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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

Modernos e Rústicos:

Tradição, Cantadores Nordestinos e Tradicionalistas Gaúchos em Brasília.

Patrícia Silva Osório

Brasília, 2005.
Modernos e Rústicos:

Tradição, Cantadores Nordestinos e Tradicionalistas Gaúchos em Brasília.

Patrícia Silva Osório

Tese de Doutorado apresentada

ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social.

Orientador: Prof. Dr. Roque de Barros Laraia.

Brasília

junho, 2005
Título da Tese: Modernos e Rústicos: Tradição, Cantadores Nordestinos e
Tradicionalistas Gaúchos em Brasília.
Autora: Patrícia Silva Osório.
Orientador: Dr. Roque de Barros Laraia.
Data da Defesa: 04/07/2005.

Resumo

Esta tese é um estudo comparativo entre as dinâmicas de duas instituições, localizadas na


capital do país: a Casa do Cantador e o Centro de Tradições Gaúchas Jayme Caetano
Braun. Os fomentadores das práticas sociais estabelecidas nesses espaços se
autodenominam cantadores nordestinos e tradicionalistas gaúchos. Em suas instituições,
eles resgatam e atualizam manifestações culturais identificadas com seus contextos de
origem. Por um lado, estamos diante de uma possível análise sobre processos migratórios.
No entanto, à medida que essas pessoas vão se fixando no cenário da capital, seus Centros
de Tradições funcionam não apenas como uma estratégia de adaptação ao lugar de destino.
Fazer parte da Casa do Cantador e do CTG Jayme Caetano Braun pode fornecer ao
indivíduo o sentimento de pertença a um grupo. Nesses espaços são tecidos laços sociais,
formas de convivência e de reciprocidade em situações urbanas.

Palavras-chaves: cantoria nordestina, tradicionalismo gaúcho, grupos urbanos, migração,


representações sociais e pertencimentos.

Abstract

The present thesis is a comparative study of the dynamics of two institutions located in the
country’s capital: Casa do Cantador (The Improvisators’ Club) and Centro de Tradições
Gaúchas Jayme Caetano Braun (The Jayme Caetano Braun Center for Gaúcho Traditions).
The participants of the social activities practised in these places call themselves cantadores
nordestinos (Northeastern improvisators) and tradicionalistas gaúchos (gaúcho
traditionalists). Both institutions revive and recreate cultural manifestations characteristic of
their places of origin. From this perspective, one may attempt an analysis of migratory
movements. However, in the process of settling down in the city’s landscape, these
traditional cultural centers no longer function merely in terms of adaptational strategies.
The membership of the Casa do Cantador or the Jayme Caetano CTG provides the
individual with a sense of belonging to a community. In both places, the members form
social bonds and establish modes of familiarity and reciprocity in an urban context.

Key words: Nordeste singers, gaúcho traditions, urban groups, migration, social
representation and belonging to a community.
Índice

Introdução............................................................................................................................01
Apresentado o problema.......................................................................................................03
Questões metodológicas........................................................................................................07
A cidade dos “sem”...............................................................................................................10

PARTE I: A Casa do Cantador.........................................................................................17


Capítulo I: Questões gerais sobre a cantoria nordestina e a Casa do Cantador na
Ceilândia..............................................................................................................................18
Cantorias: origem, literatura de cordel, subalternidade e previsões apocalípticas................18
A literatura sobre a cantoria nordestina em perspectiva.......................................................23
A Casa do Cantador na Ceilândia.........................................................................................29

Capítulo II: A Cantoria de Pé de Parede: o rito por excelência da Casa do


Cantador..............................................................................................................................35
O cenário, as formas poéticas e outros ingredientes do rito..................................................40
A “tradição” da Bandeja.......................................................................................................53
Conterrâneos e comensalidade..............................................................................................57

Capítulo III: Cantadores em trânsito: do Nordeste à Brasília, do folclore à


arte........................................................................................................................................67
Nordeste e Brasília................................................................................................................67
A cantoria enquanto arte.......................................................................................................90

PARTE II: O Centro de Tradições Gaúchas Jayme Caetano Braun...........................100


Capítulo IV: Questões gerais sobre o tradicionalismo gaúcho e Centro de Tradições
Jayme Caetano Braun.......................................................................................................101
As causas tradicionalistas....................................................................................................101
O alcance dos Centros de Tradições Gaúchas.....................................................................107
O CTG Jayme Caetano Braun.............................................................................................109

Capítulo V: Noite da Poesia, Sexta Nativa, Costelão e Missa Crioula: os vários ritos do
CTG Jayme Caetano Braun.............................................................................................116
A invenção dos símbolos....................................................................................................116
O evento mais genuíno do CTG..........................................................................................120
Homens, pompa e autenticidade.........................................................................................130
Festas que unem e mostram a diferença..............................................................................135

Capítulo VI: Rio Grande do Sul, Brasília e Tradição....................................................146


A chegada e a vivência em Brasília: a conquista de uma cidade........................................147
De quando ser gaúcho é uma tradição.................................................................................162
PARTE III: Cantadores nordestinos e tradicionalistas gaúchos em Brasília.............181
Capítulo VII: Casa do Cantador e CTG Jayme Caetano Braun: um exercício
comparativo.......................................................................................................................182
Nós cantadores nordestinos e nós tradicionalistas gaúchos: a idéia do conterrâneo e da
comunidade.........................................................................................................................182
Deslocamentos, migrantes, rural, urbano e Brasília............................................................194
O folclore como uma noção relativa...................................................................................207

Conclusão...........................................................................................................................218
A inovação da tradição........................................................................................................219
O sentido de pertencer.........................................................................................................233

Bibliografia........................................................................................................................244
INTRODUÇÃO

Formado por diversas Regiões Administrativas, entre as quais estão as cidades

satélites e Brasília, o Distrito Federal apresenta um fenômeno bastante importante em sua

dinâmica urbana: a migração. Em contextos migratórios, a apropriação da idéia de tradição

cultural pode emergir como uma estratégia utilizada por indivíduos ou grupos no processo

de adaptação ao lugar de destino. Na nova realidade, “tradições”, identificadas como

próprias do local de origem do indivíduo, tornam-se fundamentais para alguns migrantes.

A questão pode ser ilustrada com o exemplo dos gaúchos do Programa de

Assentamento Dirigido do Distrito Federal (PAD/DF) 1, estudados pela antropóloga Regina

Recalde da Fonseca (1993) 2. Vindos com a intenção de trabalharem como plantadores de

soja no Centro-Oeste, esses gaúchos formaram um grupo e fundaram um Centro de

Tradições. No Rio Grande do Sul, muitos deles não participavam dos chamados Centros de

Tradições Gaúchas (CTGs). Foi aqui que os migrantes sentiram a necessidade de

fomentarem algum tipo de articulação. O enredo escolhido para a reunião foi atualização de

manifestações consideradas “típicas” de sua região de origem. Girando em torno do resgate

das tradições culturais gaúchas, tais encontros permitiram aos recém-chegados a

diminuição do sentimento de estranhamento e a reorganização de redes familiares e sociais.

A apropriação de determinadas referências culturais também pode ser feita por

indivíduos ou grupos que não tenham uma relação “original” com o contexto a partir do

qual são identificadas. Em outras palavras, as pessoas não precisam ter nascido em um dado

1
Programa implantado em 1977, visando o incentivo da produção agrícola no Distrito Federal.
2
FONSECA, Regina Recalde da. Nós os Gaúchos do PAD/DF: Identidade e Ocupação Territorial. 1993.
Dissertação (Graduação em Ciências Sociais), Departamento de Antropologia, Universidade de Brasília,
Brasília, 1993.

1
ambiente para acioná-lo em situações de mudança. Abaixo, reproduzo dados de minha

dissertação de mestrado 3.

Em Brasília, há aproximadamente vinte anos alguns indivíduos se juntaram e

resolveram formar uma “turma”, a Turma do Gambá. Impreterivelmente às quartas-feiras,

os gambás estão reunidos para tocar e cantar o que eles classificam como a boa música

popular brasileira. No repertório, composições de integrantes da própria turma, além de

compositores como Chico Buarque, Paulinho da Viola e Cartola. A princípio, o que unia os

gambás era o fato de terem um gosto especial pela música e de trabalharem numa mesma

empresa pública. Antes da transferência para Brasília ao final da década de setenta, a sede

de tal empresa estava localizada no boêmio bairro da Lapa, dito como o berço da

malandragem carioca. Poucos dos integrantes do grupo viveram efetivamente a “boêmia”

do bairro e apenas um, dos cinco idealizadores da Turma, é carioca. Ao primeiro contato

com os gambás, temos a sensação de que estamos diante de um reduto carioca no planalto

central. As canções entoadas com um “chiado” específico denunciam um sotaque

autenticamente carioca, e várias delas fazem menção a lugares específicos do Rio de

Janeiro. O Hino da Turma diz: “Ai que saudade da Lapa, velha ribalta de raríssimo

esplendor”, e nesse momento um gambá mostra à platéia um quadro dos Arcos da Lapa. O

bairro carioca está presente nos discursos e em muitas de suas composições. Na Lapa

reinventada em Brasília ainda existe espaço para figuras típicas das noites como Madame
4
Satã e para os bares que só cerravam suas portas ao romper o dia. A “Lapa Símbolo” é

uma Lapa imaginada capaz de encarnar as imagens da boêmia e da amizade. No contexto

3
OSORIO, Patrícia Silva. Ai Que Saudade da Lapa: o bar e a canção na (re)invenção da boêmia em Brasília.
2001. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2001.
4
Um homossexual conhecido ao mesmo tempo por imitar Carmem Miranda e por ser valente e brigão. Conta-
se que em uma de suas brigas assassinou o famoso sambista Geraldo Pereira.

2
desse pequeno agrupamento urbano, a escolha por enaltecer e reverenciar a Lapa e o Rio de

Janeiro não tem tanto a função de fazer relembrar, mas de erigir relações sociais. A Lapa, a

música, o canto são veículos através dos quais os gambás garantem a emergência de um

tipo especial de sociabilidade baseada na amizade e na afetividade. É a partir desses

elementos que esses indivíduos se vêem e são vistos como boêmios, sentimentais e acima

de tudo como amigos.

Nesta tese não trataremos do caso dos gaúchos do PAD/DF e nem da Turma do

Gambá. Os exemplos foram trazidos porque eles nos colocam diante de dois caminhos

interpretativos nos quais esta tese tentará trafegar. O primeiro deles refere-se às imagens e

significados do ser migrante. A segunda rota a ser percorrida situa-se para além das análises

sobre migração, e diz respeito à necessidade do indivíduo de pertencer a um grupo.

Apresentando o problema

Exílio, diásporas e outros tipos de deslocamentos humanos já foram e vêm sendo

temas de muitos estudos acadêmicos. No Brasil, boa parte dos estudos antropológicos,

realizados no meio urbano, refere-se às pesquisas sobre a migração campo-cidade, cidades-

grandes capitais. Mais recentemente complementam tais estudos, análises sobre a

emigração brasileira, principalmente para países como Estados Unidos e Japão 5. Os autores

estão preocupados com a questão da adaptação do migrante ao novo contexto e com as

transformações envolvidas no processo de deslocamento. Nas análises sobre migrações

internas e externas, a inserção do migrante no lugar de destino tem sido enfocada a partir

5
Vide as obras: Cenas do Brasil Migrante, organizada por Teresa Sales e Rossana Rocha; e Fronteiras
Cruzadas, organizada por Soraya Resende Fleischer e Ana Cristina Martes.

3
dos seguintes prismas: as implicações do tempo na construção e reconstrução das

expectativas do grupo; o confronto com a diferença e seus desdobramentos; a formação e o

acionamento de redes sociais; e questões relativas à identidade. Todas essas dimensões são

fundamentais para a compreensão da totalidade do processo migratório. Sem renegá-las,

esta tese tem como ponto de partida, a análise do fenômeno migratório a partir de sua

relação com a apropriação feita por alguns agrupamentos sociais da idéia de tradição

cultural.

Contextos migratórios, a situação de subalternidade ocasionada pelo significado de

ser migrante e a revitalização de manifestações e produções culturais, são elementos que

mantém entre si uma relação estreita 6. Os estudos sobre deslocamentos humanos sejam

eles internos ou externos, desembocam numa questão que merece consideração: o efeito da

situação de minoria imposta às pessoas em trânsito provoca o surgimento de diferentes

agrupamentos sociais identificados com valores específicos (cf. Seyferth, 1990 e Ribeiro,

1999). Essas organizações, na forma de reuniões informais ou de instituições formalizadas,

podem ser vistas como núcleos adaptativos e integradores, visando a ajuda mútua entre seus

membros.

No Distrito Federal, são vários os exemplos de formas institucionalizadas de

aglutinações: Casa do Maranhão 7, Casa do Ceará, Casa de Minas Gerais, Sociedade

Assistencial Casa dos Baianos, etc. A reunião também pode acontecer em torno de alguma

tradição do lugar de origem, ou seja, o objetivo é a divulgação e a atualização de eventos

culturais. Nesse cenário, podemos citar o Centro de Tradições Gaúchas Jayme Caetano
6
A idéia de subalternidade é aqui entendida não apenas como aquela advinda da privação econômica, social e
cultural, mas também do sentimento de “deslocalizado”, “desterrado” e “estrangeiro”. Essa questão será
retomada no próximo item deste Capítulo.
7
Ver DIAS, Juliana Braz. Devotos e Conterrâneos: Migração e Reestruturação de Identidade na Associação
Casa do Maranhão. 1997. Dissertação (Graduação em Ciências Sociais) - Departamento de Antropologia,
Universidade de Brasília, Brasília, 1997.

4
Braun, a Estância Gaúcha do Planalto Central, a Casa do Cantador, a Escola de Samba

Associação Recreativa Unidos do Cruzeiro e o Centro de Tradições Populares Bumba-

Meu-Boi de Sobradinho, entre outros.

Entidades promotoras de fatos culturais identificados com a noção de tradição são

os objetos de estudo desta tese. Para a pesquisa foram selecionadas duas entidades: a Casa

do Cantador - localizada na cidade satélite da Ceilândia, a instituição reúne cantadores

repentistas de vários estados do Nordeste; e o Centro de Tradições Gaúchas Jayme Caetano

Braun - entidade que é uma referência para muitas pessoas vindas do Rio Grande do Sul e

está localizada num espaço bastante valorizado do Plano Piloto. Foram quatro os principais

critérios da escolha: 1) torna-se possível com essa amostra realizar um estudo comparativo;

2) optou-se por escolher entidades que tivessem uma certa visibilidade e representatividade

no cenário da capital; 3) procurou-se selecionar uma amostra que representasse fluxos

migratórios de diferentes regiões do Brasil; 4) e na medida do possível, elegeu-se entidades

que ainda não tivessem sido alvo de outros estudos antropológicos.


8
A Casa do Cantador e o CTG Jayme Caetano Braun reúnem “migrantes” e seus

descendentes em torno de determinadas manifestações culturais. Sejam aqueles que vieram

para Brasília por opção, sejam aqueles que aqui estão compulsoriamente, os indivíduos não

abriram mão das suas tradições, mas também não permaneceram atados a elas. No cenário

do Distrito Federal, gaúchos e nordestinos inovam seus fatos tradicionais. Os integrantes do

CTG Jayme Caetano Braun e da Casa do Cantador constroem formas específicas de

sociabilidade e formas específicas de se localizar e inserir na cidade, traçando referenciais

próprios e erigindo modos de se pensar e viver. A pretensão não é conduzir a tese para

8
No próximo item deste Capítulo espero deixar claro o motivo pelo qual a palavra migrante aparece entre
aspas.

5
discussões relativas às identidades regionais ou à formação de redutos regionais na capital

federal. As perguntas centrais são: por que a mobilização em torno das tradições culturais é

acionada e qual o seu papel na vida de seus promotores?

Ao longo da etnografia, a resposta para a pergunta formulada anteriormente, foi

situando a análise para além do significado do ser migrante. O acionamento de

determinadas manifestações culturais não apresenta apenas a funcionalidade de dirimir

sentimentos de estranhamento ou de matar a saudade do contexto de origem do indivíduo.

Muito mais do que a idéia de pertencimento a um lugar, fazer parte dessas entidades

proporciona o sentimento de ser e estar num “grupo”. Nesse sentido, esta tese se enveredará

pela esfera das práticas sociais, das relações entre as pessoas, das redes simbólicas e

discursivas estabelecidas a partir do pertencimento a um agrupamento social. Em suma, o

ponto de partida, ou seja, a análise de processos migratórios, nos leva a outras questões.

Para além do resgate das tradições, uma das motivações para essas pessoas estarem

reunidas é o sentimento de pertença a um agrupamento social.

Além da tentativa de dialogar com as análises sobre processos migratórios, o

objetivo desta tese será o de inserir os universos aqui analisados dentro de outras questões

fundamentais para os estudos antropológicos realizados em contextos urbanos. Assim,

serão tratados temas como a elaboração de projetos sociais, a formação de agrupamentos

urbanos, fortalecimento de sentimentos de pertença, processos de identificação e formas de

sociabilidade.

6
Questões Metodológicas

O trabalho de campo foi realizado entre os anos de 2003 e 2004. A pesquisa foi feita

na Casa do Cantador e no CTG Jayme Caetano Braun de modo concomitante. Durante

minha estada nas duas entidades, algumas estratégias metodológicas precisaram ser

traçadas. Elas foram úteis na medida em que empreendia um estudo comparativo e

principalmente, por estar lidando com dois universos que apesar de apresentarem traços em

comum, mostravam-se bastante particulares. Aqui também serão feitos esclarecimentos no

que se refere a algumas opções teóricas e ao uso de determinados termos para a construção

da análise.

Como diria Iain Chambers (1994), ser migrante exige tradução (: 18). Todo o

homem em deslocamento supõe uma forma de ser descontínua (cf. Said, 1990). Vivem

entre mundos, nas interseções de histórias e memórias. Nesses encontros e disputas, a

situação do migrante nem sempre é privilegiada, ou melhor, na maioria das vezes não o é.

A posição de subalternidade advinda da própria condição de ser migrante é enfatizada em

muitos estudos sobre processos migratórios (cf. Ianni, 1972; Durham, 1984; Seyferth, 1990;

Sayad, 1998; Ribeiro, 1999; e Sptizer, 2001).

A ampliação da idéia de subalternidade, quando associada à imagem do migrante,

nos coloca diante de novas possibilidades investigativas. Poderíamos citar como exemplo a

análise dos significados do ser (des)localizado ou (des)terrado. Por outro lado, se nos

restringirmos ao fato de que todo migrante é subalterno por estar situado entre mundos,

histórias e memórias, a noção de subalternidade perde um de seus aspectos centrais: a

questão das classes sociais. Em outras palavras, a noção também precisa ser trabalhada num

nível mais imediato e prático. Nesse sentido, é necessário salientar que estou trabalhando

7
com migrantes de estratos sociais diferenciados. Os participantes da Casa do Cantador são

subalternos não apenas por estarem na condição de migrantes, mas também pelo fato de

pertencerem às camadas baixas da população brasileira. Aqui, se fixaram na periferia.

Antes de serem migrantes, eles já eram vistos como subalternos em seus contextos de

origem. Ao contrário, os freqüentadores do CTG Jayme Caetano estão inseridos dentro das

camadas médias. No Distrito Federal, estão no centro e não eram subalternos

economicamente em seus contextos origem. Além dessas características, estou analisando

dois tipos de deslocamentos. No caso dos integrantes da Casa do Cantador, a migração se

deu do meio rural para o urbano. Os freqüentadores do CTG saíram de regiões urbanas para

a fixação em outros meios igualmente urbanos. Todas essas nuanças podem gerar visões de

mundo diversificadas. Ao longo da tese, espero ter levado em conta tais particularidades

inerentes aos dois universos aqui estudados.

Um outro esclarecimento que precisa ser feito refere-se ao próprio uso do termo

migrante para caracterizar meus informantes. Qual o seu alcance? Até onde é possível usá-

lo? A utilização do termo precisa ser colocada em questão na medida em que muitos desses

indivíduos estão na capital federal desde os tempos da sua fundação. Mais do que

migrantes, eles seriam pioneiros. No entanto, todos os meus informantes passaram por

processos de deslocamento e, em seus discursos e práticas, fazem referências constantes a

um lugar que não é aquele que estão no momento. Mesmo assim, o termo migrante precisa

ser usado aqui com um certo cuidado. Tendo essas questões em vista, da mesma forma que

utilizo os estudos de migração para entender as experiências vividas por meus informantes,

procuro ampliar a análise, uma vez que cada vez mais a importância de pertencer a um

lugar vai cedendo espaço ao sentido de pertencer a um grupo.

8
Outra estratégia metodológica diz respeito à forma como as noções de folclore e

tradições culturais são empregadas nesta tese. Tais noções foram e continuam sendo alvo de

muitas discussões teóricas. Estamos longe de encontrar homogeneidade nas definições

desses conceitos. Há que se mencionar a diversidade de critérios e as divergências quanto à

definição de conceitos como folclore e cultura popular. Alguns autores não fazem

diferenciação entre as noções, outros estabelecem separações rígidas entre folclore, cultura

popular e ainda, cultura de massa (cf. Carneiro, 1957; Cortazar, 1959; Aretz, 1972;

Almeida, 1974). Sem pretender adentrar numa discussão teórica sobre tais noções, faz-se

necessário pontuar algumas questões.

O primeiro aspecto a ser ressaltado é o fato de que “folclore” e “cultura popular”

são noções que não estão dadas na realidade das coisas; são categorias do nosso

pensamento; integram uma forma de organização social e um modelo civilizatório

(Cavalcanti, 2001: 70). São conceitos forjados por uma tradição de estudos datada que

procurava delimitar, caracterizar e nomear práticas que não são, necessariamente,

designadas pelos seus atores como pertencendo ao rótulo de manifestações folclóricas ou

populares (Chaui, 1986; Ortiz, 1992; Chartier, 1995; Cavalcanti, 2001). Assim como Maria

Laura Viveiros de Castro Cavalcanti (1995), creio que

não há qualidades intrínsecas aos fatos de cultura que os façam pertencer naturalmente à
cultura popular, à cultura clássica ou à cultura de massas. Há sim conjuntos de questões
intelectuais e históricas que se expressam, de modo sintético, nas categorias eleitas para o
seu entendimento (: 18).

Existem dois níveis nos quais as noções de folclore e tradição cultural podem ser

trabalhadas: o nível analítico e o nível do discurso nativo. Nesta tese, a intenção é a de

enfocar e analisar o discurso nativo. De que modo e em quais situações, os informantes

9
acionam o vocabulário do folclore e da tradição? Se essa é a pergunta que nos guia, o

propósito é também o de (des)sacralizá-la. Situando-nos no nível do discurso

antropológico, tentaremos relativizar a visão nativa acerca do folclore e da tradição,

mostrando suas vicissitudes, ambivalências e matizes.

A cidade dos “sem”?

Como meus objetos de estudo estão inseridos num mesmo cenário urbano, ainda na

elaboração do Projeto de Pesquisa tive contato com uma bibliografia voltada à análise das

dinâmicas urbanas do Distrito Federal. Lendo esses trabalhos, pude identificar uma certa

homogeneidade no que se refere a alguns pressupostos teóricos. A tentativa de grande parte

dos autores é a de ressaltar a especialidade da capital federal. Este item da Introdução,

intitulado, A cidade dos sem, é uma breve reflexão sobre essas perspectivas, e ao mesmo

tempo uma forma de posicionar o meu trabalho frente a tais estudos.

Segundo a antropóloga Mariza Veloso Motta Santos (1997) uma das características

mais contundentes do Distrito Federal diz respeito à expressiva e visível presença de

diferentes tradições culturais que convivem e estabelecem processos de interação num

mesmo espaço urbano, tais como a cultura nordestina, gaúcha e mineira, entre outras. Para

Roque de Barros Laraia (1996) uma das particularidades da capital federal refere-se aos

migrantes que atenderam ao apelo épico de Juscelino Kubistchek. E,

Por que são oriundos de diferentes regiões, os habitantes não deixam de tentar transplantar
os costumes e rituais de suas origens. Esta preocupação transforma a cidade em uma
espécie de síntese do país. As tradições populares de todos os recantos são revitalizadas,
sendo transformadas por um inevitável sincretismo (op.cit.: 05).

10
Falar sobre tradições culturais brasileiras não é novidade para a Antropologia. No

entanto, poucos estudos sobre Brasília e suas cidades satélites abordam tal problemática.

Vários outros aspectos da dinâmica urbana da cidade já mereceram a atenção de muitos

estudiosos. Porém, segundo Aldo Paviani (1998), pouca ênfase tem sido dada à

participação social na continuidade do processo de construção e consolidação da cidade (:

13 e 20-21). Não é que esses estudos não existam. Podemos citar uma série de referências:

Nair Heloísa Bicalho de Sousa (1983) e Gustavo Lins Ribeiro (1982) sobre a participação

política dos operários que construíram Brasília; Mara Resende (1998) sobre movimentos de

moradores na Ceilândia; e Luiza Naomi Iwakami (1998) sobre a luta pela posse da terra na

Vila Paranoá. No entanto, notamos que grande parte das análises a respeito do Distrito

Federal privilegia o fato de ser a capital um espaço planejado e construído a partir de ideais

modernistas e conseqüentemente, suas implicações nas formas de sociabilidades

estabelecidas entre seus moradores.

Para Orlando Pilati (1976), Brasília, inspirada no urbanismo progressista que

privilegia caracteres como a racionalidade, a modernidade e a eficácia, contrapõe-se à

tendência culturalista do urbanismo cujas prerrogativas são o planejamento humanista e a

organicidade, onde a localização humana é encarada como enraizamento espaço-temporal.

Brasília foi construída para ser o lócus do poder central. O local deveria ser único em sua

forma: traçado simples e funcional de todo um conjunto espacial e não de unidades

fragmentadas e sem nexo com o contexto. Enquanto outras cidades figuram como

importantes centros populacionais, econômicos, industriais e culturais, a capital federal

encarna a imutabilidade dos princípios de modernidade e desenvolvimentismo (op. cit.: 56).

Segundo Pilati, os monumentos de Brasília foram erguidos como lugares simbólicos, onde

a idéia de Nação está expressa plenamente. Suas dimensões físicas são associadas aos

11
conceitos de Estado, poder e perenidade. Para o autor, a cidade figura como “definitiva”,

“atemporal”, o “não lugar” (op. cit.: 56-7). Essas são algumas das particularidades que

constroem não apenas o discurso mítico da gesta, mas da consolidação e da dinâmica da

cidade. Tal discurso pretende apresentar um meio urbano ideal e conseqüentemente, um

modo de vida correspondente.

Em 1962, Clarice Lispector esteve em Brasília pela primeira vez. A escritora parece

levar um susto: não tem esquina, botequim, cafezinho, cotidiano, falta macumba e samba

(Lispector, 1996: 43, 44, 46). Numa crônica, publicada em 1999 no jornal Zero Hora, Luís

Fernando Veríssimo também emite sua impressão:

Estive umas quatro ou cinco vezes em Brasília e posso dizer categoricamente o que penso
da cidade: não sei. Entendo os que a amam, entendo os que a odeiam, mas pretendo jamais
ficar lá o tempo suficiente para saber quem tem razão. Há algo de estranho na luminosidade
de Brasília. Algo de inclemente, algo de inquisitorial. É isso a luz de Brasília é uma luz de
interrogatório. Não admira que todas as histórias em Brasília soem como álibis.
As pessoas não contam as suas vidas em Brasília, dão desculpas. Vim para ficar uma
semana e fui ficando. Meu pai teve que vir com o ministério. Não é tão ruim quanto parece.
Você não perguntou nada, não acusou ninguém por estar lá, mas a luz habitua todo mundo
a se defender (...)
A luz de Brasília é uma cobrança permanente e inescapável (...).

Em opiniões mais extremadas como numa reportagem da Revista Veja, em 1994, a

cidade é comparada à figura mitológica de Medusa: quem a encara, corre o risco de virar

pedra 9. As largas avenidas, a luminosidade, a arquitetura moderna, a inexistência de

esquinas, o clima desértico, o esvaziamento populacional nos feriados ou em épocas de

férias, são alguns aspectos mencionados que permitem a apreensão da cidade como um

ambiente “frio”, “artificial” e “desumano”. A cidade é colocada como a cidade dos “sem”:

9
Infelizmente, privo o leitor da referência bibliográfica exata da Revista. No entanto, a citação, mesmo
imprecisa, é bastante significativa e ficou em minha memória por uma razão especial. Li a reportagem da
Veja aos dezessete anos, quando me decidia se trocava o calor do meu lar, no interior do Rio Janeiro, pela
possibilidade de estudar antropologia na fria capital do país.

12
sem esquina, sem lazer, sem gente, sem humanidade, sem história, sem tradição e sem

identidade.

Muitas vezes, esses estudos - e estamos falando aqui não somente das impressões

literárias de Lispector ou das crônicas de Veríssimo, mas também de estudos acadêmicos -

recaem nos discursos de que a arquitetura moderna não teria permitido a erupção de formas

espontâneas de sociabilidade. Essas afirmações parecem insuficientes e alguns autores

recorrem às avaliações pessoais do tipo gosto/não gosto; bonita/feia; alegre/triste. E na

maioria dos casos, a avaliação é negativa. Brasília é uma cidade monótona, desumana, fria,

artificial e inabitável (cf. Holston, 1993; Nunes, 1997; Pilati, 1976).

Fincada na idéia de uma invenção a partir de um marco zero, onde no espaço em

que foi construída não existia qualquer tradição cultural prévia, a cidade é identificada

como um local sem raízes próprias. Frente à imagem da cidade moderna, jovem e sem

tradições, a dinâmica das manifestações culturais, principalmente aquelas entendidas como

fatos folclóricos, não tem merecido a atenção da mídia nacional, de seus moradores e nem

de pesquisadores. Afinal de contas, qual o lugar da tradição num cenário que encarna os

ideais da modernidade?

Até o momento, de todas as teses de doutorado e dissertações de mestrado

defendidas Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília, apenas duas tratam

da temática dos folguedos populares na capital federal: a dissertação de Inês Gonzaga Zatz,

defendida em 1986, que analisa as festas populares na cidade satélite de Planaltina e a

forma como se relacionam com a construção ideológica da cidade; e a dissertação de Siglia

Zambrotti Doria, defendida em 1991, sobre o Centro de Tradições Populares de

Sobradinho. Indiretamente, podemos citar a tese de Lara Santos Amorim (2002), cujo

13
objeto de análise são as festas do Divino Espírito Santo em algumas regiões do Goiás, onde

são feitas breves referências ao cenário do Distrito Federal.

No Distrito Federal, a idéia de tradição cultural foi o estopim para a formação de

vários agrupamentos humanos: CTGs, Bumba-Meu-Boi, Casa do Cantador, etc. No

entanto, o que pretendo enfatizar é que Centros de Tradições Nordestinas existem em São

Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Os Centros de Tradições Gaúchas podem ser

encontrados até mesmo em Tóquio. É importante deixar claro que estou tratando de um

fenômeno social que ocorre em outras cidades. E aqui se situa uma das possíveis

contribuições deste trabalho. Na leitura de grande parte dos textos acadêmicos sobre

Brasília, nota-se a necessidade dos autores em garimpar as especificidades desse cenário

urbano. Parece que o exercício é sempre o de diferenciar Brasília e suas cidades satélites. É

claro, todas as cidades têm as suas particularidades, mas muitas dessas características

apontadas como próprias do Distrito Federal, não são tão específicas assim.

Meu objeto empírico gira em torno de pessoas em ou que já estiverem em trânsito,

promotoras de determinadas manifestações culturais. A reprodução dos fatos culturais é

dada por meio de um fluxo constante de significação e resignificação, pressupondo

encontros e misturas com outras vivências e realidades. O fato do objeto de análise estar

inserido no “controvertido” cenário do Distrito Federal, não desloca ou encobre o problema

inicial desta tese: analisar a dinâmica e o funcionamento de determinados agrupamentos

urbanos.

***

14
A tese está estruturada em três partes. A Parte I é dedicada à análise da dinâmica da

Casa do Cantador. O Capítulo I fornece uma caracterização geral da cantoria nordestina. É

o momento de compilar e de colocar em perspectiva alguns estudos que abordam o tema. A

intenção também é a de esboçar características e particularidades da Casa do Cantador na

Ceilândia. O Capítulo II trata da Cantoria de Pé de Parede. O enfoque estará nas

performances dos cantadores, nos conteúdos dos versos e nos processos sociais sinalizados

nesse evento-ritual. A Cantoria de Pé de Parede é um momento privilegiado para a reunião,

para a comunicação e construção de imagens acerca do cantador e do nordestino. O

Capítulo III é construído a partir das entrevistas realizadas com os cantadores. O propósito

é focalizar o modo como os cantadores pensam e vivenciam o deslocamento para a capital

do país. O momento é o de ressaltar a forma como os informantes valoram a si mesmos e a

manifestação cultural fomentada por eles.

A Parte II é direcionada ao universo dos tradicionalistas gaúchos em Brasília. No

Capítulo IV, o leitor encontrará questões gerais sobre o tradicionalismo gaúcho e um

breve esboço do cenário do CTG Jayme Caetano Braun. O Capítulo V é dedicado à

investigação dos eventos promovidos no CTG. O objetivo é demonstrar de que forma as

festas unem, comunicam e constroem “diferenças”. O Capítulo VI analisa as motivações e

as explicações do processo migratório vivido pelos freqüentadores do CTG Jayme Caetano

Braun. A idéia é a de analisar os modos como os nativos edificam imagens sobre o

migrante e sobre o sentido de ser gaúcho.

Na Parte III, minha tentativa é a de fazer um exercício comparativo entre os

tradicionalistas gaúchos e os cantadores nordestinos em Brasília. O foco do Capítulo VII

está em algumas questões chaves: nos modos como os informantes criam a imagem de um

“nós”; nas diferentes formas em que são acionadas as idéias de migrante nordestino e

15
migrante sulista; nos projetos sociais elaborados por esses indivíduos; e nas apropriações

das noções de folclore.

A Conclusão é uma retomada de questões discutidas ao longo da tese. É o momento

também de discutir de que forma a Casa do Cantador e o Centro de Tradições Gaúchas

Jayme Caetano Braun fornecem aos seus membros o sentido de pertencimento a um

agrupamento social.

16
PARTE I

A CASA DO CANTADOR

17
CAPÍTULO I

Questões gerais sobre a cantoria nordestina e a Casa do Cantador na Ceilândia.

Num primeiro momento deste capítulo será feita uma breve caracterização da

cantoria nordestina. A intenção é a de fornecer um panorama geral de como essa

manifestação cultural vem sendo tratada por pesquisadores da cultura popular. Em um

segundo momento, o propósito será o de contextualizar a cantoria nordestina na capital

federal, fornecendo um esboço de seu principal espaço de visibilidade: a Casa do Cantador

na Ceilândia.

Cantorias: origem, literatura de cordel, subalternidade e previsões apocalípticas.

Para vários pesquisadores o desafio poético, caracterizado pelo duelo de versos

improvisados entre dois cantadores, é uma herança européia. Segundo Luís da Câmara

Cascudo (2001 e 2005), a cantoria nordestina assemelha-se ao canto dos pastores gregos,

que reaparece em outras localidades da Europa (Alemanha, França, Portugal, etc.) com os

trovadores ao som de alaúdes ou violas. Gustavo Barroso (1949) corrobora o argumento de

Câmara Cascudo: “Já o [desafio] praticavam em Roma, para gáudio dos convivas dos

banquetes, os bufões da moda” (: 467). Denisson Penna (1999) tece aproximações entre a

cantoria e as cantigas medievais: em ambas manifestações, o artifício do desafio era

utilizado na disputa entre os trovadores (: 09). Dulce Martins Lamas (1986) também

ressalta a influência do movimento trovadoresco. Surgido na França, no século XI, e

transladado para Portugal, esse tipo de poesia teve grande repercussão nas cortes

portuguesas. “Com a colonização do Brasil pelos portugueses, verifica-se a transferência de

18
grande parte da literatura de versos cantados herdados pelos galaico-portugueses. E, assim,

podemos constatar muitos traços da cultura provençal remanescentes na arte da cantoria do

homem nordestino no Brasil” (op. cit.: 31).

Outro traço destacado pelos pesquisadores refere-se à estreita ligação entre a

chamada literatura de cordel e a cantoria nordestina. A literatura de cordel é um estilo

literário que afetou vários países de língua latina. A denominação, literatura de cordel,

deriva do fato dos folhetos serem expostos ao público nas feiras, pendurados em barbantes

ou cordões. Como forma de atrair compradores, muitos cordelistas cantam suas histórias.

Além de ser uma estratégia de venda, o canto é uma característica fundamental desse tipo

de poesia. Segundo Martine Kunz (2001), a literatura de cordel é uma forma de literatura

oral, feita para ser recitada: “A rima utilizada nos cordéis é feita para o ouvido, não para os

olhos” (: 80).

Para Carolina Morale (1999), cantadores e cordelistas trabalham o mesmo tipo de

verso e rima, as mesmas cadências melódicas e os mesmos ritmos, sendo que muitos deles

praticam os dois ofícios (: 16). De fato, se formos comparar os formatos dos cordéis e dos

versos improvisados numa cantoria, notamos semelhanças. Os exemplos abaixo ilustram a

questão. As duas primeiras estrofes foram extraídas do folheto de cordel, “A Vida de

Cancão de Fogo e seu testamento”, de Leandro Gomes de Barros, escrito em 1906. No

segundo exemplo, as estrofes foram feitas de improviso durante um desafio travado entre

dois cantadores, José Cardoso e Ivanildo Vila Nova, no ano de 2002. Tanto no cordel como

nos versos improvisados, os poetas utilizaram versos de seis linhas. As rimas são

construídas nas linhas pares dos versos:

19
Cordel de Leandro de Barros 1:
1- Então, a mãe dele disse:
2- Só se for comprar fiado...
3- Eu morro, porém não compro!
4- Deus bem vê o meu estado:
5- Seu pai morreu sem dever,
6- Conservou seu nome honrado

1- Disse Canção: - Essa honra


2- Não passa de palhaçada,
3- Porque o capitalista
4- Não olha a pessoa honrada...
5- Leve honra numa venda
7- E veja se arruma nada

Versos improvisados de Ivanildo Vila Nova 2:


1- Está tudo diferente
2- Pela força secretária
3- O ministro da reforma
4- Não faz mais reforma agrária
5- Para os camponeses voltarem
6- Contentes para a sua área

José Cardoso:
1- Nem penso em reforma agrária
2- Que a miséria levou fim
3- Cesta de Governo
4- Farinha fede a cupim
5- Quem só come coisa boa
6- Só dá se for coisa ruim

A cantoria e a literatura de cordel são abordadas a partir de suas identificações com

o Nordeste pastoril, ou seja, com o interior, com o “sertão”. Prefaciando a obra de

Leonardo Mota (1987), os Cantadores, Câmara Cascudo relata: “Não chegavam esses

heróis às cidades do litoral. A maioria dos príncipes da cantoria sertaneja desapareceu sem

ter visto o Atlântico” (: 13). Silvio Romero (1888) traça a vinculação através da análise dos

1
Versos extraídos de BARROS, Leandro Gomes de. A vida de Cancão de Fogo e seu testamento.
Fortaleza: Tupynanquim Editora, 2002.
2
CARDOSO, José e VILA NOVA, Ivanildo. Cantoria da AAPOP. Fortaleza: Studio Josemar Fitas, 2002. 1
cassete (46 min.): estéreo.

20
conteúdos dessas composições: muitos dos temas recolhidos nesse tipo de poesia dizem

respeito à influência da seca no espírito popular e à poesia mítica da vida pastoril (: 209).

A influência já exercida por esses poetas populares no meio rural nordestino foi

muito grande. No passado, os poetas “deram aos seus ouvintes do sertão a experiência de

mundos e histórias que, provavelmente, jamais poderiam alcançar no meio do sertão”

(Corrêa, 1999: 06). As cantorias e os folhetos de cordel eram instrumentos de comunicação,

meios de divulgação de eventos e fatos. O poeta era um comunicador que anunciava as

notícias e quebrava o isolamento das populações rurais. Para Eduardo Campos (1973), os

cantadores do Nordeste foram o cinema e a televisão do pobre nas noites sertanejas, um

grande espetáculo de sabedoria. Ser poeta no sertão exprimia uma “aspiração dos que

queriam se distinguir. A comunidade considerava o poeta um eleito e o consagrava como

possuidor de dotes excepcionais” (op.cit.: 79).

Muitos poetas do sertão eram analfabetos e conheceram as primeiras letras através

da literatura de cordel e das cantorias. Para alguns indivíduos tais manifestações culturais

representavam uma forma de ascensão social, uma estratégia de sobrevivência e, inclusive,

uma forma de renunciar à indigência. Mesmo tendo na poesia popular um meio de ascender

socialmente, os cantadores são descritos, em fontes recentes ou antigas, como subalternos e

marginalizados. Câmara Cascudo (In Mota, 1987) ao se referir aos cantadores do início do

século XX, os descreve como pobres e anônimos, completando: “Viver de cantoria era

subalternidade e opróbrio (...). Gente de sociedade alta não ouvia cantador (...). Numa

capital era apenas, na melhor expressão, esquisitice, excentricidade, tolice” (: 15). O

panorama atual, mas nem por isso diferente, é retratado numa revista do início do século

XXI, especializada em poesia popular: “[repentistas] são artistas que buscam um lugar ao

21
sol, mas devido à falta de divulgação e incentivo muitas das vezes se quer são conhecidos

e/ou reconhecidos (...) percebemos o quanto esses artistas populares são discriminados” 3.

Para Mark Curran (2003), a visibilidade da literatura de cordel e da cantoria passou

por uma série de altos e baixos ao longo do tempo. O autor mostra que a poesia popular, na

forma de cordéis e de versos improvisados, esteve em moda nas décadas de 1960 a 1980,

principalmente nos meios universitários e entre turistas estrangeiros. Campanhas foram

criadas para a preservação dessas manifestações. Acervos foram fundados na Casa Rui

Barbosa do Rio de Janeiro e em outras entidades regionais de Pernambuco, Ceará, Paraíba,

Alagoas, Rio Grande do Norte e Bahia. Emissoras de rádio locais faziam programas

semanais com poetas populares. Universidades promoviam congressos e publicavam

artigos em revistas especializadas. Escritores, músicos e diretores utilizaram temas e a

linguagem da literatura de cordel em suas obras. Em alguns casos, a influência é

superficial, constituindo na adaptação dos versos populares para criar o “ambiente

nordestino”; em outros, a influência é direta pelo uso da estrutura e conteúdo dos versos

populares. Alguns exemplos podem ser dados: Ariano Suassuna, em o Auto da

Compadecida, cita alguns folhetos de cordel de Leandro Gomes de Barros; Jorge Amado

em O ABC de Castro Alves, introduz nos romances, os “ABCs” tão comuns na forma de

cordel; Dias Gomes na peça O Pagador de Promessas tem como um de seus personagens

um poeta popular; em Morte e Vida Severina de João Cabral de Melo Neto é possível notar

o tom dos folhetos 4; na música, o grupo Quinteto Violado e Elba Ramalho já gravaram

várias obras da literatura de cordel (op. cit.: 186-188).

3
Trechos extraídos da Revista de Repente, pág.8-9, set – out/2004, ano X, n.41.
4
Outros exemplos da influência da literatura de cordel na literatura brasileira podem ser vistos em:
CURRAN, Mark. Influência da Literatura de Cordel na Literatura Brasileira. Revista Brasileira de Folclore.
Rio de Janeiriro, ano IX, n. 24, p. 111-123, maio/agosto, 1969.

22
Mesmo destacando os “tempos áureos”, Curran (2003) ao falar dessas

manifestações culturais recai na questão da subalternidade e na visão apocalíptica: “Suas

sobrevivências na atualidade se colocam apenas como relíquias de um passado glorioso” (:

19). Enfim, as previsões catastróficas a respeito do cordel e da cantoria foram feitas no

passado e são feitas no presente. Silvio Romero em 1888 escreve: “... a decadência (...) é

patente: os livros de cordel vão tendo menos extracção depois da grande inundação dos

jornaes” (Romero, 1888: 343). O cordelista e cantador Franklin Maxado (1984) ao

pesquisar a atualidade de muitos de seus pares, diz que eles são confundidos com camelôs e

perseguidos por fiscais, que acham que suas rodas de declamação, em lugares de

movimentação, atrapalham a locomoção. Ao falar de alguns poetas populares famosos no

passado, o autor ressalta que muitos abandonaram a profissão e são atualmente, cobradores

de ônibus, ambulantes e encanadores (op. cit.: 71-79).

A literatura sobre a cantoria nordestina em perspectiva.

A literatura citada nas páginas anteriores merece ser colocada em perspectiva. As

questões a serem discutidas dizem respeito ao conteúdo dos textos e à procedência de seus

escritores. Grande parte dos textos sobre cantoria nordestina foi escrita por folcloristas e

profissionais das áreas de comunicação, letras e música. Quero chamar atenção tão somente

para o fato da inexistência de uma reflexão antropológica/sociológica significativa sobre o

tema. Quando ainda da elaboração de meu Projeto, fiz uma pesquisa em algumas revistas e

no acervo de teses e dissertações de mestrado de alguns Programas de Pós-Graduação na

área de Ciências Sociais. No catálogo das publicações do PPG em Antropologia Social do

Museu Nacional, do PPG em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia, do PPG

23
em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba, nas revistas publicadas pelo

Departamento de Antropologia da Universidade Federal de São Paulo (Coleção

Antropologia e Revista de Antropologia) e da Universidade Federal de Pernambuco

(AntHropológicas), não encontrei nenhum trabalho que abordasse a cantoria como tema

central5.

De alguma forma, minha constatação é confirmada por Elizabeth Travassos (1989),

uma das poucas antropólogas que já se dedicou ao tema: “(...) embora a bibliografia sobre

poesia popular seja volumosa, são em pequeno número os títulos que dedicam especial

atenção à música dos cantadores” (: 115). Para a autora, no estudo da chamada poesia

popular no Brasil, os desafios poéticos improvisados e a literatura de cordel vêm sendo

tratados como temas estreitamente vinculados. E nessa vinculação há uma nítida

predominância dos estudos dos textos escritos sobre aqueles que focalizam formas orais e

musicais (op. cit.: 115).

Uma das questões que merece ser colocada em perspectiva refere-se à vinculação

entre literatura de cordel e cantoria nordestina. Apesar das similaridades quanto ao formato

dos versos e à utilização das rimas, a literatura de cordel e a cantoria nordestina são

manifestações culturais diferentes e devem ser tratadas como tais. E mesmo que vários

pesquisadores apontem para o fato de que por utilizarem as mesmas cadências melódicas e

ritmos, muitos praticam os dois ofícios, dentro de meu universo de análise, poucos

cantadores fazem literatura de cordel.

A cantoria tem suas próprias características. Seus traços fundamentais são a

“oralidade” e a “efemeridade”. “Trata-se de uma forma que se desenvolve no tempo, que é

5
Todas as referências aqui citadas estão disponíveis nos seguintes endereços eletrônicos:
www.ppgasmuseu.etc.br/pages/teses.html; www.ppgs.ufba.br/catalogo.htm; www.cchla.ufpb.br/ppgs/teses-
jp.html; www.ffch.usp.br/da/public.html; www.ufpe.br/antropologia/revista.htm.

24
composta e propagada oralmente, percebida auditivamente, que não deixa rastros, a não ser

na memória dos participantes, e que não depende de um texto” (Travassos, 1989: 116). Por

mais efêmera, variada e contingente que possa ser a cantoria nordestina, ela é um gênero

inconfundível que pressupõe regras do jogo e ações que a atualizam. As regras do jogo e as

ações que atualizam a cantoria serão analisadas mais detidamente nos Capítulos II e III.

No entanto, algumas questões podem ser antecipadas na medida em que tocar nesse assunto

é matizar as previsões apocalípticas feitas por muitos autores citados na primeira parte

deste capítulo (cf. Romero, 1888; Maxado, 1984 e Curran, 2003).

Apesar do caráter de subalternidade e de decadência destacados em diferentes

épocas, não podemos pensar essas manifestações culturais como sendo um modismo

passageiro ou eventos fadados ao desaparecimento. Cordéis e cantorias, principalmente nas

grandes capitais, ganham um novo vulto. Em julho de 2004, tive a oportunidade de

presenciar um Festival de Repente, realizado na Praça Marco Zero, em Recife. O lugar era

bastante amplo e a quantidade de pessoas ali presentes era realmente impressionante.

Cadeiras de plástico foram espalhadas na praça pela organização do evento para que o

público pudesse assistir ao Festival confortavelmente. Sentada e prestando muita atenção ao

que os cantadores diziam, uma multidão aplaudia, sorria, vaiava e acompanhava a

performance dos cantadores.

Em relação à literatura de cordel, embora muitas editoras caseiras tenham fechado

suas portas, o cordel continua aparecendo nos mercados, feiras livres e livrarias do

Nordeste e de diversas capitais do Brasil. O xilogravurista 6 Jota Borges ilustrou um livro

6
Xilogravuras são ilustrações feitas a partir de um molde, cujos desenhos são esculpidos na madeira. Essas
gravuras são muito utilizadas na ilustração das capas dos folhetos de cordel.

25
do historiador e escritor Eduardo Galeano 7. Xilogravuras são vendidas muitas vezes a um

preço bastante elevado, principalmente nas livrarias e lojas fora do Nordeste. No ano de

2004, algumas xilogravuras vendidas na livraria do Centro Cultural do Banco do Brasil, em

Brasília, chegavam ao preço de $150,00.

O importante a ser destacado e analisado é o fato de que essas manifestações

culturais não ficaram congeladas no tempo. A cantoria e o cordel ultrapassaram as

fronteiras do sertão. Os poetas populares estão não apenas nas capitais nordestinas. São

Paulo, Rio de Janeiro e Brasília abrigam uma quantidade significativa de cantadores. Nos

grandes centros, a cantoria sofre modificações. Hoje, os cantadores não são analfabetos e

alguns possuem curso superior.

Nos grandes centros urbanos, a principal transformação da cantoria refere-se à

“reciclagem” de seus praticantes. Essa “atualização” envolve entre outros fatores, a

utilização de uma linguagem considerada gramaticalmente correta e a preocupação em estar

a par dos assuntos da atualidade política, econômica e social do país e do mundo. Enfim, os

cantadores não estão mais restritos aos temas da vida pastoril do Nordeste.

Atualmente, para um cantador ser considerado um “bom poeta” é preciso que ele

tenha uma preocupação com o uso correto da língua. Ele quase não assume a linguagem

“matuta”, típica do sertão, e quando o faz, faz com a intenção de apenas divertir os ouvintes

e de dar um cunho de autenticidade às histórias que se passam no sertão (Kunz, 2001: 47).

No poema abaixo, o poeta faz uma diferenciação entre a fala do cantador e a fala do

matuto. A linguagem matuta, repleta de erros ortográficos, é utilizada como uma forma de

evidenciar um tipo social, o matuto, bem diferente de um outro tipo, o cantador. Ao utilizar

a linguagem matuta, o poeta “erra” de propósito, ou seja, o erro é consciente:

7
GALEANO, Eduardo. As Palavras Andantes. 4 ed. Porto Alegre: L&PM Editores, 1994.

26
Um cantador pergunta:
E a cantoria ontem,
Até deu pra descolar?
O matuto responde:
Onte nós fumo cantá
Pra num perde o custumo,
Mais só ganhemo o dinheiro
Da passage num sei cumo
E vortemo pra casa liso
Do mermo jeito qui fumo.
(Donzílio Luiz de Oliveira – 11 Poemas Matutos).

Além de cantar temas regionais, respeitando as regras da gramática, o poeta da

cidade precisa ter domínio dos assuntos da atualidade no que se refere à política, à

economia e à vida social do país e do mundo. Os versos abaixo são de dois poetas

contemporâneos e citadinos 8. A primeira sextilha, feita por um poeta residente em

Teresina, refere-se à política. Nesse exemplo, ele emite sua opinião sobre programas sociais

do atual Governo Federal:

A cesta do fome zero


È coisa medonha
Só tem fubá e sardinha
Nada mais que a componha
Em vez de matar a fome
Está matando de vergonha
(Pedro Costa).

No segundo exemplo, o cantador nordestino marca a sua posição frente aos atuais avanços

da ciência. Os assuntos são Projeto Genoma, mapeamento genético e clonagem humana. Os

versos foram compostos por Geraldo Amâncio. O poeta nasceu numa região rural do Ceará,

8
Os versos são composições feitas de improviso durante a cantoria e estão registrados na Revista de Repente,
pág. 9, ano X, set/out/2004.

27
onde passou toda a sua infância e juventude. Mudou-se para Fortaleza já adulto, a fim de

exercer a cantoria, e hoje é considerado um dos maiores cantadores da atualidade.

O mundo se encontra bastante avançado


A ciência alcança progresso sem soma
Na grande pesquisa que fez o genoma
Todo o corpo humano já foi mapeado
No mapeamento foi tudo contado
Oitenta mil genes se pode contar
A ciência faz chover e molhar
Faz clone de ovelha, faz cópia completa
Duvido a ciência fazer é poeta
Cantado galope na beira do mar
(Geraldo Amâncio)

Falar sobre a atualidade da cantoria é também falar sobre os espaços e situações em

que são realizadas. No passado, era muito comum que as cantorias fossem feitas em casas

particulares. Essas situações ainda se fazem presentes, ou seja, são aquelas realizadas em

ocasiões especiais como casamentos e aniversários em que o anfitrião da festa contrata os

repentistas a um preço previamente combinado. Há também cantorias realizadas em feiras,

botecos, exposições agropecuárias e nas praias do Nordeste. Não obstante, esses “tipos” de

cantoria nem sempre são apreciados pelos cantadores. As “cantorias”, principalmente

aquelas realizadas nas praias do Nordeste, onde os turistas são constrangidos a ouvirem

versos em troca de alguns tostões, são vistas como um desagravo aos cantadores.

Com todas as transformações na cantoria (o uso de uma linguagem gramaticalmente

correta, a abordagem de temas da atualidade ou que já fizeram parte da história da

humanidade, etc) surgiram também locais construídos especificamente para a divulgação da

cantoria nos centros urbanos. As Casas do Cantador povoam diversas cidades do Brasil.

28
Diferente dos bares e das praias, esses espaços são locais privilegiados para receber uma

clientela que, segundo os cantadores, “gosta mesmo da cantoria nordestina”.

Nas Casas do Cantador são feitas as “Cantorias de Pé de Parede”, assim chamadas

pelo fato dos cantadores, sempre em duplas, ficarem encostados numa parede, sentados em

cadeiras e sem o recurso do palco. São cantorias feitas para um público pequeno composto

por admiradores conhecidos como “apologistas”. Voltaremos a essa questão no Capítulo

II. Por ora, nos dedicaremos a caracterizar o cenário da atualização da cantoria nordestina

na capital federal.

A Casa do Cantador na Ceilândia.

No Distrito Federal, existem cerca de vinte cantadores, espalhados por várias

cidades satélites: Ceilândia, Gama, Planaltina e Recanto das Emas. O principal ponto de

encontro desses poetas é a Casa do Cantador, localizada na Ceilândia. A idéia de construir

um espaço destinado à divulgação da cantoria nordestina nessa cidade satélite se deu,

segundo alguns cantadores, pelo fato de ser ali um reduto dos poetas populares nordestinos.

O primeiro recenseamento de Brasília 9, realizado em 1957, indicava a presença de

quatro mil pessoas. Esse contingente era formado basicamente por trabalhadores não

qualificados que vinham trabalhar na construção civil. A procedência era

predominantemente goiana e mineira (Sousa, 1983: 34). Em 1958, chegaram cerca de cinco

mil nordestinos, impulsionados pela grande seca que assolava a região Nordeste.

9
Nessa ocasião Brasília era formada pelo Núcleo Bandeirantes e por quatorze acampamentos, muitos deles
improvisados com barracas de lona.

29
À medida que crescia a população, aumentava o estabelecimento de moradias por

invasão. Visando solucionar o problema habitacional da nova capital, surgem as cidades

satélites: em 1958, Taguatinga; em 1959, Sobradinho; em 1960, o Gama (Ribeiro, 1982:

119). Em 1971, uma enorme invasão, resultado da destruição de antigos acampamentos, era

transferida para uma área atrás de Taguatinga. Assim nasce a Ceilândia, também conhecida

pelas siglas CEI, Centro de Erradicação de Invasões.

A CEI transformou-se na residência de muitos trabalhadores nordestinos da

construção civil. E é esse o local apontado pelos cantadores como o reduto da cantoria

nordestina. Nos finais dos anos sessenta (nas imediações do que hoje é o centro comercial

da Ceilândia), os encontros eram feitos no Bar do Galego. Os encontros aconteciam aos

domingos e duraram, segundo os informantes, quinze anos. Depois, o Bar do Galeno

mudou de dono e se transformou no Bar do Gouveia, mas os encontros não pararam.

Atualmente, o ponto de encontro da cantoria nordestina não é nos bares da cidade. Foi

construído um local especifico para a divulgação da cantoria: a Casa do Cantador.

