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APOSTILA 

Filosofia do Direito | 1ª ed.

SUMÁRIO

1. ÉTICA E DIREITO NO MUNDO ANTIGO 2

2. JUSNATURALISMO: FILOSOFIA DO DIREITO NA MODERNIDADE 7

3. CONTRATUALISMO 11

4. CONTRATUALISMO TOTAL – ROUSSEAU 15

5. IMMANUEL KANT 18

6. POSITIVISMO 23

7. UTILITARISMO 30

8. MORAL 33

9. LIBERDADE 37

10. CONCEITO DE DIREITO 42

11. HERMENÊUTICA JURÍDICA 47

12. FILOSOFIA DO DIREITO CONTEMPORÂNEA 51

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Filosofia do Direito | 1ª ed.

1. ÉTICA E DIREITO NO MUNDO ANTIGO

A Ética é um dos ramos do pensamento filosófico, nascido na Grécia, por volta do século V
a.C.

Com efeito, a Filosofia é uma criação da cultura grega, cuja novidade foi introduzir um novo
modo de pensar, um novo modo de explicar o mundo, baseado na razão, na racionalidade.

Este pensamento racional inaugurado pela Filosofia vem substituir a visão mitológica do
mundo, o então modo tradicional de explicação das coisas.

Basta pensar na criação do universo. Toda cultura tem uma explicação – mitológica – da
criação. No entanto, o modo de racional de pensar, inaugurado pela Filosofia, busca essa
explicação tão somente nos fenômenos naturais, em relações físicas, as quais podem ser
explicadas matematicamente.

Daí é possível afirmar que a explicação física da origem do Universo – o “​big bang”​ – é
resultado direto do surgimento da razão filosófica no Grécia Antiga.

Assim, os primeiros filósofos ficaram conhecidos como os “filósofos físicos” ou filósofos da


physis (natureza). Buscavam, justamente, compreender qual era o elemento a partir do qual tudo
o que existe é formado.

Tales de Mileto – considerado o primeiro filósofo – afirmava que esse elemento era a água.
Outros depois dele afirmaram que esse elemento era a terra, ou o ar, ou o fogo, etc.

O início da Filosofia, portanto, tinha como preocupação compreender o que constituía isso
que chamamos de natureza.

Não havia, nos primeiros filósofos, a preocupação em analisar as questões humanas de uma
maneira geral, em que estão inseridas, hoje, a cultura, o direito, a moral e as instituições sociais.

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Apenas posteriormente, surge, na Filosofia, uma geração de pensadores interessados mais


nas questões humanas do que na natureza do universo. Este grupo ficou conhecido como os
Sofistas.​

Não era um movimento ou um grupo coeso de pensadores, mas sim uma atividade, na qual
se inseriram pensadores de diversos matizes, mas que tinham em comum o interesse por
assuntos mundanos, como a política e o direito. Protágoras, Cálicles, Górgias e Trasímaco são
alguns sofistas célebres que podemos citar.

Os sofistas voltaram seu pensamento para as questões humanas ao passarem a trabalhar


com a distinção entre natureza e cultura. O pensamento mitológico desconhecia essa distinção.

A explicação mitológica das coisas se trata de uma explicação cultural: há sempre uma
divindade que age para que as coisas sejam como são.

A partir da separação entre natureza e cultura, passa a ser possível distinguir entre o que
existe por natureza e, como tal, não pode ser alterado pelos homens, e o que é obra da cultura
humana e, portanto, artificial, modificável, sujeito a alterações conforme a vontade de
determinada sociedade em determinado período de tempo.

É neste exato momento em que se inicia a discussão sobre justiça. Ela surge a partir do
conceito de direito natural desenvolvido pelos sofistas.

Não há, entre eles, uma uniformidade a respeito do conceito de ​direito natural,​ pois
encontramos diferentes explicações em diferentes autores da sofística. Mas, seja qual for o seu
conteúdo, o fato é que o conceito de direito natural, desde o princípio, serviu como um elemento
de crítica ao direito em vigor.

Foi do direito natural, portanto, que surgiu a discussão a respeito da justiça do direito, pois ela
consiste justamente na crítica do direito posto.

Os Sofistas, no entanto, causaram um enorme abalo nos fundamentos da cultura grega,


porque o resultado do seu pensamento foi uma enorme relativização de tudo em que se
acreditava.

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Nada ficou à margem da dúvida. Isso gerou uma crise na cultura grega e em suas instituições.

É justamente para buscar resolver essa crise que surge, na Filosofia, a tradição iniciada por
Sócrates e seguida por Platão e Aristóteles.

Sócrates se coloca contra o relativismo extremo dos Sofistas, para os quais a verdade era
uma completa ilusão.

Ele buscava a verdade, no sentido de que buscava chegar ao conceito das coisas. O conceito
é a definição verdadeira de algo. Assim, podemos falar num conceito de justiça, de amizade, de
amor, de direito...

Sócrates se dizia um parteiro de ideias. Seu método consistia em um diálogo, no qual


examinava definições que seus interlocutores julgavam serem verdadeiras, mas que eram
logicamente inconsistentes.

Assim, através dessa dialética, Sócrates acreditava ser possível chegar à verdade.

Por isso, a tradição inaugurada por Sócrates e levada a cabo por Platão e Aristóteles se
opunha à sofística, vista por eles como uma corrente de pensamento que não acreditava na
verdade e tratava qualquer conceito apenas como instrumento de obtenção de poder.

Para eles, a sofística levava a um relativismo que era autodestrutivo: não havia qualquer base
a partir da qual a sociedade poderia se sustentar. Tudo se resumia à vontade de poder de cada
ser humano.

Para reconstruir a cultura grega sob bases estáveis, Sócrates se vale da noção de virtude,
que já fazia parte da cultura grega. Para ele, a falta de virtude era resultado da ignorância.

Assim, se pudéssemos educar adequadamente as pessoas, teríamos bons seres humanos,


pessoas virtuosas.

A discussão sobre o sentido da virtude e sobre como obter pessoas virtuosas passa, então, a
ser o aspecto central da Ética desenvolvida por Platão e posteriormente por Aristóteles.

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Platão, na República, insiste no fato de que o ser humano virtuoso é o resultado de uma
cidade que seja capaz de produzi-lo e, por isso, se ocupa de explicar que tipo de cidade seria
essa.

Em suma, uma cidade virtuosa ou justa seria aquela capaz de alocar cada cidadão em uma
função que corresponda à natureza de sua alma. Para Platão, cada pessoa nascia com uma
virtude preponderante, e a boa cidade seria aquela capaz de respeitar isso.

Assim, o corajoso deveria desempenhar necessariamente as funções militares, para as quais


a coragem era essencial. O sábio deveria ser alocado em funções nas quais sua sabedoria era
essencial: a função de governar.

O bom governo era condição ​sine qua non para a obtenção da cidade justa. Platão, como
Sócrates, enfatiza a importância do conhecimento, da educação e do preparo para que o bom
governo – aquele capaz de criar uma cidade justa e, portanto, cidadãos virtuosos – possa existir.

Daí a metáfora do timoneiro: se alguém vai fazer uma viagem de navio, sem dúvidas, prefere
que o comandante do navio seja alguém que tenha se preparado para tal.

Isso vale para os governantes: eles precisam ser educados na arte do bom governo, que é
resultado da aquisição da sabedoria filosófica. (“A cidade não será justa enquanto os reis não
forem filósofos ou enquanto os filósofos não forem reis”).

Aristóteles continua a afirmar a importância da virtude, mas desenvolve uma teoria menos
transcendente do que a de Platão. “A virtude está no meio” é hoje um clichê, mas que pode ter
suas bases na teoria aristotélica das virtudes. Para o filósofo, a virtude consiste no meio termo
entre dois extremos – a falta e o excesso.

Ser virtuoso, portanto, não é nem pecar pela falta, nem pelo excesso. A virtude é o equilíbrio.

Toda virtude funciona dessa maneira. A virtude da coragem, por exemplo, é o meio termo
entre a covardia (abandonar os companheiros de armas no meio da batalha) e a inconsequência
(buscar ganhar a batalha sozinho).

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O corajoso é aquele que permanece ao lado de seus companheiros quando vê o exército


inimigo, que obedece às ordens de seu comandante, que age no momento adequado, etc.

A justiça também é uma virtude e segue, assim, o mesmo esquema. A justiça é a virtude
social por excelência, pois é o equilíbrio na distribuição dos recursos de cada sociedade, bem
como a distribuição da punição adequada a cada indivíduo.

A teoria aristotélica sobre justiça, encontrada no Livro V de Ética a Nicômaco, é talvez a


explicação mais influente sobre a justiça na história ocidental. Ela se manteve como a explicação
por excelência sobre a justiça até o advento da modernidade.

Assim, a forma mais bem acabada que a filosofia antiga nos legou a respeito da virtude da
justiça foi certamente a concepção aristotélica.

Dela extraímos o conceito de direito – que necessariamente está ligado à ideia de justiça –:
dar a cada um o que é seu (essa definição está no Digesto de Justiniano).

O direito, portanto, consiste em realizar a distribuição justa, equilibrada e, por consequência,


virtuosa, a cada um.

Um dado fundamental da filosofia clássica grega da qual Aristóteles é o ápice é a ligação


entre ética, política e direito. Uma coisa existe em função da outra.

A política existe para concretizar os parâmetros éticos: seu fim é a obtenção da felicidade,
possível apenas na cidade justa, capaz de obter cidadãos virtuosos (criados de acordo com a
ética).

Esta é a verdadeira felicidade do pensamento clássico. O direito é o instrumento da ética e da


política para se realizar a justiça, que é obtida quando se aplica a lei que dá a cada um o seu.

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2. JUSNATURALISMO: FILOSOFIA DO DIREITO NA MODERNIDADE

O jusnaturalismo na modernidade também é conhecido como a Escola do Direito Natural


Moderno. Dela fez parte uma série de autores, como Grócio, Pufendorf e Thomasius.

O conceito de direito natural, como visto, surgiu no seio da filosofia grega clássica para nunca
mais sair do vocabulário jurídico.

No entanto, ao longo do tempo, o conceito de direito natural foi formulado de uma ou de outra
maneira, conforme o momento histórico.

Se, na Idade Média, o direito natural era pensado dentro de um sistema mais amplo que
correspondia à concepção cristã da época, na Modernidade, com a mudança de visão de mundo
a partir do Renascimento, o modo de se pensar o conceito de direito natural também se altera.

A cultura moderna abandonou a centralidade dada a Deus, substituindo-a pelo ser humano
como elemento central da cultura. É o que se denominou ​antropocentrismo​.

O modo de se pensar o direito, a ética e a política, conforme havia sido estabelecido pela
filosofia clássica, e conservado durante a Idade Média, é gradualmente abandonado.

Ética, direito e política passam a ser vistos cada vez mais como esferas independentes de
conhecimento, cada uma delas com seus princípios próprios.

Grócio é considerado o fundador do direito natural moderno e o pai do direito internacional.


Seu pensamento partia de uma noção de natureza humana cujo elemento fundamental era o
appetitus societatis,​ isto é, os seres humanos, como animais sociais, desejam uma convivência
calma e ordenada, e perseguem o que é útil para sua vida.

Por isso, a comunidade humana deveria ser fundada na razão, e não no instinto. Apenas uma
comunidade racional, governada pelos direitos naturais, seria capaz de garantir a paz e a ordem.

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Pufendorf rompe com a visão medieval ao separar o direito natural do direito divino. Para ele,
os deveres para com Deus eram assunto exclusivo da religião, enquanto os deveres do indivíduo
para consigo mesmo eram assunto da moral.

Os deveres jurídicos não têm ligação nem com o âmbito religioso e nem com o âmbito moral.

