.org/teacher-blog/grtscott/kathe-kollwitz
https://catracalivre.com.br/sp/agenda/gratis/gravuras-de-oswaldo-goeldi-ganham-exposicao-na-galeria-millan/
Bom, só pra lembrar quem talvez não conheça: à esquerda um trabalho...uma xilogravura
da Käthe Kollwitz e uma gravura do Goeldi. Obviamente essas eram gravuas que eu via
quando eu era estudante das Belas Artes. Eu me apaixonei pelas goivas e pela madeira
que eram materiais pra mim muito acessíveis naquele momento e essas eram as
referências que eu encontrava na biblioteca e de fato, foram referências muito fortes pra
mim pra produzir essas xilogravuras..não é?

Tensionar a forma como a museologia do Museu Afro Brasil lida com este trabalho, e
com os demais presentes em seu acervo não a partir de um discurso meu, sobre as
questões políticas que estariam nesse trabalho, mas a partir da própria materialidade
desses objetos faz com que eu sinta uma conquista como artista. Isso acontece porque
questões que seriam precário ou sofisticado, básico ou supérfluo, valioso ou descartável
são oferecidas para diferentes públicos. O que inclui a manifestação de pertencimento
tanto por minha parte enquanto artista quanto por uma extensa gama de participantes que
vão até o Museu. Se as leituras das expressões racistas é mais tentadoras e muitas vezes é
a forma pela qual grande parte dos educadores do Museu Afro Brasil estabelece o diálogo
com esses objetos, por outro lado, o debate sobre as formas tradicionais de produção da
xilogravura continuam latentes. Mas eu seria ingênuo se eu acreditasse que existe algum
controle meu sobre essas leituras, né? O que me basta...o que me... O meu papel é
cerca-las... no trabalho.

Então eu conisderto, talvez esse o meu primeiro trabalho como artista...com essa ideia de
artista...Então... eu vou dar um salto só pra mostrar... ah, eu troxe isso aqui só pra fazer
graça... mas eu acho que...

Da esquerda para direita: Oswaldo Goeldi, Aldemir Martins, Carmélio Cruz,


Marcelo Grassman e Franz Krajberg (Bienal de 1951)
https://anamariaramos09.wordpress.com/2016/08/31/carmelio-cruz/

Ali é uma turma de amigos que o Goeldi está à esquerda e o Marcelo Grassman é o
penúltimo ali.

Octávio Araújo e Marcelo Grassman


Biblioteca Mário de Andrade- 2007
http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/bma/memoria_oral/index.php?p=7025

Xilogravura – Grassman, 1955


http://www.apap.art.br/associados/343/marcelo-grassmann-em-memoria/

Aqui é o Octávio Araujo e Marcelo Grassman, eles eram amigos. E aqui é uma
xilogravura de 55 do Grassman. Eu gosto dessa diluição de questões que a gente pode
perceber nesses três artistas...né? E que de alguma forma eu tento me aproximar...nas
minhas xilogravuras dos “filtros” [de café].

Instalação em Neón – Tiago Gualberto - Iguarapé, 2016


http://lembrancadenhotim.com.br/

Eu quero falar desse meu trabalho mais recente. E que é o meu maior desafio. Eu acho
que eu nunca tive um desafio tão grande como esse projeto. Eu não poderia dizer nada
sobre ele sem antes tornar claro que ele é fruto de um esforço de muitas mãos. Não tenho
muita segurança em utilizar a palavr “coletivo” porque esses apoios não são nada
uniformes. Esse projeto só tem sido possível por causa de uma diversidade de atores que
vão desde a Tenda de Umbanda Geração de Luz daqui da zona leste de São Paulo até a
igreja evangélica do pasator Landini, da mininistra Dercy de lá do bairro onde eu cresci lá
no Resplendor, que é onde eu cresci lá em Minas Gerais.
Este projeto também é parte do meu mestrado na ECA, acompanhado pela professora
Daria Jaremtchuk e que é minha orientadora, que está aqui. Os meus colegas do grupo de
pesquisa em artes Pitol, que também está aqui, eu quero agradecê-los. Além de dezenas
de pessoas no Estado de Minas e aqui que participaram ativamente, como o Mestre de
Capoeira Jorginho e seus alunos, os professores Stan e sua esposa Cássia. A Beth Ramada
que generosamente proziu os doces da abertura e os chup chups que foram distrubuídos
durante, antes e depois do almoço gratuito preparado pela Sônia e sua família. Aqui a
gente vê o Jorginho e a roda de capoeira que aconteceu durante a abertura. A Janaína e o
Wagner, eles estiveram lá, eu fiquei super feliz de tê-los visto.

Mestre Jorginho
Imagem pausada de vídeo “”Lembrança de Nhô Tim” 5’:31’’
https://www.youtube.com/watch?v=g7UmXMPzMU4

Roda de Capoeira na Abertura da Exposição:


“Passagens Sob(re) a Terra Lembranças, Memórias e Territorialidades”
Fotografia com filtro laranja (Imagem pausada de vídeo)
https://www.youtube.com/watch?v=0fHpNLG9W4w&t=1152s
Imagens dos eventos de abertura da Exposição:
“Passagens Sob(re) a Terra Lembranças, Memórias e Territorialidades”
Fotografia com filtro laranja (Imagem pausada de vídeo)
https://www.youtube.com/watch?v=0fHpNLG9W4w&t=1152s

Esperavamos mais de 500 pessoas para o evento de abertura na cidade de Igarapé (MG).
Há poucos dias da abertura, tivemos de aumentar o número de refeições quando
soubemos que o Centro de Arte Contemporânea de Inhotim tinha escolhido a mesma data
para comemorar os dez anos de abertura ao público. Localizado pouquíssimos
quilômetros da região, o Centro promoveu uma grande festa com a presença de Marisa
Monte, Fernanda Takai e a Orquestra Filarmônica de Minas Gerais a ingressos no valor
de cento e cinquenta reais. Cheguei a acreditar que os outdoors que instalei na BR 381
com a inscrição “Lembrança de Nhotim” pudessem atrair mais pessoas do que eu pudesse
ter planejado.
Renato Araújo, num dos Outdoors da BR-381 (Igarapé, MG - 11 de Setembro de 2016)
Foto: Alessandra M. Gomes de Melo

Essa rodovia cruza o centro de Igarapé e também leva ao Inhotim. Foi uma correria
incrível. Realmente, vocês não imaginam como foi o desespero de aumentar essas
refeições. Bom, sem poder mencionar a todos que tanto me ajudaram eu não posso deixar
de citar meu amigo João Alves que me acompanhou no processo de registros e os meus
familiares, meu pai Antônio Carlos e sua atual esposa que me auxiliaram na produção das
cinco mil unidades das “Lembranças de Nhô Tim”. A lembrança de nhotim compreende
basicamente esse objeto que a gente tem alguns aqui. Produzido em larga escala e
composto largamente da mistura de cimento e terrra rica em minério de ferro.
Ponto de venda da “Lembrança de Nhô Tim” (Igarapé/MG), 2016
http://lembrancadenhotim.com.br/

“Lembrança de Nhô Tim”, Tiago Gualberto, 2013


https://www.flickr.com/photos/tiagogualberto/

Semelhante a um sorvete caseiro muito popular em muitas regiões brasileiras este objeto
é um eixo central de diversas intervenções artísticas de minha autoria realizadas na região
que engloba parte da cidade mineira de Igarapé, São Joaquim de Bicas e Brumadinho. O
projeto “Lembrança de Nhô Tim” foi premiado pelo edital Bolsa Funarte Artistas
Produtores Negros de 2015. Isso foi muito importante porque ele já existia como uma
proposta, mas esse financiamento permitiu que eu realizasse isso numa escala que criou
condições..mudanças muito drásticas no projeto..né?
Uma das etapas de produção de 5 mil unidades da “Lembrança de Nhô Tim”
Quintal da casa do Sr. Antônio Carlos, pai do artista
Fotos: Tiago Gualberto e João Alves

De modo suscinto, a primeira intervenção se referem à instalação de um circuito positivo


em doze lugares já existentes na região da cidade de Igarapé, que são mercadinhos,
botecos, a Igreja Evangélica do Dercy, do Landini, escolas próximas ao bairro
Resplendor. Essas imagens desse pequeno canteiro...vizinhos e familiares ajudaram a
produzir as cinco mil “lembranças”....elas estão aqui secando... Não sei se todos
conhecem o chup chup com esse nome, talvez conheçam como “sacolé”, ou “geladinho”.
Nesses locais a venda das “Lembranças de Nhô Tim” é realizada pelos moradores
participantes dessa rede a um valor inicial de quatro reais e noventa e nove centavos.
Aproximadamente duzentas unidades de “Lembranças de Nhô Tim” foram doadas a cada
um dos estabelecimentos participantes e, como parte de um acordo, toda renda obtida na
venda permanece com os próprietários desses espaços, em sua totalidade, os moradores
da cidade.
Salão de Beleza e Ateliê de Costura e sua proprietária Solange
Imagem de vídeo pausada.
Tiago Gualberto: “Caminhos e Descaminhos da Arte Afro-brasileira”. 20’:04’’ (André Pitol)
https://www.youtube.com/watch?v=0fHpNLG9W4w&t=1152s

Mercado da Eva
Imagem de vídeo pausada.
Tiago Gualberto: “Caminhos e Descaminhos da Arte Afro-brasileira”. 20’:33’’ (André Pitol)
https://www.youtube.com/watch?v=0fHpNLG9W4w&t=1152s
Aqui é a Solange, ela tem um pequeno salão que oferece serviços de costura....Eu fiquei
feliz com a história do seu trabalho Rommulo porque aqui é o mercado da Eva..no caso
eu não paguei nada..nem ela...Mas ela aqui tem uma bancada de DVDs piratas que ela
vende pra todo mundo e aqui a gente instalou...eu pude realizar vídeos entrevistando a
Eva e, enfim, eu já vou falar um pouquinho sobre isso. Mas o importante é que eles
recebem uma espécie de “kit” também porque são eles que definem o preço a partir de
quatro e noventa e nove. E eles que promovem essa circulação, eles que escolhem o local
do espaço deles pra instalar essa mesa, que eu também desenhei..enfim...

Constituem elementos fundamentais dessa ação, outdoors, panfletos, vídeos,


imagens...Eles mesmos tiram imagens e colocam na página de facebook deles, eles fazem
uma circulação desse conteúdo...Eles viram o site também...tem o site
http://lembrancadenhotim.com.br Bom, a segunda intervenção em torno da lembrança
refere-se à produção dessa festa que eu mencionei. [ocorrida] durante a abertura da
exposição “Passagens Sob(re) a Terra Lembranças, Memórias e Territorialidades”
realizada na Casa de Cultura de Igarapé, no dia 11 [de nov. De 2016]. Além de apresentar
oito novos trabalhos de minha autoria, elaborados especialmente para a mostra, esse
evento mobilizou um grande número de moradores da região, incluindo os participantes
do circuito expositivo da “Lembrança”.

