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DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
Modernos e Rústicos:
Brasília, 2005.
Modernos e Rústicos:
Brasília
junho, 2005
Título da Tese: Modernos e Rústicos: Tradição, Cantadores Nordestinos e
Tradicionalistas Gaúchos em Brasília.
Autora: Patrícia Silva Osório.
Orientador: Dr. Roque de Barros Laraia.
Data da Defesa: 04/07/2005.
Resumo
Abstract
The present thesis is a comparative study of the dynamics of two institutions located in the
country’s capital: Casa do Cantador (The Improvisators’ Club) and Centro de Tradições
Gaúchas Jayme Caetano Braun (The Jayme Caetano Braun Center for Gaúcho Traditions).
The participants of the social activities practised in these places call themselves cantadores
nordestinos (Northeastern improvisators) and tradicionalistas gaúchos (gaúcho
traditionalists). Both institutions revive and recreate cultural manifestations characteristic of
their places of origin. From this perspective, one may attempt an analysis of migratory
movements. However, in the process of settling down in the city’s landscape, these
traditional cultural centers no longer function merely in terms of adaptational strategies.
The membership of the Casa do Cantador or the Jayme Caetano CTG provides the
individual with a sense of belonging to a community. In both places, the members form
social bonds and establish modes of familiarity and reciprocity in an urban context.
Key words: Nordeste singers, gaúcho traditions, urban groups, migration, social
representation and belonging to a community.
Índice
Introdução............................................................................................................................01
Apresentado o problema.......................................................................................................03
Questões metodológicas........................................................................................................07
A cidade dos “sem”...............................................................................................................10
Capítulo V: Noite da Poesia, Sexta Nativa, Costelão e Missa Crioula: os vários ritos do
CTG Jayme Caetano Braun.............................................................................................116
A invenção dos símbolos....................................................................................................116
O evento mais genuíno do CTG..........................................................................................120
Homens, pompa e autenticidade.........................................................................................130
Festas que unem e mostram a diferença..............................................................................135
Conclusão...........................................................................................................................218
A inovação da tradição........................................................................................................219
O sentido de pertencer.........................................................................................................233
Bibliografia........................................................................................................................244
INTRODUÇÃO
cultural pode emergir como uma estratégia utilizada por indivíduos ou grupos no processo
Tradições. No Rio Grande do Sul, muitos deles não participavam dos chamados Centros de
fomentarem algum tipo de articulação. O enredo escolhido para a reunião foi atualização de
indivíduos ou grupos que não tenham uma relação “original” com o contexto a partir do
qual são identificadas. Em outras palavras, as pessoas não precisam ter nascido em um dado
1
Programa implantado em 1977, visando o incentivo da produção agrícola no Distrito Federal.
2
FONSECA, Regina Recalde da. Nós os Gaúchos do PAD/DF: Identidade e Ocupação Territorial. 1993.
Dissertação (Graduação em Ciências Sociais), Departamento de Antropologia, Universidade de Brasília,
Brasília, 1993.
1
ambiente para acioná-lo em situações de mudança. Abaixo, reproduzo dados de minha
dissertação de mestrado 3.
os gambás estão reunidos para tocar e cantar o que eles classificam como a boa música
compositores como Chico Buarque, Paulinho da Viola e Cartola. A princípio, o que unia os
gambás era o fato de terem um gosto especial pela música e de trabalharem numa mesma
empresa pública. Antes da transferência para Brasília ao final da década de setenta, a sede
de tal empresa estava localizada no boêmio bairro da Lapa, dito como o berço da
do bairro e apenas um, dos cinco idealizadores da Turma, é carioca. Ao primeiro contato
com os gambás, temos a sensação de que estamos diante de um reduto carioca no planalto
Janeiro. O Hino da Turma diz: “Ai que saudade da Lapa, velha ribalta de raríssimo
esplendor”, e nesse momento um gambá mostra à platéia um quadro dos Arcos da Lapa. O
bairro carioca está presente nos discursos e em muitas de suas composições. Na Lapa
reinventada em Brasília ainda existe espaço para figuras típicas das noites como Madame
4
Satã e para os bares que só cerravam suas portas ao romper o dia. A “Lapa Símbolo” é
3
OSORIO, Patrícia Silva. Ai Que Saudade da Lapa: o bar e a canção na (re)invenção da boêmia em Brasília.
2001. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2001.
4
Um homossexual conhecido ao mesmo tempo por imitar Carmem Miranda e por ser valente e brigão. Conta-
se que em uma de suas brigas assassinou o famoso sambista Geraldo Pereira.
2
desse pequeno agrupamento urbano, a escolha por enaltecer e reverenciar a Lapa e o Rio de
Janeiro não tem tanto a função de fazer relembrar, mas de erigir relações sociais. A Lapa, a
música, o canto são veículos através dos quais os gambás garantem a emergência de um
elementos que esses indivíduos se vêem e são vistos como boêmios, sentimentais e acima
Nesta tese não trataremos do caso dos gaúchos do PAD/DF e nem da Turma do
Gambá. Os exemplos foram trazidos porque eles nos colocam diante de dois caminhos
interpretativos nos quais esta tese tentará trafegar. O primeiro deles refere-se às imagens e
significados do ser migrante. A segunda rota a ser percorrida situa-se para além das análises
Apresentando o problema
temas de muitos estudos acadêmicos. No Brasil, boa parte dos estudos antropológicos,
emigração brasileira, principalmente para países como Estados Unidos e Japão 5. Os autores
internas e externas, a inserção do migrante no lugar de destino tem sido enfocada a partir
5
Vide as obras: Cenas do Brasil Migrante, organizada por Teresa Sales e Rossana Rocha; e Fronteiras
Cruzadas, organizada por Soraya Resende Fleischer e Ana Cristina Martes.
3
dos seguintes prismas: as implicações do tempo na construção e reconstrução das
acionamento de redes sociais; e questões relativas à identidade. Todas essas dimensões são
esta tese tem como ponto de partida, a análise do fenômeno migratório a partir de sua
relação com a apropriação feita por alguns agrupamentos sociais da idéia de tradição
cultural.
mantém entre si uma relação estreita 6. Os estudos sobre deslocamentos humanos sejam
eles internos ou externos, desembocam numa questão que merece consideração: o efeito da
agrupamentos sociais identificados com valores específicos (cf. Seyferth, 1990 e Ribeiro,
podem ser vistas como núcleos adaptativos e integradores, visando a ajuda mútua entre seus
membros.
Assistencial Casa dos Baianos, etc. A reunião também pode acontecer em torno de alguma
culturais. Nesse cenário, podemos citar o Centro de Tradições Gaúchas Jayme Caetano
6
A idéia de subalternidade é aqui entendida não apenas como aquela advinda da privação econômica, social e
cultural, mas também do sentimento de “deslocalizado”, “desterrado” e “estrangeiro”. Essa questão será
retomada no próximo item deste Capítulo.
7
Ver DIAS, Juliana Braz. Devotos e Conterrâneos: Migração e Reestruturação de Identidade na Associação
Casa do Maranhão. 1997. Dissertação (Graduação em Ciências Sociais) - Departamento de Antropologia,
Universidade de Brasília, Brasília, 1997.
4
Braun, a Estância Gaúcha do Planalto Central, a Casa do Cantador, a Escola de Samba
os objetos de estudo desta tese. Para a pesquisa foram selecionadas duas entidades: a Casa
Braun - entidade que é uma referência para muitas pessoas vindas do Rio Grande do Sul e
está localizada num espaço bastante valorizado do Plano Piloto. Foram quatro os principais
critérios da escolha: 1) torna-se possível com essa amostra realizar um estudo comparativo;
2) optou-se por escolher entidades que tivessem uma certa visibilidade e representatividade
para Brasília por opção, sejam aqueles que aqui estão compulsoriamente, os indivíduos não
abriram mão das suas tradições, mas também não permaneceram atados a elas. No cenário
próprios e erigindo modos de se pensar e viver. A pretensão não é conduzir a tese para
8
No próximo item deste Capítulo espero deixar claro o motivo pelo qual a palavra migrante aparece entre
aspas.
5
discussões relativas às identidades regionais ou à formação de redutos regionais na capital
federal. As perguntas centrais são: por que a mobilização em torno das tradições culturais é
Muito mais do que a idéia de pertencimento a um lugar, fazer parte dessas entidades
proporciona o sentimento de ser e estar num “grupo”. Nesse sentido, esta tese se enveredará
pela esfera das práticas sociais, das relações entre as pessoas, das redes simbólicas e
ponto de partida, ou seja, a análise de processos migratórios, nos leva a outras questões.
Para além do resgate das tradições, uma das motivações para essas pessoas estarem
objetivo desta tese será o de inserir os universos aqui analisados dentro de outras questões
sociabilidade.
6
Questões Metodológicas
O trabalho de campo foi realizado entre os anos de 2003 e 2004. A pesquisa foi feita
minha estada nas duas entidades, algumas estratégias metodológicas precisaram ser
principalmente, por estar lidando com dois universos que apesar de apresentarem traços em
que se refere a algumas opções teóricas e ao uso de determinados termos para a construção
da análise.
Como diria Iain Chambers (1994), ser migrante exige tradução (: 18). Todo o
homem em deslocamento supõe uma forma de ser descontínua (cf. Said, 1990). Vivem
situação do migrante nem sempre é privilegiada, ou melhor, na maioria das vezes não o é.
muitos estudos sobre processos migratórios (cf. Ianni, 1972; Durham, 1984; Seyferth, 1990;
nos coloca diante de novas possibilidades investigativas. Poderíamos citar como exemplo a
análise dos significados do ser (des)localizado ou (des)terrado. Por outro lado, se nos
restringirmos ao fato de que todo migrante é subalterno por estar situado entre mundos,
questão das classes sociais. Em outras palavras, a noção também precisa ser trabalhada num
nível mais imediato e prático. Nesse sentido, é necessário salientar que estou trabalhando
7
com migrantes de estratos sociais diferenciados. Os participantes da Casa do Cantador são
subalternos não apenas por estarem na condição de migrantes, mas também pelo fato de
Antes de serem migrantes, eles já eram vistos como subalternos em seus contextos de
origem. Ao contrário, os freqüentadores do CTG Jayme Caetano estão inseridos dentro das
deu do meio rural para o urbano. Os freqüentadores do CTG saíram de regiões urbanas para
a fixação em outros meios igualmente urbanos. Todas essas nuanças podem gerar visões de
mundo diversificadas. Ao longo da tese, espero ter levado em conta tais particularidades
Um outro esclarecimento que precisa ser feito refere-se ao próprio uso do termo
migrante para caracterizar meus informantes. Qual o seu alcance? Até onde é possível usá-
lo? A utilização do termo precisa ser colocada em questão na medida em que muitos desses
indivíduos estão na capital federal desde os tempos da sua fundação. Mais do que
migrantes, eles seriam pioneiros. No entanto, todos os meus informantes passaram por
um lugar que não é aquele que estão no momento. Mesmo assim, o termo migrante precisa
ser usado aqui com um certo cuidado. Tendo essas questões em vista, da mesma forma que
utilizo os estudos de migração para entender as experiências vividas por meus informantes,
procuro ampliar a análise, uma vez que cada vez mais a importância de pertencer a um
8
Outra estratégia metodológica diz respeito à forma como as noções de folclore e
tradições culturais são empregadas nesta tese. Tais noções foram e continuam sendo alvo de
definição de conceitos como folclore e cultura popular. Alguns autores não fazem
diferenciação entre as noções, outros estabelecem separações rígidas entre folclore, cultura
popular e ainda, cultura de massa (cf. Carneiro, 1957; Cortazar, 1959; Aretz, 1972;
Almeida, 1974). Sem pretender adentrar numa discussão teórica sobre tais noções, faz-se
são noções que não estão dadas na realidade das coisas; são categorias do nosso
(Cavalcanti, 2001: 70). São conceitos forjados por uma tradição de estudos datada que
populares (Chaui, 1986; Ortiz, 1992; Chartier, 1995; Cavalcanti, 2001). Assim como Maria
não há qualidades intrínsecas aos fatos de cultura que os façam pertencer naturalmente à
cultura popular, à cultura clássica ou à cultura de massas. Há sim conjuntos de questões
intelectuais e históricas que se expressam, de modo sintético, nas categorias eleitas para o
seu entendimento (: 18).
Existem dois níveis nos quais as noções de folclore e tradição cultural podem ser
9
acionam o vocabulário do folclore e da tradição? Se essa é a pergunta que nos guia, o
Como meus objetos de estudo estão inseridos num mesmo cenário urbano, ainda na
elaboração do Projeto de Pesquisa tive contato com uma bibliografia voltada à análise das
dinâmicas urbanas do Distrito Federal. Lendo esses trabalhos, pude identificar uma certa
intitulado, A cidade dos sem, é uma breve reflexão sobre essas perspectivas, e ao mesmo
Segundo a antropóloga Mariza Veloso Motta Santos (1997) uma das características
mesmo espaço urbano, tais como a cultura nordestina, gaúcha e mineira, entre outras. Para
Roque de Barros Laraia (1996) uma das particularidades da capital federal refere-se aos
Por que são oriundos de diferentes regiões, os habitantes não deixam de tentar transplantar
os costumes e rituais de suas origens. Esta preocupação transforma a cidade em uma
espécie de síntese do país. As tradições populares de todos os recantos são revitalizadas,
sendo transformadas por um inevitável sincretismo (op.cit.: 05).
10
Falar sobre tradições culturais brasileiras não é novidade para a Antropologia. No
entanto, poucos estudos sobre Brasília e suas cidades satélites abordam tal problemática.
estudiosos. Porém, segundo Aldo Paviani (1998), pouca ênfase tem sido dada à
13 e 20-21). Não é que esses estudos não existam. Podemos citar uma série de referências:
Nair Heloísa Bicalho de Sousa (1983) e Gustavo Lins Ribeiro (1982) sobre a participação
política dos operários que construíram Brasília; Mara Resende (1998) sobre movimentos de
moradores na Ceilândia; e Luiza Naomi Iwakami (1998) sobre a luta pela posse da terra na
Vila Paranoá. No entanto, notamos que grande parte das análises a respeito do Distrito
Federal privilegia o fato de ser a capital um espaço planejado e construído a partir de ideais
Brasília foi construída para ser o lócus do poder central. O local deveria ser único em sua
fragmentadas e sem nexo com o contexto. Enquanto outras cidades figuram como
Segundo Pilati, os monumentos de Brasília foram erguidos como lugares simbólicos, onde
a idéia de Nação está expressa plenamente. Suas dimensões físicas são associadas aos
11
conceitos de Estado, poder e perenidade. Para o autor, a cidade figura como “definitiva”,
“atemporal”, o “não lugar” (op. cit.: 56-7). Essas são algumas das particularidades que
Em 1962, Clarice Lispector esteve em Brasília pela primeira vez. A escritora parece
levar um susto: não tem esquina, botequim, cafezinho, cotidiano, falta macumba e samba
(Lispector, 1996: 43, 44, 46). Numa crônica, publicada em 1999 no jornal Zero Hora, Luís
Estive umas quatro ou cinco vezes em Brasília e posso dizer categoricamente o que penso
da cidade: não sei. Entendo os que a amam, entendo os que a odeiam, mas pretendo jamais
ficar lá o tempo suficiente para saber quem tem razão. Há algo de estranho na luminosidade
de Brasília. Algo de inclemente, algo de inquisitorial. É isso a luz de Brasília é uma luz de
interrogatório. Não admira que todas as histórias em Brasília soem como álibis.
As pessoas não contam as suas vidas em Brasília, dão desculpas. Vim para ficar uma
semana e fui ficando. Meu pai teve que vir com o ministério. Não é tão ruim quanto parece.
Você não perguntou nada, não acusou ninguém por estar lá, mas a luz habitua todo mundo
a se defender (...)
A luz de Brasília é uma cobrança permanente e inescapável (...).
cidade é comparada à figura mitológica de Medusa: quem a encara, corre o risco de virar
férias, são alguns aspectos mencionados que permitem a apreensão da cidade como um
ambiente “frio”, “artificial” e “desumano”. A cidade é colocada como a cidade dos “sem”:
9
Infelizmente, privo o leitor da referência bibliográfica exata da Revista. No entanto, a citação, mesmo
imprecisa, é bastante significativa e ficou em minha memória por uma razão especial. Li a reportagem da
Veja aos dezessete anos, quando me decidia se trocava o calor do meu lar, no interior do Rio Janeiro, pela
possibilidade de estudar antropologia na fria capital do país.
12
sem esquina, sem lazer, sem gente, sem humanidade, sem história, sem tradição e sem
identidade.
Muitas vezes, esses estudos - e estamos falando aqui não somente das impressões
recaem nos discursos de que a arquitetura moderna não teria permitido a erupção de formas
maioria dos casos, a avaliação é negativa. Brasília é uma cidade monótona, desumana, fria,
que foi construída não existia qualquer tradição cultural prévia, a cidade é identificada
como um local sem raízes próprias. Frente à imagem da cidade moderna, jovem e sem
fatos folclóricos, não tem merecido a atenção da mídia nacional, de seus moradores e nem
de pesquisadores. Afinal de contas, qual o lugar da tradição num cenário que encarna os
ideais da modernidade?
da temática dos folguedos populares na capital federal: a dissertação de Inês Gonzaga Zatz,
Sobradinho. Indiretamente, podemos citar a tese de Lara Santos Amorim (2002), cujo
13
objeto de análise são as festas do Divino Espírito Santo em algumas regiões do Goiás, onde
entanto, o que pretendo enfatizar é que Centros de Tradições Nordestinas existem em São
Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Os Centros de Tradições Gaúchas podem ser
encontrados até mesmo em Tóquio. É importante deixar claro que estou tratando de um
fenômeno social que ocorre em outras cidades. E aqui se situa uma das possíveis
contribuições deste trabalho. Na leitura de grande parte dos textos acadêmicos sobre
urbano. Parece que o exercício é sempre o de diferenciar Brasília e suas cidades satélites. É
claro, todas as cidades têm as suas particularidades, mas muitas dessas características
apontadas como próprias do Distrito Federal, não são tão específicas assim.
encontros e misturas com outras vivências e realidades. O fato do objeto de análise estar
urbanos.
***
14
A tese está estruturada em três partes. A Parte I é dedicada à análise da dinâmica da
performances dos cantadores, nos conteúdos dos versos e nos processos sociais sinalizados
Capítulo III é construído a partir das entrevistas realizadas com os cantadores. O propósito
está em algumas questões chaves: nos modos como os informantes criam a imagem de um
“nós”; nas diferentes formas em que são acionadas as idéias de migrante nordestino e
15
migrante sulista; nos projetos sociais elaborados por esses indivíduos; e nas apropriações
agrupamento social.
16
PARTE I
A CASA DO CANTADOR
17
CAPÍTULO I
Num primeiro momento deste capítulo será feita uma breve caracterização da
na Ceilândia.
improvisados entre dois cantadores, é uma herança européia. Segundo Luís da Câmara
Cascudo (2001 e 2005), a cantoria nordestina assemelha-se ao canto dos pastores gregos,
que reaparece em outras localidades da Europa (Alemanha, França, Portugal, etc.) com os
Câmara Cascudo: “Já o [desafio] praticavam em Roma, para gáudio dos convivas dos
banquetes, os bufões da moda” (: 467). Denisson Penna (1999) tece aproximações entre a
utilizado na disputa entre os trovadores (: 09). Dulce Martins Lamas (1986) também
transladado para Portugal, esse tipo de poesia teve grande repercussão nas cortes
18
grande parte da literatura de versos cantados herdados pelos galaico-portugueses. E, assim,
literário que afetou vários países de língua latina. A denominação, literatura de cordel,
deriva do fato dos folhetos serem expostos ao público nas feiras, pendurados em barbantes
ou cordões. Como forma de atrair compradores, muitos cordelistas cantam suas histórias.
Além de ser uma estratégia de venda, o canto é uma característica fundamental desse tipo
de poesia. Segundo Martine Kunz (2001), a literatura de cordel é uma forma de literatura
oral, feita para ser recitada: “A rima utilizada nos cordéis é feita para o ouvido, não para os
olhos” (: 80).
verso e rima, as mesmas cadências melódicas e os mesmos ritmos, sendo que muitos deles
praticam os dois ofícios (: 16). De fato, se formos comparar os formatos dos cordéis e dos
segundo exemplo, as estrofes foram feitas de improviso durante um desafio travado entre
dois cantadores, José Cardoso e Ivanildo Vila Nova, no ano de 2002. Tanto no cordel como
nos versos improvisados, os poetas utilizaram versos de seis linhas. As rimas são
19
Cordel de Leandro de Barros 1:
1- Então, a mãe dele disse:
2- Só se for comprar fiado...
3- Eu morro, porém não compro!
4- Deus bem vê o meu estado:
5- Seu pai morreu sem dever,
6- Conservou seu nome honrado
José Cardoso:
1- Nem penso em reforma agrária
2- Que a miséria levou fim
3- Cesta de Governo
4- Farinha fede a cupim
5- Quem só come coisa boa
6- Só dá se for coisa ruim
Leonardo Mota (1987), os Cantadores, Câmara Cascudo relata: “Não chegavam esses
heróis às cidades do litoral. A maioria dos príncipes da cantoria sertaneja desapareceu sem
ter visto o Atlântico” (: 13). Silvio Romero (1888) traça a vinculação através da análise dos
1
Versos extraídos de BARROS, Leandro Gomes de. A vida de Cancão de Fogo e seu testamento.
Fortaleza: Tupynanquim Editora, 2002.
2
CARDOSO, José e VILA NOVA, Ivanildo. Cantoria da AAPOP. Fortaleza: Studio Josemar Fitas, 2002. 1
cassete (46 min.): estéreo.
20
conteúdos dessas composições: muitos dos temas recolhidos nesse tipo de poesia dizem
respeito à influência da seca no espírito popular e à poesia mítica da vida pastoril (: 209).
A influência já exercida por esses poetas populares no meio rural nordestino foi
muito grande. No passado, os poetas “deram aos seus ouvintes do sertão a experiência de
notícias e quebrava o isolamento das populações rurais. Para Eduardo Campos (1973), os
grande espetáculo de sabedoria. Ser poeta no sertão exprimia uma “aspiração dos que
da literatura de cordel e das cantorias. Para alguns indivíduos tais manifestações culturais
uma forma de renunciar à indigência. Mesmo tendo na poesia popular um meio de ascender
marginalizados. Câmara Cascudo (In Mota, 1987) ao se referir aos cantadores do início do
século XX, os descreve como pobres e anônimos, completando: “Viver de cantoria era
subalternidade e opróbrio (...). Gente de sociedade alta não ouvia cantador (...). Numa
panorama atual, mas nem por isso diferente, é retratado numa revista do início do século
XXI, especializada em poesia popular: “[repentistas] são artistas que buscam um lugar ao
21
sol, mas devido à falta de divulgação e incentivo muitas das vezes se quer são conhecidos
e/ou reconhecidos (...) percebemos o quanto esses artistas populares são discriminados” 3.
por uma série de altos e baixos ao longo do tempo. O autor mostra que a poesia popular, na
forma de cordéis e de versos improvisados, esteve em moda nas décadas de 1960 a 1980,
criadas para a preservação dessas manifestações. Acervos foram fundados na Casa Rui
Alagoas, Rio Grande do Norte e Bahia. Emissoras de rádio locais faziam programas
nordestino”; em outros, a influência é direta pelo uso da estrutura e conteúdo dos versos
Compadecida, cita alguns folhetos de cordel de Leandro Gomes de Barros; Jorge Amado
em O ABC de Castro Alves, introduz nos romances, os “ABCs” tão comuns na forma de
cordel; Dias Gomes na peça O Pagador de Promessas tem como um de seus personagens
um poeta popular; em Morte e Vida Severina de João Cabral de Melo Neto é possível notar
o tom dos folhetos 4; na música, o grupo Quinteto Violado e Elba Ramalho já gravaram
3
Trechos extraídos da Revista de Repente, pág.8-9, set – out/2004, ano X, n.41.
4
Outros exemplos da influência da literatura de cordel na literatura brasileira podem ser vistos em:
CURRAN, Mark. Influência da Literatura de Cordel na Literatura Brasileira. Revista Brasileira de Folclore.
Rio de Janeiriro, ano IX, n. 24, p. 111-123, maio/agosto, 1969.
22
Mesmo destacando os “tempos áureos”, Curran (2003) ao falar dessas
passado e são feitas no presente. Silvio Romero em 1888 escreve: “... a decadência (...) é
patente: os livros de cordel vão tendo menos extracção depois da grande inundação dos
pesquisar a atualidade de muitos de seus pares, diz que eles são confundidos com camelôs e
perseguidos por fiscais, que acham que suas rodas de declamação, em lugares de
passado, o autor ressalta que muitos abandonaram a profissão e são atualmente, cobradores
questões a serem discutidas dizem respeito ao conteúdo dos textos e à procedência de seus
escritores. Grande parte dos textos sobre cantoria nordestina foi escrita por folcloristas e
profissionais das áreas de comunicação, letras e música. Quero chamar atenção tão somente
tema. Quando ainda da elaboração de meu Projeto, fiz uma pesquisa em algumas revistas e
23
em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba, nas revistas publicadas pelo
(AntHropológicas), não encontrei nenhum trabalho que abordasse a cantoria como tema
central5.
uma das poucas antropólogas que já se dedicou ao tema: “(...) embora a bibliografia sobre
poesia popular seja volumosa, são em pequeno número os títulos que dedicam especial
atenção à música dos cantadores” (: 115). Para a autora, no estudo da chamada poesia
predominância dos estudos dos textos escritos sobre aqueles que focalizam formas orais e
Uma das questões que merece ser colocada em perspectiva refere-se à vinculação
entre literatura de cordel e cantoria nordestina. Apesar das similaridades quanto ao formato
dos versos e à utilização das rimas, a literatura de cordel e a cantoria nordestina são
manifestações culturais diferentes e devem ser tratadas como tais. E mesmo que vários
pesquisadores apontem para o fato de que por utilizarem as mesmas cadências melódicas e
ritmos, muitos praticam os dois ofícios, dentro de meu universo de análise, poucos
5
Todas as referências aqui citadas estão disponíveis nos seguintes endereços eletrônicos:
www.ppgasmuseu.etc.br/pages/teses.html; www.ppgs.ufba.br/catalogo.htm; www.cchla.ufpb.br/ppgs/teses-
jp.html; www.ffch.usp.br/da/public.html; www.ufpe.br/antropologia/revista.htm.
24
composta e propagada oralmente, percebida auditivamente, que não deixa rastros, a não ser
na memória dos participantes, e que não depende de um texto” (Travassos, 1989: 116). Por
mais efêmera, variada e contingente que possa ser a cantoria nordestina, ela é um gênero
inconfundível que pressupõe regras do jogo e ações que a atualizam. As regras do jogo e as
ações que atualizam a cantoria serão analisadas mais detidamente nos Capítulos II e III.
No entanto, algumas questões podem ser antecipadas na medida em que tocar nesse assunto
é matizar as previsões apocalípticas feitas por muitos autores citados na primeira parte
épocas, não podemos pensar essas manifestações culturais como sendo um modismo
presenciar um Festival de Repente, realizado na Praça Marco Zero, em Recife. O lugar era
Cadeiras de plástico foram espalhadas na praça pela organização do evento para que o
suas portas, o cordel continua aparecendo nos mercados, feiras livres e livrarias do
6
Xilogravuras são ilustrações feitas a partir de um molde, cujos desenhos são esculpidos na madeira. Essas
gravuras são muito utilizadas na ilustração das capas dos folhetos de cordel.
25
do historiador e escritor Eduardo Galeano 7. Xilogravuras são vendidas muitas vezes a um
preço bastante elevado, principalmente nas livrarias e lojas fora do Nordeste. No ano de
fronteiras do sertão. Os poetas populares estão não apenas nas capitais nordestinas. São
Paulo, Rio de Janeiro e Brasília abrigam uma quantidade significativa de cantadores. Nos
grandes centros, a cantoria sofre modificações. Hoje, os cantadores não são analfabetos e
a par dos assuntos da atualidade política, econômica e social do país e do mundo. Enfim, os
cantadores não estão mais restritos aos temas da vida pastoril do Nordeste.
Atualmente, para um cantador ser considerado um “bom poeta” é preciso que ele
tenha uma preocupação com o uso correto da língua. Ele quase não assume a linguagem
“matuta”, típica do sertão, e quando o faz, faz com a intenção de apenas divertir os ouvintes
e de dar um cunho de autenticidade às histórias que se passam no sertão (Kunz, 2001: 47).
No poema abaixo, o poeta faz uma diferenciação entre a fala do cantador e a fala do
matuto. A linguagem matuta, repleta de erros ortográficos, é utilizada como uma forma de
evidenciar um tipo social, o matuto, bem diferente de um outro tipo, o cantador. Ao utilizar
7
GALEANO, Eduardo. As Palavras Andantes. 4 ed. Porto Alegre: L&PM Editores, 1994.
26
Um cantador pergunta:
E a cantoria ontem,
Até deu pra descolar?
O matuto responde:
Onte nós fumo cantá
Pra num perde o custumo,
Mais só ganhemo o dinheiro
Da passage num sei cumo
E vortemo pra casa liso
Do mermo jeito qui fumo.
(Donzílio Luiz de Oliveira – 11 Poemas Matutos).
cidade precisa ter domínio dos assuntos da atualidade no que se refere à política, à
economia e à vida social do país e do mundo. Os versos abaixo são de dois poetas
Teresina, refere-se à política. Nesse exemplo, ele emite sua opinião sobre programas sociais
No segundo exemplo, o cantador nordestino marca a sua posição frente aos atuais avanços
versos foram compostos por Geraldo Amâncio. O poeta nasceu numa região rural do Ceará,
8
Os versos são composições feitas de improviso durante a cantoria e estão registrados na Revista de Repente,
pág. 9, ano X, set/out/2004.
27
onde passou toda a sua infância e juventude. Mudou-se para Fortaleza já adulto, a fim de
que são realizadas. No passado, era muito comum que as cantorias fossem feitas em casas
particulares. Essas situações ainda se fazem presentes, ou seja, são aquelas realizadas em
botecos, exposições agropecuárias e nas praias do Nordeste. Não obstante, esses “tipos” de
aquelas realizadas nas praias do Nordeste, onde os turistas são constrangidos a ouvirem
versos em troca de alguns tostões, são vistas como um desagravo aos cantadores.
cantoria nos centros urbanos. As Casas do Cantador povoam diversas cidades do Brasil.
28
Diferente dos bares e das praias, esses espaços são locais privilegiados para receber uma
pelo fato dos cantadores, sempre em duplas, ficarem encostados numa parede, sentados em
cadeiras e sem o recurso do palco. São cantorias feitas para um público pequeno composto
II. Por ora, nos dedicaremos a caracterizar o cenário da atualização da cantoria nordestina
na capital federal.
cidades satélites: Ceilândia, Gama, Planaltina e Recanto das Emas. O principal ponto de
segundo alguns cantadores, pelo fato de ser ali um reduto dos poetas populares nordestinos.
quatro mil pessoas. Esse contingente era formado basicamente por trabalhadores não
predominantemente goiana e mineira (Sousa, 1983: 34). Em 1958, chegaram cerca de cinco
mil nordestinos, impulsionados pela grande seca que assolava a região Nordeste.
9
Nessa ocasião Brasília era formada pelo Núcleo Bandeirantes e por quatorze acampamentos, muitos deles
improvisados com barracas de lona.
29
À medida que crescia a população, aumentava o estabelecimento de moradias por
119). Em 1971, uma enorme invasão, resultado da destruição de antigos acampamentos, era
transferida para uma área atrás de Taguatinga. Assim nasce a Ceilândia, também conhecida
construção civil. E é esse o local apontado pelos cantadores como o reduto da cantoria
nordestina. Nos finais dos anos sessenta (nas imediações do que hoje é o centro comercial
Atualmente, o ponto de encontro da cantoria nordestina não é nos bares da cidade. Foi
mito de fundação marca o ano de 1985 como o pontapé inicial para a construção da Casa.
construção da Casa do Cantador. A idéia era construir um espaço nessa cidade satélite para
hospedar cantadores nordestinos de passagem pela cidade, além de ser uma sede para a
Casa do Cantador foi inaugurada pelo Governador e pelo Presidente da República, José
Sarney.
30
As dependências do prédio são amplas. No térreo, um anfiteatro, cozinha, dois
são feitas no anfiteatro ou numa área próxima à cozinha. No andar de cima, estão
na Casa.
as várias construções que levam a sua assinatura na capital do país, a Casa do Cantador é o
único projeto do arquiteto, situado numa cidade satélite. Conhecida nos noticiários por ser
Niemayer. Frente aos graves problemas sociais, altos índices de homicídio e roubos, a Casa
do Cantador é indicada por muitos ceilandeses como uma das melhores coisas que existe na
cidade. A Casa do Cantador é uma referência para Ceilândia (pelo menos ao nível de
“cartão-postal”).
Na prática, a troca entre a comunidade e a Casa do Cantador não é tão intensa assim.
períodos de apatia. Atualmente, além dos eventos mensais de cantoria, cuja presença da
Nas dependências da entidade são realizadas aulas de música e teatro para jovens da
comunidade. Por ser um órgão público, a instituição apenas cede seu espaço para a
realização dessas aulas ministradas por professores contratados pelo Governo do Distrito
Federal (GDF). Em outras palavras, essas aulas não têm necessariamente relação com os
31
propósitos da Casa do Cantador, não são dadas por cantadores e nem têm como mote a
Existem outras Casas do Cantador distribuídas pelo Brasil: Teresina (PI), São José
do Egito (PE), Fortaleza (CE), Campina Grande (PB), Maceió (AL), Rio de Janeiro (RJ),
etc. Elas surgiram com o objetivo de divulgar e manter manifestações culturais ligadas à
apresenta uma particularidade frente às demais: é a única que não é uma instituição privada,
faxineiros, vigias, secretários e até o diretor da Casa são contratados pelo GDF. A cada
troca de Governo, a Casa do Cantador tem um novo diretor. Até pouco tempo atrás, a Casa
era mantida diretamente pela Secretaria de Cultura do GDF. Atualmente, sua gerência está
recursos. Grande parte dos funcionários aponta este fato como o responsável pela pouca
Antigamente, quando a Casa estava diretamente ligada à Secretaria de Cultura, eram feitos
dois ou três festivais por ano que reunia cantadores de todo o Brasil. Ultimamente, não
conseguimos fazer nem um.
O fato de ser uma entidade pública se reflete na dinâmica da Casa, seja no seu
cantoria nordestina. Vinha sendo anunciado que no domingo do dia 9/11/03, a Casa do
Cantador comemoraria seus dezessete anos de existência com eventos programados para
32
durarem das oito da manhã até dez horas da noite. Jogo de futebol entre cantadores e
principal meio de divulgação das cantorias no DF, soube que o evento tinha sido cancelado.
