Você está na página 1de 112

3/15/2019

MILTON Destinos, sonhos e vidas


GEMO submersas

À Beira mar | MG
Milton de S. Gemo

Destinos, sonhos e vidas submersas

À Beira mar

1
Índice

Capítulo I………………………………………………………………………………………..7
Atravessando fronteiras interiores

Capítulo II………………………………………………………………………………………21
A ira da frescurinha

Capítulo III………………………………………………….…………………………………..40
Parto da terra: o nascimento das águas

Capítulo IV…………….…………………………………….………………………………….48
Emigração (1): as ruas de água

Capítulo V……………………………………………………………..………………………...58
Torques versos torrentezas: o preço da ignorância

Capítulo VI…………………………………………………………….………….………….…65
Cruzadores: os homens que cruzavam o tempo

Capítulo VII……………………………………………………………..……….…….…..……72
Emigração (2): em busca de um derradeiro refúgio

Capítulo VIII…………………………………………………………..………….…….………79
A irreversível decisão de Djulinhão

Capítulo IX…………………………………………………………….………………..………84
O derradeiro refúgio

Capítulo X………………………………………………………………………………...……..88
Sobrevivência: caminhando ao encontro da vida.

Capítulo XI………………………………………………………….…………………………..97
Venezambique: a cidade submarina

Capítulo XII………………………...……………………………….…………………………101
Equipa de salvamento

Capítulo XIII…………….……………………………………………….……………………107
O depoimento de Matakupandja (uma alma tatuada à árvore, uma árvore tatuada à alma)

2
Preâmbulo

A obra Destinos, Sonhos e Vidas Submersas (À Beira mar) retrata o drama ciclónico vivido na
cidade da Beira, capital provincial de Sofala, na zona centro do país aquando da passagem do
Ciclone Tropical Idai (CTI), o mais algoz catástrofe a assolar o centro do país em meados de
Março de 2019. Beira sempre foi o corredor dos ventos, dada a sua desfavorável topografia
(abaixo do nível do mar) que propicia a ocorrência de tempestades. Todavia, nunca outrora havia
sido fustigada sobremaneira por diluvianas chuvas e eventos ciclônicos tal como se testificou,
essa foi sem sombra de dúvida a mais perversa tempestade de todos os tempos no hemisfério sul.
Na noite de 11 de Março de 2019, segunda-feira, o Conselho Técnico de Gestão de
Calamidades ativou o alerta vermelho para o centro do país, devido às chuvas contínuas e a
célere aproximação do ciclone. Na terça-feira, 12 de Março do ano em epígrafe, o alerta foi
fortificado pelo Conselho de Ministros, o ciclone ia crescendo com celeridade alimentando-se
iras no ventre do Oceano Índico. Segundo revelações da porta-voz do Conselho de Ministros,
Ana Comoana: “esperam-se ventos fortes e trovoadas severas” e afirmou peremptoriamente: “é
um elevado risco para pessoas e bens!”.
O CTI atingiu terra durante a noite de transição de 14 para 15 de Março, no distrito de Dondo a
exíguos quilômetros da cidade da Beira, tendo causado chuvas torrenciais e ventos agressivos
nas províncias de Sofala, Zambézia, Manica e Inhambane. Grande parte da cidade estava por
baixo das águas, naquela cidade nasceram oceanos interiores lamacentos com 30 milhas, o
equivalente à 50 quilômetros de largura devido às severas inundações. O deslocamento em
resposta ao vil ataque ecológico foi de 400.000 (quatrocentas mil) pessoas, outras penduradas em
árvores, outras exiladas em terraços, escolas, hospitais e outras, infelizmente, soterradas em seus
próprios aposentos. Os sobreviventes padeciam de frio e fome clamando por salvamento,
assistência sanitária e alimentar por quase toda a cidade e nas áreas inundadas dos rios Púnguè e
Búzi.
Em Manica duas pontes derribaram provocando cortes na ligação com o distrito de Mossurize
e vários postos administrativos de Sussundenga. Ainda na sequência dessa eventualidade
catastrófica mais de 167 salas de aulas ficaram inundadas, intermitando o estudo a mais de 12
mil alunos. Ficaram igualmente inundados mais de oito postos médicos e o acesso por via
terrestre à cidade da Beira ficou interdito pela forte corrente das águas fluviais que derribou
pontes e criou cortes no prolongamento da Estrada Nacional 6 (EN6), a principal da zona centro
do país.
Esse interminável rosário de danos abarcava a perda de eletricidade, comunicação e água
potável, o mais alarmante é que por via telúrica ninguém poderia sair nem entrar na cidade, o que
ratificava-se no acervo de viaturas de passageiros e camionistas que se viam bloqueadas. Nessa
nostálgica sucessão de acontecimentos, ocorre-me uma pungente agonia em dizer, mas Beira
tornou-se na “Segunda Ilha de Moçambique”, porquanto esteve degredada do resto do mundo e
porque as ruas riotornaram-se (tornaram-se rios) e os campos oceanotornaram-se (tornaram-se

3
oceanos), a cidade que era nossa naufragou e das profundezas emergiu reinventada como
Veneza, sim! Uma “Veneza em Moçambique”.
Segundo dados do Relatório da Avaliação Rápida da Beira, realizado à 29 de Março do ano em
epígrafe por 12 equipas de órgãos avaliadores do Instituto Nacional de Gestão de Calamidades
(INGC), Federação Internacional das Sociedades da Cruz Vermelha (FICV), agências da
Organização das Nações Unidas (ONU) e Organizações Não Governamentais (ONG), a
insegurança alimentar foi o maior problema com 58% dos entrevistados a reportar desnutrição
nos seus bairros. Em 19 de Março do ano em epígrafe, o Governo de Moçambique declarou uma
emergência nacional e solicitou formalmente uma ajuda internacional. Por forma a mitigar os
danos da calamidade mais de 900 (novecentas) doses de vacina oral contra a cólera da reserva
mundial para a utilização de emergência foram programadas para chegar à Beira na data de 2 de
Abril do mesmo ano, terça-feira, e o Governo e os parceiros, incluindo a UNICEF, FICV,
Médicos Sem Fronteiras e a Save The Children em sinergia projectaram dar início a campanha
de vacinação na quarta-feira, 3 de Abril. Até o dia 2 de Abril de 2019 seis Equipas Médicas de
Emergência (EMT) operacionais se haviam instalado na cidade.
Os fortes ventos escoltados por intensas chuvas criaram avultados danos nas estruturas de
logística e telecomunicações, sendo que apenas a 24 de Março de 2019 foi possível chegar por
via terrestre à cidade da Beira, uma vez que as vias foram intermitadas pela áspera acção das
águas interiores cujo caudal estava a eminentes níveis acima do normal, transpondo estradas e
derribando pontes. Houve ainda os que no apogeu da sua ignorância foram engolidos sem deixar
rastros ao intentar contra a vil torrenteza dos rios, ficou clarividente: nenhum Homem pode
contra a ira da natureza. E em verdade, nada fazia par às águas que corriam com sublime
intensidade devastando tudo que se achava pela frente, “aquelas águas”, diziam,
“transportavam a ira de Deus”.

4
“Para atravessar contigo o deserto do mundo.

Para atravessar contigo o deserto do mundo


Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo


Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora a luz sem véu do dia duro


Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste


E aprendi a viver em pleno vento”

Sophia de Mello Breyner Andresen

5
6
Capítulo I

Atravessando fronteiras interiores

7
“Prece

[...]
Para ti criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido
Como o florir das ondas ordenadas”

Sophia de Mello Breyner Andresen“

8
Carta para minha amada Xonguile

Querida Xonguile, escrevo-lhe carinhosamente esta carta tão linda para dizer o
quanto te amo, todas as noites passo em branco, já não durmo pensando em ti.
Riem-se de mim quando adormeço na sala de aulas, invento motivos para a
professora, motivos parvos. A verdade é que sou uma embarcação presa no ventre do
oceano Pacífico, tentando a todo esforço libertar-me dessas águas, mas as ondas do
meu coração trazem-te de volta em minha imaginação, estou numa przshvjxsnfytd
(rabiscos).

9
− Ahhh não, não, nãoooo! Isto está horrível, assim não dá ela vai rir-se de mim, se é que vai se
dar o luxo de ler isto, o que estou a fazer afinal? Ah! Isto está ridículo, ela vai rasgar em mil
pedaços e depois como será? Com que cara irei encará-la na sala de aulas? Preciso fazer outra,
outra carta melhor, que tenha vida, que seja por si só letra vivente respirando sobre o papel.
Preciso de frases com vida. Ah já sei! E se eu consultar um desses livros poéticos de Mia Couto,
Craveirinha, Chiziane? Nãoooo, nãooo! Ela gosta muito de ler, com certeza já leu um deles,
melhor temperar com um do Camões, começando assim:

Se o amor é fogo que arde sem se ver,


Então o meu coração é um crude
Preciso do teu caloroso amor, me grude!
Refine este petróleo e faça este amor nunca parar de arder.

− Ahhhmm! (bocejo esbracejante). Em jeito de epílogo sentenciei num monólogo: ahh já chega!
Por hoje é tudo, já não vou para frente nem para atrás.
Num súbito e inconsciente movimento capotei sobre a mesa, babando sobre as missivas nas
quais tanto labutava, desligado, alí passei a noite e ela foi se desvanecendo no infinito
firmamento, afinal é essa a incógnita lógica do tempo: inicia sempre tão forte, tão intenso e tão
concentrado e inotavelmente vai se diluindo pelo universo afora até se desvanecer por completo
e quando damos por nós, há muito que já não é. Ocorreu-me que enquanto dormia sonhava que
caminhava de mãos dadas à Xonguile, ladeado da mais esbelta e deslumbrante mulher que
alguma vez vi, a mais esbelta rainha da história do universo, do meu universo. Nesse sonho eu
era um rei sem coroa que me coubesse na cabeça, sem reino que se pudesse mensurar a grandeza,
afinal, eu era coroado pela sublime honra de me fazer ladeado a uma mulher exuberante, meu
reino assentava-se na sua imensurável eloquência, das unhas ao cabelo ela era esplêndida,
também não preciso de reino, nem de coroa, nem de joalherias, tudo que um homem fosse
precisar ao lado dela é de uma bússola. Sim, engraçado não é? Pois é, uma bússola porque
olhando nos seus olhos dissolvo-me de corpo e alma, escapam-me os sentidos e desnorteio-me
completamente.
Sempre que a vou desafiar olhar, perco-me rente a tão intensa, agressiva e antagonicamente
flácida beleza, foi nela que descobri que os olhos são anónimos portais, acessos a profundos e
desconhecidos horizontes interiores, são refúgios. Todo olhar intenso é uma viagem fatal e
irreversível, de um tão intenso olhar jamais se acha regresso, ficamos eternamente presos
naquele tão fugaz e paradoxalmente longuíssimo instante, ficamos perpetuamente presos em
outras almas, outras vidas, outras existências. Como é que um momento pode ser muitíssimo
efêmero e muitíssimo longo em simultâneo? Como? Não sei, eu não sei! Mas de algo sou exímio
sabedor: os olhos são uma arma letal, um olhar profundo aprisiona-nos ou liberta-nos a alma,
depende do que nele se sente e se transmite, pois a alma é a nossa total existência.

10
Calcorreávamos pela praia apreciando a infindável ondulação do mar, nesse vai e vem das
ondas todos os problemas se esvaíam, a paz e a tranquilidade vêm até nós por meio do afago da
natureza, é por isso que amo o mar, só por isso! Porque nele viajam infinitos sentimentos, ou
melhor, o mar por si só é um conjunto de sentimentos liquefeitos acariciando o corpo do mundo,
beijando o rosto da terra. Sentimentos de todos os que no antanho viveram, dos que vivem em
diferentes geografias pelo mundo afora e a mensagem do porvir. Sonho esse que fora dilacerado
na sua fase mais efervescente, quando embalava-me no afago das inconscientes fantasmagorias
de súbito apareceu a minha avó: − Nkulu!? Lamuka kwacena. Lamuka kwacena mwana! − Disse
minha avó na nossa língua materna, o cisena: Nkulu!? Acorda já amanheceu. Acorda já
amanheceu filho!
Estremunhei subitamente: − eh, eh, eh! É o quê, vovó?
− É o quê to quê focê tampém porque sol chá saiu há mwinto tempo e focê ainta está a tormir
enquanto os rapasses ta tua itate acortaram há mwinto tempo e chá estão a trapaliar, shehhh
focê é quem? Rei? Raputamente sair na messa e não tormir nunca manche aí, totas as noites os
feiticeiros fem sentar aí a procura te comita, um tia fão te chantar.
− Uwah! Mas vovó essa maneira de acordar pessoa também é qual? Sol saiu sol saiu! É para
eu realizar fotossíntese?
− Ehh yuwehh focê não me cria calor tas oufir? Tessaparecer raputamente aí com tuas salifas
em cima ta messa e totos esses teus papeles. Pecar pá raputamente e ir aprir caminho to quintal
anté na rua, o quintal chá está mwinto cheio te áqua te chufa, tepois entrar aqui tentro limpar
em cima e em paixo, hoche se fochir ir na escola antes te terminar trapalho fou te persequir e fir
te tirar na sala com fassoura.
Há dias que chove sem cessar, as paredes já estão todas embriagadas e frágeis, pela brecha das
chapas a chuva busca hospedagem e nesse interminável ofício de limpar a água toda da chuva
dentro de casa executei incontáveis vénias, inclinado lembro do ditado “a água bate na rocha,
mas quem paga é o mexilhão.” Aqui, porém, a chuva cai, mas quem paga são os meus lombos.
Foram ao todo três baldes e meio de água que com o pano fui enxugando do chão. Quando já
havia vencido a casa dei conta de que o quintal estava cheio de água e a casa estava feita uma
ilha, peguei na pá e inventei rapidamente um pequeno itinerário do quintal à rua para dar vazão a
água e exausto paro para num profundo respirar trocar os ares e perscrutar o ambiente, vejo então
a rua cheia de águas, sim, águas! Aquelas lagoas não eram apenas da chuva que no momento
caía maviosamente de soslaio, aquelas águas vinham dos quintais, tal como eu nesse instante
todos os vizinhos procuravam dar vazão a água da chuva para as ruas, portanto cada água vinha
de uma família diferente e todas elas tinham no meio da rua, apelidos diferentes. Pôs fim aos
meus afazeres diários e logo em seguida comecei a preparar-me para a escola: banhei, engomei,
vesti e pus-me à mesa ao gozo do pequeno almoço. Se há coisa que aborrece a vovó é sair sem
que coma coisa que seja ( refeição forte).
Bom, já está tudo feito arisca. − Tchau vovó, já vou! − Despedi-me.
− Lefou quarta-chufa?
− Eh, obrigado vovó! Estava a esquecer-me.

11
Retornei em busca do guarda-chuva e enquanto caminhava, já no limiar do quintal ouvi:
− Chau, poas aulas! − Retribuiu a avó. Ensaiei três passos à dianteira quando a vovó tornou a
falar: − eh yuweh, sair na escola foltar raputamente não quer te precissar tas oufir?
− Está bem, vovó! − Voltando os olhos para cima, respondi ironizando. Mas tendo saído à rua
após dez metros de caminhada retornei novamente para substituir as sapatilhas que trazia pelas
botas à prova de água, pois as ruas estavam já embebidas em lagoas e nelas recreavam saltitos
incontáveis sapos em metamorfose, os mais pequenos pareciam-se até peixinhos.
Já a caminho da escola vou saudando os vizinhos do lado esquerdo: o sr. Kakungabwedze e a
sra. Mutanyandzilo, um casal para lá de simpatia, empático e sempre pronto para ajudar a quem
necessita. Antes da escola passo pela casa dos meus amigos: o Khadunga e o Binga. Este
derradeiro seu nome verdadeiro é Nkapachikwadze Leitão do Sábado o de Binga surgiu na
infância por ter sempre sido um jovem muito alto, sempre mais alto do que os jovens da sua
faixa etária, daí que surgiu o nome em equiparação ao monte Binga, o monte mais alto de
Moçambique e o segundo mais alto da vizinha Zimbabwe localizado no centro do país na
fronteira entre as províncias de Manicaland em Zimbabwe e Manica em Moçambique, no maciço
de Chimanimani a uma altitude de 2436 metros, o correspondente a 7992 pés.
A princípio recusava o nome tomando-o com tamanho sarcasmo, mas ao fim ao cabo aceitou-o
tendo descoberto nele mais maviosidade, tranquilidade e menos sarcástico em comparação ao
seu nome biológico, custava-o mais pelas risadas de quem sempre o ouvia ser chamado
Nkapachikwadze Leitão do Sábado. Encontrei o Khadunga já no portão e juntos fizemos
caminhada em direcção à casa do Binga, chegado a sua casa entramos, é difícil pedir licença
numa casa sem muro e nenhuma demarcação, nunca sabemos onde realmente é distância
suficiente para começar a saudar, mas enfim, graças a Deus somos recebidos em pueril e etérea
apoteose pela sua irmã mais nova que grita: “olá amigos do mano Binga! Não fiquem na chuva,
entrei aqui na varanda já vou levar cadeiras.” Apressou-se nesse acto e sem que pedíssemos
trouxe-nos uma garrafa de água fresca e copos, entreolhamo-nos com o khadunga pensando se
receberíamos a água ou não, a verdade é que essa temperatura não combina com nenhuma água,
nem para beber nem para banhar, mas percebemos que pela inocência da idade ela queria apenas
sentir-se boa anfitriã oferecendo seja o que fosse por isso recebemos, mas aterramos a garrafa no
chão e ficamos apenas a olhá-la em profundo silêncio, ouvia-se apenas o som da chuva beijando
chão até que depois de prolongado silêncio ela sobrepôs a sua imaculada voz sobre a atmosfera:
− mano Binga ainda está a tomar ban...
E antes de por término a fala gritou novamente: “manoo Biiingaa é melhor apressar aí na casa
de banho teus amigos já estão a ir embora.” Fartamo-nos de rir, eu gosto desse jeito sempre tão
hiperbólico, a gente mal chegava e ela já anunciava a nossa retirada. Ríamo-nos sempre desse
jeito tão dinâmico, engraçado e exagerado. Era necessário pois como sempre atrasávamos na
casa do Binga. 20 minutos depois o Binga saía com uma fatia de pão, ovo e batatas fritas na
mão e dicotomizava para mim e para o Khadunga. − E você? − Pergunta o Kadunga: − eu já
comi é pra vocês. Esse acto reiterava-se quase todos os dias, no fundo sabíamos: com esses
manjares Binga desculpava-se das exageradas demoras. Logo nos pusemos a andar, pelo

12
caminho fui colocando-os a par do meu assunto: − bradas eu preciso vos dizer algo, mas que
fique só entre nós .
− Essas cerimónias têm sempre nome de alguém − disse Khadunga
Hahahaha...! (jogamo-nos às risadas.)
E eu prossegui: − bom, é assim, eu já não consigo mais amar em silêncio, não posso mais
esconder essa paixão ardente que me vai consumindo em surdina, preciso dizê-la o quão
profundo é o meu amor. Afinal o amor é como a tosse e a gravidez, por mais que o escondas com
sublime mestria, uma hora ele sempre aparece, forte, maior e irreverente. E no final é como o
HIV/SIDA, se não o assumes ele te assume.
− Graaaandaa Nkuluuu (gargalhadas) − Disse Binga à risadas e prosseguiu: − é assim que se
fala mano, mas então, como farás isso?
− Farás? Que papo é esse? Faremos, isso sim!
− Está bem, mas como?− Perguntou Khadunga
− Eu escrevi um poema, bem, quase isso, mas é uma declaração de amor. E o plano é o
seguinte: eu sairei para trás da escola e vocês irão tirá-la da sala de aulas.
− Mas atrás da escola com essa chuva toda? E nós não temos conversas com ela, o que
diremos?− Indagou Binga.
− Eu não sei virem-se, digam que uma amiga a chama, que querem mostrar-lhe algo digam
qualquer coisa que vos der na telha, mas ela tem que ir até às traseiras da escola, lá não haverá
gente, bem, pelo menos não muita. Quando ela chegar aí eu me declaro.
− Está bem, mas em que momento faremos isso?
− No recreio Binga, no recreio.
− E por que não na saída? Quem sabe aí terás mais tempo.
− Impossível, saímos enquanto a carrinha já está na rua a espera dela, ela sai da sala
diretamente para o carro.
− Awehh kakakaka estás a parecer o Michael Scofield em Prison Break, já calculaste isso tudo?
Eh você está a morrer a sério.
Kakakakaah... (rimos em simultâneo)
Interrompemos a conversa e entramos na sala de aulas.
− Vocês vivem na mesma casa? − Pergunta a professora.
“Nãooo!” (respondemos em coro)
− Então chegam sempre atrasados ao mesmo tempo porquê? − Fizemos silêncio.
− Não falam?
“Falamos!” (respondemos em coro mais uma vez)
− Eh! Ensaiaram?
“Nãooo!” (respondemos em coro novamente) os colegas puseram-se a rir.
− Então falem!
− É que vivemos longe da escola senhora professora. − Advoguei.
− Hummmm...! − Bramiu semeando discordância no fundo da sala o colega Pangwaninde que é
uma pedra no sapato, sempre nos contrapondo.

13
− Desta vez vou tolerar, mas só desta vez. E é bom que seja a última vez porque para a próxima
voltarão na entrada e só regressarão na presença dos vossos encarregados. − Proferiu
imperativa.
− Estámos entendidos?
“ Sim! ” − Respondemos em coro novamente.
A aula foi decorrendo normalmente, lentamente a bem dizer, eu não via a hora do intervalo
chegar, mas também tremia o corpo e os dentes ao imaginar esse momento e queria também por
medo e receio que esse momento se atrasasse, um pouquinho só um bocadinho, prontos
confesso: eternamente!