Loja da Solange (Iguarapé/MG)


Imagem de vídeo pausada. 00’:02’’
https://lembrancadenhotim.tumblr.com/
Aqui são imagens da loja da Simone, aonde ela vende utilidades domésticas...

Simone e Tiago Gualberto Antônio e Didi


https://www.youtube.com/watch?v=0fHpNLG9W4w&t=1152s
Imagem de vídeo pausada: “Caminhos e Descaminhos da Arte Afro-brasileira”. 21’:51’’ (André Pitol)
https://www.flickr.com/photos/tiagogualberto/

Esse aqui é o Antônio e Didi...essa é a Simone, quem vende as lembranças na lojinha


dela.

Instalação da “Lembrança de Nhô Tim” no bar do Lepa (Iguarapé/MG)


https://www.flickr.com/photos/tiagogualberto/

Aqui é a instalação da “Lembrança” no bar do Lepa, que é um bar bem conhecido no


bairro Resplendor... mas o Lepa é conhecido na cidade toda...
Plutarco em frente ao bar do Lepa (Iguarapé/MG)
https://www.flickr.com/photos/tiagogualberto/

Aqui foi no dia da instalação da bancada com as “Lembranças” na Igreja do Pastor


Landini e Dercy, que foram meus vizinhos por muitos anos. Esse aqui é o Plutarco. A
gente não combinou a cor da camisa, nem a bermuda...Mas eu achei que ficou muito bom,
eu não podia deixar de mostrar essa imagem. Bom, o Plutarco é amigo do meu pai...

O marco inicial pra esse projeto que eu realizei foi em 2013, levar um humidificador de
ar pra minha mãe. A exploração de minério que já existia já há muitos séculos... a
exploração de ouro, mas essa exploração de minério ela é recente. E ela ocorre justamente
numa área que separa o bairro resplendor no qual eu cresci, do [Centro de Artes] Inhotim.
Então são cerca de seis quilometros que nos separam e naquele período bastava cruzar
essa área de exploração que ainda não tinha sido intensificada e que era de propriedade
do Eike Batista323 até ele “quebrar”. Então, meus pais estavam muito ansiosos pra
conhecerem o tal do [Centro de Artes de] Inhotim, então eu os levei em 2013. Mas eles
ficaram muito surpresos porque a primeira coisa que...(risos) é engraçado isso...a primeira
coisa com que eles ficaram muito surpresos foi as pulseirinhas de “vip” que na verdade
impedia eles de usarem os carrinhos de golf. Eles não entendiam...Eu falei que seria legal
fazer o percurso, mas minha mãe ficou muito chateada porque ela queria ter andado nos

323
Empresário que conquistou fortuna explorando a área de mineração, entre outras. Eike Batista chegou a
ter uma fortuna avaliada em quase 30 bilhões de dólares em 2012, segundo a revista Forbes.
http://g1.globo.com/economia/negocios/noticia/2012/03/eike-batista-sobe-para-7-posicao-em-lista-de-bilio
narios-da-forbes.html Mas perdeu grande parte de sua fortuna depois da falência de uma de suas empresas
petrolíferas, a OGX Envolvido com fraudes em licitação, manipulação do mercado, contratos falsos,
suborno, entre outros crimes, ele foi citado no escândalo da Petrobrás e é alvo de investigações por
corrupção e lavagem de dinheiro no âmbito da “Operação Lava Jato” da polícia federal. N. do E.
carrinhos de golf e a pulserinha dela não era da cor dos [que permitia andar nos] carrinhos
de golf. Além dessa lembrança, talvez pequena...Uma das coisas que surpreenderam
muito meus pais foi o fato de que eles de alguma forma, eles já conheciam aquele lugar.
Desde 1870 correspondia a uma comunidade que em 2004 tinha 300 pessoas. Era a
comunidade do Inhotim, essa comunidade foi extinta com a expansão latifundiária do
Centro de Arte Contemporânea. Então o Inhotim nasce a partir de uma fazenda que tinha
noventa hectares e ele passa a ter 140 hectares a partir dessa expansão. Então, onde hoje
nós percorremos jardins e grandes instalações, na verdade existiam Igrejas, casas,
paróquias, creches...tudo isso foi demolido em função dessa expansão latifundiária. Essa
comunidade tem um carater muito peculiar porque era formada por escravos,
descendentes de escravos e por pessoas muito pobres que trabalhavam na mineração.

Cláudia e sua sexshop


Imagem de vídeo pausada 24’:55’’
Tiago Gualberto: “Caminhos e Descaminhos da Arte Afro-brasileira”. (André Pitol)
https://www.youtube.com/watch?v=0fHpNLG9W4w&t=1204s

Ah, essa aqui é minha professora de artes no segundo grau [ensino médio], a Cláudia. Ela
agora tem um sexshop (risos)... lá em Igarapé.
Imagens da exposição “Passagens Sob(re) a Terra Lembranças, Memórias e Territorialidades”, Igarapé,
2016. https://lembrancadenhotim.tumblr.com/
Fotos: Tiago Gualberto e João Alves

Essas daqui são imagens da exposição que eu realizei. Aqui é ela vazia sem a turma que
encheu os espaços.
Antônio, assistente de Tiago Gualberto na exposição
“Passagens Sob(re) a Terra Lembranças, Memórias e Territorialidades”
Imagem de vídeo pausado. 25’’:15’
Tiago Gualberto: “Caminhos e Descaminhos da Arte Afro-brasileira”. (André Pitol)
https://www.youtube.com/watch?v=0fHpNLG9W4w&t=1152s

Esse é o Antônio, que me ajudou muito com tudo...Foi um grande parceiro. Essas
montagens da “Lembrança”, elas não estavam à venda, porque eu, de alguma forma,
queria fazer um teste...Eu só queria reforçar isso: esse projeto, ele é tão fresco. Ele tá
acontecendo tanto fora quanto na minha cabeça. Então, várias coisas eu tenho descoberto
que deram certo e outras não. Uma que deu certo é o fato das pessoas levarem pra casa as
“lembranças, achando que de fato, elas eram pequenos souvenires se não do [Centro de
Arte Contemporânea] Inhotim, talvez da própria exposição ou da minha figura como
artista da região. Ou então o Bernardo Paz que é o proprietário do [Centro de Arte
Contemporânea] Inhotim tinha morrido, porque como tinha essas informações
“Lembrança do Nhô Tim” espalhadas pela cidade, eles achavam que ele tinha morrido e
alguém estava prestando uma homenagem... O meu amigo Pitol foi até Iguarapé
visitar...conhecer o [Centro de Arte Contemporânea] Inhotim e passou por Igarapé pra
comprar algumas lembranças e as pessoas já criaram umas mitologias..” que eu vou ser
convidado pra ser exposto no [Centro de Arte Contemporânea] Inhotim”, “que Nhô Tim
era um jardineiro que eu conheci na minha infância e que me inspirou ser artista”,
enfim...(risos). O que eu tô muito orgulhoso é que essas pontas..né? Essa conformação da
embalagem, eu poderia falar horas sobre ela...
https://www.flickr.com/photos/tiagogualberto/

...Mas... aqui foi no dia da abertura...O que aconteceu? No último dia da exposição, que
essa exposição ficou cerca de um mês aberta ao público na casa de cultura de Igarapé, é
que ela foi “limada” [Alguns visitantes roubaram as “Lembranças”]... Não acabaram com
tudo, mas de fato, ela perdeu essa composição que sugere uma geografia que é muito
forte na cidade, que é justamente as áreas de exploração de minério.

https://lembrancadenhotim.tumblr.com/
Mas, voltando...Essa é uma das imagens que também estava exposta na exposição.

https://lembrancadenhotim.tumblr.com/

Essa é uma imagem do display dos vídeos que eu produzi podem ser vistos também na
internet324. Eu realizei, enfim, eu realizei muitas coisas em volta desse objeto.

http://lembrancadenhotim.com.br/

324
http://lembrancadenhotim.com.br/projeto/
Essa é uma performance na frente do [Centro de Arte Contemporânea] Inhotim, que é
justamente numa parte da estrada que separa a parte da exploração de minério...que é um
complexo muito grande. É curioso como isso é justamente na porta do [Centro de Arte
Contemporânea] Inhotim. Não sei quem já foi se se lembra disso. De todo modo, me
interessam muito essas narrativas que são construidas a partir desse nome ambiguo que é
o Inhotim. No site do [Centro de Artes] Inhotim eles atribuem o nome do Centro de Arte
Contemporânea à figura do Senhor Timothy...Desse minerador inglês que era proprietário
de parte dessa região. Eu acho importante, então, eu vou ler essa citação do Inhotim:
Há ainda o relato da viagem do engenheiro inglês James Wells pelo Brasil entre os anos
de 1868 e 1886. Em determinado momento, ele relembra uma conversa com um
trabalhador negro em uma estrada próxima à Brumadinho. O linguajar local indica que
a palavra Inhotim poderia ser uma corruptela da expressão usada pelos escravos para
dizer sim senhor: ‘Nhô sim’.. A existência de seis comunidades quilombolas no município
de Brumadinho, quatro delas reconhecidas pela Fundação Palmares, reforça a hipótese.
(http://www.inhotim.org.br/blog/origem-nome-inhotim/ acessado em dezembro de
2016)

Bom, de qualquer modo, o uso desse parônimo... é difícil quando a gente fala, identificar
qual é a diferença de “Inhotim” pra “Nhô Tim”. Vocês devem, enfim, ter visto bem que o
nome que eu atribuo à “Lembrança” é o nome do “Nhô Tim”. Então., minha tentativa que
eu ainda estou testando, como eu disse, com algum sucesso e outros não, é envolver ou
tentar evocar memórias que eu julgava pertinentes para essa comunidade.
Inclusive...vocês já conheciam essa história da comunidade do Inhotim? Que foi apagada,
pra ser substituída por uma narrativa que envolve o circuito da arte contemporânea...
Talvez um dos maiores prestígios até agora...Mas também de criar certas rupturas e
narrativas oficiais, que tratam tanto da história geral quanto da própria história dessas
comunidades lá em Igarapé. No fim, eu acabei percebendo é que há uma potência
bastante grande de transformar também esses meus desejos numa espécie de paródia pra
pensar como que questões ligadas ao circuito de arte ou à própria circulação do objeto ou
a as hierarquias que se constróem para [que] as impressões do objeto artístico possam
acontecer. Também testar os limites do que seria periférico e marginal, dentro de uma
produção artística contemporânea...não é?

