Você está na página 1de 97

TEORIAS DA INTERAÇÃO

SOCIAL

autores
LAILA MARIA DOMITH VICENTE
AMANDA ANDRÉ DE MENDONÇA
ALINE MOREIRA MAGALHÃES

1ª edição
SESES
rio de janeiro 2019
Conselho editorial roberto paes e gisele lima

Autores do original laila maria domith vicente, amanda andré de mendonça e aline
moreira magalhães

Projeto editorial roberto paes

Coordenação de produção andré lage, luís salgueiro e luana barbosa da silva

Projeto gráfico paulo vitor bastos

Diagramação bfs media

Revisão linguística bfs media

Revisão de conteúdo rodrigo dos santos rainha e antonio sérgio giacomo macedo

Imagem de capa rawpixel.com | shutterstock.com

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida
por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em
qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. Copyright seses, 2019.

Diretoria de Ensino — Fábrica de Conhecimento


Rua do Bispo, 83, bloco F, Campus João Uchôa
Rio Comprido — Rio de Janeiro — rj — cep 20261-063
Sumário
Prefácio 5

1. Interacionismo simbólico: significando


nossas ações 7
O percurso da abordagem interacionista 9
Escola de Chicago 11
Chicago e Iowa: novas abordagem metodológicas 14

A abordagem interacionista nas ciências sociais 16


Métodos de pesquisa e contribuições 19
Cultura e poder: interacionismo simbólico hoje 21

2. O diálogo de Becker e Goffman com a


Escola de Chicago 25
Constelações da Escola de Chicago 26

3. Interacionistas de Chicago e a influência


na sociologia brasileira 45
Sociologia: quatro autores e uma ciência 46

4. A Sociologia do Desvio em suas


diversas concepções 63
O desvio 64

5. O conceito de estigma social 79


O estigma social 80

Estigma e Preconceito: a identidade deteriorada 90


Prefácio

Prezados(as) alunos(as),

Este livro didático é uma parte importante dos estudos que as/os levarão ao
conhecimento das Teorias das Interações Sociais. O nosso livro parte de uma
proposta crítica que pretende adentrar o universo destes estudos sempre com
uma análise referente ao momento histórico em que foram produzidos, ao local,
assim como aos efeitos que esses discursos científicos podem acarretar na vida e
nas relações sociais.

O livro está dividido em cinco capítulos.


No primeiro capítulo, apresentamos os aspectos fundamentais acerca das
teorias da Interação Social e seus principais pensadores. Buscamos, assim, au-
xiliar na compreensão do pensamento de determinados sociólogos e na contri-
buição que seus trabalhos tiveram para a construção do saber racional. Para isso,
realizamos uma breve retrospectiva histórica, a fim de recuperarmos as origens
das primeiras análises sobre interação social, por meio do conceito de intera-
cionismo simbólico e da Escola de Chicago. Nossa proposta é de que este breve
resgate opere como um fio condutor das principais noções a serem exploradas
neste livro.
No segundo capítulo, compreenderemos mais a fundo a importância da
atuação inovadora da Escola de Chicago no âmbito de pesquisa em Sociologia.
Assim, chegaremos aos nomes de Erving Goffman e Howard Becker, enfatizan-
do o diálogo desses com a Sociologia Brasileira.
No terceiro capítulo, damos continuidade à investigação acerca da influên-
cia da Escola de Chicago na institucionalização da sociologia no Brasil, assim
como apresentamos as demais correntes e teorias sociológicas que compõem a
história desse campo de estudo no país. Nossa proposta é expor e discutir sobre
a formação e institucionalização da sociologia brasileira, apresentando seu per-
curso histórico, seu diálogo com as escolas internacionais, trazendo os principais
temas e abordagens presentes nesse campo até os dias de hoje.
No quarto capítulo, os estudos se darão acerca do desvio como objeto de
análise, mas sem localizá-lo no sujeito do rotulado como desviante, e sim nas
relações estabelecidas entre as pessoas, e assim veremos constituir-se a Sociologia
do Desvio.

5
Por fim, no último capítulo trabalharemos o conceito de Estigma aplicado
ao longo da história na Sociologia e a sua interface com a identidade social.
Faremos, ainda, a atualização crítica desse conceito para, por fim, pensarmos a
atuação do Estigma na deterioração da identidade social.

Bons estudos!
1
Interacionismo
simbólico:
significando nossas
ações
Interacionismo simbólico: significando nossas
ações

Neste primeiro capítulo, apresentamos os aspectos fundamentais acerca das


teorias da interação social e seus principais pensadores. Buscamos, assim, auxiliar
na compreensão do pensamento de determinados sociólogos e na contribuição
que seus trabalhos tiveram para a construção do saber racional. Para isso, rea-
lizamos uma breve retrospectiva histórica, a fim de recuperarmos a origem das
primeiras análises sobre interação social, por meio do conceito de interacionismo
simbólico e da Escola de Chicago. Nossa proposta é de que este breve resgate opere
como um fio condutor das principais noções a serem exploradas neste livro.
Este texto inicial também aborda a relação do interacionismo simbólico com
a psicologia social, revisando as concepções teóricas dos estudiosos que mais con-
tribuíram para o seu desenvolvimento, além de suas contribuições em relação aos
métodos de pesquisa qualitativa no campo das ciências sociais. Acreditamos que
percorrer este caminho pelo surgimento do interacionismo simbólico e como este
conceito influenciou a sociologia no século XX é fundamental para a compreensão
das teorias da interação social.

OBJETIVOS
• Definir o conceito de interacionismo simbólico;
• Reconhecer a relação entre o interacionismo simbólico, o pensamento racional e novas
Escolas de sociologia do século XX;
• Identificar a conexão com a psicologia social e a contribuição desses estudos para as
ciências sociais;
• Refletir sobre novos métodos de pesquisa e especialmente sobre a pesquisa qualitativa
na sociologia;
• Relacionar interacionismo simbólico, psicologia social e teorias da interação social.

capítulo 1 •8
O percurso da abordagem interacionista

Ainda nas primeiras décadas do século XX, boa parte da Europa ocidental
vivenciava os problemas sociais trazidos pelo processo de industrialização e de
urbanização recentes. Foi nesse contexto que uma perspectiva teórica distinta das
adotadas até o momento, voltada para o entendimento do comportamento social
humano, passou a ser desenvolvida no campo da psicologia social. Começavam a
se delinear os pressupostos da chamada abordagem interacionista.
Herbert Blumer, em 1937, por de seus escritos, iniciou essa linha de pesqui-
sa sociopsicológica e sociológica. Sua publicação mais importante e reconhecida
internacionalmente foi Symbolic Interactionism: Perspective and Method, que jus-
tamente cunhava o termo interacionismo simbólico e abordava o interacionismo
simbólico enquanto um novo método para a sociologia. Mas o que propunha esse
novo método? O que viria a ser essa nova abordagem?

Figura 1.1 – Herbert Blumer 1900/1987, sociólogo com importantes


contribuições à Psicologia Social e às Ciências da Comunicação.

O interacionismo simbólico busca a compreensão do comportamento huma-


no e de seus processos de interação. Seus autores de referência acreditam que o sig-
nificado é um dos mais importantes elementos para entender esse processo social
de interação. Por isso, para eles, o pesquisador deve apropriar-se dos significados

capítulo 1 •9
vivenciados pelos indivíduos diante de um determinado contexto, a fim de perce-
ber suas interações. O significado se tornaria, portanto, um produto social, fruto
das atividades e que surge à medida em que os indivíduos interagem.
Os principais teóricos que deram início a essa Escola de pensamento, George
Mead e Herbert Blumer, estabeleceram três premissas básicas para a abordagem
interacionista. O ponto de partida para os autores é o de que o ser humano di-
reciona suas ações em função do que estas significam para ele. Em seguida, a
percepção de que este significado surgirá como consequência da interação de cada
um com os demais. Por fim, a ideia de que os significados se manipulam e se trans-
formam ao longo do trajeto percorrido pelo indivíduo.

Figura 1.2 – George Mead 1863/1931 foi um filósofo americano


de importância para a sociologia e a psicologia social.

Em suma, pode-se dizer que o interacionismo simbólico permite analisar a


forma como os indivíduos decifram as pessoas, os símbolos e os objetos com os
quais interagem e como essa interação resulta em determinados comportamen-
tos. Essa nova perspectiva teórica adquiriu espaços no campo da sociologia e da
psicologia social, conforme veremos ao longo deste capítulo, e desenvolveu-se em
especial a partir de estudiosos norte-americanos. Nesta Escola de pensadores –
Escola de Chicago –, os trabalhos com o interacionismo foram determinantes
para a consolidação teórica e para a propagação dessa abordagem no campo das
ciências sociais.

capítulo 1 • 10
Escola de Chicago

A fim de realizarmos uma breve contextualização sobre a criação da Escola de


Chicago, faz-se necessário mencionar que, com a doação do à época milionário
estadunidense John D. Rockefeller, foi fundada a Universidade de Chicago ain-
da no final do século XIX. Essa Universidade, em virtude de um contexto local
de grande desenvolvimento industrial e demográfico, foi impulsionada a desen-
volver estudos na área da sociologia urbana. Nesse sentido, o departamento de
Antropologia e Sociologia recém-criado na Universidade tinha como alvo princi-
pal de suas investigações a questão da relação com a cidade (COULON, 1995).
Em consequência dessa crescente urbanização, surgia uma série de fenômenos
sociais antes inexistentes ou minoritários, como desemprego, aumento da pobre-
za, formas de violência e imigração. Chicago passava a ser um laboratório vivo. A
cidade passava a ser, em contraposição à sociologia europeia, utilizada como ins-
piração para uma nova abordagem, que considerasse a experiência do sujeito com
o meio. Dessa forma, a Escola de Chicago defendia um novo olhar metodológico,
que exigisse do pesquisador um processo de construção do seu papel, o chamado
saber metodológico comunicacional.
Assim, a Escola de Chicago prioriza o desenvolvimento da pesquisa a partir do
problema a ser estudado. Para isso, ela orienta seus esforços na busca por métodos
que contribuam com o entendimento das questões que estão sendo analisadas.
Na Escola, há espaço para a chamada abordagem funcionalista estrutural, ou seja,
surveys/questionários. Contudo, privilegia-se o método descritivo, buscando-se
histórias de vida, sejam estas coletivas ou individuais.
Este pequeníssimo panorama sobre a Escola é importante para entendermos
o contexto e as principais contribuições teóricas que deram origem ao chamado
interacionismo simbólico, conceito que estamos apresentando neste primeiro ca-
pítulo do livro. George Mead, a quem já mencionamos, é considerado o precursor
dos interacionistas na Escola. Mas também é importante evidenciar o trabalho de
Charles Cooley, John Dewey e William Thomas (Schweiger & Torregrosa, 2007).

COMENTÁRIO
Para mais referências da Escola de Chicago, buscar William I. Thomas, Florian Znaniecki,
Robert E. Park, Louis Wirth, Ernest Burgess, Everett Hughes e Robert McKenzie.

capítulo 1 • 11
Nos trabalhos de Dewey e Mead, sobressaíram-se as análises acerca dos proces-
sos e das operações psíquicas, destacando-se em suas obras a influência da filosofia
do pragmatismo1. Contudo, foi à obra de Mead que se creditou a “solução” de uma
observação pragmática acerca da interação social, em grande medida pelo fato de seu
trabalho ter centrado na ação interpessoal, mostrando que a conduta de um indiví-
duo provoca reflexos e respostas no outro, o que faz possível a sequência de suas pró-
prias ações. Segundo Mead, algumas partes das ações dos indivíduos se transformam
em um estímulo para que o outro se adapte às suas respostas e estas se convertam de
forma a alterar a primeira ação do indivíduo, levando-o a iniciar outro ato.
O ato social é, portanto, central em toda a obra de Mead e suas análises so-
bre conduta humana. Ele se refere à ação ou ao comportamento que podemos
observar do indivíduo, mas também ao ato encoberto, aquele que é simbólico
(Haguette, 1995). Sobre esse aspecto, o autor afirmava que a mente é a afinidade
do organismo com a ocasião e que isso se constrói por meio de uma série de sím-
bolos. Assim, quando um sinal consegue transmitir a ideia para o outro indivíduo,
ocorre o que para Mead seria a construção de um símbolo significante. Ou seja,
um gesto inicial levou a uma resposta apropriada do outro, constituiu-se um sím-
bolo que replica um sentido na vivência do primeiro indivíduo e que ao mesmo
tempo recorda esse significado no segundo.
Dessa forma, a estrutura dessa noção está presente na conduta social, em que
surgem os símbolos significantes. Apenas quando o indivíduo se reconhece com
esses símbolos ele compreende o significado deles. Portanto, para Mead, os pro-
cessos mentais estão vinculados com o sentido das coisas. A nossa mentalidade
estaria justamente na capacidade de identificar o elemento em um determinado
espaço que rebate as suas reações: “o controle é possibilitado pela linguagem (...) e
da linguagem emerge o campo da mente” (Mead, 1982, p. 165).

MULTIMÍDIA
Sugestão de filme - Muito além do jardim – Peter Sellers (1979). Tendo vivido toda a sua
vida isolado do mundo, dentro de uma mansão de Washington, Chance apenas conhece o
mundo através da televisão. Quando as circunstâncias da vida o obrigam a partir, ele se vê
atirado em diversas situações para as quais não tem nenhuma referência, particularmente
quando passa a frequentar um círculo de importantes políticos em busca de ideias novas. O

1 Escola de filosofia estabelecida no final do século XIX e que defendia a tese de que o sentido de uma ideia
satisfaz ao conjunto dos seus desdobramentos práticos.

capítulo 1 • 12
filme traz reflexões sobre a questão dos jogos de linguagem, do contexto, da produção de
sentido em nossos gestos e ações, permitindo um diálogo com os interacionistas simbólicos
da Escola de Chicago.

A fim de explanar sobre esse processo que envolve a significação e ressignificação


de objetos e de interação, Mead apresentou as noções de Self, Eu e Mim. Self corres-
ponderia à característica da pessoa como objeto para si. Essa característica permitiria
ao indivíduo interagir socialmente consigo, entender e/ou sentir-se no lugar do ou-
tro, o que capacita o indivíduo a desenvolver o sentido de Self social. É preciso expli-
car que Self, segundo Mead, deve ser compreendido sempre à luz da interação social,
ou seja, o indivíduo não pode ser analisado de forma isolada. O Self se desenvolve
continuamente por meio de interação com o meio e com outros seres (Jeon, 2004).
Outro pensador interacionista que integrou a Escola de Chicago e contribuiu
para o desenvolvimento do conceito e dessa nova perspectiva teórica foi Herbert
Blumer. Alguns autores, como Haguette (1995), consideram que Blumer foi se-
guidor do pensamento de Mead ao tratar da natureza da interação simbólica em
grupos e da conduta do indivíduo. Contudo, é necessário mencionarmos que,
para outros autores, como Joas (1999) e Farr (1998), o interacionismo simbólico
desenvolvido por Blumer se aproxima mais de uma “interpretação” da perspectiva
teórica de Mead. Em que pesem as diferenças sobre a influência da obra de Mead
no trabalho de Blumer, é preciso reconhecer que, indubitavelmente, ele se tornou
o mais influente entre os estudiosos interacionistas da Escola de Chicago.
Outra figura de extrema relevância da Escola de Chicago e cuja obra também in-
fluenciou o desenvolvimento do interacionismo simbólico foi W. I. Thomas. Em suas
pesquisas, buscava sempre identificar o papel da cultura tanto na conduta individual
quanto na coletiva. Para ele, a cultura era responsável por uma gama de recursos coleti-
vos, fossem estes materiais, técnicos e cognitivos, ou seja, seus estudos insistiam que os
comportamentos e hábitos, mesmos os individuais, tinham caráter cultural.

CURIOSIDADE
Em parceria com Znaniecki, W. I. Thomas realizou sua produção mais extensa e talvez a
mais conhecida, The Polish Peasant in Europe and America, que trata dos imigrantes polone-
ses. Essa publicação viria a se tornar uma das obras paradigmáticas da Escola de Chicago.

capítulo 1 • 13
Ao trazermos a referência de alguns dos interacionistas de Chicago, buscamos
reforçar o papel que essa Escola teve no desenvolvimento dessa perspectiva teóri-
ca e dessa nova abordagem, qual seja o de que o significado é um dos elementos
mais importantes na análise da conduta do indivíduo, de suas interações e dos
processos (Jeon, 2004). Para isso, os interacionistas dessa Escola argumentam que,
para obter uma apreensão total do processo social em curso, o pesquisador deve
apropriar-se dos significados vivenciados pelos indivíduos em determinado con-
texto particular.
Ressaltamos que esse breve resgate sobre a Escola de Chicago não proporciona
o contato com todas as contribuições teóricas que cooperaram para a constituição
do interacionismo simbólico. É preciso considerar as questões que envolvem a
complexidade de uma teoria e dos métodos empregados, bem como os limites
deste texto e seus objetivos. Nesse sentido, buscamos destacar aquelas que foram
mais relevantes.

Chicago e Iowa: novas abordagem metodológicas

A sociologia norte-americana foi responsável, nas primeiras décadas do sé-


culo XX, por trazer novas abordagens teórico-metodológicas para o campo das
ciências sociais, sendo uma delas o interacionismo simbólico, cunhado na Escola
de Chicago, conforme descrito anteriormente. Contudo, também é importante

capítulo 1 • 14
destacar o papel que a Escola de Iowa, na figura de Manford Kuhn, teve no tocan-
te ao desenvolvimento do interacionismo simbólico.
A despeito de serem abordagens distintas, ambas as Escolas convergiam na
ideia de que o elemento mais característico e singular da conduta humana é sua
capacidade de interagir diante de simbolismos, ou seja, os sentidos das ações po-
dem ser conservados, alterados ou informados pelos indivíduos, que são seres da
vida social (Blanco, 1998).
Em relação aos pontos de divergência entre as Escolas, é necessário recuperar-
mos o pensamento de Blumer quando este afirma que o indivíduo estabelece seu
comportamento de forma contínua e ativa ao longa da interação, o que irá ocorrer
durante toda a sua vida social. Assim, os sentidos, as explicações e as definições,
que são fundamentais para a interação social, sofrem contínuas reformulações du-
rante as interações. Portanto, as generalizações empregadas pelas pesquisas, neste
caso, não podem ser utilizadas, já que esses significados estão sujeitos à mudança
a todo tempo (Stryker & Vryan, 2006). Essa percepção permitiu o entendimento
desses teóricos de que seria possível compreender uma conduta social após ela ter
ocorrido, mas não o desenvolvimento de teorias que previssem comportamentos.
No que se refere ao desenvolvimento das pesquisas, Blumer critica a metodo-
logia convencional no uso de esquemas para determinar a validade empírica. O
autor entende esse método como ineficiente, já que desconsidera o caráter espe-
cífico do objeto em análise. Dessa forma, defendeu a ideia de que, na abordagem
interacionista, é necessário acompanhar os atos e as interações dos indivíduos.
Para ele, portanto, o pesquisador deve interagir com aqueles e aquelas que estão
sendo pesquisados e pesquisadas, a fim de conhecer e investigar o contexto natural
em que as interações ocorrem (Jeon, 2004).
A visão de Manford Kuhn, por sua vez, almejava a generalizações teóricas e
rigorosamente testadas. Kuhn partilhava do entendimento dos filósofos e soció-
logos pragmatistas, que defendiam que a estrutura social é criada, conservada e
modificada por meio da interação simbólica. Contudo, ele acreditava que, uma
vez estabelecida essa estrutura, ela impediria o surgimento de novas interações.
Essa perspectiva abrange uma concepção de estrutura social formada por redes
de posições em relações estruturadas entre indivíduos e de esperanças de papel
vinculadas com tais posições.
Essa proposta metodológica exige o desenvolvimento de proposições gerais,
das quais hipóteses específicas possam ser deduzidas e testadas. Caso os testes
confirmem as hipóteses, pode-se dizer que há uma teoria capaz tanto de explicar

capítulo 1 • 15
quanto de prever a conduta de um indivíduo em interação social. Para Kuhn, não
havia contradição entre o interacionismo simbólico, a mensuração e o teste empí-
rico (Stryker & Vryan, 2006).
Vimos, portanto, que essa é uma abordagem metodológica diametralmente
oposta à de Blumer e da Escola de Chicago, que não acreditava ser possível prever
o comportamento humano. Enquanto a Escola de Iowa privilegiava a lógica de ve-
rificação, utilizando dados estatísticos, questionários, escalas, testes e procedimen-
tos de laboratório, a Escola de Chicago tendia a adotar a observação participante,
entrevistas, grupos focais e análise de documentos.
Outro ponto que diferencia a abordagem das Escolas envolve a natureza do
comportamento humano em relação à liberdade ou determinação. Enquanto os
interacionistas de Chicago defendiam uma espontaneidade do “Eu”, um certa im-
previsibilidade no comportamento, para os principais pensadores de Iowa tanto o
comportamento do indivíduo quanto as interações com os outros seguem padrões
e são relativamente estáveis e previsíveis (Haguette, 1995).
O contraste entre essas duas Escolas, aqui enfatizado, é relevante para a his-
tória do interacionismo simbólico, seus argumentos iniciais, mas não represen-
ta mais posições, interpretações e produções interacionistas contemporâneas da
sociologia. A apresentação dessas duas posições extremas, Chicago e Iowa, en-
tretanto, ajuda-nos ainda hoje a compreender e debater método e pesquisa nas
ciências sociais.