≪ Dim dim dimmm ≫


(toque de recreio)

Sinto as pernas trementes, o universo fica parado, estagnado dentro de mim. O que farei?
Abortar a missão? Olho para os meus amigos num olhar tremebundo e revelador de incerteza,
sou fraco para essas coisas, admito! O amor sempre me custou, sempre me saiu muito caro, o
meu olhar sobre eles pede uma resposta, mas perde ante aos seus olhares esfomeados e secos que
pediam mais respostas e acenavam abrindo os braços num movimento uniformizado como se
dessa vez o tivessem realmente ensaiado: − e agora? Afinal, o que combinamos? Sais ou não?−
É essa a interpretação que obtive ao ler os seus lábios e aqueles movimentos falantes.
Prontos! Me rendo, vou sair, se as coisas não derem certo como planejei não será o fim do
mundo, também a vida é assim, todo sucesso esconde fracassos. E finalmente saio para as
traseiras da escola e paro no passeio de tal maneira que as gotas da chuva não me alcancem
esperando por eles. As mãos vão me tremendo enquanto tiro provento do tempo que me resta
para encenar esse tão brevíssimo momento: − querida Xonguile, eu sempre estive à espera deste
tão belíssimo momento para dizer o quão te amo e te admiro, você é a minha flor de tulipa, meu
girassol e ainda que tanto tente te esquecer dentro de mim você gira sol, gostaria de saber se...
Ah ntsi! Assim não dá, deixa-me tentar assim: − olá Xonguile, espero que estejas bem, desculpe-
me ter que te trazer até às traseiras da escola neste momento que certamente estarias
lanchando, mas é que preciso te dizer algo muito importante, algo que sempre me engasgou a
garganta, mas que nunca tive peito suficiente para tirar e hoj... Suspendo repentinamente a
encenação, ouço de longe a voz dos meus comparsas e já me vou organizando o estilo e o visual,
ela está vindo com eles.
− Compadre! − Disse Binga
− Sim, compadre! − Respondi
− Ehh aquela tua pita é um rinoceronte diz que não irá sair da sala e interromper o seu lanche
por seja lá o que for, e quem ou o que precisar dela que a encontre na sala de aulas. − Relatou
Binga
− Eishhh!!! Yah, agora é que complicou. Assim como é que faremos? − Perguntei atordoado, os
calores me vão escalando a cabeça até aos cabelos.

14
− Só podes entrar mano! − Diz Khadunga
− Entrar? Eu? E me declarar no meio de pessoas?
− Olha, sabemos que na sala as coisas serão um pouco mais pesadas, mas é só um pouco, pois
se não for hoje que quebras isso, jamais irás conseguir.
−Hufff...! (suspiro) Está bem, mas quem está lá dentro?
−Bom, eu não prestei muita atenção, mas é muito pouca gente, dois a três colegas por aí.
Finalmente ganho coragem, juntos regressamos à sala de aulas e dirigimo-nos diretamente a ela.
Chegado finco-a levemente, seca-me repentinamente a boca e desvanecem-se todas as letras.
− Xonguile, cá está ele! − Proferiu Binga.
− Sim pode falar e peço pra ser breve, preciso lanchar e o tempo já nos é escasso. − Diz
Xonguile sem hesitações
− Bemmm... ehhh... é assim: eu chamo-me Nkulu.
− Está bem isso já sei há três anos que estudamos juntos, peço para ser direto e breve, dizer o
que quer me dizer rapidamente, se não percebeu estamos no recreio.
− Fica calma Xonguile, é assim, eu sempre quis te dizer o quão te admiro, admiro a tua
inteligência, admiro a tua beleza e a tua maneira de ser no geral. Mas esta não é uma
admiração qualquer, essa admiração ascende aos níveis normais de amizade, você se tornou um
balão que sobrevoando o céu estagnou-se num dos ramos do meu coração.
− Peço para dizer o que quer rapidamente de forma clara e objetiva, foi para isso que me
interromperam? − Estava patente o seu desconforto o que começava sobremaneira a deixar-me
nervoso e sem norte no que ia dizer.
− Não! O que eu quero te dizer... é que te amo muito, muito muito mesmo, te amo como nunca
antes havia amado alguém, o que eu sinto por ti não tem medição. Eu ti amo, eu te quero, eu sei
que somos muito diferentes, sei que não tenho as condições de vida que tens e tudo que posso te
dar é apenas amor, mas é um amor puro, carinho, felicidade, posso todos os dias da minha vida
semear nesse teu rosto lindo um sorriso, escrevi esta pequena estrofe para ti. − Desamolguei o
pequeno papel e declamei tremebundo:

Se o amor é fogo que arde sem se ver,


Então o meu coração é um crude
Preciso do teu caloroso amor, me grude!
Refine este petróleo e faça este amor nunca parar de arder.

Terminei a efémera declamação e regressei à fala: − há muito que ansiava te dizer o


quanto penso em ti dia e noite, o quanto te amo e o quanto não consigo dormir e comer sem
pensar em ti. Muitas vezes pensei em te dizer, mas chegado a escola perdia sempre o norte,
tremia de medo e me voltava a mim mesmo. Na verdade, sou um dragão que não sabe cuspir por
temer o seu próprio fogo.
Enquanto falava as colegas que estavam na sala saíram correndo para chamar os outros à
risadas: − alooo pessoal corram, venham todos a sala agora, estão a perder!

15
− Him...! O que é?− Responderam os outros colegas de sala
− Alooo venham rápido, Nkulu ficou maluco, está a declarar-se ao vivo para Xonguile e até fez
um poema. Em segundos inundaram todos a sala aos risos eminentes, alunos de até outras salas
que ouviram o comunicado fizeram-se presentes. Ouvi passos de todo mundo chegando, ouvi
passos dos que subiam em cima das carteiras, vi os que tiravam seus celulares para gravar, nesse
momento Xonguile fechou a cara com seu cascol, mas eu prossegui forte, firme, destemido e
irreconhecível não só para os outros, eu mesmo não me reconhecia a mim, de onde viera toda
esta coragem e ousadia? Eu que sempre fora fechado e reduzido ao meu âmago.
Ouvi gozos vi a sala encher, mas não parei porque ao mesmo tempo eu nada via, tudo era
diferente e anormal, estando eu rodeiado, sentia-me num lugar deserto, um deserto reduzido a
mim e Xonguile, a minha ousadia e coragem alimentava-se do medo e da vergonha que eu
sempre tivera e agora não meço palavras nada temo, sou senhor de mim mesmo, sou dono deste
momento. E depois de tanto palavrear ajoelhei-me ante a todos, retirei da pasta uma rosa
vermelha que surpreendeu até o Binga e Khadunga porque dela nada falei e sentenciei, ousado e
peremptório: − namora comigo Xonguile!
Pese embora a púrpura rosa estivesse quase murcha vencida não pelo estado de conservação,
mas pela ansiedade desse momento, de ser oferecida em amor, parecia mais envergonhada que
eu.
− Uooooooooouuuuu...!!! − A sala toda vibrava aos bramidos, atónitos e admirados pela minha
ousada e romântica exibição, estes que sempre me conheceram por outro lado: medroso e
fechado.
− Este tomou o quê? Binga e Khadunga, o que deram ao vosso amigo?
− Nãoo, não é possível, este não é o Nkulu matreco que eu conheço, Khadunga o que foi que
fizeram ao Nkulu que conhecemos? − Arrazoavam entre si
− Nkuluuuu! É você puto? Kakaka não é possível! − Tornaram a exclamar atónitos os outros
colegas. Diziam e desdiziam todos pela sala, chegavam-me vozes desnutridas de rosto, apenas
vozes, tantas e indistintas. Xonguile mantinha-se reservada, fechada e calada e tudo ao redor
voltava ao silêncio absoluto juntamente com ela, esperávamos a sua resposta. Mas ante ao
silêncio ouvia apenas respirações ofegantes e via câmeras excitadas em capturar o momento
flutuando pelos ares, o derradeiro momento era independentemente da resposta que pudesse sair,
o apogeu da cena.
O silêncio que alí reinava mirava-nos até que coloquei-me de joelhos e reiterei com a ousadia
de um rei e a maviosidade de uma pétala: − namora comigo Xonguile, por favor!
− Uauuuu que romântico...!
− Ohh que lindo!
− Fofooo!
Vozes femininas ascendiam e numa única sinfonia romantizavam o momento.
E sem me aperceber escorriam-me lágrimas no rosto, abrindo diretrizes como uma cachoeira
irreverente, lágrimas que não pediam permissão para cair, essas lágrimas não eram simples
lágrimas, eram na verdade palavras que de tanto serem aprisionadas, contidas e mantidas em

16
cativeiro nas profundezas do meu coração, tornaram-se nuvens e tinham agora o livre arbítrio de
chover livres e desimpedidas, choviam como sempre choveram dentro de mim todas as noites
que me deitava e tornavam a minha cama num leito de sal, salescorrendo como cascatas desde a
almofada, os lençóis até chuvispingarem no soalho. Elas sempre choveram, mas choviam sempre
para dentro e me inundavam, e todas as noites eu entrava dentro de mim para me dissolver numa
morte doce, salgada e efêmera. Agora elas tornam a chover, mas chovem de liberdade por isso
chovem para fora e independentemente de ser deferido ou não elas já conhecem o seu
caminho. Agora eu sei: as lágrimas são marés que inundam o mundo como chuva e nenhuma
lágrima movida de sentimento profundo e verdadeiro pede licença para chover.
− Vai, aceita Xongue!
− Aceita miga!
As mesmas sinfónicas vozes femeninas ascendiam novamente pedindo deferimento, mas já não
estavam só, juntaram-se igualmente à causa as masculinas, as primeiras que ouvi foram as de
Binga e Khadunga agitando em persuasão a sala: − aceita, aceitaa, aceitaaa, aceitaaaa!
E toda a sala ascendeu-se em sinfonia: − aceita, aceitaa, aceitaaa, aceitaaaa, aceitaaaaa!
Até que de rompante a apoteose foi intermitada: − alooo o que está a acontecer aqui? Essa
maneira de gritar até ouvir-se na directoria é qual? Pensam que estão aonde? Na discoteca? No
estádio ou no mercado? O que se passa aqui? O que se passaaa???
Antes tentaram ainda alguns colegas descer das carteiras a velocidades, correr e esconder, no
entanto, o flagra era tão grande e aberto que tornava o delito tão transparente e óbvio que todo
aquele acto fugidio tornou-se néscio.
− Quero nome de todos os que estavam em cima das carteiras, nem adianta descer a correr e
tentar esconder, estão a fingir em vão eu já vi todos. E todos que estavam gritando quero os
nomes. E sentenciou enfático: − de todos vocês! Pra já sigam-me todos até a diretoria.− E foi
assim que tudo turbilhou-se, tudo congelou com o inesperado surgir do director que vociferava,
impondo através dos bramidos, a sua exímia autoridade até as alturas, a voz enchia todos os
compartimentos da sala, o ambiente ficou morto, corações batiam fora do corpo, o meu batia fora
do tempo, mantive-me congelado, ainda com a rosa nas mãos. Se bem que me tentei mover,
levantar, ajeitar o estilo e esconder a rosa, mas fui trespassado por uma súbita paralisia. De sorte
que o diretor saiu da sala para parar em frente a porta, no corredor, e assim não me viu.
Lotamos a sua sala e muitos ainda foram os que sobejaram pelo corredor, controlados pelo
guarda para que não pusessem-se em fuga, assinámos uma folha que passou por todos.
−Uhmm mbora falar, o que estava acontecer? − Perguntou autoritário o director, não obstante,
fez-se silêncio. O director ainda nos fincou perscrutando-nos as faces demoradamente, quando
retomou a fala: − ehh já não falam? Aqui na minha sala já são mudos? Ehhh vamos lá, os
gritos? Cadê os gritos? Assim, se alguém entra ainda pensa que são pobres inocentes, vítimas de
falsas acusações. Falem já! − Sentenciou.
Panguanine ainda levantou a mão e pegamos todos as cabeças num gesto lastimoso, sabíamos
que não era boa coisa, ele sempre fora traidor, principalmente agora, inconformado com a minha
ousadia, todos sempre soubemos que ele fora sempre admirador secreto da Xonguile. Mas de

17
súbito que o Mugadzodzo Vevito Chiúta, colega de sala o intermitou: − pedimos as nossas
sinceras desculpas senhor director, aquela era uma mine festa de uma das nossas colegas e ante
a comemoração, excedemo-nos nos modos, não soubemos nos conter, pedimos desculpas e
prometemos que não mais volta a suceder. Mugadzodzo impressionava, sempre impassível e
desapressado no verbear, sempre tão desprovido de pressas que parecia até que o tempo todo lhe
pertencia, contudo, rapaz da lentidão, esse seu jeito soava sempre mais reverente a quem se
dirigia.
− Humm está bem. É isso mesmo ou são subterfúgios?
“É isso mesmo senhor Diretor!" – Respondemos em uníssono.
− Está bem, estão dispensados, mas é bom que seja mesmo a última vez, porque para a próxima
trarão os vossos encarregados de educação, essa lista com vossos nomes não irei deitar, vou
guardar na minha gaveta, ai de quem ousar cometer indisciplina e dela constar o nome. E
anunciou o que estávamos a espera antes mesmo de entrar na sua sala: −Podem sair!
E no regresso, rindo em surdina pelos corredores, abraçavam o Mugadzodzo, também o faria,
no entanto, estava com o espírito longe, longe de mim, longe de todos, longe do corpo.
Voltamos, a professora já dentro da sala estava, perguntou o porquê do barulho, a mesma história
lhe foi arquitetada, retomamos a aula, num ambiente atípico, morto e morno, estando todos alí,
ninguém alí estava, de tal forma que não tardou o toque de saída.

« Dim Dim Dimm »

Xonguile foi a primeira a retirar-se fugidia da sala, os colegas ansiavam pela sua resposta,
entretanto eu não sabia mais se queria ouvir, aquele momento ainda me pesava a memória e a
alma, e assim foi, não houve resposta para nada e ninguém, Xonguile não parecia ser que falasse,
contudo eu estava feliz como nunca antes estivera por quebrar as minhas barreiras, meus medos e
atravessar as minhas fronteiras interiores, por trilhar novos horizontes adentro. É sempre assim:
somos capazes de enfrentar o mundo inteiro, no entanto, desconseguimos enfrentarmo-nos a nós
mesmos. É fácil derrubarmos os outros, difícil é reconhecermos e derrubarmos as nossas
fraquezas. É fácil apontar a dedo e julgar os erros alheios, difícil mesmo é enxergarmos,
emendarmos os nossos próprios erros e derrubarmos os nossos medos, quando formos capazes de
tal heroísmo, então estaremos atravessando as nossas fronteiras interiores, os óbices que nos
impedem a felicidade.
De regresso à casa ia espairecendo a alma, dissolvido em conversas e risos, tão esvoaçado que
nem dava conta que Binga já estava à porta de casa.
− Amigos, eu já cheguei!
− Ahh nos acompanha um pouco, vais voltar alí naquela mafureira. − Persuadimo-lo.
− Está bem, mas dali não passo já estou a sentir frio. − Afirmou peremptório Binga.
A chuva não parava de cair, mas demos provimento a caminhada e nasceu naquele momento
um súbito e efémero repousar de fala, buscávamos nós assunto para abastecer a caminhada?

18
Quando se faz silêncio antes de se invocar palavra é porque no interior se vão afiando assuntos
de delicada natureza, assim dizia o meu pai e ele estava sempre certo.
− Assim como ti sentes Nkulo? − Indagou Binga.
− Como assim como me sinto Binga? Me sinto a andar.
− Sabes que estou me referindo a outra coisa.
− Que coisa? Então fala logo.
− A Xonguile Nkulo, a Xonguile. Como te sentes após tudo que acabaste de fazer e dizer? Pra
falar a verdade eu também fiquei muito surpreso, de onde lhe sobressaía tamanha coragem e
motivação?
− Conta Nkulo eu também quero saber! Sem contar que não nos disseste que levavas uma rosa
na pasta. Afirmou Khadunga enquanto fazia risadas.
− Eu tenho antes de mais, que vos agradecer meus amigos, por me encorajarem e me apoiarem
nessa causa, vocês são sem dúvida os melhores amigos de todos os tempos. Mas a verdade é que
eu não sei, eu não sei! Tudo o que posso dizer é que dentro de nós existem maravilhosos mil
mundos desconhecidos e o que nos separa desses mundos interiores tão esbeltos são as nossas
fronteiras interiores: o medo de errar, o medo de perdermos a nossa estimada posição, o medo
de fracassar, o medo de sermos superados pelos outros, o medo de que os outros riam-se de nós,
esses são e sempre serão os nossos maiores inimigos, as nossas grandes barreiras que só pela
coragem, ousadia e determinação podem ser atravessados.
Nesse profundo palavrear o tempo e a distância trespassavam-nos despercebidos: − eh já
andamos tudo isso e nem me apercebi sabe?! Passei até a mafureira combinada, tenho de
regressar à casa, vemo-nos amanhã na escola.
− Você está aéreo Binga, amanhã é sábado. A não ser que pretendas estudar com as carteiras.
− Falou sarcástico Khadunga.
− Tens razão Khadunga, só ele, as carteiras e as paredes.
Rimo-nos todos e foi com um sorriso refulgindo no rosto que em resposta Binga proferiu as
peremptórias palavras: − aié? Está bem, vou vos acertar!
Fizemos pouca caminhada, passos suficientes para que chegássemos ao entroncamento que dá
acesso à casa de Khadunga, em poucas palavras despedimo-nos e como habitual prossegui
sozinho a jornada até à casa.

19
20
Capítulo II

A ira da frescurinha

21
Sabe filho, na guerra o que mais assusta não é a grandeza, é o total desconhecimento. Digo-te
que o que mais assusta o inimigo não é a força do seu oponente, mas a coragem! Porque a força
é apenas uma exibição mensurável pelos sentidos, mas a coragem, a coragem não se pode
medir, é isso que mais assusta na guerra: não conhecer o tamanho do seu inimigo. Pois quando
não se conhece o tamanho do inimigo produzem-se dentro de nós infinitas imaginações e nesse
infindável e dispendioso probabilizar, já a nós mesmos nos vencemos porque damos espaço ao
nascimento de carrascas dúvidas, e a dúvida meu neto, é por si só a porta da morte. O que estou
lhe dizendo é que na guerra o mais assustador não é saber que o inimigo é muito forte, é não
saber como é o inimigo.

(Fala do avô Nkuma)






22
 Nkuloooo!!!
 Vovóo!
 Anta cá rápito!
 Estou despindo-me vovó, já vou!
 Yuéhh anta cá acora roupa fais tirar tepois.
Rapidamente dirigi-me à sala de estar para saber que assuntos pediam-me tais prioridades.
 Fecha essa notícia na telefissão!

“O Instituto Nacional de Meteorologia (INAM) alerta as províncias do


centro do país com enfoque para a província de Sofala, sobre a formação
de um ciclone chamado Idai a leste da costa moçambicana com origem
numa depressão tropical em 4 de março do ano em curso que atingirá o
sul do país no dia 15 do mês corrente. O INAM exorta ainda a tomada de
medidas cautelares como o abandono de zonas susceptíveis a
inundações.”

Ficamos todos estupefactos pela efeméride que nos invadia as portas. No dia seguinte a notícia
tornou-se febre nas artérias, mercado, escolas, hospitais e transportes públicos da cidade,
inclusive nas redes sociais, não havia outro assunto digno de atenção senão a chegada de “um tal
de Idai”. Conforme habitual retomei as actividades quotidianas, a caminho da escola ia
emprestando ouvidos a conversas alheias, o que sucedia-se é que nessas conversas estava patente
a descrença pelo anunciado visitante, tratava-se de um comunicado dramático por parte das
entidades. O mais provável e que certamente seria infalível era a ocorrência de uma leve
precipitação atmosférica acompanhada de ventos miúdos. Na rua encontrei Binga e Khadunga,
saudamo-nos e enquanto caminhávamos desenrolamos conversa:
Vocês viram o noticiário ontem?Indaguei.
Claro meu e mesmo quem não viu ouviu, está se falando por todos os cantos.Deu corda Binga.
 Mas vocês acreditam mesmo nisso? Ficamos espantados pela pergunta do Khadunga.
 Como assim meu? E você não acredita?
 Bom, não foi necessariamente o que quis dizer Nkulo, apenas acontece que aqui a
meteorologia às vezes falha por isso que se diz previsão mentireológica.
Rimo-nos a grande, Khadunga sempre levou geito para cómicos improvisos. A conversa ia
crescendo à medida em que o caminho perdia distância, a chuva não parava de cair tão suave e
tão miúda, mas as ruas estão todas ensopadas dessa chuva que há duas semanas cai tão
inocentemente destruidora, já estávamos à porta da escola e porque a formatura para entoar o
Hino Nacional é feita em espaço descoberto no pátio da escola, já há duas semanas que o Hino
não é entoando devido a incessante chuva, portanto fizemo-nos diretamente à sala de aulas e
após termos sido censurados na aula passada, dessa vez fizemos questão de chegar à tempo.
 Imagino que tenham todos acompanhado o noticiário, pois não?
 Pois sim, acompanhamos senhora Professora.  Respondeu a colega Mualindiwe
 Então é bom que a partir de hoje comecemos a nos preparar e falemos com os papás lá em
casa para fazer o mesmo.
 Mas prepararmo-nos como professora?  Nkapachúzua indagou
 Reforçando as nossas casas principalmente para os que vivem em casas de construção
precária, falo das casas feitas de barro, caniço, estacas, coberturas de ramos de coqueiro por aí

23
em diante, afastando-nos das zonas de risco, isto é, sair daquelas zonas baixas, zonas perto do
rio, da praia entre várias outras medidas que são extremamente importantes nesses momentos.
Assim que a professora cessou fala o colega Nkapachúzua lançou-se a rizadas, estávamos todos
estupefactos ansiando saber o porquê das gargalhadas quando a professora indagou:
 O que está rindo Nkapachúzua?
 Não me leva a mal professora Munandi, é que o colega Panguanine vive numa palhota à beira
do rio.
Toda a turma ria-se quando Nkapachúzua regressou titubeante, engasgando na própria risada: 
o vento será tão forte que vai levar toda palhota até a roupa dele e como dorme feito pedra só
vai acordar já sem roupa ao sentir um frio na bunda. A professora ainda tentou conter-se e
resistir as risadas que domavam a sala inteira, mas essa resistência fora efémera, entregou-se as
risadas e por fim recompôs a postura e retorquiu imperativa:
 chega! Acabaram-se as brincadeiras. Inspirou e declarou:  Panguanine você sabe como são
esses teus colegas brincalhões, não leve à peito querido. Sentou-se na sua secretária e ordenou:
 Nkapachúzua já que estás muito disposto hoje, faz favor de dispender essa tua energia indo
pedir apagador na sala ao lado, apagar o quadro, devolver e no regresso apresentar o
TPC. Nkapachúzua nunca fazia os TPCs (Trabalhos Para Casa) e dessa vez não fugia a tradição,
mas pela primeira vez não tivemos que aturar os seus pacóvios subterfúgios, após limpar o
quadro não regressou mais à aula. Bom, com ou sem ele as aulas foram decorrendo conforme
habitual até a hora em que a pedra incomati (nome usado na zona sul do país para denominar
uma espécie de pedras encontradas nos rios de água doce) foi reiteradas vezes de encontro ao
pêndulo de linha férrea pendurado ao grande canhueiro para anunciar o derradeiro toque, pedra
beijando ferro e foi nesse efémero namorisco que declarava-se findo mais um dia letivo cheio de
emoções como sempre sucedia. Enquanto saíamos aproximei-me da Xonguile para puxar
conversa, mas para o meu desgosto ela não me deu corda, antes arredava-se de mim e mantinha-
se impassível ante a minha saudação como se a minha voz a trespassasse inaudível e tendo
recolhido os seus pertences esvaiu-se fugidia da sala diretamente para o seu carrinho escolar,
mantive-me inelutável ante àquela rejeição, fiquei absorto como se universo inteiro tivesse
entrado em pausa.
Os dias foram passando despercebidos como o esvair de nuvem pelo firmamento e o tal de
“Ciclone Idai” era cada vez mais anunciado pelos canais informativos.