As comemorações seriam na Casa do Cantador, logo mais à noite. Corri para a Ceilândia.
Cheguei por volta das oito e quinze. Ao entrar, avisto cartazes, afixados em várias pilastras
panfletos havia duas pequenas ilustrações em preto e branco de dois cantadores que iriam
deputado federal José Roberto Arruda e de outro, o senador Paulo Octávio. As legendas das
evento, respectivamente. Um bom espaço dos cartazes estava reservado aos patrocinadores:
anunciavam, em grandes letras, um culto evangélico que também faria parte das
comemorações.
Federal. As dificuldades financeiras são enormes. A pouca verba destinada a Casa não é
suficiente para a realização dos festivais. Segundo os cantadores, os festivais eram eventos
realizados duas ou três vezes ao ano, reunindo grandes poetas do Nordeste. O público dos
festivais era estimado em cerca de cinco mil pessoas. Eram eventos que davam visibilidade
aos cantadores e à Casa do Cantador, além de serem uma opção de lazer para muitos
ceilandenses.
33
Mesmo impossibilitada de realizar grandes festivais, mensalmente a Casa do
eventos nem sequer chega perto das cinco mil pessoas presentes nos festivais, no entanto, a
Casa abre seus portões, os cantadores afinam suas violas ao pé de uma parede e fazem
versos para um público que, embora pequeno, sempre comparece. A dinâmica desses
34
CAPÍTULO II
Era uma manhã de céu azul no início do ano de 2002... Abro o portão. Não avisto
naquele espaço. Ele responde algo que era visível: “No momento, a Casa está meio
parada”.
Esse foi o meu primeiro contato com a Casa do Cantador. O cenário não era muito
parecia apenas uma construção de concreto abandonada. Abandonada por quem? Pelo
que mais impressionava não era o precário estado de conservação do prédio, mas a
Cantador estava parada, sem movimento e sem ação. Todavia, o fato do portão de acesso
estar aberto mesmo diante das portas fechadas lá dentro, funcionava para mim como uma
esperança de que aquela situação era temporária. Afinal, nas conversas iniciais que tive
com cantadores, era bombardeada com notícias dos tempos áureos da entidade: grandes
1
Um período citado pelos cantadores como de grande efervescência foi durante a vigência (1996-1998) do
Projeto Cantoria-Escola, feito em parceria com o Governo do Distrito Federal. O projeto propiciava
apresentações freqüentes de cantadores nas escolas públicas. As cantorias versavam sobre temas educativos:
aborto, violência contra a mulher, drogas, cidadania, educação no trânsito, etc.
35
Em 2003, quando iniciei efetivamente o trabalho de campo, a Casa do Cantador era
definitivamente outra. Continuava sendo uma manhã de céu azul na Ceilândia. O portão de
diretoria. Funcionários circulavam pelo ambiente. Prestando muita atenção nas explicações
de um “guia”, um grupo de estudantes passeava pela Casa. Desde março de 2003, o “guia”,
que comentava, empolgado, planos para a revitalização do espaço, era o novo diretor da
Casa. Via um cenário que se aproximava mais do que eu imaginava ser a Casa do Cantador
em ação.
fizeram conjeturar sobre suas possíveis relações com a manifestação que estava disposta a
sons nada tinham a ver com os cantadores, a não ser o fato de serem realizados num espaço
cuja placa indicativa revela: “Casa do Cantador”. As aulas são ministradas por professores
da rede pública de ensino. Por ser um órgão governamental, a Casa cede suas instalações
para a realização das mesmas. Os funcionários que circulavam pela Casa, com exceção do
diretor que é cantador, nada tinham a ver com a cantoria nordestina. Quais seriam, então, os
eventos realizados naquele espaço que reuniam os cantadores? Como seria a divulgação da
formalizadas que mobilizam seus membros em prol de interesses comuns. Não existe,
36
organizada entre os cantadores. Por outro lado, nos deparamos com o fato de que essas
parece que as associações foram perdendo suas forças ou quem sabe suas razões de ser.
espalhadas pelo Brasil: ela é uma instituição pública. Com todos os problemas financeiros
que essa particularidade pode acarretar 2, ela significa muito para os cantadores fixados na
capital federal.
O mito de fundação do espaço já nos diz muito sobre tal significado. Foram os
Federal para a construção da Casa. A Casa foi inaugurada pelo Presidente da República. Foi
fruto de um projeto assinado pelo mesmo arquiteto que projetou Brasília. Enfim, a Casa do
Cantador é apreendida como uma conquista. O relato da fundação da entidade faz parte de
todo um contexto, acionado pelos cantadores, que pretende fixar jogos de intenções. O que
ao que selecionam em seu repertório tradicional para a exibição pública. Essas questões são
serem analisados poderiam ser diferentes. Porém, acredito que ao longo das diferentes
2
Vide Capítulo I.
37
da cantoria nordestina no Distrito Federal. Esses episódios são realizados com maior ou
menor freqüência na Casa do Cantador desde a sua fundação, em 1986. Analisar tais
situações nos direciona para a reflexão de temas relativos à reconstrução das idéias do
nordestina para tal cidade estão imbricadas. A Feira é vista pela autora como um fator de
espaço onde não apenas se comunica o que é ser nordestino, mas principalmente onde a
da cidade de destino (op. cit.: 64). Vejamos como isso se passa (se é que isso realmente se
Em todas as sociedades existem eventos que podem ser reconhecidos como rituais
por serem considerados especiais (cf. Tambiah, 1985; Peirano, 2003). Atualmente, a
capacidade de apreender o que os nativos estão indicando como sendo único, excepcional,
crítico e diferente (Peirano, 2003: 09). Na esfera da Casa do Cantador, o que me era
indicado como sendo especial era a chamada Cantoria de Pé de Parede. Tomo essas noites
38
Esse evento exerce a função de reunir e congregar pessoas. Além disso, ele desvela
também nos permite perceber que uma série de idéias sobre o migrante, a tradição e o
forma específica. Ela é um ato performático. Analisar uma performance é voltar a atenção
comunicação simbólica não se limita às palavras. Cada cultura usa seu repertório sensorial
sobre seus executores. O que o autor denomina de Antropologia da Performance tem como
objetivo trazer os dados/atos em sua plenitude, onde desejos e moções, estratégias pessoais
e coletivas, situações de vulnerabilidade, cansaço e erros são levados em conta (op. cit.:
13). Vários outros autores já atentaram para essa preocupação sem, no entanto, nomeá-la
3
Comunicação apresentada à Sociedade de Psicologia em 1934.
4
Obra escrita em 1912.
39
(1995) que explicitamente utiliza a metáfora teatral para desenvolver todo o seu argumento
Não pretendo trazer aqui essas idéias com o objetivo de empreender uma possível
propósito de contribuir para uma discussão teórica sobre o tema, mas apenas como um
1992; Langdon, 1999). Veremos como essas características fluem na dinâmica do ritual.
As noites de cantoria têm início por volta das vinte ou vinte e uma horas. Terminam
quando os ouvintes se vão ou quando a dupla de cantadores se cansa. Durante quase toda a
realização do trabalho de campo, as cantorias eram semanais, realizadas sempre nas sextas-
feiras. Atualmente, as cantorias são mensais. De acordo com o diretor da Casa, em função
5
Livro publicado em 1959.
40
Normalmente, as cantorias não acontecem no anfiteatro da Casa, mas num espaço
cadeiras reservadas aos cantadores ficam encostadas numa parede. As mesas destinadas ao
público são distribuídas de modo que fiquem ao lado dos cantadores. A impressão que
temos é a de que o cenário é organizado como se fosse um grande quadrado: num dos
lados, os cantadores; no lado a sua frente, um espaço vazio; e nos dois lados restantes, a
platéia.
Mesmo sem o recurso do palco, eles estão em destaque num dos cantos do espaço. Na
frente dos cantadores não é colocada nenhuma mesa, o espaço fica vazio. O público evita a
circulação pelo centro do salão durante as apresentações. Apesar do barulho das conversas,
O cuidado maior com a organização do cenário diz respeito ao arranjo espacial que
especial com a decoração do ambiente. Não notamos o uso de bandeiras, quadros e outros
objetos que pudessem nos remeter à cantoria nordestina. Poucos ingredientes no cenário do
entoando versos de improviso. Eles fazem uso de microfones para uma melhor recepção da
voz. As cantorias são feitas ao som de violas ou violões, cujas afinações são bastante
41
Segundo Lamas (1986), a relação entre a melodia cantada e o acompanhamento musical, é
introdução e nos pequenos interlúdios entre os cantadores (op. cit.: 38). O acompanhamento
musical funciona como um acessório nas performances dos cantadores. O que é mais
alguns desses estilos: 1) sextilhas – um dos gêneros mais preferidos e usados pelos
cantadores. Geralmente, é utilizada no início das cantorias. São estrofes de seis versos (pés
ou linhas) em que cada verso tem sete sílabas e as rimas ocorrem entre as linhas pares; 2)
martelo agalopado – ritmo mais acelerado. Compõem-se de uma estrofe de dez versos em
estrofe de dez versos, obedecendo à rima abbaaccbba. O último verso deve terminar com a
frase “beira mar” ou “beira do mar”; 4) mourão – pode ser de cinco ou sete versos de sete
sílabas. No mourão de cinco, o cantador A profere um verso, o cantador B diz outro e por
fim, o cantador A canta mais três versos. No mourão de sete, cada cantador diz inicialmente
dois versos ao invés de um; 5) mote – estrofe de dez versos que pode ser de sete ou de dez
sílabas. Entrega-se ao cantador o conjunto dos dois últimos versos que termina a estrofe de
dez linhas. Além dessas modalidades aqui citadas, foram catalogadas por pesquisadores do
assunto mais de setenta estilos de cantoria. Entre eles estão a gemedeira, os quadrões, o
martelo alagoano, Brasil Caboclo, rebatido, etc. (cf. Mota, 1987; Seraine, 1983; Ramos,
1991).
42
A cantoria começa com as sextilhas que abordam temas variados. As primeiras
cantando. O primeiro cantador faz sua estrofe. Logo em seguida, o segundo começa seu
verso com a deixa do outro, não se desviando do tema. As rimas são feitas ao final dos
versos. Rimam as vogais, o encontro de vogais ou ainda as consoantes das últimas palavras
dos segundo e quarto versos. O cantador B precisa rimar a última terminação do último
modalidades. Muitas vezes, essa “mudança” é solicitada pela própria platéia. Uma das
formas poéticas mais pedidas são os martelos e os galopes, versos de dez ou doze linhas.
43
Com certeza ele agora alguma coisa viu
Porque eu cantando pra ele é demais
Eu sei que o poeta um trabalho faz
E que a rima futura ainda é popular
Se acaso no verso a mente falhar
Eu canto na mente, você faz a sua
Eu vou para o céu, viajo pra lua
Cantando Galope na Beira do Mar
(Casa do Cantador, 21/11/03 - Elias Ferreira).
sobre esses temas é mencionar o próprio caráter da cantoria. “Pois, trata-se de um tipo de
seus versos. Além disso, todos precisam estar aptos para abordar qualquer tema que seja
Os cantadores gostam de enfatizar que o “bom cantador” é aquele que canta temas
cantadores dos grandes centros urbanos não estão mais restritos aos “regionalismos”, ou
seja, não cantam apenas os aspectos da vida no sertão nordestino. Não foram somente os
Casa do Cantador não quer que os cantadores mencionem (unicamente) assuntos regionais.
Como gostam de dizer meus informantes, o público da Casa deseja ouvir composições que
abordem temas da atualidade. Assim, é muito usual a construção de versos sobre algum
44
Hussen e Bin Laden. Os cantadores cantam também eventos atuais da política nacional,
da atualidade, os conteúdos das suas composições são vários. Façamos agora, um breve
apanhado dos temas mais recorrentes nas noites de Cantoria de Pé de Parede. As oposições
entre o bem e o mal também são freqüentes nos versos de improviso. Essa oposição ganha
diferentes roupagens, podendo assumir a forma dos seguintes pares de oposição: Deus e o
cidade detém os bens materiais. O pobre e o matuto são personagens miseráveis, mas
detentores de uma grande esperteza e bondade, e ao final dos enredos sempre se dão bem.
temas, notamos a forte influência de uma moral cristã. Valores como o perdão e a caridade
45
Deus está vendo a minha cara.
(Casa do Cantador - Zé do Cerrado, 20/02/04).
momento dos cantadores estabelecerem abertamente uma peleja entre si, onde um pretende
Além das formas poéticas citadas acima, os cantadores lançam mão de outros
declamação é feita de uma forma especial. Os poemas são ditos/cantados no mesmo ritmo
das estrofes feitas de improviso, só que sem o uso de instrumentos musicais. Nesses
momentos apenas a voz do poeta ecoa pelo salão. As rimas são pronunciadas de modo
46
cantado e bastante acentuado 6. As poesias recitadas são de autores nordestinos e não
cantadores estão sujeitos a cometerem vários erros: não conseguir fazer a rima, não
assim, a utilização de pausas, silêncios, repetições de palavras não são recursos valorizados
6
O uso da voz será discutido ainda neste Capítulo.
47
Durante a performance, o público interfere por meio de palmas, risos e do silêncio.
A platéia avalia, discorda, corrige, aplaude e silencia de acordo com suas expectativas. O
horizonte dessas expectativas abarca uma avaliação em que são consideradas: a rima dos
versos; a velocidade com que o cantador elabora sua estrofe; a forma como os versos são
Apesar das conversas, a platéia está atenta à performance. Nas noites de cantoria é
cantadores. Essa atenção pode ser convertida numa tensão para o cantador, que a todo o
negativa das pessoas que o assistem. O cantador que melhor comunica é: aquele que tem
rapidez na confecção das estrofes, que garante a continuidade temática dos versos e que
pronuncia as palavras sem hesitação. Demonstro essa questão com um exemplo vivenciado
por mim em campo. Numa noite de cantoria, foi dado aos cantadores o seguinte mote:
48
Quando o primeiro cantador pronunciou o mote solicitado de forma errada, trocando
o “mote certo” a fim de que o cantador pudesse se corrigir na próxima estrofe, e para que
segundo cantador não cometesse a mesma gafe. Mesmo assim, este emendou:
O erro não somente persistiu como o cantador fez uso de palavras repetidas, e alguns versos
parecem não fazer muito sentido. Pelo salão, algumas vaias puderam ser ouvidas. Na
platéia, a agitação era grande: risadas e comentários jocosos denegrindo a imagem dos
cantadores que não conseguiam acertar o mote e nem fazer versos bem feitos. Quando
finalmente o mote correto foi cantado, o público exclamou, aliviado, numa só voz: “Aí,
finalmente!”.
Esse diálogo é estabelecido de diferentes formas. Uma delas acontece durante os intervalos.
explicações são dadas por alguém especial, o diretor, que fica durante o rito como o
49
principal responsável por essa tarefa. É ele também quem recebe os presentes, assumindo a
Sejam bem-vindos! Toda a sexta-feira a gente tem um encontro daqueles que prestigiam a
cantoria nordestina. Sempre, toda a sexta-feira a gente escala uma dupla. Aquela dupla
participa do início ao fim da cantoria (...).
Muita gente não conhece as modalidades da cantoria. Sempre se começa com as sextilhas
que é um verso feito em seis linhas. Agora, tem o galope a beira mar, tem o martelo
agalopado. Uma canção, um poema, um soneto. E quem souber pedir: “Quero que o cara
fale sobre determinado assunto”. Os poetas estão aqui à mercê de vocês para qualquer
assunto...
Outras formas de diálogo com o público podem ser observadas ao longo de todo o
ritual. Ao recitar um poema ou uma piada nos intervalos da cantoria, o poeta procura
- Vocês conhecem aquele poema? O bem em paga do mal? Parece que não, porque
ninguém se revelou.
- Eu conheço [alguém grita da platéia].
- Uns conhecem, outros não. Vou recitar porque é só esse que eu sei [risos]. [O cantador
aponta para alguém da platéia] Zé Careca já conhece, mas outros não conhecem. Então,
diz assim...
O auditório pode ser usado como testemunha de uma situação de diálogo. Por
exemplo, nos intervalos das cantorias, os poetas podem narrar como se tivessem vivenciado
Eu tava vindo agora lá do Nordeste... Tem alguém de menor aí? [pergunta à platéia] Como
tem muito cantador que ganha dinheiro... Às vezes, aparece até cantador gago. Ele não era
50
diretamente um cantador... É que tinha um outro rapaz que um dia falou para ele: “Vamos
comprar duas violas e sair cantando?”. O outro disse: “Vamos!”. Aí, compraram duas
violas. Na primeira fazenda que chegaram, o fazendeiro disse: “É cantador? Eu gosto
demais, Ave Maria, gosto demais! Vamos fazer uma cantoria hoje à noite. Vou mandar
matar o carneiro, ajeitar o tundum do carneiro...”. Tundum é o fígado do carneiro. O que
aconteceu? À tarde, jogaram baralho. Caiu uma chuva daquelas e até molhou o baralho...
Mais tarde, o dono da fazenda: “Epa, já tá cozido o tundum. Vamos comer? Mas antes vou
pedir para os cantadores fazerem um refrão”. Aí, o cantador que não era gago disse ao
gaguinho: “O que eu disser, você diga. É o seguinte: À tarde choveu e molhou o baralho, e
daqui há pouco eu como tundum”. O gago cantou: “À arê ôeu e olhou o aralho e ai a ouco
eu omo o um”.
do Cantador, elas são utilizadas como uma forma de chamar a atenção do público para o
que está sendo enunciado pelo narrador. As intervenções dialógicas são apenas uma das
várias estratégias acionadas pelo cantador para garantir a sua competência comunicativa.
Uma das questões mais interessantes nas apresentações dos cantadores refere-se ao
uso do corpo.O corpo não é um recurso muito utilizado nas performances. Durante todo o
51
momento em que estão cantando, eles permanecem sentados, tocando suas violas. O corpo
fica quase que imóvel nas cadeiras. Às vezes, quando uma estrofe faz referência a alguma
pessoa da platéia, o cantador pode trocar olhares com o endereçado dos versos. Mas, esse
recurso nem sempre é posto em prática. O cantador está concentrado nos versos construídos
pelo poeta que está ao seu lado, formando a dupla. No entanto, eles também não se olham.
O olhar está voltado para frente (lembrando que o cenário é organizado de modo que o
espaço situado na frente dos cantadores esteja livre) e algumas vezes para o alto, sugerindo
a busca por concentração e inspiração. A gestualidade expansiva não se faz presente nas
apresentações. Porém, a “imobilidade” dos cantadores não é menos eficaz: ela direciona a
dinâmica da performance à voz e às qualidades do poeta. “Os gestos – ainda que contidos –
mais clara a enunciação de textos em que importa muito o entendimento da palavra (op.
cit.: 383). De fato, a melodia executada com poucas variações (assim como a gestualidade
“contida” dos cantadores), direciona a atenção do público para o que o cantador canta. A
voz é o fator constitutivo da performance. Podemos ilustrar essa questão com o momento
da recitação. As poesias são decoradas e recitadas sem o auxílio de livros. Usando mais
uma vez os argumentos de Zumthor (1993), se o poeta ou o intérprete lê num livro o que os
espetáculo. Quando o poeta canta ou recita, mesmo que o texto não seja improvisado e sim
A voz é o recurso sobre o qual quase toda a performance está assentada. Ela é
utilizada pelo cantador de modo particular e em proveito de uma possível avaliação positiva
52
sobre a sua performance. As palavras são pronunciadas de forma estridente. As estrofes
improvisadas são emitidas de modo claro e em alto volume quando a rima é acertada.
Quando o poeta não consegue a rima, o som é feito de modo rápido quase imperceptível,
onde só é possível distinguir auditivamente o som da vogal ou das vogais em que a rima
semelhante ao que se esperava. Assim, a palavra falta, mas a intenção da rima permanece.
hesitação e abordar temas que provoquem uma empatia com o público; 2) a organização do
eficácia do ritual.
A “tradição” da Bandeja.
curiosos que pela primeira vez freqüentam a Casa. Normalmente, essas pessoas moram na
universitários que em grupos ou sozinhos sentam nas mesas com seus cadernos, anotando
53
cantadores, depositando na Bandeja notas ou cheques, cujos valores variam de vinte a
cinqüenta reais.
diretor da Casa carrega consigo um caderno, onde são feitas anotações de temas solicitados
pelo público aos cantadores, como também o registro dos presentes para que sejam
colocada ao lado dos cantadores. A Bandeja é explicada da seguinte forma para o público:
Quando a gente vai assistir a uma peça teatral, um filme, enfim, um show, a gente costuma
sempre pagar na entrada. Aqui é ao contrário: não é na saída nem na entrada, é no meio
mesmo (...) Essa Bandeja é tradicional (...) Muita gente que não entende a cantoria nem o
formato dela, chama a Bandeja de esmola, correr o chapéu (...) Não, essa Bandeja é
tradicional (...) A gente faz uma listazinha aqui (...) para ficar bem, ter mais praticidade (...).
A gente sempre tem o Cristo, vamos dizer assim que começa (...) Eu vou chamar o Eron
para batizar a Bandeja. Obrigado, meu compadre! Aí, vou chamar o compadre Rafael por
segundo. Depois vou chamar o meu amigo...é...ah... Rapaz, os baianos aqui! Compadre
Medeiros! (...).
A explicação é uma das estratégias utilizadas pelos cantadores para valorizar uma
assunto a partir da sua identificação com o meio rural e com setores subalternos da
sociedade (cf. Andrade, 1984; Barroso, 1949; Campos, 1973; Cascudo, 2001; Maxado,
1984; Mota, 1987; Romero, 1888). Para alguns desses autores, muitos cantadores
contexto atual, percebemos que a todo o momento, seja nas conversas ou na dinâmica de
54
seus rituais, os cantadores procuram construir uma nova imagem da cantoria nordestina. O
Bandeja. Para os cantadores, “correr o chapéu” é esmolar, ou na melhor das hipóteses, uma
legitimada pela idéia de tradição. Não obstante, essa “tradição” é pensada pelos informantes
não tanto a partir de sua relação com o passado, ou seja, como algo concretizado no tempo.
A tradição não se situa na duração, e sim na obviedade. A tradição é usual e comum. É tudo
aquilo que fazemos porque devemos fazer. A Bandeja é tradicional assim como é
tradicional, comprar um ingresso para ver um filme no cinema; assim como é tradicional,
pagar a entrada de um show. A Bandeja não tem nada de infame ou vil: o pedido de
Algumas questões trazidas por Eric Hobsbawn (1997) podem ser úteis para
pensarmos a maneira como a “tradição” da Bandeja é acionada nas Noites de Cantoria. Para
Os estudiosos dos movimentos camponeses sabem que quando numa aldeia se reivindicam
terras ou direitos comuns “com base em costumes de tempos imemoriais” o que expressa
não é um fato histórico, mas o equilíbrio de forças na luta constante da aldeia contra os
senhores da terra ou contras outras aldeias (...). O “costume” não pode se dar ao luxo de ser
invariável (...). O direito comum ou consuetudinário ainda exibe esta combinação de
flexibilidade implícita e comprometimento formal com o passado. Nesse aspecto, a
7
Zumthor (1993) demonstra essa questão ao analisar os pedidos de dinheiro feitos no momento do canto por
trovadores medievais na Europa (: 63).
8
Pensada no sentido de tradição inventada: “um conjunto de práticas (...) de natureza ritual ou simbólica que
visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica (...) uma
continuidade com o passado (...). Elas são reações a situações novas que ou assumem a forma de referência a
situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através da repetição quase obrigatória” (Hobsbawn,
1997: 09-10).
55
diferença entre “tradição” e “costume” fica bem clara. “Costume” é o que fazem os juízes;
“tradição” (no caso, a tradição inventada) é a peruca (...) e outros acessórios e rituais que
cercam a substância, que é a ação do magistrado (op. cit.: 10).
A Bandeja se refere ao que fazem os cantadores. Diferente de uma “tradição”, ela não é
acionada como um acessório simbólico. O seu sentido não tem uma função simbólica
precisa. O seu uso no ritual tem um objetivo prático. Com o tempo, o costume da Bandeja
pode até ter sido transformado num aspecto formalizado das Cantorias de Pé de Parede. No
entanto, sua função é técnica, prática e de direito: a Bandeja é um pagamento pelos serviços
de seus executores, a indumentária utilizada pelos protagonistas do ritual também pode ser
citada como mais uma estratégia para tais edificações. A cantoria é uma manifestação
região por ter pouca serventia para a agricultura, foi ocupada pela pecuária (cf. Garcia,
1984). Atingindo seu apogeu com a descoberta do ouro nas Minas Gerais, por aumentar a
procura de animais de carga e carne para a alimentação, foi formado o que muitos
civilização do couro estaria ligada aos valores rurais, cuja representação típica seria a do
56
Vila Nova 9, um dos mais respeitados cantadores da atualidade, numa entrevista ao Jornal
do Brasil, comenta indignado, mas alinhadíssimo em paletó e camisa social: “Você imagina
10
que uma emissora de TV queria que a gente usasse chapéu de couro e peixeira?” . Os
proposta.
seu meio, é preciso estar familiarizado com uma série de códigos que dizem respeito à
educação formal, mas que toca também em questões da aparência visual. E os códigos
dessa aparência não são aqueles do típico vaqueiro do sertão nordestino, e sim de uma
Conterrâneos e comensalidade.
A Casa do Cantador pode ser pensada como uma forma de lazer, de entretenimento
cujo motivo da reunião não é tanto o fato das pessoas ali presentes pertencerem ao mesmo
9
O cantador mora atualmente em Fortaleza.
10
Entrevista dada à jornalista Helena Aragão (Jornal do Brasil), realizada em 19/06/04 e disponível em
www.nordesteweb.com/not04_0604/ne_not20040618b.
11
Eduardo Diatahy Menezes (1999) mostra essas transformações e apreensões de novos códigos nas
narrativas populares de versos escritos.
57
bairro, mas sim de estarem identificadas com um tipo de manifestação cultural, a cantoria
nordestina. Para finalizar este capítulo cabe levantar algumas questões sobre o modo como
ambiente. Eles não lançam mão de “objetos típicos” para compor o cenário das Noites de
Cantoria. Os intérpretes não usam uma indumentária específica capaz de sugerir uma
Apesar de destacarem que não cantam apenas assuntos regionais, os versos entoados
pelos cantadores que abordam o Nordeste têm espaço nas Cantorias de Pé de Parede. Nas
Tal categoria iguala os vários estados que compõem a região. Antes de serem paraibanos,
das melhores coisas que existem por lá. A lista engloba desde pratos típicos e festas
sua gente.
sextilhas:
58
Que é uma terra bacana
A mulher contando história
E a gente bebendo cana
Mas tudo sentindo o cheiro
Do mel da italiana 12
(Casa do Cantador - Francisco Nunes, 21/11/03).
O mel da italiana, a cana, as histórias, a terra bacana são utilizadas nos versos como uma
típicos da região. Os versos abaixo destacam a carne assada e o cuscuz. Tais pratos são tão
seres divinos”:
seu povo. O tipo social do nordestino é construído a partir das seguintes qualidades:
12
Italiana é um tipo de abelha comum da região do sertão nordestino. Josué de Castro (2001) destaca a
importância da abelha para a alimentação do sertanejo. O mel de abelha substitui muitas vezes o açúcar e a
rapadura no tempero dos alimentos (op. cit.: 169).
59
Pra ele também sorrir.
(Casa do Cantador - Elias Ferreira, 23/11/03).
para o sertão é outra constante (pelo menos no momento ritual, como veremos no próximo
Capítulo):
O sertão é de valor
É onde o povo me adora
Eu tenho a maior certeza
De quem só vive por fora
Pode não chorar com os outros
Mas chorar sozinho chora.
(Casa do Cantador - Chico Oliveira de Acopiara, 31/10/03).
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Dentro do contexto da esperança da volta, do saudosismo e da valorização do
Nordeste, para aqueles cantadores que aqui residem, cantando para o público da Casa do
Cantador, Brasília assume uma função quase que utilitária. Seguindo o raciocínio dos
Distante do pessoal
Não sei se eu passei no teste
De tanto sofrer saudade
O meu compadre hoje investe
O dinheiro é em Brasília
E o sossego é no Nordeste.
(Casa do Cantador - Elias Ferreira, 21/11/03).
registro de todas as apresentações realizadas na Casa, onde são anotados os nomes das
duplas e as siglas dos estados de origem de cada cantador. No registro, cantadores que aqui
residem há vinte anos, não são catalogados pela sigla DF, e sim pelas letras iniciais do
estado em que nasceram. No início das apresentações, o diretor da Casa sempre apresenta
os cantadores, fazendo referência aos seus estados de origem e completando como uma
61
Durante o rito, nas conversas com a platéia ou com os cantadores, o morar em
Brasília soa como algo que parece não dizer muita coisa: “Moro trinta anos aqui, mas sou
maioria das vezes uma cidade nordestina, pelo menos essa é a resposta esperada por todos.
cantoria. As pessoas fazem menção a essa questão nas conversas entrecortadas pelos sons
das violas dos cantadores. A resposta dada à pergunta: “De onde você é?”, é, sem dúvida,
situação não acontece, a pessoa pode ser motivo de espanto. Foi o que aconteceu comigo
numa de minhas primeiras visitas à Casa do Cantador. Reproduzo abaixo um trecho de meu
diário de campo:
Após sair da Rodoviária, às 19:10h, num ônibus lotado, chego para uma noite de cantoria
por volta das 20:00h. Cumprimento algumas pessoas no portão de entrada. Lá dentro,
avisto o diretor da Casa, me aproximo e pergunto: “Lembra de mim?” E ele prontamente
me responde: “Claro, você está fazendo uma pesquisa, né? Olha, se você quiser ficar um
tempinho na biblioteca, esperando a cantoria, eu abro pra você”. Recuso, agradecida. Dou
um giro pelas dependências. Leio a placa de inauguração e observo a escultura de um
cantador esculpido em pedra. E assim permaneço, andando pela Casa. Um senhor que
morava ali perto assistindo o DFTV [noticiário local] soube da cantoria, resolveu aparecer
para conferir. E com muitas perguntas iniciou um diálogo comigo:
- Você gosta disso?
- Gosto, é legal.
- Será que tem que pagar alguma coisa?
- Não, acho que não.
- Onde você mora?
- No Plano.
- Como você veio, de carro?
62
- Vim de ônibus.
- Onde você nasceu?
- No interior do Rio.
- Mas, os seus pais são nordestinos?
- Não, eles são do Rio também.
Minha última resposta, o inquietou profundamente. O senhor aos gritos chamou sua esposa
e filha, comentando perplexo: “Essa menina é doida. Vem lá do Plano só para assistir
cantoria e nem é nordestina”. Sua surpresa não se referia tanto ao fato da “menina” ter
vindo sozinha de noite e de ônibus para um lugar “tão longe”, mas principalmente por ter
feito tudo isso não sendo nordestina e nem ao menos tendo pais nordestinos.
Além das conversas e dos versos cantados, que ressaltam a importância do “ser do
Nordeste”, está presente no ritual outro traço evocativo das “coisas de lá”. O ser nordestino
Tocado o sino, você é prontamente atendido pela responsável por preparar os pratos ou por
uma de suas ajudantes. É interessante perceber que nessa parte do ritual, a utilização de um
objeto que tem uma profunda ligação simbólica com o Nordeste pastoril, é vista
positivamente. O sino de boi é usado como um modo de divertir os convivas que têm a
vaqueiros ou dos cangaceiros do sertão, o sino de boi é convertido num ícone positivo,
nome especial do tipo: “Bar”, “Cantina” ou “Cantinho da...”. Os “fregueses” não comem
em mesas previamente preparadas para uma refeição com saleiros, paliteiros, galheteiros e
63
guardanapos. No “Bar”, não é possível ver engradados ou copos sobre o balcão. O cardápio
está resumido a uma cartolina, afixada numa parede, com as seguintes opções: buchada de
bode, carne de sol, caldo de galinha, cerveja e refrigerante. E por um preço bastante
acessível é possível saborear um farto P.F (prato feito). É o que muitos ouvintes e
O que pretendo enfatizar é a relação entre o que se faz e o que se come na Casa do
você estivesse assistindo a cantoria, e a comida fosse trazida a sua mesa. Tudo é feito num
aconchegante da casa, aqui com “C” maiúsculo. Vale destacar que esse espaço é dirigido
por uma mulher. A cozinha na Casa do Cantador é o único espaço feminino num grupo
eminentemente masculino.
casa”. Outra imagem sedutora dos pratos é a da fartura. Não se privilegia a escolha de
cerâmicas coloridas ou talheres lustrosos. Enfim, nada é chique, mas tudo é farto. A
como é o meu caso. As imagens de fartura e da “casa” ajudam a estabelecer uma idéia
positiva do grupo. A suculenta buchada de bode, servida sem grandes ostentações, mas com
cantoria. Comer num lugar público, por mais perto da casa que ele esteja requer o
64
conhecimento de um idioma cultural. Isso implica o como comer. Na Casa do Cantador se
corpo, mas é também um modo de se referir a uma ação simbólica” (DaMatta, 1994: 52).
Em determinados eventos, a comida pode abrir uma brecha no mundo diário, engendrando
ocasiões em que relações sociais devem ser saboreadas e prazerosamente desfrutadas (op.
cit.: 54). Na Casa do Cantador, fazer uma refeição não é um ato desprovido de uma ação
simbólica. Não se come sozinho. O comer não é um ato individual e sugere tentativas de
aproximações entre as pessoas e o desfrute de relações afetivas. Numa das noites na Casa
do Cantador, um pouco antes da cantoria começar, fui surpreendida por um senhor que se
prostrou na minha frente com um prato de comida. A Casa estava vazia, no salão estavam
apenas dois cantadores, ocupados em arrumar a aparelhagem de som, e o diretor que corria
de um lado para outro, ajeitando os últimos preparativos para apresentação. O senhor, que
eu já tinha visto algumas vezes na Casa, disse: “Será que eu posso sentar com você?”. E
logo em seguida se explicou: “È que eu não consigo jantar sozinho”. Sem esperar minha
resposta, foi logo sentando e gritando para a responsável pela cozinha: “Traz mais um prato
aí”. O senhor preferiu rachar o seu PF com uma quase “estranha” a ter que se sentar numa
Vários elementos que compõem uma noite de cantoria na Casa do Cantador nos
permitem pensar as relações das pessoas que ali estão com o Nordeste: a música; as letras
das canções; as comidas que compõem o cardápio afixado numa das paredes do bar com
carne de sol e buchada de bode; o sotaque das pessoas; frases do tipo: “Vim porque sou
65
baiano” ou as falas do diretor, momentos antes dar início às apresentações: “Aqui é um
cidade de São Paulo, aponta o forró como uma via de acesso para mapear a presença
cultural nordestina na capital. Segundo a autora, as festas de forró podem ser realizadas em
lugares improvisados e pequenos, ou seja, são festas para encontrar amigos, para bater
papo, divertir-se entre conhecidos e conterrâneos. A autora aponta também para espaços
cujos limites não estão restritos a uma rede local, como o caso do Centro de Tradições
Nordestinas (CTN), que reúne cerca de vinte mil pessoas nos finais de semana. Nesse
Cantador. A “tradição” é reconhecida pelo sotaque, pela música, pela dança, pelas bebidas
e comidas típicas. Nesses encontros se reúnem não apenas nordestinos no Distrito Federal,
mas também não nordestinos que vivenciam os eventos, avaliam, elaboram e comprovam
capítulo.