Por fim, eu gostaria de alguma maneira elogiar a pessoa que deu o nome à mesa o
Renatinho me disse que foi a Juliana. ‘Caminhos e Descaminhos” pra arte
contemporânea...pra arte afro-brasileira...né? Porque o oposto de caminho não é
descaminho...né? Embora soam bastante semelhantes, os dicionários trazem
“descaminho” aproximadamente dessa forma..né? “Descaminho” é um “sumisso, um
extravio aos direitos, contrabando, mau proceder, desgoverno e malversação.”
Descaminho também pode ser compreendido como um verbo, o ato de “descaminhar,
fazer desaparecer, dar descaminho, extraviar, perder, sumir, tirar o que é de outro,
subtrair ao direitos aduaneiros ou de consumo”. Mas o que mais me interessou foi o
código penal, mesmo..né? Porque “descaminho” é um delito, né? Então, entendido como
uma prática, é a ilusão do pagamento do tributo de mercadoria permitida ofendendo a
ordem tributária. Ele tá descrito no [artigo] 334 e no 334a que é “iludir no todo ou em
parte o pagamento de direito a imposto devido pela entrada e saída ou pelo consumo de
mercadoria”: reclusão de um a quatro anos. “Importar ou exportar mercadoria proibida”:
reclusão de dois a cinco anos. [mudança involuntária para o próximo slide] oopa, quase
que eu entrego o ouro...(risos).Bom, essa palavra é significativa porque, logo que eu
fiquei pensando, caminhos e descaminhos...descaminhos...aí eu lembrei...claro, por isso
que eu trouxe aqui o Estevão Silva....porque...

Estevão Silva (1844-1891) “Menino com Melancia”


http://museuafrobrasil.org.br/pesquisa/indice-biografico/lista-de-biografias/2014/12/30/estev%C3%A3o-roberto-da-silva
http://deniseludwig.blogspot.com.br/2014/04/arte-brasileira-de-estevao-silva.html
Esse pintor carioca que foi filho de mãe escrava e tem obras presentes aqui no acervo da
Pinacoteca foi filho de escravos africanos, ele nasceu alguns anos antes da Kathe
Kollwitz em 1845. Era um exímio pintor conquistou a Medalha de Prata nas Exposições
Gerais de Belas Artes de 1876 e 1879. A Medalha de Ouro de 2a. Classe na Exposição
Geral de Belas Artes de 1874 e o Prêmio Aquisição na Exposição Geral de 1890. Mas
quando ao contrário, do que todos esperavam, o artista não recebeu o prêmio de
Exposição Geral de Belas Artes de 1879, Estevão protesto numa sessão solene diante do
próprio Imperador, o que lhe rendeu uma suspensão dos estudos por um ano. Então, essa
história de pensar essa produção afro-brasileira dentro de uma ideia de ‘descamnho’ não é
muito nova, mas ela sugere como que...um amigo meu, me deu um bom conselho, certa
vez, ele disse que, quando a gente sempre ouve não...a gente tem dificuldade de dizer não.
E talvez, assim como o nome do Inhotim sugere uma prática muito comum de dizer “Sim,
Senhor”, o Estevão Silva disse “não”. E eu acho que nesse quadro que eu tentei, muito
brevemente trazer é de pensar de como nós artistas afro-brasileiros nos inscrevemos às
vezes é muito mais difícil dizer não do que dizer sim. Então, eu encerro minha fala...sem
antes dizer que...como nós estamos na Pinacoteca, eu vou vender a lembrança de Inhotim
a R$49,99 (risos)... Então, quem quiser me procurar no final, pode comprar...tá bom...a
gente tem algumas peças aqui...Muito obrigado...

Sessão de Perguntas

Renato Araujo

Bom, muito obrigado Tiago, Janaína, Rommulo. Em primeiro lugar eu queria agradecer a
vocês pela apresentação. Muito interessante, instigante também. Ela demonstra muito que
aquelas teorias todas que a gente vinha trabalhando e estudando a respeito da arte
afro-brasileira elas têm que serem questionadas e refeitas...não é? A apresentação de
vocês demonstrou um pouco isso. Eu tenho três páginas de perguntas (risos)...no entanto,
nós já estouramos em 15 minutos o nosso tempo. Então, vou reduzir as três páginas para
uma única pergunta para os três, mas é uma pergunta para os três em relação ao trabalho
dos três, porque se não, não daria tempo da gente discutir bem. Então...mas eu percebo
um pouco como vocês trabalham com multimeios eu percebo que o trabalho de vocês tem
algumas coisas em comum e outras coisas que não são em comum. No entanto, eu
percebo que...vou pensar um pouco na questão do descaminho...no fundo, “descaminho”
ele é um contrário também...o descaminho ganhou várias acepções ao longo do tempo..né?
Pensando nessa ideia de descaminho pra arte afro-brasileira e para a arte de vocês,
independentemente de serem atribuido esse termo, eu penso um pouquinho nessa ideia
que o Rommulo comentou sobre a temporalidade para a negritude, parece que essa
temporalidade tem a ver um pouquinho com esse descaminho...Então, eu queria que
vocês recuperassem um pouquinho essa noção de temporalidade do Rommulo e que...a
Janaína em relação à ideia de problemas logísticos que também aparece no trabalho do
Rommulo, eu queria que você retomasse....[problemas no microfone]...a discussão que
você levantou Janaína, a respeito dessa questão de autoria e autoridade...porque, no fundo,
são discursos... né? São discursos negros... e esses discursos também acabam aparecendo
eventualmente como discurso da alteridade, não é? Por exemplo, você tem a questão
das “bonecas de Bitita”, é um discurso definido, não é? E eventualmente as pessoas que
vão visitar uma exposição sua e vão se deparar com a Cláudia, se deparar com a “boneca
de Bitita” e vão perceber ali um discurso e eventualmente essa pessoa não tem esses
“caminhos”..ne? ...do discurso que eventualmente nós, teóricos ou artistas temos, né?
Então eu queria que você comentasse um pouco a respeito desses “caminhos e
descaminhos”. E com relação ao Tiago, rapidamente, uma questão que me tomou
bastante a atenção é a ideia da frase do Mubarak que é “imprima isso num papel de
verdade”...né?

Tiago Gualberto
-Do Grassman!

Renato Araújo
-Ah, foi do Grassman! Parece que há um descaminho...[problemas no
microfone] ...dentro dos caminhos da arte afro-brasileira havia uma necessidade de
imposição de um caminho e de uma...de uma espécie de direcionamento para o artista
afro-brasileiro, parece que há necessidade de imprimir uma temática. Uma boa parte dos
teóricos afro-brasileiros indicam que sem uma temática afro-brasileira não há arte
afro-brasileira. Uma boa parte deles pensa assim. E no entanto, o que vocês mostraram
aqui foi exatamente o oposto. Parece que sendo chamado isso “arte afro-brasileira” ou
não... A noção de temática “afro” ela pode ser bastante “desencaminhada” (risos). Bom,
eu gostaria de abrir pras questões e eventualmente vocês possam tocar ao longo das
questões...a respeito das coisas que eu toquei [aqui] agora...Tá bom? Por favor...

Juliana Ribeiro
- Eu tenho perguntas, mas eu vou esperar...primeiro a plateia.

Wagner Leite viana


- Bem, boa tarde, gente. Na verdade eu vou...eu poderia também fazer várias perguntas.
Mas aí, vou fazer um comentário direcionado pro Rommulo, porque ele trabalha com
aqueles trabalhos que são espaços, né?...que vão se combinando e aí você fala da história
da cozinha...e aí voce põe em crítica as relações das elites com a cozinha..né? E aí a
glamourização da cozinha...E aí eu fico pensando...quando eu vejo os seus trabalhos eu
lembro da casa da minha mãe..né?...Quando você chegava...daqui a cozinha...daqui você
vira pra cá já era uma outra coisa...cê dá um passo pra cá...já era tipo a biblioteca outro
passo..sabe? Essa inteligência também de organizar o espaço e essa relação com “canto”
né?.,.quer dizer, muitas vezses numa casa pequena com muitas pessoas você não tem um
“Quarto”, voce tem um “canto”! E todo mundo tem um “canto”...né? Todos os filhos têm
um canto, o pai tem um canto...mas numca um canto só, né? E aí eu acho interessante
como você traz essa relação da memória que ao mesmo tempo são fragmentos de coisas
que não são reconstituíveis, mas por sua vez, funcionam como agregadores de potência,
de inteligência, de resposta....que eu acho que o trabalho ele....Daí como você entende
isso, talvez [desse pra falar] um pouco mais disso..?
Rommulo Conceição