24
Quatro dias depois

11 de Março de 2019

O alerta vermelho

A depressão fora atualizada para Tempestade Tropical Moderada Idai no dia 10 de março
de 2020 após o seu ressurgimento no canal de Moçambique no dia anterior, 9 de
março. Verificou-se então um crescimento rápido do sistema que atingiu a intensidade eminente
como um intenso ciclone tropical com ventos até 175 km/h na data em epígrafe. Por essas e
outras razões tal como o efeito nefasto da chuva que há dias caia somando mortes e desalojando
inúmeras pessoas com incidência em algumas vilas nas províncias de Tete e Zambézia, na noite
da data supracitada, segunda-feira, O Conselho Técnico de Gestão de Calamidades decretou o
alerta vermelho para a zona centro do país.

25
Três dias depois

14 de Março de 2019

O dia da ventania

Na data em epígrafe o ciclone Idai atingia o apogeu da sua intensidade com ventos máximos
sustentados de 195km/h e uma pressão central mínima de 940 hPa (27,76 inHg). No entanto, o
ciclone foi amainando a medida em que se ia aproximando da costa, devido a condições cada
vez mais desfavoráveis a sua ocorrência.

26
27
 Nkulo... Nkulooo!
 Humm...!
 Humm sou humm eu? Acorta rápito!
 Chonguile... ah Xonguile!
 Quem? Yuehh ta falar quê focê?? Acortaaa! Eu estou ir na machampa com fofó Nkuma e tona
Mutanyantsilo, fica a cuitar ta cassa hoche num tem ir na escola estão falar na telefissão hoche
é tia te mwinta fentania.
Aos delírios rabiscava as primeiras palavras embevecidas no sono, a avó acordara-me quando
sonhava ainda com a mulher que me visitava sempre os sonhos, sucedia-se desta vez que a avó
chegara mais cedo, antes da Xonguile despegar do seu habitual turno. Despertei assustado,
desconfiado das minhas prévias palavras, outrora teria eu dito "Xonguile" sob efeitos do sono
para a avó? Sacudi a cabeça em negação a possibilidade de tal ocorrência, levantei-me da cama e
arrumei o quarto, saí a limpar a àgua da chuva que chapingava (pingava das chapas) conforme
tornou-se a rotineira atividade matinal, só exausto é que senti saudades do sol e repousando sobre
o húmido tronco de canhueiro que serve de bancada no quintal, levantei os olhos a perscrutar o
extenso firmamento, foi então que dei conta que há duas semanas o céu estava nublado, o dia
estava cinzento porque o sol resolveu camuflar-se em nuvens, tirar um tempo de folga ou quem
sabe desfilar seus encantos em outras geografias. A verdade é que essa chuva já irritava até a
náusea pois não trazia mais bem-feitorias senão sobremaneira maleficências para os pescadores,
camponeses, vendedores (em principal os ambulantes) e em linhas gerais para todos nós.
 Nkulo, tudo bem meu filho?
 Bom dia tia Kudoca, bem não sei você?
 Estou bem filho, vovó está?
 Está! Ehh... Foi então que sóbrio recordei que não foi um devaneio do sonho, a avó foi ao
quarto para despertar-me e avisar que ia a machamba com o avô Nkuma e a vizinha
Mutanyandzilo. Absorto, esvaía-me em pensamentos quando de rompante a voz da dona Kudoka
devolveu-me a terra:  está ou não?
 Não não tia Kudoka, saiu às 4 horas para machamba com vovó e a vizinha Mutanyandzilo.
 Ham... Eh vovó ainda tem aquela machamba?
 Sim! Teria ido pra onde?
 Oh é que outras foram levadas com Município, ela tem muita sorte é muito bom assim. Está
bem, vais mandar cumprimentos.
 Está bem tia vou mandar, obrigado!
 Dizer vovó quando me aprecisar estou lá no mercado.
 Está bem, mas tia Kudoka não assistiu telejornal a dizerem que hoje haverá tempestade?
 Ahhh.... Começou por rir-se, detrás retornou a fala: são mentiras isso, chuva que estão falar se
queria chover teria chovido há mwinto tempo, e concluiu: só querem nos assustar com essa
frescurinha esses!
A dona Kudoka é gente boa, senhora muito social e trabalhadora desde que o marido partira
deste mundo deixando-a apenas com uma herança de sete filhos ela teve que trabalhar
arduamente para abastecer a mesa, mitigar as necessidades básicas da casa e principalmente
educacionais, todas as manhãs passava pela rua de casa em direcção ao mercado para o exercício
dos seus habituais ofícios de vendedora, eu lamentava apenas aquela subestimação do alerta de
tempestade emitido pelas autoridades. Espreitei a rua para espairecer a mente fitando o voo dos
pássaros e puxar um ar fresco. Estava estupefacto, não pelo voo dos pássaros como almejei, mas

28
pela massiva movimentação de pessoas. Ninguém dava a mínima para o alerta, as pessoas
levavam a rotina tranquila e habitual: vendendo, comprando e passeando desnecessariamente.
Retornei ao quintal para concluir os meus afazeres caseiros e aprontar o pequeno almoço para os
meus avôs.

11:00 horas da manhã (horário nacional):

Os meus avôs regressavam da machamba, fui ao encontro deles no quintal e ajudei-os a


descarregar a colheita em sacos de amendoim, maçaroca e feijão nhemba (feijão da espécie
Vigna unguiculata também conhecido por feijão-de-corda, feijão-caupi, feijão-miúdo, feijão-
fradinho, etc da família das leguminosas, subfamília papilionoideae), sentamos para tomar o
pequeno almoço e detrás surgiram Khadunga e Binga:  dacence!
 Sim!  Respondeu o avô Nkuma.
 Bom dia, vovó Nkuma!
 Oh! Meus netos, como estão?
 Estamos bem graças a Deus vovó Nkuma, o Nkulo está?
 Graças a Deus também estou bem. Está sim, aguardem vou já chamá-lo.
O avô entrou a participar-me a presença deles, saí para atendê-los espaventado, tínhamos claras
orientações de evitar circulações pelas artérias da cidade mantendo-nos em casa para uma melhor
segurança, e eis que como uma miragem vislumbrava Binga e Khadunga assentados de uniforme
sobre a bancada do quintal.
 Eh, o que se passa manos?
 Como assim o que se passa mano? Não podemos visitar-te?  Inquiriu Khadunga.
 Não é por aí manos, mas é que… hoje manos? Hoje? E porquê estão uniformizados?
 O que tem hoje Nkulo? Hoh está bem! Tu também estás assustado com essa história? Relaxa
mano não há nada hoje olha só para o céu se fosse para haver ciclone teria començado há muito
tempo, isso é só uma frescurinha no máximo hoje só irá chuviscar e soprar pouco e nada mais
que isso.  Filosofou Binga
 Començado???  Entreolhamo-nos eu e o Khadunga e lançamo-nos à risadas.
 Estás tão metido em profeta que atropelas até o português mano, isso tudo é só para me
convencer a ir a escola? Mas bem bem digam-me lá é para irmos fazer o quê porque o senhor
diretor disse que não teríamos aulas.
 Nkulo deixa de blá blá blás veste e vamos espreitar, se não estiver ninguém também teremos
passeado um pouco, estás a parecer uma menina mano. Ehh!  Concluiu Binga.
Fitamo-nos por cerca de cinco segundos em silêncio, ao fim ao cabo entrei e aprontei-me.
 Vai pra onde, Nkulo?  Indagou o avô Nkuma
 Vovó vou à escola!
 Mas filho tu não disseste que foram dispensados das aulas devido a previsão de mau tempo?
 Sim… mas…eh, esse mau tempo parece que será de noite, vamos só confirmar!
 Está bem, mas tem cuidado meu filho, assim que confirmarem que não se está a estudar
regressem de imediato à casa.
 Sim, vovó!
Despedimo-nos, peguei no guarda-chuva e parti com os meus amigos, estava tomado por um
fardo de consciência como se uma voz maviosa me surdinasse: “não vai, não vai!” enfim, segui
a senda e ao fim ao cabo dissolvi-me em risadas no verdejante das frondosas árvores de

29
Malambe (fruto do embondeiro), as ruas eram uma verdadeira discrepância do deserto que delas
esperava. As pessoas riam-se e zombavam pela rua inteira fazendo vídeos e selfies para as redes
sociais em zombaria ao estado de tempo, parei ainda a fitar um grupo de jovens em que o que
filmava rodopiava em torno de si exibindo a calmaria do tempo ao seu redor enquanto os demais
gritavam: “olhem só o ciclone Idai, ciclone Idaaaai. Estamos a morrer aqui na Beira com
ciclone Idai.” Fez pausa em gargalhadas e prontamente retomou: “ohhh ciclone Idai está nos
carregar!”, peões houve também que passando pela rua riam-se dizendo: “Ciclone Idai que
estavamos ser falado todos dia é essa frescurinha aqui?”, trespassou-me ainda no âmago uma
pungente agonia em vivenciar aquela irreverente afronta as desconhecidas forças da natureza,
não obstante, acabei por me deixar domar pela corrente de risadas que tomava as ruas ao ver
Binga e Khadunga rirem a grande, talvez devesse mesmo acreditar que se tratasse de um engano,
um exagero na informação por parte das autoridades. Mas a cena foi interrompida pela Ntsite,
uma velha feiticeira do bairro que granjeou a atenção de todos quando gritou num rompante:
“Vão para a casa, vão para a casaaa… eu vi, eu vii!” A princípio pareceu-nos engraçado, detrás
quase que a levávamos a sério, mas por fim acreditamos que estivesse tresloucada quando deu
provimento: “eu vi a grande cobra mãe, ela está vindo, ela está vindooo… Ninguém a verá
porque ela se esconde em grandes tempestades. Vão para casaaa!” Para além da feitiçaria Ntsite
prestava serviços particulares de adivinha, antevendo acontecimentos na vida de seus clientes,
mas nunca antes saíra a bramir semi-nua pelas ruas, quando a velha retorquiu novamente
entornava rios de lágrimas aos gritos como se tivesse sede de ser ouvida: “por favor, por favor
filhos! Voltem para casa, eu vi o grande dragão dos montes saindo das águas. Quem tem
ouvidos para ouvir oiça-me por favor, eu não estou maluca, eu não estou maluca. Vem aí a
morte, o sofrimento, está vindo das águas com a acumulada ira dos tempos. Haverá morte,
haverá sangueeeee… por favor, vão para casa!” as pessoas entreolhavam-se e questionavam-se
“do que ela está falando? Que conversa é essa de grande cobra mãe, dragrão dos montes?” E
sem mais, cloncluiam entre eles: “Ntsite está desnorteada, ela endoideceu!” isso estava
clarividente, antes de se desvanecer dos nossos olhos, a feiticeira voltou os olhos para baixo, pôs-
se de joelhos e demorou-se a rabiscrever (escrever rabíscos) o chão, curioso eu acompanhava
cada movimento seu, o que será que ela escrevia? Ademais, sabia ela escrever? Após retirar-se
caminhei em direção ao chão onde ela estava.
 Nkulooo! Para onde vais?  Gritou Khadunga, não obstante mantive-me inelutável e quando
cheguei ao chão onde Ntsite se ajoelhara, eis o que estava rabiscrito: “Salve-se quem puder!”
Não tardou que Binga e Nkhulo seguissem-me e chegados ao local, depararam-se com as grafias
e Binga ainda tentou decifrar:
 Sal… saalve…
 Salve-se quem puder, Binga. “Salve-se quem puder!” é o que está escrito.  Poupei-o os
esforços.
Um mórbido silêncio nasceu no cruzado dos nossos frios olhares e após um prolongado
repousar de palavra, a fala renasceu rasgando o silêncio pela boca de Khadunga:  vamos
embora! Isto já não está a me agradar.
 A mim muito menos, e se Ntsite estiver certa?  Dei cobro
 Deixem disso manos, não me digam que cairam nessa história de serpente mãe, dragão dos
montes, grande tempestade blá blá blá…  Exibiu a sua abnegação Binga
 Olha Binga não que eu queira ser pessimista ou plantar medo, mas todos sabemos que Ntsite
nunca falhou nas suas visões.  Proferiu Khadunga

30
 E olha que isso é verdade Khadunga, todas as coisas que Ntsite profetizou até agora
aconteceram e você sabe muito bem disso Binga.  Dei suporte ao argumento.
 Bom, talvez vocês tenham razão manos, mas vamos mudar de assunto. Íamos a escola não é?
Então vamos!
Demos provimento ao itinerário e nas redondezas da escola a cena da zombaria reiterava-se, as
pessoas riam-se, faziam troça a meio aos chuviscos pelo caminho e diziam: “Ciclone Idai dele
está onde afinal? Tempestade dele é essa frescurinha aqui?” E quando a cena estava quase ao
desfecho, as vendedoras juntavam-se ao clube da alegria e houve dentre elas quem ainda ousou
proferir aos bramidos: “Cicloneee Itaaaiii estáas awonteee?? Nonge enstamos cum sautates
weh!” E todos riam em derredor. Compramos algumas bananas pela rua e chegados à escola
ratificou-se o que já era esperado: a escola estava deserta, salvo a presença de um pequeno grupo
de colegas que assentava-se no passeio. Ajuntamo-nos a eles, retiramos as bananas da pasta do
Binga e com eles comíamos enquanto conversávamos e para adocicar sobremaneira o ambiente
Nyandolo o anafado rapaz da escola retirou do seu bolso um baralho de cartaz e entre jogos,
risadas e conversas afora o tempo foi trespassando-nos naquele momento lúdico sem que
déssemos conta. De súbito exclamou Nyandolo:  eh, pessoal já são 16:00 horas!
 16:00 horas? Chegamos aqui às 13:00 horas passaram três horas de tempo sem nos
apercebermos?  Khadunga indagava estupefato.
Eis o que sucede na vida: na tristeza o tempo rasteja, na alegria o tempo voa. De súbito o
tempo começou a mudar, o céu enegreceu e no mesmo instante começou um forte temporal. Face
a voraz vicissitude climática saímos todos à correrias sem se quer despedirmo-nos, não houve
tempo nem hipóteses para tal ocorrência o vento era extremamente forte. Naquele instante
ficamos envoltos numa espessa nuvem de folhas, plásticos e papéis e nem sequer sabia para onde
corria. Corremos sem ver o caminho porque naquele momento vivíamos um dilema: se
abríssemos os olhos ficaríamos cegos e com os olhos cheios de ciscos e se continuássemos a
correr com os olhos cerrados corríamos o risco de rodopiar no mesmo espaço. Portanto, corri
cabisbaixo com os olhos semicerrados a fim de que pelo menos visse o chão que pisava. Ouvi
vozes gritando “socorro, socorro, socorrooo” chegavam-me como as vozes de Binga e
Khadunga, no entanto a ventania mantinha o seu vozeirão acima de qualquer som e com os olhos
entreabertos as imagens chegavam-me apenas como vultos pelo que árvores e pessoas eram-me
indistintas, mantive-me correndo a meio àquele temporal que flagelava-me o corpo e puxava-me
como se eu fosse vazio saco de arroz, num rompante percuti-me sobre um obstáculo que não
pude identificá-lo até que tacteando-o senti que era um robusto caule e abraçando-o ratificava-se
a hipótese: era uma árvore. Nesse encontrão esgravatei o chão com a boca, de súbito compus a
postura bípede e em passos estugados dei provimento ao cego atletismo, mas tendo percorrido
perto de vinte metros fui novamente de encontro a um obstáculo que pela sua forma rasa sem
delongada perscrutação apercebi-me no instante de que havia levado murro de um muro, ergui-
me exausto, vontade de chorar não me faltava ocorreu-me ainda manter-me tacitamente
estatelado, mas os flagelos propunham-me exatamente o contrário, portanto erigi-me e retomei
ao martírio, detrás desses acidentes foram incontáveis os tropeços dessa cega maratona, de
repente eu estava gritando muito alto e pedindo ajuda, mas ninguém me podia ajudar naquele
momento e isso estava clarividente no meu subconsciente mas ainda assim eu gritava e nem eu
sabia porquê, a verdade é que estava atordoado e aterrado e bramia ainda mais, à medida que
corria tombava sem nada poder enxergar e nada mais me espavoria que o grito das árvores que
em uníssono entoavam um hino nunca antes ouvido desde que me conhecia como ser vivente, era
como uma premonição voraz, ouvia-se naquele hino gritos, choros e lamentações dos mortos e as

31
frondosas árvores solavancavam até ao estremecer de terra porque as raízes dançavam por
debaixo da areia revolvendo camadas de terra. Tampei os ouvidos e continuei correndo e foi
como se tudo tivesse se tornado mais escuro do que antes, o coração batia estrondeante fora do
corpo até que consumados longos passos a tempestade mitigou e era possível enxergar. Olhei
para trás e vi o intróito do inferno, afinal o temporal não havia amainado a zona em que eu
acabara de entrar é que estava sendo menos fustigada, aos poucos fui me sentindo mais calmo a
medida em que me ia aproximando de casa via o bairro fustigado pelo vendaval vi chapas de
alumínio no chão amolgadas de tal maneira que pareciam papéis amassados pela mão do diabo,
folhas, plásticos, bacias e papéis sobrevoavam o céu sem luz e sem vida, algumas casas estavam
já sem tecto e foi então que me apercebi que o vendaval estava em movimento e já alí havia
marcado forte presença destruindo e devastando tudo, empurrei a porta de casa para entrar e
fechei-a rapidamente, não sabia se estava exausto ou aterrorizado mas a ofegante respiração
concluía ambas possibilidades daí caí de joelhos no chão de cimento e em seguida vencido pela
voraz cena outrora vivida deixei-me estendido de bruços, estava me rendendo.
 Nkulo, Nkulooo, meu filho!  Acorreu a socorrer-me a avó.
 Estávamos com o coração na mão meu filho, ficamos muito preocupados contigo e não
sabíamos se estavas bem ou em perigo. Oh filho, graças a Deus estás bem!  Manifestou a sua
profunda preocupação o avô enquanto envolvia-me num tão aconchegante abraço. Ajudaram a
erigir-me e trancaram a porta, quando a avó fitou-me a face e disse:  estás ferito meu filho está
te tescer sanque ta poca o que aconteceu? Estava tão espaventado quanto ela, não sabia que
sangrava e o meu avô disse:  onde magoaste-te filho? Abre a boca! Executei o movimento de
imediato e porque já a essa altura estávamos sem corrente eléctrica devido a acção do vendaval,
o avô Nkuma visitou-me a boca com a lanterna do telemóvel a perscrutar a nascente daquele
sangue por cerca de dois minutos, peremptório inchou o peito e apresentou os resultados com
ares de estomatologista:  já descobri, vem da gengiva! Onde foi que se aleijou filho?
Fiquei absorto, procurava na minha mente onde teria me ferido, mas em simultâneo não queria
reviver aqueles momentos tenebrosos nem em pensamentos, mas precisava saber onde me teria
ferido. Onde?
 Filho está me ouvindo? Nkulo?
 Sim sim avô estou lhe ouvindo, estou apenas tentando lembrar onde me aleijei. Novamente
absorto, regressei às visões fantasmagóricas da cena e foi quando se me vieram as memórias: 
já sei avô, já sei! Quando o vento começou saímos da escola a correr e no mesmo instante fomos
cobertos por uma nuvem de poeira muito escura, corria sem nada ver e bati forte e feio contra
uma árvore e levantei com a boca cheia de areia, mas o incrível é que não senti nenhuma dor
naquele momento.
 Opah, tem razão meu neto as vezes a aflição e o medo camuflam a dor. Bochechar com água e
limão e depois venha jantar rápido antes que o vento piore. E passar a escovar bem essa boca aí
hiii!
Versei o ofício e em seguida pusemo-nos à mesa para jantar à luz de velas em detrimento do
apagão que vivíamos. Comíamos rápido em conversa delgada sufocada pelo desconforto da
tempestade, já eram perto das 19 horas quando o vendaval voltou a marcar presença, jantávamos
voltando os olhos para cima em contemplação das chapas que roçadas pelos fortes braços do
vento, começavam a dançar na excitação do seu assombroso assobio, embora não houvesse entre
nós peito para pôr a conversa mesa acima, temíamos todos que elas não resistissem a pressão e se
esvoaçassem aos encantos do vento desabrigando-nos, ou melhor, destectando-nos (tirando-nos o
tecto). Posto fim ao jantar despedimo-nos e dirigimo-nos aos nossos leitos para repousar

