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Num país imaginário que como na maioria das histórias fantásticas era uma

monarquia havia um monarca que tinha uma filha

O rei adorava a princesa E a princesa como todas as princesas que se prezam


era muito bonita Só que não tinha olhos azuis como as princesas do Norte suas
vizinhas Tinha dois grandes olhos brilhantes como dois diamantes

Não podia portanto ser uma princesa de contos de fadas Nem podia ser uma princesa
das mil e uma noites porque essas têm olhos negros e coruscantes como carvões
são filhas de sultões ou de califas e moram na Arábia Era apenas uma princesa e
mais nada

A princesa que se chamava Luz Lúcia Luísa Luzia nomes que herdara da avó da
bisavó da trisavó e da tetravó paternas nunca saía de casa Passava os dias a
passear melancolicamente pelos jardins do último andar do palácio ditos suspensos
como os da Babilónia e à noite fechava se à chave numa torre de marfim E
chorava chorava

Ah Quem me dera ter olhos azuis suspirava de quarto em quarto de hora


Porque não hei de ter olhos azuis como todas as princesas de sangue azul
lamentava se

O rei que dormia na sala do trono situada trinta e três pisos mais abaixo
ouvia a chorar e ficava com reais insónias Embora fosse perito em resolver os
mais intrincados quebra cabeças de estado políticos económicos e diplomáticos
não sabia como solucionar o problema da filha E aconselhara se o que era caso
Taro

Convocara o chanceler que lhe dissera

Isso são manias de donzela A vossa filha precisa é de distrair se Ir a


saraus de caridade fazer desporto ou de preferência casar se

Mas a princesa passara em revista os vários pretendentes a marido e achara os


demasiado pálidos ou cinzentos ou corados ou biliosos e recusara se a escolher um
príncipe consorte e continuara desconsolada

E o rei consultara o médico da corte que mandara chamar um oftalmologista


estrangeiro que dissera

Sua Graciosa Alteza precisa é de lentes de contacto Vou colocar lhe umas
lentes especiais de íris azul cobalto

Mas a princesa apesar dos seus novos olhos azuis postiços e espampanantes
queixara se de que continuava a ver as coisas como antes isto é a relva verde
as rosas vermelhas e o marfim branco E desatara num pranto que descolara as
lentes de íris azul que se desvaneceram na paisagem

E o rei fora à bruxa que lhe dissera

Toma esta bola de borracha Cuidado que é uma bola mágica A Luísa que a fite
durante o fim de semana e verá o seu desejo realizar se

Mas a princesa fitara a sábado domingo e segunda feira de manhã e para além
de ficar temporariamente de olhos em bico tudo continuara na mesma

A situação parecia desesperada Ninguém compreendia o problema da filha do rã e


ninguém conseguia por conseguinte solucioná lo E a princesa todas as noites
se

encerrava no seu quarto e lamentava

Ah Quem me dera ter olhos azuis Porque não hei de ter olhos azuis e ser
como as princesas dos contos de fadas

E chorava

Então o rei fez uma última tentativa para resolver a questão Apelou para a nação
Mandou pôr anúncios nos jornais e radiodifundir notas oficiosas discursou na
televisão e enviou arautos até aos recantos mais recônditos do país onde não
havia água nem luz nem hospital nem estradas prometendo uma recompensa
choruda a quem quer que descobrisse remédio para o mal da princesa Luz Lúcia Luísa
Luzia a sua filha única

No palácio choveram telegramas telexes postais ilustrados Junto ao portão de


serviço os súbditos mais desconfiados faziam uma bicha de sete cabeças para
entregarem pessoalmente as suas receitas infalíveis e secretas e se habilitarem ao
monumental prémio de um apartamento no Algarve um automóvel uma torradeira
eléctrica e a obra completa de um egrégio poeta

Mas depois de experimentados os diversos remédios receitas mezinhas poções


xaropes soluções e sugestões verificou se que nenhum resultava A situação era
mesmo desesperada E todas as noites na sua torre de marfim a princesa
continuava a lamentar se

