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A TRINDADE — ASPECTOS TEOLÓGICOS E PRÁTICOS


Entender as definições teológicas
da doutrina da trindade e suas
implicações práticas para a vida do
cristão.

introdução

Há mais dois importantes aspectos que certamente este que tratamos no presente não
precisamos considerar a fim de entender a requer menor modéstia e sobriedade; mas é
importância da doutrina da Trindade. Diz preciso estar de sobreaviso, para que, nem nos-
respeito a seus aspectos teológicos, que nos so entendimento, nem nossa língua vá além do
ajudarão a estabelecer melhor os conceitos que a Palavra de Deus nos tem demonstrado.
em si; e a seus aspectos práticos, que nos Por que, como poderá o entendimento huma-
ajudarão a ver como esta doutrina é impor- no compreender, com sua débil capacidade, a
tante para um cristianismo autêntico. imensa essência de Deus, quando nem sequer
consegue determinar com certeza qual é o corpo
aspectos teológicos do sol, mesmo que todos os dias o vê com seus
da doutrina da trindade olhos? Assim mesmo, como poderá penetrar
por si só a essência de Deus, uma vez que não
Falar sobre a base teológica da doutrina da conhece nem a sua própria? Portanto, deixemos
Trindade significa estabelecer conceitos que a Deus o poder de conhecer-se. 1 1 João Calvino.
Institutas, I, 13, 21.
nos ajudem a entender melhor a doutrina. É
claro que jamais podemos nos esquecer que Definições
estamos lidando com algo que ultrapassa,
em muito, o nosso entendimento. As pala- Podemos definir a doutrina da Trindade
vras de Calvino sobre a Trindade são muito dizendo que há somente um Deus em es-
instrutivas nesse sentido e servem de adver- sência, mas que este Deus subsiste em
tência contra especulações: três pessoas distintas. Não há analogia ou
ilustração que possa nos ajudar a entender
Entendamos que se nos secretos mistérios das como isso é possível. No passado, os Pais
Escrituras nos convém ser sóbrios e modestos, da igreja acostumaram-se a usar analogias

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para ajudar a entender a unidade dentro da to diferenciador na Trindade. Essência é
Trindade. Falava-se, por exemplo, da união uma, pessoas são três. Não são três modos
da luz, calor e esplendor em uma só subs- de manifestações, mas três existências, ou
tância do sol; da raiz, tronco e folhas de uma subsistências reais dentro de um único ser.
planta, ou mesmo do intelecto, vontade e No Ser de Deus unidade e diversidade não
sentimentos na alma humana. O fato é que são antônimas. Deus, em seu ser, pode ser
todas as ilustrações conseguem acrescentar tripessoal, sem deixar de ser um.
muito pouco, e às vezes, só mesmo distor-
cer a doutrina da Trindade. A Trindade em essência (ontológica)

Essência é a tradução da palavra grega “ou- Dentro da Trindade existe absoluta igual-
sia”, que também pode significar substân- dade de essência, logo, não existe qualquer
2 Berkhof fala da cia2 e refere-se à natureza divina. Essa na- grau de subordinação, nem mesmo de hon-
diferença entre tureza essencial é compartilhada pelas três ra. O Pai não é maior em essência do que o
“essência” e
“substância” e da pessoas da Trindade. Quando pensamos na Filho e nem o Filho maior do que o Espírito
tendência moderna de raça humana, sabemos que todos compar- Santo. O Pai não deve ser mais adorado do
não usar os dois termos tilham a mesma natureza, a humana, mas, que o Espírito, ou o Espírito mais do que
como sinônimo pelo
fato de que na igreja
cada um é um indivíduo autônomo. Com- o Filho. Entretanto, há características pró-
Oriental “substância” partilhamos a mesma natureza, mas somos prias em cada uma das pessoas da Trinda-
traduzia tanto “ousia” seres diferentes. Na Trindade há apenas de, as quais não encontramos nas demais.
como “hipostasis”,
uma natureza, pois há apenas um ser. Há Estamos falando da Paternidade, da Filiação
sendo, portanto, um
termo ambíguo (Ver três pessoas, mas apenas um ser. Cada uma e da Processão.
L. Berkhof. Teologia das três pessoas da Trindade compartilha da
Sistemática, p. 88-89). mesma natureza divina, a qual é numerica- A paternidade é uma característica exclusiva
mente uma. São três pessoas distintas, mas do Pai. Nesse sentido não podemos chamar
não separadas. Há apenas uma vontade, um o Logos de Pai e nem o Espírito de Pai. A
poder, uma mente, uma determinação, um paternidade do Pai é diferente da que os ho-
sentimento, um ser. A essência de Deus não mens concebem, por ser eterna. Não houve
é dividida entre as três pessoas da Trinda- um tempo em que Deus não fosse Pai. Des-
de, ela é absoluta, completa e perfeita em de toda a eternidade ele é o Pai do Filho. O
cada uma delas. Não são três partes de um Pai se difere do Filho e do Espírito Santo por
só Deus, nem três deuses, é um Deus, uma não ser gerado e nem proceder de ninguém,
substância e três pessoas. e por ser o único que gera.