32
enquanto o vento amainava, mas não houve naquela noite nem repouso nem pouso, já no quarto
o vento ressurgiu ainda mais forte e feio. As janelas que estavam fechadas abriram-se cedendo a
pressão do vento, a casa toda estremecia como se estivesse levando bofetadas por todos os
cantos, as chapas barulhavam como se fossem membros móveis da casa despregando-se
saltitantes para o alto e para baixo em reiterados e aterradores movimentos, corpos dançantes em
tresloucado baile. Levei algum tempo a enxugar o medo, mas ao fim ao cabo ergui-me
rapidamente a devolver a posição inicial das janelas, debalde, volvidos trinta minutos reabriram-
se a medida em que o vendaval ia ganhando mais força como se uma mão divina as tivesse
empurrado, aquele vai e vem era como se estivesse medindo forças com a furiosa natureza.
Debaldadamente peguei num pesado ferro e coloquei-o sobre a janela para gerar suporte, não
obstante, o vento engrandeceu-se com tal rapidez que em pobres minutos tornaram a abrir-se e
dessa vez o impacto da colisão quando foram de encontro à parede culminou em tão forte baque
que de súbito os meus avôs acorreram a socorrer-me, assustados demandavam saber o que se
havia sucedido? O que havia gerado tão forte baque? Mas não foi necessário intermediação, na
derrancada ossatura de janela aberta para dentro permitindo a derrapagem do vento no interior do
meu aposento e nos estilhaços de vidro que repousavam sobre o chão, estava toda a explicação
clara e evidente. Há única coisa que não estava nem clara nem evidente e que era acima de tudo
preocupante, era o meu paradeiro, onde estaria eu? Janela aberta e estilhaçada, vento forte, seria
isso uma tenebrosa pista de um triste acontecimento? Teria eu sido carregado a meio a
tempestade? Raptado pelos assombrosos espíritos que de noite vagueiam moribundos as sombras
do mundo? Sobre a cama nua e vazia aterravam em descontido ânimo os prantos da minha avó: 
Nkulooo! Nkuloooo! Lefaram o meu filho Nkuma. Mas para a sua felicidade erigi-me pois nada
disso havia sucedido, ocorreu pois foi que tendo se estilhaçado as janelas e no assombro
provocado pelo esvoaçar das cortinas de capulana face ao vento que acedia ao quarto em grande
pressão, peguei nas mantas e enfiei-me por debaixo da cama, não era medo era humildade, afinal
quem sou eu para fazer braço de ferro com a tempestade? Ainda tentamos fechar a ossatura de
janela que sobrava para em seguida continuar a tentar dormir, mas tal possibilidade não sucedeu,
a pressão do vento era tão forte dentro do quarto que os papéis, roupas e quase tudo que estava
dentro se esvoaçava e as cortinas de capulana sacudiam tanto que se pareciam ondas aladas,
panos copiando mar em incessante dança. Portanto, peguei nas mantas e recolhi-me para a sala
onde pernoitei e os meus avôs regressaram ao seu quarto, o vento ia crescendo provocando
sobremaneira trepidação nas chapas, as paredes, o chão, tudo sucumbia ante ao voraz temporal.
A falta de corrente eléctrica provocava uma escuridão imensa e a sua combinação com o forte
assoviar da ventania fazia-nos sentir como se estivéssemos sendo visitados pelo abismo, não
havia dúvidas: o diabo estava furioso, exibindo-nos as suas potências infernais e Deus, por
motivos desconhecidos havia permitido. Era como se estivessemos sendo punidos, ao invés de
deitar-me no sofá coloquei-me de joelhos a orar, pedia a Deus que nos perdoasse seja o que fosse
que teríamos feito que não fosse do seu agrado, pedia perdão pelas minhas ofensas, dos meus
avôs e dos beirenses e de toda a humanidade: perdoai-nos as nossas ofensas Pai e ensina-nos a
amar e perdoar aos outros. Eu sei que muito temos falhado para com o Senhor, mas peço-lhe do
fundo do meu coração: não permita que a casa caia, não nos deixe morrer Pai, pelo menos não
hoje, não assim. Mais uma vez peço-lhe meu Deus do céu: perdoai as nossas ofensas. Amém!
Nunca orei tanto para que uma noite passasse tão rápido e contrariamente, nunca uma noite se
demorara tanto no ventre do mundo quanto essa, quanto mais orava para que a tempestade
amainasse mais se ia engrandecendo.

33
15 de março de 2019

A ira da frescurinha

Na madrugada da data em epígrafe o ciclone Idai atracava perto da Beira, no distrito de


Dondo como um intenso ciclone tropical trazendo a bordo de si fortíssimos e destruidores ventos
e causando inundações em países vizinhos como são os casos de Madagascar, Malawi e
Zimbabwe aquém de Moçambique.

34
35
Durante a madrugada era como se um gigante asteróide invisível tivesse atingido a terra, um
forte estrondo fez-se sentir subitamente como se as árvores estivessem se desfazendo em mil
pedaços e o mundo estivesse desabando em abismos.
Num rompante começou a chover fortemente e a água chegava-nos como chuva sólida, caia-
nos como pedras gigantes, chovia sobre nós rochas ao invés de granizos e eu estava mais
duvidoso sobre a firmeza do tecto que começou a solavancar grandemente. De facto, naquele
mesmo instante metade da casa ficou sem tecto, num tão forte estrondo as chapas de ambos
quartos, meu, dos meus avôs e da cozinha levantaram voo. E eles saíram do quarto aos prantos
anunciando a miséria:  yohh yohhh ficamos sem tecto, as chapas foram, foram! Foi então que
me apercebi de que as chapas não haviam sido carregadas pelo vento elas haviam ido, sim, há
muito que estavam ali estateladas sem que ninguém as depositasse preocupação nem atenção,
ninguém as jogava olhar, elogio. Olhamos sempre para o corpo da casa, nunca para o tecto que
nos cobre até que ele se vá e naquele instante a vida se confirmava: nunca damos o devido valor
àqueles que tanto nos dão cobro, nos apoiam e nos protegem, até que maus dias venham e eles se
vão sem dizer adeus, só então percebemos o seu grande valor em nossas vidas e nesse momento,
já tarde, por mais profundo que choremos por eles não regressam jamais. Portanto, os meus avôs
ajuntaram-se a mim na sala, não era apenas esse pequeno espaço quadrado que dividíamos,
taquicárdicos compartilhávamos os mesmos batimentos, o mesmo medo e a mesma aflição. Ali
ficamos recolhidos e encolhidos, orando para que Deus nos perdoasse e acabasse com o martírio,
enquanto isso sentíamos que o mundo inteiro desabava sobre nós, a verdade é que somos
pecadores por ignorância e por mais pecadores que sejamos sabemos que Deus é a única verdade
e está acima de tudo e de todos, por isso pedíamos em surdina que nos concedesse a prerrogativa
de ver o amanhecer de 15 de Março.

36
37
15 de Março de 2019
8h:30m (horário nacional)

Eram 8 horas e 30 minutos da manhã quando ouvimos prantos vindo da rua, espaventados
saímos para saber o que se estava passando, os gritos vinham do lado da frente e sobressaíam dos
escombros, quem era? Era a senhora Mutanyandzilo, a casa toda desabara sobre eles na noite
passada, rapidamente acorremos a socorrê-la retirando à mil cuidados bloco por bloco até
chegarmos a ela com os pés gravemente feridos pelas paredes que caíram sobre ela, por isso era
difícil contemplar um ser vivente naquelas condições extremamente dolorosas e penosas. A
pobre dona chorava profunda e intensamente até a divisão da alma, mas não estava chorando
pela dor que sentia, muito pelo contrário, a dor naquele momento era a única prova de vida,
afinal, só aos viventes se concedeu a primazia da dor. Dona Mutanyandzilo chorava por aquilo
que deixara de sentir: a vida e a alma. Se chorava por dor de algo não era do corpo era do
coração, chorava a dor da viuvez e não queria ser consolada e nem tocada por mãos algumas,
perdera toda a sua família naquela trágica noite e as únicas mãos que queria sentir eram as dos
seus três filhos: Ntsingano, Nkondo e Kutambura e o único colo que tanto almejava afago era o
do senhor Kakungabwedze, seu marido, seu eterno amor, esses infelizmente estavam todos
soterrados. Depois de muito labutarmos para retirarmos os malogrados daquele lamaçal, parei a
perscrutar o irreconhecível ambiente, estava tudo destruído e devastado, sufocava-me a alma
contemplar aquela despaisagem em que devorada pela natureza, Beira deixou-se ficar em
ossatura, pouca, morta e ausente. Nada sobrara dela senão lembranças de um tempo que foi e já
não é mais, em pequenos grupos calcorreávamos a moribunda e lodosa rua em busca de
sobreviventes, em pequenas comissões de apoio criadas em recíproca aquiescência entre os
poucos moradores que saíram ilesos, acorremos a socorrer várias famílias que foram gravemente
afectadas, dentre elas estava a família Kudoka que dispersa estava pendurada em árvores e
arbustos de um matagal nas traseiras da casa, nenhum deles falava, estavam todos traumatizados
ante ao martírio outrora vivido, não era para menos, aviuvada pela vida Kudoka era mãe e pai de
sete filhos e desde esse tempo dedicara sempre suas forças a família e agora com quatro deles
mortos na mesma noite, ela estava quase só. Primeiro foi punida pelo destino, agora era punida
pela vida. Foram todos os quatro arrastados pela torrente das águas, dois dos quatro malogrados
foram achados no mato filtrados entre deitados capinzais, tão envoltos em lama como que corpos
de chocolate, perdoem-me os pensamentos! Numa longuíssima noite de terror nós cheiramos a
morte, para eles a situação era inversa, a morte cheirara-lhes as almas e levara consigo as que lhe
conveio. Chegavam-nos notícias de que os rios estavam transbordando e alguns bairros a
estavam inundados, por essa causa as pessoas estavam emigrando para pontos menos devastados
demandando por abrigo seguro. Subi sobre um montículo de pedras: réstias de casas, a
contemplar o pobrezonte, Beira estava como nunca esteve: reduzida a escombros e águas.

38
39
Capítulo III

Parto da terra:
O nascimento das águas

40
Talvez um dia ainda descobriremos que a vida não é tão curta como temos por hábito dizer,
ainda que eu morresse neste exato instante tão reduzido de idade, ela não teria sido curta para
mim porque fui até na infelicidade, feliz. O nosso maior problema como pessoas é passarmos a
vida a adiar a felicidade com falsas promessas de que amanhã quando eu não tiver aflições,
quando não tiver mais preocupações e quando tudo estiver bem então serei feliz. E é exatamente
nessa utopia, quimera de felicidade, que vive o engano da vida.
Nunca existirá um tempo perfeito e livre de aflições, antes mesmo do sol nascer já existem
aflições reservadas para o dia de amanhã, portanto, seja feliz hoje enquanto o tempo ainda te
permite ser. Afinal de contas a vida é feita de desafios, nós somos feitos de escolhas. Existe
apenas um lugar no mundo em que não teremos aflições, não teremos dívidas à pagar e
quaisquer tipos de preocupações, enfim, esse é o maior problema pois nesse lugar não teremos
nada e ninguém quer estar (destino inelutável), pois é onde o chão que tanto pisamos vira nosso
tecto.

(Fala do Filho das Águas)

Existe um valor que transcende a tudo até a vida: é o amor.

(Fala do avô Nkuma)

41
42
Por que a vida tem que ser sempre assim: tão imprevisível e dorida? Vivemos sempre tão
ausentes assentados no cimo do nosso próprio ego sem enxergarmos os outros, esses que sempre
nos deram suporte e estão sempre do nosso lado até que eles se vão e tudo que nos deixam são
memórias, memórias essas que produzem em nós inconsoláveis sentimentos por aquilo que
foram para nós, e a dor da nossa alma reside no facto de que no devido ensejo não soubemos ser
para eles o mínimo que se pode ser para quem nos ama. Olho para as pessoas em derredor de
mim, todo mundo chora seus entes queridos e conhecidos e percebo que todo mundo é especial,
todo mundo é único e maravilhoso, todo mundo é amável, gente boa e inolvidável, só precisa
morrer, os mortos não têm defeitos. Penoso é vivermos assim a vida e pensarmos o mundo dessa
forma, devemos valorizar e expressar os nossos sentimentos pelas pessoas que tanto amamos e
admiramos enquanto ainda as temos porque os mortos não reagem e as campas já ouviram mais
declarações que os vivos.
A operação de busca por sobreviventes continuou, levantou-se blocos, chapas, barrotes, ferros,
réstias de mobília arrastadas pela correnteza das águas e galhos em demanda por sinais
vitais. Nessa labuta não havia discriminação de idades nem género, labutávamos em sinergia até
que retirando chapas amarrotadas deparei-me com uma aterrorrível cena e de súbito gritei e caí
de trás incapaz de suportar a visão, não poderia ser possível. Todos acorreram-me: o que é
Nkulo? Todos querem saber mas a resposta para essa questão não exigia nem intérpretes nem
intermediários, a resposta estava estampada nos olhos de todos nós, uma menina cuja idade se
estima em 16 anos estava por debaixo das chapas prendendo nos braços um bebê de poucos
meses de vida, todos cobertos de lodo, nunca antes doeu-me tanto enxergar. À miúda se emitira
no instante a confirmação do óbito, mas o bebê embora taciturno sucediam-lhe ainda batimentos
cardíacos. Tempo depois vieram os moradores da redondeza a ratificar: a menina era conhecida e
vivia a cerca de meio quilômetro daquele quarteirão. Como poderia o seu corpo achar-se alí?
Uma senhora de nome Kandzera que identificou-se como amiga da família da malograda entre
babas, prantos e lágrimas, balbuciante acrescentou ainda que a malograda era em vida
vendedeira de carvão no mercado e o bebê que prendia nas mãos não era como se pensava seu
provável irmão mais novo, o que ela prendia nos braços de corpo e alma era afinal seu
certificado de mãe, Nyandolo, conforme se veio a confirmar o seu nome, tinha na verdade 14
anos de idade, tão cedo se fizera mãe tão cedo se resignara dessa divina profissão. Quando já seu
corpo se enfraquecera e se cansara de segurar seu filho, Nyandolo abraçou-o com a alma. O
processo de busca e salvamento continuou mas eu me recolhi na varanda de casa, para bem dizer
já sem grande parte do tecto a casa toda deixara-se ficar em varandas, e eu alí me recolhi porque
já não tinha mais memória para tanta tristeza. Os corpos desenterrados dos lodos eram
amontoados para a posterior serem enterrados, o que não cheguei a entender por isso indaguei ao
meu avô:  avô, por que desenterramos os corpos para os tornarmos a enterrar se já estão
mortos e o chão é o mesmo? O avô ainda parou a organizar os dizeres e arregalou os olhos,
parecia ter sido pego de surpresa, tão espaventado como quem vê baleia em água doce mas por
fim rematou:  o que conclui a morte é a despedida meu neto, os mortos mal chorados não
sabem morrer por completo, carecem todos de uma última lágrima, um último adeus. Engoliu
alguns segundos a encher os pulmões de ar para a posterior vazá-los com toda calma do mundo
como se dono do tempo fosse, do seu tempo, e ao fim ao cabo concluiu:  o selo da morte é a
despedida dos vivos. Erigiu os olhos ao céu e voltando-se para mim rematou:  o que mais
importa na vida nem sempre são os resultados, podemos não acordar essa gente e esse acto
pode até parecer inútil mas nada na vida é inútil se é feito com amor, o mais simples gesto
torna-se a maior das acções se nela vive o amor. Estou repetindo amor, amor porque tudo na

43
vida é sobre amor meu neto, as pessoas mais felizes do mundo não são as que detêm todas as
posses, mas as que descobrem que para cada acção na vida é preciso deitar uma pequena
porção de amor, porque se existe um valor que transcende a tudo até a vida é o amor!
Após ouvir essas palavras fiquei absorto procurando encontrar o seu verdadeiro sentido nas
imaginações. Deixamo-nos ambos assim: calados à beira do tempo até que a avó Kumamanda
intermitou-se no nosso silêncio:  preparei mata-picho, famos comer!  Só então me recordei de
que sente-se fome, mas não a estava sentir e o avô Nkuma comungava do mesmo insentimento:
 Muito obrigado vovó, mas eu estou sem fome podem ir comendo.  Respondeu o avô!
 Está pem, famos Nkulo!  Chamou-me a avó, mas a minha alma estava tão embevecida em
tristezas que nada mais conseguia sentir senão pura nostalgia por tudo que estava acontecendo
em derredor de nós.
 Não estou com fome vovó, muito obrigado!  Foi o que arquitetei dizer em meus pensamentos
mas não cheguei a proferir palavra que fosse, ainda abri a boca mas tudo que balbuciei num
solavanco labial foram apenas silêncios, boca parindo ares. Não fui capaz de palavra, mas a avó
foi capaz interpretar o meu rabisco de fala, só a velhice concede a benção de perceber aquilo que
não se diz e dizer aquilo que não se percebe:  eu sei que focês estão mwinto tristes, mas
precissam se alimentar é tifícil para totos nós, mas temos que fasser um pouco te esforço. A
áqua ainta está fir, isto ainta está a começar é tocumentário isto.  Entreolhamo-nos sob o efeito
dessas palavras enquanto dirigíamo-nos à sala para tomar o pequeno-almoço, estaria este
martírio começando?

Meio-dia (horário nacional)

“ Reunião, reuniãaaoo, reuniãaaaooooo! ” Alguém gritava reunião do lado da rua, mas quem
poderia estar invocando reuniões neste nostálgico estado de exéquias? E com que intenções?
Mas mais do que intenções que alma ainda sobrara nesse fulano para gritar por reuniões? Saímos
para ver, era o senhor Paduze Tchérua, chefe do quarteirão, convocava-nos a uma pequena
reunião para expressar palavras de conforto e sensibilizar-nos a mútua solidariedade nesse
momento nostálgico:  não vou dizer boa tarde porque de boa esta tarde nada tem é um dia
difícil para todos nós, já antes passamos sim por momentos difíceis mas nunca nada como isto.
Muita gente morreu, perdeu seus parentes próximos e muitos bens materiais na sequência dessa
catástrofe, há quem perdeu todos os seus filhos amados, pais, irmãos e muito mais. Estamos
agora parados debaixo da chuva não por que queremos, mas porque já não nos resta mais tecto
para esconder. Portanto, quero pedir que façamos todos uma breve oração a Deus por nos ter
protegido até agora. Todos anuímos o seu desígnio e oramos, afinal foi por esse índole religioso
que o sr. Paduze foi escolhido à dedo para liderar o quarteirão, pois aquém de chefe ele é líder
religioso. No fim da oração, o sr. Tchérua que falava em Cisena erigiu a sua voz ao Alto em
firme oração:  Deus todo poderoso, estamos muito tristes pelos familiares, casas, carros, gado
e muito mais que perdemos sendo que muitas outras pessoas ficaram gravemente feridas na
sequência desta eventualidade, por isso peço meu Pai que o Senhor receba os nossos entes
queridos para que em paz descancem, mas também queremos agradecer por nos ter poupado a
vida porque se não fosse pela tua misericórdia não estaríamos aqui. Que o senhor possa nos
proteger pois tempos difíceis ainda estão por vir, muitos rios estão transbordando, a chuva
continua caindo com forte intensidade e mais pessoas estão morrendo afogadas. Enquanto o
chefe do quarteirão orava senti as águas que já estavam a medida dos joelhos escalarem-me o
corpo, atónito entreabri os olhos a contemplar os lados, foi então que me apercebi que não era

44
água eram lágrimas, dores liquefeitas dos que ali estavam reunidos, e não é o corpo que me
subiam, essas dores escalavam-me a alma. Quase todos choravam profundamente, até a minha
avó. Passados poucos segundos devolvi a atenção às palavras do orador: olhe para nós Senhor
Todo Poderoso e não nos deixe sofrer, dênos o que comer e beber e bem como sítios para
dormir. Amém! E tendo terminado a sua oração deu provimento ao seu discurso:  meus irmãos,
amados em Cristo. Vamos todos nos ajudar neste momento difícil, deixemos as nossas diferenças
carnais para trás, não espere que Deus te ajude se você não é capaz de ajudar o seu próximo, o
amor só pode ser recebido por quem é capaz de expressá-lo aos outros. Sejamos unidos em tudo
irmãos porque apenas juntos venceremos este martírio, quem tiver pouco que comer e/ou beber,
quem ainda tiver uma manta compartilha com o seu próximo, quem ainda tiver um tecto abrigue
os seus irmãos mais desfavorecidos, vamos juntos reconstruir os tectos para poder dormir até
que a chuva passe, sem descriminação, nesse acto de mútua ajuda mais do que o tecto estaremos
reconstruindo a humanidade que há muito fomos perdendo dentro de nós, se a tua casa foi
levada pelas águas mas a do seu vizinho ficou apenas sem tecto, ajude-o a colocar o tecto e
juntos escondam da chuva. Muitas pessoas estão saindo de zonas que já tornaram-se lagoas
neste exato momento para refugiar-se em pontos seguros, se a água está agora ao nível do
joelho vamos agradecer a Deus porque zonas há, principalmente as próximos dos rios, em que o
nível das águas está engolindo casas e pessoas, para bem dizer há bairros que já não existem e
pessoas estão esperando apoio em cima das árvores. Deus permite que desastres aconteçam em
nossas vidas para que deixemos o orgulho e as diferenças de lado e aprendamos a ser unidos,
amarmo-nos uns aos outros e resgatarmos os valores morais que nos tornam pessoas, afinal,
viver é fácil, difícil mesmo é aprender a conviver. Muito obrigado pela vossa atenção!
Depois dessas palavras dividimo-nos em pequenos grupos de abrigo, incluindo pessoas
desconhecidas que pela manhã chegaram ao nosso bairro emigrando de outros bairros, mais do
que viver juntos tínhamos a missão de aprender a conviver, esses grupos dividiram-se para
abrigarem casas menos afetadas pelo ciclone, dentre elas graças a Deus estava a minha que
passaria a abrigar sete pessoas. Constituida a nova família passamos para a divisão de tarefas em
sexo e idade. Os homens, que estavam em reduzido número, tinham a tarefa de procurar entre os
lodos e escombros chapas para repor o tecto antes do cair da noite, para as mulheres e crianças
estava incumbida a tarefa de granjear alimentos para se preparar refeição. Juntos saímos pela
chuva a procurar chapas nas lodosas ruas, ruas essas que oferecias mais perigo que qualquer
outra coisa, sucedeu-se que alguns locais pelo excesso das águas tornaram-se movediços e por
baixo das turvas águas escondiam até enormes orifícios telúricos. Passamos horas procurando
pelas chapas mas quase não as achávamos senão um exíguo número de duas diformes chapas
amarrotadas pela ira da tempestade, por isso já exaustos regressamos a casa alimentados pela
crença de que a chuva pararia, a terra enxugaria as águas e amanhã seria um dia melhor, pura
quimera, era como se diabo estivesse ouvindo os nossos pensamentos, no mesmo instante a
chuva relapsou fortemente, o céu bramia até ao estremecer da terra e o tremeluzir dos
relâmpagos revelava o quão nua estava Beira. Abrigamo-nos todos na sala, o único local cujo
tecto não fora derribado, éramos ao todo dez pessoas afinadas no sítio, puxamos as duas camas
do meu quarto e dos avôs para a sala e por questões de cortesia acordamos todos que as camas
deveriam ser ocupadas pelas mulheres e crianças, quanto a mim incluiram-me no grupo dos
homens e enrosquei-me em cima da mesa, alguns estenderam ropas, panos e mantas por cima do