A Casa do Cantador é construída quinze anos após o surgimento da Ceilândia. O

mito de fundação marca o ano de 1985 como o pontapé inicial para a construção da Casa.

Em 1985, aconteceu um Festival de Repente em Brasília, organizado pela Associação de

Moradores da Ceilândia. Os cantadores do Nordeste se uniram aos que aqui estavam e

foram à residência do então Governador do Distrito Federal, José Aparecido, reivindicar a

construção da Casa do Cantador. A idéia era construir um espaço nessa cidade satélite para

hospedar cantadores nordestinos de passagem pela cidade, além de ser uma sede para a

realização de grandes festivais e festas ligadas ao cordel e ao repente. No ano de 1986, a

Casa do Cantador foi inaugurada pelo Governador e pelo Presidente da República, José

Sarney.

30
As dependências do prédio são amplas. No térreo, um anfiteatro, cozinha, dois

banheiros, salas para a diretoria, secretaria e biblioteca. As apresentações dos cantadores

são feitas no anfiteatro ou numa área próxima à cozinha. No andar de cima, estão

localizados os quartos e banheiros destinados aos cantadores em trânsito que se hospedam

na Casa.

O prédio da sede da Casa do Cantador segue os traços de Oscar Niemayer. Dentre

as várias construções que levam a sua assinatura na capital do país, a Casa do Cantador é o

único projeto do arquiteto, situado numa cidade satélite. Conhecida nos noticiários por ser

um dos locais mais violentos do Distrito Federal, Ceilândia se orgulha da obra de

Niemayer. Frente aos graves problemas sociais, altos índices de homicídio e roubos, a Casa

do Cantador é indicada por muitos ceilandeses como uma das melhores coisas que existe na

cidade. A Casa do Cantador é uma referência para Ceilândia (pelo menos ao nível de

“cartão-postal”).

Na prática, a troca entre a comunidade e a Casa do Cantador não é tão intensa assim.

A instituição enfrenta sérios problemas financeiros e constantemente passa por longos

períodos de apatia. Atualmente, além dos eventos mensais de cantoria, cuja presença da

comunidade é bastante tímida, os ceilandenses podem contar com a biblioteca da Casa,

aberta de segunda à sexta-feira. O acervo varia entre literatura brasileira e obras

especializadas em cantoria nordestina.

Nas dependências da entidade são realizadas aulas de música e teatro para jovens da

comunidade. Por ser um órgão público, a instituição apenas cede seu espaço para a

realização dessas aulas ministradas por professores contratados pelo Governo do Distrito

Federal (GDF). Em outras palavras, essas aulas não têm necessariamente relação com os

31
propósitos da Casa do Cantador, não são dadas por cantadores e nem têm como mote a

divulgação da cantoria nordestina no Distrito Federal.

Existem outras Casas do Cantador distribuídas pelo Brasil: Teresina (PI), São José

do Egito (PE), Fortaleza (CE), Campina Grande (PB), Maceió (AL), Rio de Janeiro (RJ),

etc. Elas surgiram com o objetivo de divulgar e manter manifestações culturais ligadas à

literatura de cordel e à cantoria nordestina. No entanto, a Casa do Cantador na Ceilândia

apresenta uma particularidade frente às demais: é a única que não é uma instituição privada,

as demais são mantidas pelos próprios cantadores através de suas Associações.

A Casa do Cantador de Brasília é uma entidade pública. Os funcionários como

faxineiros, vigias, secretários e até o diretor da Casa são contratados pelo GDF. A cada

troca de Governo, a Casa do Cantador tem um novo diretor. Até pouco tempo atrás, a Casa

era mantida diretamente pela Secretaria de Cultura do GDF. Atualmente, sua gerência está

nas mãos da Administração da Ceilândia. A Secretaria de Cultura faz o repasse de toda a

verba destinada à cultura na Ceilândia e a Administração fica encarregada de distribuir os

recursos. Grande parte dos funcionários aponta este fato como o responsável pela pouca

verba destinada à entidade:

Antigamente, quando a Casa estava diretamente ligada à Secretaria de Cultura, eram feitos
dois ou três festivais por ano que reunia cantadores de todo o Brasil. Ultimamente, não
conseguimos fazer nem um.

O fato de ser uma entidade pública se reflete na dinâmica da Casa, seja no seu

funcionamento e administração, seja em eventos destinados a princípio à preservação da

cantoria nordestina. Vinha sendo anunciado que no domingo do dia 9/11/03, a Casa do

Cantador comemoraria seus dezessete anos de existência com eventos programados para

32
durarem das oito da manhã até dez horas da noite. Jogo de futebol entre cantadores e

admiradores, forró da terceira idade, almoço e apresentações de cantoria, estavam

programados. Na sexta-feira, escutando “Forrobodó”, um programa da rádio Cultura,

principal meio de divulgação das cantorias no DF, soube que o evento tinha sido cancelado.

As comemorações seriam na Casa do Cantador, logo mais à noite. Corri para a Ceilândia.

Cheguei por volta das oito e quinze. Ao entrar, avisto cartazes, afixados em várias pilastras

da Casa, que anunciavam o evento cancelado de domingo. As imagens dos cartazes

mostravam a influência da esfera política na Casa do Cantador. Na parte superior dos

panfletos havia duas pequenas ilustrações em preto e branco de dois cantadores que iriam

se apresentar no evento. E logo abaixo, duas fotografias coloridas e enormes: de um lado, o

deputado federal José Roberto Arruda e de outro, o senador Paulo Octávio. As legendas das

fotos apresentavam nomes, cargos políticos e as denominações “padrinho” e “patrono” do

evento, respectivamente. Um bom espaço dos cartazes estava reservado aos patrocinadores:

Café do Sítio, Administração da Ceilândia e GDF. Finalizando o contexto geral, os cartazes

anunciavam, em grandes letras, um culto evangélico que também faria parte das

comemorações.

Financeiramente, a Casa depende quase que exclusivamente do Governo do Distrito

Federal. As dificuldades financeiras são enormes. A pouca verba destinada a Casa não é

suficiente para a realização dos festivais. Segundo os cantadores, os festivais eram eventos

realizados duas ou três vezes ao ano, reunindo grandes poetas do Nordeste. O público dos

festivais era estimado em cerca de cinco mil pessoas. Eram eventos que davam visibilidade

aos cantadores e à Casa do Cantador, além de serem uma opção de lazer para muitos

ceilandenses.

33
Mesmo impossibilitada de realizar grandes festivais, mensalmente a Casa do

Cantador promove noites de cantoria. São as Cantorias de Pé de Parede. O público desses

eventos nem sequer chega perto das cinco mil pessoas presentes nos festivais, no entanto, a

Casa abre seus portões, os cantadores afinam suas violas ao pé de uma parede e fazem

versos para um público que, embora pequeno, sempre comparece. A dinâmica desses

eventos será o assunto do próximo capítulo.

34
CAPÍTULO II

A Cantoria de Pé de Parede: o rito por excelência da Casa do Cantador.

Era uma manhã de céu azul no início do ano de 2002... Abro o portão. Não avisto

ninguém dentro do prédio. As portas estão fechadas. Grito: “Ô de casa, ô de casa!”.

Finalmente, sou atendida por um cantador. Pergunto sobre as atividades desenvolvidas

naquele espaço. Ele responde algo que era visível: “No momento, a Casa está meio

parada”.

Esse foi o meu primeiro contato com a Casa do Cantador. O cenário não era muito

promissor para a realização de uma pesquisa antropológica. A Casa do Cantador, que na

minha concepção era o “quartel-general” dos cantadores nordestinos no Distrito Federal,

parecia apenas uma construção de concreto abandonada. Abandonada por quem? Pelo

poder público, pelos admiradores da cantoria nordestina ou pelos próprios cantadores? O

que mais impressionava não era o precário estado de conservação do prédio, mas a

sensação de inércia que o cartão-postal da Ceilândia passava ao visitante. A Casa do

Cantador estava parada, sem movimento e sem ação. Todavia, o fato do portão de acesso

estar aberto mesmo diante das portas fechadas lá dentro, funcionava para mim como uma

esperança de que aquela situação era temporária. Afinal, nas conversas iniciais que tive

com cantadores, era bombardeada com notícias dos tempos áureos da entidade: grandes

festivais, encontros e momentos de troca com a comunidade 1.

1
Um período citado pelos cantadores como de grande efervescência foi durante a vigência (1996-1998) do
Projeto Cantoria-Escola, feito em parceria com o Governo do Distrito Federal. O projeto propiciava
apresentações freqüentes de cantadores nas escolas públicas. As cantorias versavam sobre temas educativos:
aborto, violência contra a mulher, drogas, cidadania, educação no trânsito, etc.

35
Em 2003, quando iniciei efetivamente o trabalho de campo, a Casa do Cantador era

definitivamente outra. Continuava sendo uma manhã de céu azul na Ceilândia. O portão de

acesso ao prédio estava escancarado. Na entrada, três pessoas conversavam. Do anfiteatro,

ouvia sons de instrumentos musicais. Em funcionamento, biblioteca, secretaria e sala da

diretoria. Funcionários circulavam pelo ambiente. Prestando muita atenção nas explicações

de um “guia”, um grupo de estudantes passeava pela Casa. Desde março de 2003, o “guia”,

que comentava, empolgado, planos para a revitalização do espaço, era o novo diretor da

Casa. Via um cenário que se aproximava mais do que eu imaginava ser a Casa do Cantador

em ação.

Muito do que minha imaginação construía a respeito da cena descrita acima,

traduzia-se em devaneios romantizados. Os sons que ecoavam do anfiteatro, logo me

fizeram conjeturar sobre suas possíveis relações com a manifestação que estava disposta a

estudar: “Cantadores dando aulas de música? Oficinas de cantoria nordestina?”. Aqueles

sons nada tinham a ver com os cantadores, a não ser o fato de serem realizados num espaço

cuja placa indicativa revela: “Casa do Cantador”. As aulas são ministradas por professores

da rede pública de ensino. Por ser um órgão governamental, a Casa cede suas instalações

para a realização das mesmas. Os funcionários que circulavam pela Casa, com exceção do

diretor que é cantador, nada tinham a ver com a cantoria nordestina. Quais seriam, então, os

eventos realizados naquele espaço que reuniam os cantadores? Como seria a divulgação da

cantoria nordestina? Em última instância, o que fazia da Casa, a Casa do Cantador?

Associações de Cantadores existem em todo o país. São tipos de organizações civis

formalizadas que mobilizam seus membros em prol de interesses comuns. Não existe,

atualmente, no Distrito Federal uma “Associação de Cantadores” em atividade. Investigar

esses motivos pode nos conduzir à constatação da inexistência de uma mobilização

36
organizada entre os cantadores. Por outro lado, nos deparamos com o fato de que essas

associações existiam antes da fundação da Casa. Com a construção da Casa do Cantador,

parece que as associações foram perdendo suas forças ou quem sabe suas razões de ser.

Encontra-se aqui a peculiaridade da Casa do Cantador na Ceilândia frente às demais Casas

espalhadas pelo Brasil: ela é uma instituição pública. Com todos os problemas financeiros

que essa particularidade pode acarretar 2, ela significa muito para os cantadores fixados na

capital federal.

O mito de fundação do espaço já nos diz muito sobre tal significado. Foram os

cantadores unidos e mobilizados que fizeram a reivindicação ao governador do Distrito

Federal para a construção da Casa. A Casa foi inaugurada pelo Presidente da República. Foi

fruto de um projeto assinado pelo mesmo arquiteto que projetou Brasília. Enfim, a Casa do

Cantador é apreendida como uma conquista. O relato da fundação da entidade faz parte de

todo um contexto, acionado pelos cantadores, que pretende fixar jogos de intenções. O que

denominamos “jogos de intenções” corresponde às expectativas desses migrantes; aos

processos de autoconstrução de si mesmos como nordestinos e como artistas; aos

significados de estar em Brasília; às adaptações e inovações que fazem no novo cenário; e

ao que selecionam em seu repertório tradicional para a exibição pública. Essas questões são

fundamentais para a compreensão do universo dos cantadores nordestinos em Brasília. No

entanto, precisamos percorrer um longo caminho para tentar esclarecê-las.

Creio que se a minha pesquisa fosse realizada em um outro período, os eventos a

serem analisados poderiam ser diferentes. Porém, acredito que ao longo das diferentes

administrações e dinâmicas da Casa, sempre existiram situações capazes de expressarem

algo sobre seus praticantes. Refiro-me àqueles acontecimentos consagrados à atualização

2
Vide Capítulo I.

37
da cantoria nordestina no Distrito Federal. Esses episódios são realizados com maior ou

menor freqüência na Casa do Cantador desde a sua fundação, em 1986. Analisar tais

situações nos direciona para a reflexão de temas relativos à reconstrução das idéias do

migrante nordestino e da cantoria nordestina, assim como para as estratégias de inserção

dos cantadores nos grandes centros urbanos.

Para a adaptação e inserção em novas situações, indivíduos ou grupos muitas vezes

recorrem à idéia de tradição cultural. Em contextos migratórios, manifestações tidas como

tradicionais convertem-se num estoque de símbolos necessários e eficazes. Lúcia Arrais

Morales (1993) exemplifica a argumentação ao analisar a Feira de São Cristóvão,

localizada no Rio de Janeiro. A concretização desse evento e a história da migração

nordestina para tal cidade estão imbricadas. A Feira é vista pela autora como um fator de

organização e atualização de uma tradição através da qual identidades são negociadas. É o

espaço onde não apenas se comunica o que é ser nordestino, mas principalmente onde a

experiência de ser migrante é apropriada para a afirmação e legitimação de um lugar dentro

da cidade de destino (op. cit.: 64). Vejamos como isso se passa (se é que isso realmente se

passa) na Casa do Cantador na Ceilândia, a partir da análise da Cantoria de Pé de Parede.

Em todas as sociedades existem eventos que podem ser reconhecidos como rituais

por serem considerados especiais (cf. Tambiah, 1985; Peirano, 2003). Atualmente, a

antropologia argumenta em prol de uma definição etnográfica de ritual, apreendida pelo

pesquisador em campo, junto à realidade observada. Cabe ao pesquisador desenvolver a

capacidade de apreender o que os nativos estão indicando como sendo único, excepcional,

crítico e diferente (Peirano, 2003: 09). Na esfera da Casa do Cantador, o que me era

indicado como sendo especial era a chamada Cantoria de Pé de Parede. Tomo essas noites

de cantoria como o rito por excelência da Casa do Cantador.

38
Esse evento exerce a função de reunir e congregar pessoas. Além disso, ele desvela

algo sobre seus praticantes. É um momento em que imagens são construídas e

comunicadas. Imagens que se referem às afirmações da identidade nordestina, mas que

também nos permite perceber que uma série de idéias sobre o migrante, a tradição e o

cantador estão sendo reavaliadas e ganhando novas nuanças.

Sendo um evento especial, a Cantoria de Pé de Parede é caracterizada por uma

forma específica. Ela é um ato performático. Analisar uma performance é voltar a atenção

ao poder simbólico da comunicação humana. De acordo com Victor Turner (1982), a

comunicação simbólica não se limita às palavras. Cada cultura usa seu repertório sensorial

para transmitir mensagens. Assim, gesticulações manuais, expressões faciais, posturas

corporais, respirações, padrões de dança e movimentos sincronizados nos dizem muito

sobre seus executores. O que o autor denomina de Antropologia da Performance tem como

objetivo trazer os dados/atos em sua plenitude, onde desejos e moções, estratégias pessoais

e coletivas, situações de vulnerabilidade, cansaço e erros são levados em conta (op. cit.:

13). Vários outros autores já atentaram para essa preocupação sem, no entanto, nomeá-la

como uma “situação performática” ou com a intenção de classificá-la como uma

“antropologia da performance”. Lembro Marcel Mauss (2003), em Técnicas Corporais 3,

quanto ao uso do repertório sensorial para a transmissão de mensagens; Emile Durkheim

(1996) em Formas Elementares da Vida Religiosa 4, obra repleta de descrições etnográficas

preocupadas ou informadas pela dimensão performática dos rituais; e Erving Goffman

3
Comunicação apresentada à Sociedade de Psicologia em 1934.
4
Obra escrita em 1912.

39
(1995) que explicitamente utiliza a metáfora teatral para desenvolver todo o seu argumento

em A representação do eu na vida cotidiana 5.

Não pretendo trazer aqui essas idéias com o objetivo de empreender uma possível

Antropologia da Performance. Os estudos de performance não são utilizados com o

propósito de contribuir para uma discussão teórica sobre o tema, mas apenas como um

instrumento metodológico que me possibilita dar especial atenção à dimensão gestual,

cenográfica e comunicativa dos eventos-rituais. As performances-rituais aqui analisadas são

pensadas enquanto formas de comunicação. Elas expressam coisas: falam sobre

representações sociais, edificações de imagens e modos de inserção e de afirmação do

indivíduo no meio urbano.

Dito isso, a Cantoria de Pé de Parede é pensada enquanto um ato que envolve o

estranhamento do cotidiano, ou seja, acontece em ocasiões especiais; pressupõe

responsabilidade para com uma audiência, competência comunicativa, preparação,

organização, expectativas, reações da platéia e interações (cf. Bauman, 1986; Finnegan,

1992; Langdon, 1999). Veremos como essas características fluem na dinâmica do ritual.

O cenário, as formas poéticas e outros ingredientes do rito.

As noites de cantoria têm início por volta das vinte ou vinte e uma horas. Terminam

quando os ouvintes se vão ou quando a dupla de cantadores se cansa. Durante quase toda a

realização do trabalho de campo, as cantorias eram semanais, realizadas sempre nas sextas-

feiras. Atualmente, as cantorias são mensais. De acordo com o diretor da Casa, em função

do pequeno público que estava comparecendo aos eventos.

5
Livro publicado em 1959.

40
Normalmente, as cantorias não acontecem no anfiteatro da Casa, mas num espaço

improvisado próximo à cozinha. O local é preparado de um modo especial. Existe um

cuidado recorrente no que se refere à disposição das mesas e cadeiras no ambiente. As

cadeiras reservadas aos cantadores ficam encostadas numa parede. As mesas destinadas ao

público são distribuídas de modo que fiquem ao lado dos cantadores. A impressão que

temos é a de que o cenário é organizado como se fosse um grande quadrado: num dos

lados, os cantadores; no lado a sua frente, um espaço vazio; e nos dois lados restantes, a

platéia.

Essa disposição espacial é arranjada para que os cantadores fiquem em evidência.

Mesmo sem o recurso do palco, eles estão em destaque num dos cantos do espaço. Na

frente dos cantadores não é colocada nenhuma mesa, o espaço fica vazio. O público evita a

circulação pelo centro do salão durante as apresentações. Apesar do barulho das conversas,

a atenção da platéia está voltada aos cantadores.

O cuidado maior com a organização do cenário diz respeito ao arranjo espacial que

evidencie os cantadores no momento de suas apresentações. Não existe uma atenção

especial com a decoração do ambiente. Não notamos o uso de bandeiras, quadros e outros

objetos que pudessem nos remeter à cantoria nordestina. Poucos ingredientes no cenário do

ritual fazem referência à cantoria ou ao Nordeste.

As Cantorias de Pé de Parede são eventos em que se apresentam dois cantadores,

entoando versos de improviso. Eles fazem uso de microfones para uma melhor recepção da

voz. As cantorias são feitas ao som de violas ou violões, cujas afinações são bastante

agudas. O acompanhamento musical é feito pelos próprios cantadores. Na Casa do

Cantador da Ceilândia, todos os cantadores aprenderam a tocar seus instrumentos de forma

autodidata por meio da observação e da prática. Nenhum deles se considera músico.

41
Segundo Lamas (1986), a relação entre a melodia cantada e o acompanhamento musical, é

relativa. O instrumento, executado pelo próprio cantador, destaca-se tão somente na

introdução e nos pequenos interlúdios entre os cantadores (op. cit.: 38). O acompanhamento

musical funciona como um acessório nas performances dos cantadores. O que é mais

importante nas apresentações é a voz do poeta e o cumprimento de determinadas regras do

jogo, envolvendo habilidades específicas e o manejo de determinadas formas poéticas.

As formas poéticas utilizadas numa cantoria nordestina são várias. Os versos

cantados são construídos na forma de diferentes estilos, gêneros ou modalidades. São

alguns desses estilos: 1) sextilhas – um dos gêneros mais preferidos e usados pelos

cantadores. Geralmente, é utilizada no início das cantorias. São estrofes de seis versos (pés

ou linhas) em que cada verso tem sete sílabas e as rimas ocorrem entre as linhas pares; 2)

martelo agalopado – ritmo mais acelerado. Compõem-se de uma estrofe de dez versos em

decassílabos, obedecendo a seguinte ordem de rima abbaaccddc; 3) galope à beira mar –

estrofe de dez versos, obedecendo à rima abbaaccbba. O último verso deve terminar com a

frase “beira mar” ou “beira do mar”; 4) mourão – pode ser de cinco ou sete versos de sete

sílabas. No mourão de cinco, o cantador A profere um verso, o cantador B diz outro e por

fim, o cantador A canta mais três versos. No mourão de sete, cada cantador diz inicialmente

dois versos ao invés de um; 5) mote – estrofe de dez versos que pode ser de sete ou de dez

sílabas. Entrega-se ao cantador o conjunto dos dois últimos versos que termina a estrofe de

dez linhas. Além dessas modalidades aqui citadas, foram catalogadas por pesquisadores do

assunto mais de setenta estilos de cantoria. Entre eles estão a gemedeira, os quadrões, o

martelo alagoano, Brasil Caboclo, rebatido, etc. (cf. Mota, 1987; Seraine, 1983; Ramos,

1991).

42
A cantoria começa com as sextilhas que abordam temas variados. As primeiras

sextilhas dão as boas vindas ao público e expressam a alegria do cantador em estar

cantando. O primeiro cantador faz sua estrofe. Logo em seguida, o segundo começa seu

verso com a deixa do outro, não se desviando do tema. As rimas são feitas ao final dos

versos. Rimam as vogais, o encontro de vogais ou ainda as consoantes das últimas palavras

dos segundo e quarto versos. O cantador B precisa rimar a última terminação do último

verso feito pelo cantador A com a terminação do seu primeiro verso:

Cantador A: Para mim o universo


Do repente sou capaz
A todos os nordestinos
É assim que a gente faz
Quando o povo escuta a gente
Fico feliz por demais

Cantador B: A noitada a gente faz


E uma alma sem rancor
Uma dupla se afina
Se inspira numa flor
Em mais uma cantiga que faço
Na Casa do Cantador
(Casa do Cantador, 21/11/03 – Elias Ferreira e Francisco Nunes).

Com o decorrer da cantoria, os cantadores apresentam versos em outras

modalidades. Muitas vezes, essa “mudança” é solicitada pela própria platéia. Uma das

formas poéticas mais pedidas são os martelos e os galopes, versos de dez ou doze linhas.

Essas modalidades de versos são consideradas, pelos cantadores e por um público

familiarizado com a cantoria, como as mais difíceis de serem improvisadas. No exemplo

abaixo, o cantador atendeu ao pedido de um estudante universitário que visitava a Casa:

Ele é universitário, é um bom rapaz


Eu faço o pedido que ele pediu

43
Com certeza ele agora alguma coisa viu
Porque eu cantando pra ele é demais
Eu sei que o poeta um trabalho faz
E que a rima futura ainda é popular
Se acaso no verso a mente falhar
Eu canto na mente, você faz a sua
Eu vou para o céu, viajo pra lua
Cantando Galope na Beira do Mar
(Casa do Cantador, 21/11/03 - Elias Ferreira).

As sextilhas, os martelos, os galopes... fazem referência a uma série de temas. Falar

sobre esses temas é mencionar o próprio caráter da cantoria. “Pois, trata-se de um tipo de

música que se constitui na interação entre intérprete e ouvintes, em ocasiões específicas”

(Travasso, 1989: 116). As condições do evento condicionam o conteúdo e o desenrolar da

cantoria. De acordo com as reações e respostas da platéia, os cantadores vão elaborando

seus versos. Além disso, todos precisam estar aptos para abordar qualquer tema que seja

sugerido pelo público.

Os cantadores gostam de enfatizar que o “bom cantador” é aquele que canta temas

atuais: assuntos políticos, econômicos e sociais do Brasil e do mundo. Segundo eles, os

cantadores dos grandes centros urbanos não estão mais restritos aos “regionalismos”, ou

seja, não cantam apenas os aspectos da vida no sertão nordestino. Não foram somente os

cantadores que mudaram para as metrópoles brasileiras. O público que comparece às

cantorias também é outro. Mesmo constituída principalmente por nordestinos, a platéia da

Casa do Cantador não quer que os cantadores mencionem (unicamente) assuntos regionais.

Como gostam de dizer meus informantes, o público da Casa deseja ouvir composições que

abordem temas da atualidade. Assim, é muito usual a construção de versos sobre algum

personagem da história do Brasil ou personalidades em voga no momento, como Sadam

44
Hussen e Bin Laden. Os cantadores cantam também eventos atuais da política nacional,

como o Programa Fome Zero e o caso Waldomiro Diniz.

No entanto, apesar dos cantadores destacarem que cantam principalmente assuntos

da atualidade, os conteúdos das suas composições são vários. Façamos agora, um breve

apanhado dos temas mais recorrentes nas noites de Cantoria de Pé de Parede. As oposições

entre o bem e o mal também são freqüentes nos versos de improviso. Essa oposição ganha

diferentes roupagens, podendo assumir a forma dos seguintes pares de oposição: Deus e o

Diabo, e o pobre e rico, o citadino e o matuto. Nessas histórias de oposições, o homem da

cidade detém os bens materiais. O pobre e o matuto são personagens miseráveis, mas

detentores de uma grande esperteza e bondade, e ao final dos enredos sempre se dão bem.

Existem versos dedicados a assuntos religiosos. Quando os improvisos abordam tais

temas, notamos a forte influência de uma moral cristã. Valores como o perdão e a caridade

aparecem constantemente nas estrofes:

Não falo da vida alheia


Que é pra não ser condenado
Pra ninguém falar da minha
E também não ser julgado
O pecado da gente
Por Deus é investigado.
(Casa do Cantador - Galdino, 27/02/04).

Vou em forma de balão


Plantando na terra mansa
Cortando os céus de Jesus
Onde tem mais esperança
Quando um pecador não peca
A alma pura alcança.
(...)
Nós vamos batendo o sino
Onde a Igreja me ampara
Onde o pranto tem milagre
O pecador se declara
Quando eu mostro meu espírito

45
Deus está vendo a minha cara.
(Casa do Cantador - Zé do Cerrado, 20/02/04).

Outro tema bastante comum é o próprio desafio entre os cantadores. O desafio é o

momento dos cantadores estabelecerem abertamente uma peleja entre si, onde um pretende

denegrir a imagem do outro através dos versos:

Chico de Acopiara: Você diz que tem valor


mas não aparece na praça

Giovani Coelho: Eu pareço um professor


desse professor de raça

Chico de Acopiara: Com felicidade sonha,


mas só o que faz é vergonha
pelos lugares que passa
(...)
Chico de Acopiara: Mas tem gente observando
que você cantou ruim

Giovani Coelho: E você tá apanhando


e apanha até o fim

Chico de Acopiara: Você tá pedindo as tréguas


só que caminhando às léguas
atrás de mim.
(Casa do Cantador, 31/10/03 – versos cantados na modalidade mourão).

Além das formas poéticas citadas acima, os cantadores lançam mão de outros

recursos em suas performances. Refiro-me às declamações de poemas. Nas noites de

cantoria, existem momentos dedicados às poesias recitadas individualmente pelos poetas. A

declamação é feita de uma forma especial. Os poemas são ditos/cantados no mesmo ritmo

das estrofes feitas de improviso, só que sem o uso de instrumentos musicais. Nesses

momentos apenas a voz do poeta ecoa pelo salão. As rimas são pronunciadas de modo

46
cantado e bastante acentuado 6. As poesias recitadas são de autores nordestinos e não

necessariamente de autoria do poeta que as declama. O poema abaixo, “Se eu fosse o

vento”, é de Silvio Gancheiro, um poeta de Juazeiro do Norte e recitado por Giovani

Coelho, numa noite de cantoria na Casa do Cantador:

Seu moço, eu observando a blusa de uma morena


Notei o vento formando a mais importante cena
O vento na blusa entrava
Tremulava, tremulava
Eu olhando o movimento, aí pensei um segundo
Das coisas boas do mundo
Que eu gosto mais é o vento
Quando o vento soprava naquela blusa macia
Eu olhando, desejava ser aquela ventania
Entre a blusa e a pele, eu entrava todo o dia
Se eu fosse o vento, eu entrava, demorava, demorava e nem saía
Eu vendo o vento, sisudo comecei a pensar assim:
Ao invés dele ganhar tudo, ficava tudo pra mim
E se eu fosse um vento bem macho
Eu subia bem debaixo
daquela blusa amarela
E com as minhas roletas
fazia cócegas nas pontas
nas pontas do seio dela.
(Casa do Cantador, 31/10/03).

Nas apresentações, seja recitando uma poesia ou fazendo um verso de improviso, os

cantadores estão sujeitos a cometerem vários erros: não conseguir fazer a rima, não

pronunciar as palavras de forma segura, etc. Os acontecimentos são imprevisíveis. Mesmo

assim, a utilização de pausas, silêncios, repetições de palavras não são recursos valorizados

na performance. Essas eventualidades quando acontecem, prejudicam a competência

comunicativa do poeta frente a uma platéia em permanente estado de alerta.

6
O uso da voz será discutido ainda neste Capítulo.

47
Durante a performance, o público interfere por meio de palmas, risos e do silêncio.

A platéia avalia, discorda, corrige, aplaude e silencia de acordo com suas expectativas. O

horizonte dessas expectativas abarca uma avaliação em que são consideradas: a rima dos

versos; a velocidade com que o cantador elabora sua estrofe; a forma como os versos são

cantados, onde o cantador não pode gaguejar ou repetir palavras; a empatia e a

identificação do público com o enredo da estrofe. A competência comunicativa do cantador

depende desse arcabouço de habilidades.

Apesar das conversas, a platéia está atenta à performance. Nas noites de cantoria é

interessante perceber o quanto o público direciona a sua atenção ao enunciado dos

cantadores. Essa atenção pode ser convertida numa tensão para o cantador, que a todo o

momento se vê avaliado. A habilidade do poeta vai garantir a avaliação positiva ou

negativa das pessoas que o assistem. O cantador que melhor comunica é: aquele que tem

rapidez na confecção das estrofes, que garante a continuidade temática dos versos e que

pronuncia as palavras sem hesitação. Demonstro essa questão com um exemplo vivenciado

por mim em campo. Numa noite de cantoria, foi dado aos cantadores o seguinte mote:

“Zumbi dos Palmares é símbolo da escravidão”. O primeiro cantador apresentou a sua

primeira estrofe da seguinte forma:

Vejo humilde escravizado


de todos os familiares
Sou Zumbi de Palmares
Pra defender seu estado
Veja ele contentado
Que andou na contra mão
Sofreu muito lá no chão
Passou fome andou de pés
Zumbi dos Palmares é
Escravo da escravidão.

48
Quando o primeiro cantador pronunciou o mote solicitado de forma errada, trocando

“símbolo da escravidão” por “escravo da escravidão”, algumas pessoas da platéia repetiram

o “mote certo” a fim de que o cantador pudesse se corrigir na próxima estrofe, e para que

segundo cantador não cometesse a mesma gafe. Mesmo assim, este emendou:

Eu quero seguir a esmo


Já botei no meu papel
Mas a princesa Isabel
Que talvez seguiu a esmo
O negro é aquele mesmo
Que coloca o pé no chão
Se vive da escravidão
Preto da cor de café
Zumbi dos Palmares é
Escravo da escravidão.

O erro não somente persistiu como o cantador fez uso de palavras repetidas, e alguns versos

parecem não fazer muito sentido. Pelo salão, algumas vaias puderam ser ouvidas. Na

platéia, a agitação era grande: risadas e comentários jocosos denegrindo a imagem dos

cantadores que não conseguiam acertar o mote e nem fazer versos bem feitos. Quando

finalmente o mote correto foi cantado, o público exclamou, aliviado, numa só voz: “Aí,

finalmente!”.

A atenção do público, voltada ao enunciado dos cantadores, é garantida pelo uso de

microfones que abafam as conversas e também pelas intervenções dialógicas, feitas ao

longo das performances. Os cantadores procuram estabelecer um diálogo com a platéia.

Esse diálogo é estabelecido de diferentes formas. Uma delas acontece durante os intervalos.

Nesses momentos é fornecida uma série de explicações sobre a cantoria nordestina. As

explicações são dadas por alguém especial, o diretor, que fica durante o rito como o

49
principal responsável por essa tarefa. É ele também quem recebe os presentes, assumindo a

função de cicerone do evento. Alguns exemplos são dados abaixo:

Sejam bem-vindos! Toda a sexta-feira a gente tem um encontro daqueles que prestigiam a
cantoria nordestina. Sempre, toda a sexta-feira a gente escala uma dupla. Aquela dupla
participa do início ao fim da cantoria (...).

Muita gente não conhece as modalidades da cantoria. Sempre se começa com as sextilhas
que é um verso feito em seis linhas. Agora, tem o galope a beira mar, tem o martelo
agalopado. Uma canção, um poema, um soneto. E quem souber pedir: “Quero que o cara
fale sobre determinado assunto”. Os poetas estão aqui à mercê de vocês para qualquer
assunto...

Outras formas de diálogo com o público podem ser observadas ao longo de todo o

ritual. Ao recitar um poema ou uma piada nos intervalos da cantoria, o poeta procura

chamar atenção do público, fazendo perguntas e dialogando abertamente com ele:

- Vocês conhecem aquele poema? O bem em paga do mal? Parece que não, porque
ninguém se revelou.
- Eu conheço [alguém grita da platéia].
- Uns conhecem, outros não. Vou recitar porque é só esse que eu sei [risos]. [O cantador
aponta para alguém da platéia] Zé Careca já conhece, mas outros não conhecem. Então,
diz assim...

O auditório pode ser usado como testemunha de uma situação de diálogo. Por

exemplo, nos intervalos das cantorias, os poetas podem narrar como se tivessem vivenciado

a situação. È como se o fato acontecesse com o próprio contador da história. A idéia é a de

compartilhar um enredo não anônimo, propiciando uma certa autenticidade ao relato e ao

mesmo tempo, despertando o interesse do público.

Eu tava vindo agora lá do Nordeste... Tem alguém de menor aí? [pergunta à platéia] Como
tem muito cantador que ganha dinheiro... Às vezes, aparece até cantador gago. Ele não era

50
diretamente um cantador... É que tinha um outro rapaz que um dia falou para ele: “Vamos
comprar duas violas e sair cantando?”. O outro disse: “Vamos!”. Aí, compraram duas
violas. Na primeira fazenda que chegaram, o fazendeiro disse: “É cantador? Eu gosto
demais, Ave Maria, gosto demais! Vamos fazer uma cantoria hoje à noite. Vou mandar
matar o carneiro, ajeitar o tundum do carneiro...”. Tundum é o fígado do carneiro. O que
aconteceu? À tarde, jogaram baralho. Caiu uma chuva daquelas e até molhou o baralho...
Mais tarde, o dono da fazenda: “Epa, já tá cozido o tundum. Vamos comer? Mas antes vou
pedir para os cantadores fazerem um refrão”. Aí, o cantador que não era gago disse ao
gaguinho: “O que eu disser, você diga. É o seguinte: À tarde choveu e molhou o baralho, e
daqui há pouco eu como tundum”. O gago cantou: “À arê ôeu e olhou o aralho e ai a ouco
eu omo o um”.

O diálogo não é estabelecido somente durante os intervalos. O auditório pode se

transformar no próprio assunto da conversa, ou melhor, das sextilhas. Em 03/10/03,

Donzílio Luis e Chico Ivo me colocaram no centro do debate:

Patrícia que é verdadeira


Veio aqui pra assistir
Ouvir repente bem feito
Pra depois que ela sair
Comunicar às colegas
Que faz gosto a gente ouvir

Patrícia que veio ouvir


Para nos apreciar
Não é Patrícia França
Nem é Patrícia Pillar
Mas gosta de cantoria
Por isso veio escutar

Segundo Paul Zumthor (1993) as intervenções dialógicas têm uma função

pedagógica: é uma maneira de ensinar o momento e de advertir o público (: 224). Na Casa

do Cantador, elas são utilizadas como uma forma de chamar a atenção do público para o

que está sendo enunciado pelo narrador. As intervenções dialógicas são apenas uma das

várias estratégias acionadas pelo cantador para garantir a sua competência comunicativa.

Uma das questões mais interessantes nas apresentações dos cantadores refere-se ao

uso do corpo.O corpo não é um recurso muito utilizado nas performances. Durante todo o

51
momento em que estão cantando, eles permanecem sentados, tocando suas violas. O corpo

fica quase que imóvel nas cadeiras. Às vezes, quando uma estrofe faz referência a alguma

pessoa da platéia, o cantador pode trocar olhares com o endereçado dos versos. Mas, esse

recurso nem sempre é posto em prática. O cantador está concentrado nos versos construídos

pelo poeta que está ao seu lado, formando a dupla. No entanto, eles também não se olham.

O olhar está voltado para frente (lembrando que o cenário é organizado de modo que o

espaço situado na frente dos cantadores esteja livre) e algumas vezes para o alto, sugerindo

a busca por concentração e inspiração. A gestualidade expansiva não se faz presente nas

apresentações. Porém, a “imobilidade” dos cantadores não é menos eficaz: ela direciona a

dinâmica da performance à voz e às qualidades do poeta. “Os gestos – ainda que contidos –

contribuem com a voz para fixar o sentido” (Zumthor, 1993: 244).

Para Mário de Andrade (1984), o andamento melódico da cantoria também é algo

fundamental nessa manifestação cultural. A monotonia da linha melódica facilita e torna

mais clara a enunciação de textos em que importa muito o entendimento da palavra (op.

cit.: 383). De fato, a melodia executada com poucas variações (assim como a gestualidade

“contida” dos cantadores), direciona a atenção do público para o que o cantador canta. A

voz é o fator constitutivo da performance. Podemos ilustrar essa questão com o momento

da recitação. As poesias são decoradas e recitadas sem o auxílio de livros. Usando mais

uma vez os argumentos de Zumthor (1993), se o poeta ou o intérprete lê num livro o que os

ouvintes escutam, a autoridade provém do livro, objeto visualmente percebido no centro do

espetáculo. Quando o poeta canta ou recita, mesmo que o texto não seja improvisado e sim

memorizado, sua voz lhe confere autoridade (op. cit.: 19).

A voz é o recurso sobre o qual quase toda a performance está assentada. Ela é

utilizada pelo cantador de modo particular e em proveito de uma possível avaliação positiva

52
sobre a sua performance. As palavras são pronunciadas de forma estridente. As estrofes

improvisadas são emitidas de modo claro e em alto volume quando a rima é acertada.

Quando o poeta não consegue a rima, o som é feito de modo rápido quase imperceptível,

onde só é possível distinguir auditivamente o som da vogal ou das vogais em que a rima

terminaria. A utilização de vocalises é uma forma de proporcionar uma recepção auditiva

semelhante ao que se esperava. Assim, a palavra falta, mas a intenção da rima permanece.

Resumindo: 1) a habilidade de fazer versos com rapidez, pronunciar as palavras sem

hesitação e abordar temas que provoquem uma empatia com o público; 2) a organização do

cenário que coloca o cantador no centro do espetáculo; 3) as estratégias de utilização da

voz; 4) o andamento melódico da cantoria; e 5) a imobilidade gestual que direciona o foco

da atenção para o poeta; são estratégias que garantem a competência comunicativa do

cantador, e são as principais características das performances executadas nas Noites de

Cantoria. A combinação desses e outros elementos, que veremos a seguir, possibilitam a

eficácia do ritual.

A “tradição” da Bandeja.

O público das Cantorias de Pé de Parede pode ser dividido em quatro categorias: 1)

curiosos que pela primeira vez freqüentam a Casa. Normalmente, essas pessoas moram na

Ceilândia, Taguatinga e imediações, sendo em sua maioria nordestinas; 2) estudantes

universitários que em grupos ou sozinhos sentam nas mesas com seus cadernos, anotando

os versos dos cantadores; 3) cantadores que prestigiam a cantoria de seus colegas; 4) e

finalmente, os apologistas, nordestinos admiradores da cantoria e que contribuem com os

53
cantadores, depositando na Bandeja notas ou cheques, cujos valores variam de vinte a

cinqüenta reais.

Para assistir às cantorias não é obrigatório pagar um ingresso ou couvert. Porém, o

diretor da Casa carrega consigo um caderno, onde são feitas anotações de temas solicitados

pelo público aos cantadores, como também o registro dos presentes para que sejam

convidados a “comparecer” no momento da Bandeja. Os presentes, convidados

nominalmente pelo diretor, se levantam e depositam o dinheiro numa bandeja de palha

colocada ao lado dos cantadores. A Bandeja é explicada da seguinte forma para o público:

Quando a gente vai assistir a uma peça teatral, um filme, enfim, um show, a gente costuma
sempre pagar na entrada. Aqui é ao contrário: não é na saída nem na entrada, é no meio
mesmo (...) Essa Bandeja é tradicional (...) Muita gente que não entende a cantoria nem o
formato dela, chama a Bandeja de esmola, correr o chapéu (...) Não, essa Bandeja é
tradicional (...) A gente faz uma listazinha aqui (...) para ficar bem, ter mais praticidade (...).
A gente sempre tem o Cristo, vamos dizer assim que começa (...) Eu vou chamar o Eron
para batizar a Bandeja. Obrigado, meu compadre! Aí, vou chamar o compadre Rafael por
segundo. Depois vou chamar o meu amigo...é...ah... Rapaz, os baianos aqui! Compadre
Medeiros! (...).

A explicação é uma das estratégias utilizadas pelos cantadores para valorizar uma

dada manifestação cultural. A cantoria, como vimos no capítulo anterior, é uma

manifestação pensada pelo senso-comum e descrita por uma literatura especializada no

assunto a partir da sua identificação com o meio rural e com setores subalternos da

sociedade (cf. Andrade, 1984; Barroso, 1949; Campos, 1973; Cascudo, 2001; Maxado,

1984; Mota, 1987; Romero, 1888). Para alguns desses autores, muitos cantadores

utilizaram a cantoria como forma de renunciar à mendicância ou como uma possibilidade

de abandonar os trabalhos na roça e sobreviver nos centros urbanos. No entanto, num

contexto atual, percebemos que a todo o momento, seja nas conversas ou na dinâmica de

54
seus rituais, os cantadores procuram construir uma nova imagem da cantoria nordestina. O

momento de explicação sobre a Bandeja é mais um exemplo dessa tentativa.

Os informantes evocam a idéia de tradição para tornar ímpar o momento da

Bandeja. Para os cantadores, “correr o chapéu” é esmolar, ou na melhor das hipóteses, uma

espécie de gorjeta. Diferente de uma simples gorjeta ou de uma esmola, a Bandeja é

legitimada pela idéia de tradição. Não obstante, essa “tradição” é pensada pelos informantes

não tanto a partir de sua relação com o passado, ou seja, como algo concretizado no tempo.

A tradição não se situa na duração, e sim na obviedade. A tradição é usual e comum. É tudo

aquilo que fazemos porque devemos fazer. A Bandeja é tradicional assim como é

tradicional, comprar um ingresso para ver um filme no cinema; assim como é tradicional,

pagar a entrada de um show. A Bandeja não tem nada de infame ou vil: o pedido de

dinheiro manifesta-se numa relação entre iguais 7.

Algumas questões trazidas por Eric Hobsbawn (1997) podem ser úteis para

pensarmos a maneira como a “tradição” da Bandeja é acionada nas Noites de Cantoria. Para

o autor, a característica da tradição 8 é a invariabilidade de um passado que impõe práticas

fixas. Já o costume tem a dupla função de motor e volante.

Os estudiosos dos movimentos camponeses sabem que quando numa aldeia se reivindicam
terras ou direitos comuns “com base em costumes de tempos imemoriais” o que expressa
não é um fato histórico, mas o equilíbrio de forças na luta constante da aldeia contra os
senhores da terra ou contras outras aldeias (...). O “costume” não pode se dar ao luxo de ser
invariável (...). O direito comum ou consuetudinário ainda exibe esta combinação de
flexibilidade implícita e comprometimento formal com o passado. Nesse aspecto, a

7
Zumthor (1993) demonstra essa questão ao analisar os pedidos de dinheiro feitos no momento do canto por
trovadores medievais na Europa (: 63).
8
Pensada no sentido de tradição inventada: “um conjunto de práticas (...) de natureza ritual ou simbólica que
visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica (...) uma
continuidade com o passado (...). Elas são reações a situações novas que ou assumem a forma de referência a
situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através da repetição quase obrigatória” (Hobsbawn,
1997: 09-10).

55
diferença entre “tradição” e “costume” fica bem clara. “Costume” é o que fazem os juízes;
“tradição” (no caso, a tradição inventada) é a peruca (...) e outros acessórios e rituais que
cercam a substância, que é a ação do magistrado (op. cit.: 10).

A Bandeja se refere ao que fazem os cantadores. Diferente de uma “tradição”, ela não é

acionada como um acessório simbólico. O seu sentido não tem uma função simbólica

precisa. O seu uso no ritual tem um objetivo prático. Com o tempo, o costume da Bandeja

pode até ter sido transformado num aspecto formalizado das Cantorias de Pé de Parede. No

entanto, sua função é técnica, prática e de direito: a Bandeja é um pagamento pelos serviços

prestados pelos cantadores.

Se, estamos falando de novas formas de construção de imagens acerca da cantoria e

de seus executores, a indumentária utilizada pelos protagonistas do ritual também pode ser

citada como mais uma estratégia para tais edificações. A cantoria é uma manifestação

identificada (conforme vimos, pelo senso-comum e por uma literatura especializada no

assunto) com uma região do Nordeste, o Semi-Árido ou o Sertão. Historicamente essa

região por ter pouca serventia para a agricultura, foi ocupada pela pecuária (cf. Garcia,

1984). Atingindo seu apogeu com a descoberta do ouro nas Minas Gerais, por aumentar a

procura de animais de carga e carne para a alimentação, foi formado o que muitos

estudiosos denominam de a civilização do couro (cf. Abreu, 1975; Castro, 2001). A

civilização do couro estaria ligada aos valores rurais, cuja representação típica seria a do

“vaqueiro sertanejo” que se dedicava às lides com o gado.

Sendo identificados com o contexto de um Nordeste pastoril, poderíamos imaginar

os cantadores usando em suas apresentações roupas de couro e chapéu de vaqueiro. Mas,

em todas as performances na Casa do Cantador, os cantadores trajam calças sociais, blusas

de mangas compridas, cintos, sapatos engraxados e alguns capricham no perfume. Ivanildo

56
Vila Nova 9, um dos mais respeitados cantadores da atualidade, numa entrevista ao Jornal

do Brasil, comenta indignado, mas alinhadíssimo em paletó e camisa social: “Você imagina
10
que uma emissora de TV queria que a gente usasse chapéu de couro e peixeira?” . Os

cantadores residentes no Distrito Federal também se mostrariam indignados frente a tal

proposta.

A indumentária utilizada nas apresentações reflete a maneira como esses cantadores

tentam se construir. Atualmente, para ser um “bom cantador”, respeitado e reconhecido em

seu meio, é preciso estar familiarizado com uma série de códigos que dizem respeito à

educação formal, mas que toca também em questões da aparência visual. E os códigos

dessa aparência não são aqueles do típico vaqueiro do sertão nordestino, e sim de uma

sociedade urbanizada e muito diferente da realidade rural. As transformações ocorridas com

a cantoria, principalmente quando seus praticantes atingiram os centros urbanos, implicou a

apreensão de novos códigos típicos da modernização e identificados com os setores


11
dominantes da sociedade nacional . Apropriando-se de alguns desses códigos, os

cantadores se vestem nas noites de cantoria e acionam a “tradição” da Bandeja.

Conterrâneos e comensalidade.

A Casa do Cantador pode ser pensada como uma forma de lazer, de entretenimento

e de diversão no contexto urbano. No entanto, ela é principalmente um local de encontro,

cujo motivo da reunião não é tanto o fato das pessoas ali presentes pertencerem ao mesmo

9
O cantador mora atualmente em Fortaleza.
10
Entrevista dada à jornalista Helena Aragão (Jornal do Brasil), realizada em 19/06/04 e disponível em
www.nordesteweb.com/not04_0604/ne_not20040618b.
11
Eduardo Diatahy Menezes (1999) mostra essas transformações e apreensões de novos códigos nas
narrativas populares de versos escritos.

57
bairro, mas sim de estarem identificadas com um tipo de manifestação cultural, a cantoria

nordestina. Para finalizar este capítulo cabe levantar algumas questões sobre o modo como

acontece essa identificação e o que ela sinaliza.

Em primeiro lugar, a identificação com a cantoria nordestina leva à identificação

com um espaço, o Nordeste. Essa identificação não está expressa na decoração do

ambiente. Eles não lançam mão de “objetos típicos” para compor o cenário das Noites de

Cantoria. Os intérpretes não usam uma indumentária específica capaz de sugerir uma

identificação com a região. Mecanismos desse processo de identificação podem ser

analisados a partir da idéia do conterrâneo, da comensalidade e dos conteúdos de algumas

composições dos cantadores.

Apesar de destacarem que não cantam apenas assuntos regionais, os versos entoados

pelos cantadores que abordam o Nordeste têm espaço nas Cantorias de Pé de Parede. Nas

estrofes, o Nordeste aparece de forma genérica, ou seja, é uma categoria homogeneizante.

Tal categoria iguala os vários estados que compõem a região. Antes de serem paraibanos,

pernambucanos e cearenses, eles são nordestinos.

O Nordeste aparece também com a denominação de sertão. Em grande parte dos

versos, o Nordeste ou o Sertão é extremamente valorizado. Os cantadores elaboram um rol

das melhores coisas que existem por lá. A lista engloba desde pratos típicos e festas

populares até o “caráter” do povo. A idéia é a de criar a imagem positiva de um lugar e de

sua gente.

Vejamos como se dá esse processo de construção de imagens, examinando algumas

sextilhas:

Quem se criou no Nordeste

58
Que é uma terra bacana
A mulher contando história
E a gente bebendo cana
Mas tudo sentindo o cheiro
Do mel da italiana 12
(Casa do Cantador - Francisco Nunes, 21/11/03).

O mel da italiana, a cana, as histórias, a terra bacana são utilizadas nos versos como uma

forma de diferenciar o Nordeste das demais regiões do país.

Os exemplos são inúmeros no que se referem à retomada de traços considerados

típicos da região. Os versos abaixo destacam a carne assada e o cuscuz. Tais pratos são tão

valorizados no poema, que a experiência de experimentá-los “propicia um encontro com

seres divinos”:

Nosso sertão tem sossego


Que eu quero sol e luz
Tem carne assada na brasa
Pra gente comer com cuscuz
Quem vai ao sertão e volta
Vê a cara de Jesus
(Casa do Cantador - Francisco Nunes, 21/11/03).

A valorização não é só de objetos considerados típicos da região, mas também de

seu povo. O tipo social do nordestino é construído a partir das seguintes qualidades:

honestidade, força de vontade e capacidade de superar as adversidades:

O Nordeste não engana


Que se parece um porvir
Honesto pai de família
Vai o pão adquirir
A mulher pegando o braço

12
Italiana é um tipo de abelha comum da região do sertão nordestino. Josué de Castro (2001) destaca a
importância da abelha para a alimentação do sertanejo. O mel de abelha substitui muitas vezes o açúcar e a
rapadura no tempero dos alimentos (op. cit.: 169).

59
Pra ele também sorrir.
(Casa do Cantador - Elias Ferreira, 23/11/03).

A experiência dos migrantes na construção de Brasília também é relatada de modo

que sublinhe essas características positivas do povo nordestino. Nas comemorações do

aniversário de Brasília, realizadas na Casa do Cantador, um cantador improvisou:

Essa data não é feia


Que eu estou de cabeça erguida
Parabenizo Brasília
Por mais um ano de vida
Por suor de nordestino
Brasília foi construída.
(Casa do Cantador - Francisco Nunes, 21/04/04).

Nessa idealização e extrema valorização de coisas e de pessoas, a esperança da volta

para o sertão é outra constante (pelo menos no momento ritual, como veremos no próximo

Capítulo):

Eu estou feliz porque


Estou na localidade
Mas do povo do Nordeste
Desse eu sinto saudade
De voltar para casa um dia
Eu tenho a maior vontade
(Casa do Cantador - Elias Ferreira, 21/11/03).

O sertão é de valor
É onde o povo me adora
Eu tenho a maior certeza
De quem só vive por fora
Pode não chorar com os outros
Mas chorar sozinho chora.
(Casa do Cantador - Chico Oliveira de Acopiara, 31/10/03).

60
Dentro do contexto da esperança da volta, do saudosismo e da valorização do

Nordeste, para aqueles cantadores que aqui residem, cantando para o público da Casa do

Cantador, Brasília assume uma função quase que utilitária. Seguindo o raciocínio dos

poetas já citados anteriormente:

Distante do pessoal
Não sei se eu passei no teste
De tanto sofrer saudade
O meu compadre hoje investe
O dinheiro é em Brasília
E o sossego é no Nordeste.
(Casa do Cantador - Elias Ferreira, 21/11/03).

No Nordeste eu estou sem preguiça


Deixei o meu Cariri
Minha enxada é jacaré
E minha cana é tupi
Vim pra Brasília, arrumar
Mas não estou distante ali.
(Casa do Cantador - Francisco Nunes, 21/11/03).

As apresentações feitas na Casa do Cantador podem ser de cantadores que moram

em Brasília ou daqueles que estão de passagem pela cidade. No entanto, todas as

apresentações que vi na Casa do Cantador “eram de cantadores do Nordeste”. É feito um

registro de todas as apresentações realizadas na Casa, onde são anotados os nomes das

duplas e as siglas dos estados de origem de cada cantador. No registro, cantadores que aqui

residem há vinte anos, não são catalogados pela sigla DF, e sim pelas letras iniciais do

estado em que nasceram. No início das apresentações, o diretor da Casa sempre apresenta

os cantadores, fazendo referência aos seus estados de origem e completando como uma

espécie de anexo ou apêndice, o fato de viverem em Brasília.

61
Durante o rito, nas conversas com a platéia ou com os cantadores, o morar em

Brasília soa como algo que parece não dizer muita coisa: “Moro trinta anos aqui, mas sou

de Recife”, “Sou de Pernambuco, apesar de morar quinze anos no Paranoá”. Quando as

pessoas chegam para a cantoria são imediatamente indagadas a respeito da sua

naturalidade, seja pelos cantadores ou pelo próprio público. A resposta à indagação é na

maioria das vezes uma cidade nordestina, pelo menos essa é a resposta esperada por todos.

O ser de algum lugar do Nordeste assume um papel de destaque nas noites de

cantoria. As pessoas fazem menção a essa questão nas conversas entrecortadas pelos sons

das violas dos cantadores. A resposta dada à pergunta: “De onde você é?”, é, sem dúvida,

uma porta de entrada na Casa do Cantador.

Muitas pessoas são atraídas para a cantoria a fim de prestigiar ou encontrar um

conterrâneo cantador, ou simplesmente para matar a saudade do Nordeste. E quando essa

situação não acontece, a pessoa pode ser motivo de espanto. Foi o que aconteceu comigo

numa de minhas primeiras visitas à Casa do Cantador. Reproduzo abaixo um trecho de meu

diário de campo:

Após sair da Rodoviária, às 19:10h, num ônibus lotado, chego para uma noite de cantoria
por volta das 20:00h. Cumprimento algumas pessoas no portão de entrada. Lá dentro,
avisto o diretor da Casa, me aproximo e pergunto: “Lembra de mim?” E ele prontamente
me responde: “Claro, você está fazendo uma pesquisa, né? Olha, se você quiser ficar um
tempinho na biblioteca, esperando a cantoria, eu abro pra você”. Recuso, agradecida. Dou
um giro pelas dependências. Leio a placa de inauguração e observo a escultura de um
cantador esculpido em pedra. E assim permaneço, andando pela Casa. Um senhor que
morava ali perto assistindo o DFTV [noticiário local] soube da cantoria, resolveu aparecer
para conferir. E com muitas perguntas iniciou um diálogo comigo:
- Você gosta disso?
- Gosto, é legal.
- Será que tem que pagar alguma coisa?
- Não, acho que não.
- Onde você mora?
- No Plano.
- Como você veio, de carro?

62
- Vim de ônibus.
- Onde você nasceu?
- No interior do Rio.
- Mas, os seus pais são nordestinos?
- Não, eles são do Rio também.
Minha última resposta, o inquietou profundamente. O senhor aos gritos chamou sua esposa
e filha, comentando perplexo: “Essa menina é doida. Vem lá do Plano só para assistir
cantoria e nem é nordestina”. Sua surpresa não se referia tanto ao fato da “menina” ter
vindo sozinha de noite e de ônibus para um lugar “tão longe”, mas principalmente por ter
feito tudo isso não sendo nordestina e nem ao menos tendo pais nordestinos.