Ao direito, cabe tão somente tratar dos deveres racionais do indivíduo para com a sociedade.
Pufendorf aponta a existência de três deveres jurídicos fundamentais, quais sejam que ninguém
cause danos a outrem; que cada pessoa trate a outra como igual em direitos e que cada um apoie
o outro tanto quanto possível.

Thomasius buscou delimitar os campos da ética, da política e do direito, identificando os


mandamentos racionais de cada uma dessas áreas. Na ética, os valores-chave são a
honestidade, a honra e a paz interior. Por isso, ela diz respeito aos deveres do indivíduo para
consigo mesmo.

A política se funda na integridade, na correção. Assim, ela se orienta de acordo com a regra
de ouro positiva: faz aos outros aquilo que queres que os outros façam a ti.

O direito se sustenta a partir do princípio básico da justiça e da proibição de causar dano a


outrem. Dessa forma, ele está submetido a uma regra de ouro negativa: não faças aos outros
aquilo que não queres que façam a ti.

O jusnaturalismo na modernidade pensava o direito natural como algo que podia ser deduzido
das verdades da razão às quais nós, seres humanos, tínhamos acesso.

Este exercício da racionalidade nos permitia alcançar o conhecimento sobre o que é a


natureza humana, e é justamente essa natureza que servia como padrão de justiça para avaliar o
direito positivo. Se é possível afirmar, por exemplo, que os seres humanos são livres e que usam
essa liberdade a fim de estabelecerem compromissos mútuos, daí seria possível extrair uma
regra de validade universal, qual seja, a de que os pactos estabelecidos devem ser cumpridos
(​pacta sunt servanda)​ .

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Seria possível, portanto, identificar certos direitos naturais, que expressariam essas verdades
da razão a respeito da natureza humana.

Como é racional e, portanto, verdadeiro, o direito natural é sempre justo, sendo


universalmente válido. Ele se relaciona com o direito positivo de uma maneira hierárquica, ou
seja, o direito natural é seu fundamento de validade.

Assim, se ele viola o direito natural, deve ser considerado inválido. Isso explica como o
conceito de direito natural acaba cumprindo um papel crítico em relação ao direito positivo. Quem
desejava mudar este último, apelava ao primeiro.

John Locke é um dos principais autores do jusnaturalismo. Segundo ele, os seres humanos
possuem um conjunto de direitos naturais inatos, que são a vida, a liberdade e a propriedade.

O estabelecimento do Estado por obra do contrato social não transfere esses direitos do
indivíduo para o poder público. As pessoas continuam de posse desses direitos naturais, que
devem ser respeitados por toda e qualquer lei positiva.

Caso isso não aconteça, o povo estará legitimado a resistir contra o Estado ao qual se
submete, tornando possível o exercício de um legítimo direito à revolução.

Essa foi exatamente a justificativa teórica utilizada pela Declaração de Independência dos
Estados Unidos, que afirmava o direito das então treze colônias de se verem livres do injusto
domínio da Coroa Inglesa.

Christian Wolff, a partir do pensamento de Leibniz, passou a compreender o direito como um


sistema fechado, que dependia apenas de suas próprias leis racionais. Isso acabou por levar às
codificações dos séculos XVIII e XIX, como o Código Bávaro de 1756, o Código Prussiano de
1794, o Código Napoleônico de 1804 e o Código Austríaco de 1811.

O surgimento das codificações significou ao mesmo tempo o apogeu e a queda da escola do


direito natural moderno pois, com o direito codificado, era o direito positivo que passava ao
primeiro plano. O direito passou a ser sinônimo de norma positivada.

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3. CONTRATUALISMO

O contratualismo enxerga a instituição da sociedade civil e, por consequência, do Estado,


como o resultado de uma criação artificial humana. Isso o coloca em oposição aos clássicos,
como a tradição filosófica grega, que via a sociabilidade humana como um fato natural.

Esta intervenção humana ocorre por meio de um acordo entre os indivíduos – o contrato
social –, que põe fim ao estado de natureza e cria a sociedade política. Todavia, o entendimento
do que seria esse estado de natureza não é uniforme entre os contratualistas.

Hobbes e Spinoza consideram o estado de natureza como um estado de guerra, em que


domina o interesse próprio e em que prevalece a lei do mais forte. Por isso, trata-se de uma
situação em que prevalece a incerteza e a insegurança.

Já na visão de Rousseau, esse estado de natureza era uma situação em que havia paz,
satisfação e felicidade, que acaba com o estabelecimento da sociedade civil, causadora dos
males da vida humana.

Para Locke, no estado de natureza, os direitos naturais já eram conhecidos e, portanto, já


serviam de limitação à vontade humana, permitindo que a paz fosse obtida. Nessa concepção, o
ser humano já possuía os direitos naturais à vida, à liberdade e à propriedade.

O Estado, assim, vem não para criar esses direitos, mas para estabelecer uma autoridade
capaz de fazer com que eles sejam observados do modo mais eficaz possível.

Essa mesma ideia pode ser encontrada nas várias declarações de direitos que surgiram a
partir das últimas décadas do século XVIII. A Declaração de direitos do bom povo da Virgínia, de
1776, afirma:

“Que todos os homens são, por natureza, igualmente livres e independentes, e têm certos
direitos inatos, dos quais, quando entram em estado de sociedade, não podem por qualquer

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acordo privar ou despojar seus pósteros e que são: o gozo da vida e da liberdade com os meios
de adquirir e de possuir a propriedade e de buscar e obter felicidade e segurança”.

Para os contratualistas, de modo geral, a função do contrato social é justamente a de realizar


a passagem do chamado ​estado de natureza para a sociedade civil ou política. Esta seria uma
forma de organização na qual as pessoas se encontram submetidas ao poder soberano do
Estado Moderno.

Assim, o contrato social fornece a justificativa para o exercício do poder pelo Estado na
modernidade.

Por isso, podemos dizer que o contratualismo é um instrumento da teoria do direito natural
moderno, que tem como função fornecer uma justificativa teórica para a existência do direito e do
Estado.

O contratualismo esteve sempre muito associado ao jusnaturalismo, sendo utilizado pelos


autores dessa corrente como a teoria justificadora do estabelecimento dos direitos.

Todo exercício de poder precisa de uma justificativa que lhe forneça legitimidade, pois o poder
nunca se sustenta se estiver fundado apenas na pura força.

Na Idade Média, por exemplo, o exercício do poder se justificava pela vontade divina. Daí a
teoria do direito divino dos Reis de governarem. Na Modernidade, surge a necessidade de uma
nova justificativa, encontrada na Teoria do Contrato Social.

Thomas Hobbes é talvez o mais célebre defensor da ideia de contrato social. Segundo ele, o
estado de natureza era uma situação na qual todos tinham absoluta liberdade e, justamente por
conta disso, por não existirem quaisquer limitações à ação humana, “o homem era o lobo do
homem”.

Num ambiente em que qualquer pessoa pode fazer o que quiser, “a vida é dura, breve,
insegura e cruel” porque, a qualquer momento, alguém pode perder sua propriedade, seus bens e
sua vida para um outro mais forte.

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Com o tempo, percebe-se a necessidade de superar tal estado de coisas. Esta superação se
dá por meio do contrato social, no qual as pessoas se unem para criar um poder maior do que o
poder de todas elas, um poder absoluto, soberano, que garantirá a paz. Com o contrato social, as
pessoas trocam a liberdade absoluta pela liberdade limitada pelo poder do Estado, e é isso o que
garante a paz. A partir deste momento, surge a sociedade civil.

A sociedade civil nasce em oposição ao estado de natureza, e institui um poder comum: o


Estado. Ele deve ser capaz de garantir aos indivíduos associados alguns bens fundamentais,
como a paz, a liberdade, a propriedade, a segurança, que, no estado de natureza, são
ameaçados seguidamente por conflitos constantes, cuja solução se dá exclusivamente pela
autotutela.

O surgimento do poder público, que julga e pune infrações às leis estabelecidas, vem para
substituir a solução privada dos conflitos. Isso marca a diferença entre a sociedade civil e a
sociedade natural.

Segundo a teoria do contrato social, o fundamento sob o qual se sustenta a concepção de


Estado moderno, o princípio da soberania estatal nasce desse contrato social. O poder soberano
é um poder que não admite rivais. É um poder que se pretende único dentro do território que
controla.

Assim, a criação e a aplicação do direito só podem caber a esse Estado. É ele quem exerce
esse monopólio. Como resultado disso, tem-se a afirmação de que só pode ser direito a norma
editada e publicada pelo órgão estatal, ou seja, só é direito o direito positivo.

Por isso, muitos autores apontam Hobbes como o pai do positivismo jurídico.

Enquanto a teoria de Hobbes vê o Estado como o detentor de um poder absoluto, Locke limita
o poder do Estado justamente aos direitos naturais pré-estatais. Assim, o poder do Estado só
pode ser exercido nos limites do respeito a esses direitos pois, caso contrário, abre-se a
possibilidade do direito à resistência contra o Estado.

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Além disso, Locke insiste no controle do poder executivo pelo legislativo, bem como no
controle do governo pela sociedade, que se encontra no cerne da ideia de Estado de Direito.

Diversos autores se utilizaram do argumento do contrato social. Pode ser até que, para
alguns, esse contrato fosse tomado como um evento histórico real, firmado em um momento
específico.

Para muitos outros, todavia, essa questão não tem importância, uma vez que a função maior
da ideia de contrato social é fornecer a justificativa teórica do direito e do Estado modernos. É
uma questão que está na ordem da razão e não necessariamente dos eventos históricos. É assim
que Rawls, por exemplo, já no século XX, considera o contrato social.

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4. CONTRATUALISMO TOTAL – ROUSSEAU

Rousseau é um dos autores que adotaram o argumento do contrato social. Sua teoria, no
entanto, embora se assemelhe às teorias de Hobbes e de Locke neste aspecto, difere-se delas
em vários outros pontos.

Ao contrário da maior parte das pessoas de seu tempo, Rousseau desconfiava do progresso
social até então obtido. Isso porque ele via a sociedade mais como uma causa da decadência do
ser humano do que como um fator de sua evolução.

Para Rousseau, o homem era originalmente bom, mas a instituição da sociedade civil o
corrompeu (“o homem nasce bom, mas a sociedade o corrompe”), tornando-se a causa dos
defeitos e dos males humanos.

Como o homem em sociedade está num estado degenerado, o papel da investigação


filosófica deveria ser o de descobrir o homem como ele de fato é, ou seja, como ele é por
natureza.

A partir dessa revelação, seria possível reconstruir a civilização e regenerar o ser humano,
fazendo com que ele voltasse a ser o que era no estado de natureza.

Essa regeneração se assentaria sobre duas bases, quais sejam, a educação e a refundação
da sociedade civil por meio do contrato social.

A proposta educacional foi apresentada no ​Emilio.​ A proposta de refundação da sociedade


civil se encontra no ​Contrato Social.​ No capítulo primeiro do livro I dessa obra, encontramos uma
passagem que se tornou célebre:

“O homem nasce livre e por toda parte se encontra sob grilhões. Aquele que mais acredita ser
o senhor dos outros não deixa de ser mais escravo do que eles. Como ocorreu essa mudança?
Ignoro-o. O que pode torná-la legítima? Creio poder resolver essa questão”.

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No ​Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens​, de 1755,


Rousseau afirma que a primeira pessoa que cercou um pedaço de terra e encontrou outros
ingênuos o bastante para acreditarem que a terra era dele foi o real criador da Sociedade Civil.

Rousseau argumenta que os males que conhecemos da vida social derivam desse momento
e que poderiam ter sido evitados caso o grupo não tivesse aceitado essa afirmação da
propriedade privada sobre a terra. A causa da desigualdade é, portanto, a propriedade privada. A
hostilidade e as disputas entre os homens nascem da propriedade, que torna as pessoas
desiguais.