45
congelador, houve ainda quem colocou a geleira na posição horizontal reinventando-a leito e
enroscou-se com penosos modos. A chuva não parava de cair, chovia com tamanha voracidade e
as águas começavam a ganhar outros níveis dentro da casa, entrava por todos os lados, dormir é
um modo de dizer, naquele momento ninguém dormiu porque o ruído da chuva batia as chapas
com tal força que estas começavam a soltar-se aos vagares e nós temíamos e tremíamos com
medo de que ficassemos ao descampado a meio a noite chuvosa, por isso não era às chapas que a
chuva batia era aos nossos corações que iam se quebrantando a cada tombar de gota que
chegava-nos ao ouvido. A chuva bate às chapas mas quem paga é o dorminhoco, a chuva enche a
casa mas quem paga é o dorminho. Quem me dera tivesse o poder de parar a tempestade e a
primeira que cessaria seria a tempestade interior, estávamos todos absortos viajando em nossos
medos. Temíamos que o tecto desabasse em plena noite e não mais nos coubesse lugar para fugir
a realidade. Quanto mais chovia mais a água nos enchia, chovia dentro e fora de todos os lados, a
diferença é que fora a chuva descia dentro a chuva subia, dentro a gente chorava fora a chuva
dançava. Ouvia-se no chão o borbulhar das águas, ninguém proferiu palavra mas todos tínhamos
a certeza absoluta: não era impressão nossa, as águas estavam nascendo do chão do mundo, do
ventre da terra. Consumado longo tempo de chuvintensa (chuva intensa) sucedeu-se o que todos
temíamos: as chapas desabarram sobre nós. Pensei que fosse ouvir gritos no escuro mas não,
ninguém proferiu abcdário, a chuva caía intensa sobre nós e ante ao silêncio cheguei a duvidar se
os outros estavam realmente vivos, mas tal se confirmou quando o jovem que dormia sobre a
gileira levantou-se atê a minha cama, digo ao meu congelador:  mano estou pedir dormirmos
juntos, ali água já me subiu. Arredando-me para o lado da parede aquiesci ao seu pedido e
ladeado a mim o jovem se enroscou mais enrolado que Maria-café em estado de timidez, tudo e
todos estava ensopado. Volvidas longas horas a chuva cessou e no mesmo instante assaltou-me
um grande alívio até que o homem ao meu lado começou a bambolear o corpo todo, agarrei o seu
braço e chamei-o mas o homem não reagia apenas gemia, sofria de febrefortes (febre forte) e
vibrava como uma motobomba. Consenti bastante pela sua dor mas mais do que a dor que ele
sentia, doía-me mais a inaptidão de o poder ajudar, oferecer um analgésico, roupas secas, etc,
nada poderia eu fazer. O dia foi amanhecendo e seja por desconforto ou por falta de hábito,
dormir ao descampado cansava-me a alma, o tecto foi feito para descançar o excesso do céu,
afinal, só as aves têm espírito para suportar tanta imensidão, por isso dormem descobertos em
seus ninhos.

46
47
Capítulo IV

Emigração (1):
As ruas de água

48
É mais fácil abandonar o lugar em que nascemos do que abandonar o lugar que nasceu em nós!

(Fala de Nkulo)

A pessoa é uma planta,


Basta que a felicidade regue-lhe o coração
Que torna a flornascer em qualquer lugar.

A terra é um ventre, Nkulo.


Toda ela está grávida de rios e mares,
Estas águas não vêm de longe,
Não são estrangeiras,
Estão nascendo das nossas areias.

( Falas do avô Nkuma)

49
16 de março de 2019

São 05:00 horas da manhã (presumo), está tudo escuro, a cidade inteira ficou sem corrente
elétrica, os únicos telemóveis que até a noite de ontem estavam carregados serviam-nos apenas
de lanternas e relógios uma vez que após o ciclone aquém do apagão total tornou-se impossível
comunicarmo-nos dado a falta de rede telefónica, foram várias as tentativas sem sucesso de
emitir um pedido de socorro aos nossos irmãos de outras regiões inafetadas do país, informar aos
nossos entes queridos sobre o nosso atual estado, comunicarmo-nos com as entidades de saúde e
salvamento, em debalde, nada disso foi possível. Houve quem poupou a carga do seu telemóvel
alimentando esperanças de que em algum momento, se calhar, a rede restabelecesse e pudesse
então fazer contacto externo, com razão, a esperança é a última a morrer, diz o provérbio
popular. O que não deve de forma alguma morrer é a fé. Nunca fui muito religioso mas sempre
acreditei em Deus e após termos sido exilados do interior da casa pela enchente das águas que
atingiam altos níveis para na tarde da data em epígrafe sermos expatriados da Praia Nova ainda
eu estava cheio de fé, mesmo com o mundo desabando em derredor de mim o meu espírito ainda
estava em pé, primeiro as águas exilaram-nos de casa: lugar que nos acolheu os sonhos, depois,
fomos expatriados do bairro: lugar que nos acolheu a vida. Mas não foram capazes de exilar-me
de mim mesmo, das minhas crenças, dos meus sonhos, da minha altivez. O meu subconsciente
está inundado dessas águas que entram-nos pelos olhos e enxaguam-nos a alma, mas ainda
assim, nas profundezas dessas águas vivem os meus sonhos, mudei apenas o modo de sonhar:
antes da chuva havia muito céu e eu sonhava era como ave, agora, porém, as águas escalaram-me
até a alma e eu sonho é como peixe, mas nunca, nunca, prometo: deixarei de sonhar, sou um
sonheterno, digo: um eterno sonhador. Estávamos todos emigrando para lugares menos afetados
pelo ciclone carregados de malas, sacos e loiças e andámos pelas lodosas e antigas ruas que ora
converteram-se em rios, caminhávamos contra a corrente das águas subindo a rua. De súbito
parei à contemplar a pobrezagem atrás de mim e fui no instante assaltado por uma pungente
agonia: estamos mesmo deixando a Praia Nova? Como pode ser possível? A minha vida foi toda
aqui, a minha infância jaz por baixo dessas turvas águas, os nossos sonhos todos submersos, não
terei mais vida fora deste lugar, a bem dizer, eu sou este lugar. Tomado por uma dor que
queimava-me o peito, chorei profundamente em incontida lagrimaria e por fim gritei: − eu não
quero ir, eu não querooo‼!
− Tende mwananga! (Vamos filho!)
− Nkabe, yavo Nkuma (Não, vovô Nkuma), é mais fácil abandonar o lugar em que nascemos do
que abandonar o lugar que nasceu em nós!
− Tende mwananga, tende! (Vamos filho, vamos!) A pessoa é uma planta, basta que a felicidade
regue-lhe o coração que torna a flornascer em qualquer lugar. E tu meu neto ainda és uma
semente, tão embriãozito, tens ainda o mundo inteiro por nascer. Tornarás a gernascer em
outras areias.
− Avô deixemos eles irem-se, fiquemos nós, quando parar de chover a água vai baixar.

50
− A terra é um ventre, Nkulo. Toda ela está grávida de rios e mares, estas águas não vêm de
longe, não são estrangeiras, estão nascendo das nossas areias. Tende mwananga, tende! (Vamos
filho, vamos!)
O avô continuou admoestando-me de todo o seu coração e ao fim ao cabo aquiesci à suas
sábias palavras, ele sempre foi um homem de muitos saberes, sabe sempre tanto como se tivesse
vivido antes mesmo de ter nascido e nascido antes mesmo de haver vida. A caminhada era longa
e os perigos iminentes, as ruas que converteram-se em rios castanhos arrastavam inúmeros
galhos, objectos flutuantes e submarinos, dentre esses viam-se navegando sobre as águas
pluviais, plásticos, bacias, peças de roupas, etc. Pelas casas viam-se carros e motorizadas
submersas e nesse instante o avô dirigiu-se a mim: − olha para os quintais filho, o que vês?
− Vejo árvores desabadas, casas destruídas, carros, motorizadas submersas e muitas outras
coisas destruídas.
− Certo meu neto! E onde estão os seus donos?
− Não sei avô, mas muitos abandonaram todas essas coisas para se refugiar em locais seguros
tal como estamos fazendo e alguns infelizmente perderam as suas vidas.
− Certo Nkulo! Mas por que abandonaram hoje o que tanto amaram e lutaram para ter antes do
ciclone?
− Porque a vida está em primeiro lugar avô, o resto… é resto!
− Muito certo filho! E o que você aprende com tudo isso?
− Que a vida da pessoa vale mais que todas as riquezas do mundo.
O avô ainda fez risada, não obstante, não percebi essencialmente onde residia a graça permeio
as minhas falas, todavia prosseguiu: − vivemos lutando contra os outros até a exaustão por
aquilo que não trouxemos e certamente não levaremos, Deus fez o Homem e deu-lhe o
próximo para que o amasse imensuravelmente e as coisas para que por ele fossem usadas, mas
o Homem em sua sublime concupiscência, primeiro, fez o inverso: amou as coisas e usou o
próximo, depois, tornou-se perverso: amou as coisas, pisou o próximo e no final culpabilizou a
Deus pelas suas próprias desumanessências (falta de humanidade ou sensibilidade humana;
ausência de compaixão, falta de amor para com o próximo). Não importa o quão rico ou
importante fores ou te tornares, jamais lembre de ser humilde, respeitar e amar o próximo,
simplesmente nunca te esqueças para que não te seja necessário a lembrança. Valorize, ame e
respeite sempre as pessoas que sempre estiveram ao teu lado, encha o teu coração de amor meu
filho, os carros, as casas, o dinheiro, etc tudo isso é importante, mas é passageiro. Compreendeu
agora a lição meu neto?
− Sim avô Nkuma, compreendi e carregarei sempre essas palavras comigo.
Naquele mesmo instante a senhora Nhazonia Chiveve gritou: − socorrooo me acarrem, me
acarrem estou ser puxata me acarrem! Tendo proferido tais palavras caiu de imediato na água,
estas já a começavam a arrastar se não fosse a intervenção do Muazi Wato, Kapúnguè, Chivevito
que eram jovens do bairro e do jovem que passou a noite de ontem ladeado a mim, as bacias e
algumas roupas que carregava tombaram sobre as águas e no instante foram arrastadas pelas
águas, dos seus pertences pôde-se apenas recuperar a mala de roupas que pelo peso não era

51
sensível a correnteza das águas, ajudei-a a recolocar a ensopada mala sobre a sua cabeça, precisei
de forças sobrenaturais para executar com êxito tal ofício: − ihh mamã Nhazonia meteu o quê
aqui nessa mala? Resmungona, a senhora Nhazonia arrazoava: − Praia meu filho? Não digeri a
sua resposta por isso reiterei a questão: − mamã Nhazonia estou a perguntar o que tem nesta
mala porque está a pesar parece problema. Tem o quê aqui?
− Praia! Chá te tisse Praia, lefei Praia Nofa comico. Praia Nofa está nesta mala Nkulo!
− Como assim mamã? − Passei a mão ligeirinha a tatear a mala foi então que percebi, a senhora
Nhazonia carregava na sua mala um montículo de pedras e areia: − isto é lama? E pedras?
Porque está carregando estas coisas senhora Nhazonia? Descoberto o seu íntimo segredo a
senhora Nhazonia exasperou-se subitamente sem que percebe-se os porquês de tal súbita
exasperação e proferiu peremptória: − peti só para me achutar a por a mala na capeça e não
para mim pesquissar minhas coissas, focê é polícia? Focê é ta SERNIC? (Serviço Nacional de
Investigação Criminal)
− Não é por…
− Eh me teixa eu! Cata um por si, Itai por totos.
A avó acenou-me para que não desse provimento a essas conversações, assim o fiz e após a
ocorrência do incidente o chefe Paduze orientou que nos agarrasse um ao outro para tal não
voltasse a suceder e ninguém ficasse para trás. Fizemos longa e exaustiva caminhada pelas ruas
de água em contracorrente, durante a caminhada a senhora Nhazonia ia queixando-se excessivos
cansaços, doía-lhe o pescoço e a coluna, não sentia mais as pernas por causa da gélida torrente,
mas a resposta que tinha sempre dos outros é que mantivesse-se firme, que dentro de instantes
atracaríamos em porto seguro, embora o nível das águas baixando a medida em que nos
distanciávamos de Chaimite a verdade é que estávamos todos exaustos e não tínhamos mais
forças para despender contra-corrente, se andávamos não eram mais nossas energias, aquelas
forças eram divinas, as crianças menores não paravam de chorar nas costas de suas mães e
ombros de seus pais, naquele momento ninguém se atreveu a confessar mas era consabido: os
pais se arrependeram de ter tantos filhos.
− Por fafor famos parar um pouco chá num estou aquentar, chá num estou aquentar!
− Não podemos parar mamã Nhazonia as águas estão a ir se diminuindo quando andamos, mas
a chuva não para de cair, se pararmos a água vai aumentar e vamos todos morrer afogados
aqui. Aguenta pouco mamã! − Acalmou-a o senhor Paduze.
− Vamos te ajudar a carregar a mala. − Relançou um dos jovens que conosco caminhava mas a
resposta foi surpreendente para quem já arfava de cansaço: − não não, minha mala ninquém
toca!
− Mamã Nhazonia afinal a senhora não está cansada? Nós só queremos te ajudar, mãe! − O
tornou a rematar mas a resposta foi ainda mais cômica que preocupante: − estou a tisser que
minha mala ninquém peca, se quisser me achutar me carreca a mim com minha mala mas minha
mala só ninquém carreca!
Fizemos risada em momento intempestivo até que inesperadamente assustou-nos um baque, a
água levantou voo sobre nós e ligeirinha a mão da senhora Nhazonia foi se escorregando da

52
minha, assustamo-nos todos, o que se estava passando? A senhora Nhazonia cedeu abruptamente
ao cansaço, teria ela desmaiado? Morrido? Ou se havera transcendido em híbrido estado, estaria
ela desmaimorta (desmaiada e morta em simultâneo)? Felizmente não, feito o diagnóstico coube-
lhe a primeira hipótese: a senhora desmaiou, vencida não apenas pela dura caminhada mas
principalmente pelo peso da mala. Após tal incidente discutiu-se a ideia de se abandonar a mala
de pedras e areia sob as águas, por que motivo sofreríamos por uma mala cheia de bobagens?
Mas tal não sucedeu, ao fim ao cabo ambas foram aos colos, a senhora Nhazonia sempre fora
conhecida pela excessiva cólera, se se abandonasse a sula mala nas profundezas das águas turvas
era bem capaz de nunca ter parado de chover até que se encontrasse a mala. Continuamos com a
caminhada pé adentro e após intensa caminhada a água se achava pelos joelhos, aliviados, faziam
descer as crianças para que andassem com os seus próprios pés. Em condições normais a
distância seria mais serena, mas o facto de ter de carregar trouxas e crianças, enfrentar a
correnteza das águas e tomar avenidas longas para contornar as águas tornava ainda mais
cansativa a peregrinação. O rio Chiveve transbordara e em derredor a caminhada era ainda mais
perigosa que em outros pontos longe do rio devido a enchente, mas não tínhamos mais opções,
desistiríamos ou atravessaríamos o rio, depois de uma curta paragem avaliativa decidiu-se
enfrentar as águas pela rua Major Serpa até chegar à ponte dos cegos no pombal da Casa dos
Bicos, por baixo as águas corriam furiosas e sedentas de destruição, era como se fosse o rio dos
infernos buscando almas. Enquanto contemplava a fúria das águas subiu-me uma súbita tontura e
no instante um emigrante que latente me ia observando disse: − não olhes para a água miúdo, a
hipinose desses espíritos da água começa com o intenso olhar, depois não tarda que oiças vozes
e por fim pules para a água.
− Como assim? − Não percebi o que o homem me queria transmitir por isso o indaguei.
− Você não sabe? Este não é um qualquer rio, antes de ser Beira isto tudo era estas águas, aqui
dormem os antigos espíritos Chiveves. Este rio, tão magrinho, jamais morrerá, nasce nas
profundezas dos nossos corações e desagua no infinito do mundo. Para já não lhe olhes muito,
se já é falta de respeito picar os mais velhos com os olhos, imagina então esses que nasceram
antes de haver o tempo?
Prossegui caminhada conforme à orientação do peregrino e estendida a caminhada pela rua
Pedro Álvares Cabral já estávamos na Praça da Liberdade, exíguos minutos após tomar a rua
Armando Tivane viramos à esquerda para aceder à rua Capitão Pais Ramos a rua da Escola
Secundária Samora Machel no bairro do Esturro, nosso destino, nosso refúgio. Mas eis que
sucedeu o inimaginável: a escola estava tão lotada de gente de toda a parte que sequer caberia
agulha. Os olhos dos que ali já estavam engordavam cada vez mais a medida que mais pessoas
iam chegando, alguns franziam a testa e trancavam o rosto, uns reclamavam que o piso era muito
antigo, já estava cansado e mais pessoas não suportaria. Uma queixaria imperceptível, a verdade
é que ali faltava espaço: pessoas e bens disputavam os mesmos lugares. Faltava oxigênio:
abafadiço, cheirava a forte umidade, inúmeros narizes disputando o mesmo ar.
Faltava comida e água: as poucas migalhas que sobressaissem já condicionavam lutas, estava
estereotipada a lei do mais forte e vendo as pessoas disputarem pelas exíguas porções de arroz

53
que ainda se achavam, doeu-me a alma em sentir que basta ao ser humano ser abandonado em
sofrimento que não tarda para transcender-se da humanidade e tornar-se mais selvagem e
irracional que qualquer outra espécie, agente é civilizado, é humano, é racional, é modesto até
que se instale permeio de nós a fome e convertemo-nos em animais, mais selvagens que os leões.
Portanto, decidiu-se que passaríamos apenas à noite e pela manhã prosseguiríamos peregrinação
até o bairro do Alto da Manga. Quando a senhora Nhazonia convalesceu já eu estava
extremamente cansado e em pé doíam-me os membros inferiores, tremebundo, começavam a
assaltar-me as febres, não tinha sequer onde esticar as pernas e descansar o fardo da vida. Nesse
momento vi nascer o provérbio: em terra de refugiados quem chega primeiro é rei. Por isso
resignei-me, estava convencido que pernoitaria em posição bípede até um homem já de vivida
idade vendo-me naquele penoso estado retirou seus pertences, empurrou suas roupas e
convidando-me a aconchegar-me ao seu lado disse: − psi, psii…! Oh rapaz, senta-te aqui! Olhei
antes para os meus avôs a ratificar se estavam bem, pelo menos minimamente e por fim aquiesci
à bondade do senhor e fui me enroscando com a timidez de uma maria-café, posteriormente
vendo-me tremevibrar de frio ofereceu-me um manto, já acomodado o senhor deu um pontapé de
conversa: − chamo-me Silencioso de Longe Desde a Nascença Nhanducué! − Ouvi a
apresentação do anfitrião mas não sabia se agradecia, se também me apresentava por isso
mantive-me tácito e o senhor retornou: − e você rapaz?
− Eu chamo-me Nkulo, Nkulo Chaimite Nkuma. O senhor foi contando anedotas para me animar,
fizemos risadas para a posterior sermos tomados por um pungente silêncio até que o senhor
Silencioso tornou a intermitá-lo: − há muitos anos atrás quando ainda tinha pouca idade, corria
por esses corredores aos gritos como se a juventude não passasse nunca e a idade jamais
desaguasse na foz do tempo, tudo utopia da idade miúda. O tempo passa e com ele a idade, a
beleza e as vaidades.
As suas palavras geraram em mim espanto: − Como assim corria por esses corredores aos
gritos? O senhor Silencioso já foi senhor Barulhento? − Lançamo-nos em fugazes risadas até
que o senhor respondeu: − tens um bom senso de humor ó rapaz! Sim, já fui senhor Barulhento
da vida e aqueles foram os melhores tempos da minha vida. Tire o melhor proveito do tempo
enquanto ainda tiveres vida meu rapaz, faça bom uso das tuas forças enquanto ainda tiveres
saúde, não derrame as tuas energias em coisas ociosas, digo, coisas que não te irão levar para
frente.
− Sim senhor, o meu avô sempre me fala isso.
− O teu avô é sem dúvida um homem sábio.
− Sim, ele sabe sempre tanto.
− E você também será, tudo que tens a fazer é guardar esses ensinamentos bem no fundo do teu
coração e aplicar todos os dias da tua vida. − O senhor Silencioso proferiu estas palavras
apontando com o seu dedo indicador no lado esquerdo do meu peito, bem na região do meu
coração.
− Pois sim, mas voltando a tua juventude senhor Silencioso, o senhor estudou nesta escola?
− Sim! − Respondeu altivo

