Você está na página 1de 124

Notas complementares de Tópicos de Fı́sica Moderna

1o ano da Licenciatura de Engenharia Informática da U.C.

Mecânica Quântica e Informação

Uma Introdução

Helena Vieira Alberto


2016
2
Conteúdo

1 Dualidade Onda-Partı́cula 5
1.1 O fotão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5
1.1.1 O Efeito Fotoelétrico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6
1.1.2 O Efeito de Compton . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
1.1.3 Natureza dual do fotão . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18
1.2 Hipótese de de Broglie . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
1.2.1 Experiência de Davisson-Germer . . . . . . . . . . . . 21
1.3 A experiência da dupla fenda . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23
1.4 Interpretação probabilı́stica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29
1.5 Relações de Incerteza de Heisenberg . . . . . . . . . . . . . . 30

2 Fundamentos de Mecânica Quântica 39


2.1 A equação de onda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39
2.2 Operadores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43
2.3 Exemplos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46
2.3.1 Poço de potencial infinito . . . . . . . . . . . . . . . . 47
2.3.2 Oscilador harmónico quântico a uma dimensão . . . . . 53
2.4 Densidade de Probabilidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56
2.5 Probabilidades e Valores Médios . . . . . . . . . . . . . . . . . 57
2.6 Formalismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61
2.6.1 Notação de Dirac . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63
2.7 O problema da medida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65
2.8 Resumo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69
2.9 O Spin . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70
2.9.1 A experiência de Stern-Gerlach . . . . . . . . . . . . . 71
2.9.2 Formalismo dos operadores de spin . . . . . . . . . . . 76
2.9.3 Medidas sequenciais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85

3
4 CONTEÚDO

3 Informação Quântica 87
3.1 Informação clássica versus informação quântica . . . . . . . . 87
3.2 O que é um bit quântico? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 90
3.3 Sistemas de um qubit . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92
3.3.1 Esfera de Bloch . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92
3.3.2 O fotoqubit . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96
3.3.3 Gates quânticas de um qubit . . . . . . . . . . . . . . . 100
3.3.4 Criptografia: o protocolo BB84 . . . . . . . . . . . . . 103
3.4 Sistemas de dois qubits . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107
3.4.1 Gates de dois qubits . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107
3.4.2 Entanglement . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109
3.4.3 O paradoxo de EPR . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111
3.4.4 Teletransporte Quântico . . . . . . . . . . . . . . . . . 113
3.5 Computadores quânticos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117
3.5.1 Fotões . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117
3.5.2 Ion traps . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 118
3.5.3 Quantum dots . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 119
3.5.4 NMR . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 120
3.5.5 Supercondutores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 120
Capı́tulo 1

Dualidade Onda-Partı́cula

1.1 O fotão
Nos finais do séc. XIX a natureza da luz parecia completamente esclarecida:
trata-se de uma onda eletromagnética que se propaga no vazio com veloci-
dade c = 2, 99792458 × 108 m/s (Fig.1.1). Num meio material, a velocidade
de propagação, v, é inferior a c. A velocidade da luz é determinada pelas
constantes elétrica e magnética do meio onde se propaga,  e µ, respetiva-
mente:
1 1
em geral, v = √ ; no vazio, c = √ .
µ µ0 0

Campo Elétrico Campo


Magnético

Figura 1.1: A luz é radiação eletromagnética, ou seja, é a propagação de dois


campos, elétrico e magnético, acoplados.

A luz visı́vel tem a mesma natureza fı́sica das ondas de rádio, dos in-
fravermelhos ou dos raios γ (Fig.1.2). Das ondas de rádio aos raios γ, as

5
6 CAPÍTULO 1. DUALIDADE ONDA-PARTÍCULA

ondas eletromagnéticas propagam-se no vazio com velocidade c, mas com


frequências e comprimentos de onda que podem ser muito diferentes. No
vazio, a relação entre frequência f e comprimento de onda λ é dada por

f = c/λ .

Figura 1.2: O espetro eletromagnético.

O eletromagnetismo é uma teoria extraordinariamente bem sucedida na


descrição de um conjunto muito diversificado de fenómenos. Contudo, pare-
cia falhar completamente na explicação do chamado efeito fotoelétrico.

1.1.1 O Efeito Fotoelétrico

O efeito fotoelétrico consiste na libertação de


eletrões por um material quando nele incide um
feixe de luz, como ilustra a figura ao lado. O
fenómeno foi descoberto e estudado no séc. XIX,
mas os resultados experimentais permaneceram
sem uma explicação satisfatória até 1905.

Consideremos um tubo de vazio com dois eléctrodos (Fig.1.3). Ao inci-


dir luz no cátodo são emitidos eletrões com energia cinética que é variável,
dependente da sua ligação ao material. A energia mı́nima necessária para
1.1. O FOTÃO 7

provocar a emissão de um fotoeletrão designa-se de função trabalho, φ. A


conservação de energia diz-nos que
Eluz = Tmáx + φ , (1.1)
onde Eluz é a energia da luz incidente e Tmáx é a energia cinética máxima
com que os eletrões são ejetados. Os eletrões emitidos são captados no ânodo.
Se o circuito estiver aberto, como na Fig. 1.31 , gera-se uma diferença de
ânodo
e-

cátodo

Figura 1.3: Representação esquemática de uma ampola usada para estudar


o efeito fotoelétrico.

potencial V entre o cátodo e o ânodo que se opõe ao movimento de eletrões.


A velocidade dos eletrões vai diminuindo à medida que estes se aproximam do
elétrodo e os eletrões menos energéticos podem não chegar a ser recolhidos. À
medida que V aumenta, diminui o número de eletrões recolhidos por unidade
de tempo até que V estabiliza no chamado potencial de paragem, Vp . Quando
V = Vp toda a energia cinética inicial dos fotoeletrões é convertida em energia
potencial elétrica; mesmo os eletrões que são emitidos com energia cinética
Tmáx , já não são recolhidos, pois atingem o ânodo com velocidade nula.
Assim, a energia cinética máxima Tmáx pode ser obtida medindo Vp :
Tmáx = e Vp ,
onde e é a carga do eletrão e portanto
e Vp = Eluz − φ . (1.2)
De acordo com a teoria ondulatória da luz, a energia transportada pela onda
é proporcional à intensidade da luz e independente da sua frequência. A
expressão 1.2 mostra-nos que o potencial de paragem Vp deve exibir um
comportamento idêntico a Eluz , uma vez que φ é uma caracterı́stica do
material.
1
É assim que está concebido o dispositivo usualmente utilizado em laboratórios
didáticos. Não é, contudo, a configuração da experiência original, na qual se media a
corrente recolhida no ânodo.
8 CAPÍTULO 1. DUALIDADE ONDA-PARTÍCULA

Assim, seria natural esperar que


i) o potencial de paragem Vp aumentasse com a intensidade da luz.
ii) Vp fosse independente da frequência da luz.
iii) houvesse um intervalo de tempo mensurável entre o inı́cio da incidência
da luz e a emissão dos primeiros eletrões; esse tempo seria o necessário
para que a energia transportada pela frente da onda eletromagnética
se distribuisse pela área efetiva onde se move um eletrão.

Exemplo 1.1.1 : Fez-se incidir luz de intensidade 10 kW/m2 sobre uma superfı́cie
de potássio, cuja função trabalho é de 2,2 eV. Classicamente, esperar-se-ia que
decorresse um intervalo de tempo t entre o instante em que se liga a fonte de luz
e o instante em que se inicia a emissão de eletrões. Estime esse valor de t.

Resolução: A intensidade da luz I é uma potência por unidade de área, ou seja,


uma energia por unidade de tempo e por unidade de área:

E
I=
tA
A área A em causa pode ser estimada como a secção de um átomo de raio r ' 1 Å.
A energia E deverá ser superior a φ, a energia necessária para remover o eletrão.
Assim,

E φ 2, 2 × 1, 6 × 10−19 J
t= > ' ' 1 ms.
IA IA 10 × 103 W/m2 × π × 10−20 m2
Assim, se houver atraso na emissão de fotoeletrões, esse tempo será facilmente
mensurável.

Os resultados experimentais estão em flagrante contradição com as pre-


visões clássicas. De facto, verifica-se que
i) Vp é independente da intensidade da luz incidente.
ii) Vp aumenta com a frequência da luz e há uma frequência mı́nima, fmin ,
abaixo da qual não há efeito fotoelétrico.
iii) a emissão de fotoeletrões é instantânea, ou seja, não há qualquer atraso
mensurável na emissão.
1.1. O FOTÃO 9

A descrição clássica de uma onda eletromagnética trata a energia da ra-


diação como uma grandeza contı́nua. Contudo, em 1900, Planck mostrou que
a forma da curva de radiação térmica de um corpo negro pode ser explicada
se admitirmos que a energia da radiação eletromagnética está quantificada.
A consistência com os dados exigia que o quantum de radiação tivesse uma
energia proporcional à frequência da radiação. A existência desse quantum
carecia, no entanto, de evidência experimental direta.

Em 1905, Einstein baseou-se na teoria proposta por Planck para apre-


sentar uma explicação do efeito fotoelétrico que permitia compreender os
resultados experimentais. Nessa interpretação, a emissão de um eletrão é
causada por um quantum de luz, como se se tratasse da interação entre duas
partı́culas; a grandeza Eluz que surge na equação (1.1) não é a variável
contı́nua da descrição clássica usada no Exemplo 1.1.1. É a energia de um
quantum de luz - o fotão - dada por

Efotão = h f

onde f é a frequência da luz incidente e h uma constante de proporcionalidade


que ficou conhecida por constante de Planck. No modelo quântico, a equação
(1.2) toma a forma
Tmáx = Efotão − φ , (1.3)

ou seja,
e Vp = hf − φ . (1.4)

Assim, representando graficamente o potencial de paragem Vp em função


da frequência f da luz incidente, é possı́vel determinar a constante de Planck,
h, e a função trabalho, φ.

A figura 1.4 constitui um exemplo de uma determinação experimental da


constante de Planck usando o efeito fotoelétrico. Os dados foram obtidos por
um aluno numa aula de laboratório e o resultado é consistente com o valor
tabelado da constante de Planck, h = 6, 62606876(52) × 10−34 J.s.
10 CAPÍTULO 1. DUALIDADE ONDA-PARTÍCULA

2.5

2.0

1.5

Vp (V) 1.0

0.5
f
min

0.0

0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
14
f (10 Hz)

Figura 1.4: Dependência do potencial de paragem em função da frequência da


luz, obtida nas aulas de laboratório para cinco linhas de emissão do mercúrio:
amarela, verde, azul, violeta e ultra-violeta. A reta ajustada aos dados é dada
por Vp = 4, 3(1) × 10−15 f − 1, 5(1) com V em Volts e f em Hertz, obtendo-se
h = 6, 8(2) × 10−34 J.s e φ = 1, 5(1) eV.

O conhecimento da função trabalho φ, caracterı́stica do material que cons-


titui o fotocátodo, permite determinar qual a frequência mı́nima fmin ne-
cessária para se observar o efeito fotoelétrico. Essa frequência limite, abaixo
da qual o fotão não tem energia suficiente para arrancar um eletrão, é dada
por:

h fmin = φ .

Em alternativa, podemos calcular o comprimento de onda máximo acima do


qual não há efeito. Sendo f = c/λ, vem

c hc
λmax = = .
fmin φ
1.1. O FOTÃO 11

Exemplo 1.1.2 : Determine o comprimento de onda máximo acima do qual não


há efeito fotoelétrico para o material usado na experiência da Fig.1.4.

Resolução:
hc 1240 eV.nm
λmax = = ' 827 nm .
φ 1, 5 eV
Este comprimento de onda pertence à região do infravermelho, o que significa que,
com este material, pode ser usado todo o espetro do visı́vel e ultravioleta para
produzir efeito fotoelétrico.

Note-se que, de acordo com o modelo quântico, a alteração da intensidade


I da luz incidente está associada a uma variação do número n/t de fotões
incidentes por unidade de tempo:

P E n hf n Efotão
I= = = = ,
A tA tA t A
onde A é a área de incidência, P a potência, E é a energia do feixe que incide
na área A no intervalo de tempo t, n/t é o número de fotões incidentes por
unidade de tempo e Efotão é a energia de cada fotão. Para uma dada fonte
de luz, caraterizada por uma dada frequência ou distribuição de frequências,
a alteração de I faz-se modificando n/t.

Assim, quando I varia, é alterada a energia total por unidade de tempo


do feixe de luz, mas não a energia de cada fotão. Uma vez que, na descrição
quântica, há um fotoeletrão emitido por cada fotão absorvido, espera-se que
um aumento de intensidade da luz conduza a um aumento de fotoeletrões
emitidos por unidade de tempo, permanecendo inalterado o potencial de
paragem. Estas previsões estão em total acordo com os resultados experi-
mentais e por isso a explicação do efeito fotoelétrico constituiu a primeira
consagração do conceito de fotão.
12 CAPÍTULO 1. DUALIDADE ONDA-PARTÍCULA

Exemplo 1.1.3 : Fez-se incidir luz ultravioleta de comprimento de onda


λ = 3500 Å sobre uma superfı́cie de potássio, produzindo fotoeletrões cuja energia
cinética máxima é de 1,34 eV. A lâmpada de luz ultravioleta tem uma potência
de 0,1 W. Repetiu-se a mesma experiência com um laser vermelho de He-Ne
(λ = 6328 Å), de potência 2 W, mas não foram produzidos quaisquer fotoeletrões.

a) Determine o número de fotões por segundo emitidos pelo laser de He-Ne e


pela lâmpada de luz ultravioleta.

b) Determine a energia mı́nima necessária para arrancar um eletrão da su-


perfı́cie de potássio.

c) Explique porque não há emissão de eletrões com o laser de He-Ne, apesar
de este ter uma potência maior do que a lâmpada de ultravioleta.

Resolução:

a) A potência P de uma lâmpada é a energia total E transportada pelo feixe


por unidade de tempo:

E n Efotão n
P = = = hf ,
t t t
onde Efotão = hf é a energia de um fotão e n é o número de fotões no
intervalo de tempo t. O número de fotões por unidade de tempo, n/t, é

n P Pλ
= = , ou seja,
t hf hc
n 2 W × 6328 × 10−10 m
= ' 6 × 1018 fotões/s ,
t laser 6, 626 × 10−34 J.s 3 × 108 m/s
n 0, 1 W × 3500 × 10−10 m
= ' 2 × 1017 fotões/s .
t u.v. 6, 626 × 10−34 J.s 3 × 108 m/s
O número de fotões por unidade de tempo é uma ordem de grandeza mais
elevado no laser, em relação ao feixe de luz u.v.

b) Como não há efeito para o laser, há que considerar os dados para a luz u.v.:

hc 12410 eV.Å
Efotão u.v. = h f = = = 3, 54 eV ,
λ 3500 Å
donde, φ = Efotão u.v. − Tmáx = 3, 54 − 1, 34 = 2, 2 eV .

c) A energia de cada fotão do laser é

hc 12410 eV.Å
Efotão laser = = = 1, 96 eV ,
λ 6328 Å
ou seja, a energia de cada fotão é inferior a φ. Há muitos fotões por unidade
de tempo, mas nenhum deles tem energia suficiente para arrancar um eletrão
e por isso não há efeito fotoelétrico.
1.1. O FOTÃO 13

1.1.2 O Efeito de Compton


Vimos que no efeito fotoelétrico há uma colisão entre duas partı́culas, um
fotão e um eletrão ligado ao material, sendo o fotão absorvido no processo.
Se o eletrão dentro do material puder ser considerado livre (isto é, com uma
energia de ligação desprezável) o eletrão só pode absorver uma parte da ener-
gia e do momento linear do fotão incidente 2 . Nessas circunstâncias, no final
do choque, há ainda duas partı́culas - um fotão e um eletrão - com energias
e momentos lineares diferentes dos iniciais (Fig.1.5). O efeito designa-se de
Efeito de Compton.

Figura 1.5: O efeito de Compton, descrito como o resultado de uma colisão entre
um fotão e um eletrão livre, em repouso.

A conservação de energia escreve-se como

Efotão incidente = Efotão emergente + Ecinética do eletrão ,

2
Sugestão: verifique que o produto final da colisão da Fig.1.5 não pode ser apenas um
eletrão.
14 CAPÍTULO 1. DUALIDADE ONDA-PARTÍCULA

ou seja,
hc hc
= 0 + Te , (1.5)
λ λ
onde Te é a energia cinética do eletrão depois do choque; λ e λ0 são os
comprimentos de onda do fotão, antes e depois do choque, respetivamente.
Consideremos as projeções dos momentos lineares nos eixos X e Y da Fig.1.5.
A conservação de momento linear tem a forma

px antes do choque = px depois do choque , (1.6)


py antes do choque = py depois do choque . (1.7)

Em relatividade mostra-se que uma partı́cula de energia E que se move com


velocidade c no vazio, como é o caso do fotão, tem momento linear p = E/c.
Assim, para o fotão, temos

E hf h
p= = =
c c λ
Assim, as equações da conservação do momento linear (1.6) e (1.7) escrevem-
se como
h h
= cos θ + pe cos φ (1.8)
λ λ0
h
0 = sin θ − pe sin φ , (1.9)
λ0
onde pe é o momento linear do eletrão e os ângulos θ e φ são os indicados
na Fig.1.5. Se usarmos a expressão relativista para Te e combinarmos as
equações 1.5 a 1.9, eliminando as variáveis associadas ao eletrão (pe e φ),
obtemos
h
λ0 − λ = (1 − cos θ) , (1.10)
me c
que é a expressão do chamado desvio de Compton. A constante

h hc
λc = =
me c m e c2
1240 eV.nm
= = 0, 00243 nm , (1.11)
511 × 103 eV
designa-se de comprimento de onda de Compton do eletrão.
1.1. O FOTÃO 15

A expressão 1.10 diz-nos que, quando um fotão colide com um eletrão livre
em repouso, o seu comprimento de onda sofre uma variação ∆λ = λ0 − λ que
depende do ângulo θ entre a direção do fotão emergente e a direção do fotão
incidente. O desvio máximo é
∆λmax = λc (1 − cos π) = 2 λc ' 0, 005 nm (1.12)
Assim, para observarmos um desvio ∆λ superior a 1%, os fotões deverão ter
um comprimento de onda inferior a cerca de 0,5 nm. Por outras palavras, o
efeito não é percetı́vel para ondas eletromagnéticas de comprimento de onda
elevado, como é o caso das ondas de rádio (Exemplo 1.1.4).

Exemplo 1.1.4 : Determine quantos desvios de Compton são necessários para


que um sinal de rádio de 90 MHz sofra uma variação de comprimento de onda de
0,01%. Porque se ignora o efeito de Compton na transmissão de sinais de televisão
e ondas de rádio?

Resolução:

Um sinal de 90 MHz tem comprimento de onda λ dado por

c 3 × 108
λ= = ' 3, 33 m .
f 90 × 106
O desvio máximo por cada colisão é ∆λmax ' 0, 005 nm. Para N colisões o
desvio máximo será N ∆λmax . Para que esse desvio corresponda a 0,01%=10−4
do comprimento de onda deverá ser

N 0, 005 = 10−4 × 3, 33

ou seja, o número N de colisões necessárias para provocar uma variação de 0,01%


no comprimento de onda do referido sinal de rádio é da ordem de 67 milhões de
colisões.

Isso significa que o efeito de Compton é completamente desprezável na transmissão


de sinais de televisão e ondas de rádio.

Embora o efeito de Compton seja negligenciável para uma larga gama do


espetro eletromagnético, é observável para fotões de energia elevada como
raios X e raios γ, como se ilustra na Fig.1.6 e no Exemplo 1.1.5.
16 CAPÍTULO 1. DUALIDADE ONDA-PARTÍCULA

Detetor

cristal calcite

alvo de
grafite

fonte de
Raios X

Figura 1.6: Compton estudou a dispersão de Raios X de comprimento de onda


λ por um alvo de grafite. A representação da intensidade da radiação reemitida
pela grafite em função do seu comprimento de onda revela a coexistência de uma
dispersão elástica e uma dispersão inelástica da radiação pelos eletrões do material.
A dispersão elástica ocorre para fotões que colidem com eletrões fortemente ligados
ao material. Nesses casos, o fotão não transfere energia para o eletrão e por isso o
seu comprimento de onda não varia. Na dispersão inelástica - ou efeito de Compton
- a colisão dá-se com um eletrão livre e parte da energia da radiação é absorvida
pelo eletrão. A variação de comprimento de onda ∆λ = λ0 − λ aumenta com
o ângulo de dispersão θ de acordo com a expressão 1.12., confirmando assim o
modelo quântico da radiação eletromagnética.
1.1. O FOTÃO 17

Exemplo 1.1.5 : A tomografia por emissão de positrões (PET) é uma técnica


de imagiologia médica em que se utiliza a posição de positrões provenientes do
decaimento de um radionuclido, para reconstruir uma imagem. A informação
sobre a posição dos positrões é obtida pela deteção, no exterior do organismo,
de pares de fotões provenientes da aniquilação de um positrão com um eletrão.
Estes fotões têm uma energia de E = 511 keV, mas uma fração deles sofre efeito
de Compton. Determine a gama de energias dos fotões dispersos por efeito de
Compton.

Resolução:

As energias E e E 0 dos fotões incidente e emergente são dadas por:


hc hc
E= e E0 = 0 com λ0 = λ + λc (1 − cos θ) .
λ λ
Assim, temos

E0 λ λ 1
= 0 = = λc
.
E λ λ + λc (1 − cos θ) 1+ λ (1 − cos θ)

Mas
λc h E E 511 keV
= = 2
= =1 .
λ me c h c me c 511 keV
Donde,
E
E0 = .
2 − cos θ

Sendo −1 ≤ cos θ ≤ 1 , podemos concluir que


E
≤ E0 ≤ E ou seja, 170, 3 keV ≤ E 0 ≤ 511 keV .
3
18 CAPÍTULO 1. DUALIDADE ONDA-PARTÍCULA

1.1.3 Natureza dual do fotão


Em resumo, a luz pode exibir efeitos que revelam a sua natureza ondulatória,
como é o caso da difração através de uma fenda dupla (Fig.1.7). O electro-
magnetismo diz-nos que a luz é na realidade uma onda eletromagnética que
se propaga no vazio com uma velocidade c. Contudo, o efeito fotoelétrico e
o efeito de Compton mostram que há circunstâncias em que a luz exibe uma
natureza corpuscular.

Figura 1.7: A dualidade onda-partı́cula: a luz exibe um padrão de in-


terferência tı́pico de ondas após atravessar uma fenda dupla ; no efeito fo-
toelétrico uma partı́cula de luz - o fotão - interage com um eletrão.

A luz tem pois uma natureza dual – de partı́cula e de onda - e a entidade


que reune as duas caraterı́sticas é o fotão.

Relembremos algumas caraterı́sticas fundamentais do fotão:


- A sua velocidade no vazio é c = 3 × 108 m/s .
- Não tem energia de repouso (E0 = mc2 = 0).
- Tem uma onda eletromagnética associada de comprimento de onda λ e
frequência f tais que λf = c, no vazio.
- Transporta uma energia E = h f e momento linear p = h/λ ou, o que é
equivalente, E = ~ω e p = ~k, onde ~ = h/(2π).
- Pode ser criado ou destruı́do quando há emissão ou absorção de radiação.
- Pode sofrer colisões com outras partı́culas.
1.2. HIPÓTESE DE DE BROGLIE 19

1.2 Hipótese de de Broglie


A relação p = h/λ, válida para um fotão, estabelece uma correspondência
entre uma quantidade caraterı́stica de partı́cula - o momento linear p - e uma
quantidade caraterı́stica de uma onda - o comprimento de onda λ.

Louis de Broglie (1924) sugeriu que essa relação deveria ser válida também
para outras partı́culas com momento linear p = mv. Assim, qualquer partı́cula
teria associada uma onda, de comprimento de onda λ dado por

h
λ=
p

e que ficou conhecido como comprimento de onda de de Broglie.

Se uma partı́cula tem um comprimento de onda, esperarı́amos produzir


efeitos de interferência numa colisão, algo de que nunca foi observado para
partı́culas macroscópicas. Mas no caso da luz, por exemplo, sabemos que a
sua natureza ondulatória nem sempre foi evidente. É necessário escolher um
obstáculo com uma dimensão da mesma ordem de grandeza do comprimento
de onda para poder observar interferência e difração e demonstrar a sua
natureza ondulatória. Podemos usar a relação de de Broglie para identificar
a ordem de grandeza necessária.

Figura 1.8: ondas versus partı́culas: é possı́vel observar um padrão de


interferência quando dois feixes de luz se intercetam, mas esse efeito nunca
é observado com dois feixes de partı́culas macroscópicas.
20 CAPÍTULO 1. DUALIDADE ONDA-PARTÍCULA

Exemplo 1.2.1 : Determine o comprimento de onda de

Um carro de massa m = 1000 kg e velocidade v = 50 m/s (180 km/h).

Uma poeira de massa m = 10−9 g e velocidade v = 1 cm/s.