66
CAPÍTULO III
aos motivos que levaram ao deslocamento, às formas como foram feitos e às dinâmicas de
será feita tendo em vista o exame de suas trajetórias de vida. Os dados a serem analisados
são frutos de entrevistas e conversas informais realizadas durante os anos de 2003 e 2004.
Nas entrevistas foram privilegiados aqueles cantadores que residem no Distrito Federal por
mais de cinco anos. A amostra, caracterizada por esse limite temporal mínimo, permite
Nordeste e Brasília.
Segundo Abdelmalek Sayad (1998) todo o movimento migratório tem uma dupla
nordestinos residentes no Distrito Federal, são fatos coletivos. Apesar das variações, as
semelhantes.
67
Um dos aspectos compartilhados diz respeito à maneira como são evocados dois
“lugares”: Nordeste e Brasília. Nordeste e Brasília são noções nativas e serão usadas neste
capítulo enquanto tais. Nos discursos, Nordeste e Brasília deixam de ser simples referências
e reivindicações.
Cantador. Eles foram improvisados em meio aos depoimentos sobre trajetórias de vida. Em
outras palavras, a quadra e a sextilha seguintes foram feitas durante entrevistas realizadas
com os cantadores, em datas e locais diferentes, sem que os mesmos tivessem sido
surgiram de forma espontânea, não variam. As estrofes falam sobre uma possível
Admiro o cantador
que ele canta sem quizília.
Que traz dentro do peito
o Nordeste pra Brasília
(Ceilândia, 09/03/04).
no Ceará, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte. Nas conversas, esses locais são
encobertos por uma outra referência mais forte. Perante o público, seja este a platéia da
68
Casa do Cantador ou a pesquisadora, antes de serem potiguares, cearenses, pernambucanos
ou paraibanos, eles são nordestinos. Conforme me lembrou um cantador, todos sabem que
O Nordeste não é um país, mas nós estamos sempre defendendo ele com unhas e dentes.
Falar da existência do “nós”, nos remete à definição de Frederick Barth (1998) sobre
não é a de se apropriar da noção de grupos étnicos formulada por Barth. O resgate teórico é
grupo, cujos limites podem ser precisados nitidamente 1, eles categorizam a si mesmos
os discursos dos cantadores mais inteligíveis ao público. São categorias que deixam as
enunciações mais claras. A maneira como aparecem nos discursos, faz parte do complexo
diversidades, essas categorias gerais são acionadas para fazerem valer noções através das
1
Discutiremos essa questão na Parte III.
69
É nesse contexto que surge o emprego indistinto de Brasília. Pelas informações
oficiais, o Distrito Federal é formado por várias Regiões Administrativas (RAs): Brasília,
Ceilândia, Guará, Cruzeiro, Samambaia, Santa Maria, São Sebastião, Recanto das Emas,
Lago Sul, Riacho Fundo, Lago Norte, Candangolândia, etc 2. Brasília seria apenas uma
dentre as demais. Boa parte do total das RAs é constituída de cidades satélites, construídas
3
para abrigar o excedente populacional da capital federal . Todos os cantadores
entrevistados moram em cidades satélites, porém, tais espaços aparecem com pouca
freqüência nos depoimentos. Antes de fazerem referência ao Gama, Recanto das Emas e
satélites. Para o cantador nordestino, o que vale a pena ser registrado é sua presença em
Brasília.
migratórios dos cantadores nordestinos para Brasília. Um dos fluxos aconteceu por volta
dos anos 60 e 70; o outro, nos anos 90. Em cada um, as motivações apontadas para o
deslocamento. Resumindo, de acordo com as narrativas, são dois os principais motivos que
2
Fonte IBGE. Disponível em www.distritofederal.df.gov.br.
3
Para maiores informações, vide Capítulo I.
70
referentes às dificuldades ocasionadas pela seca no Nordeste brasileiro. Esse último motivo
está situado num tempo mais remoto e é mencionado por informantes que trabalharam de
migrações internas ou externas (cf. Pastore, 1969; Durham, 1984; Seyferth, 1990). Parentes
para a inserção e adaptação dos migrantes ao lugar de destino. Essa importância diz
o migrante em novas redes de relações. Nos discursos, essas redes são acionadas e
cantadores:
(...) quando meu pai morreu, eu fiquei sempre por lá [Nordeste] pra ficar perto da minha
mãe. Aí, quando a minha mãe morreu, foi em 97, aí, eu saí (...): “Eu vou andar muito até
espairecer mais, né, a morte da minha mãe”, que era muito importante pra gente. Aí,
cheguei em Brasília, passei aqui vinte e três dias. Daqui, fui pra São Paulo. E a minha irmã
que mora ali na Santa Maria [cidade satélite], continuando a falar pra eu vir morar aqui.
Falava direto: “Nossa, por que você não vem morar aqui? A família tá quase toda aqui”. E
eu fiquei pensando nisso. (...) Até que eu vim morar aqui. Morei um ano ali na Santa Maria.
Até que eu comprei um casebre aqui e vim morar no Pedregal [localidade situada na cidade
satélite do Gama].
Eu cheguei aqui... Antes eu já tinha aqui mais de dez viagens. Mas, definitivo, eu cheguei
aqui no dia 16 de abril de 1997. (...) E aqui, eu gosto muito de Brasília. Aqui tem uma das
71
pessoas... (...) Aqui, uma das pessoas que me são muito caras, é o Geraldo. Eu vim aqui
não foi a convite do Geraldo. Eu vim aqui pela amizade grande que eu tenho ao Geraldo.
Uma figura, um exponencial, uma figura exponencial da cultura, um cantador excelente, um
escritor maravilhoso por pessoa, charadista... Então, o Geraldo é tudo. Geraldo é um amigo
que eu tenho aqui e se eu sair daqui de Brasília, eu levo muita saudade do Geraldo. Ainda
têm os outros companheiros também. Tem Chiquinho, tem o Luís, e tem o João Batista, tem
o José Maria e demais companheiros 4. Então, esses colegas que faz a gente se aconchegar,
ter aquele aconchego dos colegas.
Nesses exemplos, percebemos que a decisão de mudar foi antecedida pelo acionamento de
redes parentais ou de amizade. A migração não é colocada como uma decisão individual, e
No entanto, existe uma situação em que as redes de amizade e familiares não são
acionadas nas narrativas dos envolvidos no processo migratório. Ela ocorre quando o
deslocamento data de um tempo mais remoto e quando o motivo da migração faz alusão à
Nesses casos, a migração figura nas narrativas enquanto uma urgência. O migrante é aquele
Geralmente, o pessoal que se deslocou do Nordeste tanto pra São Paulo, Rio de Janeiro ou
Brasília era devido às secas lá do Nordeste que tava muito difícil. Na agricultura não
compensava devido às secas, e o emprego não tem, não existe. Então, a gente sempre
vinha... Como se diz? Refrigerar a vida. Então, eu refrigerei. Eu vim.
4
Os nomes aqui citados são fictícios.
72
destino, os planos nem sempre são concretizados, ou pelo menos, não da forma exata como
foram idealizados:
Eu cheguei aqui e fui trabalhar na construção civil. Antes de vir pra cá, fui professor num
colégio, lá na minha cidade, talvez, até por falta de professores. Porque naquele tempo nos
anos cinqüenta e sessenta, nas cidades de interior dificilmente tinha um ginásio. O ginásio
naquele tempo era o curso de quinta à oitava, metade do primeiro grau. Então, no ginásio lá,
eu lecionei durante sete anos ainda fazendo ginásio e lecionando nas séries anteriores.
Depois, no segundo grau eu fiz Científico. Fiquei sete anos até terminar o segundo grau.
Isso tudo lecionando. Cheguei aqui fui procurar essa área ou arrumar um emprego no
comércio, num escritório, alguma coisa que ficasse mais compatível pra dividir o tempo e
fazer alguma faculdade. Mas, acontece que não existia aqui. Brasília só existia construção
de obras. Só a construção de Brasília. No comércio, você ganhava um salário mínimo. (...)
Aí, eu parti pra construção civil.
correspondendo aos ideais iniciais, a mudança para Brasília é avaliada de forma positiva. A
E logo que cheguei em Brasília, eu fui fazer um curso técnico em edificação ao nível de
segundo grau, técnico em edificação por correspondência na IUB. Não sei se você se
lembra da IUB? É Instituto Universal Brasileiro que administrava muitos cursos por
correspondência, até hoje ainda existe em São Paulo. Aí, eu me matriculei e fiz esse curso.
Passei (...) a mestre de obra. Fiquei trabalhando como auxiliar de engenharia na área de
orçamentos nas centrais das firmas, e assim eu passei. Mas só que nos finais de semana,
sábados e domingos, a viola, fazendo as cantorias e escrevendo. Porque quando eu vim do
73
Nordeste, eu já tinha cadernos com poemas, desde os vinte anos escrevendo, escrevendo...
E assim eu levei a vida escrevendo, cantando e trabalhando. A literatura era executada de
sexta a domingo. De segunda à sexta, construção civil. Depois de 81, eu me afastei de
trabalhar para os outros, e fui autônomo. Ainda construí um bocado como autônomo.
Construindo como autônomo para completar os anos pra aposentadoria, eu fiquei com
muito mais liberdade pra ficar na viola. Aí, eu passei a viver mais de cantoria e de escrever.
Aí, depois de aposentado, aí, é só cantoria e escrever. (...) Até que em 96, eu publiquei meu
primeiro livro, mas que tinha poemas escritos há mais de quarenta anos.
escritórios. Cansado de trabalhar como empregado passa a ser o patrão, trabalhando como
autônomo. Sua longa história de crescimento e ascensão social é coroada com a publicação
de um livro de poemas.
crescimento do indivíduo no lugar de destino, são vários. Algumas narrativas podem ser
destacadas. No primeiro depoimento a ser citado abaixo, o informante constrói uma história
de ascensão que começa nos tempos em que era servente de pedreiro; passando a oficial de
carpinteiro; atingindo a colocação de guarda numa escola pública; e concluindo seu relato
si mesmo vitorioso, onde a cada dia ele conquista mais e mais espaços na capital do país:
Em 68, eu vim à Brasília (...). Aí, comecei a trabalhar. Eu era servente de pedreiro. De
servente fui oficial de carpinteiro. (...). Aí, veio um pessoal procurando pra estudar numa
Escola Classe da 107 no Plano. Eu fui estudar e era guarda. Era guarda, e também estudava
e morava nessa dita escola.
Aqui eu tenho vários espaços. A cada dia que passa, eu arrumo mais espaço. Faço os meus
trabalhos. Faço as minhas apresentações pra Governo, faço pra Sindicato, faço pra empresa.
Tenho os meus cachês e luto por eles, agencio, faço tudo.
74
Não é possível caracterizar os cantadores como pertencentes a uma mesma classe
cidades satélites do Distrito Federal, as diferenças financeiras entre eles são visíveis.
públicos ou são aposentados. Os cantadores que vivem da cantoria como a única forma de
sobrevivência e que não gozam de um certo “espaço” em seu meio, passam por
maior dos relatos era a de erigir uma trajetória de muita luta, mas também de muitos
sucessos e triunfos.
não é feito ao relatarem os fatos que antecederam à decisão de migrar. Poucas referências
são feitas à vida que levavam anteriormente. Frente a minhas perguntas sobre aquela época
75
- Eu já cantei lá também. Aí eu voltei de São Paulo e fui a Pernambuco e fiquei fazendo
Nordeste todinho, nove estados do Nordeste.
- (Insisto) Mas, o senhor começou...(pesquisadora)
- Aqui em Brasília. Lá não, eu trabalhava puxando enxada.
- Eu queria saber um pouco sobre a sua história. Quem eram seus pais, onde viviam, o que
você fazia antes de vir pra cá? (pesquisadora)
- Meus pais são agricultores até hoje. Nasci no campo e me criei no campo até os dezessete
anos. Eu sou de uma família de dez irmãos. É... ainda sou remanescente da escola do
MOBRAL. Eu me alfabetizei no MOBRAL quando eu tinha treze anos. Fui terminar o
segundo grau com vinte e nove anos de idade. E... comecei a cantar aos dezesseis. E... nasci
em Alexandria, Rio Grande do Norte. Meus pais...Meu pai chama-se Joel, minha mãe
chama-se Joana. Hoje, estou com quarenta e um anos de idade. Sai de Alexandria, fui pra
Pau dos Ferros. De Pau dos Ferros fui pra Mossoró. Na época, eu fazia o chamado Ginásio.
Depois comecei o segundo grau. Parei, vim terminar depois que eu cheguei em Brasília. Fui
entrar na faculdade com quase quarenta anos e ... quer dizer, a terceira né. Já é a terceira
faculdade que eu não terminei, porque tive que viajar. Brasília é local que eu viajei menos,
né. Viajo uma ou duas vezes por mês. No Nordeste eu não fazia parada em casa. Eu vivia
mais em Brasília, Rio, São Paulo.
fase do passado, há muito pouco a ser dito. O que merece ser enfatizado do que já passou
são os eventos que se referem aos estudos e às viagens feitas pelo Brasil. Aquele tempo
vivido na roça ocupa apenas uma ou duas frases do relato: “Lá eu trabalhava puxando
enxada” ou “Meus pais são agricultores até hoje. Nasci e me criei no campo até os
dezesseis anos”. Essas frases merecem ser amarradas ou complementadas com notícias de
um presente ou de um passado “menos roceiro”. Existem razões para essa ocultação. E elas
dizem respeito ao significado assumido pela “roça” no contexto dos cantadores nordestinos
em Brasília.
concepção dos cantadores, ele não é assunto para uma entrevista com uma estudante da
Universidade. São poucos os que se referem à roça, mesmo tendo vivido nela por muito
tempo. Esse fato da vida pertence a um tempo difícil de ser relembrando, não apenas pelos
sofrimentos vividos, mas por estar associado às noções estigmatizadas de atraso. Leo
76
Spitzer (2001), em Vidas de Entremeio, a partir da biografia dos membros de três famílias
1945. O autor se depara com a existência de poucos detalhes sobre a vida pregressa desses
indivíduos selecionados para a análise. Tal fato indica uma tentativa deliberada de evitar o
considerado por eles, imerso nas trevas da ignorância (op. cit.: 67).
vividas nas grandes cidades. Ao falar da vida na roça, o informante imediatamente passa ao
relato de suas experiências na esfera urbana: estudos, viagens, etc. Nas trajetórias dos
cantadores contadas por eles mesmos, o passado cede espaço para o presente, ou para um
passado que mereça ser lembrado. As realizações atuais são o mote principal das nossas
conversas. E o presente fala por si mesmo. À pesquisadora são mostrados cds gravados,
livros publicados ou no prelo, fotografias com personalidades políticas. Até o espaço onde
foram realizadas as entrevistas falava por si mesmo. As conversas eram realizadas nas casas
televisão, aparelho de som. Tudo conquistado por eles, símbolos que concretizam e
informantes se tornaram cantadores quase que como uma necessidade de levar uma vida
diferente daquela levada no campo. A cantoria significou uma forma de escapar da vida
77
rural, ou seja, foi uma porta de saída. O depoimento seguinte faz referência às motivações
(...) teve um companheiro (...), ele falou: “Rapaz, você tá vendo aquele cantador? Ele anda
bem vestido e fora da roça, cantando ruim do jeito que ele canta. Por que você não vai
cantar também?” [risos]. Isso foi um incentivo pra eu arranjar uma viola e começar a cantar.
E daí, eu comecei a cantar. Comecei logo (...) a viver da viola, e me desliguei da roça. E
passei até a viver melhor lá no Nordeste.
Os cantadores são construídos no relato como aqueles que andavam bem vestidos e não
trabalho com a enxada e com o cultivo da terra. Com a cantoria abria-se a possibilidade de
uma vida melhor. A viola representava a perspectiva da migração, dos sonhos por melhores
vinculados.
intenso. Antes de Brasília, eles passaram por várias outras cidades. Existe um certo padrão
pequena localidade do interior nordestino, descrita por eles como sendo um sítio ou uma
comunidade rural. Muitos deixaram esses locais ainda jovens, aos dezessete ou dezoito
Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. Poucos cantadores deixaram seus lugares de origem para
morarem em Brasília, sem antes terem vivido em outras cidades e capitais de grande porte.
Podemos assim, identificar uma trajetória de deslocamento que se inicia nas pequenas
78
localidades do interior nordestino, passando por cidades nordestinas de maiores dimensões,
movimentos. As viagens fazem parte do dia a dia dos informantes. Os depoimentos são de
pessoas diferentes. Em todos eles, notamos a presença dos deslocamentos na vida dos
A minha cidade natal, Jaguaretama, onde eu morei vários anos... De lá eu saí... Morei no
estado da Paraíba. Morei na cidade de Patos. Morei em Cajazeiras. Morei em Conceição de
Piancó na Paraíba. De lá, eu mudei e vim pra São Paulo. Passei uma temporada em São
Paulo. De São Paulo eu voltei pra Fortaleza. Fiquei morando em Fortaleza. De Fortaleza,
Brasília, Distrito Federal onde permaneço até hoje. Mas, estou sempre viajando.
(...) viajando pra Brasília, viajando pra São Paulo, viajando no Brasil todo, em Belém, tudo
que é lugar eu ia, Maranhão, Piauí. (...) Gostava muito de viajar quando comecei a cantar.
No princípio tudo são flores. Quando a gente vai ficando mais maduro, tendo família, a
família já exigindo mais da gente: “Poxa, já vou ter que viajar de novo”. Mas quando
começa a viagem, já esquece. (...) Têm viagens de até um mês viajando. Mas, têm outras
que é oito dias, dez dias, quinze, no máximo. A gente vai pras exposições em Campo
Grande. Fomos pra exposição em Petrópolis, Rio de Janeiro, São Paulo, várias cidades de
São Paulo, Barretos...
O cantador poderia ser um migrante em potencial. Para Iain Chambers (1994) ser
migrante exige tradução uma vez que se impõe um novo sentido de lar. O lar é concebido
como um habitat móvel, como uma forma de viver o tempo e o espaço não como se fossem
79
estruturas fixas e fechadas (op. cit.: 18). Talvez, essa colocação seja interessante para
percepção dos cantadores, Brasília situa-se dentro do contexto móvel das viagens. As
Antes de nos determos nessa questão, algumas colocações são necessárias. Já foi
enfatizado anteriormente que os motivos que levaram essas pessoas até a capital do Brasil
são vários. Trabalho, redes de relações e a busca por melhores condições de vida são
algumas das situações apontadas que levaram à migração. Resta saber o porquê da escolha
por Brasília.
Hoje essa questão da migração dos cantadores tipo São Paulo, Brasília...Você não vê um
cantador dizer: “Eu vou pra Mato-Grosso”. Por que? Parte da nossa colônia não está lá.
Porque você primeiro...A nossa base é a colônia nordestina. Porque lá é que você vai cantar
sabendo que o cara já viu aquilo. Apesar dele estar lá dez, vinte, trinta anos, ele já viu. (...)
Ou seja, os cantadores procuram Brasília, São Paulo porque são metrópoles que têm um
percentual de nordestino muito grande.
nordestino pelo Brasil, a opção por Brasília acontece também em função de tudo o que uma
grande cidade pode oferecer. Existe uma série de noções em torno de Brasília que
funcionam como um atrativo para essas pessoas. Para além do possível encontro com um
80
Muitos cantadores caracterizam a cidade de Brasília como um lugar difícil de se
fazer cantoria. Alguns, inclusive, ressaltam que se estivessem no Nordeste estariam bem
melhores. O “melhor” significa aqui, “mais ricos” e mais “famosos”. Em outras palavras,
ser cantador no Nordeste poderia representar a conquista de uma condição financeira mais
(...) a cantoria no Nordeste é tão bem aceita que têm pessoas que compram as pilhas do
rádio, lá no interior, colocam a pilha no rádio e assiste ao programa. Quando termina o
programa tira as pilhas pra não gastar e assistir no outro dia. No Nordeste é bem aceito a
cantoria. Quase todas as cidades fazem festivais. A prefeitura apóia, os vereadores, o
prefeito da região...
No Nordeste têm aquelas cantorias de sertão... Os cantadores quando chegam lá, as pessoas
tratam com muito carinho, com muito amor (...). Aqui não. Aqui a coisa é totalmente crua
mesmo. Eu faço uma apresentação, é só ali e pronto. Lá no Nordeste, você termina uma
cantoria, o pessoal fica atrás de você e quer conversar e tal e tal, quer ficar perto. Aqui é
diferente. Aqui não tem muito essa questão.
O espaço é muito pequeno [sobre Brasília] (...) Se você for fazer aquela cantoria tipo
cantoria nordestina mesmo (...) não dá pra sobreviver. Alguns tentam aqui, mas vive com
muita dificuldade. Eu faço em Brasília é um esforço muito grande pra sobreviver da
cantoria aqui. (...) Brasília não é uma cidade boa. Porque se você for observar as cantorias
da Casa do Cantador, são cantorias semanais. Mas, o público é muito reduzido. Se sair um
anúncio no jornal ou na televisão, o espaço lota. Mas, as pessoas não têm o hábito de
assistir aquelas cantorias de Bandeja que são típicas do Nordeste. São aquelas cantorias que
eles pagam na bandeja. (...) Então, Brasília não é uma cidade fácil pra viver. (...) Eu tenho
muita vontade de voltar pro Nordeste. Se eu estivesse lá estaria muito melhor do que aqui.
Os cantadores vivem lutando pra me carregar pro Nordeste. (...) E eu não fui. Mas, eu vou
resistindo em Brasília. Eu acho que eu tenho algum espaço. A questão da arte... eu vou
trabalhar agora com arte, vou terminar meu curso e vou trabalhar com arte. Talvez, por isso
eu ficarei em Brasília. (...).
aparece nos discursos como um espaço privilegiado para a cantoria. Lá, a cantoria é bem
aceita. Lá, existe apoio financeiro de políticos para a realização de festivais. Lá, os
cantadores são tratados pelo público como verdadeiros artistas. Ao falarem da cantoria em
81
Brasília, os discursos mudam de tom. Aqui, o espaço é pequeno. Aqui, ninguém paga a
receptividade do público.
pergunta: Por que os cantadores “resistem a ela”? Deixemos que os próprios cantadores
respondam:
O Nordeste pra mim é passear, viver lá de passeio (...). É muito bonito o Nordeste. Foi lá
onde eu nasci, onde eu vivi, onde eu aprendi, onde eu sofri. Mas, eu gosto muito mais do
Sul. Porque aqui a gente desenvolve, é... Dá mais um dinheiro. O povo até de outros países
vê mais a gente. Tem gravação minha que foi pra França. Eu cantei pro ministro da França
em São Paulo. Se eu tivesse no Nordeste, eu não tinha cantado com Pedro Bandeira [um
poeta que tem algumas de suas composições gravadas por Luís Vieira e Antônio Nóbrega] e
outros.
Voltar pro Nordeste, pra aquelas cantorias cansativas, aquelas viagens cansativas do
Nordeste... Fica muito difícil. Gostoso mesmo é cantar como nós fazemos aqui. E aqui nós
estamos bem localizados. Estamos centralizados aqui no Centro-Oeste. Aqui viaja pra São
Paulo é perto. Viaja pro Centro-Oeste, pra Mato Grosso, pra Cuiabá... Tudo é perto. Então,
nós estamos aqui bem centralizados e estamos sempre em comunhão com os cantadores.
Mesmo considerando as cidades do Nordeste como espaços onde a cantoria possui uma
maior visibilidade, Brasília oferece aos cantadores outras facilidades. A cidade carrega
consigo uma série de noções sobre o imaginário de uma capital. A análise desse imaginário
5
A Bandeja, conforme foi analisada no capítulo II, é o pagamento recebido pelos cantadores em suas
apresentações.
82
pode elucidar os motivos da vinda e da permanência dos cantadores nordestinos, mesmo
do saber, da economia e da política da vida nacional (Durham, 1984: 139). Além das
questões de ordem econômica e política, o quadro hegemônico dos grandes centros urbanos
respeito das grandes cidades. Essas imagens vão sendo construídas a partir dos refrões de
oposições entre o lá e o aqui no que se referem aos serviços, códigos de conduta, práticas e
instituições sociais (Teixeira, 1988: 18). Como mostra Sérgio Alves Teixeira, basta
lembrarmos do valor dado aos arranha-céus nas cidades pequenas, figurando sempre como
“cartões postais”. Esses prédios são associados ao progresso e à modernidade; são focos de
interesse e de quase adoração, uma vez que permitem o afastamento da situação de atraso
(op. cit.: 20). Partilhando noções sobre a hegemonia dos centros urbanos, os cantadores
6
BEZERRA, Gonçalo Gonçalves. A Catedral de Brasília. A Brasil Cordel: órgão de divulgação da literatura
brasileira de cordel, Brasília, ano I, n.1, p. 21, abril de 1980.
83
(...)
Veja que prédios modernos
Enfeitando a Capital
O primeiro à esquerda
É o hotel Nacional
Veja o Banco do Brasil
É alto e tem muitos mil
Fruto de um grande ideal
(...)
Vê-se a Rodoviária
Arquitetura convém
Uma das Obras moderna
Que o nosso mundo tem
Alguém já anda falando
Estou quase acreditando
Ser a Nova Jerusalém.
(Gonçalo Gonçalves Bezerra – A Catedral de Brasília).
como a “origem” dos cantadores dos grandes centros. Cantar nas capitais do país representa
evoluir de uma mentalidade considerada “rústica” e “simples” para outra mais “complexa”
e “arrojada”.
(...) na casa do Cantador nas sextas-feiras, você encontra um conterrâneo que quer matar a
saudade: “Olha, fala aí do aboio do vaqueiro nas quebradas do sertão”. (...) Então, aí é fácil
demais pra mim. (...) Eu vou dizer tim tim por tim tim. Só que no meio dessa platéia que
pediu um mote tão simples (...), surge um também que vai dizer: “Olha, eu queria que você
cantasse um tema aí, eu vou dar o tema agora: o Waldomiro Diniz é escândalo brasileiro”.
Quer dizer, o cantador pulou de um regionalismo para um assunto que é nacional e já é
politizado, já é mais arrojado. Você tem que estar a par. (...) Então, o cantador de viola
hoje, como eu já lhe disse, tem que ser muito bem atualizado. Ele é obrigado a se atualizar.
Porque você vai cantar pra todo o tipo de gente, pra todo o tipo de espectador e em todos os
ambientes. Então, hoje a cantoria tá nesse pé. Começou aquela coisa rústica, bem simples.
Dois cantores ao pé de uma parede. Eles botavam duas cadeiras naquelas casas simples,
como eram aquelas casas de taipa, feitas de barro e de vara ou de tijolo mesmo, onde você
não se preocupava em tratar assuntos, digamos, do exterior. Não se falava de uma ALCA,
de um político. Era assunto mais da região, regionalismo. Então, hoje está tudo muito
84
mudado. Então, hoje um cantador tem ser técnico. Além de conduzir o regionalismo, que é
muito necessário ainda, encontra muitos conterrâneos que quer que fale do vaqueiro, que
fale da roça, que fale de um irmão que tá lá, da saudade, aquela coisa toda.(...) Quem mora
em capital hoje, por exemplo, um cantador que mora em Brasília, você vai fazer um show
numa platéia digamos seleta, mais evoluída, mais clássica. Você tem que levar
totalmente... 99% é um show político. Regionalismo é só mais para os conterrâneos, vamos
dizer assim.
Ao falar das mudanças ocorridas com a cantoria quando esta atingiu os grandes centros
urbanos, o informante a coloca numa espécie de linha evolutiva que começa no simples e
atinge o arrojado. O estágio arrojado está localizado no contexto das grandes capitais
brasileiras. Ele é fruto das transformações vinculadas à vida nas metrópoles da região
cantar numa capital como Brasília é dialogar com uma platéia seleta, evoluída e clássica.
sertão”, eles lançam mão de dois adjetivos: simples e rústico. Ao falar da “cantoria das
Oriundos de uma região, que na hierarquia econômica do país é vista como inferior,
“pau-de-arara”, “paraíba”, “baiano”, etc. (Morales, 1993: 80). O migrante, além de ocupar
uma posição subalterna, pode legitimar o modelo de inferioridade (op. cit.: 102). Tais
questões podem ser percebidas no processo de construção de uma imagem atual para a
cantoria, ou seja, a cantoria dos grandes centros urbanos. A construção se dá através de uma
85
estereótipos do “atrasado” e do “desenvolvido”. Para os cantadores residentes em Brasília,
Ele toma conta do discurso ao nível das emoções. De acordo com José de Souza Martins
tomando o contexto de origem como quadro de referência positiva (op. cit.: 114).
Vimos que na Cantoria de Pé de Parede, o conteúdo de várias sextilhas faz menção a essa
Têm noites que eu fico dormindo e sonhando. Acordo e dá vontade de voar. Porque a gente
nasce num lugar... que é berço querido, que viu nascer, a gente nunca pode esquecer, né? A
gente pode viajar pra outros lugares, como se diz, mais elevados como São Paulo, Rio de
Janeiro, Brasília e outros. A gente acostuma, fica no meio daquela mordomia e conforto.
Mas, a gente não pode esquecer do torrão natal e nem pode também, como se diz,
discriminar. Dizer: “Ah, eu não sou daquele lugar. Eu nasci lá, mas não gosto”. Tem que
honrar e dizer que gosta. Porque o interior... existe humildade, aquela beleza natural, um
povo diferente. A... como se diz, a discriminação é muito pouca. A perturbação, como se
diz, o meio dos maus acontecimentos não existe, aí, leva uma vida mais tranqüila, mais
humilde, alegre, descansada, cantando, passeando (...). Por isso, eu gosto muito do
Nordeste. Toda a oportunidade de voltar...Daqui a uns dias eu estarei lá. Daí, eu volto pra cá
de novo. E é assim...
palavra saudade encontra-se no conjunto fortíssimo de idéias e atitudes que ela evoca,
desperta e determina (: 20). Pela saudade podemos invocar e dialogar com pedaços do
tempo, e trazer os momentos especiais e desejados de volta (op. cit.: 22). É assim que
86
constatando que para ser nordestino, não é preciso estar no Nordeste. Aliás, fora do
(...) Aqui nós só trocamos de sigla, de lugar. A saudade nossa, o nosso eu de lá, permanece
do mesmo jeito. (...) Brasília é hoje o nosso ninho. Brasília é hoje o nosso domicílio. (...) Eu
até brinco: “Vou pedir licença aqui aos goianos que nós somos inquilinos deles”.
quando lembrada como uma utopia (cf. Assis, 1999 e Osório, 2001).
“O cantador é do Nordeste” mesmo que ele esteja distante e por mais distante que
ele queira estar. Mesmo com tudo o que possa significar e sugerir estar numa capital do Sul,
eles apenas estão... Ser e estar é uma diferença que a todo o momento, os cantadores tentam
reforçar. O que significa ser do Nordeste e estar em Brasília? O que os cantadores querem
Nordeste.
- Aqui [Casa do Cantador] é aonde os cantadores vêm do Nordeste, se juntam com os daqui
que são nordestinos. Porque não tem cantador sulista, né? (...)
- Não tem cantador sulista? (pergunto)
- Sulista não. Sulista tem é caipira, tem vaneirão, às vezes, algum forrozeiro que entra...
Mas, a origem do forró, da cantoria e da vaquejada é no Nordeste.
87
- Então, a gente pode falar que não tem cantador de Brasília? (pergunto)
- Filho de Brasília não. Tem um em Brasília, mas a origem é de nordestinos. Ele mora na
Granja do Torto, é brasiliense. Mas, aí ele tem que se concluir... e ele se... Assim, não é que
ele deva nada a gente. Ele canta bem, um rapaz que tem faculdade e tudo. Mas, ele tem a
origem no Nordeste por causa dos pais nordestinos. Ele tem que se ... Como se diz? Apoiar,
ficar junto pra poder exercer a cantoria dele. Se ele ficasse cantando só, ele não era
cantador. Cantador tem que ser dupla e cantar a origem nordestina.
(...) o homem é produto do meio. Porque se no Rio Grande do Sul, em Minas Gerais, em
Goiás têm poetas escritores, mas não têm cantador. Pra cantar de improviso não tem. Lá no
Rio Grande do Sul tem uns improvisadores, mas é completamente diferente (...).
É preciso estar ou, pelo menos, conviver num meio específico para se tornar um cantador. É
Nordeste é feita através da construção da idéia de cantoria como um traço típico e único
daquela região. Ao preservá-la fora de seu habitat natural, os cantadores reafirmam o seu
uma prática considerada antes de tudo, nordestina. Assim, como a cantoria é coisa do
Talvez, os dados levantados acima nos conduzam aos motivos pelos quais alguns
na vida de muitos migrantes uma válvula de escape do mundo rural. Para outros, no
entanto, a cantoria pode ser vista como uma conseqüência do processo migratório. Mesmo
não tendo muita proximidade com essa manifestação cultural no seu lugar de origem, o
deslocamento aproximou alguns informantes dos traços considerados típicos da sua região.
mostrar a respeito de suas procedências. O Nordeste é o torrão natal que não pode ser
88
esquecido somente em alguns de seus aspectos. As dificuldades vividas naquela região
podem não ser mencionadas, mas as coisas consideradas positivas da “terrinha” devem ser
lembradas. As coisas a serem cantadas são aqueles aspectos que podem ser idealizados. E
Nordeste pra mim é tudo, é uma beleza. (...) O povo faz questão de te receber na casa e
pedir pra esperar pro almoço. Você chega no Goiás e é uma diferença tão grande. Eu não
quero discriminar. Mas, parece que a gente chega no Goiás, o pessoal parece que tá doido
que a gente saia pra eles botar o almoço. É desse jeito. Minas é a mesma coisa. São Paulo
não tem aquele espírito pra receber uma pessoa em casa não. Fica tudo com pé atrás. O
Nordeste tem uma diferença muito grande: tudo é como se fosse irmão. Você passa um dia
na casa de um amigo: “Não vai hoje não deixe pra ir amanhã”. É uma beleza o Nordeste,
aquele estilo, aquela irmandade, confraternização... É uma beleza. Eu gosto demais do
Nordeste. Adoro o Nordeste.
permanece como uma lembrança. Ele só faz sentido ao ser lembrado na época das férias:
Brasília, eu não tenho o que dizer de Brasília não. É tudo (...). Tô satisfeito em Brasília.