Pessoa é tradução dos termos gregos “pro- O Filho possui a característica exclusiva de
sopon” e “hypostasis”, ou o latino “persona”, ser gerado. Somente o Filho é filho do Pai.
que foram usados pelos escritores antigos Não houve um tempo em que o Filho não
para indicar as distinções da Divindade. Mo- existia (Mq 5.2), ele é eternamente gerado
dernamente tem se falado em subsistência da essência do Pai. A igreja tem historica-
como um termo mais adequado e livre de mente afirmado que a geração do Filho é
ambigVidades. Na verdade, muito tempo foi desde toda a eternidade como um ato atem-
gasto na tentativa de encontrar uma palavra poral. Se o Pai gerou o Filho em algum mo-
que melhor definisse o sentido da distinção, e mento da história, então, isso significa que
isso por si só, já mostra o quanto todas são ele mudou de essência e que o Filho não é
na verdade inadequadas. O importante é que eterno em essência. A geração do Filho não
o termo essência nos fala da unidade de cria uma nova essência na Trindade, pois
Deus, enquanto que o termo pessoa ou é a mesma essência que é compartilhada
subsistência nos fala das distinções que tanto pelo Pai quanto pelo Filho. A Gera-
existem no ser divino. Pessoa é o elemen- ção é uma comunicação da essência do Pai