Se a natureza fez o homem feliz e bom, mas a sociedade o corrompeu, a tarefa da Filosofia,
para Rousseau, é tornar o homem novamente feliz e bom. A solução para isso está na fundação
de uma nova sociedade, por meio de um contrato social legítimo, que permita ao indivíduo
conquistar a liberdade de fato.

Essa boa sociabilidade só pode existir pela substituição de um Estado baseado na


propriedade por um novo Estado fundado na justiça e na moral, em que as pessoas efetivamente
convivessem, em vez de lutarem entre si para obter mais propriedade.

O novo contrato regeneraria o ser humano, recuperando a moralidade com base nos valores
do amor próprio, da compaixão e da piedade, que seriam incorporados à política e ao direito, à
medida que o cidadão virtuoso, munido dessa nova moralidade, participasse da elaboração da lei
resultante da vontade geral.

Rousseau diferencia a vontade geral da vontade de todos. Esta é apenas uma soma das
vontades individuais. Aquela é uma vontade comprometida com o bem comum, com o interesse
público.

A vontade geral é encarnada no Estado, que desempenha a função de guardião do bem


comum contra os interesses particulares.

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A liberdade é o atributo que define a natureza do homem. Uma sociedade política, para estar
de acordo com isso, precisa, portanto, funcionar a partir do conceito de ​vontade geral​, que
entende que a norma deve ser o resultado da vontade autônoma do povo.

Só quando o povo dá a si mesmo sua própria lei ele pode ser considerado livre. Desse modo,
é a vontade geral que torna legítimo o exercício do poder. O verdadeiro soberano é o povo, e não
um monarca que exerce o poder isoladamente.

Por isso, um poder só é legítimo se estiver fundamentado na soberania popular. Temos aqui a
defesa de um Estado democrático, pois o poder já não pertence a um rei ou a uma oligarquia.

Essa soberania popular acaba encontrando limites no contrato que dá origem ao Estado. Por
isso, a vontade geral incorpora um conteúdo de moralidade ao poder soberano, permitindo que se
entenda a obediência como exercício de liberdade e a soberania como a ação do povo que dita a
vontade geral, cuja expressão é a lei. Uma lei só é justa, portanto, se for o resultado da vontade
geral do povo.

O contratualismo de Rousseau é oposto ao de Hobbes, porque enquanto este considera que,


no Estado de natureza, o homem é o lobo do homem e o contrato vem para instituir a paz,
Rousseau vê o estado de natureza como uma situação de paz, de harmonia, que se degenera
com a instituição da sociedade civil.

A afirmação de Rousseau e dos jusnaturalistas modernos era a de que o ser humano é


naturalmente livre. Mas a originalidade de Rousseau está em ter afirmado que essa liberdade
natural é inalienável, e que nenhum homem tem o direito de se despojar dela, qualquer que seja o
pretexto. Renunciar a isso significaria renunciar à sua própria qualidade de ser humano.

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5. IMMANUEL KANT

Kant é um filósofo cujo pensamento é extremamente relevante para o direito moderno. O


pensamento kantiano é justamente o ápice do Iluminismo, a partir do qual o direito moderno se
formou, no final do século XVIII e início do século XIX. Kant foi um filósofo que tratou dos
problemas filosóficos em geral: a epistemologia, a filosofia da religião, a ética, a estética, a
antropologia filosófica. etc.

A ciência do direito se valeu do pensamento de Kant expresso, sobretudo, nas obras


Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Crítica da Razão Prática e ​Metafísica dos
Costumes​.

Nelas, o filósofo alemão se ocupou da análise da moral e, influenciado pelo pensamento de


autores como Thomasius e Pufendorf, da distinção entre o direito e a moralidade.

A liberdade é um conceito fundamental no pensamento de Kant, que recebeu uma forte


influência do pensamento de Rousseau, para quem a liberdade era um dado natural e inalienável
dos seres humanos.

Somos livres e, por isso, devemos nos sujeitar às leis que nós mesmos estabelecemos. Ao
fazer isso, somos autônomos. Kant transformou essa liberdade como autonomia no centro de sua
filosofia.

Diferentemente de Rousseau, que havia se concentrado na liberdade do ponto de vista da


política, Kant buscou interiorizar o conceito de liberdade, incorporando à autonomia o sentido de
liberdade moral do indivíduo.

A partir dessa ideia de liberdade, Kant buscou construir uma teoria moral de caráter universal,
orientada por uma lei universal da ação: o imperativo categórico.

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Como todos os seres humanos são iguais na medida em que são racionais e livres, seria
possível formular uma ética universal baseada no mundo inteligível e não no mundo sensível, ou
seja, a partir da ideia de dever-ser e não da ideia de ser.

Para o pensador alemão, uma ação somente poderia ser considerada moral se seu motivo
fosse o respeito pela lei e não apenas a conformidade a ela.

Por isso, para que uma ação seja moral, não é suficiente que um indivíduo tenha agido como
a lei prescreve, por exemplo, só porque temia as consequências de seu descumprimento.

O fundamental é que esse indivíduo tenha agido movido pela intenção de cumprir o que é
devido. A lei moral, como expressão da autonomia do sujeito, é a expressão da sua própria
vontade.

Dessa forma, na ​Fundamentação da Metafísica dos Costumes​, Kant afirma que a ação boa é
aquela que se baseia numa ​boa vontade, ​isto é, na vontade de cumprir a lei porque se deve
cumpri-la.

No entanto, a vontade humana, frequentemente, não age racionalmente, por dever, mas por
inclinações, por paixões, por sentimentos. Para que a vontade esteja de acordo com a razão, é
preciso utilizar uma ferramenta capaz de guiar a vontade do indivíduo na direção correta.

Este guia é justamente o imperativo categórico: uma regra prática que impõe a uma vontade
sujeita, subjetivamente à contingência, os princípios necessários para a ação racional. O
imperativo categórico é, portanto, o mediador entre a lei moral e a vontade do sujeito, para que
ele possa agir por dever e, assim, agir moralmente.

Kant formula o imperativo categórico da seguinte maneira: “age apenas segundo uma máxima
tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” – essa é a primeira
formulação do imperativo.

Ele dá o exemplo de uma pessoa que se encontra numa situação em que tem a necessidade
de contrair um empréstimo, mas não tem a intenção de pagá-lo posteriormente. Se não prometer
pagá-lo, no entanto, sabe que não emprestarão o dinheiro.

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Caso decidisse ir adiante com isso, sua máxima seria: quando julgo estar em apuros de
dinheiro, vou pedi-lo emprestado e prometo pagá-lo, embora saiba que tal nunca sucederá.

Essa ação, embora possa estar de acordo com o bem-estar desse indivíduo, não será moral.
Ao se perguntar o que aconteceria se sua decisão se transformasse em lei universal, essa pessoa
veria que ela nunca poderia valer universalmente, uma vez que, se aplicada por todos, entraria
em contradição, sendo, portanto, inviável e autodestrutiva.

Se cada pessoa que se encontrasse em apuros prometesse algo com a intenção de não
cumprir, isso tornaria impossível a própria promessa, pois ninguém acreditaria mais em qualquer
tipo de promessa.

A ética kantiana entende que agir com base na sensibilidade é fonte de erro, pois tal ação,
invariavelmente, cai em contradição quando se tenta universalizá-la.

Por isso, é somente com base em princípios racionais que é possível agir de forma moral.
Somente agindo como prescreve o imperativo categórico é que se pode obter uma ética universal.
Esse imperativo, entretanto, só é possível na medida em que há um valor absoluto que lhe serve
de fundamento.

Esse fundamento é o de que a natureza racional existe como um fim em si mesmo, uma vez
que “o homem, e, duma maneira geral, todo ser racional, existe como fim em si mesmo, não só
como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade” – esta é a segunda formulação do
imperativo categórico.

Como toda vontade se dirige a um fim, o ser humano, por ser dotado de razão e liberdade, o
que o diferencia dos demais seres vivos, é o único ser no mundo que tem em si mesmo seu
próprio fim.

Todos os outros seres podem ser utilizados como meio para a obtenção das finalidades de
outrem. Já um ser racional e livre nunca deve ser tratado como meio para a obtenção de algo,
mas sempre como um fim em si mesmo.

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Assim, o imperativo prático supremo, do qual devem ser derivadas todas as leis da vontade, é
o seguinte: “age de maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de
qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio.”

Essa formulação do imperativo categórico é de grande importância para o surgimento dos


Direitos Humanos, que existem com base no princípio de que é digna a vida de qualquer ser
humano.

Assim, não se pode utilizar a vida humana como meio para se atingir um fim de outrem, como
acontece no trabalho escravo, pois isso viola o imperativo categórico e, portanto, a dignidade
humana.

Ao analisar o direito, Kant afirma que é da sua essência ser um instrumento para a obtenção
de determinadas finalidades, como a paz social, e não um fim em si mesmo, como ocorre com a
ação moral. Por isso, o direito se preocupa com a conformidade exterior à regra, em vez da boa
vontade que é característica da moral.

Isso explica por que o direito, para Kant, está no campo dos ​Imperativos Hipotéticos, ​que
prescrevem uma ação que é boa para atingir uma finalidade específica, e não uma ação boa em
si mesma, como é a ação moral. Cumpre-se a norma jurídica para se obter segurança, ordem,
para dar a cada um o que é seu.

Na ​Metafísica dos Costumes,​ Kant diferencia a doutrina do direito da doutrina da virtude. Para
ele, a primeira se baseia na coerção, na sanção, sem a qual não haveria direito:

“o direito estrito se apoia no princípio de lhe ser possível usar constrangimento externo capaz
de coexistir com a liberdade de todos de acordo com leis universais. Assim, quando se diz que
um credor dispõe de um direito de exigir de seu devedor que pague sua dívida, isto não significa
que ele pode lembrar o devedor que sua razão ela mesma o coloca na obrigação de fazer isso;
significa, ao contrário, que a coerção que constrange a todos a pagar suas dívidas pode coexistir
com a liberdade de todos, inclusive a dos devedores, de acordo com uma lei externa universal.
direito e competência de empregar coerção, portanto, significam uma e única coisa”​.

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A coerção é determinante apenas no direito porque ele se preocupa com a ação realizada
(visível externamente). Assim, se uma norma jurídica for violada, haverá uma coação como
consequência para forçar a pessoa a agir de determinada maneira.

O descumprimento de uma prescrição moral não resultará numa coação, porque a moral diz
respeito a uma questão de foro íntimo de cada pessoa. O dilema moral se passa na consciência
de cada um de nós. A intenção, aqui, é determinante, e ela não tem como ser forçada pela
coerção.

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6. POSITIVISMO

As raízes teóricas do positivismo jurídico podem ser encontradas já em certos debates da


filosofia clássica. Para alguns intérpretes, a figura do sofista Trasímaco, na ​República,​ de Platão,
expressa o ponto de vista do positivismo, ao afirmar que “o justo não passa da conveniência do
mais forte”. Isso porque esta afirmação liga o direito ao poder, o que é próprio do argumento
positivista.

A separação entre direito natural e direito positivo aparece junto com o surgimento da própria
filosofia. Um representa uma noção de direito estável e justo, enquanto outro representa o direito
estabelecido pelo poder estatal e que se altera com o tempo e com o lugar.

O direito positivo sempre foi pensado em conjunto com o direito natural, o que resultava num
certo equilíbrio, rompido apenas na Era Moderna. Alguns atribuem a Hobbes a paternidade em
relação à ideia moderna do positivismo jurídico, pois ele afirmava que “é a autoridade, e não a
verdade, que faz as leis”.

Ora, afirmar isso é dizer que o direito deriva da autoridade e do poder, e não da conformidade
a algum conjunto de valores ou à ideia de justiça.

O positivismo, portanto, realiza uma separação rigorosa entre direito e moral, de forma que
um não dependa do outro.

O que torna uma norma jurídica válida não é sua conformidade à justiça, mas sim sua
conformidade a outra norma que lhe é juridicamente superior, e lhe serve de fundamento de
validade.