Ah Quem me dera ter olhos azuis Quem me dera poder ver o mundo como as
outras princesas

E chorava chorava

Após um mês de tentativas frustradas para solucionar o problema da filha o rei


desistiu Mas a verdade é que se preocupava De noite não dormia Rebolava se
para a direita e para a esquerda na poltrona cama da sala do trono e a sua real
insónia crescia De dia não sossegava Andava de um lado para o outro distraído
e mal humorado ordenando ora que sim ora que não ora que talvez e
sobressaltando os ministros com as reviravoltas da sua palavra que até ali sempre
fora de rei

O país agitava se Nos corredores do palácio corriam boatos Nos gabinetes e


repartições públicas os altos funcionários redigiam abaixo assinados Nas caves
dos museus e conservatórias os conservadores conspiravam E no meio do corropio
o monarca parecia cada vez mais concentrado na sua tragédia doméstica e alheio aos
deveres de estado até que uma manhã ao levantar os olhos para o retrato do
fundador da dinastia pendurado em frente viu pintado a azul a toda a largura
da parede

O rei ficou muito abalado Que mão misteriosa invadira os seus aposentos e
escrevera aquela frase fosforescente e de lesa majestade Chamou o camareiro
que não sabia de nada e o guarda costas que não dera por ninguém E como as
letras não saíssem com água nem lixívia nem sabão macaco acabou por
telefonar ao pintor da corte que se encontrava de férias em Itália mandando o
regressar pois precisava da parede pintada

A restauração da parede e a subsequente redecoração do aposento marcaram


decisivamente a história do reino

O pintor Lucas um rapaz pertencente a uma família de artistas e políticos o pai


fora director de circo e o avô deputado tornara se pintor oficial do palácio
numa época em que a pintura realista estava na moda e era o seu representante mais
aristocrático Agora na sala do trono diante daquelas letras tortas e daquela
frase berrante embora chocado com a caligrafia descuidada não podia deixar de
concordar com o teor da É mensagem Realmente os reis eram para reinar e as
realidades para serem ditas Mas não fez comentários Examinou a parede olhou
as outras três de onde o mirava uma sorumbática galeria de retratos de reis
rainhas infantes infantas cães e cavalos a óleo pastel aguarela e
acrílico e disse

Majestade sinto me inspirado Conceda me três dias e um cheque em branco e


terá muito mais do que a parede restaurada ficará com uma sala do trono
verdadeiramente surrealista e revolucionária

O rei hesitou Por um lado não gostava de revoluções por outro o adjectivo

surrealista agradara lhe E decidiu

Muito bem mas nada de exageros Em lugar de três dias dou te seis e em
vez de um cheque em branco recebes um terço

E foi assim que seis dias depois numa radiosa tarde de Primavera o rei
acompanhado da princesa do chanceler dos ministros e do camareiro entrou na
sala do trono para inaugurar a obra prima do pintor Lucas

Ah exclamou o monarca Que pompa

Ah ecoou a comitiva Que espectáculo

E era uma festa As quatro paredes do salão fosforesciam pintadas de azul


eléctrico O tecto acastelava se em nuvens de estuque azul celeste O chão mais
parecia um mar de mármore Os móveis eram de aço Os estofos de peluche violeta
Os reposteiros de brocado magenta Os quadros estavam magistralmente retocados e
ostentavam tons que iam do azul escuro ao azul desmaiado passando pelos azuis
da Prússia cobalto peúga e turquesa Nos lustres tremulavam lâmpadas de néon

Então no meio do silêncio que se fizera perante aquele cenário fantástico ouviu
se a voz de Luz Lúcia Luísa Luzia que gritava entusiasmada

Ah Vejo tudo azul Já vejo tudo como as outras princesas Ah Já tenho


olhos azuis com certeza

Ninguém a contrariou Não valia a pena Porque os olhos reluzentes da princesa


Luzia reflectiam os vários matizes azuis dos objectos que a rodeavam e cintilavam
de facto como duas enormes safiras

