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CASAMENTO REALIZADO EM TERREIRO DE

CANDOMBLÉ

Joelma Boaventura da Silva Bomfim1

RESUMO

O presente artigo discute o reconhecimento dos efeitos civis do casamento realizado em cerimônias de
Umbanda e Candomblé como manifestação de cumprimento constitucional do respeito à crença.
Alguns institutos serão tratados, tais como, casamento e religião, visando ao aprofundamento da
temática. O desenvolvimento do tema permite a interface das áreas jurídica e antropológica.

Palavras-chave: Casamento. Lei de Registros Públicos. Religião. Constituição Federal. Candomblé.


Umbanda.

ABSTRACT

This article discusses the recognition of civil effects of marriage performed in Umbanda and
Candomblé ceremonies as a manifestation of constitutional fulfillment of respect to belief. Some
institutes will be processed, such as marriage and religion, aimed at deepening the subject. The
development of the subject allows the interface between the legal and anthropological areas.

Keywords: Marriage. Public Records Act. Religion. Federal Constitution. Candomblé. Umbanda.

1
Graduada em Direito. Especialista em Metodologia do Ensino, Pesquisa e Extensão. Advogada, Professora Universitária junto a UNEB/
Campus VIII – Paulo Afonso - Bahia. Contatos: jbomfim@uneb.br; jbomfim.adv@gmail.com
171 Casamento realizado em terreiro de Candomblé

INTRODUÇÃO constitucional pelo artigo 226 e seus incisos 3.


Apresenta-se a seguir breve conceituação do
A temática aqui discutida discorrerá instituto casamento, tendo por base Lobo
sobre os requisitos habilitatórios do (2009), que assim preleciona:
casamento, em especial no que se refere ao
O casamento é um ato jurídico
casamento religioso com efeito civil. As negocial solene, público e complexo,
religiões Candomblé e Umbanda serão mediante o qual um homem e uma
mulher constituem família, pela livre
abordadas em conjunto quanto ao manifestação de vontade e pelo
reconhecimento do Estado (p. 76,
reconhecimento das celebrações realizadas em grifo nosso).
suas casas/terreiros para fins de casamento
Merece o destaque da citação acima,
civil. Faz-se necessário construir todo um
quanto ao reconhecimento do casamento pelo
arcabouço conceitual relacionado ao
Estado, tendo em vista que nossa temática
casamento e a religião, bem como recorrer à
discutirá a necessidade desse reconhecimento
fonte do Instituto Brasileiro de Geografia e
nas celebrações matrimoniais advindas de
Estatística – IBGE, com dados censitários.
religiões como Candomblé e Umbanda. Nesse
O caráter procedimental do casamento
diapasão cita-se, também, Gonçalves (2007)
será tratado com base no Código Civil
com o conceito de casamento, o qual assim
Brasileiro e Lei de Registros Públicos. A base
dispõe:
constitucional tanto para a liberdade de crença
e suas expressões, bem como, o
Casamento é a união legal entre um
reconhecimento do casamento como formação homem e uma mulher, com o objetivo
de constituírem a família legítima.
da família, será trazido à baila neste trabalho. “Reconhece-se-lhe o efeito de
A fundamentação teórica faz-se com autores estabelecer” comunhão plena de vida,
com base na igualdade de direitos e
civilistas de renome como Diniz (2007), Lobo deveres dos cônjuges (p.09, grifo
nosso).
(2009) e Gonçalves (2007), enquanto que a
discussão constitucional e religiosa baseia-se Observa-se que a conceituação trazida
em Abbagnano (1982), Ribeiro (1996), por Gonçalves (Ibidem) também trata do
Scherkerkewitz (2011), Silva (1989), Vergê reconhecimento do casamento, mais
(2009) e Dallari (1989). especificamente quanto ao efeito deste para
A apresentação de um julgado atual estabelecer comunhão plena de vida entre os
envolvendo a temática será um recurso cônjuges. Por derradeiro, traz-se a
empregado para favorecer a compreensão do conceituação de Diniz (2007) para melhor
tema. esclarecer a temática:

1. SOBRE CASAMENTO O casamento é o vínculo jurídico


entre o homem e a mulher que visa o
O casamento é um instituto jurídico auxílio mútuo material e espiritual, de
civil com disciplinamento disposto no Código modo que haja uma integração
fisiopsíquica e a constituição de uma
Civil Brasileiro de 2002 (CCB/02) e na Lei de família (p.38, grifo nosso).

Registros Públicos2, além de ter status

3
A família é a base da sociedade e tem especial proteção do
Estado.§ 1º O casamento é civil e gratuito a celebração. §2º O
2
Lei nº 6.015/ 73. casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.

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Vale ressaltar o caráter vinculatório do Pela Constituição da República Federativa do


casamento na esfera jurídica, logo, inferindo-se Brasil de 1988 (CRFB/88), artigo 226, § 1º7, o
ainda o controle do Estado4 sobre as casamento é civil com celebração gratuita. Já o
manifestações de vontade das pessoas. Por ter casamento religioso aparece no § 2º deste
um caráter de vínculo jurídico, necessário faz- mesmo artigo, ressalvando-se que essa
se cumprir algumas formalidades como modalidade de casamento terá efeito civil, nos
habilitação e celebração. termos da lei.
A primeira dessas formalidades, Faz-se necessária uma breve digressão
habilitação, é preliminar e desenvolve-se sobre os casamentos civis e religiosos no Brasil
perante o oficial do registro civil conforme para melhor entendimento da temática
preceitua o artigo 15265 do Código Civil inaugurando assim mais um item deste artigo.
Brasileiro (CCB). Segundo Gonçalves (2007,
p.03), “destina-se a constatar a capacidade 2. BREVE HISTÓRICO DOS
para o casamento, a inexistência de CASAMENTOS CIVIL E RELIGIOSO
impedimentos matrimoniais e dar publicidade
à pretensão dos nubentes”. Sendo assim, o De início, o casamento no Brasil era
Estado, através do Ofício de Registro, regulado pela Igreja Católica de forma titular
regulamenta preliminarmente o casamento, quase absoluta conforme relata Diniz (2007)
pois é expedido o certificado de habilitação, o que:
qual “é documento indispensável para que haja
celebração civil ou religiosa do casamento” [...] a Igreja Católica foi titular quase
que absoluta dos direitos
(LOBO, 2009, p.91). matrimoniais; pelo decreto de 3 de
A segunda formalidade referente ao novembro de 1827 os princípios do
direito canônico regiam todo e
casamento é a celebração, que pode ser qualquer ato nupcial, com base nas
disposições do Concílio Tridentino e
definida com ato formal, solene e público. Por da Constituição do arcebispado da
ser ato, é manifestação expressa clara, livre e Bahia (p. 52-53, grifo nosso)