Além das conversas e dos versos cantados, que ressaltam a importância do “ser do

Nordeste”, está presente no ritual outro traço evocativo das “coisas de lá”. O ser nordestino

se expressa através do idioma da comensalidade. A culinária da Casa do Cantador é um

fator de atração dos nordestinos residentes em Brasília e de curiosos.

Durante as cantorias, os presentes podem saborear pratos considerados típicos do

Nordeste, como a carne de sol e a buchada de bode. Para degustar a comida, os

freqüentadores só precisam acionar um objeto bastante significativo: um sino de boi.

Tocado o sino, você é prontamente atendido pela responsável por preparar os pratos ou por

uma de suas ajudantes. É interessante perceber que nessa parte do ritual, a utilização de um

objeto que tem uma profunda ligação simbólica com o Nordeste pastoril, é vista

positivamente. O sino de boi é usado como um modo de divertir os convivas que têm a

possibilidade de fazer um pedido gastronômico de forma inusitada e particular.

Diferentemente do uso de uma indumentária, capaz de aproximar os cantadores dos

vaqueiros ou dos cangaceiros do sertão, o sino de boi é convertido num ícone positivo,

capaz de tornar o ambiente típico e diferente.

Na Casa do Cantador não existe a idéia de restaurante. O “serviço” não recebe um

nome especial do tipo: “Bar”, “Cantina” ou “Cantinho da...”. Os “fregueses” não comem

em mesas previamente preparadas para uma refeição com saleiros, paliteiros, galheteiros e

63
guardanapos. No “Bar”, não é possível ver engradados ou copos sobre o balcão. O cardápio

está resumido a uma cartolina, afixada numa parede, com as seguintes opções: buchada de

bode, carne de sol, caldo de galinha, cerveja e refrigerante. E por um preço bastante

acessível é possível saborear um farto P.F (prato feito). É o que muitos ouvintes e

cantadores fazem às vinte e duas ou vinte três horas da noite.

O que pretendo enfatizar é a relação entre o que se faz e o que se come na Casa do

Cantador. O ato de comer e cantar/ouvir estão imbricados na dinâmica do ritual. É como se

você estivesse assistindo a cantoria, e a comida fosse trazida a sua mesa. Tudo é feito num

tom de informalidade, simplicidade e familiaridade. Muito mais que a noção de restaurante,

a Casa cede espaço para a idéia de “cozinha”. A cozinha é o ambiente familiar e

aconchegante da casa, aqui com “C” maiúsculo. Vale destacar que esse espaço é dirigido

por uma mulher. A cozinha na Casa do Cantador é o único espaço feminino num grupo

eminentemente masculino.

A sedução dos pratos servidos na Casa do Cantador é a sensação de se comer num

ambiente descontraído e aconchegante. Uma sensação que se aproxima do “comer em

casa”. Outra imagem sedutora dos pratos é a da fartura. Não se privilegia a escolha de

cerâmicas coloridas ou talheres lustrosos. Enfim, nada é chique, mas tudo é farto. A

visualidade dos pratos servidos na forma de P.F é a de uma “montanha” interminável de

comida, principalmente na percepção de uma pessoa que oscila entre os 39 e 40 quilos,

como é o meu caso. As imagens de fartura e da “casa” ajudam a estabelecer uma idéia

positiva do grupo. A suculenta buchada de bode, servida sem grandes ostentações, mas com

muita fartura e familiaridade, reforça a construção da boa imagem do grupo.

A comida é um tempero fundamental das relações estabelecidas nas noites de

cantoria. Comer num lugar público, por mais perto da casa que ele esteja requer o

64
conhecimento de um idioma cultural. Isso implica o como comer. Na Casa do Cantador se

come em companhia de outras pessoas. A comensalidade é um veículo privilegiado para o

estabelecimento de laços sociais.

“Encher a barriga ou encher a pança é um ato concreto destinado à saciedade do

corpo, mas é também um modo de se referir a uma ação simbólica” (DaMatta, 1994: 52).

Em determinados eventos, a comida pode abrir uma brecha no mundo diário, engendrando

ocasiões em que relações sociais devem ser saboreadas e prazerosamente desfrutadas (op.

cit.: 54). Na Casa do Cantador, fazer uma refeição não é um ato desprovido de uma ação

simbólica. Não se come sozinho. O comer não é um ato individual e sugere tentativas de

aproximações entre as pessoas e o desfrute de relações afetivas. Numa das noites na Casa

do Cantador, um pouco antes da cantoria começar, fui surpreendida por um senhor que se

prostrou na minha frente com um prato de comida. A Casa estava vazia, no salão estavam

apenas dois cantadores, ocupados em arrumar a aparelhagem de som, e o diretor que corria

de um lado para outro, ajeitando os últimos preparativos para apresentação. O senhor, que

eu já tinha visto algumas vezes na Casa, disse: “Será que eu posso sentar com você?”. E

logo em seguida se explicou: “È que eu não consigo jantar sozinho”. Sem esperar minha

resposta, foi logo sentando e gritando para a responsável pela cozinha: “Traz mais um prato

aí”. O senhor preferiu rachar o seu PF com uma quase “estranha” a ter que se sentar numa

mesa e comer sozinho.

Vários elementos que compõem uma noite de cantoria na Casa do Cantador nos

permitem pensar as relações das pessoas que ali estão com o Nordeste: a música; as letras

das canções; as comidas que compõem o cardápio afixado numa das paredes do bar com

carne de sol e buchada de bode; o sotaque das pessoas; frases do tipo: “Vim porque sou

65
baiano” ou as falas do diretor, momentos antes dar início às apresentações: “Aqui é um

espaço para reunir, uma referência para os nossos conterrâneos”.

Rosani Rigamonte (1996) ao traçar alguns itinerários dos migrantes nordestinos na

cidade de São Paulo, aponta o forró como uma via de acesso para mapear a presença

cultural nordestina na capital. Segundo a autora, as festas de forró podem ser realizadas em

lugares improvisados e pequenos, ou seja, são festas para encontrar amigos, para bater

papo, divertir-se entre conhecidos e conterrâneos. A autora aponta também para espaços

cujos limites não estão restritos a uma rede local, como o caso do Centro de Tradições

Nordestinas (CTN), que reúne cerca de vinte mil pessoas nos finais de semana. Nesse

espaço, as pessoas, mesmo não se conhecendo, se reconhecem enquanto partícipes de uma

tradição e de uma trajetória comum (op. cit.: 251).

O reconhecimento de uma tradição é um dos motivos para as reuniões na Casa do

Cantador. A “tradição” é reconhecida pelo sotaque, pela música, pela dança, pelas bebidas

e comidas típicas. Nesses encontros se reúnem não apenas nordestinos no Distrito Federal,

mas também não nordestinos que vivenciam os eventos, avaliam, elaboram e comprovam

imagens referentes aos seus praticantes.

As Cantorias de Pé de Parede realizadas pela Casa do Cantador são momentos

privilegiados para a construção, afirmação e a possível comprovação de uma série de

representações. Essas representações abarcam noções sobre a definição de uma

manifestação cultural específica, a cantoria nordestina; sobre a idéia de cantador e a

tentativa de construí-lo como um artista; e sobre o migrante nordestino, onde a intenção é a

de distanciá-lo da imagem do “retirante”. A construção dessas imagens e a sua dinamização

em processos e práticas sociais continuarão sendo os motes de nossa discussão no próximo

capítulo.

66
CAPÍTULO III

Cantadores em trânsito: do Nordeste à Brasília, do folclore à arte.

A intenção deste capítulo é a de enfocar aspectos relativos à migração e à adaptação

dos cantadores nordestinos no Distrito Federal. O objetivo é abordar discursos referentes

aos motivos que levaram ao deslocamento, às formas como foram feitos e às dinâmicas de

inserção numa nova realidade.

A abordagem dos vários aspectos do processo migratório, vivido pelos cantadores,

será feita tendo em vista o exame de suas trajetórias de vida. Os dados a serem analisados

são frutos de entrevistas e conversas informais realizadas durante os anos de 2003 e 2004.

Os deslocamentos são freqüentes na vida dos cantadores nordestinos. Antes de residirem no

Distrito Federal, essas pessoas já moraram em diferentes cidades do Nordeste e do Sudeste.

Nas entrevistas foram privilegiados aqueles cantadores que residem no Distrito Federal por

mais de cinco anos. A amostra, caracterizada por esse limite temporal mínimo, permite

observar com maior profundidade os processos de inserção ao lugar de destino.

Nordeste e Brasília.

Segundo Abdelmalek Sayad (1998) todo o movimento migratório tem uma dupla

dimensão: a de fato coletivo e a de itinerário individual, conseqüência de trajetórias e

experiências singulares (: 13). De certa forma, os itinerários individuais dos cantadores

nordestinos residentes no Distrito Federal, são fatos coletivos. Apesar das variações, as

trajetórias e as experiências singulares dos informantes apresentam vários traços

semelhantes.

67
Um dos aspectos compartilhados diz respeito à maneira como são evocados dois

“lugares”: Nordeste e Brasília. Nordeste e Brasília são noções nativas e serão usadas neste

capítulo enquanto tais. Nos discursos, Nordeste e Brasília deixam de ser simples referências

geográficas e se transformam em categorias capazes de expressar identificações, valorações

e reivindicações.

Os versos abaixo não foram elaborados numa Noite de Cantoria na Casa do

Cantador. Eles foram improvisados em meio aos depoimentos sobre trajetórias de vida. Em

outras palavras, a quadra e a sextilha seguintes foram feitas durante entrevistas realizadas

com os cantadores, em datas e locais diferentes, sem que os mesmos tivessem sido

solicitados para a realização de tal empreendimento. Os temas das composições, que

surgiram de forma espontânea, não variam. As estrofes falam sobre uma possível

identificação com o Nordeste e sobre o significado de “estar” em Brasília.

Admiro o cantador
que ele canta sem quizília.
Que traz dentro do peito
o Nordeste pra Brasília
(Ceilândia, 09/03/04).

Eu também sou do Nordeste.


A saudade faz quizília.
Mas, como sou cantador,
eu trouxe a minha família
pra ver se vivo melhor
na capital de Brasília
(Gama, 18/03/04).

O Nordeste é usado de modo genérico pelos informantes, nascidos principalmente

no Ceará, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte. Nas conversas, esses locais são

encobertos por uma outra referência mais forte. Perante o público, seja este a platéia da

68
Casa do Cantador ou a pesquisadora, antes de serem potiguares, cearenses, pernambucanos

ou paraibanos, eles são nordestinos. Conforme me lembrou um cantador, todos sabem que

O Nordeste não é um país, mas nós estamos sempre defendendo ele com unhas e dentes.

É interessante notarmos a utilização do pronome pessoal “nós” na construção da

frase citada acima. A afirmação, “ser do Nordeste”, pressupõe a existência de um “nós”.

Falar da existência do “nós”, nos remete à definição de Frederick Barth (1998) sobre

grupos étnicos: são categorias de atribuição e identificação realizadas pelos próprios

autores, tendo a característica de organizar a interação entre as pessoas. A pretensão aqui

não é a de se apropriar da noção de grupos étnicos formulada por Barth. O resgate teórico é

feito na medida em que insere no debate, questões a respeito da auto-atribuição de

categorias de pertencimento. Se os cantadores no Distrito Federal não constituem um

grupo, cujos limites podem ser precisados nitidamente 1, eles categorizam a si mesmos

como nordestinos em Brasília. Ao categorizarem a si mesmos dessa forma, eles

demonstram se não a existência de um grupo, mas a intenção da existência de um nós.

As generalizações das categorias Nordeste e Brasília são também formas de tornar

os discursos dos cantadores mais inteligíveis ao público. São categorias que deixam as

enunciações mais claras. A maneira como aparecem nos discursos, faz parte do complexo

processo de construção da imagem dos cantadores migrantes. Antes de uniformizarem

diversidades, essas categorias gerais são acionadas para fazerem valer noções através das

quais os informantes tentam se identificar.

1
Discutiremos essa questão na Parte III.

69
É nesse contexto que surge o emprego indistinto de Brasília. Pelas informações

oficiais, o Distrito Federal é formado por várias Regiões Administrativas (RAs): Brasília,

Gama, Taguatinga, Brazlândia, Sobradinho, Planaltina, Paranoá, Núcleo Bandeirante,

Ceilândia, Guará, Cruzeiro, Samambaia, Santa Maria, São Sebastião, Recanto das Emas,

Lago Sul, Riacho Fundo, Lago Norte, Candangolândia, etc 2. Brasília seria apenas uma

dentre as demais. Boa parte do total das RAs é constituída de cidades satélites, construídas
3
para abrigar o excedente populacional da capital federal . Todos os cantadores

entrevistados moram em cidades satélites, porém, tais espaços aparecem com pouca

freqüência nos depoimentos. Antes de fazerem referência ao Gama, Recanto das Emas e

Ceilândia, a maior menção é à Brasília. Ao se apresentarem, eles não recorrem às cidades

satélites. Para o cantador nordestino, o que vale a pena ser registrado é sua presença em

Brasília.

Temporalmente, creio que seja possível identificar dois principais fluxos

migratórios dos cantadores nordestinos para Brasília. Um dos fluxos aconteceu por volta

dos anos 60 e 70; o outro, nos anos 90. Em cada um, as motivações apontadas para o

deslocamento são diferentes. Para os cantadores vindos na década de 90, compromissos

profissionais ou influências de parentes e amigos, aparecem como justificativas para a

migração. Os que aqui chegaram entre os anos de 60 e 70, colocam as dificuldades

climáticas do local de origem, ou seja, do sertão nordestino, como o motivo maior do

deslocamento. Resumindo, de acordo com as narrativas, são dois os principais motivos que

levaram à migração: 1) aqueles advindos de compromissos profissionais na capital federal

e/ou em função de influências, acionando redes familiares ou de amizade; 2) aqueles

2
Fonte IBGE. Disponível em www.distritofederal.df.gov.br.
3
Para maiores informações, vide Capítulo I.

70
referentes às dificuldades ocasionadas pela seca no Nordeste brasileiro. Esse último motivo

está situado num tempo mais remoto e é mencionado por informantes que trabalharam de

alguma forma na construção da nova capital.

Pontuar as motivações do processo migratório é importante para a reflexão sobre

algumas características comumente apontadas nos estudos sobre migração, como o

acionamento de redes parentais ou de amizade. Além disso, diagnosticar os motivos que

levaram essas pessoas ao deslocamento é problematizar noções cristalizadas no imaginário

nacional, como a imagem do migrante nordestino.

As redes de amizade ou familiares são sempre destacadas nos estudos sobre

migrações internas ou externas (cf. Pastore, 1969; Durham, 1984; Seyferth, 1990). Parentes

e amigos, principalmente nos momentos iniciais da migração, são elementos fundamentais

para a inserção e adaptação dos migrantes ao lugar de destino. Essa importância diz

respeito às condições materiais - são parentes ou amigos que oferecem moradia e

alimentação ao recém-chegado; e às condições afetivas - são parentes e amigos que inserem

o migrante em novas redes de relações. Nos discursos, essas redes são acionadas e

funcionam como propulsoras do próprio deslocamento. Vejamos os depoimentos de dois

cantadores:

(...) quando meu pai morreu, eu fiquei sempre por lá [Nordeste] pra ficar perto da minha
mãe. Aí, quando a minha mãe morreu, foi em 97, aí, eu saí (...): “Eu vou andar muito até
espairecer mais, né, a morte da minha mãe”, que era muito importante pra gente. Aí,
cheguei em Brasília, passei aqui vinte e três dias. Daqui, fui pra São Paulo. E a minha irmã
que mora ali na Santa Maria [cidade satélite], continuando a falar pra eu vir morar aqui.
Falava direto: “Nossa, por que você não vem morar aqui? A família tá quase toda aqui”. E
eu fiquei pensando nisso. (...) Até que eu vim morar aqui. Morei um ano ali na Santa Maria.
Até que eu comprei um casebre aqui e vim morar no Pedregal [localidade situada na cidade
satélite do Gama].

Eu cheguei aqui... Antes eu já tinha aqui mais de dez viagens. Mas, definitivo, eu cheguei
aqui no dia 16 de abril de 1997. (...) E aqui, eu gosto muito de Brasília. Aqui tem uma das

71
pessoas... (...) Aqui, uma das pessoas que me são muito caras, é o Geraldo. Eu vim aqui
não foi a convite do Geraldo. Eu vim aqui pela amizade grande que eu tenho ao Geraldo.
Uma figura, um exponencial, uma figura exponencial da cultura, um cantador excelente, um
escritor maravilhoso por pessoa, charadista... Então, o Geraldo é tudo. Geraldo é um amigo
que eu tenho aqui e se eu sair daqui de Brasília, eu levo muita saudade do Geraldo. Ainda
têm os outros companheiros também. Tem Chiquinho, tem o Luís, e tem o João Batista, tem
o José Maria e demais companheiros 4. Então, esses colegas que faz a gente se aconchegar,
ter aquele aconchego dos colegas.

Nesses exemplos, percebemos que a decisão de mudar foi antecedida pelo acionamento de

redes parentais ou de amizade. A migração não é colocada como uma decisão individual, e

sim como um processo que implica o envolvimento de outros.

No entanto, existe uma situação em que as redes de amizade e familiares não são

acionadas nas narrativas dos envolvidos no processo migratório. Ela ocorre quando o

deslocamento data de um tempo mais remoto e quando o motivo da migração faz alusão à

seca no sertão nordestino. O informante ao relatar sua experiência migratória, a narra de

modo solitário. Seu deslocamento aparece como um empreendimento feito no escuro.

Nesses casos, a migração figura nas narrativas enquanto uma urgência. O migrante é aquele

que foge do flagelo da seca.

Geralmente, o pessoal que se deslocou do Nordeste tanto pra São Paulo, Rio de Janeiro ou
Brasília era devido às secas lá do Nordeste que tava muito difícil. Na agricultura não
compensava devido às secas, e o emprego não tem, não existe. Então, a gente sempre
vinha... Como se diz? Refrigerar a vida. Então, eu refrigerei. Eu vim.

Tal justificativa para a migração corresponde e reforça as imagens construídas pelo

senso-comum a respeito do migrante nordestino. O migrante figura como um aventureiro

desesperado que se lança numa cidade desconhecida em busca de melhores condições de

vida. A busca é pontuada por ideais esperançosos de prosperidade. Chegando ao lugar de

4
Os nomes aqui citados são fictícios.

72
destino, os planos nem sempre são concretizados, ou pelo menos, não da forma exata como

foram idealizados:

Eu cheguei aqui e fui trabalhar na construção civil. Antes de vir pra cá, fui professor num
colégio, lá na minha cidade, talvez, até por falta de professores. Porque naquele tempo nos
anos cinqüenta e sessenta, nas cidades de interior dificilmente tinha um ginásio. O ginásio
naquele tempo era o curso de quinta à oitava, metade do primeiro grau. Então, no ginásio lá,
eu lecionei durante sete anos ainda fazendo ginásio e lecionando nas séries anteriores.
Depois, no segundo grau eu fiz Científico. Fiquei sete anos até terminar o segundo grau.
Isso tudo lecionando. Cheguei aqui fui procurar essa área ou arrumar um emprego no
comércio, num escritório, alguma coisa que ficasse mais compatível pra dividir o tempo e
fazer alguma faculdade. Mas, acontece que não existia aqui. Brasília só existia construção
de obras. Só a construção de Brasília. No comércio, você ganhava um salário mínimo. (...)
Aí, eu parti pra construção civil.

Os sonhos não se adaptam à realidade. Com planos de fazer um curso superior, o

informante é transformado em operário da construção civil. Mas, mesmo não

correspondendo aos ideais iniciais, a mudança para Brasília é avaliada de forma positiva. A

história dos cantadores não está congelada na constatação de intenções frustradas.

Todos os cantadores (aqueles que dizem ter migrado em função de compromissos

profissionais, influenciados por parentes e amigos, ou aqueles apartados de um ambiente

inóspito e fustigado pela seca) ao narrarem suas trajetórias em Brasília, enfatizam as

vitórias e as conquistas. As intenções frustradas ou o “não era bem como eu esperava”

cedem espaço para a construção de um enredo repleto de situações de crescimento

individual e ascensão social, como no depoimento seguinte:

E logo que cheguei em Brasília, eu fui fazer um curso técnico em edificação ao nível de
segundo grau, técnico em edificação por correspondência na IUB. Não sei se você se
lembra da IUB? É Instituto Universal Brasileiro que administrava muitos cursos por
correspondência, até hoje ainda existe em São Paulo. Aí, eu me matriculei e fiz esse curso.
Passei (...) a mestre de obra. Fiquei trabalhando como auxiliar de engenharia na área de
orçamentos nas centrais das firmas, e assim eu passei. Mas só que nos finais de semana,
sábados e domingos, a viola, fazendo as cantorias e escrevendo. Porque quando eu vim do

73
Nordeste, eu já tinha cadernos com poemas, desde os vinte anos escrevendo, escrevendo...
E assim eu levei a vida escrevendo, cantando e trabalhando. A literatura era executada de
sexta a domingo. De segunda à sexta, construção civil. Depois de 81, eu me afastei de
trabalhar para os outros, e fui autônomo. Ainda construí um bocado como autônomo.
Construindo como autônomo para completar os anos pra aposentadoria, eu fiquei com
muito mais liberdade pra ficar na viola. Aí, eu passei a viver mais de cantoria e de escrever.
Aí, depois de aposentado, aí, é só cantoria e escrever. (...) Até que em 96, eu publiquei meu
primeiro livro, mas que tinha poemas escritos há mais de quarenta anos.

No ramo da construção civil, o informante prosperou. A história de prosperidade começa

com a oportunidade de fazer um curso por correspondência. Especializando-se, passou a

exercer a profissão de mestre de obras. Galgando espaços na nova capital, ascendeu a

auxiliar de engenharia. Como auxiliar de engenharia teve a oportunidade de trabalhar em

escritórios. Cansado de trabalhar como empregado passa a ser o patrão, trabalhando como

autônomo. Sua longa história de crescimento e ascensão social é coroada com a publicação

de um livro de poemas.

O exemplo aqui citado não é único. Os depoimentos, sugerindo a constatação do

crescimento do indivíduo no lugar de destino, são vários. Algumas narrativas podem ser

destacadas. No primeiro depoimento a ser citado abaixo, o informante constrói uma história

de ascensão que começa nos tempos em que era servente de pedreiro; passando a oficial de

carpinteiro; atingindo a colocação de guarda numa escola pública; e concluindo seu relato

como estudante da escola em que trabalhava. O segundo depoente edifica um cotidiano em

si mesmo vitorioso, onde a cada dia ele conquista mais e mais espaços na capital do país:

Em 68, eu vim à Brasília (...). Aí, comecei a trabalhar. Eu era servente de pedreiro. De
servente fui oficial de carpinteiro. (...). Aí, veio um pessoal procurando pra estudar numa
Escola Classe da 107 no Plano. Eu fui estudar e era guarda. Era guarda, e também estudava
e morava nessa dita escola.

Aqui eu tenho vários espaços. A cada dia que passa, eu arrumo mais espaço. Faço os meus
trabalhos. Faço as minhas apresentações pra Governo, faço pra Sindicato, faço pra empresa.
Tenho os meus cachês e luto por eles, agencio, faço tudo.

74
Não é possível caracterizar os cantadores como pertencentes a uma mesma classe

econômica. Apesar de compartilharem alguns indicadores como o fato de morarem nas

cidades satélites do Distrito Federal, as diferenças financeiras entre eles são visíveis.

Alguns cantadores vivem especificamente da cantoria. Outros trabalham como funcionários

públicos ou são aposentados. Os cantadores que vivem da cantoria como a única forma de

sobrevivência e que não gozam de um certo “espaço” em seu meio, passam por

dificuldades financeiras. Eventualmente, são realizadas na Casa do Cantador, cantorias

filantrópicas com o objetivo de ajudar cantadores que estejam precisando de recursos,

principalmente para tratamentos de saúde. Gozando ou não de uma melhor condição

econômica, em nenhum momento das entrevistas eram proferidas queixas. A intenção

maior dos relatos era a de erigir uma trajetória de muita luta, mas também de muitos

sucessos e triunfos.

Se os cantadores destacam suas trajetórias de ascensão na capital do país, o mesmo

não é feito ao relatarem os fatos que antecederam à decisão de migrar. Poucas referências

são feitas à vida que levavam anteriormente. Frente a minhas perguntas sobre aquela época

e o que faziam “lá”, alguns diziam quase que em tom de revelação:

- O senhor veio de onde? (pesquisadora)


- Eu vim de Pernambuco, São José do Egito, conhecida como a terra da poesia, dos poetas.
No Vale do Pajeú... O que é Pajeú? É um vale que pega toda a baixada do Vale do Pajeú,
onde o rio Pajeú faz o Itapetim, e as águas descem para o Riacho do Navio que até tem
aquela história do Luiz Gonzaga, aquela música: “Riacho do Navio, cai no Pajeú, o resto do
Pajeú cai no Riacho do Navio, o resto do Riacho do Navio cai no São Francisco, aí cai no
mar”. Eu sou do São José do Egito. Nasci no dia 22 de fevereiro de 1949, do signo de
peixes. Poeta há 34, 35 anos. Cantei muito, comecei a cantar em Brasília.
- Não cantava lá? (pesquisadora)
- Não cantava lá. Eu comecei a cantar em Brasília.
- E por que o senhor não cantava em São José do Egito? (pesquisadora)

75
- Eu já cantei lá também. Aí eu voltei de São Paulo e fui a Pernambuco e fiquei fazendo
Nordeste todinho, nove estados do Nordeste.
- (Insisto) Mas, o senhor começou...(pesquisadora)
- Aqui em Brasília. Lá não, eu trabalhava puxando enxada.

- Eu queria saber um pouco sobre a sua história. Quem eram seus pais, onde viviam, o que
você fazia antes de vir pra cá? (pesquisadora)
- Meus pais são agricultores até hoje. Nasci no campo e me criei no campo até os dezessete
anos. Eu sou de uma família de dez irmãos. É... ainda sou remanescente da escola do
MOBRAL. Eu me alfabetizei no MOBRAL quando eu tinha treze anos. Fui terminar o
segundo grau com vinte e nove anos de idade. E... comecei a cantar aos dezesseis. E... nasci
em Alexandria, Rio Grande do Norte. Meus pais...Meu pai chama-se Joel, minha mãe
chama-se Joana. Hoje, estou com quarenta e um anos de idade. Sai de Alexandria, fui pra
Pau dos Ferros. De Pau dos Ferros fui pra Mossoró. Na época, eu fazia o chamado Ginásio.
Depois comecei o segundo grau. Parei, vim terminar depois que eu cheguei em Brasília. Fui
entrar na faculdade com quase quarenta anos e ... quer dizer, a terceira né. Já é a terceira
faculdade que eu não terminei, porque tive que viajar. Brasília é local que eu viajei menos,
né. Viajo uma ou duas vezes por mês. No Nordeste eu não fazia parada em casa. Eu vivia
mais em Brasília, Rio, São Paulo.

Ao contrário do aqui, sobre o lá existem ínfimas menções. Sobre uma determinada

fase do passado, há muito pouco a ser dito. O que merece ser enfatizado do que já passou

são os eventos que se referem aos estudos e às viagens feitas pelo Brasil. Aquele tempo

vivido na roça ocupa apenas uma ou duas frases do relato: “Lá eu trabalhava puxando

enxada” ou “Meus pais são agricultores até hoje. Nasci e me criei no campo até os

dezesseis anos”. Essas frases merecem ser amarradas ou complementadas com notícias de

um presente ou de um passado “menos roceiro”. Existem razões para essa ocultação. E elas

dizem respeito ao significado assumido pela “roça” no contexto dos cantadores nordestinos

em Brasília.

O trabalho na roça fez parte da vivência de muitos dos entrevistados. No entanto, na

concepção dos cantadores, ele não é assunto para uma entrevista com uma estudante da

Universidade. São poucos os que se referem à roça, mesmo tendo vivido nela por muito

tempo. Esse fato da vida pertence a um tempo difícil de ser relembrando, não apenas pelos

sofrimentos vividos, mas por estar associado às noções estigmatizadas de atraso. Leo

76
Spitzer (2001), em Vidas de Entremeio, a partir da biografia dos membros de três famílias

(duas negras e uma judia), aborda a multiplicidade de respostas individuais às situações de

exclusão e subordinação na Áustria, Brasil e África Ocidental, entre os anos de 1780 e

1945. O autor se depara com a existência de poucos detalhes sobre a vida pregressa desses

indivíduos selecionados para a análise. Tal fato indica uma tentativa deliberada de evitar o

ressurgimento de lembranças dolorosas e de obliterar o vínculo com um passado

considerado por eles, imerso nas trevas da ignorância (op. cit.: 67).

Nas entrevistas com os cantadores, há poucas referências sobre o passado rural, em

contraposição às inúmeras menções sobre outras experiências, principalmente aquelas

vividas nas grandes cidades. Ao falar da vida na roça, o informante imediatamente passa ao

relato de suas experiências na esfera urbana: estudos, viagens, etc. Nas trajetórias dos

cantadores contadas por eles mesmos, o passado cede espaço para o presente, ou para um

passado que mereça ser lembrado. As realizações atuais são o mote principal das nossas

conversas. E o presente fala por si mesmo. À pesquisadora são mostrados cds gravados,

livros publicados ou no prelo, fotografias com personalidades políticas. Até o espaço onde

foram realizadas as entrevistas falava por si mesmo. As conversas eram realizadas nas casas

dos cantadores. Os informantes faziam questão de mostrar todo o domicílio: quartos,

televisão, aparelho de som. Tudo conquistado por eles, símbolos que concretizam e

legitimam a construção de uma trajetória que deu certo.

Dentro do contexto da construção de histórias vitoriosas, a cantoria pode ter

representado para alguns indivíduos, a possibilidade de abandonar a roça. Muitos

informantes se tornaram cantadores quase que como uma necessidade de levar uma vida

diferente daquela levada no campo. A cantoria significou uma forma de escapar da vida

77
rural, ou seja, foi uma porta de saída. O depoimento seguinte faz referência às motivações

que levaram o indivíduo a ser um cantador.

(...) teve um companheiro (...), ele falou: “Rapaz, você tá vendo aquele cantador? Ele anda
bem vestido e fora da roça, cantando ruim do jeito que ele canta. Por que você não vai
cantar também?” [risos]. Isso foi um incentivo pra eu arranjar uma viola e começar a cantar.
E daí, eu comecei a cantar. Comecei logo (...) a viver da viola, e me desliguei da roça. E
passei até a viver melhor lá no Nordeste.

Os cantadores são construídos no relato como aqueles que andavam bem vestidos e não

trabalhavam na roça. Eles personificavam para o jovem do sertão, a tentativa de largar o

trabalho com a enxada e com o cultivo da terra. Com a cantoria abria-se a possibilidade de

uma vida melhor. A viola representava a perspectiva da migração, dos sonhos por melhores

condições de vida e do distanciamento de um passado rural ao qual estão originalmente

vinculados.

Os deslocamentos estão presentes na trajetória dos cantadores nordestinos de modo

intenso. Antes de Brasília, eles passaram por várias outras cidades. Existe um certo padrão

no que se refere à rota do deslocamento. Todos os cantadores entrevistados saíram de uma

pequena localidade do interior nordestino, descrita por eles como sendo um sítio ou uma

comunidade rural. Muitos deixaram esses locais ainda jovens, aos dezessete ou dezoito

anos, buscando melhores condições em cidades do Nordeste. Depois dessa experiência, os

cantadores mudaram para as grandes cidades nordestinas como Mossoró, Fortaleza e

Recife. E finalmente, alcançaram as capitais do Sudeste. Dentre as capitais, estão São

Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. Poucos cantadores deixaram seus lugares de origem para

morarem em Brasília, sem antes terem vivido em outras cidades e capitais de grande porte.

Podemos assim, identificar uma trajetória de deslocamento que se inicia nas pequenas

78
localidades do interior nordestino, passando por cidades nordestinas de maiores dimensões,

e finalizando nas metrópoles do Sul, como gostam de enfatizar os informantes.

Em suas trajetórias, os poetas convivem com as noções de viagens, deslocamentos e

movimentos. As viagens fazem parte do dia a dia dos informantes. Os depoimentos são de

pessoas diferentes. Em todos eles, notamos a presença dos deslocamentos na vida dos

cantadores, mesmo para aqueles com residência fixa no Distrito Federal:

A minha cidade natal, Jaguaretama, onde eu morei vários anos... De lá eu saí... Morei no
estado da Paraíba. Morei na cidade de Patos. Morei em Cajazeiras. Morei em Conceição de
Piancó na Paraíba. De lá, eu mudei e vim pra São Paulo. Passei uma temporada em São
Paulo. De São Paulo eu voltei pra Fortaleza. Fiquei morando em Fortaleza. De Fortaleza,
Brasília, Distrito Federal onde permaneço até hoje. Mas, estou sempre viajando.

(...) viajando pra Brasília, viajando pra São Paulo, viajando no Brasil todo, em Belém, tudo
que é lugar eu ia, Maranhão, Piauí. (...) Gostava muito de viajar quando comecei a cantar.
No princípio tudo são flores. Quando a gente vai ficando mais maduro, tendo família, a
família já exigindo mais da gente: “Poxa, já vou ter que viajar de novo”. Mas quando
começa a viagem, já esquece. (...) Têm viagens de até um mês viajando. Mas, têm outras
que é oito dias, dez dias, quinze, no máximo. A gente vai pras exposições em Campo
Grande. Fomos pra exposição em Petrópolis, Rio de Janeiro, São Paulo, várias cidades de
São Paulo, Barretos...

A mobilidade, ou seja, o ir e o vir é uma constante nos depoimentos dos cantadores.

Deslocamentos, viagens e mudanças são traços fundamentais na própria construção da idéia

de cantador. Os cantadores se constroem como pessoas constantemente em trânsito:

Cantador não pára. É como uma viagem passando...

O cantador poderia ser um migrante em potencial. Para Iain Chambers (1994) ser

migrante exige tradução uma vez que se impõe um novo sentido de lar. O lar é concebido

como um habitat móvel, como uma forma de viver o tempo e o espaço não como se fossem

79
estruturas fixas e fechadas (op. cit.: 18). Talvez, essa colocação seja interessante para

elucidar a insistência dos cantadores em afirmarem que apenas estão em Brasília. Na

percepção dos cantadores, Brasília situa-se dentro do contexto móvel das viagens. As

contínuas viagens pelos vários cantos do Brasil e, principalmente, de “retorno” ao

Nordeste, corroboram “o estar em Brasília” e trazem para esses cantadores, o tema da

origem. As viagens de retorno representam a possibilidade de revitalizar a pertinência da

origem e a atualidade da tradição (Jardim, 2002: 74).

Antes de nos determos nessa questão, algumas colocações são necessárias. Já foi

enfatizado anteriormente que os motivos que levaram essas pessoas até a capital do Brasil

são vários. Trabalho, redes de relações e a busca por melhores condições de vida são

algumas das situações apontadas que levaram à migração. Resta saber o porquê da escolha

por Brasília.

Segundo os cantadores, a presença deles em Brasília é fomentada pela existência

significativa de muitos nordestinos na capital.

Hoje essa questão da migração dos cantadores tipo São Paulo, Brasília...Você não vê um
cantador dizer: “Eu vou pra Mato-Grosso”. Por que? Parte da nossa colônia não está lá.
Porque você primeiro...A nossa base é a colônia nordestina. Porque lá é que você vai cantar
sabendo que o cara já viu aquilo. Apesar dele estar lá dez, vinte, trinta anos, ele já viu. (...)
Ou seja, os cantadores procuram Brasília, São Paulo porque são metrópoles que têm um
percentual de nordestino muito grande.

Mas, se os cantadores procuram acompanhar as tendências do fluxo migratório

nordestino pelo Brasil, a opção por Brasília acontece também em função de tudo o que uma

grande cidade pode oferecer. Existe uma série de noções em torno de Brasília que

funcionam como um atrativo para essas pessoas. Para além do possível encontro com um

público saudoso, existe uma outra explicação de cunho mais simbólico.

80
Muitos cantadores caracterizam a cidade de Brasília como um lugar difícil de se

fazer cantoria. Alguns, inclusive, ressaltam que se estivessem no Nordeste estariam bem

melhores. O “melhor” significa aqui, “mais ricos” e mais “famosos”. Em outras palavras,

ser cantador no Nordeste poderia representar a conquista de uma condição financeira mais

estável, proporcionando o desfrute de uma maior receptividade. Numa comparação entre

“ser cantador no Nordeste” e “ser cantador em Brasília”, os informantes comentam:

(...) a cantoria no Nordeste é tão bem aceita que têm pessoas que compram as pilhas do
rádio, lá no interior, colocam a pilha no rádio e assiste ao programa. Quando termina o
programa tira as pilhas pra não gastar e assistir no outro dia. No Nordeste é bem aceito a
cantoria. Quase todas as cidades fazem festivais. A prefeitura apóia, os vereadores, o
prefeito da região...

No Nordeste têm aquelas cantorias de sertão... Os cantadores quando chegam lá, as pessoas
tratam com muito carinho, com muito amor (...). Aqui não. Aqui a coisa é totalmente crua
mesmo. Eu faço uma apresentação, é só ali e pronto. Lá no Nordeste, você termina uma
cantoria, o pessoal fica atrás de você e quer conversar e tal e tal, quer ficar perto. Aqui é
diferente. Aqui não tem muito essa questão.

O espaço é muito pequeno [sobre Brasília] (...) Se você for fazer aquela cantoria tipo
cantoria nordestina mesmo (...) não dá pra sobreviver. Alguns tentam aqui, mas vive com
muita dificuldade. Eu faço em Brasília é um esforço muito grande pra sobreviver da
cantoria aqui. (...) Brasília não é uma cidade boa. Porque se você for observar as cantorias
da Casa do Cantador, são cantorias semanais. Mas, o público é muito reduzido. Se sair um
anúncio no jornal ou na televisão, o espaço lota. Mas, as pessoas não têm o hábito de
assistir aquelas cantorias de Bandeja que são típicas do Nordeste. São aquelas cantorias que
eles pagam na bandeja. (...) Então, Brasília não é uma cidade fácil pra viver. (...) Eu tenho
muita vontade de voltar pro Nordeste. Se eu estivesse lá estaria muito melhor do que aqui.
Os cantadores vivem lutando pra me carregar pro Nordeste. (...) E eu não fui. Mas, eu vou
resistindo em Brasília. Eu acho que eu tenho algum espaço. A questão da arte... eu vou
trabalhar agora com arte, vou terminar meu curso e vou trabalhar com arte. Talvez, por isso
eu ficarei em Brasília. (...).

Nos depoimentos citados acima, notamos uma aparente contradição. O Nordeste

aparece nos discursos como um espaço privilegiado para a cantoria. Lá, a cantoria é bem

aceita. Lá, existe apoio financeiro de políticos para a realização de festivais. Lá, os

cantadores são tratados pelo público como verdadeiros artistas. Ao falarem da cantoria em

81
Brasília, os discursos mudam de tom. Aqui, o espaço é pequeno. Aqui, ninguém paga a

Bandeja 5. Aqui, o cantador é quase um anônimo. Em Brasília, a cantoria não é valorizada

tal como é no Nordeste. As dificuldades dizem respeito à divulgação, apoio financeiro e

receptividade do público.

Se Brasília não é considerada uma cidade propícia à realização da cantoria, surge a

pergunta: Por que os cantadores “resistem a ela”? Deixemos que os próprios cantadores

respondam:

O Nordeste pra mim é passear, viver lá de passeio (...). É muito bonito o Nordeste. Foi lá
onde eu nasci, onde eu vivi, onde eu aprendi, onde eu sofri. Mas, eu gosto muito mais do
Sul. Porque aqui a gente desenvolve, é... Dá mais um dinheiro. O povo até de outros países
vê mais a gente. Tem gravação minha que foi pra França. Eu cantei pro ministro da França
em São Paulo. Se eu tivesse no Nordeste, eu não tinha cantado com Pedro Bandeira [um
poeta que tem algumas de suas composições gravadas por Luís Vieira e Antônio Nóbrega] e
outros.

Voltar pro Nordeste, pra aquelas cantorias cansativas, aquelas viagens cansativas do
Nordeste... Fica muito difícil. Gostoso mesmo é cantar como nós fazemos aqui. E aqui nós
estamos bem localizados. Estamos centralizados aqui no Centro-Oeste. Aqui viaja pra São
Paulo é perto. Viaja pro Centro-Oeste, pra Mato Grosso, pra Cuiabá... Tudo é perto. Então,
nós estamos aqui bem centralizados e estamos sempre em comunhão com os cantadores.

A opinião sobre a cidade é construída de forma segura:

Brasília é a mãe do Brasil!

Brasília é a capital! Capital é capital!

Mesmo considerando as cidades do Nordeste como espaços onde a cantoria possui uma

maior visibilidade, Brasília oferece aos cantadores outras facilidades. A cidade carrega

consigo uma série de noções sobre o imaginário de uma capital. A análise desse imaginário

5
A Bandeja, conforme foi analisada no capítulo II, é o pagamento recebido pelos cantadores em suas
apresentações.

82
pode elucidar os motivos da vinda e da permanência dos cantadores nordestinos, mesmo

com a alegação das dificuldades da realização da cantoria na cidade, e com a suposição de

que se estivessem no Nordeste, estariam numa melhor situação.

A imagem da cidade para o migrante rural é de um centro do poder, da autoridade,

do saber, da economia e da política da vida nacional (Durham, 1984: 139). Além das

questões de ordem econômica e política, o quadro hegemônico dos grandes centros urbanos

é fomentado também por questões de ordem simbólica e ideológica. Esse quadro

hegemônico - com seus símbolos e ideologias - contribui para a erupção de imagens a

respeito das grandes cidades. Essas imagens vão sendo construídas a partir dos refrões de

oposições entre o lá e o aqui no que se referem aos serviços, códigos de conduta, práticas e

instituições sociais (Teixeira, 1988: 18). Como mostra Sérgio Alves Teixeira, basta

lembrarmos do valor dado aos arranha-céus nas cidades pequenas, figurando sempre como

“cartões postais”. Esses prédios são associados ao progresso e à modernidade; são focos de

interesse e de quase adoração, uma vez que permitem o afastamento da situação de atraso

(op. cit.: 20). Partilhando noções sobre a hegemonia dos centros urbanos, os cantadores

elaboram suas idéias sobre a capital do país.

Os versos abaixo são de um poeta morador de Brasília, publicados numa revista

especializada em literatura de cordel no ano de 1980 6. No poema, Brasília encarna os

símbolos da modernidade, próprios de um grande centro urbano: prédios com uma

arquitetura diferenciada, abrigando os centros do poder econômico do país. Brasília surge

como um grande ideal:

6
BEZERRA, Gonçalo Gonçalves. A Catedral de Brasília. A Brasil Cordel: órgão de divulgação da literatura
brasileira de cordel, Brasília, ano I, n.1, p. 21, abril de 1980.

83
(...)
Veja que prédios modernos
Enfeitando a Capital
O primeiro à esquerda
É o hotel Nacional
Veja o Banco do Brasil
É alto e tem muitos mil
Fruto de um grande ideal
(...)
Vê-se a Rodoviária
Arquitetura convém
Uma das Obras moderna
Que o nosso mundo tem
Alguém já anda falando
Estou quase acreditando
Ser a Nova Jerusalém.
(Gonçalo Gonçalves Bezerra – A Catedral de Brasília).

Enfim, o que atrai os cantadores não é apenas a existência de um público nordestino

saudoso, mas também o significado de estar vivendo e morando numa capital.

Para os cantadores, estar numa capital é se deparar com a oportunidade de evoluir.

Essa idéia de evolução coloca os cantadores do interior nordestino como “ancestrais” ou

como a “origem” dos cantadores dos grandes centros. Cantar nas capitais do país representa

evoluir de uma mentalidade considerada “rústica” e “simples” para outra mais “complexa”

e “arrojada”.

(...) na casa do Cantador nas sextas-feiras, você encontra um conterrâneo que quer matar a
saudade: “Olha, fala aí do aboio do vaqueiro nas quebradas do sertão”. (...) Então, aí é fácil
demais pra mim. (...) Eu vou dizer tim tim por tim tim. Só que no meio dessa platéia que
pediu um mote tão simples (...), surge um também que vai dizer: “Olha, eu queria que você
cantasse um tema aí, eu vou dar o tema agora: o Waldomiro Diniz é escândalo brasileiro”.
Quer dizer, o cantador pulou de um regionalismo para um assunto que é nacional e já é
politizado, já é mais arrojado. Você tem que estar a par. (...) Então, o cantador de viola
hoje, como eu já lhe disse, tem que ser muito bem atualizado. Ele é obrigado a se atualizar.
Porque você vai cantar pra todo o tipo de gente, pra todo o tipo de espectador e em todos os
ambientes. Então, hoje a cantoria tá nesse pé. Começou aquela coisa rústica, bem simples.
Dois cantores ao pé de uma parede. Eles botavam duas cadeiras naquelas casas simples,
como eram aquelas casas de taipa, feitas de barro e de vara ou de tijolo mesmo, onde você
não se preocupava em tratar assuntos, digamos, do exterior. Não se falava de uma ALCA,
de um político. Era assunto mais da região, regionalismo. Então, hoje está tudo muito

84
mudado. Então, hoje um cantador tem ser técnico. Além de conduzir o regionalismo, que é
muito necessário ainda, encontra muitos conterrâneos que quer que fale do vaqueiro, que
fale da roça, que fale de um irmão que tá lá, da saudade, aquela coisa toda.(...) Quem mora
em capital hoje, por exemplo, um cantador que mora em Brasília, você vai fazer um show
numa platéia digamos seleta, mais evoluída, mais clássica. Você tem que levar
totalmente... 99% é um show político. Regionalismo é só mais para os conterrâneos, vamos
dizer assim.

Ao falar das mudanças ocorridas com a cantoria quando esta atingiu os grandes centros

urbanos, o informante a coloca numa espécie de linha evolutiva que começa no simples e

atinge o arrojado. O estágio arrojado está localizado no contexto das grandes capitais

brasileiras. Ele é fruto das transformações vinculadas à vida nas metrópoles da região

Sudeste. Encarnando símbolos do desenvolvimento e da atualização no tempo histórico,

cantar numa capital como Brasília é dialogar com uma platéia seleta, evoluída e clássica.

Encarnando símbolos da estagnação e do congelamento no tempo histórico, cantar no

interior do Nordeste é permanecer nos regionalismos. Para caracterizar a “cantoria do

sertão”, eles lançam mão de dois adjetivos: simples e rústico. Ao falar da “cantoria das

capitais”, os adjetivos são outros: arrojado, clássico, atualizado, politizado.

Oriundos de uma região, que na hierarquia econômica do país é vista como inferior,

o migrante ao chegar nas cidades do “Sul”, é transformado muitas vezes em minoria. E

nessa condição recebe denominações que expressam identidades estigmatizadas como

“pau-de-arara”, “paraíba”, “baiano”, etc. (Morales, 1993: 80). O migrante, além de ocupar

uma posição subalterna, pode legitimar o modelo de inferioridade (op. cit.: 102). Tais

questões podem ser percebidas no processo de construção de uma imagem atual para a

cantoria, ou seja, a cantoria dos grandes centros urbanos. A construção se dá através de uma

série de noções valoradas sobre o Nordeste e o Sul, onde os cantadores reforçam os

85
estereótipos do “atrasado” e do “desenvolvido”. Para os cantadores residentes em Brasília,

os lugares estão bem demarcados.

Se Brasília ocupa o lugar do desenvolvimento, o Nordeste é o lugar das lembranças.

Ele toma conta do discurso ao nível das emoções. De acordo com José de Souza Martins

(1975), o migrante rural, marginalizado na cidade, reorienta seu estoque simbólico,

tomando o contexto de origem como quadro de referência positiva (op. cit.: 114).

Recorrendo aos sentimentos, o Nordeste é apropriado de forma valorizada e positiva.

Vimos que na Cantoria de Pé de Parede, o conteúdo de várias sextilhas faz menção a essa

questão. Nas entrevistas, o Nordeste é a saudade e “está dentro do peito”.

Têm noites que eu fico dormindo e sonhando. Acordo e dá vontade de voar. Porque a gente
nasce num lugar... que é berço querido, que viu nascer, a gente nunca pode esquecer, né? A
gente pode viajar pra outros lugares, como se diz, mais elevados como São Paulo, Rio de
Janeiro, Brasília e outros. A gente acostuma, fica no meio daquela mordomia e conforto.
Mas, a gente não pode esquecer do torrão natal e nem pode também, como se diz,
discriminar. Dizer: “Ah, eu não sou daquele lugar. Eu nasci lá, mas não gosto”. Tem que
honrar e dizer que gosta. Porque o interior... existe humildade, aquela beleza natural, um
povo diferente. A... como se diz, a discriminação é muito pouca. A perturbação, como se
diz, o meio dos maus acontecimentos não existe, aí, leva uma vida mais tranqüila, mais
humilde, alegre, descansada, cantando, passeando (...). Por isso, eu gosto muito do
Nordeste. Toda a oportunidade de voltar...Daqui a uns dias eu estarei lá. Daí, eu volto pra cá
de novo. E é assim...

Ao falar do Nordeste, os cantadores mencionam lembranças e trazem para seus

discursos, o sentimento da saudade. Parafraseando Roberto DaMatta (1993), o peso da

palavra saudade encontra-se no conjunto fortíssimo de idéias e atitudes que ela evoca,

desperta e determina (: 20). Pela saudade podemos invocar e dialogar com pedaços do

tempo, e trazer os momentos especiais e desejados de volta (op. cit.: 22). É assim que

muitos cantadores ao lembrarem, o fazem com saudosismo e lágrimas nos olhos,

86
constatando que para ser nordestino, não é preciso estar no Nordeste. Aliás, fora do

Nordeste essas pessoas se descobrem mais nordestinas.

(...) Aqui nós só trocamos de sigla, de lugar. A saudade nossa, o nosso eu de lá, permanece
do mesmo jeito. (...) Brasília é hoje o nosso ninho. Brasília é hoje o nosso domicílio. (...) Eu
até brinco: “Vou pedir licença aqui aos goianos que nós somos inquilinos deles”.

O “eu” permanece sendo de lá. A identificação é mantida. Fora do contexto de

origem, os informantes selecionam os traços de identificação. E a terra natal só faz sentido

quando lembrada como uma utopia (cf. Assis, 1999 e Osório, 2001).

“O cantador é do Nordeste” mesmo que ele esteja distante e por mais distante que

ele queira estar. Mesmo com tudo o que possa significar e sugerir estar numa capital do Sul,

eles apenas estão... Ser e estar é uma diferença que a todo o momento, os cantadores tentam

reforçar. O que significa ser do Nordeste e estar em Brasília? O que os cantadores querem

dizer, afirmar e reivindicar ao estabelecerem a oposição entre o ser e o estar? A oposição

liga-se ao processo de seleção dos traços a serem lembrados como identificadores do

Nordeste.

Para esclarecer as questões acima, é necessário retomar a discussão sobre o processo

de construção da idéia de cantoria nos centros urbanos. Dizem os informantes que os

cantadores são todos nordestinos:

Aqui [na Casa do Cantador] vem repentista da Paraíba, de Pernambuco, de Alagoas, de


Sergipe, Rio Grande do Norte, Piauí, Ceará e os demais que já estão no Rio de Janeiro, São
Paulo, Brasília, que são todos nordestinos. Mas, todos são do Nordeste.

- Aqui [Casa do Cantador] é aonde os cantadores vêm do Nordeste, se juntam com os daqui
que são nordestinos. Porque não tem cantador sulista, né? (...)
- Não tem cantador sulista? (pergunto)
- Sulista não. Sulista tem é caipira, tem vaneirão, às vezes, algum forrozeiro que entra...
Mas, a origem do forró, da cantoria e da vaquejada é no Nordeste.

87
- Então, a gente pode falar que não tem cantador de Brasília? (pergunto)
- Filho de Brasília não. Tem um em Brasília, mas a origem é de nordestinos. Ele mora na
Granja do Torto, é brasiliense. Mas, aí ele tem que se concluir... e ele se... Assim, não é que
ele deva nada a gente. Ele canta bem, um rapaz que tem faculdade e tudo. Mas, ele tem a
origem no Nordeste por causa dos pais nordestinos. Ele tem que se ... Como se diz? Apoiar,
ficar junto pra poder exercer a cantoria dele. Se ele ficasse cantando só, ele não era
cantador. Cantador tem que ser dupla e cantar a origem nordestina.

(...) o homem é produto do meio. Porque se no Rio Grande do Sul, em Minas Gerais, em
Goiás têm poetas escritores, mas não têm cantador. Pra cantar de improviso não tem. Lá no
Rio Grande do Sul tem uns improvisadores, mas é completamente diferente (...).

É preciso estar ou, pelo menos, conviver num meio específico para se tornar um cantador. É

como se a cantoria fosse patenteada pelos nordestinos.

Essa tentativa de tornar algo próprio (ou mesmo um patrimônio) de um lugar e de

um grupo reforça laços de identificação e de pertencimento. A identificação com o

Nordeste é feita através da construção da idéia de cantoria como um traço típico e único

daquela região. Ao preservá-la fora de seu habitat natural, os cantadores reafirmam o seu

pertencimento. No contexto aqui estudado “se é do Nordeste” através da atualização de

uma prática considerada antes de tudo, nordestina. Assim, como a cantoria é coisa do

Nordeste, o cantador também o é. Ao monopolizar uma manifestação cultural, essas

pessoas emergem como portadoras de algo exclusivo.

Talvez, os dados levantados acima nos conduzam aos motivos pelos quais alguns

informantes se tornaram cantadores somente em Brasília. Vimos que a cantoria representou

na vida de muitos migrantes uma válvula de escape do mundo rural. Para outros, no

entanto, a cantoria pode ser vista como uma conseqüência do processo migratório. Mesmo

não tendo muita proximidade com essa manifestação cultural no seu lugar de origem, o

deslocamento aproximou alguns informantes dos traços considerados típicos da sua região.

O interessante é perceber como os cantadores em Brasília selecionam o que querem

mostrar a respeito de suas procedências. O Nordeste é o torrão natal que não pode ser

88
esquecido somente em alguns de seus aspectos. As dificuldades vividas naquela região

podem não ser mencionadas, mas as coisas consideradas positivas da “terrinha” devem ser

lembradas. As coisas a serem cantadas são aqueles aspectos que podem ser idealizados. E

na idealização, os informantes constroem a terra natal como uma utopia:

Nordeste pra mim é tudo, é uma beleza. (...) O povo faz questão de te receber na casa e
pedir pra esperar pro almoço. Você chega no Goiás e é uma diferença tão grande. Eu não
quero discriminar. Mas, parece que a gente chega no Goiás, o pessoal parece que tá doido
que a gente saia pra eles botar o almoço. É desse jeito. Minas é a mesma coisa. São Paulo
não tem aquele espírito pra receber uma pessoa em casa não. Fica tudo com pé atrás. O
Nordeste tem uma diferença muito grande: tudo é como se fosse irmão. Você passa um dia
na casa de um amigo: “Não vai hoje não deixe pra ir amanhã”. É uma beleza o Nordeste,
aquele estilo, aquela irmandade, confraternização... É uma beleza. Eu gosto demais do
Nordeste. Adoro o Nordeste.

No entanto, para os cantadores, que fizeram a opção por Brasília, o Nordeste

permanece como uma lembrança. Ele só faz sentido ao ser lembrado na época das férias:

Brasília, eu não tenho o que dizer de Brasília não. É tudo (...). Tô satisfeito em Brasília.
(...). Valeu a pena sim. Valeu por causa de que lá é um sacrifício muito grande pra você
sobreviver e criar uma família, né. Você vê a minha família. Só, criei esse filho, aquele que
ta lá [me aponta o filho dele em outro cômodo da grande casa aonde mora]. Só, criei um
filho. Tinha um casal, mas a menina morreu. Viemos pra aqui, meu filho se criou, estudou,
a esposa também, os netos bem criados. Tem um emprego bom, trabalha no Tribunal de
Justiça, levando um padrão de vida, graças a Deus, como pobre, mas... Tô satisfeito [num
tom de voz baixo]. Mas [aumenta a voz e o ritmo da fala] agora todo o ano eu fico contando
os dias pra chegar a época. Porque eu gosto de ir sempre na mesma época. Quando começa
a chover, com noventa dias eu tô lá. Pra ver aquele milho maduro, aquele feijão maduro,
feijão verde, aquelas coisas da roça lá. Eu sempre vou nessa época abril, maio. Mês de
setembro a dezembro lá, não tem quem agüente a quentura, sol quente. Eu não vou de jeito
nenhum. Com esse tempo todinho morando aqui, chegando lá, eu passo mal. Mas, todo ano
eu tô indo lá. Gosto muito daqui, mas não esqueço de lá. Todo ano eu tenho que passar uns
dois meses lá. Quando eu vou lá é Pernambuco, Paraíba, Rio Grande, Ceará andando por lá,
todo o lado.