(...). Valeu a pena sim. Valeu por causa de que lá é um sacrifício muito grande pra você
sobreviver e criar uma família, né. Você vê a minha família. Só, criei esse filho, aquele que
ta lá [me aponta o filho dele em outro cômodo da grande casa aonde mora]. Só, criei um
filho. Tinha um casal, mas a menina morreu. Viemos pra aqui, meu filho se criou, estudou,
a esposa também, os netos bem criados. Tem um emprego bom, trabalha no Tribunal de
Justiça, levando um padrão de vida, graças a Deus, como pobre, mas... Tô satisfeito [num
tom de voz baixo]. Mas [aumenta a voz e o ritmo da fala] agora todo o ano eu fico contando
os dias pra chegar a época. Porque eu gosto de ir sempre na mesma época. Quando começa
a chover, com noventa dias eu tô lá. Pra ver aquele milho maduro, aquele feijão maduro,
feijão verde, aquelas coisas da roça lá. Eu sempre vou nessa época abril, maio. Mês de
setembro a dezembro lá, não tem quem agüente a quentura, sol quente. Eu não vou de jeito
nenhum. Com esse tempo todinho morando aqui, chegando lá, eu passo mal. Mas, todo ano
eu tô indo lá. Gosto muito daqui, mas não esqueço de lá. Todo ano eu tenho que passar uns
dois meses lá. Quando eu vou lá é Pernambuco, Paraíba, Rio Grande, Ceará andando por lá,
todo o lado.
Brasília, o informante pode escolher não só o que quer lembrar, mas também o espaço
89
temporal das lembranças. O melhor momento para se lembrar do Nordeste é quando as
regados pelas chuvas de maio. Esse é o momento ideal para (re)visitar o ambiente
lembrado.
Grande parte das entrevistas foi realizada nas próprias casas dos cantadores. Nas
cantorias da Casa do Cantador, falava de meu interesse e eles prontamente me davam seus
endereços a fim de que eu fizesse as entrevistas. Essa parecia ser uma ocasião de
adjetivá-los como muito elegantes: calça social, camisa de gola e mangas compridas,
ajustadas para dentro da calça, sapatos engraxados e cinto. Alguns perguntavam: “Você não
vai usar filmadora, não vai filmar?”. Frente a minha negativa se mostravam um pouco
busca de seus afazeres. Durante a conversa, me ofereciam cafezinho e era convidada para
almoços ou jantares. Nos momentos em que éramos interrompidos por campainhas ou sons
de telefone, ouvia frases do tipo: “Corta!”, como se estivéssemos num “set” de filmagem. E
Os cuidados com o traje, com a minha recepção e com o registro da situação faziam
da entrevista um evento. Era um momento em que de alguma forma, eles estavam em foco,
90
no centro das atenções. E, mesmo frente as minhas negativas a respeito do uso da filmadora
entrevistado parecia ser antes de tudo uma honra. Um imenso prazer que os cantadores
saboreavam a cada instante. Tal prazer tinha ressonâncias nas Noites de Cantoria. Os
episódios foram transformados, por várias vezes, em temas dos versos improvisados pelos
a facilidade e a receptividade com que era recebida estão ligadas diretamente à forma como
essas pessoas se constroem e à forma como gostariam de ser reconhecidas. Uma das
Essa construção se alicerça a partir de um veículo principal: “olha com quem você está
falando”, no caso, “olha quem você está entrevistando”. Para Roberto DaMatta (1994),
quando se usa o argumento do “sabe com quem você está falando”, não se busca uma
igualdade simpática ou uma relação contínua com o interlocutor, mas sim uma
hierarquização inapelável (: 101). Tudo isso porque vivemos numa sociedade em que as
feita principalmente, de acordo com um conjunto de relações que podem ser acionadas,
entrevista, a entrevistadora conversava com homens que demonstram suas relações com
fazem questão de publicizar títulos e ostentações. Foi assim que entrevistei homens que já
tinham cantado com Xitãozinho e Xororó, Sérgio Reis, Roberto Carlos; homens que
91
conheceram o Pelé; homens que receberam vários títulos; homens que viajaram por todos
Eu conheço muitos estados, inclusive o estrangeiro, já tive até cantando lá. Ganhei muitos
festivais, tenho quatro lps gravados. (...) Já cantei pra Pelé, cantei pra Roberto Carlos,
Sérgio Reis, Xitãozinho e Xororó, esse mundo tudinho aí. (...) Se você me perguntar as
cidades de Alagoas, conheço várias, da Paraíba, eu sei. Se você perguntar a fundação de
Brasília, eu sei; a de São Paulo; a do Rio; do Brasil; quantos metros cúbicos têm o Brasil;
qual é a maior floresta do mundo...
O veículo, “olha com quem você está falando”, também se traduz na tentativa dos
arte: cantoria é arte e cantador é artista. A entrevista com uma estudante da universidade
confirmava por um momento tal construção. Por isso, a presença de uma filmadora, a boa
92
entrevista legitimava, ou melhor, consagrava, mesmo que por alguns instantes, a idéia do
artista em visibilidade.
manifestações culturais. Dentro desse contexto abre-se espaço para a oposição entre arte e
interna que o que é considerado como folclore precisa ser isolado. Na concepção dos
categoria poluidora.
rural. Os cantadores ficam presos aos aspectos “regionais”, da natureza e do meio sertanejo.
Esses cantadores são localizados num tempo histórico do passado. São referidos como
(...) se você for observar, os cantadores folclóricos são ainda muito atrelados à questão
rural. Não que a questão rural esteja fora da cantoria. Porque os cantadores começaram no
campo. Mas, hoje os cantadores estão nos centros urbanos (...).
93
Os que no presente estão identificados unicamente com tais traços, são vistos de forma
negativa. Para eles, cantar apenas o mundo rural é não evoluir, é ficar congelado no
outras noções como folclore, rural e o passado. Para os cantadores residentes na capital do
país, o folclore, o rural e o passado são noções que estão muito próximas. Ficar preso aos
assuntos funcionam num nível de discurso direcionado para dentro, ou seja, aos nordestinos
muito saudosos da sua terra. Os discursos proferidos numa capital moderna devem ser
politizados e impregnados por uma certa visão social. Os cantadores que não conseguem se
condição, resta cantar nas exposições agropecuárias, nos bares ou praias do Nordeste,
importunando turistas em troca de meros trocados. Esses são cantadores folclóricos, muito
diferentes dos artistas que sobrevivem com sua arte nas grandes capitais brasileiras:
Se você for na praia, hoje qualquer praia do Nordeste não passa dez minutos um cantador
lhe aborda, cantando aquela mesma xaveca. Já tem uma xaveca pra mulher magra, pra
mulher gorda, pra galega, pra morena, pra quem tá de óculos. Ali, ele repete em todo o
canto. Isso não é cantoria, é um beabá, uma decoreba que eles usam. Eles não estão
preocupados com a qualidade da cantoria. Eles estão preocupados com a sobrevivência. Eu
também não sou contra essas pessoas. Claro, eu não concordo, mas também não estão
fazendo nada de errado, não estão roubando nada de ninguém. É uma forma deles
sobreviverem. Só que aí, a cantoria perde a sua essência enquanto arte. Ela fica mais
folclórica. As pessoas me perguntam muito: “Ah, eu vi uma cantoria na praia”. Olha, não
confunda a cantoria da praia com a minha cantoria e de outras cantorias. (...) Brasília é hoje
a capital do país. Então, se você tá cantando aqui, você tem que primar pelo mínimo de
qualidade possível para que as pessoas não tachem o cantador. Algumas pessoas acham que
cantoria é coisa de pessoa leiga, ou pessoa analfabeta, algumas pessoas chamam de cantoria
matuta, coisa cabocla. Isso não tem nada a ver com a arte da cantoria.
94
Pensar a cantoria enquanto arte é principalmente fazer menção a um determinado
Dentro desse contexto, estar numa metrópole acarreta uma série de adaptações que o
cantador tem que passar. Os cantadores pretendem fomentar a idéia de que a vivência, a
metrópoles brasileiras são vistas como grandes desafios. Nesse sentido, o que os cantadores
Hoje, você viver de cantoria numa metrópole como Brasília, não é fácil, é muito difícil.
Primeiro porque os conterrâneos não têm mais aquele saudosismo, porque tá aqui há vinte,
trinta, cinqüenta anos. Ele perdeu um pouquinho do tempero daquilo que vivia lá. Então,
hoje, por exemplo, você vai fazer uma apresentação, qual é o tema? O tema vai ser a
terceira idade. Obviamente, eu sei falar da terceira idade: que a pessoa que passou dos
cinqüenta tem os seus direitos. Mas aí, você tem que criar mais, dizer quais são os direitos,
que direitos eles estão reivindicando, o que alcançaram. Não é só dizer que o cara tá velho.
Não é isso. Você tem que abordar um conjunto de coisas.
E hoje está mais difícil. Por que? A cantoria ela tende a cada dia conquistar mais espaços de
pessoas não ligadas diretamente ao Nordeste. (...) A cantoria hoje de Brasília ela é mais nas
universidades, nos colégios e encontros. Então, os cantadores já vão com os seus cachês. Já
vão com a temática da cantoria totalmente diferente, a conotação com uma visão mais de
coisa técnica. (...) Brasília é hoje a capital do país. Então, se você tá cantando aqui, você
tem que primar pelo mínimo de qualidade possível para que as pessoas não tachem o
cantador.
95
Os informantes acreditam que para galgar novos espaços, a cantoria tem que se
estar numa capital é vencer obstáculos. A maior dificuldade apontada pelos cantadores que
vivem numa metrópole é conseguir ser globalizado. Quando se consegue ser globalizado,
vindas, como valorizadas. A modernização não é uma ameaça para a cantoria. O perigo
conhecimentos e a atualização no tempo histórico. E só assim, ele rompe com tudo aquilo
Nas grandes cidades, os cantadores já vão com a temática da cantoria totalmente diferente, a
conotação com uma visão mais de coisa técnica. O tecnicismo participa hoje da cantoria.
Tanto é que os cantadores que não atingiram esse patamar estão nas praias, estão nas festas
de Parque de Exposição, abordando as pessoas de maneira folclórica, não enquanto arte.
valorizar a própria imagem a ser erigida. E essa valorização é feita a partir de uma seleção
de traços identificados com lugar não do qual se originaram, e sim no qual estão agora
inseridos. O cantador precisa ser politizado, falar das principais questões sociais do país e
96
Um cantador de viola hoje tem que ser um jornalista muito bem atualizado. (...) Pra se
cantar hoje você tem que começar com a mais difícil da história que é a técnica, ou seja,
hoje o cantador de viola, como eu lhe disse é um jornalista muito bem atualizado. Ele tem
que ser atualizado. Ele tem que seguir aquela chamada globalização.
Os traços que ressaltam a cultura rural estão nos repentes improvisados na Casa do
ele pode ser visto como algo pejorativo. O rural funciona muito no nível de um discurso
para dentro, ou seja, para os conterrâneos. No discurso formulado para fora, para os
seja esta uma das razões pelas quais as mudanças ocorridas com a cantoria, não são mal
é uma arte que você pensa que está em decadência, mas não tá. (...) Quer dizer não tá
morrendo. Ao contrário, tá dando mais força, cantadores mais técnicos, mais evoluídos,
cantadores muito mais arrojados, vamos dizer assim.
Para ser um bom cantador além de uma boa memória, dedicação, prática, estudo e
estar atento a algumas regras que dizem respeito à métrica, rima e enredo, é preciso estar
7
Outras razões pelas quais as mudanças são percebidas como positivas, foram apontadas no Capítulo II e
serão retomadas na Parte III.
97
aboio do vaqueiro nas quebradas do sertão, para temas políticos, também denominados
como arrojados.
códigos. Nas metrópoles, o processo de adaptação dos cantadores exige não apenas a
aprendizagem de novos símbolos, mas também a redefinição dos antigos. Fazem parte dos
assuntos que interessam a uma platéia considerada mais clássica e evoluída. Quanto à
Leo Sptizer (2001) mostra que os indivíduos podem formular múltiplas respostas
ou totalmente de suas origens. Essas questões formuladas por Sptizer desmistificam a idéia
pertencentes às suas “raízes”. O autor mostra que a cultura transposta pode ser utilizada de
forma funcional, com objetivo de atingir fins específicos para o beneficio do indivíduo (op.
cit.: 54). É o que acontece com a utilização e rejeição pelos cantadores residentes em
oriundos de códigos compartilhados por uma sociedade urbana: educação formal, linguajar
oficial, vestimenta apropriada. Alguns cantadores fazem curso superior e os que não fazem,
98
gramática da língua portuguesa. Nas entrevistas, muitos apontavam livros de português e
gramáticas como sendo seus livros de cabeceira. Cometer poucos erros gramaticais
vestimenta que o identifique não com um rústico sertanejo inerte no tempo, mas com uma
cultura urbana, proclama que o indivíduo faz parte do grupo dos cidadãos “respeitáveis”. A
imagem que se edifica nesse momento não é a do cantador sem estudos e analfabeto. Essa
imagem fica congelada no passado ou pertencente a uma realidade que já não é mais a dele.
no Distrito Federal. No entanto, essa preservação não se faz sem adaptações. As adaptações
linguajar considerado gramaticalmente correto. Nas cantorias dos grandes centros urbanos,
99
PARTE II
100
CAPÍTULO IV
As causas tradicionalistas.
Os Centros de Tradições Gaúchas são entidades sem fins lucrativos que se propõem
1966, por ocasião do XII Congresso Tradicionalista, realizado em Tramandaí, Rio Grande
do Sul. Atualmente, o MTG congrega a maior parte das entidades tradicionalistas existentes
no mundo.
1
Os significados dessa inserção serão discutidos no Capítulo VII.
101
Os valores cultuados pelo MTG fazem referência a um passado que teria existido no
sudoeste do Rio Grande do Sul: a Região da Campanha. As condições de vida dessa região
ou seja, das grandes fazendas, destinadas à pecuária. Elementos das condições de vida
pastoril dos vastos campos da Campanha são resgatados pelo tradicionalismo. O presidente
cenário dos CTGs, vemos objetos que remetem a um contexto rural, laços, arreios, carro de
boi e quadros com gravuras dos vastos campos da Campanha Gaúcha, etc.
Nessas entidades, existe uma espécie de edital que versa sobre as normas exigidas
para um indivíduo tornar-se peão. Por exemplo, no CTG Jayme Caetano Braun, o
regulamento do “Concurso de Peões” 2 diz que o “candidato” precisa passar por uma série
de provas. Dentre elas está a Prova Campeira, onde o futuro peão deverá estar apto a
Vale ressaltar que durante toda a realização do trabalho de campo nunca tive a
Antes de nos atermos aos resgates do MTG e ao modo como são feitos, fazem-se
necessárias mais algumas palavras sobre a região reinventada nas entidades tradicionalistas.
O Rio Grande do Sul constituiu-se nos moldes de uma economia agropecuária voltada para
2
Regulamento do Concurso de Peões Tropeiros. Capítulo VII Das Provas e Critérios de Avaliação. A fonte
está disponível em www.ftgpc.org.br.
102
(Pesavento, 1982: 65). Do século XVIII, quando é iniciada a colonização tardia do estado,
até meados da Revolução Farroupilha, ocorrida entre os anos de 1835 e 1845, a região da
Campanha era o Rio Grande do Sul para o Brasil, uma vez que se constituía no único
Nos séculos XVII e XVIII, a Campanha foi palco de muitas disputas entre
mobilidade das divisas fronteiriças e os muitos conflitos armados imprimiam àquela região
um caráter militar (cf. Azevedo, 1981; Pesavento, 1982 e Costa, 1988). O povoamento do
estanceiros gaúchos, que mobilizaram sua peonada para a guerra. O que os revolucionários
de charque ao mercado interno. Dentro da percepção que essas pessoas tinham dos
supérfluos e de onerar o Rio Grande do Sul com impostos, sem indenizá-lo por danos
103
Ocorrida entre os anos de 1835 e 1845, a Revolução Farroupilha é cultuada pelos
chamada Semana Farroupilha. Nesse período, muitos tradicionalistas vão para o trabalho e
passeiam pelas ruas, pilchados; lojas, boutiques e demais casas comercias do Rio Grande
do Sul ornamentam suas vitrines com peças de arreios, laços, chimarrão e outras marcas da
cultura material do tradicionalismo (Teixeira, 1988: 61). Em Porto Alegre, a data máxima
piquete dos tradicionalistas para o qual são utilizados cavalos cedidos pelo Exército
acordo com Ruben George Oliven (1992a) nos dias atuais, a Campanha ocupa uma posição
o chimarrão, serviu e continua servindo de modelo para os vários CTGs espalhados pelo
mundo (op.cit.: 70). O passado que teria ocorrido em uma parte do estado, repleto de
guerras e lutas, profundamente identificado com uma origem rural, é retomado pelo
tradicionalismo como forma de construir um tipo regional para o estado do Rio Grande do
Sul: o gaúcho.
Porto Alegre. Seus fundadores eram estudantes secundários, quase todos vindos do interior
104
precursores do tradicionalismo, embora cultuassem valores ligados ao latifúndio, não
tinham necessariamente origem na oligarquia rural, evidenciando que “desde o seu começo
Para Luiz Carlos Barbosa Lessa (1992), um dos idealizadores do primeiro Centro de
Tradições Gaúchas, o que os unia era o fato de serem moços do interior e de pertencerem à
significava um sufoco por dois motivos. O primeiro deles diz respeito ao constrangimento
de “ser uma pessoa identificada com valores do universo rural” no meio urbano. Lessa
alvo de agressivas chacotas” (op. cit.: 75). O segundo motivo refere-se ao desconforto
americana no cinema, na música, nas gírias, na moda, nas histórias em quadrinhos, etc.
Inserindo-se numa época em que era valorizado mais do que nunca, a identificação
com traços da modernidade, os idealizadores dos Centros de Tradições Gaúchas dizem ter
Movimento:
3
Uma das ruas mais movimentadas do centro de Porto Alegre.
105
causados, ou incentivados, pelo relaxamento do controle dos costumes e das noções
tradicionais de cada cultura (op. cit.: 4).
citando Donald Pierson e Ralph Linton, Lessa coloca o MTG como uma solução frente à
invasão iminente de novos hábitos e idéias. O Movimento seria um “retorno moral aos
escritor Cyro Martins, no livro Porteira Fechada, contou a saga de gaúchos ameaçados
pelas repentinas mudanças no campo causadas pela mecanização, onde muitos perderam
terras, casas e seus cavalos, cedendo a um desígnio doloroso do gaúcho a pé. Para Lessa,
faltou a Cyro Martins, contar a saga do “guri a pé”, esta coube a ele e seus companheiros
Mesmo criticado por muitos sul-rio-grandenses que não querem ser identificados
com os traços resgatados pelo MTG (cf. Dacanal, 1992 e Golin, 1983), o tradicionalismo
estado do Rio Grande do Sul é reconhecido a partir da figura do gaúcho como um tipo
bravo, guerreiro e identificado com valores rurais. Tais classificações procuram estabelecer
Quando se pretende comparar o Rio Grande do Sul ao resto do país, apontando diferenças e
construindo uma identidade social, é quase inevitável que este processo lance mão do
passado rural do estado e da figura do gaúcho, por serem estes os elementos emblemáticos
que permitem ser utilizados como sinais distintivos (Oliven, 1992a: 128).
106
O alcance dos Centros de Tradições Gaúchas.
Embora o MTG não controle todas as expressões culturais do Rio Grande do Sul,
MTG possui intelectuais que produzem escritos e que ocupam posições importantes. No
tradicionalismo: em 1966, uma lei oficializa o hino farroupilha como o hino do Rio Grande
do Sul; um terreno é doado pelo governo Triches (1971-1975) para que o pioneiro “35
CTG” 4, fundado na capital gaúcha em 1948, construísse uma sede; em 1988, outra lei
institui o ensino do folclore nas escolas estaduais; e em 1989, a pilcha 5 é oficializada como
Em Porto Alegre, foi criada a Estância da Poesia Crioula, uma espécie de Academia
milhares de jovens; além de rodeios e outros eventos nos quais são revividas as lides
campeiras das estâncias (Oliven, 1992a: 87). São realizadas missas e casamentos crioulos,
vão desde a modificação na linguagem litúrgica até o uso de um traje especial pelo
sacerdote.
4
A denominação faz alusão à Revolução Farroupilha, iniciada em 1835. O 35 CTG serviu de modelo para a
fundação de vários outros CTGs.
5
As pilchas são os trajes utilizados pelos freqüentadores dos CTGs. A indumentária masculina é composta
por uma calça, denominada bombacha, camisa e muitos acessórios como cintos, botas de couro, lenços,
chapéu, etc. As mulheres não fazem uso de muitos acessórios. O traje feminino reduz-se a um longo vestido
embaixo do qual estão muitas anáguas, sapatos tipo “boneca” e cabelos presos por grampos.
107
O espaço ocupado pelo tradicionalismo no Rio Grande do Sul encontra ecos na
organizado pela Câmara Municipal de Porto Alegre, em 1999, Cláudio Kneirin do Instituto
pessoas, sem contar com a mão-de-obra das mais de trezentas indústrias de erva-mate. O
estados brasileiros e em países como Estados Unidos, Paraguai, Portugal, Holanda e Japão.
espalhadas pelo mundo. Não existe um consenso a respeito dessas estatísticas. Os números
variam de acordo com a fonte consultada. O fato é que os Centros de Tradições Gaúchas
propagam-se para além do Rio Grande do Sul, atingindo vários estados brasileiros e
6
KNERIN, Cláudio. Globalização e as Culturas Regionais. In: SEMINÁRIO GLOBALIZAÇÃO E
CULTURAS REGIONAIS. Comissão de Educação, Cultura e Esportes da Câmara Municipal de Porto
Alegre. Porto Alegre, 1999. Resumo. Mimeografado.
7
Os dados estão na seguinte fonte eletrônica: www.paginadogaucho.com.br.
8
Vide www.terragaucha.com.br e www.santanadolivramento.com.br
108
O CTG Jayme Caetano Braun.
cidades no interior de Goiás, cujas populações são formadas basicamente por gaúchos,
públicos ou para cumprir obrigações militares. É nesse universo que estão inseridos os
maior shopping da cidade, o Park Shopping; 4) e o CTG Jayme Caetano Braun que fica
num espaço que abriga os principais clubes de Brasília, o Setor de Clubes Desportivos Sul.
monumental ponte JK que dá acesso a uma das áreas mais valorizadas da capital federal, o
Lago Sul.
Selecionei como objeto de pesquisa, o CTG Jayme Caetano Braun. A escolha deve-
entidade está localizada em uma área central e muito valorizada de Brasília. Talvez, por ter
essa localização mais central, entre a Esplanada dos Ministérios e o Lago Sul, o CTG
9
Para mais informações, vide Introdução.
109
consegue reunir em alguns de seus eventos um grande número de pessoas não
necessariamente gaúchas.
Antes da sede atual, muitos dos freqüentadores do CTG Jayme Caetano faziam
contados nos dedos. A sede do CTG Jayme Caetano Braun, foi inaugurada em 04 de abril
de 1987. Sua estrutura foi erguida com contribuições de gaúchos dispostos a construir um
espaço próprio para a “preservação da cultura”. Uma pessoa doava um saco de cimento,
outra, telhas e assim, foi construído o prédio. O espaço ocupado pelo CTG foi concedido na
época pelo Governo do Distrito Federal. Atualmente, existe o risco iminente da perda do
O espaço ocupado pelo CTG é enorme. O Galpão é o principal lugar no qual são
realizados vários dos eventos promovidos pela entidade. Constitui-se por um gigantesco
salão forrado com um ótimo piso e coberto por um novíssimo teto de PVC. No Galpão,
palco fixo e um espaço destinado aos jogos de bocha 10. O espaço também conta com um
segundo pavimento que se converte numa alternativa para acomodar o público nos eventos
de grande proporção. Os freqüentadores dizem que o Galpão tem capacidade para abrigar
mil e duzentas pessoas sentadas. A área em que está localizada a sede, é bastante extensa.
Ela comporta uma casa para o caseiro; churrasqueiras externas ao Galpão principal; um
10
Segundo Augusto Meyer (1975), o termo bocha corresponde ao italiano boccia, bola de jogar de madeira,
empregada em jogo italiano (: 46). O jogo foi transmitido por imigrantes italianos no Brasil, tornando-se
muito popular no Rio Grande do Sul.
110
O nome do CTG é uma homenagem ao poeta Jayme Caetano Braun. Jayme Caetano
Braun, falecido em 1999, escreveu livros e gravou discos. Era considerado um pajador, um
poeta que improvisava versos geralmente em desafio com um outro, ao som de um violão.
Foi membro da academia “Estância da Poesia Crioula” em Porto Alegre. Suas obras
também estão assinadas por pseudônimos como Piraju, Martín Fierro e Anda-rengo. O
CTG da capital federal não é o único que recebe o seu nome, ressaltando o seu importante
componentes, inseridos na categoria de sócios. Nessa categoria estão todos aqueles que
contribuem com mensalidades. Eles podem ou não freqüentar o espaço assiduamente. Ser
sócio significa não somente contribuir com o CTG, como também gozar de alguns
O CTG é dirigido por uma diretoria que se renova de dois em dois anos. Essa
comissão é eleita por sócios que estejam em dia com as mensalidades. A diretoria, ou
melhor, a patronagem está estruturada nos seguintes cargos: patrão, ou seja, o presidente;
patronagem conta também com alguns cargos de confiança: agregado das leis, uma espécie
CTG na internet; posteiro campeiro, responsável pelas competições do CTG nos rodeios
gaúchos; posteiro galponeiro, responsável pela manutenção do Galpão, etc. Fazer parte da
diretoria significa dedicar uma boa parte de seu tempo ao CTG. Normalmente, essas
111
pessoas passam todos os seus finais de semana e algumas noites da semana em reuniões,
parágrafo anterior é apenas um exemplo, pode fazer com que em algumas situações até
mesmo o pesquisador se sinta como um “peixe fora d‟água”. Assim foi meu primeiro
Gerais, Oeste Baiano, Goiás e Distrito Federal. Eram aproximadamente dez CTGs e seus
várias categorias: infantil, juvenil, adulto e xirú. O evento era antes de tudo um campeonato
entre os CTGs com torcidas frenéticas empunhando fitas, bandeiras, bexigas, apitos,
cornetas e bumbos, e competidores com os nervos à flor da pele. Ouvia-se com grande
freqüência coisas do tipo: “Minhas pernas não param de tremer” e “Que frio na barriga!”.
Além das respirações ofegantes, quase todos os competidores faziam o sinal da cruz antes
das apresentações.
música, dança e comida. Os dois eventos eram bastante semelhantes, a não ser por uma
112
diferença gritante. O público que prestigiou o Encontro de Folias era muito variado:
pessoas que moravam por ali perto, famílias que se deslocaram do Plano Piloto com a
Rodeio Gaúcho, as pessoas que circulavam pelo ambiente eram representantes dos CTGs e
estavam todas pilchadas. Sem pilcha, apenas eu e um rapaz com cabelo “rastafari” que
operava o som. Duas perguntas me surgiram na época: será que tais manifestações
apresentam menor identidade com o público brasiliense? Tais manifestações são eventos
Tentando achar respostas para as minhas inquietações, resolvi visitar o CTG Jayme
Caetano Braun. E, ao entrar pela primeira vez em um CTG na capital federal, tive um
sentimento dúbio em relação a uma placa afixada na entrada do Galpão com os seguintes
Nem todos os eventos realizados pelo CTG Jayme Caetano Braun são acessíveis
apenas àqueles que realmente estejam inseridos nas causas tradicionalistas. Com o passar
do tempo, percebi que o público era bastante variado, pelo menos em algumas situações.
de convidados.
com um público “menos diversificado”, pude conhecer algumas pessoas pilchadas que não
113
tinham nascido no Rio do Grande do Sul. Não estou me referindo apenas aos descendentes
dos migrantes aqui instalados, e sim a cariocas, paulistas ou goianas que se pilcham para
questões já foram apontadas por alguns pesquisadores (cf. Costa, 1997 e Beserra, 1998).
Rogério Haesbaert da Costa (1997) chama atenção para a presença cada vez maior de não
gaúchos nos CTGs, principalmente aqueles localizados fora do estado do Rio Grande do
Sul. Segundo o autor, mesmo não sendo sulistas, essas pessoas identificadas com valores da
classe média ajustam-se ao ambiente dos CTGs. Exemplificando a questão, Costa pontua a
89).
Creio que a análise sobre a apropriação de traços da cultura gaúcha feita por
mineiros, goianos, paulistas e nordestinos, que não somente freqüentam os CTGs, como
ocupam posições importantes dentro deles, seria muito interessante. Esta tese não está
preocupada especificamente com a presença não gaúcha no CTG. Até porque no contexto
aqui estudado, a presença de não gaúchos frente ao universo dos gaúchos é muito pequena.
Todavia, acredito que as motivações que levam mineiros, goianos e paulistas aos CTGs, são
as mesmas que levam os gaúchos, depois de muito tempo vivendo fora de seus contextos
originais, a permanecerem nessas entidades. Essas questões dizem respeito aos sentimentos
Enfatizar essa dimensão não é negar que todas as práticas fomentadas nos CTGs
giram em torno de fatos considerados por seus promotores como tradicionais de uma
região, o Rio Grande do Sul. E sem dúvida alguma, os eventos realizados no CTG Jayme
114
Caetano Braun são modos de reunir algumas pessoas que se deslocaram do Sul para
Brasília. Reunidos eles falam em nome da tradição gaúcha e a representam frente aos
outros.
São vários os eventos realizados pelo CTG Jayme Caetano Braun que são
construídos e inventados a partir de uma constante referência ao Rio Grande do Sul. Todas
as sextas-feiras são realizadas as Sextas Nativas. São eventos onde qualquer um pode
entrar, basta pagar o que for consumir. São noites com dança, poesia e comidas “típicas”
como o arroz carreteiro, galeto e churrasco. Apesar de ser um evento aberto, normalmente,
as pessoas que lá aparecem são membros do CTG e às vezes, algum sócio convida um
amigo para conhecer o Galpão. Mensalmente, são feitas as Noites da Poesia Crioula. Esses
eventos contam com a presença de poucas pessoas. O público é composto por alguns
homens pilchados que numa noite de quarta-feira, recitam poesias à luz de uma fogueira, ao
primeiro domingo do mês, o Costelão reúne uma quantidade significativa de gaúchos e não
próximo capítulo.
115
CAPÍTULO V
Neste capítulo serão analisados alguns eventos que integram a dinâmica do CTG
Jayme Caetano Braun. Priorizando a perspectiva etnográfica, tomo tais eventos enquanto
rituais. Eles são reveladores de processos simbólicos que estão em jogo na vivência de seus
seus promotores.
Crioula. Além desses eventos, existem outras “invenções” que procuram caracterizar de
forma especial o ambiente do CTG. Refiro-me a determinados objetos que dão um certo
o lugar como sendo especial. Na entrada, vemos a bandeira do estado do Rio Grande do
Sul. Dentro do prédio, logotipos da entidade; quadros com gravuras de cavalos, laços,
arreios e chimarrão; avisos com a programação dos eventos culturais; estantes repletas de
116
troféus adquiridos pelo CTG em campeonatos nacionais e regionais de poesia, de dança e
reconhecidas pelos informantes como símbolos do CTG. Símbolo é uma categoria nativa e
é usada conscientemente. O motivo pelo qual uma cultura elege itens como sendo seus
símbolos, já foi investigado por muitos estudiosos. Lembremos de Edmund Leach (1983):
“O comportamento simbólico não só diz, como faz alguma coisa” (: 140). A escolha de
símbolos por uma determinada cultura não é aleatória. O comportamento simbólico não é
de forma alguma inconsciente. Tal conduta possibilita a comunicação, uma vez que a
papel. Assim, no CTG, símbolo é tudo aquilo que tem a intenção explícita de significar
algo.
Por trazem à tona idéias importantes e por resumirem questões implícitas em outras
opções simbólicas, nos deteremos na análise dois símbolos do CTG Jayme Caetano Braun:
1
Ilustração retirada do site do CTG: www.ctgjcb.com.br.
117
(...) no formato retangular (1,35 cm x 1,60 cm) em tecido, com duas fazes, fundo branco,
tendo na sua parte superior à direita a legenda “Tradição e Folclore” em letras maiúsculas
na cor vermelha. À direita na parte inferior a estilização de três colunas das seis que
compõem as do Palácio da Alvorada, tendo cada uma pela ordem, no seu interior, as letras
CTG na cor verde. À esquerda uma cuia de chimarrão em primeiro plano, na cor marrom
com as letras JCB em amarelo escritas em seu bojo, bocal de prata tendo no seu interior
uma porção de erva-mate, com uma bomba de chimarrão de prata, com resfriador e chupeta
de ouro. À esquerda um fogo de chão com uma chaleira preta pendurada numa trempe de
ferro por uma corrente. Abaixo a data de fundação da Entidade, na cor verde. Na parte
superior e inferior três listras de cinco centímetros cada uma nas cores verde, vermelho e
amarelo (Estatuto Social, páginas 5 e 6) 2.
A descrição acima, tão precisa e rica em detalhes, não foi feita por nenhum
antropólogo, e sim pelos próprios nativos. É interessante pontuarmos alguns detalhes tão
bem enfatizados pelos informantes. Por exemplo, a escolha das cores e dos objetos. As
principais cores da bandeira do CTG são as mesmas da bandeira do Rio Grande do Sul:
considerados típicos do estado, como o chimarrão e todos os seus apetrechos, bomba, erva-
mate, etc. Esses elementos da cultura gaúcha não estão localizados num lugar qualquer da
bandeira. O chimarrão é disposto à esquerda do fogo de chão sobre o qual repousa “uma
chaleira preta, pendurada numa trempe de ferro por uma corrente”. O fogo de chão é uma
chaleira presa por uma corrente são considerados pelos informantes como elementos
bastam as referências às cores e aos objetos típicos do estado do Rio Grande do Sul. Tais
referências precisam estar situadas no presente. Por isso, na bandeira do CTG existem
Alvorada.
2
Também disponíveis no site do CTG.
118
O desenho 3 nos faz lembrar a entrada de uma fazenda. O nome do CTG está gravado numa
placa de madeira erguida por duas toras. A entrada dessa hipotética estância não tem
porteira, mas tem dois guardiões. Do lado direito de uma das toras que sustentam a placa
monumento que saúda os visitantes numa das entradas da cidade. Do lado esquerdo da
Caetano Braun, é claro, pilchado. Próximo ao poeta, a bandeira do Brasil. Como pano de
fundo do desenho ou sugerindo ser a própria estância, vemos o esboço do mapa do Rio
Grande do Sul, colorido com as cores da bandeira do estado. A figura é construída a partir
referências ao universo rural dos pampas gaúchos (o Laçador, os trajes do poeta Jayme
3
Ilustração retirada do site do CTG: www.ctgjcb.com.br.