Nessa mesma tarde o monarca mandou publicar dois decretos O primeiro


condecorando o pintor Lucas com o Grande Pincel dos Artistas de Génio o segundo
proclamando o azul cor única e obrigatória dentro do palácio A solução do
problema da filha devolvera lhe o interesse pelos assuntos de estado Era de novo
um pai feliz e um rei que reinava

Nessa noite dormiu regalado

Nessa noite enquanto a princesa Lúcia sonhava um exército de pedreiros


carpinteiros jardineiros cozinheiros alfaiates e operários não diferenciados
comandado pelo genial Lucas suava em bica para tornar azuis os trinta e três
pisos do edifício recheio inclusive

Quando a meio da manhã o rei subiu aos jardins suspensos para tomar o pequeno
almoço em família a operação estava terminada Desde a libré do ascensorista ao
pêlo do gato desde a torre de azulejos ao relvado de plástico desde o serviço
de porcelana ao sumo de laranja à geleia de marmelo e ao café com leite tudo
fora talhado tinto revestido alcatifado escolhido e corado artificialmente
de acordo com a cor vigente

A partir daí o azul alastrou ao país

Primeiro espalhou se pela capital Era como uma moda os blue jeans esgotavam
se nas boutiques «O Anjo Azub batia os recordes das bilheteiras nas discotecas
dançava se ao ritmo da «Rapsódia em Blue» A burguesia aliviada com a acalmia
política distraia se com valsas fitas e folguedos azuis

Depois a mania alcançou os confins da província Não havia chalé furgoneta nem
aviário que não fosse pintado a Pinta Azul um exclusivo da firma Lucas Lda
Não havia dona de casa que não gastasse produtos Larazul que limpavam à farta
Não havia rancho folclórico nem equipa de râguebi que não disputasse a cor da corte
para a sua bandeira mascote ou t shirt

Por último o azul transformou se numa praga Durante uma ausência do rei no
estrangeiro num congresso de monarcas o chanceler Daltónico pessoa
extremamente metódica consultou a princesa

O Decreto Azul é um êxito Limitá lo ao palácio é privar o resto do país dos


seus efeitos benéficos Vossa Graciosa Alteza que pensa

Sua Alteza não pensava O resto do país não lhe interessava Não saía à rua E
ante a sua graciosa indiferença o chanceler proclamou o azul cor nacional única
e obrigatória aquém fronteiras

Foram proibidos «A Pantera Cor de Rosa» a febre amarela e o Partido dos Verdes
foram censurados «A Branca de Neve» e «O Capuchinho Vermelho» foram azulados as
florestas o sol os campos as luzes dos semáforos e os nomes das cores nos
dicionários e compêndios Doravante deveriam ser azuis todos os arcos íris
todos os bifes mal passados e todos os sonhos e ai de quem não concordasse e
protestasse

A lista completa das proibições e obrigações era longa e terrivelmente monótona


Resumindo o País Azul tornara se um borrão de tinta no mapa Ou uma nódoa

Mudando de paisagem
Longe do País Azul a vários milhares de milhas de distância num país da Arábia
o sultão Omar dava um banquete em honra dos seus pares que tinham vindo das sete
partidas do mundo para participar no III Congresso Mundial de Monarcas Era uma
festa das mil e uma noites e estava no auge A rainha do Sabá sambava com o faraó
do Egipto o imperador da China jogava pingue pongue com o czar as presidentas
do Hemisfério Ocidental maravilhavam se com os tapetes voadores e as lâmpadas de
Aladino muito mais práticos e económicos do que os modernos aviões supersónicos e
centrais nucleares
No meio da animação geral só dois monarcas destoavam O nosso rei que
refastelado numa otomana mergulhara na contemplação de uma laranjada cor de
laranja E o anfitrião que empoleirado num banco pernalta mascava furiosamente
pastilha elástica De repente entreolharam se Esboçaram um sorriso amarelo
ergueram se e aproximaram se
Ah Os filhos só nos causam desgostos disse o sultão
Ah As filhas só nos criam problemas disse o pai de Luzia
E ao descobrirem se companheiros de infortúnio caíram nos braços um do outro
Depois de o grande Omar se ter queixado das ideias do Jovem Omar que considerava
irrealistas e irresponsáveis foi a vez de o pai de Luzia desatar à pintar o
futuro azul escuro que o esperava em casa pois acabara de saber pelo telejornal
que o Decreto Azul fora promovido a decreto nacional
Pelo telejornal fungou o sultão Cheira me a traição Alguém anda a
tomar