...É muita coisa! (risos) a gente tem umas travas...assim...tem...É muita coisa! Vamos ter
que fazer isso mais vezes... assim...até entender o que que a gente tá fazendo. É uma
sugestão, assim (risos)...Mas vamos lá...Então, tem duas coisas que eu acho bem
bacanas...assim. Então, pra comentar como é que eu construí esses trabalhos isso também
é legal. Eu vou tentar ser breve pra gente conseguir fomentar coisas aqui. Então, todos
esses trabalhos são construídos na periferia...eu moro em Porto Alegre, então, são
construídos na periferia de Porto Alegre. Vou contar essa história que é bem bacana. E aí
o que que a gente fez? Bom, eu vou pro atelier de um marceneiro, a gente trabalha com
esse marceneiro e a gente tentou chamar um aprendiz de marceneiro. Então, fomos visitar
várias casas, claro. Eu fui visitar várias casas, porque eles já moram lá. O bairro se chama
Restinga, que é bem periferia. Porto Alegre teve uma coisa
‘bacana”...horrível!!!...Quando eu falei “bacana” não foi do bem, não...(risos)...É absurdo
o que eu vou falar..mas deveria ser revisto...Se tirou vários negros do centro de Porto
Alegre, alguns resistiram. Porto Alegre é a cidade que mais tem quilombos urbanos do
Brasil, por incrível que pareça. Por mais que tenham tirado esses quilombos urbanos..né?
Quem não resistiu foi colocado na periferia...Uma das periferias se chama Restinga e é
bem grande asssim...então o pessoal teve de buscar novas formas de trabalho,
enfim...desse lugar..totalmente do zero...né? Só que quando você entra nessas casas e
eu...eu te contei...eu sai de casa aos 14 anos e morei em vários lugares...morei em sóton,
morei em porão...(risos)...morei... enfim. E esses lugares eles são interessantes porque
eles são o que são...eles são jeitos de operar esses lugares. O que me chama muito a
atenção é que, qual é a identidade que se cria desse lugar e qual é a noção de espaço que
essa pessoa vai ter pro resto da vida inteira? Entendeu? Então, é bem o que você
falou...assim...em alguns lugares são...durante a noite ele é o quarto, mas durante o dia é a
sala de estar...desloca tudo e vira, esconde a cama...durante o dia a cama vira sofá...Ah, já
morei em lugares assim também, entenderu? E isso vai tirando da gente...e é o que eu
acho que deriva nos [meus] trabalhos depois que é a noção de propriedade mínima. Não
tem uma noção de propriedade mínima. Tudo pode, tudo fica muito possível, tudo fica
permissivo..ou não.... ou vai buscar isso porque tu não tiver...porque tu não...eu não
sei..são formas diferentes que eu acho todas fantásticas de operar a espacialidade das
coisas...eu não sei...ainda estou pensando nisso. Eu visito muitas coisas...eu visito muitas
casas e etc. E nessas operações de pegar essas pessoas para serem aprendizes, seja de
marceneiro, seja de artista, que seria a ideia, assim...criar uma coisa hibrida...também
talvez é interessante, talvez essa configuração do espaço não exista pra essas pessoas
também...[pra] elas...nunca vai existir. O espaço dela “íntimo”, não é dentro, é fora, é na
rua. O espaço íntimo dela é fora, já é outra coisa, já. A coisa já virou outra coisa ainda.
Então, é um pouco disso tudo....assim...Mas que nos caracteriza com a nossa identidade
brasileira. Isso daí você não vai encontrar em muitos outros lugares. No japão você tem
isso, mas não é exatamente isso. Tá muito estabelecido a função de cada lugar...entendeu?
Ele tá muito claro. Pra gente não! Tudo é muito fluxo. Tudo é muito permissivo. Tudo é
muito passageiro, tudo é muito...essa temporalidade é muito curta. Tentando resgatar essa
[questão da] temporalidade, o Renato falou, é eu acho impressionante...numa história de
quinhentos anos, dez anos ainda sejam significativos..talvez a gente não tenha quinhentos
anos a gente tem dez. E nesses dez ele é tão forte quanto esses quinhentos, ele [está] todo
impresso nos dez...assim..Eu acho que no tempo de vida de cada um de nós esses
quinhentos anos estão tão registrados que eu não consigo tirar desses quarenta
anos...desses dez anos pra jogar pra um passado muito remoto que e não me apropriar
dele. Não sei se eu estou sendo claro aqui...Em colocando isso num passado muito remoto,
eu não vou...eu Rommulo...eu tentei essas operações...eu não consegui...eu não consegui
porque a minha cultura ficou toda bagunçada...E quanto mais eu jogava num passado
muito remoto mais eu me distanciava da apropriação do problema. Não era mais meu, era
de um passado remoto...do qual eu sou a consequência...Era isso o que eu queria dizer. E
nessa temporalidade que remete nessas distriubições espaciais de coisas, ela tá muito na
nossa vida...tá muito como eu opero as circunstâncias que me são dadas assim...é bem
dentro do meu tempo de vida...entende? É do teu tempo de vida...é do tempo de vida
dela...Não sei..eu preferia operar por ali. Eu preferia operar por ali...talvez... não sei...

Renato Araújo
- Obrigado. Desculpem-me mais uma vez fazer o pedido pra serem breves na pergunta
porque...pela gente, é obvio...a gente ficaria mais tempo aqui, mas tem os funcionários da
Pinacoteca e eles têm o tempo, né? De trabalho...e infelizemente nós não podemos pagar
hora extra (risos)...Tá bom? Mais alguma pergunta? [silêncio] não fiquem assim, só
porque eu falei isso? (risos)

Juliana Ribeiro
- eu vou fazer então, pode ser?

Renato Araújo
- Por favor!

Juliana Ribeiro
- Minha pergunta vai pra Janaína. Jana, no nome da arte afro-brasileira, nós temos uma
figura feminina muito forte que é o da Rosana Paulino, né? Enfim, e isso reflete também
um problema de espaço de outras artistas negras, que eu acho que isso vem mudando.
Mas eu acho que tem uma questão e aí eu quero ouvir a sua percepção. De como se fosse
um legado que a Rosana ainda em vida deixa para as novas artistas mais jovens...de
seguir um pouco a linha dela...e eu digo até em termos de suporte, enfim,
mas...atualmente eu vejo que muitas artistas negras tem encontrado seu próprio caminho,
seu própria identidade, como se tivessem mais livres pra desvencilhar desse grande nome
que é o da Rosana. Eu queria saber se você sente algum tipo de pressão...seja de
curadores...você sente alguma dificuldade de expor...porque escolheu outras linguagens e,
enfim, não sei se eu tô sendo clara, mas se você enxerga isso, por exemplo, que há um
movimento que eu vejo a trajetória de alguns artistas que no começo usavam uma
linguagem muito próxima da Rosana e depois conseguiram achar seus próprios caminhos.
Eu queria saber se você sente essa...algum tipo de pressão por ter esse nome tão
potente...aí....né..na cena da arte afro-brasileira.

Renato Araujo
- Posso só acrescentar mais uma...rapidinho...Apareceu aqui nos encontros passados, uma
pergunta em relação de gênero né, nas artes afro-brasileiras. Eu achei muito interessante
essa pergunta, né... acho que foi ela que fez...qual é o seu nome mesmo? Thaís? Então eu
gostaria de repassar pra você, se você acredita que a ausência de mulheres, especialmente
dentro do circuito de arte em geral tem a ver com uma questão de gênero ou se há algo
mais aí, além disso, né? Ou de gênero ou questão racial ou se há ainda alguma coisa além
disso, se é um problematica do racismo, se é uma problemática do sexismo ou se você
acha que pode ter algum outro tipo de motivo pelo qual as mulheres afro-brasileiras ou as
mulheres artistas em geral acabam não aparecendo tanto no circuito de arte.

Janaína Barros

- Nossa são muitas questões. (risos). Bom, vou tentar...Vou começar pela primeira
pergunta e depois vou tentando alinhavar com as outras. Bom, eu fico pensando muito no
meu trabalho e quando você citou a “Bonecas de Bitita” eu me lembrei de uma cituação
de uma galeria...e que aí, uma pessoa chegou pra mim...uma visitante e perguntou: “por
que que de repente a boneca...” Ela me vendo ali, né? Acho que tem uma relação quando
as pessoas olham o trabalho e eu não estou ali.. “por que que a boneca era branca”? E aí,
foi esse processo de...e ela me perguntou, exatamente: “por que o título?”. Conversando
com ela eu apontei algumas questões, primeiro eu falei quem era Bitita. Quando e penso
essa coisa do título...ele sinaliza um pouco isso...então, tem um pouco de um código
aí...A referência da Bitita, como a referência da Carolina [Maria de Jesus] e aí, enfim...E
aí a ideia da passagem da história e aí e falei realmente da onde que eu tirei aquela boneca,
que era justamente dos modelos de...daqueles bonecos de desenho...de observação...E que
aí a ideia era buscar essa tensão desse gesto..né? E essa questão da próprio modo que
aquela boneca foi construida, eu penso um pouco o que é justamente essa ideia de uma
fabulação sobre o outro...né? Quando a gente pensa o negro, eu lembro do livro da
Gislene Aparecida dos Santos que é “A Invenção de Ser Negro”...né? Na mesma medida
que ser negro é invenção, uma construção histórica. Ser branco também é uma
construção...né? E a própria ideia de uma construção do conhecimento que a gente pode
até pensar nessa ideia de uma história universal..que a gente pode localizar dentro de um
tempo histórico. Então, século xviii, a gente pode começar a pensar o romantismo dentro
do período do romantismo alemão e que aí você vai criando justamente essa ideia de algo
que é universal, que não...que cria hierarquia sobre o outro. E que pra mim quando... Eu
até vendi um trabalho dessa série. E que possivelmente a pessoa colocou como decoração.
E aí eu fico pensando que o meu trabalho, ele tem uma ponta, na verdade, eu penso em
algo que não é dado de pronto...né? Que eu acho que é um pouco na chave da ironia(?)
e como eu me posiciono tambem no mundo...de modo não muito...assim...assertivo. E
que aí pra mim é um pouco isso...né? Então, quer dizer, como que você olha? Um pouco
a própria ideia da construção desse olhar..né? Então, de repente como que eu olho pra
aquilo? Se eu me atento a toda uma ideia de construção desse olhar..né? Como de repente
eu olho pra aquilo. Se de repente eu me atento a toda uma construção que é a ideia do
trabalho..né? O trabalho, na verdade, quando eu trouxe aqui algumas questões, tem
justamente a ver com aquilo que de repente vai me colocando no mundo...por conta de
uma série de questões cotidianas...né? Então, meu corpo ele tá num processo
de...inevitamvelmente...eu quieta ou não...ele entra num processo de confronto. E aí eu
poderia citar “n” situações cotidianas. Mas que é um pouco... como que de repente eu vou
tecer as minhas narrativas...então é um pouco a ideia desses apontamentos que vão
alimentando e vão construindo essa visualidade...e aí quando eu penso essa ideia das
bonecas, é um pouco essa história. Então como que de repente, eu penso nessas questões?
E que as vezes aparecem de modo que alguns trabalhos são mais explicitos e outros são
menos. E aí eu lembro, né? A Rosana Paulino, aí eu vou tentando amarrar aqui..né? Eu
acho que ela é uma referência não só pra minha geração, mas acho que pras outras
gerações também. Acho que o modo como ela...eu me lembro sempre de um texto, pra
mim foi... eu acho interessante esse momento em que a gente tá vivendo... né? Então,
quado a gente consegue citar nomes, e aí elencar nomes...Eu citei alguns aqui...mas a
gente poderia falar muitos outros...pessoas que de repente eu não conheço, mas que eu tô
conhecendo. Então, por exemplo, a gente participou de um processo de imersão, eu e o
Wagner Leite Viana e que a gente acabou conhecendo, por exemplo, trabalhos de pessoas
de Belo Horizonte, lugar que eu estou morando agora...o pessoal de repente do Espírito
Santo que no caso é Cachel Vitorino que vai fazer uma discussão sobre trânsito de gênero,
essa ideia do trânsito do corpo...daria pra citar várias pessoas aqui, né? Então, quer dizer,
a gente tá vendo um cenário de muitas produções...efervescência...acompanhando um
pouco as ações lá na UFMG, quer dizer, os artistas estão produzindo, criando coletivos,
se articulando, então, há uma produção de um pensamento aí, muito forte. Eu lembro da
Rosana que é a primeria referência como artista, quando ela escreve um texto, se eu não
me engano é de 94, em que ela diz: “olha, se te interessa o azul tente o azul.” Mas aí, no
decorrer do texto ela vai falando das coisas que a tocam...então...ela, mulher negra,
cabelo crespo...não sei o quê...vai descrevendo...falando uma série de coisas aí...e se
colocando nesse lugar...Então, quando eu penso a figura dela é um pouco esse processo.
Eu acho que ela é uma figura de uma generosidade muito grande, né? Então, as pessoas
que querem de repente acessá-la...ir no atelier...Acho que já tem vários artistas que já
tiveram oportunidade de ter conversado...ou porque já mantém contato com ela ou por
que já visitaram o atelier e que eu acho que o papel dela nesse sentido, é um pouco o
de ...eu acho que é um processo educativo muito forte..de pensar como articulação
mesmo..né? Eu vejo também outras figuras aqui que tem fomentado essas discussões. A
Fabiana Lopes, que eu penso essa ideia tambem das redes de compartilhamento. Então,
como que se dá esse processo da gente conhecer essas produções, então, o pouco que eu
conheci foi trabalhando no Museu Afro Brasil, mas aí você vai vendo conforme você vai
circulando..você vai vendo que o um mundo muito maior. É imenso. Eu vejo a
articulação..tem ali o Alexandre Araujo Bispo..né? Que é curador e que também escreve
na Menelick [2o.Ato] , tem a Renata [Felinto], enfim, tem uma série de articuladores que
tão aí pensando essas relações não é? Então, como que de repente do ponto de vista da
produção, da crítica da circulação... de pensar exatamente diferentes temáticas...eu vejo
muito...um pouco da leitura dessas produções, que elas estão muito ligadas à deia de
pensar mesmo a ideia de uma reescrita. E pra mim eu penso muito nessa ideia de como
que as coisas funcionam, né? Então, algumas cituações que de repente te faz pensar e de
repente, ”não, mas como isso acontece?” E pensar mesmo nessa ideia de reescrita, né?
Então, pra mim me interessa muito pensar na ideia de imaginário, pensar na ideia de
autoria na ideia desse lugar de quem fala. Essa ideia da autoridade também como...Eu
tava conversando com o Wagner e ele citou o Joel Rufino dos Santos...né? E ele falou,
bom, tem a diferença entre...citando Joel Rufino dos Santos...pensar a relação entre o
“sobre” o negro ou “do” negro... Essa ideia do “tema” ou do “sujeito”...né? Então, quer
dizer qual é o lugar dessa escrita? De que maneira essas coisas vão sendo constituidas e
de repente os artistas vão se posicionando independente de qual seja a linguagem, porque
eu acho que a gente ollha aqui esse cenário..né? Se a gente pensar aqui nós três e se a
gente ampliar isso aqui pra...A gente tem também a Aline Motta que tá ali também, né? O
Peter de Brito também tá ali...Então, e se a gente pensar todas essas produções, quer dizer,
a gente observa caminhos muito diferentes. E eu entendo que de repente a gente tem uma
relação que é inevitavel, né? A gente tá falando de racismo, a gente pode falar também de
machismo, sexismo e ao mesmo tempo pensar como que se dá...depende das escolhas
curatoriais..né? Se a gente olhar, por exemplo, qual é a proporção de mulheres mesmo se
a gente pensar esse debate, a quantidade de mulheres negras e a quantidade de homens
negros...né? E a gente pode pensar gênero..enfim, outras questões que vão pensando
também essa questão da sexualidade também...Enntão, como que de repente isso vai
sendo administrado? Eu acho que isso é uma questão...como que se dá essas
escolhas...Mas...tudo isso pra dizer que eu vejo assim...eu vejo que tem um cenário...eu
vejo, por exemplo, as minhas referencias nas minhas pesquisas que eu venho
desenvolvendo no doutorado é Rosana [Paulino], porque tem essa relação com a
manualidade...me intessa muito essa questão do bordado...a Ligia Lisboa que é uma
artista que trabalha tambem com bordado, mas ela tem essa relação também com a
escultura, a instalação. A Sônia Gomes também que é muito interessante quando ela
pensa também essa relação dos objetos, mas que tem uma articulação com a pintura, com
o desenho...e o próprio modo como essa relação vai se construindo. E outras artistas que
eu tenho conhecido também...Então tem um cenário que é assim...A gente tem essa
relação curatorial, mas tem uma relação muito forte, muito potente também das
mulheres...e com temas mais diversos...performance...instalação, desenho, objeto...enfim.
Acho que a gente pode elencar um monte de coisa..né? Mas é pensar de que maneira
essas histórias aparecem? De que modo elas são contadas? Que é algo que me interessa
muito...né? Entender de que maneira as histórias se articulam e de alguma maneira
visibiliza-las.