119
O processo de construção social da imagem do CTG Jayme Caetano Braun e de
seus participantes, envolve a invenção de uma série de objetos como bandeiras, logotipos,
placas, troféus e galerias de fotos. Fazendo uso das palavras de Pierre Bourdieu (1989)
coisas, emblemas e bandeiras – “representações objetais” - são utilizados nas lutas “... pelo
monopólio de fazer ver e fazer crer, de dar a conhecer e de fazer reconhecer” (: 113). A
identidades.
símbolos e pela sua utilização numa narrativa ritual extremamente rica e variada. Essas
situações podem se converter nas principais ferramentas utilizadas pelos informantes para a
construção de uma dada realidade. Uma realidade que se define pela concordância, ou seja,
invenções feitas no CTG Jayme Caetano Braun - algumas de forma mais intensa do que
outras - exercem uma função integradora, refletindo e reforçando imagens difundidas por
seus promotores.
eventos que se dão num espaço improvisado, fora do Galpão principal do CTG. O espaço é
120
coberto, mas bastante pequeno. Nele, estão mesas e cadeiras, e um bar onde é possível
qual todo o evento irá transcorrer, é o fogo de chão. Essa fogueira, acesa no centro do
galpão improvisado, serve também para preparar o jantar que acompanha a Noite. O espaço
homens estão reunidos em torno de um fogo de chão, como faziam os peões da estância ao
final de um dia de trabalho para tomar chimarrão e contar “causos”. Os causos são
universo rural da Campanha do Rio Grande do Sul. E quase todas histórias fazem menção a
Esse causo é do meu velho pai, lá da região de Bagé. Ele era criador de ovelha. E um dia ele
estava sentado no pátio, por volta das três da tarde. E veio um senhor que queira comprar
cinqüenta ovelhas. Meu pai disse que não queria vender. E de tanto o cara encher o saco do
meu pai, meu pai...: “Tá”. Aí ele virou para um cachorro que ele tinha e disse: “Paisano, vai
lá no portão dos fundos e me traz cinqüenta”. Daqui a pouco, vêm aquelas ovelhas.
Cachorro do lado do pai, pá..., conta daqui, conta de lá... quarenta e nove. “Falta uma!”.
Daqui a pouco, o cachorro batendo nas botas do meu pai, pá, pá: “Paisano, Paisano, estás
ficando caduco. Te mandei trazer cinqüenta e você me trouxe quarenta e nove”. Falar o
que? Cachorro meteu o rabo no meio das pernas e entrou Galpão adentro. E nós fomos
carregar as ovelhas. Carregamos, tudo bem! Quando nós voltamos tinha uma surpresa pra
nós e tristeza pro meu pai. O cachorro tinha se enforcado com uma junta de boi. O cachorro
se matou de vergonha porque errou na conta.
enunciados, tomam lugar no ritual antes da declamação das poesias. Como se fossem
preâmbulos. Às vezes, são utilizados pelo declamador como um recurso para acalmar os
nervos:
121
Pessoal, eu tô mais nervoso que gato em dia de faxina. Por isso, eu vou contar um causo pra
me acalmar.
Os causos não são o foco das Noites da Poesia Crioula. Os eventos são preenchidos
gaita. As poesias declamadas não são de autoria dos próprios intérpretes, ou seja, são de
poetas tradicionalistas como Jayme Caetano Braun, Apparício Silva Rillo, Glaucus Saraiva,
A Noite da Poesia Crioula é considerada pelos nativos como um dos eventos mais
Nada mais genuíno, nada mais autêntico do que nós aqui reunidos em volta desse fogo de
chão, onde os tropeiros se reuniam após a sua lida de campo para acalmar o gado e esperar
o dia surgir. Ao redor de muitos fogos de chão é que foram tomadas tantas decisões que
vieram formar a história do Rio Grande e do país.
O gaúcho que tanto lutou pela liberdade, jamais deixará preso esse orgulho de ser gaúcho.
Por isso, estamos aqui hoje em volta desse fogo de chão.
evento. Alguns cerimoniais são realizados de modo tão impecável e solene que podem
sugerir ao observador eventual a idéia de que sempre foram assim (Cannadine, 1997: 112).
ser gaúcho”. Essas noções são confirmadas pela própria composição do cenário do ritual: o
122
fogo de chão, um elemento que remete ao passado; e o público que comparece aos eventos,
afirmadas por uma verbalização direta, insistente e sem entremeios do que o que está se
cerimônia.
são os defensores. Por isso, esses homens decoram e enaltecem fatos e heróis de outrora,
medida em que é esse o arcabouço simbólico dos ritos do CTG. O papel ocupado pelo
passado é tal que as “mudanças” são rechaçadas. As alterações no que é entendido como
Nas Noites de Poesia, muitos dos versos recitados fazem menção às mudanças
ocasionadas pela modernidade. E o saudosismo toma conta das poesias. O progresso é visto
123
Na mente cansada de um tempo
do velho tropeiro, Que o tempo implacável matou
Se formam imagens (...)
Esse mal que muda as pessoas Que bom que não vêem mais
Transforma paisagens seus olhos
E nunca se cansa A sanga,
(...) o espólio das grandes barragens
E como se tudo o que fez E as toscas imagens
não bastasse das terras lavradas
Tirou dos seus olhos, Seus olhos que um dia
A força de ver Brilharam de amor
Porém, que ironia, Escravos da flor
o taura sorri que é a mulher,
O tempo maléfico Bem querer...
se quer se deu conta Não vêem essa imagem
Que ao velho tropeiro Que ao tempo se molda
lhe fez um favor Pois muita chinoca,
Seus olhos que viram Só é porque é moda
do alto dos montes E ao menos um mate,
O sem fim dos horizontes, Não sabe fazer
tão puros e iguais E as tropas enormes,
Por certo que iriam chorar, boiada taluda.
A desgraça de só ver a fumaça Cavalos de muda,
Que chamam progresso Rachando de gordos
Que bom que seus olhos É bom que não vejam
Já não vêem mais No tempo, o estrago.
Seus olhos que vieram Seus filhos e netos
os campos brotando em cavalos magros
E sangas cantando Tropeando boi lerdo (...).
A acordar madrugadas (Eterna Ronda – Adair de Freitas).
numa espécie de paraíso perdido. É esse paraíso que precisa ser reinventado no tempo
por esses gaúchos, cuja maioria nunca viveu no campo, com tristeza e lamentação. Essas
questões estão refletidas numa das poesias que mais causam emoção no ambiente. A poesia
é da autoria de Jayme Caetano Braun, intitulada, Tio Anastácio. Quando recitada, causa
sinais de comoção tanto no intérprete, como na platéia. O declamador antes de iniciar sua
124
escutam atentos e fazem sinais com a cabeça, sugerindo consentimento e aprovação.
Por que a poesia transcrita acima é tão aceita pelos informantes? Ela não menciona
chamado por Tio Anastácio. Acredito que o sucesso de “Tio Anastácio” encontra-se
justamente nesse ponto. É um relato de um velho que ao final da vida, depara-se com a
125
miséria e a solidão. È uma poesia que expõe sentimentos e nos coloca diante de uma
inevitabilidade sempre evitada, a morte. Sem nenhum receio ou explicitando todos eles,
As poesias fazem referência a um sentimento que parece ser primordial nas Noites
de Poesia, a tristeza. A tristeza que aparece em quase todas as poesias está associada ao
viris, mas que se permitem sentir. Homens que uma vez por mês deixam escapar algumas
Glaucus Saraiva:
126
Revolução Farroupilha. Os versos enaltecem o fato histórico, exacerbando os valores de
liberdade e de valentia. A construção idealizada de um tipo social vai sendo fomentada nos
heróico e “nobre” do povo gaúcho. Um povo guerreiro em cujas veias corre o sangue dos
aqui estudado, da mesma forma que afirma Miguel Vale de Almeida (1995) sobre os poetas
sentimentos disfóricos (: 211). Assim, abre-se espaço para os sentimentos de tristeza, medo
textos são longos, e o bom declamador recita a poesia sem trocar as palavras e gaguejar.
momento de grande constrangimento para o intérprete, uma vez que desmerece a sua
habilidade. O esquecimento do texto é entendido e sentido pelo executor do erro como uma
gafe. E quando ela acontece, só lhe resta pedir várias desculpas e intensificar sua habilidade
Me perdoem. Não sei o que aconteceu. Já recitei essa poesia inúmeras vezes. Sei essa
poesia de trás para frente. Me desculpem, mas não sei o que aconteceu.
127
A platéia tenta consolá-lo com abraços, tapas nas costas, sugerindo apoio. No entanto, de
Ao intérprete não basta decorar a poesia. O declamador também precisa saber usar o
seu corpo. O orador recorre a toda uma técnica corporal para garantir a sua competência
performance. Ao declamar, o intérprete faz uso de um gestual com as mãos, braços, pés e
em que a maioria exerce a mesma função do intérprete, ou seja, a platéia também é capaz
de recitar poesias. Não existe um palco, mas o declamador está posicionado de modo
especial no cenário. Ele fica próximo ao fogo de chão, “objeto-totem” do ritual, e ao lado
dos dois músicos que tocam violão e gaita. O público está arranjado numa roda ou numa
meia lua, o intérprete está no centro. A posição diferencia o declamador dos ouvintes que
projetado para frente, assumindo uma postura tipicamente masculina. Os punhos muitas
vezes estão cerrados e os braços para o alto. Os movimentos são vários, ora a cabeça se
128
direciona para a cima, ora para baixo de acordo com o tema da narrativa. A declamação de
a partir de uma experiência histórica marcante na região, a das guerras, gerando um tipo de
narrativa (op. cit.: 274-275). No CTG Jayme Caetano Braun, durante a interpretação de
poesias, cujos temas envolvem guerras, os intérpretes também recorrem à simulação dos
conflitos. Eles simulam gestos como se estivessem portando uma lança, faca ou armas de
fogo.
Zumthor (1997), o poema, animado pela voz, se identifica ao que faz existir na ordem das
percepções, das emoções e da inteligência, provocando na maior parte dos humanos uma
reação afetiva muito mais intensa que o faria uma frase comum desenvolvendo os mesmos
temas (: 276). Nas Noites de Poesia, o ritmo é dado tanto pelos instrumentos musicais que
especial. Enfim, a voz, a corporalidade, assim como o conteúdo das poesias e a criação de
Crioula.
129
Homens, pompa e autenticidade.
principal do CTG. Eles não são vistos pelos informantes como “tão especiais como as
começa por volta das vinte e uma horas. È servido um jantar, cujo prato principal é o arroz
carreteiro. O evento conta também com música ao vivo, onde são cantadas músicas
dançam.
È interessante analisarmos o papel que a dança assume nos eventos realizados pelo
CTG. As danças são várias. Existem aquelas dançadas individualmente e aquelas dançadas
Comecemos pelo papel assumido pelos homens na execução dos ritos do CTG Jayme
Caetano Braun.
de papéis entre homens e mulheres. A mulher só dança com seu par, ou seja, ela dança
habilidade e destreza físicas. O repertório masculino é amplo. O homem pode dançar como
espécie de confronto com um outro. Eles dançam a chula e a dança de facões, esta
130
realizada com grandes facas que chegam a soltar faíscas quando se tocam. São nessas
existem dois dançarinos que dançam, cada um ao seu tempo, simulando uma disputa.
andamento melódico pode ser lento ou mais agitado, conforme a coreografia executada.
A coreografia é executada sobre uma lança que não pode em momento algum ser
tocada pelos dançarinos. A coreografia varia de passos mais simples aos mais complexos,
como dançar nas pontas dos pés ou com os joelhos, cambalhotas, saltos, etc. Dançar a chula
exige destreza, equilíbrio, condicionamento físico e uma postura corporal específica. Tais
esconder o seu “espanto” ao assistir pela primeira vez uma apresentação de chula, por
linguajar de meus informantes eu quase me soltei porteira afora. Como tenho um gosto
especial pela dança, me deixei levar pela tamanha habilidade de um dançarino. Seus
pestanejar, bati palmas. Talvez, absorvida demais pelo momento. Quando olho ao redor,
De repente, me senti como um colorado que por engano num domingo de Grenal
4
Mencionado no Capítulo anterior.
131
Emoções à parte, imagens estão sendo construídas e comunicadas no momento da
dança através do modo como a coreografia é executada. Altivez seria a palavra certa para
descrever a postura corporal dos dançarinos. Como na declamação das poesias, o corpo do
executor está completamente ereto e o peito projetado para frente. Dos pés, passando pelo
olhar até o alto da cabeça, o movimento é ascendente. A chula encena um dos valores
Nos ritos do CTG Jayme Caetano Braun, os homens recebem cuidados especiais.
pescoço, cintos e botas de couro. Além desses itens básicos, a vestimenta masculina é
composta por vários acessórios: faixas, esporas, manta, chapéu com barbicacho, faca, etc.
Em relação à indumentária feminina, não existem muitos acessórios. Fazem parte do traje,
feminina tanto na dança, como no uso de uma indumentária especial, é “modesta” quando
comparada aos passos expansivos e a parafernália usada pelos homens em seus trajes. Nos
Outro exemplo do papel de destaque assumido pelos homens nos ritos realizados no
Grande do Sul entre os anos de 1835 a 1845. No CTG Jayme Caetano Braun, a Semana
5
“Calções muito folgados, apertados nos tornozelos por botões e enfeitados nas costuras laterais com
pregueados variados” (Meyer, 1875: 143). Essa vestimenta foi introduzida no estado pelo mercantilismo
inglês, que não fornecera seus “pantalones”, fabricados para o exército turco, devido ao término antecipado da
Guerra da Criméia (cf. Costa, 1988 e Golin, 1983).
132
Farroupilha é celebrada com uma série de eventos. Além dos eventos já realizados no
Galpão, como as Noites de Poesia Crioula, Costelão e a Missa Crioula, acontece também
uma Cavalgada.
bandeiras do CTG, do Rio Grande do Sul e do Brasil pelas principais ruas de Brasília. O
desfile percorre o Eixo Monumental, passa pela Esplanada dos Ministérios e finaliza na
sede do CTG. Além dos cavalos e dos cavaleiros, segue também pelo cortejo um caminhão
carregado de prendas. Lembrando aqui que prendas não são objetos oferecidos a alguém
como dádiva ou presente, e sim mulheres com longos vestidos de mangas compridas, que
suportam o sol abrasador do meio dia no Planalto Central. O caminhão é decorado com
Nosso para, enfim, hastearem a bandeira do Brasil e do Rio Grande do Sul na entrada do
Galpão, aos gritos de vivas e chapéus jogados para o alto. O final da cavalgada é celebrado
Cavalgada são cedidos pela Cavalaria do Exército. Os cavalos têm uma ótima aparência:
gordos e com pelagens viçosas. O desfile acontece num dos lugares mais representativos de
Brasília, a Esplanada dos Ministérios. Não é sem motivo que esse local foi escolhido. A
do país. Para completar esse aspecto triunfal do evento, o cortejo é acompanhado por um
veículo do DETRAN, por uma viatura com a sirene soando do Corpo de Bombeiros, por
133
um carro da Polícia Militar com muitas luzes acesas, além de um enorme caminhão da
Cavalaria do Exército que serve para fazer o transporte dos animais. O ritual é planejado
para que cause impacto: homens com uma indumentária especial desfilam pela Esplanada
dos Ministérios, montados em belos cavalos, acompanhados pelas luzes dos bombeiros e da
polícia militar.
rituais. Existe toda uma suntuosa etiqueta seguida pelos informantes na realização dos ritos.
em casa para que nas Noites de Poesia, a declamação seja feita sem atropelos e
esquecimentos. Nas danças, a execução das coreografias precisa ser perfeita. Para isso são
realizados aos finais de semana, ensaios que duram um dia inteiro. Nos rituais, atendendo
O vestido deverá ser, preferencialmente, de uma peça (...); Saia de armar: quantidade livre
(sem exagero). (...) O vestido pode ser de tecido estampado ou liso, sendo facultado o uso
de tecidos sintéticos com estamparia miúda ou “peti-pois”; Vedado o decote; Sapato com
salto cinco, ou meio salto, que abotoe do lado de fora, por uma tira que passa sobre o peito
do pé. (...) Facultado o uso de brincos de argola de metal. Vetado os de fantasia ou de
plástico (...) É permitido o uso discreto de maquiagem facial, sem batons roxos, sombras
coloridas, delineadores sem demasia (...) Livre a criação de vestidos, quanto a cores,
padrões e silhuetas, dentro dos parâmetros acima enumerados (Estatuto do Regulamento de
Prenda) 6.
É preciso deixar claro, tanto para os espectadores como para os fomentadores, que
meus informantes: “Tudo é feito de forma genuína e autêntica”. Quando algo parece fugir
do padrão, existe quase que uma explicação científica para o fato. Presenciei uma
134
(bombachas, camisas, botas e lenços). Apenas um dançarino destoava desse padrão, usando
chapéu de palha em forma de cone, uma calça franjada sobre a qual estava amarrada uma
espécie de saiote. Quando esse dançarino entrava em cena, o locutor do evento se apressava
em dizer:
Para aqueles que estão achando estranho esse traje, vide Saint-Hilaire.
Fornecendo ainda, a página e ano da obra para o público poder conferir em casa. A fala do
locutor não é algo isolado no que se refere ao uso dos “documentos oficiais” para tornar
[o CTG] é uma entidade sem fins lucrativos, com fins filantrópicos e culturais, que tem por
finalidade o culto das tradições do Rio Grande do Sul, tais como: história, dança, hábitos e
linguajar típicos, sempre baseados em dados históricos e culturais (grifo meu).
Em última instância, recorre-se aos dados históricos para criar, legitimar, comprovar e
manter a tradição 7.
privilegiados dessa exibição é o Costelão, o evento mais famoso realizado pelo CTG Jayme
Caetano Braun. Famoso porque para dele participar é preciso fazer uma reserva com uma
7
Voltaremos a essa questão em outros momentos desta Tese.
135
semana de antecedência. O Costelão reúne um número bastante significativo de pessoas
que não participam efetivamente do CTG. Fazendo reserva e pagando doze reais, qualquer
um poderá saborear uma deliciosa costela assada na brasa. Foi o que eu fiz num desses
Chego no CTG por volta das 11:30h, alguns carros já se encontram no amplo
entrada, expondo mercadorias para a venda. Numa delas, facas e espetos de churrasco; em
outras, bolsas de couro, bombas e cuias de chimarrão. E finalmente, uma mesa com duas
pessoas responsáveis pela venda dos ingressos. Pago meu ingresso, um senhor me avisa: “A
sua mesa é de número 1. Aí lá vão ter outras pessoas. É uma mesa grande e lá você se
entrar e ver aquela quantidade de mesas de tábuas e longos bancos lotando o salão, foi a
sentado em minha mesa. Ele não freqüenta o CTG, mas é gaúcho. Diz não perder um
Costelão. Logo, chega mais um grupo. Não eram gaúchos, mas um deles era descendente
de alemães. Uma longa conversa sobre a colonização alemã no Brasil tem início.
Não é possível dizer que apenas gaúchos participam desses eventos, mas uma boa
parte do público tem alguma ligação com o Sul ou foram convidados por membros do
CTG. Afora as pessoas pilchadas, desfilam pelo salão homens com camisetas de times
gaúchos ou com frases do tipo: “Nesse peito bate um coração gaúcho”. Do início ao fim, o
evento é preenchido com músicas tradicionalistas que lembram aos ouvintes: “Deus é
gaúcho” ou “Patrão velho, muito obrigado, por este céu azul (...) por ter me feito gaúcho”.
136
As interrupções ficam por conta de um locutor que anuncia presenças ilustres como antigos
quinze quilos. Os espetos são trazidos e fincados em toras de madeira, dispostas numa das
extremidades das mesas. Quando as costelas chegam, as pessoas correm para a carne e
acompanhadas por um grupo de amigos, colegas de trabalho ou com a família. Metade das
mesas, que comportam cerca de vinte pessoas, é preenchida por indivíduos que mantém
alguma relação de parentesco ou de amizade entre si. Num domingo fiz um levantamento
das pessoas ali presentes. Fui em todas as mesas, perguntando onde moravam, a profissão e
137
convidado por um
colega de trabalho
Torres (RS) Asa Sul Engenheiro Civil Amigo de um ex-patrão
do CTG
Minas Gerais Lago Sul Empresária Amiga de
freqüentadores do CTG
Bagé (RS) Fortaleza Funcionária Pública Seus pais freqüentam o
CTG
Maranhão Setor Militar Militar Veio comemorar o
aniversário de um
amigo gaúcho.
São Paulo Asa Norte Jornalista Não participa. Foi
convidado por um
colega de trabalho
Rio Grande do Sul Plano Piloto Bancário Não participa. Foi
convidado por um
colega de trabalho
Brasília Taguatinga Dona de casa Não participa. Foi
convidada por amigo
gaúcho
O quadro acima nos permite caracterizar a platéia do Costelão. Ela não é composta
unicamente por gaúchos ou por pessoas que freqüentam o CTG. Grande parte dos presentes
não é natural do estado do Rio Grande do Sul. No entanto, muitos estão ali porque foram
uma festa. A bibliografia sobre esse assunto é bastante extensa. Alguns autores colocam as
festas como momentos em que são gerados estados de efervescência; momentos em que as
ordens sociais são de alguma forma transgredidas (cf. Durkeim, 1996; Duvignaud, 1983 e
Maffessoli, 1985). Esses são alguns exemplos de definições “positivas” da festa, ou seja,
são eventos que fazem, que dizem e que refletem mecanismos sociais. No entanto, quando
as festas são realizadas em sociedades complexas, temos que lidar com a dimensão da
138
Ao contrário dos autores citados anteriormente, os quais procuram sublinhar as
funções positivas da festa, para Vianna (1988) os bailes funks “não servem para nada” no
sentido em que não produzem identidades; não são locais propícios para a formação de
novas amizades; nenhuma regra social é contestada; não são observadas inversões de papéis
ou valores (: 105). Os bailes são apenas mais uma opção de agrupamento e de lazer
metropolitanos, onde existe sempre a opção para o indivíduo de mudar e de circular entre
vários mundos (op. cit.: 110). Os bailes são somente uma celebração da alegria. A festa é a
afirmação inconseqüente e irresponsável de que a vida vale a pena ser vivida (op. cit.: 108).
Para muitos participantes, a festa do Costelão pode não servir para muita coisa. No entanto,
esse é o evento que mais tem poder de mobilização e é o maior veículo de divulgação da
entidade. E essa festa ajuda a reunir e a diferenciar alguns presentes, ou melhor, seus
promoventes.
parece que nos transportamos para os tempos dos grandes banquetes. Diante das costelas,
saltitam pelo salão, degustando e brincando com os ossos das costelas. O Costelão é um
apropriam-se da ênfase num determinado tipo de comida para se afirmarem enquanto tais.
homens e às relações entre os grupos. São critérios que alguns grupos utilizam para se
diferenciarem uns dos outros (op. cit.: 196). O que isso significa no contexto do CTG
139
Em primeiro lugar, a alimentação nos domingos de Costelão adquire o valor do
“comer junto”. O ato de comer assume uma dimensão que se aproxima da idéia sugerida
por Bakhtin (1996) de banquete, quando da análise desta imagem nas obras de Rabelais. O
banquete está ligado ao sentido de festa (celebração), sendo muito diferente do comer e
beber cotidianos, que fazem parte da existência de todos os indivíduos (op. cit.: 243). O
meio a uma quantidade enorme de carne e bebida. Enfim, é uma comemoração que celebra
reduz aos gaúchos, o evento contribui para uma espécie de coesão. O ato de comer junto
participantes (cf. DaMatta, 1987). No Costelão, todos comem em longas mesas, dividindo
hora para todos. Comer e beber junto tem uma função social. E mesmo que isso se faça
idéia de comunidade.
somente através das pilchas, das camisetas e das canções, mas também através da própria
140
Um saber específico é outorgado ao grupo: só os gaúchos sabem preparar um bom
churrasco.
e Carmem Rial (1997) nos traz um exemplo bem interessante, voltado ao “contexto
gaúcho”. O caso se deu, em 1990, por ocasião da escolha do sanduíche que faria parte do
menu, figurasse o hambúrguer simples, apresentado nos cardápios de todo o mundo com 45
com 112 gramas de carne, ou seja, 77 gramas a mais do que os outros sanduíches da rede.
“Nesta ocasião, a imprensa local sublinhou, com orgulho, a abdicação final do McDonald‟s
frente às tradições dos pampas” (op. cit.: 168). Essa passagem não ilustra apenas o gosto
do gaúcho por carne vermelha. Ela nos permite pensar sobre o caráter simbólico de alguns
pratos. O churrasco é um prato socialmente valorizado pelos gaúchos. E por seu papel
simbólico particular pode ser pensado enquanto um prato-totem: ele é o prato das festas,
dos rituais; ele é um traço distintivo de uma identidade (op. cit.: 169).
pessoas. A todo o momento nos eventos realizados no CTG Jayme Caetano Braun, seus
onde nasceram. Outro aspecto interessante refere-se aos eventos de fala. Numa conversa
informal com algum representante do CTG, a maneira como a voz é colocada e as palavras
utilizadas são completamente diferentes de quando se fala para um público ou num evento
importante.
141
Em apresentações públicas, a entonação se torna completamente diferente, o sotaque
muito mais carregado. Os termos utilizados e a forma como são pronunciados, reforçam
Central por dois motivos: em primeiro lugar pelo fato de não andar devidamente pilchado
Ele tava lá, presidente da Federação, falando no microfone, falando assim de alpargata,
aquele chinelo, sem lenço, com uma camiseta, sem a camisa, sem o chapéu. Pra ele tanto
faz, ele está bem daquele jeito. Então, já se perde um pouco, entendeu? Como eu vou te
falar? Já se perde um pouco da tradição. Porque se hoje eu coloco uma blusa dessas [me
aponta a camiseta que ela estava usando] com uma saia, já vai se perdendo, se perdendo, se
perdendo. Aí chega uma hora que eu vou ser uma baiana ou uma gaúcha? Não sei! Então, a
gente cultua muito o passado, essa coisa bem tradicional (...) Ele [presidente da Federação]
não tinha esse zelo. Por exemplo, ele falou lá na frente (...) “Não vamos deixar a peteca
cair”. Gaúcho não fala nesses termos. Gaúcho vai falar: “Vamos segurar as rédeas do potro,
vamos... vamos agradecer ao Patrão Celeste do Céu”. Ele usa termos gauchescos para se
expressar. Mas não porque é forçado, é porque é natural dele, entendeu?
expressão particular está sendo performada, ou seja, são modos de comunicação verbal
(Bauman, 1986: 02). No âmbito do CTG Jayme Caetano Braun, essa ação verbal
corresponde ao reconhecimento do ser diferente frente aos que são diferentes e da unidade
frente aos que são iguais. O “ser diferente” através da invenção de eventos que
comuniquem essa diferença, torna-se muito visível nas Missas Crioulas, que são
relaborações das missas católicas. As Missas Crioulas são realizadas em datas especiais,
como nas comemorações do aniversário do CTG ou por ocasião das festividades da Semana
Farroupilha.
142
são dispostas pelo salão para acomodar os “fiéis”. Do lado direito do altar, uma cruz, um
são trazidos: bandeiras do Rio Grande do Sul e do CTG Jayme Caetano Braun; um facão e
uma garrucha; um pão caseiro e um chifre de boi, no qual o padre beberá o vinho. Quase
todos os presentes, inclusive, o sacerdote, estão vestidos de forma especial, ou seja, com as
pilchas.
Nas missas, o acionamento dos termos gauchescos é uma estratégia muito comum.
Deus é o Patrão Celestial, Xirú Velho ou Patrão do Céu, Jesus é o Divino Tropeiro e a
Virgem Maria assume a posição de Primeira Prenda do Céu. Numa missa que tive a
tinha um sotaque quase imperceptível. Durante todo o evento, o padre ficava com um
“roteiro” nas mãos. E o roteiro era longo: quatorze páginas de falas e de cantos, entoados ao
som de uma gaita, violão e baixo. Em alguns momentos, ele parecia se esquecer de usar
Dias depois do evento, ainda pensando nesses pequenos lapsos cometidos pelo
padre e inquieta com seu sotaque “diferente”, fiz alguns comentários sobre a missa e fui
informada de que ele não era gaúcho. Minha inquietação aumentou frente à revelação.
Como um padre não sendo gaúcho e muito menos tradicionalista se dizia “mais faceiro que
143
Patrão celestial, venho chegando, enquanto cevo o amargo das minhas confidências porque,
ao romper da madrugada e ao descambar do sol, preciso camperear por outras invernadas e
repontar do céu a força e a coragem para o entrevero do dia que passa. Eu bem sei que
qualquer guasca, bem pilchado, de faca, rebenque e esporas, não se afirma nos arreios da
vida, se não se estriba na proteção do céu (...) Perdoa-me, Senhor, porque, rengueando pelas
canhadas da fraqueza humana, de quando em vez, quase sem querer eu em solto porteira a
fora... Êta, potrilho chucro (....) Que a Tua vontade leve a minha de cabresto para todo o
sempre até a querência do céu. Amém.?
Quais seriam seus motivos? Por que estava ali? Sua presença no Galpão era devida às redes
de relações travadas entre ele e alguns freqüentadores do CTG. E o que tornava a sua
performance eficaz - mesmo não podendo se valer do uso de um sotaque especial - era o
roteiro que tinha nas mãos. Apesar dos erros, o sacerdote se mostrava atento em seguir
São, por excelência, atos performáticos. São atos que traduzem ensaios disciplinados de
atitudes consideradas pelos seus executores como sendo corretas (Tambiah, 1985: 132).
mesmos.
unidade. Essas situações tornam-se assim, sinais diacríticos. Através da execução de uma
144
Se os rituais não têm a propriedade de criar identidades sólidas, capazes de
gaúcho em Brasília.
8
Retomaremos essa questão na Parte III, quando da discussão conceitual sobre a idéia de grupo.
145
CAPÍTULO VI
No contexto estudado, falar sobre a migração para Brasília nos leva ao universo da
tradição. Não somente porque nos permite pensar sobre a apropriação de fatos tradicionais
Braun, a idéia de tradição confunde-se com a própria noção do “ser gaúcho”. Dessa forma,
num segundo momento, o propósito deste capítulo é o de demonstrar como tais vinculações
são acionadas.
participantes do CTG Jayme Caetano Braun. As entrevistas foram feitas com pessoas de
faixas etárias diferentes, variando entre dezessete e setenta anos. Como a mobilidade
privilegiados aqueles que estão em Brasília por mais de cinco anos 1. Tal recorte permite
que tenhamos, através da investigação de relatos de vida, uma melhor idéia do processo de
1
O recorte temporal foi o mesmo utilizado na análise do processo migratório vivido pelos cantores
nordestinos. Vide Capítulo III.
146
A chegada e a vivência em Brasília: a conquista de uma cidade.
reside nas cidades satélites do Distrito Federal. Todos os informantes moram em Brasília
Grande parte dos informantes veio para a capital federal em função de cargos
públicos e para cumprir obrigações militares. Assim, a fixação no Setor Militar Urbano tem
uma razão de ser. A presença de militares no quadro social do CTG Jayme Caetano Braun é
muito significativa. São homens que estão numa faixa etária que varia entre os trinta e
setenta anos. Muitos têm curso superior. Podem ser médicos, advogados, mas quase todos
seguem ou seguiram a carreira militar. Para se ter idéia desse fato reproduzo uma entrevista
- O patrão é militar, ele mora aqui no Setor Militar Urbano. O capataz-geral é militar da
reserva. A gente mora na Asa Norte. O capataz, militar... [risos].
- É um exército então? (pesquisadora)
- É de leve... O sota-capataz, militar, trabalha aqui no Hospital das Forças Armadas. O
primeiro agregado da guaiaca, militar também, só que ele já está na reserva. O segundo
agregado, militar, também. Ele está na ativa, mora aqui no Setor Militar. O agregado das
leis, militar [risos]. Ele já está na reserva, mas é advogado também. O agregado das falas
também é militar. Trabalha aqui no Hospital das Forças Armadas e trabalha numa outra
clínica também. Eu, não sou militar [risos], mas trabalho numa área militar. Trabalho aqui
no Hospital das Forças Armadas. O posteiro da invernada desportiva, eu não sei, mas acho
que ele é militar. (...) No CTG, são cerca de duzentos e poucos sócios. Tem muito militar
associado. Então, é descontado [contribuição mensal para a entidade] em folha e tal.
sexo masculino. A presença majoritária dos homens não impede a participação das
mulheres. No entanto, as mulheres não procuram o CTG, sozinhas. Na maioria das vezes,
147
seus maridos iniciam as idas à entidade e logo depois, elas começam a acompanhá-los,
juntamente com os filhos. São os homens que acionam a família para a participação no
No contexto aqui estudado, o processo migratório não pode ser caracterizado como
um ato solitário ou com uma experiência individual. A migração é uma experiência vivida
no seio da família. O migrante trouxe consigo sua esposa e filhos. Nos eventos do CTG
podemos ver a participação de três gerações: avôs, filhos e netos. A referência aos valores
de uma cultura originária do Rio Grande do Sul, permanece forte mesmo na segunda e
terceira geração.
pessoas. Nas entrevistas, frases que mencionam a mobilidade espacial são comuns: “Militar
anda de um lado para o outro” ou “Já morei em todo canto do Brasil”. Antes de Brasília, os
brasileiras.
amanhã, em função de sua carreira profissional, poderá estar em outra cidade. Essa é a
percepção dos informantes ao falarem das razões pelas quais estão em Brasília. É nesse
contexto que a cidade aparece nos relatos sobre as experiências migratórias vividas. A
princípio, Brasília não apresenta nada em especial que justifique o “estar aqui”.
humanos (cf. Durham, 1984; Sayad, 1998; Assis, 1999; Sales, 1999; Cavignac, 2001 e
148
Spitzer, 2001). No caso dos participantes do CTG Jayme Caetano Braun, as motivações
condição financeira do indivíduo ou de ascensão do status social. Ela não foi escolhida em
função das oportunidades oferecidas. Na percepção nativa, Brasília não é pensada como a
suma, migrar para Brasília não se constitui em um projeto de vida que foi planejado e
sonhado.
vinda para Brasília. O “antes” não é visto de forma negativa. O fato da migração não é
explicado com frases do tipo: “Estava ruim lá, vim pra cá”. O que motivou a migração não
apenas um: cumprir obrigações profissionais. Para a maioria, a migração não foi um
empreendimento feito no vazio. Os informantes não se constroem como aqueles que vieram
tentar a vida numa nova cidade sem saber o que lhes esperava. Todos sabiam o que estava
A possibilidade do deslocamento para a capital federal pode ter gerado reações não
muito positivas. Muitos encararam a transferência para a cidade com um certo desgosto.