54
− Hum interessante, e como foi? Como estava a escola naquela altura?
− Como eu disse foi a melhor fase da minha vida, foram tempos magníficos. Não nos
importávamos com as aparências, com os recursos, etc. Vivíamos com a alma e não com o
corpo. Agora as coisas mudaram e não são mais como dantes, para ir à escola hoje vocês
querem os melhores sapatos e melhores não em termos de qualidade mas puro e simplesmente
porque é o que está na doença, essa doença que chamam de moda e quase todos desta eram se
deixam sofrer, querem as melhores roupas, a melhor pasta, o melhor telefone e no fim nada
produzem. Naqueles tempos não, a gente estudava não porque o papá ou a mamã queria que
estudássemos mas porque nós tínhamos sonhos que estavam para além dos nossos limites, eu
bem me recordo que naquela altura havia sérios problemas de corrente eléctrica, de noite
usávamos o petromax para estudar e quem o tivesse era rico.
− Petromax? − Indaguei-o, desconhecedor da antiguidade. Mas o senhor Silencioso prosseguiu,
tendo começado por afiar risada:
− Tens toda razão de ficar espantado foi muito antes de haveres nascido. O petromax era um
candeeiro que funcionava a base de parafina, o petróleo. Foram, a bem dizer, as nossas
primeiríssimas lâmpadas, foi com elas que aprendemos a despir o escuro.
− Afinal? Não sabia.
− Pois, e digo mais: eu estudei com Nyusi aqui!
− Nyusi? O presidente da república?
− Sim sim! − Como quem recebendo a bola pelo peito domina-a com mestria, Silencioso
encaixou as palavras na boca e prosseguiu manipulando-as entre os lábios com exímia vaidade: −
O grande Nyusão foi meu colega de carteira.
− Estudaram juntos em que classe?
− Concluímos juntos o nível médio, naqueles tempos a 10ª e 11ª classes, isso nos anos 1981 e
1982 respectivamente.
− Com quantos anos senhor Silencioso?
− Umh deixa-me ver… − absorto, demorou-se um tempo nesse pensatempo e ao fim retornou: −
Em 1982 com 26 anos, se já não me falham os parafusos eu era três anos mais velho que ele.
− Será que ele ainda recorda-se do senhor? Quem era mais inteligente na escola? − o senhor
Silencioso era novamente assaltado por alegrias e só depois de gargalhar regressava a fala: −
Acredito que não Nkulo, passam-se já 37 anos desde que concluímos o segundo ciclo do ensino
secundário. Quanto a quem era mais ou menos inteligente é um pouco difícil de responder a
essa questão porque naquela altura éramos todos bons alunos. Se bem que lembro que na 10ª
classe ele não teve resultados foi até a sala de exame, ao passo que em 81 eu estava no meu anjo
e com notas brilhantes fui dispensado dos exames, mas o ano seguinte não foi brilhante para
mim porque estava passando por um momento conturbado em minha vida o que foi, em termos
académicos, o oposto dele. Filipe, como o chamávamos ficou muito desconfortado após ter
vivenciado a sala de exames no ano anterior, estudou bastante que se tornou num aluno
brilhante e naquele ano foi dispensado com notas exuberantes, com notas acima de 16 valores
passou de um aluno de médio potencial para se tornar um aluno invejável e assim fechou o ciclo

55
com chave de ouro. Nem a minha falecida esposa eu confessei o que estou prestes a te dizer: eu
invejei o potencial académico do Filipe, nunca se deixou vencer pelas adversidades da vida.
Ainda hoje me recordo de o ver estudar nos autocarros e até por debaixo de postes de energia
sentava-se a cultivar os conhecimentos. Primeiro achei que ele fosse um pateta e que não
tardaria que despertasse daquela palhaçada, mas tal nunca sucedeu então o admirei porque vi
que ele tinha sonhos muito grandes, depois, descobri: eu não era capaz de medir o tamanho dos
seus sonhos.
− Uau! Foi uma boa experiência senhor Silencioso mas por que o senhor envelheceu tanto?
− A vida meu filho, a vida. Nem todos têm as mesmas oportunidades, sempre fui um homem
sofrido e muito cedo tive de fazer muito para conseguir pôr pão na mesa. Esses tempos de que
lhe falo foram os meus últimos na escola, depois disso tive de abandonar a carteira convidado
por um conhecido da família de Gaza para trabalhar em Egoli nas minas da África do sul, isso
em 1989, em 2009, 20 anos depois, vi-me obrigado a regressar.
− Egoli?
− Sim, Egoli significa “cidade do ouro” é como chamávamos a cidade de Joanesburgo, ainda
hoje há quem ainda se refere a ela assim.
− Por que voltou à Moçambique?
− Dizem que estava muito doente e que para a empresa eu era mais gasto que receita por isso
terminaram o contrato comigo, mas aquilo nem era doença, eu sei, eram saudades que os meus
espíritos sentiam de mim, é assim como os nossos antepassados se expressam em nós: por via da
dor.
− Epah estamos a pedir dormir nós por favor, se quiserem fazer barulho vão lá ficar lá na chuva
lá! − Exasperado pronunciou-se um homem que tinha descoberto a cabeça apenas para proferir
tais palavras e em seguida voltou ao ventre da manta.
− Poxas pah! − Um segundo indivíduo deu cobro
− Ntlah! − E um último não identificado emitiu este som expressando exasperação, estava claro:
urgia a necessidade de se invocar o silêncio. Com um sorriso matreiro o senhor Silencioso selou
o dia, no ventre da escuridão o silêncio me abraçou, só então me dei conta do quanto o dia havia
sido longo e do quanto estava exausto. Nunca um dia tivera tão infinitas horas.

Glossário
Flornascer: uma fusão entre as palavras “florir” e “nascer”; prosperar (no contexto)
Gernascer: uma fusão entre as palavras “germinar” e “nascer”; começar do zero; iniciar uma
nova vida (no contexto)
Glossário
Flornascer: uma fusão entre as palavras “florir” e “nascer”; prosperar (no contexto)
Gernascer: uma fusão entre as palavras “germinar” e “nascer”; começar do zero; iniciar uma
nova vida (no contexto)

56
57
Capítulo V

Torques versus torrentezas:


O preço da ignorância

58
“Unos nacerán para cantar, otros para bailar, otros nacerán sencillamente para
ser otros. Yo nací para estar callado. Mi única vocación es el silencio. Mi padre
fue quien me lo explicó: tengo tendencia a no hablar, tengo talento para aguzar
silencios. Así es, silencios, en plural. Porque no existe un único silencio. Y todo
silencio es música en estado de gravidez. Cuando me veían quieto y serio en mi
escondite invisible, no es que estuviera pasmado. Estaba ocupado, estaba
entregado en cuerpo y alma a una labor: tejía los delicados hilos con los que se
fabrica la quietud. Afinaba silencios.”

Una Traducción de Roser Vilagrassa

(COUTO, Mia., em Jesusalén, p5)

“ A saudade é a única dor que me faz esquecer as outras dores. ”


(COUTO, Mia., em O outro pé da sereia)

“Uma coisa aprendi na vida: quem tem medo da infelicidade nunca chega a ser
feliz.”
(COUTO, Mia., em Venenos de Deus, remédios do diabo)

59
Durante a passagem do ciclone Idai vários foram os rios que, transbordando, destruíram aquém
de casas e diversas estruturas, pontes e estradas. Sobre estes derradeiros está contemplada a
Estrada Nacional 6, a principal da zona centro do país que cedendo à torrente do rio Haluma, no
distrito de Nhamatanda, província de Sofala, verificou um corte deixando dessa forma a cidade
da Beira degredada do resto do país, dada a inoperacionalidade do seu aeroporto provocada pelos
efeitos nefastos do ciclone na quinta-feira última. Por esse motivo, aquém do meio aéreo
ninguém poderia naquele então, por via telúrica, entrar ou sair da cidade. Tal impossibilidade se
ratificava na crescente fileira de viaturas que se viam obrigadas ou a pernoitar ou a regressar,
alguns pelo imperativo dos seus afazeres do outro lado da geografia, acharam de bem pernoitar
até que chegasse o socorro e se reunissem condições mínimas para se efectuar a travessia do rio
que raivoso, corria com babas e espumas.
Exaustos de tanto permanecerem no interior das viaturas, muitos dos passageiros e
proprietários dessas, abandonavam-as para sobre esteiras, capulanas e mantas se acomodarem no
gélido asfalto. Mas houve, permeio de todo esse mútuo entendimento, quem entendeu diferente e
não quis comungar desse processo de espera, afinal, esperar é uma arte que exige muita idade,
ademais, só a idade com o passar do tempo nos vai atribuindo os dons da espera. Ocupante da
derradeira posição numa fileira de dez viaturas que faziam o troço Beira-Chimoio, o senhor
Manuelito Tindziva foi assaltado pelo imediatismo e não foi capaz nem de esperar nem de ouvir.
Mas não foi por maldade, foi um impulsivo revelamento de sua natureza: superlativa arrogância,
ares de omnipotência e mais grave ainda: desconhecedor das artes de espera. Manuelito ainda
tentou mas não foi capaz, a espera é um veneno que lhe sucumbia as veias e lhe formigava os
dedos de cima à baixo, quando ao fim ao cabo com voz esganiçada, rematou sério e categórico:
− Vamos atravessar o rio!
Contemplando a fúria e a velocidade com que as águas se moviam, a esposa, que o estava
ladeado, curvou os lábios em deslizada alegraria e proferiu: − só você mesmo para fazer piadas
neste momento Muanelito! Todavia, o homem manteve-se tácito, dele nem palavra se ouvia nem
sorriso refulgia, o silêncio ratificava-lhe a loucura. Ainda impassível, engrenou a mudança para a
retaguarda e manobrando, tornou a manuseá-la engrenando a primeira velocidade, na bagageira,
Manecas Zangado, Lukasse Felicidade do Tempo, Calado Vunduzi e Sábado das Maneiras
Massingue, os quatro passageiros que com eles viajavam arrazoavam entre si: − o que será que
esse gajo quer fazer? Eh! − indagou Calado, não houve resposta, pairou na bagageira um
pungente silêncio, contemplativos, analisavam minuciosamente os movimentos do condutor.
Este por sua vez movia-se devagar, ultrapassando viatura por viatura, o carro parecia naquela
lentidão, mais deslizante que conduzido.
− O que queres fazer Manuelito? − Já lhe subiam os nervos quando Mapandzene, sua esposa,
perguntou.
− Vamos atravessar eu já disse!
− Atravessar? Atravessaaar? Tu estás doente nem?
− Eh eh eh não me ofendas Mapandzene!

60
− Não te ofender? Você só pode estar doente, é isso mesmo você está doente. Todos esses que
pararam são burros você que é inteligente para passar nessas águas zangadas nem?
− Não te esqueças que eu sou mecânico ouviste? Eu conduzo desde os meus quinze anos. Já
atravessei lugares que ninguém pode atravessar.
− Você está grosso Manuelito, eu te disse para não beber, você está grosso. Mesmo o caminhão
que é grande não conseguiu passar nós é que vamos passar aqui?
− Alô, para de me estressar você, ouviste nem? Para de me estressar! Se quiser descer desce e
volta de onde você veio.
Mapandzene não poderia acreditar que Manuelito estava mesmo decidido a cruzar o rio, pelo
que despenhando em agonia, lacrichoveram-lhe (chover de lágrimas; chorar sobremaneira)
marés. Manuelito após passar por nove viaturas que montavam a fileira, parou a viatura à beira
da ponte exibindo a aceleração como se estivesse desafiando a correnteza em linguagem
mecânica, tais acelerações chamaram a atenção dos outros automobilistas tanto desse como do
outro lado da estrada, separados pela torrente. Os homens desceram de suas viaturas e acorreram-
no: − senhor o que pensa em fazer? − Inquiriu um automobilista que havia descido de uma
camioneta e outro interviente (vindouro que intervém) deu cobro: − meu irmão se estás para
atravessar não vale a pena, essa água não mata é a própria morte correndo de barriga em
estado líquido.
Dentro de segundos as pessoas estavam acumuladas à margem da viatura, admoestando ao
condutor que revisse a sua ideia porque aquela seria, sem dúvidas, a derradeira ação da sua vida,
depois ninguém saberia mais dele. Em debalde, Manuelito era um homem de personalidade
pérfida, eles que poupassem suas forças, afinal, dentro dele corria um rio de soberba tal como o
que corria a sua frente. Os jovens na bagageira erigiram então a voz em uníssono: − mano não
vale a pena, nesse rio não vamos passar!
Então saiu Manuelito da viatura, inelutável, ativou manualmente a tração desta para confirmar
a seriedade do seu delírio e batendo no capô com a mão direita para dar mais ênfase às suas
palavras, disse: − primeiro, eu sou mecânico, ninguém conhece mais carro do que eu aqui.
Segundo, eu conduzo desde os meus quinze anos, ouviram? Meu pai que descanse em paz, foi
grande mecânico e me ensinou a conduzir muito cedo por isso não é para me falarem de carro e
nem de conduzir aqui, porque ninguém conhece carro mais que eu e ninguém sabe conduzir
mais que eu. − Estendendo o dedo indicador a um jovem que lhe havia rogado a não atravessar o
rio, disse: − você que está a fazer barulho conhece carro? Conhece carro? Se não fosse pelo
respeito que tenho pela minha mulher que está aqui dentro do carro eu ia vos insultar ouviram?
Seus macacos da água! São vocês que estão a trazer chuva aqui seus gatos!
− Meu marido bebeu, por favor não lhe dêem ouvidos, eu só quero que lhe convençam a não
passar porque nessa água não vamos sair mais − Mapandzene saiu do carro a dar vazão às suas
lamentações.
− Chefe ouve lá a tua esposa! − Disse Vunduzi a partir da bagageira da viatura.
− Senhor, se não quer desce aqui mesmo, está ouvir? Macaco da aldeia, desce aqui mesmo!
Terceiro, isto não é Vitz okey? Okay? Isto não é Cinquentinha (motorizada de 50 cilindradas)

61
ouviram? Não é Corolla isto, isto é Toyota Land Cruiser Hz ouviram nem? Isto é Hz! − Bramia
Manuelito, engasgado em suas próprias ignorâncias tossiu fortemente e por fim regressou a fala:
− isto é tractor! Meu pai que me deixou este carro nunca enterrou com ele e atravessava rios
com lenhas e sacos de carvão na bagageira, ouviram nem? Este carro tem compensador de
altitude, suspensão reforçada, está equipado por um motor V de seis cilindros com disposição
longitudinal e quatro mil centímetros cúbicos de cilindrada a diesel com vinte e quatro válvulas.
E digo mais, isto não é rio nem para mim nem para o meu tractor, o motor desta máquina
produz 175 cavalos de potência à três mil rotações e quatrocentos nanômetros de torque a mil e
tal rotações. Tem tração total Four by Four, olhem só para as jantes, olhem só para as jantes!
Sabem quantas polegadas tem? Dezasseis polegadas em pneus de 275/70 na dianteira e na
traseira, é roda para ser arrastada por esse rio esta? − Dizia batendo os pneus com força, fez
pausa e regressou a fala: − Esta água não me assusta a mim, eu vou atravessar isso senão não
me chamo Manuelito, filho de Pacheco Homwana Tindziva, o médico de automóveis! − Por fim
abriu e fechou a porta com tamanha força que fez solavancar toda viatura, os nervos escalaram-
lhe os neurónios, muito já se havia falado e que ele era um mecânico, também ficou clarividente,
portanto já era hora de exibir sua estimada viatura, sem hesitar engrenou a mudança e conduziu o
carro de encontro a torrente. No interior da viatura era possível ouvir os gritos da esposa pedindo
que parasse o carro, entretanto tal não sucedeu. Manuelito já estava lutando contra a torrente das
águas, as pessoas assistiam a máquina resistir numa primeira fase a fúria das águas.
Taquicárdicos, coração dos que contemplavam a viatura pela margem batia fora do corpo, as
mãos viajavam até as cabeças em demonstração de medo, o que acontecerá? Pela cautela o
homem parecia mesmo ser um exímio piloto, entre o medo e a curiosidade, despontava a
esperança dos que assistiam: será que eles vão passar? E se passarem? Enquanto isso a mulher
não parava de gritar: − quero descer, quero descer, me deixa quero descer eu não quero morrer
aqui, volta quero descer!
− Ninguém vai morrer isto é Hz! − E desde então Manuelito não parava de gritar como se
estivesse possuído: − isto é Hz! Isto é Hz! Isto é Hz… A verdade é que Manuelito gritava para
arredar de si mesmo o medo que de rompante lhe assaltou e lhe custava assumir, no meio da
água quando possuído pela correnteza o automóvel já não mais respondia nem ao acelerador nem
ao travão, a viatura tinha então um novo condutor: a fúria do rio Haluma. Tomados pelo medo,
os jovens gritavam na bagageira pedindo que Manuelito regressasse porque a viatura estava
sendo arrastada pelas águas, pensaram ainda em pular mas estavam já no ventre da correnteza,
tal pensamento visitou de igual forma a Mapandzene que abriu a porta para saltar, contudo
dando-se conta de que seria suicídio antecipado, fechou-a de imediato e sem mais hipóteses,
subiu o vidro e resignou-se em lacrichuvas (chuva de lágrimas). Mais não tardou, as turvas e
gigantes ondas levantaram a traseira da viatura de caixa aberta e a arremessaram para as
profundezas escuras do rio, benção foi dos quatro jovens que se faziam à bagageira que
projectados bagageira afora e arrastados pelas águas conseguiram nadar no sentido da correnteza,
agarrar-se aos mangais e ao atrelado de um camião Freightliner também imobilizado no local.
Quanto ao casal e ao venerado “tractor” não houve ante a fúria do Haluma nem torque, nem

62
cavalo, nem cilindrada nem polegada, esta foi abruptamente arrastada e submersa pela torrente
como o vento arrasta a folha sem deixar pegada sobre a terra, e num piscar de olhos desapareceu
para sempre na turvação das águas.

63
64
Capítulo VI

Cruzadores:
Os homens que cruzavam o tempo

65
“ Gentil é aquele que passa pela vida do outro, toca-o com leveza e o
marca onde ninguém mais pode ver. […] Todos passamos por situações
complicadas. Somos ludibriados, destratados e, muitas vezes, até mal-
amados. Sofremos com a falta de dinheiro, temos preocupações com a nossa
saúde, com a saúde dos filhos, dos nossos pais, do nosso cachorro. Entretanto,
o que difere o ser gentil é que ele não coloca os seus problemas no centro do
mundo e nem acha que todos têm de parar com suas vidas, porque ele não
está bem. O verdadeiro entendedor da gentileza sabe ser suave com o outro,
percebe que somos interligados por algo maior que nossos próprios interesses,
que as relações humanas são pétalas de uma mesma flor. […] Toda
gentileza é uma declaração de amor. ”
(Mia Couto)

A vida é um rio,
E o rio é como o tempo,
Só tem barriga para correr
E corre sempre para frente,

Por isso valorize cada instante da tua vida


porque o que se vive não regressa.

Não existe rio,


Não existe tempo,
São todos um só.

O rio é o tempo correndo no estado líquido.

(Falas de Madji Matchadji, o cruzador de rios)

66
Com o desabamento de pontes e cortes de estradas na zona centro do país (a mais ressentida),
durante a passagem do ciclone Idai, tornou-se impossível o exercício da livre circulação de
pessoas e bens por essas artérias. Nesse então, surgiram os taxi-man que eram atravessadores de
rios, jovens que usavam da sua força motora e experiência para atravessar os transbordantes rios
cruzando a fúria das águas, transportando nas costas pessoas e bens de uma margem para outra.
Eram exímios dominadores das águas, “mas vocês não têm medo de serem puxados pela
correnteza?” Essa era a questão que deslizava na boca de todos que ousavam aderir aos seus
serviços, “Ah, não! Também nós crescemos nestas águas.” Respondiam os atravessadores das
águas de igual modo como se de um dizer ensaiado se tratasse. Dentre as vastas pontes
destruídas pela intempérie estava a ponte sobre o rio Búzi, na Estrada Nacional nº 260 que como
em muitos pontos daquela geografia paralisaram o trânsito de uma e de outra margem do asfalto.
A tensão, o medo, as incertezas, tudo naquele momento era intenso. Não era apenas a uma
porção do asfalto que o ciclone destruira, era aos nossos sonhos, nossas vidas, nossos destinos.
Estávamos todos submersos nas profundezas dessas lodosas águas, a correnteza arrastara aquém
de grandes porções de terras e infraestruturas, inúmeras vidas inocentes. Não era apenas a ponte
física que desabara na sequência dessa calamidade, uma outra ponte ainda mais difícil de se
reabilitar nos separava do futuro, da educação, da saúde, dos nossos sonhos, essa é a ponte da
esperança. Somente a esperança nos liga ao futuro, sem ela somos indivíduos sem amanhã,
agastando-se apenas nas dolorosas vivências de um presente que tal como o porvir é igualmente
incerto. Se somente a capacidade de sonhar nos distingue dos mortos, então o que somos nós se
nossos sonhos estão alagados?
Todos temiam as águas como se aquele rio fosse o corredor da morte liquefeita, entretanto,
quatro jovens atravessavam-o mostrando que não comungavam do mesmo sentimento, moviam-
se com exímia naturalidade como se por baixo escondessem barbatanas. Atravessavam o rio
como se aquelas águas fossem o pátio da infância, um pedaço de si, o único local onde
ganhavam existência. O serviço funcionava da seguinte forma: de um lado do asfalto paravam
dois jovens e do lado oposto outros dois, transportando pessoas e bens nas costas os homens-taxi
cruzavam-se no meio do rio e assim moviam massas de um lado para o outro. Os béns de grande
porte que requerissem mais força tal como motorizadas pesadas, a labuta era executada em
sinergia. “Mais do que trabalhar juntos é preciso trabalhar misturado, tal como as ondas.” Esse
era o seu slogan.
Do sucesso daquela travessia humana muitos duvidavam, outros olhavam, poucos realmente
arriscavam-se. Nesses últimos estava Nkhululeko Chicoa Nova Vai Ser Chefe, um rapaz de
quatorze anos, junto dos seus pais Ntenga Chicoa e Mugalintsa Vulai que tal como os outros,
procuravam cruzar o rio para dar provimento a sua emigração. Era preciso esperar na fileirra para
realizar a travessia, e tendo chegado a vez da família Chicoa, o pai indagou à um dos dois
homens-taxi:  assim travessar é quanto mano?
 Travessar aqui não é denhero papá é só cem menticage som, mange maneira dele de
travessamento que estás ver é ensa aqui mesmo, estamos gastar mwinta força. Por isso denhero
dele estamos cobrar a consoante das diferentes pesos das corpos delas. As crianças estás cobrar
waitenta menticage, as pessoa grande estás levar cem menticage, mas as pessoa grande estás
levar cem menticage quando é normal, quando é gorda estás cobrar cente é vinte menticage.
E porque expressar-se em lingua portuguesa lhe era custoso, fez pausa, pesquisando os dizeres.
Nesse instante o colega tomou a palavra num repente:  esse é o preçário sem bagagem, com
bagagem cobramos no intervalo de cento e cinquenta a duzentos meticais, dependendo do