Assim, podemos apontar alguns preceitos-chave do positivismo. Em primeiro lugar, o direito


de uma comunidade é um conjunto específico de regras utilizado com o propósito de determinar
qual comportamento será punido ou coagido pelo poder público.

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Por isso, há a necessidade de “testes de ​pedigree​”, isto é, testes por meio dos quais se possa
constatar se determinada norma jurídica é válida ou não, e se, portanto, pertence ou não pertence
ao ordenamento jurídico. Daí a importância do confronto da legislação infraconstitucional com a
norma constitucional.

Em segundo lugar, o direito é sinônimo desse conjunto de regras jurídicas, ou seja, direito é
tão somente o ordenamento jurídico, um conjunto de normas positivadas pelo Estado. Se não
existir regra apropriada para determinado caso, ele não poderá ser resolvido pela aplicação do
direito.

Por fim, entende-se que há uma obrigação jurídica apenas quando determinado caso se
enquadra numa regra jurídica válida que exige que se faça ou se abstenha de fazer algo.

As condições históricas para o positivismo prevalecer como doutrina no pensamento jurídico


surgem ao final do século XVIII, com as revoluções que levaram ao surgimento das primeiras
Constituições escritas e das codificações.

Esse movimento representou, na prática, a positivação dos direitos naturais, que antes eram
apenas ideias defendidas por filósofos, e depois passaram a ser direitos reconhecidos pelo poder
estatal.

Isso fez com que muitos autores abandonassem a crença num direito natural, pois o que
realmente importava era que o Estado, órgão capaz de impor sua vontade pela força, reconhecia
como direitos.

Outra razão para a prevalência do positivismo jurídico sobre a teoria do direito natural nessa
época foi a descrença no pensamento metafísico que atingiu a cultura europeia no século XIX.
Não se acreditava ser possível chegar ao conhecimento de valores universais, bons e justos.

O que restava era o direito criado pela vontade estatal, que representava a vontade do povo
que elegia seus governantes.

Na tradição jurídica vigente no Brasil, o principal autor do positivismo jurídico é Hans Kelsen,
cuja obra, ​Teoria Pura do Direito,​ se tornou a teoria positivista por excelência. O propósito de

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Kelsen era formular uma teoria científica do direito. Ora, o conhecimento científico é baseado na
exatidão.

Por isso, uma teoria do direito que se quisesse científica não poderia se basear no valor da
justiça, que é algo relativo, que varia de acordo com a percepção de cada sujeito.

Ao mesmo tempo, para uma área do conhecimento poder ser considerada uma ciência, é
necessário que ela tenha autonomia em relação às demais áreas, o que significa dizer que ela
precisa possuir um objeto de estudo próprio.

Isso faz com que Kelsen afirme que uma teoria científica do direito só é possível a partir do
estudo da norma jurídica. Daí porque Miguel Reale denomina a teoria de Kelsen de normativismo
jurídico.

O estudo da norma jurídica, para Kelsen, pode ser feito de duas maneiras. De um lado,
estuda-se a norma em si mesma: qual é a estrutura de uma norma jurídica, o que e de que forma
ela estabelece prescrições, os conceitos de sanção, dever jurídico, responsabilidade etc. Aqui
temos a chamada estática jurídica.

De outro lado, estuda-se o ordenamento jurídico, que é composto por normas jurídicas que
possuem relações entre si.

Aqui, temos o estudo da dinâmica jurídica, em que se destacam os conceitos de validade, de


eficácia e de estrutura escalonada da ordem jurídica, que termina na chamada ​norma
fundamental.​

Para Kelsen, o ordenamento jurídico é uma estrutura hierárquica. Toda norma jurídica precisa
de um fundamento de validade. Na teoria de Kelsen, o fundamento de uma norma qualquer é
encontrado na norma hierarquicamente superior a ela.

Assim, se tomarmos um decreto e perguntarmos sobre seu fundamento de validade,


encontraremos uma lei ordinária cumprindo esse papel. Mas podemos retroceder ainda mais,
chegando à Constituição, a norma que se encontra no ápice do sistema.

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De um ponto de vista exclusivamente lógico, poderíamos retroceder mais ainda e chegar à


chamada norma fundamental. Esta é apenas um pressuposto lógico para se construir uma teoria
jurídica científica, pois toda ordem precisa de um começo.

Por isso, a norma fundamental não pode ter um conteúdo, pois nesse caso, seríamos
obrigados a nos perguntar sobre o seu fundamento de validade.

A função da norma fundamental, portanto, explica-se por uma necessidade lógica da teoria.
Do ponto de vista da aplicação cotidiana do direito positivo, o fundamento último de validade é a
Constituição em vigor.

Kelsen também faz uma distinção importante entre as esferas do ser e do dever-ser. A norma
jurídica se encontra neste campo, pois ela estabelece uma expectativa de comportamento e
determina como alguém deve se comportar. Justamente porque não é certo que a pessoa se
comportará da maneira que a norma prescreve, a própria norma prevê a sanção em caso de
descumprimento da ordem que ela dá.

O direito, portanto, é uma ciência que se encontra no plano do dever-ser. Já a Física e a


Química, por exemplo, se preocupam com normas do plano do ser.

A lei da gravidade ou a lei da termodinâmica, por exemplo, não estabelecem expectativas de


que algo aconteça, mas sim a certeza de que algo acontecerá. Esse tipo de ciência lida com a
causalidade, enquanto o direito lida com a imputação.

A teoria kelseniana do direito permaneceu dominante por boa parte do século XX. Ela rompe
com as teorias clássicas sobre o direito porque exclui a justiça de sua esfera de preocupação.

O estudo do direito passa a ser sinônimo de estudo da norma, que, para ser válida, depende
única e exclusivamente de uma relação com outra norma.

Por isso, em determinado trecho da ​Teoria Pura do Direito​, Kelsen afirma que qualquer
conteúdo pode ser direito.

Ao longo do século XIX e até a primeira metade do século XX, o positivismo permaneceu
como a doutrina dominante no pensamento jurídico.

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Isso deixou de ser verdade após a Segunda Guerra Mundial, pois passou-se a considerar que
uma das causas para os eventos catastróficos daquele conflito havia sido o positivismo jurídico,
que, ao fundar o direito na soberania estatal, permitiu os abusos dos Estados Totalitários.

Com efeito, o direito natural sempre serviu como uma barreira crítica ao direito positivo.
Quando este último passa a ser pensado exclusivamente como o resultado da razão de Estado, o
caminho ficou aberto para o abuso.

Se um indivíduo só possui direitos porque o Estado ao qual ele se vincula reconhece esses
direitos, o que acontece quando esse mesmo Estado decide retirar tais direitos?

É o que ocorreu com a população judaica da Alemanha e com as inúmeras pessoas que se
tornaram apátridas durante aquele período na Europa.

Assim, depois da Segunda Guerra, alguns autores propugnavam um retorno ao direito natural
como forma de barrar eventuais abusos que vinham do direito positivado. O fato é que, da
segunda metade do século XX para cá, a teoria, de um modo ou de outro, buscou afirmar a
limitação da soberania estatal. O Estado pode muito, mas não pode tudo.

Para impedir que catástrofes como as vividas durante a Segunda Guerra não se repitam,
houve um esforço de construção de um Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos,
do qual fazem parte a Carta de São Francisco, que criou as Nações Unidas, a Declaração
Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e os diversos tratados de Direitos Humanos que
surgiram depois.

Esses direitos cumprem a mesma função crítica em relação ao direito positivo que o direito
natural antigo cumpria.

A teoria do último grande positivista clássico, Herbert Hart, absorveu algumas das críticas
sofridas pelo positivismo. A consequência disso é que Hart acabou admitindo que, para ser válido,
o direito necessitava, em última análise, de um mínimo de direito natural.

Embora Hart tenha seguido seus predecessores ao continuar defendendo a existência de um


“teste de ​pedigree​” para se determinar a validade de uma norma jurídica, e que tal validade é uma

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questão de fato, ele acabou cedendo ao mundo dos valores e admitindo que, sem um mínimo
ético, um mínimo de direito natural, não seria possível haver direito.

Depois de Hart, o positivismo se dividiu entre aqueles que rejeitam qualquer influência
normativa da moral no estudo do direito (positivismo exclusivo) e aqueles que admitem que, em
certas situações, os valores morais acabam funcionando como fundamento de validade para
normas jurídicas (positivismo inclusivo).

O principal representante do positivismo exclusivo é Joseph Raz, que, seguindo a afirmação


hobbesiana de que as leis são fruto da autoridade, considera que esta é a única fonte do direito. A
autoridade é exercida quando os destinatários de uma norma a obedecem ou porque confiam
nela ou porque se sentem intimidados por ela.

Há autoridade quando as normas são obedecidas independentemente do juízo de valor que o


destinatário tem sobre elas. Assim, uma norma jurídica está fundada unicamente na autoridade,
ficando descartada qualquer outra razão.

Por isso, ao cumprir uma norma, o sujeito segue a autoridade mesmo contra sua convicção
pessoal. Obedecer à norma por conta da autoridade é um facilitador da convivência social, que
ficaria prejudicada caso as pessoas, a cada conduta, tivessem que analisar a norma sob o prisma
de seus valores pessoais.

O positivismo inclusivo foi inaugurado pelo próprio Hart, sendo defendido também por autores
como Julius Coleman e David Lyons, que diferenciam o direito como produto de uma autoridade
estatal e o direito como convenção social, ligado aos valores morais.

Estes nem sempre são utilizados para definir e aplicar o direito, mas é possível encontrar, em
certas sociedades, convenções sociais que determinam que a moral seja levada em consideração
na determinação da validade e na interpretação das normas jurídicas.

O positivismo inclusivo afirma, portanto, a existência de sistemas jurídicos que adotam


critérios morais para avaliar o direito, de forma que a validade ou invalidade de uma lei, nesses

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casos, acaba por depender de sua conformidade com valores morais, e não apenas do fato de ela
ter se originado de uma fonte de autoridade.

É o que ocorre, por exemplo, quando uma norma é reconhecida como jurídica por estar
conforme a justiça, por promover o bem comum ou por estar de acordo com os valores morais da
comunidade.

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7. UTILITARISMO

O utilitarismo é uma filosofia moral e política desenvolvida no século XIX, inicialmente por
autores britânicos, os quais têm, até hoje, muita influência no direito e na condução das questões
políticas.

O ponto de partida da teoria utilitária é uma concepção sobre a natureza humana, segundo a
qual o comportamento humano sempre busca o que é prazeroso e evita o que causa dor.

Com base nisso, Bentham propõe o princípio básico do utilitarismo, chamado de princípio da
utilidade, que afirma que uma sociedade se organiza de maneira justa quando proporciona o
maior nível de satisfação possível ao maior número possível de pessoas (“a maior felicidade do
maior número constitui a medida do certo ou do errado”).

Assim, o utilitarismo procura avaliar a justiça ou a injustiça de uma ação e, em última análise,
de uma sociedade inteira, por meio de seu comprometimento com o princípio da utilidade.

O utilitarismo é uma doutrina que se baseia no cálculo econômico e no coletivo, em vez de


voltar seus olhos para a situação particular de cada indivíduo.

As leis propostas pelos legisladores, para serem justas, devem estar em conformidade com o
princípio da utilidade. Isso também vale para a interpretação do direito, que deve seguir o
princípio de que uma lei deve ser interpretada buscando contribuir para o máximo de satisfação
possível dos indivíduos.

John Stuart Mill foi outro grande filósofo utilitarista. Ele aceitou o princípio da utilidade
proposto por Bentham, mas orientou seu pensamento em direção ao tratamento das questões
políticas. No livro ​Sobre a liberdade, Mill argumenta que, se os indivíduos procuram maximizar
sua satisfação e minimizar seu sofrimento, a satisfação é buscada por cada um de maneiras
diferentes.

