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Não podia portanto ser uma princesa de contos de fadas Nem podia ser uma princesa
das mil e uma noites porque essas têm olhos negros e coruscantes como carvões
são filhas de sultões ou de califas e moram na Arábia Era apenas uma princesa e
mais nada
A princesa que se chamava Luz Lúcia Luísa Luzia nomes que herdara da avó da
bisavó da trisavó e da tetravó paternas nunca saía de casa Passava os dias a
passear melancolicamente pelos jardins do último andar do palácio ditos suspensos
como os da Babilónia e à noite fechava se à chave numa torre de marfim E
chorava chorava
O rei que dormia na sala do trono situada trinta e três pisos mais abaixo
ouvia a chorar e ficava com reais insónias Embora fosse perito em resolver os
mais intrincados quebra cabeças de estado políticos económicos e diplomáticos
não sabia como solucionar o problema da filha E aconselhara se o que era caso
Taro
Sua Graciosa Alteza precisa é de lentes de contacto Vou colocar lhe umas
lentes especiais de íris azul cobalto
Mas a princesa apesar dos seus novos olhos azuis postiços e espampanantes
queixara se de que continuava a ver as coisas como antes isto é a relva verde
as rosas vermelhas e o marfim branco E desatara num pranto que descolara as
lentes de íris azul que se desvaneceram na paisagem
Toma esta bola de borracha Cuidado que é uma bola mágica A Luísa que a fite
durante o fim de semana e verá o seu desejo realizar se
Mas a princesa fitara a sábado domingo e segunda feira de manhã e para além
de ficar temporariamente de olhos em bico tudo continuara na mesma
Ah Quem me dera ter olhos azuis Porque não hei de ter olhos azuis e ser
como as princesas dos contos de fadas
E chorava
Então o rei fez uma última tentativa para resolver a questão Apelou para a nação
Mandou pôr anúncios nos jornais e radiodifundir notas oficiosas discursou na
televisão e enviou arautos até aos recantos mais recônditos do país onde não
havia água nem luz nem hospital nem estradas prometendo uma recompensa
choruda a quem quer que descobrisse remédio para o mal da princesa Luz Lúcia Luísa
Luzia a sua filha única
Ah Quem me dera ter olhos azuis Quem me dera poder ver o mundo como as
outras princesas
E chorava chorava
O rei ficou muito abalado Que mão misteriosa invadira os seus aposentos e
escrevera aquela frase fosforescente e de lesa majestade Chamou o camareiro
que não sabia de nada e o guarda costas que não dera por ninguém E como as
letras não saíssem com água nem lixívia nem sabão macaco acabou por
telefonar ao pintor da corte que se encontrava de férias em Itália mandando o
regressar pois precisava da parede pintada
O rei hesitou Por um lado não gostava de revoluções por outro o adjectivo
Muito bem mas nada de exageros Em lugar de três dias dou te seis e em
vez de um cheque em branco recebes um terço
E foi assim que seis dias depois numa radiosa tarde de Primavera o rei
acompanhado da princesa do chanceler dos ministros e do camareiro entrou na
sala do trono para inaugurar a obra prima do pintor Lucas
Então no meio do silêncio que se fizera perante aquele cenário fantástico ouviu
se a voz de Luz Lúcia Luísa Luzia que gritava entusiasmada
Quando a meio da manhã o rei subiu aos jardins suspensos para tomar o pequeno
almoço em família a operação estava terminada Desde a libré do ascensorista ao
pêlo do gato desde a torre de azulejos ao relvado de plástico desde o serviço
de porcelana ao sumo de laranja à geleia de marmelo e ao café com leite tudo
fora talhado tinto revestido alcatifado escolhido e corado artificialmente
de acordo com a cor vigente
Primeiro espalhou se pela capital Era como uma moda os blue jeans esgotavam
se nas boutiques «O Anjo Azub batia os recordes das bilheteiras nas discotecas
dançava se ao ritmo da «Rapsódia em Blue» A burguesia aliviada com a acalmia