A abordagem interacionista nas ciências sociais

Ao longo de todo esse primeiro capítulo, apresentamos o surgimento, a conso-


lidação e os pressupostos centrais da perspectiva interacionista simbólica. Também
identificamos sua relevância para o campo de estudos da Psicologia social, as novas
abordagens propostas, revisitamos seus principais teóricos no século XX e discu-
timos as concepções das Escolas que mais contribuíram para o seu desenvolvi-
mento. Além disso, tratamos da interacionismo simbólico enquanto contribuição
para novas perspectivas metodológicas nas ciências sociais. E é sobre esta última
em especial que iremos tratar um pouco mais. Nossa proposta é mostrar que o
interacionismo simbólico é, potencialmente, uma abordagem possível para anali-
sar os processos de socialização, para os estudos que envolvem comportamentos e
expectativas sociais ainda nos dias de hoje.

capítulo 1 • 16
Em geral, permanece a noção de que a pesquisa, para os interacionistas, exi-
ge um comprometimento com metodologias qualitativas. Isto tem vinculado o
interacionismo simbólico à utilização de métodos como etnografia, observação
participante e entrevistas não estruturadas (Benzies & Allen, 2001). Contudo,
é importante registrar que a pesquisa interacionista pode ser realizada com uma
gama maior de métodos nas ciências sociais.
No que tange os aspectos conceituais, mais especificamente aqueles relaciona-
dos a manutenção ou alteração, construção social ou reprodução, capacidade cria-
dora ou consonância, é importante identificar que não são aspectos excludentes.
São elementos mútuos da vida social (Stryker e Vryan, 2006) e que, apesar de não
serem excludentes, são observáveis, o que fornece certa continuidade a essas carac-
terísticas. Ou seja, apesar de a conduta humana ser permeada pelo imprevisível,
ela é, em muitas medidas, determinada pela estrutura social na qual o indivíduo
está inserido, o que faz com que ela se repita.
Essa visão ajuda a trabalhar uma perspectiva interacionista simbólica mais
ampla, em que podem ser utilizados tantos métodos qualitativos ou quantitativos
pelos pesquisadores – os conceitos generalizados são úteis – como as teorias, que
podem ser formuladas, reformuladas e testadas. Assim, o interacionismo simbó-
lico, que desenvolveu uma extensa tradição no estudo da organização social e dos
processos sociais ao longo do século XX, continua ofertando possibilidades de
contribuição em diferentes vertentes de estudo dentro das ciências sociais.

LEITURA
Para saber mais sobre os estudos envolvendo organização social e processos sociais,
recomenda-se o livro Homem e Sociedade, organizado por Fernando Henrique Cardoso e
Octavio Ianni.

Contudo, há que se mencionar também as críticas, que, ao longo da década


de 1970, em especial, multiplicaram-se a ests perspectiva teórica. Autores como
Meltzer, Petras e Reynolds argumentaram, por exemplo, que o interacionismo
simbólico minimiza a estrutura social. Nesse sentido, para esses pensadores, os
trabalhos interacionistas são frágeis no que tange à questão da estratificação social,
da pobreza e da distribuição de poder na sociedade. Nessa mesma linha, outras crí-
ticas apontavam que o interacionismo simbólico lidava sempre com aspectos limi-
tados, uma vez que era circunscrito aos elementos “micro” da organização social.

capítulo 1 • 17
Contrapondo-se a essas críticas, de que os interacionistas excluem uma abor-
dagem macro das organização sociais, diminuindo ou menosprezando o papel da
estrutura social e de fenômenos como classes sociais e estruturas de poder, alguns
autores, como Sauder (2005), argumentam que o interacionismo simbólico não
interdita essa análise macro da organização e estrutura sociais. Como exemplo o
estudioso cita a questão do status. O acompanhamento de como o status tende
a ser recomendado, conservado ou modificado com o tempo, por meio de uma
abordagem interacionista, permite uma análise de como este influencia tanto o
comportamento individual quanto o social.
Já Dennis e Martin (2005) apontam para a contribuição da perspectiva in-
teracionista nos estudos sobre relações de poder. Segundo os autores, é possível
utilizar essa abordagem para a análise de processos sociais nos quais o poder é
desempenhado e está institucionalizado em situações do cotidiano. O que esses
estudos buscam é demonstrar que o interacionismo, por meio de sua abordagem
que envolve a influência dos padrões culturais e institucionais sobre o comporta-
mento individual e coletivo do indivíduo, também corrobora com análises acerca
da estrutura social e do macro da organização social.
Ou seja, esses autores manifestam que os interacionistas não rejeitam as inter-
ferências e o controle que as organizações e estruturas sociais impõem aos indiví-
duos. Eles alegam que, na abordagem interacionista, analisam-se essas estruturas,
mas sob a ótica de que estas de manifestam, em seus processos de ingerência e/ou
de coação, por meio de interações individuais. Assim, o interacionismo simbólico
representaria uma perspectiva teórica que pode colaborar com melhor compreen-
são tanto das relações entre indivíduos quanto destes com as estruturas sociais.
Essa concepção foi significativa para que o interacionismo simbólico se tornas-
se uma perspectiva teórica norteadora de grande parte dos estudos organizacionais
no campo da sociologia a partir da década de 1980. Nesse campo de estudo, inves-
tiga-se a conduta humana diante de comunicações simbólicas, em que os sentidos
dos atos podem ser conservados, alterados ou fornecidos pelo próprio indivíduo
(Blanco, 1998). A ideia principal é de que o interacionismo simbólico contribui
para a compreensão de novos elementos da vida organizacional, trazendo aspectos
que as outras abordagens teórico-metodológicas empregadas não alcançavam.
Destacamos alguns exemplos de utilização de uma perspectiva interacionista
simbólica em estudos organizacionais. Todavia, é preciso lembrar que analisar e
pesquisar a vida organizacional envolve múltiplos fatores. São diversos valores e

capítulo 1 • 18
significados distintos para os indivíduos envolvidos, assim como as representações
que estes fazem. Assim, a abordagem interacionista contribuiria para investigar
todos esses sentidos e representações, bem como suas contradições.
Um desses exemplos é o uso da linguagem. Na década de 1990, Cossette
(1998) desenvolveu um trabalho relacionando a forma como a linguagem do ges-
tor e a do trabalhador são determinadas por elementos específicos da condição
interativa. Mas o que ele destaca é que o sentido atribuído a essa linguagem é
definido essencialmente pela percepção de cada um deles a respeito das intenções
do outro. Assim, Cossette (1998) argumenta que a linguagem é desenhada pela
estrutura onde é elaborada e que, por sua vez, também atua moldando-a. Por isso,
defende que a abordagem interacionista no estudo da linguagem contribui com a
percepção acerca da dinâmica organizacional.
Já Morgan (1996) trabalhou com o interacionismo simbólico e a questão da
cultura organizacional. Segundo o autor, falar de cultura implica processo de ela-
boração da realidade que possibilita aos indivíduos ver e entender situações, atos,
objetos e acontecimentos de formas distintas. A construção e a conservação da
cultura implicam a existência de determinado grau de partilha da realidade so-
cial. Esse compartilhamento precisa ser edificado coletivamente, e isso se daria
por meio das interações. Nesse sentido, a abordagem interacionista auxiliaria na
compreensão de como esse processo se constitui para o indivíduo e para o coletivo.
Ainda no campo dos estudos relacionados à cultura, o tema da socialização
organizacional também recebeu grande influência dos interacionistas. Partindo
da argumentação interacionista de que os sentidos dos atos que emergem em cer-
to contexto social contam com a participação do próprio indivíduo, os estudos
em socialização organizacional passaram a entender esse indivíduo como sujeito
e objeto. Ou seja: “não há um espaço ilimitado de deliberação do sujeito, nem
o indivíduo é um mero produto do meio, e sim fruto dessa dinâmica” (Borges e
Albuquerque, 2004 p. 332). Esses estudos buscam compreender como são elabo-
radas as ações e as condutas dos indivíduos e com base nelas verificar como um
iniciante pode atuar como parte da organização.

Métodos de pesquisa e contribuições

Vimos as aplicabilidades dos pressupostos interacionistas simbólicos, especial-


mente ligados ao campos dos estudos organizacionais. Mas chamamos atenção

capítulo 1 • 19
para outro ponto de extrema importância sobre essa abordagem, que são os aspec-
tos metodológicos de tais estudos. Dessa forma, teceremos algumas considerações
sobre a relação entre esses estudos conduzidos sob a perspectiva interacionista
simbólica e as possibilidades metodológicas.
Nesse sentido, chamamos a atenção para as múltiplas possibilidades de abor-
dagem metodológicas, sinalizando mais uma vez que a ideia de que interacionis-
mo simbólico é sinônimo de pesquisa exclusivamente qualitativa é uma armadi-
lha. Contudo, de fato a perspectiva interacionista contribui sobremaneira para o
campo das ciências sociais no que tange os métodos qualitativos de investigação.
Novos métodos de pesquisa, instrumentos e até mesmo o papel do pesquisador
emergiram com os interacionistas.
É importante destacar que, com essas novas abordagens, os dados e as análises
qualitativas, além de propiciarem informações densas, asseguram o entendimento
de contextos que podem facilitar a elaboração de teorias. Em especial quando fala-
mos de determinados aspectos da vida social, há uma dificuldade maior em aces-
sá-los por meio de questionários estruturados ou outras formas de coletas quanti-
tativas. Em contraposição, os dados qualitativos estão em desvantagem quando o
objetivo é testar a generalidade de um argumento teórico. Também não permitem,
em geral, amostras mais representativas e modelos multivariados.
Assim, é muito comum a integração de metodologias qualitativas e quanti-
tativas, principalmente nos estudos organizacionais realizados sob a perspectiva
interacionista (Benzies & Allen, 2001). Esse é um processo complexo, que exige o
desenvolvimento de teorias, das proposições, a constituição dos esquemas teóricos
e os testes empíricos. Segundo Stryker e Vryan (2006), desenhos de pesquisa, den-
tro da perspectiva interacionista simbólica, que utilizam métodos diversificados,
possibilitam ao pesquisador tanto formular quanto validar teorias.
Embora tenhamos destacado essa possibilidade de associar diferentes estra-
tégias metodológicas na operacionalização dos pressupostos interacionistas, é de
suma importância pontuar que são inúmeros os desafios da adoção de múltiplos
métodos. Há que se considerar elementos como o tempo e as técnicas requeridos
à aplicação de ambas as estratégias. Também é importante pensar sobre o objeto
em estudo e suas especificidades. Contudo, nossa proposta foi apresentar a aplica-
bilidade da perspectiva interacionista no campo das ciências sociais, com destaque
para os estudos da psicologia social e da organização social.

capítulo 1 • 20
Cultura e poder: interacionismo simbólico hoje

O debate acadêmico envolvendo o conceito de interacionismo simbólico, ob-


viamente, sofreu transformações profundas desde as obras de Mead e Blumer até
os dias de hoje. Ao longo destes capítulos, vimos um pouco sobre os pressupostos
principais do interacionismo simbólico e os contextos em que surgiu (década de
1930) e que se expandiu nas ciências sociais (década de 1980). Mas e hoje? Ainda
faz sentido falarmos nessa abordagem? Que conexões estão sendo estabelecidas na
sociologia com essa abordagem?
Para responder a essas questões, vamos falar sobre cultura e poder. O deno-
minado pós-estruturalismo e a chamada crítica pós-moderna estabelecem uma
relação entre os conceitos de interacionismo simbólico, cultura e poder. O pri-
meiro estabelece que, por meio da interação, se define a forma como o indivíduo
irá se comportar no mundo e como irá classificá-lo, assim como estabelece que
é por meio da própria interação social que o indivíduo aprende os significados e
os símbolos que vão lhe permitir interagir. E coloca o segundo no centro de suas
atenções, o que vem fazendo crescer os estudos que utilizam o Interacionismo
Simbólico nas investigações sobre cultura.
Destaque: O pós-estruturalismo refere-se à superação da perspectiva estru-
turalista, que defendia que a cultura humana pode ser entendida por meio da es-
trutura – modelada pela língua – que diferencia a realidade concreta da abstração
de ideias em diversas áreas do conhecimento. O pós-estruturalista inaugura uma
teoria da desconstrução na análise literária, trazendo o texto para uma diversidade
de sentidos. A realidade passa a ser considerada como uma construção social e
subjetiva. Seu surgimento se deu em final da década de 1960, na França. Seus
principais representantes são: Michel Foucault, Jacques Derrida, Gilles Deleuze,
Jean-François Lyotard. Também são considerados pós-estruturalistas ou próximos
às teses pós-estruturalistas Giorgio Agamben, Jean Baudrillard, Judith Butler,
Félix Guattari, Julia Kristeva, Sarah Kofman, Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-
Luc Nancy.
Esses estudos contemporâneos relacionando interacionismo, cultura e poder
também estão vinculados à questão da linguagem e do discurso. Eles afirmam que
o entendimento de uma dada situação da vida é textual, na medida em que essa
noção não está apenas nos conceitos, mas também nas palavras. E dessas palavras
podem passar a existir significados novos e distintos.

capítulo 1 • 21
Assim, sob essa perspectiva, é necessário considerar que a linguagem e as “re-
gras da cultura” podem vir das interações sociais dos indivíduos em diferentes
contextos, e não necessariamente de uma estrutura social rígida e estável. Mais
uma vez emerge a questão das “variáveis estruturais”, ou seja, classe, raça, poder
etc. Estas não estariam sendo minimizadas nessa abordagem? Qual a leitura que se
faz da realidade social com essa perspectiva?
É importante dizermos que, para os interacionistas, não se trata de negar ele-
mentos considerados fundamentais para a percepção dessa realidade. Para eles,
é indispensável tratar de variáveis como classe e poder para explicar essa realida-
de. Contudo, as perspectivas interacionista e pós-estruturalista entendem como
deterministas os estudos que analisam essas variáveis como “dado” objetivo da
realidade, como um tipo de ordenamento do mundo. A defesa que fazem é de que
essas variáveis se constroem também nas interações, assim como o comportamen-
to individual e coletivo do indivíduo, determinando relações de poder e culturais.

REFLEXÃO
Procuramos com este capítulo demonstrar que o interacionismo simbólico contribuiu
com as ciências sociais de diversas formas, dos métodos de pesquisa, que passaram, dentre
outras coisas, a privilegiar o ponto de vista do indivíduo, as noções e as teorias sobre inte-
ração e cultura. Vimos também que, desde o seu surgimento, o interacionismo simbólico se
fortaleceu enquanto uma alternativa de abordagem que permite trabalhar com aspectos da
estruturação social e também com a construção das individualidades.
Permeado por críticas, o caminho traçado pelos interacionistas, especialmente pela su-
posta exclusão do papel da estrutura social, passou a abranger o cultural e o singular, bus-
cando na atualidade reflexões sobre os fenômenos sociopsicológicos, sem ignorar o caráter
histórico deles. Apresentamos também as abordagens interacionistas nas pesquisas sobre
realidade organizacional, com exemplos de sua aplicabilidade.
Por fim, também trabalhamos neste capítulo a questão dos métodos de pesquisa e a
contribuição do interacionismo simbólico. A despeito de toda relevância e destaque que esta
abordagem teve para a metodologia qualitativa, com o desenvolvimento de novos recursos,
ferramentas e estratégias, enfatizamos que não há exclusividade em nenhum caminho me-
todológico. Tratamos sobre a importância de reconhecer os limites e as especificidades de
cada objeto.

capítulo 1 • 22
ATIVIDADES

A partir da imagem retratada, produza um texto que dialogue sobre o uso das redes so-
ciais, a conexão e a comunicação entre os indivíduos na contemporaneidade e os processos
de interação social. A proposta é relacionar a questão dos símbolos na conduta humana e o
conceito de interacionismo simbólico.

Sugestão de filmes:
O show de Truman – Filme mostra a vida de Truman Burbank, um homem que não
sabe que está vivendo numa realidade simulada por um programa da televisão, transmitido
24 horas por dia para bilhões de pessoas ao redor do mundo.
Destaque: observe a cena da propaganda do chocolate em pó, identificando como a
personagem muda o modo de falar. Em seguida, caracterize os aspectos que surpreenderam
Truman nessa mudança e por quê.

O Enigma De Kasper Hauser – História de Kaspar Hauser, uma criança abandonada


envolta em mistério, encontrada na Alemanha Ocidental do século XIX, com alegadas liga-
ções com a família real de Baden.
O menino selvagem – Três caçadores acham uma criança selvagem, que tem 11 ou
12 anos. Ele é apelidado de Selvagem de Aveyron. O professor Jean Itard se interessa pelo
menino, que é levado a Paris para determinar seu grau de inteligência.
Destaque: Reflita sobre o papel da cultura em nossa vida e em nossa estrutura social.
Busque dialogar com o texto e os aspectos relacionados à abordagem interacionista sobre
o comportamento humano.

Adeus, Lênin! – Pouco antes da queda do muro de Berlim, Christiane Kerner entra em
coma. Quando ela finalmente volta à consciência, seu médico recomenda que a família seja

capítulo 1 • 23
cautelosa. Para os filhos Alex e Ariane e seu colega de trabalho Denis, resta a árdua tarefa
de recriar um mundo já deixado para trás com a reunificação alemã.
Destaque: Produza um texto relacionando os “objetos”, o “universo simbólico” e a “iden-
tidade” presentes no filme.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVARO, J. L.; Garrido, A. (2007a). Psicologia social: perspectivas psicológicas e sociológicas. São
Paulo: McGraw-Hill.
BENZIES, K. M., & Allen, M. N. (2001). Symbolic interactionism as a theoretical perspective for multiple
method research. Journal of Advanced Nursing, 33(4), 541- 547.
BLANCO A. (1998). Cinco tradiciones en la psicología social. Madrid: Ediciones Morata.
BORGES, L. O.; ALBUQUERQUE, F. J. B. Socialização Organizacional. In: ZANELLI, J. C. et al. (Orgs.).
Psicologia, organizações e trabalho no Brasil. Porto Alegre: Artmed, 2004. p. 331- 356.
COSSETTE, P. (1998) The study of language in organizations: a symbolic interactionist
stance.Human Relations 51, 11, 1355-1377.
COULON, Alain. A Escola de Chicago. Tradução Tomaz R. Bueno. Campinas, SP: Papirus, 1995. 135 p.
DENNIS, A.; Martin, P. J. (2005). Symbolic interactionism and the concept of power. The
British Journal of Sociology, 56, 191-213.
FARR, R. M. (1998). As raízes da psicologia social moderna. Petrópolis, RJ: Vozes.
HAGUETTE, T. M. F. (1995). Metodologias qualitativas na sociologia. 4 ed. Petrópolis, RJ: Vozes.
JEON, Y. (2004). The application of grounded theory and symbolic interactionism.
Scandinavian Journal of Caring Sciences, 18, 249–256.
JOAS, H. 1999. Interacionismo simbólico. In: A. GIDDENS e J. TURNER (eds.). Teoria social hoje.
São Paulo: Editoria da UNESP. p. 128-174
MEAD, G. H. (1982). Espiritu, persona y sociedad: desde el punto de vista del condutismo
social. Barcelona: Paidos. (Trabalho original publicado em 1934)
MORGAN, G. Imagens da organização. São Paulo: Atlas,1996.
SAUDER, M. (2005). Symbols and contexts: an interactionist approach to the study of
social status. The sociological quarterly, 46, 279-298.
SILVA, C.L. Interacionismo simbólico: história, pressupostos e relação professor e aluno; suas
implicações. Revista Educação por Escrito – PUCRS, v.3, n.2, dez. 2012
STRYKER, S.; Vryan, K. D. (2006). The symbolic interactionist frame. In J. Delamater (Org.).
Handbook of social psychology. (pp. 283-308). New York: Springer.

capítulo 1 • 24
2
O diálogo de Becker
e Goffman com a
Escola de Chicago
O diálogo de Becker e Goffman
com a Escola de Chicago

Ao longo do nosso primeiro capítulo, apresentamos o surgimento, a consoli-


dação e os pressupostos centrais da perspectiva interacionista simbólica. Também
identificamos sua relevância para o campo de estudos da Psicologia Social, as novas
abordagens propostas, revisitamos seus principais teóricos no século XX e discuti-
mos as concepções das Escolas que mais contribuíram para o seu desenvolvimen-
to, enfatizando as contribuições destas Escolas para as novas perspectivas metodo-
lógicas nas ciências sociais. Nesse percurso, já no primeiro capítulo, apresentamos
de forma breve a Escola de Chicago. A partir de agora, iremos compreender mais a
fundo a importância da atuação inovadora desta Escola no âmbito de pesquisa em
Sociologia. Assim, chegaremos aos nomes de Erving Goffman e Howard Becker,
enfatizando o diálogo desses com a Sociologia Brasileira.

OBJETIVOS
• Compreender o percurso histórico da Escola de Chicago;
• Refletir sobre a atuação desta escola no âmbito de pesquisa em Sociologia;
• Conhecer a contribuição teórica e o diálogo de Erving Goffman e Howard Becker a partir
da Escola de Chicago;
• Identificar a importância dos autores supracitados para a Sociologia Brasileira.