Um eletrão com energia cinética Ec = 1 eV = 1, 6 × 10−19 J.

Um eletrão com energia cinética Ec = 100 MeV

Resolução:
Se usarmos a relação de de Broglie temos

h h 6, 6 × 10−34 J.s
λcarro = = = = 1, 32 × 10−38 m ,
p mv 1000kg × 50m/s

h 6, 6 × 10−34 J.s
λpoeira = = −12 = 6, 6 × 10−20 m ,
mv 10 kg × 10−2 m/s
h h
eletrão não relat. de 1eV : λe = =√ = 1, 2 nm = 1, 2 × 10−9 m ,
p 2mEc
h hc
eletrão relativista 100 eV : λe = ≈ = 12 fm = 1, 2 × 10−14 m .
p Ec

Os obstáculos mais pequenos de que dispomos na natureza são átomos e


núcleos, cujas ordens de grandeza são ∼ 1Å = 10−10 m e ∼ 1 fm=10−15 m,
respetivamente. O comprimento de onda de partı́culas macroscópicas (mesmo
que se trate de uma poeira) tem uma ordem de grandeza muito inferior à de
um núcleo, o que impossibilita a verificação experimental da sua natureza
ondulatória. Contudo, para partı́culas elementares como eletrões, a hipótese
de de Broglie pode ser testada.
1.2. HIPÓTESE DE DE BROGLIE 21

1.2.1 Experiência de Davisson-Germer


Em 1926, Davisson and Germer realizaram uma experiência que permitiu
confirmar experimentalmente a natureza ondulatória dos eletrões e a relação
de de Broglie.

A experiência está esquematizada na figura 1.9. Um feixe de eletrões


de 54 eV incide num cristal de niquel. Os átomos do cristal de nı́quel
comportam-se como centros dispersores e o cristal desempenha o papel de
uma rede de difração para o feixe de eletrões. A distância entre átomos do
cristal de Ni é conhecido de experiências de raios X e é d = 0, 215 nm.

Figura 1.9: Experiência de Davisson-Germer: Um feixe de eletrões, cujo


momento linear p é controlado por uma diferença de potencial elétrica U , in-
cide sobre um cristal de nı́quel. Um detetor regista a intensidade do feixe
emergente na direção θ. Os feixes emergentes, dispersados por átomos separa-
dos por uma distância d, interferem construtivamente para um ângulo θ tal que
λeletrão = d sin θ. Para U = 54 V obtém-se θ = 50o . Estes resultados são consis-
tentes com λeletrão = h/p.

Observa-se um máximo de intensidade do feixe emergente quando este é


detetado a um ângulo θ = 50o com a direção de incidência. Este máximo
corresponde a uma interferência construtiva de ondas com comprimento de
onda
λ = d sin θ = 0, 215 sin 50o = 0, 165 nm .

A relação de de Broglie prevê um comprimento de onda para o eletrão dado


22 CAPÍTULO 1. DUALIDADE ONDA-PARTÍCULA

por
h h hc 1240eV.nm
λe = =√ =√ = p = 0, 167 nm ,
p 2mEc 2mc2 Ec 2 × 0, 511 × 106 eV × 54eV

o que é consistente com o resultado experimental.

Posteriormente, a natureza ondulatória de partı́culas elementares como


protões e neutrões foi também demonstrada experimentalmente, consagrando
a validade da relação de de Broglie e a natureza dual de onda e partı́cula,
não só para fotões mas também para outras partı́culas.

Exemplo 1.2.2 : Considere um eletrão livre e um fotão, ambos com a mesma


energia E = 10 eV. Determine o comprimento de onda de cada um deles.

Resolução:
Em ambos os casos temos
h
λ=
p
mas a relação entre a energia E e o momento linear p é diferente para os dois casos
e por isso os respetivos comprimentos de onda são muito diferentes. De facto, um
p2
eletrão com esta energia é não relativista e a sua energia é E = 2m . O fotão tem
energia E = pc. Assim, para o eletrão temos

h h hc 12410 eV.Å
λel = =√ =√ =p = 4 Å .
p 2mE 2
2mc E 2 × 0, 511 × 106 eV × 10 eV

Em contrapartida, para o fotão vem

h hc 12410 eV.Å
λf = = = = 1241 Å .
p E 10 eV
1.3. A EXPERIÊNCIA DA DUPLA FENDA 23

1.3 A experiência da dupla fenda


A difração de luz por uma dupla fenda foi a experiência que mostrou ine-
quivocamente a natureza ondulatória da luz. Para compreender melhor as
diferenças de comportamento entre partı́cula e onda é instrutivo seguir a
abordagem de Feynman [14], imaginando experiências de fenda dupla reali-
zadas em três sistemas diferentes : i) balas ii) água e iii) eletrões. Nos dois
primeiros casos a identidade do sistema é inequı́voca - as balas comportam-se
sempre como partı́culas e a água como ondas - enquanto que no terceiro caso
- os eletrões - as duas identidades coexistem. Na realidade, a experiência
de dupla fenda com eletrões foi apresentada por Feynman como uma ex-
periência pensada. É um enorme desafio experimental e só recentemente foi
concretizada.
Consideremos então uma experiência de dupla fenda com balas (Fig. 1.10).
Um canhão lança balas contra uma parede com duas fendas, 1 e 2, que têm a
largura mı́nima necessária para deixar uma bala passar. As balas que atra-
vessam as fendas poderão ser (ou não) detetadas por um contador de balas
que se desloca ao longo de uma direção que designaremos de x, invertendo
periodicamente o sentido do movimento.
detetor
móvel
P1(x)
1

canhão 2
de balas P2(x)
P12 (x)
parede P12=P1+P2

Figura 1.10: Experiência de dupla fenda com balas. P1 é o resultado com a


fenda 2 tapada; P2 é obtido com a fenda 1 tapada ; P12 é obtido com ambas
as fendas abertas.
As balas chegam ao detetor como uma entidade indivisı́vel: ou se deteta
uma bala ou não se deteta nada. Não há frações de bala. O resultado da
medida é uma probabilidade de presença P (x):
nx
P (x) =
n
24 CAPÍTULO 1. DUALIDADE ONDA-PARTÍCULA

onde nx é o número de balas detetadas na posição x, e n é o número total


de balas lançadas. A Fig.1.10 ilustra os resultados P1 , P2 e P12 obtidos nos
casos em que as balas só passam pela fenda 1, ou só passam pela fenda 2 ou
por ambas, respetivamente. Temos

P12 = P1 + P2

Por outras palavras, o resultado com ambas as fendas abertas é simplesmente


a soma dos efeitos observados com cada fenda separadamente.

Suponhamos agora que substituimos o canhão de balas por uma fonte de


ondas de água, como exemplifica a Fig. 1.11. A onda não chega em pacotes
discretos como uma bala. Tem uma amplitude não nula em diferentes regiões
do espaço, no mesmo instante. O detetor mede agora a intensidade I da onda,
uma quantidade que é proporcional ao quadrado da amplitude da onda, |A|2 ,
3
e que pode ter qualquer valor entre zero e um valor máximo. A Fig.1.11
ilustra os resultados I1 , I2 e I12 obtidos nos casos em que as água só passa
pela fenda 1, ou só passa pela fenda 2 ou por ambas, respetivamente.

detetor
I12
1 I1

fonte
2 I2
I12 |A1+A2|2
parede x x
I1 |A1| 2 I2 |A2|2

Figura 1.11: Experiência de dupla fenda com ondas de água.

Claramente, a intensidade I12 não é a soma das intensidades I1 e I2 .

|A1 + A2 |2 6= |A1 |2 + |A2 |2 ⇒ I12 6= I1 + I2


3
Usamos |A|2 porque a função de onda pode ser expressa na forma complexa. |A|2 =
A A, onde A∗ é o complexo conjugado de A.

1.3. A EXPERIÊNCIA DA DUPLA FENDA 25

Ao contrário do que foi observado com balas, o resultado com ambas as


fendas abertas não é simplesmente a soma dos efeitos observados com cada
fenda separadamente, porque há interferência quando as ondas provenientes
de cada umas das fendas se sobrepõem. A interferência pode ser construtiva
ou destrutiva, originando o padrão de máximos e mı́nimos que constitui a
assinatura tı́pica de um fenómeno ondulatório.
Consideremos a mesma experiência realizada com eletrões (Fig. 1.12).

detetor
P12
P1
1

canhão 2
de eletrões P2

parede x x
P1=|ψ1| Δx2
P2=|ψ2| Δx2
P12=|ψ1 +ψ2|2 Δx
Figura 1.12: Experiência de dupla fenda com eletrões

Os eletrões chegam ao detetor em quantidades discretas, indivisı́veis e por


isso o resultado da medida é uma probabilidade de presença, tal como com
as balas. No entanto, quando ambas as fendas estão abertas, o resultado da
medida é um padrão de interferência, tal como nas ondas de água!

Por outras palavras, os eletrões chegam ao detetor como partı́culas,


mas a probabilidade de deteção tem a distribuição de uma onda.
Assim, a probabilidade P (x) é proporcional ao quadrado de uma
função de onda ψ associada ao eletrão:

P (x) = |ψ|2 ∆x ,

onde P(x) é a probabilidade de encontrar o eletrão num intervalo pequeno


∆x em torno de x. Temos

P1 = |ψ1 |2 ∆x P2 = |ψ2 |2 ∆x e P12 = |ψ1 + ψ2 |2 ∆x ,


26 CAPÍTULO 1. DUALIDADE ONDA-PARTÍCULA

e por isso
P12 6= P1 + P2 .

O comportamento dual dos eletrões está sintetizado na Fig. 1.13.

Figura 1.13: Experiência de dupla fenda com balas (à esquerda), com água
(ao centro) e com eletrões (à direita). Os eletrões chegam ao alvo como
partı́culas, mas originam uma figura de interferência tı́pica de uma onda.

A Fig. 1.13 não pode deixar de criar perplexidade: se os eletrões chegam


ao alvo como partı́culas deveriam ter passado por uma única fenda, 1 ou 2,
mas não por ambas, e por isso esperarı́amos P12 = P1 + P2 . Na verdade,
mesmo o máximo de P12 é mais elevado do que o máximo de P1 + P2 . A
experiência já foi realizada passando um só eletrão de cada vez e ainda assim
surge um padrão de interferência. Estes resultados sugerem que cada eletrão
interfere com ele próprio, como se passasse pelas duas fendas simultanea-
mente.

A curiosidade de descobrir por qual das fendas passa o eletrão conduz-


nos a uma adaptação da experiência da dupla fenda com eletrões, ilustrada
na Fig.1.14. Uma fonte de luz é colocada nas vizinhanças das duas fendas.
Ao atravessar, o eletrão dispersa a luz, produzindo um flash que revela se o
eletrão passou pela fenda 1, pela fenda 2 , ou ambas. Verifica-se que ele passa
sempre por uma das fendas, nunca por ambas. Mas agora a distribuição P12
é simplesmente P12 = P1 + P2 , desapareceu a interferência !

Houve uma interação entre o fotão e o eletrão que perturbou a medida. A


1.3. A EXPERIÊNCIA DA DUPLA FENDA 27

P1
1

canhão luz
de eletrões 2
P2
P12
x x
P12=P1+P2

Figura 1.14: Tentando observar por qual das fendas passa o eletrão.

transferência de momento linear entre ambos alterou o comprimento de onda


do eletrão. Isso impede-nos de concluir sobre o que sucede na ausência dessa
perturbação. Podemos reduzir a perturbação aumentando o comprimento
de onda dos fotões (diminuindo assim o seu momento linear p = h/λ) tanto
quanto for necessário para recuperar o padrão de interferência dos eletrões.
Mas aumentando o comprimento de onda do fotão perdemos resolução e
deixamos de conseguir identificar por qual das fendas o eletrão passa! Na
verdade, não há nenhuma experiência que permita determinar qual a fenda
pela qual o eletrão passa, sem destruir o padrão de interferência. Por outras
palavras, a questão de ”por qual das fendas passa o eletrão?”é uma questão
para a qual a ciência não consegue dar uma resposta. Por isso não é possı́vel
sequer afirmar que a partı́cula passa pelas duas fendas ao mesmo tempo como
forma de explicar o padrão de interferência, porque essa é uma hipótese que
não pode ser testada experimentalmente. O padrão de interferência só é
observado quando não há nenhuma forma de saber por qual das fendas o
eletrão passa.

Esta é uma caraterı́stica da medida em Mecânica Quântica que é fun-


damental para compreender as diferenças entre um sistema clássico e um
quântico: a medida perturba o sistema.

Uma questão persiste: se a dualidade onda-partı́cula é inerente a qualquer


partı́cula, porque não observamos sempre um padrão de interferência?
28 CAPÍTULO 1. DUALIDADE ONDA-PARTÍCULA

No limite clássico, o comprimento de onda das


P12
partı́culas é muito pequeno comparado com a
distância entre as fendas. A distância entre
máximos e mı́nimos na figura de interferência
é muito pequena, demasiado reduzida para a
sensibilidade de qualquer detetor. O resultado
clássico é uma média dessas variações abrup-
tas, como sugere a figura ao lado. x x

Há três aspetos fundamentais que importa evidenciar da discussão desta


experiência:

1. As partı́culas têm uma natureza ondulatória e por isso há que associar
a uma partı́cula uma função de onda ψ. A quantidade mensurável é
|ψ|2 e tem o significado de uma densidade de probabilidade.

2. A observação do padrão de interferência quando as duas fendas estão


abertas conduz à descrição quântica do estado ψ do eletrão como uma
sobreposição coerente de dois estados :

ψ = α ψ1 + β ψ 2

onde ψ1 e ψ2 são os estados quânticos da partı́cula quando está aberta


apenas a fenda 1, ou apenas a fenda 2, respetivamente. Se a figura de
interferência é simétrica, os dois coeficientes da sobreposição deverão
ser iguais.

3. A medida perturba o sistema.

Comecemos por analisar o primeiro aspeto - a interpretação estatı́stica da


função de onda.
1.4. INTERPRETAÇÃO PROBABILÍSTICA 29

1.4 Interpretação probabilı́stica


A constatação experimental de que as
partı́culas têm uma natureza ondulatória su-
gere que há uma função de onda associada
a uma partı́cula, que designaremos por Ψ e
que deve depender das coordenadas espaciais
e do tempo. A uma dimensão, Ψ = Ψ(x, t).

Numa onda de água ou em qualquer outra que


conhecemos da nossa experiência quotidiana,
a amplitude da função de onda tem um signi-
ficado fı́sico direto. Como vimos na secção an-
terior, a probabilidade de encontrar uma
partı́cula é proporcional a |Ψ|2 = Ψ∗ Ψ.
Esse significado só é evidente com um número
elevado de partı́culas, como ilustra a figura.
Assim,

|Ψ(x, t)|2 dx é a probabilidade de encontrar a


partı́cula num intervalo dx em torno de x.
Rb
a
|Ψ(x, t)|2 dx é a probabilidade de encontrar
a partı́cula entre x = a e x = b.
R +∞
−∞
|Ψ(x, t)|2 dx é a probabilidade de encon-
trar a partı́cula em todo o espaço e por isso
Z +∞
|Ψ|2 dx = 1 .
−∞

A função Ψ contém toda a informação dis-


ponı́vel sobre a partı́cula, mas não é direta-
Figura 1.15: Acumulação pro-
mente mensurável. Assim, Ψ pode ser uma
gressiva de um padrão de in-
quantidade complexa, pois |Ψ|2 = Ψ∗ Ψ é real.
terferência numa experiência de
fenda dupla com eletrões. O
|Ψ|2 = Ψ∗ Ψ designa-se de densidade de pro- número de eletrões no alvo é de
babilidade. A uma dimensão, é uma proba- 10 (a), 200 (b), 6000 (c), 40000
bilidade por unidade de comprimento. (d) e 140000 (e), respetivamente.
30 CAPÍTULO 1. DUALIDADE ONDA-PARTÍCULA

1.5 Relações de Incerteza de Heisenberg


Consideremos uma partı́cula livre, que se desloca no sentido positivo do eixo
x, com um momento linear p0 = ~k0 . Seria natural supor que a sua função
de onda Ψ(x, t) fosse dada por uma onda plana do tipo
Ψ = A ei(k0 x−ωt) .
No entanto, a densidade de probabilidade |Ψ2 | da onda plana é constante, ou
seja, tem o mesmo valor em qualquer ponto do espaço:
|Ψ|2 = Ψ∗ Ψ = A∗ e−i(k0 x−ωt) A ei(k0 x−ωt) = |A|2 ,
o que é não é consistente com a descrição de uma partı́cula como uma enti-
dade com uma extensão espacial finita.

Para obter uma onda localizada é necessário


sobrepor a onda anterior com outras com
números de onda k um pouco maiores e um
pouco menores que k0 de forma a que, num
dado instante, interfiram destrutivamente em
todo o espaço exceto numa pequena região,
como sugere a figura ao lado.

Por outras palavras, reduzir a incerteza ∆x na posição da partı́cula exige


criar uma dispersão de valores de k, ou seja, aumentar a incerteza ∆k no
número de onda k. Este constrangimento decorre da natureza ondulatória
das partı́culas e está presente noutros fenómenos ondulatórios.

Imaginemos, por ex., uma onda do mar em que são visı́veis várias cristas :
facilmente determinamos λ e portanto k = 2π/λ com uma precisão razoável;
contudo, é difı́cil definir uma posição para a onda, ou seja a incerteza na
posição ∆x é elevada. Ao invés, um único pulso de onda no mar tem uma
pequena incerteza na posição (∆x pequeno) mas a incerteza em k é elevada.
Em geral, podemos dizer que ∆x e ∆k variam na razão inversa:
∆x ∆k ≈ 1 .
O valor exato desse produto depende da forma da distribuição de k’s. No
exemplo 1.5.1 calcula-se esse produto para o caso de uma distribuição gaus-
siana de k’s.
1.5. RELAÇÕES DE INCERTEZA DE HEISENBERG 31

Exemplo 1.5.1 : Considere uma partı́cula livre descrita por função Ψ(x, t) no
instante t=0. A função Ψ(x, t = 0) é dada por uma sobreposição do tipo
nX
max h i
Ψ(x, t = 0) = An ei(k0 +n∆k)x + ei(k0 −n∆k)x . (1.13)
n=0

No limite em que o incremento ∆k é infinitesimal e nmax tende para infinito, o


somatório (1.13) transforma-se num integral de Fourier:
Z +∞
Ψ(x, t = 0) = A(k) eikx dk . (1.14)
−∞

a) Mostre que se a função A(k) tiver uma forma gaussiana , i.e., se


(k−k0 )2

2σ 2
A(k) = e k

então a densidade de probabilidade |Ψ(x, 0)|2 é uma gaussiana de largura σx


tal que σx σk = 21 .

b) Mostre que, no caso da alı́nea anterior, a posição x e o momento linear p da


partı́cula têm incertezas ∆x e ∆p tais que ∆x ∆p = ~2 .

Resolução:

a) Se substituirmos a expressão de A(k) na equação (1.14), e mudarmos a


variável para k 0 = k − k0 , obtemos
Z +∞
− 12 (k0 −i2σk2 x)2
−x2 σk2 ik0 x
Ψ(x) = e e e 4σk dk 0
−∞
R +∞ 2 √
Fazendo uso da expressão −∞ e−αk dk = π α−1 concluı́mos que
√ −x2 σ2 ik0 x
Ψ(x) = 2 σk πe k e . (1.15)

2 2
A densidade de probabilidade é |Ψ(x)|2 = 4 σk2 π e−2σk x . Fazendo
2 σk2 = (2σx2 )−1 , podemos escrever
x2

|Ψ(x)|2 = 4 σk2 π e 2
2 σx (1.16)

ou seja, |Ψ(x)|2 tem uma forma gaussiana de largura σx tal que


1
σx σk = , como querı́amos demonstrar.
2

b) O valor de σx pode ser usado como medida da extensão ∆x do pacote de


ondas e σk pode ser usado como incerteza ∆k da distribuição de k’s em torno
de k0 . A relação obtida na alı́nea anterior escreve-se como ∆x ∆k = 21 . Por
outro lado, sabemos que p = ~k donde ∆p = ~∆k e
~
∆x ∆p = . (1.17)
2
32 CAPÍTULO 1. DUALIDADE ONDA-PARTÍCULA

A Fig.1.16 ilustra a forma de |Ψ(x)|2 e da componente real de Ψ(x) , no caso


de termos uma distribuição gaussiana A(k), como a que foi considerada no
Exemplo 1.5.1. Da análise da figura é muito claro que há uma correlação
entre a largura ∆x = σx do pacote e a largura ∆k = σk da distribuição de
números de onda.

=0,1
k
= 0,1
k

=0,1 = 5
k
x

)
A(k)

=0,05
k
= 0,05

Re(
k
=0,05
k = 10

|
x

=0,025
=0,025 k = 0,025
k k

= 20
x

x
0.0 0.5 1.0 1.5 2.0 -100 -50 0 50 100 -100 -50 0 50 100

k x x

Figura 1.16: Pacotes de onda com uma distribuição de números de onda


gaussiana, A(k). Representa-se A(k) (à esquerda) e os valores corresponden-
tes da componente real de Ψ(x) (ao centro) e de Ψ(x)2 (à direita) para três
valores distintos de σk .

Como vimos no Exemplo 1.5.1, se A(k) tem uma forma gaussiana, então
∆x ∆k = 21 e , consequentemente, ∆x ∆p = ~2 . É possı́vel demonstrar que
esse é o valor mı́nimo do produto ∆x ∆p ou seja, em geral,

~
∆x ∆p ≥
2

As considerações anteriores que nos levaram a concluir que ∆x ∆k ≈ 1,


aplicam-se de igual modo para as incertezas no tempo de duração do pacote
de ondas, ∆t, e a correspondente incerteza na frequência angular ∆ω.
1.5. RELAÇÕES DE INCERTEZA DE HEISENBERG 33

De facto, uma onda com uma frequência ω0 bem definida (incerteza


∆ω = 0) tem uma extensão temporal infinita (∆t = ∞). Para reduzir a
duração ∆t do pacote de ondas é necessário sobrepor ondas planas com uma
distribuição de ω’s em torno de ω0 . A largura ∆ω da distribuição aumenta
quando ∆t diminui, ou seja,

∆ω ∆t ≈ 1 .

Uma vez que a energia E está relacionada com ω através de E = ~ω, a


relação anterior conduz-nos a

∆E ∆t ≈ ~ .

O valor exato do produto ∆E ∆t depende da forma da distribuição de ω’s


mas pode-se provar que

~
∆E ∆t ≥
2

As relações

~ ~
∆x ∆p ≥ e ∆E ∆t ≥ (1.18)
2 2

são conhecidas por relações de incerteza de Heisenberg . Embora não


tenham consequências no mundo macroscópio, desempenham um papel fun-
damental no mundo das partı́culas elementares.

Consideremos os exemplos que se seguem.


34 CAPÍTULO 1. DUALIDADE ONDA-PARTÍCULA

Exemplo 1.5.2 : Suponha que a velocidade de um eletrão e de uma bala de 30 g


de massa eram medidos com a mesma precisão experimental ∆v = 10−3 m/s. Qual
é a incerteza mı́nima na posição da bala? E na posição do eletrão?

Resolução: De ∆x ∆p ≥ ~/2 , vem

para uma bala: para um eletrão:

mb = 30 g=30×10−3 kg me = 9, 109 × 10−31 kg

∆pb = mb ∆v = 3 × 10−5 kg.m/s ∆pe = me ∆v = 9, 109 × 10−34 kg.m/s


1,0546×10−34 J.s 1,0546×10−34 J.s
∆xb ≥ ' 10−30 m ∆xe ≥ ' 6 cm
2×3×10−5 kg.m/s 2×9,109×10−34 kg.m/s

Como ilustra este exemplo, a incerteza mı́nima de uma partı́cula ma-


croscópica é completamente desprezável, muito inferior às incertezas ineren-
tes aos processos de medida, mesmo os mais precisos. Assim, na prática,
posso definir simultaneamente a posição e o momento linear de uma partı́cula
macroscópica, o que me permite definir a sua trajetória. Não há por isso
qualquer dificuldade em definir a trajetória de uma bala ou de um satélite.

O mesmo não se passa com o eletrão. Para o valor proposto de ∆p,


a incerteza ∆x é muito elevada. É possı́vel reduzir ∆x, mas essa redução é
necessariamente acompanhada por um aumento de ∆p, uma vez que a relação
de incerteza de Heisenberg nos diz que o seu produto é constante. Assim, não
é possı́vel definir simultaneamente, com incertezas negligenciáveis, a posição
e o momento linear de uma partı́cula elementar como o eletrão. Não podemos
definir uma trajetória para um eletrão.
Quando consideramos partı́culas elementares, apenas podemos calcular
probabilidades de presença e valores médios de grandezas fı́sicas como, por
exemplo, energia. Nos exemplos 1.5.3 e 1.5.4 que se seguem, fazem-se estima-
tivas de valores médios da energia de um eletrão em duas situações distintas,
usando a relação de Heisenberg ∆x ∆p ≥ ~/2.

