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Laboratório de Luthieria

Experiências, estudos e divagações.

Temperamento – a música através dos números

2 DE JULHO DE 20152 DE JULHO DE 2015 ~ EDILSON


A música é a matemática disfarçada de sons.

A música pode ser tão imperfeita quanto a complexidade da matemática permitir.

Ao considerarmos que a física se utiliza da matemática para existir, elevamos potencialmente a


abrangência destes conceitos.

Os primeiros registros da fundamentação da música através da matemática datam do séc. VI a.C., na


Grécia antiga, quando Pitágoras a vislumbrou como o quarto ramo da matemática (6, p. 4). A visão
da música, sob o ponto de vista da física, surge no séc. XVII, quando Galileu percebe a relação direta
entre altura musical e frequência (6, p. 29).

A oitava é o único intervalo reconhecido e compartilhado por todos os povos da terra (2, p. 947).

Na antiguidade, a China já tinha desenvolvido a sequência pentatônica chinesa, que corresponde às 5


primeiras notas do ciclo de quintas. Algumas escalas árabes possuem 17 sons e outras indus, 22 notas
(12, p. 514-517).

Textos antigos indicam que o diapasão da França tinha altura diferente de outros países e que o
diapasão da igreja também era mais alto ou mais baixo que o diapasão “de câmara” (onde se
praticava a música profana). As referências baseavam-se, particularmente, na laringe humana e em
alguns instrumentos antigos mas, no geral, sempre eram prejudicadas pela enorme inexatidão sonora
(11, p. 75).

MONOCÓRDIO E PRIMEIROS INTERVALOS


O monocórdio, possivelmente inventado por Pitágoras, é um instrumento composto por uma única
corda estendida entre dois cavaletes e um terceiro cavalete móvel, para dividir a corda em duas
seções. Este experimento evidenciou a relação entre o comprimento de corda e a altura do som,
resultante deste comprimento.

CICLO DE QUINTAS, TEORIA DAS PROPORÇÕES E SÉRIE HARMÔNICA

Do ponto de vista da época, séc. VI a.C., a qualidade de um intervalo podia ser medida com a
proximidade deste com o som fundamental, aquele que serve de referência para todos os outros
intervalos, o “UM”, que simbolizava a unidade de tudo, Deus. Quanto mais simples a relação
numérica ou quanto mais próximo o intervalo do som fundamental, mais puro, mais leve e até mais
sagrado, seria considerado (11, p. 78). Pitágoras desenvolveu uma divisão de proporção da corda
para determinar os 4 primeiros intervalos. O número 4 tinha um valor especial para os pitagóricos:
além de não se afastar do “UM”, o número 4 carregava o significado do mundo material,
representando os 4 elementos primordiais: fogo, ar, terra e água (6, p. 6). Outra importância do
número é a simplicidade apresentada nas relações numéricas de proporções resultantes dos
experimentos com o monocórdio. A comprovação da importância do número 4 é o tetracorde,
considerado unidade elementar e fundamental da música grega (6, p. 7).

Pitágoras observou que quando dividiu a corda ao meio, o som da fundamental se repetia com uma
oitava acima. Ao dividir a corda em 3 partes, 2/3 da corda produziam um intervalo de quinta.
Dividindo a corda em 4 partes, os 3/4 da corda geravam um intervalo de quarta.

Devido a esta experiência, os intervalos de quarta acima, quinta acima e oitava acima ficaram
conhecidos como consonâncias pitagóricas (6, p. 5).

A relação numérica mais simples e mais próxima do “UM” é a de 2/3, já que a oitava (1/2) produz a
mesma fundamental, oitava acima. Daí vem a qualificação da relação de proporção dos intervalos, em
ordem de importância:

1 – fundamental,

2/1 – oitava,

3/2 – quinta,

4/3 – quarta.
Assim, foi designada a quinta para a formação das escalas.