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Como os indivíduos são diferentes, as formas de satisfação também serão diferentes, o que
significa dizer que a liberdade das pessoas deve ser respeitada para que cada uma possa buscar
o tipo de satisfação que lhe faz sentido.

Assim, Mill contribui fortemente para o desenvolvimento e a defesa da liberdade individual,


defendendo o direito do indivíduo de viver como quiser, desde que não viole a liberdade do outro.
Esse argumento está presente nas democracias liberais modernas, que garantem que as
preferências individuais relativas, por exemplo, à política, à moral, à religião e à orientação sexual
não podem sofrer restrição, pois são o resultado do livre uso da liberdade do indivíduo.

A proteção do indivíduo é, ao mesmo tempo, em relação ao Estado e em relação à opinião da


maioria. Mill fala, inclusive, da possibilidade de existir uma tirania da maioria. Vejamos abaixo:

“Como outras tiranias, a tirania do maior número foi, a princípio, e ainda é vulgarmente,
encarada com terror, principalmente quando opera por intermédio dos atos das autoridades
públicas. A sociedade pode executar e executa os próprios mandatos; e, se ela expede mandatos
errôneos ao invés de certos, ou mandatos relativos a coisas nas quais não deve intrometer-se,
pratica uma tirania social mais terrível que muitas formas de opressão política”.

De fato, muitas vezes, em nossa vida pessoal, ou no dia a dia dos governos, questões
utilitárias aparecem com certa frequência: o que priorizar e o que não priorizar na implementação
de políticas públicas? Como o governo deve alocar recursos financeiros, que são limitados?

Tudo isso pede uma decisão que, para o utilitarismo, deve se basear no já mencionado
princípio da utilidade.

O famoso problema do trem é uma questão utilitária. Imagine que um trem desgovernado irá,
se ninguém fizer nada, atropelar 5 trabalhadores que se encontram na linha mais à frente.

Há um outro trabalhador que observa e percebe que há algo errado e se vê diante de um


dilema: ele pode puxar uma alavanca que desvia o trem de seu curso, o que resultará na morte
de uma só pessoa, ou ele pode não interferir, deixando que o trem siga seu curso e mate cinco
pessoas.

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Numa primeira visão, a ação recomendada pelo princípio da utilidade seria sacrificar um para
poupar cinco. Mas, dependendo das circunstâncias, as coisas se complicam: e se essa única
pessoa a ser sacrificada for um amigo ou um parente da pessoa que toma a decisão?

E se essa pessoa a ser sacrificada for mais relevante para o funcionamento da linha de trem
do que as cinco a serem poupadas? Deveria uma pessoa se arrogar o poder de alterar o curso de
acontecimentos que são fruto do acaso? A pessoa que decide agiria moralmente decidindo
passar por cima do acaso e sacrificar uma só pessoa? São dilemas que mostram que a
operacionalidade do princípio utilitário não é tão simples quanto parece.

Em questões políticas, jurídicas e sociais, o problema da escolha utilitária precisa ser


constantemente enfrentado. Imagine um carro autônomo. Ele precisa ser programado para
funcionar adequadamente: seguirá os parâmetros dados pelo programador quando ocorrerem
determinados eventos.

Numa situação semelhante ao do problema do bonde, se esse carro tiver que “decidir” entre
atropelar uma velhinha ou atropelar uma criança, qual seria a decisão justa?

Uma crítica comum ao utilitarismo é que ele desconsidera a individualidade das pessoas,
tratando-as como meras peças de uma máquina social. As peças podem ser substituídas: o que
importa é que a máquina siga funcionando da melhor maneira possível.

Essa crítica, de que o utilitarismo viola direitos individuais, aparece em autores como John
Rawls, que propõe então um modelo que respeite, em maior grau, cada uma das individualidades.
Contudo, dificilmente será possível fugir de escolhas utilitárias quando se governa, sendo
necessário decidir sobre que pessoas o orçamento e as políticas públicas atingirão mais ou
atingirão menos.

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8. MORAL

A palavra moral vem do latim ​mores​, que significa costumes. Basta uma rápida observação
para perceber que cada família tem seu modo de ser, suas tradições e seus costumes. Isso vale
também para cada grupo social, cada cultura, cada país, etc.

Com efeito, é próprio dos seres humanos estabelecerem padrões de comportamento na


convivência social. Como as normas jurídicas, as regras morais pertencem a um tipo de regras
que estabelecem como as pessoas devem se comportar. Elas estão no plano do dever-ser.

Na verdade, seria impossível a existência social sem regras de comportamento, ou seja, sem
proibições. A liberdade absoluta não existe, pois ela só é possível ao lado de seu duplo: o
proibido.

Se todos pudéssemos fazer o que bem entendêssemos, nunca seríamos livres, porque o
nosso espaço de liberdade estaria constantemente ameaçado pela vontade de um outro mais
forte. É o que acontece na natureza.

A liberdade – esse espaço em que alguém é livre para agir como bem entender – só é
possível quando se estabelece a proibição sobre o outro – de não invadir o espaço alheio.

Ao examinar a origem da civilização, Freud, em sua obra ​Totem e Tabu​, afirma que ela nasce
de uma proibição original: a proibição do incesto. Dela, todas as outras proibições vão surgindo,
possibilitando a convivência social sem que a violência dissolva o grupo.

Assim, podemos afirmar que a moral – no sentido de uma regra de comportamento em


sociedade – é uma segunda natureza nos seres humanos. Nós somos seres que estabelecem um
mundo de regras, pois a própria existência social depende disso.

Podemos falar então de deveres, normas sociais, que todas as sociedades humanas impõem
a seus membros. Atualmente, dividimos essas normas sociais em algumas categorias diferentes:
normas de etiqueta, normas de comportamento religioso, normas morais, normas jurídicas, etc.

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As sociedades antigas, no entanto, não faziam esse tipo de diferenciação. No direito hindu,
havia uma única palavra que se referia a todos esses tipos de normas: ​Dharma,​ que pode ser
traduzida como ​dever​. Assim, direito e moral, nas sociedades tradicionais, sempre foram coisas
vistas como parte de um único conjunto de regras.

Para os filósofos clássicos, a moral, a política e o direito eram pensados em conjunto. Eles
existiam um em função do outro. A moral existia para que as pessoas fossem virtuosas,
tornando-se livres da escravidão dos impulsos naturais. A política existia para criar as condições
para que esses cidadãos virtuosos fossem gerados.

E o direito era a ferramenta que a política e a moral utilizavam para concretizar seus
propósitos. Ao cumprir a lei, um indivíduo estava cumprindo uma norma que buscava implementar
os valores morais dentro de uma cidade.

Por conta dessa relação de mútua dependência entre moral, política e direito, era muito difícil,
para os antigos, talvez impossível, pensar num direito que fosse injusto.

Por isso, Aristóteles afirmava que um dos sentidos de justiça era o de cumprir a lei, pois o
direito e a justiça eram uma mesma coisa. Fazia-se justiça quando se observava a lei.

É apenas na modernidade que passa a se fazer a distinção entre o que é jurídico e o que é
moral, entre o que seria próprio do direito e o que seria próprio da moral.

Várias maneiras de distinguir direito de moral foram propostas. Uma das mais influentes é
aquela que afirma que a moral se ocupa das questões da consciência individual de cada pessoa
e, portanto, tem um caráter interno, enquanto o direito se preocupa com a exteriorização da
vontade, com os atos que praticamos e, portanto, tem um caráter externo.

Para o direito, só importa que a pessoa tenha pago a pensão alimentícia devida, não
importando se o fez de boa ou de má vontade.

Muitos autores apontam um problema com este ponto de vista, pois o direito não é alheio às
questões de consciência. De fato, no campo do direito penal, é fundamental determinar se alguém

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praticou um ato porque quis ou, se não queria praticá-lo, mas por imprudência, imperícia ou
negligência, acabou por praticar o ato indesejado.

Outro modo de se distinguir o direito da moral é afirmar que o descumprimento desta não gera
sanção, enquanto o descumprimento da norma jurídica pode levar à aplicação da sanção. É
verdade que a imoralidade pode ser punida com o distanciamento social ou com algum outro tipo
de reprimenda, mas não há, no descumprimento da regra moral, instituição estatal que imponha a
vontade da norma que foi descumprida.

Ademais, como a regra moral depende de uma ação realizada com boa vontade e que diz
respeito à consciência de cada um (devo ou não ajudar meu amigo que está financeiramente em
apuros?), é difícil que alguém, a não ser o próprio indivíduo, possa avaliar o cumprimento ou o
descumprimento de uma norma moral.

Uma outra maneira de diferenciar direito de moral, e que na verdade é consequência do que
foi dito acima, é que o direito possui exigibilidade, mas a moral não. Isso quer dizer que
determinado comportamento, de acordo com o que estabelece a norma jurídica, pode ser exigido
pela outra parte (aquele que quer que a obrigação seja cumprida).

Posso exigir que meu devedor me pague o que emprestei a ele, caso ele não tenha cumprido
com a obrigação de me devolver o dinheiro com juros no prazo aventado. A moral, por outro lado,
não tem essa exigibilidade própria do direito, porque é uma questão de foro íntimo, é uma
questão de consciência: o mendigo que me pede uma esmola na rua não tem um direito à
esmola.

Dá-la ou não é uma decisão que pertence à consciência de cada um. Posso dar a esmola
porque considero que quem me pede está de fato passando por dificuldades e devemos ser
caridosos em relação ao próximo; também posso considerar que a esmola seria usada para
comprar drogas e que estaria apenas alimentando um vício e, portanto, escolho não dar o
dinheiro; posso considerar que a pessoa que me pede o dinheiro quer, na verdade, aproveitar-se
de minha boa vontade, pois poderia trabalhar, mas prefere ganhar uns trocados às custas da
sensibilidade alheia, etc.

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Além dessa questão, há uma outra: que tipo de relação haveria entre direito e moral? Ou não
haveria relação alguma? As diferentes correntes do pensamento jurídico podem ser resumidas a
duas posições básicas: para uns, existe uma conexão entre as normas jurídicas e as regras
morais, sendo que aquelas servem para concretizar os fins estabelecidos por estas
(genericamente, é o que afirma o jusnaturalismo); para outros, não existe qualquer relação entre
essas duas esferas, de modo que podemos analisar separadamente o direito e a moral, pois cada
um deles tem seus próprios princípios de funcionamento, o que os torna independentes um do
outro (positivismo).

Para Miguel Reale, é possível distinguir direito de moral, de acordo com aqueles critérios que
vimos acima. No entanto, não devemos separá-los. Isto quer dizer que direito e moral, embora
sejam distintos, estão conectados.

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9. LIBERDADE

O conceito de liberdade possui diferentes significados ao longo da história do pensamento


ocidental, como, por exemplo, autodomínio, ausência de coação externa, possibilidade de
participar das decisões políticas, livre arbítrio e capacidade de se autodeterminar.

A liberdade é um conceito que aparecia na antiguidade de forma diferente da forma como se


apresenta na modernidade. Os antigos e os medievais viam a liberdade como o resultado de um
esforço de autocontenção.

Por isso, os gregos diziam: “transforma-te naquilo que tu és”. Isso quer dizer que, para eles,
havia um ideal do que significava o ser humano, e a tarefa de uma pessoa era, ao longo de sua
vida, aproximar-se cada vez mais desse ideal.

Para os gregos, o ser humano se tornava livre. E isso só poderia ser obtido através de um
processo de educação para as virtudes. A ideia de virtude estava ligada ao equilíbrio, à ausência
de excessos.

Assim, uma pessoa seria livre na medida em que ela fosse capaz de conter seus impulsos
naturais. Um ser humano que vivesse só pelos seus impulsos não seria diferente dos animais. O
que nos tornava livres, desse ponto de vista, era a capacidade de conter esses impulsos.