Constelações da Escola de Chicago

A história da Escola de Chicago se parece com um filme repleto de persona-


gens protagonistas, que se entrelaçam em várias histórias e que, vez ou outra, se
utilizam do flashback como recurso narrativo.
Podemos escolher, como um marco arbitrário, para iniciar a nossa história,
a doação milionária de John Rockefeller, empresário do ramo do petróleo, que
destinou um milhão de dólares para fundar a Universidade de Chicago, esta que
iniciou as suas atividades em 1892 (Martins, 2013). Logo, Willian Harper, o
presidente da Universidade recém-criada, convidou Abion Small para iniciar o
Departamento de Sociologia, tendo a pesquisa como viés fundamental.

capítulo 2 • 26
Abion Small permaneceu na chefia do Departamento de Sociologia da
Universidade de Chicago até 1925 e, nesta década, considerada a mais frutífera da
Escola de Chicago (entre 1920 e 1930), o departamento foi composto pelos se-
guintes professores: Albion Small, Robert Park, Ernest Burguess, Ellsworth Faris,
Charles Henderson, Graham Taylor, Charles Zueblin, George Vincent e William
Thomas, Robert McKenzie, Nels Anderson, Frederic Thrasher, Robert Redeld,
Ruth Shonle Cavan, contando ainda com a presença de outros importantes do-
centes provindos de departamentos diferentes da Universidade de Chicago, como
John Dewey e George Herbert Mead (Martins, 2013).
Foi ainda em 1895, logo na formação do Departamento de Sociologia da
Universidade de Chicago e sob a edição de Albion Small, que se fundou a revista
científica American Journal of Sociology, que até hoje permanece com renomada
produção bimestral.

CURIOSIDADE
É uma prática comum até os dias de hoje que os grandes milionários nos Estados Unidos
façam vultosas doações para as Universidades daquele país, muitas vezes para as próprias
Universidades onde estudaram. Uma parte considerável dos recursos das Universidades es-
tadunidenses provém dessa forma de financiamento. Além da intenção de contribuir com o
ensino e a pesquisa, tal prática se justifica naquele país porque parte do imposto de renda
devido pelos cidadãos pode ser revertida em doações para Universidades, Museus, ONGs,
entre outros.

Personagem

John Davison Rockefeller, o doador de um milhão de dólares para a criação da


Universidade de Chicago, foi um magnata da indústria petrolífera e considerado
o homem mais rico do mundo. Ele foi dono e fundador da Standart Oil Company
em 1870 e, a partir de então, de acordo com a história, utilizou-se das mais di-
versificadas estratégias para manter a sua empresa como monopolista, assim como
para manter o monopólio do petróleo como fonte de energia. Um exemplo de tais
estratégias foi apresentado no filme Pump – Histórias do Petróleo (2014), em que
ele compra e queima bondinhos movidos a energia elétrica para manter o mono-
pólio do petróleo como fonte de energia no transporte.

capítulo 2 • 27
Figura 2.1 – John Davison Rockefeller. Imagem retirada de Wikipédia (2019)

MULTIMÍDIA
Para conhecer mais de perto a história de John Rockefeller, o doador que possibilitou a
criação da Universidade de Chicago, assim como de outras histórias da indústria petrolífera,
assista ao documentário Pump – Histórias do Petróleo (2014). Ficha técnica: Título Original:
Pump! ; Direção: Josh Tickell e Rebecca Harrel Tickel; Duração: 1 hora e 28 minutos. Gêne-
ro: Documentário.

Uma característica sempre ressaltada da Escola de Chicago é que, desde a sua


primeira formação, ela tem viés crítico e reformador. Isso perpassa os métodos de
pesquisa voltados para o pragmatismo, múltiplos em seus instrumentos e originais
em suas concepções, mas sempre em busca da compreensão ampla do objeto pes-
quisado, ainda que isso demande o uso diversificado dos métodos: é comum o uso
de diários de campo, observação participante, questionários/surveys, entrevistas,
entre outros.
Becker assim se refere à construção metodológica de Robert Park, que, como
veremos, será um dos primeiros formadores da Escola de Chicago:

capítulo 2 • 28
Uma das características do pensamento de Park – e isso se aplica à Escola de Chicago
como um todo – era não ser puramente qualitativo ou quantitativo. Park era muito eclé-
tico em termos de método. Se achasse que era possível mensurar alguma coisa, ótimo,
se não o fosse, ótimo também. Havia ainda outras maneiras de fazer essa pesquisa.
(Becker, 1996, p.182).

O viés crítico e reformador perpassa também a escolha pelos objetos pesqui-


sados, que se inclinam para as questões sociais, os conflitos e desorganizações ur-
banas, as migrações e imigrações em suas mais diversas problemáticas (Martins,
2013). Como exemplo podemos citar a pesquisa empírica sobre a imigração po-
lonesa nos Estados Unidos, já apontada no capítulo anterior e que se chama The
Polish Peasant in Europe and America de Florian Znaniecki e Willian I. Thomas.
Segundo Martins (2013, p. 223), a Escola de Chicago:

Mantendo uma inclinação política reformista aliada com uma filosofia pragmática, os
sociólogos de Chicago procuraram transformar a sociologia numa ciência empírica, con-
centrando a atenção em determinados problemas sociais da vida urbana na qual esta-
vam inseridos e em processos sociais, tais como organização e desorganização social,
conflito e acomodação, movimentos sociais e mudanças culturais, buscando interligar
a investigação dessas questões com a disposição de impulsionar reformas sociais no
contexto de uma sociedade liberal-democrática.

Como já foi dito, a Escola de Chicago tem muitos protagonistas, todos com
participações importantes, tanto para o desenvolvimento da Escola como para a
própria Sociologia. Assim é que Howard Becker (1996) – um dos grandes nomes
ligados à Escola após a década de 1950 – a diferenciou enquanto uma Escola de
Atividade em contraponto a uma Escola de Pensamento. Isso porque, apesar de
trabalharem em conjunto, dialogarem e produzirem acerca da sociologia, eco-
logia humana e dos estudos da cidade, os diversos protagonistas da Escola de
Chicago, muitas vezes, tinham perspectivas, referenciais teóricos e epistemológi-
cos diferentes.

CONCEITO
Escola de Pensamento na terminologia de Guillemard, segundo Becker (1996,p.179),
trata-se de “um grupo de pessoas que têm em comum o fato de que outras pessoas conside-
ram seu pensamento semelhante; é possível que nunca tenham se encontrado”. Já Escola de

capítulo 2 • 29
Atividade pode ser entendida como um grupo de pessoas que trabalham em conjunto, ainda
que essas pessoas não compartilhem seus referenciais teóricos e suas pesquisas.

Foi nesse cenário, portanto, que William I. Thomas convidou Robert Park
para integrar o Departamento de Sociologia da Universidade de Chicago (Becker,
1996). Apesar de Parker já ter trabalhado por um ano na Faculdade de Harward,
ele estava trabalhando como jornalista e escritor antes de receber o convite para
compor o corpo docente da Universidade de Chicago. Direcionava principalmen-
te as suas atividades jornalísticas para as questões sociais, migratórias e raciais das
grandes cidades, fato que impressionou Thomas e que o inclinou a fazer o convite
para compor o grupo de professores/pesquisadores da Universidade de Chicago.
A partir de então, a Escola de Chicago direcionou grande parte de suas ati-
vidades para os estudos da sociologia urbana, em especial estudos voltados para
a cidade de Chicago, considerada um “laboratório vivo” (Park, 1967). A cidade
de Chicago, portanto, também pode ser considerada um personagem importante
dessa história. Vamos, então, falar um pouco sobre ela.

A cidade de Chicago

Um dos resultados de todo esse movimento é que Chicago passou a ser a cidade mais
pesquisada do mundo e provavelmente o será sempre. (Becker, 1996, p.183)

Chicago é a terceira cidade mais populosa dos Estados Unidos, segundo o cen-
so daquele país em 2010. É, ainda, uma das três cidades estadunidenses – ao lado
de Nova York e Filadélfia – que passaram de forma mais intensa pela urbanização
desenfreada. Chicago foi a cidade que mais recebeu imigrantes, tanto estrangeiros
quanto provindos do sul do país, e se caracteriza pelo seu vasto centro comercial e
industrial (Freitas, 2002). É interessante pontuar a grande transformação sofrida
pela cidade, no contexto conhecido como Grande Incêndio de Chicago, que em
1871 foi responsável pela morte de 300 pessoas e por ter deixado 91 mil pessoas
desabrigadas. Com a cidade devastada pelo incêndio, foi necessário reconstruí-la.
Esse fato transformou rapidamente a cidade, que recebeu investimentos dos mais
diversos estados e passou por um estudo de planejamento urbano (Wikipédia,
2019). Essa cidade podia ser considerada um caldeirão, que envolvia: desenvol-
vimento e mudança estrutural acelerada, alto índice populacional, com grande

capítulo 2 • 30
parte formada por imigrantes, desemprego, miséria e criminalidade urbana. Isso
fez desse “laboratório vivo” um infindável âmbito de pesquisas para a recém-for-
mada Escola de Chicago.
© SEMMICK PHOTO | SHUTTERSTOCK.COM

Figura 2.2 – Chicago.

Como já comentamos no capítulo anterior, o processo de urbanização e as


suas consequências observáveis despertaram o interesse dos pesquisadores, mas
também fizeram com que fossem necessárias novas abordagens metodológicas,
como as experimentadas pela Escola de Chicago.
A observação da cidade, portanto, tornou possível a construção de conceitos
como a Ecologia Humana de Robert Park, que partia do princípio de que o espaço
físico espelhava o espaço social e que o comportamento de certos agrupamentos
humanos poderiam ser explicados a partir das relações verificadas na natureza
botânica e vegetal.
Assim, de acordo com a Ecologia Humana de Parks, diferentes grupos sociais
ocupam parcelas diferenciadas do espaço físico. Neste ponto, as grandes cidades
como Chicago, por agruparem grupos radicalmente heterogêneos, tornam a vi-
sualização desse fenômeno mais clara. Assim é que se percebeu a permanência
de um processo de disputa, por vezes conflitivo, em que um grupo se sobrepõe
ao outro de forma constante, não ocorrendo uma simples assimilação do grupo

capítulo 2 • 31
considerado mais fraco ou um processo de aculturamento. A Ecologia Humana
se utiliza de termos como simbiose, invasão, dominação e sucessão, muitos deles
provindos da biologia, para explicar os fenômenos urbanos.
Nesse mesmo sentido é a proposta de Ernest Burguess, também da Escola de
Chicago, que cria, a partir da Ecologia Humana, o conceito de Zonas Concêntricas.
Nesta proposta Burguess divide a cidade de Chicago em cinco zonas concêntricas
que se irradiam a partir do centro, ou seja, as sociedades se distribuem concen-
tricamente em anéis a partir de um círculo central. Portanto, uma organização
espacial de segregação que era desenvolvida da seguinte forma:
• Zona 1 (Central): zona comercial central, onde ocorrem as transações co-
merciais da cidade e há uma intensa circulação de pessoas e de transporte urbano
durante o dia. Não é um local preponderantemente destinado à moradia;
• Zona 2: zona de transição que se deteriorou por causa de fenômenos ur-
banos como pobreza, segregação, desemprego, discriminação racial e xenofobia
face aos imigrantes, criminalidade. Muitos trabalhadores que se aproximavam da
zona 1 em busca infrutífera de emprego acabavam permanecendo na zona 2 sem
condições dignas de vida, consequências da industrialização urbana e capitalista;
• Zona 3: zona residencial dos trabalhadores urbanos. Zona de residências
pequenas, simples e funcionais;
• Zona 4: zona residencial da classe média urbana e, portanto, com um nível
maior de conforto e alguma ostentação;
• Zona 5: zona da alta elite social, dos donos dos meios de produção, grandes
industriais e magnatas. Zona de ostentação e privilégios.

Segundo o que os estudos de Burguess demonstraram, portanto, a cidade é


segregada, e o atravessamento entre essas faixas de zonas concêntricas nem sempre
é seguro, sendo, ainda, as zonas periféricas intransitáveis para pessoas provindas
da Zona 2, por exemplo.
Os estudos da criminalidade urbana apontaram a zona 2 como a zona de
maior índice de conflitos sociais e criminalidade.

capítulo 2 • 32
Figura 2.3 – Bagatela (2005, p. 36.)

LEITURA
Para compreendermos os modelos das cidades dentro de uma leitura latino-americana, que
nos traz diferenças face ao modelo estadunidense, indico a leitura da comunicação de Lilian
Hahn Mariano da Rocha no Observatório Geográfico da América Latina. ROCHA, Lilian Hahn
Mariano. Padrões locacionais da estrutura social: segregação social nas cidades latino-a-
mericanas, algumas considerações. Disponível em: ttp://observatoriogeograficoamericalatina.org.
mx/egal12/Geografiasocioeconomica/Geografiaurbana/224.pdf>. Acesso em: 16 mar. 2019.

CONCEITO
O que é, portanto, a Escola de Chicago? Segundo Christian Topalov (2007, p. 02), a
“Escola de Chicago” é um conjunto de professores e alunos, temas e conceitos, pesquisas e
publicações relacionados à idade de ouro do Departamento de Sociologia da Universidade
de Chicago (se adotada a cronologia de Faris, 1920-1932).”

capítulo 2 • 33
A Ecologia Humana é uma criação da primeira geração da Escola de Chicago,
que pode ser contextualizada entre os anos 1915 e 1940. É uma criação conceitual
de Robert Park que propõe que, assim como o meio natural influi sobre a espécie
humana (Ecologia Darwinista), o meio social também influi sobre o comportamen-
to social humano – Ecologia Humana. Para citar Howard Becker acerca de Park:

Em certo momento, ele defendeu a ideia de que o espaço físico espelhava o espaço
social, de modo que se se pudesse medir a distância física entre populações, se saberia
algo sobre a distância social entre elas. É uma metáfora interessante, que levou a desen-
volvimento de uma área chamada ecologia, não no sentido que usamos hoje, de preser-
vação do meio ambiente, mas a noção de ecologia na forma usada pela biologia vegetal
daquela época, e que se referia à competição pelo espaço (BECKER, 1996, p. 182).

Ainda na primeira geração de pesquisadores da Escola de Chicago, temos de


nos referir a um nome importante em virtude do contato direito com o âmbito de
pesquisas da Sociologia Brasileira. Aluno de Robert Park, Donald Pierson estudou
as relações raciais afro-brasileiras in loco no Brasil, pois trabalhou diretamente nas
cidades de Salvador e São Paulo. Em Salvador, desenvolveu a pesquisa que depois
foi publicada com o nome de “Brancos e Pretos no Brasil” e, em São Paulo, ele
colaborou com a inauguração da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo
(Barcelar, 1997), orientando e trabalhando ao lado de diversos pesquisadores e em
contato direto com pesquisas e estudos brasileiros.

COMENTÁRIO
Apesar de o contato de Pierson com a Sociologia Urbana brasileira ser historicamente
relevante, cabe-nos fazer uma crítica descolonial, uma vez que o olhar de um homem branco
estadunidense pesquisando as relações raciais no Brasil o fez assimilar uma democracia
racial no país que de fato nunca existiu. Não podemos, por exemplo, concordar com comen-
tários feitos por ele neste estudo realizado na Bahia no qual ele afirma existir apenas um
problema de classe no Brasil e não de raça – em suas palavras, ele diz que o problema dos
negros no Brasil “é – um problema econômico e educacional e de nenhum modo um proble-
ma racial” (Pierson, 1971, p. 53). Imediatamente rebatível é a supracitada conclusão do pro-
fessor de Chicago, uma vez que apenas necessitamos refletir em que medida “as questões
de classe” afetam desde 1500 os povos afrodescendentes e permanecem agudamente em
nossos dias. Para pensarmos a questão racial com um olhar descolonial, propomos a leitura
de Angela Davis (DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016) e de

capítulo 2 • 34
Stuart Hall (HALL, Stuart. Da Diáspora: Identidades e mediações culturais. Organização Liv
Sovik; Tradução Adelaine La Guarda Resende. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003).

Sobre a primeira geração da Escola de Chicago, por fim, devemos falar sobre
Everett Hughes, que empreendeu estudos empíricos sobre as profissões na cidade, em
especial em Chicago. Com base nos estudos de Parks, postulava que qualquer ativi-
dade desenvolvida nas grandes cidades tendia a um nível de organização afeito ao que
denominaríamos de profissões. Hughes é quem fará a ligação com os pesquisadores da
segunda fase da Escola de Chicago, conforme veremos no capítulo adiante.

A segunda fase de pesquisadores em diálogo com a Escola de Chicago

Podemos pensar uma segunda fase de pesquisadores da Escola de Chicago nos


anos após a Segunda Guerra Mundial. Entre eles citaremos os nomes de Howard
Becker, Erving Goffman e o antropólogo Lloyde Warner. Warner, com seus alu-
nos pesquisadores, estudou antropologicamente pequenas comunidades, como
Newbodyport, localizada ao lado de Boston, ou Natchez, no Mississipi. Estes es-
tudos levaram em conta, de forma crítica, as relações raciais nos Estados Unidos.
Agora iremos nos deter com maior atenção a Howard Becker e Irving Goffman
em suas relações com Escola de Chicago.

Figura 2.4 – Howard Becker.

Uma das ideias mais importantes era a de que a organização social consiste apenas em
pessoas que fazem as mesmas coisas juntas, de maneira muito semelhante, durante
muito tempo. (Becker, 1996, 186).

capítulo 2 • 35
Howard Becker é um dos professores provindos da escola de Chicago na ge-
ração após a Segunda Guerra Mundial. Neste momento, podemos afirmar que a
Escola de Chicaco não se encontra mais territorializada em Chicago, e sim que pro-
fessores como ele e Goffman saíram de Chicago e estão em outras Universidades
nos Estados Unidos e no mundo. Nas palavras de Becker, a Escola de Chicago
hoje seria “um modo de pensar, uma maneira de abordar problemas de pesquisa
que estão muito vivos e presentes em boa parte do trabalho feito hoje em dia”.
Howard S. Becker nasceu em 18 de abril de 1928, na própria cidade de
Chicago, provindo de uma família de imigrantes judeus da Lituânia (Velho,
2002). Formou-se na Universidade de Chicago em 1946 e, desde os 15 anos, tra-
balhou como pianista profissional nos bares da cidade, fato que, conforme se sabe,
veio a influenciá-lo posteriormente na escolha dos seus objetos de pesquisa. Sobre
a sua obra escrita, podemos citar os livros traduzidos para o português pela editora
Zahar: Segredos e truques da pesquisa, de 2007, Outsiders: estudos da sociologia
do desvio, de 2008, Falando da sociedade, de 2009 e Truques da escrita, de 2015.
Becker, além de nos brindar com trabalhos importantes e críticos na área de socio-
logia e antropologia, também tinha contato estreito com a sociologia brasileira, o
que, conforme veremos adiante, nos rendeu bons frutos.
Becker foi orientado por Everett Hughes e, segundo o próprio Becker, a sua
linhagem acadêmica segue desta forma: Simmel, Park, Hughes, Becker (Becker,
1996, p.188).

AUTOR
Georg Simmel (1858-1918) é um filósofo alemão muito estudado pela Escola de Chica-
go, pois fez importantes e pioneiros estudos no contexto das cidades e das interações sociais.

Becker sempre prezou pela linguagem clara em seus textos, recusando o recurso
a termos abstratos, complexos ou herméticos. Isso ele remete à influência e aprendi-
zado direto com seu orientador Hughes, que sempre lhe pontuou a necessidade da
clareza na escrita e a superação da escrita científica hermética (Becker, 2008).
Uma proposta que Becker formula e que dialoga com a Escola de Chicago já
a partir da sua formação, desde que, como vimos no primeiro capítulo, se pensava
o interacionismo social, é a ideia de que o que cria as instituições ou organizações
sociais é o fato de várias pessoas, em um determinado contexto, repetirem o mes-
mo padrão de comportamento por um tempo. As pessoas agem de determinada

capítulo 2 • 36
forma, seguindo determinadas normas a ponto de naturalizá-las, ou seja, a ponto
de compreendê-las como parte da “natureza humana”. São, portanto, as interações
repetitivas das pessoas que mantêm as instituições.

Disso decorre que um sistema de parentesco é formado pelas ações de pessoas que
fazem as coisas que se supõe que parentes devam fazer, e que, enquanto o fizerem, te-
remos um sistema de parentesco. Quando não o fizerem mais, o sistema de parentesco
se torna outra coisa (Becker, 1996, 186).

Assim é que Becker nos aponta a importância de estudar e pesquisar não


apenas os comportamentos-padrão repetitivos, mas também o desvio que traz a
possibilidade das mudanças. Becker desenvolveu parte de suas pesquisas antro-
pológicas e qualitativas dentro de comunidades consideradas desviantes, como o
famoso estudo que o autor fez de comunidades de músicos de jazz e de usuários
de maconha. No próximo capítulo, trabalharemos com maior atenção as Teorias
do Desvio, das quais Becker pode ser considerado pioneiro.

LEITURA
Livro de grande interesse para pensar o desvio é o Outsiders: estudos de sociologia do
desvio, de Howard Becker, em que se faz o estudo da comunidade de usuários de maconha
e de músicos de Jazz (BECKER, Howard. . Rio de Janeiro: Zahar, 2008).

Figura 2.5 – Irving Goffman.