Para isso, é conveniente proceder como no Exemplo 1.5.1, ou seja, fazer


∆x = σx e ∆p = σp , onde σx e σp são os desvios padrão das distribuições em
1.5. RELAÇÕES DE INCERTEZA DE HEISENBERG 35

x e em p, respetivamente. Isso permite-nos relacionar incertezas com valores


médios. De facto, o desvio padrão σ é dado por

p
σx = h(x − hxi)2 i , (1.19)

onde se usou a notação hxi para valor médio de x. Vem

p
σx = hx2 − 2xhxi + hxi2 i
p
= hx2 i − 2hxihxi + hxi2
p
= hx2 i − hxi2 . (1.20)

ou seja,

p
∆x = hx2 i − hxi2

De forma análoga podemos obter

p
∆p = hp2 i − hpi2
36 CAPÍTULO 1. DUALIDADE ONDA-PARTÍCULA

Exemplo 1.5.3 : Um eletrão está confinado numa região do espaço de largura


0,1 nm. Dentro da região, a energia potencial do eletrão é nula. Estime a ordem
de grandeza da energia cinética mı́nima do eletrão.

Resolução: A incerteza na posição do eletrão é, no máximo, ∆x ≈ 0, 1 nm. A


incerteza mı́nima do momento linear é
~
∆p ≈ .
2∆x
Por outro lado, assumindo que o eletrão é não relativista, temos

hp2 i
hEi =
2m
p
Mas ∆p = hp2 i − hpi2 . Neste caso, dada a simetria do problema, temos

hpi = 0 ,

pois valores de p e de −p são igualmente prováveis. Assim,

(∆p)2
hEi = .
2m
O valor mı́nimo de hEi será cerca de

~2 ~2 c2
hEi ≈ = ,
8m(∆x)2 8mc2 (∆x)2

ou seja,
1972 eV2 .nm2
hEi ≈ ' 1 eV .
8 × 511 × 103 eV × 0, 12 nm2

Note-se que a energia mı́nima do eletrão tem uma ordem de grandeza


que não é desprezável. Ter incertezas não nulas em x e em p significa que
o eletrão não pode estar parado dentro do poço, ou seja tem uma energia
cinética mı́nima não nula.

Consideremos agora um exemplo de um poço de potencial com uma forma


parabólica, para o qual se sabe que σx σp = ~/2.
1.5. RELAÇÕES DE INCERTEZA DE HEISENBERG 37

Exemplo 1.5.4 : A energia de um oscilador harmónico de massa m que oscila


p2
com frequência angular ω em torno de x = 0 é dada por E = Ec + U = 2m +
1 2 2
2 mω x . Num oscilador harmónico quântico, o produto das incertezas assume o
valor mı́nimo ∆x ∆p = ~2 .
Mostre que o valor mı́nimo da energia média, < E >, é E0 = 12 ~ω, a chamada
energia de ponto zero. Compare com o valor mı́nimo de um oscilador harmónico
clássico.

Resolução: Não podemos saber o valor de x e de p simultaneamente, mas sabemos


que
hp2 i 1
E = hEi = + mω 2 hx2 i
2m 2
A energia potencial é simétrica em torno de x = 0. Assim, as posições x e −x são
igualmente prováveis; o mesmo se passa p p p e −p. Temos
com os momentos lineares
então hxi = 0 e hpi = 0. Sendo ∆x = hx2 i − hxi2 e ∆p = hp2 i − hpi2 , vem
(∆x)2 = hx2 i e (∆p)2 = hp2 i. Assim,

(∆p)2 1
E = hEi = + mω 2 (∆x)2 .
2m 2
Mas ∆x ∆p = ~2 , ou seja

~2 1
E= 2
+ mω 2 (∆x)2 .
8m(∆x) 2

Queremos saber qual o valor de y = (∆x)2 que minimiza a energia E. Fazendo


∂E
∂y = 0, vem
~2 1
− 2
+ mω 2 = 0
8my 2
2
ou seja, para y = ~
2mω a função E tem um extremo, que é um mı́nimo ( ∂∂yE2 > 0).
Temos
~2 2mω 1 ~ 1 1 1
Emin = + mω 2 = ~ω + ~ω = ~ω
8m ~ 2 2mω 4 4 2
Num oscilador clássico Emin = 0, pois a partı́cula pode estar em repouso na
posição de equilı́brio (ou seja em x = 0 com p = 0). Isso não é possı́vel num
oscilador quântico. A relação de incerteza conduz-nos, no oscilador harmónico
quântico a uma dimensão, a Emin = 12 ~ω, a chamada energia de ponto zero.
38 CAPÍTULO 1. DUALIDADE ONDA-PARTÍCULA

A relação de Heisenberg

∆E ∆t ≥ ~/2

também tem consequências importantes, como se ilustra no exemplo 1.5.5.

Exemplo 1.5.5 : Os estados excitados de um átomo têm um tempo de vida


limitado, emitindo um fotão quando regressam ao estado fundamental. O tempo
médio de vida de um dado estado atómico é τ = 10−8 s. Qual é a ordem de
grandeza da incerteza na energia e na frequência do fotão emitido?

Resolução: Se o tempo de vida do estado é finito, o tempo disponı́vel ∆t para


medir a energia do estado é limitado. Se fizermos ∆t ≈ τ a incerteza ∆E na
energia do estado é

~ 10−34 J.s
∆E ≈ = = 0, 5 × 10−26 J ' 3 × 10−8 eV.
2τ 2 × 10−8 s
A frequência do fotão emitido tem uma incerteza ∆f = ∆E/h, ou seja,

3 × 10−8 eV
∆f ≈ eV.s ' 7 MHz .
4, 136 × 10−15

Como vemos neste exemplo, a um tempo finito de um estado atómico está


associada uma incerteza na energia do estado excitado e uma distribuição de
frequência dos fotões emitidos. Assim, a linha de emissão correspondente
tem uma largura natural intrı́nseca, não nula. Há fatores adicionais que
alargam a largura da linha, associados ao instrumento de medida. No en-
tanto, mesmo que estes sejam desprezáveis, a largura da linha de emissão tem
um limite inferior - a largura natural - determinada pela relação de incerteza
de Heisenberg.
Capı́tulo 2

Fundamentos de Mecânica
Quântica

2.1 A equação de onda


É natural supor que a função de onda Ψ(x, t) associada a uma partı́cula é
solução de uma equação geral de onda para partı́culas, da mesma forma que
na mecânica Newtoniana a posição ~r(t) é solução da equação fundamental da
dinâmica. A equação fundamental da dinâmica não é dedutı́vel : é uma lei
da natureza que podemos inferir a partir de resultados experimentais obtidos
no nosso mundo fı́sico macroscópico. Identicamente, não é possı́vel deduzir a
forma da equação de onda para uma partı́cula, mas há uma dificuldade acres-
cida: o comportamento ondulatório das partı́culas escapa à nossa intuição,
que foi desenvolvida para um mundo macroscópico.

Consideremos uma partı́cula macroscópica sujeita a uma força de módulo


F , e designemos por x a direção da força. Se o movimento for a uma di-
mensão, temos simplesmente
d2 x
F =m .
dt2
Se conhecermos a força F , que traduz a interação da partı́cula com o exte-
rior e as condições iniciais do movimento, 1 a equação anterior permite-nos
1
A equação fundamental da dinâmica é uma equação diferencial de 2a ordem e por isso
tem duas constantes de integração que têm de ser determinadas a partir de duas condições
particulares, como por exemplo, as condições iniciais do movimento x(0) e v(0) .

39
40 CAPÍTULO 2. FUNDAMENTOS DE MECÂNICA QUÂNTICA

conhecer a posição x(t) e a velocidade v(t) = dx


dt
em qualquer instante pos-
terior. Esta equação é apenas válida para partı́culas macroscópicas pois só
nesse caso podemos conhecer com precisão e em simultâneo, a posição e a
velocidade da partı́cula.

Em 1926, Erwin Schrödinger formulou uma equação para a função de


onda Ψ(x, t) associada a uma partı́cula não relativista. A uma dimensão a
equação tem a forma
∂Ψ(x, t) ~2 ∂ 2 Ψ(x, t)
i~ =− + U Ψ(x, t) (2.1)
∂t 2m ∂x2
O significado desta equação não transparece à primeira vista. Notemos
apenas que envolve derivadas da função de onda em ordem ao tempo e em
ordem ao espaço e inclui uma quantidade que nos é familiar: a energia po-
tencial U , que contém informação sobre as interações da partı́cula com o
exterior. É necessário conhecer U para obter Ψ(x, t), da mesma forma que
num mundo macroscópico é necessário conhecer a força resultante F para
conhecer x(t).

Tentemos agora inferir a forma da equação de onda (2.1) para uma


partı́cula não relativista.

É natural esperar que essa equação seja consistente com princı́pios fun-
damentais da fı́sica e com os resultados de experiências que evidenciam a
natureza ondulatória das partı́culas. Em particular, deve
1. ser consistente com a conservação de energia, que é um princı́pio fun-
damental da fı́sica e pode ser usado como ponto de partida.

2. incluir como solução a função de onda de uma partı́cula livre, sujeita a


um potencial nulo ou constante.

3. ser linear, para permitir o princı́pio de sobreposição (uma combinação


linear de soluções é ainda uma solução da equação).

4. ser consistente com as relações p = h/λ = ~k e com E = ~ω.


Temos, então, como ponto de partida (ponto 1) a conservação de energia:

E =T +U
2.1. A EQUAÇÃO DE ONDA 41

onde E é a energia total da partı́cula, T a energia cinética e U a energia po-


tencial. Estamos à procura de uma equação para partı́culas não relativistas,
e por isso T = p2 /(2m). A equação deve envolver a função de onda Ψ e por
isso podemos escrever
p2
EΨ(x, t) = Ψ(x, t) + U Ψ(x, t) (2.2)
2m
Consideremos uma solução particular, como sugere o ponto 2. Vimos que
uma partı́cula livre é descrita por uma sobreposição de ondas planas do tipo:
Ψ(x, t) = Aei(kx−ωt) . (2.3)
É natural esperar que uma onda plana da forma (2.3) seja solução da
equação de onda. Se a equação de onda for linear (ponto 3) a sobreposição
de ondas planas ainda será solução.

Retomemos então a equação (2.2). Um dos termos envolve p2 Ψ. Sabemos


que o momento linear p está relacionado com o número de onda k da onda
plana (2.3) através de p = ~k. A derivada parcial da onda plana em ordem
a x é :
∂Ψ p
= i k Aei(kx−ωt) = i Ψ(x, t) .
∂x ~
A relação anterior pode escrever-se na forma
 

−i~ Ψ(x, t) = p Ψ(x, t) . (2.4)
∂x
Sendo T = p2 /(2m), vem
p2 ~2 ∂ 2 Ψ
  
1 ∂ ∂
T Ψ(x, t) = Ψ(x, t) = −i~ −i~ Ψ(x, t) = − .
2m 2m ∂x ∂x 2m ∂x2
(2.5)

Por outro lado, a relação E = ~ω permite-nos relacionar o termo EΨ da


equação (2.2) com a derivada parcial da função de onda em ordem ao tempo:
∂Ψ E
= −i ω Aei(kx−ωt) = −i Ψ(x, t) ,
∂t ~
ou seja,
∂Ψ
i~ =EΨ . (2.6)
∂t
42 CAPÍTULO 2. FUNDAMENTOS DE MECÂNICA QUÂNTICA

Assim, as relações (2.2), (2.5) e (2.6) sugerem que a equação de onda


deverá ter a forma

∂Ψ ~2 ∂ 2 Ψ
i~ =− + UΨ
∂t 2m ∂x2

A equação anterior é a chamada equação de Schrödinger dependente


do tempo. Assumimos que U é constante, mas é razoável supor que a
equação é ainda válida para U = U (x), pois estão em causa as propriedades
locais da função de onda, para um dado x, num dado instante t.

Se a energia potencial não depender explicitamente do tempo, i.e., se for


da forma U = U (x) a equação anterior admite soluções do tipo

Ψ(x, t) = ψ(x)φ(t) .

Nesse caso, é possı́vel separar a equação anterior em duas: a primeira permite


conhecer φ(t) e a segunda, independente do tempo, tem como solução ψ(x).
De facto, se retomarmos a equação (2.6) temos


i~ (ψ(x)φ(t)) = E ψ(x) φ(t) ,
∂t
ou seja,

i~ =Eφ ,
dt
que tem como solução
E
φ(t) = e−i ~ t = e−iωt .
E
Se substituirmos Ψ(x, t) por ψ(x) e−i ~ t na equação de Schrödinger de-
pendente do tempo obtemos

~2 d2 ψ
− + U ψ(x) = E ψ(x)
2m dx2
2.2. OPERADORES 43

que é a chamada equação de Schrödinger independente do tempo.

Em resumo, se a energia potencial do sistema não depender explicita-


mente do tempo,

Ψ(x, t) = ψ(x) e−iωt

onde ψ(x) é solução da equação de Schrödinger independente do tempo.

A interpretação probabilı́stica da função de onda diz-nos que a densidade


de probabilidade de presença da partı́cula é dada por |Ψ(x, t)|2 . Neste caso
temos
|Ψ(x, t)|2 = ψ ∗ (x)e+iωt ψ(x)e−iωt = |ψ(x)|2
e as soluções da equação de Schrödinger dizem-se estacionárias, uma vez que
a densidade de probabilidade não depende do tempo.

2.2 Operadores
Vimos que a equação de Schrödinger traduz a conservação de energia, mas
alguns termos surgem de um forma que não nos é familiar. O termo T Ψ, por
~2 ∂ 2 Ψ
exemplo, associado à energia cinética, aparece como − 2m ∂x2
.

Relembremos como surgiu essa representação da energia cinética. Ao


tentar obter o momento linear p a partir da função de onda plana concluı́mos
que (equação 2.4):  

−i~ Ψ(x, t) = p Ψ(x, t) .
∂x

A equação anterior diz-nos que a operação −i~ ∂x sobre a função Ψ(x, t) nos
conduz a pΨ.


Dizemos que o operador −i~ ∂x representa o momento linear em
Mecânica Quântica. Usamos o acento ˆ para designar um operador.
Temos então,

p̂ = −i~
∂x
44 CAPÍTULO 2. FUNDAMENTOS DE MECÂNICA QUÂNTICA

A equação (2.4) pode então escrever-se como

p̂Ψ(x, t) = p Ψ(x, t) . (2.7)

A posição x é uma variável da função de onda e fazemos simplesmente


x̂ = x, ou seja, o operador posição x̂ define-se como

x̂Ψ = xΨ .

Como todas as variáveis dinâmicas podem ser expressas em função de x e


de p, sabendo a forma dos operadores x̂ e p̂ podemos determinar o operador
 que representa uma grandeza fı́sica mensurável A qualquer, desde que esta
dependa do espaço e do tempo.

Determinemos então o operador energia cinética T̂ . Um operador opera


sobre uma função, assim

p̂2
T̂ Ψ = Ψ
2m  
1 ∂ ∂Ψ
= −i~ (−i~)
2m ∂x ∂x
~2 ∂ 2 Ψ
=− (2.8)
2m ∂x2
ou seja

~2 ∂ 2
T̂ = −
2m ∂x2

A forma do operador energia potencial Û depende da situação fı́sica con-


creta que estejamos a analisar. Por exemplo, no oscilador harmónico a uma
dimensão temos Û = 21 k x̂2 = 12 k x2 . A forma é portanto idêntica à que
conhecemos da Mecânica Clássica.

O operador correspondente à energia total E do sistema será T̂ + Û , um


operador que designamos por Hamiltoniano Ĥ do sistema:
2.2. OPERADORES 45

~2 ∂ 2
Ĥ = T̂ + Û = − + Û
2m ∂x2

Assim a equação de Schrödinger independente do tempo

~2 d2 ψ(x)
− + U ψ(x) = Eψ(x) (2.9)
2m dx2
pode ser escrita como

Ĥψ(x) = Eψ(x) (2.10)

Em Mecânica Quântica o estado de um sistema é representado por


uma função de onda Ψ; uma grandeza fı́sica mensurável é represen-
tado por um operador.
46 CAPÍTULO 2. FUNDAMENTOS DE MECÂNICA QUÂNTICA

2.3 Exemplos
Sabemos que a descrição clássica da dinâmica de uma partı́cula a uma di-
mensão não tem necessariamente de ter como ponto de partida as forças que
actuam sobre ela. O sistema pode ser caracterizado pela função energia po-
tencial U (x), e a resultante Fx das forças sobre a partı́cula é calculada através
de Fx = − dU dx
. A figura 2.1 ilustra dois exemplos de funções U (x) que nos
são familiares.

0 15 30 45 60
3
r ( 10 Km)
Energia (J) R

U(r)

12
11
10
9
8
7
6
U (J)

E
5
4
3
2
1
0
-0.75 -0.50 -0.25 0.00 0.25 0.50 0.75

x (m)

Figura 2.1: Exemplos de funções U a uma dimensão. Topo: Energia potencial


gravı́tica em função da distância r ao centro da Terra; Fundo: Energia potencial
elástica em função do afastamento x do ponto de equilı́brio. A energia total E
depende das condições iniciais e é uma variável contı́nua num sistema clássico.
2.3. EXEMPLOS 47

Nos casos representados na Fig.2.1, a partı́cula fica confinada no espaço,


presa a um poço de potencial. Os limites de valores de x entre os quais a
partı́cula se move são os pontos de retorno, determinados pela condição de
E = U , onde E é a energia total da partı́cula. Dizemos que a partı́cula está
num estado ligado. Se a altura do poço é finita, a partı́cula pode escapar
desde que adquira uma energia E superior à altura do poço.
O tipo de funções U reproduzidas na Fig.2.1 são também casos de in-
teresse em Mecânica Quântica, embora noutras escalas de distância e de
energia. Do ponto de vista matemático, está em causa introduzir na equação
de Schrödinger a função U (x) e procurar soluções para ψ(x) e energias cor-
respondentes. Sucede que para a maior parte das funções U fisicamente
realistas não há solução analı́tica e, mesmo quando há, exige o recurso a
técnicas matemáticas que excedem os limites desta disciplina.

2.3.1 Poço de potencial infinito


Para simplificar o problema, vamos começar por considerar que a parede do
poço é infinita quando comparada com a energia do sistema e que a variação
de energia potencial na parede do poço é tão brusca que pode ser considerada
infinita. Consideremos uma partı́cula de massa m dentro de um poço de
potencial de paredes infinitas em que a energia potencial é nula dentro do
poço, como no exemplo da figura seguinte:

40
Energia (eV)

20

0.00 0.25 0.50 0.75

x (nm)

Temos 
0 para 0 ≤ x ≤ L,
U (x) =
∞ para x > L e x < 0 ,
onde L é a largura do poço.
Uma vez colocada a partı́cula dentro do poço, esta não pode escapar, pois
a parede do poço é infinita. A partı́cula é forçada a refletir-se nas paredes. Se
48 CAPÍTULO 2. FUNDAMENTOS DE MECÂNICA QUÂNTICA

pensarmos na partı́cula como uma onda, corresponde a uma onda progressiva


que foi confinada no espaço e esperarı́amos que o efeito final fosse uma figura
de interferência de ondas que são sucessivamente refletidas nas paredes. Por
outras palavras, esperarı́amos a formação de uma onda estacionária. Vejamos
o que nos diz a Mecânica Quântica.
A probabilidade de presença da partı́cula fora do poço é nula. Assim,

ψ(x) = 0 para x > L e x < 0 .

Dentro do poço, a função de onda ψ(x) é solução da equação de Schrödin-


ger independente do tempo com U = 0 :

~ 2 d2 ψ
− = Eψ(x) (2.11)
2m dx2
ou √
d2 ψ 2 2mE
2
= −k ψ com k =
dx ~
2
onde m é a massa da partı́cula e E a sua energia . A função cuja segunda
derivada é proporcional à própria função, com uma constante de proporci-
onalidade negativa, é a função oscilatória. Além disso, tratando-se de uma
equação diferencial de segunda ordem, a solução geral tem duas constantes
de integração. Assim, temos

ψ(x) = A sin kx + B cos kx

onde A e B são constantes. Para determinar essas constantes temos de


considerar as condições a que a função deve obedecer para ter significado
fı́sico. Uma delas é a de que a função deve ser contı́nua, o que neste caso
significa que
ψ(0) = ψ(L) = 0
uma vez que é esse o valor da função fora do poço. Mas ψ(0) = 0 significa
que
A sin 0 + B cos 0 = 0 ou seja, B=0 .
Assim,
ψ(L) = A sin kL = 0 (2.12)
2
Assumimos que E > 0 uma vez que, neste caso, E será necessariamente igual ao valor
médio da energia cinética da partı́cula.
2.3. EXEMPLOS 49

o que significa que kL = nπ. A equação (2.12) é satisfeita para n = 0, ±1, ±2, ....
A solução com n=0 não tem interesse (corresponde a uma função de onda
nula em todo o espaço, ou seja a partı́cula não existe). As soluções com −n
diferem das soluções com +n apenas no sinal da função de onda e, como
veremos adiante, soluções ±ψ são indistinguı́veis. Temos então,

kL = nπ com n = 1, 2, 3, ... (2.13)

Assim só alguns valores de k são possı́veis, aqueles



que são múltiplos inteiros
2mE
de π/L. O valor de k foi definido como k = ~ o que significa que os
2 k2
nı́veis de energia E = ~2m são também discretos e dados por :

~2 π 2 n2
En = com n = 1, 2, 3, ... (2.14)
2mL2
Note-se que o comprimento de onda de de Broglie da partı́cula, λ = h/p, é
está relacionado com o número de onda k através de λ = 2π/k. Combinando
com a equação (2.13) obtemos

2L
λ= com n = 1, 2, 3, ..
n
que é a condição que conhecemos para ondas estacionárias numa corda de
comprimento L, fixa nas extremidades! Adicionalmente, a equação (2.13)
permite-nos concluir que função de onda é do tipo
 nπ 
ψ(x) = A sin x , (2.15)
L
que é a dependência espacial de uma onda estacionária numa corda. O signi-
ficado da função de onda é, todavia, diferente: na corda, ψ(x) é diretamente
mensurável - representa uma deflexão numa direção perpendicular a x - en-
quanto que aqui apenas |ψ|2 tem significado fı́sico direto - é uma densidade
de probabilidade de presença. Na corda, a energia é proporcional a A2 e pode
ter qualquer valor. Neste caso, a energia é proporcional a k 2 e por isso só
alguns valores da energia são possı́veis - a energia está quantizada.
Podemo-nos interrogar sobre o significado da constante A na equação
(2.15), sendo ψ(x) a componente espacial da função de onda Ψ(x, t) = ψ(x) e−iωt .
Poderı́amos supor que a constante A pode assumir qualquer valor, pois se ψ
é solução da equação de Schrödinger, então Aψ também é solução da mesma
50 CAPÍTULO 2. FUNDAMENTOS DE MECÂNICA QUÂNTICA

equação, qualquer que seja A. Mas a interpretação estatı́stica da função de


onda como uma densidade de probabilidade de presença exige que o integral
de |Ψ(x, t)|2 estendido a todo o espaço seja igual a 1. No poço de potencial
infinito temos soluções estacionárias, |Ψ(x, t)|2 = |ψ(x)|2 , e vem
Z +∞
|ψ(x)|2 dx = 1 (2.16)
−∞

A equação (2.16) traduz a condição de normalização da função de onda, que,


neste caso, se escreve como
Z L  nπ 
2 2
|A| sin x dx = 1 .
0 L

Em consequência, vem:
2
|A|2 =
.
L
Uma vez que ψ(x) não é diretamente mensurável, a constante q A podeqser
positiva ou negativa, real ou complexa. Qualquer um dos valores L2 , − L2 ,
q q
i L , −i L2 é aceitável para A e conduz a funções de onda fisicamente
2

indistinguı́veis uma vez que o valor de |ψ|2 é comum a todas. Em geral,


escolhe-se q
a forma mais simples para a constante, o que significa, neste caso,
2
fazer A = L
.

Se uma função ψ representa um estado, então uma função eiδ ψ


que difere de ψ por uma fase é fisicamente indistinguı́vel de ψ e
representa o mesmo estado.
Em resumo, um potencial do tipo

0 para 0 ≤ x ≤ L ,
U (x) =
∞ para x > L e x < 0 ,

onde L é a largura do poço, tem como soluções para a equação de Schrödinger


independente do tempo:
( q
ψn (x) = L2 sin nπ

x para 0 ≤ x ≤ L,
ψ(x) = L
0 para x ≥ L ou x ≤ 0 ,
2.3. EXEMPLOS 51

sendo a energia En do estado ψn dada por

~2 π 2 n2
En = com n = 1, 2, 3, ... (2.17)
2mL2
52 CAPÍTULO 2. FUNDAMENTOS DE MECÂNICA QUÂNTICA

Exemplo 2.3.1 : Um eletrão está confinado numa região do espaço de largura


L = 0, 5 nm, preso num poço de potencial infinito. Dentro do poço a energia
potencial do eletrão é nula.

a) Escreva a forma das soluções ψn (x) da equação Hψn (x) = En ψn (x) para
este sistema.

b) Determine a energia do estado fundamental, E1 , e a energia E2 do primeiro


estado excitado, em eV.

c) Represente graficamente a densidade de probabilidade |ψn |2 para os três


estados de energia mais baixa.

