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A solidariedade e o Natal 2020

Isabela Camini1-Dez/2020
Quando tu mesma, um dia, perguntares diante de uma criança morta de fome ou de um velho
abandonado feito trapo, pelas ruas: “Que fizeste papai?” – poderei responder-te, se estiver vivo:
“Clamei por toda parte. Agitei, sacudi, dei tudo que tinha de mais caro: a mocidade, o sossego,
o ócio, os bens materiais e a liberdade, para ajudar a abolir essa servidão”. Mas, se estiver morto,
esta carta será a minha resposta à tua pergunta. Por isso, Isabela, vou te falar agora daquilo que
busco ser: compreenderás então o meu radicalismo. E por que vim para o cárcere (Francisco
Julião, 47)2.

Meus caros, esta carta se pretende portadora de esperança, ainda que venha, a princípio, denunciar
uma realidade dramática, apresentada por Julio Berdegué3 e Frei Betto4, conhecedores da avassaladora questão
da fome, que ronda o mundo, provocada pela desigualdade econômica e social e agravada sistematicamente
pela Pandemia. Sem dúvida, estamos unidos a eles nesta denúncia, porque como nos diz Leonardo Boff, “atrás
destes números se esconde uma via-sacra de sofrimento de milhões de pessoas, maridos, esposas, filhos, filhas,
parentes, amigos e conhecidos. Somos atualmente uma humanidade crucificada. E devemos baixá-la da cruz
e ressuscitá-la”5.
Contudo, esta carta quer ser anunciadora de gestos de solidariedade capazes de mover o mundo,
alcançando uma população sedenta de justiça e de esperança. A carta-testamento de Francisco Julião, escrita
no cárcere, à filha, Isabela, é testemunha de que precisamos clamar, agitar, sacudir, dar tudo de si para resolver,
de vez, a fome no mundo, porque ela degrada e machuca a criatura humana. Como poderemos dormir, sabendo
que tem crianças com fome?
Provavelmente o Natal de 2020 marcará profundamente há milhões de pessoas no mundo inteiro.
Algumas, porque têm exageros à sua mesa, e acumulam desenfreadas riquezas, alimentadas pelo consumismo
e falsa segurança. Se lhes resta algum fio de humanidade, terão de se envergonhar e pedir perdão. Outras mais,
porque nada tem, e podem morrer da doença chamada – fome, cujo único tratamento é comida na mesa. Seja
como for, o Natal é a celebração de vida nova anunciada há dois mil anos. A Pandemia que alcançou
hemisférios deferentes, alertando-nos a redobrar os cuidados, afetou os mais pobres, ceifando vidas
prematuras, e deixando outras vidas em sofrimento e desolação. Por isso, não creio que este Natal de 2020
deva ser de festas desmedias e ostentação de vestes novas e troca de presentes. Talvez o farão deste modo,
aquelas pessoas, que veem no Natal a oportunidade de comércio e de lucros, sem se importar com as milhares
de vidas perdidas e os rastros de luto que ficaram.
Sim, o Natal de 2020 marcará, de modo especial, aos que tem um coração generoso para doar alimentos
e esperança, e aos que tem fome de pão e de justiça, e poderão saciar a fome de pão, pelo menos no dia em
que a vida se renova. Para estes, será um Natal diferente, regado pela solidariedade, e amor à humanidade.
Um Natal a não ser esquecido, porque o período dramático causado pelos problemas sociais, aprofundados
pela Pandemia, terá que ser lembrado nos atos de resistência e lutas socias, até o dia em que possamos cantar
a liberdade, junto com os oprimidos. Esse eco deverá alcançar os corredores dos palácios e dos condomínios,
cercados por arames farpados, muros e seguranças humanas, que guardam aqueles/as cujo medo dos pobres
os coloca também em uma prisão, cerceados de liberdade.