Com o intervalo “puro” em mãos, este foi utilizado como ferramenta para construção de escalas,
através de sua sobreposição sequencial, num processo conhecido como ciclo de quintas. Repare que, na
ordem de importâncias, a fundamental e a oitava são as prioridades, seguidas pela quinta e, depois,
pela quarta. Fazendo o caminho inverso, da menos importante para a mais importante, temos a
quarta, a quinta e a fundamental, ou IV – V – I. Esta pode ser uma das possíveis explicações para a
construção da música tonal.

Tendo a nota DÓ como fundamental, o resultado é:

À sequência de quintas puras (ciclo de quintas), com relação de comprimentos de 3/2, dá-se o nome
de gama pitagórica.

Como vimos, este sistema baseia-se em intervalos justos, comprometendo diretamente os intervalos
maiores e menores, sendo a terça maior o intervalo mais prejudicado. Conhecido como “terça
pitagórica”, este intervalo soa levemente dissonante, maior que a terça natural. Este conceito de
construção de escalas vigora até meados do séc. XII, quando as terças e sextas recebem mais atenção,
devido ao surgimento da polifonia (6, p.44).

Arquitas de Tarento, que viveu por volta do séc. V a.C., vislumbrou uma teoria de proporções.
Associando intervalos distintos, através de proporções de tamanho, Arquitas conseguiu alcançar
intervalos com consonâncias perfeitas, que se fundem exatamente dentro dos harmônicos naturais de
uma nota. Enquanto Pitágoras calcula intervalos utilizando somente o ciclo de quintas, Arquitas vai
além, considerando médias aritméticas e harmônicas, na geração de seu sistema musical. O grande
progresso alcançado foi a melhora da sonoridade da terça maior que, na teoria das proporções de
Arquitas, é representada como 4/5. Esta terça soa mais agradável ao ouvido por ser um intervalo
menor do que a terça pitagórica.

Giuseffo Zarlino, do séc. XVI, intrigado com a inexatidão do sistema pitagórico, concebeu o Senário,
conjunto dos seis primeiros números inteiros, capazes de gerar todas as consonâncias musicais,
incluindo as imperfeitas. Enquanto o limite estabelecido por Pitágoras era o quatro, Zarlino utilizou o
6 para obter as seis primeiras divisões da corda, permitindo a inclusão no quadro de consonâncias os
intervalos de terça maior, 4/5 (o intervalo já era conhecido, mas ainda não era considerado uma
consonância), terça menor, 5/6 e sexta maior, 3/5.

Em sua escala, os intervalos naturais, também conhecidos como puros, existentes na série harmônica,
não geram batimentos. Nela, há o tom grande e o tom pequeno, além do semitom, que não era a
metade exata de nenhum dos dois tons inteiros da escala. Devido à existência de intervalos
específicos para cada grau da escala, a modulação ou transposição em um determinado instrumento
significaria refazer a afinação para a nova tonalidade, tendo uma nova sequência de intervalos
específicos, resultantes de suas distâncias com a fundamental. Excepcionalmente, órgãos foram
construídos com um sistema complicadíssimo de distribuição e combinação de notas, que permitiam
tocar em diversas tonalidades. Porém, eram necessárias, pelo menos, 53 teclas por oitava para se
conseguir consonância suficiente em todas as tonalidades (2, p. 951-952).

A quinta natural e a pitagórica são iguais, porém estas têm 2 cents a mais que a quinta temperada.
Esta é uma sutil diferença se compararmos os intervalos de terça maior.
A terça maior pitagórica tem 408 cents, a natural tem 386 (não gera batimentos) e a temperada, 400
cents.

A terça pitagórica soava bem convincente para a música da época, que se resumia basicamente em
monodias e polifonias de quartas, quintas e oitavas. Porém, quando a terça maior ganha espaço
através da popularização dos modos gregorianos, a música descobre a identidade única e
intransigente da escala maior: a afinação do SI maior, por exemplo, produz um efeito diferente do DÓ
maior. Apesar de ambos utilizarem a mesma escala, os intervalos entre seus graus são bem distintos,
revelando a necessidade imperativa de uma afinação específica para cada tonalidade. A importância
de uma generalização tonal motivou a busca permanente por novos sistemas de afinação.