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ao Filho, num ato atemporal, que faz com declaração de fé: “Cremos no Espírito San- 3 Louis Berkhof.
que tanto o Pai, quanto o Filho tenham to, que procede do Pai e do Filho”4. A base Teologia Sistemática,
p. 95.
vida em si mesmos (Jo 5.26). Berkhof dá a bíblica de que o Espírito procede do Pai e do
seguinte definição da geração do Filho: “É Filho é João 15.26 e os textos nos quais o Es- 4 A igreja Oriental
ato eterno e necessário da primeira pessoa pírito é chamado de Espírito de Cristo ou de (Católica Ortodoxa)
nunca aceitou essa
da Trindade, pelo qual ele, dentro do Ser Espírito do Filho (Rm 8.9; Gl 4.6; Fp 1.19; formulação.
Divino, é a base de uma segunda subsis- 1Pe 1.11). Berkhof define a “espiração” do Es-
tência pessoal, semelhante à Sua própria, pírito como sendo “o eterno e necessário ato
e dá a esta segunda pessoa posse da essên- da primeira e da segunda pessoas da Trin-
cia divina completa, sem nenhuma divisão, dade pelo qual elas, dentro do Ser Divino,
alienação ou mudança”3. Em geral, os argu- vêm a ser a base da subsistência pessoal do
mentos mais usados para dizer que Cristo Espírito Santo, e propiciam à terceira pes-
não é eterno são os textos de Colossenses soa, a posse da substância total da essência
1.15 e Apocalipse 3.14, que falam respecti- divina, sem nenhuma divisão, alienação ou
vamente de Jesus como o “primogênito” e mudança”5. 5 Louis Berkhof.
o “princípio” da criação de Deus. Dizem os Teologia Sistemática,
p. 98.
unitários, especialmente as Testemunhas A Trindade no trabalho (econômica)
de Jeová, que esses termos colocam Cris-
to como a primeira criatura de Deus, não Uma maneira interessante de ver a Trinda-
sendo portanto, eterna. Em Colossenses de é entender a forma como a Trindade age,
1.15 “primogênito” da criação não pode se não em relação a si mesma, mas em rela-
referir ao primeiro ser criado, pois suben- ção à criação. Quando falamos em essên-
tenderia que Cristo é o primeiro filho da cia, vimos que, embora haja características
própria Criação e isso não faz sentido. A próprias em cada pessoa da Trindade, não
interpretação mais provável é que Cristo é existe qualquer grau de subordinação entre
o herdeiro de toda a Criação de Deus. Do elas. Porém, quando falamos em trabalho
mesmo modo, em Apocalipse 3.14, falar de (economia) da Trindade, percebemos que
Cristo como o primeiro por causa da pala- há uma ordem como Deus trabalha. Isso
vra “princípio” não faz justiça ao uso dessa nos revela bastante do caráter Trinitário. Je-
palavra no próprio livro do Apocalipse, pois sus fez algumas declarações que, certamen-
o próprio Deus é chamado de princípio te, poderiam nos deixar confusos, se não
(Ap 1.8; 21.6; 22.13). Faz muito mais senti- entendêssemos a diferença de Trindade em
do pensar que o texto está falando de Cristo essência (ontológica) e Trindade econômica.
como o mais proeminente de toda a cria- Já vimos que ele disse ser um com seu Pai,
ção, o principal, o mais importante, o chefe porém, em outros textos, ele afirmou ser
(Ver Cl 1.18). submisso ao Pai, como por exemplo, João
6.38: “Porque desci do céu não para fazer
O Pai gera o Filho, o Filho é eternamente a minha própria vontade; e, sim, a vontade
“gerado” do Pai, e o Espírito Santo “procede” daquele que me enviou. E também noutra
eternamente do Pai e do Filho. Nas línguas ocasião ele disse: “O Pai é maior do que eu”
grega e hebraica as palavras “pneuma” e (Jo 14.28). Já dissemos que de acordo com a
“ruach”, que são traduzidas como “espírito”, Bíblia, há igualdade absoluta entre as pes-
derivam de raízes que significam “soprar, soas da Trindade, mas, então, por que Jesus
respirar, vento”. Daí a idFia do Espírito ser disse que o Pai era maior do que ele? Certa-
soprado por Deus (Jo 20.22). A doutrina mente porque se referia à sua encarnação e
de que o Espírito “procede” do Pai e do Fi- à obra que precisava fazer. Ele foi submisso
lho levou algum tempo para ser formulada ao Pai nesse sentido e, portanto, inferior em
pela igreja, sendo que somente em 589 no função, mas não em essência. Estamos ago-
Sínodo de Toledo, foi formulada a seguinte ra falando das obras que se realizam, não