Em primeiro lugar, porque a vinda para um novo lugar significaria o abandono de redes
empreender todo um esforço em construir novos laços e redes sociais. A segunda fonte do
percepção sobre o local. Brasília era vista como uma cidade “esquisita”, “fria” e
149
conseqüentemente, “difícil para se fazer amizades”. Não obstante, tais percepções vão se
Brasília. A escolha pela cidade é feita depois de aqui fixados e não antes. Mesmo podendo
escolheram Brasília para morar e criar seus filhos 2. Podemos citar como exemplo, militares
Para aqueles que fazem ao longo do processo migratório a escolha por viver na
constrói novos laços sociais. A cidade compulsória vista meramente como o “lugar de
Eu no início não gostava não. É diferente. Lá no Sul... Eu achei assim, pessoal lá pelo
menos é mais receptivo. Chega e já se enturma. Eu tive dificuldade aqui. Eu aprendi a
gostar daqui, mas no inicio eu não gostava não. Agora eu gosto, e não quero ir embora.
No começo foi difícil, mas agora ... Minha relação com Brasília é muito boa. Assim, acho
que acolheu bem. Brasília é uma mistura de todas as raças e culturas do Brasil. Então, eu
acho que acolheu bem os gaúchos.
2
Sobre migrantes “compulsórios” ver Roque de Barros Laraia (1996), Candagos e Pioneiros, e José Pastore
(1969), Brasília: a Cidade e o Homem.
150
duradouro. Ao analisar processos de identificação entre imigrantes brasileiros na região de
Boston (EUA), Teresa Sales (1999) comenta que na redefinição de expectativas temporais,
a possibilidade da volta para o lugar onde nasceram, não é extinta, mas associada a um
muitos participantes do CTG Jayme Caetano Braun, a volta não acontece e o indivíduo faz
Alguns indivíduos estão aqui desde a construção da capital federal, outros vieram nas
Caetano Braun, podemos dizer que o fluxo de migrantes gaúchos para a capital é constante
visitante, um histórico detalhado dos fluxos migratórios dos gaúchos para as bandas de cá.
músicas típicas e causos, introduzindo a cultura nestes pagos”. A descrição continua com a
menção ao fluxo de criadores e agricultores que aqui se fixaram para “colonizar e povoar a
151
terra”. E finalmente, o relato é encerrado num ano e época específicos: 1963, a época do
presidente João Goulart, “o principal responsável pela vinda de militares e policiais federais
para Brasília”:
Em 1963, quando assumiu João Goulart, gaúcho de São Borja, trouxe muitos conterrâneos,
principalmente da Polícia Federal e Militar. Estes gaúchos aqui radicados fundaram
Entidades Gaúchas (...) 3.
de brios e orgulho da história da migração gaúcha para o Planalto Central. Nas descrições
do site, o migrante gaúcho é construído como o conquistador. Eles procuram deixar claro
que não são migrantes quaisquer. Eles não vieram tentar a vida. Eles vieram “fazer a vida
da nova cidade”.
negativa em torno do migrante que se desloca das regiões rurais para as grandes cidades.
imigrantes à cultura brasileira, aponta para o fato de que geralmente essas pessoas são
3
Dados disponíveis em fonte eletrônica: www.ctgjcb.com.br.
152
do migrante, para o migrante gaúcho não basta construir a sua trajetória de forma vitoriosa.
que vence nos grandes centros urbanos do centro do país é motivo de orgulho para seus
conterrâneos. No Rio Grande do Sul, tal vitória parece não ser muito festejada. O
Penso nas cobranças dos gaúchos a Elis Regina e na expressão “vendidos”, que tantas vezes
ouvi ser usada em referência aos artistas que optaram por viver e trabalhar no centro do País
– para qualquer brasileiro, vencer no centro do País é motivo de orgulho. Penso que ouvi
em Porto Alegre alguém dizer que Lupicínio Rodrigues não era um compositor gaúcho, que
ele fazia música brasileira – o fato de ser negro já parecia separá-lo um pouco da cor local
(op.cit.: 264).
idéia do migrante não é aquela que o coloca simplesmente como o indivíduo que procura
criar e espalhar a cultura do Rio Grande do Sul. A migração possui objetivos claros,
definidos e que precisam ser verbalizados e registrados em atas, livros e poesias afixadas
em murais do CTG:
(...)
Enfrentamos terra hostil
Enfrentamos o desconhecido
Para ser reconhecido,
O celeiro do Brasil
Hoje, no Planalto Central
Estamos plantando e criando
E o Brasil alimentando
Com nosso dinamismo
(...)
153
A explicação para a migração gaúcha assume um tom mítico. Objetos totens, armas
O gaúcho sempre foi gaudério por natureza, seu espírito de liberdade ultrapassou as
fronteiras do Rio Grande e conquistou o território nacional. Distância, obstáculos e perigo
nunca foram problemas, pois contava com cinco aliados: as quatro patas do cavalo para
cruzar caminhos e descobrir novas querências e a lança em riste para defender-se de
possíveis inimigos. Assim aconteceu o desbravamento do Brasil a partir do oeste de Santa
Catarina e Paraná, após Mato Grosso e Goiás (www.ctgjcb.com.br).
Se trocarmos as patas do cavalo pelas caravelas, podemos ter a sensação de que estamos
diante dos grandes exploradores europeus que descobriam o “Novo Mundo” no tempo das
de propagação e de divulgação da cultura gaúcha. Como se existisse uma missão por trás da
atitude de migrar: o enraizamento dos traços da cultura gaúcha pelo território brasileiro. As
território nacional, como mostra outra poesia afixada no quadro de avisos do CTG:
154
Tudo em missão
Em nome da nossa tradição.
“fortes” e “aguerridos”, esse povo diz não temer em extrapolar as fronteiras de sua terra
na evocação das noções de ser gaúcho e de raça. Na verdade, tais noções são
indissociáveis: ser gaúcho é uma questão de raça e a raça em questão é a de ser gaúcho.
Por essas percepções, ser gaúcho é antes de tudo uma qualidade. O gaúcho é forte,
corajoso e destemido. A aquisição de tais qualidades pode ser dada pela naturalidade, ou
seja, é preciso nascer no estado do Rio Grande do Sul. O homem seria assim, uma extensão
natural da terra em que nasceu e sua “essência” brotaria daí (cf. Costa, 1997). A
gauchicidade pode ser também transmitida por antecedentes próximos, ou seja, são gaúchos
características naturais dos que lá nasceram ou dos que por descendência, as receberam em
Ser gaúcho também poder ser entendido como uma questão de raça. Por ocasião da
soldados gaúchos que integravam a Força de Paz da ONU no Haiti. Ele anunciava
155
Poderíamos dizer que o discurso da essencialização de um povo e da construção do
documentos oficiais com a intenção de apresentar e tornar visível o CTG. Enfim, é uma
deslocamento seja para Brasília, seja para qualquer outro lugar, não é vista como um
acontecimento especial. Quando indagados sobre a idéia de vir para a capital e de como foi
Tive que vir, em função da transferência. No começo foi difícil, mas depois, acostumei.
Durante as entrevistas, eles falavam longas horas sobre as atividades do CTG, sobre
migração parecia não despertar nos informantes, vontade de discorrer sobre o fato. Os
relatos sobre a definição da situação presente, das condições de sua residência anterior à
de quase todos os estudos sobre migração - eram feitos sem emoção e vontade.
Creio que a apatia dos informantes quando ao relatarem suas histórias sobre a
experiência da migração, deve-se a alguns motivos. Num primeiro momento, mudar para
Brasília não representa nada em especial. Conforme foi mencionado anteriormente, vir para
Brasília não foi uma decisão. Estar aqui transcende, inicialmente, aos gostos ou simpatias
individuais a respeito da cidade. Pelo fato de muitos já terem vivido em várias regiões do
156
Brasil, morar em Brasília poderia representar a mesma coisa que o deslocamento para outra
adaptação. E nem se esperava muito do fato de aqui viver. Brasília era vista como uma
O fato da migração para Brasília pode não ter nada de especial. Não obstante, no
cidade. A conquista é construída num nível tão abrangente a ponto dos jovens substituírem
o uniforme escolar pelo uso das bombachas, sem que a população local estranhasse o fato.
Todos parecem estar acostumados aos hábitos gaúchos. O depoimento abaixo é de uma
jovem, nascida no Rio Grande do Sul, mas criada em Brasília desde os quatro anos de
idade. A conquista tão enfatizada em atas, estatutos e demais documentos oficiais do CTG
Acho que o pessoal... já é normal assim. Tem um pessoal que vai de bombacha pra escola,
tinha amigos que iam. Levava chimarrão pra aula, pra faculdade. É legal isso, já tá meio
normal. Pessoal já acostumou. Acho que é uma das culturas bem fortes aqui em Brasília é a
cultura gaúcha. (...) Lá da Revolução Farroupilha já vem ... a idéia de liberdade, de amizade
de tá junto. Eu acho que é meio que isso, sabe? Trazer a cultura para outros lugares, reunir
mais gente possível...
eles não apenas participam assiduamente das atividades desenvolvidas, como também
157
assumem compromissos administrativos com a entidade, dedicando boa parte de seu tempo
livre ao CTG.
com o Centro de Tradições Gaúchas na capital. As explicações para o fato são de cunho
mais geral e se referem ao estabelecimento redes de amizade em uma nova e até então,
desconhecida cidade. Chamo atenção para essa “função” dos CTGs: propiciar a formação
ressaltado por muitos pesquisadores do assunto (cf. Beserra, 2002; Costa, 1997 e Fonseca,
1993).
pago” de estarem mais perto do “Sul”. A inserção dessas pessoas nos CTGs surge quase
que como uma conseqüência da migração. O fato de participarem do CTG em Brasília, não
merece muita explicação. Ele é óbvio para os informantes: longe da terra natal, os
aqui instalados fossem mais unidos. Vejamos a longa lista dos depoimentos abaixo:
O pai é militar e daí a gente... ele pega transferência. (...) Aí a gente veio parar aqui em
Brasília. Daí, o pai se juntou com outros gaúchos desgarrados do pago e resolveram fundar
o CTG. E daí desde então... A gente foi criado, meus irmãos, no CTG. (...) Meu avô diz que
quando o meu pai era pequeno ele não gostava, mas depois aqui em Brasília ele passou a
gostar.
Lá no Sul eu nunca fui a CTG. Aqui que eu comecei a praticar com os gaúchos. Porque lá
no Sul, nunca. (...) Depois eu me casei, saímos de Bagé, já fomos morar aqui. Meu marido é
militar né, vai pra cá, vai pra lá... (...) Aí, depois vim morar em Brasília. Minha filha tinha
sete anos, o meu filho tinha nove. (...) Mas, passamos muito tempo... Não tinha nada aqui.
Ao contrário, a gente até contava os gaúchos que tinha dentro de Brasília. Na 306, aonde eu
fui morar mesmo, meu filho até hoje tem o apelido de gaúcho porque era uns dos únicos
gaúchos que moravam ali. Dava pra contar nos dedos os gaúchos que tinha em todo o DF.
Aí depois como a gente freqüentava o Pandiá Calógeras, era baile, né, aí começou: “Olha,
têm uns gaúchos assim pra fazer carreteiro, pra isso, pra fazer aquilo”. Aí, foi se juntando,
se juntando.
158
Lá no Sul eu nunca ia, ninguém lá de casa ia. Um ou outro baile a gente ia. Mas, participar,
estar aqui toda a semana, foi aqui. Chegava do serviço e vinha pra cá e ficava aqui. Aí, saía
madrugada, ia pra casa, ia pro serviço, todo dia assim. Aí, lá não. (...) Maioria do pessoal
gaúcho aqui se uniu bastante. Quem veio pra cá gaúcho, é mais unido. “Aí, vamo pra um
churrasco no CTG?” É muito bom e tal. A gente vem, participa, gosta e começa a
freqüentar. Aí começou assim e até hoje.
A minha relação foi o seguinte. Quando eu morava no Sul, eu não freqüentava CTG. É, isso
que acontece. Quando a gente tá lá no Sul... Eu tive lá agora, fiquei um mês lá... Quando
você tá no Sul, você não dá tanto valor, entendeu? Aí você longe do lugar, parece que você
vindo pro CTG parece que tá mais perto, entendeu? E praticamente quase todos hoje que
freqüentam aqui o CTG, quando moravam lá no Sul, poucos freqüentavam o CTG. Então,
assim, aqui você dá mais valor. Lá, você não dá tanto valor. Eu acho que é porque você tá
lá. Quer dizer, você não dá tanto valor à cultura. E aqui é assim, você tá distante e tal, aí,
você vem pra cá. Lá, eu não ia mesmo, não ia. Freqüentava só na Semana Farroupilha. Mas,
freqüentar toda a semana, vir pros eventos, eu não ia. E assim, maioria, parte deles aqui não
freqüentava assiduamente o CTG lá.
A união dos gaúchos no CTG Jayme Caetano Braun pode significar, a princípio, a
consciência de uma espécie de sentimento identitário fornecido pelo fato dos participantes
compartilharem uma mesma identidade regional. O sentimento do “ser gaúcho” é o que eles
Rio Grande do Sul. E como vimos nas páginas anteriores, ter ascendentes gaúchos também
O que leva alguém a procurar o CTG em Brasília pode ser o fato de ser e/ou sentir-
se gaúcho. No entanto, outros elementos podem se impor a tal motivação propiciada pela
naturalidade ou pela sua transmissão. O que pretendo enfatizar é que a entidade em alguns
Muito mais que um espaço para reviver as coisas do Rio Grande do Sul, acho que a
principal função do CTG, também apontada por Bernadete Beserra (2002), quando do seu
159
imigrantes e migrantes precisam para sobreviver num outro país ou numa outra cidade. É
interessante sua constatação de que das quatorze famílias que integram um CTG em Los
Angeles, apenas quatro são do estado do Rio Grande do Sul. Participam do CTG,
(op.cit: 02).
sentido de comunidade imaginada num contexto em que os brasileiros estão presentes como
minorias. Bares, clubes, templos religiosos – e por que não Centros de Tradições Gaúchas -
um contexto essencialmente instável e estranho (op. cit.: 51). Nesse sentido, a participação
Apesar das famílias gaúchas (por naturalidade ou por transmissão) serem a maioria
uma prenda vestida a rigor: “Estou fazendo uma pesquisa sobre gaúchos freqüentadores de
CTG, será que a gente podia conversar um pouquinho?” Muito solícita, ela se desculpou:
“Perdão, mas é que eu não sou gaúcha”. E completou frente, talvez, a minha expressão de
espanto: “Meu marido é gaúcho e eu venho com ele”. Bem, para um observador externo
como eu, não era possível percebê-la como uma mera dama de companhia. Ela estava
pilchada, sabia todos os passos de dança e ficava na porta do CTG recebendo os convidados
no dia de Costelão. O que motivou essa “carioca tradicionalista” a fazer parte de um Centro
160
de Tradições, que cultua manifestações culturais extremamente diferentes do lugar em que
ainda não estabeleceram relações sociais na cidade. O CTG pode ser uma porta de entrada
para o estabelecimento de redes sociais. Para além do fato da atualização do ser gaúcho fora
motivos pelos quais os CTGs são procurados e freqüentados. A entidade que, inicialmente,
grupo.
Porque lá mesmo em Bagé, da terra que eu sou, não existia. Assim, baile, tradição era só
fora. Ali não tinha e a gente nunca procurou também. Quando a gente ia pra fora nas férias,
pra casa de meu tio, a gente ainda participava dos bailes lá, né, lá da campanha, como a
gente chama, né.
O Rio Grande do Sul é construído como um lugar em que existem poucos CTGs. No
Existem poucos Centros de Tradições Gaúchas no Rio Grande do Sul? Não é o que
161
uma revelação importante: “Também, eu não procurava”. Em seu estado de origem, os
CTGs não faziam parte do contexto dos informantes. Eles não sentiam necessidade de
dificultar o acesso aos Centros com constatações do tipo: “Lá, eles não existiam”.
é explicado por meio de algumas alegações. Uma delas é: “Lá”, eles tinham pouco tempo
compromissos não diminuíram quando aqui chegaram. Afinal, não foi o cumprimento das
migração? Outras alegações fazem menção a uma possível falta de interesse do gaúcho em
justificativa nos deixa curiosos para saber então, como se explicaria a presença maciça dos
CTGs no Rio Grande do Sul. No entanto, é nesse contexto que surgem outras revelações:
“Aqui eu sou mais gaúcho do que lá”. A idéia de “ser mais gaúcho” fora de sua terra natal é
a questão que merece a nossa atenção no momento. Sua análise será feita a partir de um de
necessidade de construir uma idéia de que tudo na entidade é gaúcho, é uma constante. Os
162
essa questão. A tentativa de se criar um “clima do Sul” pode ser exercida de forma
insistente.
Quando indagados sobre as atividades ali promovidas, nunca é suficiente dizer que
no CTG Jayme Caetano Braun existem comidas típicas e danças folclóricas. Os adjetivos:
folclórico precisam se tornar mais específicos, ou seja, mais gaúchos. Por isso, é necessário
Aqui você vai ter comida típica, música ao vivo gaúcha, música regional. Tudo é gaúcho.
São músicas regionais. Tudo nosso é voltado para o regionalismo. Danças folclóricas, mas
folclóricas gaúchas, sabe?
uma certa noção de “grupo” a ser transmitida para o público externo. Se no CTG tudo é tão
gaúcho, são também gaúchas as pessoas que lá estão. Apesar do Costelão 4, não passa pela
festividades.
construção de uma possível identificação com o estado do Rio Grande do Sul, que pode
pesquisadora. Por várias vezes, fui indagada por alguns visitantes: “Você é de qual região lá
do Sul?”. Fazendo parte de eventos em que quase a maioria dos presentes vestia uma
estando lá, minha naturalidade parecia estar previamente dada. A transmissão da imagem
4
Evento que reúne uma quantidade significativa de não gaúchos. Ver Capítulo I.
163
que pretende construir o ambiente como um lugar especial através da organização do
pelos membros do CTG. Inúmeras vezes, um rapaz que trabalha no bar do CTG, que não é
gaúcho e nem participa da entidade, me dava sua opinião sobre o que ele via durante a sua
jornada de trabalho:
Olha, isso aqui é um grupo mesmo. É um grupo de gaúchos. Uma espécie de confraria.
Coisa que só eles entendem. Têm coisas aqui que você vai ver e não vai entender nada. Eles
falando... É bonito! É bem deles mesmo. Mas, só eles entendem.
gaúcho. A idéia é a de edificar características que diferenciem o Rio Grande do Sul dos
demais estados do Brasil. Essa caracterização, que se refere a todas as coisas do estado, é
depoimentos abaixo:
Eu tava dizendo pra elas... Pra minha neta principalmente, porque ela quase não vem aqui,
eu digo: “Tu viu a hospitalidade do gaúcho?!”. A gente apresenta, que beleza, é aquela festa
que fazem com a gente, né. São muito hospitaleiros os gaúchos. Não desfazendo dos outros,
mas é difícil ver um gaúcho de cara feia.
Só aqui mesmo para encontrar sorrisos assim. Só o povo gaúcho sorri desse jeito. Que
beleza!
Sul contribuem para edificação de uma série de representações que acabam adquirindo uma
164
As peculiaridades do Rio Grande do Sul contribuem para a construção de uma série de
representações em torno dele que acabam adquirindo uma força quase mítica que as projeta
até nossos dias e as fazem informar a ação e criar práticas no presente (: 49).
O autor aponta alguns elementos utilizados na construção da imagem do povo gaúcho. São
eles: 1) o caráter de fronteira do estado; 2) a escolha (o Rio Grande do Sul preferiu fazer
parte do Brasil, enquanto poderia ter optado por pertencer ao Império Espanhol); 3) o alto
preço das guerras pago por essa opção (guerras contra os desmandos do Governo Central,
4) a existência de um tipo social específico, ou seja, o gaúcho marcado pela bravura ao lidar
identidade do gaúcho há uma referência constante aos elementos que evocam um passado
glorioso, a vida nos vastos campos da Campanha e valores como a bravura, a virilidade, a
lealdade e a honra.
Estamos aqui fazendo esse trabalho em prol do Rio Grande do Sul, em prol da comunidade
(18/09/04 – Comemorações da Semana Farroupilha).
Acredito que nesse Galpão estamos defendo nossas fortes e ideológicas tradições, a cultura
rio-grandense (...). Viva o Rio Grande! Viva o Brasil! (06/06/04 – Costelão).
165
Os “vivas” exclamados nos mostram que a tradição é tratada como se fosse uma causa a ser
defendida. Nos discursos dos informantes, aquilo que faz com que a entidade exista é a
causa da tradição.
utilizada para tornar familiar o que pode parecer exótico ou esquisito. A comparação entre
Quem tá de fora e não tem essa vivência, vai achar ridículo. Vai achar engraçado. Vai
começar a rir. Vai começar, sei lá, achar a maior baboseira. (...) Mas é que nem o católico.
Católico não, qualquer religioso que freqüenta a igreja. Todos eles não seguem o ritual bem
a fundo? Assim é o tradicionalista.
gaúcho. Vimos que para ser gaúcho não significa apenas nascer no estado do Rio Grande
do Sul. Ser gaúcho não é uma simples questão de naturalidade. Alguns tradicionalistas
preferem dizer que “Ser gaúcho é um estado de espírito”. Um estado de espírito fornecido
antes de tudo pela idéia de tradição. Resta espaço para ser gaúcho sem ser tradicionalista?
166
José Hildebrando Dacanal (1992) percebe o tradicionalismo como um ranço
heróico:
Esta sobrevida das construções ideológicas da oligarquia gaúcha deveu-se à sua longa e
absoluta hegemonia no estado (...). A verdade é que a mitologia reinava soberana ainda na
década de 70, quando o Rio Grande já se integrara não apenas na moderna sociedade
urbano-industrial brasileira como também no macrossistema capitalista internacional. E foi
contra esse monstruoso anacronismo que uma geração de intelectuais levantou-se (...) por
não agüentar mais ouvir múmias ambulantes repetindo os ecos de uma sociedade há muito
desaparecida (: 83).
Tau Golin (1992) também se indigna com a imagem firmada do tradicionalista como o
“genuíno representante do gaúcho histórico”. Segundo Golin, é cada vez mais rara a
pergunta: quem eram os gaúchos? “No senso-comum, a indagação foi substituída pela
normalidade equivocada de estes são os gaúchos, referindo-se aos tradicionalistas” (op. cit.:
93).
etc. Essas representações são transmitidas por diversos meios e traduzem crenças, idéias,
valores. No caso do Rio Grande do Sul, a identidade regional é dada através da recorrência
167
livre e bravo, serviu de modelo para unir os habitantes do estado em contraposição ao país
ganham mais força. Parece que ao acionar a noção de tradição, a idéia de gaúcho se
concretiza. Para o freqüentador do CTG Jayme Caetano Braun, ser gaúcho é ser
O que é ser tradicionalista para o gaúcho? É vestir sempre a pilcha, ter uma vivência
tradicionalista, saber declamar, usar termos gaúchos... É uma coisa assim de vivência, de
vida. Você olha e fala: “Aquela pessoa é um gaúcho”. Tá no sangue; tá no dia a dia dele; tá
no cotidiano. Não é aquela pessoa que quer ser gaúcha, apesar de ter nascido na terra, tenta
mais não consegue.
tradição pode ser muita coisa. Não obstante, todas as formas que assume são categorizadas
pelos informantes como extremamente positivas. Vimos que ela pode assumir um tom
sagrado nos discursos. A tradição existe para ser cultuada. Tal culto gera em seus
específicos. De uma noção mais abstrata que a coloca como algo sagrado, a tradição ganha
formas mais concretas. A tradição é uma referência temporal e espacial. Ela refere-se ao
168
A gente tá resgatando o passado. Porque Movimento Gaúcho é um movimento tradicional,
que são os MTG. Então, eles seguem uma tradição. E que é o que? A gente manter o que os
nossos antepassados cultuavam, entendeu? Então, aí vem a cultura gaúcha. E o meu papel
no CTG é de estar sempre fomentando essa cultura gaúcha. Fazendo eventos para reviver...
É o seguinte... da área rural. A cultura gaúcha ela está calcada na área rural. Se você for
ouvir música gaúcha, você vai ouvir de cavalo, de rédeas, de potro sem dono, a minha
prenda na estância. As estâncias eram as grandes casas de antigamente, onde ficavam as
famílias. Famílias não só nucleares, pai, mãe e filhos, mas avós, tios moravam tudo nessas
estâncias e trabalhavam lá. Então, a patronagem do CTG é como se fosse uma estância
representando a área rural. Na estância você vai ter o que? Um patrão que é o dono da
estância que se chamava patrão antigamente. O capataz geral vai ser aquele cara que vai
administrar pra ele a estância, como se fosse um vice-presidente mesmo. É ele quem vai
cuidar de tudo mesmo... E por aí vai. Essa é a nossa tradição.
Por que o resgate dos antepassados rurais? Foi a partir do universo rural que o Rio
Pesavento, 1982). Daí, seu cognome de “celeiro do país”. O passado rural é a referência e a
denegrida no meio urbano, como mostra os estudos de Julie Cavignac (2001) e Eunice
referência constante às ameaças que estariam pairando sobre a integridade gaúcha (op. cit.:
169
deturpações de maus tradicionalistas pelo uso inadequado da indumentária, por aberrações
Ao comentar sobre minha pesquisa com alguns gaúchos moradores da cidade, ouvia
Brasília? Então, você deve estar estudando o CTG Jayme Caetano Braun. Ele é o mais
tradicional. Por que? Ah! É só visitar o site deles na internet para você ver”. Tentando
entender as razões para tal indicação, que soava como um elogio à entidade, visitei os
pressupostos e práticas. Vários endereços eletrônicos já foram aqui citados. Os dois maiores
Centros de Tradições Gaúchas do Distrito Federal também fazem uso desse meio de
sobre as atividades particulares de cada CTG. Fazendo uma análise comparativa entre os
sites da Estância Gaúcha do Planalto e do Jayme Caetano Braun 5, pude entender alguns
dos motivos pelos quais este era indicado como sendo o mais tradicional. Logo ao entrar na
página da Estância Gaúcha, vi uma fotografia que parecia ser a do grupo de danças do
CTG. Na foto, nem todos os integrantes usavam a indumentária típica gaúcha. Outro
Caetano freqüentemente o patrão do CTG escreve algumas linhas aos visitantes do site.
incompreensíveis aos que não compartilham dos códigos dessa cultura: “Ao bolear a perna,
5
Fontes eletrônicas disponíveis em www.ctgjcb.com.br e www.estanciagaucha.com.br.
170
pouco...”. Apesar de recorrer também a um linguajar gauchesco, no site da Estância
CTG é apresentada numa linguagem acessível. Na apresentação dos integrantes não são
feitas referências aos termos patrão, sota-capataz, agregado da guaiaca, mas sim ao
presidente, vice-presidente, diretora cultural e diretor esportivo. Creio que todos esses
elementos visualizados no site da Estância Gaúcha do Planalto eram vistos por aqueles que
em demarcar fronteiras, separando o puro do impuro, onde todo o cuidado é pouco (: 78). É
documentos procuram traçar diretrizes. As normas e as leis documentadas servem para dar
CTG? Só se forem regras. As regras procuram conter as inovações. Surgem dessa forma,
Porque se a gente não defende a nossa cultura, ela vai se modificar, ela vai virar um nada.
Claro que ela vai se modificando com o tempo, mas uma hora ela vai perder todas as
características até não ser mais ela. Aí eu acho que é errado. Tipo, que nem os negros... O
movimento de preservação da cultura deles... Se eles forem abrindo demais a cultura deles,
uma hora vai virar uma confusão e não vai ser mais nada. O negro não vai ter mais
identidade. Até que ponto é valida a globalização? Porque na globalização a gente não tem
terra, não tem espaço, não tem nada. É bom por um lado? È bom, mas tipo assim, todo
mundo interferir no seu país, todo mundo se meter nas suas coisas, todo mundo sabe? Você
perde. Tipo, o McDonald’s... Você tá comendo no McDonald’s todo o dia, e não tá
comendo um carreteiro. Até que ponto é bom essas mudanças? Então assim, Porto Alegre é
brabo.. eu falo que lá o pessoal quer inventar muitas coisas. Você pode ver que o sotaque de
Porto Alegre é mais... chiado, quer imitar o carioca [risos]. Se você for pegar o interior.
171
Tem um tio meu que só anda de bombacha, isso é ser gaúcho tradicional. É claro que a
gente não vai andar de prenda pra trabalhar. Mas toda a vez que eu estiver no CTG, numa
atividade, eu vou estar pilchada.
alterações geradas pelo tempo são vistas de forma negativa. As mudanças representam o
Porto Alegre, Santa Maria são cidades maiores, gostam de inventar moda, sabe. Eu fui num
Baile em Santa Maria, eu fiquei horrorizada. Baile em plena Semana Farroupilha... Eu não
admitia aquilo que era... Sabe as meninas? Porque o vestido de prenda é uma roupa de
época. A gente usa vestido de prenda hoje? Não usa, então, você tem que seguir... Você tá
representando uma época de antigamente. Você tem que seguir o que se vestia naquela
época. Têm estudos, tudo pra isso. Tipo assim... Antigamente, não se usava decote porque a
mulher era super reservada. E hoje as mulheres colocam decote. Isso já é invenção, já uma
invenção demais, eu acho. Então, veste logo uma mini-saia e um top. Porque aí você tá
correta, tá na sua época. Agora se você quer representar o antigamente tem que ser como
era antigamente. Aí tinha umas mulheres que colocaram uns véus que ai... até o chão.
Aquela coisa de inventar para aparecer. De misturar xadrez com veludo com bordado.
Coisa que não tem nada a ver de roupa assim. Então, isso eu sou contra, é ficar inventando
moda.
que eles não inventam e nem encenam. Eles dizem viver algo que é “natural do gaúcho”.
que Yvone Maggie Alves Velho (1977) observou a respeito da preparação de um médium
num terreiro de candomblé. O desenvolvimento dos médiuns é feito por meio de uma
de atores para que representem bem o seu papel. No CTG, por diversas vezes tive a
impressão de que estava num ensaio disciplinado para uma peça teatral. Jovens e adultos
homens passam horas decorando poesias para as declamarem nas noites de poesia no CTG.
172
Mesmo com toda a preparação e exaustivos ensaios, as prendas e os peões do CTG
Jayme Caetano Braun enfatizam que as vivências do passado são revividas e não
reinventadas. Reviver e inventar são posturas muito diferentes nessa cultura nova e
moderna. Para eles, as inovações são consideradas como algo extremamente negativo. O
presente precisa ser pensado enquanto uma cópia fiel de um passado imaginado.
Alguns dados apontam para o fato de que esse passado “reproduzido” nos CTGs é
forjado, no sentido de que muitos dos elementos que compõe a cultura tradicionalista,
uso de uma série de outras tradições para inventar a sua. A indumentária usada pelas
prendas é um bom exemplo dessa questão. Depois da fundação do primeiro CTG em 1945,
no traje de china das uruguaias e também no vestido caipira, criaram o hoje famoso vestido
de prenda 6.
Quase todas as manifestações que acontecem nos CTGs são frutos de um resgate
séculos passado etc) e in loco. As danças foram coletadas nas pequenas cidades do interior
do Rio Grande do Sul por dois fundadores da primeira entidade tradicionalista, Paixão
Cortes e Barbosa Lessa. Após um encontro no Uruguai com diversos centros locais de
tradição, foram indagados sobre as danças que executavam. Até então, a resposta a tal
pergunta era uma negativa: eles não dançavam nada. Indignados, Barbosa Lessa e Paixão
Cortes realizaram entre os anos de 1949 e 1952, inúmeras expedições pelo estado,
objetivando registrar e catalogar “danças típicas”. Em suas incursões pelos rincões do Rio
6
Depoimento de Antonio Augusto Fagundes, retirado de Oliven (1992a: 113-114).
173
Grande do Sul, registraram cerca de vinte danças que são atualmente executadas nos
essas manifestações culturais é comentada por Barbosa Lessa como um dilema, conforme
Descoberta (...) a força comunicativa da dança, Paixão Cortes e eu ficamos num dilema. Ou
voltar correndo a Montevidéu, para instantaneamente aprender com nosos “hermanos
orientales” as “danzas gaúchas de la grande pátria pampeana”, ou arregaçar as mangas e
revirar o Rio Grande do Sul na tentativa de descobrir cacos melódicos e coreográficos
reunidos e colados que, convenientemente reunidos e colados, se aproximassem de nossa
herança luso-brasielira (In Oliven, 1992a: 110).
culturais de diversos estados brasileiros. Uma das idéias do Movimento Folclórico (1947-
as raízes autênticas e genuínas para definir a cultura nacional (Vilhena, 1997: 25), os
regional.
7
Informações retiradas da entrevista dada por Paixão Cortes ao Jornal Zero Hora, Caderno Cultura, sábado,
15 de maio de 2004.
174
estudos dos folcloristas sejam pensados e utilizados pelo autor como uma das fontes para a
O uso de fontes dos folcloristas para reafirmar a vivência gaúcha é recorrente. Além
disso, as fontes oficiais servem para demonstrar que as manifestações estão sendo
ser um fóssil vivo de um tipo que teria existido na região sudoeste do estado do Rio Grande
A tradição exaltada aqui é aquela que se aproxima da idéia de pureza. Essa tradição
linguagem ritual considerada como original do universo rural. Tal mundo coloca-se como o
tradicionais:
Porque gaúcho é sangue quente. Gaúcho é sangue quente mesmo, entendeu? Se altera e as
posições são bem firmes, são bem tradicionais, é difícil de ceder nas posições. Outra coisa,
a família tá muito presente no Movimento Gaúcho, isso é muito importante analisar. O
CTG tem muito essa questão de família, de nome. Outra coisa importante é o seguinte: o
que eu tenho pra falar eu falo na cara. Eu não sou de falar pelas costas. Esses são os valores
do gaúcho, entendeu? Valores que estão perdidos hoje na sociedade. Valores que a
sociedade abandonou com o tempo. Porque hoje a pessoa te fala eu te amo, eu te adoro,
175
você é legal, você é minha amiga e você não sabe se você acredita nela ou não. Porque?
Porque a palavra das pessoas não vale nada hoje, né? Pela palavra...você faz um contrato
com uma pessoa pela palavra? Hoje você vai querer um papel, né? Porque com Weber vem
a burocracia também (risos). Toda aquela questão, né, de distanciamento e tal. Que eu
também não sei, às vezes eu fico me questionando até que ponto que é bom a gente manter
alguns valores, mas até que ponto também é bom a gente perder tantos valores. (...) Então,
na nossa tradição a gente tenta resgatar esses valores. A sociedade gaúcha é uma cultura
baseada no mundo rural, entendeu? Então, é uma sociedade baseada muito nisso, na
palavra, na honra, na ética, na família tradicional, na família grande, essas coisas.
tradição do povo ou do camponês não é contaminada pela vida urbana (cf. Chauí, 1986).