Autores como Platão insistiam na superioridade da vida intelectual sobre a vida baseada na
obtenção dos prazeres sensoriais. Isso se transferia para a política, pois o governante ideal seria
aquele capaz de controlar seus próprios impulsos: o sábio, e não o tirano.

Na Idade Média, a questão da liberdade passa a ser vista pelo prisma do cristianismo. Santo
Agostinho argumenta que a natureza do homem não é má em si, mas, em virtude do seu livre
arbítrio, ele pode se afastar de Deus, o sumo bem, por iniciativa própria.

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Assim, os seres humanos são responsáveis pelo mal que acontece no mundo quando
livremente se afastam do bem. A liberdade humana, no entanto, não é absoluta, pois apenas
Deus é absolutamente livre.

Por isso, os seres humanos são livres para errar, mas também podem ser ajudados pela
graça divina. Dessa maneira, o uso da liberdade humana do mundo secular nunca será perfeito, e
necessita ser guiado pela palavra de Deus e pela Igreja.

Durante a modernidade, a liberdade adquire um sentido e uma importância diferentes. Para


os modernos, a liberdade era algo inato: os seres humanos são livres, nascem livres.

A liberdade, portanto, não é o resultado de um processo de autocontenção, mas sim um fato


da natureza humana. Esse conceito moderno de liberdade foi a base a partir da qual a ética e a
política modernas passaram a ser pensadas.

As sociedades tradicionais discutiam a liberdade humana submetida a uma ordem maior


estabelecida por Deus.

A cultura moderna, por sua vez, rompe com isso, pois se baseia no antropocentrismo, isto é,
concebe o próprio ser humano como fonte de toda a cultura, de todas as regras e de todas as
instituições, criadas por ele a partir de sua liberdade.

Embora a liberdade seja natural, ela acaba tendo que ser contida pela sociedade civil, que
nasce com a formação do Estado.

Isso porque a liberdade natural acaba levando a uma destruição recíproca entre os indivíduos,
a uma guerra de todos contra todos, como argumentava Hobbes.

Assim, por um ato livre, os indivíduos resolvem limitar sua liberdade natural absoluta. Cria-se,
dessa maneira, o órgão estatal, que, ao limitar a liberdade, protege a liberdade. Trata-se da
proteção do espaço de liberdade de cada pessoa por meio do poder estatal.

Essa visão moderna de liberdade foi o que levou à formulação da teoria do contrato social.
Locke via o Estado com a função precípua de proteger a liberdade e a propriedade dos cidadãos.

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Ele poderia intervir na liberdade individual apenas mediante um devido processo legal, base
da ideia do Estado de Direito.

O Iluminismo e o Liberalismo buscaram justamente estabelecer garantias para as liberdades


dos cidadãos em face do poder do Estado, e implementar um projeto que buscava a libertação
humana a partir do uso da razão.

Assim, buscou-se a autonomia do indivíduo em relação ao Estado absolutista e à Igreja, a


substituição das superstições pela racionalidade e o progresso contínuo da humanidade.

O valor da liberdade foi fundamental para as chamadas Revoluções Liberais, que, ao


derrubarem os antigos regimes de monarquia absolutista, estabeleceram o direito moderno,
baseado nas Constituições escritas e na legislação estatal.

As declarações de direitos que surgiram dessas revoluções proclamavam que todos os seres
humanos nascem livres (o que contrariava a escravidão até então aceita), que todos os cidadãos
tinham liberdade de expressão, de credo, de ir e vir, de se reunir, etc.

O propósito disso tudo era afirmar a liberdade do indivíduo em relação ao poder do Estado,
que, nas monarquias absolutistas, era frequentemente desrespeitada.

Com isso, surge uma noção de liberdade que Benjamin Constant, teórico francês, chamou de
liberdade dos modernos (ou negativa). Essa espécie de liberdade pode ser entendida como uma
proibição de intervenção, sobretudo estatal, na esfera dos interesses do indivíduo.

Trata-se da liberdade como não intervenção. Isso significa que cada indivíduo possui um
espaço de liberdade que não pode ser invadido.

Dentro desse espaço – a casa, a escolha por uma religião ou por uma posição política, por
exemplo – o indivíduo não pode ser submetido a uma vontade que não seja a dele próprio. Os
direitos fundamentais do artigo 5º da Constituição de 1988 são direitos desse tipo.

Com Kant, o direito passa a ser visto como o instrumento necessário para fazer com que as
diferentes liberdades de cada indivíduo possam conviver em harmonia. É o direito que
estabelece, portanto, os limites entre cada uma das liberdades.

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Constant contrapõe esta liberdade a uma outra, que ele chama de ​liberdade dos antigos (ou
positiva), pois já era conhecida e praticada na Antiguidade. Trata-se da liberdade política de votar
e ser votado.

Ela já era praticada, por exemplo, na democracia ateniense, embora de uma forma muito mais
restrita do que nas democracias atuais, pois englobava apenas homens livres que fossem
proprietários de terra.

A liberdade no sentido negativo, como não intervenção, prevaleceu durante o século XIX, em
que o Estado Liberal era a forma consagrada de organização estatal.

No campo dos direitos fundamentais, os únicos juridicamente reconhecidos eram os de


primeira geração ou dimensão, que protegiam a liberdade individual de intervenções indesejadas.

A partir do início do século XX, o caráter positivo da liberdade começa a ser reconhecido de
forma mais intensa, o que resulta na universalização do voto e numa concepção de Estado mais
intervencionista.

Do final do século XX até a época atual, a liberdade continua a ser um tema de discussões
intensas. Sua relação com a igualdade é um tema que sempre suscita muitos debates.

John Rawls propôs, em sua teoria da justiça como equidade, um meio de conciliar o aspecto
negativo das liberdades com uma busca por maior igualdade social.

O autor propõe um modelo de Estado similar àquilo que conhecemos por Estado de
bem-estar social, em que a liberdade nunca pode ser sacrificada sob o argumento da obtenção de
uma maior igualdade.

Outro problema da liberdade em nossa época é a convivência entre a autonomia individual e


o Estado, que deve agir buscando a proteção do bem comum. Esse conflito se materializa quando
estão em discussão questões como a descriminalização das drogas e da eutanásia.

Alguns autores afirmam que o Estado não deve se imiscuir em questões desse tipo, pois são
escolhas (a de usar drogas ou a de se submeter à eutanásia) que dizem respeito apenas ao
indivíduo.

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Por outro lado, há aqueles que insistem no argumento de que tais questões acabam afetando
a coletividade e, por isso, o Estado deve se posicionar e agir a fim de proteger a sociedade. O
debate está aberto sem que uma ou outra visão possam ser declaradas vencedoras.

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10. CONCEITO DE DIREITO

O conceito de direito não é único. Ele varia de acordo com a corrente teórica, com a ideologia,
com o período histórico, etc.

As etapas de evolução jurídica acompanharam o modo como os seres humanos se


organizaram ao longo da história. Como o direito existe em função da sociedade, se esta muda,
aquele também mudará. Além disso, a própria palavra direito não possui um sentido único.

Ela pode se referir à justiça, ao direito subjetivo (quando se diz que alguém possui a
prerrogativa de exercer um direito), ao direito objetivo (o ordenamento jurídico), à ciência do
direito.

Embora o conceito de direito seja variável, isso não impede que nós possamos apontar nele
certos elementos estáveis.

O direito sempre exerce a função de garantia da ordem social, pois é a existência das
normas, ao estabelecerem o que é proibido e o que é permitido, que garante um funcionamento
relativamente harmônico da sociedade. Por isso, diz-se que a finalidade do direito é a paz social,
pois ele evita os conflitos ou, quando estes acontecem, atua para solucioná-los.

O direito cumpre a função de estabelecer se as pessoas terão tratamento equivalente ou se


haverá distinções entre elas. Ele lida com o problema da igualdade. Por isso, um dos símbolos
tradicionais do direito é a balança.

Os juristas romanos afirmavam que o direito realiza a tarefa de dar a cada um o que é seu.
Nesse sentido, o direito é o instrumento por meio do qual a justiça é feita, isto é, o instrumento por
meio do qual os recursos existentes na sociedade são distribuídos a cada pessoa.

Como os recursos existentes numa sociedade nunca são ilimitados, o problema da sua
distribuição sempre está presente. A vida em comunidade sempre gera conflitos entre seus
membros, que precisam ser, quando possível, evitados ou solucionados.

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Por essas razões, o direito é uma exigência da vida em comunidade, ou seja, é necessário
para que a vida em sociedade seja possível. Assim, não há sociedade sem direito: é o que
significa a expressão latina ​ubi societas, ibi jus​.

O direito é um conjunto de regras de conduta que regulam o comportamento dentro de uma


sociedade. Nesse aspecto, ele é parte de um conjunto mais amplo de normas sociais, como a
moda, a moral e as regras vigentes dentro de uma associação ou uma igreja. Todas cumprem a
função de ditar certos comportamentos, estabelecer certas proibições, etc.

Por outro lado, o direito é diferente das demais normas de controle social, porque suas regras
possuem maior obrigatoriedade, pretensão à permanência e à continuidade e um caráter
impessoal e geral.

A ligação entre o conceito de direito e a ideia de justiça é forte porque o direito é o meio
utilizado para a concretização de determinados objetivos, de determinados valores. Assim,
podemos dizer que a finalidade do direito está na concretização desses valores que podemos
chamar de justiça.

Porém, a questão da justiça é problemática, porque não há uma só proposta do que ela
significa. Ela pode ser entendida de diferentes maneiras conforme a corrente de pensamento
adotada: a justa divisão, o princípio da utilidade, o prazer, a segurança, o bem-estar, o
funcionamento harmônico do organismo social... Há também aqueles que não acreditam no valor
da justiça, e defendem que o direito deve se libertar dela.

Pelo que se disse até aqui, é possível afirmar que cada corrente de pensamento jurídico, ao
longo da história, tem seu próprio conceito de direito, que expressa um determinado ponto de
vista a respeito do fenômeno jurídico.

Para o pensamento jurídico clássico, desenvolvido por Aristóteles e pelos jurisconsultos


romanos, o direito é entendido como aquilo que é devido a alguém, ou seja, como o justo. O
direito é aquilo que, estando atribuído a um sujeito, que é seu titular, é devido a ele. Por isso, a
função do juiz é dar a cada um o que é seu.

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Esse pensamento jurídico clássico se baseava na ideia de um direito natural, isto é, um direito
por natureza correto ou justo. Essa ideia dependia da teoria cuja função era estabelecer o melhor
regime político.

Por isso, a concepção clássica de direito estava intimamente ligada à política e à ética. Assim,
o direito natural é fruto do regime que por natureza é o melhor em qualquer lugar.

A concepção de direito medieval segue os clássicos na importância dada para a justiça. Por
isso, Santo Agostinho afirmava que, afastados da justiça, os reinos eram como grandes
quadrilhas de ladrões.

No entanto, para os medievais, o direito também era pensado em função da religião cristã.
Por isso, Santo Agostinho afirmava que apenas a lei eterna (razão e vontade de Deus) era de fato
justa.

O direito natural passa a ser visto como uma lei estabelecida por Deus. O direito passa a ser
entendido à luz dos evangelhos, como um aspecto da moral cristã.

São Tomás de Aquino dá continuidade às lições de Santo Agostinho, mas as combina com a
concepção clássica contida na teoria aristotélica do direito e no ​Corpus iuris civilis​, isto é, o
Código de Justiniano, que havia caído no esquecimento na Europa durante boa parte da Idade
Média, mas que voltou a ser estudado por volta do século XI.

A classificação das leis de Tomás segue a teoria de Agostinho, colocando no topo do sistema
legislativo a lei eterna​, ​que é a​ ​razão divina que ordena o mundo.

Em seguida, temos a lei natural, isto é, ​aquilo que ​existe em virtude da ordem natural das
coisas, ​e cuja origem está na lei eterna. A lei humana ou lei positiva deriva da lei natural e da
aplicação de seus princípios sobre certas situações.