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dentro do ser divino, mas em relação à cria- Filho é a “palavra” de Deus. Foi João quem
ção, providência e redenção. Vemos nas Es- chamou Jesus de o “verbo” de Deus (Jo 1.1).
crituras algumas obras sendo mais atribuí- Ele é a Palavra proferida, o “haja luz”, é o
das a uma das pessoas da Trindade do que a instrumento através do qual todas as coisas
outra. Entretanto, devemos tomar o cuidado foram criadas. A Bíblia afirma isso categori-
para não exagerarmos nas distinções, pois, camente: “Pois, nele, foram criadas todas as
de certa forma, a Trindade participa conjun- coisas, nos céus e sobre a terra, as visíveis
tamente de todas as obras externas. e as invisíveis, sejam tronos, sejam sobe-
ranias, quer principados, quer potestades.
Não precisamos temer falar de uma subordi- Tudo foi criado por meio dele e para ele”
nação econômica do Filho ao Pai, desde que (Cl 1.16). Portanto, podemos dizer que na
entendamos que não há qualquer subordi- obra da criação, o Pai fala, o Filho é a Pala-
nação de essência. É por isso que Paulo diz: vra falada – Mediador, e o Espírito Santo é
“Quero, entretanto, que saibais ser Cristo o o agente direto sobre a matéria. Em termos
cabeça de todo homem, e o homem, o ca- semelhantes, a Trindade trabalha na Reden-
beça da mulher, e Deus, o cabeça de Cristo” ção, cada pessoa executando uma tarefa par-
(1Co 11.3). No contexto ele está tratando da ticular. O Texto de 1Pedro 1.2 é claro nesse
diferença que existe entre o homem e a mu- sentido, pois diz que os crentes são: “Eleitos
lher, e da subordinação que a mulher deve segundo a presciência de Deus Pai, em san-
ao homem. Ele não está dizendo que a mu- tificação do Espírito, para a obediência e a
lher é inferior ao homem, mas que deve ser aspersão do sangue de Jesus Cristo”. Aqui
submissa e guardar as diferenças proporcio- também o Pai é o idealizador da salvação,
6 Ver Augustus N. nais6. Da mesma forma, o Pai é o cabeça de pois a ele pertence o ato de escolher os que
Lopes. O Culto Cristo, mas isso não quer dizer que ele é su- devem ser salvos. Nesse sentido, o Pai é o
Espiritual, p. 64-65.
perior, pois a essência é a mesma. A questão autor da eleição. O Filho está novamente na
está nas funções, que são diferentes. função de Mediador, ele possibilita a obedi-
ência a Deus através da aspersão de seu san-
Devemos evitar a formulação simplista de gue. Já ao Espírito Santo é indicada a tarefade
que o Pai é o responsável pela Criação, o santificar, ou seja, separar para si os eleitos.
Filho pela Redenção, e o Espírito pela san- Então, o Pai elegeu, o filho salvou e o
tificação, pois a Trindade participa conjun- Espírito aplicou a salvação. Na verdade essa
tamente de tudo isso. A distinção que po- ordem de funções pode ser vista por toda a
demos fazer é a seguinte: Ao Pai pertence Escritura: O Pai planejando a salvação (Jo
mais o ato de planejar, ao Filho o de mediar, 6.37-38) e escolhendo os eleitos (Ef 1.3-4), o
e ao Espírito o de agir. Isso pode ser visto Filho executando o plano de Deus (Jo 17.4;Ef
no relato da criação. No texto de Gênesis 1.7), e o Espírito Santo confirmando essaobra
1.1-3, as três pessoas da Trindade estão agin- sobre os crentes (Ef 1.13-14). De fato, como
do. O texto diz: “No princípio criou Deus os declara Lloyd-Jones, “essa é uma idFia
céus e a terra” (Gn 1.1). Note que a criação atordoante, ou seja, que estas três bem-
é atribuída a Deus. Entretanto, em seguida aventuradas Pessoas, na bem-aventurada
veja algumas manifestações diferentes des- santíssima Trindade, para minha salvação,
7 D. M. LMoyd-Jones. se Deus: “A terra, porém, era sem forma e quiseram dividir assim o trabalho”.7
Deus o Pai, Deus o Filho, vazia, e o Espírito de Deus pairava sobre as
p. 122-123.
águas” (Gn 1.2). Aí está a Terceira Pessoa, o aspectos práticos da doutrina da
“Espírito de Deus”. A maioria dos comen- trindade
taristas concorda que o Espírito Santo está
numa função de “energizar” a matéria, sen- Até aqui vimos aspectos históricos, bíblicos
do, portanto, o ponto de contato entre Deus e teológicos da doutrina da Trindade. Ago-
e a matéria. Mas, e onde está o Filho? O ra queremos falar sobre aspectos práticos.