Resolução:

a) Temos, neste caso,

ψn (x) = 2 sin (2nπx) em unidades de nm−1/2 e com n = 1, 2, 3, ... .

b) A Eq.2.17 escreve-se, neste caso, como

~2 c2 π 2 n2 1972 (eV.nm)2 π 2 n2
En = = = n2 1, 5 eV .
2mc2 L2 2 × 511 × 103 eV × 0, 52 nm2
Assim, o estado fundamental tem energia E1 = 1, 5 eV ; o primeiro estado
excitado tem energia E2 = 4 × 1, 5 = 6 eV.

c) Para n = 1, a densidade de probabilidade é |ψ1 |2 = 4 sin2 (2πx) em unidades


de nm−1 ; para n = 2 vem |ψ2 |2 = 4 sin2 (4πx) nm−1 ; para n = 3 vem
|ψ2 |2 = 4 sin2 (6πx) nm−1 , etc., como ilustram as figuras em baixo. Note-se
que a função de onda tem nodos, à semelhança do que sucede nas ondas
estacionárias de uma corda.

| |
4 4

3 3

2 2

1 1

0 0

0.0 0.1 0.2 0.3 0.4 0.5 0.0 0.1 0.2 0.3 0.4 0.5

x (nm) x (nm)

18

E
3
Energia (eV)

12

|
4

E
3 2
6

E
1
1

0 0.00 0.25 0.50 0.75


0.0 0.1 0.2 0.3 0.4 0.5
x (nm)
x (nm)
2.3. EXEMPLOS 53

2.3.2 Oscilador harmónico quântico a uma dimensão


Consideremos agora um poço de potencial com a forma U = 21 kx2 = 12 mω 2 x2 ,
ou seja, um oscilador harmónico quântico a uma dimensão. É o caso, em
boa aproximação, das oscilações numa molécula diatómica onde a variável x
representa o afastamento da distância internuclear de equilı́brio. As funções
de onda ψ(x) e as correspondentes energias E serão soluções da equação de
Schrödinger independente do tempo Hψ = Eψ :

~2 d2 ψ 1
− 2
+ mω 2 x2 ψ(x) = Eψ(x) (2.18)
2m dx 2
A equação diferencial (2.18) tem solução analı́tica, mas não iremos des-
crever aqui a sua resolução, por ultrapassar o âmbito desta disciplina. Apre-
sentaremos apenas a forma geral das soluções e ilustraremos com um exemplo
concreto. 3
Tal como no caso do poço de potencial infinito, e mais uma vez em con-
traste com o análogo clássico, o espetro de soluções é discreto, caracterizado
por um número quântico n. É possı́vel demonstrar que as soluções ψn (x) da
da equação de Schrödinger independente do tempo têm a forma,

 mω 1/4 1 mω 2
ψn (x) = √ Hn (x) e− 2~ x com n = 0, 1, 2, ... (2.19)
π~ 2n n!
onde Hn (x) são polinómios de grau n designados de polinómios de Hermite.
Para o estado fundamental (n=0) e o primeiro estado
p mω excitado (n=1), por
exemplo, tem-se, respetivamente, H0 = 1, H1 = 2 ~ x.

As energias En correspondentes são


 
1
En = n + ~ω com n = 0, 1, 2, ... (2.20)
2

A expressão anterior permite-nos concluir que os nı́veis de energia são


igualmente espaçados, isto é,

En+1 − En = ~ω .
3
O estudante interessado poderá encontrar a resolução da equação (2.18) na bibliografia
[16].
54 CAPÍTULO 2. FUNDAMENTOS DE MECÂNICA QUÂNTICA

Exemplo 2.3.2 : Uma molécula de H2 vibra de forma se-


melhante à de um oscilador harmónico quântico de massa
m = mp /2 onde mp é a massa de um protão.

Considere uma partı́cula de massa m = mp /2 2


| |
que oscila num movimento unidimensional em 0

-1

torno da origem, com frequência ω0 . A partı́cula (nm )

encontra-se no estado fundamental, que é descrito 20

por uma função de onda do tipo


 mω 1/4 mω0 x2
0
ψ0 (x) = e− 2~ .
π~ 0
-0.04 -0.02 0.00 0.02 0.04

x (nm)

a) Mostre que ψ0 é solução da equação de Schrödinger independente do tempo


correspondente à energia E0 = 12 ~ω0 .

1.2
b) Luz com λ = 4550 nm (infraverme- E
1.0 3

lho) induz uma transição do estado

Energia (eV)
0.8
fundamental E0 = 12 ~ω0 para o 1o E
2 U
0.6
estado excitado, E1 = 32 ~ω0 . Deter- E
0.4 1

mine a energia do estado fundamen-


0.2 E
tal, E0 , em eV e a frequência ω0 em 0

0.0
rad/s. -0.05 -x
0
0.00 x
0
0.05

x (nm)

c) Nos pontos de retorno clássicos ±x0 de um oscilador harmónico simples a


energia cinética é nula e a energia total é igual à energia potencial, E = U
(ver figura). Determine ±x0 em nanometros. Podemos afirmar que a energia
cinética da partı́cula é nula nesses pontos?

Resolução:

a) ψ0 é solução se Hψ0 = E0 ψ0 . Temos

~2 d2 ψ0 1
Hψ0 = − + mω02 x2 ψ0 (x) .
2m dx2 2
2.3. EXEMPLOS 55

dψ0 mω0 d2 ψ0 mω0  mω 2


0
Mas =− x ψ0 e 2
= − ψ0 + x2 ψ0
dx ~ dx ~ ~
donde
~2
  mω 2 
mω0 0 1
Hψ0 = − − ψ0 + x ψ0 + mω02 x2 ψ0 (x)
2
2m ~ ~ 2
1 1 1
= ~ω0 ψ0 − mω02 x2 ψ0 + mω02 x2 ψ0
2 2 2
1
= ~ω0 ψ0
2
Obtivemos Hψ0 = 12 ~ω0 ψ0 , o que significa que ψ0 é solução da equação
de Schrödinger independente do tempo para o oscilador harmónico,
correspondente à energia E0 = 21 ~ω0 .
b) A energia de um fotão com comprimento de onda λ = 4550 nm é
hc 12410 eV.Å
Efotão = = = 0, 27 eV .
λ 45500Å
Se estes fotões induzem a transição n = 0 → n = 1 então E1 − E0 =
Efotão ou seja, ~ω0 = Efotão . Assim,
1 1
E0 = ~ω0 = Efotão = 0, 136 eV
2 2
e
Efotão 0, 27 eV
ω0 = = −16
= 4, 1 × 1014 rad/s .
~ 6, 58 × 10 eV.s
c) Os pontos de retorno clássicos ±x0 são tais que U = E0 ou seja,
1
2
mω02 x20 = 21 ~ω0 , donde
r r 2
1972 (eV.nm)
q
2
~ c 2
±x0 = ± mω ~
0
= ± mc2 E
= ± 938/2×106 eV×0,27 eV
= ±0, 0175 nm .
fotão
Não podemos dizer que a energia cinética é nula nesses pontos porque
isso significaria saber simultaneamente o momento linear p (p = 0 se a
energia cinética é zero) e a posição (±x0 = ±0, 0175 nm), o que não é
possı́vel de acordo com a relação de incerteza de Heisenberg. Embora a
função de onda se estenda para além de ±x0 (verifique!) não podemos
dizer que a partı́cula tem energia cinética negativa nessa região.
56 CAPÍTULO 2. FUNDAMENTOS DE MECÂNICA QUÂNTICA

2.4 Densidade de Probabilidade


Vimos exemplos de soluções da equação de Schrödinger independente do
tempo. Para compreendermos melhor que informação podemos obter a partir
dessas soluções vamos relembrar o conceito de densidade de probabilidade
para um caso comum, como a distribuição de alturas de uma população de
adultos. A altura x é uma variável contı́nua. Seja N (x)dx o número de
pessoas com altura entre x e x + dx. Suponhamos que a distribuição N (x)
tem a forma indicada na figura seguinte.

100

80

N 60

40

20

1.45 1.50 1.55 1.60 1.65 1.70 1.75 1.80 1.85

x (metros)

Se a distribuição for simétrica, o valor médio coincide com o valor mais


provável da altura e é, no caso da figura, < x >=1,65 m. Temos
Z ∞
N = N (x) dx = número total de adultos da amostra
0

A probabilidade de encontrar alguém com altura entre x e x+dx é P (x)dx


onde P (x) é a função densidade de probabilidade definida como

N (x) N (x)
P (x) = = R∞ , (2.21)
N 0
N (x) dx

de forma a que a probabilidade de encontrar uma pessoa com altura entre 0


e ∞ seja 1, isto é
Z ∞ R∞
N (x) dx
P (x) dx = R0∞ =1 . (2.22)
0 0
N (x) dx

Por outras palavras, a densidade de probabilidade é sempre normalizada à


unidade. A função densidade de probabilidade permite-nos calcular proba-
bilidades e valores médios.
2.5. PROBABILIDADES E VALORES MÉDIOS 57

Por exemplo, a probabilidade de encontrar na amostra adultos com altura


entre 1,60 m e 1,70 m é dada pelo integral de P (x)
Z 1,70
P (x) dx (2.23)
1,60

A altura média da população da figura será uma média pesada pela res-
petiva densidade de probabilidade, i.e.,
R∞ Z ∞
0
x N (x) dx
hxi = x = R ∞ = x P (x) dx = 1, 65 m (2.24)
0
N (x) dx 0

Como vimos anteriormente (equação (1.20)), o desvio padrão σ da distri-


buição é dado por
p
σ = hx2 i − hxi2 . (2.25)

Podemos, portanto, obter o desvio padrão σ a partir do cálculo de valores


médios.

2.5 Probabilidades e Valores Médios


Sabemos que em Mecânica Quântica se associa a uma partı́cula uma função
de onda Ψ(x, t) que contém toda a informação sobre o estado da partı́cula, e
que é, em geral, uma função complexa. A quantidade que tem interpretação
fı́sica directa não é Ψ(x, t) mas sim |Ψ(x, t)|2 = Ψ∗ Ψ, que é real: |Ψ(x, t)|2 é a
densidade de probabilidade de presença da partı́cula, ou seja a probabilidade
por unidade de comprimento de encontrar a partı́cula no ponto x, no instante
t, ou seja,
Z b
|Ψ(x, t)|2 dx (2.26)
a

é a probabilidade de encontrar a partı́cula entre x = a e x = b, no instante t.


A equação que traduz a condição de normalização da função de onda é
Z +∞
|Ψ(x, t)|2 dx = 1 . (2.27)
−∞
58 CAPÍTULO 2. FUNDAMENTOS DE MECÂNICA QUÂNTICA

Exemplo 2.5.1 : Consideremos um eletrão num poço de potencial infinito de


largura L = 1 nm, no estado fundamental. Qual é a probabilidade de encontrar o
eletrão entre 0 e L/3?

Resolução: Vimos que no poço de potencial infinito temos soluções estacionárias,


Ψn (x, t) = ψn (x)e−iωt sendo ψn (x) dadas por
r  nπ 
2
ψn (x) = sin x com n = 1, 2, 3, .. (2.28)
L L
para 0 ≤ x ≤ L. Fora do poço a função de onda é zero. No estado fundamental,
n = 1, a função de onda é
r π 
2
ψ1 (x) = sin x
L L
A probabilidade de encontrar o eletrão entre 0 e L/3 é portanto
Z L/3 Z L/3 π x
2 2
|ψ1 | dx = sin2 dx = 0, 196 (2.29)
0 0 L L

Em Mecânica Clássica, se conhecermos as forças a que uma partı́cula está


sujeita e as condições iniciais do movimento sabemos prever a posição da
partı́cula num instante posterior. Isso não é possı́vel em Mecânica Quântica
porque o princı́pio de incerteza de Heisenberg introduz uma indeterminação:
a posição x e o momento linear p da partı́cula não estão bem definidos e as
respetivas incertezas ∆x e ∆p estão relacionadas por

~
∆x ∆p ≥ . (2.30)
2
Assim, mesmo que saibamos tudo o que é possı́vel saber sobre o estado da
partı́cula (a sua função de onda Ψ(x, t)) não sabemos prever que valor con-
creto de x iremos encontrar se fizermos uma medida de x para a partı́cula
no estado Ψ(x, t). Depois de efectuarmos a medida encontraremos um valor
concreto para x, mas se fizermos, no mesmo instante, duas medidas para
duas partı́culas que estão no mesmo estado Ψ(x, t) obteremos, em geral, dois
valores diferentes.
Se soubermos a função de onda Ψ(x, t) podemos no entanto prever o
2.5. PROBABILIDADES E VALORES MÉDIOS 59

valor médio hxi = x, o qual deve coincidir com a média de muitas medidas
realizadas em partı́culas que estavam todas no mesmo estado inicial Ψ.

O valor médio ou valor expectável hxi da posição da uma partı́cula


é a média pesada dos valores de x, em que o peso de cada valor de x é a
respetiva densidade de probabilidade de presença, |Ψ|2 :
Z ∞
hxi = x |Ψ|2 dx (2.31)
−∞

Consideremos novamente o exemplo de um eletrão num poço de potencial


infinito de largura L = 1 nm, no estado fundamental. O valor médio da
posição do eletrão será dado por4
Z +∞ Z L
2 2 2 πx
  L
hxi = x |ψ1 | dx = x sin dx = = 0, 5 nm . (2.32)
−∞ 0 L L 2
A incerteza na posição da partı́cula, ∆x, é dada pela relação (2.33),
p
∆x = σx = hx2 i − hxi2 . (2.33)

É pois necessário calcular não só hxi mas também hx2 i sendo
Z L Z L  
2 2 2 πx 1 1
 
2 2 2 2
hx i = x |ψ1 | dx = x sin dx = L − (2.34)
0 0 L L 3 2π 2
o que conduz a r
1 1
∆x = L − 2 = 0, 18 nm.
12 2π

Em Mecânica Quântica, o valor médio ou valor expectável hxi da posição


de uma partı́cula representa a média das medidas realizadas numa população
de partı́culas que estavam todas originalmente no mesmo estado Ψ. É pois
necessário preparar um conjunto de partı́culas no mesmo estado Ψ, medir a
posição x para cada uma delas, construir um histograma com os resultados
e determinar o respectivo valor médio.

Vejamos agora como calcular o valor médio hAi de uma qualquer grandeza
fı́sica mensurável qualquer.
4
Os limites de integração são 0 e L porque a função de onda é nula fora do poço.
60 CAPÍTULO 2. FUNDAMENTOS DE MECÂNICA QUÂNTICA

As grandezas fı́sicas mensuráveis que dependem de coordenadas espaciais


e temporais podem ser expressas em função da posição e do momento linear.
Já sabemos como calcular R∞hxi. Precisamos ainda de saber calcular hpi. Seria
natural supor que hpi = −∞ p |Ψ|2 dx. Mas para obter p precisamos de fazer
atuar o operador p̂ sobre a função Ψ. Vimos (equação (2.4)) que

p̂Ψ(x, t) = p Ψ(x, t) ,

onde p̂ = −i~ ∂x . Ou seja,

Ψ∗ p̂ Ψ = Ψ∗ p Ψ = p |Ψ|2 ,

isto é, Z +∞
hpi = Ψ∗ p̂ Ψ dx . (2.35)
−∞

Assim, as expressões para os valores médios hxi e hpi podem ser escritas
de uma forma formalmente idêntica:

Z +∞
hxi = Ψ∗ x̂ Ψ dx , (2.36)
−∞
Z +∞
hpi = Ψ∗ p̂ Ψ dx , (2.37)
−∞

ou seja,
Z +∞
hxi = Ψ∗ x Ψ dx , (2.38)
−∞
Z +∞  
∗ ∂
hpi = Ψ −i~ Ψ dx . (2.39)
−∞ ∂x

Podemos então definir o valor médio de uma grandeza A, represen-


tada pelo operador  como

Z +∞
hAi ≡ Ψ∗ Â Ψ dx
−∞
2.6. FORMALISMO 61

2.6 Formalismo
As soluções da equação de Schrödinger independente do tempo são, em ge-
ral discretas, e caraterizadas por certos valores de números quânticos que
representamos genericamente por n:
ĤΨn (x) = En Ψn (x) (2.40)
No caso de um poço de potencial infinito de largura L, temos U = 0
dentro do poço e a equação anterior tem a forma
~2 d2 ψn (x)
− = En ψn (x)
2m dx2
cujas soluções são
r
2  nπx  ~ 2 π 2 n2
ψn (x) = sin e En = n = 1, 2, ...
L L 2mL2
q
2
Note-se que o factor L
foi determinado de forma a que ψn satisfaça a
condição de normalização
Z
ψn∗ ψn dx = 1 . (2.41)

Adicionalmente as funções ψn verificam também a condição


Z
ψn∗ ψm dx = 0 , se m 6= n . (2.42)

De facto, basta verificar que


2 L
Z  nπx   mπx 
sin sin dx = 0 se m 6= n . (2.43)
L 0 L L
Assim, podemos escrever
Z
ψn∗ ψm dx = δmn (2.44)

onde 
0 para m 6= n
δmn =
1 para m = n .

Em Mecânica Quântica define-se produto escalar de ψa por ψb como


62 CAPÍTULO 2. FUNDAMENTOS DE MECÂNICA QUÂNTICA

Z
hψa |ψb i ≡ ψa∗ ψb dx

A notação hψa |ψb i para designar produto escalar permite escrever a equação
2.44 de uma forma mais condensada:
hψn |ψm i = δmn (2.45)
De acordo com esta definição, a condição 2.45 (que é equivalente a 2.44)
significa que as funções ψn e ψm são ortogonais se os números quânticos n e
m forem diferentes e são normalizadas à unidade se n = m. Dizemos que as
funções ψn constituem um conjunto ortonormado de funções.

No instante inicial, o sistema pode estar num estado Ψ que não coincide
com nenhuma das soluções ψn da equação de Schrödinger para o poço de
potencial infinito. Mas as soluções ψn , além de formarem um conjunto or-
tonormado constitui também um conjunto completo,i.e., o estado inicial Ψ
do sistema, qualquer que ele seja pode ser expresso como uma combinação
linear das funções ψn :
X
Ψ = cn ψ n (2.46)
n
r
2 X  nπ 
= cn sin x . (2.47)
L n L

Reconhecemos na expressão (2.47) a expansão numa série de Fourier.


Mas as propriedades de ψn como conjunto ortonormado são gerais, válidas
para todos os potenciais U e não apenas para o poço de potencial infinito.
A propriedade de que as funções ψn constituem um conjunto completo - ou
base - é válida para a maior parte dos potenciais de interesse.

O conjunto de funções ψn é apenas um exemplo de uma base de funções


que pode ser usada para representar o estado do sistema. Isto sugere que
o sistema pode ser representado por um vetor. Como qualquer ve-
tor, pode ser caracterizado pelas suas componentes numa dada base e terá
representações diferentes em bases distintas, mas podemos conceber a sua
existência como entidade abstrata que existe independentemente dessas re-
presentações.
2.6. FORMALISMO 63

Se usarmos como analogia o espaço cartesiano a três dimensões, com


vetores de base êi (onde ê1 = êx , ê2 = êy , ê3 = êz ) temos
êi · êj = δij
que é uma condição semelhante à equação 2.45. Um qualquer vetor - repre-
sentado por A~ - pode ser expresso como uma combinação linear de vetores
desta base X
A~ = Ax êx + Ay êy + Az êz = Ai êi .

O vetor A ~ terá componentes diferentes noutras bases (em coordenadas esféricas


ou cilı́ndricas, por exemplo) mas existe independentemente da sua re-
presentação numa dada base.

Matematicamente, o estado de um sistema pode ser representado por um


vetor; os operadores representam transformações lineares que actuam sobre
ele e, se a base for discreta e de dimensão finita, podem ser representados
por matrizes.

A linguagem natural da Mecânica Quântica é pois a álgebra linear.

2.6.1 Notação de Dirac


Vimos que a equação para o produto escalar de duas funções de base,
hψi |ψj i = δij , é análoga à condição de ortonormalidade numa base de es-
tados num espaço vetorial êi · êj = δij .
Dirac sugeriu uma notação em que o produto escalar hΨa |Ψb i é visto como
o produto de um bra, hΨa |, e um ket,|Ψb i.

Associamos ao estado de um sistema um vetor representado por


um ket, por exemplo |Ψb i .

Num espaço vetorial de dimensões finitas o ket |Ψb i é um vetor represen-


tado por uma matriz coluna. Por exemplo, num sistema binário com dois
estados de base |e1 i e |e2 i temos
 
b1
|Ψb i = (2.48)
b2
P
o que é equivalente a escrever |Ψb i = i bi |ei i = b1 |e1 i + b2 |e2 i.
64 CAPÍTULO 2. FUNDAMENTOS DE MECÂNICA QUÂNTICA

O bra pertence a um outro espaço - o espaço dos operadores lineares de


valor complexo que actuam no espaço dos kets - designado de espaço dual.
Um bra é dado por um vetor linha. Se tivermos um ket |Ψa i dado por
 
a1
|Ψa i = (2.49)
a2

o bra correspondente é
a∗1 a∗2

hΨa | = (2.50)

onde a∗i é o complexo conjugado de ai . O produto escalar entre hΨa | e


|Ψb i escreve-se então como
 
b1 X
a∗1 a∗2 a∗i bi

hΨa |Ψb i = =
b2
i

P
O coeficiente bj da expansão |Ψb i = i bi |ei i é dado por hej |Ψb i.

Um operador  é uma transformação linear e é representado por um


elemento de matriz Aij dado por :

Aij ≡ hei |Â|ej i

A expressão para o valor médio de um operador  pode então ser escrita na


forma compacta
hAi = hΨ|A|Ψi

A equação de Schrödinger independente do tempo pode ser escrita como

Ĥ|ψn i = En |ψn i , (2.51)

onde H é uma matriz, |ψn i é um vetor e En uma constante. Reconhecemos


uma equação de valores próprios já familiar em álgebra linear.

As funções |ψn i são funções próprias corespondentes aos valores próprios


En .
2.7. O PROBLEMA DA MEDIDA 65

2.7 O problema da medida


Consideremos um sistema que está no estado |Ψi. Seja  um operador
que representa um dada grandeza fı́sica. O operador  tem um conjunto
de estados próprios |φn i e valores próprios correspondentes an dados pela
equação de valores próprios

Â|φn i = an |φn i .

Se |φn i constitui uma base ortonormada (i.e. se hφm |φn i = δmn ) e com-
pleta, podemos escrever X
|Ψi = cn |φn i
onde os coeficientes cn se obtêm a partir de cn = hφn |Ψi = φ∗n Ψ dx. O valor
R

médio de A, hAi é dado por

hAi = hΨ|Â|Ψi
X X
= c∗m hφm | cn Â|φn i
m n
XX
= an c∗m cn hφm |φn i
m n
X
= |cn |2 an (2.52)
n

ou seja, o valor médio de A, hAi, é a média pesada dos valores an em que o


peso é |cn |2 : hAi = n |cn |2 an .
P

|cn |2 é a probabilidade de obter o valor próprio an ao fazer uma


medida da grandeza fı́sica representada pelo operador Â.

Note-se que a condição de normalização 2.16 se escreve como

hΨ|Ψi = 1
X X
c∗m hφm | cn |φn i = 1
m n
XX
c∗m cn hφm |φn i = 1
m n
X
|cn |2 = 1 (2.53)
n
66 CAPÍTULO 2. FUNDAMENTOS DE MECÂNICA QUÂNTICA

As caracterı́sticas da medida em Mecânica Quântica podem ser resumidas


da seguinte forma:

Se medirmos a quantidade fı́sica associada ao operador  num sistema descrito


pelo vetor |Ψi, o único resultado possı́vel da medida é um dos valores próprios de
Â. Se o resultado for, por exemplo, a2 no final o sistema estará no estado |φ2 i, o
estado próprio correspondente ao valor próprio encontrado.

A partir daı́ qualquer medida da quantidade fı́sica representada pelo operador Â


efectuada no estado |φ2 i tem como resultado a2 .

Note-se que por isso mesmo o valor médio não se obtém fazendo muitas
medidas no mesmo sistema. Obtém-se fazendo muitas medidas P em sistemas
idênticos, descritos pela mesma combinação linear |Ψi = cn |φn i. Diferen-
tes medidas conduzirão em geral a valores an diferentes. A probabilidade de
encontrar um dado an é dada por |cn |2 , mas é impossı́vel prever qual o valor
concreto que resulta de uma determinada medida.

Consideremos o exemplo 2.7.1 .