Assim como Becker, Goffman atinge muito prestígio em sua carreira acadê-
mica, em que pesem as dificuldades passadas. Orientado também por Hughes,

capítulo 2 • 37
Goffman é canadense e filho de imigrantes judeus ucranianos, nasceu em 11 de
junho de 1922 e faleceu em 20 de novembro de 1982. Foi colega de Becker como
estudante da Escola de Chicago em 1950 e, ainda que tivessem tomado rumos
diferentes, a partir de então sempre mantiveram contato (Velho, 2002).
A tese de doutorado de Goffman na Universidade de Chicago, denominada
como A representação do eu na vida cotidiana, foi premiada e publicada como livro
em 1959 e é considerada a obra de fundação do pensamento do autor. Logo em se-
guida, em 1961, ele publicou o estudo denominado de Manicômio, prisões e conven-
tos, obra de grande importância para diversas áreas de conhecimento, uma vez que
trata das relações sociais e subjetividade nas instituições totais. Também faz parte
do acervo de obras do autor o livro Estigma: notas sobre a manipulação da identidade
deteriorada, que será objeto de maior atenção no capítulo quarto do nosso livro.
Diversas também foram as passagens de Goffman por Universidades no
Estados Unidos, das quais podemos citar (Wikipédia, 2019):
• Universidade de Chicago como professor assistente (1952-1953) e profes-
sor associado (1953-1954);
• National Institute of Mental Health como pesquisador visitante (1954-1957);
• Universidade da Califórnia como professor assistente (1957-1959) e como
professor de sociologia (1959-1968);
• Universidade da Pensilvânia como professor titular da cadeira Benjamin
Franklin de sociologia e Antropologia de 1969 a 1982.

Goffman esteve desde o princípio de suas análises interessado em pensar a


dinâmica interacional, tema que pode ser compreendido como um eixo temático
em sua produção. Mantém, ainda, a sintonia com a Escola de Chicago no que se
refere à diversidade e criatividade no que tange aos métodos de pesquisa: realizou
pesquisas de campo, observação direta, buscou fontes de dados diversas, até mes-
mo literárias para atingir a análise pretendida (Martins, 2011).
A perspectiva analítica utilizada por Goffman foi denominada de processo
interacional baseado em relações face a face e tem uma “posição relevante na agen-
da da teoria social contemporânea, tais como a questão da performance pessoal,
a temática do reconhecimento, a construção de identidade, a emergência de um
novo individualismo”, entre outros (Martins, 2011, p. 232).
Podemos dizer, portanto, que a atuação temática de Goffman passou pela sub-
jetividade e por suas relações intersubjetivas, em análises voltadas para o Eu e suas
representações no cotidiano. Pensou, ainda, tais relações em Instituições Totais
que rechaçam e degradam qualquer tipo de subjetividade, além dos estudos sobre

capítulo 2 • 38
os Estigmas Sociais em sua relação direta também com a degradação da subjetivi-
dade, conforme veremos no capítulo 4 deste livro.

A influência de Goffman e Becker na Sociologia Brasileira

Segundo Gilberto Velho (2002), os trabalhos de Goffman só começaram a ser


conhecidos no Brasil em meados da década de 1960 e, em virtude do momento
histórico em que vivíamos no país naquele momento, a obra encontrou alguma
resistência, uma vez que os pensadores estadunidenses eram identificados com o
imperialismo e, muitas vezes, com o Regime Militar que havia iniciado em 1964.
Prevaleciam no Brasil as análises macropolíticas, estruturalistas e marxistas.
Entretanto, a chamada contracultura da década de 1960 trouxe a atenção para
o aspecto micropolítico, cotidiano e subjetivo das relações sociais, aproximan-
do-se, assim, do interacionismo no qual Goffman e Becker tinham raízes. Foi a
disseminação no Brasil dos trabalhos de Michel Foucault, com estudos acerca das
relações de poder como relações intersubjetivas, que abriu caminho para o intera-
cionismo de Goffman (Velho, 2002).
A aproximação da área da psicologia no Brasil com os estudos de Goffman,
principalmente ao livro Manicômio, prisões e conventos, foi muito importante para
a recepção da obra do autor no país a partir de 1970. Entretanto, não foram ape-
nas os estudos da psicologia e da subjetividade que se abriram para a produção dos
interacionistas da Escola de Chicago – Becker e Goffman. A Sociologia brasileira
também o fez na década de 1970, principalmente apoiada na disseminação desses
trabalhos pelo professor Gilberto Velho.
Gilberto Velho, em 1971, foi aluno especial no Departamento de Antropologia
na Universidade do Texas, em Austin, e foi em um curso nesta universidade que
ele teve contato profundo com as obras de Goffman e conheceu os estudos de
Becker sobre a teoria do desvio e do etiquetamento, estudos estes que posterior-
mente seriam tão importantes para o seu trabalho.
Ao voltar para o Brasil, o professor tratou de divulgar as obras dos interacio-
nistas sociais (Velho, 2002) e, em 1974, editou e publicou a coletânea Desvio e
divergência: uma crítica da patologia social, com artigos dele e de outros pesquisa-
dores, inclusive de alguns de seus alunos, tendo como referência central o trabalho
dos dois norte-americanos aqui analisados.
Foi a partir desse livro que o contato pessoal entre Gilberto Velho e Howard
Becker se estreitou. Velho (2002) nos conta que Richard Krasno, que trabalhava
na Fundação Ford à época, elogiara o livro Desvio e divergência e pediu para

capítulo 2 • 39
remetê-lo ao seu amigo Becker, e assim foi feito. Segundo Gilberto Velho nos
conta, Becker conhecia a língua espanhola e se esforçou em aprender o português
para ler o livro. Desde então, são diversos os elogios públicos que Becker tece ao
trabalho do professor brasileiro e sempre ressalta a importância do viés dado por
Gilberto Velho à sua teoria do Desvio. Velho voltou a análise do desvio para a
acusação e introduziu o questionamento “quem acusa?” e, em última, instância,
quem etiqueta o sujeito?
Em 1976, Gilberto Velho permanece, a convite de Becker, por um mês como
visitante especial no Departamento de Sociologia da Northwestern University onde
este lecionava. No segundo semestre daquele mesmo ano, é a vez de Becker vir ao
Brasil como professor visitante no Museu Nacional. Becker retornou ao Brasil em
1978 e 1990, mas manteve sempre o contato com o amigo brasileiro, recebendo,
ainda, estudantes de doutorado em sua Universidade. Becker também traduziu
textos do sociólogo brasileiro Antônio Candido de Mello e Souza entre outras
trocas transatlânticas.
A visita de Becker em 1978 foi acompanhada por Irving Goffman quando am-
bos vieram para o I Simpósio Internacional de Psicanálise, Grupos e Instituições.

COMENTÁRIO
Para ter acesso aos bastidores da participação de Goffman e Becker no I Simpósio
Internacional de Psicanálise, Grupos e Instituições realizado no Brasil em 1978, sugerimos
a leitura de VELHO, Gilberto. Becker, Goffman e a Antropologia no Brasil. Florianópolis, v.4,
n.1, julho de 2002.

Assim é que a importância desses professores cujas raízes encontramos na


Escola de Chicago é inegável para a Sociologia Brasileira. Para finalizar, citamos
Gilberto Velho (2002, p. 14):

Becker e Goffman são hoje autores fundamentais dentro da antropologia que se faz no
Brasil, particularmente nos trabalhos voltados para os estudos urbanos e para a temática
ampla de indivíduo e sociedade. No entanto, são citados em trabalhos das mais variadas
naturezas que, de algum modo, se aproximam ou dialogam com o interacionismo e, mais
particularmente, que se referem à singularidade da contribuição de cada um deles. Em
se tratando de trabalho de campo, as pesquisas de Becker com músicos do jazz e com
usuários de maconha, e a de Goffman num hospital psiquiátrico, com as suas reflexões
sobre instituições totais, são referências constantes.

capítulo 2 • 40
LEITURA
A contracultura foi um movimento social contextualizado na década de 1960, mais inten-
samente localizado nos Estados Unidos e em alguns países da Europa, como a França, que
utilizava os novos meios de comunicação e mídia de massa para difundir a contestação de
valores sociais arraigados nas gerações anteriores a essa década. É um movimento afim à
juventude da época e que teve repercussões políticas, como o apoio ao fim da guerra contra
o Vietnã, ao movimento pelos Direitos Civis ou o conhecido como Maio de 68, na França.
Para compreender um pouco mais a relação entre a mídia, as drogas e a contracultura da
década de 1960, sugerimos a leitura da comunicação de César Carvalho: Contracultura,
drogas e mídia. Disponível em: http://www.portcom.intercom.org.br/pdfs/f75aa3f62327c-
31c6bc938641a222837.pdf>. Acesso em: 20 mar. 2019.

REFLEXÃO
A Escola de Chicago é uma Escola de Atividade formada pelo feliz encontro de um con-
junto de professores e alunos que compartilhavam temas, conceitos, pesquisas e publica-
ções algumas vezes convergentes, mas heterogênea. Faziam parte do Departamento de So-
ciologia da Universidade de Chicago que encontrou o seu auge na década de 1920 a 1930.
Reuniu nomes como Robert Park, Albion Small, Ernest Burguess, Ellsworth Faris, Robert
Redfeld e Donald Pierson, entre outros, que tinham como ênfase em sua temática os estudos
de sociologia e antropologia urbana, utilizando a cidade de Chicago como um “laboratório
vivo” para pensar as interações sociais ali presentes. Para compreender as temáticas abor-
dadas, os pesquisadores de Chicago utilizavam as mais diversas técnicas e métodos, desde
observação direta, entrevistas direcionadas, questionários/surveys, entre outros.
Alunos da Escola de Chicago, como Howard Becker e Irving Goffman, seguiram em
diálogo com as premissas ali aprendidas e desenvolveram concepções importantes para a
sociologia, como os estudos do desvio e do etiquetamento social, os estigmas e as degrada-
ções do eu nas instituições totais. Podemos frisar, por fim, a frutífera troca entre tais pesqui-
sadores com a sociologia e a antropologia brasileira

capítulo 2 • 41
ATIVIDADE
Leia com atenção a seguinte citação de Becker sobre os métodos de pesquisa da Escola
de Chicago:

Uma das características do pensamento de Park – e isso se aplica à Escola de Chicago


como um todo – era não ser puramente qualitativo ou quantitativo. Park era muito eclé-
tico em termos de método. Se achasse que era possível mensurar alguma coisa, ótimo,
se não o fosse, ótimo também. Havia ainda outras maneiras de fazer essas pesquisas.
(Becker, 1996, p.182)

Agora que você já conheceu e estudou os principais caminhos seguidos pelos pesqui-
sadores da Escola de Chicago, assim como a diversidade metodológica de suas pesquisas
urbanas, propomos a seguinte atividade: faça uma reflexão sobre a cidade onde vive e for-
mule um problema de pesquisa utilizando os mais diversos métodos de pesquisa empírica e
interdisciplinar com vistas a compreender melhor algum aspecto da sua cidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Lucélia Oliveira. A influência dos pressupostos da teoria da ecologia criminal da
Escola de Chicago para a elaboração das ações de segurança pública para o centro histórico
de Salvador. 34f. 2013. Dissertação (Mestrado) Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia,
Salvador, 2013.
BAGATELLA, Wagner. Análise espacial dos condicionantes da criminalidade violenta no estado
de Minas Gerais – 2005: contribuições da geografía do crime. Dissertação (Mestrado em Geografia).
PUC/MG – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, MG, 2008.
BARCELAR, Jeferson. Donald Pierson e os brancos e pretos na Bahia. Horizontes Antropológicos,
Porto Alegre, ano 3, n. 7, p. 129-143, nov. 1997
BECKER, Howard. A Escola de Chicago. MANA 2(2):177-188, 1996
____. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
BLUMER, Herbert. Symbolic Interacionism: Perspecve and Method. University of California
Press, 1986.
BURGESS, Ernest W. O crescimento da cidade: introdução a um projeto de pesquisa. In: PIERSON,
Donald (org.) Estudos de Ecologia Humana. Tomo I, São Paulo: Martins, 1948. p. 353-368.
CARVALHO, Cesar. Contracultura, drogas e mídia. Disponível em: <http://www.portcom.intercom.
org.br/pdfs/f75aa3f62327c31c6bc938641a222837.pdf>. Acesso em: 20 ma. 2019.

capítulo 2 • 42
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e clase. São Paulo: Boitempo, 2016
FARIS, Robert. Chicago Sociology (1920-1932). Chicago: University of Chicago Press, 1967.
FREITAS, Wagner Cinelli de Paula. Espaço urbano e criminalidade: lições da Escola de Chicago.
São Paulo: IBCCRIM, 2002. 150 p.
HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
MARTINS, Carlos Benedito Campos. O legado do Departamento de Sociologia de Chicago (1920-
1930) na constituição do interacionismo simbólico. Revista Sociedade e Estado - V. 28, N. 2, 2013.
____. A contemporaneidade de Erving Goffman no contexto das ciências sociais. Revista Brasileira
de Ciências Sociais. v. 26 n. 77 São Paulo Oct. 2011.
MENDONZA, Edgar S. G. Donald Pierson e a Escola Sociológica de Chicago no Brasil: os
estudos urbanos na cidade de São Paulo (1935-1950). Porto Alegre: Sociologias, ano 7, n 14, p.440
– 470, 2005.
PARK, Robert Ezra. A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano. O fenômeno
humano. Trad. De Sérgio Magalhães Santeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.
PIERSON, Donald. Brancos e pretos no Brasil: estudo de contato racial. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1945.
ROCHA, Lilian Hahn Mariano. Padrões locacionais da estrutura social: segregação
social nas cidades latino-americanas, algumas considerações. Disponível em: <http://
observatoriogeograficoamericalatina.org.mx/egal12/Geografiasocioeconomica/Geografiaurbana/224.
pdf>. Acesso em: 16 mar. 2019.
VELHO, Gilberto. Becker, Goffman e a Antropologia no Brasil. Florianópolis, v.4, n.1, julho de 2002.
Wikipédia. Chicago. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Chicago>. Acesso em: 16 mar.
2019.

capítulo 2 • 43
capítulo 2 • 44
3
Interacionistas
de Chicago e a
influência na
sociologia
brasileira
Interacionistas de Chicago e a influência na
sociologia brasileira

No capítulo anterior, abordamos o percurso histórico da Escola de Chicago


e procuramos refletir sobre a forma como a atuação desta Escola, no âmbito de
pesquisa, contribuiu para o desenvolvimento do campo das ciências sociais, suas
temáticas e metodologias. Iniciamos de forma breve a relação estabelecida entre
pesquisadores e teóricos desta Escola e a emergência de novos estudos e aborda-
gens na sociologia brasileira. Neste capítulo, damos continuidade a essa investiga-
ção acerca da influência da Escola de Chicago na institucionalização da sociologia
no país, assim como apresentamos as demais correntes e teorias sociológicas que
compõem a história desse campo de estudo no Brasil. Nossa proposta é expor e
discutir sobre a formação e institucionalização da sociologia brasileira, apresentan-
do seu percurso histórico, seu diálogo com as Escolas internacionais, trazendo os
principais temas e abordagens presentes nesse campo até os dias de hoje.

OBJETIVOS
• Conhecer a história da Sociologia brasileira;
• Abordar a influência da Escola da Chicago na sociologia brasileira;
• Identificar as várias correntes sociológicas: teorias e teóricos do país.

Sociologia: quatro autores e uma ciência

Falar em sociologia em qualquer parte do mundo significa falar de Comte,


Durkheim, Marx e Weber. Esses quatros pensadores, cada um em seu tempo, con-
tribuíram para analisar os grandes desafios da modernidade, compreender a vida
em sociedade, suas estruturas, redes e ligações. Ou seja, responder, por exemplo,
o que unia os grupos sociais, mas também o que causava a desintegração social.
Entender a estrutura em que esses grupos se formavam e como se relacionavam.
Estas eram algumas das preocupações que orientaram os estudos desses precurso-
res da sociologia mundial e que tornou o pensamento desses autores a base dessa
ciência. Apresentamos a seguir uma síntese do pensamento desses autores:

capítulo 3 • 46
Auguste Comte, filósofo e matemático francês, publicou seus primeiros es-
tudos entre 1830 e 1842. A obra se chamava Curso de Filosofia Positiva e, orga-
nizando um curso a partir dela, foi ele que utilizou pela primeira vez a palavra
Sociologia. Foi a partir daí que surgiu a referência a Comte como “pai da sociolo-
gia” e do positivismo.
Segundo o autor, ao longo da História, a sociedade teria passado por três gran-
des fases: a teológica, a metafísica e a positiva (Lei dos Três Estados). O positivis-
mo, doutrina que ele desenvolveu, caracteriza-se por considerar o saber científico
(positivo) superior ao saber filosófico, e todos estão acima do religioso.
Inspirado nas ciências naturais, ele buscava tratar os fenômenos sociais recen-
tes a partir de modelos hipotéticos e experimentais e identificava leis universais
e causas para esses “fenômenos humanos”. Assim, ele acreditava que a sociedade
funcionava como um organismo, no qual cada parte tem uma função específica,
contribuindo para o funcionamento do todo.
Também é importante mencionar no pensamento de Comte a ideia de Ordem
e Progresso. O autor acreditava que a sociedade precisava passar por mudan-
ças morais, e a Sociologia representaria a junção entre a ORDEM da sociedade
ao PROGRESSO.
Foi com David Émile Durkheim que a sociologia passou a ser considerada
uma ciência, pois ele sistematizou, ou seja, organizou as diretrizes sociológicas,
propondo o método de estudo. Foi o criador da Escola Sociológica Francesa, defi-
nindo como objeto da sociologia os fatos sociais. Defendia que os problemas so-
ciais vividos pela sociedade europeia eram de natureza moral, e não de fundo eco-
nômico. Sua teoria girava em torno da ideia principal de que a sociedade (objeto) é
superior ao indivíduo (sujeito). Ele entendia que a sociedade predominaria sobre o

capítulo 3 • 47
indivíduo, uma vez que ela é que imporia a ele o conjunto das normas de conduta
social. A fim de explicar essa relação, formulou a metodologia funcionalista, ou
seja, os fatos sociais (ou as maneiras padronizadas como agimos na sociedade) não
existem por acaso: existem porque cumprem uma função.
O interesse científico durkheimiano era inteiramente voltado para a com-
preensão do funcionamento das chamadas formas padronizadas de conduta e
pensamento, definidas por ele como consciência coletiva.

Karl Marx foi um filósofo alemão, economista, historiador, revolucionário e


também buscou estudar a sociedade de seu tempo, a sociedade capitalista. A obra
de Marx se estrutura a partir do conflito que ocorre entre duas classes sociais fun-
damentais da sociedade capitalista: a burguesia versus o proletariado. Segundo ele,
as relações sociais de produção definem a formação desses dois grandes grupos, e
“a história de todas as sociedades que existiram até os nossos dias tem sido a histó-
ria da luta de classes” (MARX e ENGELS, 1999, p. 07).

Ele utilizou o método dialético para explicar as mudanças importantes ocor-


ridas na história da humanidade através dos tempos. Assim, desenvolveu uma
concepção materialista da História, afirmando que o modo pelo qual a produção
material de uma sociedade é realizada constitui o fator determinante da organiza-
ção política e das representações intelectuais de uma época.
Max Weber foi professor de Economia nas universidades alemãs de Freiburg e
Heidelberg a partir da década de 1920, e suas teorias exerceram grande influência
sobre as Ciências Sociais. Uma de suas obras mais famosas, A ética protestante e
o espírito do capitalismo (1905), buscou apresentar a ligação entre a ética protes-
tante e a ascensão do capitalismo.

capítulo 3 • 48
Centrou suas análises nos atores sociais e em suas ações. Para ele, a sociologia
deveria estudar o sentido da ação humana individual, que deve ser buscado pelo
método da interpretação e da compreensão. Weber preocupava-se, ainda, com a
responsabilidade social dos cientistas sociais e defendia a busca da neutralidade
na vida acadêmica e na investigação científica. Por isso ele define como objeto de
estudo da Sociologia a AÇÃO SOCIAL.
Nosso objetivo com essa breve apresentação de cada um dos pensadores, cuja
obra foi determinante para a origem da sociologia, foi trazer esse pequeno pano-
rama acerca do surgimento e da institucionalização do pensar e do pesquisar nas
ciências sociais. Essa base de pensamento, essa estrutura teórica, ainda permeia
e sustenta grande parte dessa ciência nos dias atuais. Portanto, é extremamente
relevante conhecermos tais autores e a estrutura do pensamento deles para com-
preendermos como se alicerçou a sociologia no mundo e no Brasil.

A Sociologia no Brasil

A fim de compreendermos as diferentes fases e influências do campo socioló-


gico brasileiro, vamos trabalhar com uma divisão desse campo em cinco etapas.
A primeira delas, em que se deu o pioneirismo da sociologia do país, ocor-
reu de meados do século XIX ao início do século XX. Conforme vimos anterior-
mente, a França foi berço da sociologia, pois lá nascia o positivismo comtiano.
Assim, por influência do positivismo francês, surgiram nesse período os primeiros
estudos tidos como “sociológicos” no Brasil.
Destacaram-se nesse cenário autores como: Batista Lacerda (1846-1915),
Nina Rodrigues (1862-1905), Euclides da Cunha (1866-1909), Oliveira Vianna

capítulo 3 • 49
(1883-1951), Manoel Bonfim (1868-1932), Alberto Torres (1865-1917) e
Roquette-Pinto (1884-1950), que muitas vezes trouxeram de forma destoante a
questão da raça e o problema imigratório como solução para o desenvolvimento
da nação.