Renato Araujo
- Você está otimista, então, com relação à inserção de mulheres no circuito de artes?

Janaína Barros
Olha, eu penso...eu tento pensar assim, numa relaçao otimista porque eu acho que mesmo,
por exemplo, eu acho que tem trabalhos que estão surgindo aí, por exemplo trabalhos da
Priscila Resende. Às vezes os trabalhos vão sendo fomentados pelos processos das redes
também..né? Que você vai conhecendo, vai acessando...Então, teve artistas que meu
acesso aos trabalhos foi por meio das redes sociais, mesmo que a gente tá falando de um
circuito que de repente...é de galeria...o trabalho dela esteve na galeria, enfim,...teve em
outros espaços aí...mas como que a gente vai acessando esses outros trabalhos
também...acho que existem outros caminhos..E que tornam talvez mais um processo mais
democrático desses trabalhos.

Andre Pitol
- Eu gostaria de fazer duas perguntas muito rápidas pro Tiago. (risos) Primeiro, como se
deu essa parceria de você com a Pinacoteca, porque essa mesa vermelha tá estupenda
(risos). Em segundo, como você pensa o futuro desse trabalho? Eu digo isso porque no
meio da sua fala, você falou do site e como esse site esse “não-lugar” vai se articular com
toda essa materialidade e esse caráter muito local do seu trabalho.

Renato Araújo
- Eu senti falta do vídeo também. (risos) Quem não viu, veja! Tá no
http://lembrancadenhotim.com.br/projeto/

Tiago Gualberto

- Bom, eu ri porque o Pitol é um grande amigo meu. Ele tem sido...eu posso esnobar isso,
ele tem sido mais um dos grandes parceiros assim. Mas é, de fato, essa cor está cada vez
mais rara, né Pitol? Então, foi uma parceria incomum. Especialmente na Pinacoteca
(risos). Mas sabe uma coisa que eu tenho aprendido com o trabalho é não cair no engodo
que eu já caí já corri esse risco várias vezes, já cometi esse erro várias vezes que era o de
naturalizar ou de ter uma garantia do efeito de um trabalho...sabe? Às vezes a gente
começa a falar de um trabalho como se a gente já pressuposse tudo o que ele seria capaz
de fazer. A “Lembrança” e não só a pulverização de ações que eu consegui articular em
torno de um objeto comum, mas eu acho que pela própria qualidade...pela escolha que e
fiz, muito consciente, que de alguma forma... me voltar pra uma cidade pequena, me
voltar pro lugar onde eu cresci...pra pessoas que não participam do circuito...De alguma
forma, não ignorar...mas não ceder a certas tentações que o meu lugar...e eu não posso ser
hipócrita já me permitiria acessar....me fazem perceber que eu tenho muito a aprender
como acessar um bom trabalho. Então, essas coisas tem servido como teste. O Jorginho,
por exemplo, que é mestre de capoeira e que foi grande parceiro, ele tem uma bancada. E
ele decidiu não expor. Ele me disse que vai esperar eu ficar famoso e ele vai querer
vender isso pra algum colecionador que vai....(risos) O problema é que o Jorginho...É um
mestre de capoeira incrível..Ele é uma pessoa muito incrível, muito importante no
circuito negro de Igarapé...muito raro...mas perceber o Jorginho, que a princípio é
totalmente alheio à essa discussão teorica, histórica, enfrentando questões em torno da
especulação do universo da arte, de como falar sobre arte dá autoridade e poder...muitas
vezes...essa autoridade, que até então pro nosso circuito é destinada aos acadêmicos, a
alguns criticos de arte, muito raros...De repente, o Jorginho se inseriu nesse circuito. Isso
foi pra mim uma grande surpresa. Eu não imaginava que isso fosse acontecer. Do mesmo
modo que aconteceu o oposto. Que é a Sônia, como você me contou, que ela achou a
proposta um pouco boba, num primeiro instante. Mas se sentiu seduzida pelo fato dela
poder ganhar dois mil reais se ela vendesse tudo... mas ela achou que aquilo era bobo, até
que de repente uma professora de uma escola pública que eu não conheço, vai lá e
compra trinta, trinta e cinco unidades pros seus alunos. E aí, ela ganha uma
graninha...quatro e noventa e nove cada uma...e ela descobre “Oopa! Quer dizer que arte
dá pra fazer dinheiro!!!”..Quer dizer...Essas coisas elas ainda estão...Pra mim tem sido
uma pescaria...eu tenho as premissas que eu ainda estou testando...eu não sei...grandes
dilemas que eu enfrento por exemplo, agora é de como eu não transformo meu trabalho
em apenas imagens. Apenas imagens bem tiradas... num powerpoint...quer dizer, eu sofri
muito pra pensar o que trazer pra vocês...se eu traria essa profusão de boas imagens que
hoje equipamentos maravilhosos são capazes de nos fazer...se a gente tiver um
investimento melhor a gente é capaz de fazer mais belas imagens e a gente fica nisso...
nessas imagens. Quer dizer, eu tô muito contente, eu tô mais...eu tenho enfrentado tantos
problemas que fazem com que eu sinta que o poço é fundo e que eu vou poder...Eu gosto
muito disso..sentir que tem um caminho, eu não sei exatamente qual mas que ele tem me
trazido respostas muito frutíferas, inclusive em ressonância com o trabalho de vocês...
Quer dizer, embora a gente não seja tão próximo quanto eu gostaria talvez como as
condições das nossas vidas propõem, quando a gente sente essas ressonâncias, parece que
também dá um acalanto, né? Dizer “Puxa, de alguma forma nós não estamos isolados”.
Não sei se isso justifica os rótulos...de afro-brasileiros. Mas justificam a nossa presença
nesse mundo e de que a gente tá atento. Então, eu acho que é isso Pitol...Você me ajudou
com uma boa pergunta.

Renato Araújo

- Por falar...Nosso tempo está estouradíssimo, mas por falar em ressonâncias, você acha
que usar o filtro de café como suporte pra xilo tem a ver com o uma rebeldia, uma
violência ao estilo daquelas cores gritantes das grades do Rommulo? O que é o suporte
pra gravura, filtro de café?