Afinação mesotônica

Mediante ao prejuízo que o sistema baseado no ciclo de quintas causou às terças maiores, surgiu um
novo modelo que privilegia este intervalo (e devolve o problema às quintas). O sistema mesotônico
foi descrito por teóricos italianos no séc. XVI e surgiu numa época em que os instrumentos de tecla
começaram a ganhar mais importância. Neste sistema, todas as terças devem ser puras e sem
batimentos, com 386 cents. As quintas são diminuídas em ¼ de coma e, de uma maneira geral, são
mais aceitáveis do que as terças do ciclo de quintas, com exceção de uma quinta do lobo, considerada
abominável, com seus 738 cents (uma quinta natural tem 701,96 cents e uma temperada, 700 ¢). A
maior característica desta escala é a ausência da enarmonia, pois para que todas as terças soem
perfeitas, o LÁ sustenido, por exemplo, que é a terça maior do FÁ sustenido, tem uma frequência
diferente do SI bemol, terça maior do SOL bemol. Uma curiosidade é que a sequência das notas é LÁ,
SI b, LÁ # e SI, pois a sensível de SI é LÁ # e não SI bemol.

Cabe salientar que somente no séc. XVIII, surgiria o conceito de série harmônica. Estudando o
comportamento de cordas vibrantes, D’alembert sugere que um som natural não era puro e único,
mas com grande complexidade e obtido através da superposição de diversos harmônicos de uma
série resultante do som principal (6, p. 35).

Além de Pitágoras, Arquitas, Zarlino e D’alembert, gênios da humanidade como Filolaus,


Eratóstenes, Aristoxeno, Aristóteles, Mersenne, Galileu, Darezzo, Descartes e tantos outros, ainda
fizeram muitas descobertas importantes sobre a música, que colaboraram para a formação de escalas,
divisão de intervalos utilizando cálculos aritméticos ou de razão, intervalos melódicos e harmônicos,
relação de som com frequência, Série harmônica, Séries de Fourier, etc.

O sistema de cents

O sistema de cents surgiu por volta de 1880, desenvolvido por Alexander J. Ellis, como uma forma de
quantificar intervalos do sistema temperado igual. Ganhou adeptos rapidamente graças à sua
simplicidade e objetividade.

No sistema temperado igual, a oitava é dividida em 1200 partes iguais, chamadas de Cents, ou ¢. Os
semitons simétricos possuem 100 ¢ cada

Este sistema facilitou as pesquisas e a comparação de outros sistemas tonais com o temperado igual.
Coma pitagórica ou Quinta do lobo

Desde a Grécia antiga, a construção de escalas procurou respeitar a afinidade harmônica, que resulta
em escalas assimétricas.

As escalas desenvolvidas desde então possuem, em algum momento, um ou mais intervalos que
soam diferentes dos demais. Uma característica comum para todas estas escalas é que, como são
essencialmente assimétricas, a sucessão de 12 quintas formam uma oitava nunca se encontra com a
fundamental, fazendo com que as notas, dispostas num desenho circular, formem uma espiral que se
desenvolve infinitamente de dentro para fora.

Por exemplo, 12 quintas naturais empilhadas (ciclo de quintas) excedem o intervalo da oitava.

Um intervalo de quinta possui a relação de frequência 3/2 = 1,5.

A visão matemática para o empilhamento de 12 quintas é (3/2)¹² ou (1,5)¹² = 129,746.

O intervalo de oitava possui a relação de frequência 2/1 = 2.

O ciclo de 12 quintas abrange 7 oitavas, portanto (2/1)7 ou 27 = 128.


No quadro abaixo, um gráfico comparativo alimentado com os dados acima. As colunas vermelhas
representam o empilhamento de quintas. As colunas azuis, os empilhamentos de oitavas. É nítida a
diferença que torna a oitava gerada pelo do ciclo de 12 quintas um intervalo maior do que o
empilhamento de 7 oitavas.