Exemplo 2.7.1 : Consideremos uma partı́cula num poço de potencial de largura


L = 0, 5 nm (ver figura) que tem, num dado instante, uma função de onda |Ψi.
|Ψi é uma sobreposição dos dois primeiros estados 18

próprios do Hamiltoniano |ψ1 i e |ψ2 i, correspon- E


3
Energia (eV)

dentes às energias E1 = 1, 5 eV e E2 = 4E1 = 12

6 eV: E
2

1 6

|Ψi = √ (|ψ1 i − i|ψ2 i) . (2.54) E


1
2 0

0.00 0.25 0.50 0.75

x (nm)

a) Mostre que |Ψi não é um estado próprio do Hamiltoniano do sistema.

b) Se medirmos a energia da partı́cula que valores se podem esperar e qual a


probabilidade de obter cada um deles?

c) Qual o valor médio da energia de um conjunto de partı́culas no mesmo estado


inicial |Ψi?
2.7. O PROBLEMA DA MEDIDA 67

Resolução:

a) Se |ψ1 i e |ψ2 i são estados próprios do sistema correspondentes às ener-


gias E1 e E2 então

H|ψ1 i = E1 |ψ1 i e H|ψ2 i = E2 |ψ2 i .

Para mostrar que |Ψi não é um estado próprio do Hamiltoniano do


sistema basta notar que
1
H|Ψi = √ (H|ψ1 i − iH|ψ2 i)
2
1
= √ (E1 |ψ1 i − iE2 |ψ2 i)
2
E1
= √ (|ψ1 i − 4i|ψ2 i) ,
2
isto é, não se pode escrever o lado direito da equação anterior como um
produto de uma constante pela |Ψi.

b) Se medirmos a energia da partı́cula, os únicos resultados possı́veis são


valores próprios En do operador correspondente, o Hamiltoniano do
sistema. Atendendo à equação 2.54 só podemos obter os valores E1 ou
E2 correspondentes aos estados próprios √ |ψ 1 i e |ψ2 i. As probabilidades

são dadas por |cn | , ou seja |c1 | = |1/ 2| = 1/2 e |c2 |2 = | − i/ 2|2 =
2 2 2

1/2, respetivamente.

Se o resultado da medida for, por ex., E1 = 1, 5 eV, o sistema fica no


estado |ψ1 i imediatamente após a medida.

c) O valor médio da energia de um conjunto de partı́culas no mesmo estado


inicial |Ψi é dado por hHi = hΨ|H|Ψi. Vem então,
1
hΨ|H|Ψi = √ (E1 hΨ|ψ1 i − i E2 hΨ|ψ2 i)
2

mas o bra hΨ| é dado por hΨ| = √1 (hψ1 | + ihψ2 |). Assim,
2

i2 E
 
1 E iE iE
hΨ|H|Ψi = √ √1 hψ1 |ψ1 i + √ 1 hψ2 |ψ1 i − √ 2 hψ1 |ψ2 i − √ 2 hψ2 |ψ2 i
2 2 2 2 2
68 CAPÍTULO 2. FUNDAMENTOS DE MECÂNICA QUÂNTICA

E1 E2
= +
2 2
5E1
=
2
= 3, 75 eV

Na chamada interpretação de Copenhaga da Mecânica Quântica obter,


por exemplo, o valor E2 significa que a medida fez colapsar a função de onda
|Ψi no estado |ψ2 i. A medida é um processo que em geral altera o estado
do sistema obrigando-o a escolher um dos estados próprios |ψn i do operador
que representa a grandeza medida.

O colapso da função de onda é difı́cil de aceitar do ponto de vista con-


ceptual e filosófico e foi tema de um aceso debate entre fı́sicos eminentes. Os
resultados experimentais favoreceram a interpretação de Copenhaga, razão
pela qual ela se mantém nos dias de hoje. Não é contudo, uma questão
encerrada.
2.8. RESUMO 69

2.8 Resumo
É útil resumir alguns aspectos fundamentais que vimos até aqui. Assim

1. Um sistema fı́sico é representado por um vetor de estado - o ket |Ψi.

2. Uma quantidade A passı́vel de ser medida é representada por um ope-


rador Â. Suponhamos que o operador  tem um espetro discreto de
vetores próprios |φn i dados por Â|φn i = an |φn i, onde an é o valor
próprio correspondente ao vetor próprio |φn i. Se o conjunto |φn i cons-
tituir uma base ortonormada e completa, então o estado do sistema |Ψi
pode ser
P expresso como uma combinação linear desses estados de base:
|Ψi = cn |φn i. O operador  pode ser escrito numa forma matricial,
onde o elemento de matriz Aij = hφi |A|φj i.

3. Se fizermos uma medida no estado |Ψi da grandeza fı́sica representada


pelo operador Â, o resultado da medida é um dos valores próprios de Â,
por exemplo aj . No final da medida o sistema estará no estado próprio
|φj i correspondente ao valor próprio obtido. A probabilidade de obter
aj numa medidaPé dada por |cj |2 , onde cj é o coeficiente de |φj i na
expansão |Ψi = cn |φn i.

4. Se efetuarmos muitas medidas em estados identicamente preparados


|Ψi obteremos diferentesP valores próprios an . O valor médio das medi-
das é hAi = hΨ|A|Ψi = n |cn |2 an , a média pesada dos valores an em
que o peso |cn |2 é a respetiva probabilidade.
70 CAPÍTULO 2. FUNDAMENTOS DE MECÂNICA QUÂNTICA

2.9 O Spin
No nosso dia a dia, todos nós estamos familiarizados com magnetes . Quando
colocamos limalha de ferro junto a um magnete, a limalha orienta-se for-
mando linhas. Dizemos que o magnete cria à sua volta um campo magnético
~ O campo B
B. ~ é um campo vetorial com direção tangente a essas linhas em
cada ponto.

Um pequeno magnete caracteriza-se por uma propriedade vetorial desig-


nada de momento magnético µ ~ . O momento magnético determina a força
que o magnete exerce sobre uma corrente eléctrica e também a força a que ele
fica sujeito se for colocado numa região com um campo magnético externo.

O magnetismo dos materiais tem origem em momentos magné-


ticos de partı́culas elementares como os eletrões. O momento
magnético de um eletrão 5 está associado a uma propriedade quântica
fundamental que se designa de spin .

Um eletrão comporta-se como um pequeno magnete e a relação entre


momento magnético µ ~ pode escrever-se na forma
~ e e spin S
µ ~
~ e = γe S (2.55)
onde a constante γe = −1, 760859708(39) × 1011 rad.s−1 .T−1 é uma constante
fundamental associada ao eletrão (tal como a sua massa e a sua carga) e se
designa de relação giromagnética. O protão também tem spin e momento
magnético. Para o protão a relação anterior tem a forma:
µ ~
~ p = γp S (2.56)
5
Se o electrão estiver ligado a um núcleo tem ainda um momento magnético adicional
associado ao seu movimento orbital.
2.9. O SPIN 71

A constante γp associada ao protão é cerca de três ordens de grandeza inferior


à do eletrão: γp = 2.675222005(63) × 108 rad.s−1 .T−1 . Por esta razão, o
magnetismo dos materiais é determinado fundamentalmente pelos momentos
magnéticos dos eletrões.

O spin é uma quantidade vetorial que não depende de coordenadas


espaciais. Por isso associamos à propriedade de spin de uma partı́cula um
estado de spin que não pode ser escrito como uma função de coorde-
nadas espaciais.

O vetor S~ tem um módulo cujo quadrado é S ~ ·S~ = S2 e projeções Sx ,


Sy e Sz num sistema de eixos cartesianos. Embora o spin seja uma quanti-
dade quântica sem análogo clássico, os valores médios das suas componentes
comportam-se como se o spin fosse um vetor que precessa continuamente no
espaço em torno de uma direção, um pouco como o movimento de precessão
de um pião em torno de um eixo. Contudo, ao contrário do pião, verifica-se
experimentalmente que o spin de uma partı́cula como o eletrão tem duas e
apenas duas projeções possı́veis na direção em torno da qual precessa
(e que designaremos por z) como veremos de seguida.

2.9.1 A experiência de Stern-Gerlach


Como é possı́vel determinar experimentalmente uma componente de spin de
uma partı́cula?

Sabemos do eletromagnetismo que uma partı́cula com momento magnético


µ
~ fica sujeita a uma força total não nula se for colocada numa região com um
campo magnético externo não uniforme. Uma vez que µz = γSz , medir µz é
equivalente a medir Sz . Suponhamos que temos uma geometria de magnetes
que criam um campo magnético na direção z cuja intensidade varia com a
coordenada z , isto é tem a forma B ~ = Bz (z) eˆz . Prova-se que uma partı́cula
com momento magnético µ ~ , na presença deste campo fica sujeita a uma força
na direção z dada por
∂Bz
Fz = µz (2.57)
∂z
O valor de ∂B
∂z
z
depende da geometria dos magnetes e pode ser calculado e/ou
medido para essa geometria. Se conseguirmos determinar a força Fz ficamos
72 CAPÍTULO 2. FUNDAMENTOS DE MECÂNICA QUÂNTICA

a saber µz , a componente do momento magnético na direcção do campo.


Nestas condições, determinamos Sz = µγez .

Uma experiência de Stern-Gerlach é um exemplo de uma medida desse


tipo6 . Consiste em fazer passar um feixe de partı́culas num campo magnético
não uniforme Bz de forma a que elas fiquem sujeitas a uma força Fz propor-
cional ao seu momento magnético µz .7 A figura em baixo exemplifica o que
se esperaria obter se as partı́culas à entrada tivessem todas um mesmo mo-
mento magnético µ ~ , com o mesmo módulo, direcção e sentido. A deflexão
do feixe devido à força Fz pode ser medida projetando o feixe emergente do
magnete num alvo.
Z
alvo
magnete

feixe
y

A experiência é usualmente realizada com partı́culas neutras para que


a deflexão seja devida apenas ao momento magnético das partı́culas8 .Para
fazer uma medida da componente Sz do spin de um eletrão podemos usar
átomos de hidrogénio (H). O átomo de hidrogénio é um estado ligado de um
protão e de um eletrão. No estado fundamental, o momento magnético do
átomo é o momento magnético de spin do eletrão 9 e os átomos vão ficar
sujeitos a uma força do tipo da Eq.2.57, que se pode escrever
∂Bz
Fz = γe hSz i (2.58)
∂z
6
O nome está associado aos cientistas Otto Stern e Walther Gerlach que realizaram
esta experiência em 1922, na Alemanha, usando um feixe de átomos de prata.
7
Na realidade o campo tem a direcção z no eixo central dos magnetes mas tem pequenas
componentes Bx e By junto à bordas que provocam uma pequena distorção da forma do
feixe à saı́da.
8
Se as partı́culas forem carregadas há uma força magnética adicional devida à sua
carga. Essa força pode ser anulada com a aplicação de um campo elétrico apropriado, o
que dificulta a experiência.
9
O momento magnético do protão - o núcleo do átomo de hidrogénio - é desprezável
quando comparado com o momento magnético do eletrão.
2.9. O SPIN 73

Como referimos, o valor de ∂B ∂z


z
depende da configuração dos magnetes e é
conhecido na experiência. Os átomos de hidrogénio no estado fundamental
ficam sujeitos a uma força Fz na vertical que depende do valor de hSz i dos
eletrões e que os faz defletir na direção vertical. Se a velocidade inicial dos
átomos for conhecida, o valor de Fz pode ser determinado medindo a deflexão
do feixe à saı́da dos magnetes. Sabendo Fz a relação 2.58 permite determinar
hSz i.

Não há, no entanto, nenhuma razão a priori para que a direção do mo-
mento magnético de spin dos eletrões dos átomos de hidrogénio seja comum
para todos os eletrões. Se o feixe nunca foi submetido a nenhuma experiência
que possa ter efetuado uma seleção de estados, deveremos ter no feixe todas
as direcções possı́veis do vetor momento magnético µ ~ e portanto de S.
~ = γS ~
Se o spin se comportasse como um pequeno magnete clássico, a sua projeção
~ e −|S|
na direcção z teria todos os valores possı́veis entre +|S| ~ e à saı́da a
imagem do feixe seria uma mancha contı́nua.

Contudo, não é isso que sucede: à saı́da há apenas duas manchas com a
mesma intensidade, como indica a figura a seguir. Este resultado significa
que só há duas projeções possı́veis para o momento magnético intrinseco do
eletrão e portanto, sendo µ ~ só há duas projeções possı́veis para o spin
~ = γ S,
de um eletrão numa dada direção. A intensidade relativa das duas manchas
é uma medida da probabilidade relativa de obter cada um dos resultados.
Z
alvo
magnete |z
feixe H
y

| z

Foi assim que historicamente se descobriu a existência de um momento


magnético intrinseco do eletrão e foi introduzido o conceito de spin.

Uma vez que as projeções de spin são quantizadas deverão ter um número
quântico associado. Um estado de spin caracteriza-se por dois números
74 CAPÍTULO 2. FUNDAMENTOS DE MECÂNICA QUÂNTICA

quânticos, s e ms . O número quântico de spin s está associado ao módulo


do vetor S, ~ enquanto que ms está associado à projeção do spin numa dada
direção, que convencionamos chamar direção z. Para um dado valor de s, os
valores possı́veis de uma medida de Sz são hSz i = ~ms onde ms varia de −s
a +s, em saltos de uma unidade. Isto significa que há 2s + 1 valores possı́veis
de Sz . A experiência de Stern-Gerlach diz-nos que há duas projeções de spin,
ou seja,
2s + 1 = 2 ,
o que nos permite concluir que
1 1 1
s= e ms = ou ms = − .
2 2 2
Os valores correspondentes de Sz são assim ~ms , ou seja, ~/2 e −~/2, como
ilustra a figura em baixo.

A posição das manchas na experiência de Stern-Gerlach permite ainda


determinar os valores numéricos de hµz i para os feixes emergentes. Sendo
hSz i = ±~/2, vem hµz i = ±γe ~/2 e o valor experimental de hµz i permite co-
nhecer a constante γe , que é uma constante fundamental associada ao eletrão.

O spin é uma caracterı́stica intrı́nseca do eletrão, faz parte da sua iden-


tidade, tal como a carga ou a sua massa. Há outras partı́culas com spin
como, por exemplo, o protão e o neutrão, que são também partı́culas de spin
s = 1/2. O fotão, por outro lado, também tem spin, mas com s = 1.

Em sı́ntese, uma experiência de Stern-Gerlach com um campo


magnético na direção z pode ser usada como uma medida de Sz .
Isso significa que os resultados da medida, ~/2 e −~/2, são os valores
2.9. O SPIN 75

próprios de Sz . No final da medida, os dois feixes emergentes estão


em estados próprios de Sz que designaremos de spin up | ↑z i e spin
down | ↓z i, respetivamente.10

Consideremos os feixes emergentes. Imediatamente após a medida, todas


as partı́culas em cada feixe estão no mesmo estado de spin. São feixes ditos
coerentes, 100% polarizados. Na verdade, é difı́cil manter um conjunto de
partı́culas num estado coerente. A interação de cada partı́cula com o exterior
dá origem a uma desfasagem dos estados e perda de coerência. Quando isso
sucede o feixe deixa de poder ser descrito por uma função de onda 11 , mas
não iremos considerar aqui esses casos. As experiências de Stern-Gerlach que
iremos analisar daqui em diante são experiências pensadas, em que supomos
que não há perda de coerência.

Imaginemos então que cada um dos feixes emergentes da primeira ex-


periência de Stern-Gerlach, um no estado | ↑z i e outro no estado | ↓z i, é
submetido novamente a uma experiência idêntica à primeira, com o campo
na mesma direção z. Uma vez que os feixes que entram no segundo magnete
já estão em estados próprios de Sz , não há desdobramento dos feixes como
sucedeu no primeiro magnete. O estado do feixe antes da primeira medida
não pode ser nem o estado | ↑z i, nem o estado | ↓z i.

| z
| z
Bz

feixe H y
Bz

| z Bz | z

Note-se também que ao realizarmos a primeira experiência de Stern-


Gerlach não só medimos Sz como também preparámos um feixe no estado
10
Os feixes são constituı́dos por átomos e a descrição completa do seu estado não inclui
apenas informação de spin. Inclui também uma função de coordenadas espaciais que não
iremos aqui considerar. As designações de | ↑z i e | ↓z i referem-se apenas à componente de
spin da função de onda, que é independente da componente espacial.
11
Tem de ser descrito através da chamada matriz densidade, mas essa descrição ultra-
passa o âmbito desta disciplina.
76 CAPÍTULO 2. FUNDAMENTOS DE MECÂNICA QUÂNTICA

| ↑z i e um feixe no estado | ↓z i.

2.9.2 Formalismo dos operadores de spin


O operador Sz
Vimos que uma medida de Sz mostra que o operador Ŝz tem estados próprios
| ↑z i e | ↓z i correspondentes aos valores próprios ~/2 e −~/2, respetivamente.
Assim, as equações de valores próprios correspondentes são

~ ~
Ŝz | ↑z i = + | ↑z i Ŝz | ↓z i = − | ↓z i (2.59)
2 2
Os estados próprios de Sz , spin up e spin down, constituem uma base orto-
normada e completa. Na forma matricial, os vetores de base | ↑z i e | ↓z i, são
matrizes coluna, designadas de spinors:
   
1 0
| ↑z i = e | ↓z i = (2.60)
0 1

Assim, um estado qualquer de spin |χi pode exprimir-se em termos de


vetores de base:  
α
|χi = α | ↑z i + β | ↓z i = (2.61)
β
onde α e β são coeficientes complexos tais que |α|2 + |β|2 = 1.

O operador Sz é uma matriz 2 × 2 que podemos determinar a partir da


sua ação sobre | ↑z i e | ↓z i.
A equação 2.59 escreve-se como
         
e f 1 ~ 1 e f 0 ~ 0
= e =−
g h 0 2 0 g h 1 2 1

ou seja,        
~
e 2
f 0
= e =
g 0 h − ~2
e vem e = (1/2)~, f = 0, g = 0 e h = −(1/2)~. Donde
 
~ 1 0
Sz = . (2.62)
2 0−1
2.9. O SPIN 77

Exemplo 2.9.2.1 : Consideremos uma medida de Sz de uma única partı́cula.

a) O que esperamos obter se o estado inicial for : i) um estado | ↓z i ?


ii) um estado |χi = α | ↑z i + β | ↓z i em que os coeficientes α e β são desco-
nhecidos?

b) Suponhamos que desconhecemos o estado inicial. O resultado da medida de


Sz é −~/2. O que podemos concluir sobre o estado inicial?

Resolução:

a) i) Se o estado inicial for um estado | ↓z i, uma medida de Sz conduz ne-


cessariamente a um resultado de −~/2 e no final da medida a partı́cula
continua num estado down.

a) ii) Se o estado inicial for o estado |χi = α | ↑z i + β | ↓z i então há dois


resultados possı́veis para a medida : ~/2 ( e nesse caso a partı́cula
fica no estado up no final da medida) ou -~/2 ( e nesse caso fica no
estado down no final da medida). A probabilidade de obter o primeiro
resultado é |α|2 , a probabilidade de obter −~/2 é (1 − |α|2 ) = |β|2 .

b) Se desconhecemos o estado inicial e obtemos −~/2 na medida de Sz


de uma única partı́cula, o resultado não nos permite concluir qual o
estado inicial |χi = α | ↑z i + β | ↓z i. Apenas podemos concluir que o
coeficiente β é não nulo. Não sabemos sequer o peso relativo dos dois
coeficientes, |β|2 /|α|2 .

Se medirmos um feixe de muitas partı́culas, todas no mesmo estado


|χi, então a intensidade relativa dos dois feixes à saı́da permite-nos
conhecer |β|2 /|α|2 mas continuamos a desconhecer a fase relativa de
β e α. Por exemplo, se os dois feixes tiverem a mesma intensidade
concluimos que |β|2 /|α|2 = 1. Continuamos, no entanto, sem saber se
temos |χi = √12 ( | ↑z i + | ↓z i) ou |χi = √12 ( | ↑z i + i | ↓z i) ou qualquer
outro |χi em que β/α = eiφ . Mesmo que façamos a medida em muitas
partı́culas identicamente preparadas, perdemos a informação sobre a
fase relativa φ ao realizar a medida.
78 CAPÍTULO 2. FUNDAMENTOS DE MECÂNICA QUÂNTICA

Medidas da componente de spin noutras direções

Vimos qual o operador que representa a componente z do spin (Sz ) do eletrão


e constatámos que uma experiência de Stern-Gerlach (SG) com um feixe de
átomos de hidrogénio corresponde a uma medida de Sz . Como poderemos
então medir outras componentes do spin, Sx e Sy ? Note-se que numa ex-
periência de SG a componente de spin que se mede é a componente na direção
do campo magnético aplicado. Se tivermos uma única experiência de Stern-
Gerlach a designação da direção do campo é arbitrária. É usual designá-la
de z, mas poderia ter sido designada de x ou de y e nesse caso dirı́amos que
estavamos a medir Sx ou Sy . Os resultados não dependem, naturalmente da
designação adotada, o que significa que os valores próprios de Sx e de Sy têm
de ser também ~/2 e −~/2. Por convenção, quando há apenas uma direção
privilegiada no espaço é usual designá-la de direção z. Quando nos referimos
a estados up e down, | ↑i e | ↓i, referimo-nos implicitamente a | ↑z i e | ↓z i .

Consideremos agora uma sucessão de experiências de Stern-Gerlach em


que os campos têm direções diferentes. Só a designação de uma das direções
é que é arbitrária. Se escolhermos uma dada direção e sentido para eixo z
os eixos x e y ficam definidos num plano perpendicular. Se tivermos três
experiências de Stern-Gerlach em sucessão em que os campos B~1 , B~2 e B~3
têm direções relativas idênticas às de z, x e y então teremos uma medida de Sz
seguida de uma medida de Sx que depois é seguida de uma medida de Sy . No
entanto, como discutiremos adiante, é impossı́vel conhecer simultaneamente
duas componentes de spin.

Suponhamos que a seguir a uma medida de Sz fazemos uma medida de Sx


(ou de Sy )? Podemos prever quais são os resultados possı́veis e as respetivas
probabilidades?

Os resultados possı́veis de uma medida de Sx são os valores próprios de


Sx e no final da medida o sistema ficará no estado próprio correspondente.
Para responder à questão precisamos de saber quais os estados próprios de
Sx e Sy e os respectivos valores próprios. A designação de um eixo como x,
y ou z é arbitrária, e por isso esperamos que os estados próprios de Sx sejam
os estados up e down na direção x - que designaremos por | ↑x i e | ↓x i - com
valores próprios correspondentes +~/2 e −~/2. Identicamente, os estados
2.9. O SPIN 79

próprios de Sy são os estados up e down na direção y - que designaremos por


| ↑y i e | ↓y i - com valores próprios correspondentes +~/2 e −~/2.

Mas como se relacionam os estados próprios de Sx e de Sy com os estados


próprios de Sz que usámos como base de estados (| ↑z i = | ↑i e | ↓z i = | ↓i)?

Apresentaremos aqui, sem demonstração12 a forma dos estados próprios


de Sx , expressos na base de estados próprios de Sz :
   
1 1 1 1
| ↑x i = √ | ↓x i = √ (2.63)
2 1 2 −1
Se prepararmos dois feixes, um com partı́culas que estão todas no estado
√1 (| ↑z i + | ↓z i) e outro com partı́culas que estão no estado √1 (| ↑z i − | ↓z i),
2 2
podemos verificar que são de facto estados próprios de Sx realizando uma
medida de Sx em cada um deles, por ex. através de uma experiência de SG
com o campo na direção x, como ilustra a figura em baixo. Para o primeiro
feixe, no estado √12 (| ↑z i + | ↓z i), o resultado da medida é +~/2 para todas as
partı́culas, ou seja é um estado up na direção x. No caso do feixe no estado
√1 (| ↑z i − | ↓z i) a medida de Sx conduz a −~/2 para todas as partı́culas, ou
2
seja é um estado down na direção x.

|x
| x |
= 1/ 2 z
|
+ 1/ 2
z
S-G
x

| x | - 1/ 2|
= 1/ 2 z z
S-G
x
|x

É igualmente possı́vel mostrar que os estados próprios de Sy são


   
1 1 1 1
| ↑y i = √ | ↓y i = √ , (2.64)
2 i 2 −i
expressos também na base de estados próprios de Sz . O significado está
ilustrado a seguir, usando uma experiência de SG na direção y:
12
O estudante interessado poderá consultar uma descrição do formalismo de spin mais
aprofundada nas referências bibliográficas [16],[17].
80 CAPÍTULO 2. FUNDAMENTOS DE MECÂNICA QUÂNTICA

|y
| y
= 1/ 2 | z
+ i/ 2 | z
S-G
y

| y
= 1/ 2 | - i/ 2|
z

z
S-G
y
|y

As matrizes que representam Sx e Sy na base de estados de Sz são matrizes


2 × 2 que são soluções das equações
       
1 1 ~ 1 1 1 1 ~ 1 1
Sx √ = √ Sx √ =− √
2 1 2 2 1 2 −1 2 2 −1

e
       
1 1 ~ 1 1 1 1 ~ 1 1
Sy √ = √ Sy √ =− √
2 i 2 2 i 2 −i 2 2 −i

As relações em cima permitem-nos concluir (verifique!) que as matrizes que


representam os operadores Sx , Sy e Sz têm a forma
     
~ 0 1 ~ 0 −i ~ 1 0
Sx = Sy = Sz = ,
2 1 0 2 i 0 2 0−1
(2.65)
expressas na base de estados próprios de Sz . Uma vez que todas elas têm o
factor ~/2 é conveniente definir os operadores σi = 2Si /~ :

     
0 1 0 −i 1 0
σx ≡ σy ≡ σz ≡ (2.66)
1 0 i 0 0−1

As matrizes σx , σy e σz são designadas por matrizes de spin de Pauli.