consciente dos nubentes não isentando a Como bem se percebe da transcrição, o


autoridade competente de manifestação casamento era regido pelo direito canônico, ou
conforme artigos 1533 e 1535 CCB6. seja, o Estado até a metade do século XIX
Pode-se classificar o casamento quanto estava em segundo plano na celebração do
à celebração e seus efeitos, em civil e religioso. casamento. Cabe ainda destacar que a Igreja
Católica tinha a titularidade dos direitos
4
Estado deve ser aqui entendido conforme conceitua Dalmo de
Abreu Dallari como sendo "organização jurídica soberana que
matrimoniais. Essa situação muda ainda no
tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado século XIX, a partir de 1863, com o advento da
território”. DALLARI, Dalmo de Abreu in "Elementos de teoria
geral do Estado". São Paulo, Saraiva, 1989.
5
Lei nº 1.144, quando se encaminhou a
Art. 1526 CCB. A habilitação será feita pessoalmente perante o
oficial do registro Civil, com a audiência do Ministério Público. institucionalização do casamento civil. Tal
6
Art. 1533 CCB. Celebrar-se-á o casamento, no dia, hora e lugar
previamente designados pela autoridade que houver de presidir o mudança adveio em decorrência do processo
ato, mediante petição dos contraentes, que se mostrem
habilitados com a certidão do art. 1531.
Art. 1535 CCB. Presentes os contraentes, em pessoa ou por
procurador especial, juntamente com as testemunhas e o oficial
do registro, o presidente do ato, ouvida aos nubentes a afirmação
7
de que pretendem casar por livre e espontânea vontade, declarará Art.226 CRFB/88 A família, base da sociedade, tem especial
efetuado o casamento, nestes termos: “de acordo com a vontade proteção do Estado. § 1º o casamento é civil e gratuita a
que ambos acabais de afirmar perante mim, de vos receberdes celebração. § 2º o casamento religioso tem efeito civil, nos
por marido e mulher, eu, em nome da lei, vos declaro casados”. termos da lei.

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imigratório8 que introduziu novas crenças no qualquer cerimônia religiosa com efeito de
país e, então, na perspectiva do legislador da casamento. A ideia separatista entre
época era necessário ou prudente casamento civil e religioso continuou através
regulamentar os casamentos entre pessoas não da Constituição Federal de 1891, no artigo 72 §
católicas ou ainda entre pessoa católica e não 4º, assim escrito: “A República só reconhece o
católica. A contribuição de Diniz (Ibidem) para casamento civil, cuja celebração será gratuita”.
aclarar essa informação é crucial quando narra É plausível concordar com Diniz
que, (2007) 10, quanto ao fato de que, o casamento
religioso passou a constituir apenas
Com a imigração, novas crenças consciência individual de cada um e de
foram introduzidas em nosso país.
Assim, em 19 de julho de 1858, Diogo ocorrência paralela ao civil. Como forma de
de Vasconcelos, Ministro da Justiça, arremate deste item podemos citar LOBO
apresentou um projeto de lei, com o
objetivo de estabelecer que os (2009, p.77): “O casamento é civil, ainda que a
casamentos entre pessoas não
católicas fossem realizados de celebração seja religiosa, pois desde a
conformidade com as prescrições de Proclamação da República foi secularizado ou
sua respectiva religião. Esse projeto,
em 1863, transformou-se na Lei n. laicizado, subtraindo-se da religião oficial a
1144, regulamentada pelo decreto de
17 de abril de 1863, dando um grande competência para regulá-lo”.
impulso à instituição do casamento A Constituição Cidadã estatuiu o
(p. 53).
casamento civil e deu ao casamento religioso
O processo de institucionalização do
efeitos civis, nos termos da lei conforme artigo
casamento civil prosseguiu durante o século
226 §§ 1º e 2º, já citados neste trabalho. Cabe
XIX como bem descreve Diniz (Ibidem) ao
salientar que o disciplinamento do casamento
tratar do advento da República Brasileira e da
presente na lei 6.015 de 1973 está hoje
perda do caráter confessional do casamento,
absorvido pelo Código Civil de 2002, nos
artigos 1515 e 151611. Não há porque pensar em
Com o advento da República, o poder
temporal foi separado do poder
espiritual, e o casamento veio a nos Estados Unidos do Brasil, constituiria, perante a lei civil,
perder seu caráter confessional; com vínculo conjugal ou impedimento para livremente casarem com
o Decreto n. 181 de 24 de janeiro de outra pessoa os que houverem daquela data em diante recebido
1890, que instituiu o casamento civil esse ou outro sacramento, enquanto não fosse celebrado o
em nosso país, no seu art. 108, não casamento civil”. DINIZ, 2007, p. 53.
10
... constituindo o religioso apenas um interesse da consciência
mais era atribuído qualquer valor individual de cada um. Deu-se, então, a generalização do
jurídico ao matrimonio religioso casamento civil, celebrado paralelamente ao religioso, hábito
(p.53, grifo nosso). social que perdura até hoje. DINIZ, 2007. Pag. 53
11
Art 1515. O casamento religioso, que atender as
É perceptível, pelo esclarecimento de exigências da lei para a validade do casamento civil,
equipara-se a este, desde que registrado no registro
Diniz, a inversão do status do casamento próprio, produzindo efeitos a partir da data de se
celebração.
religioso, antes amplamente admitido, depois
Na conformidade deste artigo e do artigo seguinte, o casamento
rechaçado, havendo inclusive circular do religioso, para que gere efeitos civis, deve seguir as mesmas
formalidades do casamento civil, tendo iguais impedimentos.
Ministério da Justiça9 descredenciando Desse modo, o casamento religioso que não atende ao disposto
nestes artigos configura-se juridicamente como união estável
(ais. 1.723 a 1.727) (v. Maria Helena Diniz, Curso de direito
8
O processo imigratório no Brasil do século XIX, diz respeito a civil brasileim, 16. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, v. 5, p. 46-9).
imigração para povoamento do Sul do Brasil, iniciada em 1824 Art. 1516. O registro do casamento religioso submete-se
com os alemães, seguida em 1875 pelos italianos, como fonte de aos mesmos requisitos exigidos para o casamento civil.
mão-de-obra substituta a mão-de-obra escrava. Percebe-se que * 1o O registro civil do casamento religioso deverá ser
nesse contexto imigratório, o africano (negro) não está incluído. promovido dentro de noventa dias de sua realização, mediante
9
Circular do Ministério da Justiça, de 11 de junho de 1890, comunicação do celebrante ao oficio competente, ou por
chegou até a determinar que “nenhuma solenidade religiosa, iniciativa de qualquer interessado, desde que haja sido
ainda que sob a forma de sacramento do matrimônio, celebrada homologada previamente a habilitação regulada neste Código.