LEITURA
Sugestão de leitura: As ilusões da liberdade: a escola Nina Rodrigues e a antropologia
no Brasil de Mariza Corrêa. Nesse livro, Mariza Corrêa, na melhor tradição da antropologia,
prefere evitar julgamentos anacrônicos para apresentar e compreender as obras escritas e
o trabalho institucional de Nina Rodrigues no contexto social e político em que ele vivia. A
autora examina a vasta obra desse cientista, que morreu com apenas 44 anos em 1906, para
revelar que tanto detratores como discípulos tinham um pouco de razão, mas que há muito
mais a dizer sobre o professor Nina Rodrigues. Mariza Corrêa nos leva pela luta de Nina
Rodrigues para estabelecer a medicina legal como disciplina acadêmica e pelos meandros
daquilo pelo qual ele seja talvez mais lembrado, isto é, o seu polêmico trabalho sobre raça e
a sua condenação da mestiçagem. Disponível em: <https://portal.fiocruz.br/livro/ilusoes-da-
-liberdade-escola-nina-rodrigues-e-antropologia-no-brasil>.

Tratando, ainda, das premissas da sociologia no Brasil, outros nomes que não
podemos deixar de mencionar são o de Sylvio Romero (1851-1914) e o de Tobias
Barreto (1839-1889).
Esses autores fizeram parte da chamada Escola de Recife, que, segundo Souto
Maior (2003), foi fundamental para a institucionalização da sociologia no país.
Ainda segundo Souto Maior (2003), a presença de Tobias Barreto, o clima inte-
lectual da Faculdade de Direito e a divulgação das ideias positivistas teriam sido os
grandes responsáveis por esse destaque assumido pela Escola de Recife na difusão
de novas ideias.
No entanto, foi a partir das décadas de 1920 e 1930 que a sociologia brasi-
leira adquiriu maior notoriedade e expressividade. Esse período é o que podemos
denominar de segunda etapa ou de institucionalização da sociologia. Nesse
período, despontava o interesse em compreender e pesquisar a formação da socie-
dade brasileira, a partir de estudos sobre temas como escravatura e abolição, índios
e nossa colonização.

capítulo 3 • 50
Neste momento, destaca-se também a criação do curso de Ciências Sociais da
Universidade de São Paulo (1934), o da Universidade do Distrito Federal (1935)
e o da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro (1939). E foi nesse contexto que
se deu a abertura da Escola Livre de Sociologia e Política em São Paulo – ELSP
(1933). Nessa instituição em especial, sob a influência da Escola de Chicago, por
meio da figura de Donald Pierson, foi realizada uma série de estudos que pode ser
compreendida como um primeiro programa de pesquisa nas ciências sociais do
país. Por isso, consideramos importante falar sobre a influência que essa Escola
teve na institucionalização da sociologia no Brasil.

A Escola de Chicago e a sociologia no Brasil

Conforme vimos, a sociologia iniciava sua institucionalização no país na dé-


cada de 1930, com a criação de Universidades e a abertura de cursos de ciências
sociais, com destaque para a Escola de São Paulo – ELSP. Oliveira (2009) nos cha-
ma atenção para o fato de que falar dessa institucionalização não significa negar
a existência de estudos sociológicos anteriores, mas, sim, afirmar que tais estudos
não estavam necessariamente vinculados a uma instituição ou seguiam uma linha
teórica específica.
Nesse sentido, a formação dos primeiros cientistas sociais do país e a con-
solidação das correntes de pensamento sociológico acabaram sendo fortemente
influenciadas por intelectuais estrangeiros ou docentes brasileiros que vinham de
alguma formação na Europa (OLIVEIRA, 2009). E foi nesse cenário que se desta-
cou, em São Paulo, Donald Pierson, que chegara ao Brasil em 1935 para pesquisar
sobre relações raciais – tema de sua pesquisa de doutorado. Pierson tornou-se
docente na ELSP em 1939, pouco depois de defender sua tese.
Pierson trouxe consigo para o Brasil toda a influência dos métodos e discus-
sões teóricos relacionados à questão urbana propagados na Escola de Chicago.
Mas esse não foi o único ponto de destaque em sua atuação na ELSP. Tratando-se
de um momento de institucionalização da ciência, ele enfatizava a relevância da
pesquisa empírica como a responsável pela formação dos “verdadeiros” sociólogos.
Além disso, ele atuou diretamente pela criação de um dos espaços mais renomados
da sociologia, a pós-graduação da ELSP em 1941.
Um elemento importante de mencionarmos é que o programa ao qual Pierson
pertencia promovia a ida de seus alunos ao exterior, para outras Universidades,
como Chicago. Foi o caso de Mário Wagner Vieira da Cunha, Juares Brandão

capítulo 3 • 51
Lopes, Levy Cruz e Oracy Nogueira, que se tornaria um de seus principais discí-
pulos em São Paulo.
Um dos sociólogos e antropólogos brasileiros de destaque, no final dos anos
1940 e décadas seguintes, foi Oracy Nogueira que, entre suas influências teóricas,
contou com Pierson e a Escola de Chicago. Nogueira estudou na Universidade
de Chicago entre 1945 e 1947, época em que a terceira geração, como Herbert
Blumer e Everett Hughes, ensinava nessa universidade.
Oliveira (2009) destaca Pierson como o autor que mais publicou na revista
brasileira Sociologia entre as décadas de 1940 e 1960. Nesse período, ele também
foi responsável por uma seção da revista denominada “Notas Sociológicas”, cujo
objetivo era debater questões teóricas e metodológicas e divulgar a pós-graduação.
Já Mendoza (2000) divide as contribuições de Pierson em três vertentes principais:
relações raciais, estudos sobre a cidade e pesquisas sobre pequenas comunidades.
Com essas vertentes, Pierson desenvolveu um trabalhos muito detalhado sobre o
Brasil, apresentou características de nossas zonas rurais, que até então eram pouco
debatidas pela sociologia no país.
Acerca dos estudos sobre cidade e sobre as zonas rurais, podemos dizer que eles
foram precursores e configuram um antecedente direto do campo de pesquisas urba-
nas na sociologia de hoje. Nesse período, é explícita a influência da Escola Sociológica
de Chicago sobre as pesquisas brasileiras, principalmente por meio do uso do modelo
de zonas concêntricas de E. Burgess, que apresentamos no capítulo anterior deste li-
vro. Como exemplo citamos os trabalhos de L. Hermann, O. Araújo, E. Willems, F.
Heller, O. Xidieh e O. Nogueira, que realizaram estudos detalhados sobre vizinhança,
bairros, habitações, operários e/ou ruas, ao longo da década de 1940.
Entretanto, é fundamental chamarmos atenção, mais uma vez, para a proble-
mática de seus estudos sobre relações raciais no Brasil. Eles indicavam que não
havia preconceito racial no país. Pierson comparou nossa realidade a países com
legislações e sistemas de segregação racial, mas não considerou que o fato de não
contar com segregação legal nunca impediu o país de vivenciá-la de diferentes
formas. Para isso, era preciso considerar toda nossa formação histórica, social e
política. Ademais, Jackson (2009) argumenta que Pierson integrava o rol de inte-
lectuais que não reconhecia as classes sociais no país e utilizava seus estudos sobre
comunidades locais para determinar as relações gerais no Brasil.
Foi nesse contexto que Gilberto Freyre, no início dos anos de 1930, apre-
senta obras como Casa grande e senzala (1933), Sobrados e mucambos (1936) e
Nordeste (1937).

capítulo 3 • 52
Nesse mesmo período, destacam-se as obras de Caio Prado Júnior (Evolução
política do Brasil – 1933) e de Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil
– 1936).

MULTIMÍDIA
Para conhecermos melhor os autores supracitados, sugerimos os vídeos
Casa grande e senzala. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=eFAKtpN
RH9o>.
Raízes do Brasil - Cinebiografia de Sérgio Buarque de Holanda. Disponível em: <https://
www.youtube.com/watch?v=2LjYRwJJqAg>.

Contudo, essas não foram as únicas críticas às contribuições de Pierson e às in-


fluências da Escola de Chicago na sociologia brasileira. Jackson (2009) menciona
também a concepção de que, para conferir caráter científico à disciplina e se tornar
um profissional em sociologia, a Escola de Chicago e seus intelectuais enfatizam
como único caminho os estudos em materiais empíricos. A problematização a esta
concepção está justamente na rigidez de se considerar um único modelo como
válido para conferir cientificidade a uma área que conta com uma gama de alter-
nativas de estudos. De toda forma, é importante destacar toda a contribuição que
a inserção da pesquisa qualitativa teve para os estudos sociológicos em nosso país e
que a Escola de Chicago, por meio principalmente de Pierson, enriqueceu muito
nossos estudos nesta área.

capítulo 3 • 53
É importante pensarmos sobre o cenário brasileiro desse momento. O país
passava por um processo de urbanização, o que vinha gerando uma nova dinâmica
e tipos sociais, que passavam a influenciar diretamente a análise que era feita sobre
a sociedade brasileira. A explicação para esses fenômenos ganhava novos contor-
nos. Essas novas formas de pensar e estudar a sociedade brasileira transformaram-
-se no que se pode chamar de uma nova “mentalidade científica e filosófica”.
A partir de meados da década de 1940, a produção sociológica brasileira iniciou
o que consideramos sua terceira etapa, que foi fortemente marcada pelas persegui-
ções políticas sofridas por intelectuais e cientistas durante os períodos de governos
autoritários do país. Muitas dessas figuras foram banidas ou tiveram de fugir do país
no período do Estado Novo e da ditadura civil-empresarial-militar, o que influen-
ciou diretamente as atividades de ensino e pesquisa em Sociologia nestes tempos.
Contudo, houve uma brecha entre esses governos autoritários, anos 1950 e
1960, que possibilitaram a expansão de atividades político-ideológicas e criaram
condições mais favoráveis para a sociologia. Segundo Costa Pinto (1953), destaca-
vam-se como temas de interesse das ciências sociais a questão das relações étnicas (o
negro, o índio e o branco colonizador), os estudos e análises regionais, com ênfase na
sociologia rural e urbana. Além disso, tinha lugar de relevância na produção socioló-
gica, nesse momento, a elaboração de materiais para as chamadas escolas secundárias
e também as discussões envolvendo teoria e método das ciências sociais.
Falar da sociologia dos anos 1950 e 60 e de toda a sua efervescência impli-
ca em mencionar a presença de Florestan Fernandes na direção da “Escola de
Sociologia Paulista” ou “Escola da USP”. De acordo com Liedke Filho (1977),
a Escola tinha uma abordagem particular sobre a Teoria da Modernização, ou
seja, transição de uma sociedade rural tradicional para uma sociedade industrial
moderna e uma preocupação com as possibilidades de um desenvolvimento de-
mocrático da sociedade brasileira, que orientava os estudos de seus pesquisadores.
Os anos 1950 foram marcados também pela emergência do que se denominou de
uma “Sociologia Autêntica”. De cunho nacionalista, esta vertente tinha sua maior
expressão na obra de Guerreiro Ramos.

capítulo 3 • 54
LEITURA
Recomenda-se a leitura do artigo “Padrão e salvação: o debate Florestan Fernandes x
Guerreiro Ramos”, de Edison Bariani – UNESP, Araraquara. O artigo aborda o debate entre
Florestan Fernandes e Guerreiro Ramos e explicita as divergências quanto ao modo de con-
ceber a sociologia, o método, a aplicação, as condições de pesquisa e o desenvolvimento no
Brasil e aponta as diferentes ‘visões’ e projetos para a ciência e para a nação.

Esse período de expansão e de efervescência das ciências sociais entra em declínio


no início da década de 1960 com as medidas repressivas (cassações, prisões, exílios e
desaparecimento) do regime civil-empresarial-militar. Tais medidas repercutiram na
institucionalização e na profissionalização que a sociologia vivenciava no país.
Iniciava-se, então, o que podemos denominar de quarta etapa das ciências
sociais no Brasil. Esse novo ciclo foi marcado pela produção realizada fora do
país, já que, conforme mencionamos, muitos intelectuais das ciências sociais fo-
ram “banidos” ou tiveram de fugir do país nesse período. No Brasil, ganhavam
visibilidade alguns estudos desenvolvidos em instituições de ensino superior e al-
guns institutos de pesquisa, com destaque para o Centro Brasileiro de Análise e
Planejamento – CEBRAP.
Vale a pena mencionar que, a despeito de toda a perseguição, esses institutos
e grande parte das pesquisas realizadas nesse período estiveram direcionados para
a questão do regime de exceção e para estudos sobre democracia. Acerca dessa
quarta etapa da sociologia no Brasil é preciso dizer, ainda, que, apesar de toda a
censura, da saída forçada de muitos pesquisadores e da interrupção de estudos
relevantes, a ciência não parou. Até o fim da ditadura, permaneceu-se produzindo
e divulgando investigação sociológica.
As ciências sociais sofreram uma nova guinada no que diz respeito a sua orga-
nização, institucionalização e tônica de suas pesquisas no período de nossa rede-
mocratização, ou seja, fim da década de 1980. Em grande medida, essa reviravolta
estava relacionada à emergência de novos atores sociais em cena: movimentos so-
ciais se reorganizando e a sociedade civil apresentando demandas até então silen-
ciadas, como a questão ambiental. Além dessas questões, havia o desafio que se
apresentava para as ciências sociais, o de pensar e buscar explicações para um Brasil
ainda tão contraditório, que enfrentava problemas antigos convivendo com novos
trazidos pela pós-modernidade.

capítulo 3 • 55
E assim tinha início o que podemos chamar de quinta etapa das ciências
sociais, que atravessa a redemocratização e até os dias atuais e se caracteriza por
uma abordagem diversificada de temas e metodologias, tanto macrossociológicas
quanto microssociológicas. Veremos a seguir como os interesses e as abordagens
teóricos-metodológicas foram se constituindo ao longo de todas essas etapas de
desenvolvimento das ciências sociais no Brasil.

A Sociologia brasileira e suas temáticas

Os considerados pioneiros da sociologia brasileira enfrentaram grandes dificul-


dades para ministrar a disciplina, pois não havia uma referência institucional dela.
Eles também não contavam com material didático específico nem com recursos para
pesquisarem e divulgarem suas produções. Mas, conforme vimos anteriormente nes-
se texto, havia uma elite letrada que voltava sua atenção nesse período, meados do
século XIX, para questões da identidade e a configuração da sociedade nacional, o
que abria espaço para o desenvolvimento das ciências sociais brasileiras.
Cumpre registrar, portanto, que o desenvolvimento das ideias sociológicas
nesse primeiro momento esteve atrelado aos homens brancos, descendentes dire-
tos de antigos colonizadores e culturalmente eurocêntricos, pois muitos vinham
de uma formação no exterior. A atenção de grande parte dessas figuras estava nos
movimentos culturais sociais que surgiam na França, na Inglaterra e na Alemanha.
Eram essas as nações que espelhavam os padrões de comportamento e organização
política, mas também de ciência.
E foi nesse contexto que o positivismo passou a permear o pensamento social bra-
sileiro, influenciando posturas anticlericais e a tendência à secularização. Instalaram-se
debates entre diferentes correntes iluministas e enciclopedistas, positivistas e evolucio-
nistas, agnósticos e “metafísicos”. Tais debates, travados em sua maioria entre os setores
letrados e as instituições acadêmicas, ficou conhecido como “bacharelismo”.
As discussões “bacharelistas” foram marcadas pelo uso excessivo de citações e
pela supervalorização de questões de forma. Vale lembrar que tais modelos eram
quase sempre importados dos centros europeus. A sociologia brasileira pode ser
considerada fruto de um “bacharelismo”, pois a discussão entre Tobias Barreto e
Sylvio Romero sobre cientificidade da Sociologia, que marca a origem desse cam-
po de estudo, foi um duelo tipicamente “bacharelista”.
Ao mencionarmos esse cenário, buscamos apresentar de que forma se desen-
volvia a sociologia brasileira, seus temas de interesse e como ocorria sua produção

capítulo 3 • 56
e divulgação, nesse momento ainda muito determinado pela realidade e pelos
debates da Europa.
E se a Europa experimentava a modernidade, efervescência dos movimentos in-
telectuais, culturais, artísticos e literários, o Brasil ainda lidava com um predomínio
da vida rural sobre a urbana, com pobreza, desigualdade e analfabetismo em massa,
mas iniciava lentamente pequenas transformações em direção à urbanização, o que
movimentou diretamente as teorias sociológicas e os institutos de pesquisa.
Com a mudança do cenário social, transformam-se também o interesse e as
temáticas das ciências sociais, que passam agora a ter como foco a questão do
urbanismo. Essa nova urbanidade trouxe consigo uma modernização dos hábitos
e costumes. Surgiam os “homens empreendedores”, que, com capital estrangeiro,
especialmente inglês, buscavam a modernização do país em áreas como transpor-
te, aperfeiçoando os serviços urbanos de iluminação, saneamento e calçamento.
E você pode estar se questionando: o que tudo isso impacta na sociologia? Esse
processo de urbanização conferiu uma nova forma de organização e de relação nas
cidades que passou a ser tema de interesse das ciências sociais.
Gilberto Freyre (1985) já dizia isso ao sinalizar que a rua, antes ocupada so-
mente por negros, mascates e moleques, aristocratizou-se. As mudanças foram
significativas em muitas áreas, inclusive na educação. Se antes as gerações se educa-
vam em casa, com o padre ou em escolas confessionais, passam agora a frequentar
academias e colégios dirigidos por leigos, e à frente de muitas dessas instituições
estavam figuras estrangeiras.
Nas décadas que se seguiriam, com o processo de urbanização já a pleno vapor,
a Sociologia diversificou as temáticas para as quais suas pesquisas estavam direcio-
nadas. Seus estudos passaram a priorizar temas relacionados às classes trabalhado-
ras, ou seja, pesquisas sobre salário, jornada de trabalho, organizações, condições
de trabalho e relações entre empregados e empregadores passaram a figurar entre
as principais temáticas.
Já nas décadas de 1950 e 1960 ocorreu uma nova alteração no quadro de
produção e nas temáticas de interesse prioritário das pesquisas em ciências sociais.
Essa nova etapa da sociologia trouxe consigo temas referentes a problemas polí-
ticos e sociais, como a questão da reforma agrária. Conforme vimos, esse foi um
período de grande efervescência para as teorias sociológicas, o que contribuiu para
o avanço dessas vertentes e abordagens.
A instabilidade trazida pelo regime civil-empresarial-militar para a institucio-
nalização das ciências sociais, tanto por conta das perseguições políticas já citadas

capítulo 3 • 57
quanto pela retirada da disciplina das escolas de educação básica, impactou o de-
senvolvimento das pesquisas e dos principais interesses da área. Destacaram-se
nesse período, além da preocupação com os problemas sociais do país, análises
sobre o modelo político autoritário versus democracia, sobre os movimentos so-
ciais urbanos e rurais e sobre o novo movimento sindical e a participação política.
Ainda foi nesse contexto que se desenvolveu a Teoria da Dependência.

MULTIMÍDIA
40 anos da Teoria da dependência. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.
br/economia/40-anos-da-teoria-da-dependencia/>.
A teoria da dependência: balanços e perspectivas por Theotônio Dos Santos. Disponí-
vel em: <https://movimentorevista.com.br/2018/02/a-teoria-da-dependencia-balancos-e-
-perspectivas-capitulo-ii/>.

O cenário político e intelectual no Brasil dos anos 1960 e 1970 foi, portanto,
de duras críticas ao imperialismo norte-americano e de rejeição às ciências sociais
produzidas nos Estados Unidos, atingindo as influências trazidas pela Escola de
Chicago. Passavam a prevalecer as abordagens da linha marxista, que trabalhavam
com análises de temas macrossociológicos, como classes sociais e Estado. Nesse sen-
tido, ganhava espaço e força a obra de pensadores como Castells (2006), que estu-
dava as determinações estruturais do capitalismo na produção do espaço urbano.
Essa foi uma mudança significativa que representou um deslocamento temá-
tico importante nas ciências sociais. Além disso, passou-se da ênfase em estudos
relativos à dependência para temáticas ligadas à sociedade civil, aos movimentos
sociais e à redemocratização no final da década de 1970.
Ainda no contexto da redemocratização, a temática dos movimentos sociais
foi cedendo lugar à pesquisa acerca das identidades sociais e representações sociais.
Dessa forma, a sociologia brasileira passou dos anos 1970 para os anos 1990 de
análises macrossociológicas e de críticas a um modelo social excludente para estu-
dos microssociológicos. As ciências sociais passaram a privilegiar e a se dedicar às
pesquisas envolvendo movimentos urbanos e rurais, movimentos sindicais, mo-
vimentos feministas e LGBTQI, movimentos negros e movimentos ecológicos.
Nessa última etapa de desenvolvimento da sociologia brasileira destaca-se a
influência de autores como Bourdieu, Foucault, Judith Butler, Giddens, Elias e

capítulo 3 • 58
Habermas. Com eles surgiram áreas que se destacaram nas ciências sociais do
país, como a sociologia da educação e o debate das oportunidades educacionais
desiguais e a construção/socialização do indivíduo. Mais recentemente, têm-se
sobressaído também no cenário das pesquisas sociológicas do país os temas refe-
rentes ao multiculturalismo e à globalização, conectados com outros elementos,
como religião, gênero e meio ambiente.
Em resumo, buscamos apresentar neste capítulo o panorama de origem e
desenvolvimento das ciências sociais no Brasil, tangenciando sempre a discussão
com a conjuntura do país, as influências externas, especialmente da Escola de
Chicago e como todo esse cenário se desdobrou em temáticas de interesse de
estudo para pesquisas ao longo das diferentes fases de desenvolvimento dessa
ciência no Brasil.