Do ponto de vista da relação de proporções, a diferença entre os 2 ciclos pode ser expressa como

129,746 / 128 = 1,013640625.

Em uma outra visão, um intervalo de quinta natural possui 702 ¢. A sobreposição de 12 quintas
resulta em 8424 ¢.

Cada oitava possui 1200 ¢.

A sobreposição de 7 oitavas totaliza 8400 ¢, 24 ¢ a menos que o empilhamento das 12 quintas


naturais.

Novamente, no quadro abaixo, as colunas vermelhas representam o empilhamento de quintas com


702 ¢, cada uma. As colunas azuis, o empilhamento de oitavas com 1200 ¢, cada.
A diferença que impede o “encontro” das oitavas de uma escala é conhecida como “Coma pitagórico”
ou “Quinta do lobo” e equivale a um intervalo entre 1/8 e 1/9 de tom (2, p. 949).

CONCEITO DE TEMPERAMENTO

Genericamente, temperar significa fazer ajustes nos intervalos, desviando-os dos intervalos naturais.
A aplicação do temperamento como sistema é uma medida que visa suprir necessidades ou resolver
problemas apontados em um sistema entendido como deficiente (realidade de todo sistema tonal
temperado, pois um intervalo sempre se beneficia em detrimento do prejuízo de outro ou outros).

Diferentes temperamentos surgiram com o passar do tempo, quase todos buscando uma solução para
o mais conhecido enigma musical: a transposição e modulação.

Até antes do advento do temperamento igual, as escalas eram assimétricas, baseadas em referências
harmônicas, aritméticas ou geométricas. Por mais que um sistema fosse dividido em quintas, terças
ou semitons, seus intervalos possuíam uma relação de frequência desigual. Porém, a noção de
sonoridade que se tinha há até 4 séculos atrás era diferente do que estamos acostumados a ouvir
atualmente e aceitar como correto.

Não há um sistema de afinação que seja válido universalmente. A educação e a cultura dos povos é
que lhes familiariza com determinado sistema sonoro.

É importante salientar que, sob certos aspectos, aquilo que parece puro e correto aos nossos ouvidos
pode não ter o mesmo significado para outros povos e vice-versa, pois sempre há a dependência do
momento cultural ao qual determinada população se encontra e de quão difundido foi determinado
sistema para promovê-lo à principal importância da época e do local.

Por exemplo, em muitos países, a música folclórica utiliza instrumentos que só tocam os harmônicos
naturais. A trompa é um destes instrumentos, onde a quarta soa impura, pois o décimo primeiro
harmônico está entre o FÁ e o FÁ#. Nas regiões onde estes instrumentos são tocados, as pessoas estão
habituadas a cantar este intervalo “impuro”, que pode soar muito estranho para nós, ocidentais.
Ainda, se ouvíssemos uma música com a afinação do séc. XVII, executada por Monteverdi, teríamos a
sensação de que tudo está soando terrivelmente desafinado (11, p. 77).
Correto, do ponto de vista quase absoluto, é corresponder às exigências do sistema tonal vigente.
Quase absoluto porque, em se tratando de música, as maiores transgressões, quando bem utilizadas,
podem se tornar fundamentais para a beleza de determinada obra musical. Sobre esse assunto, não
há uma verdade única. Só podemos discutir afinação se estivermos conscientes do contexto e dos
limites de determinado sistema.

TEMPERAMENTO IGUAL

Após tantos séculos e tantos cérebros dedicados às escalas musicais, um problema fundamental
(muitos autores não concordam com o termo “problema”, além de sugerirem várias alternativas para
o assunto) ainda não tinha sido resolvido: a transposição e modulação num instrumento.

O estudo que obteve maior aceitação sugere distribuir a diferença da Quinta do lobo entre todos os
intervalos, numa relação logaritmicamente equivalente. Este estudo foi apresentado em 1686, quando
o organista alemão Andreas Werckmeister publicou seu “Musikalische Temperatur”, com a teoria do
temperamento igual.