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duas formas de casamento, pois o que existe é de análise, pode-se valer do pensamento de
o casamento civil, e se a celebração ocorrer em Abbagnano (Ibidem, p.813) quando define
espaço religioso, este poderá ser reconhecido religião enquanto: “A crença numa garantia
por seus efeitos civis. É preciso esclarecimento sobrenatural oferecida ao homem para sua
de Lobo (2009), quando diz que: salvação; e as técnicas orientadas para obter e
conservar esta garantia. Observe-se que este
Não há, conseqüentemente, autor debruça-se sobre as técnicas da religião,
casamento religioso ao lado do
casamento civil, mas efeitos civis da assim como fez Santo Agostinho.
celebração religiosa do casamento, De maneira didática far-se-á breve
conferindo-se ao ministro de
confissão religiosa a autoridade para exposição sobre a garantia pela qual a Religião
realizá-la, equiparada ao do juiz de
direito (p.80). apela, sendo a primeira em essência
sobrenatural e impondo aos homens uma
3. DA RELIGIÃO relação implicada em poderes, como bem se
percebe sobre o que pontua Abbagnano
Para inaugurar esse tópico, necessário (Ibidem, p.813): “A garantia, para a qual a
faz-se conceituar etimologicamente religião religião apela, é sobrenatural, no sentido de
enquanto “obrigação” e relegare, sendo este que se situa além dos limites aos quais podem
último termo indicado por Cícero 12 na chegar os poderes reconhecidos como próprios
configuração de “Aqueles que cumpriam do homem”.
cuidadosamente com todos os atos do culto Ultrapassada a explicação didática da
divino e por assim dizer os reliam atentamente garantia na religião, cabe aprofundar-se sobre
foram chamados de religiosos do relegare” as técnicas da religião, pois esta análise leva ao
(ABBAGNANO, 1982, p.814). enriquecimento do tema, esclarecendo que
Na busca por conceituação do termo através das técnicas permite-se a obtenção ou
religião, tem-se ainda auxílio em Santo conservação da garantia religiosa, ou seja,
Agostinho, que a definia enquanto a estas duas características (garantia e técnica)
correspondência entre religio e Threspéia13, ou estão imbricadas. O próprio Abbagnano
seja, as técnicas da religião. Nessa perspectiva (Ibidem, p.814) elucida que: “convém
sublinhar a diferença entre a crença na
Após o referido prazo, o registro dependerá de nova habilitação.
§ 2o O casamento religioso, celebrado sem as formalidades garantia sobrenatural e as técnicas que
exigidas neste Código, terá efeitos civis se, a requerimento do
casal, for registrado, a qualquer tempo, no registro civil, permitem obter ou conservar tal garantia”.
mediante prévia habilitação perante a autoridade competente e
observado o prazo do artigo 1.532. Analisar a técnica na religião é crucial
§ 3o Será nulo o registro civil do casamento religioso se, antes
dele, qualquer dos consorciados houver contraído com outrem
dentro da temática do casamento, pois as
casamento civil.
12 técnicas podem ser entendidas como: “todos os
Marco Túlio Cícero foi adversário perseguido pelo imperador
Júlio Cesar (106 a 43 a.C). Foi senador proeminente da política atos ou as práticas do culto: oração, sacrifício,
romana. Obrigado a deixar a vida política, recolheu-se à vida
privada e retomou a meditação filosófica por volta de 51 a.C. seu ritual, cerimônia ou serviço divino.”
conjunto de obras contempla: Sobre os Fins; A natureza dos
Deuses; O Orador; A República e Sobre as leis. Articulou-se em (ABBAGNANO, Ibidem, p.814). Utilizaremos a
torno de idéias que fundamentam a vida moral e social,
principalmente da existência de Deus e sua providencia. (Os expressão cerimônia enquanto sinônima de
Pensadores. Epicuro, Lucrécio, Cícero, Sênega. São Paulo: Nova
Cultura, 1988). celebração. Sendo assim, o casamento compõe-
13
Conforme página 814 de ABBAGNANO, Nicola. Dicionário
de Filosofia. 2ª Ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982.
se em uma de suas etapas, de
celebração/cerimônia, a qual é uma das

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técnicas da religião para conservar a garantia especificamente no inciso VIII15, há menção a