política distraia se com valsas fitas e folguedos azuis
Depois a mania alcançou os confins da província Não havia chalé furgoneta nem
aviário que não fosse pintado a Pinta Azul um exclusivo da firma Lucas Lda
Não havia dona de casa que não gastasse produtos Larazul que limpavam à farta
Não havia rancho folclórico nem equipa de râguebi que não disputasse a cor da corte
para a sua bandeira mascote ou t shirt
Por último o azul transformou se numa praga Durante uma ausência do rei no
estrangeiro num congresso de monarcas o chanceler Daltónico pessoa
extremamente metódica consultou a princesa
Sua Alteza não pensava O resto do país não lhe interessava Não saía à rua E
ante a sua graciosa indiferença o chanceler proclamou o azul cor nacional única
e obrigatória aquém fronteiras
Foram proibidos «A Pantera Cor de Rosa» a febre amarela e o Partido dos Verdes
foram censurados «A Branca de Neve» e «O Capuchinho Vermelho» foram azulados as
florestas o sol os campos as luzes dos semáforos e os nomes das cores nos
dicionários e compêndios Doravante deveriam ser azuis todos os arcos íris
todos os bifes mal passados e todos os sonhos e ai de quem não concordasse e
protestasse
Mudando de paisagem
Longe do País Azul a vários milhares de milhas de distância num país da Arábia
o sultão Omar dava um banquete em honra dos seus pares que tinham vindo das sete
partidas do mundo para participar no III Congresso Mundial de Monarcas Era uma
festa das mil e uma noites e estava no auge A rainha do Sabá sambava com o faraó
do Egipto o imperador da China jogava pingue pongue com o czar as presidentas
do Hemisfério Ocidental maravilhavam se com os tapetes voadores e as lâmpadas de
Aladino muito mais práticos e económicos do que os modernos aviões supersónicos e
centrais nucleares
No meio da animação geral só dois monarcas destoavam O nosso rei que
refastelado numa otomana mergulhara na contemplação de uma laranjada cor de
laranja E o anfitrião que empoleirado num banco pernalta mascava furiosamente
pastilha elástica De repente entreolharam se Esboçaram um sorriso amarelo
ergueram se e aproximaram se
Ah Os filhos só nos causam desgostos disse o sultão
Ah As filhas só nos criam problemas disse o pai de Luzia
E ao descobrirem se companheiros de infortúnio caíram nos braços um do outro
Depois de o grande Omar se ter queixado das ideias do Jovem Omar que considerava
irrealistas e irresponsáveis foi a vez de o pai de Luzia desatar à pintar o
futuro azul escuro que o esperava em casa pois acabara de saber pelo telejornal
que o Decreto Azul fora promovido a decreto nacional
Pelo telejornal fungou o sultão Cheira me a traição Alguém anda a
tomar
decisões nas vossas costas O meu primeiro ex grão vizir tentou o mesmo e mandei
exterminá lo com elixir de caroço de pêssego
Um abuso
É azul de mais
Em absoluto
E o sultão replicou
Nem pensar Viajais no meu Tap voador particular O meu filho vai levar vos
É campeão olímpico de altas cavalarias ás do pedal e um óptimo piloto acrobático
Não me incomodais Em ocasiões como esta há que ser rápido Tempo é dinheiro e
dinheiro é poder
E foi assim que dali a um quarto de hora tudo se encontrava pronto para a viagem
O príncipe Omar adorava voar O pai de Lúcia também Mas a velocidade a que
seguiam causava lhe vertigens O firmamento lá em cima estava semeado de
estrelas que iam ficando para trás quase tão rapidamente quanto as luzinhas que se
avistavam lá em baixo no solo nas casas nas estradas nos rios nos oásis
A lua em quarto crescente brilhava nas franjas prateadas do tapete e o vento
cantava nos delgados fios de seda De vez em quando numa curva apertada o Tap
inclinava se tanto que por pouco não se virava confundindo céu e terra de vez
em quando em zonas de turbulência caía em poços de ar ou subia em flecha O