decisões nas vossas costas O meu primeiro ex grão vizir tentou o mesmo e mandei
exterminá lo com elixir de caroço de pêssego

Não sei hesitou o rei mordendo uma azeitona de cocktail O caso


não me parece assim tão venenoso Talvez um novo capricho da Luísa ou um excesso
de zelo do Daltónico De qualquer maneira é de mau gosto

Um abuso

É azul de mais

Em absoluto

Que falta de imaginação

E se rebenta uma revolução

O rei engasgou se E depois raciocinou

Tendes razão Preciso de regressar já à pátria e evitar uma explosão Vou


telegrafar ao meu Ministro dos Negócios Secretos para que me espere mais cedo e
apanhar imediatamente um táxi aéreo

E o sultão replicou

Nem pensar Viajais no meu Tap voador particular O meu filho vai levar vos
É campeão olímpico de altas cavalarias ás do pedal e um óptimo piloto acrobático

Não queria incomodar vos

Não me incomodais Em ocasiões como esta há que ser rápido Tempo é dinheiro e
dinheiro é poder

Sois muito amável disse o rei


Devemos aliar nos uns aos outros disse o sultão com convicção Se os
monarcas não se aliassem nos momentos de crise onde estaríamos nós a estas horas
mais as nossas famílias os nossos haréns e as nossas regalias e os Rolls
Royces os biliões na Suíça e os poços de petróleo os iates os satélites
os vídeos japoneses os foguetões as legiões e os jardins zoológicos

Ao longe o relógio de um minarete bateu meia noite Os minutos passavam Os


dois monarcas trocaram dois abraços e dois salamaleques despediram se até breve
e até sempre e saíram à pressa da sala de banquetes cada um para seu lado O
grande Omar para falar com o filho e dar as ordens necessárias à descolagem do seu
tapete particular a jacto O pai de Lúcia para telegrafar ao seu ministro ultra
secreto e fazer as malas

E foi assim que dali a um quarto de hora tudo se encontrava pronto para a viagem

O Tap voador Jet 7 do sultão meticulosamente sacudido e aspirado achava se


desenrolado no terraço do palácio com a tenda de voo armada O jovem Omar
completamente equipado com turbante cachecol luvas óculos e pára quedas
estava postado à entrada da tenda de lona cor de rosa às riscas E quando o rei
por fim apareceu carregado de malas malinhas maletas máquina fotográfica
chapéu de chuva guarda pó azul de zibelina múltiplos sacos de plástico um
molho de jornais e revistas estrangeiros e uma pasta de executivo de pele de
crocodilo partiram

O príncipe Omar adorava voar O pai de Lúcia também Mas a velocidade a que
seguiam causava lhe vertigens O firmamento lá em cima estava semeado de
estrelas que iam ficando para trás quase tão rapidamente quanto as luzinhas que se
avistavam lá em baixo no solo nas casas nas estradas nos rios nos oásis
A lua em quarto crescente brilhava nas franjas prateadas do tapete e o vento
cantava nos delgados fios de seda De vez em quando numa curva apertada o Tap
inclinava se tanto que por pouco não se virava confundindo céu e terra de vez
em quando em zonas de turbulência caía em poços de ar ou subia em flecha O
príncipe travava derrapava acelerava e nos intervalos discursava sobre
astronomia e viagens interplanetárias não resistindo a executar uma ou outra
acrobacia aeronáutica O rei sentia se cada vez mais incomodado com o estômago
aos saltos e a cabeça à roda Já não o ouvia mal conseguia abrir os olhos
Então num esforço heróico disse em tom enjoado que estava cheio de sono deu
as boas noites e debandou para o seu camarote E o filho do sultão ao ver se
sem público bocejou ligou o piloto automático e imitou o