sobrenatural da religião, configurando-se crença religiosa, novamente, e desta vez
assim seu lado objetivo e público, logo, atrelada à proibição de privar alguém de
essencialmente institucional, como bem direitos por motivos de crença religiosa.
esclarece Abbagnano (Ibidem, p.814): “uma Percebe-se que o legislador buscar evitar
religião positiva é constituída essencialmente preconceitos ou atitudes discriminatórias
por estas técnicas”. negativas em razão da escolha religiosa ou de
A este ponto da discussão cabe crença.
perguntar: Seria a religião sinônimo de crença? A discussão sobre religião esbarra no
A resposta requer uma reflexão filosófica, a conceito de liberdade, pois é impossível tratar
qual se baseia com serenidade em Abbagnano das técnicas da religião sem ressaltar a
(Ibidem), quando explica que: necessidade de liberdade para sua expressão.
Nesse sentido, a contribuição de
Analogicamente, não tem Scherkerkewitz16 (2011) faz-se importante
necessariamente um alcance religioso,
não é necessariamente crença a quando distingue três formas de liberdade
verdade revelada, isto é, fé; mas por relacionadas à religião no Brasil, a saber: a
outro lado também não exclui essa
determinação e nesse sentido se pode liberdade de crença; a liberdade de culto; e a
dizer que uma crença, pode pertencer
ao domínio da fé (p.202, grifo nosso). liberdade de organização religiosa. Sendo
assim, a primeira forma de liberdade religiosa
A fé encontra destaque por representar
implicaria na
o aspecto sobrenatural da garantia religiosa,
anteriormente esboçado. Tendo a crença
[...] liberdade de escolha da religião, a
alcance religioso ou não, o legislador liberdade de aderir a qualquer seita
religiosa, a liberdade (ou o direito) de
constitucional fugiu a essa dicotomia e mudar de religião, mas também
protegeu a liberdade de crença de forma compreende a liberdade de não aderir
a religião alguma, assim como a
inequívoca conforme se apreende do texto liberdade de descrença, a liberdade de
ser ateu e de exprimir o agnosticismo
constitucional de 1988, no artigo 5º, inciso (SILVA, 1989, p. 221).
VI14, o qual abre um grande espectro de
Pode-se dizer até que essa seria a
abordagem, pois contempla não só a liberdade
forma mais ampla de liberdade religiosa, pois
de crença, como também assegura o livre culto
contempla inclusive a descrença no
religioso. Enfatiza-se que um dos atos ou
sobrenatural, bem como, impede que o
expressão da técnica religiosa é o culto.
indivíduo descrente seja obrigado a participar
Outra ênfase que se deve dar é sobre a
de práticas religiosas, o que desembocaria em
expressão “culto religioso”. Entende-se por
afronta de direitos. Já a segunda forma de
essa última expressão que o legislador não quis
liberdade religiosa é mais restritiva, pois incide
deixar nenhuma dúvida sobre a extensão da
sobre “A liberdade de culto e na liberdade de
proteção constitucional, incluindo a
espacialidade dos cultos. Ainda no artigo 5º da 15
CRFB. Artigo 5º, VIII: ninguém será privado de direitos por
motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou
Constituição Federal de 88, mais políticas [...]
16
Procurador do Estado de São Paulo, Mestre e doutorando em
Direito pela PUC/SP e Professor Universitário em seu texto
14
CRFB. Artigo 5º VI: é inviolável a liberdade de consciência e intitulado:O Direito de Religião no Brasil.
de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos www.pge.sp.gov.br/centrode
religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de estudos/revistaspge/revista2/artigo5.htm. Acesso em 20 de
culto e a suas liturgias. janeiro de 2011.

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orar e de praticar os atos próprios das na Bahia, como se pode inferir da citação
manifestações exteriores em casa ou em transcrita,
público, bem como a de recebimento de
A palavra Candomblé, que designa na
contribuições para tanto” (SILVA, Ibidem, Bahia as religiões africanas em geral,
p.221). Por fim, sucintamente, a terceira forma é de origem bantu. É provável que as
influências das religiões vindas de
de liberdade religiosa aplica-se à “liberdade de regiões da África situadas nas
imediações do quadro não se limitem
organização religiosa”, que diz respeito à apenas ao nome das cerimônias, mas
possibilidade de estabelecimento e organização tenham dado aos cultos gêge e nagô,
na Bahia, uma forma que os
de igrejas e suas relações com o Estado.” diferencia, em certos pontos, dessas
mesmas manifestações na África.
(Idem, ibidem, p.221). (p.21)
É preciso entender que a liberdade
Na definição proposta por Ribeiro
religiosa não faz acepção a grupos religiosos e
(1996) o Candomblé é definido enquanto
que os direitos decorrentes desta liberdade
“denominação originária do termo
devem ser aplicáveis a todas as formas de
kandombile, cujo significado é culto e oração,
religião sobre o solo brasileiro. Na sequência
constitui um modelo de religião que congrega
deste trabalho, far-se-á a análise de duas
sobrevivências étnicas da África e que
religiões brasileiras seculares, as quais, muitas
encontrou no Brasil, campo fértil para sua
vezes sofreram discriminação negativa, como
disseminação e reinterpretação” (LODY 1987
por exemplo, a elaboração da Lei n. 3.895, de
apud RIBEIRO, 1996, p.10). Ambas definições
22 de março de 1977, a qual determinava que o
têm em comum a ligação com a África e a
funcionamento dos cultos de Candomblé e
existência de cultos.
Umbanda fosse comunicado regularmente à
É perceptível, a partir dessa definição,
Secretaria de Segurança Pública, através do
que o Candomblé é uma religião de matiz
órgão competente a que sejam filiados,
africana com acolhimento em território
comprovando-se o atendimento de condições
brasileiro, restando, no entanto, salientar que
preliminares. É perceptível a discriminação
esse acolhimento em nada se deu de forma
negativa devido ao fato de haver controle sobre
pacífica, tendo em vista que havia desde o
religião e ainda controle policialesco, pois
período de Colonização Brasileira 17 uma
dependeria da comunicação atualizada
religião oficial e hegemônica, a saber, a religião
anualmente à Secretaria de Segurança Pública.
católica. A existência de uma religião
A discriminação incide no fato de tal
dominante no Brasil de outrora certamente
exigência ser feita a apenas uma modalidade
gerou problemas de tolerância religiosa para
religiosa. O texto constitucional de 1988
com outras matrizes religiosa e credos, como
revogou tacitamente tal disciplinamento, pois
foi bem documentado por Vergê (2009),
propugna pela liberdade religiosa.

Não se sabe com precisão a data de


3.1 DO CAMBOMBLÉ todos esses acontecimentos, pois, no
início do século XIX, a religião
católica era ainda a única autorizada.
Na compreensão de Vergê (2009), o As reuniões de protestantes eram

termo Candomblé tem uma definição peculiar 17


Entende-se o período de Colonização Brasileira desde 1530,
quando ocorreu a fixação de portugueses no solo brasileiro até a
instalação do Império em 1808 com a Vinda da Família Real
para o Brasil.