A afinação temperada foi desenvolvida, inicialmente, para instrumentos de tecla.

O processo conhecido como temperamento igual consiste dividir a oitava em 12 semitons


rigorosamente iguais, impondo sempre o mesmo intervalo de frequência entre dois sons vizinhos
quaisquer.

Nesta construção totalmente simétrica, todos os intervalos, com exceção da oitava, são um pouco
impuros (11, p. 84.).

Cada semitom possui 100 ¢. A soma dos 12 semitons resulta em 1200 ¢, que equivale a uma oitava.

A simetria absoluta em uma escala gera relações de frequências formadas por números irracionais,
consequência de acertos nas frequências, deslocando a afinação das notas da escala. A simetria
escalar permite que qualquer ciclo que seja aplicado em uma escala promova o encontro da
fundamental com sua oitava.

Ciclo de quintas:

O ciclo de 12 quintas abrange 7 oitavas. Dividindo-se 8400 ¢ por 7, obtém-se 1200 ¢ por oitava.

Nesta afinação, todas as tonalidades soam idênticas, diferenciando-se apenas na altura (11, p. 84).

É indiscutível a quantidade de benefícios que a afinação temperada trouxe: facilidade de afinação, a


ideia de inversões de acordes, surgimento de novas linguagens musicais, etc., no entanto, existe um
preço a ser pago: abrir mão da afinação específica e perfeita (do ponto de vista acústico) de cada
tonalidade em troca da facilidade, assim como, analogamente na luthieria, um instrumento perde
nuances e sutilezas de timbre e dinâmica em troca de maior projeção sonora.
A afinação temperada é conseguida com médias
puramente aritméticas não harmônicas, sem
considerações físicas ou fisiológicas. A imperfeição da
escala temperada gera um consumo de energia cerebral
para ajustar os intervalos impuros. Isso inibe a atividade
emocional para que o cérebro possa assimilar e absorver
a arte (4, p. 521). As consonâncias perdem seu caráter
individual com o aparecimento de batimentos entre
harmônicos comuns.

Intervalos mais consonantes correspondem à relações de


frequência mais simples, que são os intervalos justos: 2/1:
oitava, 3/2: quinta e 4/3: quarta.

Com essa distribuição matemática, as quintas ficaram


menores e as quartas maiores, gerando batimentos de
harmônicos que, na maioria das vezes, passam despercebidos pelos nossos ouvidos (mas não pelo
cérebro). Os intervalos de terça maior e sexta maior ficaram maiores que seus equivalentes naturais,
gerando batimentos fortes.

Quadro comparativo:

O problema de entonação do sistema temperado igual é tão crítico que autores como Hermann
Helmhol sugerem estratégias para afinar um piano. Nelas, os intervalos de quinta são ajustados
com um certo número de batimentos, dentro de um período de 10 segundos (12, p. 489):

Com relação a isso, cabem 2 observações:

1- Se levarmos em conta que temperamento igual é a distribuição de intervalos com comprimentos


idênticos entre os graus da escala, então Helmol , com sua estratégia, descaracterizou a escala
temperada, aplicando intervalos com comprimentos exclusivos.

2- A ideia não é julgar o pensamento de Helmhol e sim constatar a preocupação do autor em tentar
solucionar um problema contundente do sistema de temperamento igual.

TEMPERAMENTO NO INSTRUMENTO

O arco musical, primeiro instrumento musical de corda, datado de aproximadamente 13.000 a. C., é
um instrumento puro, pois sua única corda não gera intervalos.
A flauta de Divje Babe, de 43.000 anos a. C., possui orifícios que, pela distância e diâmetro, sugerem
que tenha sido construída para soar uma escala pentatônica. Porém, é improvável que seus intervalos
sejam naturais. Estes são mistérios difíceis de ser desvendados.