ATIVIDADES
Observe as imagens a seguir e desenvolva um texto articulando como as mudanças po-
líticas, sociais e econômicas advindas com a urbanização do país influenciaram diretamente
a produção das ciências sociais brasileiras, atravessando suas temáticas de interesse e suas
abordagens.

capítulo 3 • 59
Sugestão de filmes:
Florestan Fernandes: O Mestre - Documentário de Roberto Stefanelli.
A vida e a obra de Florestan Fernandes (São Paulo, 22 de julho de 1920 — São Paulo,
10 de agosto de 1995) – engraxate, garçom, professor, sociolólogo, deputado e constituinte
– são retratadas no documentário "Florestan Fernandes – O Mestre", dirigido por Roberto
Stefanelli, galardoado em 2004 com o prêmio 'Vladimir Herzog', a mais importante premiação
jornalística da área de direitos humanos do Brasil. Disponível em: <https://www.youtube.
com/watch?v=ncGSS2yyhNw>.
Formação do povo brasileiro. O antropólogo Darcy Ribeiro (1913-1997) foi um dos
maiores intelectuais brasileiros do século XX. Esse DVD duplo traz todos os 10 programas
da elogiada série baseada na obra central de Darcy: O povo brasileiro, em que o autor res-
ponde à questão "quem são os brasileiros?", investigando a formação do nosso povo. Dispo-
nível em: <https://cafecomsociologia.com/formacao-do-povo-brasileiro/>.

Aquarius. Drama, Suspense. Brasil/França. 2016. 145 min. Cor. Direção: Kleber Men-
donça Filho. “Clara tem 65 anos, é jornalista aposentada, viúva e mãe de três filhos adultos.
Ela mora em um apartamento localizado na avenida Boa Viagem, em Recife (PE), onde criou
seus filhos e viveu boa parte de sua vida. Interessados em construir um novo prédio no espa-
ço, os responsáveis por uma construtora conseguiram adquirir quase todos os apartamentos
do edifício, menos o dela. Ao deixar claro que não pretende vendê-lo, os interesses de Clara
entram em conflito com os interesses do mercado. As relações de poder que se estabelecem
a partir dos conflitos entre o velho e o novo e do interesse em manter o status quo da pro-
tagonista, conceitos de vizinhança, sociedade e família, podem ser abordados a partir desta
obra.” (Valle, 2019, s/p).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AZEVEDO, Fernando de (Org.) As ciências no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 1994. A
Sociologia no Brasil: o ensino e as pesquisas sociológicas no Brasil. Disponível em: >http://www.
geocities. com/florestanvive/sociologiabrasil.html>
CASTELLS, Manuel. A questão urbana. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006.
CORRÊA, Mariza. A antropologia no Brasil (1960-1980). In: História das Ciências Sociais no Brasil.
Org. S. Miceli. SP: Sumaré/FAPESP. 1995 v. 2, p. 25-106.
COSTA PINTO, Luiz de Aguiar. O negro no Rio de Janeiro: relações de raças numa sociedade
em mudança. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1953.

capítulo 3 • 60
COULON, Alain. A Escola de Chicago. Trad. T. Bueno. Campinas, SP: Papirus Editora, 1995.
FREYRE, G. Entrevista. Ciência Hoje, Rio de Janeiro, v. 3, n. 18, p.83-7, maio/jun. 1985.
JACKSON, Luiz Carlos. Divergências teóricas, divergências políticas: a crítica da USP aos “estudos de
comunidades”. Cadernos de Campo, São Paulo, v. 18, n. 18, 2009.
LIEDKE FILHO, E. Teoria social e método na Escola da USP. (1954-1962). M.A. Dissertation.
University of Brasilia, 1977.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Disponível em: <http://www.
ebooksbrasil.org/adobeebook/manifestocomunista.pdf>. Acesso em: 03 jul. 2015. Editora Ridendo
Castigat Moraes, 1999.
MENDOZA, Edgar S. G. Sociologia da Antropología urbana no Brasil: a década de 70. 2000. 325
p. Tese (Doutorado em Ciencias Sociais). - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Estadual de Campinas, UNICAMP, Campinas.
OLIVEIRA, Isabela. Os estudos urbanos de Donald Pierson na Escola Livre de Sociologia e Política.
Anais do XIV Congresso Brasileiro de Sociologia, GT 15 – Pensamento Social no Brasil. Rio de
Janeiro, 2009.
VALLE, Leonardo. Seis filmes nacionais para ensinar Sociologia. Disponível em: <https://www.
institutonetclaroembratel.org.br/educacao/nossas-novidades/reportagens/6-filmes-nacionais-para-
ensinar-sociologia/>. Acesso em 12 mai. 2019.

capítulo 3 • 61
capítulo 3 • 62
4
A Sociologia
do Desvio em
suas diversas
concepções
A Sociologia do desvio em suas diversas
concepções

Conforme estudamos no segundo capítulo, os sociólogos Howard Becker e


Irving Goffman, com suas raízes no interacionismo da Escola de Chicago, pro-
põem como ponto de partida para as suas pesquisas a análise das interações hu-
manas e seus efeitos nas instituições sociais. Assim é que, a partir do desvio como
objeto de análise, mas sem localizá-lo na pessoa do rotulado como desviante, e sim
nas relações estabelecidas entre as pessoas, os sociólogos supracitados vão construir
a Sociologia do Desvio, conforme iremos estudar a partir de agora.

O desvio é, entre outras coisas, uma consequência das reações de outros ao ato de uma
pessoa (Becker, 2008, p.22).

OBJETIVOS
• Compreender a noção de Desvio para a Sociologia;
• Conceituar e diferenciar a Teoria Funcionalista e a Teoria Interacionista;
• Conhecer a Sociologia do Desvio em sua aplicação para os estudos do crime;
• Diferenciar Teoria do Conflito e Teoria do Consenso;
• Conhecer a Teoria do Controle Social.

O desvio

Desvio não é uma qualidade que reside no próprio comportamento, mas na interação
entre a pessoa que comete um ato e aquelas que reagem a ele (Becker, 2008, p.27).

Para compreendermos a noção de desvio e comportamento desviante para a


Sociologia, a primeira coisa que devemos fazer é afastar o olhar, ou seja, não deve-
mos olhar diretamente o comportamento que é considerado desviante, e sim todo
o âmbito social em que ele está inserido.
Portanto, vamos propor o seguinte pensamento: um grupo de pessoas vive em
conjunto (uma família, por exemplo) e cria determinadas formas e maneiras de

capítulo 4 • 64
viver, com base em suas experiências em comum e na maneira que acham correta
para seu estilo de vida. Para que continuem nessa dinâmica, é necessário que as
pessoas desse grupo mantenham o padrão de conduta estabelecido. Caso alguma
dessas pessoas comece a agir de maneira completamente divergente, ou seja, que
cometa desvios no modo de agir do grupo, é possível que este se desfaça ou que
sejam criadas outras maneiras de viver, outros grupos. O desvio é essa mudança no
padrão de conduta determinado por um grupo de pessoas, que pode se referir, por
exemplo, a uma família, a uma instituição escolar ou a toda a sociedade.
Segundo Becker (2008, p. 15), “todos os grupos sociais fazem regras e tentam,
em certos momentos e em algumas circunstâncias, impô-las”.
Se seguirmos pensando no exemplo de um grupo familiar, veremos que deter-
minados sujeitos deste grupo se estão em posições hierárquicas que lhes permitem
impor e coagir para que as normas de conduta sejam seguidas. É o caso dos pais,
por exemplo, que impõem castigos para os filhos jovens que não chegam em casa
no horário estabelecido ou que não participam das festas de família.
Esse mesmo exemplo pode ser transferido para as relações sociais em determi-
nada instituição e suas relações de trabalho ou em uma instituição educacional e
seu grupo de alunos/alunas diante de professores/professoras.
Os Estudos sobre o Desvio, portanto, estendem-se a pensar os mais diversos
grupos presentes na sociedade, a relação entre esses grupos, as normas impostas e
os desvios dela.
Portanto, é para manter o padrão de conduta estabelecido que determinados
grupos criam formas de coação, a depender das relações de poder em que eles
estejam inseridos. Em contrapartida, faz parte da proposta compreendermos que
também aqueles que são considerados desviantes podem ter uma opinião dife-
rente sobre a regra que lhe tocou infringir, ou seja, podem em última instância
considerar os juízes que os julgam e os rotulam como desviantes com base em
suas concepções.

ATENÇÃO
Em uma sociedade, existe grande número de regras. Algumas delas passarão pelo pro-
cesso legislativo e se tornarão leis; outras permanecerão como regras e acordos informais
estabelecidos em tradições e reproduzidos no cotidiano.

capítulo 4 • 65
COMENTÁRIO
Desvio pode ser, então, visto como o processo de interação entre o indivíduo e a parcela
da sociedade que dita as regras de normalidade.

Becker (2008) ainda nos mostra que existem tipos de comportamentos desvian-
tes. Aqueles que são percebidos como desviantes e aqueles que não são percebidos
como desviantes. Dentre estes últimos também devemos levar em consideração a
falsidade da acusação ou mesmo a ausência de acusação no caso de autêntico desvio.
Assim, foi proposto pelo autor o seguinte quadro (Becker, 2008, p.31):

TIPOS DE COMPORTAMENTO DESVIANTE


COMPORTAMENTO COMPORTAMENTO
APROPRIADO INFRATOR
Percebido como desviante Falsamente acusado Desviante puro
Não percebido como
Apropriado Desviante secreto
desviante

Isso quer dizer que, muitas vezes, uma pessoa pode ser percebida como des-
viante sem nunca ter praticado um comportamento infrator, e o contrário tam-
bém é possível, uma vez que alguém pode não ser percebido como desviante e
praticar o comportamento infrator, sendo considerado um “desviante secreto”.
Isso ocorre porque a situação social em que a pessoa se encontra, assim como as
relações sociais que a cercam ou que se refiram ao comportamento que praticam,
pode ser decisiva para a rotulação dela como infratora.

CONCEITO
Indivíduo desviante é aquele cuja rotulação como desviante, em razão de uma rede
complexa de relações, foi realizada com sucesso.

Outsiders, para Becker (2008), são aqueles que desviam das regras do grupo e,
também, sofrem o etiquetamento por isso.
Assim é que, além de infringir uma norma para que o indivíduo seja con-
siderado infrator, ele deve passar pelo processo de etiquetamento e rotulação.

capítulo 4 • 66
Portanto, o desviante não o é assim considerado em virtude do ato que praticou e,
sim, pela eficácia do processo de etiquetamento pelo qual ele passou. Ao conceber
o crime como um desvio, Becker e outros sociólogos, conforme veremos a seguir,
construíram outro olhar para a forma de compreender o crime a partir de seus
aspectos sociológicos.

CURIOSIDADE
Howard Becker (2008), um dos grandes nomes da “Nova Escola de Chicago”, assim
como da chamada Teoria do Etiquetamento ou Labelling Aprouch, desenvolveu os estudos
de campo de uma de suas principais obras – The Outsiders – junto a duas comunidades eti-
quetadas como desviantes: os músicos noturnos de jazz e os usuários de maconha. Faz parte
de sua biografia o fato de que ele trabalhou como pianista profissional desde os quinze anos
em bares na cidade de Chicago (Velho, 2012), o que demonstra a sua familiaridade com os
objetos de pesquisa estudados na pesquisa supracitada.

A Sociologia do Crime e a Teoria do Etiquetamento

Antes da Teoria do Etiquetamento na Sociologia, a maior parte das teorias que


se dispunham a estudar o fenômeno do crime partia dos pressupostos de que o
crime existia objetivamente, que era uma qualidade essencial do sujeito criminoso,
até mesmo hereditária ou orgânica, e ainda as normas sociais violadas eram con-
sideradas universais. De acordo com Alessandro Baratta (2002, p. 89), os teóricos
da criminologia clássica:

Tomam por empréstimo do direito penal e dos juristas as suas definições de compor-
tamento criminoso, e estudam este comportamento como se a sua qualidade criminal
existisse objetivamente. Do mesmo modo e ao mesmo tempo, tomam por evidente que
as normas e os valores sociais que os indivíduos transgridem, ou dos quais desviam, são
universalmente compartilhados, válidos a nível intersubjetivo, racionais, presentes em
todos os indivíduos, imutáveis etc.

A abordagem clássica levava em conta perguntas como “Por que as pessoas que
identificamos como criminosos fazem as coisas que identificamos como crimes?”
(Becker, 2008, p.11) sem nunca se questionarem como se dá o processo que faz
com que os crimes sejam o que são, que as condutas consideradas desviantes sejam
essas e não outras.

capítulo 4 • 67
Entretanto, conforme estudado, podemos dizer que uma pessoa, ainda que
cometa um ato considerado como crime, somente será considerado enquanto “de-
linquente” caso ele passe pelo processo de etiquetamento por parte das organiza-
ções socialmente aptas a fazê-lo.
Por fim, podemos dizer com Baratta (2002, p.88) que

Os criminólogos tradicionais examinam problemas do tipo "quem é criminoso?", "como


se torna desviante?", "em quais condições um condenado se torna reincidente?", "com
que meios se pode exercer controle sobre o criminoso?". Ao contrário, os interacionistas,
como em geral os autores que se inspiram no labeling approach, se perguntam: quem é
definido como desviante?", "que efeito decorre desta definição sobre o indivíduo?", "em
que condições este indivíduo pode se tornar objeto de uma definição?" E, enfim, "quem
define quem?"

Também conhecida em inglês como Labelling Approach, a Teoria do


Etiquetamento surgiu nos Estados Unidos, na década de 1960, a partir da pro-
posta dos interacionistas de que a realidade é constituída a partir das interações
sociais e das definições que as pessoas fazem de um fato, e não a partir da essência
de um fato em si.
Portanto, quando nos voltamos para pensar o crime compreendemos que,
para a Teoria do Etiquetamento, o crime não é apenas a violação de uma conduta,
mas, sim, a interpretação social que será dada ao fato.
Para exemplificar, podemos pensar na situação de um furto em uma loja de
roupas caras. Caso uma pessoa entre no provador e saia da loja com a roupa vesti-
da sem a etiqueta e mais algumas na bolsa, será configurado o Art. 155 do Código
Penal (“subtrair coisa alheia móvel”), ou seja, o crime de furto. Entretanto, tal
conduta pode ser lida de, ao menos, três formas: esquecimento, cleptomania ou
furto. E, para saber como será enquadrada a conduta, será levada em conta a situa-
ção social do agente: o esquecimento será considerado no caso de uma pessoa rica,
a cleptomania pode se dar para uma pessoa famosa e, por fim, caso a pessoa seja
pobre, irá provavelmente ser etiquetada como criminosa (Sell, 2007).

COMENTÁRIO
Para compreendermos melhor a proposta da Teoria do Etiquetamento – de que o crimi-
noso só será visto enquanto tal caso passe pelo processo de rotulação ou etiquetamento –,
cabe conhecermos a chamada “cifra oculta” do Direito Penal.

capítulo 4 • 68
O conceito foi criado para fazer referência ao fato de que uma parcela ínfima
das situações definidas pela legislação como crime são efetivamente investigadas
pela autoridade policial. Temos atualmente, apenas no Código Penal, mais de
duzentas condutas previstas como crimes. Imagine se seria possível que a polícia
investigasse cada um dos desvios a essas normas. Além disso, uma quantidade
realmente pequena dos crimes que chegam ao conhecimento da polícia é levada ao
Ministério Público e ao Juízo. Destes ainda pouquíssimos serão de fato julgados, e
diminuiremos ainda mais essa cifra se pensarmos naqueles que de fato cumprirão
penas aprisionados e serão, portanto, rotulados como criminosos/desviantes.
Assim é que a cifra oculta se refere a todos esses fatos que ocorrem e que,
em tese, seriam definidos como crimes, mas que nunca trarão consequências
para aqueles que o praticaram. Nas palavras do renomado jurista argentino Raul
Zaffaroni (1991, p. 27): “A seletividade estrutural do sistema penal que só pode
exercer seu poder regressivo legal em um número insignificante das hipóteses de
intervenção planificadas é a mais elementar demonstração da falsidade da legali-
dade processual proclamada pelo discurso jurídico-penal”.

Teoria funcionalista e o desvio

Conforme estudamos no capítulo anterior, Émile Durkheim, criador da


Escola Sociológica Francesa, desenvolveu a concepção na Sociologia de que a so-
ciedade predominaria sobre o indivíduo, pois é a sociedade que impõe o conjunto
de normas de conduta, e ao indivíduo cabe segui-las.
Assim é que Durkheim cria o funcionalismo enquanto método, uma vez que
entende que os fatos sociais, que para ele eram o objeto de estudo da sociologia,
existiam por cumprirem alguma função e se, apesar da coercibilidade do fato so-
cial, ainda assim algum indivíduo desviar a sua conduta, ou seja, burlar as regras
e padrões de conduta impostos socialmente, ele seria considerado um indivíduo
desviante.
Assim podemos compreender pelas palavras do próprio Durkheim (2011,
p. 10), na sua obra Fato social e divisão social do trabalho, a coercitividade dos
fatos sociais e as consequências para os desviantes:

capítulo 4 • 69
Se experimento violar as regras de direito, elas reagem contra mim para impedir meu
ato, se ainda houver tempo, ou para anulá-lo ou restabelecê-lo a sua forma normal, se
tiver sido realizado e for reparável, ou para me fazer expiá-lo, se não houver outro modo
de repará-lo. E quanto às máximas puramente morais? A consciência pública reprime
todo ato que as ofenda por meio da vigilância que exerce sobre a conduta dos cidadãos
e através das penas especiais de que dispõe. Em outros casos, a coerção é menos vio-
lenta, mas não deixa de existir. Se não me submeto às convenções do mundo; se, ao me
vestir, não levo em conta os costumes seguidos em meu país e em minha classe, o riso
que provoco e o isolamento em que me vejo produzem, ainda que de modo atenuado, os
mesmo efeitos que uma pena propriamente dita. Aliás a coerção por ser apenas indireta
não é menos eficaz.

CONCEITO
Fatos sociais para Durkheim são fenômenos sociais que se referem às maneiras de
agir, pensar e sentir que existem independentemente da consciência individual, ou seja, ex-
cedem o âmbito do indivíduo, por isso uma de suas características principais é a exteriori-
dade. Eles se apresentam no âmbito das condutas, das normas sociais – previstas em lei ou
não – e nas formas e padrões de comportamento impostos às pessoas para a manutenção
da sociedade. Aqui apresentamos outra característica do fato social que é a coerção social.
Os fatos sociais têm sua coercitividade suportada pela lei e suas instituições ou mesmo pela
moral da sociedade. Outra característica importante é que os fatos sociais têm generalida-
de, ou seja, não dependem do sentimento individual de cada um, pois é imposto a todos de
um mesmo grupo. Ainda assim, ele não é universal, uma vez que em outro grupo social esses
fatos sociais podem ser diversos.

Assim, para Durkheim, os fatos sociais, ou as maneiras padronizadas como


agimos na sociedade, não existem aleatoriamente, mas existem porque cumprem
uma função (por isso, funcionalidade). Para compreender a sociedade, ele ainda
utiliza a metáfora do “corpo vivo” , em que cada órgão cumpre uma função e nela
o todo predomina sobre as partes.
Nesse sentido, apostando ainda na metáfora do corpo vivo, Durkheim acre-
dita no “normal e no patológico” da sociedade. A sociologia, portanto, deve ser a
ciência que cuida e “trata” o patológico no social. Os indivíduos que agissem de
forma patológica socialmente praticariam o desvio de conduta que eventualmente
seria considerado crime.

capítulo 4 • 70
COMENTÁRIO
Para Durkheim, a finalidade da sociologia é encontrar remédios para regularizar a
vida social.

CONCEITO
São normais aquele fatos que não extrapolam os limites dos acontecimentos mais ge-
rais da sociedade.
Em contrapartida, são patológicos aqueles fatos que se encontram fora dos limites per-
mitidos pela ordem social vigente.

Entretanto, para Durkheim, o desvio, portanto o crime, é considerado normal,


pois é um aspecto recorrente em todas as sociedades, inclusive nas mais complexas,
denominadas por ele de Sociedades Orgânicas. Apenas o que seria anormal seria
uma taxa muito elevada de criminalidade em determinada sociedade, ou seja, que
a criminalidade se encontre fora dos limites permitidos pela ordem social vigente.
Para o sociólogo francês, além de normal, o crime é útil para a sociedade, já
que é um instrumento de coesão social, uma vez que a pena serviria para a reafir-
mação dos valores contidos nas leis e da solidariedade social (Mellin, 2011).

COMENTÁRIO
Portanto, percebemos que o pensamento de Durkheim sobre o crime e a sua relação
com a sociedade é menos essencialista e excludente que o da criminologia clássica, entre-
tanto ainda não atinge o nível crítico da Teoria do Etiquetamento ou Labelling Approach, uma
vez que se afirma enquanto Teoria do Consenso, conforme apresentaremos a seguir.