Note-se que os vetores próprios de σx , σy e σz são os mesmos de


Sx , Sy e Sz , respetivamente, mas os valores próprios são +1 e −1 em
vez de ~/2 e −~/2.
2.9. O SPIN 81

Mudança de base
Os estados próprios de Sz constituem uma base no espaço de spin, mas os
estados próprios de Sx ou de Sy podem igualmente ser escolhidos como base
e há situações em que essa escolha é mais conveniente. Consideremos o
exemplo seguinte:

Exemplo 2.9.2.2 : Suponhamos


  que temos um feixe constituı́do por partı́culas
1
no estado | ↓y i = √12 , expresso na base de estados próprios de Sz . Que
−i
resultado esperamos obter se fizermos uma medida de Sx com este feixe?

Resolução:
Para prever o resultado é necessário fazer uma mudança de base, isto
é, precisamos de exprimir o estado inicial como uma combinação linear na
base de estados finais | ↑x i e | ↓x i. Ou seja é necessário saber quais são os
coeficientes C+ e C− tais que
| ↓y i = C+ | ↑x i + C− | ↓x i (2.67)
A relação anterior pode ser escrita como
     
1 1 1 1 1 1
√ = C+ √ + C− √ ,
2 −i 2 1 2 −1
1−i 1+i
e obtém-se C+ = 2
e C− = 2
. Podemos então escrever
1−i 1+i
| ↓y i = | ↑x i + | ↓x i . (2.68)
2 2
Assim, a probabilidade de encontrar o valor +~/2 numa medida de Sx
efetuada no estado | ↓y i é |(1 − i)/2|2 = 0, 5. A probabilidade de encontrar
o valor −~/2 na mesma medida é |(1 + i)/2|2 = 0, 5. Esperamos dois feixes
à saı́da de igual intensidade, como sugere a figura seguinte.

| x
| y
S-G
x
| x
82 CAPÍTULO 2. FUNDAMENTOS DE MECÂNICA QUÂNTICA

Note-se que quando efetuamos uma medida há, em geral, perda de in-
formação. Consideremos o exemplo 2.9.2.3.

Exemplo 2.9.2.3 : Considere um feixe de átomos de hidrogénio no estado de


spin | ↑z i e outro feixe no estado ↓z i . Mostre que os dois feixes são indistinguı́veis
numa medida de Sx .

| z
| z
S-G S-G
X X

Resolução: Para saber o resultado da medida em cada um dos casos,


precisamos de saber quais são os coeficientes U+ , U− , D+ e D− tais que

| ↑z i = U+ | ↑x i + U− | ↓x i

e
| ↓z i = D+ | ↑x i + D− | ↓x i ,
ou seja, tais que
     
1 1 1 1 1
= U+ √ + U− √
0 2 1 2 −1
e      
0 1 1 1 1
= D+ √ + D− √ .
1 2 1 2 −1
Facilmente concluı́mos que

1 1
| ↑z i = √ (| ↑x i + | ↓x i) e | ↓z i = √ (| ↑x i − | ↓x i) ,
2 2
ou seja, temos à saı́da, em ambos os casos, dois feixes de intensidades iguais,
um com átomos no estado de spin up na direção x e outro com átomos no
estado de spin down, na direção x. O resultado é exatamente o mesmo em
ambos os casos, o que significa que a medida de Sx não permitiu distinguir os
dois feixes. Note-se que a comparação com o exemplo anterior 2.9.2.2 mostra
que a medida de Sx não permite distinguir também entre um estado down
2.9. O SPIN 83

na direção z ou na direção y. Há claramente perda de informação ao efetuar


a medida.

Em resumo, quando falamos na base de estados up e down referimo-nos à


base padrão, na direção z. Mas podemos usar a também a base dos estados
up e down na direção x, ou a base na direção y. Na realidade, podemos
definir uma base de estados up e down para qualquer direção do espaço e
efetuar uma mudança da base z para essa base, sempre que for conveniente.

Consideremos, por exemplo, que o magnete de Stern-Gerlach tem um


campo magnético com uma direção no plano x-z, que faz um ângulo θ com
o eixo z. Haverá algum estado do feixe inicial para o qual este não se separe
em dois à saı́da? Estaremos nesse caso a fazer uma medida de Sθ , a compo-
nente de spin na direção θ e procuramos os vetores próprios do operador Ŝθ .
Designemos por êD o versor na direção θ. Temos
z
êD = sin θ êx + cos θ êz .
~ θ ou seja
êD
Classicamente, a componente Sθ será Sθ = S.ê θ

Sθ = sin θ Sx + cos θ Sz .
x
O operador correspondente será
   
~ 0 1 ~ 1 0
Sθ = sin θ + cos θ ,
2 1 0 2 0−1

isto é,
   
~ cos θ sin θ cos θ sin θ
Sθ = e σθ = .
2 sin θ − cos θ sin θ − cos θ

O leitor poderá verificar que estes operadores têm como vetores próprios os
estados up e down na direção θ:

cos 2θ − sin 2θ
   
| ↑θ i = e | ↓θ i = .
sin 2θ cos 2θ

Os valores próprios correspondentes são, naturalmente, ± ~2 para Sθ e ±1 para


σθ .
84 CAPÍTULO 2. FUNDAMENTOS DE MECÂNICA QUÂNTICA

Podemos ainda considerar uma direção genérica definida


pelas coordenadas esféricas θ e φ. Nesse caso temos z
êD
θ
êD = sin θ cos φ êx + sin θ sin φ êy + cos θ êz

e y
φ
Sθ,φ = sin θ cos φ Sx + sin θ sin φ Sy + cos θ Sz . x

Mais uma vez, o leitor poderá verificar que os estados up e down na


direção (θ, φ) são :
cos 2θ
 
| ↑θ,φ i =
sin 2θ eiφ
e
π−θ
sin 2θ
    
cos
| ↓θ,φ i = = 2  ,
− cos 2θ eiφ sin π−θ
2
ei(φ+π)

correspondentes as valores próprios ± ~2 para Sθ e ±1 para σθ . Note-se que


o estado down tem a forma de um estado up na direção (π − θ , π + φ),
que é antiparalela à do estado up na direção (θ, φ). Se tivermos partı́culas
nestes estados e as submetermos a uma experiência de S-G com um campo
magnético na direção (θ, φ) não há desdobramento do feixe à saı́da:

| θ,φ
| θ,φ = cos θ/2| z |
+ sin θ/2 eiφ z
S-G
θ,φ

| θ,φ = sin θ/2| z - cos θ/2 eiφ z |


S-G
θ,φ
| θ,φ

Note-se que a direção (θ, φ) pode ser qualquer direção no espaço. Como
veremos mais à frente, qualquer sobreposição α| ↑z i + β| ↓z i de estados up
e down na direção z pode ser escrita na forma cos 2θ | ↑z i + sin 2θ eiφ | ↓z i. Ou
seja, qualquer que seja a sobreposição de estados up e down na direção z, há
uma direção no espaço para a qual essa sobreposição é um estado up (na base
de estados | ↑θ,φ i,| ↓θ,φ i). Se o campo magnético da experiência de S-G tiver
2.9. O SPIN 85

essa direção, o feixe não se separa. Um feixe para o qual é possı́vel encontrar
uma direção em que o feixe não se separa é um feixe coerente.

Se tivermos uma só partı́cula, o seu estado de spin é necessariamente um


estado puro, que pode ser descrito por uma função de onda α| ↑z i + β| ↓z i.
No entanto, se a partı́cula sofrer interações com o exterior, os coeficientes α
e β variam no tempo. Se tivermos um feixe coerente de partı́culas que no
instante t = 0 são todas descritas por uma função de onda α| ↑z i + β| ↓z i,
com o evoluir do tempo cada partı́cula interage com o exterior de forma
independente; num instante posterior, a função de onda da partı́cula i terá
coeficientes que poderão ser diferentes dos da partı́cula j e o feixe transforma-
se numa mistura incoerente de estados.

Um feixe de partı́culas de spin 1/2 que nunca foi submetido a um campo


magnético comporta-se de forma idêntica para qualquer direção do espaço,
ou seja separa-se sempre em dois feixes numa experiência de S-G. É uma
mistura incoerente de estados.

2.9.3 Medidas sequenciais

A possibilidade de medir a componente de spin em qualquer direção pode


fazer supor que é possı́vel medir mais do que uma componente de spin para
um dado feixe. Isso exige, contudo, realizar duas experiências de Stern-
Gerlach em sucessão, por exemplo uma medida de Sz seguida de Sx . Uma
vez que o estado do sistema é alterado após a medida, os resultados não
correspondem aos valores de Sx e de Sz do feixe inicial. Na realidade, é
impossı́vel conhecer simultaneamente mais do que uma componente do spin
de uma partı́cula. Analisemos um exemplo de medidas sequenciais.

Exemplo 2.9.2.4 : Considere um feixe constituı́do por átomos de hidrogénio no


estado de spin |χi = √12 (| ↑z i + | ↓z i) . Mostre que realizar uma medida de Sx
seguida de uma medida de Sz sobre o feixe não é equivalente a fazer uma medida
de Sz seguida de uma medida de Sx .
86 CAPÍTULO 2. FUNDAMENTOS DE MECÂNICA QUÂNTICA

Resolução:

O estado inicial |χi = √12 (| ↑z i + | ↓z i) é um estado próprio de Sx . Na


figura seguinte estão esquematizados os resultados das experiências de Stern-
Gerlach (S-G) correspondentes a i) uma medida de Sx seguida de uma medida
de Sz e ii) uma medida de Sz seguida de uma medida de Sx . Para identificar
o estado dos feixes usou-se o conhecimento de que à saı́da da experiência
os feixes estão em estados próprios do operador associado à medida. Da
análise ds figuras vemos que os estados finais são claramente diferentes nos
dois casos.

| z

| S-G
x
z
| x |
= 1/ 2
z
|
+ 1/ 2
z
|
S-G z

x i)
| x

| S-G
z
x
|
1/ 2
z
+ 1/ 2 | z
S-G | x
z
| z ii)
Capı́tulo 3

Informação Quântica

3.1 Informação clássica versus informação quântica


Um computador usa informação codificada numa base binária. A unidade
é o bit que pode ser 0 ou 1. A informação e as operações com informação
têm uma realização fı́sica concreta. Por exemplo, o bit 1 pode corresponder
a uma tensão eléctrica de 5 V e o bit 0 a uma tensão eléctrica de 0 Volts e
as operações lógicas sobre esses estados - as gates - têm uma tradução em
operações fı́sicas com sinais elétricos. Há outras realizações fı́sicas possı́veis
que podem codificar a mesma informação e que são equivalentes desde que
as leis fı́sicas que as regem sejam comuns. Assim, do ponto de vista de
computação basta saber que os estados iniciais correspondem ou a 0 ou a 1
e que uma gate pode ser definida pela correspondência que estabelece entre
estados iniciais e finais. Designemos por

|0i e |1i

os dois estados possı́veis de um bit clássico (ou cbit). Independentemente da


base fı́sica, os dados podem ser copiados, apagados, lidos tantas vezes quantas
as necessárias, armazenados durante longos perı́odos de tempo etc,... desde
que a informação seja clássica, i.e., desde que o seu suporte fı́sico seja regido
por leis clássicas. Note-se que isto inclui sistemas cujo funcionamento tem
por base fenómenos quânticos, como é o caso das memórias magnéticas que
usam o fenómeno da magnetoresistência, por exemplo. São contudo sistemas
quânticos cujo comportamento é um fenómeno coletivo, não coerente, e , em
consequência, as leis que regem a informação armazenada são leis clássicas.

87
88 CAPÍTULO 3. INFORMAÇÃO QUÂNTICA

Há no entanto estados fı́sicos cujo comportamento não tem correspondência


clássica : os estados associados a sistemas quânticos individuais. Novas
técnicas experimentais tornaram possı́vel guardar e processar informação co-
dificada em sistemas quânticos individuais. Uma vez que o comportamento
desses sistemas não tem correspondência clássica, a sua utilização abre novas
possibilidades na manipulação de informação. As regras de funcionamento
não são novas - os conceitos fundamentais foram estabelecidos nos anos 30
pelos fundadores da Mecânica Quântica. A novidade está na possibilidade
atual de manipular sistemas quânticos individuais ou seja, na possibilidade
de realizar experiências que na época seriam classificadas como experiências
pensadas ( ”gedanken experiments”).
As caraterı́sticas distintivas da informação quântica estão associadas a
três aspetos fundamentais dos estados quânticos individuais:
1. O estado do sistema é uma sobreposição coerente de estados.
Se usamos informação codificada numa base binária, isso significa que
o estado de um registo não é necessariamente ou |0i ou |1i, mas em
geral será um estado quântico |ψi que é a sobreposição dos dois estados
|0i ou |1i, i.e.,
|ψi = α|0i + β|1i (3.1)
onde α e β são dois coeficientes complexos tais que |α|2 + |β|2 = 1. A
equação 3.1 constitui a definição de um qubit ou bit quântico. A sobre-
posição de estados decorre da natureza ondulatória das partı́culas, que é
impercetı́vel no nosso mundo macroscópico, mas incontornável quando
nos situamos na escala das partı́culas elementares. A experiência da du-
pla fenda ilustra esta caraterı́stica fundamental da informação quântica.
Assim, se enviarmos um bit clássico de informação só podemos enviar
duas mensagens distintas : um 0 ou um 1. A informação que pode ser
transportada por um bit quântico é a informação associada aos coefi-
cientes α e β da sobreposição de estados e o número de possibilidades
é infinita.
2. A realização de uma medida altera o estado do sistema.
Se um sistema no estado |ψi = α|0i + β|1i for medido, o sistema ficará
no final ou no estado |0i ou no estado |1i. Por outras palavras, a me-
dida altera o estado do sistema. Ou ainda, a medida e pode ser vista
como a destruição de um qubit pois transforma um bit quântico num
3.1. INFORMAÇÃO CLÁSSICA VERSUS INFORMAÇÃO QUÂNTICA 89

bit clássico. Podem, no entanto ser realizadas operações não destruti-


vas com os qubits antes de serem medidos. Um algoritmo quântico é
construı́do como operações desse tipo, designadas por gates quânticas.
Note-se que na leitura de um registo que contém um bit clássico, se
obtivermos 1, podemos concluir que o registo antes da medida estava
no estado |1i. Se obtivermos zero, concluı́mos que antes da medida
estava no estado |0i. Não podemos extrair essa conclusão se o registo
estiver num estado quântico. Se o sistema for quântico, o estado inicial
contém mais informação do que aquela que eu obtenho numa única
medida. A experiência de Stern-Gerlach é uma ilustração eloquente do
problema da medida em Mecânica Quântica.

3. São possı́veis estados entrelaçados. Sistemas de mais de um qubit


podem exibir uma correlação entre eles sem qualquer análogo clássico.
São os chamados estados entrelaçados (entanglement, em inglês) e per-
mitem fenómenos tão bizarros como o teletransporte quântico, que será
discutido mais à frente.
A situação fı́sica de referência é neste caso, a experiência de EPR/Bohm.

As páginas que se seguem abordarão o formalismo do qubit e duas im-


plementações fı́sicas importantes: os estados de spin de uma partı́cula como
o eletrão e os estados de polarização de um fotão.

Seguir-se-á um exemplo de aplicação: o primeiro protocolo de distribuição


de chaves quânticas em criptografia (Quantum Key Distribution, QKD), de-
senvolvido por Charles Bennett e Gilles Brassard em 1984 e conhecido por
BB84.

Nos sistemas de mais do que um qubit abordaremos o entanglement, a


gate mais importante de dois qubits (controled not, CNOT) e a aplicação ao
teletransporte quântico. Terminaremos com uma referência muito breve ao
estado atual dos computadores quânticos.
90 CAPÍTULO 3. INFORMAÇÃO QUÂNTICA

3.2 O que é um bit quântico?


Vimos que o estado de spin de uma partı́cula de spin 1/2 pode ser expresso
como uma combinação linear de dois estados de base, spin up ou spin down na
direção z (equação 2.61). É um estado quântico de base 2 e em computação
quântica convenciona-se designar o estado spin up (| ↑z i) por |0i e o
estado spin down (| ↓z i) por |1i. Mas os estados |0i e |1i não representam
necessariamente estados de spin. Podem representar, por exemplo, estados
de polarização horizontal e vertical de um fotão; ou estados de um átomo,
sendo |0i o estado fundamental e |1i o primeiro estado excitado. Não é ainda
claro, no estado atual da investigação, qual ou quais dos sistemas quânticos
possı́veis serão escolhidos no futuro como base fı́sica da informação quântica.
Independentemente da escolha, o bit quântico está associado a fenómenos
sem correspondência clássica e as leis pelas quais se rege são as da Mecânica
Quântica.

Define-se um qubit (bit quântico) como um estado quântico na


forma
|χi = α |0i + β |1i
onde α e β são coeficientes complexos tais que |α|2 + |β|2 = 1.

Os qubits existem num espaço vetorial complexo a duas dimensões, com


as caraterı́sticas que referimos na secção 2.6.1 e que se designa de espaço de
Hilbert. Na forma matricial,
     
1 0 α
α |0i + β |1i = α +β = (3.2)
0 1 β
Os estados |0i e |1i são uma base ortonormada deste espaço vetorial e em
computação quântica são designados de base computacional de estados.

Como vimos, o estado de sobreposição que carateriza o qubit é destruı́do


numa medida. No entanto, podem ser realizadas operações não destrutivas
com os qubits antes de estes serem medidos. Um algoritmo quântico é cons-
truı́do com uma sequência de operações desse tipo, designadas por gates. As
gates deverão ter uma concretização fı́sica, mas a sua definição matemática
pode preceder a implementação fı́sica. Foi o que sucedeu em 1994, quando
Shor apresentou um algoritmo quântico de fatorização de números - o al-
goritmo de Shor - com uma eficiência muito superior a qualquer algoritmo
3.2. O QUE É UM BIT QUÂNTICO? 91

clássico. O problema da fatorização é muito importante na encriptação de


mensagens, o que despoletou um enorme interesse e concentração de esforços
no desenvolvimento de computadores quânticos.

Vimos que um qubit é a sobreposição de um |0i e de um |1i e por isso


uma operação com um qubit envolve mais informação do que operar com um
bit. Um sistema de 2 qubits é a sobreposição de quatro estados: |00i, |01i,
|10i e |11i. Em geral N qubits têm 2N estados próprios que constituem a
base computacional de estados. Um computador com N qubits manipula 2N
números em simultâneo enquanto que um computador clássico opera apenas
com N , o que sugere que pode ser atingida uma elevada capacidade de cálculo
com um número relativamente modesto de qubits.

Mas a diferença em relação aos bits clássicos incluem também aspetos


que fazem dos qubits um sistema de difı́cil implementação. Não é possı́vel,
por exemplo, copiar um qubit: é o chamado teorema de não-clonagem. Em
consequência, não é possı́vel usar técnicas clássicas de correção de erros que
envolvam a cópia de estados. Esta limitação é severa, mas foi ultrapassada
com o desenvolvimento de algoritmos quânticos de correção de erros. Os pro-
blemas de armazenamento de qubits são muito sérios e tem sido um obstáculo
difı́cil de ultrapassar. O estado do qubit é intrinsecamente muito frágil por-
que a interação com o meio envolvente é um processo destrutivo, designado
por perda de coerência.

Nas páginas que se seguem começaremos por analisar sistemas de um qu-


bit e um exemplo de aplicação: o primeiro protocolo de distribuição de chaves
quânticas em criptografia (Quantum Key Distribution, QKD), desenvolvido
por Charles Bennett e Gilles Brassard em 1984 e conhecido por BB84.

Nos sistemas de dois qubits abordaremos o entanglement, a gate mais


importante de dois qubits (controled not, CNOT) e a aplicação ao teletrans-
porte quântico. Terminaremos com uma referência muito breve ao estado
atual dos computadores quânticos.
92 CAPÍTULO 3. INFORMAÇÃO QUÂNTICA

3.3 Sistemas de um qubit

3.3.1 Esfera de Bloch

Consideremos um qubit |χi = α |0i + β |1i. Quantos parâmetros indepen-


dentes são necessários para o especificar ?

Os coeficientes α e β são complexos e por isso podem ser escritos na


forma α = Aeiγ e β = Beiδ onde A,B, γ e δ são reais. Parece assim que são
necessários quatro parâmetros para especificar um qubit mas na realidade só
são necessários dois. Vejamos porquê.
3.3. SISTEMAS DE UM QUBIT 93

Exemplo 3.3.1 : Mostre que um qubit pode ser escrito na forma

cos 2θ
 
θ iφ θ
|ψi = cos |0i + e sin |1i =
2 2 eiφ sin 2θ

ou seja, bastam dois parâmetros reais θ e φ para especificar um qubit.

Resolução: Temos

|ψi = Aeiγ |0i + Beiδ |1i ,


onde A,B, γ e δ são reais. Mas sabemos que uma fase global da função de onda
não tem significado fı́sico. Assim, podemos escrever
 
|ψi = eiγ A|0i + Beiφ |1i ,

onde φ = δ − γ. Mas o estado anterior é indistinguı́vel do estado

|ψi = A|0i + Beiφ |1i ,

e por isso o fator eiγ pode ser ignorado. Por outro lado, a condição de normalização
da função de onda obriga a que A2 + B 2 = 1 , ou seja os dois parâmetros A e
B não são independentes e é conveniente substituı́-los por um único parâmetro.
Fazendo A = cos θ/2 vem B = sin θ/2. Temos finalmente,

θ θ
|ψi = cos |0i + eiφ sin |1i .
2 2
94 CAPÍTULO 3. INFORMAÇÃO QUÂNTICA

Exemplo 3.3.2 : Escreva os estados | ↑x i e | ↑y i na forma referida no exemplo


anterior, i.e., cos 2θ |0i + eiφ sin 2θ |1i.

Resolução: Pretendemos determinar os valores de θ e φ tais que

cos 2θ
   
1 1
| ↑x i = √ = .
2 1 eiφ sin 2θ

Assim, temos que


θ 1 θ π π
= arccos √ ⇔ = ⇔ θ = ,
2 2 2 4 2
e
θ 1 π 1
eiφ sin = √ ⇔ eiφ sin = √ ⇔ eiφ = 1 ⇔ φ = 0 .
2 2 4 2
Para o estado up na direção y temos

cos 2θ
   
1 1
| ↑y i = √ = .
2 i eiφ sin 2θ

É fácil de verificar que temos ainda θ = π/2. No entanto para φ vem

θ i π i π
eiφ sin = √ ⇔ eiφ sin = √ ⇔ eiφ = i ⇔ φ =
2 2 4 2 2

O exemplo anterior mostra que a fase relativa φ é importante, pois os


estados | ↑x i e | ↑y i, que são distinguı́veis experimentalmente (o primeiro é
estado próprio de Sx e o segundo é estado próprio de Sy ) diferem apenas pelo
valor de φ, o valor de θ é comum.

Consideremos uma esfera de raio unitário como a da figura em baixo.


Cada ponto da esfera é representado em coordenadas esféricas pelos parâmetros
θ e φ. É fácil de verificar que há uma correspondência de um para um entre
os parâmetros θ e φ de um qubit escrito como

cos 2θ
 
θ iφ θ
|ψi = cos |0i + e sin |1i =
2 2 eiφ sin 2θ

e os pontos da esfera de raio unitário da figura - a chamada esfera de Bloch.


Note-se que a coordenada esférica θ varia entre 0 e π e não entre 0 e 2π. O
3.3. SISTEMAS DE UM QUBIT 95

argumento do coseno e do seno variam entre 0 e 2π e por isso é necessário


introduzir o factor de 2 na expressão do qubit.

Se pensarmos  no qubit como um estado de spin reconhecemos o estado


θ

cos 2
genérico |ψi = como o estado up na direção (θ, φ). O ponto
eiφ sin 2θ
diametralmente oposto, de coordenadas (π − θ , π + φ) é o vetor down cor-
respondente. Os dois estados constituem uma base ortornormada.

Embora se possa definir uma base em qualquer direção, definem-se em


geral três bases canónicas principais para um qubit:

• (|0z i, |1z i) = (|0i, |1i), que é a base padrão, definida ao longo da direção
z. Correspondem aos pontos A e B na figura em baixo, da esfera de
Bloch.