A afinação temperada, aplicada em instrumentos, se torna mais usual a partir do séc. XVI, devido à
crescente popularidade dos cravos e clavicórdios e à evidente dificuldade de transposição nestes
instrumentos.
Apesar de ter sido um processo de transição lento, hoje sabemos que foi irreversível, a despeito da
quantidade de pensadores e músicos que criticavam duramente tal sistema. Mesmo nos dias de hoje,
muitos profissionais da música lamentam a forma como o sistema temperado igual foi amplamente
disseminado e tomado como sistema perfeito.

Não é raro encontrar pessoas que se deparam com as imperfeições deste sistema e atribuem a causa
do problema ao que imaginam ser a baixa qualidade de seus instrumentos.

Ao que parece, a quantidade de benefícios não supera a quantidade de deficiências oferecidas por
este sistema. Mas por outro lado, esta parece ser a única solução (a mais simples e acessível) para o
dilema da modulação. Seguindo por essa linha de pensamento, o temperamento igual se torna
imbatível.

O sistema temperado, por si só, atraiu muitos simpatizantes, que buscavam a modulação e que,
graças ao novo sistema, finalmente conseguiram realizar maravilhosos trabalhos musicais e escritos.
Talvez, o mais célebre de todos tenha sido Johann Sebastian Bach (1685-1750). Este esplêndido
compositor e instrumentista compôs a obra “O cravo bem temperado” ou “Das Wohltemperierte
Klavier”.

Esta é a primeira obra que compreende as 24 tonalidades, mas trabalhos menos abrangentes já
haviam sido realizados antes, que também serviram de inspiração para Bach. É, originalmente, uma
coleção de 48 prelúdios e fugas, divididos em 2 livros: o primeiro, composto em 1722 e o segundo em
1744. Hoje, são obras conhecidas como “Livro 1” e “Livro 2” de “O cravo bem temperado”.
O sistema tonal vigente na época de Bach era o mesotônico. Ainda há uma dúvida se Bach buscava
realmente um sistema temperado igual ou apenas um sistema menos complicado (bem temperado),
que lhe permitisse compor e tocar suas ideias musicais com maior fluidez.

APLICAÇÃO DO TEMPERAMENTO IGUAL

No temperamento igual, a oitava é dividida em 12 intervalos de semitons rigorosamente iguais, com


as seguintes razões de frequência (9, p. 46):
0 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 12 =
f , f, f , f , f , f , f , f , f , f , f , f , f , onde f 2.

A ideia é considerar f0, ou 1, como a fundamental e f12, ou 2, como sua oitava. Lembrando que a
oitava é representada por 2/1 = 2.

O que a relação de proporções de tamanhos vê como sobreposição de intervalos (ciclo de quintas, por
exemplo), a álgebra considera como cálculos de potências. Assim, dividir uma oitava em partes
significa trabalhar com a raiz de 2 (uma oitava), cujo índice é a quantidade de intervalos em questão.
Neste caso, 12.

Logo, a divisão de uma oitava em 12 partes iguais é representada, aritmeticamente, como

= 1,059463094.

Por ter caráter proporcional, esta constante representa um semitom dentro de qualquer grandeza que
se aplique numa escala musical, seja polegada, centímetro, milímetro ou her .

Por exemplo, a medida de escala de um contrabaixo Fender Precision é de 34 polegadas ou 863,6


milímetros.

Para encontrar a escala temperada dentro desta medida, podemos fazer de 2 formas: a primeira é
dividindo o comprimento de corda (podendo-se usar polegadas, centímetros ou milímetros) por
1,059463094.

34 / 1,059463094 = 32,09172664 polegadas

863,6 / 1,059463094 = 815,129856 milímetros

Convertendo polegadas para milímetros:

32,09172664 pol.* 25,4 mm = 815,129856 mm.


Este é o novo comprimento de corda que emitirá um semitom acima da nota da corda solta. Com o
instrumento afinado em 440 Hz, ao aplicarmos esse cálculo sobre a quarta corda, ouviremos uma
nota FÁ.

Dividindo novamente 32,09172664 por 1,059463094, teremos 30,29055644. Este novo comprimento de
corda emitirá um FÁ#.