CONCEITO
Solidariedade Mecânica é um tipo de sociedade em que prevalece um conjunto mais
ou menos organizado de crenças e sentimentos comuns a todos os membros do grupo, en-

capítulo 4 • 71
tretanto ainda não existe a divisão social do trabalho, característica de sociedades mais com-
plexas. Nas sociedades de solidariedade mecânica, há pouco espaço para a individualidade.
Solidariedade Orgânica é encontrada nas sociedades mais complexas, em especial
quando tem início o desenvolvimento da agricultura e há divisão social do trabalho. Nas so-
ciedades compostas por solidariedade orgânica, os indivíduos, em regra, têm maiores pos-
sibilidades de diferir entre si, comporta-se maior individualidade, entretanto existe maior de-
pendência da atuação do outro, característica da divisão social do trabalho.

Figura 4.1 – Divisão social do trabalho.

Teorias do Conflito e Teorias do Consenso

A dicotomia, consenso-conflito, ganha uma relevância criminológica no sentido de questio-


nar: (I) qual o significado das normas que visam manter a ordem social; (II) se tais normas
revelam um conjunto de valores intrínsecos à sociedade; (III) se estes valores são comuns a
todos os membros desta sociedade; (IV) por fim, se estas regras somente expressam nada
mais que a vontade ou interesses de classes dominantes? (Furkim, 2015, p. 95).

Portanto, a partir da construção que fizemos até aqui, podemos perceber a


divisão teórica, feita no Brasil por Sergio Salomão Shecaria (2014), das escolas
criminológicas/sociológicas, entre aquelas que partem do conflito e aquelas que
partem do consenso.

capítulo 4 • 72
As Teorias do Consenso postulam que a finalidade da sociedade é atingida quan-
do todos os indivíduos que a compõem compartilham harmonicamente as regras so-
ciais e os objetivos em comum da sociedade, ou seja, quando as diversas instituições
sociais atingem o seu pleno funcionamento. Ao atingir tal pressuposto, as sociedades
se veriam livres da criminalidade ou, ao menos, de parte significativa dela.
Segundo Ralf Dahrendorf, os parâmetros da Teoria do Consenso postu-
lam que:

Toda sociedade é uma estrutura de elementos relativamente persistente e estável; toda


sociedade é uma estrutura de elementos bem integrada; todo elemento em uma socie-
dade tem uma função, isto é, contribui para sua manutenção como sistema; toda estru-
tura social em funcionamento é baseada em um consenso entre seus membros sobre
valores. Estes elementos são, naturalmente em geral, acompanhados de afirmações no
sentido de que a estabilidade, integração, coordenação funcional e consenso são ape-
nas relativamente generalizados (Dahrendorf, 1982, p.148).

Em contrapartida, as Teorias do Conflito compreendem que a chamada


coesão social está baseada na coerção e no subjugamento de determinados gru-
pos às regras impostas por outros que detêm os instrumentos de controle social.
Portanto, para tais teorias, muitas das vezes a criminalidade se refere às medidas
de subversão da ordem imposta por um grupo dominante sobre os demais. Assim,
a coesão social para as Teorias do Conflito é baseada na força, na coerção e no
assujeitamento dos diversos grupos por aqueles detentores do poder e das possibi-
lidades de imposição das regras sociais.

Teoria do Teoria do
Consenso Conflito

Harmonia Coerção
social social

Assujeitamento dos
diversos grupos
Compartilhamento
diante daquele que
dos valores sociais
define as regras
sociais.

capítulo 4 • 73
AUTOR
Sérgio Salomão Shecaira é doutor em Direito pela USP, professor titular da Faculda-
de de Direito da USP, presidiu o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do
Ministério da Justiça de 2007 a 2009 e foi presidente do IBCRrim – Instituto Brasileiro de
Ciência Criminais.

Portanto, a partir de tal divisão, podemos classificar as teorias sociológicas


estudadas até aqui:
• A Escola de Chicago de Robert Park e Ernest Burguess
Conforme estudamos no segundo capítulo deste livro, a Escola de Chicago,
em sua formação na década de 1920, propôs diferentes formas de pesquisa socioló-
gica, muito mais empíricas e pragmáticas, que possibilitaram análises e objetos de
estudos inéditos até então. No caso da criminologia, a Escola de Chicago propôs
um deslocamento do estudo que não se voltava diretamente para os sujeitos infra-
tores, e sim para as condições sociais em que eles estavam inseridos. Por meio dos
social surveys (questionários sociais), buscava-se delimitar as zonas de conflitos e as
condições sociais das pessoas que se encontravam nesta situação de criminalidade.
Foi a partir desse estudo que Burguess criou a teoria das Zonas Concêntricas, por
meio da transposição dos resultados dos surveys para o mapa da cidade. A Escola
de Chicago, nesse momento de seu desenvolvimento, pode ser considerada uma
Teoria de Consenso, uma vez que compreende que é justamente a falta de har-
monia social gerada pelo desenvolvimento urbano desenfreado, junto à imigração
sem integração social, que faze com que tenhamos o aumento da criminalidade.

• Funcionalismo de Durkheim
Conforme estudamos ainda neste capítulo, Durkheim nos apresenta uma
Teoria do Consenso ao pensar a criminalidade. Para o sociólogo francês, a so-
ciedade é um todo orgânico e articulado e, para o seu funcionamento pleno, os
indivíduos devem atuar harmonicamente e vinculados aos parâmetros comuns.
Portanto, para Durkheim, o delito não deriva das anomalias do indivíduo, e sim
das patologias dos organismos sociais em que faltem coesão e ordem. O ambiente
social em que as regras não funcionem absolutamente e não gerem coesão social
será chamado por Durkheim de Anomia.

capítulo 4 • 74
CONCEITO
Anomia, para Durkheim, é a ausência, a desintegração ou a inversão das normas vigen-
tes em uma sociedade. Neste caso, a consciência “perde” os parâmetros de julgamento da
realidade. Ela vai acontecer em momentos extremos, tais como: guerras, desastres ecológi-
cos, econômicos etc.. É também nesses momentos que se verifica um número excessivo de
suicídios, razão pela qual Durkheim trata esse fenômeno como um fato social, e não somente
como um ato resultante da consciência individual.

• A Teoria do Etiquetamento
Em contrapartida, o desvio para a Teoria do Etiquetamento não será consi-
derado como um desvio de uma norma natural ou universal, tampouco como
uma norma social homogênea e aceita por todos/todas. As normas sociais para o
Labelling Approuch são formuladas por determinado grupo que detém as formas
de impor a sua vontade e o seu modo de vida aos outros grupos sociais.
Portanto, o conflito advém justamente da coerção social e do assujeitamento
imposto por um grupo diante dos demais. A sociedade é composta por grupos hete-
rogêneos em que nenhum deles terá universalmente a prerrogativa de determinar o
que são os comportamentos adequados para viver em sociedade; entretanto, deter-
minados grupos detêm os meios sociais de impor seus padrões de conduta e normas
sociais.
Assim, percebemos que, dentre as teorias estudadas, a Teoria do Etiquetamento
é aquela que se concebe como uma Teoria do Conflito.

COMENTÁRIO
Não faz parte do nosso programa de estudos, mas podemos citar como Teorias de Con-
senso além da Escola de Chicago e da Teoria da Anomia da Durkheim: o Funcionalismo de
Merton, a Teoria da Subcultura, a Teoria da Associação-Diferencial, entre outras.

Também podemos citar como Teorias do Conflito, além da Teoria do


Etiquetamento ou Labelling Approuch: a Criminologia Crítica, os estudos histó-
ricos e filosóficos de Michel Foucault em Vigiar e punir e os estudos marxistas de

capítulo 4 • 75
Rusche e Kirchheimer em Estrutura e punição social, bem como as Criminologias
Feministas, entre outras.

COMENTÁRIO
Se temos como precursor de muitas das Teorias do Consenso o francês Émile Durkheim,
em contrapartida o pensamento da luta de classes de Karl Marx certamente é uma influência
importante nos estudos do conflito (Furkim, 2015).
© EVERETT HISTORICAL | SHUTTERSTOCK.COM

LEITURA
Um importante aspecto do estudo da criminologia crítica e do etiquetamento social no
Brasil é a interseccionalidade com a temática racial, uma vez que, em especial no Brasil, a
questão carcerária está diretamente relacionada à questão racial. Assim, indicamos como
leitura o livro de Juliana Borges (2018) O que é o encarceramento em massa?.
BORGES, Juliana. O que é o encarceramento em massa? Coleção Feminismos Plu-
rais. Belo Horizonte: Letramento Justificando, 2018.

O controle social

O conceito de controle social é amplamente utilizado nos mais diversos âmbi-


tos de estudo, entretanto tentaremos traçar uma trajetória no âmbito da sociologia,

capítulo 4 • 76
partindo de Durkheim, dialogando com a Escola de Chicago e até atingir as teo-
rias do conflito (Alvarez, 2004). De forma geral, percebemos em Durkheim a sua
preocupação com a integração social e a ordem, assim como com a anomia que
pode gerar o suicídio com caráter social. O crime, para ele, ainda que seja consi-
derado normal e útil para a sociedade, deve ser reprimido, pois é nesse momento
que a utilidade se apresenta, uma vez que reforça a solidariedade entre os demais
membros e, portanto, a coesão social. Assim é que, para Durkheim, o controle so-
cial será exercido tanto pelas instituições formais que atuam diretamente para esse
propósito (podemos citar como exemplo as leis, a polícia, o judiciário e o minis-
tério público) quanto também poderemos ver o controle informal sendo exercido
pelos demais membros da sociedade no cotidiano, assim como por instituições
como a escola e a família.
A Escola de Chicago, principalmente com George Herbert Mead, volta seus
estudos para as formas de coesão social nas interações sociais, partindo da micros-
sociologia, e não mais da macrossociologia como Durkheim. Entretanto, ambos
preservam o caráter conservador de pensar o controle social a partir do status quo
e para mantê-lo, e não com vistas à transformação social (Alvarez, 2004).
Entretanto, após a Segunda Guerra Mundial, percebemos o surgimento de
pensamentos que iam de encontro à ideia de coesão social e apostavam nas aná-
lises das relações de poder que perfaziam, necessariamente, as relações sociais.
Tampouco o controle social passava ao largo dessa discussão, uma vez que era
visto como uma forma de manter determinadas relações impostas por um grupo
social em detrimento de outros, conforme já abordado nas análises realizadas pela
Teoria do Conflito. Assim é que pensadores como Michel Foucault, Angela Davis,
Becker, Goffman, Rusche e Kirchheimer irão propor análises que não partirão
mais do Controle Social enquanto coesão interna da sociedade, e sim enquanto
relações de poder, que se tornam violentas em diversas ocasiões.

REFLEXÃO
A Sociologia do Desvio propõe um deslocamento do olhar para as situações que so-
cialmente são consideradas desviantes, pois foca a análise na relação entre as pessoas e,
principalmente, no fato de que tais normas são produzidas por determinados grupos sociais
e impostas a outros. Assim, fica o questionamento: aquelas pessoas consideradas desviantes
também não consideram o comportamento de quem as pune como inadequado?

capítulo 4 • 77
ATIVIDADE
Observe atentamente o diálogo entre Mafalda e Felipe e construa uma inter-relação
entre a Teoria do Conflito, a Teoria do Consenso e as diversas formas de Controle Social.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVAREZ, Marcos Cesar. Controle social: notas em torno de uma noção polêmica. São Paulo em
Perspectiva,18(1):2106084-176, 2004
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do
direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002.
BECKER, S. Howard. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
BORGES, Juliana. O que é o encarceramento em massa? Coleção Feminismos Plurais. Belo
Horizonte: Letramento Justificando, 2018.
DAHRENDORF, Ralf. O conflito social moderno: um ensaio sobre a política da liberdade. Rio de
Janeiro: Zahar, 1992.
DURKHEIM, Émile. Fato Social e Divisão Social do Trabalho. São Paulo: Ática, 2011.
FURKIM, Saulo Ramos. A necessidade de uma criminologia cultural face aos desdobramentos das
Teorias do Conflito. Estud. sociol. Araraquara v.20 n.38 p.95-109 jan.-jun. 2015.
MELLIN, Oscar Filho. O crime e a pena no pensamento de Émille Durkheim. Revista Intellectus, Ano
VII, nº 14, 2011.
SELL, Sandro Cesar. A etiqueta do crime: considerações sobre o Labelling Aprouch. Disponível em:
<https://jus.com.br/artigos/10290/a-etiqueta-do-crime>. Acesso em: 12 jun. 2019, 2007.
SHECARIA, Sergio Salomão. Criminologia. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
VELHO, Gilberto. Becker, Goffman e a Antropologia no Brasil. Florianópolis, v.4, n.1, julho de 2002.
ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 1991.

capítulo 4 • 78
5
O conceito de
estigma social
O conceito de estigma social
Após conhecermos as Teorias que estudam o desvio na sociologia e, em es-
pecial, a Teoria do Etiquetamento de Howard Becker, iniciaremos uma interface
com o conceito de Estigma desenvolvido por Irving Goffman. Trabalharemos esse
conceito aplicado ao longo da história na Sociologia e a sua interface com a iden-
tidade social. Faremos, ainda, a atualização crítica do conceito de Estigma para,
por fim, pensarmos a atuação do Estigma na deterioração da identidade social.

OBJETIVOS
• Conhecer o conceito de Estigma aplicado ao longo da história na sociologia;
• Relacionar Estigma e identidade social;
• Atualizar criticamente o conceito de Estigma na Sociologia;
• Conceituar os estigmas, estereótipos, preconceitos e discriminação para compreender a
atuação destes na deterioração da identidade social.

O estigma social

Querida Senhorita Lonelyhearts,


Tenho 16 anos e não sei como agir. Gostaria muito que a senhora me aconselhasse. Quan-
do eu era criança, não era muito ruim porque me acostumei com os meninos do quarteirão
que caçoavam de mim, mas agora eu gostaria de ter namorados como as outras meninas e
sair nas noites de sábado, mas nenhum rapaz sairá comigo porque nasci sem nariz - embo-
ra eu dance bem, tenha um tipo bonito e meu pai me compre lindas roupas.
Passo o dia inteiro sentada, me olhando e chorando. Tenho um grande buraco no meio do
meu rosto que amedronta as pessoas e a mim mesma, e não posso, portanto, culpar os
rapazes por não quererem sair comigo. Minha mãe me ama muito, mas chora muito quando
olha para mim.
Que fiz eu para merecer um destino tão terrível? Mesmo que eu tivesse feito algumas coi-
sas ruins, não as fiz antes de ter um ano de idade, e eu nasci assim. Perguntei a papai e ele
disse que não sabe, mas que pode ser que eu tenha feito algo no outro mundo, antes de
nascer, ou que eu esteja sendo punida pelos pecados dele. Não acredito nisto porque ele
é um homem muito bom. Devo me suicidar?
Sinceramente, Desesperada.

É desta maneira que Goffman (1980) inicia o seu livro denominado Estigma:
notas sobre a manipulação da identidade deteriorada no intuito de nos envolver

capítulo 5 • 80
na questão de como determinados caracteres físicos ou comportamentais podem
marcar de maneira indelével a vida das pessoas acometidas por eles.
O sociólogo nos mostra como o termo Estigma já existia desde a Grécia an-
tiga e se referia aos sinais que eram marcados no corpo de determinados sujeitos
para distinguir algo pejorativo sobre o status moral dele. Ou seja, era algo afeito
aos escravos, criminosos, traidores, portadores de doenças contagiosas, em suma,
pessoas que deveriam ser evitadas. Tais estigmas eram marcados no corpo dos con-
denados por meio de corte ou fogo (Goffman, 1980). Assim como na era cristã,
o Estigma ganhou ainda novos contornos, referindo-se a sinais corporais de graça
divina e distúrbios físicos.
O conceito de Estigma permanece em parte com seu sentido grego ao longo
dos tempos, entretanto ele é aplicado mais diretamente à situação social degradan-
te relativa ao sujeito que o carrega do que estritamente à sua evidência corporal.

CONCEITO
Segundo Goffman (2008, p. 8), Estigma é “a situação do indivíduo que está inabilitado
para a aceitação social plena”.

Para compreendermos melhor a dinâmica que mantém os efeitos dos estigmas


nas relações sociais, é necessário que busquemos a compreensão de outro conceito

capítulo 5 • 81
de Irving Goffman, construído por ele anteriormente, o conceito de Identidade
Social. Vamos lá.

A Identidade Social

Para compreender o desvio, é necessário olhar para o comum, pois são as normas sociais
que criam o desvio, principalmente aquelas referentes à identidade. (Goffman, 2008, p.
44).

Foi em 1959 que Goffman (2002) apresentou seus estudos sobre a identida-
de social em sua obra A representação do eu na vida cotidiana. Nesse livro, ele se
utiliza da metáfora do teatro para tratar das interações pessoais que os indivíduos
realizam. Para Goffman (2002), quando interagimos com outra pessoa, comuni-
camos uma imagem sobre nós mesmos, seja de forma consciente, seja de forma
inconsciente. Para isso, representamos a todo momento o papel que desejamos
mostrar. Isso nos colocaria no lugar de personagens e de atores em um encontro
de interação social.

LEITURA
Para compreendermos, por meio da literatura, a representação teatral que constrói a
nossa identidade, indicamos a leitura de PIRANDELLO, Luigi. Um, nenhum e cem mil. 4 ed.
São Paulo: Cosac Naify, 2015.

capítulo 5 • 82
Goffman (2002) nos mostra que as pessoas buscam, em seus encontros e in-
terações, conhecer o máximo possível sobre o outro, ou seja, o que denominou
de observação co-participante do encontro de interação. O objetivo dessa análise
é tentar prever as perspectivas do outro e, assim, determinar a melhor forma de
atuar na interação social, elegendo qual personagem de nossos repertórios utilizar
naquele momento. Dessa forma, ele afirma que o encontro é um fenômeno face a
face de indivíduos que procuram, por meio de uma atuação, a melhor maneira de
agir em uma dada circunstância.
Assim, Goffman (2004) argumenta que, nos encontros ou interações sociais,
quando o indivíduo se depara com um desconhecido, aquele irá observar elemen-
tos ligados à aparência e ao comportamento deste. Além disso, para Goffman, os
indivíduos também utilizam experiências passadas e estereótipos estabelecidos em
interações atuais. Contudo, se a pessoa com quem o indivíduo está interagindo for
conhecida, haverá uma tendência à persistência e à generalidade de determinados
traços interacionistas. Dessa forma, acredita-se que essa pessoa terá um comporta-
mento e uma conduta previsíveis.
No livro, o autor desenvolve dois conceitos centrais: o primeiro faz referência
à convicção no papel que executamos. A esse respeito, Goffman (2009) diz que
existem dois tipos de atores no encontro de interação. O primeiro seria o sincero,
aquele que acredita de fato na cena. E o outro seria o cínico, aquele que não acre-
dita nem se interessa no que o público crê, mas o engana por achar que pode estar
realizando um bem para o seu grupo. Goffman (2009) acreditava que poderia
haver ciclos de descrença e crença entre os personagens e que estes poderiam se
alternar, uma vez que ele parte do pressuposto de que somos marcados pela insta-
bilidade em nossos personagens.
Ainda sobre as formas de interagir e de se expressar do indivíduo, Goffman
(2009), argumenta que são de dois tipos. A primeira relacionada a símbolos ver-
bais e a uma comunicação mais tradicional, e a segunda fazendo referência a uma
interação em que não há intencionalidade e as ações dos indivíduos adquirem
mais espaço. Uma trata dos símbolos verbais que integram os discursos e que são
eleitos a partir da leitura feita do outro, de uma tentativa de prever as perspectivas
alheias. Realiza-se, assim, uma comunicação intencional. A outra é feita por meio
de gestos, olhares, postura. Elementos que podem não ser notados pelo próprio
indivíduo, mas são vistos pelos outros. Não há, nesta comunicação, símbolos ver-
bais nem intencionalidade.

capítulo 5 • 83
O que ele busca nos mostrar com tudo isso é que estamos a todo momento
estabelecendo nosso comportamento por meio de nossa atuação, ou seja, cons-
truímos nossa imagem que vem da resposta do outro – fala, discurso, expressão
(intencional ou não) – e forjamos a nossa resposta para essa interação. E, para
Goffman (2009), quanto maior for o cálculo dessa atuação, mais chance se tem
tanto de harmonia como de erro, pois há a possibilidade de, no “jogo”, na repre-
sentação, ambos crescerem e chegarem a uma situação de harmonia, mas também
o oposto, dado o nível de manipulação.
Assim é que retornamos ao nosso estudo sobre o Estigma. Uma vez que uma
pessoa considerada socialmente como estranha está diante de outra que se consi-
dere na normalidade hegemônica, surgem os signos de que aquela tem um atribu-
to que a torna diferente das outras que se encontram na categoria em que pudesse
ser incluída. Assim, o sujeito estigmatizado deixará de ser considerado como uma
pessoa total, reduzindo-se a uma pessoa estragada, restrita a uma única caracte-
rística que a diminui. Tal característica é o estigma. Especialmente quando o seu
efeito de descrédito é muito grande, algumas vezes ele também é considerado um
defeito, uma fraqueza, uma desvantagem e constitui uma discrepância específica
entre a identidade social virtual e a identidade social real. (Goffman, 2004)

CONCEITO
A Identidade Social Virtual, segundo Goffman, refere-se ao conjunto de atributos que
é exigido pelo grupo social a cada um dos indivíduos, para que estes possam pertencer ao
grupo normativamente constituído.
A Identidade Social Real se refere às características que de fato a pessoa tem e/ou
demonstra ter socialmente.