1
Do Setor de Educação do MST.
2
JULIÃO, Francisco. Até Quarta, Isabela. Carta-Testamento (memórias, 1965). Petrópolis, Vozes, 1986.
3
Na América Latina, não há fome por falta de alimentos, há fome por falta de renda e pela desigualdade econômica
sofrida por milhões de pessoas - Julio Berdegué, Vice-diretor-geral da FAO e representante regional para a América
Latina e o Caribe, desde 22 de abril de 2017. Revista IHU – ON-LINE, 21 de outubro de 2020
4
Segundo a Oxfam, 12 mil pessoas podem morrer de fome a cada dia até o final de 2020. Frei Betto é Frade
dominicano, escritor, assessor da FAO e de movimentos sociais. Revista IHU – ON-LINE, 21 de outubro de 2020.
5
BOFF. Leonardo. C0VID-19 – A Mãe Terra contra-ataca a humanidade: advertências da Pandemia. Petrópolis, Editora Vozes,
2020.
Ainda que a Pandemia tenha assustado o mundo, há milhares de pessoas mergulhadas na pura
indiferença, no negacionismo, ensaiando a cegueira para não ver a realidade, ostentando a fartura de bens,
mas sem a beleza da gratidão. Estes não dormem e nem acordam com fome em nenhum dia do ano. Sua
insensibilidade os impossibilita de perceber as pessoas vivendo na miséria, nas praças, com fome e frio,
maltrapilhos. Ao percebê-los, de longe, lhes causa amargor, raiva, porque julgam: eles não querem trabalhar,
são preguiçosos! Se possível, na primeira oportunidade, alteram o trajeto, porque não os ver e negar-lhes um
olhar, reafirma sua zona de conforto, Casa Comum dos indiferentes. Alterando o trajeto, adubam e regam essa
indiferença, e a sua própria desumanidade. Se comportam deste modo, porque sua mesa é farta, embora não
conheçam o significado do trabalho, seus palácios estão aparentemente protegidos. Por isso incapazes de olhar
nos olhos daqueles cuja fome lhes dói todas as manhãs, tardes e noites, sentindo frio porque não têm agasalhos,
não dormem, porque perseguidos pela polícia. Negados de ter casa, da convivência humana, de sentar-se à
mesa, impossibilitados de ler o mundo e dizer a sua palavra.
Os indiferentes, se negam a admitir que a mãe terra, nas mãos de muitos trabalhadores, produz comida,
saúde, bem estar, realização e gratidão. Mas sabem eles, e admitem, que plantar em demasia, e fartar as plantas
e as águas de venenos para produzir mais e exportar, é direito assegurado pelo capitalismo explorador. Por
isso, não é razoável imaginarmos tantas criaturas com fome num país tão rico, e de pessoas ainda tão
generosas. Não é razoável, admitir que a riqueza esteja concentrada nas mãos de menos de 10% de famílias
brasileiras.
Pois bem, disse acima, que essa missiva chegaria a vocês para anunciar, porque sabemos e conhecemos
a fonte fecunda, que nos permite fazer esse anúncio. Por isso, não creio ser exageros dizer que o valor da
solidariedade e da partilha estão na raiz, no embrião do MST. Quando as primeiras famílias decidiram
enfrentar o latifúndio e ir acampar, para manter-se camponeses e cultivar a mãe terra, permanecendo debaixo
das lonas em luta, até conquistar um assentamento, prometeram a si mesmas: arar, semear, cultivar, regar,
colher, e partilhar os frutos que brotam da terra. E este princípio perpassa a luta dos Sem Terra, de uma geração
para a outra, cruzando fronteiras, alcançando 24 estados do país. Por isso, hoje, estão indo ao encontro
daqueles/as, cujo espaço onde vivem, não lhes permite cultivar sequer algum alimento. Suas moradias,
pequenas e precárias dão conta apenas de viver entulhados, sem privacidade alguma, ausentes de dignidade.
Vivendo nestas condições, não há como evitar a proliferação do Vírus, a violência, a morte e o luto que rodeia
as periferias urbanas. Vendo-se distantes de possibilidades de trabalho e de lazer, com acesso a minguadas
políticas públicas de saúde e educação, roubados de direitos e dignidade, afetados ainda mais pela Pandemia
que demora passar, ficam à mercê do medo e da insegurança que atravessam suas noites. Seres humanos,
invisibilizados, sujeitos a morrer de fome e de frio, de balas perdias, como vemos todos os dias. Quem os vê?
Quem os visita na prisão?
Solidariedade é partilhar o melhor que temos em nossos
assentamentos, alimentação saudável, comida de verdade6.
O MST, lá da roça, vê essa realidade, ouve seu clamor e se comove. Não porque tem pena, mas porque
está do lado do pobre, com um coração que sangra todos os dias, com um estômago, cuja fome o esmaga e
humilha, levando-o à tristeza e degradação humana. Do lugar distante onde vivem, nos assentamentos e
acampamentos, ouvem seu apelo. Por isso renovam os princípios e valores de solidariedade que lhes deram
origem há quatro décadas: conquistar a terra, arar, plantar, regar, admirar a lavoura, e depois, colher os frutos.
E porque a mãe terra não tem dono, mas é de quem nela trabalha e cultiva, os frutos são partilhados
solidariamente com os que tem fome nas periferias das cidades.
Há meses atrás soubemos que MST tomou uma decisão coletiva, de escolher e reservar um pedaço do
lote para plantar uma diversidade de alimentos, destinados a doação para famílias carentes, no Natal. Sem
dúvida, esta prática, portadora de dignidade humana, falará mais alto que muitas palavras, repetidas e
badaladas nas redes de comunicação social, de propriedade de famílias abastadas, da classe hegemônica.