• (|0x i, |1x i) = ( √12 (|0i + |1i) , √12 (|0i − |1i), que é a base ao longo da
direção x. Correspondem aos pontos C e D da figura.

• (|0y i, |1y i) = ( √12 (|0i + i|1i) , √12 (|0i − i|1i) , que é a base ao longo da
direção y. Correspondem aos pontos E e F da figura.
96 CAPÍTULO 3. INFORMAÇÃO QUÂNTICA

   
0 1  
1
A:  0  = 0  7→
0 H
1 c
0 e
   
0 1  
0
B :  0  = 0  7→
1
−1 c
π e
H
   
1 1 1
 
1
C :  0  =  π/2  7→ √
2 1 H
0 c
0 e
   
−1 1 1
 
1
D:  0  =  π/2  7→ √
2 −1 H
0 c
π e
   
0 1 1
 
1
E :  1  =  π/2  7→ √
2 i H
0 c
π/2 e
   
0 1 1
 
 −1  =  π/2  1
F : 7→ √
2 −i H
0 c
3π/2 e

Na figura em cima os ı́ndices c e e indicam coordenadas cartesianas e


esféricas, respetivamente, no espaço real a três dimensões; o ı́ndice H indica
coordenadas no espaço complexo de Hilbert.

Mais uma vez, se pensarmos no qubit como um estado de spin 1/2, reco-
nhecemos facilmente os estados up e down nas direções x e y. Em geral, dois
estados de um qubit são ortogonais se e só se a sua representação na esfera
de Bloch são dois pontos diametralmente opostos.

As propriedades da medida que exemplificámos para sistemas de spin


1/2 são também generalizáveis para qualquer qubit: se medirmos |0z i ou
|1z i na base x obtemos |0x i ou |1x i com uma probabilidade de 50% para
cada, em qualquer dos casos; por outras palavras, os estados |0z i e |1z i são
indistinguı́veis numa medida na base x (ver Exemplo 2.9.2.3); a conclusão é
exatamente a mesma se medirmos os estados |0z i ou |1z i na base y. Esta
propriedade mantém-se se medirmos |0x i ou |1x i nas bases z ou y ou ainda
se medirmos |0y i ou |1y i nas bases x ou z.

3.3.2 O fotoqubit
A polarização de um fotão é uma base fı́sica para qubit de grande im-
portância, dada a sua extensa utilização em informação quântica, nomea-
damente na encriptação quântica e no teletransporte quântico. Analisemos
com mais detalhe o significado de um fotoqubit.
Um fotão é uma onda electromagnética e, por definição, a polarização de
~ Se a direção
uma onda eletromagnética é a direção do seu campo elétrico, E.
3.3. SISTEMAS DE UM QUBIT 97

~ for constante, a onda diz-se linearmente polarizada. A polarização pode


de E
no entanto, ser circular, se a ponta do campo elétrico descrever um cı́rculo
no plano perpendicular à direção de propagação; ou pode, em geral, ser uma
polarização elı́tica, se a ponta do vetor elétrico descrever uma elipse.

Os fotões emitidos numa transição atómica são, em geral, polarizados,


mas o conjunto constitui, usualmente uma mistura incoerente de estados
de polarização. A exceção são os lasers, ou seja, ao contrário de outras
implementações de qubits, a criação de um conjunto de estados coerentes
de fotões é uma tecnologia já bem conhecida, o que constitui uma enorme
vantagem dos fotoqubits.

Como caraterizar a polarização de um fotão?

Comecemos por considerar uma onda eletromagnética plana, polarizada


~ = E0 ei(k y−ω t+δ) êα . Esta onda
na direção êα , que se propaga na direção y: E
pode ser descrita como a sobreposição de duas ondas planas, polarizadas nas
~ =E
direções x e z, i.e., E ~z + E
~ x sendo

~ z = E0 cos α ei(k y−ω t+δ) ẑ



E
~ x = E0 sin α ei(k y−ω t+δ) x̂ . (3.3)
E

~z e E
No caso mais geral, pode existir uma diferença de fase entre E ~x :

~ z = E0 cos α ei(k y−ω t+δz ) ẑ



E
~ x = E0 sin α ei(k y−ω t+δx ) x̂ . (3.4)
E

~ serão
As componentes Ez e Ex do vetor E
 n o
 Ez = Re E ~ · êz = E0 cos α cos(k y − ω t + δz )
n o . (3.5)
 Ex = Re E ~ · êx = E0 sin α cos(k y − ω t + δx )

~ = Ez êz +Ex êx não


Se as fases δx e δz não forem iguais, a direção do vetor E
~
se manterá constante. A ponta do vetor E descreverá, em geral, uma elipse,
no plano perpendicular à direção de polarização e dizemos que a polarização
é elı́tica. Note-se que apenas a diferença de fase φ = δx − δz tem significado
fı́sico, pois a fase de uma delas (δz , por ex.) pode ser anulada por uma escolha
98 CAPÍTULO 3. INFORMAÇÃO QUÂNTICA

adequada da origem do tempo. Podemos então escrever

~ = E
E ~z + E ~x
= E0 ei(k y−ω t+δz ) cosα êz + sin α eiφ êx

(3.6)

e a polarização da onda eletromagnética pode ser caraterizada pelo vetor

ê = cos α êz + sin α eiφ êx . (3.7)

Assim, bastam dois parâmetros, α e φ, para caraterizar a polarização. Um


estado de polarização linear, por exemplo, tem necessariamente φ = 0. A
polarização circular, por seu turno, está associada a uma diferença de fase
φ = ±π/2 e a amplitudes iguais de Ex e Ez , ou seja a θ = π/4. Se a diferença
de fase for ainda de φ = ±π/2 mas se Ex e Ez tiverem amplitudes diferentes
(θ 6= π/4), a polarização será elı́tica, tal como em qualquer caso de φ 6= 0 e
θ 6= π/4. A tabela seguinte resume alguns casos importantes:

α β vetor polarização tipo de polarização sı́mbolo


0 0 êz linear, vertical l
π
2
0 êx linear, horizontal ↔
π
0 √1 (êz + êx ) linear,diagonal direita

l ↔
4 2
3π 1
√ (êz − êx )
4
0 2
linear, diagonal esquerda
π π 1
√ (êz + i êx )
4 2 2
circular direita , R
π 3π 1
√ (êz − i êx )
4 2 2
circular esquerda ,L

Das equações 3.6 e 3.7 concluı́mos que o vetor polarização é complexo,


definido a menos de uma fase arbitrária (a fase eiδz na expressão 3.6) e é
normalizado à unidade (| cos α|2 + | sin α eiφ |2 = 1).

Um fotão é um sistema quântico individual com polarização bem definida,


que pode ser descrita por um vetor no espaço de Hilbert dado por
 
cos α
|α, φi = = cos α | li + sin α eiφ | ↔i (3.8)
sin α eiφ
   
1 0
onde | li = e | ↔i = são os vetores da base.
0 1
3.3. SISTEMAS DE UM QUBIT 99

Um fotoqubit é pois representado por um ponto na esfera de Bloch de


coordenadas esféricas θ e φ, com θ = 2α e φ igual à diferença de fase entre
as duas componentes do campo. Facilmente concluı́mos que os vetores | li
e | ↔i constituem a base padrão z ; | i e | i constituem a base x e |Ri

l
e |Li formam a base y, tal como indica a tabela. No caso de fotoqubits, a
base z é usualmente representada pelo sı́mbolo ⊕ enquanto que a base x é
simbolizada por ⊗.
 
1
base z ou ⊕ : |0z i = | li =
 0 
0
|1z i = | ↔i =
1 
1
base x ou ⊗ : |0x i = | i = √12


 1 
1
|1x i = | i = √12
l −1
 
1 1
base y : |0y i = |Ri = √2
 i 
1
|1y i = |Li = √12
−i

Na tabela, a forma matricial dos vetores é a sua representação na base padrão,


ou base z. Mas podemos, em alternativa, representar qualquer polarização na
base x ou na base y e realizar mudanças de base sempre que for conveniente.

O equivalente ótico da experiência de Stern-Gerlach está representado na


figura.

Neste dispositivo experimental, um feixe de fotões incide num separador


de polarização (PBS, polarizing beam splitter, em inglês) e à saı́da surgem
100 CAPÍTULO 3. INFORMAÇÃO QUÂNTICA

dois feixes, um com fotões no estado | li e outro com fotões no estado | ↔i,
que são contados pelos detetores D1 e D2, respetivamente. Os detetores em
causa são capazes de detetar fotões um a um.
Consideremos um único fotão com uma polarização caraterizada pelos
ângulos α e φ, que incide no separador de polarização PBS. Vimos que o seu
estado inicial pode ser escrito como uma sobreposição dos estados de saı́da
| li e | ↔i:
|α, φi = cos α | li + sin α eiφ | ↔i

A probabilidade de o fotão ser detetado em D1 é dada por | cos α|2 = cos2 α,


a probabilidade de ser detetado em D2 é | sin α eiφ |2 = sin2 α.

Como facilmente se compreende, toda a discussão que foi feita para


partı́culas de spin 1/2 numa experiência de Stern-Gerlach pode ser trans-
posta para fotoqubits. E se a possibilidade de ter feixes de entrada coerentes
é mais realista numa experiência com fotoqubits do que numa experiência
de Stern-Gerlach, já a condição de ter à entrada um único fotão é de imple-
mentação não trivial.

3.3.3 Gates quânticas de um qubit


Os circuitos lógicos clássicos são sistemas de gates (ou portas) lógicas que
executam operações sobre os bits. Uma gate de um bit define-se por uma
tabela que faz corresponder um bit de entrada a um bit de saı́da. Só há uma
gate não trivial de um bit, a gate NOT que se define pelas correspondências
1 7→ 0 e 0 7→ 1.
Uma gate quântica é o equivalente quântico de uma gate clássica. A
entrada é um qubit, ou seja um estado
 
α
|α |0i + β |1i =
β

Uma gate NOT quântica deverá fazer corresponder a esse estado de entrada
um estado de saı́da dado por
 
β
|α |1i + β |0i =
α
3.3. SISTEMAS DE UM QUBIT 101
   
α β
O operador que transforma o estado no estado é represen-
β α
tado pela matrix  
0 1
1 0
que é precisamente a matriz de Pauli σx e que em computação quântica se
designa de X. De facto,
      
α 0 1 α β
X = =
β 1 0 β α

Assim as gates quânticas de um qubit podem ser representadas por ma-


trizes dois por dois. Note-se que no entanto há uma restrição a que essas
matrizes devem obedecer: tanto os estados de entrada como os estados de
saı́da devem ser normalizados para que representem estados quânticos. Por
outras palavras, a matriz que representa a gate deve preservar a norma do
estado sobre o qual atua. Essa condição é satisfeita se a matriz for unitária:

O conjugado adjunto (ou hermı́tico) de uma matriz A designa-se


por A† e define-se como a transposta da conjugada da matriz A,
ou seja A† = (AT )∗ . Uma matriz diz-se unitária se a sua conjugada
adjunta é igual à inversa ou seja se A† A = A−1 A = 1̂ .

Na verdade, pode demonstrar-se que qualquer matriz unitária é uma gate


quântica válida.
Assim podemos considerar a seguinte definição:

Uma gate lógica quântica é um dispositivo que realiza uma


operação unitária nos qubits de entrada.

As gates mais importantes de um qubit são as seguintes


 
0 1
X= Gate X de Pauli
1 0

 
0 −i
Y = Gate Y de Pauli
i 0
102 CAPÍTULO 3. INFORMAÇÃO QUÂNTICA

 
1 0
Z= Gate Z de Pauli
0−1

 
1 1 1
H= √ Gate de Hadamard
2 1−1

 
1 0
Vθ = Gate de fase
0 eiθ
Por exemplo, o efeito da gate de Hadamard num estado de entrada
α|0i + β|1i representa-se como

α|0 >+ β |1> H

 
α
e calcula-se fazendo actuar o operador H sobre o estado , ou seja
β
    
1 1 1 α 1 α+β
√ =√
2 1−1 β 2 α−β
O resultado expressa-se simbolicamente na forma

α|0 >+ β |1> H (α+β)/ 2 |0 >+ (α-β)/ 2 |1>



Por exemplo para α = β = 1/ 2 o qubit de saı́da é |0i. Note-se que a gate
de Hadamard se pode exprimir em função das gates X e Z: H = √12 (X + Z).

Uma vez que os qubits de entrada e de saı́da são representáveis na esfera


de Bloch, a ação de uma gate sobre um qubit corresponde simplesmente
a uma rotação ou sucessão de rotações na esfera. Pode-se demonstrar que
há um conjunto universal de gates a partir das quais é possı́vel construir
qualquer operação unitária.

Um circuito quântico é um dispositivo que consiste na aplicação de um


conjunto de gates nos qubits de entrada, estando os passos computacionais
sincronizados no tempo.
3.3. SISTEMAS DE UM QUBIT 103

Uma linha no circuito não corresponde necessariamente a um fio de


ligação. Pode representar simplesmente a passagem do tempo ou o movi-
mento de uma partı́cula ou de um fotão no espaço.

Exemplo 3.3.3 : Mostre que uma gate de Hadamard transforma um estado |0z i
num estado |0x i e um estado |1z i num estado |1x i.

Resolução:

O efeito num estado |0z i é dado por


    
1 1 1 1 1 1 1
√ =√ = √ (|0i + |1i) = |0x i .
2 1−1 0 2 1 2

Para um |1z i temos


    
1 1 1 0 1 1 1
√ = √ = √ (|0i − |1i) = |1x i .
2 1 − 1 1 2 −1 2

3.3.4 Criptografia: o protocolo BB84


Em 1984, Charles Bennett e Gilles Brassard desenvolveram o primeiro proto-
colo de criptografia para distribuição de chaves quânticas - o protocolo BB84.
A ideia fundamental é a de que se a informação for quântica, a segurança de
uma comunicação secreta entre dois parceiros é assegurada, pois a leitura da
mensagem por um intruso perturba o sistema e a interceção é detetada.

Um dos episódios da série televisiva Sherlock Holmes - Os dançarinos -


fornece uma ilustração simples de criptografia. Nesse episódio, a personagem
Elsie fica aterrorizada quando surgem desenhos escritos a giz no exterior da
sua casa, que parecem uma sequência de dançarinos:
104 CAPÍTULO 3. INFORMAÇÃO QUÂNTICA

Holmes descobre que se trata de mensagens encriptadas enviadas por outro


personagem, Abe Slaney. Uma correspondência entre as letras do alfabeto
e as figuras permite encriptar e desencriptar as mensagens e constitui uma
chave secreta partilhada pelos dois personagens. Por exemplo, a posição da
primeira figura da mensagem reproduzida em cima, corresponde à letra ”E”.
Abe Slaney supõe que a chave é inviolável, mas Sherlock Holmes consegue
descobri-la.

Há dois tipos de criptografia clássica: a de chave simétrica e a de chave


assimétrica. Na criptografia de chave simétrica a chave que serve para en-
criptar é a mesma que serve para desencriptar e por isso deve ser secreta. Os
dançarinos são um exemplo de uma chave simétrica cujo secretismo é facil-
mente quebrável. Para garantir que a chave não é descoberta por terceiros
esta deve ser aleatória, do mesmo tamanho que a mensagem e usada uma
única vez, o que é pouco prático. Além disso, a própria transmissão da chave
secreta levanta questões de segurança.

Na criptografia de chave assimétrica a chave que é usada para encriptar é


pública e é distinta da chave usada para desencriptar, que é privada. As duas
chaves estão relacionadas matematicamente, mas é muito dificil obter a chave
privada a partir da chave pública. Por exemplo, um dos intervenientes na
troca de mensagens - Alice - pode escolher dois números primos aleatórios,
muito elevados, como p = 17159 e q = 10247 e divulgar publicamente o
seu produto n = p q = 175828273, sem divulgar os respetivos fatores p e q.
O valor n pode ser usado pelo interlocutor de Alice - Bob - (ou qualquer
outra pessoa) para gerar uma mensagem encriptada e enviá-la a Alice. Para
desencriptar, é necessário usar os números p e q que só Alice conhece. Se os
números forem elevados, é muito difı́cil obter p e q a partir de n. Se forem
suficientemente elevados, não é possı́vel em termos práticos, com a capacidade
de cálculo dos computadores atuais, obter a chave privada a partir da chave
pública. Este sistema tem a grande vantagem de não requerer a partilha de
uma chave secreta entre Alice e Bob. Pode, no entanto, tornar-se vulnerável
3.3. SISTEMAS DE UM QUBIT 105

no futuro, com o aumento da capacidade de cálculo ou da eficiência dos


algoritmos de fatorização.

Na distribuição de chaves quânticas (em inglês, quantum key distribu-


tion, QKD) a segurança baseia-se na impossibilidade de copiar informação
quântica e na perturbação associada à medida em Mecânica Quântica. No
protocolo BB84, Alice e Bob começam por trocar informação através de um
canal quântico, i.e., um canal que permite transmissão de estados quânticos.
Em seguida comunicam através de um canal clássico, de acesso público. O
procedimento permite verificar se houve intrusão de terceiros (Eva, a perso-
nagem malévola) e gerar uma chave secreta segura. O exemplo da tabela em
baixo ilustra o processo.
bit aleatório de Alice 0 1 1 0 1 0 0 1
base aleatória de Alice z z x z x x x z
qubit enviado por Alice |0z i |1z i |1x i |0z i |1x i |0x i |0x i |1z i
base aleatória de Bob z x x x z x z z
resultado obtido por Bob |0z i |0x i |1x i |0x i |1z i |0x i |1z i |1z i
divulgação pública das bases
chave secreta partilhada 0 1 0 1

A leitura das linhas da tabela é a seguinte:


1. Alice começa por gerar uma sequência de bits aleatórios, por exemplo,
01101001.
2. Alice gera uma nova sequência de bits aleatórios que identificam a base
z ou x em que será preparado o qubit. Por exemplo, 0 0 1 0 1 1 1 0
que significa base z z x z x x x z.
3. Alice prepara qubits de acordo com as sequências anteriores e envia-os
a Bob através de um canal quântico (tipicamente fotões polarizados
transmitidos numa fibra óptica).
4. Bob tem de ler os qubits o que significa efetuar medidas na base x ou
z, mas desconhece qual a sequência correta de bases. Bob gera uma
sequência de bits aleatórios que identificam a base z ou x em que será
lido o qubit. Por exemplo, 0 1 1 1 0 1 0 0 que significa base z x x x z
x z z.
5. Bob efetua as medidas usando a sequência de bases anterior.
106 CAPÍTULO 3. INFORMAÇÃO QUÂNTICA

6. Alice e Bob comunicam através de um canal público e divulgam as duas


sequências de bits que identificam as bases usadas para preparação dos
estados e para a sua leitura (linhas 2 e 4 da tabela). É agora público
os casos em que as duas bases coincidem, mas não qual o valor do
respetivo bit.

7. Alice e Bob rejeitam os bits para os quais as duas bases não coincidem,
o que em média, representa cerca de 50% dos bits gerados. A nova
sequência de bits deverá ser igual para Alice e Bob. Estes selecionam
um subconjunto dessa sequência e comparam-no. Se não houver de-
sacordos na comparação, rejeitam esse subconjunto e a sequência que
sobreviveu constitui a chave secreta partilhada por Alice e Bob. Este
último aspeto não é ilustrado neste exemplo, por se tratar de uma
sequência muito curta.

Como se pode verificar pelo exemplo, o conhecimento das sequências de


bases não permite determinar a chave privada. Se não houver erros na trans-
missão, um desacordo na sequência de bits que foi escolhida para comparação
significa que Eva leu qubits enviados pelo canal quântico. De facto, Eva não
pode copiar a informação porque não é possı́vel clonar qubits e só pode ob-
ter informação realizando medidas. Como não sabe qual a base usada para
preparar cada qubit, pode medir numa base errada e alterar o qubit. Como
consequência, se a sequência de bits usada para comparação for suficiente-
mente longa, a intromissão de Eva é detetada e a chave é rejeitada. Em
condições reais, há erros na transmissão que não são da responsabilidade de
Eva e que requerem procedimentos adicionais na geração da chave secreta
[7]. Nessas circunstâncias, a chave só é rejeitada se a percentagem de erros
ultrapassar um certo limite.

Posteriormente, surgiram diversas variantes deste protocolo. No B92 por


exemplo, são usados apenas dois estados (|0z i e |1x i) em vez dos quatro
mencionados anteriormente (|0z i, |1z i , |0x i e |1x i). Há atualmente variantes
do BB94 que usam estados emaranhados e teletransporte quântico [7], que
são conceitos de que falaremos mais adiante.
3.4. SISTEMAS DE DOIS QUBITS 107

3.4 Sistemas de dois qubits


Consideremos agora um sistema de dois qubits. Em termos fı́sicos pode
significar, por exemplo, o estado de spin de dois eletrões 1 . Cada um deles
pode estar num estado up ou down, por isso os estados de base serão |00i,
|01i, |10i e |11i e o estado de dois qubits será uma sobreposição de estados
de base do tipo

|ψi = α00 |00i + α01 |01i + α10 |10i + α11 |11i

onde os coeficientes αij obedecem à condição de normalização

|α00 |2 + |α01 |2 + |α10 |2 + |α11 |2 = 1

Naturalmente |α01 |2 representa a probabilidade de obter zero para o primeiro


qubit e 1 para o segundo numa medida simultanea dos dois qubits. Mas agora
podemos medir apenas um dos qubits. Se medir só o primeiro qubit e obtiver,
por exemplo, zero (com probabilidade |α00 |2 + |α01 |2 ) fico ainda assim sem
saber o estado do segundo qubit. No final da medida, o sistema será descrito
pela seguinte sobreposição de estados :
p
(α00 |00i + α01 |01i)/ |α00 |2 + |α01 |2 .

3.4.1 Gates de dois qubits

A gate CNOT (Controled Not) é um exemplo de uma gate de dois qubits e é


de grande importância em computação quântica. Um dos qubits de entrada
é o qubit de controle, o outro é o qubit alvo. O qubit de controle nunca muda
de estado; se o qubit de control é |0i o qubit alvo não se altera; se o qubit
de controle é |1i o qubit alvo inverte (e daı́ o nome Controled Not). Temos
então,

|00i 7→ |00i
|01i 7→ |01i
|10i 7→ |11i
|11i 7→ |10i . (3.9)
1
na realidade a implementação fı́sica mais frequente é através de técnicas ópticas, no-
meadamente envolvendo o estado de polarização de fotões.
108 CAPÍTULO 3. INFORMAÇÃO QUÂNTICA

A figura mostra a representação simbólica da gate CNOT, onde a linha de


cima representa o qubit de controle |Ai e a linha de baixo representa o qubit
alvo |Bi. A gate tem duas saı́das: |Ai e |B ⊕ Ai. O sı́mbolo ⊕ representa
a operação lógica XOR (exclusive-OR). A operação XOR sobre dois bits de
entrada devolve à saı́da o valor 1 se um dos bits de entrada (mas não ambos)
for 1; nos casos restantes, a saı́da é 0. Um das saı́das da gate CNOT é
escrito como |B ⊕ Ai porque a gate CNOT realiza uma operação XOR com
os qubits de entrada. A gate CNOT pode ser vista como uma generalização
da gate clássica XOR uma vez que a ação de CNOT pode ser descrita como
|A, Bi 7→ |A, B ⊕ Ai. Outra forma de descrever a gate CNOT é através da
sua representação matricial.
|A> |A>

|B> |B + A>

Exemplo 3.4.1 : Mostre que a gate CNOT é representada pela matriz unitária
 
1 0 0 0
 0 1 0 0 
CNOT =   .
 0 0 0 1 
0 0 1 0

Resolução:
A base computacional de estados de dois qubits é dada por
       
1 0 0 0
 0   1   0   0 
|00i = 
 0 
 |01i =  
 0  |10i =  
 1  |11i =  
 0 
0 0 0 1
(3.10)
A ação de CNOT sobre os estados de base é dada por
    
1 0 0 0 1 1
 0 1 0 0   0   0 

 0 0 0
  =   ⇔ |00i 7→ |00i
1  0   0 
0 0 1 0 0 0
3.4. SISTEMAS DE DOIS QUBITS 109

   
1 0 0 0 0 0
 0 1 0 0  1
    1 

 0
=  ⇔ |01i 7→ |01i
0 0 1  0   0 
0 0 1 0 0 0

   
1 0 0 0 0 0
 0 1 0 0   0   0 

 0
 =  ⇔ |10i 7→ |11i
0 0 1  1   0 
0 0 1 0 0 1

   
1 0 0 0 0 0
 0 1 0 0  0
    0 

 0
=  ⇔ |11i 7→ |10i
0 0 1  0   1 
0 0 1 0 1 0

O resultado corresponde de facto ao pretendido: quando o primeiro qubit é


|0i, o segundo qubit não se altera ; quando o primeiro qubit é |1i, o segundo
qubit inverte.