Repetindo essa operação, teremos as posições de todos os trastes do braço do instrumento, ou sob
outro ponto de vista, calcularemos todos os comprimentos de corda necessários para emitir as notas
da escala temperada igual.

Vamos utilizar a polegada para os cálculos:

A segunda forma (mais simples, no meu ponto de vista) é dividindo o comprimento total de corda
pela constante, cujo expoente é a quantidade de semitons (ou trastes) a ser calculados.

Por exemplo, 1,0594630945 refere-se à 5 semitons ou ao quinto traste.


Abaixo, um comparativo com os 24 comprimentos de cordas de um baixo com 34 polegadas de
medida de escala. Os valores também estão expressos em polegadas.
Podemos, também, encontrar determinada frequência utilizando uma equação simples de progressão
geométrica.
n-1
A fórmula de PG é: an = a1*q , onde “a” é o termo que queremos encontrar, “n” é o número de
termos e “q” é a razão (8, p. 27).

Para descobrir o valor de a10, por exemplo, seguimos a fórmula:


n-1
an = a1*q

onde,

an é o termo a ser encontrado

a1 é o primeiro termo da série: 34

q é a razão. Dividindo o segundo termo pelo primeiro, temos:

q = 32,09172664 / 34 = 0,943874313

Vamos encontrar o décimo termo. Então, n-1 = 9.


9
a10 = 34 * 0,943874313

a10 = 34 * 0,59460355
a10 = 20,2165207

Também é possível encontrar a frequência de uma nota específica. Para um semitom acima, basta
multiplicar a frequência por 1,059463094. Para um semitom abaixo, é só dividir a frequência pelo
mesmo valor (2, p. 959).

Por exemplo:

A frequência da nota LÁ é 440 Hz. Para encontrarmos a frequência de LÁ#, calculamos:

440 Hz * 1,059463094 = 466,163 Hz.

Para encontrar LA b:

440 Hz / 1,059463094 = 415,304 Hz.

Caso se queira determinar uma nota mais distante, a quantidade de semitons será o expoente da
constante. Para saber a frequência de MI, uma quinta acima de LÁ, eleva-se a constante ao expoente
igual à quantidade de semitons. Uma quinta acima possui 7 semitons, logo: 1,0594630947
7
1,059463094 = 1,498307073

440 Hz * 1,498307073 = 659,25511212 Hz.

MAIS PROBLEMAS: CORDAS E ENTONAÇÃO

Nos instrumentos de cordas, existe um agravante que se soma às imperfeições do sistema temperado
igual: o processo manual de entonação é obrigatório, devido às diferenças de calibres entre as cordas.

De uma maneira geral, para compartilhar os mesmos trastes e manter a afinação (na medida do
possível), cordas com calibre maior necessitam de um comprimento maior.
Como em todo instrumento que utiliza o temperamento igual, os intervalos de terça são os mais
prejudicados. Porém, na guitarra e no violão, o prejuízo é gritante, gerando fortes batimentos. O
problema se torna evidente, principalmente, quando utilizados os acordes no modelo de LÁ, no
intervalo de terça maior entre as cordas 3 e 2.

Para minimizar o problema, uma prática muito utilizada é recuar alguns milímetros o saddle da
corda SI, deixando a entonação da oitava alguns cents abaixo. Nos violões com cordas de aço, é
comum o rastilho original possuir esse recuo da corda SI. Isso diminui o intervalo, diminuindo
também os batimentos.

Tornou-se comum empresas se especializaram em criar soluções para os problemas surgidos com o
sistema temperado igual.
Buzz Feiten e Earvana são algumas empresas que fabricam pestanas e pontes com recuos específicos
para “driblar” os problemas de afinação. Por mais que o problema não seja sanado por completo, o
resultado costuma ser satisfatório.

A busca por um sistema plenamente “perfeito” oferece, em igual exigência, um contrapeso de


dificuldades e imperfeições e sua criação, totalmente artificial, apresenta muitas deficiências e nos
obriga a reparar vários pequenos problemas. Apesar de tamanho antagonismo, quanto mais perfeição
se busca em sistemas de afinação, mais obstáculos serão apresentados.