67
tamanho da mesma. Carregamos também motorizadas ao preço de trezentos e cinquenta
meticais, caso tenha bagagem e a motorizada também seja muito maior e necessite de mais de
uma mão, aí o preço pode se estender até quatrocentos ou quinhentos meticais.
 Está bem! Assim você teu nome é quem?  Indagou o pai de família ao último jovem,
estupefacto pelo facto de contrariamente ao primeiro, o último se expressar com fluência na
lingua portuguesa, ademais, o jovem tinha fluência de mais para executar tais ofícios, esse foi o
pensamento que lhes atravessou a consciência.
 Eu chamo-me Madji Matchadji pai, mas se for da sua preferência pode tratar-me por
Matchadjito como sou vulgarmente conhecido.
 Ansim nonge vão nos levar quanto mano Matchadjito?
 Esses sacos no chão são vossos?
 Sim, mange num tem nada dentro som tem roupa tudo nonsas cosa foi levado com água mano.
 Está bem pai, então vocês os três com esses sacos, eh… vão nos dar trezentos meticais!
 Sheh mano não temoge esse denhero, aqui onde estamoge, estamoge malu mano nem cosa dele
de comer não temoge nada mano, fage lá qualquero desconto hum.  Deu cobro a senhora
Mugalintsa.
 É isso mensmo mano, não temoge nada som temoge poucas modinhas som. Retorquiu Ntenga.
 Está bem, então vão nos dar duzentos e oitenta meticais.
 Duzentxo e satenta mano. Depreciou Ntenga.
 Epah prontos, vão nos dar esse aí mesmo também, estamos a nos ajudar. Aquiesceu o
transportador.
 Está bem, antão començam lá com minha mulier e meu fílio depojo vãojo ultimar com eu.
 Sim, mas tem que pagar primeiro senhor!
 Denhero vocege vãojo ter depojos de nunge fazer assaltar o rio.
 Eh papa, se não nos pagar agora não teremos forças para cruzar o rio, nossa força está no teu
bolso, é esse dinheiro aí que estás a afinar.
O senhor Ntenga desembolsou o valor e pagou pela travessia, nesse instante os dois jovens
puseram-se de joelhos e disseram:  subam lá nas costas! E assim se sucedeu, o rapaz e sua mãe
foram às bagacostas (costas servindo de bagageira) dos jovens e não tardou para que se pusessem
ao rio. Os cruzadores enfrentavam a correnteza como se fossem duas viaturas movidas à tracção,
todo mundo olhava pelas margens, alguns paravam bem no limiar do asfalto para melhor
contemplar àquela sobrenatural exibição. Outros ainda filmavam-os a atravessar o rio, a brusca
forma como os jovens lutavam contra a corrente era coisa de gerar medos, babas e espantos.
Como se enfrenta a fúria de um rio que arrasta viaturas, árvores e outros objectos de grande
porte, destrói infraestruturas e vidas? As águas batiam-os com sublime intensidade e levantavam
voo pelos ares formando com as ondas grandes rampas como se num repente toda aquela
exibição pudesse ir por água abaixo. Entretanto, moviam-se impassíveis, eram exímios
conhecedores das fúrias aquáticas, eles não eram desse mundo, isso estava clarividente.
Atravessavam o rio com tal vagarosidade que a travessia parecia durar a vida eterna, aquilo era
pé ante pé, mas nenhum pé despegava-se do chão. Esse era um dos seus grandes segredos, se um
dos pés despegasse-se da base isso implicaria, por um período de tempo parar apenas com um pé
o que os deixaria completamente vulneráveis à torrente.
O coração de Ntenga já batia fora do corpo, as incertezas daquele devaneio cresciam a medida
que os jovens aproximavam-se da zona mais agressiva, quando os transportadores pareciam
começar a perder consistência as pessoas iam pegando as cabeças esperando todos pelo mesmo

68
momento: o instante em que vencidos pela correnteza, fossem todos abruptamente arrastados
águas a fundo.
De súbito, os jovens deslizaram consideráveis centímetros, mas no mesmo momento
rehaveram a resistência, dona Mugalintsa não pôde prender o medo, tremebunda, fazia vibrar até
ao jovem que a suportava, este por sua vez esgueirou o rosta para contemplá-la quando proferiu:
 eh mamãa, na minha em cima você num podo tremero, num podo tremero!  Advertia o jovem
 Num so eu mano é minha corpo!
 Mamã, mamã, antão diz a tua corpo não tremero muito, pucasa você estaju agitaro água
mamã. Tudos águas estás tremero pucasa de você  ao jovem os nervos já o escalavam os
neurônios quando proferiu esses dizeres. Feita pausa, regressou afirmativo:  se tremero mange
num vamuge passaro aqui!  Mas à senhora eram inevitáveis tais tremências, por isso continuou
tremendo por longo tempo até que se fez pausa àquela tremência e num rompante os corpos
tornavam a vibrar, mas dessa vez o transportador não chegou a arrazoar porque naquele instante
não sabia mais se quem tremia era a senhora ou era ele. Já no ventre do rio as águas se lhes
mediam a cintura e já para eles naquele momento era muito custoso manter a resistência, as
pernas começavam a ceder à corrente e os corpos por mais força que injetassem contra as águas,
se iam devagarlizando (deslizando devagar).
 Voltam, voltammm, voltammmm. Davolve menha famélea!  Gritava Ntenga quando se deu
conta de que aquela tentativa era, afinal de contas, um suicídio negociado. Mas os jovens não
mostravam nem sinal nem intenção de retaguarda, enquanto isso, as águas iam aumentando a
corrente e com ela a profundidade, aquele era sem dúvidas um espaço fatal, as suas pernas
bamboleavam fortemente:  por que estás a tremer Madji?  inquiriu o rapaz que estava sobre as
suas costas.
 Não sou eu meu puto, é o mundo. O mundo é que está a tremer!
 Estás cansado nem?
 Não sou eu quem está cansado miúdo, é Deus. O meu cansaço não conta no mundo. Foi
sempre assim desde que nasceu o tempo, desde os tempos de Noé, quando Deus se cansa a
chuva dança.  Nesse momento era como se a força das águas tivesse aumentado grandemente,
os jovens pareciam não poder mais suportar a correnteza, as pernas deslizavam devagar na
direção da corrente e transmitindo a impressão de que num repente tornar-se-iam todos, apenas
lembranças. Não era impressão, o rio aumentara o caudal e a intensidade com que se movia, e
bem no meio do rio as águas quase que os extinguiam totalmente da visão, os cruzadores haviam
sido engolidos e somente os transportados deixavam-se ver pelas cabeças. Mugalintsa e seu filho
gritavam pedindo por socorro, mas ninguém poderia, infelizmente, ajudá-los. Até mesmo Ntenga
apenas lamentava-se rebolando pelo chão molhado do asfalto, olhava incessantemente para os
lados procurando por galhos compridos aos quais podesse recorrer para atirá-los ao rio com
forma a rebocá-los da água, mas não houve naquele momento, nem galho nem braço que se
estendesse para o rio.
Enquanto isso, alguns limitavam-se tão simplesmente a filmar o acontecimento nos seus
smartphones, e quando todos acreditavam que eles desapareceriam naquelas turvas águas,
sucedeu então o inesperado: os jovens sobrepujavam a correnteza do rio. Aparecentes, moviam-
se pelas águas com a força de um hipopótamo, e sobrepujando a maior das correntezas na zona
mais crítica do rio, caminhavam então entre águas miúdas e já nessa altura todos se alegravam e
admiravam-os sobremaneira como se de outra galáxia fossem, como se mais do que atravessar
tivessem é renascido. Naqueles muitos olhos estava estampada a admiração, eles eram sem
dúvidas heróis.

69
 Como conseguimos sair dali?  Indagou o rapaz ao seu conductor
 Dalí aonde?  Inquiriu Madji, o Cruzador de rios, seu homem-táxi
 Daquelas águas!
 Eu sou um cruzador de rios meu puto, não te esqueças!
 Não tiveste medo de morrer alí?
 Primeiro, a morte não é coisa de se ter medo. Tudo que nasce morre, por mais belo que seja.
Vivemos exaltando as coisas que nos tornam superiores àqueles que são mais desfavorecidos na
vida, e só a morte no final nos recorda que somos todos iguais independentemente da nossa
condição social, da cor, religião e/ou etnia. A morte é o único inimigo que não nos persegue,
não vem de trás, nós caminhos dia após dia ao seu encontro. Nunca tema a morte miúdo, quem
vive com medo da morte, já em si mesmo está morto, é apenas um morto ambulante. Segundo, a
água é o único sítio em que tenho vida, se um dia alguém te disser que eu desapareci entre as
águas não morri, apenas voltei para casa. Eu sou estas águas, cada gota que aqui corre é parte
de mim.
Tendo atravessado o rio foram aclamados por todos quantos testemunharam o inacreditável
travessia, após tamanha exibição da força humana contra a natureza, os jovens do outro lado, o
lado da chegada, tomaram partida e dando provimento ao ofício meteram-se na água
transportando uma motorizada e assim se foi prosseguindo até que chegou a vez de Ntenga, que
transportado nos meus moldes juntou-se a família. Aquilo foram abraços e beijos, alegria maior
não poderia haver, Ntenga regozijava-se tanto de estar novamente junto da família como se não
fosse apenas um rio que separava uma margem da outra, entre uma margem e a outra corria a
morte, de uma margem para a outra havia mais do que uma simples travessia, havia uma vida
intensa por se viver. Daquela inolvidável travevida (travessia vivida) surgiram inacreditáveis
memórias por se contar à outras pessoas, e quem sabe? A outras gerações. Quando já a família
dava os primeiros passos em abandono ao local, Madji, o que transportara o rapaz, vociferou da
outra margem do rio:  Nkhululekoooo! Não te esqueças, miúdo: a vida é um rio, e o rio é como
o tempo, só tem barriga para correr e corre sempre para frente, por isso valorize cada instante
da tua vida porque o que se vive não regressa. Não existe rio, não existe tempo, são todos um só.
O rio é o tempo correndo no estado líquido.
Nkhululeko não proferiu palavra que fosse, senão apenas acenou um adeus com a mão direita e
fitando antes os pais, virou-se dando costas à Matchadji e ao tempo liquefeito. Aquele profundo
olhar sobre os pais revelava a sua estupefação, disso nada falou mas se produzia dentro de si o
seguinte pensamento: “como é que ele sabe o meu nome se em momento algum se pronunciou?”,
do outro lado da margem ninguém ouviu, mas o cruzador do tempo de si para si proferiu em
surdina:  foi a água miúdo, foi a água… a água é que me sussurrou. E por meio dela sei todas
as coisas.

70
71
Capítulo VII

Emigração (2):
Em busca de um derradeiro refúgio

72
A chuva cai é para lavar, lavar a terra, o céu, o mundo. Mas choveu-me tanto que ela
acabou lavando-me a alma. Deixa a chuva entrar em ti vovó, a chuva é uma terapinga
para a alma, é a outra forma que Deus achou para emendar os defeitos do mundo,
chuvatorne-te (torna-te chuva) vovó, há muito que deixamos de ser chuva. Somos
sempre ventania em vidas alheias, águafaça-te (faça-te água) e chova sobre os outros.
Agora sei: Deus fez a terra e a chuva a amamentou. A chuva é a mãe da terra e a
nossa primeira mãe, afinal, não somos nada mais que pó de areia.
(Fala de Nkulo)

73
Manhã de 17 de março de 2020

 Nkulo! Nkuloooo!
 Yavo, yavo! (Vovó, vovó!)
 Lamuka mwana, lamuka! (acorda criança, acorda!)
 Kodi ndi na lamuka ni yende kupe na phepo ensene yi? (mas é para eu acordar ir para onde
todo esse frio?)
 Ku funica ku ti gumane nbunto inango kuti ti khala mwango, langanisa makundo, nkabe mbuto
para singano. (Precisamos achar um outro lugar para ficar filho, olhe só para os lados, aqui
nem cabe agulha).
 Ndina kwanisalini yavo, ndi kudva phepo maningue. (Não irei conseguir avó, estou a sentir
muito frio.) Já nem sinto os meus dedos  Epilogou
 Mpepo não é iri manungo mwako mwananga, dziko ndio iku thondola mwananga. Ife tataia
kupisa kwa Mulungo. (O frio não está dentro de ti meu filho, o mundo é que tornou-se num lugar
frio. Nós perdemos o calor de Deus).
 Mas de que nos vale ainda procurar outro sítio se nada mais nos resta? Não temos nem sequer
água para beber vovó.
 Tinga khala dzidzi ubozi nkhabe khala na mphepo para tiphume, tende mwananga! (Mais um
minuto aqui e sequer teremos oxigénio para respirar Nkulo, vamos filho!)  Suportou o velho
Nkuma.
Ao fim ao cabo cedi à admoestação dos meus avôs e deixando a Escola Secundária Samora
Machel logo pusemo-nos a andar pela avenida 24 de julho, era manhã chuvosa tal como dos dias
transatos, mais do que um sítio para esconder o corpo das águas, procurávamos por um sítio para
esconder a alma do mundo, um último refúgio.
 Hi yenda kupe? (para onde vamos?)  Questionei
 Para o lugar que Deus nos preparou?  Respondeu a avó
 Vamos para o céu?  Após entreolharem-se os avôs fizeram risada e não houve mais voz,
senão o da chuva beijando o chão, então retornei:
 Esse lugar é longe?
 Nós só estamos procurando um sítio melhor para esconder Nkulo, não sabemos para onde
vamos, mesmo você se conhece um sítio pode nos dizer.  Intermitou o avô.
 E se entrarmos aqui no Instituto Industrial e Comercial da Beira?
 Ah aqui não vale a pena filho é tudo mesma coisa, veja sozinho!  Retorquiu o avô, por isso
demos provimento a caminhada passo adentro deixando para trás as igrejas Batista e Metodista
Unida de um e do outro lado da estrada.
Aquando dessa andança a água me ia batendo o corpo e era como se já nessa altura não fosse
nada mais que um escorredor de águas. Dentro da escola sentia muito frio, assim que pusemos o
pé na rua deixei de o sentir, a bem dizer nada mais sentia, deixei de sentir a fome que tanto me
assolava, a sede, o frio que me paralisava as veias e nem o meu próprio corpo sentia. Caminho
mas não sinto mais o chão que piso, tudo isso deixei de sentir mas o que mais me é lastimável é
que a cada minuto que se vai passando vou deixando de sentir a vida que me reveste.
Incessantemente a chuva me vai deslizando o corpo, emendo, nesse então não tinha mais
corpo, o que poderia chamar de corpo tornara-se numa cachoeira e nessa altura as águas me
desciam a pele com um suave toque de familiaridade. Então pensei: sou um ambulante membro
da natureza, sou terra, sou chão, sou rocha. Primeiro achei que tinha perdido tudo: os familiares,

74
os amigos, os bens, a escola, o futuro, etc, e que como pessoa não tinha mais função, mas era o
contrário, nunca como pessoa tive tanta função. Essas gotas de chuva descem-me a pele como
em cachoeiras, as águas descem rochas e montanhas, correm em mim com a suave agressividade
dos rios em dias diluvianos. Sou afinal uma cachoeira viva e ambulante: sou uma pechoeira
(pessoa cachoeira). O meu corpo se vai aguando a cada passo que dou, sinto-me leve, quase sem
peso, não é a fome é água, que engraçada é a vida, o vazio da fome dá peso ao corpo, o peso da
água dá leveza. Era preciso muita chuva para me lavar a alma, nunca estive tão leve, quando
percebi essa bonança rasguei uma risada pelos ares:  o que está rindo Nkulo? 
Inquiriu-me a avó.
 O que não vovó, mas com quem?
 Como assim meu neto?
Braciaberto (de braços abertos) volvi a cabeça para o céu com forma a contemplá-lo, mas tal
devaneio não foi feliz dada a chuvintensa, em outra tentativa infeliz inspirei profundamente para
recarregar o ar nos pulmões, mas tudo que inalei foram gordas gotas de água e em consequência
disso tossi fortemente.
 Watane Nkulo? Uli bom mwananga? (O que se passa Nkulu? Está tudo bem contigo filho?)
 Nunca estive tão bem vovó, nunca estive tão feliz. Mas eu dizia: não é o que, é com quem, com
quem estou rindo, essa deveria ser a questão.
 E com quem você está rindo se estamos andando sozinhos?
 Não estamos andando sozinhos, estamos andando com a chuva e é com ela que estou rindo.
 Hammm?
 Ainda hoje há quem por pura ignorância desconhece a chuva, a chuva cai é para lavar, lavar
a terra, o céu, o mundo. Mas choveu-me tanto que ela acabou lavando-me a alma. Deixa a
chuva entrar em ti vovó, a chuva é uma terapinga para a alma, é a outra forma que Deus achou
para emendar os defeitos do mundo, chuvatorne-te vovó, há muito que deixamos de ser chuva.
Somos sempre ventania em vidas alheias, águafaça-te e chova sobre os outros. Agora sei: Deus
fez a terra e a chuva a amamentou. A chuva é a mãe da terra e a nossa primeira mãe, afinal, não
somos nada mais que pó de areia.
Boquiaberta, a vovó começou por fitar-me como se demanda-se resposta para aquela ocasião,
mas ao fim ao cabo dela não se teve vocabulário que fosse. Deixando a avenida viramos à
esquerda para acedermos a EN6 onde encontramos um grupo de oito pessoas que descalços iam
calcorreando o asfalto na direção em que estávamos tomando.
 Matxérua! (Bom dia!)  conduziu-nos a palavra um dos indivíduos que posteriormente
identificou-se como Matsatsanye Mafambisse.
 (Matxérua, mano!)  Respondeu o avô
 Parece que também estão à procura de um sítio, não é?
 Sim sim mano, mas só estamos a andar não sabemos ainda onde, estamos a sair da Samora
Machel não está a dar aquilo.
 Oh, alí não vale a pena papá, como é rei do chão toda Beira fugiu para lá. Vamos para a
Escola Secundária da Manga!  E porque não tínhamos destino traçado, o avô aceitou de
imediato. Passamos a loja de pneus e o supermercado, caminhávamos a passo estugado, não
havia fala, somente os pés trocavam sussurros com o asfalto:  vamos virar à esquerda!  Disse
Matsatsanye conduzindo-nos e assim o fizemos, trocamos a EN6 pela Estrada do Aeroporto
virando a escassos metros da ponte da Estrada do Aeroporto sobre a EN6, à medida em que
iamos deixando a EN6 iamos galgando a escorregadia elevação até a Estrada do Aeroporto,

75
mantendo o mesmo nível de caminhada por longo tempo passamos o centro comercial Mutara
Comercial à direita e passando o Centro Hípico da Beira à esquerda, tomamos a rua à direita
virando pelo Mutara ferragens.
 Já estamos quase!  Garantiu Matsatsanye e retórico reatou: lá não há stress lá!
Acenamos todos que sim e continuamos consumindo a distância, e tendo já passado a Igreja da
Mananga à esquerda da via o guia tornou a intermitar o silêncio:  yah é que lá onde vamos foi
minha escola há muito tempo então a distância real me fugiu um pouco, mas já chegamos é alí
assim na esquina.  Indicou com o dedo e prosseguiu: bem perto do Ferroviário!
Nesse instante a avó parou, estava muito queixosa das pernas:  watane yavo? (o que se passa
vovó?)  Juntamente com o avô questionamos acidentando as falas, aquela súbita paragem
deixou-nos muito preocupados.
 Nikudva kupa miendo, ngako dzave famba miendo ya bjimba. (Doem-me as pernas, já não
consigo andar estão inchadas).
 É que a pessoa é uma planta, as tuas pernas apanharam muita água. Faça um pouco mais de
esforço para andar senão elas germinam raízes e ninguém mais te irá mover.  Disse o avô.
 Sim, faça um esforcinho mãe, já estamos quase lá é alí assim, logo ao pé do Clube
Ferroviário.  Admoestou uma das senhoras que estava no grupo e uma outra tendo observado
disse:  os pés dela estão inchados não vai conseguir  e por fim afirmou: vamos carregá-la!
 Não estão inchados são as raízes do corpo procurando a terra, a pessoa é uma planta, os pés
são raizes ambulantes, o problema minha esposa é que você se enraizou demais nestas areias.
Vamos mulher, rápido!  disse o avô. Contudo, quando procuravam carregá-la, dispensou o
obséquio:  nkabe nkabe, ndi siene ndi nafika ndeka. (Não não, me deixem vou chegar sozinha!)
 E quando dela ninguém esperava palavra, proferiu: thango mundo antho asakhala nenga
mafilor anapiananga, pioncene ndi masapato aneu, há mwinto que me impetem as raisses te
apraçar a terra, este inchaço não é cansaço ta estrata, os meus pés têm é sautates ta areia, te
foltar a pernascer (é que a pessoa é uma planta meus filhos, a culpa é desses sapatos, […])

(Diálogo traduzido do Cisena)

Não foi necessário investir muitos passos na caminhada que nos restava e já estávamos à
entrada da escola.
 É aqui, já chegamos!  Afirmou Matsatsanye e em seguida disse: eh desculpem-me nem disse
o meu nome pela preocupação de chegar, chamo-me Matsatsanye Mafambisse e esta aqui é a
minha família.  Apontou os outros.
 Está bem, mano, não há problema, eu também estava muito preocupado. Esse menino aqui ê
apontou-me: é meu neto mas tratamo-lo como filho, vive conosco desde que tinha três meses,
chama-se Nkulo  e apontando a avó prosseguiu: esta mamã aqui é a minha mulher, chama-se
Crocodila do Púnguè Deságua Mar
Feitas as apresentações entramos na escola onde fomos bem recebidos pelos que já lá estavam.
A escola não estava tão cheia como a anterior, no chão estavam crianças, mulheres e homens
envoltos em esteiras, mantas e capulanas acumulados de um lado da sala dado que a outra parte
era ocupada pela água que entrando do tecto, deixava-se acomodar no húmido soalho, a sala era
compartilhaguada (compartilhada com a água).