Afora as lembranças, a opção é por Brasília. Avaliando positivamente sua trajetória em

Brasília, o informante pode escolher não só o que quer lembrar, mas também o espaço

89
temporal das lembranças. O melhor momento para se lembrar do Nordeste é quando as

emoções tomam conta da enunciação, quando o sertão transforma-se em campos verdes,

regados pelas chuvas de maio. Esse é o momento ideal para (re)visitar o ambiente

lembrado.

A cantoria enquanto arte.

Grande parte das entrevistas foi realizada nas próprias casas dos cantadores. Nas

cantorias da Casa do Cantador, falava de meu interesse e eles prontamente me davam seus

endereços a fim de que eu fizesse as entrevistas. Essa parecia ser uma ocasião de

importância não só para mim, como também para eles.

Ao chegar em suas casas, notava um certo cuidado dos cantadores com a

vestimenta. A preocupação traduzia-se numa escolha cuidadosa do traje que me permitia

adjetivá-los como muito elegantes: calça social, camisa de gola e mangas compridas,

ajustadas para dentro da calça, sapatos engraxados e cinto. Alguns perguntavam: “Você não

vai usar filmadora, não vai filmar?”. Frente a minha negativa se mostravam um pouco

decepcionados. Mas, recompostos da decepção, chamavam esposas ou parentes para

ouvirem as entrevistas. Os “convidados” logo se entediavam e abandonavam a sala em

busca de seus afazeres. Durante a conversa, me ofereciam cafezinho e era convidada para

almoços ou jantares. Nos momentos em que éramos interrompidos por campainhas ou sons

de telefone, ouvia frases do tipo: “Corta!”, como se estivéssemos num “set” de filmagem. E

quando tudo terminava, faziam questão de me acompanhar até a parada de ônibus.

Os cuidados com o traje, com a minha recepção e com o registro da situação faziam

da entrevista um evento. Era um momento em que de alguma forma, eles estavam em foco,

90
no centro das atenções. E, mesmo frente as minhas negativas a respeito do uso da filmadora

ou da possível transformação da entrevista num livro ou numa reportagem jornalística, ser

entrevistado parecia ser antes de tudo uma honra. Um imenso prazer que os cantadores

saboreavam a cada instante. Tal prazer tinha ressonâncias nas Noites de Cantoria. Os

episódios foram transformados, por várias vezes, em temas dos versos improvisados pelos

cantadores recém-entrevistados pela estudante da UnB. Nesses momentos, a experiência da

entrevista era compartilhada com a platéia presente.

Esses poderiam ser os informantes dos sonhos de qualquer antropólogo. No entanto,

a facilidade e a receptividade com que era recebida estão ligadas diretamente à forma como

essas pessoas se constroem e à forma como gostariam de ser reconhecidas. Uma das

questões mais interessantes das entrevistas refere-se à estratégia de construção dos

cantadores frente à pesquisadora. O cantador se constrói como alguém muito importante.

Essa construção se alicerça a partir de um veículo principal: “olha com quem você está

falando”, no caso, “olha quem você está entrevistando”. Para Roberto DaMatta (1994),

quando se usa o argumento do “sabe com quem você está falando”, não se busca uma

igualdade simpática ou uma relação contínua com o interlocutor, mas sim uma

hierarquização inapelável (: 101). Tudo isso porque vivemos numa sociedade em que as

relações pessoais são fundamentais. Na sociedade brasileira, a definição de seus membros é

feita principalmente, de acordo com um conjunto de relações que podem ser acionadas,

clamadas e demonstradas em situações específicas (DaMatta, 1997: 85). Na situação da

entrevista, a entrevistadora conversava com homens que demonstram suas relações com

personalidades de visibilidade nacional; que acionam experiências “cosmopolitas”; e que

fazem questão de publicizar títulos e ostentações. Foi assim que entrevistei homens que já

tinham cantado com Xitãozinho e Xororó, Sérgio Reis, Roberto Carlos; homens que

91
conheceram o Pelé; homens que receberam vários títulos; homens que viajaram por todos

os estados brasileiros; homens que já estiveram no “estrangeiro”; e finalmente, homens

detentores de um conhecimento muito vasto. Sem falsa modéstia, entre um depoimento e

outro, eles se apresentavam:

Eu conheço muitos estados, inclusive o estrangeiro, já tive até cantando lá. Ganhei muitos
festivais, tenho quatro lps gravados. (...) Já cantei pra Pelé, cantei pra Roberto Carlos,
Sérgio Reis, Xitãozinho e Xororó, esse mundo tudinho aí. (...) Se você me perguntar as
cidades de Alagoas, conheço várias, da Paraíba, eu sei. Se você perguntar a fundação de
Brasília, eu sei; a de São Paulo; a do Rio; do Brasil; quantos metros cúbicos têm o Brasil;
qual é a maior floresta do mundo...

E eu tenho três livros em andamento, um tá prontinho (...) Um já tá tudo pronto. Até o


prefácio já está feito aí, foi escrito pelo senador Ronaldo Cunha Lima que é um poeta
extraordinário. O meu livro é Cem Sonetos entre dois Poemas Deus e eu. Esse tá prontinho.

Já participei de 102 congressos de repentistas. Alcancei primeiro lugar, talvez aí uns


quarenta e tanto primeiro lugar. E venho de lá pra cá segundo, terceiro, nessa escala,
segundo, terceiro, quarto lugar. Vale a pena dizer que eu nunca fui desclassificado em
nenhum. Sempre eu trazia a minha classificação ou quarto ou quinto, ou primeiro, segundo
ou qual fosse a escalada da classificação, mas eu trazia sempre um troféu, aquele
comprovante de que tinha sido classificado. (...) Me tornei também aquele cantador que
desbravou sertões do Ceará, Pernambuco, da Paraíba, de Alagoas e hoje, aqui no Centro-
Oeste.

Fui o primeiro cantador a gravar na Europa, primeiro repentista, eu e mais três


companheiros. Levei a cantoria pro Timor Leste. Acho que isso já uma grande coisa, eu me
sinto vitorioso nisso.

O veículo, “olha com quem você está falando”, também se traduz na tentativa dos

informantes de se construírem como “artistas”. Segundo os cantadores, o que eles fazem é

arte: cantoria é arte e cantador é artista. A entrevista com uma estudante da universidade

confirmava por um momento tal construção. Por isso, a presença de uma filmadora, a boa

aparência do entrevistado, a mobilização dos parentes como uma possível audiência e a

“publicação” da experiência da entrevista nas Noites de Cantoria eram importantes. A

92
entrevista legitimava, ou melhor, consagrava, mesmo que por alguns instantes, a idéia do

artista em visibilidade.

Inserir a cantoria na categoria arte, pressupõe a diferenciação de outras

manifestações culturais. Dentro desse contexto abre-se espaço para a oposição entre arte e

folclore. Os cantadores diferenciam:

A cantoria não é folclore como o Reisado ou o Boi-Bumbá. Cantoria é arte.

Afirmar que a cantoria não é folclore, não é apenas diferenciá-la de manifestações

como o Boi-Bumbá ou o Reisado. A diferenciação não é estabelecida num patamar tão

distante. É preciso diferenciar a cantoria da própria cantoria. È nesse nível de diferenciação

interna que o que é considerado como folclore precisa ser isolado. Na concepção dos

cantadores, a noção de folclore adquire conotações pejorativas, transformando-se em uma

categoria poluidora.

Para os cantadores existem dois tipos de cantoria: a cantoria folclórica e a cantoria

artística. A cantoria folclórica é aquela identificada com traços pertencentes a um mundo

rural. Os cantadores ficam presos aos aspectos “regionais”, da natureza e do meio sertanejo.

Esses cantadores são localizados num tempo histórico do passado. São referidos como

“aqueles que ainda estão”.

(...) se você for observar, os cantadores folclóricos são ainda muito atrelados à questão
rural. Não que a questão rural esteja fora da cantoria. Porque os cantadores começaram no
campo. Mas, hoje os cantadores estão nos centros urbanos (...).

93
Os que no presente estão identificados unicamente com tais traços, são vistos de forma

negativa. Para eles, cantar apenas o mundo rural é não evoluir, é ficar congelado no

passado. E, o passado no tempo presente significa atraso.

A autoconstrução do cantador-artista implica numa série de elaborações sobre

outras noções como folclore, rural e o passado. Para os cantadores residentes na capital do

país, o folclore, o rural e o passado são noções que estão muito próximas. Ficar preso aos

assuntos regionais - vaqueiros e coisas do sertão - é “permanecer” folclórico. Esses

assuntos funcionam num nível de discurso direcionado para dentro, ou seja, aos nordestinos

muito saudosos da sua terra. Os discursos proferidos numa capital moderna devem ser

politizados e impregnados por uma certa visão social. Os cantadores que não conseguem se

aprimorar, e acompanhar as mudanças de seu tempo permanecem folclóricos. Nessa

condição, resta cantar nas exposições agropecuárias, nos bares ou praias do Nordeste,

importunando turistas em troca de meros trocados. Esses são cantadores folclóricos, muito

diferentes dos artistas que sobrevivem com sua arte nas grandes capitais brasileiras:

Se você for na praia, hoje qualquer praia do Nordeste não passa dez minutos um cantador
lhe aborda, cantando aquela mesma xaveca. Já tem uma xaveca pra mulher magra, pra
mulher gorda, pra galega, pra morena, pra quem tá de óculos. Ali, ele repete em todo o
canto. Isso não é cantoria, é um beabá, uma decoreba que eles usam. Eles não estão
preocupados com a qualidade da cantoria. Eles estão preocupados com a sobrevivência. Eu
também não sou contra essas pessoas. Claro, eu não concordo, mas também não estão
fazendo nada de errado, não estão roubando nada de ninguém. É uma forma deles
sobreviverem. Só que aí, a cantoria perde a sua essência enquanto arte. Ela fica mais
folclórica. As pessoas me perguntam muito: “Ah, eu vi uma cantoria na praia”. Olha, não
confunda a cantoria da praia com a minha cantoria e de outras cantorias. (...) Brasília é hoje
a capital do país. Então, se você tá cantando aqui, você tem que primar pelo mínimo de
qualidade possível para que as pessoas não tachem o cantador. Algumas pessoas acham que
cantoria é coisa de pessoa leiga, ou pessoa analfabeta, algumas pessoas chamam de cantoria
matuta, coisa cabocla. Isso não tem nada a ver com a arte da cantoria.

94
Pensar a cantoria enquanto arte é principalmente fazer menção a um determinado

contexto: o urbano. Ao aproximar a cantoria da idéia de arte, os cantadores se afastam da

vinculação ao ambiente rural. A formulação da noção de cantoria artística é uma estratégia

de inserção numa nova realidade.

Dentro desse contexto, estar numa metrópole acarreta uma série de adaptações que o

cantador tem que passar. Os cantadores pretendem fomentar a idéia de que a vivência, a

adaptação e a conquista de espaços nas metrópoles implicam em mudanças na maneira de

se pensar e fazer a cantoria. A imagem da cantoria, construída na metrópole pelos

cantadores é a de uma manifestação que acompanha as transformações do tempo. A

cantoria não se restringe a cantar coisas do Nordeste, caracterizadas como meros

regionalismos. Os assuntos, como gostam de enfatizar os cantadores, se globalizam.

Para os cantadores, tais mudanças impostas pela experiência da vivência nas

metrópoles brasileiras são vistas como grandes desafios. Nesse sentido, o que os cantadores

nomeiam de dificuldades, transforma-se em traços capazes de valorizar a manifestação

cultural praticada por eles.

Hoje, você viver de cantoria numa metrópole como Brasília, não é fácil, é muito difícil.
Primeiro porque os conterrâneos não têm mais aquele saudosismo, porque tá aqui há vinte,
trinta, cinqüenta anos. Ele perdeu um pouquinho do tempero daquilo que vivia lá. Então,
hoje, por exemplo, você vai fazer uma apresentação, qual é o tema? O tema vai ser a
terceira idade. Obviamente, eu sei falar da terceira idade: que a pessoa que passou dos
cinqüenta tem os seus direitos. Mas aí, você tem que criar mais, dizer quais são os direitos,
que direitos eles estão reivindicando, o que alcançaram. Não é só dizer que o cara tá velho.
Não é isso. Você tem que abordar um conjunto de coisas.

E hoje está mais difícil. Por que? A cantoria ela tende a cada dia conquistar mais espaços de
pessoas não ligadas diretamente ao Nordeste. (...) A cantoria hoje de Brasília ela é mais nas
universidades, nos colégios e encontros. Então, os cantadores já vão com os seus cachês. Já
vão com a temática da cantoria totalmente diferente, a conotação com uma visão mais de
coisa técnica. (...) Brasília é hoje a capital do país. Então, se você tá cantando aqui, você
tem que primar pelo mínimo de qualidade possível para que as pessoas não tachem o
cantador.

95
Os informantes acreditam que para galgar novos espaços, a cantoria tem que se

transformar. As transformações são vistas e valorizadas como aprimoramentos. Por isso,

estar numa capital é vencer obstáculos. A maior dificuldade apontada pelos cantadores que

vivem numa metrópole é conseguir ser globalizado. Quando se consegue ser globalizado,

se consegue conseqüentemente, ser o melhor. O rústico torna-se técnico. Do regional se

atinge o nacional e o internacional. O cantador passa do simples ao arrojado.

Para os cantadores, as mudanças ocorridas na cantoria parecem ser não só bem-

vindas, como valorizadas. A modernização não é uma ameaça para a cantoria. O perigo

advém do passado, do atraso, da estagnação e da “não evolução”. A necessidade de se

construir como um artista e de se modernizar, é uma tentativa de conquistar espaços nos

grandes centros urbanos.

Para os cantadores, viver da cantoria numa capital pressupõe a ampliação de

conhecimentos e a atualização no tempo histórico. E só assim, ele rompe com tudo aquilo

que aproxime a sua manifestação da idéia de folclore.

Nas grandes cidades, os cantadores já vão com a temática da cantoria totalmente diferente, a
conotação com uma visão mais de coisa técnica. O tecnicismo participa hoje da cantoria.
Tanto é que os cantadores que não atingiram esse patamar estão nas praias, estão nas festas
de Parque de Exposição, abordando as pessoas de maneira folclórica, não enquanto arte.

Na nova construção da imagem do cantador, uma das estratégias utilizadas é a de

valorizar a própria imagem a ser erigida. E essa valorização é feita a partir de uma seleção

de traços identificados com lugar não do qual se originaram, e sim no qual estão agora

inseridos. O cantador precisa ser politizado, falar das principais questões sociais do país e

do mundo. Essa é a cantoria enquanto arte, feita nas grandes capitais.

96
Um cantador de viola hoje tem que ser um jornalista muito bem atualizado. (...) Pra se
cantar hoje você tem que começar com a mais difícil da história que é a técnica, ou seja,
hoje o cantador de viola, como eu lhe disse é um jornalista muito bem atualizado. Ele tem
que ser atualizado. Ele tem que seguir aquela chamada globalização.

Os traços que ressaltam a cultura rural estão nos repentes improvisados na Casa do

Cantador. No entanto, os informantes não se prendem a esse assunto, e em alguns contextos

ele pode ser visto como algo pejorativo. O rural funciona muito no nível de um discurso

para dentro, ou seja, para os conterrâneos. No discurso formulado para fora, para os

curiosos que freqüentam a Casa ou para os estudantes universitários sedentos por

informações sobre a cantoria, a referência é outra. O cantador não é mais meramente um

cantador nordestino, ele é também um cantador nordestino jornalista. A lógica aproxima a

manifestação cultural dos códigos da modernidade, da metrópole e da globalização. Talvez,

seja esta uma das razões pelas quais as mudanças ocorridas com a cantoria, não são mal

vistas pelos cantadores 7. Ao contrário, as transformações formam a essência dessa nova

imagem da cantoria e garantem a sua continuidade no tempo presente:

é uma arte que você pensa que está em decadência, mas não tá. (...) Quer dizer não tá
morrendo. Ao contrário, tá dando mais força, cantadores mais técnicos, mais evoluídos,
cantadores muito mais arrojados, vamos dizer assim.

Para ser um bom cantador além de uma boa memória, dedicação, prática, estudo e

estar atento a algumas regras que dizem respeito à métrica, rima e enredo, é preciso estar

atualizado. Cantador bom é aquele capaz de passar de um simples regionalismo, como o

7
Outras razões pelas quais as mudanças são percebidas como positivas, foram apontadas no Capítulo II e
serão retomadas na Parte III.

97
aboio do vaqueiro nas quebradas do sertão, para temas políticos, também denominados

como arrojados.

Viver numa metrópole pressupõe empreender esforços para a apropriação de novos

códigos. Nas metrópoles, o processo de adaptação dos cantadores exige não apenas a

aprendizagem de novos símbolos, mas também a redefinição dos antigos. Fazem parte dos

novos códigos assimilados a instrução formal, o domínio da língua, da vestimenta e de

assuntos que interessam a uma platéia considerada mais clássica e evoluída. Quanto à

redefinição de códigos antigos, notamos a rejeição de traços identificados com um passado

associado à inferioridade e à origem rural dos cantadores.

Leo Sptizer (2001) mostra que os indivíduos podem formular múltiplas respostas

para as situações de marginalidade e de subordinação. As pessoas podem engajar no

processo assimilacionista e manterem, ao mesmo tempo, uma identificação primária com

seu grupo de origem. Os indivíduos em processo de assimilação podem se dissociar parcial

ou totalmente de suas origens. Essas questões formuladas por Sptizer desmistificam a idéia

de que em contextos de deslocamento, os indivíduos transplantam com saudosismo traços

pertencentes às suas “raízes”. O autor mostra que a cultura transposta pode ser utilizada de

forma funcional, com objetivo de atingir fins específicos para o beneficio do indivíduo (op.

cit.: 54). É o que acontece com a utilização e rejeição pelos cantadores residentes em

Brasília, de alguns traços pertencentes às raízes da cantoria nordestina.

A autoconstrução do cantador é feita através da ênfase em recursos que o distancie

de um passado associado à inferioridade. Os recursos utilizados pelos cantadores são

oriundos de códigos compartilhados por uma sociedade urbana: educação formal, linguajar

oficial, vestimenta apropriada. Alguns cantadores fazem curso superior e os que não fazem,

sonham com tal possibilidade. Os cantadores têm preocupações em dominar as regras da

98
gramática da língua portuguesa. Nas entrevistas, muitos apontavam livros de português e

gramáticas como sendo seus livros de cabeceira. Cometer poucos erros gramaticais

representa uma possibilidade concreta de ascensão de status. E finalmente, o uso de uma

vestimenta que o identifique não com um rústico sertanejo inerte no tempo, mas com uma

cultura urbana, proclama que o indivíduo faz parte do grupo dos cidadãos “respeitáveis”. A

imagem que se edifica nesse momento não é a do cantador sem estudos e analfabeto. Essa

imagem fica congelada no passado ou pertencente a uma realidade que já não é mais a dele.

Entre os cantadores, existe a idéia de que é preciso “preservar” a cantoria nordestina

no Distrito Federal. No entanto, essa preservação não se faz sem adaptações. As adaptações

dizem respeito aos temas cantados, à aparência dos cantadores e à utilização de um

linguajar considerado gramaticalmente correto. Nas cantorias dos grandes centros urbanos,

a ameaça à sobrevivência e continuidade do fato tradicional é: não se modernizar.

99
PARTE II

O CTG JAYME CAETANO BRAUN

100
CAPÍTULO IV

Questões gerais sobre o tradicionalismo gaúcho e o CTG Jayme Caetano Braun.

Antes de enfocar o espaço no qual foi realizada a pesquisa de campo, torna-se

necessário discutir algumas questões. Em um primeiro momento, é preciso caracterizar o

Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), abordando alguns de seus pressupostos

básicos. O tradicionalismo gaúcho já foi alvo de muitas reflexões de historiadores,

geógrafos e antropólogos. Assim, procuramos fornecer um quadro geral do que seria o

MTG para posteriormente, entrarmos no universo do Centro de Tradições Gaúchas (CTG)

Jayme Caetano Braun em Brasília.

As causas tradicionalistas.

Os Centros de Tradições Gaúchas são entidades sem fins lucrativos que se propõem

a cultuar manifestações culturais consideradas tipicamente “gaúchas”. Seus freqüentadores

dizem-se tradicionalistas ou simpatizantes das causas tradicionalistas. Ser tradicionalista

pressupõe o compartilhamento de certas noções e comportamentos. O tradicionalismo

constitui-se, assim, em um movimento cultural e ideológico 1.

O Movimento Tradicionalista Gaúcho surge com o objetivo de catalisar, disciplinar

e orientar as atividades dos CTGs (Oliven,1992a: 85). O Movimento é oficializado em

1966, por ocasião do XII Congresso Tradicionalista, realizado em Tramandaí, Rio Grande

do Sul. Atualmente, o MTG congrega a maior parte das entidades tradicionalistas existentes

no mundo.

1
Os significados dessa inserção serão discutidos no Capítulo VII.

101
Os valores cultuados pelo MTG fazem referência a um passado que teria existido no

sudoeste do Rio Grande do Sul: a Região da Campanha. As condições de vida dessa região

são o arcabouço simbólico do tradicionalismo.

A dinâmica dos Centros de Tradições Gaúchas está baseada no modelo da estância,

ou seja, das grandes fazendas, destinadas à pecuária. Elementos das condições de vida

pastoril dos vastos campos da Campanha são resgatados pelo tradicionalismo. O presidente

das entidades tradicionalistas é chamado de patrão, nome do dono da estância; e os homens

que a freqüentam, peões, menção aos trabalhadores braçais da estância. Decorando o

cenário dos CTGs, vemos objetos que remetem a um contexto rural, laços, arreios, carro de

boi e quadros com gravuras dos vastos campos da Campanha Gaúcha, etc.

Nessas entidades, existe uma espécie de edital que versa sobre as normas exigidas

para um indivíduo tornar-se peão. Por exemplo, no CTG Jayme Caetano Braun, o

regulamento do “Concurso de Peões” 2 diz que o “candidato” precisa passar por uma série

de provas. Dentre elas está a Prova Campeira, onde o futuro peão deverá estar apto a

charquear, preparar um churrasco, encilhar um cavalo, apartar, tosar ou laçar os animais.

Vale ressaltar que durante toda a realização do trabalho de campo nunca tive a

oportunidade de comprovar as habilidades masculinas de tosar, encilhar ou laçar animais.

Muitos freqüentadores do CTG não sabem sequer montar num cavalo.

Antes de nos atermos aos resgates do MTG e ao modo como são feitos, fazem-se

necessárias mais algumas palavras sobre a região reinventada nas entidades tradicionalistas.

O Rio Grande do Sul constituiu-se nos moldes de uma economia agropecuária voltada para

o abastecimento do mercado interno brasileiro, sendo conhecido como o “celeiro do país”

2
Regulamento do Concurso de Peões Tropeiros. Capítulo VII Das Provas e Critérios de Avaliação. A fonte
está disponível em www.ftgpc.org.br.

102
(Pesavento, 1982: 65). Do século XVIII, quando é iniciada a colonização tardia do estado,

até meados da Revolução Farroupilha, ocorrida entre os anos de 1835 e 1845, a região da

Campanha era o Rio Grande do Sul para o Brasil, uma vez que se constituía no único

espaço gaúcho incorporado à economia nacional (Oliven, 1992a: 69).

Nos séculos XVII e XVIII, a Campanha foi palco de muitas disputas entre

espanhóis e portugueses pela ocupação dos territórios. Pesquisadores afirmam que a

mobilidade das divisas fronteiriças e os muitos conflitos armados imprimiam àquela região

um caráter militar (cf. Azevedo, 1981; Pesavento, 1982 e Costa, 1988). O povoamento do

espaço acontece em função dessa questão: a cidade de Santa Maria surge de um

acampamento militar; Bagé de um forte espanhol instalado na região; e Alegrete de um

acampamento português (Costa, 1988: 32). A própria denominação “Campanha” tem um

significado militar: “Os comandos da governadoria militar da região eram denominados no

século XIX de Comandos de Campanha” (op.cit.: 32) . Na opinião da historiadora Sandra

Pesavento (1982), o permanente estado de alerta da população propiciava a sua renovada

militarização, onde todo homem válido era um soldado em potencial (: 22).

A região foi o palco da Revolução Farroupilha. A rebelião foi sustentada pelos

estanceiros gaúchos, que mobilizaram sua peonada para a guerra. O que os revolucionários

almejavam era a independência política com relação ao domínio do centro, mantendo,

contudo, os laços econômicos com o resto do país através da continuidade do fornecimento

de charque ao mercado interno. Dentro da percepção que essas pessoas tinham dos

acontecimentos, o centro era acusado de má gestão do dinheiro público, de realizar gastos

supérfluos e de onerar o Rio Grande do Sul com impostos, sem indenizá-lo por danos

sofridos (Pesavento, 1982: 38-39).

103
Ocorrida entre os anos de 1835 e 1845, a Revolução Farroupilha é cultuada pelos

CTGs. É comemorada anualmente, entre os dias 14 e 20 de setembro, por ocasião da

chamada Semana Farroupilha. Nesse período, muitos tradicionalistas vão para o trabalho e

passeiam pelas ruas, pilchados; lojas, boutiques e demais casas comercias do Rio Grande

do Sul ornamentam suas vitrines com peças de arreios, laços, chimarrão e outras marcas da

cultura material do tradicionalismo (Teixeira, 1988: 61). Em Porto Alegre, a data máxima

da Semana Farroupilha, 20 de setembro, é comemorada com um desfile numa das mais

importantes avenidas da capital. Nesse festejo, o Governador do Estado passa em revista, o

piquete dos tradicionalistas para o qual são utilizados cavalos cedidos pelo Exército

(Oliven, 1984: 58).

A partir de 1870, a região da Campanha passa a perder espaço para a metade

setentrional do Estado, terreno dos pequenos produtores agrícolas alemães e italianos. De

acordo com Ruben George Oliven (1992a) nos dias atuais, a Campanha ocupa uma posição

de retaguarda nos quadros econômicos do estado e sofre com as mazelas do

subdesenvolvimento. Apesar da decadência da Campanha e do crescimento de outras

regiões, a representação do gaúcho com suas expressões campeiras, envolvendo o cavalo e

o chimarrão, serviu e continua servindo de modelo para os vários CTGs espalhados pelo

mundo (op.cit.: 70). O passado que teria ocorrido em uma parte do estado, repleto de

guerras e lutas, profundamente identificado com uma origem rural, é retomado pelo

tradicionalismo como forma de construir um tipo regional para o estado do Rio Grande do

Sul: o gaúcho.

O primeiro Centro de Tradições Gaúchas, o 35 CTG, foi fundado em 1948, em

Porto Alegre. Seus fundadores eram estudantes secundários, quase todos vindos do interior

do estado. Eram filhos de pequenos proprietários rurais ou de estanceiros falidos. Os

104
precursores do tradicionalismo, embora cultuassem valores ligados ao latifúndio, não

tinham necessariamente origem na oligarquia rural, evidenciando que “desde o seu começo

o MTG é um movimento urbano que procura recuperar os valores rurais do passado”

(Oliven, 1992a: 76).

Para Luiz Carlos Barbosa Lessa (1992), um dos idealizadores do primeiro Centro de

Tradições Gaúchas, o que os unia era o fato de serem moços do interior e de pertencerem à

chamada “Geração Coca-Cola”. Nas palavras desse inventor, o “duplo pertencimento”

significava um sufoco por dois motivos. O primeiro deles diz respeito ao constrangimento

de “ser uma pessoa identificada com valores do universo rural” no meio urbano. Lessa

desabava: “a prostituta, o homossexual e o negro podiam transitar livremente pela Rua da

Praia 3, mas um „grosso‟, trajado de botas e bombachas, à campeira, seria inapelavelmente

alvo de agressivas chacotas” (op. cit.: 75). O segundo motivo refere-se ao desconforto

sentido pelos idealizadores do Movimento frente à penetração maciça da cultura norte-

americana no cinema, na música, nas gírias, na moda, nas histórias em quadrinhos, etc.

Inserindo-se numa época em que era valorizado mais do que nunca, a identificação

com traços da modernidade, os idealizadores dos Centros de Tradições Gaúchas dizem ter

inventado o tradicionalismo como estratégia de inserção em um novo ambiente. Na

perspectiva de seus mentores, o tradicionalismo surge como uma reação ao processo de

modernização. Em 1954, Barbosa Lessa (1976) dissertava sobre o valor e o sentido do

Movimento:

A cultura e a sociedade ocidental estão sofrendo um assustador processo de desintegração


(...). É nos grandes centros urbanos que esse fenômeno se desenha mais nítido (...). Mestres
da moderna Sociologia chegaram à conclusão de que problemas sociais da atualidade são

3
Uma das ruas mais movimentadas do centro de Porto Alegre.

105
causados, ou incentivados, pelo relaxamento do controle dos costumes e das noções
tradicionais de cada cultura (op. cit.: 4).

Fazendo uma releitura de análises sobre os fenômenos sociais da modernidade e

citando Donald Pierson e Ralph Linton, Lessa coloca o MTG como uma solução frente à

invasão iminente de novos hábitos e idéias. O Movimento seria um “retorno moral aos

tempos dantes”, “um resgate do passado e da Esperança perdida”. Parafraseando o autor, o

escritor Cyro Martins, no livro Porteira Fechada, contou a saga de gaúchos ameaçados

pelas repentinas mudanças no campo causadas pela mecanização, onde muitos perderam

terras, casas e seus cavalos, cedendo a um desígnio doloroso do gaúcho a pé. Para Lessa,

faltou a Cyro Martins, contar a saga do “guri a pé”, esta coube a ele e seus companheiros

(Lessa, 1992: 76). E essa história foi escrita ao vivo e a cores.

Mesmo criticado por muitos sul-rio-grandenses que não querem ser identificados

com os traços resgatados pelo MTG (cf. Dacanal, 1992 e Golin, 1983), o tradicionalismo

ocupa um espaço fundamental na criação de um estereótipo regional. Nacionalmente, o

estado do Rio Grande do Sul é reconhecido a partir da figura do gaúcho como um tipo

bravo, guerreiro e identificado com valores rurais. Tais classificações procuram estabelecer

distinções e demarcar fronteiras.

Quando se pretende comparar o Rio Grande do Sul ao resto do país, apontando diferenças e
construindo uma identidade social, é quase inevitável que este processo lance mão do
passado rural do estado e da figura do gaúcho, por serem estes os elementos emblemáticos
que permitem ser utilizados como sinais distintivos (Oliven, 1992a: 128).

106
O alcance dos Centros de Tradições Gaúchas.

Embora o MTG não controle todas as expressões culturais do Rio Grande do Sul,

seu crescimento e raio de influência são significativos. Relembrando Oliven (1992a), o

MTG possui intelectuais que produzem escritos e que ocupam posições importantes. No

estado gaúcho, os tradicionalistas são constantemente nomeados para cargos públicos,

principalmente em áreas culturais. Leis estaduais são criadas visando à propagação do

tradicionalismo: em 1966, uma lei oficializa o hino farroupilha como o hino do Rio Grande

do Sul; um terreno é doado pelo governo Triches (1971-1975) para que o pioneiro “35

CTG” 4, fundado na capital gaúcha em 1948, construísse uma sede; em 1988, outra lei

institui o ensino do folclore nas escolas estaduais; e em 1989, a pilcha 5 é oficializada como

o traje de honra do estado (op. cit.: 86).

Em Porto Alegre, foi criada a Estância da Poesia Crioula, uma espécie de Academia

de Letras voltada às causas tradicionalistas. Pelas cidades do estado, propagam-se os

festivais de canções, dedicados à elaboração de composições tradicionalistas e reunindo

milhares de jovens; além de rodeios e outros eventos nos quais são revividas as lides

campeiras das estâncias (Oliven, 1992a: 87). São realizadas missas e casamentos crioulos,

espécies de adaptações dos rituais católicos ao universo tradicionalista. Essas adaptações

vão desde a modificação na linguagem litúrgica até o uso de um traje especial pelo

sacerdote.

4
A denominação faz alusão à Revolução Farroupilha, iniciada em 1835. O 35 CTG serviu de modelo para a
fundação de vários outros CTGs.
5
As pilchas são os trajes utilizados pelos freqüentadores dos CTGs. A indumentária masculina é composta
por uma calça, denominada bombacha, camisa e muitos acessórios como cintos, botas de couro, lenços,
chapéu, etc. As mulheres não fazem uso de muitos acessórios. O traje feminino reduz-se a um longo vestido
embaixo do qual estão muitas anáguas, sapatos tipo “boneca” e cabelos presos por grampos.

107
O espaço ocupado pelo tradicionalismo no Rio Grande do Sul encontra ecos na

economia do estado. Segundo informações da Secretaria da Indústria e Comércio de Porto

Alegre, o MTG movimenta cerca de duzentos milhões de reais ao ano. Em um seminário

organizado pela Câmara Municipal de Porto Alegre, em 1999, Cláudio Kneirin do Instituto

Gaúcho de Tradição e Folclore, apresenta alguns dados. O mercado ervateiro, falido na

década de setenta, devido ao baixo consumo do produto, frente à explosão do

tradicionalismo na década de oitenta, integra aproximadamente duzentas e cinqüenta mil

pessoas, sem contar com a mão-de-obra das mais de trezentas indústrias de erva-mate. O

MTG aquece também o mercado de empresas do setor de vestuário, e movimenta as

indústrias de couro, com a produção de botas e cintos, e de metalurgia, com a fabricação de

facas, espetos, bombas de mate e esporas 6.

A dispersão das entidades tradicionalistas extrapola os limites do Rio Grande do

Sul. Na “Página do Gaúcho” 7, um dos vários endereços na internet dedicado à divulgação

do MTG, são catalogadas mais de oitocentos CTGs, distribuídos em praticamente todos os

estados brasileiros e em países como Estados Unidos, Paraguai, Portugal, Holanda e Japão.

Em outras fontes 8, os números aumentam, chegando a estimativa de quatro mil entidades

espalhadas pelo mundo. Não existe um consenso a respeito dessas estatísticas. Os números

variam de acordo com a fonte consultada. O fato é que os Centros de Tradições Gaúchas

propagam-se para além do Rio Grande do Sul, atingindo vários estados brasileiros e

ultrapassando as fronteiras do Brasil.

6
KNERIN, Cláudio. Globalização e as Culturas Regionais. In: SEMINÁRIO GLOBALIZAÇÃO E
CULTURAS REGIONAIS. Comissão de Educação, Cultura e Esportes da Câmara Municipal de Porto
Alegre. Porto Alegre, 1999. Resumo. Mimeografado.
7
Os dados estão na seguinte fonte eletrônica: www.paginadogaucho.com.br.
8
Vide www.terragaucha.com.br e www.santanadolivramento.com.br

108
O CTG Jayme Caetano Braun.

A presença dos gaúchos no Planalto Central é bastante significativa. Existem

cidades no interior de Goiás, cujas populações são formadas basicamente por gaúchos,

principalmente aqueles que migraram em busca de terras para plantações. Na capital do

país, com exceção daquelas pessoas localizadas na área do Programa de Assentamento

Dirigido (PAD/DF) implantado em 1977 9, a principal atividade econômica dos migrantes

gaúchos não é a atividade agrícola. Muitos vieram transferidos em função de cargos

públicos ou para cumprir obrigações militares. É nesse universo que estão inseridos os

freqüentadores do CTG Jayme Caetano Braun.

Atualmente, no Distrito Federal existem quatro CTGs: 1) o CTG Sinuelo da

Saudade, localizado na região rural do PAD/DF; 2) o CTG Gaudérios do Planalto Central,

situado na cidade satélite de Sobradinho; 3) a Estância Gaúcha do Planalto, próxima ao

maior shopping da cidade, o Park Shopping; 4) e o CTG Jayme Caetano Braun que fica

num espaço que abriga os principais clubes de Brasília, o Setor de Clubes Desportivos Sul.

O CTG Jayme Caetano Braun é vizinho do mais novo cartão-postal da cidade: a

monumental ponte JK que dá acesso a uma das áreas mais valorizadas da capital federal, o

Lago Sul.

Selecionei como objeto de pesquisa, o CTG Jayme Caetano Braun. A escolha deve-

se a algumas razões. Tais critérios dizem respeito a sua localização e visibilidade. A

entidade está localizada em uma área central e muito valorizada de Brasília. Talvez, por ter

essa localização mais central, entre a Esplanada dos Ministérios e o Lago Sul, o CTG

9
Para mais informações, vide Introdução.

109
consegue reunir em alguns de seus eventos um grande número de pessoas não

necessariamente gaúchas.

Antes da sede atual, muitos dos freqüentadores do CTG Jayme Caetano faziam

encontros em churrascarias ou clubes. Esses encontros datam do final da década de

sessenta, época em que, segundo os informantes, os gaúchos em Brasília podiam ser

contados nos dedos. A sede do CTG Jayme Caetano Braun, foi inaugurada em 04 de abril

de 1987. Sua estrutura foi erguida com contribuições de gaúchos dispostos a construir um

espaço próprio para a “preservação da cultura”. Uma pessoa doava um saco de cimento,

outra, telhas e assim, foi construído o prédio. O espaço ocupado pelo CTG foi concedido na

época pelo Governo do Distrito Federal. Atualmente, existe o risco iminente da perda do

terreno, em função de um pleito do atual Governo para reaver a área.

O espaço ocupado pelo CTG é enorme. O Galpão é o principal lugar no qual são

realizados vários dos eventos promovidos pela entidade. Constitui-se por um gigantesco

salão forrado com um ótimo piso e coberto por um novíssimo teto de PVC. No Galpão,

existem confortáveis banheiros, churrasqueiras, bar, cozinha, salas para a patronagem,

palco fixo e um espaço destinado aos jogos de bocha 10. O espaço também conta com um

segundo pavimento que se converte numa alternativa para acomodar o público nos eventos

de grande proporção. Os freqüentadores dizem que o Galpão tem capacidade para abrigar

mil e duzentas pessoas sentadas. A área em que está localizada a sede, é bastante extensa.

Ela comporta uma casa para o caseiro; churrasqueiras externas ao Galpão principal; um

pequeno galpão improvisado, onde são realizadas as Noites de Poesia; e um estacionamento

que circunda todo o espaço.

10
Segundo Augusto Meyer (1975), o termo bocha corresponde ao italiano boccia, bola de jogar de madeira,
empregada em jogo italiano (: 46). O jogo foi transmitido por imigrantes italianos no Brasil, tornando-se
muito popular no Rio Grande do Sul.

110
O nome do CTG é uma homenagem ao poeta Jayme Caetano Braun. Jayme Caetano

Braun, falecido em 1999, escreveu livros e gravou discos. Era considerado um pajador, um

poeta que improvisava versos geralmente em desafio com um outro, ao som de um violão.

Foi membro da academia “Estância da Poesia Crioula” em Porto Alegre. Suas obras

também estão assinadas por pseudônimos como Piraju, Martín Fierro e Anda-rengo. O

CTG da capital federal não é o único que recebe o seu nome, ressaltando o seu importante

papel para a cultura tradicionalista.

Em Brasília, o CTG Jayme Caetano Braun têm aproximadamente cerca de duzentos

componentes, inseridos na categoria de sócios. Nessa categoria estão todos aqueles que

contribuem com mensalidades. Eles podem ou não freqüentar o espaço assiduamente. Ser

sócio significa não somente contribuir com o CTG, como também gozar de alguns

benefícios: descontos em almoços, jantares e bailes promovidos pela entidade.

O CTG é dirigido por uma diretoria que se renova de dois em dois anos. Essa

comissão é eleita por sócios que estejam em dia com as mensalidades. A diretoria, ou

melhor, a patronagem está estruturada nos seguintes cargos: patrão, ou seja, o presidente;

capataz geral, o administrador; capataz, suplente do administrador; primeiro sota capataz,

primeiro secretário; segundo sota capataz, segundo secretário; primeiro agregado da

guaiaca, tesoureiro; e o segundo agregado da guaiaca, suplente do tesoureiro. A

patronagem conta também com alguns cargos de confiança: agregado das leis, uma espécie

de advogado do CTG; agregado da informática, responsável pela atualização do site do

CTG na internet; posteiro campeiro, responsável pelas competições do CTG nos rodeios

gaúchos; posteiro galponeiro, responsável pela manutenção do Galpão, etc. Fazer parte da

diretoria significa dedicar uma boa parte de seu tempo ao CTG. Normalmente, essas

111
pessoas passam todos os seus finais de semana e algumas noites da semana em reuniões,

eventos e discussões no CTG.

A criação de toda a ambientação especial, cuja utilização dos termos referidos no

parágrafo anterior é apenas um exemplo, pode fazer com que em algumas situações até

mesmo o pesquisador se sinta como um “peixe fora d‟água”. Assim foi meu primeiro

contato com os gaúchos tradicionalistas, por ocasião do XI Festival Regional de Arte e

Tradição Gaúcha do Planalto Central, mais conhecido como Rodeio Gaúcho.

O Rodeio Gaúcho, promovido pela Federação Tradicionalista Gaúcha do Planalto

Central, acontece anualmente, marcando o encerramento das festividades do ano. Em 2003,

Brasília foi a sede do Festival. Os CTGs participantes vieram de localidades de Minas

Gerais, Oeste Baiano, Goiás e Distrito Federal. Eram aproximadamente dez CTGs e seus

representantes ficaram um final de semana acampados no Parque de Exposições de

Brasília, localizado na Granja do Torto. Durante esse período ocorreram campeonatos de

dança, poesia, contadores de causo, música, etc. Os competidores estavam distribuídos em

várias categorias: infantil, juvenil, adulto e xirú. O evento era antes de tudo um campeonato

entre os CTGs com torcidas frenéticas empunhando fitas, bandeiras, bexigas, apitos,

cornetas e bumbos, e competidores com os nervos à flor da pele. Ouvia-se com grande

freqüência coisas do tipo: “Minhas pernas não param de tremer” e “Que frio na barriga!”.

Além das respirações ofegantes, quase todos os competidores faziam o sinal da cruz antes

das apresentações.

Em 2002, no mesmo espaço onde foi realizado o Rodeio Gaúcho, presenciei um

encontro das Folias de Reis do Distrito Federal e do Entorno. Os grupos de foliões

acampavam nos galpões do Parque de Exposições durante um final de semana de muita

música, dança e comida. Os dois eventos eram bastante semelhantes, a não ser por uma

112
diferença gritante. O público que prestigiou o Encontro de Folias era muito variado:

pessoas que moravam por ali perto, famílias que se deslocaram do Plano Piloto com a

justificativa de que gostavam “daquilo”, jornalistas e muitos estudantes universitários. No

Rodeio Gaúcho, as pessoas que circulavam pelo ambiente eram representantes dos CTGs e

estavam todas pilchadas. Sem pilcha, apenas eu e um rapaz com cabelo “rastafari” que

operava o som. Duas perguntas me surgiram na época: será que tais manifestações

apresentam menor identidade com o público brasiliense? Tais manifestações são eventos

fechados, acessíveis apenas àqueles que deles participam?

Tentando achar respostas para as minhas inquietações, resolvi visitar o CTG Jayme

Caetano Braun. E, ao entrar pela primeira vez em um CTG na capital federal, tive um

sentimento dúbio em relação a uma placa afixada na entrada do Galpão com os seguintes

dizeres em letras maiúsculas:

AO ENTRARES NESTE GALPÃO, PENDURA NO CABIDE DE TUA HUMILDADE, AS


TUAS DIFERENÇAS E PRECONCEITOS E SE MESMO ASSIM PRESERVARES
ALGUM ORGULHO QUE ESTE SEJA O DE SER GAÚCHO.

Estava sendo saudada ou advertida?

Nem todos os eventos realizados pelo CTG Jayme Caetano Braun são acessíveis

apenas àqueles que realmente estejam inseridos nas causas tradicionalistas. Com o passar

do tempo, percebi que o público era bastante variado, pelo menos em algumas situações.

Em outras palavras, muitos não gaúchos freqüentam o CTG, na condição de visitantes ou

de convidados.

Além do fato ressaltado no parágrafo acima, em eventos de menores proporções e

com um público “menos diversificado”, pude conhecer algumas pessoas pilchadas que não

113
tinham nascido no Rio do Grande do Sul. Não estou me referindo apenas aos descendentes

dos migrantes aqui instalados, e sim a cariocas, paulistas ou goianas que se pilcham para

acompanhar seus maridos gaúchos nos eventos tradicionalistas.

O fato destacado no parágrafo anterior não é motivo para estranhamentos. Essas

questões já foram apontadas por alguns pesquisadores (cf. Costa, 1997 e Beserra, 1998).

Rogério Haesbaert da Costa (1997) chama atenção para a presença cada vez maior de não

gaúchos nos CTGs, principalmente aqueles localizados fora do estado do Rio Grande do

Sul. Segundo o autor, mesmo não sendo sulistas, essas pessoas identificadas com valores da

classe média ajustam-se ao ambiente dos CTGs. Exemplificando a questão, Costa pontua a

existência de CTGs em Mato Grosso, dirigidos por mineiros; e a presença maciça em

Embu, interior paulista, de freqüentadores paulistas e descendentes de nordestinos (op. cit.:

89).

Creio que a análise sobre a apropriação de traços da cultura gaúcha feita por

mineiros, goianos, paulistas e nordestinos, que não somente freqüentam os CTGs, como

ocupam posições importantes dentro deles, seria muito interessante. Esta tese não está

preocupada especificamente com a presença não gaúcha no CTG. Até porque no contexto

aqui estudado, a presença de não gaúchos frente ao universo dos gaúchos é muito pequena.

Todavia, acredito que as motivações que levam mineiros, goianos e paulistas aos CTGs, são

as mesmas que levam os gaúchos, depois de muito tempo vivendo fora de seus contextos

originais, a permanecerem nessas entidades. Essas questões dizem respeito aos sentimentos

de pertença, e ao estabelecimento e manutenção de laços sociais.

Enfatizar essa dimensão não é negar que todas as práticas fomentadas nos CTGs

giram em torno de fatos considerados por seus promotores como tradicionais de uma

região, o Rio Grande do Sul. E sem dúvida alguma, os eventos realizados no CTG Jayme

114
Caetano Braun são modos de reunir algumas pessoas que se deslocaram do Sul para

Brasília. Reunidos eles falam em nome da tradição gaúcha e a representam frente aos

outros.

São vários os eventos realizados pelo CTG Jayme Caetano Braun que são

construídos e inventados a partir de uma constante referência ao Rio Grande do Sul. Todas

as sextas-feiras são realizadas as Sextas Nativas. São eventos onde qualquer um pode

entrar, basta pagar o que for consumir. São noites com dança, poesia e comidas “típicas”

como o arroz carreteiro, galeto e churrasco. Apesar de ser um evento aberto, normalmente,

as pessoas que lá aparecem são membros do CTG e às vezes, algum sócio convida um

amigo para conhecer o Galpão. Mensalmente, são feitas as Noites da Poesia Crioula. Esses

eventos contam com a presença de poucas pessoas. O público é composto por alguns

homens pilchados que numa noite de quarta-feira, recitam poesias à luz de uma fogueira, ao

som de um violão e uma gaita. Finalmente, coroando os eventos promovidos, a cada

primeiro domingo do mês, o Costelão reúne uma quantidade significativa de gaúchos e não

gaúchos no Galpão, a fim de saborearem uma deliciosa costela assada na brasa e

apreciarem as apresentações de danças gaúchas. Todos esses eventos serão os assuntos do

próximo capítulo.

115
CAPÍTULO V

Noite da Poesia, Sexta Nativa, Costelão, Missa Crioula e Semana Farroupilha: os

vários ritos do CTG Jayme Caetano Braun.

Neste capítulo serão analisados alguns eventos que integram a dinâmica do CTG

Jayme Caetano Braun. Priorizando a perspectiva etnográfica, tomo tais eventos enquanto

rituais. Eles são reveladores de processos simbólicos que estão em jogo na vivência de seus

realizadores. As situações a serem analisadas expressam um certo tipo de sentimento e de

visão de mundo, contribuindo para a construção e legitimação de imagens fomentadas pelos

seus promotores.

A invenção dos símbolos.

No CTG Jayme Caetano Braun são vários os eventos destinados à divulgação do

tradicionalismo: Semana Farroupilha, Sexta-Nativa, Costelão, Noite da Poesia e Missa

Crioula. Além desses eventos, existem outras “invenções” que procuram caracterizar de

forma especial o ambiente do CTG. Refiro-me a determinados objetos que dão um certo

tom de “especialidade” ao espaço. Ao entrarmos no CTG, temos a sensação de que o

cenário para a realização dos ritos está permanentemente montado.

O cenário é organizado fazendo uso de uma série de recursos capazes de identificar

o lugar como sendo especial. Na entrada, vemos a bandeira do estado do Rio Grande do

Sul. Dentro do prédio, logotipos da entidade; quadros com gravuras de cavalos, laços,

arreios e chimarrão; avisos com a programação dos eventos culturais; estantes repletas de

116
troféus adquiridos pelo CTG em campeonatos nacionais e regionais de poesia, de dança e

bocha; e fotografias de prendas e ex-patrões.

Bandeiras, logotipos, quadros, fotografias e troféus são representações visuais

reconhecidas pelos informantes como símbolos do CTG. Símbolo é uma categoria nativa e

é usada conscientemente. O motivo pelo qual uma cultura elege itens como sendo seus

símbolos, já foi investigado por muitos estudiosos. Lembremos de Edmund Leach (1983):

“O comportamento simbólico não só diz, como faz alguma coisa” (: 140). A escolha de

símbolos por uma determinada cultura não é aleatória. O comportamento simbólico não é

de forma alguma inconsciente. Tal conduta possibilita a comunicação, uma vez que a

linguagem simbólica é compartilhada. E é justamente através da consciência de um

conjunto ritualmente compreendido de simbolizações que o símbolo desempenha o seu

papel. Assim, no CTG, símbolo é tudo aquilo que tem a intenção explícita de significar

algo.

Por trazem à tona idéias importantes e por resumirem questões implícitas em outras

opções simbólicas, nos deteremos na análise dois símbolos do CTG Jayme Caetano Braun:

a bandeira e o logotipo. A bandeira foi idealizada pelos próprios membros da entidade e

está reproduzida abaixo 1:

1
Ilustração retirada do site do CTG: www.ctgjcb.com.br.

117
(...) no formato retangular (1,35 cm x 1,60 cm) em tecido, com duas fazes, fundo branco,
tendo na sua parte superior à direita a legenda “Tradição e Folclore” em letras maiúsculas
na cor vermelha. À direita na parte inferior a estilização de três colunas das seis que
compõem as do Palácio da Alvorada, tendo cada uma pela ordem, no seu interior, as letras
CTG na cor verde. À esquerda uma cuia de chimarrão em primeiro plano, na cor marrom
com as letras JCB em amarelo escritas em seu bojo, bocal de prata tendo no seu interior
uma porção de erva-mate, com uma bomba de chimarrão de prata, com resfriador e chupeta
de ouro. À esquerda um fogo de chão com uma chaleira preta pendurada numa trempe de
ferro por uma corrente. Abaixo a data de fundação da Entidade, na cor verde. Na parte
superior e inferior três listras de cinco centímetros cada uma nas cores verde, vermelho e
amarelo (Estatuto Social, páginas 5 e 6) 2.

A descrição acima, tão precisa e rica em detalhes, não foi feita por nenhum

antropólogo, e sim pelos próprios nativos. É interessante pontuarmos alguns detalhes tão

bem enfatizados pelos informantes. Por exemplo, a escolha das cores e dos objetos. As

principais cores da bandeira do CTG são as mesmas da bandeira do Rio Grande do Sul:

verde, vermelha e amarela. Os idealizadores do símbolo recorrem também aos objetos

considerados típicos do estado, como o chimarrão e todos os seus apetrechos, bomba, erva-

mate, etc. Esses elementos da cultura gaúcha não estão localizados num lugar qualquer da

bandeira. O chimarrão é disposto à esquerda do fogo de chão sobre o qual repousa “uma

chaleira preta, pendurada numa trempe de ferro por uma corrente”. O fogo de chão é uma

espécie de fogueira, utilizada em alguns rituais do CTG. O fogo de chão, a trempe e a

chaleira presa por uma corrente são considerados pelos informantes como elementos

tradicionalíssimos por fazerem alusões a um passado rústico e rural. No entanto, não

bastam as referências às cores e aos objetos típicos do estado do Rio Grande do Sul. Tais

referências precisam estar situadas no presente. Por isso, na bandeira do CTG existem

elementos que localizam a entidade no cenário de Brasília. Daí, as colunas do Palácio da

Alvorada.

Na internet ou nas paredes do Galpão, o CTG é identificado a partir de uma figura.

2
Também disponíveis no site do CTG.

118
O desenho 3 nos faz lembrar a entrada de uma fazenda. O nome do CTG está gravado numa

placa de madeira erguida por duas toras. A entrada dessa hipotética estância não tem

porteira, mas tem dois guardiões. Do lado direito de uma das toras que sustentam a placa

indicando o nome do CTG, está o “Laçador”. A imagem é a de um homem portando vários

apetrechos típicos do gaúcho dos pampas. Em Porto Alegre, a figura do Laçador é um

monumento que saúda os visitantes numa das entradas da cidade. Do lado esquerdo da

placa indicativa do CTG, montado em um cavalo, está o poeta tradicionalista Jayme

Caetano Braun, é claro, pilchado. Próximo ao poeta, a bandeira do Brasil. Como pano de

fundo do desenho ou sugerindo ser a própria estância, vemos o esboço do mapa do Rio

Grande do Sul, colorido com as cores da bandeira do estado. A figura é construída a partir

da apropriação de um símbolo nacional, a bandeira do Brasil, e de traços que fazem

referências ao universo rural dos pampas gaúchos (o Laçador, os trajes do poeta Jayme

Caetano Braun, o cavalo e a simulação da estância, etc.).

3
Ilustração retirada do site do CTG: www.ctgjcb.com.br.

119
O processo de construção social da imagem do CTG Jayme Caetano Braun e de

seus participantes, envolve a invenção de uma série de objetos como bandeiras, logotipos,

placas, troféus e galerias de fotos. Fazendo uso das palavras de Pierre Bourdieu (1989)

coisas, emblemas e bandeiras – “representações objetais” - são utilizados nas lutas “... pelo

monopólio de fazer ver e fazer crer, de dar a conhecer e de fazer reconhecer” (: 113). A

todo o momento, os freqüentadores do CTG lutam pela visualização, comprovação,

conhecimento e reconhecimento de uma imagem. Ao evocar representações objetais,

notamos a necessidade de diferenciar aquele espaço e seus freqüentadores. Ao escolher

objetos e transformá-los em símbolos, esses gaúchos estabelecem fronteiras, limites e

identidades.

No CTG Jayme Caetano Braun, a demarcação da diferença é feita pela invenção de

símbolos e pela sua utilização numa narrativa ritual extremamente rica e variada. Essas

situações podem se converter nas principais ferramentas utilizadas pelos informantes para a

construção de uma dada realidade. Uma realidade que se define pela concordância, ou seja,

pelo seu reconhecimento. O rito e o símbolo além de comunicar, contribuem para a

integração social e conseqüentemente, para a reprodução social da realidade idealizada. As

invenções feitas no CTG Jayme Caetano Braun - algumas de forma mais intensa do que

outras - exercem uma função integradora, refletindo e reforçando imagens difundidas por

seus promotores.

O evento mais genuíno do CTG.

As Noites da Poesia são realizadas mensalmente, sempre às quartas-feiras. São

eventos que se dão num espaço improvisado, fora do Galpão principal do CTG. O espaço é

120
coberto, mas bastante pequeno. Nele, estão mesas e cadeiras, e um bar onde é possível

comprar bebidas e tickets para o jantar. Um elemento fundamental do cenário, em torno do

qual todo o evento irá transcorrer, é o fogo de chão. Essa fogueira, acesa no centro do

galpão improvisado, serve também para preparar o jantar que acompanha a Noite. O espaço

é basicamente, preenchido por homens.

Os informantes definem as Noites da Poesia Crioula como momentos em que

homens estão reunidos em torno de um fogo de chão, como faziam os peões da estância ao

final de um dia de trabalho para tomar chimarrão e contar “causos”. Os causos são

narrativas orais, contadas de um modo especial. Os episódios narrados se passam no

universo rural da Campanha do Rio Grande do Sul. E quase todas histórias fazem menção a

aspectos extraordinários ou sobrenaturais. São relatados feitos na primeira pessoa do

singular ou do plural, como se o locutor tivesse vivenciado o fato. Vamos ao causo:

Esse causo é do meu velho pai, lá da região de Bagé. Ele era criador de ovelha. E um dia ele
estava sentado no pátio, por volta das três da tarde. E veio um senhor que queira comprar
cinqüenta ovelhas. Meu pai disse que não queria vender. E de tanto o cara encher o saco do
meu pai, meu pai...: “Tá”. Aí ele virou para um cachorro que ele tinha e disse: “Paisano, vai
lá no portão dos fundos e me traz cinqüenta”. Daqui a pouco, vêm aquelas ovelhas.
Cachorro do lado do pai, pá..., conta daqui, conta de lá... quarenta e nove. “Falta uma!”.
Daqui a pouco, o cachorro batendo nas botas do meu pai, pá, pá: “Paisano, Paisano, estás
ficando caduco. Te mandei trazer cinqüenta e você me trouxe quarenta e nove”. Falar o
que? Cachorro meteu o rabo no meio das pernas e entrou Galpão adentro. E nós fomos
carregar as ovelhas. Carregamos, tudo bem! Quando nós voltamos tinha uma surpresa pra
nós e tristeza pro meu pai. O cachorro tinha se enforcado com uma junta de boi. O cachorro
se matou de vergonha porque errou na conta.