3.4.2 Entanglement

Consideremos agora o estado


|00i + |11i
√ .
2
Este estado tem uma propriedade muito estranha: o resultado da medida do
primeiro qubit está correlacionado com o resultado da medida do segundo
qubit. Por exemplo, se obtiver 0 para o primeiro qubit uma medida do
segundo qubit conduz sempre ao valor zero. Para este estado, uma medida
do segundo qubit dará sempre o mesmo resultado da medida do primeiro
qubit. Os resultados das duas medidas estão pois correlacionados. Um estado
com esta propriedade designa-se por isso de estado entrelaçado (em inglês,
entangled ). Note-se que os dois qubit podem representar duas partı́culas
distintas - dois eletrões, por exemplo - e essas partı́culas podem estar muito
110 CAPÍTULO 3. INFORMAÇÃO QUÂNTICA

afastadas uma da outra. No entanto uma pessoa junto ao eletrão 1 que efetue
uma medida de Sz e obtenha o estado 0 (spin up) fica a saber que uma medida
de Sz do eletrão 2, muito afastado do eletrão 1, conduzirá necessariamente
também ao estado 0.
Os estados seguintes exibem todos essa propriedade de estado entangled :
|00i + |11i
|β00 i = √ (3.11)
2
|01i + |10i
|β01 i = √ (3.12)
2
|00i − |11i
|β10 i = √ (3.13)
2
|01i − |10i
|β11 i = √ (3.14)
2
e designam-se de estados de Bell, estados EPR, ou pares EPR, por estarem
associados a um famoso paradoxo apresentado por Einstein, Podolsky e Ro-
sen (EPR) e que teve um desenvolvimento muito importante com Bell, como
discutiremos de seguida. Estes estados desempenham um papel importante
em computação quântica porque a correlação entre medidas num estado de
Bell não tem paralelo com nenhum sistema clássico e abre possibilidades
novas no processamento de informação. O exemplo seguinte mostra que é
possı́vel construir um circuito quântico gerador de estados EPR.

Exemplo 3.4.2 :Mostre que o circuito da figura, for-


mado por uma gate Hadamard respetiva, pode gerar |q0 i H •
estados entrelaçados de Bell ou estados EPR. Consi-
dere os estados de entrada seguintes: |q1 i ⊕
|00i, |01i, |10i e |11i.

Resolução:

Comecemos por considerar o efeito da gate de Hadamard sobre |q0 i. Se


|q0 i = |0i temos
    
1 1 1 1 1 1 1
√ =√ ⇔ |0i 7→ √ (|0i + |1i)
2 1 − 1 0 2 1 2
3.4. SISTEMAS DE DOIS QUBITS 111

Se |q0 i = |1i vem


    
1 1 1 0 1 1 1
√ =√ ⇔ |0i 7→ √ (|0i − |1i)
2 1−1 1 2 −1 2

Consideremos então os seguintes estados de entrada |q0 q1 i do circuito: |00i,


|01i, |10i e |11i. A ação da gate de Hadamard seguida da gate CNOT pode
escrever-se como
1 1
|00i 7→ √ (|00i + |10i) 7→ √ (|00i + |11i) = |β00 i
2 2
1 1
|01i 7→ √ (|01i + |11i) 7→ √ (|01i + |10i) = |β01 i
2 2
1 1
|10i 7→ √ (|00i − |10i) 7→ √ (|00i − |11i) = |β10 i
2 2
1 1
|11i 7→ √ (|01i − |11i) 7→ √ (|01i − |10i) = |β11 i
2 2

3.4.3 O paradoxo de EPR


Einstein, Podolsky e Rosen publicaram em 1939 um artigo que descrevia um
paradoxo, que ficou conhecido como o paradoxo de EPR. A interpretação de
Copenhaga da Mecânica Quântica diz-nos que o estado do sistema é alterado
no ato da medida, colapsando num estado próprio do operador associado à
medida. O paradoxo de EPR pretende demonstrar que esta interpretação é
fisicamente inaceitável.
Descreveremos aqui uma versão do paradoxo de EPR sugerida por David
Bohm.

Consideremos o decaimento de uma partı́cula designada de pião neutro,


π . A partı́cula π 0 é neutra e tem spin zero. O pião π 0 decai num eletrão,
0

e− , e na sua antipartı́cula, o positrão, e+ :

π 0 → e− + e+ .

O eletrão e o positrão são ambas partı́culas de spin 1/2 mas o estado conjunto
tem de ter spin igual ao spin do pião, i.e., spin zero. Um estado desse tipo é
112 CAPÍTULO 3. INFORMAÇÃO QUÂNTICA

descrito como:
1 1
√ (| ↑− ↓+ i − | ↓− ↑+ i) = √ (|01i − |10i) (3.15)
2 2
que é o estado de Bell |β11 i mencionado na secção anterior. Os ı́ndices − e
+ na expressão anterior referem-se ao eletrão e ao positrão, respetivamente.
Se o pião decai em repouso, a conservação de momento linear impõe que
o eletrão e o positrão se afastem em direções opostas:

e- π0 e+

Suponhamos que eletrão e positrão se afastam até ficarem a milhares de


kilómetros de distância e só então efetuamos uma medida de Sz do eletrão.
Suponhamos que encontramos o eletrão no estado spin up, ou seja no estado
|0i. Ficamos imediatamente a saber qual será o resultado de uma medida de
Sz do positrão: será encontrado no estado spin down, ou seja no estado |1i.
As duas medidas têm uma correlação perfeita e isso pode ser demonstrado
experimentalmente.
A interpretação de Copenhaga afirma que antes da medida o eletrão es-
tava numa estado que era uma combinação linear de estados up e down dada
pela equação (3.15) e foi a medida do spin do eletrão que forçou o sistema
a colapsar num dos estados |10i ou |01i. Uma vez que o eletrão ficou no
estado up no fim da medida, o sistema colapsou no estado |10i. Isso sugere
que a medida efetuada no eletrão forçou nesse mesmo instante o positrão,
que está a milhares de kilómetros de distância, a colapsar no estado down.
Tudo se passa como se a informação sobre o colapso da função de onda fosse
transmitido a uma velocidade superior à da luz! O argumento de Einstein,
Podolsky e Rosen é a de que a interpretação de Copenhaga conduz a um
absurdo e que a correlação de medidas pode ser explicada se aceitarmos que
o eletrão já estava no estado up antes da medida ( e o positrão no estado
down) mas a descrição da mecânica quântica é incompleta e por isso temos
necessidade de descrever o estado antes da medida como uma combinação
linear. Ou seja a função de onda não contém toda a informação sobre o
sistema, há informação escondida que, juntamente com a função de onda, é
necessária para uma descrição completa do sistema.
Num trabalho posterior, Bell conseguiu provar que o pressuposto de
que há informação escondida é incompatı́vel com as previsões da mecânica
3.4. SISTEMAS DE DOIS QUBITS 113

quântica. A experiência de EPR/Bohm do decaimento do pião pode ser al-


terada de forma a medir a componente de spin do eletrão numa direção θ, ou
seja, medindo Sθ em vez de Sz . Do mesmo modo, pode ser medida a com-
ponente de spin do positrão numa direção φ diferente de θ. Designemos por
P (θ, φ) o produto dos resultados para Sθ e Sφ . A Mecânica Quântica sabe
prever o o valor de medidas deste tipo e portanto também de P (θ, φ). Bell
provou que a existência de variáveis escondidas conduz a uma relação entre
resultados de medidas deste tipo que é incompatı́vel com as previsões da
Mecânica Quântica. Todas as experiências que foram realizadas mostraram-
se sempre consistentes com as previsões da Mecânica Quântica.
Por isso se mantém a interpretação de Copenhaga sobre a medida em
Mecânica Quântica, por muito apelativa que seja a interpretação proposta
por Einstein, Podolsky e Rosen. As caracterı́sticas surpreendentes da me-
dida em Mecânica Quântica - amplamente corroboradas por medidas expe-
rimentais - desempenham um papel central em computação quântica. Os
estados entrelaçados assumem particular relevância por abrirem caminho a
aplicações inovadoras nos processos de transmissão de informação. Um exem-
plo de grande atualidade é o teletransporte quântico.

3.4.4 Teletransporte Quântico


O teletransporte quântico é um processo em que toda a informação contida
num qubit pode ser transmitida à distância sem que o qubit seja fisicamente
transportado. Requer, no entanto, transmissão de informação clássica (bits)
e por isso a velocidade de transmissão está limitada pela velocidade do canal
de comunicação convencional.

Consideremos dois intervenientes A e B no processo, usualmente designa-


dos de Alice e Bob. Alice possui uma partı́cula que está num estado quântico
representado pelo qubit |ψi = α|0i+β|1i. Alice pretende enviar o qubit |ψi a
Bob mas não sabe qual o seu estado (isto é desconhece os parâmetros α e β).
Poderia tentar transportar fisicamente o qubit mas os estados quânticos são
frágeis, facilmente perturbáveis e não resistem a uma transmissão a distância.
Poderia, em alternativa, realizar uma medida do estado e enviar o resultado
da medida a Bob para que ele prepare um estado idêntico. Contudo, a me-
dida altera o estado do sistema, a informação obtida é insuficiente e não
permite a Bob preparar um estado idêntico ao estado original |ψi. O obje-
tivo de transmitir um qubit à distância parece, pois, impossı́vel. A utilização
114 CAPÍTULO 3. INFORMAÇÃO QUÂNTICA

de estados entrelaçados abre, no entanto, possibilidades inesperadas.

O circuito da figura esquematiza o processo de teletransporte de um estado


|ψi = α|0i + β|1i.

Para que sejam utilizados estados entrelaçados, Alice e Bob têm de começar
por se encontrar. A sucessão de operações é a seguinte:

1. Alice e Bob encontram-se e criam um par EPR |β00 i = √12 (|00i + |11i).
O par é um estado conjunto de duas partı́culas, a e b, ou seja |β00 i =
√1 (|0ia |0ib + |1ia |1ib ).
2

2. Alice e Bob separam-se, mas Alice continua com a partı́cula a e Bob


com a partı́cula b (segunda e terceira linhas de entrada no circuito da
figura, respetivamente).

3. Alice tem a partı́cula a consigo e adquire, longe de Bob, uma terceira


partı́cula c que é descrita por um qubit |ψi = α|0i + β|1i (primeira
linha de entrada no circuito). Alice desconhece o valor dos parâmetros
complexos α e β mas pretende enviar a Bob informação que permita
a este último preparar o estado da partı́cula b num estado |ψi idêntico
ao da partı́cula c.

4. Alice submete as duas partı́culas a e c a uma operação conjunta descrita


pela gate CNOT. O estado |ψi da partı́cula c é usado como qubit de
controle e o primeiro elemento do par EPR (partı́cula a) é usado como
qubit alvo. Á entrada da gate CNOT temos um estado ψ0 dado por

1
|ψ0 i = |ψi |β00 i = √ [α|0i(|00i + |11i) + β|1i(|00i + |11i)]
2
3.4. SISTEMAS DE DOIS QUBITS 115

a que corresponde um estado de saı́da ψ1 dado por


1
|ψ1 i = √ [α|0i (|00i + |11i) + β|1i (|10i + |01i)] .
2
O estado anterior pode ser reescrito explicitando os ı́ndices a, b e c
relativos às três partı́culas :
|ψ1 i = √1 [α|0ic (|0ia |0ib + |1ia |1ib ) + β|1ic (|1ia |0ib + |0ia |1ib )] .
2

Em seguida, a partı́cula c é submetida a uma operação de Hadamard.


O estado conjunto das três partı́culas é agora
1
|ψ2 i = [α(|0ic + |1ic ) (|0ia |0ib + |1ia |1ib ) + β(|0ic − |1ic ) (|1ia |0ib + |0ia |1ib )] .
2
A relação anterior pode ser escrita na forma
1
|ψ2 i = 2
[(|0ic |0ia (α|0ib + β|1ib ) + |0ic |1ia (α|1ib + β|0ib )+

|1ic |0ia (α|0ib − β|1ib ) + |1ic |1ia (α|1ib − β|0ib )] .


ou ainda
1
|ψ2 i = 2
[(|00ica (α|0ib + β|1ib ) + |01ica (α|1ib + β|0ib )+

|10ica (α|0ib − β|1ib ) + |11ica (α|1ib − β|0ib )] .

5. Alice mede o estado de cada uma das partı́culas a e c que possui.2 O


resultado é um de quatro resultados possı́veis: |00i,|01i,|10i ou |11i.
Esse resultado pode ser expresso como quatro combinações de dois bits
clássicos, b1 e b2 . Bob sabe que se efetuasse uma medida da partı́cula b
o resultado teria uma correlação perfeita com os resultados de Alice :

Alice Bob
b1 b2
00 7→ α|0i + β|1i
01 7→ α|1i + β|0i
10 7→ α|0i − β|1i
11 7→ α|1i − β|0i
2
Nos circuitos quânticos a medida é representada por um ponteiro numa escala, suge-
rindo o visor de um aparelho de medida analógico.
116 CAPÍTULO 3. INFORMAÇÃO QUÂNTICA

Por outras palavras, Bob sabe que imediatamente após a medida das
partı́culas a e c a sua partı́cula b estará num dos quatro estados possı́veis
indicados em cima. Não sabe, contudo, qual deles é.
6. Alice envia então a Bob, através de um canal clássico, os bits b1 e b2
que resultaram da medida do estado da partı́cula c e a, respetivamente.
7. Bob submete a sua partı́cula b a uma gate Z b1 X b2 . Quaisquer que
sejam os valores dos bits b1 e b2 , o estado final da partı́cula b é o estado
|ψ4 i = |ψi = α|0i + β|1i. De facto,
   
0 0 α α
Z X =
β β
        
0 1 β β 0 1 β α
Z X =X = =
α α 1 0 α β
        
α α 1 0 α α
Z 1X 0 =Z = =
−β −β 0 −1 −β β
         
1 1 −β 0 1 −β 1 0 α α
Z X =Z = =
α 1 0 α 0 −1 −β β

Em suma, o estado da partı́cula c, junto de Alice, foi transferido


para a partı́cula b, junto de Bob, sem que tenha havido transporte
de matéria.

O estado da partı́cula b era indeterminado antes das medidas efetuada por


Alice e não há nenhuma forma de prever qual a sequência de dois bits que
resultam das medidas de a e c. Contudo, logo que o resultado seja conhecido,
Alice pode saber imediatamente qual o estado da partı́cula b, mesmo que
esta última esteja a milhões de quilómetros de distância. A transmissão
dessa informação para Bob está no entanto limitada à velocidade do canal
de transmissão clássico.

É importante notar que o estado original da partı́cula c foi alterado na


medida. Este processo não pode por isso ser considerado uma cópia do
estado original, uma vez que o estado inicial é modificado na medida3 . O
teletransporte quântico transfere um estado de uma partı́cula para outra,
apesar de a segunda estar muito distante da primeira.
3
A cópia é impossı́vel, como afirma o teorema da não-clonagem.
3.5. COMPUTADORES QUÂNTICOS 117

O teletransporte quântico já foi efetuado experimentalmente com su-


cesso, usando estados de polarização de fotões. Há atualmente duas equi-
pas que lideram a investigação em teletransporte quântico, uma sediada na
Áustria e outra na China. Recentemente foram estabelecidos novos recordes
de distância em teletransporte quântico : 143 Km, realizado entre as ilhas
Canárias de La Palma e Tenerife, em 2012, pelo grupo austrı́aco [8] e 97 Km,
realizado na China pelo grupo rival [9]. Estes resultados são extremamente
promissores e a próxima etapa envolve a utilização de um satélite. No final
de 2012, as duas equipas anunciaram uma colaboração para atingir esse novo
objetivo.[9] O lançamento do satélite está previsto para Junho de 2016.

3.5 Computadores quânticos


A possibilidade de implementar um algoritmo como o de Shor, que se pensa
ser capaz de quebrar muitos dos códigos de encriptação usados atualmente,
desencadeou uma corrida pelo desenvolvimento de computadores quânticos.
O objetivo é extremamente ambicioso porque os desafios a vencer são imen-
sos. Um dos problemas principais é a perda de coerência por interação com
o meio exterior, o que torna a informação quântica muito instável. A possi-
bilidade de vir a ter um computador quântico programável, com um número
elevado de qubits entrelaçados, de utilização universal, é ainda um hori-
zonte que aparenta ser tão longı́nquo quanto a realização de um computador
clássico há cem anos atrás. Mas a investigação tem dado passos muito im-
portantes nessa direção. Os requisitos a que um computador quântico deve
obedecer [4],[6] incluem aspetos como ser escalável (i.e., capacidade para ser
implementado com um largo número de qubits), possuir uma lógica universal
(dispor de um conjunto limitado mas universal de operações que permitam
aceder a qualquer ponto do espaço de Hilbert) , capacidade para corrigir er-
ros, estabilidade. Não é ainda claro qual ou quais das várias possibilidades de
implementação fı́sica sobreviverão no futuro. Falaremos muito brevemente
de algumas consideradas promissoras atualmente, embora haja muitos outros
sistemas em estudo [6].

3.5.1 Fotões
Os fotões têm a grande vantagem de já estar desenvolvida a forma de produzir
um feixe coerente - o laser. A intensidades muito baixas, um laser pode
118 CAPÍTULO 3. INFORMAÇÃO QUÂNTICA

produzir um fotão de cada vez.

A polarização de um fotão é uma forma possı́vel de codificar um qubit:


um |0i significa polarização vertical, um |1i representa polarização horizon-
tal. Em alternativa, pode ser usada a localização do fotão : um fotão pode
ser encaminhado paa um trajecto ou para outro ou ainda para ambos simul-
taneamente, criando uma sobreposição de estados |0i ou |1i.

Os instrumentos para manipular fotões são já conhecidos (polarizadores,


beamplittters, espelhos, etc) bem como os necessários para efetuar medidas
(detetores). A grande dificuldade prende-se com a capacidade de criar in-
teração entre fotoqubits, como a que é necessária para realizar operações
lógicas e implementar algoritmos. No entanto, nos últimos anos têm sido
feito grandes progressos que sugerem que o problema será ultrapassado [6].

3.5.2 Ion traps

Os iões podem ficar presos no espaço livre usando campos elétricos e os seus
nı́veis de energia são usados para representar estados |0i e |1i ( [12],[13]).
Assim, cada ião é um qubit. A temperaturas muito baixas o tempo associado
à perda de coerência é suficientemente elevado (da ordem de segundos ou
mais) para realizar as operações de inicialização, transformações unitárias
e medida.4 A inicialização é feita por arrefecimento até o sistema ficar no
estado de energia mais baixo. A interação com um ião individual é feita com
um pulso laser, enquanto que a interação entre iões pode ser realizada por
interação local entre iões ou mediada por fotões.

4
Infelizmente, experiências recentes [10] mostram que a coerência diminui com o qua-
drado do número de qubits.
3.5. COMPUTADORES QUÂNTICOS 119

Já foram realizadas sequências de 64 iões em ion traps mas para serem con-
siderados quantum bits têm de estar acoplados. Em 2011 foi conseguido um
entanglement de 14 qubits realizado com iões de cálcio [10].

As ion traps são consideradas um candidato forte para implementação de


um computador quântico. Os investigadores que lideram esta área foram
distinguidos com o prémio Nobel de Fı́sica em 2012 [11].

3.5.3 Quantum dots


Esta técnica baseia-se no confinamento de partı́culas dentro de um sólido,
como um semicondutor. O quantum dot pode ser um eletrão ou uma im-
pureza atómica e está integrado na estrutura do material, preso num poço
120 CAPÍTULO 3. INFORMAÇÃO QUÂNTICA

de potencial. As técnicas necessárias para implementar um elevado número


de qubits são bem conhecidas, mas o mesmo não sucede com o acoplamento
entre qubits e a perda de coerência, que continuam a ser um desafio difı́cil de
ultrapassar. A diversidade de sistemas que podem ser implementados fazem
no entanto deste campo uma área de intensa investigação.

3.5.4 NMR
O spin de um núcleo atómico é um sistema estável e bem isolado, que pode ser
manipulado com radiação, uma técnica conhecida por ressonância magnética
nuclear (NMR). Uma molécula com N spins nucleares acoplados funciona
como um sistema de N qubits. Esta técnica permitiu demonstrar experimen-
talmente, em 2001, a possibilidade de realizar um computador quântico, em-
bora com um número de qubits demasiado reduzido para poder ter interesse
prático. Uma solução contendo moléculas com 7 spins nucleares comportou-
se como unidades de 7 qubits a correr em paralelo o algoritmo de Shor, tendo
realizado com sucesso a fatorização de ...15. Este método não é, no entanto,
escalável já que o número de spins acoplados numa molécula é sempre limi-
tado.

3.5.5 Supercondutores
Num condutor percorrido por uma corrente elétrica os eletrões perdem coe-
rência muito rapidamente, devido aos processos dissipativos de interação com
o meio. Um supercondutor a baixa temperatura tem, contudo, resistência
nula. Os circuitos de supercondutores podem ser usados como qubits usando
diferentes abordagens descritas na literatura especializada [6].
3.5. COMPUTADORES QUÂNTICOS 121

A utilização de supercondutores na chamada computação quântica adiabá-


tica é uma via distinta das vias que mencionámos até aqui. Há atualmente
uma empresa que desenvolveu computadores baseados nesta tecnologia e ini-
ciaram a sua comercialização em 2011. Ao contrário das restantes técnicas,
abandonou o objetivo de implementar algoritmos baseados em gates, de que
é exemplo o algoritmo de Shor. Usa um processo de busca de mı́nimo de
energia para resolver problemas de optimização. Têm, no entanto, sido le-
vantadas dúvidas quanto à natureza quântica dos processos, nomeadamente
a existência de entanglement. O primeiro sistema comercial tinha 128 qu-
bits. Em 2013 a Google e uma instituição associada à NASA anunciaram
a compra de um computador de 512 bits à referida empresa para ser usado
num laboratório de inteligência artificial.
122 CAPÍTULO 3. INFORMAÇÃO QUÂNTICA
Bibliografia

[1] Quantum Computation and Quantum Information, Michael A. Nielsen,


Isaac L. Chuang, Cambridge University Press (2010).
[2] Lecture Notes for Physics 229:Quantum Information and Compu-
tation, John Preskill, California Institute of Technology (1998) ,
http://www.theory.caltech.edu/ preskill/ph229
[3] Qubits,Cbits,Decoherence, Quantum Measurement and Environment,
A.J. Leggett, Lecture Notes in Physics, Editor Dieter Heiss (2001)
[4] Quantum Computation: a Tutorial, Benoı̂t Valiron, New Generation
Computing 30, 271 (2012)
[5] Quantum Computing, Abbas Edalat, Lecture Notes, Department of
Computing, Imperial College London, London
[6] Quantum Computers, T.D. Ladd, F. Jelezko, R. Laflamme, Y. Naka-
mura, C. Monroe and J. L. O’Brien, Nature 464, 45-52 (2010)
[7] Quantum Cryptography: A Survey, D. Bruss, G. Erdelyti, T. Meyer, T.
Riege, J. Rothe, ACM Computing Surveys, Vol. 39, No. 2, Article 6,
June 2007. http://portal.acm.org/citation.cfm?id=1242474
[8] Quantum teleportation over 143 kilometres using active feed-forward,
Xiao Song et al.,Nature 489, 269-273 (2012) doi:10.1038/nature11472
[9] The Quantum Space Race, Nature 492, 22-25 (2012)
[10] 14-Qubit Entanglement: Creation and Coherence,Thomas Monz, Philipp
Schindler, Julio T. Barreiro, Michael Chwalla, Daniel Nigg, William
A. Coish, Maximilian Harlander, Wolfgang Hänsel, Markus Hennrich,
Rainer Blatt, Phys. Rev. Lett. 106, 130506 (2011)

123
124 BIBLIOGRAFIA

[11] Measuring and Manipulating Individual Quantum Systems - Scienti-


fic Background on the Nobel Prize in Physics 2012 , compiled by
the class for Physics of the Royal Swedish Academy of Sciences,
http://www.nobelprize.org/nobel prizes/physics/laureates/2012/

[12] Quantum Computing with ions, Christopher R. Monroe and David J.


Wineland, Scientific American, August (2008)

[13] Entangled States of trapped atomic ions, Rainer Blatt and David Wine-
land, Nature 453, 1008-1014 (2008)

[14] Feynman Lectures on Physics - vol. III, Feynman, Leighton and Sands
, Addison-Wesley Publishing Company, 1966.

[15] Modern Physics, Kenneth Krane, 2nd edition, John Wiley & Sons, Inc.

[16] Mecânica Quântica, Vol. I, Marco Cardoso, Marta Correia, Samuel F.


Martins, Ricardo Monteiro, Miguel F.Paulos, João G. Rosa, Jorge E.
Santos, Pedro Bicudo, Pedo D. Sacramento, IST Press (2013)

[17] Introduction to Quantum Mechanics, David J. Griffiths, Pearson Edu-


cation International (2005)

[18] Problems in Quantum Mechanics G. L. Squires,Cambridge University


Press (1995).

Você também pode gostar