Acordaram por volta do meio dia Um dia de calor tropical Tinham sobrevoado a
Arábia Feliz e voavam sobre a Infeliz O rei definitivamente curado do enjoo
devorou o almoço O príncipe que parecia ter perdido o apetite contentou se
com um iogurte simples E a conversa derivou aos poucos da fartura para a falta
Das vacas gordas para as vacas magras E para as fomes as secas as pestes e as
pragas de gafanhotos e congéneres que havia séculos afligiam os habitantes daquela
província da Arábia

Era preciso fazer qualquer coisa exclamava Omar O monarca concordava e


perguntava lhe porque não fazia construir barragens importar forragens
ministrar vacinas ensinar a ler escrever e contar pulverizar as culturas com
insecticida E o jovem respondia que sim a cada sugestão mas acrescentava só
que ainda não quando se tornasse sultão quando se tornasse sultão seria o
manda chuva e então sim faria tudo e mais alguma coisa
Entretanto enquanto a hora de herdar o trono dos Omares e pôr em prática as suas
boas intenções não chegava o futuro sultão só podia tomar uma atitude imediata
sentar se de novo no seu cadeirão de piloto agarrar se aos comandos do jacto
carregar a fundo no acelerador e fazer por esquecer aquelas paragens Foi o que
fez

Na manhã seguinte encontravam se muito longe Para além dos Mares Branco
Vermelho e Tenebroso do Nilo Azul e do Rio Amarelo do Arquipélago de Cabo Verde
e da Costa Esmeralda Acabadas as geografias coloridas penetraram numa região
parda O céu cercava os enevoado e fosco A seus pés estendia se uma vasta
planície cinzenta uma espécie de deserto ou de terra de ninguém Era a
fronteira entre dois mundos O dos factos e o dos sonhos o real e o fantástico
dos reinos maravilhosos dos contos de fadas e das histórias inventadas Aí
planava o Jet 7 com os motores misteriosamente paralisados Aí pairavam O pai de
Luísa e o príncipe impacientes à espera de uma inspiração que os ajudasse a
passar para O lado de lá da barreira onde ficavam o País Azul e os outros países
imaginários

Esperaram o dia inteiro e a inspiração não veio Nem uma lufada de ar fresco nem
uma ideia luminosa nem uma palavra mágica Continuaram à espera Omar lia
um

romance de política científica a sua literatura favorita O rei jogava sozinho


uma partida de xadrez em que os dois monarcas do jogo pareciam os seus retratos
sem barba e mais gordo as duas rainhas o fitavam com os olhos brilhantes de Luz
Lúcia Luísa Luzia os bispos tinham o andar oblíquo e a cabeça em bico do
chanceler Daltónico as torres eram de marfim e os cavalos voavam Pelo meio da
noite sentiu se um estremeção houve um clarão ouviu se um trovão Era a
inspiração que vinha O livro do príncipe saltou lhe das mãos o tabuleiro de
xadrez escorregou para o chão e como por encanto os motores do Tap recomeçaram
a funcionar o tapete a avançar e entraram no mundo da fantasia

Atravessaram o Vale das Sombras o Lago do Sono e a Ilha do Mocho Ao alvorecer


avistaram o palácio da princesa Aurora que se levantara com a madrugada
Sobrevoaram a Cidade do Sol E as Nações dos Gigantes e dos Anões O Império dos
Medíocres e a Disneylândia À tarde atrasaram se O computador de bordo enganou
se nos cálculos e em vez de os guiar para a Colónia das Máquinas Inteligentes
mandou os para a República dos Aprendizes de Feiticeiro Corrigido o erro e
retomada a rota certa rumaram para Norte para os Picos Fumados dos Salmões
Congelados e depois para Sul para a Selva dos Macacos E depois para Ocidente
para o Oceano Crepuscular e para as Metrópoles do Far West Até que de
repente ao saírem meteoricamente do Labirinto das Estrelas Cadentes lhes
apareceu no céu nocturno a lua cheia e na terra iluminada uma imensa mancha
azul pálida o país de Sua Majestade