Tiago Gualberto
- Bom, Renatinho, eu descobri que a gente depois de dar aulas de arte pra crianças, depois
de trabalhar no Museu Afro [Brasil] e depois....que a gente não deve acreditar nos
artistas...(risos)

Renato Araújo
- você tinha de ter falado isso antes de começar (risos)

Tiago Gualberto
- Então, eu tenho centenas de explicações boas, algumas delas muito sedutoras e outras
menos...sobre os filtros, eu acho que vale..anunciar isso mais importante...do que dizer o
que de fato esse papel é. Porque a gente tá nesse jogo hoje...aonde as nossas falas, seja a
nossa ou seja das autoridades sobre esssas falas são tão importantes ou se parecem tão
mais importantes que os objetos, então, eu acho que vale mais colocar em risco essas
falas e essas autoridades, como a Janaína mencionou do que garantir uma certeza sobre
elas, né?

Renato Araújo
- Adoro provocar (risos) Bom, infelizmente, o nosso tempo esgotou. Então eu gostaria
mais de agradecer a presença de todos. Agradecer ao Pedro, ao pessoal da equipe de
som...né? À Pinacoteca. Pra quem não esteve presente nos outros...me deram a ideia de
fazer um resumo dos cinco dias de apresentações. Então, eu me propus a fazer essse
resumo..né.. numa espécie de um e-book. Se alguém quiser...se interessar em receber o
e-book, pode anotar aí meu e-mail que é renatoaraujo@museuafrobrasil.org.br . Aí eu
envio por e-mail esse resuminho pra quem não pode participar de todos os cinco dias de
batalha...(risos) Olha lá ó..não se esqueçam “Lembrança de Nhô Tim” pelo preço de
R$49,99...(risos) uma pechincha!!!..

Tiago Gualberto
É o preço Pinacoteca! (risos)

Renato Araújo
Muito obrigado a todos!
PARTE IX
Anexos

João Alves de Oliveira (1906-1970), o engraxate que foi pintor das horas vagas.
ANEXO 01 - Apresentação - Renato Araujo da silva

Renato Araújo
Pinacoteca do Estado de São Paulo
Novembro-2016
Da esquerda para direita, acima: Santa Rosa, Edival Ramosa, Almir Mavignier
Embaixo: Bárbara Wagner, Sônia Gomes e Antônio Bandeira
ANEXO 02 - O conceito da arte chamada “Afro-Brasileira”- elucubrações325
(Texto de Agosto de 2011)

Realmente, essa é uma questão que já está ficando antiga e que ainda (absolutamente) não
está fechada, isto é, ainda será preciso discutir muito a respeito.

E isso não é só uma justificativa minha pra dizer simplesmente que eu não tenho uma
opinião formada sobre o assunto.... Mas deixa eu ver se consigo lhe exprimir
resumidamente toda a dificuldade:

Eu próprio só me dei conta da profundidade do problema quando, há 2 anos, um amigo da


Universidade de Brasília (UNB), ao visitar o museu e fazer entrevistas com os educadores
daqui me perguntou sobre isso da seguinte maneira:

‘- O que é arte afro-brasileira? Um artista negro que faz arte acadêmica faz uma produção
"afro-brasileira"? Um artista branco que faz arte "negra" (por “arte negra”, ele quis dizer
uma “arte que exprime elementos de tradição africana”) pode ser considerado um artista
"afro-brasileiro”? ’

Bom, o que eu tentei responder para ele é que para os museus (ou pelo menos para esse
museu), embora a prioridade seja dada para os artistas negros, tanto faz se o artista tem
esta ou aquela cor, uma vez que ele valoriza justamente aquilo que queremos ver
valorizado (as tradições africanas e afro-brasileiras). Assim, temos, por exemplo, em
nosso acervo vários artistas que não se autoproclamaram negros, mas que se
identificaram com essa cultura a ponto de exprimir-se muito bem nela. Cito como
exemplo maior Carybé, que é um argentino branco e um dos maiores artistas
"afro-brasileiros" (vamos dizer assim por enquanto, mas sem deixar de problematizar a
questão). Posso citar ainda outros nomes, como Pierre Verger, Maureen Bisiliat, Edival
Ramosa, Madalena Schwartz, Nelson Lerner, Rubem Valentim (este último um mestiço
bem claro) – todos eles possuem peças fundamentais para o acervo permanente do Museu
Afro Brasil.

Por outro lado, uma das definições possíveis para "arte afro-brasileira", talvez tivesse de
passar pelo critério “cor da pele”. Eu não gosto disso, porque considero que o uso de
critérios muito subjetivos em arte limita essa arte a interpretações muito pessoais. (Não
gosto nem de pensar em discussões como “ah, esse artista não pode ser afro-brasileiro,
não podia estar no museu, pois ele não é tão negro assim”...etc.). Mas há quem acredite
na necessidade política de restringir a alcunha, a nomeação "afro-brasileira" somente para
aquela arte que foi feita por um "afrodescendente" e cuja temática também seja
"afrodescendente". Compreendo a necessidade disso, mas acho isso também muito
delimitante, porque há artistas abstracionistas importantes como Rubem Valentim, que se
identificava cultural e etnicamente com a cultura negra, mas que não gostava da
associação imediata de seus “elementos geométricos” à “símbolos de divindades

325
Texto de e-mail enviado a uma pesquisadora estrangeira que visitou o Museu Afro Brasil que me fez a
pergunta: “o que é arte afro-brasileira”? Renato Araújo, araujinhor@hotmail.com – Agosto/2011. (Este
texto foi o meu primeiro impulso para escrever sobre o tema aqui um pouco menos pior elaborado)
africanas”, por mais que fossem realmente isso no mais das vezes, mas ele queria mostrar
a ênfase geométrica desses símbolos e não o contrário, uma suposta ênfase simbólica nos
elementos geométricos ou uma sobreposição dos símbolos de divindades africanas na
geometria. Pensando num contraponto à essa ideia, há quem afirme que uma das
características da arte afro-brasileira seria um certo “primitivismo” ou “propensão à
estética popular” (o que excluiria totalmente a possibilidade de considerar Rubem
Valentim e Octávio Araújo, por exemplo, como artistas afro-brasileiros (embora se
intitulem negros), dado às características formais, conceituais e abstratas de suas obras).
Como pode ver, a discussão é bastante difícil de ser determinada se não se diz (antes de
propor uma definição), quais seriam os objetivos dessa definição.

Aproveite a leitura dos textos mais genéricos que seguem em anexo. Encontrará neles
alguns parágrafos que tratam superficialmente do tema.
Um dos textos eu não consegui anexar, mas você mesma poderá baixa-lo em :
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27160/tde-26102010-164133/es.php (vá até
o final da página e clique em 1280263.pdf 9.79 Mbytes)

Mas com relação aos textos que tratam do assunto, que nos pediu, posso lhe indicar
alguns artigos que também podem ser úteis ao seu trabalho. Ei-los:

* “Arte Afro-Brasileira: o que é afinal? ” Kabengele Munanga (esse texto está no


catálogo da exposição Mostra do Redescobrimento – Brasil 500 anos. [AGUILAR,
Nelson (org.). Catálogo de arte afro-brasileira: mostra do redescobrimento. São Paulo,
Fundação Bienal, 2000. pp.98-111. ]
(esse livro pode ser comprado em :
http://www.estantevirtual.com.br/boladegude/Colecao-Mostra-do-Redescobrimento-Brasi
l-500-e-Ma-Arte-Afro-Brasileira-38829196)
* “O Negro Brasileiro nas Artes Plásticas”Clarival do Prado Valladares. Cadernos
Brasileiros, ano X. Rio de Janeiro, maio-julho, 1968. (Esse texto foi republicado no
mesmo catálogo citado acima)
* “A Arte Afro Brasileira”Roberto Conduru. Belo Horizonte: C/ Arte, 2007. (esse
livro pode ser comprado em:
http://www.livrariacultura.com.br/scripts/resenha/resenha.asp?isbn=9788576540472&sid
=6624971491233056259123439)
* “ZANINI, Walter. (Org.) História Geral da Arte no Brasil. São Paulo: Instituto
Walther Moreira Salles Fundação Djalma Guimaraes, 1983. vol.2. (não sei se terá acesso
a esse livro, mas esse vol.2 é um princípio muito importante das discussões sobre a
questão da definição e do alcance em termos de potencialidades das artes plásticas
afro-brasileiras) (esse livro, extremamente importante, infelizmente está esgotado:
http://books.google.com/books?id=kuJeAAAAMAAJ&q=arte+afro-brasileira&dq=arte+a
fro-brasileira&hl=pt-BR&ei=zgdyTum3I-mtsQK-2unTCQ&sa=X&oi=book_result&ct=r
esult&resnum=3&ved=0CDUQ6AEwAg )

Imagino que não esteja no Brasil, mas de qualquer forma, todos os livros indicados
podem ser encontrados na biblioteca do Museu.
Finalizando, gostaria de fazer um adendo à essa questão:

O primeiro ponto sobre esse problema de definição, na verdade, me parece que se


encontra na delimitação necessária de "artes plásticas afro-brasileiras", pois, se falarmos
de arte em geral ou nas outras artes no Brasil, (segundo acredito, mas não quero
conduzi-la a pensar como eu) por exemplo, música, cinema, teatro, dança (nenhuma
dessas artes é considerada "em separado" como uma arte afro brasileira, mesmo contendo
todas as variantes que indiquei acima (feita por negros e brancos, com ou sem influência
africana e afro-brasileira). E por que eu acho que é preciso fazer uma delimitação em
"arte (plástica) afro-brasileira"? Porque essa é uma modalidade de classificação que foi
imposta por causa da dificuldade de inserção de artistas negros em museus, seja por causa
do racismo ou seja por causa da quase ausência de negros nas classes mais abastadas
(consumidoras e produtoras de artes plásticas nos circuitos museológicos clássicos).

Nas outras artes, na música, por exemplo, quase não dá pra falar de um só ritmo brasileiro
que não tenha influência africana (mesmo a música erudita, pense por exemplo nessa
influência depositada nos principais compositores eruditos como Carlos Gomes,
Villa-lobos, Guerra Peixe, Camargo Guarnieri, Alberto Nepomuceno, Francisco Mignone,
Radamés Gnatali e Osvaldo Lacerda – antes desses, só havia um realmente importante e
ele próprio um negro, José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), mas nunca ninguém
pensou em chamar sua música de "afro-brasileira", mesmo que alguns estudantes queiram
hoje encontrar elementos "afros" em sua música). Portanto, eu arriscaria dizer que a
música brasileira é por si só "afro-brasileira", a ponto de ser redundante dizer "música
afro-brasileira".