Sobre o Movimento Folclórico, Rodolfo Vilhena (1997) argumenta que a ação dos
“Essa ação põe em prática um projeto tornado possível graças a sua capacidade de
mundo e de um ethos que orientam a ação dos atores sociais” (op.cit.: 33).
Em certa medida e com um certo cuidado podemos dizer que a intenção do resgate
176
(...) faz parte da minha identidade, da minha construção. Não tem como eu negar isso.
Então, tanto é que o meu relacionamento anterior com o meu ex-namorado foi um
relacionamento muito submisso. E eu acredito que tenha sido tudo isso por conta da....como
eu vou te falar...formação mesmo. (...) O meu pai é uma pessoa muito autoritária. Ele é o
chefe da família. Só que agora a gente tá revertendo isso. Mas durante um bom tempo ele
era o chefe, ele quem dava a palavra final. Eu cansei de viajar, porque eu tinha uma bolsa
de pesquisa da CAPES, porque eu fui aluna bolsista, brigada como meu pai. Porque meu
pai não aceitava que eu viajasse na faculdade. Com dezoito anos eu não podia ir no cinema.
Com quinze anos, eu me arrumei bonitinha pra ir na festa da Igreja e ele não deixou. Porque
ele falou que eu não pedi pra ele. E aí tem todo aquele papel da minha mãe interceder, mas
de se calar. Aquele medo, aquela coisa. (...) E por um bom tempo eu fiquei sem
comunicação com o meu pai praticamente por conta desse jeito dele que eu não aceitava. E
de ver a minha mãe sofrendo. Só que chegou uma hora também que eu percebi. É o modo
deles se organizarem, até que ponto vale a pena você ficar questionando, questionando,
questionando?. Ou até que ponto vale a pena você quebrar com tudo? Porque faz parte de
você e você vai tá quebrando com você mesma. Até que ponto eu vou virar atéia e vou sair
da minha casa e não quero mais falar com o meu pai e a minha mãe? Eu vou tá quebrando
comigo mesma. Porque eu sou aquilo querendo ou não. Eu muitas vezes achei que eu era
diferente, que eu era evoluída que eu era sei lá super pra frente, moderna. Mas não sou. Não
sou porque é muito difícil você quebrar com uma formação desde criança, da infância, de
tudo, de comportamento. Você quebra, quebra um pouco, mas não totalmente, fica a base.
(...) É bem complicado essa coisa da mulher. Mas a mulher tá ocupando o seu espaço dentro
do CTG. É muito difícil. (...) Às vezes, eu fico me questionando até que ponto eu tenho que
ficar mantendo uma cultura gaúcha que é tão tradicional, que é tão antiga? Mas, ao mesmo
tempo eu olho pro moderno e vejo as mesmas crises (risos). O vazio do moderno, o vazio
das palavras, o vazio de um monte coisas, eu vejo. Então, o ideal é o equilíbrio, né?
termo – passaram a ser difíceis de se encontrar, e suas experiências no mundo atual geram
Bauman, 2003; Wolf, 2003). Longe de querer nomear o CTG Jayme Caetano Braun como
uma possível comunidade urbana, creio que os laços estabelecidos nesse espaço podem
partícipes. São manifestações e valores que são experimentados no ato, mas também são
levados para a casa e consumidos na rotina diária, é claro, com algumas reservas. Afinal, a
não ser na Semana Farroupilha, ninguém vai ao trabalho trajando bombachas ou vestidos de
177
prenda. Porém, tenta-se ser sempre gaúcho tradicionalista, seja no CTG, na rua ou em casa.
do seu habitat de origem, a tradição é representada de uma forma considerada mais fiel e
como Porto Alegre e Santa Maria como não tradicionais e deturpadoras do tradicionalismo.
Caetano Braun, que gera estados de espírito e sentimentos, ações de preservação e regras
O que faz Brasília ser considerada o lugar em que CTGs são mais tradicionais não é
apenas o fato de que as manifestações culturais quando estão fora de seu contexto original
178
tornam-se sujeitas a regras mais rigorosas de manutenção seguidas e inventadas pelos seus
praticantes. Por trás da idealização do CTG Jayme Caetano Braun como o lugar por
excelência da tradição, existe uma outra questão que creio ser também uma das principais
redes sociais que vão para além do ambiente do CTG. Os participantes freqüentam as casas
dos outros, são convidados para batizar filhos de seus pares, relacionamentos amorosos se
do Sul. Sua fala era saudosista: “no Sul era assim”, “no Sul fazia isso”, “fazia aquilo”. O
jovem dizia não gostar de Brasília por inúmeras questões: dificuldade de deslocamento,
ainda não estava “enturmado”, o clima seco, etc. No entanto, o seu gosto pelo Rio Grande
do Sul não era suficiente para lá permanecer. Ele bem que empreendeu algumas tentativas.
Sua família veio para Brasília e ficou morando sozinho. Ao final da conversa me disse em
tom de decepção: “Mas, aí não consegui ficar sozinho lá e tive que vir embora”. Sozinho,
Eu acho assim... que a cultura ela mexe muito com o sentimental. E eu particularmente sou
muito sentimental. E tem esse lance de sangue. Eu acho que conta muito isso, família. E o
folclore é muito bonito assim no geral. Eu acho que tem muito convívio. Eu acho que as
179
pessoas hoje em dia não têm muita amizade, não tem muito convívio. E o CTG é uma coisa
que junta, e isso é muito legal.
O depoimento acima nos mostra que as manifestações culturais são acionadas não apenas
para fazerem com que os deslocados se sintam mais perto de sua terra natal. No CTG
saudosismo. A tradição serve para aproximar as pessoas, travar relações e estabelecer laços
que vão para além do CTG. Esse é o principal motivo pelo qual o CTG Jayme Caetano
Braun e todas as suas manifestações, são acionados por alguns gaúchos residentes na
180
PARTE III
CANTADORES NORDESTINOS E
181
CAPÍTULO VII
A análise da Casa do Cantador e do CTG Jayme Caetano Braun nos coloca diante
nossa discussão:
visível a existência de uma certa noção de coletividade, são necessárias considerações sobre
a maneira como os termos cantador e tradicionalista vêm sendo empregados nesta tese. Os
182
termos são utilizados num sentido genérico uma vez que encobrem diferenças. Essas
relacionam com outras esferas sociais para além da Casa do Cantador e do CTG Jayme
é dada na medida em que os indivíduos aqui tratados como cantadores e tradicionalistas são
(Vianna, 2001: 47). Nesse sentido, o “grupo” tão enfatizado nas análises das Ciências
Sociais não pode ser identificado claramente pelo pesquisador. A idéia de grupo cede lugar
à noção mais fluída de agrupamentos pontuais. Segundo Eric Wolf (2003), atualmente não
é mais legítimo supor que qualquer membro de um dado grupo exibirá certas regularidades
de comportamento que são comuns em alto grau entre outros membros da sociedade (:
220). Por exemplo, sobre a atualidade do conceito de comunidade, Wolf nos diz:
183
Assumir a relatividade desses conceitos na atualidade, não impede que o antropólogo
relações podem usar em seus procedimentos uns com os outros (...) Elas [formas culturais]
119).
analítico, a categoria grupo não poder ser utilizada de modo homogêneo e indiscriminado,
reconhecido como tal pelos de fora e pelos os de dentro. Essa tentativa de autoconstrução
pode ser observada nos discursos e na dinâmica dos eventos promovidos pelos
tradicionalistas. Vários exemplos já foram citados na Parte II desta tese, quando da análise
do CTG Jayme Caetano Braun. O uso de uma indumentária considerada típica; a decoração
do cenário onde se localiza a sede do CTG; o ensaio disciplinado dos eventos promovidos;
184
da entidade e de seus participantes, ajudam aos visitantes e, inclusive, à pesquisadora a
identificar aquelas pessoas como pertencentes a um grupo que quer se enxergado como tal.
Por várias vezes, ouvi os tradicionalistas se referirem ao CTG Jayme Caetano Braun
informantes sempre falavam conjugando o verbo na primeira pessoa do plural. “Aqui nós
somos uma grande família”; “aqui nós somos uma verdadeira comunidade”, foram frases
que ouvi no primeiro dia em que me apresentei com o propósito de fazer uma pesquisa
discurso nativo, a idéia de comunidade aparece com força: tudo é feito em nome dela.
comportamentos, podemos dizer que apesar de ser o CTG um lugar propício à tessitura de
processo eleitoral feito de dois em dois anos para eleger a diretoria do CTG. No entanto, ao
significativo que esses afastamentos não sejam muito comentados, gerando um certo
desconforto naqueles que os mencionam. Quero deixar claro que ao pensar o CTG como
um lócus para a construção de redes de relações, não pretendo fomentar uma imagem
poderíamos vê-lo não como uma comunidade, como querem os informantes, mas como
185
uma instituição que desempenha um papel muito importante na integração de determinadas
pessoas.
CTG. A família, principalmente a família nuclear, participa das atividades do CTG Jayme
conjunto com alguns membros de sua família. Conforme já foi dito em outro momento, na
maioria das vezes o homem começa a freqüentar o CTG e logo em seguida, é seguido por
sua mulher e filhos. O sentido de nós é fornecido tanto pela criação de um ideal
Outra questão importante a ser destacada diz respeito ao sentido de clube assumido
Social do “clube”, as categorias de sócios são várias e se diferenciam de acordo com o tipo
tenham aprovadas sem pagamento de jóia (...) esta categoria atende aqueles que manifestem
186
o desejo de participar das atividades sociais do CTG-JCB por tempo determinado” 1. Os
sócios assumem direitos e deveres dentro do CTG. São direitos dos sócios:
indicar e discutir medidas que lhes pareçam úteis, bem como levar ao conhecimento da
Patronagem, irregularidades de que tiver ciência (...); manifestar-se, votar e ser votado nas
Assembléias Gerais; ser nomeado, a convite para cargo de confiança administrativo;
representar o CTG-JCB em atividades ligadas aos fins da entidade (...). São deveres dos
Sócios: conhecer, cumprir o Estatuto Social do CTG-JCB; pagar em dia suas mensalidades
(...); zelar pelo patrimônio, objetivos e finalidades do CTG-JCB, e orientar para que os
outros o façam. 2
acordo com o grau de envolvimento e com a posição na hierarquia dos sócios, o indivíduo
tem o compromisso moral de comparecer aos eventos promovidos pelo CTG Jayme
ideal de engajamento (Vilhena, 1997: 173). Existe uma causa comum a ser defendida e que
serve de incentivo para que os evolvidos se comprometam com a ação (op. cit.: 210). No
caso do MTG, o engajamento implica na defesa das tradições gaúchas. A defesa de uma
1
Os trechos deste parágrafo que estão entre aspas foram retirados do Estatuto Social do Centro de Tradições
Gaúchas Jayme Caetano Braun.
2
Estatuto Social do CTG Jayme Caetano Braun.
187
causa gera um certo clima de euforia entre os integrantes do Movimento e uma maior
identificação. Fazer parte desse Movimento significa compartilhar uma série de noções e
indivíduo. No CTG Jayme Caetano Braun, ser tradicionalista está refletido em três âmbitos:
a família pode dedicar boa parte de seu tempo livre a assuntos do CTG e do
tradicionalismo. O tradicionalismo é algo que merece atenção; é algo que eles vivem no
CTG, eles compartilham a profissão de militar. Por fim, o CTG constitui-se num lugar
propício à formação de novas amizades. Ali são construídos laços que extrapolam o
momento em que se encontram no CTG: jovens tradicionalistas namoram entre si, laços de
3
Um exemplo dessa questão pode ser visto em depoimentos do Capítulo VI.
188
intensidade como no CTG Jayme Caetano Braun, ou o acionamento do “nós cantadores
grupo” em torno de propósitos comuns são poucos. Vimos, em outro momento desta tese,
de pessoas presentes, a freqüência dos eventos passou a ser mensal ao final da pesquisa.
Caso um visitante entre pela primeira vez na Casa do Cantador, salvo a estátua do
cantador com sua viola, não existe nada nas instalações que identifique o espaço como
hipotético não fosse numa noite de Cantoria de Pé de Parede, a Casa poderia ser confundida
com um centro cultural qualquer. Ao contrário, no CTG Jayme Caetano Braun, antes de
principal, uma placa metálica com dizeres esclarecedores saúda ou adverte o visitante,
189
deixando claro que ele está entrando num lugar especial 4. A especialidade da entidade é
intensificada pela sua decoração com bandeiras do Rio Grande do Sul, logotipos, faixas,
indumentárias típicas, etc. Enfim, a visibilidade do espaço como um local típico; a erupção
entidades.
realizadas as cantorias não são feitas de modo a diferenciar, tão enfaticamente, o ambiente
Oscar Niemayer e dispostas numa cidade satélite se diferenciam não do cenário de Brasília,
enfatizem essa tipicidade podem passar por uma questão de cunho financeiro. A Casa
destinada à realização de eventos e aos reparos na estrutura da sede é ínfima. O que pensar
sobre os gastos com uma possível decoração especial do espaço? No entanto, creio existir
uma outra dimensão que perpassa o fato do local não se fazer típico ao extremo, pelo
menos não do modo como acontece no âmbito do CTG Jayme Caetano Braun.
grupo coeso e diferenciado, é porque essa não é a intenção dos próprios informantes. Por
uma série de motivos parece que a tentativa não é, como no caso dos tradicionalistas, tornar
4
Vide Capítulo IV.
190
explícita algum tipo de diferenciação. O importante para os cantadores nordestinos em
situada no universo rural, mais especificamente no sertão nordestino (cf. Barroso, 1949;
Mota, 1987; Câmara Cascudo, 2001 e 2005). A vinculação a esse ambiente é também
analfabetismo e à pobreza estão bastante presentes. Por ser uma manifestação baseada na
imagens estão cristalizadas. Ao mencionar que estava fazendo uma tese sobre cantadores,
muitas pessoas manifestavam reações de desagravo: “Poxa! Como você foi escolher esse
tema? Repentista é muito chato!”. Para essas pessoas, os repentistas eram aqueles que
entoavam versos em troca de algum trocado, importunando turistas nas praias do Nordeste
nordestina é vista como uma manifestação banal e muito próxima do ato de mendicância.
imagens tecidas por aqueles que não compreendiam minha vontade de estudá-los. Em
5
Voltaremos a essa questão ainda neste Capítulo.
191
analfabeto. Alguns, inclusive, fazem curso superior. E todos têm uma preocupação
excessiva no manejar as palavras de forma gramaticamente correta. Para isso, eles dedicam
algumas horas de seu dia à leitura de Gramáticas da Língua Portuguesa. Para se manterem
formal, o conhecimento geral são alguns dos ingredientes utilizados pelos cantadores
estudados por mim para a construção de uma imagem que os distancie da noção de atraso,
onde são vistos como analfabetos, pobres e ainda por cima, chatos. Nas grandes cidades
justamente essa vontade de se igualar que os diferencia. Poderíamos dizer que eles estão
unidos pelo fato de serem cantadores nordestinos em Brasília. Tal traço permite que
artistas. No momento, não examinaremos essa questão na medida em que ela nos remete a
uma dimensão que será examinada no terceiro item deste Capítulo. Por ora, nos deteremos
Nos discursos dos cantadores, o “nós” pode ser acionado a partir da descoberta do
ser conterrâneo. “Onde foi que você enterrou o seu umbigo?”, é uma pergunta-chave nas
192
Noites de Cantoria. E dependendo da resposta, laços sociais podem ser tecidos, pelo menos
Muitas pessoas aparecem na Casa do Cantador após ouvirem a divulgação, feita por
meio radiofônico ou televisivo, de que um conterrâneo seu irá fazer uma cantoria
nordestina. Lembrando que mesmo aqueles cantadores residentes em Brasília por mais de
quinze anos, são anunciados tendo como referência seus estados natais. Ser conterrâneo
endereços, lembranças e abraços efusivos. No entanto, são contatos, na maioria das vezes,
Nesse contexto, ser conterrâneo perde a referência da cidade natal e é alargado para o
sentido do “ser nordestino”. Esses laços são os principais responsáveis pela fixação
capital do país.
cantoria em Brasília.
Por não se fazerem presentes em sua dinâmica, as estruturas de parentesco; por não
comunidade; e nem por ter a intenção explícita de tornar o ambiente estritamente típico,
193
talvez seja mais difícil identificar em primeira mão, a noção de grupo. Diferente dos
Tomo tanto a Casa do Cantador como o CTG Jayme Caetano Braun enquanto
pessoas em torno de manifestações culturais. São lugares que por mais heterogêneos,
Apesar dos modos diversos como essa idéia é apropriada pelos dois agrupamentos, é o
migrante nordestino e do migrante sulista – onde alguns são mais migrantes do que outros.
Estamos tratando de indivíduos, cujas vidas são marcadas por muitos deslocamentos
que diz respeito à rota do deslocamento; e outro nível de cunho mais simbólico e profundo,
194
ou seja, aquele onde estão situadas as expectativas em torno do processo migratório e as
ambiente rural. Trabalharam na roça, como dizem alguns: “puxando enxada”. Em suma, o
universo rural-sertanejo da região Nordeste é uma das referências nas vidas desses
indivíduos. Mesmo que tenham vivido em outras cidades, principalmente nas grandes
tem como origem o mundo rural. Eles nasceram em cidades consideradas de médio ou de
grande porte do estado do Rio Grande do Sul. Dos informantes entrevistados, nenhum tinha
a participação no CTG e é claro que essa vivência é experimentada com algumas ressalvas.
Um exemplo dessa limitação foi presenciado por mim numa situação de campo. Nas
quadro participativo da entidade. Minha surpresa aguçava ao ver no CTG, o grande número
de homens que esperavam ansiosos a chegada dos cavaleiros. Nesse número, estavam
tradicionalistas que eu julgava, digamos, ferrenhos. Não podendo conter minha inquietação,
fiz algumas perguntas sobre a não participação no desfile. Depois de ouvir algumas
justificativas que não me convenceram do tipo: “já estou velho pra isso”, “eu tive um
compromisso”, “amanheci com dor de cabeça”, resolvi satisfazer minha curiosidade com a
195
movimentação. E foi essa resposta que me convenceu mais: “os tradicionalistas ferrenhos
não sabiam montar”. Em última instância, para esses gaúchos, o mundo da estância não é
um ambiente familiar.
Para os cantadores nordestinos, fazer versos ao som de uma viola podia representar
muitos casos, foi favorecido pelo fato de serem cantadores. Já outros, não colocam a
relação entre a migração e a viola de modo tão direto. Pois, a cantoria só se tornou
realidade no lugar de destino. Em suas cidades de origem, até ouviam com gosto os grandes
cantadores da região, mas apenas na posição de meros espectadores. Foi na capital federal
que se tornaram cantadores. A cantoria era, a princípio, um exercício feito nas horas vagas.
anteceder ou suceder a migração. No entanto, tanto aqueles que já vieram para a capital
como cantadores, como aqueles que exerciam a cantoria como uma espécie de hobby,
ascensão social e financeira. Por isso, é construída como um lugar especial. A cidade
enfim, é a capital do Brasil. Mesmo que a fixação dessas pessoas tenha sido feita nas
cidades satélites, ou seja, na periferia, a referência não é a Ceilândia, ao Recanto das Emas
menção feita é à cidade de Brasília. O fato de residirem em Brasília, por si só, pode ser uma
maneira do cantador se construir de uma forma diferente daquela que o coloca como um
196
Ao contrário dos cantadores, para os freqüentadores do CTG Jayme Caetano Braun,
causas da migração para a cidade não são verbalizadas com frases do tipo: “Vim para
militar, os deslocamentos espaciais são freqüentes. A cidade não foi escolhida ou pelo
objeto da especialidade da cidade não é o mesmo nas duas entidades. Meus informantes no
CTG, não edificam a cidade como o local das oportunidades. Ela aparece nos discursos
como uma localidade banal, um local como outro qualquer. Por outro lado, para a maioria
dos freqüentadores do CTG, ser tradicionalista foi algo que se concretizou somente na
capital federal. Esse fato de alguma forma faz transparecer nos discursos um certo lugar de
destaque para a cidade. Nesses momentos, Brasília aparece como um local acolhedor e
conquistado pelos gaúchos. Daí, a aceitação sem estranhamentos por parte da população de
numa certa coletividade. “Certa coletividade” porque como foi dito no início deste
Capítulo, não podemos pensar as esferas sociais aqui estudadas como grupos homogêneos e
fragmentação dos papéis assumidos pelos indivíduos em várias esferas sociais. Chegamos
197
Gilberto Velho (1994) ressalta que em vários estudos antropológicos, a biografia do
seus papéis sociais” (op. cit.: 99). Tal reconhecimento não significa perder de vista os
Creio que a noção de projeto, elaborada por Velho, fornece uma alternativa bastante
seja, aquele que faz projetos (op.cit.: 101). Apropriando-se de Alfred Schutz, Velho define
projeto como a conduta organizada para atingir finalidades específicas. Para lidar com a
Esse projeto é explicitado verbalmente, onde Brasília aparece como a solução emergencial
198
frente às dificuldades financeiras e sociais do indivíduo. Dentro desse universo em que o
tempo em que a mudança para Brasília ocorreu na vida dos cantadores. Para aqueles que
ascensão do indivíduo, que aqui é também o retirante. Por outro lado, para aqueles que não
estritamente profissional. Eles vieram a trabalho ou com a esperança de que aqui seria mais
fácil exercer a cantoria. O modo como os migrantes cantadores se pensam e como avaliam
suas trajetórias de vida fazem parte de um projeto que está diretamente influenciado pelo
para as migrações, não acontecem no universo dos tradicionalistas gaúchos. Seja para
aquele que veio nos tempos iniciais da construção de Brasília, seja para aquele que aqui
são encobertas pelo sentido da missão que cada tradicionalista tem: disseminar a cultura
tradicionalismo, sua função está situada para além das melhorias na vida do indivíduo. Ela
é explicada por meio de propósitos como: domesticar a cidade, tornar familiar os costumes
199
O projeto da migração é justificado de modo diverso pelos cantadores e pelos
tom de conquista. Enquanto que para os cantadores, a decisão de vir para a capital federal é
melhorar de vida. Tais justificativas e outras questões, que serão elaboradas nos próximos
parágrafos, fazem com que alguns indivíduos pareçam ser mais migrantes do que outros.
das vezes está ligado à noção de subalternidade (cf. Ianni, 1972; Durham, 1984; Seyferth,
1990; Chambers, 1994; Sayad, 1998; Assis, 1999; Sales, 1999; Ribeiro, 1999; e Spitzer,
O migrante é o forasteiro, aquele que veio de fora. No entanto, a subalternidade pode estar
localizada num nível mais concreto e que se refere às condições econômicas do sujeito que
migra. Ou seja, existem migrantes que já eram subalternos em seus contextos de origem.
Nesse sentido, os sujeitos tratados nesta tese são diferenciados. Eles estão inseridos em
brasileira. Esse fator econômico, associado a outras questões, faz com que alguns
indivíduos pareçam ser “mais migrantes”. Vejamos o que torna os cantadores nordestinos
Nosso ponto de partida será nos modos como o universo rural é acionado, tanto
pelos envolvidos diretamente nos processos sociais aqui analisados, como pela sociedade
nordestinos estão vinculados ao meio rural através de suas origens. Muitos nasceram no
campo, vivendo parte de suas vidas como pequenos agricultores. A ligação imediata com o
200
mundo rural realmente existiu no caso dos cantadores nordestinos em Brasília. Em algum
momento de suas trajetórias, o processo migratório vivido por essas pessoas pode ser
Conversar com os cantadores sobre esse passado rural não é tão fácil. As passagens
que relatam a vida na roça são breves. Nas narrativas, são priorizados os eventos da vida
escolar, das viagens pelo Brasil e exterior e dos encontros com personalidades importantes,
nas Noites de Cantoria através de alguns versos, definidos pelos cantadores como “aqueles
feitos para matar a saudade do sertão”. Porém, ao cantar a roça, o cantador não está fazendo
menção aos episódios da sua vida particular. A roça cantada é uma referência anônima. Em
outras palavras, o cantador não canta a sua vida passada. Como numa enciclopédia de
a fauna. Nas cantorias, a roça é cantada em seus aspectos positivos. Nesses momentos não
No CTG Jayme Caetano Braun, o mundo rural é objeto de atenção especial. Tal
o homem do interior pode ser motivo de chacota, dentro de um CTG essa imagem é vista de
forma positiva. O CTG se propõe a ser um local não apenas de valorização do mundo rural,
mas um espaço que resgata o aspecto moral do que seus promotores imaginam ser a
201
vivência rural: um modo de vida onde existe espaço para o companheirismo, a honestidade,
a família e a honra 6.
“rural do nordeste” é o sertão nordestino. Diferentes percepções são tecidas em torno desses
transformações acerca da noção de sertão no discurso erudito e fora dele. Sertão é uma
categoria bastante ampla. Poderíamos dizer que existem vários sertões: das gerais, do
Bahia, do Vale do Pajeú, etc. Mesmo tendo em vista essa diversidade, as questões
levantadas por Pimentel nos ajudará a contextualizar a noção - ou as noções - e o tipo social
que dela advém, o sertanejo. Afinal de contas, como diria Guimarães Rosa: “sertão é dentro
signos “sertão” se aproximavam da idéia de perigo: o sertão era o distante; a terra sem lei; o
lugar povoado pelos indígenas, feras e bandoleiros; enfim, o sertão era a desordem
(Pimentel, 1997: 18). No século XX, novos campos discursivos introduzem mudanças
6
Creio que a positivação do meio rural da região de Campanha, passa entre outros fatores pelo modo como o
estado do Rio Grande do Sul - visto como o celeiro do país - foi incorporado inicialmente à economia do
Brasil e reconhecido nacionalmente.
202
responsáveis pela reinvenção e positivação da noção de ruralidade (op. cit.: 26). No
entanto, a estigmatização do sertão permanece, uma vez que o sertão está ligado a assuntos
que já se mostram como clássicos, por exemplo, o cangaço e a seca (Cavignac, 2001: 72).
Aqui citaremos dois autores, não apenas por forneceram idéias sobre essa região, mas por
Na zona das fronteiras, formou-se, uma raça de homens admiráveis, não só pela sua
coragem pessoal e pelas habilidades de cavaleiros, como pela fecundidade no engendrar
ardis e métodos de preia. (...) O caudilho não é outra coisa senão o primitivo chefe de
preadores da campanha platina, que, sob a pressão das guerras e das invasões, se
improvisava em chefe militar. (...) Os caudilhos gaúchos emergiam, assim, do seio da
população com um prestígio, uma influência, uma popularidade, que de modo algum
poderiam possuir os mais poderosos chefes da matas e dos sertões. (...) uma conseqüência
na mentalidade dessa caudilhagem militar é o sentimento profundo de solidariedade social,
o hábito de cooperação, o profundo espírito de corpo (op.cit.: 107: 140).
sua incapacidade de qualquer movimento de solidariedade social, a não ser o clã parental.
Enquanto que o gaúcho, lutando sempre contra um inimigo externo, estaria sob o efeito
aglutinador das guerras, colocando o interesse coletivo em primeiro plano. O gaúcho teria
203
Os homens do sertão (...) revelam-se sempre os mesmos, com os mesmos traços culturais
dos sertões: individualistas, solitários, tenazes, de temperamento rude, passional e revolto.
Já os gaúchos (...) sempre se revelam os mesmos homens, com os mesmos traços (...) isto é,
os experimentados aliciadores de milicianos, os organizadores de “companhias”, os homens
de autoridade e de mando – os caudilhos, em ser, naturalmente hábeis no meter em forma
centenas de homens e manobrá-los debaixo das melhores regras da tática e da estratégia
(op. cit.:136).
comparações traçadas pelo autor entre o gaúcho e o sertanejo, este representado pela figura
As suas vestes [do gaúcho] são um traje de festa, ante a vestimenta rústica do vaqueiro. As
amplas bombachas (...) O seu poncho vistoso (...) lenço de seda, encarnado, ao pescoço;
coberto pelo sombreio de enormes abas flexíveis e tendo à cinta, rebrilhando, presas pela
guaiaca, a pistola e a faca – é um vitorioso jovial e forte. [sobre o sertanejo] Nada mais
monótono e feio, entretanto, do que esta vestimenta original, de uma só cor – o pardo
avermelhado do couro curtido – sem uma variante, sem uma lista sequer colorida (op. cit.:
117-119).
se estendem ao caráter moral de ambos os tipos regionais. O sertanejo, que aparece como o
matuto, é edificado como um ser ambíguo: ora se manifesta por meio de demonstrações de
e naturalizado como se a capacidade do indivíduo fosse dada pela sua naturalidade (Costa,
1997: 167). Assim são fomentadas muitas das imagens do migrante sulista e do migrante
7
Para o autor todo sertanejo é vaqueiro (op. cit.: 121).
204
aquele que foge de um ambiente hostil, é aquele que foge da seca. O migrante sulista não é
aquele que foge, uma vez que o indivíduo não foi expulso de seu habitat natural.
No site do CTG e nas conversas com os freqüentadores, o migrante que vem do Rio
Grande do Sul é edificado como o desbravador corajoso, o colonizador que se aventura por
do migrante se confunde com a imagem do retirante, aquele que foge das condições
Por sua situação financeira e por sua naturalidade não fornecer um capital simbólico
precisam lutar para a valorização do rural. A luta, diferente dos cantadores nordestinos, não
é pela inserção nos grandes centros urbanos. A batalha dos tradicionalistas tem outro alvo:
a reprodução de uma tradição rural no meio urbano, feita por pessoas que não tenham uma
relação imediata com esse passado rural. Para tornar as suas reinvenções autênticas, eles
regras que ditam o “certo” e o “errado”. O estado de alerta é constante, como se a tradição
fosse algo muito efêmero, um líquido que pudesse escorrer a qualquer momento pelos
dedos do tradicionalista.
O espaço ocupado pelo rural no CTG Jayme Caetano Braun é nobre. O freqüentador
205
Já no contexto dos cantadores nordestinos, o universo rural navega entre duas
intenção de fazer lembrar as coisas boas do Nordeste, ou seja, para expressar sentimentos
saudosistas. O espaço ocupado pelo rural na Casa do Cantador tem um que de saudosismo
em situações especificas. Mas, fora dessas situações especiais - que se dão no momento
Tais noções são contrárias à vida atual dos cantadores que largaram a roça; que se fixaram
nas grandes metrópoles brasileiras; e que fabricam versos de improviso com o cuidado
grandes centros urbanos se recusa a usar coisas que o liguem a um passado identificado
com o atraso. Nos eventos promovidos pela Casa do Cantador, o espectador não pode
sapatos engraxados. Nos ritos da Casa do Cantador, a roupa considerada típica da região
sertaneja é substituída por uma indumentária identificada com os valores da classe média.
não do uso de uma indumentária típica está inserida numa constante luta por um vir a ser. A
luta dos cantadores nordestinos é em prol de seu reconhecimento como “bons cantadores”.
Ser um bom cantador significa dominar códigos identificados com os valores das classes
CTG Jayme Caetano Braun tem outro foco. Por empreenderem um trabalho de resgate de
206
tempo e espaço distantes, o que eles almejam é o reconhecimento enquanto legítimos
e sim sua apropriação pelos grupos ou indivíduos. O popular qualifica um modo de utilizar
181). Os fatos da cultura são processos sociais totais, i.e., abarcam e imbricam diferentes
aspectos da realidade em sua realização, e são capazes de articular em seu interior valores e
77). Em campo, tive várias demonstrações dessas questões. Na atualização de seus fatos
como a idéia de folclore é utilizada, é um bom exemplo. O manejar dessa noção, na Casa
peculiaridades.
manifestação fomentada por eles. Os cantadores são enfáticos: o que eles fazem não é de
modo algum, folclore. Eles procuram conscientemente se afastar desse rótulo. Nesse
207
Para os freqüentadores do CTG Jayme Caetano Braun, o folclore também é uma
noção que faz referência ao tempo passado. Só que esse tempo não está associado às idéias
do que uma categoria charmosa, o antigo é idealizado como a solução frente aos
valores de honra e família, etc. Assim, esses gaúchos procuram se apropriar de tudo que os
sentidos através dos quais o termo foi e/ou vem sendo pensado. Apesar das diferentes
Em 1848, o etnólogo inglês, William Thoms, usou a palavra folklore (saber das pessoas
preservação das tradições; 2) a idéia de comunitarismo, que coloca o folclore como uma
criação coletiva e anônima, como uma manifestação natural do espírito do povo; 3) a idéia
de purismo, caracterizada pelo pressuposto de que o povo não estaria contaminado pela
vida urbana (cf. Chauí, 1986). Atualmente, tal visão foi superada por muitos pesquisadores
do tema. A intenção aqui não é a de fazer uma discussão conceitual do termo. Apenas
pretendo mostrar que alguns ingredientes, que caracterizariam essa “visão romântica” da
208
noção de folclore, continuam presentes, sendo inclusive, apropriados – de formas
oralidade é a noção fundadora do folclore. Os próprios fatos que Thoms enquadra na sua
A partir desses traços definidores, uma manifestação folclórica seria aquela surgida
do povo, uma criação coletiva e anônima e definida por formas orais. Qual dos dois
universos estudados por mim estariam mais identificados com essa visão romântica do
folclore? Poderíamos afirmar que os cantadores estariam originalmente (muito mais que os
notamos é uma tentativa de inversão dessa “realidade”: os cantadores não querem ser
ela está originalmente vinculada ao povo do sertão nordestino. Além disso, ela é uma
prática fundada na oralidade. Mesmo não podendo descartar suas características originais,
os cantadores tecem novas formas de se pensar o fato cultural promovido por eles.
negativo. E é desse rótulo que eles tentam se descolar. Tal desvinculação é feita
209
principalmente através da retomada de traços identificados com o contexto moderno, como
por exemplo, a escrita. A cantoria, enquanto uma manifestação oral, lança mão de códigos
possuem curso superior. Na promoção de seu fazer, eles ressaltam a importância da leitura,
da palavra escrita e pela presença de indivíduos que possam ler e escrever. Atualizando a
tradição oral num contexto urbano, onde a escrita é muito importante, eles se dizem muito
mais do que “improvisadores de versos espontâneos”. Eles são acima de tudo artistas.
romântica do folclore. Muitas das criações dos tradicionalistas não são anônimas ou
coletivas. Com o tempo, elas até se tornaram populares, sendo consideradas partes do
folclore do Rio Grande do Sul. No entanto, são criações recentes e que têm autoria, como
O Negrinho do Pastoreio foi uma composição que eu fiz na época do início do „35‟ quando
nós não tínhamos música, não havia música tradicionalista, nem regionalista, nem nada. (...)
depois, o Conjunto Farroupilha adotou como uma característica nos seus programas de
televisão e foi muito divulgada, conhecida. Hoje faz parte do patrimônio do Rio Grande do
Sul (...). Em seguida aquilo passa a ser folclore. A Orquestra Sinfônica de Porto Alegre
apresentava o Negrinho do Pastoreio como de autor desconhecido. E um dia foi apresentar
no aniversário do Colégio Anne Frank no fim de 1978 (minha filha estudava lá) (...) e o
apresentador disse: “E, agora, de autor desconhecido, o Negrinho do Pastoreio”. Minha
mulher estava junto e podia ser outro Negrinho do Pastoreio, mas era o de minha autoria.