Um sol azul começava a raiar no horizonte azul quando finalmente aterraram na


capital azul do País Azul
Que disparate disse o rei mal pisou solo pátrio Pôs o guarda pó de
zibelina pelos ombros e a coroa na cabeça empertigou se e subiu para o carro
camuflado azul mesclado em que o Ministro dos Negócios Secretos os viera esperar
ao aeroporto

Espantoso comentou Omar sem tirar os olhos da paisagem dos descampados


azuis dos couvais azuis dos barracões azuis dos montes azuis de sucata e dos
bairros azuis de lata que ladeavam a avenida principal entre o aeroporto e o
centro da capital E a seguir já no coração da cidade entre os arranha céus
azuis os largos azuis os engarrafamentos azuis e as caras azuis dos cidadãos
azuis pensou que monotonia

Uma nódoa lamentou se o Ministro dos Negócios Secretos com discreta


mágoa Quase não se distinguem as noites dos dias os negócios escuros dos
negócios da China os bons dos maus da história já ninguém se envergonha
ninguém cora

E com um ziguezague sinistro em que quase atropelou um cão azul que se


refastelara no meio da rua azul galgou o passeio entrou por um portão oculto
num falso muro desceu uma rampa enfiou por um túnel e desembocou num recinto
azul garagem onde parqueou o carro Estavam nas profundezas do palácio

Treze andares mais acima na sala do trono decorria uma reunião extraordinária
dos ímpares do reino Sua Alteza Luz Lúcia Luísa Luzia o chanceler os
ministros e os leais conselheiros preparavam se para discutir e votar uma proposta
daltónica dar o

último retoque no Decreto Azul e declarar a cor uniforme obrigatória ou seja


proibir os vários tons de azul até então existentes conforme as naturezas e os
gostos diferentes dos utentes e permitir só um o azul princesa

Vai ser muito simples explicou o chanceler

Vai ser um horror contrariou Lucas o pintor que a pedido de várias


famílias de artistas plásticos se deslocara expressamente de Itália onde fixara
residência e montara uma academia de beleza e uma fábrica de antiguidades clássicas

Vai ser o fim do mundo predisse a bruxa cabisbaixa depois de


consultar a bola de borracha

A princesa trajando a rigor o seu tom da sua cor parecia uma esfinge e não se
pronunciava

Entretanto lá fora o povo agitava se Um mar azul de gente invadira os


jardins azuis do palácio e manifestava a sua preocupação sobre o resultado da
votação

Abaixo o chanceler gritavam uns

Viva a revolução berravam outros

Guilhotinem o decreto exigiam todos

Luísa abre os olhos avisou uma voz não identificada

Então Lúcia que se mantivera impávida pestanejou arregalou os olhos


brilhantes para o tecto azul para o lustre azul e para as paredes azuis passou
em revista os quadros azuis e os aerodinâmicos aparelhos de ar azul condicionado
estrategicamente colocados

nos quatro cantos do quarto encarou azulada a assembleia azul extraordinária e


disse
Basta Abram as janelas para arejarmos as ideias Estou farta

Nesse preciso instante a porta abriu se e entrou o monarca Atrás dele vinha o
filho do sultão com um turbante deslumbrante cor de açafrão

Durante um segundo ninguém se mexeu ninguém respirou não se ouviu uma palavra
Depois a princesa correu a saudar o pai e a inspeccionar o jovem do turbante
perturbante E o rei ordenou