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toleradas só para os estrangeiros; o efetuadas com o objetivo de prevenir


islamismo, que provocara uma série possível levantes de africanos,
de revoltas de escravos entre 1808 e escravos ou livres, na cidade ou nas
1835, era formalmente proibido e redondezas, recolhido atabaques,
perseguido com extremo rigor; os espanta-moscas e outros objetos que
cultos aos deuses africanos eram pareciam mais adequados ao
ignorados e passavam por práticas Candomblé do que a uma sangrenta
supersticiosas. Tais cultos tinham um revolução. Nina Rodrigues refere-se a
caráter clandestino e as pessoas que certo quilombo, existente nas matas
neles tomavam parte eram de Urubu, em Pirajé, o qual se
perseguidas pelas autoridades (p.19, mantinha com o auxílio de uma casa
grifo nosso). de fetiche da vizinha, chamada a Casa
do Candomblé (p. 19).
Observa-se que os cultos aos deuses
Não seria exagero admitir que até hoje,
africanos, logo, o Candomblé, eram
no Estado laico brasileiro, ainda existe uma
considerados como práticas supersticiosas e
predominância do catolicismo de cunho
por vezes ignorados. No entanto, cabe uma
administrativo-estatal, como bem salienta
relativização a essa ignorância ao culto
Scherkerkewitz (2011) “Como é possível se
africano, pois o próprio Vergê (Ibidem) relata
falar que não existe uma religião oficial quando
perseguição das autoridades aos mesmos em
ao abrir-se qualquer folhinha nota-se a
mais de uma passagem de seu livro,
existência de feriados oficiais de caráter
religioso. E mais, de caráter santo para apenas
Um artigo do Jornal da Bahia, de 3 de
maio de 1855, faz alusão a uma uma religião”. (Scherkerkewitz, Ibidem, p. 6).
reunião na casa Ilê Iyanassô: foram
presos e colocados à disposição da Para que não reste nenhuma dúvida sobre a
policia Cristóvão Francisco Tavares, classificação religiosa do Candomblé,
africano emancipado, Maria Salomé,
Joana Francisco, Leopoldina Maria da acostamos a tabela 1.1.2 do Instituto Brasileiro
Conceição, Escolástica Maria da
Conceição, crioulos livres; os escravos de Geografia e Estatística – IBGE,
Rodolfo Araújo Sá Barreto, mulato; correspondente ao Censo 2000, como anexo, e
Melônio, crioulo, e as africanas Maria
Tereza, Benedita, Silvana... Que destacamos desta tabela a inclusão do
estavam no local chamado Engenho
Velho, numa reunião que chamava de Candomblé como religião com o total de
Candomblé. É curioso encontrar 125.548 adeptos, percebendo-se que o maior
nesse documento o nome, pouco
comum, de Escolástica Maria da percentual de adeptos está na zona urbana,
Conceição, o mesmo com o qual
seriam batizados, trinta e cinco anos com o número de 123.214. Reforçando esse
mais tarde, Dona menininha, a caráter urbano do Candomblé, encontramos
famosa mãe-de-santo do Gantois,
cujos pais, a essa época, sem dúvida, em Vergê (2009) referências suficientes para
freqüentavam ou faziam parte do
terreiro de Ilê Iyanassô, onde houve afirmar que esta religião tem expansão na
essa ação policial (p. 19, grifo nosso). cidade, como então se vê:
Para que não se torne exaustiva a
explanação histórica sobre a intolerância e Na Bahia, no início do século (XX), os
terreiros dedicados ao culto dos
represália a religião do Candomblé, orixás eram freqüentemente
instalados longe do centro da cidade.
informamos por último, que segundo Vergê Com o crescimento da população e a
(Ibidem), em passado recente, ou seja, no extensão tomada pelos novos bairros,
eles progressivamente encontravam-
século XIX, se incluídos na zona urbana. Esses
terreiros são geralmente compostos
de uma construção, denominado
barracão, com grande sala para as
Por volta de 1826, a polícia da Bahia danças e cerimoniais públicas, de uma
havia, no decorrer de buscar série de casas, onde são instalados os

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178 Joelma Boaventura da Silva Bonfim

¨pejís¨, consagrados aos diversos corroborada pelo trecho a seguir, Ribeiro


orixás, e de casas destinadas à
residência das pessoas que fazem (1996),
parte do Candomblé (p.35).

Se Candomblé tem esse perfil urbano e Os laços de parentesco determinados


por vínculo consangüíneo ou por
abriga um número tão significativo de adeptos, casamento constituem uma das
maiores forças na vida tradicional
como negar a um contingente religioso tão africana e controlam as relações entre
expressivo o direito de casar e ter a celebração as pessoas da comunidade,
determinando o comportamento de
deste instituto reconhecido pelo Estado? cada indivíduo em relação aos
demais. (p.34)
Cabe neste momento discorrer sobre a
cerimônia do casamento dentro do
3.2 DA UMBANDA
Candomblé, já que não restam dúvidas de que,
enquanto religião, cultos e cerimônias são lhes
O surgimento da Umbanda está
inerentes. Uma vez que o Candomblé está
associado ao surgimento do Candomblé. Estas
diretamente ligado ao culto dos orixás, estes,
duas religiões, além de terem a matiz africana
então, são consultados sobre atitudes e atos
em comum, têm ainda elementos de
importantes para a vida dos adeptos, como se
nascimento no Brasil, como percebe-se da
pode apreender da citação retirada da obra de
transcrição de Ribeiro (1996),
Ribeiro (1996):

Bastide (1971) traçou uma geografia


Somente Orumilá conhecedor do ipin
das religiões africanas no Brasil. De
ori - destino do ori pode
um modo geral, nesse conjunto
adequadamente sondar o futuro e
identificam-se duas grandes
orientar quem o procura. Por isso é
vertentes: a que deu origem aos
consultado nos momentos críticos da
Candomblés e xangôs e outra que
existência - fundação de aldeias;
originou os Candomblés de caboclo e
início da construção de casas; Candomblés de angola. No contexto
realização de contratos; negociações;
urbano, sujeitos a novas influências
início e término de guerras;
do catolicismo e do espiritismo de
casamentos; nascimentos (p.66-67,
Allan Kardec, surgiu a Umbanda
grifo nosso).
(p.108, grifo nosso).