Algo semelhante pode ser dito do teatro, onde tivemos apenas alguns exemplos amadores
na Bahia e no Rio de Janeiro e apenas um profissional em São Paulo, o Teatro
Experimental do Negro (TEN), que foi bastante revolucionário, mas durou tão pouco (12
anos apenas) quanto foi pequena sua penetração na sociedade brasileira (para ser sincero).

Definitivamente não há um "cinema afro-brasileiro" se pensarmos numa definição do tipo


da do "cinema afro-americano", com seus diretores todos, com sua temática negra já
clássica. Fenômenos como Zózimo Bulbul, Joel Zito e Jeferson D, são muito recentes e
não sintetizam ainda os aspectos que talvez devam ser necessários para se constituir algo
chamado "cinema afro-brasileiro", com uma temática negra mais abrangente, como é o
caso no norte-americano). Já a dança é algo ainda mais complicado, pois os grupos de
dança moderna se utilizam conscientemente de gestualidades de uma dança que
chamamos aqui simplesmente de "dança afro", com elementos de danças africanas
aprendidas recente e diretamente da África (incluindo só alguns ritmos e gestos tirados de
danças de culto religiosos de origem africana aqui mesmo durante a história do Brasil).
Mas não há grupos profissionais de dança com temática estritamente "afro" (se é que uma
possível definição de "dança afro-brasileira" exija uma temática estritamente "afro").

Para resumir, eu diria isso: para fazermos um exercício de definição dessa arte dita
"afro-brasileira", precisaremos indicar os "limites" dela. Assim, por um lado há limites do
ponto de vista da cor da pele dos artistas e de suas temáticas e por outro, há os limites
históricos nela, por exemplo: a) o aparecimento de um segmento de mercado para uma tal
arte produzida por afro-brasileiros ou pessoas que se identificam com a temática negra
(entenda nesse caso que seria aparecimento de um segmento de mercado que criaria essa
“arte afro-brasileira”). b) é preciso responder antes à pergunta "para quê a distinção
afro-brasileira na arte?" (Essa distinção pode servir para valorização e inclusão de uma
cultura ou de grupos historicamente marginalizados, por exemplo - mas aí aparece outro
problema que de alguma forma vai além da arte que é o seu uso sociológico, quero dizer,
a ênfase não é mais na arte, mas na necessidade de inclusão de grupos descriminados. E
talvez, assim, essa arte tornar-se-ia secundária ou restrita a um certo "meio" que seria
fechado desde seu início. (No português popular nós chamamos a isso pejorativamente de
"panelinha", entenda esse caso, portanto como a necessidade de criação de uma “arte
afro-brasileira” por razões políticas). c) até que ponto uma "arte afro-brasileira" se
oporia a uma arte "não-afro-brasileira", por assim dizer?

Por que realmente não é esdruxulo falarmos de "arte afro-brasileira" e é tão esdruxulo que
nunca é costumeiro chamar a arte acadêmica (dita europeia) de arte "eurobrasileira"?
(Será a arte europeia um modelo no qual todas as outras formas de artes deveriam se
opor?)

Agora, para terminar, que ótimo que está fazendo esse trabalho sobre "arte afro-brasileira
como fator de integração social" porque, como você pode ver, ainda há muito que se
"integrar" nessa sociedade que se "orgulha" de suas cores. Embora não podemos sem
dificuldades definir o termo “arte afro-brasileira”, no mais das vezes ele foi utilizado ou
bem como valorização das tradições artísticas de um grupo oprimido ou bem como um
“modo de ser”, uma “característica específica”e uma “estética própria”.

Espero não ter complicado mais que ajudado, mas estou à sua disposição para discutirmos
juntos o que vem a ser isso "arte afro Brasileira", o fato é que eu mesmo ainda não sei.
9.2. Pequena Referência às Artes Gráficas

Este é um ponto que merece um destaque à parte, mas eu não poderia deixar de me referir
nestes anexos a algumas das plásticas de contexto afro-brasileiro que contextualizam as
artes gráficas afro-brasileiras. As referências apresentadas aqui, entretanto, não
compreendem nem um sentido histórico, nem alimenta a ingênua ambição de abarcar
toda africanidades das gráficas do Brasil (este estudo ainda está para ser feito, portanto,
seguem algumas pistas visuais de pesquisa que podem ser trilhadas por algum outro
arauto que não eu).

A gráfica afro-brasileira, em sentido amplo e ao mesmo tempo estrito, pode-se dizer,


começou com o editor de menino poeta de 16 anos chamado Machado de Assis: o negro
Francisco de Paula Brito (1809-1861). Seria cômico se não fosse trágico, que a negritude
brasileira cuja sina de pertencer à classe dos analfabetos por mais de 400 anos tenha dado
de presente ao Brasil ao mesmo tempo o seu primeiro grande editor e seu primeiro grande
escritor e mesmo assim, manter em sigilo quase que absoluto a realidade da literatura de
das artes gráficas afro-brasileira. Nesse sentido, não poderemos fazer destaque ou
distinção crônica entre o que seriam as gráficas tipográficas e a ilustração. Não tenho
dúvida de que abundaram na história da civilização brasileira ilustradores negros mais ou
menos esquecidos ou inteiramente abandonados e que os tipógrafos que não tiveram a
envergadura genial de Paula Brito, sequer atuaram por mais de poucos meses ou anos e
foram apagados. Como nos disse uma vez, a mim e ao Tiago Gualberto, o escritor
Osvaldo de Camargo: “A nós negros não nos é dada a chance de sermos medíocres”.

Exemplar da tipografia de Paula Brito – Foto: João Liberato. Museu Afro Brasil
“Francisco de Paula Brito: 200 anos do primeiro editor brasileiro” (2009)
Frontispício de livro de 1847
Tipografia de Francisco de Paula Brito

Na Biblioteca dos brancos absolutamente não medíocres José e Guita Mindlin, é possível
encontrar uma lista de obras impressas por Paula Brito, a quem dedicamos uma exposição
inteira no Museu Afro Brasil em 2009, com direito a publicação de uma revista
comemorativa dos seus 200 anos. De aprendiz de Tipógrafo, ele chegou a montar em
1831 uma tipografia própria, tornando-se um editor cinquenta e sete anos antes do fim da
escravidão – não sejamos tolos e façamos a ressalva, ele não teria conseguido isso sem
uma tez que tendia aos tons claros. Mas, de qualquer forma, além de criar a “Typografia
Fluminense”, “Typographia Imparcial” e a “Imperial Typographia Dous de Dezembro”
ele fundou a Imprensa Negra com os jornais “O Mulato” e “O Homem de Cor”, que
denunciava a condição negra ainda na década de 30 do séc. xix, cem anos antes da “A
Voz da Raça”, o que o torna igualmente iniciador de uma certa “arte gráfica
afro-brasileira”.

OBRAS IMPRESSAS POR PAULA BRITO:

1. ABREU, Casimiro José Marques de - As primaveras, 1855-1858. Rio de Janeiro:


Typ. de Paula Brito, 1859. ix, 260p. front.

2. ALENCAR, José Martiniano de - Mãi: drama em 4 actos. 1ª ed. Rio de Janeiro:


Typographia de F. de Paula Brito, 1862. 4p.s.n., 144p.
3. ANDRADA, Martim Francisco Ribeiro de - Discurso do illustre parlamentar o
senhor Ribeiro de Andrada, pronunciado na discussão do orçamento do Imperio
em o dia 27 de julho de 1837. Rio de Janeiro: Typographia Imparcial de F. de P.
Brito, 1837. 15p.

4. ARAÚJO, Antônio José - Saudação á estatua equestre do fundador do Imperio o


senhor D. Pedro I. Rio de Janeiro: Typographia de F. de Paula Brito, 1862. 8p.

5. ASSIS, Joaquim Maria Machado de - Desencantos phantasia dramatica por


Machado de Assis. Rio de Janeiro: Paula Brito, Editor, 1861. 70p.

6. ASSIS, Joaquim Maria Machado de [trad] - Queda que as mulheres têm para os
tolos traducção do snr. Machado de Assis. Rio de Janeiro: Typographia de F. de
Paula Brito, 1861. 43p.

7. BARBOSA, Maria Benedita de Oliveira - Zaira Americana, mostra as immensas


vantagens que a sociedade inteira obtem da illustração, virtudes e perfeita
educação da mulher como mãi, e esposa do homen. Rio de Janeiro: Empreza Typ.
Dous de Dezembro de Paula Brito, 1853. 3f.s.n., 311p.

8. BARRETO, Domingos Alves Branco Muniz - Memoria sobre a abolição do


commercio da escravatura. Rio de Janeiro: Typographia Imparcial de F.P. Brito,
MDCCCXXXVII [1837]. 46p.

9. CODIGO de Posturas da Illustrissima Camara Municipal. Rio de Janeiro: Tip.


Dous de Dezembro de P. Brito Impressor da Casa Imperial, 1854. 249p.

10. COLLECÇÃO de diversas peças relativas á morte Do illustr Brasileiro Evaristo


Ferreira da Veiga, Para servir de continuação ao folheto intitulado: Honras e
saudades á memoria de Evaristo Ferreira da Veiga, tributadas pela Sociedade
Amante da Instrucção, em 12 de Agosto de 1837. Rio de Janeiro: Na Typographia
Imparcial de F. de P. Brito, 1837. 101p.

11. DIAS, Antonio Gonçalves - Ultimos cantos. Poesias de A. Gonçalves Dias. Rio de
Janeiro: Typographia de F. de Paula Brito, 1851. v, 299p.

12. FRAZÃO, Manuel José Pereira - Cartas do professor da roça artigos relativos à
instrucção publica da côrte, publicadas no Constitucional de março e abril de 1863
por Manoel José Pereira Frazão vice-director e professor de mathematicas [...].
Rio de Janeiro: Typographia - Paula Brito, 1864. 44p.

13. GAMA, José Basílio da - O Uraguay: poema de José Basilio da Gama na Arcadia
de Roma Termindo Sipilio. Nova Edição. Nova edição. Rio de Janeiro: Emp. Typ.
Dous de Dezembro, 1855. 95p.

14. GUADET, J. - O Instituto dos Meninos Cegos de Paris: sua historia, e seu
methodo de ensino por J. Guadet. Traduzido por José Alvares de Azevedo Natural
do Rio de Janeiro e ex-alumno do mesmo instituto. Rio de Janeiro: Typographia
de F. de Paula Brito, 1851. viii, 158p.