No CTG Jayme Caetano Braun, os “causos contados” são poucos. Quando

enunciados, tomam lugar no ritual antes da declamação das poesias. Como se fossem

preâmbulos. Às vezes, são utilizados pelo declamador como um recurso para acalmar os

nervos:

121
Pessoal, eu tô mais nervoso que gato em dia de faxina. Por isso, eu vou contar um causo pra
me acalmar.

Os causos não são o foco das Noites da Poesia Crioula. Os eventos são preenchidos

prioritariamente com declamações de poemas, recitadas ao som de um violão e de uma

gaita. As poesias declamadas não são de autoria dos próprios intérpretes, ou seja, são de

poetas tradicionalistas como Jayme Caetano Braun, Apparício Silva Rillo, Glaucus Saraiva,

Limas Costa, Adair de Feitas, Firmino de Paula Carvalho, etc.

A Noite da Poesia Crioula é considerada pelos nativos como um dos eventos mais

especiais realizados pelo CTG. Antes de iniciarem as declamações, os informantes

enfatizam tal percepção e os avisos são corriqueiros:

Nada mais genuíno, nada mais autêntico do que nós aqui reunidos em volta desse fogo de
chão, onde os tropeiros se reuniam após a sua lida de campo para acalmar o gado e esperar
o dia surgir. Ao redor de muitos fogos de chão é que foram tomadas tantas decisões que
vieram formar a história do Rio Grande e do país.

Isso aqui é um patrimônio ideológico e cultural que herdamos de nossos antepassados.

Fazemos as Noites de Poesia de forma genuína e não distorcida.

O gaúcho que tanto lutou pela liberdade, jamais deixará preso esse orgulho de ser gaúcho.
Por isso, estamos aqui hoje em volta desse fogo de chão.

Essas falas tentam criar no ambiente um clima de solenidade e publicizar a especialidade do

evento. Alguns cerimoniais são realizados de modo tão impecável e solene que podem

sugerir ao observador eventual a idéia de que sempre foram assim (Cannadine, 1997: 112).

Na Noite da Poesia Crioula, a “solenidade” é construída em cima de alicerces como

as noções de autenticidade, pureza, permanência, passado e de uma espécie de “orgulho de

ser gaúcho”. Essas noções são confirmadas pela própria composição do cenário do ritual: o

122
fogo de chão, um elemento que remete ao passado; e o público que comparece aos eventos,

constituído majoritariamente por gaúchos, trajando a veste de honra do estado do Rio

Grande do Sul. O modo como os informantes organizam e desempenham a situação ritual,

simula a autenticidade dos costumes. As idéias de autenticidade e de pureza são também

afirmadas por uma verbalização direta, insistente e sem entremeios do que o que está se

passando ali é genuíno, é um patrimônio, é uma herança de antepassados, é, enfim, uma

cerimônia.

Os informantes assumem a postura explícita da preservação dos “costumes”. Eles

são os defensores. Por isso, esses homens decoram e enaltecem fatos e heróis de outrora,

projetando o passado no presente. É o que observamos nos conteúdos das poesias

declamadas. Os poemas fazem referência a eventos, valores e sentimentos que remetem ao

passado rural da região da Campanha.

É importante estar constantemente resgatando e reinventado o passado rural, na

medida em que é esse o arcabouço simbólico dos ritos do CTG. O papel ocupado pelo

passado é tal que as “mudanças” são rechaçadas. As alterações no que é entendido como

tradição, são encaradas como maléficas.

Nas Noites de Poesia, muitos dos versos recitados fazem menção às mudanças

ocasionadas pela modernidade. E o saudosismo toma conta das poesias. O progresso é visto

como negativo. Ao contrário, o passado, ou melhor, o ambiente rural, é relembrado com

saudade e idealizado de forma extremamente idílica:

123
Na mente cansada de um tempo
do velho tropeiro, Que o tempo implacável matou
Se formam imagens (...)
Esse mal que muda as pessoas Que bom que não vêem mais
Transforma paisagens seus olhos
E nunca se cansa A sanga,
(...) o espólio das grandes barragens
E como se tudo o que fez E as toscas imagens
não bastasse das terras lavradas
Tirou dos seus olhos, Seus olhos que um dia
A força de ver Brilharam de amor
Porém, que ironia, Escravos da flor
o taura sorri que é a mulher,
O tempo maléfico Bem querer...
se quer se deu conta Não vêem essa imagem
Que ao velho tropeiro Que ao tempo se molda
lhe fez um favor Pois muita chinoca,
Seus olhos que viram Só é porque é moda
do alto dos montes E ao menos um mate,
O sem fim dos horizontes, Não sabe fazer
tão puros e iguais E as tropas enormes,
Por certo que iriam chorar, boiada taluda.
A desgraça de só ver a fumaça Cavalos de muda,
Que chamam progresso Rachando de gordos
Que bom que seus olhos É bom que não vejam
Já não vêem mais No tempo, o estrago.
Seus olhos que vieram Seus filhos e netos
os campos brotando em cavalos magros
E sangas cantando Tropeando boi lerdo (...).
A acordar madrugadas (Eterna Ronda – Adair de Freitas).

O mundo rural está associado a um tempo que já se passou, constituindo-se assim,

numa espécie de paraíso perdido. É esse paraíso que precisa ser reinventado no tempo

presente de uma forma extremamente positiva. A decadência do universo rural é vivenciada

por esses gaúchos, cuja maioria nunca viveu no campo, com tristeza e lamentação. Essas

questões estão refletidas numa das poesias que mais causam emoção no ambiente. A poesia

é da autoria de Jayme Caetano Braun, intitulada, Tio Anastácio. Quando recitada, causa

sinais de comoção tanto no intérprete, como na platéia. O declamador antes de iniciar sua

apresentação fala de seu contentamento e solicita a compreensão do público se, em função

da emoção, não conseguir terminar a declamação. Durante a performance, os ouvintes

124
escutam atentos e fazem sinais com a cabeça, sugerindo consentimento e aprovação.

Vejamos alguns excertos dessa poesia tão querida:

(...) Quem visse o tio Anastácio Repontando bois de canga,


Num bolicho de campanha Castrando com muita sorte,
E em tempos de seca forte
Golpeando um trago de canha Arrastando água de sanga...
Oitavado no balcão, (...)
Tinha bem logo a impressão Por isso é que nos bolichos
Que aquele mulato sério Só se alegrava bebendo
Era o Rio Grande gaudério Como se cada remendo
Fugindo da evolução Da velha roupa gaudéria
Fosse uma sangria séria
A tropilha dos invernos Por onde o sangue do pago
Tinha lhe dado uma estafa, Se esvaísse, trago a trago,
E aquela meia garrafa Por ver tamanha miséria!
Dentro do cano da bota
Contava a história remota E até parece mentira
Do negro velho curtido - Negro velho de valor –
Que os anos tinham vencido Morreste no corredor
Sem diminuir na derrota! Como matungo sem dono;
(...) Não tendo nesse abandono
Caboclo de qualidade Ao menos um companheiro
Que não corpeava uma ajuda, Que te estendesse o baixeiro
Na encrenca mais peleaguda Para o derradeiro sono!
Sempre conserva o tino
Garrucha boca de sino E agora que estás vivendo
Carregada com amor Na Estância Grande do Céu
E um facão mais cortador Engraxando algum sovéu
Do que aspa de boi brasino! P‟ra o Patrão velho buenacho,
Não te esquece aqui de baixo
Porém depois que os janeiros Onde a „lo largo – inda existe
Foram ficando à distância, Muito xirú velho triste
Andou de estância em estância Como tu, criado guacho!
E foi vivendo de changa:

Por que a poesia transcrita acima é tão aceita pelos informantes? Ela não menciona

tanto as glórias da Revolução Farroupilha. O foco está em um indivíduo carinhosamente

chamado por Tio Anastácio. Acredito que o sucesso de “Tio Anastácio” encontra-se

justamente nesse ponto. É um relato de um velho que ao final da vida, depara-se com a

125
miséria e a solidão. È uma poesia que expõe sentimentos e nos coloca diante de uma

inevitabilidade sempre evitada, a morte. Sem nenhum receio ou explicitando todos eles,

esses homens, em volta de um fogo de chão, expõem medos e sentimentos.

As poesias fazem referência a um sentimento que parece ser primordial nas Noites

de Poesia, a tristeza. A tristeza que aparece em quase todas as poesias está associada ao

sentimentalismo. Um sentimentalismo experienciado por homens que se constroem como

viris, mas que se permitem sentir. Homens que uma vez por mês deixam escapar algumas

lágrimas por se emocionarem com a declamação. Leiamos, a poesia intitulada, Borracho, de

Glaucus Saraiva:

Pobre borracho... ajoelhado frente à criança e ao borracho.


no oratório do bolicho! Deus coloca a mão por baixo...
Teu presente é como o lixo
que sobrou do teu passado. Todos nós somos borrachos,
Tens o futuro castrado a canha é que é diferente.
de esperança e ilusões. Eu conheço muita gente
Te incorporaste aos balcões que rola por este mundo
das pulperias do pampa... vivendo dramas profundos,
Se vives a meia guampa embriagado de dor.
encharcado de bebida, Outros, borrachos de amor,
é pra esquecer a caída dão tudo, dão corpo e alma,
dessa outra bebedeira vivendo a íntima calma
que tomas, a guampa inteira, que só nos traz a bondade.
no copo amargo da vida. (...)
(...) E, por fim, nos vem tristonho,
Mas não tem quem te absorva, empochado em desencanto,
nem que ouça a tua reza... um que bebe o próprio pranto,
Geralmente te despreza destilado, com certeza,
a maioria, borracho. do alambique da tristeza
E, assim, vais vivendo guacho que bate no peito seu!
de carinho e compreensão. Agora peço: por Deus,
Mas eu te respeito, irmão, bolicheiro do meu pago,
pois diz o velho ditado venha no mais outro trago
que até Deus, penalizado, que este borracho...sou eu!

Do mesmo modo que é enfatizado o sentimentalismo, outras poesias referem-se a

episódios da história do Rio Grande do Sul. Um dos eventos mais declamados é a

126
Revolução Farroupilha. Os versos enaltecem o fato histórico, exacerbando os valores de

liberdade e de valentia. A construção idealizada de um tipo social vai sendo fomentada nos

momentos da enunciação. No relato da Revolução Farroupilha são enfatizados o destino

heróico e “nobre” do povo gaúcho. Um povo guerreiro em cujas veias corre o sangue dos

farroupilhas - aqueles que lutaram pela liberdade e pelo Rio Grande.

No processo de construção da imagem do homem gaúcho, são ressaltados valores

como a valentia e a bravura. A princípio poderiam parecer antagônicas as demonstrações

explícitas de sentimentalismo daquelas poesias transcritas nas páginas anteriores. No CTG

aqui estudado, da mesma forma que afirma Miguel Vale de Almeida (1995) sobre os poetas

populares portugueses, a poesia coloca-se como o reduto masculino para a expressão de

sentimentos disfóricos (: 211). Assim, abre-se espaço para os sentimentos de tristeza, medo

e de abandono, que são vividos no momento da declamação com muita emoção.

A capacidade de transmitir emoções é uma das habilidades do bom declamador.

Essa habilidade depende do conteúdo da poesia e de como ele é transmitido ao público. Os

textos são longos, e o bom declamador recita a poesia sem trocar as palavras e gaguejar.

Perante um público de especialistas, ou seja, formado basicamente por outros

declamadores, ao sinal de qualquer esquecimento, é gritada a frase esquecida. Esse é um

momento de grande constrangimento para o intérprete, uma vez que desmerece a sua

habilidade. O esquecimento do texto é entendido e sentido pelo executor do erro como uma

gafe. E quando ela acontece, só lhe resta pedir várias desculpas e intensificar sua habilidade

enquanto declamador com frases do tipo:

Me perdoem. Não sei o que aconteceu. Já recitei essa poesia inúmeras vezes. Sei essa
poesia de trás para frente. Me desculpem, mas não sei o que aconteceu.

127
A platéia tenta consolá-lo com abraços, tapas nas costas, sugerindo apoio. No entanto, de

nada adianta a solidariedade dos companheiros, os declamadores que falham na sua

performance parecem inconsoláveis e não se cansam de pedir desculpas.

Ao intérprete não basta decorar a poesia. O declamador também precisa saber usar o

seu corpo. O orador recorre a toda uma técnica corporal para garantir a sua competência

comunicativa. A competência comunicativa vai depender do modo como executa a sua

performance. Ao declamar, o intérprete faz uso de um gestual com as mãos, braços, pés e

expressões faciais. Vejamos mais detidamente como os declamadores do CTG Jayme

Caetano Braun fazem uso de seus corpos.

Os intérpretes assumem uma postura verticalizada. Eles recitam as poesias de pé.

Essa postura coloca-se como cenicamente privilegiada, principalmente, perante um público

em que a maioria exerce a mesma função do intérprete, ou seja, a platéia também é capaz

de recitar poesias. Não existe um palco, mas o declamador está posicionado de modo

especial no cenário. Ele fica próximo ao fogo de chão, “objeto-totem” do ritual, e ao lado

dos dois músicos que tocam violão e gaita. O público está arranjado numa roda ou numa

meia lua, o intérprete está no centro. A posição diferencia o declamador dos ouvintes que

observam atentos ao seu desempenho. Quando a habilidade do declamador é confirmada, o

auditório participa de maneira exaltada. Alguns se emocionam durante a recitação, sorrindo

e fazendo gestos confirmando a aprovação. Outros, ao final da performance batem palmas,

empolgados, comentando: “Que lindo!”, abraçando e parabenizando o intérprete.

Durante a declamação é possível notar a extensão do tronco do intérprete. O peito é

projetado para frente, assumindo uma postura tipicamente masculina. Os punhos muitas

vezes estão cerrados e os braços para o alto. Os movimentos são vários, ora a cabeça se

128
direciona para a cima, ora para baixo de acordo com o tema da narrativa. A declamação de

uma poesia é antes de tudo uma interpretação do enredo narrado.

Luciana Hartmann (1999) ao analisar a performance dos contadores de causo na

região da Campanha, enfatiza o uso de uma postura guerreira. A corporalidade é constituída

a partir de uma experiência histórica marcante na região, a das guerras, gerando um tipo de

manifestação corporal que simula gestos de ataque e de defesa durante a performance

narrativa (op. cit.: 274-275). No CTG Jayme Caetano Braun, durante a interpretação de

poesias, cujos temas envolvem guerras, os intérpretes também recorrem à simulação dos

conflitos. Eles simulam gestos como se estivessem portando uma lança, faca ou armas de

fogo.

Se o corpo é utilizado de modo especial, a voz também o é. Parafraseando Paul

Zumthor (1997), o poema, animado pela voz, se identifica ao que faz existir na ordem das

percepções, das emoções e da inteligência, provocando na maior parte dos humanos uma

reação afetiva muito mais intensa que o faria uma frase comum desenvolvendo os mesmos

temas (: 276). Nas Noites de Poesia, o ritmo é dado tanto pelos instrumentos musicais que

acompanham o declamador, como pelo uso da voz do declamador. O intérprete usa de

forma especial a voz, mesclando pausas, impostações, alterações de ritmo e um sotaque

especial. Enfim, a voz, a corporalidade, assim como o conteúdo das poesias e a criação de

um cenário são fundamentais para as performances estabelecidas nas Noites de Poesia

Crioula.

129
Homens, pompa e autenticidade.

Os ritos não estão limitados às noites de declamação de poesias. Semanalmente, são

realizadas as Sextas Nativas. Esses eventos acontecem todas as sextas-feiras no Galpão

principal do CTG. Eles não são vistos pelos informantes como “tão especiais como as

Noites de Poesia Crioula”, mas trazem novos ingredientes a serem analisados.

A Sexta Nativa é um momento para reforçar os laços entre os freqüentadores do

CTG. O público é composto por freqüentadores e freqüentadoras do CTG. O evento

começa por volta das vinte e uma horas. È servido um jantar, cujo prato principal é o arroz

carreteiro. O evento conta também com música ao vivo, onde são cantadas músicas

gauchescas, executadas e dançadas por membros do CTG. As pessoas comem, cantam e

dançam.

È interessante analisarmos o papel que a dança assume nos eventos realizados pelo

CTG. As danças são várias. Existem aquelas dançadas individualmente e aquelas dançadas

em duplas. Performando um passo de dança, essas pessoas comunicam e transmitem

mensagens. Através da dança podemos perceber alguns meandros dessa cultura.

Comecemos pelo papel assumido pelos homens na execução dos ritos do CTG Jayme

Caetano Braun.

Ao assistir uma performance de dança no CTG, notamos claramente a diferenciação

de papéis entre homens e mulheres. A mulher só dança com seu par, ou seja, ela dança

como acompanhante do homem. Seus movimentos são limitados e exigem menos

habilidade e destreza físicas. O repertório masculino é amplo. O homem pode dançar como

acompanhante da mulher nas danças em pares, ou pode dançar individualmente numa

espécie de confronto com um outro. Eles dançam a chula e a dança de facões, esta

130
realizada com grandes facas que chegam a soltar faíscas quando se tocam. São nessas

danças individuais que vamos nos deter agora, em especial, na chula.

A chula é uma dança eminentemente masculina. Em cada apresentação de chula

existem dois dançarinos que dançam, cada um ao seu tempo, simulando uma disputa.

Durante a apresentação, os dançarinos mantêm entre si o contato visual, e provocam o seu

adversário através de expressões faciais e gestos com a mão sugerindo desafio. As

performances são individuais. Cada dançarino dança ao seu tempo. O acompanhamento

musical é o mesmo do utilizado nas declamações de poesia: um violão e uma gaita. O

andamento melódico pode ser lento ou mais agitado, conforme a coreografia executada.

A coreografia é executada sobre uma lança que não pode em momento algum ser

tocada pelos dançarinos. A coreografia varia de passos mais simples aos mais complexos,

como dançar nas pontas dos pés ou com os joelhos, cambalhotas, saltos, etc. Dançar a chula

exige destreza, equilíbrio, condicionamento físico e uma postura corporal específica. Tais

habilidades podem impressionar os espectadores. A própria pesquisadora não pode

esconder o seu “espanto” ao assistir pela primeira vez uma apresentação de chula, por

ocasião de um Rodeio Gaúcho em Brasília 4. E por causa dessa emoção, utilizando o

linguajar de meus informantes eu quase me soltei porteira afora. Como tenho um gosto

especial pela dança, me deixei levar pela tamanha habilidade de um dançarino. Seus

movimentos eram precisos e suas acrobacias perfeitas. Ao final da apresentação sem

pestanejar, bati palmas. Talvez, absorvida demais pelo momento. Quando olho ao redor,

estava literalmente dentro da torcida do adversário do dançarino que tanto me empolgava.

De repente, me senti como um colorado que por engano num domingo de Grenal

comemora um gol no meio da torcida do Grêmio.

4
Mencionado no Capítulo anterior.

131
Emoções à parte, imagens estão sendo construídas e comunicadas no momento da

dança através do modo como a coreografia é executada. Altivez seria a palavra certa para

descrever a postura corporal dos dançarinos. Como na declamação das poesias, o corpo do

executor está completamente ereto e o peito projetado para frente. Dos pés, passando pelo

olhar até o alto da cabeça, o movimento é ascendente. A chula encena um dos valores

máximos de seus executores. A dança é uma encenação da masculinidade e do caráter

fogoso e bravio do homem gaúcho.

Nos ritos do CTG Jayme Caetano Braun, os homens recebem cuidados especiais.

Eles usam bombachas 5, camisas de mangas compridas brancas, lenços amarrados no

pescoço, cintos e botas de couro. Além desses itens básicos, a vestimenta masculina é

composta por vários acessórios: faixas, esporas, manta, chapéu com barbicacho, faca, etc.

Em relação à indumentária feminina, não existem muitos acessórios. Fazem parte do traje,

longos vestidos em cores discretas e armados por inúmeras anáguas. A participação

feminina tanto na dança, como no uso de uma indumentária especial, é “modesta” quando

comparada aos passos expansivos e a parafernália usada pelos homens em seus trajes. Nos

ritos do CTG, os homens parecem estar no centro das atenções.

Outro exemplo do papel de destaque assumido pelos homens nos ritos realizados no

CTG refere-se às comemorações da Semana Farroupilha. A Semana Farroupilha é

comemorada em todos os CTGs do Brasil e do mundo, durante alguns dias do mês de

setembro. Os dias festivos relembram a Revolução Farroupilha, ocorrida no estado do Rio

Grande do Sul entre os anos de 1835 a 1845. No CTG Jayme Caetano Braun, a Semana

5
“Calções muito folgados, apertados nos tornozelos por botões e enfeitados nas costuras laterais com
pregueados variados” (Meyer, 1875: 143). Essa vestimenta foi introduzida no estado pelo mercantilismo
inglês, que não fornecera seus “pantalones”, fabricados para o exército turco, devido ao término antecipado da
Guerra da Criméia (cf. Costa, 1988 e Golin, 1983).

132
Farroupilha é celebrada com uma série de eventos. Além dos eventos já realizados no

Galpão, como as Noites de Poesia Crioula, Costelão e a Missa Crioula, acontece também

uma Cavalgada.

A Cavalgada reúne cerca de quarenta homens pilchados que desfilam carregando

bandeiras do CTG, do Rio Grande do Sul e do Brasil pelas principais ruas de Brasília. O

desfile percorre o Eixo Monumental, passa pela Esplanada dos Ministérios e finaliza na

sede do CTG. Além dos cavalos e dos cavaleiros, segue também pelo cortejo um caminhão

carregado de prendas. Lembrando aqui que prendas não são objetos oferecidos a alguém

como dádiva ou presente, e sim mulheres com longos vestidos de mangas compridas, que

suportam o sol abrasador do meio dia no Planalto Central. O caminhão é decorado com

faixas, evocando a Revolução Farroupilha e o CTG Jayme Caetano Braun.

Ao chegarem no CTG, os participantes do cortejo são recebidos com uma queima

de fogos de artifício e aplausos. Os cavaleiros apeiam, tiram o chapéu, rezam um Padre

Nosso para, enfim, hastearem a bandeira do Brasil e do Rio Grande do Sul na entrada do

Galpão, aos gritos de vivas e chapéus jogados para o alto. O final da cavalgada é celebrado

com um apetitoso churrasco, muita música e danças típicas.

A Cavalgada tem um caráter de exibição e de suntuosidade, refletidas

principalmente em alguns elementos que compõem o evento. Os cavalos que participam da

Cavalgada são cedidos pela Cavalaria do Exército. Os cavalos têm uma ótima aparência:

gordos e com pelagens viçosas. O desfile acontece num dos lugares mais representativos de

Brasília, a Esplanada dos Ministérios. Não é sem motivo que esse local foi escolhido. A

Esplanada com seus monumentos e estátuas comemorativas, representa o centro do poder

do país. Para completar esse aspecto triunfal do evento, o cortejo é acompanhado por um

veículo do DETRAN, por uma viatura com a sirene soando do Corpo de Bombeiros, por

133
um carro da Polícia Militar com muitas luzes acesas, além de um enorme caminhão da

Cavalaria do Exército que serve para fazer o transporte dos animais. O ritual é planejado

para que cause impacto: homens com uma indumentária especial desfilam pela Esplanada

dos Ministérios, montados em belos cavalos, acompanhados pelas luzes dos bombeiros e da

polícia militar.

A pompa é uma preocupação constante dos informantes durante a realização de seus

rituais. Existe toda uma suntuosa etiqueta seguida pelos informantes na realização dos ritos.

Os declamadores compram livros de poetas tradicionalistas, estudam e decoram os poemas

em casa para que nas Noites de Poesia, a declamação seja feita sem atropelos e

esquecimentos. Nas danças, a execução das coreografias precisa ser perfeita. Para isso são

realizados aos finais de semana, ensaios que duram um dia inteiro. Nos rituais, atendendo

certas regras expostas em manuais e estatutos, observa-se o uso impecável da indumentária:

O vestido deverá ser, preferencialmente, de uma peça (...); Saia de armar: quantidade livre
(sem exagero). (...) O vestido pode ser de tecido estampado ou liso, sendo facultado o uso
de tecidos sintéticos com estamparia miúda ou “peti-pois”; Vedado o decote; Sapato com
salto cinco, ou meio salto, que abotoe do lado de fora, por uma tira que passa sobre o peito
do pé. (...) Facultado o uso de brincos de argola de metal. Vetado os de fantasia ou de
plástico (...) É permitido o uso discreto de maquiagem facial, sem batons roxos, sombras
coloridas, delineadores sem demasia (...) Livre a criação de vestidos, quanto a cores,
padrões e silhuetas, dentro dos parâmetros acima enumerados (Estatuto do Regulamento de
Prenda) 6.

É preciso deixar claro, tanto para os espectadores como para os fomentadores, que

os rituais estão sendo realizados corretamente e solenemente. Para utilizar as palavras de

meus informantes: “Tudo é feito de forma genuína e autêntica”. Quando algo parece fugir

do padrão, existe quase que uma explicação científica para o fato. Presenciei uma

apresentação de chula na qual os dançarinos seguiam um padrão na vestimenta


6
Disponível em meio eletrônico: www.fgpc.com.br.

134
(bombachas, camisas, botas e lenços). Apenas um dançarino destoava desse padrão, usando

chapéu de palha em forma de cone, uma calça franjada sobre a qual estava amarrada uma

espécie de saiote. Quando esse dançarino entrava em cena, o locutor do evento se apressava

em dizer:

Para aqueles que estão achando estranho esse traje, vide Saint-Hilaire.

Fornecendo ainda, a página e ano da obra para o público poder conferir em casa. A fala do

locutor não é algo isolado no que se refere ao uso dos “documentos oficiais” para tornar

genuína a tradição. No “site” CTGJCB lemos:

[o CTG] é uma entidade sem fins lucrativos, com fins filantrópicos e culturais, que tem por
finalidade o culto das tradições do Rio Grande do Sul, tais como: história, dança, hábitos e
linguajar típicos, sempre baseados em dados históricos e culturais (grifo meu).

Em última instância, recorre-se aos dados históricos para criar, legitimar, comprovar e

manter a tradição 7.

Festas que unem e mostram a diferença.

Vimos que, no CTG, há um interesse especial pelas invenções de símbolos e do

cerimonial. Existe uma necessidade de se mostrar, de se exibir. Um dos momentos

privilegiados dessa exibição é o Costelão, o evento mais famoso realizado pelo CTG Jayme

Caetano Braun. Famoso porque para dele participar é preciso fazer uma reserva com uma

7
Voltaremos a essa questão em outros momentos desta Tese.

135
semana de antecedência. O Costelão reúne um número bastante significativo de pessoas

que não participam efetivamente do CTG. Fazendo reserva e pagando doze reais, qualquer

um poderá saborear uma deliciosa costela assada na brasa. Foi o que eu fiz num desses

domingos ensolarados de Brasília.

Chego no CTG por volta das 11:30h, alguns carros já se encontram no amplo

estacionamento. Encaminho-me para a entrada do Galpão. Algumas mesas estão na

entrada, expondo mercadorias para a venda. Numa delas, facas e espetos de churrasco; em

outras, bolsas de couro, bombas e cuias de chimarrão. E finalmente, uma mesa com duas

pessoas responsáveis pela venda dos ingressos. Pago meu ingresso, um senhor me avisa: “A

sua mesa é de número 1. Aí lá vão ter outras pessoas. É uma mesa grande e lá você se

entrosa”. Um peão e uma prenda arrecadavam os ingressos na entrada do Galpão. Todas

essas pessoas tinham um crachá com os dizeres: “Equipe do Costelão”. A sensação ao

entrar e ver aquela quantidade de mesas de tábuas e longos bancos lotando o salão, foi a

que um grande banquete comunitário me esperava. “Puxo” conversa com um homem

sentado em minha mesa. Ele não freqüenta o CTG, mas é gaúcho. Diz não perder um

Costelão. Logo, chega mais um grupo. Não eram gaúchos, mas um deles era descendente

de alemães. Uma longa conversa sobre a colonização alemã no Brasil tem início.

Não é possível dizer que apenas gaúchos participam desses eventos, mas uma boa

parte do público tem alguma ligação com o Sul ou foram convidados por membros do

CTG. Afora as pessoas pilchadas, desfilam pelo salão homens com camisetas de times

gaúchos ou com frases do tipo: “Nesse peito bate um coração gaúcho”. Do início ao fim, o

evento é preenchido com músicas tradicionalistas que lembram aos ouvintes: “Deus é

gaúcho” ou “Patrão velho, muito obrigado, por este céu azul (...) por ter me feito gaúcho”.

136
As interrupções ficam por conta de um locutor que anuncia presenças ilustres como antigos

fundadores, ex-patrões do CTG e políticos como Pedro Simon.

Às 13:00h começam a chegar os “costelões”. Cada costela pesa aproximadamente

quinze quilos. Os espetos são trazidos e fincados em toras de madeira, dispostas numa das

extremidades das mesas. Quando as costelas chegam, as pessoas correm para a carne e

acontece um momentâneo alvoroço. Momentâneo, porque a quantidade de carne é enorme e

chega a sobrar. Ao final do almoço as pessoas carregam as sobras em sacolas de plástico.

Após a refeição, seguem-se apresentações de danças típicas.

Normalmente, as pessoas vão aos “bandos” para o Costelão. Explico: vão

acompanhadas por um grupo de amigos, colegas de trabalho ou com a família. Metade das

mesas, que comportam cerca de vinte pessoas, é preenchida por indivíduos que mantém

alguma relação de parentesco ou de amizade entre si. Num domingo fiz um levantamento

das pessoas ali presentes. Fui em todas as mesas, perguntando onde moravam, a profissão e

a naturalidade. Apesar da diversidade, os dados apresentam várias confluências. Na tabela

abaixo, uma pequena amostra do levantamento:

Naturalidade Moradia Profissão Relação com o CTG


Santa Cruz (RS) Asa Norte Militar Não participa. Foi
convidado por um
colega de trabalho.
Fortaleza (CE) Asa Norte Militar Não participa. Foi
convidado por um
colega de trabalho
Goiânia (GO) Asa Norte Funcionário Público Cunhado gaúcho que
participa do CTG
Cuiabá (MT) Guará Economista Não participa. Foi
convidado por um
colega de trabalho
Minas Gerais Asa Norte Militar Não participa. Foi
convidado por um
colega de trabalho
São Paulo Asa Norte Militar Não participa. Foi

137
convidado por um
colega de trabalho
Torres (RS) Asa Sul Engenheiro Civil Amigo de um ex-patrão
do CTG
Minas Gerais Lago Sul Empresária Amiga de
freqüentadores do CTG
Bagé (RS) Fortaleza Funcionária Pública Seus pais freqüentam o
CTG
Maranhão Setor Militar Militar Veio comemorar o
aniversário de um
amigo gaúcho.
São Paulo Asa Norte Jornalista Não participa. Foi
convidado por um
colega de trabalho
Rio Grande do Sul Plano Piloto Bancário Não participa. Foi
convidado por um
colega de trabalho
Brasília Taguatinga Dona de casa Não participa. Foi
convidada por amigo
gaúcho

O quadro acima nos permite caracterizar a platéia do Costelão. Ela não é composta

unicamente por gaúchos ou por pessoas que freqüentam o CTG. Grande parte dos presentes

não é natural do estado do Rio Grande do Sul. No entanto, muitos estão ali porque foram

convidados por gaúchos.

Acredito ser o Costelão, o evento do CTG que mais se aproxima da dimensão de

uma festa. A bibliografia sobre esse assunto é bastante extensa. Alguns autores colocam as

festas como momentos em que são gerados estados de efervescência; momentos em que as

ordens sociais são de alguma forma transgredidas (cf. Durkeim, 1996; Duvignaud, 1983 e

Maffessoli, 1985). Esses são alguns exemplos de definições “positivas” da festa, ou seja,

são eventos que fazem, que dizem e que refletem mecanismos sociais. No entanto, quando

as festas são realizadas em sociedades complexas, temos que lidar com a dimensão da

heterogeneidade. E a definição de festa, ganha novos ingredientes. Trago para o debate as

idéias de Hermano Vianna (1988) sobre os bailes funks cariocas.

138
Ao contrário dos autores citados anteriormente, os quais procuram sublinhar as

funções positivas da festa, para Vianna (1988) os bailes funks “não servem para nada” no

sentido em que não produzem identidades; não são locais propícios para a formação de

novas amizades; nenhuma regra social é contestada; não são observadas inversões de papéis

ou valores (: 105). Os bailes são apenas mais uma opção de agrupamento e de lazer

metropolitanos, onde existe sempre a opção para o indivíduo de mudar e de circular entre

vários mundos (op. cit.: 110). Os bailes são somente uma celebração da alegria. A festa é a

afirmação inconseqüente e irresponsável de que a vida vale a pena ser vivida (op. cit.: 108).

Para muitos participantes, a festa do Costelão pode não servir para muita coisa. No entanto,

esse é o evento que mais tem poder de mobilização e é o maior veículo de divulgação da

entidade. E essa festa ajuda a reunir e a diferenciar alguns presentes, ou melhor, seus

promoventes.

No momento em que as costelas são trazidas e os espetos fincados na madeira,

parece que nos transportamos para os tempos dos grandes banquetes. Diante das costelas,

homens desembainham suas facas e dilaceram a carne em grandes pedaços. Crianças

saltitam pelo salão, degustando e brincando com os ossos das costelas. O Costelão é um

ritual de comensalidade que confraterniza e marca diferenças. O banquete é um elemento

importante no processo de construção social dos freqüentadores do CTG. Esses gaúchos

apropriam-se da ênfase num determinado tipo de comida para se afirmarem enquanto tais.

Relembrando Dumont (1992), a classificação dos alimentos remete à classificação dos

homens e às relações entre os grupos. São critérios que alguns grupos utilizam para se

diferenciarem uns dos outros (op. cit.: 196). O que isso significa no contexto do CTG

Jayme Caetano Braun?

139
Em primeiro lugar, a alimentação nos domingos de Costelão adquire o valor do

“comer junto”. O ato de comer assume uma dimensão que se aproxima da idéia sugerida

por Bakhtin (1996) de banquete, quando da análise desta imagem nas obras de Rabelais. O

banquete está ligado ao sentido de festa (celebração), sendo muito diferente do comer e

beber cotidianos, que fazem parte da existência de todos os indivíduos (op. cit.: 243). O

banquete é um acontecimento social, cujo enredo principal é traduzido nas idéias de

abundância e alegria. No Costelão, as pessoas conversam, dançam, cantam e se abraçam em

meio a uma quantidade enorme de carne e bebida. Enfim, é uma comemoração que celebra

a confraternização entre conterrâneos. Apesar de ser um banquete em que a presença não se

reduz aos gaúchos, o evento contribui para uma espécie de coesão. O ato de comer junto

comunica relações sociais e reforça laços de amizade.

O comer coletivo é um ato de sociabilidade que pressupõe uma afinidade entre os

participantes (cf. DaMatta, 1987). No Costelão, todos comem em longas mesas, dividindo

bancos em que conhecidos sentam ao lado de desconhecidos. A comida é servida na mesma

hora para todos. Comer e beber junto tem uma função social. E mesmo que isso se faça

entre desconhecidos, as refeições feitas em comum, contribuem para a construção de uma

idéia de comunidade.

Durante o banquete, gaúchos demonstram e afirmam a sua naturalidade não

somente através das pilchas, das camisetas e das canções, mas também através da própria

avaliação do banquete pelos não gaúchos. O alimento é amplamente aprovado e aceito

pelos “convidados” que saem comentando:

Que delícia! É a melhor carne que já comi.

Gaúcho sabe mesmo fazer um churrasco.

140
Um saber específico é outorgado ao grupo: só os gaúchos sabem preparar um bom

churrasco.

A valorização social de determinados alimentos já foi analisada por muitos autores,

e Carmem Rial (1997) nos traz um exemplo bem interessante, voltado ao “contexto

gaúcho”. O caso se deu, em 1990, por ocasião da escolha do sanduíche que faria parte do

cardápio de um McDonald‟s recém inaugurado em Porto Alegre. Tudo indicava que no

menu, figurasse o hambúrguer simples, apresentado nos cardápios de todo o mundo com 45

gramas de carne. No entanto, o proprietário local defendeu a criação de um hambúrguer

com 112 gramas de carne, ou seja, 77 gramas a mais do que os outros sanduíches da rede.

“Nesta ocasião, a imprensa local sublinhou, com orgulho, a abdicação final do McDonald‟s

frente às tradições dos pampas” (op. cit.: 168). Essa passagem não ilustra apenas o gosto

do gaúcho por carne vermelha. Ela nos permite pensar sobre o caráter simbólico de alguns

pratos. O churrasco é um prato socialmente valorizado pelos gaúchos. E por seu papel

simbólico particular pode ser pensado enquanto um prato-totem: ele é o prato das festas,

dos rituais; ele é um traço distintivo de uma identidade (op. cit.: 169).

Ser detentor de um determinado tipo de saber é muito importante para essas

pessoas. A todo o momento nos eventos realizados no CTG Jayme Caetano Braun, seus

realizadores tentam elaborar situações ou elementos que os diferenciem: o modo de

preparar um prato, a vestimenta, as músicas que sempre enaltecem e glorificam o lugar

onde nasceram. Outro aspecto interessante refere-se aos eventos de fala. Numa conversa

informal com algum representante do CTG, a maneira como a voz é colocada e as palavras

utilizadas são completamente diferentes de quando se fala para um público ou num evento

importante.

141
Em apresentações públicas, a entonação se torna completamente diferente, o sotaque

muito mais carregado. Os termos utilizados e a forma como são pronunciados, reforçam

ainda mais o “ser diferente”. Numa de minhas entrevistas, a entrevistada se mostrava

completamente descontente com o presidente da Federação dos Gaúchos no Planalto

Central por dois motivos: em primeiro lugar pelo fato de não andar devidamente pilchado

nos eventos e por não utilizar em sua fala termos gauchescos:

Ele tava lá, presidente da Federação, falando no microfone, falando assim de alpargata,
aquele chinelo, sem lenço, com uma camiseta, sem a camisa, sem o chapéu. Pra ele tanto
faz, ele está bem daquele jeito. Então, já se perde um pouco, entendeu? Como eu vou te
falar? Já se perde um pouco da tradição. Porque se hoje eu coloco uma blusa dessas [me
aponta a camiseta que ela estava usando] com uma saia, já vai se perdendo, se perdendo, se
perdendo. Aí chega uma hora que eu vou ser uma baiana ou uma gaúcha? Não sei! Então, a
gente cultua muito o passado, essa coisa bem tradicional (...) Ele [presidente da Federação]
não tinha esse zelo. Por exemplo, ele falou lá na frente (...) “Não vamos deixar a peteca
cair”. Gaúcho não fala nesses termos. Gaúcho vai falar: “Vamos segurar as rédeas do potro,
vamos... vamos agradecer ao Patrão Celeste do Céu”. Ele usa termos gauchescos para se
expressar. Mas não porque é forçado, é porque é natural dele, entendeu?

Em eventos de fala, significados comunicativos assinalam que uma ação de

expressão particular está sendo performada, ou seja, são modos de comunicação verbal

(Bauman, 1986: 02). No âmbito do CTG Jayme Caetano Braun, essa ação verbal

corresponde ao reconhecimento do ser diferente frente aos que são diferentes e da unidade

frente aos que são iguais. O “ser diferente” através da invenção de eventos que

comuniquem essa diferença, torna-se muito visível nas Missas Crioulas, que são

relaborações das missas católicas. As Missas Crioulas são realizadas em datas especiais,

como nas comemorações do aniversário do CTG ou por ocasião das festividades da Semana

Farroupilha.

No Jayme Caetano Braun, as Missas ocorrem no Galpão principal. O cenário é

organizado especialmente para o evento. É montado um altar próximo ao palco, cadeiras

142
são dispostas pelo salão para acomodar os “fiéis”. Do lado direito do altar, uma cruz, um

arreio, um chapéu e roupas típicas. A esse cenário, já previamente montado, durante a

execução do ritual, vão sendo incorporados outros elementos. No momento do Ofertório,

são trazidos: bandeiras do Rio Grande do Sul e do CTG Jayme Caetano Braun; um facão e

uma garrucha; um pão caseiro e um chifre de boi, no qual o padre beberá o vinho. Quase

todos os presentes, inclusive, o sacerdote, estão vestidos de forma especial, ou seja, com as

pilchas.

Nas missas, o acionamento dos termos gauchescos é uma estratégia muito comum.

Deus é o Patrão Celestial, Xirú Velho ou Patrão do Céu, Jesus é o Divino Tropeiro e a

Virgem Maria assume a posição de Primeira Prenda do Céu. Numa missa que tive a

oportunidade de assistir por ocasião das comemorações do décimo sétimo aniversário do

CTGJCB, o padre, em comparação com a performance vocal do comentarista da missa,

tinha um sotaque quase imperceptível. Durante todo o evento, o padre ficava com um

“roteiro” nas mãos. E o roteiro era longo: quatorze páginas de falas e de cantos, entoados ao

som de uma gaita, violão e baixo. Em alguns momentos, ele parecia se esquecer de usar

determinados termos e ao invés de dizer: “Vamos a agradecer ao Patrão lá de riba”, dizia:

“Vamos agradecer ao Patrão lá de cima”. Mas, um instante após o esquecimento se

apressava em corrigir: “Quero dizer, vamos agradecer ao Patrão lá de riba”.

Dias depois do evento, ainda pensando nesses pequenos lapsos cometidos pelo

padre e inquieta com seu sotaque “diferente”, fiz alguns comentários sobre a missa e fui

informada de que ele não era gaúcho. Minha inquietação aumentou frente à revelação.

Como um padre não sendo gaúcho e muito menos tradicionalista se dizia “mais faceiro que

ganso novo em taipa de açude” e rezava:

143
Patrão celestial, venho chegando, enquanto cevo o amargo das minhas confidências porque,
ao romper da madrugada e ao descambar do sol, preciso camperear por outras invernadas e
repontar do céu a força e a coragem para o entrevero do dia que passa. Eu bem sei que
qualquer guasca, bem pilchado, de faca, rebenque e esporas, não se afirma nos arreios da
vida, se não se estriba na proteção do céu (...) Perdoa-me, Senhor, porque, rengueando pelas
canhadas da fraqueza humana, de quando em vez, quase sem querer eu em solto porteira a
fora... Êta, potrilho chucro (....) Que a Tua vontade leve a minha de cabresto para todo o
sempre até a querência do céu. Amém.?

Quais seriam seus motivos? Por que estava ali? Sua presença no Galpão era devida às redes

de relações travadas entre ele e alguns freqüentadores do CTG. E o que tornava a sua

performance eficaz - mesmo não podendo se valer do uso de um sotaque especial - era o

roteiro que tinha nas mãos. Apesar dos erros, o sacerdote se mostrava atento em seguir

corretamente o “script”. Os tradicionalistas não se preocupam apenas em criar um cenário

especial para a ambientação de seus eventos, mas também em elaborar “documentos

oficiais” que prescrevem as ações, garantindo a fluidez do rito.

Missas Crioulas, Sextas Nativas, Costelões são tipos específicos de comunicação.

São, por excelência, atos performáticos. São atos que traduzem ensaios disciplinados de

atitudes consideradas pelos seus executores como sendo corretas (Tambiah, 1985: 132).

São lutas por ou representações de imagens. São momentos em que processos de

identificação são construídos, manipulados e afirmados. Nos Centros de Tradições

Gaúchas, os gaúchos do Planalto Central através de seus ritos imaginam e simulam a si

mesmos.

Seja falando um linguajar específico, performando uma dança, promovendo um

banquete ou declamando uma poesia, os freqüentadores do CTG criam um ideal de

unidade. Essas situações tornam-se assim, sinais diacríticos. Através da execução de uma

série de eventos, os participantes do CTG vêem a possibilidade de angariar popularidade e

de manter a entidade em atividade.

144
Se os rituais não têm a propriedade de criar identidades sólidas, capazes de

contaminar as outras atividades do indivíduo, seja no ambiente familiar ou no trabalho 8,

eles são acima de tudo grandes celebrações. As Noites de Poesia, as Sextas-Nativas, os

Costelões e as Missas Crioulas celebram a amizade e principalmente a alegria de ser

gaúcho em Brasília.

8
Retomaremos essa questão na Parte III, quando da discussão conceitual sobre a idéia de grupo.

145
CAPÍTULO VI

Rio Grande do Sul, Brasília e Tradição.

Neste capítulo serão abordadas algumas características do processo migratório

vivido pelos freqüentadores do CTG Jayme Caetano Braun. Em um primeiro momento, a

intenção é a de pontuar as motivações e os modos como os nativos pensam, explicam e

avaliam o deslocamento para Brasília.

No contexto estudado, falar sobre a migração para Brasília nos leva ao universo da

tradição. Não somente porque nos permite pensar sobre a apropriação de fatos tradicionais

em contextos migratórios, mas porque para os freqüentadores do CTG Jayme Caetano

Braun, a idéia de tradição confunde-se com a própria noção do “ser gaúcho”. Dessa forma,

num segundo momento, o propósito deste capítulo é o de demonstrar como tais vinculações

são acionadas.

A análise foi construída a partir de entrevistas realizadas com mulheres e homens

participantes do CTG Jayme Caetano Braun. As entrevistas foram feitas com pessoas de

faixas etárias diferentes, variando entre dezessete e setenta anos. Como a mobilidade

espacial dos informantes é freqüente, na amostra selecionada para a análise foram

privilegiados aqueles que estão em Brasília por mais de cinco anos 1. Tal recorte permite

que tenhamos, através da investigação de relatos de vida, uma melhor idéia do processo de

adaptação e de fixação desses migrantes gaúchos na capital federal.

1
O recorte temporal foi o mesmo utilizado na análise do processo migratório vivido pelos cantores
nordestinos. Vide Capítulo III.

146
A chegada e a vivência em Brasília: a conquista de uma cidade.

Dentro do universo da pesquisa, nenhuma das pessoas com as quais conversei,

reside nas cidades satélites do Distrito Federal. Todos os informantes moram em Brasília

principalmente, na Asa Norte - um bairro de classe média e classe média-alta; e no Setor

Militar Urbano – área reservada à moradia de militares em serviço na cidade.

Grande parte dos informantes veio para a capital federal em função de cargos

públicos e para cumprir obrigações militares. Assim, a fixação no Setor Militar Urbano tem

uma razão de ser. A presença de militares no quadro social do CTG Jayme Caetano Braun é

muito significativa. São homens que estão numa faixa etária que varia entre os trinta e

setenta anos. Muitos têm curso superior. Podem ser médicos, advogados, mas quase todos

seguem ou seguiram a carreira militar. Para se ter idéia desse fato reproduzo uma entrevista

que realizei com um membro da então patronagem (diretoria) do CTG:

- O patrão é militar, ele mora aqui no Setor Militar Urbano. O capataz-geral é militar da
reserva. A gente mora na Asa Norte. O capataz, militar... [risos].
- É um exército então? (pesquisadora)
- É de leve... O sota-capataz, militar, trabalha aqui no Hospital das Forças Armadas. O
primeiro agregado da guaiaca, militar também, só que ele já está na reserva. O segundo
agregado, militar, também. Ele está na ativa, mora aqui no Setor Militar. O agregado das
leis, militar [risos]. Ele já está na reserva, mas é advogado também. O agregado das falas
também é militar. Trabalha aqui no Hospital das Forças Armadas e trabalha numa outra
clínica também. Eu, não sou militar [risos], mas trabalho numa área militar. Trabalho aqui
no Hospital das Forças Armadas. O posteiro da invernada desportiva, eu não sei, mas acho
que ele é militar. (...) No CTG, são cerca de duzentos e poucos sócios. Tem muito militar
associado. Então, é descontado [contribuição mensal para a entidade] em folha e tal.

Poderíamos caracterizar os participantes da entidade como sendo principalmente do

sexo masculino. A presença majoritária dos homens não impede a participação das

mulheres. No entanto, as mulheres não procuram o CTG, sozinhas. Na maioria das vezes,

147
seus maridos iniciam as idas à entidade e logo depois, elas começam a acompanhá-los,

juntamente com os filhos. São os homens que acionam a família para a participação no

CTG, assim como a decisão de migrar.

No contexto aqui estudado, o processo migratório não pode ser caracterizado como

um ato solitário ou com uma experiência individual. A migração é uma experiência vivida

no seio da família. O migrante trouxe consigo sua esposa e filhos. Nos eventos do CTG

podemos ver a participação de três gerações: avôs, filhos e netos. A referência aos valores

de uma cultura originária do Rio Grande do Sul, permanece forte mesmo na segunda e

terceira geração.

Em virtude da carreira militar, os deslocamentos fazem parte na vida dessas

pessoas. Nas entrevistas, frases que mencionam a mobilidade espacial são comuns: “Militar

anda de um lado para o outro” ou “Já morei em todo canto do Brasil”. Antes de Brasília, os

informantes, exercendo suas obrigações profissionais, já viveram em outras cidades

brasileiras.

Não obstante, a mobilidade espacial não é percebida como um projeto fruto de

vontades pessoais. Eles vieram porque foram transferidos. A transferência independe de

interesses e gostos particulares. Atualmente, o indivíduo está residindo na capital federal,

amanhã, em função de sua carreira profissional, poderá estar em outra cidade. Essa é a

percepção dos informantes ao falarem das razões pelas quais estão em Brasília. É nesse

contexto que a cidade aparece nos relatos sobre as experiências migratórias vividas. A

princípio, Brasília não apresenta nada em especial que justifique o “estar aqui”.

Muitos autores apontam a imprevisibilidade, a precariedade dos meios de vida e a

busca de oportunidade como as principais motivações que levam aos deslocamentos

humanos (cf. Durham, 1984; Sayad, 1998; Assis, 1999; Sales, 1999; Cavignac, 2001 e

148
Spitzer, 2001). No caso dos participantes do CTG Jayme Caetano Braun, as motivações

para a fixação na cidade não são verbalizadas enquanto possibilidades de melhorias na

condição financeira do indivíduo ou de ascensão do status social. Ela não foi escolhida em

função das oportunidades oferecidas. Na percepção nativa, Brasília não é pensada como a

“terra da oportunidade”. O imaginário da “capital do país” também não é acionado. Em

suma, migrar para Brasília não se constitui em um projeto de vida que foi planejado e

sonhado.

Os informantes não estabelecem separações nítidas entre o “antes” e o “depois” da

vinda para Brasília. O “antes” não é visto de forma negativa. O fato da migração não é

explicado com frases do tipo: “Estava ruim lá, vim pra cá”. O que motivou a migração não

foram condições adversas. As motivações foram essencialmente profissionais. O motivo é

apenas um: cumprir obrigações profissionais. Para a maioria, a migração não foi um

empreendimento feito no vazio. Os informantes não se constroem como aqueles que vieram

tentar a vida numa nova cidade sem saber o que lhes esperava. Todos sabiam o que estava

reservado em Brasília: o trabalho.

A possibilidade do deslocamento para a capital federal pode ter gerado reações não

muito positivas. Muitos encararam a transferência para a cidade com um certo desgosto.

Em primeiro lugar, porque a vinda para um novo lugar significaria o abandono de redes

sociais já estabelecidas em outros lugares. No novo lugar, os indivíduos deverão

empreender todo um esforço em construir novos laços e redes sociais. A segunda fonte do

desgosto de viver em Brasília apresenta um caráter mais particular e está relacionada ao

imaginário sobre a cidade. Antes de aqui chegarem, os informantes já tinham uma

percepção sobre o local. Brasília era vista como uma cidade “esquisita”, “fria” e

149
conseqüentemente, “difícil para se fazer amizades”. Não obstante, tais percepções vão se

modificando, à medida que essas pessoas vão se inserindo em novas redes.

Após construir e solidificar redes de relações, os informantes fazem a opção por

Brasília. A escolha pela cidade é feita depois de aqui fixados e não antes. Mesmo podendo

ser caracterizados como migrantes compulsórios, ou seja, instalados por decretos ou

portarias, em função de cargos que ocupavam na burocracia federal ou militar, muitos

escolheram Brasília para morar e criar seus filhos 2. Podemos citar como exemplo, militares

da reserva, que dispensados de suas obrigações militares, permaneceram na capital federal e

não mencionam planos de voltarem para suas regiões de origem.

Para aqueles que fazem ao longo do processo migratório a escolha por viver na

capital, o imaginário acerca da cidade vai se remodelando na medida em que o indivíduo

constrói novos laços sociais. A cidade compulsória vista meramente como o “lugar de

passagem”, ascende à percepção de uma cidade “acolhedora” e “boa de se viver”:

Eu no início não gostava não. É diferente. Lá no Sul... Eu achei assim, pessoal lá pelo
menos é mais receptivo. Chega e já se enturma. Eu tive dificuldade aqui. Eu aprendi a
gostar daqui, mas no inicio eu não gostava não. Agora eu gosto, e não quero ir embora.

No começo foi difícil, mas agora ... Minha relação com Brasília é muito boa. Assim, acho
que acolheu bem. Brasília é uma mistura de todas as raças e culturas do Brasil. Então, eu
acho que acolheu bem os gaúchos.

A questão não é apenas de uma mudança de opinião sobre a cidade. Escolher a

cidade para viver implica na redefinição da expectativa temporal do migrante. No começo,

Brasília era vivenciada a partir da noção de um tempo fluído e passageiro. Posteriormente,

a experiência de aqui viver é pautada pela noção de um tempo mais permanente e

2
Sobre migrantes “compulsórios” ver Roque de Barros Laraia (1996), Candagos e Pioneiros, e José Pastore
(1969), Brasília: a Cidade e o Homem.

150
duradouro. Ao analisar processos de identificação entre imigrantes brasileiros na região de

Boston (EUA), Teresa Sales (1999) comenta que na redefinição de expectativas temporais,

a possibilidade da volta para o lugar onde nasceram, não é extinta, mas associada a um

futuro ligado a eventos específicos, como a velhice e a aposentadoria (: 19). No caso de

muitos participantes do CTG Jayme Caetano Braun, a volta não acontece e o indivíduo faz

a sua opção definitiva pelo lugar de destino.

Não existem fluxos temporais definidos nos quais os descolamentos ocorreram.

Alguns indivíduos estão aqui desde a construção da capital federal, outros vieram nas

décadas seguintes ou são recém-chegados. No universo dos freqüentadores do CTG Jayme

Caetano Braun, podemos dizer que o fluxo de migrantes gaúchos para a capital é constante

e ininterrupto principalmente em função da vida profissional escolhida pela maioria dos

informantes, a carreira militar.

Se a pesquisadora não identificou a chegada desses migrantes a partir de fluxos

temporais definidos, os informantes fazem uso de meios de comunicação, como jornais

impressos e eletrônicos, para fornecem descrições pormenorizadas de diversas correntes

migratórias para Brasília. Na página do CTG Jayme Caetano Braun é fornecido ao

visitante, um histórico detalhado dos fluxos migratórios dos gaúchos para as bandas de cá.

A presença gaúcha no Planalto Central é localizada antes mesmo da construção de Brasília.

A descrição começa com o episódio da Coluna Prestes, em 1924, quando os primeiros

gaúchos pisaram no solo do cerrado. O histórico menciona ainda a chegada de muitos

caminhoneiros sulistas que transportavam madeira para as obras de construção da nova

capital. Trabalhadores que “matavam a saudade do pago com churrasco, chimarrão,

músicas típicas e causos, introduzindo a cultura nestes pagos”. A descrição continua com a

menção ao fluxo de criadores e agricultores que aqui se fixaram para “colonizar e povoar a

151
terra”. E finalmente, o relato é encerrado num ano e época específicos: 1963, a época do

presidente João Goulart, “o principal responsável pela vinda de militares e policiais federais

para Brasília”:

Em 1963, quando assumiu João Goulart, gaúcho de São Borja, trouxe muitos conterrâneos,
principalmente da Polícia Federal e Militar. Estes gaúchos aqui radicados fundaram
Entidades Gaúchas (...) 3.

Responsabilidades à parte, o fato a ser destacado é a construção de um relato repleto

de brios e orgulho da história da migração gaúcha para o Planalto Central. Nas descrições

do site, o migrante gaúcho é construído como o conquistador. Eles procuram deixar claro

que não são migrantes quaisquer. Eles não vieram tentar a vida. Eles vieram “fazer a vida

da nova cidade”.

Vários estudos sobre deslocamentos humanos, já mencionados nesta tese, destacam

a posição subalterna do migrante ou do imigrante. Eunice Durham (1984) mostra a visão

negativa em torno do migrante que se desloca das regiões rurais para as grandes cidades.

Giralda Seyferth (1990) em sua análise sobre a contribuição de diferentes grupos de

imigrantes à cultura brasileira, aponta para o fato de que geralmente essas pessoas são

classificadas de forma estereotipada, sendo vítimas de muitos preconceitos. Gustavo Lins

Ribeiro (1999) ressalta a imagem de vulnerabilidade e ambigüidade de muitos brasileiros

que vivem nos Estados Unidos.