Encontra-se referência ao orixá recém- Há, no entanto uma peculiaridade na


citado, também em Vergê (2009) e com a base teórica da Umbanda, qual seja: as
mesma incidência sobre o casamento, como se influências do Catolicismo e do Espiritismo de
pode verificar pela transcrição em que Allan Kardec18. Denota-se que as duas
“Orunmilá é consultado em caso de dúvida, influências são europeias e não africanas como
quando as pessoas têm uma decisão já se explanou neste texto. Em comum teriam o
importante a tomar a respeito de uma viagem, Candomblé e a Umbanda um contexto urbano.
de um casamento, de uma compra ou venda, Ainda sobre as influencias sofridas pela
ou ainda por aquelas que procuram determinar Umbanda, cabe destacar o comentário de
causa de doenças” (p.60, grifo nosso). Ribeiro (Ibidem),
Assevera-se que um orixá específico é
consultado sobre casamento, podendo-se Na Umbanda ocorre, conforme
inferir que este instituto dentro do Candomblé mencionado acima, o encontro de
elementos de múltiplas origens
tem bastante importância. Esta inferência é étnicas e religiosas. Num altar ou

18
Allan Kardec é o codificador da doutrina espírita.

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179 Casamento realizado em terreiro de Candomblé

congá encontramos imagens cristãs, Corroborando com a citação acima,


budistas, tradicionais africanas, além
da representação de personagens que esclarece o surgimento da Umbanda e seus
como índios, pretos-velhos, laços doutrinários, apresenta-se a contribuição
marinheiros, ciganos, crianças (ere)
etc. As orações incluem cânticos em de Vergê (2009) com a seguinte transcrição:
português aos orixás e rezas cristãs
como o Pai Nosso e a Ave Maria
(p.109, grifo nosso). No Rio de Janeiro, em Santos e Porto
Alegre, o culto de Iemanjá é muito
A múltipla origem étnica e religiosa da intenso duram até a última noite do
ano, quando centenas de milhares de
Umbanda certamente é uma forte adeptos vão, cerca de meia-noite,
característica definidora desta religião ao acender velas ao longo das praias e
jogar flores e presentes no mar. São
mesmo tempo em que a diferencia do seguidores de uma religião nova
chamada Umbanda, uma mistura
Candomblé, com o qual é costumeiramente entre as religiões africanas, o
confundida. Por isso é bem elucidativa a espiritismo de Alan Kardec e doutas
elaborações filosófico-religiosas de
ressalva feita na obra de Ribeiro (Ibidem), tendências universalistas (p.76, grifo
nosso).
quando escreve que:
A citação de Vergê, acima transcrita,
No dizer de Magnani (1986,p.13), a acrescenta mais elementos, desta vez, sobre os
Umbanda certamente não é uma
espécie de degeneração de antigos adeptos da Umbanda, os quais são melhor
cultos africanos ou do espiritismo explicitados a partir do texto de Ribeiro (1996),
Kardecista e sim o resultado de um
processo de reelaboração, em no qual cita militares e profissionais liberais
determinada conjuntura histórica, de
ritos, mitos e símbolos que adquirem dentre outros.
novos significados no interior de uma
nova estrutura (p.109, grifo nosso).
Desse complexo surgiria a Umbanda,
Os relatos históricos sobre a Umbanda, na década de 1920, também no Rio de
Janeiro: profissionais liberais,
aos quais tivemos acesso, remetem seu início militares e funcionários públicos,
advindos do kardecismo, migraram
em terras brasileiras, para o Rio de Janeiro, e para esses cultos, impondo-lhes nova
também o fato de que seu surgimento dá-se em estrutura e desencadeando um
processo de institucionalização (p.
datas mais recentes em relação ao surgimento 110).
do Candomblé. Infere-se que local e época de
Pondera-se para melhor entendimento
surgimento da Umbanda são também
dessa religião que os seus fundadores eram
elementos diferenciadores desta religião para o
dissidentes de outros ramos religiosos e que
Candomblé. Com apoio em Ribeiro (1996)
advinham de classes sociais mais abastadas do
pode-se afirmar que,
que aqueles que compunha o Candomblé. A
origem social dos fundadores certamente
A chamada macumba surgiu no Rio
de Janeiro por volta da segunda funcionou com elemento de proteção à
metade do século XIX: a cabula banto iniciante religião, colocando-se assim em
assimilou, sem o suporte de uma
mitologia ou doutrina capaz de oposição clara ao quadro de perseguição
integrar seus elementos, a estrutura
dos cultos nagôs e alguns orixás, sofrida pelo Candomblé.
caboclos catimbozeiros, práticas Como última característica da
mágicas européias e muçulmanas,
santos católicos e influências do Umbanda a ser explanada, tem-se a presença
Espiritismo de Kardec (p.108).
da divindade para a qual os cultos e rituais são

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180 Joelma Boaventura da Silva Bonfim

celebrados, como está descrito por Vergê em Cartório, este deve ser realizado de forma
(2009): pública, a portas abertas durante todo o ato de
sua realização. Esta modalidade de casamento
Esse movimento espiritual conhece, tem base legal na Lei dos Registros Públicos
no Brasil e em vários outros países
das Américas, um sucesso (lei. 6015/ 73) dos artigos 71 a 75. A partir
espetacular. Seus adeptos tomaram deste momento, far-se-á a análise detalhada
Iemanjá como a personificação do
bem e da maternidade austera e desta modalidade de casamento, tomando por
protetora. Ela é representada como
uma espécie de fada, com a pele cor base o texto legal que o prevê.
de alabastro, vestida numa longa O artigo 71 da referida lei assim prevê
túnica, bem ampla, de musselina
branca com uma longa cauda que “Os nubentes habilitados para o
enfeitada de estrelas douradas;
surgindo das águas, com seus longos casamento poderão pedir ao oficial que lhes
cabelos pretos esvoaçando ao vento, forneça a respectiva certidão, para se casarem
coroada com um diadema feito de
pérola, tendo no alto uma estrela-do- perante autoridade ou ministro religioso, nela
mar (p. 76).
mencionado o prazo legal de validade da
A Umbanda consta também da lista de habilitação”, ou seja, faz-se necessária a
religiões oficiais do Brasil segundo o Instituto habilitação para o casamento e com
Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, no equivalente certidão em mãos dos nubentes,
Censo de 2000, apresentando os seguintes poderá a autoridade religiosa fazer o
números, conforme tabela em anexo: 397.43 casamento. Assevera-se que não há aqui
adeptos no Brasil, sendo 172.393 homens e qualquer alusão a um tipo de religião ou
225.038 mulheres. Como é uma religião exigência legal de averiguação sobre a
urbana, tem 385.148 adeptos nesta zona. É autoridade religiosa.
possível se fazer a seguinte comparação: A inteligência do artigo 72 da lei 6015
existem mais adeptos da Umbanda que do disciplina que o termo ou assento de
Candomblé e o percentual de mulheres é maior casamento expedido pela autoridade religiosa
que o de homens que comungam desta deverá cumprir todos os requisitos enunciados
religião. Estaria esse numerário de adeptos do no artigo 7019. Dispõe este artigo in verbis: “O
gênero feminino relacionado com a principal termo ou assento do casamento religioso,
divindade da Umbanda? Não se têm elementos subscrito pela autoridade ou ministro que o
suficientes para responder a essa questão e não celebrar, pelos nubentes e por duas
é o objetivo deste artigo adentrar nesta testemunhas, conterá os requisitos do art. 70,
particularidade, resta apenas deixar esta exceto o 5º.” Observa-se que a autoridade
especulação. religiosa deve cumprir quase todos os