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Claro que isso não significa que o que foi tive junto de ti, antes que houvesse mun-
dito acima não é prático. Mas até aqui nos do... porque me amaste antes da fundação
preocupamos em definir bem os conceitos, do mundo” (Jo 17.5,24). Na verdade, esse
agora queremos tratar sobre como a dou- por si só, já é um grande argumento em fa-
trina da Trindade deve influenciar a nossa vor da Trindade. Se a Bíblia diz que Deus é
vida diária. amor (1Jo 4.8), então, o que ele amava antes
de ter criado alguma coisa? Deus exercitava
É impossível ter um relacionamento cor- o amor consigo mesmo, no relacionamento
reto com Deus sem considerar a Trindade. trinitário, que por sua vez, veio a ser a base
Hoje as pessoas demonstram inconsciente- para o relacionamento amoroso com os ho-
mente preferência por uma das pessoas da mens, que assim, também pode ser chama-
Trindade. Há aqueles para quem a pessoa do de “amor eterno” (Jr 31.3). Deus expandiu
do Pai é a central. Essas pessoas pensam seu amor intra-trinitário para suas criatu-
muito pouco em Jesus e no Espírito Santo. ras, e isso demonstra de forma assombro-
Principalmente os oriundos da tradição ca- sa como é grande esse seu amor. Quando
tólica, quando lembram de Deus, pensam Deus nos chama para a fé, na verdade é um
na pessoa do Pai. Outros preferem a pessoa convite para mergulhar no relacionamen-
do Filho, geralmente os influenciados pelo to trinitário, aquele relacionamento que as
“pietismo”, mas certamente são minoria. O pessoas da Trindade têm entre si. Jesus dis-
Espírito Santo é o foco principal da vida da se: “Se alguém me ama, guardará a minha
maioria dos crentes das igrejas carismáticas. palavra; e meu Pai o amará, e viremos para
Essa fragmentação das pessoas da Trindade ele e faremos nele morada” (Jo 14.23). Deus
é coisa bem típica do nosso mundo moder- não precisava criar nada para se sentir mais
no. Ela dilui a compreensão da riqueza de pleno, mas ainda assim decidiu criar para
Deus. Por outro lado, na prática, o que se dar maior expressão ao relacionamento tri-
percebe é uma espécie de unitarismo fun- nitário. Somos chamados para participar
cional. Quando pensamos em Deus, não tra- disso, como Jesus deixou bem claro em sua
zemos à memória a existência triúna, mas o oração: “A fim de que todos sejam um; e
imaginamos como uma pessoa única. Isso como és tu, ó Pai, em mim e eu em ti, tam-
compromete demasiadamente o relaciona- bém sejam eles em nós” (Jo 17.21). A idFia
mento com ele, pois impede que entenda- somada desses textos é: O Deus triúno em
mos mais completamente o seu caráter. Na nós, e nós no Deus triúno, uma comunhão
verdade é impossível compreender a Cria- com base trinitária. Somos chamados para
ção e a Redenção sem pensar na Trindade. mergulhar no amor da Trindade. Por essa
Pois, como vimos, tanto a Criação quando a razão, não considerar a Trindade é entender
Redenção não são obra de uma das pessoas menos o amor de Deus.
divinas, mas da Trindade como um todo.
Isso, por sua vez, nos leva a entender nosso
Nesse ponto, outras coisas precisam ser chamado relacional. Jesus continuou oran-
consideradas. Um problema é imaginar que do ao Pai: “Eu lhes tenho transmitido a gló-
Deus precisou criar o mundo para se sentir ria que me tens dado, para que sejam um,
mais pleno. Isso é um engano, pois Deus é como nós o somos; eu neles, e tu em mim, a
absolutamente completo em si mesmo. Ele fim de que sejam aperfeiçoados na unidade,
não precisava criar o universo para se sentir para que o mundo conheça que tu me en-
melhor, nem mesmo para experimentar al- viaste e os amaste, como também amaste a
gum relacionamento, pois em seu ser, Deus mim” (Jo 17.22-23). É fácil de entender por-
já é completo e relacionável. Na oração sa- que a comunhão é tão difícil na igreja. As
cerdotal Jesus disse: “E agora, glorifica-me, pessoas buscam comunhão através de even-
ó Pai, contigo mesmo, com a glória que eu tos sociais, trabalhos comunitários, músi-