Por isso, um direito positivo que desrespeita o direito natural é lei corrompida – não é lei
propriamente dita.

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Um elemento fundamental no conceito de direito na modernidade é a relevância dada ao


indivíduo, o que resulta no desenvolvimento do conceito de direito subjetivo e, mais tarde, no
conceito de Direitos Humanos, consequência da teoria moderna do direito natural.

Os jusnaturalistas consideravam que, a partir de princípios racionais como “deve fazer-se o


justo e abster-se do injusto”, “evita o mal e pratica o bem” ou “não faças aos outros aquilo que não
queres que façam a ti”, seria possível deduzir o que era o direito natural.

Dessas regras morais, poderíamos deduzir regras jurídicas válidas universalmente como “os
pactos devem ser observados” (​pacta sunt servanda),​ “o dano deve ser indenizado” e “a
propriedade deve ser respeitada”.

A partir disso, os jusnaturalistas passaram a defender a existência de certos direitos naturais


que, mais tarde, foram positivados nas Declarações de Direitos e nas Constituições a partir do fim
do século XVIII.

Esses direitos naturais, agora positivados, tinham como propósito fundamental a proteção do
indivíduo, sua liberdade e sua propriedade, contra o abuso de poder por parte do Estado.

No século XIX, como uma forma de reação ao jusnaturalismo do século anterior, surge um
conceito de direito entendido como o resultado de uma evolução histórica. Trata-se da proposta
da chamada Escola Histórica do Direito, cujo maior expoente, Savigny, defendia que o “espírito do
povo” era a fonte originária do direito.

Assim, o direito seria o resultado de uma construção histórica de determinado povo, de uma
tradição construída ao longo de séculos de existência.

Nas últimas décadas do século XIX, por influência do desenvolvimento da sociologia, surge
uma concepção de direito que se preocupa sobretudo com a dimensão de sua eficácia. Temos
aqui o chamado Realismo Jurídico, para o qual o direito era compreendido em termos de
efetividade social. A ideia aqui é a de que a norma jurídica só é vigente porque é aplicada, e não
porque há uma relação de validade com outra norma.

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Para Alf Ross, uma norma é vigente se houver fundamentos suficientes para se supor que ela
será aceita pelos tribunais como base para suas decisões. Para Oliver Wendell Holmes, o direito
é aquilo que os Tribunais dizem que ele é.

No Brasil, a teoria tridimensional do direito, de Miguel Reale, ocupa um lugar importante.


Reale pretendia fornecer um conceito completo de direito, que, ao invés das teorias defendidas
anteriormente, fosse capaz de expor o direito em todas as suas dimensões.

Para ele, o jusnaturalismo considerava o direito apenas pelo aspecto valorativo da justiça. O
positivismo jurídico considerava o direito tão somente pelo seu aspecto normativo, isto é, como
norma jurídica.

E as teorias jurídicas de cunho sociológico viam o direito apenas do ponto de vista da eficácia,
ou seja, como fato social.

O direito só pode ser compreendido de modo integral se levarmos em conta que ele é o
resultado de uma correlação entre essas três dimensões distintas. O direito é fato (fato
econômico, geográfico, demográfico, etc.), que se soma a um valor, o qual confere significação a
esse fato, inclinando a ação dos homens no sentido de atingir ou preservar certa finalidade ou
objetivo por meio de uma norma jurídica.

Da interação entre fato e valor nasce a norma jurídica, que representa a relação ou medida
que integra​ ​os dois aspectos anteriores.

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11. HERMENÊUTICA JURÍDICA

A hermenêutica jurídica existe porque a linguagem é essencialmente problemática, pois as


palavras dão margem a sentidos diversos, a interpretações diversas. Diferentemente da
linguagem matemática, a linguagem do direito é marcada pela ambiguidade e pela vagueza.

Isso também ocorre com um texto literário, filosófico ou de caráter religioso. Por isso, existem
também a hermenêutica bíblica e a hermenêutica filosófica.

Na verdade, a hermenêutica jurídica surgiu na sequência de estudos hermenêuticos que, no


século XIX, buscavam desenvolver uma metodologia para interpretar coerentemente os textos
bíblicos.

Durante o século XX, a hermenêutica filosófica, que chamou a atenção para a influência que a
experiência de vida e a visão de mundo do sujeito tinham para o modo como ele o interpreta, foi
também uma importante influência para a formação da hermenêutica jurídica.

A hermenêutica filosófica chamou atenção para o fato de que a interpretação é o resultado do


modo como se deu a formação do sujeito que interpreta a norma.

A etimologia da palavra hermenêutica evidencia o tipo de problema que a linguagem


apresenta. Hermenêutica vem do grego ​hermeneia,​ que significa interpretação.

A palavra também tem ligação com a figura de Hermes, um dos deuses da mitologia grega,
cuja função era a de transmitir mensagens dos deuses para os homens.

A metáfora do mensageiro é esclarecedora, pois o intérprete é alguém que entrega uma


mensagem, aquele que comunica a determinadas pessoas a mensagem contida em um texto.

A hermenêutica se mostra necessária na medida em que a relação entre aquele que transmite
a mensagem e aquele que a recebe é sempre uma relação problemática, pois é comum que o
receptor compreenda a mensagem de forma diferente de seu emissor.

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Por isso, há necessidade do estabelecimento de uma metodologia que nos permita alcançar
uma interpretação adequada, correta, que não sofra da incerteza presente na transmissão de
mensagens.

É justamente essa a busca da hermenêutica jurídica, que pode ser definida como a ciência
responsável pela elaboração da metodologia de interpretação da lei, estabelecendo técnicas,
princípios e diretrizes para o ato de interpretar.

Assim, a hermenêutica jurídica é a ciência que fornece ferramentas que sejam capazes de
orientar o ato da interpretação. A hermenêutica jurídica está relacionada a i) a aplicação do
direito, pois interpretar uma norma jurídica significa ao mesmo tempo buscar a sua melhor
aplicação no caso concreto; ii) as técnicas a serem aplicadas, por isso a hermenêutica propõe,
por exemplo, métodos de interpretação.

Além disso, a hermenêutica é fundamental na solução de lacunas e antinomias, problemas


sempre presentes em um ordenamento jurídico.

No início do século XIX, defendia-se que a interpretação cessa quando a lei é clara (​in claris
cessat interpretatio)​ . Assim, não se concebia que a lei devesse ser interpretada, já que os
Códigos traziam o direito pronto para ser aplicado.

No início do século XIX, defendia-se que a aplicação do direito era uma operação lógica, que
poderia inclusive ser realizada por uma máquina.

Daí a ideia corrente na época de que a sentença deveria ser um ato mecânico: a sentença
era deduzida do texto da lei. Nenhum outro elemento diferente da lei poderia ser utilizado.

Trata-se de um raciocínio na forma de um silogismo, em que a lei era a premissa maior, o


caso concreto a premissa menor e, a sentença, a conclusão.

O processo de interpretação e aplicação do direito, portanto, resumir-se-ia a isso.

A razão disso está na identificação do direito com a legislação estatal, algo muito forte num
período em que o direito passou a ser codificado.

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Isso resultou naquilo que alguns autores chamam de concepção subjetivista de interpretação,
isto é, a concepção que defende que a interpretação correta é aquela que busca descobrir a
vontade do legislador, do sujeito que redigiu a lei.

Como ao intérprete não cabia se colocar contra a vontade da lei, que está legitimada em
última instância pela soberania popular, a interpretação correta seria aquela que transmitisse da
forma mais clara possível a vontade do legislador.

A Escola da Exegese, que se desenvolveu na França, é representativa desse ideal. Seu


desenvolvimento se deu na esteira da entrada em vigor do Código Napoleônico.

Seus defensores afirmavam que todo direito estava no Código e que o juiz só poderia ser um
aplicador da solução que o Código continha. Ou seja, não cabia a ele interpretar (o juiz como a
“boca da lei”).

Savigny, um dos maiores juristas do século XIX, propôs quatro tipos ou métodos de
interpretação. A gramatical é a utilização das regras gramaticais de morfologia e sintaxe para
realizar a interpretação. Esta interpretação também é conhecida como literal, pois considera como
suficiente o entendimento da “letra fria da lei”, que supõe o domínio das normas gramaticais.

A interpretação lógica é a aplicação da lógica ao ato de interpretar. Para ser inteligível, uma
frase e um argumento precisam seguir certas regras básicas que a lógica nos fornece.

A interpretação histórica ​é a busca pelo conjunto de circunstâncias que marcaram a redação


do texto legislativo. Busca-se a conjuntura histórica que existia à época da edição de determinada
norma jurídica e que serviu de motivo para que tal norma fosse pensada.

Por fim, a interpretação sistemática ​é a interpretação que leva em conta que as normas
jurídicas pertencem a um sistema, ou seja, ao ordenamento jurídico.

Assim, uma norma jurídica não pode ser considerada de maneira isolada, mas sim como
parte de um conjunto de normas. A compreensão de uma norma jurídica qualquer depende,
portanto, da compreensão do ordenamento jurídico como um todo.

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A partir de meados do século XIX, a concepção subjetivista passa a sofrer críticas. A escola
histórica do direito, ao mostrar como as normas jurídicas eram o resultado de um processo
cultural e, portanto, histórico, deu o primeiro passo para abalar a crença de que a interpretação
deveria ser considerada apenas um processo lógico de aplicação do direito.

A influência do pensamento sociológico sobre os teóricos do direito foi um outro elemento que
contribuiu de modo importante para o desenvolvimento de uma outra ideia sobre a interpretação
do direito, pois ajudou a perceber o direito como um processo mais complexo do que
simplesmente a edição de leis pelo Estado.

As mudanças sociais e culturais passaram a ser consideradas como importantes no processo


de interpretação do direito.

Percebeu-se que nem sempre a lei era clara, e que a mudança das condições sociais, muitas
vezes, afetava a interpretação que se fazia dela. Alguns autores se referem a isso como
concepção objetivista de interpretação, que busca a interpretação adequada da lei considerando
a finalidade que ela deve cumprir no contexto social do momento, em vez de fixar-se
simplesmente naquilo em que o legislador pretendia ao escrever o texto de lei.

Esse propósito é encontrado no chamado método teleológico, presente no art. 5º da LINDB.

A partir da contribuição da sociologia, surgiram concepções radicais de interpretação do


direito, como a Escola da Livre Pesquisa ou da Livre Criação do Direito.

Para ela, a sentença judicial não era uma operação racional, mas sim uma livre criação do
juiz, resultado da sua livre busca pela construção de uma solução justa, que não se submetia a
falsos parâmetros de racionalidade. Nesse contexto, o juiz adquiria muito poder.

Daí a frase de Oliver Wendell Holmes, que, perguntado sobre o que era o direito, afirmou: o
direito é aquilo que os Tribunais dizem que ele é.

Atualmente, a doutrina entende que toda norma jurídica deve ser interpretada. Não há o ​in
claris cessat interpretatio,​ pois há sempre a necessidade de se estabelecer o significado e o
alcance da lei. O advento da hermenêutica filosófica evidenciou a importância dos aspectos

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individuais do intérprete, como experiências de vida, cultura, valores, religião, etc, para a
formação de uma interpretação.

O intérprete cuidadoso, portanto, precisa inicialmente conhecer a si mesmo e estar ciente de


seus próprios valores. A doutrina atual não afirma que o intérprete pode tudo. O texto continua a
funcionar como um limitador para o que o intérprete pode fazer.

No entanto, é reconhecida a capacidade do juiz de criar o direito, no sentido de que a norma


jurídica é a interpretação que se faz do texto legislativo. É nesse sentido que o juiz cria a norma.
Se houve ou não uma extrapolação daquilo que o texto permite dele extrair, esta é uma análise
que deve ser feita caso a caso.