19
Do matrimônio, logo depois, de celebrado, será lavrado
4. DA CELEBRAÇÃO RELIGIOSA DO assento, assinado pelo residente do ato, os cônjuges, as
testemunhas e o oficial, sendo exarados:
CASAMENTO 1º os nomes, prenome, nacionalidade, data, lugar do nascimento,
domicílio e residência atual dos cônjuges;
2º os nomes, prenome, nacionalidade, data, data de nascimento
Casamento Religioso com Efeito Civil é ou de morte domicilio e residência atual dos pais;
3º os nomes, prenomes dos cônjuges precedentes e a data de
aquele que é celebrado fora das dependências dissolução do casamento anterior, quando for o caso;
4º a data de publicação dos proclames e da celebração do
do Cartório, porém quem preside o ato do casamento;
6º os nomes, prenome, nacionalidade, profissão, domicílio e
casamento não é o Juiz e sim a autoridade residência atual das testemunhas;
7º o regime de casamento...
religiosa. Da mesma forma que o casamento 8º o nome, que passa a ter a mulher em virtude do casamento.

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181 Casamento realizado em terreiro de Candomblé

requisitos exigidos como se o casamento fosse (Certidões e R.G.), o Requerimento de


feito no cartório. Casamento Religioso com Efeito Civil e o
Após a celebração de casamento feita Termo de Celebração de casamento Religioso
por autoridade religiosa e dentro do prazo de com Efeito civil, feito pela Igreja, ou entidade
30 dias, deverá o celebrante ou interessado religiosa, já com a firma reconhecida do
apresentar o termo ou assento e requerer o Celebrante (que realizou a cerimônia religiosa).
registro do ato no cartório que expediu a Assim podem dar entrada nos papéis de
certidão de habilitação, conforme determina o casamento no cartório.
artigo 73 da Lei de Registros Públicos com seus
respectivos parágrafos20. 4.1 CELEBRAÇÕES RELIGIOSAS DO
Os artigos 74 e 75 da lei de Registros CASAMENTO NO CANDOMBLÉ E NA
Públicos21 tratam de casamentos celebrados UMBANDA.
por autoridades religiosas, sem a observância
do disposto no artigo 70, já explicitado. É As religiões brasileiras de origem
possível reconhecer e validar a cerimônia de africana (Candomblé, Umbanda, tambor de
casamento realizada por autoridade religiosa mina e xangô) podem realizar e realizam
sem certidão de habilitação expedida cerimônias de batismo, de iniciação e de
previamente, desde que os nubentes casamento, pois são religiões conforme
apresentem como requerimento as provas de explanamos exaustivamente neste trabalho e
que a ato se realizou e desde que suprimam porque possuem autoridades religiosas
eventuais faltas de requisitos do termo de denominados de sacerdotes, babalorixás ou
celebração. Para isso, é necessário que os iyalorixás.
noivos compareçam ao cartório, juntamente Uma ata deve ser lavrada no ato da celebração
com 2 testemunhas, (após a cerimônia do casamento no terreiro ou seção de
religiosa) com os documentos habituais Umbanda e sua transcrição funciona como
certidão, caso não se tenha providenciado a
20
Art. 73. No prazo de trinta dias a contar da realização, o certidão de habilitação previamente.
celebrante ou qualquer interessado poderá, apresentando o
assento ou termo de casamento religioso, requerer-lhe o registro A celebração deve ocorrer em local de
ao oficial do cartório que expediu a certidão. § 1º. O assento ou
termo conterá a data da celebração, o lugar, o culto religioso, o cultos dessas religiões (terreiros ou sessão de
nome do celebrante, sua qualidade, o cartório que expediu a
habilitação, sua data, os nomes, profissões, residências, mesa de branca). O ritual deve ser aberto ao
nacionalidades das testemunhas que o assinarem e os nomes dos
contraentes. § 2º. Anotada a entrada do requerimento, o oficial público e geralmente algumas peculiaridades
fará o registro no prazo de 24 (vinte e quatro) horas. § 3º. A
autoridade ou ministro celebrante arquivará a certidão de
se fazem presentes, tais como leitura de Textos
habilitação que lhe foi apresentada, devendo, nela, anotar a data sagrados africanos; os noivos costumam lavar
da celebração do casamento.
as mãos e o rosto em água misturada com
21
Art. 74. O casamento religioso, celebrado sem a prévia
habilitação perante o oficial de registro público, poderá ser
registrado desde que apresentados pelos nubentes, com o ervas e folhas. Essa mistura também é bebida.
requerimento de registro, a prova do ato religioso e os
documentos exigidos pelo Código Civil, suprindo eles eventual Na Umbanda, ocorre até mesmo a leitura de
falta de requisitos no termo da celebração. Parágrafo único.
Processada a habilitação com a publicação dos editais e trechos da Bíblia.
certificada a inexistência de impedimentos, o oficial fará o
registro do casamento religioso, de acordo com a prova do ato e
os dados constantes do processo, observado o disposto no art.
70. Art. 75. O registro produzirá efeitos jurídicos a contar da
5. EXPLORANDO EXEMPLOS SOBRE O
celebração do casamento. TEMA

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182 Joelma Boaventura da Silva Bonfim