6
Adilson Apiaim, Educador e poeta, no MST/Piauí. Chat TV FONEC, dia 22/10/20 - Educação do Campo e Soberania.
Sem dúvida, para estas mulheres e homens, o Natal começou a ser celebrado no momento exato desta
decisão. Eles não se programam para doar as sobras, as migalhas que caem de suas mesas, ou esmolas,
colocadas à parte, para fartar os mendigos de uma só fez, e despedi-los, rapidamente, de mãos vazias.
Assentado da Reforma, Adilson testemunha que as doações feitas são de alimentos, sadios, orgânicos,
coloridos, sem veneno, servidos a si mesmos, em suas próprias mesas. Estas pessoas podem celebrar e festejar
o nascimento daquele que veio viver por 33 anos entre nós, para que todos tenham vida, e vida em abundância,
todos os dias. Aquele que nos deu lições de vida, proferindo palavras que derrubou os poderosos de seus
tronos, e exaltou os humildes.
Gestos de solidariedade brotam das mãos de acampados, de assentados, da grande família Sem Terra.
“A solidariedade, essa cadeia misteriosa e invencível que liga os homens entre si não conhece distância nem obstáculos”,
nos disse Francisco Julião. Por isso, de forma planejada, algumas pessoas trabalham para colher e organizar a
produção, outras, carregam as caixas nos caminhões. Os motoristas dirigem e circulam pelas periferias das
cidades. Os jovens, com os protocolos de cuidado, entregam as cestas, marmitas e palavras de esperança,
amenizando a tristeza da fome nos olhos dos humildes. E não esqueçamos. Enquanto pensam na melhor forma
de celebrar o Natal, o Plano Nacional - plantar árvores e produzir alimentos saudáveis, continua seu curso.
Ao decidir plantar 100 milhões de árvores em 10 anos, o MST antecipa sua solidariedade com as crianças que
ainda não nasceram. Obviamente, pensando nas novas gerações, é que se justifica plantar.
Diante do que vemos, é preciso nos perguntarmos: Porque o agronegócio, que desmata, que ostenta
produção grandiosa, exportações em grande escola, não se propõe a fazer doações, já que seus lucros são
exorbitantes? Não duvidamos de que seus próprios empregados/trabalhadores também estejam nas fileiras, à
espera de uma cesta básica, que venha da pequena produção orgânica, sem venenos! Obviamente, os meios
de comunicação social hegemônicos se negam a dar publicidade a gestos de solidariedade que venham deste
povo. Se o fizessem, estariam contrariando a sua própria classe social, cuja Pandemia tem provocado entre
eles, alguns gestos de assistencialismo relâmpago, despedindo os famintos em seguida, como se a fome fosse
resolvida à luz dos holofotes de comunicação, e não retornasse no dia seguinte, e a cada dia novamente.
Quanto a nós, se tivéssemos penas para escrever sobre os gestos de solidariedade, que trazem o diálogo
do MST com o povo através do alimento, teríamos que iniciar o percurso pela nobre decisão de ocupar o
latifúndio, pela escolha de roças específicas a serem plantadas, pela alegria das colheitas, e pelos atos de
entregas às famílias carentes. Para tudo isso, nos faltaria folhas de papel. E se as tivéssemos, teríamos que
juntar muitas penas para este registro. E depois, sentarmos, confortavelmente, para lermos o quanto de
humanidade perpassa a solidariedade vinda de um Movimento organizado que luta por uma Reforma Agrária
Popular há 36 anos. Uma luta que contraria e confronta diretamente o sistema capitalista, em crise, excludente
e desumano.
Sem dúvida, estes gestos de solidariedade foram aprendidos ainda nos acampamentos, quando eles
mesmos recebiam doações, uma condição para continuarem acampados, com identidade camponesa. A
gratidão e a solidariedade brotaram e germinaram na gênese do MST. Muito cedo este Movimento entendeu
que a solidariedade se faz nas lutas contra as causas estruturais da pobreza, a desigualdade, a falta de trabalho,
terra e a casa para morar. Gestos de solidariedade que somente os pobres sabem seu gosto e profundo
significado, porque orientados pelo Evangelho, pelo Papa Francisco, e por centenas de vidas Sem Terra,
retiradas brutalmente de nosso convívio, pelo simples fato de estarem lutando pela terra partilhada, e por mesas
fartas, de pão e de beleza, para toda a humanidade.
Com abraço fraternal, Feliz Natal a quem doar. Feliz Natal a quem receber.
Porto Alegre, dezembro de 2020

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