Abram as janelas de sacada

Lá fora a multidão não se calava

Queremos caldo verde pediam uns

Queremos feijão encarnado preferiam outros

Queremos televisão a cores reclamavam todos

Queremos um rei que reine repetia uma voz insistente

Majestosamente o monarca apareceu à janela de sacada O mar de gente que agitava


cartazes com frases audazes imobilizou se Fez se silêncio E o rei falou ao
povo

Povo Cidadãos Compreendo os vossos protestos Sabeis como gosto de cores


vivas e de pull overs amarelos É tempo de acabar com os abusos cometidos na
minha ausência O Decreto Azul foi um erro de visão que se tornou num pesadelo
Declaro o nulo e abolido desde já Mas atenção não permitirei exageros O que
é azul por natureza continuará azul como é natural Amigos Temos à nossa
frente uma tarefa sensacional Vamos todos trabalhar para restituir às coisas as
suas cores originais Vamos limpar o

pais as cidades os campos e as praias o lixo atómico as indústrias inúteis


e as palavras Vamos despoluir os rios e a atmosfera o parlamento Desazular o
queijo de bola e as escolas os supermercados e os ministérios Vamos lavar os
quartéis os pincéis os coronéis e as bombas Redecorar o palácio e plantar
florestas amazónicas Vamos restaurar a massa cinzenta e as leis transparentes
Vamos devolver a cor à esperança verde

Quando chegou à esperança verde o rei engasgou se Já não estava habituado a


tanta eloquência E a filha e o príncipe Omar que o escutavam boquiabertos
assustaram se e assomaram à janela Foi um assombro Uma verdadeira loucura O
fulgor do turbante cor de açafrão do filho do sultão no vestido de tafetá azul
princesa de Luz Lúcia Luísa Luzia criava a ilusão de brocado esmeralda A multidão
irrompeu numa deslumbrada salva de palmas Choveram vivas delirantes

Viva o rei Viva a princesa Viva o ilustre desconhecido Viva Viva Viva
a Pimpinela Escarlate Viva o Rato Mickey Viva o Sporting Clube da Amareleja
Viva o Benfica Vivam os autocarros laranja Viva Viva Viva Viva o Barba
Ruiva Viva Viva a Brancaflor Viva Viva a Rosa Rosa Viva Viva Vivam as
«Capas Negras» Viva Vivam as páginas amarelas Viva Vivam as castanhas
Viva o medronho Vivam as cerejas Viva a vida colorida

Os cidadãos nunca mais se calavam Até que passada meia hora de vivas o monarca
já completamente desengasgado mas com uma ligeira dor de ouvidos levantou o braço
a pedir ordem E ordenou

Ordem meus amigos Ordem Basta de boas intenções Agora mãos à obra

E arregaçando as mangas do pull over de chachemira azul escura foi o primeiro


a dar o exemplo

Como por magia do céu azul celeste começou a cair uma chuva cristalina que
engrossou se transformou em aguaceiro quase num dilúvio e os foi ajudando a
lavar tudo

E a princesa E o príncipe E o chanceler E o futuro

O chanceler Daltónico foi metodicamente internado para observação numa clínica


oftalmológica especializada como o nome indica em problemas dos olhos
daltonismos astigmatismos vista grossa falta de visão visões duplas
miopias doenças televisivas e previsões meteorológicas

O par principesco casou se como era de calcular O príncipe Omar olhou


languidamente a princesa nos olhos e exclamou

Nunca vi uns olhos tão brilhantes como dois diamantes As princesas do Norte
de olhos azuis são frias como gelo As princesas das mil e uma noites de olhos
negros e coruscantes como carvões e que moram na Arábia são como fogo e queimam
Porém os vossos olhos ó princesa são límpidos e claros como nascentes e
radiantes como a luz das estrelas Espelham e iluminam as cores do mundo
inteiro

E Luz que nunca ouvira declaração tão elucidativa e esclarecida olhou


longamente o mundo inteiro com olhos novos e perguntou a medo

O belo príncipe quereis ser o meu consorte

E Omar quis

Quanto ao futuro o casal O chanceler o camareiro os ministros a bruxa e


os conselheiros o pintor Lucas o bobo o monarca e o povo € O escrivão deste
conto todos viveram para sempre na maior harmonia e no melhor dos reinos
possíveis como já lá dizia um célebre filósofo de corte o senhor Godofredo
Guilherme Leibniz

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