O julgado que se passa a analisar tem o 2009, foi realizado o primeiro casamento em
número 7000329655522 junto ao Tribunal de casa de Umbanda com reconhecimento civil.
Justiça do Rio Grande do Sul na seção cível da Como se pode perceber da transcrição que
8ª Câmara Cível. O processo foi protocolado segue, a celebração atende os requisitos
em 24.09.2001, logo, antes da vigência do impostos pelo ordenamento jurídico brasileiro.
Código Civil de 2002. Esse processo teve
O Centro de Umbanda Iemanjá,
acórdão expedido em 17.10.2002 pelo situado num afastado bairro do centro
desembargador Rui Portonova. A decisão da cidade de Governador Mangabeira
viveu no dia 22 de outubro de 2009
exarada pelo desembargador já contempla o um momento histórico para o povo de
santo com a celebração do primeiro
novo texto do Código Civil e faz referência ao casamento religioso e reconhecimento
artigo 226 da Constituição Federal. Como foi civil, no Recôncavo baiano, dos jovens
Luis Carlos dos Santos (25) e Gisele
uma decisão prolatada em 2002, o site do Lopes Conceição (20) 23
referido tribunal não permite acesso ao inteiro
Esse segundo relato resgata a
teor da mesma, portanto transcreve-se apenas
perspectiva política de luta dos povos de santo
trecho significativo do acórdão, ao qual foi
para terem sua religião reconhecida, bem como
possível o acesso através de noticiário gaúcho:
seus rituais, e acima de tudo, o
“O Casamento no Candomblé ou na Umbanda
reconhecimento da liberdade religiosa com
tem o mesmo valor dos casamentos realizados
cunho jurídico. A citação abaixo ilustra esse
nas religiões católicas e israelitas”.
raciocínio,
Há também neste acórdão um
chamado para o reconhecimento não só do Visivelmente emocionada, a
casamento, um dos rituais legítimos das sacerdotisa, ao encerrar as bênçãos
dadas aos noivos, disse que a
religiões de matriz africana, como também um realização do primeiro casamento
num centro umbandista com validade
reconhecimento à própria religião, quando o civil, no Recôncavo, representava uma
referido desembargador assim se expressa: grande vitória para os adeptos das
religiões de matrizes africanas. “Foi
“Não devemos valorizar mais os pactos uma grande luta que travamos para
chegar até aqui, pois ainda há muito
realizados em grandes sinagogas ou catedrais preconceito e discriminação contra o
pomposas, pelo fato de este casamento ter sido povo de santo. É uma grande vitória,
eu não posso deixar de reconhecer”,
realizado em terreiro”. declarou Mãe Nice que fundou o
Centro de Umbanda Iemanjá há oito
O relato que se segue não tem cunho anos24.
judicial, pois transcorreu como expressão livre
de direito a crença e a religião. No município CONSIDERACÕES FINAIS
de Governador Mangabeira – Bahia, no ano de
O ordenamento jurídico brasileiro
22
Ementa da Apelação Cível: 1. ACÃO DECLARATÓRIA. disciplina o casamento como instituto civil, o
UNIÃO ESTÁVEL. EXISTÊNCIA E RECONHECIMENTO. 2.
CASAMENTO RELIGIOSO. RELIGIAO AFRO- qual poderá ser celebrado ante um juiz ou ante
BRASILEIRA. VALORIZACÃO. 3. CURADOR ESPECIAL.
SUBSTITUICÃO. QUANDO SE JUSTIFICA. 4. UMBANDA. a autoridade religiosa com consequente
6.CANDOMBLÉ. 7. UNIÃO ESTÁVEL.
RECONHECIMENTO. REQUISITOS. SEGUNDA E
obtenção de feitos civis. O mesmo
CONCOMITANTE UNIÃO ESTÁVEL. PROVA. 8. PETICÃO ordenamento jurídico garante a liberdade de
INICIAL. REQUISITOS. 9. NULIDADE DO PROCESSO.
QUANDO NÃO SERÁ DECRETADA. 10. CERIMÔNIA
RELIGIOSA. PROTEÇÃO DOS ORIXÁS. TEMPLO
23
RELIGIOSO NA SOCIEDADE UMBANDISTA CACIQUE COSTA, Alzira.2009.
24
PERI.Referências Legislativas: CF-226 PAR-3 DE 1988 CPC- Ibidem,2009.
249 PAR-1

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465
183 Casamento realizado em terreiro de Candomblé

crença, culto e religião como forma de RIBEIRO, Ronilda Iyakemi. Alma africana
no Brasil: os iorubas. São Paulo: Editora
expressão de liberdade. A religião então
Oduduwa, 1996.
nutrida por amparo legal manifesta-se na
SCHERKERKEWITZ, Iso Cahitz. O Direito
sociedade através de suas técnicas, ou seja, de Religião no Brasil.
cultos, cerimônias. www.pge.sp.gov.br/centrode
estudos/revistaspge/revista2/artigo5.htm.
A celebração do casamento ante Acesso em 20 de janeiro de 2011.
autoridade religiosa com reconhecimento dos
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito
seus efeitos civis é a uma das formas de Constitucional Positivo. 5 ed. rev. e ampl.
materializar a liberdade religiosa e demonstrar de acordo com a nova Constituição. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1989.
que intolerância e perseguições que, outrora,
foram a tônica do direito local em face de VERGÊ, Pierre Fatumbi. Orixás. Rio de
Janeiro: UUCA União Umbandista dos cultos
adeptos de religiões africanas, são práticas afro-brasileiros, 2009.
desrespeitosas e que não coadunam com o
Estado Democrático de Direito, nem refletem a
realidade “pluri-étnico-religiosa” brasileira.
O casamento reveste-se de celebração
de compromisso e de acordo, portanto, sua
cerimônia feita em ambiente religioso, ao qual
há relações de pertencimento dos nubentes,
nada mais faz que permitir realismo e
juridicidade ao ato solene.

REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de


Filosofia. 2ª Ed. São Paulo: Mestre Jou,
1982.

COSTA, Alzira. Umbanda realiza casamento


civil em mangabeira. Universidade Federal do
Recôncavo Baiano. In: Link Recôncavo:
Notícias do Recôncavo da Bahia. Bahia,
out, 2009. Disponível em
www.ufrb.edu.br/linkreconcavo. Acesso em:
20 jan. 2011.

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de


Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva,
1989.

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito


Civil Brasileiro: Direito de família. 5º
volume. São Paulo: Saraiva, 2007.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito de


Família. 11ª ed. Volume 2. São Paulo: Saraiva,
2007.

LOBO, Paulo. 2009. Direito Civil -


Famílias. 2ª ed..São Paulo: Saraiva.

Opará - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, ano 1, vol. 2, jun./dez. 2013.ISSN: 2317-9465

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