Quando terminou ela se levantou da platéia e disse: “Ó... não é de autor desconhecido; eu
durmo todas as noites com ele e se chama Barbosa Lessa”. (In Oliven, 1992a: 111-112).
tradicionalistas? Note que no CTG Jayme Caetano Braun, o evento considerado como o
mais genuíno é a Noite de Poesia Crioula, por ser um momento em que homens contam, em
210
torno de um fogo de chão, os causos da estância 8. No entanto, o espaço reservado aos
Enfim, o contexto no qual o tradicionalismo surgiu foi o da escrita. Para Jack Goody
(1968), a escrita é um modo de comunicação que fixa referências. Ela atua por pontos fixos
e são por isso, menos tolerantes às mudanças (op. cit.: 2-3). Apesar de serem modernos, os
tradicionalistas fazem questão de resgatar o passado. E fazem de tudo para criar uma
e no CTG Jayme Caetano Braun, os perigos apresentam fontes diversas. O que pode ser
visto como positivo para os freqüentadores de uma entidade, pode não o ser para a outra.
uma categoria poluidora, capaz de macular. Para os freqüentadores do CTG Jayme Caetano
Para os cantadores, a manifestação cultural promovida por eles não pode ser
caracterizada como folclórica. O que eles fazem é arte, fruto de um esforço intelectual de
ameaça está situada no que muitos informantes nomeiam como a “cantoria folclórica”. A
8
Vide Capítulo V.
211
cantoria folclórica é aquela entendida como uma forma congelada no tempo. Para os
com o seu tempo que é o agora. A cantoria precisa ser “técnica”. A técnica implica o uso de
presente.
No CTG Jayme Caetano Braun, nos situamos em outro nível. De acordo com Ruben
catastrófica a respeito do mundo atual. A modernidade é vista como uma ameaça. No CTG,
parece que o perigo advém da idéia de modernização. Quanto mais tradicional, melhor. È
nesse contexto que surge a noção de folclore. Ela remete a um passado idealizado de forma
espaço considerado benigno e passível de ser revivido no presente pelo resgate da “vivência
folclórica”.
9
Trabalho apresentado na XXIV Reunião de Antropologia, Seminário 09, intitulado “Cultura e Política nos
Setores Populares nos anos de 1990”, Olinda, 12 a 15 de junho de 2004.
212
Wilson Trajano (1993) ao pensar sobre o modo pelo qual escrita e oralidade se
relacionam na criação de uma hegemonia cultural e política nos núcleos urbanos da Guiné-
Bissau (:01), nos fornece algumas dicas para pensar a “tensão” entre essas duas formas de
comunicação. Por mais endêmicos que possam ser os rumores (a principal representação da
oralidade na cultura crioula), o autor enfatiza que eles estão ligados à conjuntura e abertos à
Uma vez que as circunstâncias que os ativaram se transformam, assim também eles o fazem. Tal
modo de existir faz com que a memória oral da sociedade não retenha por um longo período uma
versão congelada de um rumor, mesmo porque seu processo de transmissão inviabiliza quase
sempre a idéia de uma versão paradigmática que possa ser rigidamente fixada na memória
(Trajano, 1993: 04).
de muita densidade. Como a noção de folclore, não é nosso objetivo empreender uma
discussão pormenorizada da teoria sobre oralidade e escrita. No entanto, creio que essa
pequena amostra dos autores aqui citados nos ajuda a pensar sobre parte dos motivos pelos
quais se dão a valorização e a desvalorização das mudanças nos contextos dos cantadores
cantoria não fixa um discurso sobre o passado. Devido à falta de registros não há um
controle rígido desse tempo. As mudanças são vividas com naturalidade, incentivadas e
desejadas. Elas são essenciais para a continuidade da tradição. Por ser uma tradição escrita,
o tradicionalismo fixa um passado (por mais simulado que este possa ser). Há um controle
rígido sobre essas formas fixadas em documentos oficiais. Existem livros que ensinam a ser
tradicionalista. E tudo o que não foi previsto no registro é tido como aberrações ou
descaracterizações da tradição.
213
Tanto o CTG Jayme Caetano Braun, como a Casa do Cantador, são entidades cujas
dinâmicas estão marcadas pela vigilância, refletida nas desconfianças constantes e no “não
poder fazer coisas erradas”. Os erros poderão trazer conseqüências perigosas para a
construção das imagens que eles desejam transmitir e para a própria sobrevivência da
tradição. Como diria Mary Douglas (1976), a ordem ideal da sociedade é guardada por
perigos que ameaçam os transgressores. Algumas poluições são usadas como analogias
para expressarem uma visão geral da ordem social (op. cit.: 14). Em última instância, a
atribuição de perigos faz parte do esforço de comunicar e criar formas sociais (op. cit.:
125).
não dizem respeito aos temores divinos, desastres da natureza, cataclismas e tragédias. Eles
não estão situados nesse nível. No contexto das duas entidades, as ameaças têm a ver com a
Apropriando-se de Van Gennep, Mary Douglas (1976) enfatiza que o “perigo está
nos estados de transição, simplesmente porque a transição não é nem um estado nem o
seguinte, é indefinível” (: 119). Nas instituições estudadas nesta tese, os perigos estão
Refiro-me aos trânsitos entre os universos rural e urbano, entre passado e o presente.
214
Na Casa do Cantador, as transições poderiam ser esboçadas da seguinte forma:
mundo rural mundo urbano; tempo passado tempo presente. No CTG Jayme Caetano
Braun, o esquema assumiria a seguinte forma: mundo urbano mundo rural; tempo
1976: 119). Nesse sentido, a cantoria pode ser pensada como uma tradição que pode
contribuir para levar o cantador a uma nova posição: não mais a de um retirante do sertão
“globalizado”. A tradição também pode levar o tradicionalista a um novo status: não mais
como um simples migrante que almeja melhores condições de vida, mas como um
Tais passagens ou transições não são feitas de modo direto, sem mediações e
tensões. Por exemplo, o CTG funciona num ambiente moderno, agenciado por pessoas que
se pretendem construir como tradicionais. Esses indivíduos estão num dilema entre o
vez, constroem os seus dilemas a partir da tensão entre a idéia de folclore, que está na
Vimos que a partir de 1950, vem sendo fomentada uma nova idéia de ruralidade
afastada da noção de atraso. Segundo Pimentel (1997), essas idéias retiram sua eficácia de
um ardil rebaixador, por intermédio do qual se procura valorizar o rural, entre outras
pouco valor à palavra, sem o sentido de grupo ou de comunidade. O rural seria tudo o que o
215
urbano não é. É criada a imagem do “Bom Rural”. Essa imagem irá ser transformada em
valorizada e por isso estão nela. Muito mais que se ater à tentativa de positivação da
imagem do rural-sertão, os cantadores procuram se situar para além dela. Para além do
sertão, existe muito mais. Existe o esforço de se aproximarem de códigos identificados com
urbanidade e a modernidade.
inovação cultural feita pelos cantadores é dar outra roupagem a uma manifestação cultural
associada originalmente à noção de folclore. Eles procuram construir em Brasília uma nova
forma de se pensar e fazer a cantoria. A imagem da “nova cantoria” não é aquela que a
caracteriza como um fato cultural essencialmente oral. A cantoria passa a ser “escrita” por
meio da aproximação dos cantadores com os códigos da educação formal (são alfabetizados
revistas. Além disso, eles procuram fornecer uma autoria para a cantoria. Ela não é mais
uma criação coletiva, anônima. Se a cantoria é arte, ela é fruto de um esforço individual do
artista.
passado), para fatos culturais que datam de um tempo bem recente. Nem todas as práticas
216
Muitos dos seus rituais são criações dos idealizadores do MTG. As criações têm autoria e
estão cercadas por todo um aparato burocrático de atas, registros e manuais que ditam o
como fazer.
“modos de fazer” dos cantadores e dos tradicionalistas. Elas sinalizam práticas sociais
217
CONCLUSÃO
fornecer um quadro geral dos aspectos que foram discutidos ao longo dos capítulos
Como esta tese trata de gaúchos e nordestinos que atualizam no cenário da capital
federal, tradições que fazem parte de seus contextos de origem, a princípio, seria possível
restringir toda análise a elucidações sobre o processo migratório e suas conseqüências. Por
o resgate de determinadas manifestações culturais não pode ser analisado somente como
indivíduo com a nova realidade. Nos universos aqui estudados, a atualização da tradição
218
A inovação da tradição
descompasso entre as partes comparadas. Um dos “lados” pode passar ao leitor a sensação
de que está melhor “etnografado” do que o outro. Assumir tais perigos não é utilizar
elaborar possíveis justificativas para as mesmas. Creio que essas questões são importantes
de serem colocadas uma vez que têm implicações em muitos dos problemas aqui
É com esse propósito que exponho alguns comentários de leitores que mesmo não
sendo antropólogos, tiveram contato com meus escritos e opinaram: “A Parte dos Gaúchos
é bem mais interessante”. O que poderia ter provocado tal impressão? Para localizar tais
motivações tracei duas diretrizes. A primeira delas foi empreender uma autocrítica. E a
foi uma atitude proposital – até o número de páginas que compõe os capítulos de ambas as
Partes é bastante semelhante. Enfim, os julgamentos que valoravam a Parte dos Gaúchos
como sendo mais instigante, não foram gerados pelo formato do texto.
escrita da tese. Pois, sem dúvida alguma, existia algo no teor de meus escritos que
possibilitava aos leitores a sensação de que uma das Partes fosse apreendida como a mais
prazerosa. Quem sabe uma avaliação sobre o processo da coleta de dados e da minha
219
inserção em campo como pesquisadora, pudesse mapear algum descompasso entre os
O tempo dedicado à escrita foi o mesmo para cada uma das Partes. As condições de
dois momentos da escrita. Quanto ao trabalho de campo no que diz respeito à freqüência de
visitas ao CTG Jayme Caetano Braun e à Casa do Cantador foi também equiparada. Meu
tempo foi dividido: a cada semana me dedicava a uma das entidades. Essa escala de
atropelos.
impediu que durante o trabalho de campo me sentisse melhor em um dos ambientes. Estava
mais à vontade na Casa do Cantador. O “estar mais à vontade”, muito mais do que um
sinto mais à vontade é porque trafego melhor naquele ambiente e estabeleço maiores
relações com as pessoas. Não tenho receio em afirmar que as entrevistas realizadas com os
cantadores foram mais estruturadas, feitas com mais calma e num fluxo de diálogo
Os motivos pelos quais me sentia melhor na Casa do Cantador eram vários. Nos
momentos iniciais da pesquisa, quando não tinha estabelecido uma afinidade com os
informantes, nos eventos da Casa do Cantador podia sentir o conforto de ser vista e tratada
como uma espectadora, ou seja, era dissolvida na platéia que assistia ao espetáculo. Nos
eventos do CTG Jayme Caetano Braun não podia assumir tal posição. Lá, eu era a estranha:
era a única que não usava uma indumentária especial; e em muitas ocasiões não existiam
220
pessoas que pudessem compartilhar comigo a posição de platéia. Na Casa do Cantador,
minha presença era festejada. Por considerarem-se artistas, estar ali assistindo a eles, era
bom tom. Abriam suas portas. Quase todas as entrevistas realizadas com os cantadores
foram feitas em suas próprias casas. Conversávamos várias horas. Por diversas vezes fui
convidada para cafezinhos e almoços. No CTG, não “senti” tanto essa abertura e
episódio ajuda a esclarecer algumas questões e é com esse objetivo que o relembro 1. Num
dia, assistindo a performance do grupo que estava disposta a estudar, uma pessoa da platéia
Gambá? Desculpa chegar assim... mas é que eu achei muito interessante. Isto aqui para
antropólogo deve ser ótimo! È impressionante a quantidade de ritos e tradições que eles têm
aqui!” (Osório, 2001: 16-17). Acredito que se situam nessa esfera, as motivações que
levaram aqueles leitores referidos anteriormente a acharem que a “Parte dos Gaúchos é a
mais interessante”. O que pretendo destacar é que para esses leitores, o CTG Jayme
Caetano Braun seria um espaço privilegiado para a pesquisa antropológica. Não pelo fato
1
Maiores informações sobre a dissertação (objeto de estudo e questões abordadas) são dadas nas páginas
iniciais (páginas 1, 2 e 3) da Introdução desta Tese.
221
da dinâmica das atividades no CTG acontecer num ritmo mais acelerado do que na Casa do
Cantador. Mas, porque naquele cenário é possível perceber uma série de invenções e
suntuosas; até a postura corporal dos informantes, tudo é excesso. Um excesso que sinaliza
Já na Casa do Cantador, tudo parece ser “normal”. Nada ou quase nada, pelo menos
num nível mais imediato e superficial, os diferencia. No cenário, não notamos a presença
de muitos elementos que remetam a uma identificação do espaço como um local especial.
Ceilândia, mas não de Brasília, reconhecida por suas construções modernas baseadas num
urbanismo progressista e funcional. Assim como grande parte dos cartões postais de
Brasília, a obra da Casa do Cantador foi assinada por Oscar Niemayer. Não existem
promovidos pela Casa é o “sino de boi”. Esse objeto, muito utilizado no sertão nordestino
pelos vaqueiros, poderia ser uma alusão ao contexto de origem da cantoria e de muitos
cantadores: o sertão, a vida na roça, os vaqueiros, etc. O sino de boi, que circula pelas
mesas destinadas à platéia nas Noites de Cantoria, funciona como uma espécie de
campainha para que os presentes acionem os serviços de bar da Casa. “Você dá uma
público se diverte com essa “curiosidade”. Vez ou outra, o diretor, que também é cantador,
dá uma sacudida no sino, provocando risos na platéia. O que pretendo enfatizar é que o uso
222
desse “objeto típico” é encarado como uma forma de divertimento. Ao contrário, os
símbolos utilizados pelos tradicionalistas não têm a função de divertir. Se todos acham
graça quando o cantador chacoalha o sino de boi, no CTG ninguém ri ao ver um padre
numa Missa Crioula tomando vinho, ou melhor, o sangue de Cristo, em um chifre de boi.
Todas essas situações estão plenas de sentido. Elas correspondem a todo um jogo de
Jayme Caetano Braun. Acredito que os tradicionalistas gaúchos em Brasília tentam ser
diferentes porque já são iguais. Enquanto que os cantadores nordestinos em Brasília querem
ser iguais porque são vistos como diferentes. Vamos ver se podemos esclarecer os
tradicionalistas por meio de seus ritos, de seus discursos e de apropriações simbólicas que
vistos como um grupo diferenciado e coeso. Vimos nos Capítulos VI e VII que esses
A intenção desses gaúchos parece não ser a mesma dos cantadores nordestinos que
esse sentimento e outras questões que se situam no nível das percepções e dos valores, em
223
um primeiro contato com os cantadores não existem elementos que nos possibilitem
movimento cultural organizado; e nem as redes familiares fazem parte da dinâmica da Casa
diferenciado.
Em vários eventos do CTG pude perceber a presença de pessoas com camisas que
enalteciam o fato de serem gaúchas. Estampavam no peito frases do tipo: “Orgulho de ser
contexto dos cantadores seriam: “Sou nordestino sim, e daí?”. Não quero sugerir que só os
gaúchos podem se orgulhar da sua condição original. Não, esta tese não se situa nesse nível,
mas sim no âmbito dos discursos e das interações humanas. O que pretendo mostrar é que o
militância em prol da diferença; enquanto que o discurso dos cantadores prima pela
diferente, ou seja, tornar o diferente familiar ou pelo menos, colocá-lo sob o controle de
seus promotores.
224
domesticar as suas diferenças, nos remete a uma série de questões relativas às
Vimos em vários momentos desta tese que o migrante na maioria das vezes se
inferioridade. No entanto, alguns indivíduos ou grupos podem ser “mais migrantes” do que
outros. Esse é o caso de muitos nordestinos. Esse é o caso dos cantadores nordestinos em
particularidades por um lado, parecem ser o que os tradicionalistas gaúchos tentam reforçar
centro, no Plano Piloto. Quanto à trajetória espacial, as particularidades dos dois universos
dizem respeito ao contexto original dos informantes. Quase todos os cantadores vieram de
regiões rurais do Nordeste. Apesar de terem vivido em outras cidades e grandes capitais
sertão nordestino. O caráter do deslocamento pode ser caracterizado como uma passagem
do meio rural para o meio urbano. A trajetória empreendida pelos freqüentadores do CTG
225
Brasília é o universo urbano, e não as comunidades rurais como seus ritos e seus discursos
parecem sugerir.
cantadores não temem em afirmar que vieram para a capital federal com o objetivo de
melhorar de vida. Nesse projeto, estar em Brasília é essencial. Viver na cidade não é algo
aleatório, mas sim uma escolha. Para os tradicionalistas a migração não parece se constituir
Eles vieram porque foram transferidos e não porque Brasília ocupava um lugar especial no
justificar a migração, ajudam a edificar modos de se pensar o migrante. Nos contextos aqui
tipos regionais. Os informantes não são apenas migrantes, são antes de tudo, migrantes
modos diferentes nas duas entidades. Um momento especial para o manejo, reafirmação ou
reinventando imagens, constroem seus ritos. Utilizando um repertório ritual, mensagens são
226
comunicadas. Através dessas situações especiais, essas pessoas imaginam e simulam a si
mesmas.
apresentá-los aos que não são gaúchos ou aos que não são nordestinos. Por menor ou maior
que seja a platéia desses eventos, durante uma apresentação de chula ou da elaboração de
específicas de suas regiões natais. Ou seja, esses eventos são momentos privilegiados onde
Caetano Braun são entidades que se organizam com a pretensão de exporem as qualidades
do “ser nordestino” e do “ser gaúcho”. O “nordestino” e o “gaúcho” são expostos por meio
duas instituições é o meio rural: num caso, o sertão nordestino e no outro, a campanha
respeito ao modo como os informantes acionam o universo rural. Ambas entidades, cada
uma a sua maneira, revisitam esse ambiente. No caso dos cantadores, o “rural” está na base
do contexto original da manifestação praticada por eles. Por sua vez, os tradicionalistas se
nunca fizeram parte de suas vivências, para construir a dinâmica de suas tradições. No
227
entanto, é preciso esclarecer que eles estão se referindo a universos rurais que são valorados
e reconhecidos diferentemente.
Foi dito que para se construírem como cantadores e como tradicionalistas esses
dentro do qual está inserido tudo aquilo que é considerado como tradição ou símbolo de
uma determinada coletividade, impõe-se uma ampla gama de objetos e referências espaciais
significados.
pampas, a figura que seria a representação de um tipo nacional (: 13). O gaucho representa
Parafraseando o autor, o final o século XIX, afetado pelo influxo de estrangeiros e por um
caótico crescimento urbano, não seria o tempo para se encontrar símbolos da nacionalidade.
Na Argentina, entre os anos de 1898 e 1914 foram fundadas centenas de entidades que
tinham como missão recriar os costumes do gaucho (op. cit.:14). Sem adentrar numa
discussão sobre a formação dos Estados-Nações e sobre as forças políticas envolvidas nesse
processo, o que quero ressaltar com esse exemplo é a apropriação de elementos como
símbolos de uma nacionalidade, e no caso desta tese, de uma regionalidade. O gaúcho dos
pampas, seu ambiente rural e um tempo situado no passado é utilizado para a construção de
tipos sociais. O passado e o rural são traços apropriados positivamente e é por meio deles
efetivamente uma ligação original com o mundo rural. Foi nesse meio que muitos
228
cantadores nasceram e viveram grande parte de suas vidas. No entanto, o “rural” não é
valorado de forma positiva. Ao contrário, ele, na maioria das vezes, encarna um contexto de
passado, não cria tipos heróicos e positivos, como o gaúcho, o centauro dos pampas. O que
do matuto, eles partilham dela. Apesar de em várias sextilhas, ressaltarem seus aspectos
positivos, eles não pretendem construir uma outra visão imagem do sertão. Em Brasília, o
que eles querem é o distanciamento de tal noção, lutando pelo reconhecimento enquanto
É dentro de todos esses jogos de intenções que podemos analisar os modos como os
revistas, etc. Para um cantador ser considerado bom, ele precisa estar familiarizado com
humanidade. Quanto mais atualizado for e mais conhecimento tiver, melhor e mais
respeitado será o cantador. Na concepção dos cantadores, que à custa de muita luta estão
radicados na capital federal, nomear a manifestação praticada por eles como folclórica seria
o mesmo que maculá-la. O folclore remete ao passado, ao atraso e a tudo o que a cantoria
atual não é. A referência ao passado é uma menção ao modo de vida de antigos cantadores
229
miseráveis e analfabetos. É nesse plano que se situam os motivos pelos quais eles não usam
cantadores na capital federal precisam e querem ser modernos. Por isso, a tradição
atualizada em Brasília é percebida como uma arte: “Aqui nós fazemos a cantoria artística e
não folclórica”. Ela é arte porque exige destreza, habilidade, criatividade, esforço
uma região caracterizada pelo atraso como arte, os cantadores tentam se aproximar de
formal, o domínio da língua falada e escrita e o uso de uma vestimenta identificada com os
folclórica”. Nomear uma manifestação como folclórica é também resgatar o passado. Esse
tempo merece ser lembrado ou mesmo inventado através do uso de roupas típicas e da
assumir uma carga moral que coloca os indivíduos em contato com experiências que,
meio rural, eles dizem encontrar uma espécie de solução para os principais problemas da
cantadores nordestinos em Brasília ouvissem de mim: “O que vocês fazem é uma inovação
230
cultural”, a frase seria entendida como um elogio. Acho que a reação dos tradicionalistas
gaúchos não seria a mesma, e creio que se eu pronunciasse a frase de um modo enfático,
fomentadas por eles, representa uma ameaça. Para os cantadores as renovações são bem-
quero sugerir é que tanto os cantadores como os tradicionalistas não se mostram “incapazes
de obedecer a forças novas”. As tradições dos cantadores e dos tradicionalistas são criadas
de propósito, conforme sugere Marcel Mauss (1979), são fatos conscientes, consistem no
saber que uma sociedade tem de si mesma e de seu passado e resultam de necessidades da
tentam edificar uma nova imagem da cantoria compatível com a vida metropolitana e atual.
Os tradicionalistas fazem uso de fatos tradicionais que são atualizados com o propósito de
231
passado para o presente. Inovando a tradição, os tradicionalistas navegam do urbano para o
rural, do presente para o passado. Isso não impede que tais passagens sejam feitas com
inúmeras intermediações, ambigüidades, idas e voltas. È por esses caminhos, marcados por
inúmeros fluxos, que os informantes resgatam e promovem suas práticas culturais inovando
fatos tradicionais.
CTGs é novo. O tradicionalismo é uma tradição recente. Para tornar autêntica essa
documentos. Essa fixação garante uma legitimidade que é reconhecida e respeitada pelos
seus promotores. Esse caráter oficial também possibilita a apreensão da tradição não como
uma mera invenção que começou a ser encenada com um grupo de estudantes na cidade de
Porto Alegre, mas como uma representação autêntica de todo o povo gaúcho. Assim,
muitas de suas manifestações são prescritas por atas, leis e estatutos. Os tradicionalistas
fazem uso de todo um código moderno e burocrático para praticarem seus fatos culturais.
Ao mesmo tempo em que enfatizam resgatar no CTG traços de uma cultura do passado,
lidam o tempo todo com tecnologias que dão visibilidade ao grupo, como o uso de
principalmente às oposições entre o ser e o estar. Conforme já foi na Parte I e III, no caso
232
recursos e estratégias, o cantador pretende se identificar com o meio em que estão. Porém,
lugar em que estão, e não o lugar de onde são. As diferenças entre o ser e o estar ganham
nordestinos em Brasília e não como cantadores de Brasília. Por mais inseridos que queiram
estar, é essa vinculação o principal veículo através do qual os cantadores em Brasília, mas
O sentido de pertencer
Lúcia Arrais Morales (1993), em sua dissertação de mestrado sobre a Feira de São
funcionam como sinais diacríticos para exibir seu pertencimento a uma forma de viver (op.
composição do grupo e chamando lealdades que vão lutar para garantir interesses
econômicos, políticos, simbólicos e afetivos (op. cit.: 183). É essa tradição que faz com que
233
pelos cantadores e pelos tradicionalistas sinalizam vinculações a unidades coletivas. Os
grupo não encobrem a importância de estabelecerem redes sociais por meio dos vínculos
categorias sociais, ainda que nitidamente distintas e diferenciadas. Como diria Gilberto
Discutir esse problema teórico não é novidade para os pensadores dos fenômenos
por que as pessoas precisam se relacionar umas com as outras? Essa pergunta, que pode
parecer ingênua e meio absurda, tem uma profundidade teórica bastante complexa, e vários
autores forneceram respostas variadas a ela. Apesar de não colocarem a questão de modo
tão simples e direto como foi aqui colocado, Peter Berger e Thomas Luckmann (1976), em
234
toda a interação social. Elas pressupõem o contato concreto e direto entre as partes em
interação e permitem, segundo os autores, o acesso à subjetividade (op. cit.: 47). O outro
Todas as relações com os outros são, ao fim e ao cabo, estações no caminho em busca de si
mesmo, seja porque se sente igual aos outros e sozinho com suas próprias forças,
precisando de apoio desse tipo de consciência, seja porque, com a capacidade de encarar a
solidão de frente, os outros existem para permitir a cada indivíduo a comparação e a visão
da própria singularidade e individualidade do próprio mundo (: 112).
interpretativo (que não é oposto àquele) que julgo ser mais útil aos propósitos desta tese.
seja, “o estar com um outro, para um outro ou contra um outro” (Simmel, 1983: 168). São
várias as formas com que essas interações são estabelecidas. Uma das formas da vida social
refere-se ao espaço. Impõe-se aqui a noção de estrangeiro. De acordo com o autor, não é
estrangeiro aquele que está distante, aquele que não existe para nós. “Assim como o
próprio grupo. São elementos que se, de um lado, são imanentes e têm uma posição de
membros, por outro lado estão fora dele e o confrontam” (op. cit.: 183). A dinâmica entre
proximidade e distância é o que caracteriza essa forma específica de interação. Para Carla
Costa Teixeira (2000) “o que caracteriza o estrangeiro simmeliano é que ele é alguém que
235
vem de fora, se estabelece, mas não se torna membro pleno do grupo, não aspirando ser
assimilado, esta é a sua condição de pertencer, sua interação positiva com o grupo: estar
A principal questão não é pensar se a noção de estrangeiro pode ser utilizada para
imprecisa. O primeiro fato a ser ressaltado é o de que Brasília já foi uma cidade formada
basicamente por uma população “estrangeira”, ou seja, que veio de fora. A população
nativa era muito pequena para interagir e fazer com que esse outro se sentisse realmente
outro. No universo selecionado para a pesquisa, vários “migrantes” estão na cidade desde a
sua fundação. Esses indivíduos não podem ser pensados como recém-chegados e nem como
estrangeiros, eles são “pioneiros”. Ao contrário do que sugere Simmel com a noção de
estrangeiro, eles estão assimilados ou pelo menos, aspiram ser. Seus padrões “originais”
foram adaptados a uma realidade que em função do tempo de permanência não é tão nova
assim. Muitos não fazem planos de regressar para suas cidades natais. Por esses motivos,
informantes.
Brasília, é importante ressaltar que o que importa para Simmel na idéia de estrangeiro não é
tanto o espaço geográfico, mas o tráfego entre proximidade e afastamento. Meu objetivo
que revela uma forma de relação social que também está presente no meu universo de
236
pesquisa: a dinâmica movediça entre o que distancia e o que aproxima os homens. Meus
cantadores nordestinos ao mesmo tempo em que querem ser vistos como inseridos no
Com os tradicionalistas gaúchos temos a mesma dinâmica, é claro, com algumas nuanças.
Aqui eles não precisam lutar pela inserção, pois por uma série de razões da ordem
econômica, social e cultural 2, eles já estão inseridos. No entanto, fazem de tudo para serem
entre o distante e o próximo, são alguns dos motivos pelos quais meus informantes estão
Jayme Caetano Braun. Elas evolvem, conforme sugerimos ao longo da tese, os diferentes
tipos regionais. No entanto, creio que a principal forma de interação nesses espaços é o
próprio sentido de ser e de estar num grupo. Essas questões parecem ganhar mais força em
Em que medida é possível não ser do e não estar no grupo numa sociedade
antropólogo Roberto DaMatta (1997), ou seja, é aquela fundada e informada “por uma
2
Essas razões foram apontadas em vários momentos desta tese.
237
ideologia em que o indivíduo não existe como ser moral, como sujeito do sistema, a não ser
não estabelecer ligações; e não se sentir parte de uma cultura. É impensável para nós,
sermos somente indivíduos. Precisamos ter algo a mais; algo além do anonimato, da
individualidade e da solidão.
DaMatta (1979, 1994 e 1997) escreveu vários textos que pretendem elucidar esse “jeitinho
brasileiro” em que muitas coisas são resolvidas a partir de uma pergunta tão acionada por
nós: “sabe com quem você está falando?”. A conclusão de todas essas análises é a de que
em nossa sociedade, a palavra de ordem é a relação, ou seja, as relações pessoais são partes
negativo, revelando apenas a solidão de um ser humano marginal em relação aos outros
membros da comunidade” (DaMatta, 1997: 77). São as relações que permitem revestir uma
pessoa de humanidade (op. cit.: 82). A existência social se legitima pelos elos que
mantenho com outras pessoas num sistema de transitividade e gradações. Nos Estados
Unidos pode-se viver sem laços sociais imperativos e instrumentais, enquanto que no Brasil
“ninguém existe de modo social pleno sem ter uma família e uma rede de laços pessoais
imperativos e instrumentais” (op. cit.: 92). São configurações sociais que apontam para
238
Por que é importante ter relações, ser um ser relacional? Será que as respostas,
como sugere DaMatta em seus estudos, ligam-se às questões de favorecimento, o “se dar
bem”, deixar de cumprir leis universais, uso da relação pessoal para a navegação social,
estratégias políticas e sociais? E quanto ao meu objeto de análise? Por que são acionadas as
redes? Por que esses gaúchos e nordestinos formam agrupamentos sociais? Vínculos
informações gerais, apoio financeiro para facilitar a mudança, assistência com despesa e
manutenção dos laços com a distante comunidade de origem” (: 264). O efeito das redes
migratória são amplamente enfatizados nos estudos sobre migração. As redes sociais aqui
estabelecidas são aquelas dadas pelos vínculos construídos a partir de uma naturalidade em
comum.
Cantador estariam unidos por laços construídos e alicerçados com base num contexto
sociais. Para fortalecer e atualizar tais vínculos, muitos migrantes encontrariam nas
sociais voltados à vivência da experiência dos fatos tradicionais. Conforme foi demonstrado
nos capítulos das Partes I e II desta tese, não nego tais argumentações. No entanto, quero
239
mostrar que por de trás do significado do ser conterrâneo, existe uma outra dimensão capaz
Para DaMatta (1997), a saudade é uma categoria social básica, ela dá pleno
significado a certa forma social e a certo estilo de recordação. A equação social é: quanto
mais saudade mais intensa é a memória do morto, do lugar deixado, de pessoas distantes,
ou seja, mais intensa e presente é a relação social. “E se eles têm locais e instituições
específicas onde podem ser vividos, então essas relações são permanentes mesmo sem a
não é suficiente e determinante tanto para a iniciativa da formação como para a manutenção
dos agrupamentos sociais aqui estudados. Se a atualização das tradições fosse fundamental
Uma das questões que me motivava no início da construção da tese, quando ainda
na realização do Projeto, era pensar o resgate e a atualização das tradições como uma
das vezes, o pesquisador vai à “campo” repleto de pré-noções teóricas, até que somos
pesquisa, talvez, tenha sido mais saudosista do que meus próprios informantes. Esse fato
foi comprovado por mim numa situação de campo. Conversava com uma tradicionalista
que está na cidade desde os tempos de sua construção. Ela e o marido participaram da
sua vida. O local se apresentava como um espaço por excelência do lazer; um local onde
240
essa senhora de sessenta anos se sentia muito útil, ajudando na preparação de festas e
eventos; um local onde ela dançava e se divertia a noite inteira com o marido; enfim, um
local onde ela estava entre amigos. Frente a tais comentários, interrompi sua fala e lancei o
meu pressuposto teórico de forma afoita: “Então, isso aqui foi muito importante na sua
ver. Quando cheguei em Brasília nem existia CTG. Os gaúchos... a gente contava no dedo.
acionamento de redes de relações. Por que nem todos os gaúchos e nordestinos integram
centros de tradições? Eles podem até não estar integrados aos CTGs ou às Casas de
Cantadores, mas com certeza acionam outros tipos de interações. Dentro de seu campo de
possibilidades, o sujeito tem outras formas de estabelecer laços que não sejam via a
Nesta tese dei especial atenção aos agrupamentos onde a idéia de tradição cultural
sobrevivência social através da formação de redes. Em tais espaços são construídas formas
manifestações que existem no lugar de origem dos informantes, como a música, a dança e a
interação humana.
241
Estando juntos, os informantes inovam tradições; se localizam no cenário de
Brasília; se posicionam frente aos seus cenários natais; elaboram jogos de intenções; e
improvisando versos, criam um ideal de unidade por pertenceram a um grupo, por mais
derivadas desses processos são motivadas por necessidades e interesses, mas também por
Assim, o sentido de ser e estar num grupo pode também significar o simples prazer
momento sociável. Estar junto no CTG e na Casa do Cantador constitui-se num valor. A
noção de grupo transforma-se numa categoria social valorizada dentro do próprio grupo. É
Eu sou do Sul ou era, já nem sei mais... O fato é que eu nunca pensei que um dia fosse
sentir saudades de Brasília.
242
Apesar de estarem constantemente fazendo uso de referências espaciais específicas,
grupo social. Em outras palavras, muito mais do que a idéia de pertencimento a um lugar,
fazer parte do CTG Jayme Caetano Braun e da Casa do Cantador, proporciona o sentimento
de ser e estar num “grupo”. È nesse sentido que a saudade pode não ser mais de lá. Agora, a
Nordeste e do Sul e festejam o significado de ser e estar num grupo. A celebração se dá não
apenas por meio da atualização de fatos tradicionais, mas também através da edificação de
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