A simetria escalar não é a natureza dos sons e, buscando-a ou impondo-a, abrem-se lacunas que a
matemática, dificilmente, contemplará.

Certamente, a música hoje é totalmente determinada como resultado dessa simetria. Se ela (a simetria
escalar) não tivesse existido, toda a história musical dos últimos 400 anos seria diferente e o que
conhecemos hoje como música seria, naturalmente, consequência de outras concepções, ideias e
descobertas.

Pensando de uma maneira bem analítica e pragmática, todo o processo de temperamento igual foi
desencadeado por conta de certas limitações nos instrumentos de tecla. Se retrocedermos e
imaginarmos um mundo sem teclados, o que teríamos hoje como música?

A simetria escalar proporciona benefícios incontestáveis. A natureza dos sons, outros. Vivemos num
mundo onde “perfeição” é um conceito temporal e temporário, com local e prazo de validade para
acontecer. Provavelmente, dentro de poucas centenas de anos, outro sistema musical “perfeito”
surgirá, com a proposta de suprir outras necessidades ou deficiências. Antes de mais nada, é
importante ter um objetivo e decidir se vale a pena ir além, onde o “romper barreiras” pode ser abrir
as portas para os sons malucos do futuro ou, simplesmente, voltar ao começo de tudo.

BIBLIOGRAFIA

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Maj. João Batista Leandro
Editora Victor Star
(1972)
8. Matemática para você Vol. III – Álgebra, parte A
Maj. João Batista Leandro
Editora Victor Star
(1971)
9. Music, Physics and Engineering
Harry F. Olson
Dover Publications, Inc.
(2013)
ISBN: 978-0486217697
10. O diálogo musical
Nikolaus Harnoncourt
Jorge Zahar Editor
(1993)
ISBN: 85-7110-260-0
11. O discurso dos sons
Nikolaus Harnoncourt
Jorge Zahar Editor
(1998)
ISBN: 85-7110-122-1
12. On the sensations of tone
Hermann Helmhol
Dover Publications, Inc.
(1954)
ISBN: 0-486-60753-4
13. Sobre os instrumentos sinfônicos e em torno deles
José Alexandre dos Santos Ribeiro
Editora Record
(2005)
ISBN: 85-01-07231-1
14. The theory of sound – Volume one
J. W. S. Rayleigh
Dover Publications, Inc.
(1945)
ISBN: 486-60292-3
15. The world atlas of musical instruments
Radevsky, Abrashev, Gadjev & Despotova
H. F. Ullmann Publishing
(2000)
ISBN: 978-3-8480-0051-7

PUBLICADO EM HISTÓRIA E ORGANOLOGIA, REFLEXÕES


1 AFINAÇÃO ARCO MUSICAL ARQUITAS BUZZ FEITEN CENTS CICLO DE OITAVAS CICLO DE
QUINTAS CLAVICÓRDIO COMA PITAGÓRICA CRAVO D'ALEMBERT DIVJE
BABE EARVANA ENTONAÇÃO ESCALA NATURAL ESCALA
TEMPERADA FLAUTA FREQUÊNCIA GAMA PITAGÓRICA INTERVALOS JOHANN SEBASTIAN
BACH MATEMÁTICA MONOCÓRDIO O CRAVO BEM TEMPERADO PITÁGORAS QUINTA DO
LOBO SÉRIE HARMÔNICA SIMETRIA SISTEMA MESOTÔNICO TEMPERAMENTO TERÇA
PITAGÓRICA WERCKMEISTER ZARLINO

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5 comentários em “Temperamento – a música através


dos números”

1. Letra em Pauta
DISSE:
11 DE JANEIRO DE 2019 ÀS 13:52
Isso aqui é sensacional. Quanta informação. Vou guardar como referência e fazer uma leitura mais
apurada.
Parabéns e muito obrigado por compartilhar.

Responder
2. Cícero Mota Teixeira
DISSE:

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