Ao adentramos no universo da migração gaúcha, notamos uma diferença crucial na

forma como a imagem do migrante é construída e reconhecida. Em primeiro lugar, a

imagem está distanciada da idéia de subalternidade. Além da possível positivação da idéia

3
Dados disponíveis em fonte eletrônica: www.ctgjcb.com.br.

152
do migrante, para o migrante gaúcho não basta construir a sua trajetória de forma vitoriosa.

O compositor gaúcho Vitor Ramil (1992), em “A Estética do Frio”, expressou de forma

bastante interessante a “diferença” do migrante gaúcho. Geralmente, o migrante brasileiro

que vence nos grandes centros urbanos do centro do país é motivo de orgulho para seus

conterrâneos. No Rio Grande do Sul, tal vitória parece não ser muito festejada. O

compositor, que também já tentou a vida no Sudeste, cita alguns exemplos:

Penso nas cobranças dos gaúchos a Elis Regina e na expressão “vendidos”, que tantas vezes
ouvi ser usada em referência aos artistas que optaram por viver e trabalhar no centro do País
– para qualquer brasileiro, vencer no centro do País é motivo de orgulho. Penso que ouvi
em Porto Alegre alguém dizer que Lupicínio Rodrigues não era um compositor gaúcho, que
ele fazia música brasileira – o fato de ser negro já parecia separá-lo um pouco da cor local
(op.cit.: 264).

Para aqueles gaúchos que migraram, especialmente os freqüentadores dos CTGs, a

idéia do migrante não é aquela que o coloca simplesmente como o indivíduo que procura

ascensão social e financeira. Os migrantes gaúchos precisam ter propósitos específicos e

um comprometimento com a cultura gaúcha. Eles vieram colonizar, desbravar, plantar,

criar e espalhar a cultura do Rio Grande do Sul. A migração possui objetivos claros,

definidos e que precisam ser verbalizados e registrados em atas, livros e poesias afixadas

em murais do CTG:

(...)
Enfrentamos terra hostil
Enfrentamos o desconhecido
Para ser reconhecido,
O celeiro do Brasil
Hoje, no Planalto Central
Estamos plantando e criando
E o Brasil alimentando
Com nosso dinamismo
(...)

153
A explicação para a migração gaúcha assume um tom mítico. Objetos totens, armas

de guerra e muitos ideais integram a construção da idéia do migrante. Para além do

migrante subalterno, a noção do migrante gaúcho, fomentada pelos freqüentadores do CTG

Jayme Caetano Braun, é a do desbravador:

O gaúcho sempre foi gaudério por natureza, seu espírito de liberdade ultrapassou as
fronteiras do Rio Grande e conquistou o território nacional. Distância, obstáculos e perigo
nunca foram problemas, pois contava com cinco aliados: as quatro patas do cavalo para
cruzar caminhos e descobrir novas querências e a lança em riste para defender-se de
possíveis inimigos. Assim aconteceu o desbravamento do Brasil a partir do oeste de Santa
Catarina e Paraná, após Mato Grosso e Goiás (www.ctgjcb.com.br).

Se trocarmos as patas do cavalo pelas caravelas, podemos ter a sensação de que estamos

diante dos grandes exploradores europeus que descobriam o “Novo Mundo” no tempo das

Grandes Navegações Marítimas.

No nível do discurso para o público, o deslocamento tem o caráter de povoamento,

de propagação e de divulgação da cultura gaúcha. Como se existisse uma missão por trás da

atitude de migrar: o enraizamento dos traços da cultura gaúcha pelo território brasileiro. As

razões da migração são verbalizadas como a vontade de demarcar a presença gaúcha no

território nacional, como mostra outra poesia afixada no quadro de avisos do CTG:

Os gaúchos são conhecidos


Como bravos, aguerridos e fortes
(...)
E por toda a sua bravura
Se espalha pelo Planalto Central
Enraizando amizades por todo o país
(...)
Churrasco e chimarrão
Rodeio e geneteadas
Violão, viola e acordeão

154
Tudo em missão
Em nome da nossa tradição.

A migração é explicada em função do próprio caráter do povo gaúcho. Por serem

“fortes” e “aguerridos”, esse povo diz não temer em extrapolar as fronteiras de sua terra

natal e conquistar o mundo. O discurso criado é o da essencialização. Uma essência pautada

na evocação das noções de ser gaúcho e de raça. Na verdade, tais noções são

indissociáveis: ser gaúcho é uma questão de raça e a raça em questão é a de ser gaúcho.

Por essas percepções, ser gaúcho é antes de tudo uma qualidade. O gaúcho é forte,

corajoso e destemido. A aquisição de tais qualidades pode ser dada pela naturalidade, ou

seja, é preciso nascer no estado do Rio Grande do Sul. O homem seria assim, uma extensão

natural da terra em que nasceu e sua “essência” brotaria daí (cf. Costa, 1997). A

gauchicidade pode ser também transmitida por antecedentes próximos, ou seja, são gaúchos

os filhos e netos de gaúchos. De uma forma ou de outra, as qualidades do gaúcho são

características naturais dos que lá nasceram ou dos que por descendência, as receberam em

seus genes. Afinal, como gostam de comentar: “Gaúcho tá no sangue”.

Ser gaúcho também poder ser entendido como uma questão de raça. Por ocasião da

Semana Farroupilha, o locutor de um dos eventos comemorativos fez menção a alguns

soldados gaúchos que integravam a Força de Paz da ONU no Haiti. Ele anunciava

emocionado, em alto e bom tom, que mesmo distantes os soldados comemoraram a

Revolução Farroupilha, improvisando uma chama crioula e fazendo ronda. O comentário

foi finalizado com a seguinte colocação:

Que raça! Nem erva tiririca é mais forte do que nós.

155
Poderíamos dizer que o discurso da essencialização de um povo e da construção do

migrante conquistador é o discurso de apresentação. O local de fala é aquele direcionado à

apresentação pública. Ele é proferido para um público de fora, em ocasiões especiais ou em

documentos oficiais com a intenção de apresentar e tornar visível o CTG. Enfim, é uma

forma de fazer a propaganda da entidade. No entanto, como seria construída a idéia do

migrante na vivência dos indivíduos que freqüentam o CTG?

Nas conversas informais ou entrevistas que realizei com membros do CTG, o

deslocamento seja para Brasília, seja para qualquer outro lugar, não é vista como um

acontecimento especial. Quando indagados sobre a idéia de vir para a capital e de como foi

a adaptação, os informantes respondiam de forma natural:

Tive que vir, em função da transferência. No começo foi difícil, mas depois, acostumei.

Durante as entrevistas, eles falavam longas horas sobre as atividades do CTG, sobre

o tradicionalismo e sobre o que significava ser gaúcho. No entanto, a experiência da

migração parecia não despertar nos informantes, vontade de discorrer sobre o fato. Os

relatos sobre a definição da situação presente, das condições de sua residência anterior à

mudança, da avaliação sobre a decisão de mudar e do grau de satisfação – questões típicas

de quase todos os estudos sobre migração - eram feitos sem emoção e vontade.

Creio que a apatia dos informantes quando ao relatarem suas histórias sobre a

experiência da migração, deve-se a alguns motivos. Num primeiro momento, mudar para

Brasília não representa nada em especial. Conforme foi mencionado anteriormente, vir para

Brasília não foi uma decisão. Estar aqui transcende, inicialmente, aos gostos ou simpatias

individuais a respeito da cidade. Pelo fato de muitos já terem vivido em várias regiões do

156
Brasil, morar em Brasília poderia representar a mesma coisa que o deslocamento para outra

região do país. Não há menções sobre dificuldades financeiras e emocionais no processo de

adaptação. E nem se esperava muito do fato de aqui viver. Brasília era vista como uma

situação passageira na vida desse, a princípio, migrante compulsório.

O fato da migração para Brasília pode não ter nada de especial. Não obstante, no

decorrer da conversa, os informantes recorriam às idéias de propagação da cultura gaúcha –

as mesmas do discurso oficial direcionado às apresentações públicas. E nesses momentos

eles construíam um espaço especial para a capital federal.

Dizem os freqüentadores do CTG Jayme Caetano Braun que eles conquistaram a

cidade. A conquista é construída num nível tão abrangente a ponto dos jovens substituírem

o uniforme escolar pelo uso das bombachas, sem que a população local estranhasse o fato.

Todos parecem estar acostumados aos hábitos gaúchos. O depoimento abaixo é de uma

jovem, nascida no Rio Grande do Sul, mas criada em Brasília desde os quatro anos de

idade. A conquista tão enfatizada em atas, estatutos e demais documentos oficiais do CTG

Jayme Caetano Braun, é reproduzida em seu discurso ao mencionar a fixação de seu

“povo” na capital federal:

Acho que o pessoal... já é normal assim. Tem um pessoal que vai de bombacha pra escola,
tinha amigos que iam. Levava chimarrão pra aula, pra faculdade. É legal isso, já tá meio
normal. Pessoal já acostumou. Acho que é uma das culturas bem fortes aqui em Brasília é a
cultura gaúcha. (...) Lá da Revolução Farroupilha já vem ... a idéia de liberdade, de amizade
de tá junto. Eu acho que é meio que isso, sabe? Trazer a cultura para outros lugares, reunir
mais gente possível...

A inserção de muitos informantes nos Centros de Tradições Gaúchas ocorreu

somente em Brasília. Foi aqui que se transformaram em “gaúchos de CTG”. Em Brasília,

eles não apenas participam assiduamente das atividades desenvolvidas, como também

157
assumem compromissos administrativos com a entidade, dedicando boa parte de seu tempo

livre ao CTG.

Os informantes não enumeram motivos específicos para justificar a aproximação

com o Centro de Tradições Gaúchas na capital. As explicações para o fato são de cunho

mais geral e se referem ao estabelecimento redes de amizade em uma nova e até então,

desconhecida cidade. Chamo atenção para essa “função” dos CTGs: propiciar a formação

de redes de relações. O caráter aglutinador dos Centros de Tradições Gaúchas já foi

ressaltado por muitos pesquisadores do assunto (cf. Beserra, 2002; Costa, 1997 e Fonseca,

1993).

No discurso nativo, o CTG é construído como a possibilidade para “desgarrados do

pago” de estarem mais perto do “Sul”. A inserção dessas pessoas nos CTGs surge quase

que como uma conseqüência da migração. O fato de participarem do CTG em Brasília, não

merece muita explicação. Ele é óbvio para os informantes: longe da terra natal, os

conterrâneos se unem e se juntam. Uma idéia de união é fomentada. Como se os gaúchos

aqui instalados fossem mais unidos. Vejamos a longa lista dos depoimentos abaixo:

O pai é militar e daí a gente... ele pega transferência. (...) Aí a gente veio parar aqui em
Brasília. Daí, o pai se juntou com outros gaúchos desgarrados do pago e resolveram fundar
o CTG. E daí desde então... A gente foi criado, meus irmãos, no CTG. (...) Meu avô diz que
quando o meu pai era pequeno ele não gostava, mas depois aqui em Brasília ele passou a
gostar.

Lá no Sul eu nunca fui a CTG. Aqui que eu comecei a praticar com os gaúchos. Porque lá
no Sul, nunca. (...) Depois eu me casei, saímos de Bagé, já fomos morar aqui. Meu marido é
militar né, vai pra cá, vai pra lá... (...) Aí, depois vim morar em Brasília. Minha filha tinha
sete anos, o meu filho tinha nove. (...) Mas, passamos muito tempo... Não tinha nada aqui.
Ao contrário, a gente até contava os gaúchos que tinha dentro de Brasília. Na 306, aonde eu
fui morar mesmo, meu filho até hoje tem o apelido de gaúcho porque era uns dos únicos
gaúchos que moravam ali. Dava pra contar nos dedos os gaúchos que tinha em todo o DF.
Aí depois como a gente freqüentava o Pandiá Calógeras, era baile, né, aí começou: “Olha,
têm uns gaúchos assim pra fazer carreteiro, pra isso, pra fazer aquilo”. Aí, foi se juntando,
se juntando.

158
Lá no Sul eu nunca ia, ninguém lá de casa ia. Um ou outro baile a gente ia. Mas, participar,
estar aqui toda a semana, foi aqui. Chegava do serviço e vinha pra cá e ficava aqui. Aí, saía
madrugada, ia pra casa, ia pro serviço, todo dia assim. Aí, lá não. (...) Maioria do pessoal
gaúcho aqui se uniu bastante. Quem veio pra cá gaúcho, é mais unido. “Aí, vamo pra um
churrasco no CTG?” É muito bom e tal. A gente vem, participa, gosta e começa a
freqüentar. Aí começou assim e até hoje.

A minha relação foi o seguinte. Quando eu morava no Sul, eu não freqüentava CTG. É, isso
que acontece. Quando a gente tá lá no Sul... Eu tive lá agora, fiquei um mês lá... Quando
você tá no Sul, você não dá tanto valor, entendeu? Aí você longe do lugar, parece que você
vindo pro CTG parece que tá mais perto, entendeu? E praticamente quase todos hoje que
freqüentam aqui o CTG, quando moravam lá no Sul, poucos freqüentavam o CTG. Então,
assim, aqui você dá mais valor. Lá, você não dá tanto valor. Eu acho que é porque você tá
lá. Quer dizer, você não dá tanto valor à cultura. E aqui é assim, você tá distante e tal, aí,
você vem pra cá. Lá, eu não ia mesmo, não ia. Freqüentava só na Semana Farroupilha. Mas,
freqüentar toda a semana, vir pros eventos, eu não ia. E assim, maioria, parte deles aqui não
freqüentava assiduamente o CTG lá.

A união dos gaúchos no CTG Jayme Caetano Braun pode significar, a princípio, a

consciência de uma espécie de sentimento identitário fornecido pelo fato dos participantes

compartilharem uma mesma identidade regional. O sentimento do “ser gaúcho” é o que eles

dizem atualizar no Centro de Tradições. A noção de pertença implica nascer no estado do

Rio Grande do Sul. E como vimos nas páginas anteriores, ter ascendentes gaúchos também

tornam aqueles indivíduos que queiram participar dos CTGs, gaúchos.

O que leva alguém a procurar o CTG em Brasília pode ser o fato de ser e/ou sentir-

se gaúcho. No entanto, outros elementos podem se impor a tal motivação propiciada pela

naturalidade ou pela sua transmissão. O que pretendo enfatizar é que a entidade em alguns

momentos, principalmente para os recém-chegados, surge, simplesmente e sem muito

saudosismo, como uma opção de lazer numa cidade ainda desconhecida.

Muito mais que um espaço para reviver as coisas do Rio Grande do Sul, acho que a

principal função do CTG, também apontada por Bernadete Beserra (2002), quando do seu

estudo sobre um CTG em Los Angeles, é a de desenvolver redes de relacionamento que os

159
imigrantes e migrantes precisam para sobreviver num outro país ou numa outra cidade. É

interessante sua constatação de que das quatorze famílias que integram um CTG em Los

Angeles, apenas quatro são do estado do Rio Grande do Sul. Participam do CTG,

pernambucanos, paranaenses, paulistas e pessoas de outros países da América Latina

(op.cit: 02).

Gustavo Lins Ribeiro (1999), ao analisar algumas manifestações culturais

promovidas por brasileiros nos Estados Unidos, aponta para a funcionalidade de

determinadas práticas no estabelecimento de redes de solidariedade e na formação de um

sentido de comunidade imaginada num contexto em que os brasileiros estão presentes como

minorias. Bares, clubes, templos religiosos – e por que não Centros de Tradições Gaúchas -

são espaços de sociabilidade, de cooperação e ajuda mútua, trazendo segurança em face de

um contexto essencialmente instável e estranho (op. cit.: 51). Nesse sentido, a participação

nos CTGs pode ser funcional.

Apesar das famílias gaúchas (por naturalidade ou por transmissão) serem a maioria

no contexto do CTG Jayme Caetano Braun, é possível encontrar participantes de outras

“regionalidades”. Certo dia, tentando conversar com os freqüentadores do CTG, disse a

uma prenda vestida a rigor: “Estou fazendo uma pesquisa sobre gaúchos freqüentadores de

CTG, será que a gente podia conversar um pouquinho?” Muito solícita, ela se desculpou:

“Perdão, mas é que eu não sou gaúcha”. E completou frente, talvez, a minha expressão de

espanto: “Meu marido é gaúcho e eu venho com ele”. Bem, para um observador externo

como eu, não era possível percebê-la como uma mera dama de companhia. Ela estava

pilchada, sabia todos os passos de dança e ficava na porta do CTG recebendo os convidados

no dia de Costelão. O que motivou essa “carioca tradicionalista” a fazer parte de um Centro

160
de Tradições, que cultua manifestações culturais extremamente diferentes do lugar em que

nasceu, não deve ser simplesmente ciúmes do marido.

Fazer parte do CTG pressupõe a existência de uma solidariedade entre os que

participam da entidade. A entidade pode significar um “bem-vindo” acolhedor àqueles que

ainda não estabeleceram relações sociais na cidade. O CTG pode ser uma porta de entrada

para o estabelecimento de redes sociais. Para além do fato da atualização do ser gaúcho fora

do estado do Rio Grande do Sul, a inserção em redes de relacionamento é um dos principais

motivos pelos quais os CTGs são procurados e freqüentados. A entidade que, inicialmente,

geraria processos de identificação fixados pelo nascimento de um indivíduo numa

determinada região, é capaz de fornecer também o sentimento de pertencimento a um

grupo.

É no mínimo curioso um depoimento que recolhi em minhas conversas com os

participantes do CTG. Ele está transcrito abaixo:

Porque lá mesmo em Bagé, da terra que eu sou, não existia. Assim, baile, tradição era só
fora. Ali não tinha e a gente nunca procurou também. Quando a gente ia pra fora nas férias,
pra casa de meu tio, a gente ainda participava dos bailes lá, né, lá da campanha, como a
gente chama, né.

O Rio Grande do Sul é construído como um lugar em que existem poucos CTGs. No

depoimento, a presença dos CTGs no estado, fica restrita às cidades do interior. A

informante procura restringir a presença das entidades tradicionalistas dentro do próprio

Rio Grande do Sul.

Existem poucos Centros de Tradições Gaúchas no Rio Grande do Sul? Não é o que

mostra os dados do Movimento Tradicionalista Gaúcho ou informações retiradas de sites

especializados no assunto. A afirmação: “Na minha cidade não tinha”, é acompanhada de

161
uma revelação importante: “Também, eu não procurava”. Em seu estado de origem, os

CTGs não faziam parte do contexto dos informantes. Eles não sentiam necessidade de

procurá-los. Por isso, a tentativa de localizá-los em algum lugar distante ou mesmo

dificultar o acesso aos Centros com constatações do tipo: “Lá, eles não existiam”.

Em suma, o envolvimento dos entrevistados com o Centro de Tradições em Brasília

é explicado por meio de algumas alegações. Uma delas é: “Lá”, eles tinham pouco tempo

livre, em função de compromissos profissionais. Creio que para muitos, esses

compromissos não diminuíram quando aqui chegaram. Afinal, não foi o cumprimento das

obrigações profissionais, a principal razão apontada pelos informantes para justificar a

migração? Outras alegações fazem menção a uma possível falta de interesse do gaúcho em

participar dessas entidades tradicionalistas em seus contextos “originais”. No mínimo, essa

justificativa nos deixa curiosos para saber então, como se explicaria a presença maciça dos

CTGs no Rio Grande do Sul. No entanto, é nesse contexto que surgem outras revelações:

“Aqui eu sou mais gaúcho do que lá”. A idéia de “ser mais gaúcho” fora de sua terra natal é

a questão que merece a nossa atenção no momento. Sua análise será feita a partir de um de

seus elementos fundamentais: a idéia de tradição.

De quando ser gaúcho é uma tradição.

Conforme foi demonstrado no capítulo anterior, na elaboração dos ritos, a

necessidade de construir uma idéia de que tudo na entidade é gaúcho, é uma constante. Os

murais, placas, bandeiras e todos os eventos tentam criar no ambiente a idéia da

“gauchicidade”. As entrevistas realizadas com os membros do CTG também apontam para

162
essa questão. A tentativa de se criar um “clima do Sul” pode ser exercida de forma

insistente.

Quando indagados sobre as atividades ali promovidas, nunca é suficiente dizer que

no CTG Jayme Caetano Braun existem comidas típicas e danças folclóricas. Os adjetivos:

“típico” e “folclórico” não bastam para caracterizar suas manifestações. O típico e o

folclórico precisam se tornar mais específicos, ou seja, mais gaúchos. Por isso, é necessário

enfatizar que existem “comidas típicas gaúchas” e “danças folclóricas gaúchas”.

Aqui você vai ter comida típica, música ao vivo gaúcha, música regional. Tudo é gaúcho.
São músicas regionais. Tudo nosso é voltado para o regionalismo. Danças folclóricas, mas
folclóricas gaúchas, sabe?

A insistência em caracterizar as coisas como sendo gaúchas, é eficaz na formação de

uma certa noção de “grupo” a ser transmitida para o público externo. Se no CTG tudo é tão

gaúcho, são também gaúchas as pessoas que lá estão. Apesar do Costelão 4, não passa pela

cabeça de um visitante eventual perguntar sobre a procedência dos presentes nas

festividades.

A caracterização do ambiente, assim como os discursos, são tão eficazes na

construção de uma possível identificação com o estado do Rio Grande do Sul, que pode

permitir a percepção homogeneizante de que lá todos são gaúchos, inclusive, a

pesquisadora. Por várias vezes, fui indagada por alguns visitantes: “Você é de qual região lá

do Sul?”. Fazendo parte de eventos em que quase a maioria dos presentes vestia uma

indumentária especial e performava danças típicas, mesmo não as usando ou dançando,

estando lá, minha naturalidade parecia estar previamente dada. A transmissão da imagem

4
Evento que reúne uma quantidade significativa de não gaúchos. Ver Capítulo I.

163
que pretende construir o ambiente como um lugar especial através da organização do

cenário, de eventos típicos e de frases enfáticas e insistentes, é realizada de forma eficiente

pelos membros do CTG. Inúmeras vezes, um rapaz que trabalha no bar do CTG, que não é

gaúcho e nem participa da entidade, me dava sua opinião sobre o que ele via durante a sua

jornada de trabalho:

Olha, isso aqui é um grupo mesmo. É um grupo de gaúchos. Uma espécie de confraria.
Coisa que só eles entendem. Têm coisas aqui que você vai ver e não vai entender nada. Eles
falando... É bonito! É bem deles mesmo. Mas, só eles entendem.

Nos discursos dos membros do CTG sobre si mesmos, a especialidade do ambiente

ganha tons de exaltação. Os comentários são, na verdade, elogios à entidade e ao povo

gaúcho. A idéia é a de edificar características que diferenciem o Rio Grande do Sul dos

demais estados do Brasil. Essa caracterização, que se refere a todas as coisas do estado, é

edificada de forma extremamente positiva. Ao povo gaúcho são incorporados adjetivos

como “belo” e “hospitaleiro”. Uma pequena amostra da adjetivação, é fornecida nos

depoimentos abaixo:

Eu tava dizendo pra elas... Pra minha neta principalmente, porque ela quase não vem aqui,
eu digo: “Tu viu a hospitalidade do gaúcho?!”. A gente apresenta, que beleza, é aquela festa
que fazem com a gente, né. São muito hospitaleiros os gaúchos. Não desfazendo dos outros,
mas é difícil ver um gaúcho de cara feia.

Só aqui mesmo para encontrar sorrisos assim. Só o povo gaúcho sorri desse jeito. Que
beleza!

Segundo Ruben George Oliven (1992a), algumas peculiaridades do Rio Grande do

Sul contribuem para edificação de uma série de representações que acabam adquirindo uma

força quase mítica:

164
As peculiaridades do Rio Grande do Sul contribuem para a construção de uma série de
representações em torno dele que acabam adquirindo uma força quase mítica que as projeta
até nossos dias e as fazem informar a ação e criar práticas no presente (: 49).

O autor aponta alguns elementos utilizados na construção da imagem do povo gaúcho. São

eles: 1) o caráter de fronteira do estado; 2) a escolha (o Rio Grande do Sul preferiu fazer

parte do Brasil, enquanto poderia ter optado por pertencer ao Império Espanhol); 3) o alto

preço das guerras pago por essa opção (guerras contra os desmandos do Governo Central,

além de conflitos internos, tais como a Revolução Federalista e a Revolução Farroupilha);

4) a existência de um tipo social específico, ou seja, o gaúcho marcado pela bravura ao lidar

com as forças da natureza e a árdua vida campeira; 5) e finalmente, a questão da

autenticidade dos costumes e comportamentos (op.cit.: 49). Enfim, na construção social da

identidade do gaúcho há uma referência constante aos elementos que evocam um passado

glorioso, a vida nos vastos campos da Campanha e valores como a bravura, a virilidade, a

lealdade e a honra.

Tudo no CTG é feito em nome de um discurso que pretende erigir a imagem

positiva de um povo e de uma tradição. Nas festividades da entidade, o patrão

constantemente interrompe as apresentações de dança, declamações de poesias ou refeições

para dar seu recado:

Estamos aqui fazendo esse trabalho em prol do Rio Grande do Sul, em prol da comunidade
(18/09/04 – Comemorações da Semana Farroupilha).

Acredito que nesse Galpão estamos defendo nossas fortes e ideológicas tradições, a cultura
rio-grandense (...). Viva o Rio Grande! Viva o Brasil! (06/06/04 – Costelão).

165
Os “vivas” exclamados nos mostram que a tradição é tratada como se fosse uma causa a ser

defendida. Nos discursos dos informantes, aquilo que faz com que a entidade exista é a

causa da tradição.

A maneira como a idéia de tradição é acionada a transforma quase que numa

entidade sobrenatural e sagrada. Numa poesia de autoria de um dos freqüentadores do

CTG, afixada nas paredes da sede, a tradição é comparada ao catecismo:

Hoje, no Planalto Central estamos


(...)
rezando o catecismo
que a tradição irmana
e o culto que emana
o nosso tradicionalismo

A associação da tradição aos termos sagrados, como catecismo, culto e reza, é

utilizada para tornar familiar o que pode parecer exótico ou esquisito. A comparação entre

religião e tradicionalismo é acionada por uma informante com a intenção de me fazer

entender os motivos pelos quais ela participava desse tipo de “vivência”.

Quem tá de fora e não tem essa vivência, vai achar ridículo. Vai achar engraçado. Vai
começar a rir. Vai começar, sei lá, achar a maior baboseira. (...) Mas é que nem o católico.
Católico não, qualquer religioso que freqüenta a igreja. Todos eles não seguem o ritual bem
a fundo? Assim é o tradicionalista.

A idéia de tradição está profundamente relacionada ao próprio sentido de ser

gaúcho. Vimos que para ser gaúcho não significa apenas nascer no estado do Rio Grande

do Sul. Ser gaúcho não é uma simples questão de naturalidade. Alguns tradicionalistas

preferem dizer que “Ser gaúcho é um estado de espírito”. Um estado de espírito fornecido

antes de tudo pela idéia de tradição. Resta espaço para ser gaúcho sem ser tradicionalista?

166
José Hildebrando Dacanal (1992) percebe o tradicionalismo como um ranço

ideológico de talhe profundamente conservador, caracterizado pelo mito do gaúcho

heróico:

Esta sobrevida das construções ideológicas da oligarquia gaúcha deveu-se à sua longa e
absoluta hegemonia no estado (...). A verdade é que a mitologia reinava soberana ainda na
década de 70, quando o Rio Grande já se integrara não apenas na moderna sociedade
urbano-industrial brasileira como também no macrossistema capitalista internacional. E foi
contra esse monstruoso anacronismo que uma geração de intelectuais levantou-se (...) por
não agüentar mais ouvir múmias ambulantes repetindo os ecos de uma sociedade há muito
desaparecida (: 83).

Tau Golin (1992) também se indigna com a imagem firmada do tradicionalista como o

“genuíno representante do gaúcho histórico”. Segundo Golin, é cada vez mais rara a

pergunta: quem eram os gaúchos? “No senso-comum, a indagação foi substituída pela

normalidade equivocada de estes são os gaúchos, referindo-se aos tradicionalistas” (op. cit.:

93).

Maria Eunice Maciel (1995), no artigo “Os tipos característicos. Região e

estereótipos regionais”, mostra como a imagem do Brasil é construída através de “tipos

característicos regionais”. A autora aborda a questão dos “tipos” como figuras

emblemáticas relacionadas às representações classificatórias que procuram estabelecer

distinções e demarcar fronteiras. Nesse sentido, a idéia de região transforma-se em unidade

de pertencimento. Temos assim, as imagens do mineiro, do baiano, do paulista, do carioca,

etc. Essas representações são transmitidas por diversos meios e traduzem crenças, idéias,

valores. No caso do Rio Grande do Sul, a identidade regional é dada através da recorrência

aos elementos ressaltados pelo tradicionalismo. A representação do gaúcho com suas

expressões campeiras, envolvendo o cavalo, o chimarrão e a construção de um tipo social

167
livre e bravo, serviu de modelo para unir os habitantes do estado em contraposição ao país

(Oliven, 1992a: 70).

Para os que fazem parte do Movimento Tradicionalista Gaúcho, essas questões

ganham mais força. Parece que ao acionar a noção de tradição, a idéia de gaúcho se

concretiza. Para o freqüentador do CTG Jayme Caetano Braun, ser gaúcho é ser

tradicionalista. O gaúcho torna-se assim, a própria encarnação da tradição.

O que é ser tradicionalista para o gaúcho? É vestir sempre a pilcha, ter uma vivência
tradicionalista, saber declamar, usar termos gaúchos... É uma coisa assim de vivência, de
vida. Você olha e fala: “Aquela pessoa é um gaúcho”. Tá no sangue; tá no dia a dia dele; tá
no cotidiano. Não é aquela pessoa que quer ser gaúcha, apesar de ter nascido na terra, tenta
mais não consegue.

O leitor deve estar se perguntando: “O que é a tradição para esses gaúchos?”. A

tradição pode ser muita coisa. Não obstante, todas as formas que assume são categorizadas

pelos informantes como extremamente positivas. Vimos que ela pode assumir um tom

sagrado nos discursos. A tradição existe para ser cultuada. Tal culto gera em seus

praticantes, atitudes de respeito, de defesa e de exaltação. Mas, o que eles estão

respeitando, defendendo e exaltando?

No universo do tradicionalismo, a tradição pode fazer menção a elementos mais

específicos. De uma noção mais abstrata que a coloca como algo sagrado, a tradição ganha

formas mais concretas. A tradição é uma referência temporal e espacial. Ela refere-se ao

tempo passado em um lugar particular e a sua atualização no presente. A tradição é o

passado e o seu resgate no tempo de agora.

Frente às perguntas diretas sobre o que é a tradição, os informantes respondem:

“tradicionais são os hábitos e costumes dos nossos antepassados”.

168
A gente tá resgatando o passado. Porque Movimento Gaúcho é um movimento tradicional,
que são os MTG. Então, eles seguem uma tradição. E que é o que? A gente manter o que os
nossos antepassados cultuavam, entendeu? Então, aí vem a cultura gaúcha. E o meu papel
no CTG é de estar sempre fomentando essa cultura gaúcha. Fazendo eventos para reviver...

É o seguinte... da área rural. A cultura gaúcha ela está calcada na área rural. Se você for
ouvir música gaúcha, você vai ouvir de cavalo, de rédeas, de potro sem dono, a minha
prenda na estância. As estâncias eram as grandes casas de antigamente, onde ficavam as
famílias. Famílias não só nucleares, pai, mãe e filhos, mas avós, tios moravam tudo nessas
estâncias e trabalhavam lá. Então, a patronagem do CTG é como se fosse uma estância
representando a área rural. Na estância você vai ter o que? Um patrão que é o dono da
estância que se chamava patrão antigamente. O capataz geral vai ser aquele cara que vai
administrar pra ele a estância, como se fosse um vice-presidente mesmo. É ele quem vai
cuidar de tudo mesmo... E por aí vai. Essa é a nossa tradição.

Por que o resgate dos antepassados rurais? Foi a partir do universo rural que o Rio

Grande do Sul se apresentou para o Brasil. Conforme já destacamos no Capítulo IV, a

formação do estado constituiu-se nos moldes de uma economia agropecuária (cf.

Pesavento, 1982). Daí, seu cognome de “celeiro do país”. O passado rural é a referência e a

fonte de inspiração para o Movimento Tradicionalista Gaúcho. A cultura rural tão

denegrida no meio urbano, como mostra os estudos de Julie Cavignac (2001) e Eunice

Durham (1984), é o arcabouço simbólico do Movimento. A marginalização do rural é

transformada numa positivação, onde o “rústico” é idealizado, exaltado e cultuado.

Se a tradição é o passado vivido em um ambiente particular, as mudanças não são

bem-vindas. Os tradicionalistas se constroem como os guardiões da tradição. Segundo

Oliven (1992b), para os tradicionalistas é fundamental demarcar quais são os verdadeiros

valores do gaúcho. Por isso um elemento importante do discurso tradicionalista é a

referência constante às ameaças que estariam pairando sobre a integridade gaúcha (op. cit.:

78). As ameaças vindas de fora são a massificação e a introdução de costumes alienígenas

propagados pelos meios de comunicação de massa. As ameaças vindas de dentro seriam as

169
deturpações de maus tradicionalistas pelo uso inadequado da indumentária, por aberrações

nas coreografias das danças gaúchas, etc. (Oliven, 1992a: 108).

Ao comentar sobre minha pesquisa com alguns gaúchos moradores da cidade, ouvia

comentários do seguinte tipo: “Ah, você está estudando os freqüentadores de CTG em

Brasília? Então, você deve estar estudando o CTG Jayme Caetano Braun. Ele é o mais

tradicional. Por que? Ah! É só visitar o site deles na internet para você ver”. Tentando

entender as razões para tal indicação, que soava como um elogio à entidade, visitei os

endereços eletrônicos dos dois maiores Centros de Tradições Gaúchas de Brasília: a

Estância Gaúcha do Planalto e o Jayme Caetano Braun.

O tradicionalismo utiliza a internet como um importante meio de divulgação de seus

pressupostos e práticas. Vários endereços eletrônicos já foram aqui citados. Os dois maiores

Centros de Tradições Gaúchas do Distrito Federal também fazem uso desse meio de

comunicação. Os sites contêm inúmeras informações sobre o tradicionalismo em geral e

sobre as atividades particulares de cada CTG. Fazendo uma análise comparativa entre os

sites da Estância Gaúcha do Planalto e do Jayme Caetano Braun 5, pude entender alguns

dos motivos pelos quais este era indicado como sendo o mais tradicional. Logo ao entrar na

página da Estância Gaúcha, vi uma fotografia que parecia ser a do grupo de danças do

CTG. Na foto, nem todos os integrantes usavam a indumentária típica gaúcha. Outro

aspecto interessante refere-se ao uso de um linguajar gauchesco. Na página do Jayme

Caetano freqüentemente o patrão do CTG escreve algumas linhas aos visitantes do site.

Esses recados, também chamados de chasque do padrão, podem ser mostrar

incompreensíveis aos que não compartilham dos códigos dessa cultura: “Ao bolear a perna,

pedimos licença para dobrar um peleguito sobre um cepo, se abancar e prosear um

5
Fontes eletrônicas disponíveis em www.ctgjcb.com.br e www.estanciagaucha.com.br.

170
pouco...”. Apesar de recorrer também a um linguajar gauchesco, no site da Estância

notamos uma preocupação com a “tradução” de alguns termos. A diretoria/patronagem do

CTG é apresentada numa linguagem acessível. Na apresentação dos integrantes não são

feitas referências aos termos patrão, sota-capataz, agregado da guaiaca, mas sim ao

presidente, vice-presidente, diretora cultural e diretor esportivo. Creio que todos esses

elementos visualizados no site da Estância Gaúcha do Planalto eram vistos por aqueles que

localizavam a tradição no CTG Jayme Caetano Braun, como descaracterizações.

Parafraseando Oliven (1992b), os tradicionalistas estão constantemente preocupados

em demarcar fronteiras, separando o puro do impuro, onde todo o cuidado é pouco (: 78). É

nesse contexto que surgem as normas e a elaboração de manuais e estatutos. Esses

documentos procuram traçar diretrizes. As normas e as leis documentadas servem para dar

uma espécie de idéia de autenticidade às manifestações culturais.

O conjunto de normas - na maioria das vezes, dispostas em atas, estatutos e outros

documentos - são vistos pelos informantes como essenciais para a manutenção do

funcionamento da entidade. Sendo assim, é preciso respeitá-las e segui-las. “Inventar” no

CTG? Só se forem regras. As regras procuram conter as inovações. Surgem dessa forma,

leis e estatutos, e um permanente estado de vigilância.

Porque se a gente não defende a nossa cultura, ela vai se modificar, ela vai virar um nada.
Claro que ela vai se modificando com o tempo, mas uma hora ela vai perder todas as
características até não ser mais ela. Aí eu acho que é errado. Tipo, que nem os negros... O
movimento de preservação da cultura deles... Se eles forem abrindo demais a cultura deles,
uma hora vai virar uma confusão e não vai ser mais nada. O negro não vai ter mais
identidade. Até que ponto é valida a globalização? Porque na globalização a gente não tem
terra, não tem espaço, não tem nada. É bom por um lado? È bom, mas tipo assim, todo
mundo interferir no seu país, todo mundo se meter nas suas coisas, todo mundo sabe? Você
perde. Tipo, o McDonald’s... Você tá comendo no McDonald’s todo o dia, e não tá
comendo um carreteiro. Até que ponto é bom essas mudanças? Então assim, Porto Alegre é
brabo.. eu falo que lá o pessoal quer inventar muitas coisas. Você pode ver que o sotaque de
Porto Alegre é mais... chiado, quer imitar o carioca [risos]. Se você for pegar o interior.

171
Tem um tio meu que só anda de bombacha, isso é ser gaúcho tradicional. É claro que a
gente não vai andar de prenda pra trabalhar. Mas toda a vez que eu estiver no CTG, numa
atividade, eu vou estar pilchada.

Se o que eles pretendem é uma vivência considerada fidedigna do passado, as

alterações geradas pelo tempo são vistas de forma negativa. As mudanças representam o

avesso da idéia de “tradicional”.

Porto Alegre, Santa Maria são cidades maiores, gostam de inventar moda, sabe. Eu fui num
Baile em Santa Maria, eu fiquei horrorizada. Baile em plena Semana Farroupilha... Eu não
admitia aquilo que era... Sabe as meninas? Porque o vestido de prenda é uma roupa de
época. A gente usa vestido de prenda hoje? Não usa, então, você tem que seguir... Você tá
representando uma época de antigamente. Você tem que seguir o que se vestia naquela
época. Têm estudos, tudo pra isso. Tipo assim... Antigamente, não se usava decote porque a
mulher era super reservada. E hoje as mulheres colocam decote. Isso já é invenção, já uma
invenção demais, eu acho. Então, veste logo uma mini-saia e um top. Porque aí você tá
correta, tá na sua época. Agora se você quer representar o antigamente tem que ser como
era antigamente. Aí tinha umas mulheres que colocaram uns véus que ai... até o chão.
Aquela coisa de inventar para aparecer. De misturar xadrez com veludo com bordado.
Coisa que não tem nada a ver de roupa assim. Então, isso eu sou contra, é ficar inventando
moda.

Inovações e invenções não são queridas. Os tradicionalistas gostam de deixar claro

que eles não inventam e nem encenam. Eles dizem viver algo que é “natural do gaúcho”.

No entanto, apesar dessa ênfase, a preparação dos tradicionalistas se aproxima em parte do

que Yvone Maggie Alves Velho (1977) observou a respeito da preparação de um médium

num terreiro de candomblé. O desenvolvimento dos médiuns é feito por meio de uma

espécie de aula preparatória para desenvolver os guias, semelhantes às aulas de preparação

de atores para que representem bem o seu papel. No CTG, por diversas vezes tive a

impressão de que estava num ensaio disciplinado para uma peça teatral. Jovens e adultos

passam seus finais de semana em ensaios sob a tutela de um professor de coreografias;

homens passam horas decorando poesias para as declamarem nas noites de poesia no CTG.

172
Mesmo com toda a preparação e exaustivos ensaios, as prendas e os peões do CTG

Jayme Caetano Braun enfatizam que as vivências do passado são revividas e não

reinventadas. Reviver e inventar são posturas muito diferentes nessa cultura nova e

moderna. Para eles, as inovações são consideradas como algo extremamente negativo. O

presente precisa ser pensado enquanto uma cópia fiel de um passado imaginado.

Alguns dados apontam para o fato de que esse passado “reproduzido” nos CTGs é

forjado, no sentido de que muitos dos elementos que compõe a cultura tradicionalista,

constituem-se em exercícios de imaginação de seus promotores. Os tradicionalistas fazem

uso de uma série de outras tradições para inventar a sua. A indumentária usada pelas

prendas é um bom exemplo dessa questão. Depois da fundação do primeiro CTG em 1945,

os tradicionalistas se depararam com a ausência de um traje feminino. Os homens usavam

bombachas e as mulheres? Consultando fotos antigas das próprias famílias, se inspirando

no traje de china das uruguaias e também no vestido caipira, criaram o hoje famoso vestido

de prenda 6.

Quase todas as manifestações que acontecem nos CTGs são frutos de um resgate

feito através de pesquisas bibliográficas (manuais de folclore, relatos de cronistas dos

séculos passado etc) e in loco. As danças foram coletadas nas pequenas cidades do interior

do Rio Grande do Sul por dois fundadores da primeira entidade tradicionalista, Paixão

Cortes e Barbosa Lessa. Após um encontro no Uruguai com diversos centros locais de

tradição, foram indagados sobre as danças que executavam. Até então, a resposta a tal

pergunta era uma negativa: eles não dançavam nada. Indignados, Barbosa Lessa e Paixão

Cortes realizaram entre os anos de 1949 e 1952, inúmeras expedições pelo estado,

objetivando registrar e catalogar “danças típicas”. Em suas incursões pelos rincões do Rio

6
Depoimento de Antonio Augusto Fagundes, retirado de Oliven (1992a: 113-114).

173
Grande do Sul, registraram cerca de vinte danças que são atualmente executadas nos

diversos Centros de Tradições Gaúchas de todo o mundo7. A necessidade de “descobrir”

essas manifestações culturais é comentada por Barbosa Lessa como um dilema, conforme

depoimento no livro de Ruben Oliven, A Parte e o Todo:

Descoberta (...) a força comunicativa da dança, Paixão Cortes e eu ficamos num dilema. Ou
voltar correndo a Montevidéu, para instantaneamente aprender com nosos “hermanos
orientales” as “danzas gaúchas de la grande pátria pampeana”, ou arregaçar as mangas e
revirar o Rio Grande do Sul na tentativa de descobrir cacos melódicos e coreográficos
reunidos e colados que, convenientemente reunidos e colados, se aproximassem de nossa
herança luso-brasielira (In Oliven, 1992a: 110).

As viagens e os registros dos idealizadores do MTG nos fazem lembrar das

expedições de Mário de Andrade pelo Brasil, com o propósito de catalogar manifestações

culturais de diversos estados brasileiros. Uma das idéias do Movimento Folclórico (1947-

1964) – do qual Mário de Andrade foi um expoente – era a de preservação, ou seja, os

elementos culturais deveriam ser preservados frente à ameaça da industrialização e da

modernização (Cavalcanti, 2001: 72). Os elementos culturais que mereceriam ser

preservados eram aqueles considerados tradicionais. Se os folcloristas buscavam no povo

as raízes autênticas e genuínas para definir a cultura nacional (Vilhena, 1997: 25), os

tradicionalistas encontram no homem rural as bases para a construção de uma cultura

regional.

Em “O Sentido e o Valor do Tradicionalismo”, Barbosa Lessa estabelece uma

diferenciação entre o folclorista e o tradicionalista. A diferenciação não impede que os

7
Informações retiradas da entrevista dada por Paixão Cortes ao Jornal Zero Hora, Caderno Cultura, sábado,
15 de maio de 2004.

174
estudos dos folcloristas sejam pensados e utilizados pelo autor como uma das fontes para a

ação do MTG, ou seja, para a “reafirmação das vivências folclóricas”:

Não se deve confundir o folclorista, por exemplo, com o tradicionalista: aquele é o


estudioso de uma ciência, este é o soldado de um movimento. Os Tradicionalistas não
precisam tratar cientificamente o folclore; estarão agindo eficientemente se servirem dos
estudos dos folcloristas, como base de ação, e assim reafirmarem as vivências folclóricas no
próprio seio do povo (Barbosa Lessa, 1976: 5).

O uso de fontes dos folcloristas para reafirmar a vivência gaúcha é recorrente. Além

disso, as fontes oficiais servem para demonstrar que as manifestações estão sendo

fomentadas de modo “correto”. Modo correto significa para os informantes, atualizar a

tradição de forma original, genuína e primitiva. Como se um participante do CTG pudesse

ser um fóssil vivo de um tipo que teria existido na região sudoeste do estado do Rio Grande

do Sul, a região de Campanha.

A tradição exaltada aqui é aquela que se aproxima da idéia de pureza. Essa tradição

vista na sua “primitividade” é extremamente positiva e idealizada. Ela é almejada e

perseguida pelos membros do CTG. Toda a atenção é dirigida à formulação de uma

linguagem ritual considerada como original do universo rural. Tal mundo coloca-se como o

avesso dos discursos “ameaçadores da globalização do mundo atual”. O tradicionalismo é

para seus fomentadores uma esperança de um mundo repleto de valores considerados

tradicionais:

Porque gaúcho é sangue quente. Gaúcho é sangue quente mesmo, entendeu? Se altera e as
posições são bem firmes, são bem tradicionais, é difícil de ceder nas posições. Outra coisa,
a família tá muito presente no Movimento Gaúcho, isso é muito importante analisar. O
CTG tem muito essa questão de família, de nome. Outra coisa importante é o seguinte: o
que eu tenho pra falar eu falo na cara. Eu não sou de falar pelas costas. Esses são os valores
do gaúcho, entendeu? Valores que estão perdidos hoje na sociedade. Valores que a
sociedade abandonou com o tempo. Porque hoje a pessoa te fala eu te amo, eu te adoro,

175
você é legal, você é minha amiga e você não sabe se você acredita nela ou não. Porque?
Porque a palavra das pessoas não vale nada hoje, né? Pela palavra...você faz um contrato
com uma pessoa pela palavra? Hoje você vai querer um papel, né? Porque com Weber vem
a burocracia também (risos). Toda aquela questão, né, de distanciamento e tal. Que eu
também não sei, às vezes eu fico me questionando até que ponto que é bom a gente manter
alguns valores, mas até que ponto também é bom a gente perder tantos valores. (...) Então,
na nossa tradição a gente tenta resgatar esses valores. A sociedade gaúcha é uma cultura
baseada no mundo rural, entendeu? Então, é uma sociedade baseada muito nisso, na
palavra, na honra, na ética, na família tradicional, na família grande, essas coisas.

Para os participantes do CTG, a tradição e o folclore são reações ao possível

desvirtuamento do mundo urbano. A tradição é entendida numa perspectiva romântica a

partir da idéia de primitivismo – retomada e preservação das tradições – e do purismo – a

tradição do povo ou do camponês não é contaminada pela vida urbana (cf. Chauí, 1986).

Sobre o Movimento Folclórico, Rodolfo Vilhena (1997) argumenta que a ação dos

folcloristas estava calcada na mobilização dos seus integrantes e da sociedade envolvente.

“Essa ação põe em prática um projeto tornado possível graças a sua capacidade de

estabelecer uma definição da realidade de modo convincente, coerente e gratificante” (op.

cit.: 33). Como o Movimento Folclórico, o Tradicionalismo é um movimento que

pressupõe a mobilização de seus membros. Uma mobilização constituída não apenas no

nível institucional, mas também no campo simbólico, ou seja, na “definição de visões de

mundo e de um ethos que orientam a ação dos atores sociais” (op.cit.: 33).

Em certa medida e com um certo cuidado podemos dizer que a intenção do resgate

dos valores da causa tradicionalista extrapola o ambiente do CTG, atingindo o âmbito da

casa e da rua. Muitos informantes, principalmente os mais jovens destacam a presença do

tradicionalismo em suas vidas num misto de questionamento e aceitação. O depoimento

abaixo é longo, mas muito ilustrativo:

176
(...) faz parte da minha identidade, da minha construção. Não tem como eu negar isso.
Então, tanto é que o meu relacionamento anterior com o meu ex-namorado foi um
relacionamento muito submisso. E eu acredito que tenha sido tudo isso por conta da....como
eu vou te falar...formação mesmo. (...) O meu pai é uma pessoa muito autoritária. Ele é o
chefe da família. Só que agora a gente tá revertendo isso. Mas durante um bom tempo ele
era o chefe, ele quem dava a palavra final. Eu cansei de viajar, porque eu tinha uma bolsa
de pesquisa da CAPES, porque eu fui aluna bolsista, brigada como meu pai. Porque meu
pai não aceitava que eu viajasse na faculdade. Com dezoito anos eu não podia ir no cinema.
Com quinze anos, eu me arrumei bonitinha pra ir na festa da Igreja e ele não deixou. Porque
ele falou que eu não pedi pra ele. E aí tem todo aquele papel da minha mãe interceder, mas
de se calar. Aquele medo, aquela coisa. (...) E por um bom tempo eu fiquei sem
comunicação com o meu pai praticamente por conta desse jeito dele que eu não aceitava. E
de ver a minha mãe sofrendo. Só que chegou uma hora também que eu percebi. É o modo
deles se organizarem, até que ponto vale a pena você ficar questionando, questionando,
questionando?. Ou até que ponto vale a pena você quebrar com tudo? Porque faz parte de
você e você vai tá quebrando com você mesma. Até que ponto eu vou virar atéia e vou sair
da minha casa e não quero mais falar com o meu pai e a minha mãe? Eu vou tá quebrando
comigo mesma. Porque eu sou aquilo querendo ou não. Eu muitas vezes achei que eu era
diferente, que eu era evoluída que eu era sei lá super pra frente, moderna. Mas não sou. Não
sou porque é muito difícil você quebrar com uma formação desde criança, da infância, de
tudo, de comportamento. Você quebra, quebra um pouco, mas não totalmente, fica a base.
(...) É bem complicado essa coisa da mulher. Mas a mulher tá ocupando o seu espaço dentro
do CTG. É muito difícil. (...) Às vezes, eu fico me questionando até que ponto eu tenho que
ficar mantendo uma cultura gaúcha que é tão tradicional, que é tão antiga? Mas, ao mesmo
tempo eu olho pro moderno e vejo as mesmas crises (risos). O vazio do moderno, o vazio
das palavras, o vazio de um monte coisas, eu vejo. Então, o ideal é o equilíbrio, né?

Vários autores problematizam o uso do termo comunidade para se caracterizar

formas de sociabilidade em espaços urbanos. As comunidades - no sentido sociológico do

termo – passaram a ser difíceis de se encontrar, e suas experiências no mundo atual geram

laços de natureza superficial e transitória entre seus participantes (Hobsbawn, 1996;

Bauman, 2003; Wolf, 2003). Longe de querer nomear o CTG Jayme Caetano Braun como

uma possível comunidade urbana, creio que os laços estabelecidos nesse espaço podem

propiciar um tipo de rede de responsabilidades e compromissos mais sólidos entre os seus

partícipes. São manifestações e valores que são experimentados no ato, mas também são

levados para a casa e consumidos na rotina diária, é claro, com algumas reservas. Afinal, a

não ser na Semana Farroupilha, ninguém vai ao trabalho trajando bombachas ou vestidos de

177
prenda. Porém, tenta-se ser sempre gaúcho tradicionalista, seja no CTG, na rua ou em casa.

Como me dizia um informante: “Você é gaúcho, você não está gaúcho”.

O discurso da defesa da tradição parece se intensificar no contexto de Brasília. Fora

do seu habitat de origem, a tradição é representada de uma forma considerada mais fiel e

verdadeira aos valores do tradicionalismo. Muitos informantes consideram cidades gaúchas

como Porto Alegre e Santa Maria como não tradicionais e deturpadoras do tradicionalismo.

O discurso da defesa da manutenção da “tradição tradicional” é tão intenso no CTG Jayme

Caetano Braun, que gera estados de espírito e sentimentos, ações de preservação e regras

rigorosas capazes de fazerem do lugar o centro por excelência da tradição.

E os CTGs lá do Sul? (pesquisadora)


Eu acho assim quando você tá lá no Rio Grande do Sul, o povo meio que não dá muito
valor. Eu acho que o povo tinha que rever os conceitos. Aqui acho que tem muita criança
que vem com os pais. Eu acho que isso que tinha que ser o importante: passar isso pros
pequenos. E lá a gente vê Invernada Mirim, mas o pessoal que freqüenta é um pessoal que
não tá muito ligado, não dá muito valor mesmo. Então, eu acho que isso já quebra muito do
cultural. Acho que tu tá num CTG, tu tá numa sede tem que tá preparado pra aquele
ambiente. Por exemplo, a gente na Igreja a gente põe uma roupa, ou num clube tem uma
roupa específica pra ir. Lá, o pessoal perdeu um pouco a noção disso. E daí quando eu fui
pra lá, criada aqui em Brasília, meus pais, pessoal gaúcho, criada aqui nessa tradição nessa
cultura, e ir pra lá e ver essa situação do povo não dar muito valor, a gente fica meio triste
assim. Mas, não tem muito o que fazer. O pessoal primeiro tem que por a mão na
consciência e lembrar que tem uma cultura mais forte que isso. (....)Quando eu cheguei no
Sul há dois anos atrás até o primeiro ano assim pra me achar foi difícil. (...) Mas, o convívio
com o CTG eu não to tendo. Fui algumas vezes, mas... Até os próprios conjuntos lá...
Bandas jovens que sobem em cima do palco com bombacha, bota, muitas vezes não tá
representando bem a cultura. E é isso que tá errado. É porque assim, têm bandas que ao
invés de pegar assim músicas tradicionais, antigas e passar pro dia de hoje, eles não fazem
isso. Tem banda lá que pega música de axé, de forró e meio que mistura. Mas, não é a
mesma coisa. Porque a pessoa que vai lá já ouviu essa música de outro jeito. E colocar
debaixo de uma sede, de um CTG que é uma coisa cultural, fica meio estranho. Eu que sou
jovem não gosto dessas bandas jovens que têm lá. Porque eles não tratam bem a tradição.
(...) É muito estranho.

O que faz Brasília ser considerada o lugar em que CTGs são mais tradicionais não é

apenas o fato de que as manifestações culturais quando estão fora de seu contexto original

178
tornam-se sujeitas a regras mais rigorosas de manutenção seguidas e inventadas pelos seus

praticantes. Por trás da idealização do CTG Jayme Caetano Braun como o lugar por

excelência da tradição, existe uma outra questão que creio ser também uma das principais

motivações dos informantes para participarem ativamente das atividades da entidade: a

necessidade de pertencer a um grupo.

A entidade é o lugar do encontro. O encontro representa a possibilidade concreta do

estabelecimento de vínculos sociais entre os freqüentadores. Muitos estabelecem entre si

redes sociais que vão para além do ambiente do CTG. Os participantes freqüentam as casas

dos outros, são convidados para batizar filhos de seus pares, relacionamentos amorosos se

estabelecem ali, etc. A família, o convívio com os conterrâneos, a amizade, as redes de

relações sociais estabelecidas, são fundamentais para a explicação da presença de tantos

gaúchos no CTG Jayme Caetano Braun.

Certo dia conversava informalmente com um jovem recém-chegado do Rio Grande

do Sul. Sua fala era saudosista: “no Sul era assim”, “no Sul fazia isso”, “fazia aquilo”. O

jovem dizia não gostar de Brasília por inúmeras questões: dificuldade de deslocamento,

ainda não estava “enturmado”, o clima seco, etc. No entanto, o seu gosto pelo Rio Grande

do Sul não era suficiente para lá permanecer. Ele bem que empreendeu algumas tentativas.

Sua família veio para Brasília e ficou morando sozinho. Ao final da conversa me disse em

tom de decepção: “Mas, aí não consegui ficar sozinho lá e tive que vir embora”. Sozinho,

mesmo no Sul, nem pensar.

Abaixo, um informante resume o significado de estar inserido no CTG:

Eu acho assim... que a cultura ela mexe muito com o sentimental. E eu particularmente sou
muito sentimental. E tem esse lance de sangue. Eu acho que conta muito isso, família. E o
folclore é muito bonito assim no geral. Eu acho que tem muito convívio. Eu acho que as

179
pessoas hoje em dia não têm muita amizade, não tem muito convívio. E o CTG é uma coisa
que junta, e isso é muito legal.

O depoimento acima nos mostra que as manifestações culturais são acionadas não apenas

para fazerem com que os deslocados se sintam mais perto de sua terra natal. No CTG

Jayme Caetano Braun em Brasília, a atualização das tradições ultrapassa as fronteiras do

saudosismo. A tradição serve para aproximar as pessoas, travar relações e estabelecer laços

que vão para além do CTG. Esse é o principal motivo pelo qual o CTG Jayme Caetano

Braun e todas as suas manifestações, são acionados por alguns gaúchos residentes na

capital federal. Retomaremos essa questão no Capítulo VII e ainda na Conclusão.