15. INDIGENA do Ipiranga - D. Narcisa de Villar legenda do tempo colonial pela


Indygena do Ypiranga. Rio de Janeiro: Typographia de F. de Paula Brito, 1859. x,
119p., iiip. corrigendas.

16. JAGER, Labbé - O celibato ecclesiastico, considerado em suas relações religiosas,


e politicas, por M. Labbé Jager. Publicado em Paris em 1835. Tradusido por [...].
Segunda edição correcta. 2ª ed. correcta. Rio de Janeiro: Typographia Imparcial
de Brito, 1836. 66p., 13f.s.n. notas.

17. MACEDO, Joaquim Manuel de - Luxo e vaidade. Comedia original em 5 actos.


Rio de Janeiro: Typ. de Fracisco de Paula Brito, 1860. 150p.

18. MAIA, Emilio Joaquim da Silva - Elogio Historico do illustre Jose Bonifacio de
Andrada e Silva, lido na sessão publica da Academia Imperial de Medicina, a 30
de Junho do corrente anno, por Emilio Joaquim da Silva Maia, Dr. em Medicina
pela Escola de Paris [...]. Rio de Janeiro: Na Typographia Imparcial de F. de P.
Brito, 1838. 37p.

19. MORAIS, Alexandre José de Melo - Physiologia das paixões e affecções,


precedida de uma noção philosophica geral e por um estudo aprofundado e
descripções anatomicas do homem e da mulher [...]. Rio de Janeiro: Emp. Typ.
Dous de Dezembro, 1854-55. 3v.

20. MORAIS, Alexandre José de Melo - Os portuguezes perante o mundo,


apresentados pelo Dr. Mello Moraes. Rio de Janeiro: Empreza Typog. Dous de
Dezembro, 1856. 205p.

21. NORONHA, Joana de - As consolações por Joanna de Noronha. Rio de Janeiro:


Emp. Typ. Dous de Dezembro de Paula Brito, 1856. 113p.

22. PARENTE, Felipe Alberto Patroni Martins Maciel - A viagem de Patroni pelas
provincias brasileiras de Ceará, Rio de S. Francisco, Bahia, Minas Geraes, e Rio
de Janeiro: nos annos de 1829, e 1850; dividida em quatro partes. Parte I. Rio de
Janeiro: Typographia Imparcial de Brito, 1836. xii, 60p.

23. PORTO-ALEGRE, Manuel de Araújo - A estatua amasonica: comedia


archeologica dedicada ao Ilm. Sr. Manoel Ferreira Lagos vice-presidente do
Instituto Historico e Geographico Brasileiro e director da sessão de archeologia e
ethnographia brasiliana por [...] em 1848. Rio de Janeiro: Typographia de
Francisco de Paula Brito, 1851. 88p.

24. PROGRAMA para a inauguração da estatua equestre do imperador D. Pedro I em


25 de Março de 1862. Rio de Janeiro: Typographia de Paula Brito, 1862. 15p.

25. RELATORIO da directoria da Companhia da Estrada de Ferro de D. Pedro II lido


na sessão da Assemblea Geral em 15 de julho de 1856. Rio de Janeiro: Emp. Typ.
- Dous de Dezembro - Paula Brito Impressor da Casa Imperial, 1856. 16p., 1p.
dobr.

26. RUBIM, Bráz da Costa - Vocabulario brasileiro para servir de complemento aos
diccionarios da lingua portugueza. Rio de Janeiro: Emp. Typ. Dous de Dezembro
de Paula Brito Impressor da Casa Imperial, 1853. 80p.

27. SILVA, Joaquim Norberto de Sousa e - Amador Bueno ou a fidelidade paulistana


drama em 5 actos. Rio de Janeiro: Empreza Typ. Dous de Dezembro de P. Brito,
Impressor da Casa Imperial, 1855. 94p.

28. SILVA, José Bonifácio de Andrada e Silva - Elogio Academico da senhora D.


Maria Primeira, recitado por José Bonifacio de Andrada e Silva, em sessão
publica da Academia Real das Sciencias de Lisboa, Aos 20 de Março de 1817.
Rio de Janeiro: Na Typ. Imparcial de Francisco de Paula Brito, 1839.

29. SILVA, Manuel Antônio da - Á Sua Alteza Imperial, a Serenissima Senhora


Princeza D. Francisca Carolina, e a Sua Alteza Real o Serenissimo Senhor
Principe de Joinville, por occasião de Seo Faustissimo Consorcio e proxima
partida. Respeitoso cumprimento pelo Conego Manoel Antonio da Silva. Rio de
Janeiro: Typographia Imparcial de F. de Paula Brito, 1843. 8p.

30. SOUSA, Antônio Gonçalves Teixeira e - O cavalleiro teutonico; ou, A freira de


Marienburg: tragédia em 5 actos, por Antônio Gonsalves Teixeira e Sousa escripta
em 1840. Rio de Janeiro: Emp. Typ. Dous de Dezembro de P. Brito, Impressor da
Casa Imperial, 1855. 98p.

OBRAS E TRADUÇÕES DE PAULA BRITO

31. BRITO, Francisco de Paula - Poesias. Rio de Janeiro: Typ. Paula Brito, 1863.
xxxvii, 207p.

32. DAVID, J.A. - Emilia, novella de J.A. David. Trad. por P.B. Rio de Janeiro: Typ.
Imp. e Const. de J. Villeneuve, 1840. 119p.

33. DELANOUE - A casa de duas portas, novella; trad. por P.B. Rio de Janeiro: Typ.
Imp. e Const.de J.Villeneuve e Comp, 1839. 40p.

34. LIMA SOBRINHO, Alexandre José Barbosa [sel] - Os precursores do conto no


Brasil. Introdução, pesquisa e seleção de Barbosa Lima Sobrinho. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1960. 296p. (Panorama do conto brasileiro, v.1).
OBRAS SOBRE PAULA BRITO

35. MORAIS FILHO, Alexandre José de Melo - Artistas do meu tempo, seguidos de
um estudo sobre Laurindo Rabello [por] Mello Moraes Filho. Rio de Janeiro: H.
Garnier, 1904. 184p.

36. MORAIS FILHO, Alexandre José de Melo - Artistas do meu tempo, seguidos de
um estudo sobre Laurindo Rabello. Rio de Janeiro: Garnier, 1905. 184p.

Embora eu tenha nascido no bairro do Belém, em São Paulo, eu fui morar na Vila
Esperança aonde fiquei até os meus 7 anos de idade, frequentando os barracões do seu
nenê na época de carnaval, experiência essa que me fez sentir que fosse para mim aquela
divisa do Seu João Rubinato:

Vila Esperança, foi lá que eu passei


O meu primeiro carnaval
Vila Esperança, foi lá que eu conheci
Maria Rosa, meu primeiro amor

A minha Maria Rosa se chamava Cibele, mas quem se importa, não é? São tantos
carnavais e são tantos vens e vais e os amores, para os poetas, são como folhas ao vento.
E as outras folhas, aquelas que convém demarcar e registrar certos acontecimentos que
para nós negros seriam acontecimentos dignos da vida, mas que cuja memória o coração
finca mais que os arquivos e os mofos advindos do cheiro de uma certa celulose em
apodrecimento...acabam mesmo sendo amores que o vento levou... Mas foi aí que eu me
lembrei de que quando eu era adolescente, já em Itaquera, anos antes da criação da
Leandro de Itaquera (outra Escola do meu coração) aconteciam mil coisas naquela Cohab
II, e certamente as gráficas afro-brasileiras da zona leste, seja na Vila Matilde, Vila
Esperança, Penha, Itaquera, são tão antigas quanto são os bairros, porque negros, porque
vivificados de toda essa multiplicidade de afrobrasilidade que só a zona leste de São
Paulo pode oferecer à cinzenta Paulicéia (sem desmerecer a honradez da zona norte e sua
história afro-brasileira, único local hoje em São Paulo aonde se pode encontrar negros da
classe média e à zona sul, com sua negritude em si mesma, tão genialmente cantada pelo
Mano Brown e outros), sem contar o oeste bem oeste fora da cidade.

Na década de oitenta (a que eu me recordo mais) abundaram as gráficas negras. Nós


fazíamos gráficas até para bailinhos pretos de fim de semana...Tudo isso obviamente se
perdeu, a não ser que algum louco acumulador tenha mantido isso em algum canto
mofado por aí, que eu não conheça. No meu caso, eu não sou louco nem nada, mas o fato
é que algumas coisas sobraram... E eu gostaria de dividir isso com vocês. Boa parte da
gráfica do período fazia parte da cena hip hop, que eu não aderi (exceto pelo Break
Dance, que chamamos depois simplesmente de “breique”, mas como eu era muito jovem,
aquilo não era para mim ainda “cultura hip hop”, mas apenas “diversão” e “um modo
divertido de ver e de ser visto pelas minas”.
Claro que eu sou o primeiro a entrar a defesa de uma certa africanidade dentro das
gráficas brasileiras. Agora, embora eu não saiba bem como definir essa gráfica, se se
falou outrora de um certo maneirismo, “exageiro” ou profusão de elementos e cores, é
especialmente à Nigéria que devemos essa tradição gráfica, mas, por outro lado, nos anos
70 e 80 parece que houve uma simbiose entre toda África e diásporas urbanas que me
parece impossível de não ser notado – não há espaço para fazer aqui esses paralelos, mas
não são difíceis de serem estabelecido.

Cartaz do Exército Popular do Partido Comunista Sul-Africano -1986


http://chnm.gmu.edu/worldhistorysources/r/314/whm.html

Campanha de fim de Recrutamento (ECC)


África do Sul – 1985
http://www.sahistory.org.za/organisations/end-conscription-campaign-ecc
Para vencê-los pela repetição, insisto: fundada sobre o grito eterno do non passaron e criada como “Revista
de Filosofia e Cultura” em 1999, a revista anti-facista ferreavox foi aonde eu publiquei meus antigos textos
de filosofia; e é ainda hoje a editora por meio da qual eu tenho publicado meus e-books. O termo
“Ferreavox” vem de uma citação que mistura a referência da Eneida de Virgílio com uma reedição em
Cícero e Erasmo de roterdã: Non, mihi si linguae centum sint, oraque centum, ferrea vox, omnis scelerum
comprehendere formas, omnia poenarum percurrere nomina possim (Tradução: Mesmo que tivesse cem
línguas, cem bocas e voz de ferro, eu não poderia enumerar todos os tipos de loucos, nem todas as formas
de loucura). Virgílio (Eneida, livro VI, verso 625). Para mim, esta não era senão uma “revista de filosofia
dos tempos da faculdade”, mas para os revolucionários franceses do XVIII, que criaram um jornal com este
nome, era o único lugar aonde se “botava a boca no trombone”!

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