Para Goffman (2004), existem três tipos de Estigmas, que são nitidamente
diferentes.

1. As abominações do corpo
Aqui estão consideradas as várias deficiências físicas, que podem marcar a pes-
soa desde o seu primeiro contato visual ou que podem aparecer em determinado
momento a depender da visibilidade do local em que esteja a deficiência, assim
como da intimidade entre os interlocutores;

capítulo 5 • 84
2. Culpas de caráter individual
Estas, segundo o autor, são percebidas como “vontade fraca, paixões tirânicas
ou não naturais, crenças falsas e rígidas, desonestidade” (Goffman, 2004, p. 07).
Para estas, o autor traz exemplos como distúrbio mental, prisão, vício, alcoolis-
mo, homossexualismo (sic), desemprego, tentativas de suicídio, comportamento
político radical.

3. Estigmas tribais de raça, nação e religião


Nesta última classificação, Goffman traz o estigma para culturas diferentes da
ocidental e propõe que essas características, que para ele serão consideradas estig-
mas, seriam transmitidas por meio de linhagem.

REFLEXÃO
Atualizar a teoria dos Estigmas de Irving Goffman a partir dos Estudos
Culturais é de suma importância para que possamos continuar trabalhando com
o conceito construído pelo autor, porém de forma ética. Neste sentido, propomos
uma análise crítica a partir de trechos do livro Estigma: notas sobre a manipulação
da identidade deteriorada (Goffman, 1975) em diálogo com as postulações reali-
zadas pelos próprios grupos considerados por ele como estigmatizados, mas que
recusam sistematicamente a essencialidade da condição de inferioridade imposta a
eles. São grupos sociais considerados minoritários que constroem contra discursos
que vêm a contrapor essa essencialização do estigma.
Goffman (1975) nos propõe que existem três tipos de Estigmas que são niti-
damente diferentes e, a partir de agora, traremos ao texto alguns termos utilizados
pelo próprio autor para problematizá-los, com base nas construções dos grupos
considerados por ele como estigmatizados.

capítulo 5 • 85
1. “As abominações do corpo”
No termo utilizado pelo autor, estão incluídas as várias deficiências físicas,
que podem marcar a pessoa desde o seu primeiro contato visual ou que podem
aparecer em determinado momento a depender da visibilidade do local em que
esteja a deficiência;
Sobre deficiência: para os termos como “abominações no corpo”, temos
como resposta a Teoria Crip, que se propõe a problematizar, historicizar e questio-
nar a norma capacitista diante do corpo com deficiência.
Como exercício, propomos que podemos pensar, antes de conceber o cor-
po normativamente capacitado como normal e adaptado ao mundo, que o que
ocorre é que o mundo é adaptado a determinados corpos e construído a partir de
muitas técnicas que fazem com que estes corpos – e não outros – possam circular
pelos espaços livremente.
Assim, prestemos atenção ao texto de Cortázar (2001, p.11), que ele poderá
nos ajudar a compreender o aqui proposto:

Ninguém terá deixado de observar que frequentemente o chão se dobra de tal manei-
ra que uma parte sobe em ângulo reto com o plano do chão, e logo a parte seguinte
se coloca paralela a esse plano, para dar passagem a uma nova perpendicular, com-
portamento que se repete em espiral ou em linha quebrada até alturas extremamen-
te variáveis. (...) As escadas se sobem de frente, pois de costas ou de lado tornam-se
particularmente incômodas. A atitude natural consiste em manter-se em pé, os braços
dependurados sem esforço, a cabeça erguida, embora não tanto que os olhos deixem
de ver os degraus imediatamente superiores ao que se está pisando, a respiração lenta
e regular. Para subir uma escada começa-se por levantar aquela parte do corpo situada
em baixo à direita, quase sempre envolvida em couro ou camurça e que salvo algumas
exceções cabe exatamente no degrau. Colocando no primeiro degrau essa parte, que
para simplificar chamaremos pé, recolhe-se a parte correspondente do lado esquerdo
(também chamada pé, mas que não se deve confundir com o pé já mencionado), e le-
vando-a à altura do pé faz-se que ela continue até colocá-la no segundo degrau, com o
que neste descansará o pé, e no primeiro descansará o pé. (Os primeiros degraus são os
mais difíceis, até se adquirir a coordenação necessária. A coincidência de nomes entre
o pé e o pé torna difícil a explicação. Deve-se ter um cuidado especial em não levantar
ao mesmo tempo o pé e o pé).

Toda a técnica de subir escadas é desenvolvida para seres humanos que: te-
nham pés, movam os joelhos, movam a parte de baixo da cintura sem ajuda de
outros instrumentos, tenham olhos e visão – ainda que esta seja com ajuda de
instrumentos. Subir escadas em uma segunda-feira ordinária não deixa estes se-
res, que têm o biótipo adequado para tanto, perceberem que este gesto se tra-
ta de uma fundamental interdependência que vai desde as regras estabelecidas e

capítulo 5 • 86
interiorizadas de como subir degraus – mecanismo que nos causa estranhamento
ao ver o delinear de tais regras em um manual literário como o que Cortázar nos
apresenta – até a construção de escadas, que depende de um trabalho em conjunto
com regras matemáticas de engenharia civil, projetos e muito trabalho humano.
Portanto, corpos normativamente capacitados ou corpos com deficiência, de uma
forma ou de outra, estamos todos/as em relações de interdependência.

MULTIMÍDIA
Sobre o assunto, sugerimos o filme de Astra Taylor – A vida examinada (2008), em
especial a parte em que temos um diálogo e um caminhar em conjunto de Judith Butler e
Sunara Taylor.
TAYLOR, Astra. A vida examinada. País de Origem: Estado Unidos. Gênero: Documen-
tário, 2008.

De acordo com Anahí de Mello (2016), antropóloga, surda e grande refe-


rência da Teoria Crip no Brasil, essa perspectiva de estudos sobre a deficiência é
construída ao lado da Teoria Queer, esta que passaremos a nos referir agora.

Enquanto o principal axioma da teoria queer postula que a sociedade contemporânea é


regida pela heteronormatividade, na teoria crip sua máxima se sustenta pelo postulado
da corponormatividade de nossa estrutura social pouco sensível à diversidade corporal.
(Mello, 2016, p. 3266).

2. “Culpas de caráter individual”


Tais “culpas” segundo o autor são percebidas como “vontade fraca, paixões
tirânicas ou não naturais, crenças falsas e rígidas, desonestidade” (Goffman, 1975,
p. 07). Sobre tais, o autor traz exemplos como distúrbio mental, prisão vício,
alcoolismo, homossexualismo (sic), desemprego, tentativas de suicídio, compor-
tamento político radical.
Sobre a homossexualidade, apontamos a Teoria Queer, que pode ser considera-
da a pioneira na proposta de reivindicar a potência de uma identidade estigmati-
zada e questionar a hegemonia da heterossexualidade compulsória, ou seja, forjada
historicamente por meio de relações de poder. Sobre o assunto, sugerimos a leitura
do clássico Problemas de gênero, de Judith Butler. BUTLER, Judith. Problemas

capítulo 5 • 87
de gênero: feminismo e subversão da identidade. 5ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira. 2013.
Tanto a Teoria Queer (a tradução poderia ser Teoria Bicha/Sapatão) quanto
a Teoria Crip (cuja tradução seria Teoria Aleijada) assumem os termos que fo-
ram criados como insultos para reverter o estigma – para utilizar o conceito de
Goffman – em uma identidade coletivamente potente. É a utilização subversiva
do insulto aquela que pode transformá-lo.
Segundo Butler: “Não existe nenhuma forma de contestar esses tipos de gramáti-
cas a não ser habitá-las de maneiras que produzam nelas uma grande dissonância, que
digam exatamente aquilo que a própria gramática deveria impedir” (Butler, 2002 ,
p. 159).
Ou podemos citar Paul B. Preciado (2011, p.19-20):

Assim, por exemplo, sapatão deixa de ser um insulto pronunciado por sujeitos heteros-
sexuais para marcar as lésbicas ‘abjetas’, e converte-se posteriormente em uma deno-
minação contestatória e produtiva de um grupo de ‘corpos abjetos’ que pela primeira vez
tomam a palavra e reclamam a sua própria identidade.

COMENTÁRIO
O termo “homossexualismo” utilizado por Goffman é considerado ultrapassado e discri-
minatório, pois o sufixo “ismo” é aplicado para se referir às diversas patologias. Por isso, o
termo eticamente correto é “homossexualidade”. Isso porque há mais de vinte anos (desde
1993), a OMS Organização Mundial de Saúde, junto à 10º edição da Classificação Inter-
nacional de Doenças (CID 10) –, não considera homossexualidade como doença mental.
Segundo o DSM III – Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais publica-
do pela American Psychiatric Association –, a homossexualidade deixou de ser considerada
perversão e passou a ser designada como estilo de comportamento.

3. Estigmas tribais de raça, nação e religião


Nesta última classificação, Goffman traz o estigma para culturas diferentes da
ocidental e propõe que estas características, que para ele serão consideradas estig-
mas, seriam transmitidas por meio de linhagem.
Sobre as questões raciais e de gênero em sua interseccionalidade apontamos o
feminismo negro com Angela Davis em (DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe.

capítulo 5 • 88
São Paulo: Boitempo, 2016), que nos mostra como a experiência das mulheres e
de homens negros marcadas pela tragédia da escravidão foi responsável por estig-
matizar a desigualdade e subjugar de forma ainda mais violenta a mulher negra.
Portanto, o estigma, a que se refere Goffman, muito mais se refere às relações de
violência a que foi submetida uma raça por mais de trezentos anos que às relações
de estigmas descritas por Goffman ou, ao menos, não é possível tratar desses estig-
mas sem antes contextualizar a escravidão sistemática de uma raça.
É interessante, ainda, afirmarmos que não se trata aqui de desqualificar toda a
construção de Goffman sobre os Estigmas, mas, sim, de apontar uma importante
crítica para o movimento: em última instância, ele não deixa de trazer uma essên-
cia, uma universalidade para o estigma e para a normalidade. É importante que
seja levado em consideração, e sempre afirmado, o processo histórico e social que
faz com que determinados grupos sejam considerados normais, enquanto outros
sejam subjugados no lugar do Estigma.
Não é que não existam os Estigmas, muito bem conceituados por Goffman; é
que, compreendendo-os, não devemos reforçá-los, e sim historicizá-los.
Ao apresentarmos, neste capítulo, esses novos conceitos, que se conectam com
os Estigmas, artigos e obras que dialogam diretamente com Goffman, buscamos
ilustrar um quadro em que o conceito de Estigma, estabelecido por ele na década
de 1960, hoje já não é suficiente no campo das ciências sociais para esgotar a com-
preensão e as análises que envolvem estigmatização. Mais uma vez, destacamos
seu pioneirismo ao trabalhar o conceito a partir de uma perspectiva interacionista,
voltada para a abordagem da construção social e simbólica, mas, conforme dis-
semos, é preciso localizar espacialmente e temporalmente e, nesse sentido, hoje
existem críticas importantes a serem feitas à sua produção, bem como a elementos
que foram desconsiderados em suas análises, como a ideia de aprendizagem social,
desvio etc.

MULTIMÍDIA
Sobre o assunto também indicamos o documentário Janela da alma, que traz dezeno-
ve pessoas com diferentes graus de deficiência visual, da miopia discreta à cegueira total,
para falarem como se veem, como veem os outros e como percebem o mundo, junto à fala
de outras pessoas que já abordaram o tema na arte e literatura, como José Saramago e
Win Wenders.

capítulo 5 • 89
JARDIM, João. Janela da alma. País de Origem: Brasil. Gênero: Documentário. Ano de
Lançamento: 2001.

Figura 5.1 – Imagem retirada do Filme Janela da alma.

Estigma e Preconceito: a identidade deteriorada

Para Flávia SCHILLING e Sandra MIYASHIRO (2008, p. 248),

Estigma é marca ou cicatriz deixada por ferida; qualquer marca ou sinal; mancha infa-
mante e imoral na reputação de alguém; sinal infamante outrora aplicado, com ferro
em brasa nos ombros ou braços de criminosos, escravos etc.; aquilo que é considerado
indigno, desonroso; falta de lustre, brilho ou polimento; moral; desonra, descrédito, infâ-
mia, demérito, descrédito, deslustro, enxovalho, infâmia, labéu, mácula, nódoa, perdição,
perdimento, raiva, vergonha.

Estigmas, estereótipo, preconceito e discriminação: a identidade deteriorada

Conforme já estudamos, Goffman (1980) nos apresenta a identidade individual


e social em meio às interações sociais cotidianas, voltando a sua atenção à forma
como cada um representa o seu papel de acordo com a resposta esperada e apren-
dida nas relações com os outros. Ele aponta, ainda, que temos a nossa Identidade
Social Virtual, que se refere ao conjunto de atributos que é exigido pelo grupo social
a cada um dos indivíduos para que possam pertencer a ele, e temos a Identidade
Social Real, que se refere às características que de fato a pessoa tem e/ou demonstra
ter socialmente. O que faz um indivíduo se tornar desacreditado (Goffman, 1980)

capítulo 5 • 90
socialmente é o Estigma que afasta a Identidade Social Real da Identidade Social
Virtual considerada desejada. A deterioração da identidade é, portanto, esse afasta-
mento e a redução do sujeito à única característica que o estigmatiza.

CONCEITO
Segundo Goffman (1980), o indivíduo pode ser considerado Desacreditado, ou seja, é aquele
sujeito que carrega a evidência do Estigma, ou pode ser Desacreditável, que é aquele sujeito cuja
identidade real se aproxima da identidade virtual, que é aquela esperada social e normativamente.

Assim, ao longo deste texto, aprendemos que Goffman (1980), após com-
preender como formamos as nossas identidades nas relações com os outros, pro-
pôs-se estudar o desvio, especificamente no que se refere à identidade, sendo este
desvio pautado no Estigma e na deterioração dessa identidade. Para compreender-
mos de forma mais prática e no cotidiano como ocorrem as relações sociais que
atravessam os estigmas, traremos ao texto os conceitos de Estereótipo, Preconceito
e Discriminação.
O primeiro conceito que iremos abordar é o de Estereótipo. Estereótipo sig-
nifica atribuir e generalizar um valor negativo para os atributos de uma pessoa e/
ou um grupo e a partir dele determinar as posições de poder. Estereótipos envol-
vem generalizações de julgamentos subjetivos, comumente associados no Brasil
a questões de gênero, orientação sexual e regionalidade. Eles também abrangem
tentativas de “biologizar” as características de um grupo, ou seja, torná-las um
fator único da anatomia.
Essa tentativa de naturalização ou de “biologização” nas questões de gênero,
de orientação sexual e de raça marcou os debates das ciências sociais nos séculos
XIX e XX e foi responsável, dentre outras coisas, por restringir direitos civis e
políticos a negros, mulheres e homossexuais. Qual a relação do estereótipo com a
questão dos direitos dessas pessoas? Expliquemos.
Até o início do século XX, por exemplo, uma das justificativas para as mu-
lheres não exercerem o direito ao voto em muitos países foi o argumento de que
teríamos o cérebro menor e menos desenvolvido. Ou podemos trazer exemplos
ainda mais atuais. As restrições que homossexuais sofrem em diversos países, como
no Brasil, para adoção, para reconhecimento de união civil estável, para compra
de propriedade conjunta etc.

capítulo 5 • 91
Para compreendermos a relação entre preconceito e estereótipo, traremos a
seguinte passagem do artigo de José Leon Crochik (1996, p. 48):
O preconceito se caracteriza por um conteúdo específico dirigido ao seu obje-
to e por um determinado tipo de reação frente a ele, em geral, de estranhamento
ou de hostilidade. Ao conteúdo podemos chamar de estereótipo, cujo significado
inicial pode ser remetido à máquina de reproduzir tipos utilizada pela imprensa,
que deve, portanto, reproduzir fielmente as letras, mas que passou a ganhar o sen-
tido também daquilo que é fixo, imutável. No caso do preconceito, é neste último
sentido que ele deve ser entendido.
Portanto, o preconceito é essa reação de estranhamento e hostilidade dirigida
a uma pessoa que tenha algum estigma que leve ao estereótipo. A discriminação,
ainda, trará a especificidade de uma atitude de retirada de direitos em meio a esse
contexto, conforme vimos tratar-se da situação das mulheres, das pessoas negras e
homossexuais no Brasil historicamente.
E, quando falamos de Brasil, etnocentrismo, estereótipo e preconceito se
fundem quando se trata de questões relacionadas aos negros e negras de nosso
país e suas tradições. Por exemplo, o sacrifício animal, que para algumas crenças
afro-brasileiras representa uma forma específica de contato com o divino, com os
deuses – nesses casos, os orixás –, no ritual de oferenda, é considerado por muitos
sinônimo de barbárie, ainda que a alimentação carnívora jamais seja questionada.
As religiões de matriz africana, como o candomblé e umbanda, tem suas práticas
classificadas como erradas” e “bárbaras” ou como “feitiçaria” a partir de uma visão
etnocêntrica que reconhece como “certa” apenas as práticas religiosas de determi-
nadas crenças.
Além disso, essas práticas sofrem preconceito por terem relação com a história
dos negros e negras de nossa sociedade, grupos historicamente marginalizados e
perseguidos pelo cristianismo europeu. O fato é que ainda hoje o preconceito re-
lativo às práticas religiosas afro-brasileiras está profundamente arraigado em nossa
sociedade e tem gerado casos graves de ataques a terreiros e a seus líderes.

MULTIMÍDIA
Terreiros: entre a intolerância religiosa e a resistência diária. No mês da Consciên-
cia Negra, o Brasil de Fato lança uma série de vídeos sobre a história e desafios do povo
preto. Por Jéssica Moreira e José Eduardo Bernardes.

capítulo 5 • 92
Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2018/11/14/terreiros-entre-a-into-
lerancia-religiosa-e-a-resistencia-diaria/>.
Disponível em: <http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/06/menina-vitima-
-de-intolerancia-religiosa-diz-que-vai-ser-dificil-esquecer-pedrada.html>.

ATIVIDADE

Figura 5.2 – Imagem retirada do filme Em nome de Deus (2001).

MULLAN, Peter. Em nome de Deus. País de Origem: Irlanda. Gênero: Drama. Ano de
Lançamento: 2001.

A atividade a ser feita será dividida em três etapas.


A primeira será assistir ao filme irlandês Em nome de Deus (2002), cujo nome original é
The Magdale Sisters ou “As Irmãs Madalenas”, cujo estigma se revela logo no título em refe-
rência ao gênero feminino no que tange à passagem bíblica de Maria Madalena.
A segunda etapa será a leitura do artigo Goffman e os conventos: uma análise do filme
"As irmãs de Madalena, de Marina Grandi Giongo (2017), cujo resumo é:
A análise proposta recai sobre o filme "As irmãs de Madalena" e tem por objetivo pensar
a condição feminina ao longo do século XX à luz das obras de Erving Goffman. O estigma que
recai sobre as mulheres mantidas em cárcere privado nas instituições totais chamadas "Lares
Madalena" é um caso emblemático do que se convencionou chamar processos de "mortificação

capítulo 5 • 93
do eu" trabalhadas pelo autor. À guisa de conclusão, é possível perceber que, no interior dos me-
canismos dessa instituição religiosa, existe um perverso jogo de poder entre mulheres exploradas
e toda uma sociedade que trata essa situação como fruto de uma suposta doutrina espiritual.
Por fim, a terceira etapa será a de escrever uma resenha crítica do filme em relação dire-
ta com o artigo e os conceitos estudados neste capítulo do nosso livro didático.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 5 ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2013.
CASAES. Nilton Rêgo Raimundo. Suporte social e vivência de Estigma: um estudo entre pessoas
com HIV/AIDS. (Dissertação mestrado). Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Federal da Bahia, Salvador.
CROICHIK, José Leon. Preconceito, indivíduo e sociedade. Temas em Psicologia. nº3, 1996
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016
GOFFMAN, Irving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 1980.
___. A representação do eu na vida cotidiana. 10 ed. Petrópolis: Vozes, 2002.
GIGONDO, Marina Grandi. Goffman e os conventos: uma análise do filme “As Irmãs Madalenas”.
Revista Café com Sociologia. v. 6, n. 2, 2017.
JARDIM, João. Janela da alma. País de origem: Brasil. Gênero: Documentário. Ano de Lançamento:
2001.
MELLO, Anahí Guedes. De ciência, incapacidade e vulnerabilidade: do capacitismo ou a preeminência
capacitista e biomédica do Comitê de Ética em Pesquisa da UFSC. Ciência & Saúde Coletiva,
21(10):3265-3276, 2016.
MULLAN, Peter. Em nome de Deus. País de origem: Irlanda. Gênero: Drama. Ano de Lançamento:
2001.
PIRANDELLO, Luigi. Um, nenhum e cem mil. 4 ed. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
SCHILLING, Flavia; MIYASHIRO, Sandra. Como incluir? O debate sobre o preconceito e o estigma na
atualidade. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 34, n. 2, p. 243-254, maio/ago. 2008.

capítulo 5 • 94
ANOTAÇÕES

capítulo 5 • 95
ANOTAÇÕES

capítulo 5 • 96

Você também pode gostar