180
PARTE III

CANTADORES NORDESTINOS E

TRADICIONALISTAS GAÚCHOS EM BRASÍLIA

181
CAPÍTULO VII

Casa do Cantador e CTG Jayme Caetano Braun: um exercício comparativo

A análise da Casa do Cantador e do CTG Jayme Caetano Braun nos coloca diante

de questões comparativamente interessantes. Na dinâmica das duas entidades impõem-se

aspectos particulares e outros que as aproximam. Neste capítulo, minha intenção é a de

empreender um exercício comparativo entre os cantadores nordestinos e os tradicionalistas

gaúchos em Brasília no que toca às idéias de coletividade, às construções de imagens

acerca do migrante e de tipos regionais; e aos processos de identificação, fornecidos através

do sentimento de pertença a determinadas esferas sociais. Alguns pontos já levantados nos

capítulos anteriores serão retomados, agora numa perspectiva comparativa. Abaixo,

encontra-se um esquema comparativo de certas noções nativas em torno da quais gravitará

nossa discussão:

Casa do Cantador CTG Jayme Caetano Braun


A noção de conterrâneo A noção de comunidade
Migrante nordestino Migrante gaúcho
Deslocamento rural-urbano Deslocamento urbano-urbano
Brasília: o imaginário da terra da Brasília: o imaginário da cidade banal
oportunidade
O rural do atraso: o sertão O rural da utopia: a campanha
A tradição enquanto arte A tradição enquanto folclore

Nós cantadores e nós tradicionalistas: a idéia do conterrâneo e da comunidade.

Antes de iniciarmos as análises a respeito dos modos como os nativos tornam

visível a existência de uma certa noção de coletividade, são necessárias considerações sobre

a maneira como os termos cantador e tradicionalista vêm sendo empregados nesta tese. Os

182
termos são utilizados num sentido genérico uma vez que encobrem diferenças. Essas

pessoas desenvolvem diferentes atividades, possuem valores igualmente diversos e se

relacionam com outras esferas sociais para além da Casa do Cantador e do CTG Jayme

Caetano Braun. As categorizações, cantadores e tradicionalistas, não são feitas com a

intenção de expressarem identidades fixas compartilhadas. No entanto, reconhecer a

generalidade de tais caracterizações não é negar o seu teor aproximativo. E, a aproximação

é dada na medida em que os indivíduos aqui tratados como cantadores e tradicionalistas são

protagonistas de eventos particulares e de processos de autoconstrução de imagens que

expressam determinadas noções e comportamentos capazes de uni-los.

“Em sociedades complexas, é impossível – a não ser em situações muito

específicas – encontrar homogeneidade cultural em grupos de contornos tão vagos”

(Vianna, 2001: 47). Nesse sentido, o “grupo” tão enfatizado nas análises das Ciências

Sociais não pode ser identificado claramente pelo pesquisador. A idéia de grupo cede lugar

à noção mais fluída de agrupamentos pontuais. Segundo Eric Wolf (2003), atualmente não

é mais legítimo supor que qualquer membro de um dado grupo exibirá certas regularidades

de comportamento que são comuns em alto grau entre outros membros da sociedade (:

220). Por exemplo, sobre a atualidade do conceito de comunidade, Wolf nos diz:

O conceito de comunidade imaginava os microcosmos como paraísos de sociabilidade e


solidariedade. Pensava-se que a sociedade, por sua vez, tirava energia e virtude dessas
entidades moralmente integrais. Quando estudadas empiricamente, no trabalho de campo,
os microcosmos reais às vezes correspondem a essas expectativas, mas em outros casos,
não. Em alguns contextos, seus habitantes realmente falam de companheirismo cálido e
envolvente; em outras ocasiões, as mesmas pessoas descrevem arenas cheias de iniqüidades
e conflitos (op. cit.: 353-354).

183
Assumir a relatividade desses conceitos na atualidade, não impede que o antropólogo

mapeie determinadas “formas culturais que os grupos envolvidos na mesma rede de

relações podem usar em seus procedimentos uns com os outros (...) Elas [formas culturais]

proporcionam o idioma cultural do comportamento e de representações ideais” (op. cit:

119).

Feitos os devidos esclarecimentos, algumas perguntas surgem. Até que ponto a

participação em “agrupamentos pontuais” chega a contaminar as outras atividades do

indivíduo? O “pertencimento” fornece ou produz se não identidades marcantes, mas algum

tipo de processo de identificação? Vamos tentar responder às perguntas a partir das

respostas fornecidas pelos próprios nativos. Porque, apesar de ao nível do discurso

analítico, a categoria grupo não poder ser utilizada de modo homogêneo e indiscriminado,

os envolvidos nos processos culturais aqui analisados ressaltam a existência de um “nós”. E

a maneira como a idéia do “nós” é acionada pelos cantadores nordestinos e pelos

tradicionalistas gaúchos, apresenta diferentes matizes.

O “nós” é acionado pelos freqüentadores do CTG através de vários mecanismos.

Para os tradicionalistas, a idéia de grupo é fomentada de forma intensa. Com essa

intensidade quero dizer que notamos, explicitamente, a intenção do “grupo” de ser

reconhecido como tal pelos de fora e pelos os de dentro. Essa tentativa de autoconstrução

pode ser observada nos discursos e na dinâmica dos eventos promovidos pelos

tradicionalistas. Vários exemplos já foram citados na Parte II desta tese, quando da análise

do CTG Jayme Caetano Braun. O uso de uma indumentária considerada típica; a decoração

do cenário onde se localiza a sede do CTG; o ensaio disciplinado dos eventos promovidos;

falas públicas proferidas em comemorações, ressaltando de modo direto a particularidade

184
da entidade e de seus participantes, ajudam aos visitantes e, inclusive, à pesquisadora a

identificar aquelas pessoas como pertencentes a um grupo que quer se enxergado como tal.

Por várias vezes, ouvi os tradicionalistas se referirem ao CTG Jayme Caetano Braun

como sendo a representação da comunidade gaúcha em Brasília. Ao conversarmos, os

informantes sempre falavam conjugando o verbo na primeira pessoa do plural. “Aqui nós

somos uma grande família”; “aqui nós somos uma verdadeira comunidade”, foram frases

que ouvi no primeiro dia em que me apresentei com o propósito de fazer uma pesquisa

antropológica e que continuei ouvindo no decorrer de todo o trabalho de campo. No

discurso nativo, a idéia de comunidade aparece com força: tudo é feito em nome dela.

Vale aqui fazer um breve parênteses. Analisando as falas e observando

comportamentos, podemos dizer que apesar de ser o CTG um lugar propício à tessitura de

redes de amizade, os conflitos, as desconfianças e as tensões estão presentes no ambiente.

Durante a realização da pesquisa de campo não tive a oportunidade de acompanhar o

processo eleitoral feito de dois em dois anos para eleger a diretoria do CTG. No entanto, ao

relatarem tais episódios, os informantes entram num universo de disputas políticas e de

status dentro da entidade. As disputas e os conflitos não acontecem apenas nesses

momentos extraordinários e periódicos. É comum o afastamento de sócios que se

desentendem por questões que envolvam assuntos sobre a administração do CTG. É

significativo que esses afastamentos não sejam muito comentados, gerando um certo

desconforto naqueles que os mencionam. Quero deixar claro que ao pensar o CTG como

um lócus para a construção de redes de relações, não pretendo fomentar uma imagem

harmônica da entidade. Analisando antropologicamente o CTG Jayme Caetano Braun,

poderíamos vê-lo não como uma comunidade, como querem os informantes, mas como

185
uma instituição que desempenha um papel muito importante na integração de determinadas

pessoas.

A união é fomentada também pela presença das redes de parentesco na dinâmica do

CTG. A família, principalmente a família nuclear, participa das atividades do CTG Jayme

Caetano Braun. Em outras palavras, a participação de um indivíduo na entidade é feita em

conjunto com alguns membros de sua família. Conforme já foi dito em outro momento, na

maioria das vezes o homem começa a freqüentar o CTG e logo em seguida, é seguido por

sua mulher e filhos. O sentido de nós é fornecido tanto pela criação de um ideal

comunitário, como pela participação de diversas famílias no dia-a-dia da entidade. A

presença das famílias na dinâmica da entidade intensifica a imagem da existência de um

grupo e da união entre seus partícipes.

Outra questão importante a ser destacada diz respeito ao sentido de clube assumido

pela entidade. Os freqüentadores do CTG recebem a denominação de sócios. No Estatuto

Social do “clube”, as categorias de sócios são várias e se diferenciam de acordo com o tipo

de participação do indivíduo. Existem os sócios fundadores – “todos aqueles que

escalonaram as etapas iniciais de implantação do CTG-JCB”; permanentes – “aqueles que,

através de proposta a Patronagem, as tenham aprovadas, com pagamento de jóia e

mensalidade em tempo indeterminado”; beneméritos – “todos os agraciados pela

Patronagem que (...) tenham prestado, comprovadamente, relevantes serviços para a

Entidade”; e os eventuais – “aqueles que aqueles que, através de proposta a Patronagem, as

tenham aprovadas sem pagamento de jóia (...) esta categoria atende aqueles que manifestem

186
o desejo de participar das atividades sociais do CTG-JCB por tempo determinado” 1. Os

sócios assumem direitos e deveres dentro do CTG. São direitos dos sócios:

indicar e discutir medidas que lhes pareçam úteis, bem como levar ao conhecimento da
Patronagem, irregularidades de que tiver ciência (...); manifestar-se, votar e ser votado nas
Assembléias Gerais; ser nomeado, a convite para cargo de confiança administrativo;
representar o CTG-JCB em atividades ligadas aos fins da entidade (...). São deveres dos
Sócios: conhecer, cumprir o Estatuto Social do CTG-JCB; pagar em dia suas mensalidades
(...); zelar pelo patrimônio, objetivos e finalidades do CTG-JCB, e orientar para que os
outros o façam. 2

Enquadrados nas categorias de sócios, os indivíduos não apenas contribuem

financeiramente com a entidade, como também assumem determinados compromissos. De

acordo com o grau de envolvimento e com a posição na hierarquia dos sócios, o indivíduo

tem o compromisso moral de comparecer aos eventos promovidos pelo CTG Jayme

Caetano Braun e de trabalhar para o desenvolvimento do mesmo.

Ao falar de compromissos morais, nos aproximamos de um dado fundamental. Por

trás da participação num Centro de Tradições, está a idéia da inserção em um Movimento, o

Movimento Tradicionalista Gaúcho. Rodolfo Vilhena (1997) fornece argumentos

interessantes para pensarmos o significado de pertencer a um Movimento. Suas questões

referem-se ao Movimento Folclórico Brasileiro (1947-1964), mas podem ser deslocadas

para o contexto do Movimento Tradicionalista Gaúcho.

A noção ou o sentimento de pertença a um movimento implica na adoção de um

ideal de engajamento (Vilhena, 1997: 173). Existe uma causa comum a ser defendida e que

serve de incentivo para que os evolvidos se comprometam com a ação (op. cit.: 210). No

caso do MTG, o engajamento implica na defesa das tradições gaúchas. A defesa de uma

1
Os trechos deste parágrafo que estão entre aspas foram retirados do Estatuto Social do Centro de Tradições
Gaúchas Jayme Caetano Braun.
2
Estatuto Social do CTG Jayme Caetano Braun.

187
causa gera um certo clima de euforia entre os integrantes do Movimento e uma maior

mobilização em prol de interesses comuns. Tal comprometimento expressa processos de

identificação. Fazer parte desse Movimento significa compartilhar uma série de noções e

conseqüentemente, almejar comportamentos ideais correspondentes. Com isso quero dizer

que ser tradicionalista é também uma postura de vida.

O pertencimento ao MTG tem repercussão em algumas esferas na vida do

indivíduo. No CTG Jayme Caetano Braun, ser tradicionalista está refletido em três âmbitos:

na casa, no trabalho e na esfera dos círculos de amizades do indivíduo. No âmbito da casa,

a família pode dedicar boa parte de seu tempo livre a assuntos do CTG e do

tradicionalismo. O tradicionalismo é algo que merece atenção; é algo que eles vivem no

cotidiano 3. Quanto ao âmbito profissional, para muitos participantes, a “descoberta” do

CTG acontece muitas vezes no trabalho. Além de compartilharem o fato de freqüentarem o

CTG, eles compartilham a profissão de militar. Por fim, o CTG constitui-se num lugar

propício à formação de novas amizades. Ali são construídos laços que extrapolam o

momento em que se encontram no CTG: jovens tradicionalistas namoram entre si, laços de

compadrio são firmados, etc.

Feita a caracterização do contexto do CTG Jayme Caetano Bran, vimos que a

erupção do “nós” é acionada pela criação de um ideal de comunidade; pelo acionamento de

laços de parentesco; e finalmente, pelo sentimento de pertencimento ao Movimento

Tradicionalista Gaúcho, fato que gera compromissos e comprometimentos morais.

Resta agora, fazermos a caracterização do contexto da Casa do Cantador. De que

forma a construção de um nós é feita? A imagem de “grupo” é fomentada com tanta

3
Um exemplo dessa questão pode ser visto em depoimentos do Capítulo VI.

188
intensidade como no CTG Jayme Caetano Braun, ou o acionamento do “nós cantadores

nordestinos” se dá apenas em algumas situações?

Quando mudamos para o panorama da Casa do Cantador, não podemos identificar o

sentido de engajamento, que tem a participação do indivíduo na instituição; nem a criação

de um ideal de comunidade fomentado pelos informantes; e nem a existência de laços de

parentesco, compondo a dinâmica da entidade. Os recursos utilizados para a construção do

“nós cantadores nordestinos” são outros, e só são acionados em contextos específicos.

Para um pesquisador seria difícil identificar a partir do cenário da Casa do Cantador,

a existência de um grupo coeso. Os contornos de um possível “grupo” são mais fluídos. A

princípio, não existem recursos analiticamente capazes de fornecer a idéia da presença de

um “nós”. Por exemplo, na Casa do Cantador, os momentos rituais capazes de acionar “o

grupo” em torno de propósitos comuns são poucos. Vimos, em outro momento desta tese,

que atualmente o único evento promovido pela entidade, voltado especificamente à

divulgação da cantoria nordestina, é a Cantoria de Pé de Parede. Esses encontros não

mobilizam uma quantidade significativa de pessoas. No início do trabalho de campo, as

Cantorias de Pé de Parede eram realizadas semanalmente, em virtude do pequeno número

de pessoas presentes, a freqüência dos eventos passou a ser mensal ao final da pesquisa.

Caso um visitante entre pela primeira vez na Casa do Cantador, salvo a estátua do

cantador com sua viola, não existe nada nas instalações que identifique o espaço como

sendo um local destinado à cantoria nordestina no Distrito Federal. Se esse visitante

hipotético não fosse numa noite de Cantoria de Pé de Parede, a Casa poderia ser confundida

com um centro cultural qualquer. Ao contrário, no CTG Jayme Caetano Braun, antes de

entrar propriamente nas dependências físicas do espaço, afixada na porta de entrada

principal, uma placa metálica com dizeres esclarecedores saúda ou adverte o visitante,

189
deixando claro que ele está entrando num lugar especial 4. A especialidade da entidade é

intensificada pela sua decoração com bandeiras do Rio Grande do Sul, logotipos, faixas,

quadros com motivos gauchescos, fotografias de homens e mulheres trajando

indumentárias típicas, etc. Enfim, a visibilidade do espaço como um local típico; a erupção

e invenção de símbolos e a importância de torná-los visíveis, são diferenciadas nas duas

entidades.

A organização da sede da Casa do Cantador e a disposição do cenário onde são

realizadas as cantorias não são feitas de modo a diferenciar, tão enfaticamente, o ambiente

como um local da cantoria nordestina em Brasília. As instalações, assinadas pelo arquiteto

Oscar Niemayer e dispostas numa cidade satélite se diferenciam não do cenário de Brasília,

mas sim da paisagem da Ceilândia. Os traços modernistas do prédio o aproximam das

demais construções do arquiteto situadas no Plano Piloto.

A decoração do ambiente como um local típico e a realização de eventos que

enfatizem essa tipicidade podem passar por uma questão de cunho financeiro. A Casa

sobrevive com os parcos recursos repassados pela Administração da Ceilândia. A verba

destinada à realização de eventos e aos reparos na estrutura da sede é ínfima. O que pensar

sobre os gastos com uma possível decoração especial do espaço? No entanto, creio existir

uma outra dimensão que perpassa o fato do local não se fazer típico ao extremo, pelo

menos não do modo como acontece no âmbito do CTG Jayme Caetano Braun.

Se na Casa do Cantador não é possível identificar claramente a existência de um

grupo coeso e diferenciado, é porque essa não é a intenção dos próprios informantes. Por

uma série de motivos parece que a tentativa não é, como no caso dos tradicionalistas, tornar

4
Vide Capítulo IV.

190
explícita algum tipo de diferenciação. O importante para os cantadores nordestinos em

Brasília é a aproximação ao ambiente no qual estão inseridos.

Na literatura especializada sobre o assunto, a origem da cantoria nordestina é

situada no universo rural, mais especificamente no sertão nordestino (cf. Barroso, 1949;

Mota, 1987; Câmara Cascudo, 2001 e 2005). A vinculação a esse ambiente é também

reconhecida pelo senso-comum. O meio rural ao qual os cantadores estão vinculados é

caracterizado a partir de alguns traços. As representações em torno do sertão nordestino o

colocam muitas vezes, próximo às noções de atraso e subdesenvolvimento. Um

subdesenvolvimento e atraso que advém de diversas fontes: condições climáticas adversas,

questões econômicas, políticas e sociais.

Nessas representações sobre o “cantador sertanejo”, as idéias associadas ao

analfabetismo e à pobreza estão bastante presentes. Por ser uma manifestação baseada na

oralidade 5, os improvisadores de versos não precisam ser alfabetizados para se tornarem

cantadores. E realmente, no passado, vários cantadores eram analfabetos. Algumas dessas

imagens estão cristalizadas. Ao mencionar que estava fazendo uma tese sobre cantadores,

muitas pessoas manifestavam reações de desagravo: “Poxa! Como você foi escolher esse

tema? Repentista é muito chato!”. Para essas pessoas, os repentistas eram aqueles que

entoavam versos em troca de algum trocado, importunando turistas nas praias do Nordeste

ou atrapalhando os pedestres nos grandes centros urbanos. Nesse contexto, a cantoria

nordestina é vista como uma manifestação banal e muito próxima do ato de mendicância.

Bem, os cantadores da Casa do Cantador na Ceilândia são muito diferentes dessas

imagens tecidas por aqueles que não compreendiam minha vontade de estudá-los. Em

primeiro lugar, nenhum no total de aproximadamente vinte cantadores em Brasília, é

5
Voltaremos a essa questão ainda neste Capítulo.

191
analfabeto. Alguns, inclusive, fazem curso superior. E todos têm uma preocupação

excessiva no manejar as palavras de forma gramaticamente correta. Para isso, eles dedicam

algumas horas de seu dia à leitura de Gramáticas da Língua Portuguesa. Para se manterem

bem informados, lêem jornais, revistas e assistem noticiários televisivos. Durante as

cantorias, eles demonstram familiaridade com assuntos da atualidade econômica, política,

social e cultural do país e do mundo.

O uso considerado gramaticalmente perfeito da língua portuguesa, a educação

formal, o conhecimento geral são alguns dos ingredientes utilizados pelos cantadores

estudados por mim para a construção de uma imagem que os distancie da noção de atraso,

onde são vistos como analfabetos, pobres e ainda por cima, chatos. Nas grandes cidades

brasileiras, os cantadores procuram se diferenciar de um ambiente originalmente associado

ao atraso, procurando formas e estratégias de inserção no meio urbano.

Apesar de toda a tentativa de se tornarem “comuns” no ambiente da atualidade,

podemos identificar a presença de um “nós” capaz de diferenciar os informantes. É

justamente essa vontade de se igualar que os diferencia. Poderíamos dizer que eles estão

unidos pelo fato de serem cantadores nordestinos em Brasília. Tal traço permite que

mapeemos similaridades de comportamentos e noções próprias dessa categoria social,

intitulada pelos próprios nativos de “cantadores nordestinos em Brasília”. Tais noções

referem-se a um modo bastante particular de autoconstrução: acima de tudo, eles são

artistas. No momento, não examinaremos essa questão na medida em que ela nos remete a

uma dimensão que será examinada no terceiro item deste Capítulo. Por ora, nos deteremos

na discussão da idéia de conterrâneo.

Nos discursos dos cantadores, o “nós” pode ser acionado a partir da descoberta do

ser conterrâneo. “Onde foi que você enterrou o seu umbigo?”, é uma pergunta-chave nas

192
Noites de Cantoria. E dependendo da resposta, laços sociais podem ser tecidos, pelo menos

momentaneamente, entre os cantadores e a platéia.

Muitas pessoas aparecem na Casa do Cantador após ouvirem a divulgação, feita por

meio radiofônico ou televisivo, de que um conterrâneo seu irá fazer uma cantoria

nordestina. Lembrando que mesmo aqueles cantadores residentes em Brasília por mais de

quinze anos, são anunciados tendo como referência seus estados natais. Ser conterrâneo

permite que o público e o cantador conversem durante os intervalos da cantoria, troquem

endereços, lembranças e abraços efusivos. No entanto, são contatos, na maioria das vezes,

momentâneos. Os laços mais duradouros são estabelecidos entre os próprios cantadores.

Nesse contexto, ser conterrâneo perde a referência da cidade natal e é alargado para o

sentido do “ser nordestino”. Esses laços são os principais responsáveis pela fixação

permanente de novos cantadores no Distrito Federal. A convite e através da influência de

cantadores já fixados na cidade, muitos cantadores nordestinos decidem tentar a vida na

capital do país.

Na verdade, a vinda de outros cantadores do Nordeste é a principal forma de

reprodução da cantoria na capital federal. Ao contrário do que se passa no CTG Jayme

Caetano Braun, onde a participação do indivíduo na entidade é feita em família, na

dinâmica da Casa do Cantador, os laços de parentesco não são acionados. No universo

estudado, não vi nenhum filho de cantador “seguir os passos” do pai. A reprodução do

grupo é dada através da chegada de novos migrantes nordestinos a fim de exercerem a

cantoria em Brasília.

Por não se fazerem presentes em sua dinâmica, as estruturas de parentesco; por não

constituir um movimento cultural e ideológico organizado; por não fomentar um ideal de

comunidade; e nem por ter a intenção explícita de tornar o ambiente estritamente típico,

193
talvez seja mais difícil identificar em primeira mão, a noção de grupo. Diferente dos

tradicionalistas, os cantadores não fomentam um reconhecimento público da idéia da

existência de um grupo diferenciado. Porém, apontar a Casa do Cantador ou o CTG como

grupo ou não, não é definitivamente a intenção desta tese.

Tomo tanto a Casa do Cantador como o CTG Jayme Caetano Braun enquanto

agrupamentos sociais. Ambas entidades desempenham o papel de integrar determinadas

pessoas em torno de manifestações culturais. São lugares que por mais heterogêneos,

agrupam indivíduos em torno de idéias e comportamentos acerca da noção de tradição.

Apesar dos modos diversos como essa idéia é apropriada pelos dois agrupamentos, é o

discurso da tradição que cria as entidades.

O modo como a noção de tradição é acionada e posta em ação será analisado

adiante. Antes, porém, algumas considerações são necessárias. Elas se referem à

caracterização do deslocamento vivido pelos informantes e às construções das imagens do

migrante nordestino e do migrante sulista – onde alguns são mais migrantes do que outros.

Deslocamentos, migrantes, rural, urbano e Brasília.

Estamos tratando de indivíduos, cujas vidas são marcadas por muitos deslocamentos

espaciais. Cantadores e tradicionalistas, antes da fixação no Distrito Federal, já residiram

em várias outras cidades do Brasil. No entanto, as características dos deslocamentos

apresentam algumas particularidades em cada um dos processos aqui analisados. Tais

características estão situadas em dois níveis: um mais concreto, ou seja, a caracterização

que diz respeito à rota do deslocamento; e outro nível de cunho mais simbólico e profundo,

194
ou seja, aquele onde estão situadas as expectativas em torno do processo migratório e as

noções sobre migrantes e tipos regionais.

Grande parte dos cantadores, que se encontram na capital federal, nasceram em

regiões rurais do interior nordestino. Muitos passaram a infância e a adolescência no

ambiente rural. Trabalharam na roça, como dizem alguns: “puxando enxada”. Em suma, o

universo rural-sertanejo da região Nordeste é uma das referências nas vidas desses

indivíduos. Mesmo que tenham vivido em outras cidades, principalmente nas grandes

capitais do Nordeste, o contexto de origem dos cantadores é o universo rural.

Diferentemente dos cantadores, grande parte dos freqüentadores do CTG-JCB não

tem como origem o mundo rural. Eles nasceram em cidades consideradas de médio ou de

grande porte do estado do Rio Grande do Sul. Dos informantes entrevistados, nenhum tinha

nascido ou morado em regiões rurais. A “proximidade” ao universo rural só aconteceu com

a participação no CTG e é claro que essa vivência é experimentada com algumas ressalvas.

Um exemplo dessa limitação foi presenciado por mim numa situação de campo. Nas

comemorações da Semana Farroupilha, foi organizado um suntuoso desfile de

tradicionalistas montados em belos cavalos pelas principais avenidas de Brasília. Na

ocasião, fiquei impressionada com o pequeno contingente de cavaleiros diante do amplo

quadro participativo da entidade. Minha surpresa aguçava ao ver no CTG, o grande número

de homens que esperavam ansiosos a chegada dos cavaleiros. Nesse número, estavam

tradicionalistas que eu julgava, digamos, ferrenhos. Não podendo conter minha inquietação,

fiz algumas perguntas sobre a não participação no desfile. Depois de ouvir algumas

justificativas que não me convenceram do tipo: “já estou velho pra isso”, “eu tive um

compromisso”, “amanheci com dor de cabeça”, resolvi satisfazer minha curiosidade com a

ajuda de alguns jovens freqüentadores do CTG, que observavam atentos toda a

195
movimentação. E foi essa resposta que me convenceu mais: “os tradicionalistas ferrenhos

não sabiam montar”. Em última instância, para esses gaúchos, o mundo da estância não é

um ambiente familiar.

Para os cantadores nordestinos, fazer versos ao som de uma viola podia representar

a possibilidade concreta de largar a vida na roça. O deslocamento da roça para a cidade, em

muitos casos, foi favorecido pelo fato de serem cantadores. Já outros, não colocam a

relação entre a migração e a viola de modo tão direto. Pois, a cantoria só se tornou

realidade no lugar de destino. Em suas cidades de origem, até ouviam com gosto os grandes

cantadores da região, mas apenas na posição de meros espectadores. Foi na capital federal

que se tornaram cantadores. A cantoria era, a princípio, um exercício feito nas horas vagas.

De segunda à sexta-feira eram funcionários públicos ou operários da construção civil e nos

finais de semana, cantavam em feiras e bares da cidade. Em suma, a cantoria pode

anteceder ou suceder a migração. No entanto, tanto aqueles que já vieram para a capital

como cantadores, como aqueles que exerciam a cantoria como uma espécie de hobby,

enfatizam que migraram para “melhorar de vida”.

Brasília representa na vida desses migrantes nordestinos, um projeto individual de

ascensão social e financeira. Por isso, é construída como um lugar especial. A cidade

representa o progresso, o centro político e administrativo, a atualidade, o cosmopolitismo,

enfim, é a capital do Brasil. Mesmo que a fixação dessas pessoas tenha sido feita nas

cidades satélites, ou seja, na periferia, a referência não é a Ceilândia, ao Recanto das Emas

ou ao Gama. Nas falas, principalmente naquelas destinadas às apresentações públicas, a

menção feita é à cidade de Brasília. O fato de residirem em Brasília, por si só, pode ser uma

maneira do cantador se construir de uma forma diferente daquela que o coloca como um

ícone do atraso e do subdesenvolvimento.

196
Ao contrário dos cantadores, para os freqüentadores do CTG Jayme Caetano Braun,

Brasília não ocupa um lugar de destaque no projeto de ascensão social e financeira. As

causas da migração para a cidade não são verbalizadas com frases do tipo: “Vim para

melhorar de vida”. A justificativa da migração é fornecida com naturalidade pelos

envolvidos no processo em função da profissão que muitos exercem: na carreira de um

militar, os deslocamentos espaciais são freqüentes. A cidade não foi escolhida ou pelo

menos, não inicialmente.

Os tradicionalistas não constroem Brasília como um lugar especial, ou melhor, o

objeto da especialidade da cidade não é o mesmo nas duas entidades. Meus informantes no

CTG, não edificam a cidade como o local das oportunidades. Ela aparece nos discursos

como uma localidade banal, um local como outro qualquer. Por outro lado, para a maioria

dos freqüentadores do CTG, ser tradicionalista foi algo que se concretizou somente na

capital federal. Esse fato de alguma forma faz transparecer nos discursos um certo lugar de

destaque para a cidade. Nesses momentos, Brasília aparece como um local acolhedor e

conquistado pelos gaúchos. Daí, a aceitação sem estranhamentos por parte da população de

hábitos particulares dos tradicionalistas como levar chimarrão para a faculdade ou ir de

bombachas para a escola.

Até o momento venho tratando os cantadores e os tradicionalistas a partir da ênfase

numa certa coletividade. “Certa coletividade” porque como foi dito no início deste

Capítulo, não podemos pensar as esferas sociais aqui estudadas como grupos homogêneos e

bem delimitados. No estudo da sua sociedade, o antropólogo deve ter em mente a

fragmentação dos papéis assumidos pelos indivíduos em várias esferas sociais. Chegamos

nesse momento a uma questão importante: o indivíduo.

197
Gilberto Velho (1994) ressalta que em vários estudos antropológicos, a biografia do

indivíduo biológico não é enfatizada, em proveito da ênfase na continuidade de uma

categoria social abrangente (clã, linhagem...). Há pouco reconhecimento da noção de

biografia no sentido moderno, ou seja, “em qualquer sociedade há processo de

individuação, através de inserção do lugar do indivíduo na sociedade e do desempenho de

seus papéis sociais” (op. cit.: 99). Tal reconhecimento não significa perder de vista os

segmentos e sistemas sociais em que fica evidente a subordinação do indivíduo a unidades

englobantes, como o pertencimento às instituições e grupos religiosos (Velho, 1994: 100).

Creio que a noção de projeto, elaborada por Velho, fornece uma alternativa bastante

interessante, para trabalharmos com os pontos de interseção e de continuidade entre as

esferas individual e social. A noção de projeto está ligada à idéia de indivíduo-sujeito, ou

seja, aquele que faz projetos (op.cit.: 101). Apropriando-se de Alfred Schutz, Velho define

projeto como a conduta organizada para atingir finalidades específicas. Para lidar com a

questão da consciência individual, o autor elabora a idéia de campo de possibilidades como

dimensão sócio-cultural, esfera na qual os projetos serão formulados e implementados. As

noções de projeto e campo de possibilidades podem ajudar a análise de trajetórias e

biografias enquanto expressões de um quadro sócio-histórico, sem esvaziá-las

arbitrariamente de suas peculiaridades e singularidades (op. cit.: 40).

Campo de possibilidades trata do que é dado com as alternativas construídas do processo


sócio-histórico e com o potencial interpretativo do mundo simbólico da cultura. O projeto
no nível individual lida com a performance, as explorações, o desempenho e as opções,
ancoradas a avaliações e definições da realidade” (Velho, 2005: 264).

No caso dos cantadores, há um projeto claro de melhoria de vida com a migração.

Esse projeto é explicitado verbalmente, onde Brasília aparece como a solução emergencial

198
frente às dificuldades financeiras e sociais do indivíduo. Dentro desse universo em que o

indivíduo almeja melhores condições de vida com os deslocamentos, existem algumas

diferenciações internas que dão um tom especial às motivações da migração. Refiro-me ao

tempo em que a mudança para Brasília ocorreu na vida dos cantadores. Para aqueles que

vieram trabalhar na construção da capital, os discursos que mencionam a seca no sertão

nordestino são freqüentes. A migração aparece como a única solução no projeto de

ascensão do indivíduo, que aqui é também o retirante. Por outro lado, para aqueles que não

participaram do processo de construção da cidade e que migraram para cá na década de

noventa, no projeto de melhoria das condições de vida, Brasília assume um lugar

estritamente profissional. Eles vieram a trabalho ou com a esperança de que aqui seria mais

fácil exercer a cantoria. O modo como os migrantes cantadores se pensam e como avaliam

suas trajetórias de vida fazem parte de um projeto que está diretamente influenciado pelo

tempo em que a migração ocorreu.

As diferenciações fornecidas pelo fator temporal na configuração das motivações

para as migrações, não acontecem no universo dos tradicionalistas gaúchos. Seja para

aquele que veio nos tempos iniciais da construção de Brasília, seja para aquele que aqui

chegou recentemente, a migração é verbalizada como se fosse conseqüência de uma

obrigação profissional. Ela independe da vontade do indivíduo. E ao dar sentido a sua

participação no CTG, a mudança assume um caráter coletivo. As diferenciações individuais

são encobertas pelo sentido da missão que cada tradicionalista tem: disseminar a cultura

gaúcha no planalto central. Quando a migração surge em meio aos assuntos do

tradicionalismo, sua função está situada para além das melhorias na vida do indivíduo. Ela

é explicada por meio de propósitos como: domesticar a cidade, tornar familiar os costumes

do povo gaúcho, etc.

199
O projeto da migração é justificado de modo diverso pelos cantadores e pelos

tradicionalistas. Nos discursos dos tradicionalistas, a migração para Brasília assume um

tom de conquista. Enquanto que para os cantadores, a decisão de vir para a capital federal é

justificada – como a maioria dos migrantes em geral aponta – pela possibilidade de

melhorar de vida. Tais justificativas e outras questões, que serão elaboradas nos próximos

parágrafos, fazem com que alguns indivíduos pareçam ser mais migrantes do que outros.

Vimos, em um outro momento desta tese, que o migrante ou o imigrante na maioria

das vezes está ligado à noção de subalternidade (cf. Ianni, 1972; Durham, 1984; Seyferth,

1990; Chambers, 1994; Sayad, 1998; Assis, 1999; Sales, 1999; Ribeiro, 1999; e Spitzer,

2001). Essa subalternidade pode estar associada à idéia do “deslocado” e do “estrangeiro”.

O migrante é o forasteiro, aquele que veio de fora. No entanto, a subalternidade pode estar

localizada num nível mais concreto e que se refere às condições econômicas do sujeito que

migra. Ou seja, existem migrantes que já eram subalternos em seus contextos de origem.

Nesse sentido, os sujeitos tratados nesta tese são diferenciados. Eles estão inseridos em

classes econômicas diferentes. Os cantadores nordestinos vêm de estratos sociais mais

baixos; os tradicionalistas gaúchos pertencem aos estratos médios e altos da sociedade

brasileira. Esse fator econômico, associado a outras questões, faz com que alguns

indivíduos pareçam ser “mais migrantes”. Vejamos o que torna os cantadores nordestinos

“mais migrantes” do que os tradicionalistas gaúchos.

Nosso ponto de partida será nos modos como o universo rural é acionado, tanto

pelos envolvidos diretamente nos processos sociais aqui analisados, como pela sociedade

na qual estão inseridos, ou seja, a sociedade brasileira. Vimos que os cantadores

nordestinos estão vinculados ao meio rural através de suas origens. Muitos nasceram no

campo, vivendo parte de suas vidas como pequenos agricultores. A ligação imediata com o

200
mundo rural realmente existiu no caso dos cantadores nordestinos em Brasília. Em algum

momento de suas trajetórias, o processo migratório vivido por essas pessoas pode ser

caracterizado como um deslocamento do meio rural para o meio urbano.

Conversar com os cantadores sobre esse passado rural não é tão fácil. As passagens

que relatam a vida na roça são breves. Nas narrativas, são priorizados os eventos da vida

escolar, das viagens pelo Brasil e exterior e dos encontros com personalidades importantes,

como políticos e artistas de grande visibilidade nacional. O passado rural só é mencionado

nas Noites de Cantoria através de alguns versos, definidos pelos cantadores como “aqueles

feitos para matar a saudade do sertão”. Porém, ao cantar a roça, o cantador não está fazendo

menção aos episódios da sua vida particular. A roça cantada é uma referência anônima. Em

outras palavras, o cantador não canta a sua vida passada. Como numa enciclopédia de

geografia ou ciências, os versos são impessoais, destacando a paisagem da região, a flora e

a fauna. Nas cantorias, a roça é cantada em seus aspectos positivos. Nesses momentos não

há espaço para relatos particulares repletos de dificuldades. Nas apresentações públicas, os

cantadores tentam valorizar (ou escamotear) um espaço que é em si estigmatizado como o

lugar da “pobreza” e do “atraso”.

No CTG Jayme Caetano Braun, o mundo rural é objeto de atenção especial. Tal

universo constitui-se no próprio arcabouço simbólico para a utilização de símbolos e

invenção de rituais. O meio rural, que os tradicionalistas enaltecem e reinventam em seus

Centros de Tradições, é aquele existente na região da Campanha do Rio Grande do Sul. Se

o homem do interior pode ser motivo de chacota, dentro de um CTG essa imagem é vista de

forma positiva. O CTG se propõe a ser um local não apenas de valorização do mundo rural,

mas um espaço que resgata o aspecto moral do que seus promotores imaginam ser a

201
vivência rural: um modo de vida onde existe espaço para o companheirismo, a honestidade,

a família e a honra 6.

As questões levantadas nos dois parágrafos acima encontram relação com os

diferentes modos como o “rural” é identificado. O “rural do sul” é a campanha gaúcha; e o

“rural do nordeste” é o sertão nordestino. Diferentes percepções são tecidas em torno desses

dois ambientes. Nos deteremos em algumas delas.

Em O Chão É O Limite, Sidney Valadares Pimentel (1997) analisa as

transformações acerca da noção de sertão no discurso erudito e fora dele. Sertão é uma

categoria bastante ampla. Poderíamos dizer que existem vários sertões: das gerais, do

Bahia, do Vale do Pajeú, etc. Mesmo tendo em vista essa diversidade, as questões

levantadas por Pimentel nos ajudará a contextualizar a noção - ou as noções - e o tipo social

que dela advém, o sertanejo. Afinal de contas, como diria Guimarães Rosa: “sertão é dentro

da gente” (Guimarães Rosa, 1983: 220).

Do descobrimento do Brasil até meados da década de 1920, os significados dos

signos “sertão” se aproximavam da idéia de perigo: o sertão era o distante; a terra sem lei; o

lugar povoado pelos indígenas, feras e bandoleiros; enfim, o sertão era a desordem

(Pimentel, 1997: 18). No século XX, novos campos discursivos introduzem mudanças

significativas no significado e no valor atribuído ao sertão e ao sertanejo, principalmente

através da literatura e da música caipira e sertaneja. Segundo Pimentel, fora do circuito

erudito, a música sertaneja e também as Festas do Peão de Boiadeiro – podemos estender os

argumentos do autor para as grandes festas de vaquejada, realizadas no Nordeste - são

6
Creio que a positivação do meio rural da região de Campanha, passa entre outros fatores pelo modo como o
estado do Rio Grande do Sul - visto como o celeiro do país - foi incorporado inicialmente à economia do
Brasil e reconhecido nacionalmente.

202
responsáveis pela reinvenção e positivação da noção de ruralidade (op. cit.: 26). No

entanto, a estigmatização do sertão permanece, uma vez que o sertão está ligado a assuntos

que já se mostram como clássicos, por exemplo, o cangaço e a seca (Cavignac, 2001: 72).

As obras que contém construções a respeito da noção de ruralidade, são inúmeras.

Aqui citaremos dois autores, não apenas por forneceram idéias sobre essa região, mas por

construírem a partir dessas idéias, “tipos regionais” opostos: o “sertanejo” e o “gaúcho”.

Oliveira Viana (1974) constrói o gaúcho a partir da caracterização de um tipo que

teria existido na região de fronteira do estado. O tipo é caracterizado a partir de alguns

traços básicos como a caudilhagem e a militarização.

Na zona das fronteiras, formou-se, uma raça de homens admiráveis, não só pela sua
coragem pessoal e pelas habilidades de cavaleiros, como pela fecundidade no engendrar
ardis e métodos de preia. (...) O caudilho não é outra coisa senão o primitivo chefe de
preadores da campanha platina, que, sob a pressão das guerras e das invasões, se
improvisava em chefe militar. (...) Os caudilhos gaúchos emergiam, assim, do seio da
população com um prestígio, uma influência, uma popularidade, que de modo algum
poderiam possuir os mais poderosos chefes da matas e dos sertões. (...) uma conseqüência
na mentalidade dessa caudilhagem militar é o sentimento profundo de solidariedade social,
o hábito de cooperação, o profundo espírito de corpo (op.cit.: 107: 140).

A diferenciação feita por Oliveira Viana entre o gaúcho e o sertanejo é traçada

justamente em função do que o autor denomina de a “capacidade natural para o mando e

sentimento de grupo”. O sertanejo, em virtude da sua formação social, é caracterizado pela

sua incapacidade de qualquer movimento de solidariedade social, a não ser o clã parental.

Enquanto que o gaúcho, lutando sempre contra um inimigo externo, estaria sob o efeito

aglutinador das guerras, colocando o interesse coletivo em primeiro plano. O gaúcho teria

uma vocação natural para o mando e o sertanejo, não.

203
Os homens do sertão (...) revelam-se sempre os mesmos, com os mesmos traços culturais
dos sertões: individualistas, solitários, tenazes, de temperamento rude, passional e revolto.
Já os gaúchos (...) sempre se revelam os mesmos homens, com os mesmos traços (...) isto é,
os experimentados aliciadores de milicianos, os organizadores de “companhias”, os homens
de autoridade e de mando – os caudilhos, em ser, naturalmente hábeis no meter em forma
centenas de homens e manobrá-los debaixo das melhores regras da tática e da estratégia
(op. cit.:136).

As caracterizações prosseguem com Euclides da Cunha (1985), em Os Sertões. As

comparações traçadas pelo autor entre o gaúcho e o sertanejo, este representado pela figura

do vaqueiro 7, vão desde a vestimenta ao caráter de ambos os tipos regionais. Quanto à

vestimenta, as diferenças são estabelecidas da seguinte forma:

As suas vestes [do gaúcho] são um traje de festa, ante a vestimenta rústica do vaqueiro. As
amplas bombachas (...) O seu poncho vistoso (...) lenço de seda, encarnado, ao pescoço;
coberto pelo sombreio de enormes abas flexíveis e tendo à cinta, rebrilhando, presas pela
guaiaca, a pistola e a faca – é um vitorioso jovial e forte. [sobre o sertanejo] Nada mais
monótono e feio, entretanto, do que esta vestimenta original, de uma só cor – o pardo
avermelhado do couro curtido – sem uma variante, sem uma lista sequer colorida (op. cit.:
117-119).

Além dessas opiniões sobre os trajes do gaúcho e do sertanejo, as diferenciações de Cunha

se estendem ao caráter moral de ambos os tipos regionais. O sertanejo, que aparece como o

matuto, é edificado como um ser ambíguo: ora se manifesta por meio de demonstrações de

força e agilidade, ora por longos intervalos de apatia.

A origem geográfica pode representar todo um capital simbólico que é incorporado

e naturalizado como se a capacidade do indivíduo fosse dada pela sua naturalidade (Costa,

1997: 167). Assim são fomentadas muitas das imagens do migrante sulista e do migrante

nordestino. A migração nordestina está associada às imagens sobre o sertão. O migrante é

7
Para o autor todo sertanejo é vaqueiro (op. cit.: 121).

204
aquele que foge de um ambiente hostil, é aquele que foge da seca. O migrante sulista não é

aquele que foge, uma vez que o indivíduo não foi expulso de seu habitat natural.

No site do CTG e nas conversas com os freqüentadores, o migrante que vem do Rio

Grande do Sul é edificado como o desbravador corajoso, o colonizador que se aventura por

pagos desconhecidos. A imagem projetada apresenta um alto grau de positivação.

Diferentes são as construções a respeito do migrante nordestino. No imaginário nacional,

reproduzido, inclusive, pelos próprios cantadores nordestinos no Distrito Federal, a imagem

do migrante se confunde com a imagem do retirante, aquele que foge das condições

adversas da seca, da fome, da pobreza e do atraso.

Por sua situação financeira e por sua naturalidade não fornecer um capital simbólico

associado às noções de pobreza e de atraso, os gaúchos freqüentadores do CTG não

precisam lutar para a valorização do rural. A luta, diferente dos cantadores nordestinos, não

é pela inserção nos grandes centros urbanos. A batalha dos tradicionalistas tem outro alvo:

a reprodução de uma tradição rural no meio urbano, feita por pessoas que não tenham uma

relação imediata com esse passado rural. Para tornar as suas reinvenções autênticas, eles

estão em um permanente estado de vigilância. A autenticidade é garantida pela invenção de

regras que ditam o “certo” e o “errado”. O estado de alerta é constante, como se a tradição

fosse algo muito efêmero, um líquido que pudesse escorrer a qualquer momento pelos

dedos do tradicionalista.

O espaço ocupado pelo rural no CTG Jayme Caetano Braun é nobre. O freqüentador

do CTG pretende ser a concretização de um passado associado ao universo rural. Ele é a

encarnação da tradição. Por isso, a importância do uso de roupas, da utilização de um

linguajar típico e da promoção de rituais que objetivem reviver o passado através da

apropriação de símbolos identificados com esse tempo.

205
Já no contexto dos cantadores nordestinos, o universo rural navega entre duas

esferas: a positiva e a negativa. Positiva quando acionado em momentos especiais com a

intenção de fazer lembrar as coisas boas do Nordeste, ou seja, para expressar sentimentos

saudosistas. O espaço ocupado pelo rural na Casa do Cantador tem um que de saudosismo

em situações especificas. Mas, fora dessas situações especiais - que se dão no momento

ritual, ou seja, na Cantoria de Pé de Parede - o rural é o símbolo do atraso e da estagnação.

Tais noções são contrárias à vida atual dos cantadores que largaram a roça; que se fixaram

nas grandes metrópoles brasileiras; e que fabricam versos de improviso com o cuidado

excessivo da construção gramatical perfeita.

Se o tradicionalista é o passado, o cantador é o presente. O cantador nordestino dos

grandes centros urbanos se recusa a usar coisas que o liguem a um passado identificado

com o atraso. Nos eventos promovidos pela Casa do Cantador, o espectador não pode

esperar ver homens com chapéus de vaqueiros ou roupas de cangaceiro. Os cantadores

preferem estar vestidos elegantemente: calças sociais, camisas de mangas compridas,

sapatos engraxados. Nos ritos da Casa do Cantador, a roupa considerada típica da região

sertaneja é substituída por uma indumentária identificada com os valores da classe média.

Nas dinâmicas da Casa do Cantador e do CTG Jayme Caetano Braun, a recusa ou

não do uso de uma indumentária típica está inserida numa constante luta por um vir a ser. A

luta dos cantadores nordestinos é em prol de seu reconhecimento como “bons cantadores”.

Ser um bom cantador significa dominar códigos identificados com os valores das classes

médias urbanas. O que o cantador nordestino em Brasília pretende é a sua inserção no

contexto espacial e temporal no qual se encontra. A luta dos gaúchos freqüentadores do

CTG Jayme Caetano Braun tem outro foco. Por empreenderem um trabalho de resgate de

206
tempo e espaço distantes, o que eles almejam é o reconhecimento enquanto legítimos

representantes de um lugar e de um povo. A luta é pela autenticidade de uma tradição.

O folclore como uma noção relativa.

De acordo com Roger Chartier (1995) o que importa na identificação de uma

manifestação da cultura popular não é a distribuição de certos objetos ou modelos culturais,

e sim sua apropriação pelos grupos ou indivíduos. O popular qualifica um modo de utilizar

objetos ou normas que são compreendidos e manipulados de diferentes maneiras (op.cit:

181). Os fatos da cultura são processos sociais totais, i.e., abarcam e imbricam diferentes

aspectos da realidade em sua realização, e são capazes de articular em seu interior valores e

interlocutores muito diferenciados, de forma muitas vezes surpreendente (Cavalcanti, 2001:

77). Em campo, tive várias demonstrações dessas questões. Na atualização de seus fatos

culturais, cantadores nordestinos e tradicionalistas gaúchos são capazes de articularem

noções, valores, referências espaciais e temporais aparentemente paradoxais. A maneira

como a idéia de folclore é utilizada, é um bom exemplo. O manejar dessa noção, na Casa

do Cantador e no Centro de Tradições Jayme Caetano Braun, apresenta algumas

peculiaridades.

Os cantadores nordestinos em Brasília, não fazem uso da noção para nomear a

manifestação fomentada por eles. Os cantadores são enfáticos: o que eles fazem não é de

modo algum, folclore. Eles procuram conscientemente se afastar desse rótulo. Nesse

contexto, a noção de folclore está estritamente ligada a um passado estigmatizado. Assim, o

folclórico assume a forma de algo que é atrasado e não elaborado.

207
Para os freqüentadores do CTG Jayme Caetano Braun, o folclore também é uma

noção que faz referência ao tempo passado. Só que esse tempo não está associado às idéias

de atraso e subdesenvolvimento. No CTG, o arcaico tem um certo “charme”. Talvez, mais

do que uma categoria charmosa, o antigo é idealizado como a solução frente aos

“problemas do mundo contemporâneo”, tais como: a desintegração social, o descrédito dos

valores de honra e família, etc. Assim, esses gaúchos procuram se apropriar de tudo que os

identifique como folclóricos. As manifestações folclóricas consideradas gaúchas são

retomadas para a afirmação de uma cultura.

Suspendamos por um momento as apropriações nativas, para abordamos alguns

sentidos através dos quais o termo foi e/ou vem sendo pensado. Apesar das diferentes

apropriações feitas pelos cantadores e pelos tradicionalistas, a concepção dos informantes

acerca do folclore baseia-se em noções engessadas e puristas. Tais concepções apresentam

várias características semelhantes à maneira como o termo foi originalmente empregado.

Em 1848, o etnólogo inglês, William Thoms, usou a palavra folklore (saber das pessoas

comuns) para designar “antiguidades populares”, “superstições”, “baladas”, “costumes dos

tempos antigos”, etc (Segato,1988: 03). Algumas idéias distinguiam as manifestações

caracterizadas como folclóricas: 1) a idéia de primitivismo, traduzida na retomada e na

preservação das tradições; 2) a idéia de comunitarismo, que coloca o folclore como uma

criação coletiva e anônima, como uma manifestação natural do espírito do povo; 3) a idéia

de purismo, caracterizada pelo pressuposto de que o povo não estaria contaminado pela

vida urbana (cf. Chauí, 1986). Atualmente, tal visão foi superada por muitos pesquisadores

do tema. A intenção aqui não é a de fazer uma discussão conceitual do termo. Apenas

pretendo mostrar que alguns ingredientes, que caracterizariam essa “visão romântica” da

208
noção de folclore, continuam presentes, sendo inclusive, apropriados – de formas

diferentes- por meus informantes.

Outro traço definidor de uma manifestação como folclórica refere-se à oralidade. A

oralidade é a noção fundadora do folclore. Os próprios fatos que Thoms enquadra na sua

definição de folclore demonstram essa questão: provérbios, baladas, superstições, etc.. É

também da oralidade que provém da idéia de espontaneidade atribuída ao povo:

Analfabetos, os camponeses europeus do final do século XVIII pareciam estar alheios à


cultura das classes superiores, transmitindo oralmente uma sabedoria (lore) nos seus contos,
versos e ditados. Próximos à natureza, infensos ao cosmopolitismo das elites, esses
segmentos guardariam assim expressões que serviriam de base (tanto como inspiração,
quanto como justificação) aos artistas que pretendiam produzir uma arte “autêntica” e
nacional (Vilhena, 1997: 273).

A partir desses traços definidores, uma manifestação folclórica seria aquela surgida

do povo, uma criação coletiva e anônima e definida por formas orais. Qual dos dois

universos estudados por mim estariam mais identificados com essa visão romântica do

folclore? Poderíamos afirmar que os cantadores estariam originalmente (muito mais que os

tradicionalistas) vinculados à noção de folclore. No entanto, no discurso nativo, o que

notamos é uma tentativa de inversão dessa “realidade”: os cantadores não querem ser

folclóricos e os tradicionalistas almejam ser reconhecidos como tais.

A cantoria é uma manifestação identificada com o sertão nordestino. Como vimos,

ela está originalmente vinculada ao povo do sertão nordestino. Além disso, ela é uma

prática fundada na oralidade. Mesmo não podendo descartar suas características originais,

os cantadores tecem novas formas de se pensar o fato cultural promovido por eles.

Para os cantadores, serem identificados como folclóricos é algo extremamente

negativo. E é desse rótulo que eles tentam se descolar. Tal desvinculação é feita

209
principalmente através da retomada de traços identificados com o contexto moderno, como

por exemplo, a escrita. A cantoria, enquanto uma manifestação oral, lança mão de códigos

pertencentes à cultura escrita. Atualmente, os cantadores não são analfabetos e alguns

possuem curso superior. Na promoção de seu fazer, eles ressaltam a importância da leitura,

do estudo e do aperfeiçoamento. A promoção do fato cultural é influenciada pela circulação

da palavra escrita e pela presença de indivíduos que possam ler e escrever. Atualizando a

tradição oral num contexto urbano, onde a escrita é muito importante, eles se dizem muito

mais do que “improvisadores de versos espontâneos”. Eles são acima de tudo artistas.

Os tradicionalistas estariam mais distantes dos traços que caracterizariam a visão

romântica do folclore. Muitas das criações dos tradicionalistas não são anônimas ou

coletivas. Com o tempo, elas até se tornaram populares, sendo consideradas partes do

folclore do Rio Grande do Sul. No entanto, são criações recentes e que têm autoria, como

mostra o depoimento de Barbosa Lessa ao antropólogo Ruben Oliven:

O Negrinho do Pastoreio foi uma composição que eu fiz na época do início do „35‟ quando
nós não tínhamos música, não havia música tradicionalista, nem regionalista, nem nada. (...)
depois, o Conjunto Farroupilha adotou como uma característica nos seus programas de
televisão e foi muito divulgada, conhecida. Hoje faz parte do patrimônio do Rio Grande do
Sul (...). Em seguida aquilo passa a ser folclore. A Orquestra Sinfônica de Porto Alegre
apresentava o Negrinho do Pastoreio como de autor desconhecido. E um dia foi apresentar
no aniversário do Colégio Anne Frank no fim de 1978 (minha filha estudava lá) (...) e o
apresentador disse: “E, agora, de autor desconhecido, o Negrinho do Pastoreio”. Minha
mulher estava junto e podia ser outro Negrinho do Pastoreio, mas era o de minha autoria.
Quando terminou ela se levantou da platéia e disse: “Ó... não é de autor desconhecido; eu
durmo todas as noites com ele e se chama Barbosa Lessa”. (In Oliven, 1992a: 111-112).

E quanto à oralidade? Como situar os fatos culturais promovidos pelos

tradicionalistas? Note que no CTG Jayme Caetano Braun, o evento considerado como o

mais genuíno é a Noite de Poesia Crioula, por ser um momento em que homens contam, em

210
torno de um fogo de chão, os causos da estância 8. No entanto, o espaço reservado aos

causos, narrativas essencialmente orais, é muito pequeno. Nos eventos, é privilegiada a

declamação de poesias de autores famosos do universo tradicionalista, todas elas

registradas em livros. Notamos também a existência de uma série de documentos como

estatutos, regulamento, atas, que procuram registrar em fontes fixas, a tradição.

Enfim, o contexto no qual o tradicionalismo surgiu foi o da escrita. Para Jack Goody

(1968), a escrita é um modo de comunicação que fixa referências. Ela atua por pontos fixos

e são por isso, menos tolerantes às mudanças (op. cit.: 2-3). Apesar de serem modernos, os

tradicionalistas fazem questão de resgatar o passado. E fazem de tudo para criar uma

imagem de autenticidade para suas práticas. E é na fixação desse passado em documentos

escritos que eles encontram o relato verdadeiro.

Podemos observar nos diferentes grupos promotores de manifestações culturais

consideradas tradicionais, a tensão entre as idéias de pureza e perigo. Na Casa do Cantador

e no CTG Jayme Caetano Braun, os perigos apresentam fontes diversas. O que pode ser

visto como positivo para os freqüentadores de uma entidade, pode não o ser para a outra.

Um dos perigos mais significativos liga-se justamente à noção de folclore, referida

anteriormente. Para os cantadores nordestinos em Brasília, o folclore assume a forma de

uma categoria poluidora, capaz de macular. Para os freqüentadores do CTG Jayme Caetano

Braun, o folclore é um agente purificador, capaz de despoluir.