12. FILOSOFIA DO DIREITO CONTEMPORÂNEA

A filosofia do direito contemporânea segue a trilha da própria filosofia produzida atualmente,


pois a filosofia que se faz sobre o direito é influenciada pelos rumos que a filosofia toma.

Assim, vários pontos dessa filosofia contemporânea, como a relevância dada à linguagem e à
hermenêutica, a reflexão sobre a tecnologia e a sociedade e as questões ligadas ao poder e as
suas manifestações sociais acabam sendo formuladas também na filosofia do direito. Filósofos
como Wittgenstein, Heidegger, Gadamer, Nietzsche e Foucault têm um papel importante na
filosofia do direito contemporânea.

Mas essa filosofia não possui uma linha única. Ela é tão plural quanto o número de autores
que a influencia.

Um importante autor da filosofia do direito contemporânea é Ronald Dworkin. Ele procurou


reformar o positivismo jurídico, encontrando um lugar para os princípios dentro da teoria
positivista. A necessidade da crítica e da consequente reforma do positivismo está em sua
deficiência com relação aos princípios.

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Essa é a razão pela qual Dworkin critica o positivismo jurídico de Hart: por ser um sistema
exclusivamente de regras que ignora o importante papel desempenhado pelos princípios.

Dworkin inaugura, então, um novo modo de compreensão da norma jurídica, afirmando a


força normativa dos princípios.

A partir daí, norma jurídica passa a ser vista tanto como regra como quanto princípio. A
distinção entre ambos está no princípio de funcionamento de cada um.

As regras funcionam com base na “lógica do tudo ou nada” (ou é válida ou não é válida). Os
princípios funcionam com base na “lógica do mais ou menos” (eles têm a dimensão do peso ou
importância que as regras não têm).

Os princípios atuam sobretudo nos chamados “casos difíceis” (quando não se encontra uma
regra), desempenhando um papel fundamental nos argumentos que sustentam decisões desse
tipo. Assim, diferentemente do que os positivistas afirmavam, Dworkin passou a defender que os
princípios possuem a mesma obrigatoriedade que as regras.

Dworkin conclui que:

1) devemos rejeitar a doutrina positivista, segundo a qual o direito de uma comunidade se


distingue de outros padrões sociais por meio de algum teste que toma a forma de uma regra
suprema. A validade aferida a partir de uma regra de reconhecimento, portanto, é um conceito
próprio das regras, mas incompatível com os princípios, que funcionam com base na ponderação;

2) os casos difíceis desmentem a teoria positivista da obrigação jurídica, pois esta pode ser
imposta também por princípios e não apenas por regras.

Por isso, é necessário propor uma alternativa à concepção positivista tradicional. Essa
proposta está naquilo que Dworkin chamou de Tese dos Direitos, segundo a qual as decisões
judiciais devem ser baseadas em princípios e especialmente no princípio da igualdade, que
significa que todos devem ser tratados com igual respeito e consideração.

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Uma decisão com base em princípios é mais difícil de ser refutada por estar apoiada em
fundamentos mais firmes, encontrados em valores morais e políticos existentes em determinada
comunidade.

Dworkin também analisa o problema da interpretação do direito. Para ele, o direito se


assemelha à literatura, pois raramente encontramos um consenso em torno de qual seria a
melhor interpretação de uma obra artística.

Isto não significa que todas as possíveis interpretações são igualmente boas ou válidas. Mas
se não há consenso, como afirmar que alguma delas seria melhor, correta ou superior?

Embora se apoie em regras sociais, uma interpretação é melhor não porque é aceita pela
maioria ou se ancora na convenção dominante, mas porque, em seu apoio, existe uma melhor
justificação ou argumentação racional.

Para Dworkin, essa melhor justificação se baseia num liberalismo igualitário, que concilia
igualdade com responsabilidade individual, nos moldes da teoria da justiça de John Rawls, que
busca concretizar a ideia de que todos têm direito ao mesmo grau de consideração e respeito
dentro de uma sociedade.

Robert Alexy também defende a existência de uma conexão entre direito e moral,
demonstrada pelo papel que os princípios desempenham na decisão judicial, sobretudo nos
casos difíceis, que existem em virtude da chamada textura aberta do direito. Todo direito
positivo apresenta essa característica por sua linguagem ser ambígua e por haver sempre a
possibilidade de contradições entre as normas.

Para Alexy, quando o juiz se depara com essas situações de abertura do direito positivo,
ainda assim ele está vinculado a princípios, o que cria, portanto, essa conexão necessária entre
direito e moral, pois os princípios são normas com uma alta carga de moralidade.

Alexy traz como exemplo a Constituição alemã, cujos princípios da dignidade humana, da
liberdade, da igualdade, do Estado de direito, da democracia e do Estado Social inseriram no
sistema jurídico da República Federal da Alemanha os princípios fundamentais do direito natural e

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racional modernos e, por conseguinte, da moral moderna do direito e do Estado como princípios
do direito positivo.

Alexy assume a distinção entre regras e princípios. Para ele, as regras são mandamentos
que devem ser aplicados na medida exata das suas prescrições e cuja forma característica de
aplicação é a subsunção.

Os princípios são normas que devem ser aplicadas na maior medida possível, levando em
consideração as possibilidades reais e jurídicas do momento, e sua aplicação se dá pela
ponderação.

Assim como Dworkin, Alexy defende que as decisões judiciais devem ser elaboradas de modo
que obedeçam a parâmetros de racionalidade. Ele se opõe, portanto, àqueles que negam a
conformidade da decisão judicial com parâmetros racionais, afirmando que elas, na verdade, são
resultado das preferências morais, ideológicas e emocionais do juiz.

Para Alexy, a decisão judicial pode e deve estar em conformidade com a razão, pois, do
contrário, teríamos uma situação de arbitrariedade que não pode ser aceita por uma sociedade.
Daí a necessidade de se desenvolver uma Teoria da Argumentação Jurídica, que possa fornecer
critérios teóricos racionais para um sistema de regras do discurso, afastando o arbítrio do direito.

Alexy é muito conhecido no Brasil pelo princípio ​da proporcionalidade, utilizado na


aplicação dos direitos fundamentais, ​a fim de solucionar o conflito entre normas desse tipo, como
a proteção da dignidade humana, da esfera íntima de alguém, do direito à informação, da
liberdade de expressão, etc. Um conflito que envolva normas assim deve ser resolvido por uma
ponderação, realizada a partir de três regras básicas:

1) adequação: uma medida é adequada se o meio escolhido está apto para alcançar o
resultado pretendido;

2) necessidade: uma medida é necessária se, dentre todas as disponíveis e igualmente


eficazes para atingir um fim, é a menos gravosa em relação aos direitos envolvidos;

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3) proporcionalidade em sentido estrito: se o meio escolhido para a realização de um princípio


significar a não realização de outro princípio, ele é vedado, por excessivo.

As teorias de Dworkin e Alexy fazem parte de um processo de reaproximação do direito com a


moral e com os valores que passou a ocorrer a partir da segunda metade do século XX.

Com isso, a teorização da justiça, por exemplo, volta a ser importante na ciência do direito.
Junto com o retorno da dimensão valorativa, ocorre um ressurgimento do interesse pela retórica,
isto é, pela arte da argumentação.

Estudos realizados, por exemplo, por Viehweg e Perelman, enfatizam a importância do


discurso, da argumentação e do convencimento do ouvinte no mundo jurídico.

As discussões sobre a justiça readquirem importância a partir da obra de John Rawls, que
propõe dois princípios de justiça cujo conteúdo reflete uma concepção política liberal de justiça.
Esse conteúdo possui três características básicas:

1) especificação de certos direitos, liberdades e oportunidades básicos (de um tipo que


conhecemos dos regimes democráticos constitucionais);

2) atribuição de uma prioridade especial a esses direitos, liberdades e oportunidades,


sobretudo em relação às exigências do bem comum;

3) medidas que assegurem a todos os cidadãos os meios adequados para que suas
liberdades e oportunidades sejam efetivamente postas em prática.

Para Rawls, essas características fazem da sua concepção política de justiça uma teoria de
característica liberal chamada por ele de justiça como Equidade, que seria a concepção mais
razoável para um regime democrático, por sua capacidade de unir pessoas diferentes em torno
de um conjunto de ideias que todas elas possam adotar, fomentando assim a cooperação social.

Rawls pretende lidar adequadamente com o problema de conciliar a liberdade com a


igualdade, problema esse que, desde a Revolução Francesa, permaneceu sem uma resposta
satisfatória.

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Os dois princípios da justiça como Equidade são, na visão do autor, a melhor maneira de
promover essa conciliação num contexto democrático. São eles:

1- Cada pessoa tem o mesmo direito inalienável a um sistema plenamente adequado de


liberdades fundamentais iguais que seja compatível com um sistema idêntico de liberdades para
todos;

2- As desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer duas condições: primeira, elas


devem estar vinculadas a cargos e funções abertos a todos em condições de igualdade equitativa
de oportunidades; e, segunda, elas devem redundar no maior benefício possível para os
membros menos privilegiados da sociedade.

O primeiro princípio afirma a liberdade igual de todos, o que corresponde às liberdades civis,
como o direito de votar e de ocupar um cargo público, a liberdade de expressão e de reunião, a
liberdade de consciência e de pensamento, a proteção à integridade pessoal, o direito à
propriedade privada e a proteção contra a prisão e a detenção arbitrárias, que devem ser
assegurados a todos os cidadãos, como consagram as constituições democráticas modernas.

O segundo princípio lida com o problema da justiça distributiva, pois sua função é corrigir as
desigualdades que naturalmente surgem da convivência humana.

Somente devem ser aceitas aquelas condições desiguais que proporcionem cargos abertos a
todos, em condições de igualdade de oportunidades, e o maior benefício possível aos cidadãos
mais pobres.

Embora os dois princípios de justiça funcionem de modo complementar, a justiça como


equidade determina que o primeiro tenha prioridade sobre o segundo.

Isso significa que não é permitido justificar violações de liberdades básicas protegidas pelo
primeiro princípio em troca de ganhos econômicos e sociais.

Outro autor que influenciou de modo intenso a filosofia do direito contemporânea foi Michel
Foucault. Seus estudos sobre biopoder e biopolítica têm sido objeto de discussões e estudos
atualmente.

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O filósofo francês faz uma análise da formação das ciências modernas e da sociedade
moderna. Para ele, a política moderna, desde o advento do Estado moderno e da ciência política,
passa a ser necessariamente biopolítica.

Biopolítica ou biopoder é o poder sobre a vida. Tal poder é exercido pelo uso de mecanismos
de controle e de coerção, cujo objetivo é assegurar a produtividade e a saúde dos corpos e das
populações, que passam a ser vistos como recursos e objetos a serem utilizados pelo Estado
moderno.

Trata-se, portanto, do controle sobre a vida, pois as pessoas e a própria espécie humana
passaram a ser objeto do cálculo político. Assim, a biopolítica se preocupa, por exemplo, com as
noções de sexualidade e de raça e com o aprimoramento da qualidade biológica de determinada
população.

Os regimes totalitários implementaram políticas desse tipo, reduzindo os seres humanos ao


seu aspecto biológico.

Embora os totalitarismos tenham sido derrotados pelas democracias liberais, alguns autores
argumentam que a biopolítica se faz presente nas democracias liberais, no seu propósito de
estender o processo vital natural, chegando a especular inclusive sobre formas de alcançar a
imortalidade.

Com isso, toda ação individual e toda prática social passam a ser orientadas pelo objetivo da
obtenção da melhor forma física, da maior longevidade, da manutenção da juventude, etc.

Foucault propõe uma resistência à biopolítica com base num novo tipo de prática em relação
aos corpos e aos prazeres, realizada pelo indivíduo quando ele toma o controle da sua própria
vida na busca de se desvencilhar do controle sobre a vida que caracteriza a biopolítica.

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