príncipe travava derrapava acelerava e nos intervalos discursava sobre
astronomia e viagens interplanetárias não resistindo a executar uma ou outra
acrobacia aeronáutica O rei sentia se cada vez mais incomodado com o estômago
aos saltos e a cabeça à roda Já não o ouvia mal conseguia abrir os olhos
Então num esforço heróico disse em tom enjoado que estava cheio de sono deu
as boas noites e debandou para o seu camarote E o filho do sultão ao ver se
sem público bocejou ligou o piloto automático e imitou o
Acordaram por volta do meio dia Um dia de calor tropical Tinham sobrevoado a
Arábia Feliz e voavam sobre a Infeliz O rei definitivamente curado do enjoo
devorou o almoço O príncipe que parecia ter perdido o apetite contentou se
com um iogurte simples E a conversa derivou aos poucos da fartura para a falta
Das vacas gordas para as vacas magras E para as fomes as secas as pestes e as
pragas de gafanhotos e congéneres que havia séculos afligiam os habitantes daquela
província da Arábia
Na manhã seguinte encontravam se muito longe Para além dos Mares Branco
Vermelho e Tenebroso do Nilo Azul e do Rio Amarelo do Arquipélago de Cabo Verde
e da Costa Esmeralda Acabadas as geografias coloridas penetraram numa região
parda O céu cercava os enevoado e fosco A seus pés estendia se uma vasta
planície cinzenta uma espécie de deserto ou de terra de ninguém Era a
fronteira entre dois mundos O dos factos e o dos sonhos o real e o fantástico
dos reinos maravilhosos dos contos de fadas e das histórias inventadas Aí
planava o Jet 7 com os motores misteriosamente paralisados Aí pairavam O pai de
Luísa e o príncipe impacientes à espera de uma inspiração que os ajudasse a
passar para O lado de lá da barreira onde ficavam o País Azul e os outros países
imaginários
Esperaram o dia inteiro e a inspiração não veio Nem uma lufada de ar fresco nem
uma ideia luminosa nem uma palavra mágica Continuaram à espera Omar lia
um
Treze andares mais acima na sala do trono decorria uma reunião extraordinária
dos ímpares do reino Sua Alteza Luz Lúcia Luísa Luzia o chanceler os
ministros e os leais conselheiros preparavam se para discutir e votar uma proposta
daltónica dar o
A princesa trajando a rigor o seu tom da sua cor parecia uma esfinge e não se
pronunciava
Nesse preciso instante a porta abriu se e entrou o monarca Atrás dele vinha o
filho do sultão com um turbante deslumbrante cor de açafrão
Durante um segundo ninguém se mexeu ninguém respirou não se ouviu uma palavra
Depois a princesa correu a saudar o pai e a inspeccionar o jovem do turbante
perturbante E o rei ordenou
Viva o rei Viva a princesa Viva o ilustre desconhecido Viva Viva Viva
a Pimpinela Escarlate Viva o Rato Mickey Viva o Sporting Clube da Amareleja
Viva o Benfica Vivam os autocarros laranja Viva Viva Viva Viva o Barba
Ruiva Viva Viva a Brancaflor Viva Viva a Rosa Rosa Viva Viva Vivam as
«Capas Negras» Viva Vivam as páginas amarelas Viva Vivam as castanhas
Viva o medronho Vivam as cerejas Viva a vida colorida
Os cidadãos nunca mais se calavam Até que passada meia hora de vivas o monarca
já completamente desengasgado mas com uma ligeira dor de ouvidos levantou o braço
a pedir ordem E ordenou
Ordem meus amigos Ordem Basta de boas intenções Agora mãos à obra
Como por magia do céu azul celeste começou a cair uma chuva cristalina que
engrossou se transformou em aguaceiro quase num dilúvio e os foi ajudando a
lavar tudo
Nunca vi uns olhos tão brilhantes como dois diamantes As princesas do Norte
de olhos azuis são frias como gelo As princesas das mil e uma noites de olhos
negros e coruscantes como carvões e que moram na Arábia são como fogo e queimam
Porém os vossos olhos ó princesa são límpidos e claros como nascentes e
radiantes como a luz das estrelas Espelham e iluminam as cores do mundo
inteiro
E Omar quis
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