Para os cantadores, a manifestação cultural promovida por eles não pode ser

caracterizada como folclórica. O que eles fazem é arte, fruto de um esforço intelectual de

cada cantador, ou melhor, do artista. No contexto dos cantadores nordestinos em Brasília, a

ameaça está situada no que muitos informantes nomeiam como a “cantoria folclórica”. A

8
Vide Capítulo V.

211
cantoria folclórica é aquela entendida como uma forma congelada no tempo. Para os

cantadores dos centros urbanos, a idéia de preservação cede espaço para a de

aprimoramento e modernização. Em outras palavras, o cantador precisa estar atualizado

com o seu tempo que é o agora. A cantoria precisa ser “técnica”. A técnica implica o uso de

um português considerado gramaticalmente correto; a preparação prévia através do estudo e

da leitura; o domínio de regras e de códigos para fazer rimas; a ênfase na inteligência e no

raciocínio rápido do improvisador; a fabricação de estrofes que versam sobre assuntos

contemporâneos da vida política, econômica, social e cultural do país e do mundo; e

inclusive, o uso de uma indumentária que os distancie do passado.

As mudanças e as inovações são bem-vindas. Para os cantadores, o perigo parece

ser o de não se modernizar. Atualizando a tradição oral, os cantadores selecionam o que

querem mostrar do passado. A cantoria é relaborada de acordo com as necessidades do

presente.

No CTG Jayme Caetano Braun, nos situamos em outro nível. De acordo com Ruben

George Oliven (2004), o Movimento Tradicionalista Gaúcho é contraditório, por ser um

movimento moderno que se propõe tradicional 9. Os tradicionalistas elaboram uma visão

catastrófica a respeito do mundo atual. A modernidade é vista como uma ameaça. No CTG,

parece que o perigo advém da idéia de modernização. Quanto mais tradicional, melhor. È

nesse contexto que surge a noção de folclore. Ela remete a um passado idealizado de forma

extremamente positiva. A idéia de folclore aproxima essas pessoas de um tempo e de um

espaço considerado benigno e passível de ser revivido no presente pelo resgate da “vivência

folclórica”.

9
Trabalho apresentado na XXIV Reunião de Antropologia, Seminário 09, intitulado “Cultura e Política nos
Setores Populares nos anos de 1990”, Olinda, 12 a 15 de junho de 2004.

212
Wilson Trajano (1993) ao pensar sobre o modo pelo qual escrita e oralidade se

relacionam na criação de uma hegemonia cultural e política nos núcleos urbanos da Guiné-

Bissau (:01), nos fornece algumas dicas para pensar a “tensão” entre essas duas formas de

comunicação. Por mais endêmicos que possam ser os rumores (a principal representação da

oralidade na cultura crioula), o autor enfatiza que eles estão ligados à conjuntura e abertos à

modificação no transcorrer das interações sociais em que são veiculados:

Uma vez que as circunstâncias que os ativaram se transformam, assim também eles o fazem. Tal
modo de existir faz com que a memória oral da sociedade não retenha por um longo período uma
versão congelada de um rumor, mesmo porque seu processo de transmissão inviabiliza quase
sempre a idéia de uma versão paradigmática que possa ser rigidamente fixada na memória
(Trajano, 1993: 04).

A bibliografia que investiga as relações entre oralidade e escrita é bastante vasta e

de muita densidade. Como a noção de folclore, não é nosso objetivo empreender uma

discussão pormenorizada da teoria sobre oralidade e escrita. No entanto, creio que essa

pequena amostra dos autores aqui citados nos ajuda a pensar sobre parte dos motivos pelos

quais se dão a valorização e a desvalorização das mudanças nos contextos dos cantadores

nordestinos e tradicionalistas gaúchos, respectivamente. Por ser uma tradição oral, a

cantoria não fixa um discurso sobre o passado. Devido à falta de registros não há um

controle rígido desse tempo. As mudanças são vividas com naturalidade, incentivadas e

desejadas. Elas são essenciais para a continuidade da tradição. Por ser uma tradição escrita,

o tradicionalismo fixa um passado (por mais simulado que este possa ser). Há um controle

rígido sobre essas formas fixadas em documentos oficiais. Existem livros que ensinam a ser

tradicionalista. E tudo o que não foi previsto no registro é tido como aberrações ou

descaracterizações da tradição.

213
Tanto o CTG Jayme Caetano Braun, como a Casa do Cantador, são entidades cujas

dinâmicas estão marcadas pela vigilância, refletida nas desconfianças constantes e no “não

poder fazer coisas erradas”. Os erros poderão trazer conseqüências perigosas para a

construção das imagens que eles desejam transmitir e para a própria sobrevivência da

tradição. Como diria Mary Douglas (1976), a ordem ideal da sociedade é guardada por

perigos que ameaçam os transgressores. Algumas poluições são usadas como analogias

para expressarem uma visão geral da ordem social (op. cit.: 14). Em última instância, a

atribuição de perigos faz parte do esforço de comunicar e criar formas sociais (op. cit.:

125).

Nas dinâmicas da Casa do Cantador e do CTG Jayme Caetano Braun, os perigos

não dizem respeito aos temores divinos, desastres da natureza, cataclismas e tragédias. Eles

não estão situados nesse nível. No contexto das duas entidades, as ameaças têm a ver com a

delimitação e o reconhecimento público de imagens e processos de identificação.

No universo dos cantadores, a categoria poluidora é o passado. No universo dos

freqüentadores do CTG, a poluição está na modernidade. Para os cantadores, o passado está

associado a uma situação histórica marginalizada e estigmatizada. Para os tradicionalistas,

o passado está associado a um tempo heróico, ideal e positivo.

Apropriando-se de Van Gennep, Mary Douglas (1976) enfatiza que o “perigo está

nos estados de transição, simplesmente porque a transição não é nem um estado nem o

seguinte, é indefinível” (: 119). Nas instituições estudadas nesta tese, os perigos estão

situados também nas passagens. Essas passagens estão profundamente relacionadas ao

modo como os informantes reconhecem determinadas referências espaciais e temporais.

Refiro-me aos trânsitos entre os universos rural e urbano, entre passado e o presente.

214
Na Casa do Cantador, as transições poderiam ser esboçadas da seguinte forma:

mundo rural mundo urbano; tempo passado tempo presente. No CTG Jayme Caetano

Braun, o esquema assumiria a seguinte forma: mundo urbano mundo rural; tempo

presente tempo passado. Os limiares simbolizam inícios de um novo status (Douglas,

1976: 119). Nesse sentido, a cantoria pode ser pensada como uma tradição que pode

contribuir para levar o cantador a uma nova posição: não mais a de um retirante do sertão

nordestino, e sim a de um artista completamente inserido num mundo moderno e

“globalizado”. A tradição também pode levar o tradicionalista a um novo status: não mais

como um simples migrante que almeja melhores condições de vida, mas como um

preservador e reprodutor dos valores da cultura do povo gaúcho.

Tais passagens ou transições não são feitas de modo direto, sem mediações e

tensões. Por exemplo, o CTG funciona num ambiente moderno, agenciado por pessoas que

se pretendem construir como tradicionais. Esses indivíduos estão num dilema entre o

moderno e o tradicional; o liberal e o conservador (Oliven, 2004). Os cantadores por sua

vez, constroem os seus dilemas a partir da tensão entre a idéia de folclore, que está na

origem da manifestação promovida por eles, e a idéia de modernidade, que se constitui no

caminho para a construção de uma imagem positiva do repentista da atualidade.

Vimos que a partir de 1950, vem sendo fomentada uma nova idéia de ruralidade

afastada da noção de atraso. Segundo Pimentel (1997), essas idéias retiram sua eficácia de

um ardil rebaixador, por intermédio do qual se procura valorizar o rural, entre outras

formas, pela desqualificação da cidade (: 27-28). Essa é a estratégia utilizada pelos

tradicionalistas. Ao meio urbano se agrega uma série de “ausências”: falta de solidariedade,

pouco valor à palavra, sem o sentido de grupo ou de comunidade. O rural seria tudo o que o

215
urbano não é. É criada a imagem do “Bom Rural”. Essa imagem irá ser transformada em

uma referência para a identificação de um “povo”, o povo gaúcho. A valorização do rural

pela desvalorização do urbano não é o que se observa entre os cantadores. A cidade é

valorizada e por isso estão nela. Muito mais que se ater à tentativa de positivação da

imagem do rural-sertão, os cantadores procuram se situar para além dela. Para além do

sertão, existe muito mais. Existe o esforço de se aproximarem de códigos identificados com

urbanidade e a modernidade.

A análise de todas essas questões aqui discutidas nos possibilita um melhor

entendimento das “inovações culturais” promovidas pelos cantadores e tradicionalistas. A

inovação cultural feita pelos cantadores é dar outra roupagem a uma manifestação cultural

associada originalmente à noção de folclore. Eles procuram construir em Brasília uma nova

forma de se pensar e fazer a cantoria. A imagem da “nova cantoria” não é aquela que a

caracteriza como um fato cultural essencialmente oral. A cantoria passa a ser “escrita” por

meio da aproximação dos cantadores com os códigos da educação formal (são alfabetizados

e alguns fazem curso superior) e da ênfase na importância da preparação do improvisador,

estudando gramáticas da língua portuguesa e se atualizando através da leitura de jornais e

revistas. Além disso, eles procuram fornecer uma autoria para a cantoria. Ela não é mais

uma criação coletiva, anônima. Se a cantoria é arte, ela é fruto de um esforço individual do

artista.

A inovação cultural dos tradicionalistas é a de tentar construir uma autenticidade,

pensada basicamente a partir da idéia de antiguidade (fatos autênticos são aqueles do

passado), para fatos culturais que datam de um tempo bem recente. Nem todas as práticas

dos tradicionalistas estão associadas originalmente à noção de folclore (pensado no sentido

da antiguidade, da criação coletiva e da oralidade) e datam de um tempo bem recente.

216
Muitos dos seus rituais são criações dos idealizadores do MTG. As criações têm autoria e

estão cercadas por todo um aparato burocrático de atas, registros e manuais que ditam o

como fazer.

Independentemente de seu teor, as inovações culturais atribuem sentido aos

“modos de fazer” dos cantadores e dos tradicionalistas. Elas sinalizam práticas sociais

através das quais são construídas imagens acerca da cantoria, do tradicionalismo, do

migrante, do nordestino e do gaúcho. Além disso, as inovações culturais sinalizam a

formação de unidades coletivas. Identificadas a partir do resgate de fatos tradicionais, essas

entidades agregam pessoas e fornecem o sentimento de pertença a um agrupamento social.

217
CONCLUSÃO

Neste momento desejo empreender dois exercícios. O primeiro deles consiste em

fornecer um quadro geral dos aspectos que foram discutidos ao longo dos capítulos

anteriores. Meu segundo objetivo é enfocar os desdobramentos dessas questões, ou seja,

onde é que elas podem nos levar.

Como esta tese trata de gaúchos e nordestinos que atualizam no cenário da capital

federal, tradições que fazem parte de seus contextos de origem, a princípio, seria possível

restringir toda análise a elucidações sobre o processo migratório e suas conseqüências. Por

esse viés, nos deteríamos em argumentações sobre o sentido do “deslocado” ou do

“desregionalizado”; nas oposições valorativas entre o “ser” e o “estar”, o “lar” e a “casa”. A

tradição seria apropriada pelo deslocado ou pelo desregionalizado, como estratégia de

adaptação ao lugar de destino, dirimindo sentimentos de estranhamentos e de saudades.

Não descarto o caminho interpretativo ressaltado no parágrafo anterior. No entanto,

o resgate de determinadas manifestações culturais não pode ser analisado somente como

uma forma de suprir as necessidades saudosistas ou como um modo de familiarização do

indivíduo com a nova realidade. Nos universos aqui estudados, a atualização da tradição

nos permite pensar sobre o significado de pertencer a um agrupamento social. À medida

que os cantadores nordestinos e os tradicionalistas gaúchos vão se fixando na capital

federal, a necessidade de pertencer a um lugar vai cedendo espaço à importância de ser e

estar num grupo.

218
A inovação da tradição

O estudo comparativo envolve alguns riscos. Um deles refere-se a um possível

descompasso entre as partes comparadas. Um dos “lados” pode passar ao leitor a sensação

de que está melhor “etnografado” do que o outro. Assumir tais perigos não é utilizar

subterfúgios para me antecipar às eventuais críticas que possa receber e conseqüentemente,

elaborar possíveis justificativas para as mesmas. Creio que essas questões são importantes

de serem colocadas uma vez que têm implicações em muitos dos problemas aqui

levantados, corroborando, inclusive, meus argumentos teóricos.

É com esse propósito que exponho alguns comentários de leitores que mesmo não

sendo antropólogos, tiveram contato com meus escritos e opinaram: “A Parte dos Gaúchos

é bem mais interessante”. O que poderia ter provocado tal impressão? Para localizar tais

motivações tracei duas diretrizes. A primeira delas foi empreender uma autocrítica. E a

segunda, refletir sobre o caráter dos universos pesquisados.

Quantitativamente, o número de capítulos da Parte dedicada aos cantadores é o

mesmo da Parte dedicada aos tradicionalistas. Coincidentemente – na medida em que não

foi uma atitude proposital – até o número de páginas que compõe os capítulos de ambas as

Partes é bastante semelhante. Enfim, os julgamentos que valoravam a Parte dos Gaúchos

como sendo mais instigante, não foram gerados pelo formato do texto.

Comecei, então, a pensar na preparação dos textos, desde o trabalho de campo à

escrita da tese. Pois, sem dúvida alguma, existia algo no teor de meus escritos que

possibilitava aos leitores a sensação de que uma das Partes fosse apreendida como a mais

prazerosa. Quem sabe uma avaliação sobre o processo da coleta de dados e da minha

219
inserção em campo como pesquisadora, pudesse mapear algum descompasso entre os

universos analisados? Vejamos...

O tempo dedicado à escrita foi o mesmo para cada uma das Partes. As condições de

trabalho que influenciam no resultado final da elaboração do texto, como o ambiente de

estudo e as disposições físicas e psicológicas do escritor, foram igualmente semelhantes nos

dois momentos da escrita. Quanto ao trabalho de campo no que diz respeito à freqüência de

visitas ao CTG Jayme Caetano Braun e à Casa do Cantador foi também equiparada. Meu

tempo foi dividido: a cada semana me dedicava a uma das entidades. Essa escala de

trabalho, realizado simultaneamente em dois espaços diferentes, foi cumprida sem

atropelos.

No entanto, o equilíbrio no que se refere às condições de pesquisa e escrita, não

impediu que durante o trabalho de campo me sentisse melhor em um dos ambientes. Estava

mais à vontade na Casa do Cantador. O “estar mais à vontade”, muito mais do que um

sentimento pessoal pode trazer conseqüências para a pesquisa. Em outras palavras, se me

sinto mais à vontade é porque trafego melhor naquele ambiente e estabeleço maiores

relações com as pessoas. Não tenho receio em afirmar que as entrevistas realizadas com os

cantadores foram mais estruturadas, feitas com mais calma e num fluxo de diálogo

construído com uma maior proximidade e cumplicidade entre pesquisadora e pesquisado.

Os motivos pelos quais me sentia melhor na Casa do Cantador eram vários. Nos

momentos iniciais da pesquisa, quando não tinha estabelecido uma afinidade com os

informantes, nos eventos da Casa do Cantador podia sentir o conforto de ser vista e tratada

como uma espectadora, ou seja, era dissolvida na platéia que assistia ao espetáculo. Nos

eventos do CTG Jayme Caetano Braun não podia assumir tal posição. Lá, eu era a estranha:

era a única que não usava uma indumentária especial; e em muitas ocasiões não existiam

220
pessoas que pudessem compartilhar comigo a posição de platéia. Na Casa do Cantador,

minha presença era festejada. Por considerarem-se artistas, estar ali assistindo a eles, era

também os prestigiar. Os cantadores ficavam felizes e vaidosos ao me verem em suas

apresentações. Eles não tinham nenhum problema em “desperdiçarem” seu tempo

respondendo minhas perguntas ou gravando longas entrevistas. Pelo contrário, o faziam de

bom tom. Abriam suas portas. Quase todas as entrevistas realizadas com os cantadores

foram feitas em suas próprias casas. Conversávamos várias horas. Por diversas vezes fui

convidada para cafezinhos e almoços. No CTG, não “senti” tanto essa abertura e

receptividade. Todos se mostravam bastante ocupados durante e depois dos eventos

realizados na entidade. As entrevistas foram realizadas nos locais de trabalho dos

informantes ou marcávamos um horário no próprio CTG.

Por um momento, as lembranças me remetem a uma situação de campo vivida ainda

na época da realização de minha pesquisa para a conclusão do mestrado. Creio que o

episódio ajuda a esclarecer algumas questões e é com esse objetivo que o relembro 1. Num

dia, assistindo a performance do grupo que estava disposta a estudar, uma pessoa da platéia

se aproximou e comentou: “É você quem está fazendo um trabalho sobre a Turma do

Gambá? Desculpa chegar assim... mas é que eu achei muito interessante. Isto aqui para

antropólogo deve ser ótimo! È impressionante a quantidade de ritos e tradições que eles têm

aqui!” (Osório, 2001: 16-17). Acredito que se situam nessa esfera, as motivações que

levaram aqueles leitores referidos anteriormente a acharem que a “Parte dos Gaúchos é a

mais interessante”. O que pretendo destacar é que para esses leitores, o CTG Jayme

Caetano Braun seria um espaço privilegiado para a pesquisa antropológica. Não pelo fato

1
Maiores informações sobre a dissertação (objeto de estudo e questões abordadas) são dadas nas páginas
iniciais (páginas 1, 2 e 3) da Introdução desta Tese.

221
da dinâmica das atividades no CTG acontecer num ritmo mais acelerado do que na Casa do

Cantador. Mas, porque naquele cenário é possível perceber uma série de invenções e

simulações utilizadas conscientemente pelos informantes para se tornarem especiais. Toda

a organização do espaço repleta de símbolos; a indumentária exuberante; as festas

suntuosas; até a postura corporal dos informantes, tudo é excesso. Um excesso que sinaliza

a diferença explícita dos tradicionalistas gaúchos.

Já na Casa do Cantador, tudo parece ser “normal”. Nada ou quase nada, pelo menos

num nível mais imediato e superficial, os diferencia. No cenário, não notamos a presença

de muitos elementos que remetam a uma identificação do espaço como um local especial.

As instalações lembram os prédios da Esplanada dos Ministérios. Conforme vimos nos

Capítulos II e VII, essa característica pode diferenciar a Casa do Cantador do cenário da

Ceilândia, mas não de Brasília, reconhecida por suas construções modernas baseadas num

urbanismo progressista e funcional. Assim como grande parte dos cartões postais de

Brasília, a obra da Casa do Cantador foi assinada por Oscar Niemayer. Não existem

bandeiras, logotipos e roupas “especiais” utilizadas pelos cantadores em suas

apresentações. Um dos poucos elementos típicos presentes na dinâmica dos eventos

promovidos pela Casa é o “sino de boi”. Esse objeto, muito utilizado no sertão nordestino

pelos vaqueiros, poderia ser uma alusão ao contexto de origem da cantoria e de muitos

cantadores: o sertão, a vida na roça, os vaqueiros, etc. O sino de boi, que circula pelas

mesas destinadas à platéia nas Noites de Cantoria, funciona como uma espécie de

campainha para que os presentes acionem os serviços de bar da Casa. “Você dá uma

chacoalhada no sino, e é atendido”. Essa explicação é fornecida pelo diretor da Casa, e o

público se diverte com essa “curiosidade”. Vez ou outra, o diretor, que também é cantador,

dá uma sacudida no sino, provocando risos na platéia. O que pretendo enfatizar é que o uso

222
desse “objeto típico” é encarado como uma forma de divertimento. Ao contrário, os

símbolos utilizados pelos tradicionalistas não têm a função de divertir. Se todos acham

graça quando o cantador chacoalha o sino de boi, no CTG ninguém ri ao ver um padre

numa Missa Crioula tomando vinho, ou melhor, o sangue de Cristo, em um chifre de boi.

Todas essas situações estão plenas de sentido. Elas correspondem a todo um jogo de

construção e acionamento de imagens do que tentam ser os informantes. Se a posição de

diferente é escamoteada pelos cantadores, ela é simulada pelos freqüentadores do CTG

Jayme Caetano Braun. Acredito que os tradicionalistas gaúchos em Brasília tentam ser

diferentes porque já são iguais. Enquanto que os cantadores nordestinos em Brasília querem

ser iguais porque são vistos como diferentes. Vamos ver se podemos esclarecer os

interstícios desse jogo de intenções diferenciadas.

A imagem da existência de um grupo é construída conscientemente pelos

tradicionalistas por meio de seus ritos, de seus discursos e de apropriações simbólicas que

comuniquem explicitamente a diferença. Além disso, na própria estrutura do “grupo”

existem mecanismos que alicerçam e legitimam a intenção dos tradicionalistas de serem

vistos como um grupo diferenciado e coeso. Vimos nos Capítulos VI e VII que esses

mecanismos são: a fomentação de uma idéia de comunidade; a presença da família na

dinâmica do CTG; e o sentido de engajamento fornecido pela inserção em um movimento

cultural e ideológico, o Movimento Tradicionalista Gaúcho.

A intenção desses gaúchos parece não ser a mesma dos cantadores nordestinos que

vivem na capital federal. Poderíamos identificar a presença de um “nós” nos vínculos

estabelecidos entre conterrâneos, onde a idéia de “conterraneidade” é estendida ao fato de

serem todos nordestinos, antes de serem paraibanos, cearenses ou pernambucanos. Afora

esse sentimento e outras questões que se situam no nível das percepções e dos valores, em

223
um primeiro contato com os cantadores não existem elementos que nos possibilitem

identificá-los enquanto um grupo unido e com contornos definidos. Os informantes não

incentivam a edificação de uma imagem de comunidade; não estão engajados em um

movimento cultural organizado; e nem as redes familiares fazem parte da dinâmica da Casa

do Cantador. Parece que para os cantadores nordestinos em Brasília, não é necessário ou

mesmo desejável o reconhecimento público da existência de um grupo coeso e

diferenciado.

Em vários eventos do CTG pude perceber a presença de pessoas com camisas que

enalteciam o fato de serem gaúchas. Estampavam no peito frases do tipo: “Orgulho de ser

gaúcho”. Na Casa do Cantador, com exceção de algumas camisetas, ilustrando as belezas

de Fortaleza e outros lugares turísticos do Nordeste, nunca vi ninguém que trazia

estampado no peito o orgulho de ser nordestino. Talvez, os dizeres mais apropriados ao

contexto dos cantadores seriam: “Sou nordestino sim, e daí?”. Não quero sugerir que só os

gaúchos podem se orgulhar da sua condição original. Não, esta tese não se situa nesse nível,

mas sim no âmbito dos discursos e das interações humanas. O que pretendo mostrar é que o

discurso acionado pelos tradicionalistas é um discurso construído em cima de uma

militância em prol da diferença; enquanto que o discurso dos cantadores prima pela

aproximação ao contexto no qual estão inseridos no momento. Se os tradicionalistas se

dedicam à exaltação da diferença, o que os cantadores pretendem é a domesticação do

diferente, ou seja, tornar o diferente familiar ou pelo menos, colocá-lo sob o controle de

seus promotores.

Creio que a intenção dos tradicionalistas de serem vistos como, explicitamente,

diferentes, contraposta ao modo como os cantadores tentam de certa forma escamotear ou

224
domesticar as suas diferenças, nos remete a uma série de questões relativas às

representações sociais sobre os migrantes e sobre tipos regionais.

Vimos em vários momentos desta tese que o migrante na maioria das vezes se

encontra numa posição de vulnerabilidade e ambigüidade, associada à posição de

inferioridade. No entanto, alguns indivíduos ou grupos podem ser “mais migrantes” do que

outros. Esse é o caso de muitos nordestinos. Esse é o caso dos cantadores nordestinos em

Brasília. Dito de outra forma, os modos como os migrantes sulistas e os migrantes

nordestinos são vistos no imaginário nacional encontram algumas particularidades. Essas

particularidades por um lado, parecem ser o que os tradicionalistas gaúchos tentam reforçar

e por outro, o que os cantadores nordestinos tentam desconstruir.

Existem algumas características básicas que diferenciam os contextos aqui

estudados. Elas se referem à trajetória do deslocamento espacial empreendido pelos

informantes e às questões de ordem econômica e social. Essas últimas revelam que

cantadores nordestinos e tradicionalistas gaúchos em Brasília estão inseridos em classes

econômicas diferenciadas. Os tradicionalistas pertencem às classes médias da população

brasileira, enquanto os cantadores situam-se nas camadas baixas. Os cantadores estão na

periferia do Distrito Federal, habitando as cidades satélites. Os tradicionalistas estão no

centro, no Plano Piloto. Quanto à trajetória espacial, as particularidades dos dois universos

dizem respeito ao contexto original dos informantes. Quase todos os cantadores vieram de

regiões rurais do Nordeste. Apesar de terem vivido em outras cidades e grandes capitais

antes de se fixarem em Brasília, o contexto de origem dos cantadores é o universo rural do

sertão nordestino. O caráter do deslocamento pode ser caracterizado como uma passagem

do meio rural para o meio urbano. A trajetória empreendida pelos freqüentadores do CTG

Jayme Caetano Braun é essencialmente urbana. O contexto original dos tradicionalistas em

225
Brasília é o universo urbano, e não as comunidades rurais como seus ritos e seus discursos

parecem sugerir.

Para os cantadores a migração é percebida como um projeto de vida. Brasília

aparece como a possibilidade do indivíduo ascender social e financeiramente. Os

cantadores não temem em afirmar que vieram para a capital federal com o objetivo de

melhorar de vida. Nesse projeto, estar em Brasília é essencial. Viver na cidade não é algo

aleatório, mas sim uma escolha. Para os tradicionalistas a migração não parece se constituir

numa intenção de ascensão do migrante. Nos discursos, estar em Brasília é construído

como um ato compulsório, dado em razão do cumprimento de compromissos profissionais.

Eles vieram porque foram transferidos e não porque Brasília ocupava um lugar especial no

projeto de vida do indivíduo. A migração não é justificada a partir de expectativas por

melhores condições financeiras e sociais.

Todas essas características que se referem à posição sócio-econômica dos

envolvidos nos processos migratórios, ao tipo de deslocamento espacial e às formas de

justificar a migração, ajudam a edificar modos de se pensar o migrante. Nos contextos aqui

estudados, as imagens sobre o migrante estão associadas ainda às representações sobre

tipos regionais. Os informantes não são apenas migrantes, são antes de tudo, migrantes

nordestinos e migrantes gaúchos.

As noções acerca do migrante gaúcho e do migrante nordestino são manejadas de

modos diferentes nas duas entidades. Um momento especial para o manejo, reafirmação ou

reelaboração dessas imagens é o momento ritual. Na Casa do Cantador e no CTG Jayme

Caetano Braun, cantadores nordestinos e tradicionalistas gaúchos intensificando ou

reinventando imagens, constroem seus ritos. Utilizando um repertório ritual, mensagens são

226
comunicadas. Através dessas situações especiais, essas pessoas imaginam e simulam a si

mesmas.

A realização de um Costelão ou de uma Cantoria tem a função de congregar

gaúchos distantes do pago ou nordestinos distantes da terrinha, mas também a de

apresentá-los aos que não são gaúchos ou aos que não são nordestinos. Por menor ou maior

que seja a platéia desses eventos, durante uma apresentação de chula ou da elaboração de

um improviso, gaúchos e nordestinos demonstram e afirmam a sua naturalidade pela

manipulação de manifestações culturais, consideradas pelos seus realizadores como

específicas de suas regiões natais. Ou seja, esses eventos são momentos privilegiados onde

imagens estão sendo construídas, acionadas, reinventadas e avaliadas.

Manuseando símbolos de uma tradição, a Casa do Cantador e o CTG Jayme

Caetano Braun são entidades que se organizam com a pretensão de exporem as qualidades

do “ser nordestino” e do “ser gaúcho”. O “nordestino” e o “gaúcho” são expostos por meio

de diferentes apropriações de referências espaciais e temporais. O espaço reinventado nas

duas instituições é o meio rural: num caso, o sertão nordestino e no outro, a campanha

gaúcha. Os referenciais temporais referem-se ao passado e ao presente, ao antigo e ao

moderno. Através de modos particulares de acionarem tais referências, cantadores e

tradicionalistas reelaboram a idéia de tradição.

Um dos aspectos interessantes dos processos de construção da noção de tradição diz

respeito ao modo como os informantes acionam o universo rural. Ambas entidades, cada

uma a sua maneira, revisitam esse ambiente. No caso dos cantadores, o “rural” está na base

do contexto original da manifestação praticada por eles. Por sua vez, os tradicionalistas se

apropriam de elementos identificados com um ambiente rural, e que em grande proporção

nunca fizeram parte de suas vivências, para construir a dinâmica de suas tradições. No

227
entanto, é preciso esclarecer que eles estão se referindo a universos rurais que são valorados

e reconhecidos diferentemente.

Foi dito que para se construírem como cantadores e como tradicionalistas esses

homens estão sempre se remetendo a coisas, espaços e tempos específicos. No contexto

dentro do qual está inserido tudo aquilo que é considerado como tradição ou símbolo de

uma determinada coletividade, impõe-se uma ampla gama de objetos e referências espaciais

e temporais. Diante desse repertório, há sempre um processo de escolha. Os itens

escolhidos por meus informantes para representarem a si mesmos são repletos de

significados.

Segundo Eduardo Archetti (2003), os argentinos foram buscar no vaqueiro dos

pampas, a figura que seria a representação de um tipo nacional (: 13). O gaucho representa

a herança cultural de uma nação, é o tipo simbólico da nacionalidade argentina.

Parafraseando o autor, o final o século XIX, afetado pelo influxo de estrangeiros e por um

caótico crescimento urbano, não seria o tempo para se encontrar símbolos da nacionalidade.

Na Argentina, entre os anos de 1898 e 1914 foram fundadas centenas de entidades que

tinham como missão recriar os costumes do gaucho (op. cit.:14). Sem adentrar numa

discussão sobre a formação dos Estados-Nações e sobre as forças políticas envolvidas nesse

processo, o que quero ressaltar com esse exemplo é a apropriação de elementos como

símbolos de uma nacionalidade, e no caso desta tese, de uma regionalidade. O gaúcho dos

pampas, seu ambiente rural e um tempo situado no passado é utilizado para a construção de

tipos sociais. O passado e o rural são traços apropriados positivamente e é por meio deles

que os gaúchos tradicionalistas querem ser reconhecidos.

Diferente dos tradicionalistas em Brasília, os cantadores nordestinos têm

efetivamente uma ligação original com o mundo rural. Foi nesse meio que muitos

228
cantadores nasceram e viveram grande parte de suas vidas. No entanto, o “rural” não é

valorado de forma positiva. Ao contrário, ele, na maioria das vezes, encarna um contexto de

atraso, ligado às imagens da fome, da seca e do analfabetismo. A imagem do sertão

nordestino, associada a desastres naturais e a condições de vida caracterizadas pela miséria,

já se tornou clássica no imaginário nacional. A vinculação ao espaço rural e ao tempo

passado, não cria tipos heróicos e positivos, como o gaúcho, o centauro dos pampas. O que

é formado é a imagem do matuto, extremamente depreciada e da qual os cantadores fixados

na capital do país tentam se desvincular. Os cantadores não lutam contra a estigmatização

do matuto, eles partilham dela. Apesar de em várias sextilhas, ressaltarem seus aspectos

positivos, eles não pretendem construir uma outra visão imagem do sertão. Em Brasília, o

que eles querem é o distanciamento de tal noção, lutando pelo reconhecimento enquanto

artistas e não como matutos.

É dentro de todos esses jogos de intenções que podemos analisar os modos como os

informantes incorporam e acionam o vocabulário da tradição. Para os cantadores o que eles

promovem em Brasília é nomeado como arte. Essa arte é resultado de um esforço

intelectual do artista. Os cantadores gostam de enfatizar que apesar de serem feitas de

improviso, as composições surgem de estudos de enciclopédias, dicionários, jornais,

revistas, etc. Para um cantador ser considerado bom, ele precisa estar familiarizado com

assuntos em voga na atualidade do mundo, ou que já foram parte da história da

humanidade. Quanto mais atualizado for e mais conhecimento tiver, melhor e mais

respeitado será o cantador. Na concepção dos cantadores, que à custa de muita luta estão

radicados na capital federal, nomear a manifestação praticada por eles como folclórica seria

o mesmo que maculá-la. O folclore remete ao passado, ao atraso e a tudo o que a cantoria

atual não é. A referência ao passado é uma menção ao modo de vida de antigos cantadores

229
miseráveis e analfabetos. É nesse plano que se situam os motivos pelos quais eles não usam

em suas apresentações os trajes típicos dos “vaqueiros sertanejos” ou dos “cangaceiros”. Os

cantadores na capital federal precisam e querem ser modernos. Por isso, a tradição

atualizada em Brasília é percebida como uma arte: “Aqui nós fazemos a cantoria artística e

não folclórica”. Ela é arte porque exige destreza, habilidade, criatividade, esforço

intelectual, estudo e preparação. Ao nomear uma manifestação reconhecida como típica de

uma região caracterizada pelo atraso como arte, os cantadores tentam se aproximar de

códigos utilizados na realidade na qual estão inseridos: a vida metropolitana. A educação

formal, o domínio da língua falada e escrita e o uso de uma vestimenta identificada com os

valores urbanos, confirma simbolicamente a ascensão de status (do matuto ao artista) e

afirma uma nova identidade distanciada de um passado associado à inferioridade.

Para os tradicionalistas, o que eles fazem é reviver no CTG uma “vivência

folclórica”. Nomear uma manifestação como folclórica é também resgatar o passado. Esse

tempo merece ser lembrado ou mesmo inventado através do uso de roupas típicas e da

promoção de eventos específicos. O folclore aqui eleva. A noção de folclore é capaz de

assumir uma carga moral que coloca os indivíduos em contato com experiências que,

segundo os tradicionalistas, não têm mais espaço na atualidade: o valor da família, da

honra, da palavra, etc. Os gaúchos, sendo tradicionalistas, objetivam resgatar e conservar

aspectos de um passado idealizado positivamente. Nessas experiências do passado e do

meio rural, eles dizem encontrar uma espécie de solução para os principais problemas da

vida nas grandes metrópoles.

No capítulo anterior, disse que tanto os cantadores como os tradicionalistas - de

formas particulares - constroem em seus espaços de reuniões, inovações culturais. Se os

cantadores nordestinos em Brasília ouvissem de mim: “O que vocês fazem é uma inovação

230
cultural”, a frase seria entendida como um elogio. Acho que a reação dos tradicionalistas

gaúchos não seria a mesma, e creio que se eu pronunciasse a frase de um modo enfático,

teria grandes chances de cultivar inimizades. Para os tradicionalistas as inovações são

rechaçadas. O reconhecimento de eventuais novidades no seio das práticas culturais

fomentadas por eles, representa uma ameaça. Para os cantadores as renovações são bem-

vindas. A publicização de possíveis mudanças e modificações é uma forma de valorizar e

engrandecer a cantoria nordestina em contextos urbanos.

No entanto, acredito que através de seus resgates e disfarces, tradicionalistas e

cantadores empreendem inovações. Apesar da valorização ou não das novidades, o que

quero sugerir é que tanto os cantadores como os tradicionalistas não se mostram “incapazes

de obedecer a forças novas”. As tradições dos cantadores e dos tradicionalistas são criadas

de propósito, conforme sugere Marcel Mauss (1979), são fatos conscientes, consistem no

saber que uma sociedade tem de si mesma e de seu passado e resultam de necessidades da

vida em comum (: 201).

Na Casa do Cantador e no CTG Jayme Caetano Braun, as tradições são criadas e

recriadas de acordo com as intenções de seus promoventes. Há um processo seletivo e

inventivo da tradição. Em outras palavras, eles escolhem o que querem resgatar.

Promovendo um fato tradicional, os cantadores objetivam a inserção em novos espaços e

tentam edificar uma nova imagem da cantoria compatível com a vida metropolitana e atual.

Os tradicionalistas fazem uso de fatos tradicionais que são atualizados com o propósito de

resgatar aspectos de um passado idealizado e de transformar todo esse tempo em

representante legítimo e autêntico do povo gaúcho.

A partir da atualização de fatos tradicionais, são construtores de posicionamentos no

tempo e no espaço. Inovando a tradição, os cantadores passam do rural para o urbano, do

231
passado para o presente. Inovando a tradição, os tradicionalistas navegam do urbano para o

rural, do presente para o passado. Isso não impede que tais passagens sejam feitas com

inúmeras intermediações, ambigüidades, idas e voltas. È por esses caminhos, marcados por

inúmeros fluxos, que os informantes resgatam e promovem suas práticas culturais inovando

fatos tradicionais.

As contradições com que os tradicionalistas gaúchos têm que lidar se referem

principalmente à dinâmica entre tradição e modernidade. O tradicional atualizado nos

CTGs é novo. O tradicionalismo é uma tradição recente. Para tornar autêntica essa

“novidade”, os tradicionalistas utilizam vários recursos. Um deles é o de fixar a tradição em

documentos. Essa fixação garante uma legitimidade que é reconhecida e respeitada pelos

seus promotores. Esse caráter oficial também possibilita a apreensão da tradição não como

uma mera invenção que começou a ser encenada com um grupo de estudantes na cidade de

Porto Alegre, mas como uma representação autêntica de todo o povo gaúcho. Assim,

muitas de suas manifestações são prescritas por atas, leis e estatutos. Os tradicionalistas

fazem uso de todo um código moderno e burocrático para praticarem seus fatos culturais.

Ao mesmo tempo em que enfatizam resgatar no CTG traços de uma cultura do passado,

lidam o tempo todo com tecnologias que dão visibilidade ao grupo, como o uso de

modernos sites na internet para a divulgação de seus eventos. O projeto de promoção de

manifestações tidas como tradicionais e antigas, é elaborado, vivenciado e viabilizado

através de códigos modernos: tecnologias, burocracia, registros escritos, etc.

As contradições que os cantadores nordestinos em Brasília têm que lidar se referem

principalmente às oposições entre o ser e o estar. Conforme já foi na Parte I e III, no caso

dos cantadores notamos a tentativa de se colocarem como indivíduos completamente

adequados e inseridos ao contexto em que estão no momento. Acionando uma série de

232
recursos e estratégias, o cantador pretende se identificar com o meio em que estão. Porém,

podemos perceber também iniciativas de manter certas particularidades que os tornem

diferentes. E a principal dessas particularidades é o fato de que a vinculação ao ambiente de

origem permanece. O lugar de destino é sempre o lugar de destino. O lugar de destino é o

lugar em que estão, e não o lugar de onde são. As diferenças entre o ser e o estar ganham

força nos discursos. Os cantadores fazem questão de se apresentarem como cantadores

nordestinos em Brasília e não como cantadores de Brasília. Por mais inseridos que queiram

estar, é essa vinculação o principal veículo através do qual os cantadores em Brasília, mas

acima de tudo nordestinos, estão reunidos na Casa do Cantador.

O sentido de pertencer

Lúcia Arrais Morales (1993), em sua dissertação de mestrado sobre a Feira de São

Cristóvão no Rio de Janeiro, percebe as manifestações como a dança, a literatura de cordel

e a culinária, fomentadas principalmente por migrantes nordestinos, enquanto tradições que

se atualizam, produzindo combinações e novos arranjos em sua prática. A tradição não é

utilizada com a intenção de conservação, o grupo/indivíduo seleciona alguns traços que

funcionam como sinais diacríticos para exibir seu pertencimento a uma forma de viver (op.

cit.: 138). Essa tradição dá ao migrante nordestino o monopólio da distinção, favorecendo a

composição do grupo e chamando lealdades que vão lutar para garantir interesses

econômicos, políticos, simbólicos e afetivos (op. cit.: 183). É essa tradição que faz com que

cantadores nordestinos e tradicionalistas gaúchos em Brasília compartilhem um “nós”.

A Casa do Cantador e o CTG Jayme Caetano Braun são instituições fundadas a

partir de um denominador comum: a tradição. As “inovações tradicionais” promovidas

233
pelos cantadores e pelos tradicionalistas sinalizam vinculações a unidades coletivas. Os

fatos tradicionais - reinventados pelos informantes - constituem-se em um forte elemento

aglutinador. As intenções diferenciadas de serem reconhecidos publicamente enquanto

grupo não encobrem a importância de estabelecerem redes sociais por meio dos vínculos

firmados dentro das entidades às quais pertence o indivíduo.

Georg Simmel (1976) pontua como traços típicos ou formas elementares de

socialização da atitude mental da vida metropolitana, a reserva, o anonimato, a antipatia,

distâncias e aversões (: 17-18). Mesmo com todas essas características é possível

identificarmos a formação de agrupamentos sociais “com uma ação coletiva organizada,

sustentada em crenças e valores compartilhados” (Velho, 2005: 251). Em outras palavras,

vemos surgir a produção de interesses ou focos de atenções que congreguem indivíduos e

categorias sociais, ainda que nitidamente distintas e diferenciadas. Como diria Gilberto

Velho, “o individualismo moderno, metropolitano, não exclui, por conseguinte, a vivência e

o englobamento por unidades abrangentes e experiências comunitárias” (op. cit.: 263).

Discutir esse problema teórico não é novidade para os pensadores dos fenômenos

sociais. A vida em sociedade e seus desdobramentos – como, por exemplo, a reunião de

indivíduos em agrupamentos sociais - são temas de muitos estudos antropológicos. Mas,

por que as pessoas precisam se relacionar umas com as outras? Essa pergunta, que pode

parecer ingênua e meio absurda, tem uma profundidade teórica bastante complexa, e vários

autores forneceram respostas variadas a ela. Apesar de não colocarem a questão de modo

tão simples e direto como foi aqui colocado, Peter Berger e Thomas Luckmann (1976), em

a Construção Social da Realidade, encontram uma possível resposta à pergunta nos

meandros da interação face-a-face e nas conseqüências desse tipo elementar de

relacionamento social. Os autores pensam as interações face-a-face como o protótipo de

234
toda a interação social. Elas pressupõem o contato concreto e direto entre as partes em

interação e permitem, segundo os autores, o acesso à subjetividade (op. cit.: 47). O outro

com que me relaciono seria um espelho de mim mesmo.

Simmel (2005), sem se restringir a um tipo específico de relacionamento social,

coloca a questão nos seguintes termos:

Todas as relações com os outros são, ao fim e ao cabo, estações no caminho em busca de si
mesmo, seja porque se sente igual aos outros e sozinho com suas próprias forças,
precisando de apoio desse tipo de consciência, seja porque, com a capacidade de encarar a
solidão de frente, os outros existem para permitir a cada indivíduo a comparação e a visão
da própria singularidade e individualidade do próprio mundo (: 112).

As interações sociais poderiam assim nos proporcionar o acesso a nossa própria

subjetividade e individualidade. Acredito que Simmel trilha um outro caminho

interpretativo (que não é oposto àquele) que julgo ser mais útil aos propósitos desta tese.

Tal opção diz respeito à dinâmica de algumas “formas da vida social”.

Para Simmel o que constitui a sociedade é a própria prática de seus membros. Ou

seja, “o estar com um outro, para um outro ou contra um outro” (Simmel, 1983: 168). São

várias as formas com que essas interações são estabelecidas. Uma das formas da vida social

refere-se ao espaço. Impõe-se aqui a noção de estrangeiro. De acordo com o autor, não é

estrangeiro aquele que está distante, aquele que não existe para nós. “Assim como o

indigente e as variadas espécies de „inimigos internos‟, o estrangeiro é um elemento do

próprio grupo. São elementos que se, de um lado, são imanentes e têm uma posição de

membros, por outro lado estão fora dele e o confrontam” (op. cit.: 183). A dinâmica entre

proximidade e distância é o que caracteriza essa forma específica de interação. Para Carla

Costa Teixeira (2000) “o que caracteriza o estrangeiro simmeliano é que ele é alguém que

235
vem de fora, se estabelece, mas não se torna membro pleno do grupo, não aspirando ser

assimilado, esta é a sua condição de pertencer, sua interação positiva com o grupo: estar

próximo e distante simultaneamente” (: 23).

A principal questão não é pensar se a noção de estrangeiro pode ser utilizada para

caracterizar os cantadores nordestinos e os tradicionalistas gaúchos em Brasília. Talvez, se

me dedicasse a esmiuçar tal pergunta, provavelmente, a reposta seria negativa ou então,

imprecisa. O primeiro fato a ser ressaltado é o de que Brasília já foi uma cidade formada

basicamente por uma população “estrangeira”, ou seja, que veio de fora. A população

nativa era muito pequena para interagir e fazer com que esse outro se sentisse realmente

outro. No universo selecionado para a pesquisa, vários “migrantes” estão na cidade desde a

sua fundação. Esses indivíduos não podem ser pensados como recém-chegados e nem como

estrangeiros, eles são “pioneiros”. Ao contrário do que sugere Simmel com a noção de

estrangeiro, eles estão assimilados ou pelo menos, aspiram ser. Seus padrões “originais”

foram adaptados a uma realidade que em função do tempo de permanência não é tão nova

assim. Muitos não fazem planos de regressar para suas cidades natais. Por esses motivos,

conforme esclarecemos na Introdução e sugerimos ao longo de alguns Capítulos desta

tese, a própria denominação “migrantes” torna-se insuficiente para caracterizar os meus

informantes.

Ressaltadas as devidas particularidades dos tradicionalistas e cantadores em

Brasília, é importante ressaltar que o que importa para Simmel na idéia de estrangeiro não é

tanto o espaço geográfico, mas o tráfego entre proximidade e afastamento. Meu objetivo

não é o de transpor a noção simmeliana de estrangeiro para o contexto dos cantadores

nordestinos e dos tradicionalistas gaúchos em Brasília. O resgate foi feito na medida em

que revela uma forma de relação social que também está presente no meu universo de

236
pesquisa: a dinâmica movediça entre o que distancia e o que aproxima os homens. Meus

informantes acionam esse fluxo de interações que dinamicamente une e separa. Os

cantadores nordestinos ao mesmo tempo em que querem ser vistos como inseridos no

cenário da capital, não descartam a importância de serem reconhecidos como nordestinos.

Com os tradicionalistas gaúchos temos a mesma dinâmica, é claro, com algumas nuanças.

Aqui eles não precisam lutar pela inserção, pois por uma série de razões da ordem

econômica, social e cultural 2, eles já estão inseridos. No entanto, fazem de tudo para serem

percebidos como diferentes. Essas relações sociais, construídas a partir do posicionamento

entre o distante e o próximo, são alguns dos motivos pelos quais meus informantes estão

reunidos em associações. A dinâmica entre a inserção e a manutenção de uma certa

separação ou singularidade constitui-se na verdade numa das formas de convivência e

reciprocidade dentro dessas entidades.

Outras formas de interações sociais estão presentes na Casa do Cantador e do CTG

Jayme Caetano Braun. Elas evolvem, conforme sugerimos ao longo da tese, os diferentes

modos de atualização da tradição, os propósitos de sua apropriação, jogos de intenções

diferenciadas e o complexo processo de construção de imagens acerca do migrante e de

tipos regionais. No entanto, creio que a principal forma de interação nesses espaços é o

próprio sentido de ser e de estar num grupo. Essas questões parecem ganhar mais força em

virtude do caráter da sociedade na qual estão inseridos os gaúchos tradicionalistas e

cantadores nordestinos em Brasília: a sociedade brasileira.

Em que medida é possível não ser do e não estar no grupo numa sociedade

relacional como a brasileira? Sociedade relacional é pensada aqui nos termos do

antropólogo Roberto DaMatta (1997), ou seja, é aquela fundada e informada “por uma

2
Essas razões foram apontadas em vários momentos desta tese.

237
ideologia em que o indivíduo não existe como ser moral, como sujeito do sistema, a não ser

em momentos muito especiais” (: 139). Em nossa sociedade é impossível não pertencer;

não estabelecer ligações; e não se sentir parte de uma cultura. É impensável para nós,

sermos somente indivíduos. Precisamos ter algo a mais; algo além do anonimato, da

individualidade e da solidão.

A posição do sujeito como pertencendo a um grupo ou como aquele que possui e

goza de redes sociais é uma característica e mecanismo fundamental da dinâmica da

sociedade brasileira. A sociedade brasileira é uma sociedade onde a relação desempenha

um papel crítico na concepção e na dinâmica da ordem social (DaMatta, 1997: 65).

DaMatta (1979, 1994 e 1997) escreveu vários textos que pretendem elucidar esse “jeitinho

brasileiro” em que muitas coisas são resolvidas a partir de uma pergunta tão acionada por

nós: “sabe com quem você está falando?”. A conclusão de todas essas análises é a de que

em nossa sociedade, a palavra de ordem é a relação, ou seja, as relações pessoais são partes

do sistema social brasileiro.

No Brasil, o indivíduo isolado e sem relações é “algo considerado extremamente

negativo, revelando apenas a solidão de um ser humano marginal em relação aos outros

membros da comunidade” (DaMatta, 1997: 77). São as relações que permitem revestir uma

pessoa de humanidade (op. cit.: 82). A existência social se legitima pelos elos que

mantenho com outras pessoas num sistema de transitividade e gradações. Nos Estados

Unidos pode-se viver sem laços sociais imperativos e instrumentais, enquanto que no Brasil

“ninguém existe de modo social pleno sem ter uma família e uma rede de laços pessoais

imperativos e instrumentais” (op. cit.: 92). São configurações sociais que apontam para

modos diferentes de conceber a realidade social.

238
Por que é importante ter relações, ser um ser relacional? Será que as respostas,

como sugere DaMatta em seus estudos, ligam-se às questões de favorecimento, o “se dar

bem”, deixar de cumprir leis universais, uso da relação pessoal para a navegação social,

estratégias políticas e sociais? E quanto ao meu objeto de análise? Por que são acionadas as

redes? Por que esses gaúchos e nordestinos formam agrupamentos sociais? Vínculos

territoriais e geográficos? Eles se unem por que são conterrâneos?

Franklin Goza (2003) ressalta a importância das redes “para providenciar

informações gerais, apoio financeiro para facilitar a mudança, assistência com despesa e

acomodações iniciais, assegurar emprego, encontrar habitação, apoio psicológico e a

manutenção dos laços com a distante comunidade de origem” (: 264). O efeito das redes

sociais na vida dos migrantes e sua relevância para o entendimento da experiência

migratória são amplamente enfatizados nos estudos sobre migração. As redes sociais aqui

estabelecidas são aquelas dadas pelos vínculos construídos a partir de uma naturalidade em

comum.

Inicialmente, poderíamos pensar que os freqüentadores do CTG e da Casa do

Cantador estariam unidos por laços construídos e alicerçados com base num contexto

original em comum. Essa similaridade seria o motivo para o estabelecimento de relações

sociais. Para fortalecer e atualizar tais vínculos, muitos migrantes encontrariam nas

manifestações consideradas típicas de sua região de origem um lócus privilegiado para

condensar e perpetrar redes de relacionamento. A saudade da terra natal e a possibilidade

de dirimir esse sentimento poderiam levar muitos migrantes à formação de agrupamentos

sociais voltados à vivência da experiência dos fatos tradicionais. Conforme foi demonstrado

nos capítulos das Partes I e II desta tese, não nego tais argumentações. No entanto, quero

239
mostrar que por de trás do significado do ser conterrâneo, existe uma outra dimensão capaz

de se sobrepor, talvez, aos sentimentos de saudades da terra natal.

Para DaMatta (1997), a saudade é uma categoria social básica, ela dá pleno

significado a certa forma social e a certo estilo de recordação. A equação social é: quanto

mais saudade mais intensa é a memória do morto, do lugar deixado, de pessoas distantes,

ou seja, mais intensa e presente é a relação social. “E se eles têm locais e instituições

específicas onde podem ser vividos, então essas relações são permanentes mesmo sem a

saudade” (op. cit.: 155).

O que pretendo enfatizar é que o saudosismo, embora presente em ambas entidades,

não é suficiente e determinante tanto para a iniciativa da formação como para a manutenção

dos agrupamentos sociais aqui estudados. Se a atualização das tradições fosse fundamental

no processo de adaptação dessas pessoas em Brasília, não veríamos um gaúcho ou um

nordestino fora dos centros de tradições.

Uma das questões que me motivava no início da construção da tese, quando ainda

na realização do Projeto, era pensar o resgate e a atualização das tradições como uma

estratégia de adaptação dos migrantes sulistas e nordestinos no lugar de destino. Na maioria

das vezes, o pesquisador vai à “campo” repleto de pré-noções teóricas, até que somos

desarmados no decorrer do cotidiano estabelecido com o grupo. No começo de minha

pesquisa, talvez, tenha sido mais saudosista do que meus próprios informantes. Esse fato

foi comprovado por mim numa situação de campo. Conversava com uma tradicionalista

que está na cidade desde os tempos de sua construção. Ela e o marido participaram da

fundação do CTG na década de oitenta. Em nossa conversa, a informante discursava,

maravilhada e empolgada sobre as atividades do CTG e sobre a importância da entidade na

sua vida. O local se apresentava como um espaço por excelência do lazer; um local onde

240
essa senhora de sessenta anos se sentia muito útil, ajudando na preparação de festas e

eventos; um local onde ela dançava e se divertia a noite inteira com o marido; enfim, um

local onde ela estava entre amigos. Frente a tais comentários, interrompi sua fala e lancei o

meu pressuposto teórico de forma afoita: “Então, isso aqui foi muito importante na sua

adaptação em Brasília?”. A informante de forma categórica me respondeu: “Não, nada a

ver. Quando cheguei em Brasília nem existia CTG. Os gaúchos... a gente contava no dedo.

Só depois de muito tempo aqui é que a gente resolveu fundar um CTG”.

Sendo migrantes ou não, o que perpassa toda essa questão é a formação e o

acionamento de redes de relações. Por que nem todos os gaúchos e nordestinos integram

centros de tradições? Eles podem até não estar integrados aos CTGs ou às Casas de

Cantadores, mas com certeza acionam outros tipos de interações. Dentro de seu campo de

possibilidades, o sujeito tem outras formas de estabelecer laços que não sejam via a

tradição. Existe uma margem de opções e alternativas de diferentes formas de organização

como associações esportivas, sindicais, organizações baseadas em interesses ocupacionais,

além dos laços de vizinhança, amizade e da família.

Nesta tese dei especial atenção aos agrupamentos onde a idéia de tradição cultural

emerge não apenas como uma estratégia de adaptação, mas, principalmente, de

sobrevivência social através da formação de redes. Em tais espaços são construídas formas

específicas de localização e inserção na cidade, e formas específicas de sociabilidade

baseadas na amizade e afetividade. O motivo para a reunião refere-se ao resgate de

manifestações que existem no lugar de origem dos informantes, como a música, a dança e a

culinária. Essas manifestações culturais expressam sentimentos que permitem a seus

fomentadores inserirem-se se não num grupo, pelo menos em esferas privilegiadas de

interação humana.

241
Estando juntos, os informantes inovam tradições; se localizam no cenário de

Brasília; se posicionam frente aos seus cenários natais; elaboram jogos de intenções; e

comunicam imagens. É no repertório da tradição que eles elaboram práticas, representações

e interações sociais, e celebram o sentido de pertencer a um grupo. Seja falando um

linguajar específico, usando uma indumentária especial, performando uma dança,

improvisando versos, criam um ideal de unidade por pertenceram a um grupo, por mais

fugaz e efêmero que este possa ser.

Se a sociedade é “estar com um outro, para um outro ou contra um outro”, as formas

derivadas desses processos são motivadas por necessidades e interesses, mas também por

um certo sentimento. Como diria Simmel (1983),

Interesses, impulsos e necessidades específicas certamente fazem com os homens se unam


em associações econômicas, em irmandades de sangue, em sociedades religiosas, em
quadrilhas de bandido. Além desses conteúdos específicos, todas estas sociações também se
caracterizam, precisamente, por um sentimento, entre seus membros, de estarem sociados, e
pela satisfação derivada disso (op. cit.: 168).

Assim, o sentido de ser e estar num grupo pode também significar o simples prazer

de estar junto. O alvo da formação do agrupamento social é a celebração e o sucesso do

momento sociável. Estar junto no CTG e na Casa do Cantador constitui-se num valor. A

noção de grupo transforma-se numa categoria social valorizada dentro do próprio grupo. É

nesse contexto que podemos entender a colocação de um ex-participante do CTG Jayme

Caetano Braun, que recentemente voltou para sua “terra natal”:

Eu sou do Sul ou era, já nem sei mais... O fato é que eu nunca pensei que um dia fosse
sentir saudades de Brasília.

242
Apesar de estarem constantemente fazendo uso de referências espaciais específicas,

idealizando lugares, promovendo manifestações culturais que remetam a tais contextos, a

importância de pertencer a uma região é minimizada pelo sentimento de pertença a um

grupo social. Em outras palavras, muito mais do que a idéia de pertencimento a um lugar,

fazer parte do CTG Jayme Caetano Braun e da Casa do Cantador, proporciona o sentimento

de ser e estar num “grupo”. È nesse sentido que a saudade pode não ser mais de lá. Agora, a

saudade pode ser daqui.

Em seus centros de tradições, cantadores e tradicionalistas celebram as tradições do

Nordeste e do Sul e festejam o significado de ser e estar num grupo. A celebração se dá não

apenas por meio da atualização de fatos tradicionais, mas também através da edificação de

novas formas de convivência e de reciprocidade em contextos urbanos.

243
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