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cas que incentivam cumprimentos mútuos, própria Trindade. Por isso o culto bíblico é
etc. Mas a verdadeira base da comunhão da bastante diferente do que se vê na maioria
igreja é a Trindade. Precisamos entender das igrejas. O culto bíblico é teocêntrico e
que fomos chamados para refletir o mesmo não antropocêntrico.
amor que existe na Trindade. Somos cha-
mados para mergulhar nesse amor e, de tal Finalmente, a doutrina da Trindade é um
forma ele precisa inundar a nossa vida, que chamado ao serviço. Estudamos sobre a
os outros irmãos receberão os efeitos dele. absoluta igualdade essencial da Trindade.
O próprio sentido de nossa missão no mun- Nesse sentido não há qualquer grau de su-
do também está explícito nessas palavras de bordinação entre as pessoas da Trindade.
Jesus. Queremos que o mundo conheça o Mas percebemos que nas obras externas, ao
Evangelho, para isso fazemos imensas cam- trabalhar na Criação e na Redenção, as pes-
panhas evangelísticas, cultos de evangeliza- soas da Trindade se subordinam umas às
ção, distribuímos folhetos, mas percebemos outras e trabalham em perfeita cooperação.
que os resultados são insignificantes. Jesus Embora sejam pessoas plenas e cada uma
ensinou que nosso testemunho depende de tenha a essência completa da Trindade em
nossa unidade. Enquanto o amor da Trin- si, não são, nem desejam ser autônomas.
dade não invadir nosso coração a ponto de São absolutamente livres e isso faz com que
alcançar os outros, o mundo continuará se relacionem e promovam a obediência.
descrente em relação a Jesus. O Filho faz questão de obedecer ao Pai, e
o Espírito é obediente ao Filho. A dificulda-
A consciência da Trindade muda também o de que os cristãos têm de trabalhar juntos é
próprio culto que prestamos a Deus. O culto por causa do ego. Cada um tem seu orgulho
cristão é essencialmente trinitário. Uma de- pessoal, e deseja que sua opinião prevale-
finição de culto cristão poderia ser: “Adorar ça. Achamos que obedecer e servir uns aos
o Pai, pela mediação do Filho, no poder do outros nos torna inferiores. Achamos que a
8 Ricardo Barbosa de Espírito Santo”8. Essa é uma definição inte- liberdade é a autonomia. A Trindade nos en-
Sousa. O Caminho do ressante, mas há o perigo de compartimen- sina que através do serviço e da obediência
Coração, p. 80.
tar as coisas, pois não é só o Pai que é adora- cristã é que desfrutamos da plena liberdade.
do, e sim o Deus triúno. A idFia é que o culto Quando o Filho de Deus amarrou a tolha na
como um todo é para a Trindade e obra da cintura e lavou aos pés dos discípulos, isso
Trindade. O acesso à presença de Deus se não o fez menos digno nem menos livre, ao
faz pela pessoa do Filho. A comunicação de contrário.
Deus com o povo se dá pelo Espírito que faz
uso da Palavra. O culto é uma vibrante conclusão
atuação do Deus triúno. Quando temos isso
bem claro em nossa mente, percebemos Diante dessas coisas, concluímos que de-
que a única coisa que precisamos para ado- vemos valorizar mais essa doutrina. Preci-
rar a Deus verdadeiramente é a atuação da samos nos arrepender por considerar tão
Trindade. Isso evidentemente não dispensa pouco esse precioso ensino da Escritura e
os elementos do culto como a música, os passar a considerar o caráter trinitário de
instrumentos, e as próprias pessoas. Mas a nosso Deus em nosso relacionamento com
adoração verdadeira não pode depender de ele, com os irmãos e no culto que lhe dirigi-
um cântico animado, de instrumentos bem mos. Acima de tudo permanece que não po-
tocados, ou da eloqVência do pregador. Se demos conhecer verdadeiramente a Deus,
essas coisas são os instrumentos da adora- se não considerarmos seu caráter trinitário.
9 Herman Bavinck.
ção é provável que não esteja acontecendo Como diz Bavinck, “somente quando nós
Teologia Sistemática, adoração. A adoração verdadeira é obra da contemplamos essa Trindade é que nós des-
p. 155. Trindade em nós, e a partir de nós, para a cobrimos quem e o que Deus é”9.

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