76
Vocabulário

Terapinga: pingos terapêuticos (terapia em gotas)


Chuvatorne-te: chuvatornar, torna-te chuva
Águafaça-te: Águafazer, tornar-e água

77
78
Capítulo VIII

A irreversível decisão de Djulinhão


“Daqui não saio, daqui ninguém me tiraaa!”

79
“ A pressa em mostrar que não se é pobre é, em si mesma, um atestado de pobreza. A
nossa pobreza não pode ser motivo de ocultação. Quem deve sentir vergonha não é o
pobre mas quem cria pobreza.
Vivemos hoje uma atabalhoada preocupação em exibirmos falsos sinais de riqueza.
Criou-se a ideia de que o estatuto do cidadão nasce dos sinais que o diferenciam dos mais
pobres.
[…] É urgente que as nossas escolas exaltem a humildade e a simplicidade como
valores positivos.
A arrogância e o exibicionismo não são, como se pretende, emanações de alguma
cultura africana do poder. São emanações de quem toma a embalagem pelo conteúdo.

(Trecho do discurso proferido pelo escritor Mia Couto na abertura do ano letivo do Instituto
Superior de Ciências e Tecnologia de Moçambique (ISCTEM), e posteriormente publicado em E
se Obama fosse africano?)

80
− Djulinhão vamos! − Disse a irmã do homem
− Não, daqui não saio!
− Mas as águas estão a engolir a casa, vovô. Deu cobro a neta
− Elas que engulam, elas que engulaaam! Mas daqui não saio eu!
− Vais morrer afogado velho? − Inquiriu Djulinhão Jr.
− E que diferença faz a forma como irei morrer se a morte é tudo igual? Vale mais eu que posso
escolher como morrer do que ser surpreendido.
− Mas por que te recusas tanto pai?
− A vida já me roubou muito, primeiro levou-me a Maria Anãozinha Assim Noé Nossa, minha
eterna esposa, depois levou-me o meu primogénito Agostinho Olhos São da Mãe Como e agora
quer me levar o património? Nuncaaa! Isso nunca!
− Mas pai…
− Já disse nunca! Deixem-me, daqui não saio nem amarrado com correntes. Essas terras são
minhas, não vou deixar para as águas, não vou abandonar as minhas plantações e muito menos
o meu gado.
− Se o senhor não sair daqui vai morrer afogado pai, acha mesmo que o gado vale a tua vida?
Vamos pai, terás outro gado.
− Outro gado? (Desfilou um sorriso irônico) Essa é a minha última vida minha filha, que outra
vida poderei ter longe destas areias? Não saberei nunca respirar outras poeiras, que pé terei eu
para pisar outras areias se é este chão que piso desde antes de me conhecer como pessoa.
Podem se ir vocês meus filhos eu escolhi morrer aqui.
− Mas pai o senh…
− Sem mais nem menos esta é a minha decisão, está tomada e não mudará por nada. Do que
vale ainda fugir das águas se a morte vem me buscar e já ela está próxima? Digam-me vocês
que estudaram muito: o que vale mais? Morrer a fugir ou morrer parado? Morrer na rua ou em
casa? A vida toda apanhou-me de surpresa, a morte pelo menos, quero que me ache preparado.
Vão vocês que ainda são jovens e têm forças para gastar, quanto a mim já não tenho mais idade
para isso, não quero que a morte quando vier me buscar me ache cansado, seria muita
irresponsabilidade da minha parte.
E assim foi com Djulinhão Afinal Nasceste Como, pai de três filhos: Djulinhão Bonitinho
Assim Noé Nossa Como Jr., Margarida Olhos Bonitos Assim Noé Nossa Como e Djoão
Pequenino Assim Nóe Nossa Como. Na Ponta Gea as águas iam cada vez mais atigindo
eminentes níveis, as casinhas de construção precária estavam sendo todas submersas. Há dois
dias após a chegada do Ciclone Idai que todos os moradores da Ponta Gea haviam migrado para
pontos maios seguros, a família Como era a derradeira naquele deserto. A família de Djulinhão
acreditou que em algum momento pudesse convencer o velho a abandonar a casa, em debalde, o
homem obstinou-se até o último minuto. Por isso o deixaram naquelas águas e tristes migraram
para o Esturro e alojaram-se na Escola Secundária Samora Machel. Enquanto a família saía, o
homem abriu a mala que fazia trinta anos que não abria e não permitia que fosse tocada por

81
pessoa alguma, dela retirou seu antigo fardamento militar, equipou e em sentido foi afundando
enquanto cantava a melodia do Hino Nacional:

Na memória da Beira e de Moçambique,


Pátria bela dos que ousaram nadar!
Minha Beira, o teu nome é está nas águas,
O ciclone de Março nenhum beirense esquecerá!

Coro:
Nossa Beira, nossa terra submersa!
Gota a gota inundando os nossos dias!
Milhões de gotas: numa só Beira,
Ó Beira amada, não fugirei!

Beirenses unidos da Ponta Gea ao Alto da Manga


Vão nadando a procura de um lugar para ficar!
Morrem os sonhos ondulando nestas águas
E vão nadando na incerteza do amanhã!

Águas nascem de tudo que é canto,


Pelos montes, pelos rios, pelo mar!
Eu afirmo por ti, ó minha Beira:
Nenhum ciclone me irá afugentar!

82
83
Capítulo IX

O derradeiro refúgio

84
“Para si, meu filho, para si que estudou em escola, o chão é um papel, tudo se
escreve nele. Para nós a terra é uma boca, a alma de um búzio. O tempo é o
caracol que enrola essa concha. Encostamos o ouvido nesse búzio e ouvimos o
príncipio, quando tudo era antigamente.”
(Mia Couto, in “O último voo do flamingo”)

85
No gélido chão sentamos entreolhados, cruzamos penosos olhares, lamentamos a súbita
pobreza que nos havia assaltado, na verdade já éramos pobres, o ciclone nos tornou é penosos. A
avó estendeu as capulanas sobre o chão e orientou-nos que sentássemos, estava tudo molhado. Lá
fora a chuva caía, mas era a alma que se inundava, cheia de dores e tristezas naufragava em
nossas próprias lágrimas. Não foi somente a Beira que sofreu, que foi devastada pelo ciclone,
mais do que tudo foram as nossas almas que ficaram mais destruídas. Essas árvores quebrantadas
pelas artérias da cidade um dia regenerar-se-ão, tornaram a florir e suas pétalas sorrirão para a
vida como era de costume.
Acocorado no húmido chão, caiu sobre mim um profundo e pesado sono, tão pesado que não
cheguei a notar os refugiados que iam chegando à escola. Não havia nada para comer nem beber,
o mais incrível é que permeio a tanto martírio eu não tinha mente para lembrar da fome, com o
corpo tremebundo todo mundo era capaz de saber o que eu tanto almejava: roupas secas, chão
seco, um pouco de quentura e uma nova alma.
O dia todo passou-se assim: contorcidos em fomes, tristezas e frios. E foi assim por toda
semana, sem nada que comer e beber. Já não tínhamos mais forças para nos erguermos, e
portanto, deixamo-nos assim: resignados ao sofrimento com uma vela de esperança acesa na
mão. Acreditávamos que em algum momento o martírio cessaria e a ajuda chegaria o mais rápido
possível, infelizmente não foi assim. Os únicos visitantes que nos chegavam com frequência
eram o tremeluzir dos relâmpagos e o bramir das trovoadas anunciando o rancor dos céus, foram
muitas as vezes que de noite a escura sala amanheceu, naquele súbito e efêmero clarão
enxergávamos a nossa penúria, enquanto isso, chuvintensificava (a chuva intensificava).

86
87
Capítulo X

Sobrevivência:
caminhando ao encontro da vida!

88
Nenhuma escola será tão eficaz como a vida, nenhum professor nos ensinará
tanto quanto os nossos próprios erros.

“Num tempo de portas fechadas, o meu pai espreitava o futuro pelo buraco da
fechadura. O futuro mudou? Ou fomos nós que passamos a entender melhor a
complexidade do mundo?”
(Mia Couto in E se Obama fosse africano?)

89
Uma semana após a aterragem do Ciclone Idai

− Para onde vai dona Mafambisse?


− Vou me encontrar com a vida, filho.
− Vai se encontrar com a vida? Como assim?
− Sim Nkulo, nesses lados da África envelhecemos tanto não do viver, mas do tanto esperar no
banco do tempo por uma vida sempre tão tardia que quando chega, já não temos mais fôlego
para este mundo. Por isso não esperarei mais, vou já ao encontro dela!
− E onde está ela? − Inquiri curioso
− Siga-me, miúdo! − Imperou
− Eu? Seguir-te? − Indaguei estupefacto: e os…
− E os teus avôs? − Intermitou-me prioridade de fala: é isso que querias perguntar-me não é?
Olha, quantos anos tens?
− Tenhooo…
− Okay, okay, isso não me interessa. Ouve filho, o que dita a idade do homem não é o
documento de identidade, mas as circunstâncias da vida. Você precisou dos teus avôs em toda a
tua vida, agora mais do que nunca eles é que precisam de ti. Agora o adulto é você e eles
tornaram a ser crianças, Olha para eles, já não os resta quase nenhumas forças. Ajude-os
homem, vamos procurar para eles o que comer, eu e você ainda temos um pouco de forças, mas
quanto a eles senão fizermos nada a respeito não sei se verão as nuvens de amanhã.
A expressão facial murcha dos meus avôs revelava exímia objecção àquela decisão, contudo
não foram capazes de proferir palavra porque a fome havia tomado conta de todos nós, portanto,
segui a dona Mafambisse e detrás seguiram os demais, não sabia para onde ia até que me
disseram “vamos procurar comida!”
− Procurar comida? Aonde? − Inquiri estupefacto
− Nessas lojas dos burundeses ou nigerianos, nas empresas, em qualquer sítio. Só não podemos
morrer sentados. Acontece é que a morte tem pernas mais longas que da vida e enquanto
esquentamos o banco do tempo, às vezes ela nos acha primeiro. Assim pelo menos quando ela
for a chegar não nos encontrará. Aprenda a viver miúdo, a vida é a arte de bem fintar a morte.
− Afirmou peremptória a senhora que conheci na escola, em dois dias tornamo-nos todos
amigos, em uma semana tornamo-nos família, que incrível é o facto de em vida unirem-nos mais
as lágrimas que os sorrisos.
Percorremos quilômetros significativos até ao armazém de alimentos, ali já estavam muitos
retirando sacos e sacos de arroz. E era o mesmo acontecimento em quase todos os cantos da
cidade, armazéns, lojas e empresas eram saqueadas. Acontecia que passada uma semana a chuva
cessou e a fome germinou descontroladamente por todos os cantos. Enquanto alguns
arrombavam as portas, grades e janelas das lojas para delas retirar bens alimentares, outros
apanhavam os ensopados bens nas ruas alagadas. Naquele instante não importava nem a
aparência nem o estado dos produtos, pese embora alguns estivessem já em avançado estado de

90
deterioração dado o demasiado tempo em que estiveram submersos, ninguém parava de lutar por
esses.
− Mas essas pessoas estão a roubar os alimentos das lojas.
− Estão a roubar? − Indagou-me um dos que conosco estava
− Sim, não vê? Quem os autorizou? Olha só a forma como invadem as lojas de dono.
− Autorizar? Autorizar? E quem pensas que vai nos autorizar? Essas coisas agora já não têm
dono, ou melhor, são do povo. − Disse outro, e todos se juntaram ao grupo que saqueava o
armazém, das cabeças saíam sacos molhados de arroz. Eu, porém, limitava-me a recolher com
outras senhoras os restos deixados para trás pelos saqueadores de lojas, isso fazia-me sentir
menos pecador que os outros. Hoje, porém, sei que foi tudo engano. Nenhum pecado é melhor
que o outro.

91
92
Enquanto regressávamos ao Alto da Manga deparamo-nos com crianças de tenra idade tirando a
turva água das ruas em pequenos recipientes para em seguida bebê-la. Perplexo, parei para
ratificar a visão e mesmo depois de tanto contemplar não fui capaz de credibilizar aos meus
próprios olhos por isso perguntei o que estava clarividente: − vocês estão a beber essa água?
Pausando os recipientes fitaram-me de rompante e havia nos seus olhos um espanto maior que o
meu. Demoraram um tempo entreolhando-se, naquele tácito fitar nasciam muitas perguntas, em
seguida respondeu-me o que bebia: “Sim! Qual é o problema da água?” Nesse instante ficou-me
claro que o que os espaventava não era a pergunta óbvia que fizera, mas o questionar de um acto
tão natural como o respirar.
− Essa água vos fará mal!
− Fará mal? O que pode fazer mal a quem nunca nada teve? Ou já encontrou mendigos nas
bichas dos hospitais?
− Essa água está contaminada, arrastou toda a imundície da cidade até aqui. Sei que a situação
está péssima, mas pensem na vossa saúde. Essa água, reiterei enfático, puxou toda a sujidade da
cidade, o lixo das ruas, as fezes, as substâncias nocivas e muitas outras impurezas que se quer
fazemos ideia. Não bebam essa água manos, por favor! − Entretanto, os rapazes contrariamente
ao que esperava puseram-se à gargalhadas e por fim falou o mais crescidinho deles: − nós
nascemos nas ruas mano, nunca tivemos um tecto, um cobertor, uma cama, uma comida
especial, as nossas mãos foram sempre os nossos cobertores, as nossas louças, os dedos os
nossos talheres, este chão de onde tiramos esta água que chama de suja, foi sempre a mesa que
nos serviu. De que saúde fala se somos filhos das ruas? De que mal pode sofrer quem viveu
sempre do que vem do chão? Que outro mal há ainda para sofrer se já somos pobres? E
concluiu: não existe água suja e água limpa, toda a água do mundo é igual, diferentes são os
olhos de cada um. E deu cobro um terceiro menino: − nada do que nasce das areias pode matar
o homem, o que mata o homem, concluiu: é o que nasce no seu coração. Não tive mais alma para
sobrepor suas falas, desabafos dos filhos da rua, meninos inocentes. Não tive mais forças para
nada e quando dei por mim os meus olhos eram nascentes.
A viagem prosseguiu e nesse então a minha alma caminhava fora do corpo, gostava eu que
pudesse carregar nas costas todos oos pobres para que não pisassem jamais o chão desse gélido
mundo.
− Gostaria de poder fazer algo por vocês mas nada posso fazer. Mas não se preocupem, Deus
criou um mundo para vocês! − Com lágrimas descendo-me o rosto voltei para falar-lhes isso,
quando na verdade era a minha própria alma que eu pretendia aquietar.
“Nkuulooo… vamos!”, gritou a senhora Mafambisse. Segui-a com os cuidados de um camaleão,
as encharcadas ruas não nos permitiam ver o chão, entretanto aconteceu que após a chuvintensa
da quinta-feira, aquando da passagem do ciclone Idai os rios Búzi e Púnguè transbordavam
sobremodo exorbitando-se além-margens. Esses rios eram bocas que iam engolindo casas,
carros, pessoas e árvores, por essa razão o caminho que outrora usamos estava então
intransitável, as águas aumentaram o nível sobremaneira, ascendendo da medida da minha
cintura para o pescoço: − não, não, estou a afundar, não consigo mais! − Afirmei

93
Os outros viram que realmente era inviável voltar para onde estávamos? Também não
poderíamos continuar? Era suicídio voluntário! Parar? Todos compreendíamos que é a forma
mais cobarde de morrer.
− Então, o que faremos? Para onde iremos?
− Calma Nkulo, calma! Deus vai nos tirar dessa. − E aconteceu para a nossa felicidade que
estavam paradas em derredor de nós algumas árvores para onde acorremos enquanto assistíamos
o ascender célere do nível de águas, não fossem os jovens que acorreram a socorrer-nos numa
pequena canoa, estávamos convictos de estarmos entregues à morte, a meio a uma solidão de
águas castanhas quem nos salvaria senão Deus?
− O barco é pequeno, não vamos poder levar todos de uma só vez, primeiro vamos levar os
menores e depois voltaremos para levar os grandes. − Disse o condutor da barquito
Aquela canoa, não tenho dúvidas, estava a mando de Deus! Por isso navegava, mas não tocava
as águas, flutuava suavemente sobre as suas poderosas mãos. Dentro do barquito contempenava
(contemplar com pena) a probezagem (pobre paisagem), debaixo dessas águas jaziam pessoas,
carros e casas.
− Existem dois tipos de água: as que nascem do céu e as que nascem das areias! − Disse o
jovem marinheiro e posto o silêncio sobre nós, deu provimento: Eh! Não sabiam? Lá em cima,
no céu, existem lagoas, rios e mares. Essa que desce como chuva as vezes é das cascatas as
vezes é quando abrem as comportas, muito muito depende da maneira dele de chover. Quando
chove muito é porque lá em cima eles abriram muito as comportas. E existem também as águas
que nascem de baixo, que são essas águas dos rios e mares que conhecemos. Só que o que está
acontecer aqui é que primeiro abriram muito as comportas do céu e agora, estás que estão a
nascer são da areia. Tremebundos, solavancávamos toda a embarcação, o frio nos havia
penetrado até ao âmago das nossas almas, mas o homem não se importava com o nosso silêncio,
ele percebia, a boca não poderia tremer e falar ao mesmo tempo. Por isso deu provimento: e
acontece que nem todas as águas são nossas, algumas dessas não são nativas, vêm de outras
geografias, é verdade irmãos me acreditem sou marinheiro desde antes de vir ao mundo, como
acham que atingi o óvulo? Naveguei mais rápido que os outros irmãos. O homem vira
marinheiro não quando aprende a navegar, mas quando aprende a diferenciar as águas.
Acontece meus irmãos que a vizinha Zimbabwe que foi igualmente sacudida pelo ciclone, abriu
as suas comportas para mitigar o nível de enchentes e adivinhem só quem paga o preço? Quem?
Beira! Agora meus irmãos já não existem lagos, rios e mares, tudo são águas, meras águas!
Beira está dentro das águas e as águas todas estão dentro dela, mas Deus trouxe as águas para
acabar com as fronteiras, não entre geografias, mas entre os homens. Quão grande são as
fronteiras que nos separam. Ora olhem só para os lados, já não há fronteiras!
− E para onde vamos nós, senhor? − Questionei
− Para o rei do chão, lá no terraço onde estão os outros. − Respondeu o condutor
− Senhor eu preciso voltar para a minha família no Alto da Manga, os meus avôs terão um
ataque cardíaco se eu não regressar agora.

94
− Sinto muito meu filho, mas não podemos voltar. Não temos como chegar lá assim, as águas
estão cada vez mais violentas, os rios, as barragens, tudo está a transbordar, vamos crer em
Deus que todos ficaremos bem e voltaremos a nos encontrar são e salvos. Estás a chorar,
maninho? Não chores senão vais piorar as inundações. Oh! Não sabias? Nada inunda mais a
terra que as lágrimas, a tristeza da alma, essas meu irmãozinho, são mais perigosas que mil
chuvas, porque as águas que caiem do céu atingem a terra, mas as que caem dos olhos atingem
o coração de Deus.

95
96
Capítulo XI

Venezambique:
a cidade submarina

97
“O que faz andar a estrada?
É o sonho.
Enquanto a gente sonhar
a estrada permanecerá viva.
É para isso que servem os caminhos,
para nos fazerem parentes do futuro.”

(Fala de Tuahir em “Terra sonâmbula”, Mia Couto, pp4, e-book)

98
Na sequência dessas forças atmosféricas as águas desceram sobre a cidade da Beira como nunca se
havia testificado, a cidade toda estava submersa, casas, carros, gados e plantações, estava tudo por baixo
das turvas águas. Para escaparmos de ser engolidos por essas assassinas águas que já iam cobrindo as
casas, acorremos para o terraço de um antigo edifício, e lá nos amontoamos com roupas e outros
pertences. Foi então que da vista panorâmica ao ver homens navegarem numa pequena embarcação de
construção precária que levava as pessoas de zonas de risco eminente para prédio onde em seguida
subiam até ao terraço, germinou-me naquela imagem uma tristeza particular, as ruas que outrora eram
sólidas estavam nesse instante liquefeitas, era doloroso ver uma canoa flutuar sobre as mesmas ruas que
outrora corri com os amigos, amigos esses que não sei mais o seu paradeiro, como estão, se é que ainda
estão, nada! E Xonguile, minha tão grande paixão? Onde estará ela a meio a esse oásis? Nada sei! Perdi
contacto integral, que Deus, o Omnipotente, Omnisciente e Omnipresente os proteja tal como nos tem
feito a nós. Espero com a vela da esperança acesa em meu coração que um dia a vida nos volte a unir e
não nos separe jamais. Nessas ruas joguei futebol, dancei, saltitei e calcorreei como se as areias todas do
mundo me pertencessem. Não obstante, surgiu-me após esse sentimento nostálgico um refulgente e
remoto sorriso no rosto.
− De quê te ris miúdo? − Indagaram-me os demais, pasmos. Como me podiam germinar
felicidades em momento intempestivo?
− Eu? Rir? Nãooo!
Não cheguei a confessar o motivo do matreiro sorriso, entretanto, sucedia-se que ao ver o
barquito navegar sobre as águas da rua lembrei de Veneza, sim, a cidade italiana sobre águas, e
isso fez-me sentir especial. Tanto que nas horas subsequentes a vontade de navegar sobre elas
subiu-me até ao coração. Quem dera pudesse navegar sobre as ruas liquefeitas, sempre soube que
essas ruas eram feitas de ouro em pó e hoje, liquefeitas, não vivem mais em mim dúvidas
algumas, assim, quem sabe?! Navegaria por toda a Beira à procura do meu amor e dos meus
amigos e com eles faria turismo de cheia.
Mostrar-lhes-ia a Venezabeira, sim! A nova Beira, essa da qual sou exímio descobridor, a
penosa cidade que em meus olhos sonhadores ganhou beleza contemplada de cima. E eu que
tanto quis conhecer Itália não tenho mais essa sede, não preciso mais, a minha Beira tornou-se na
segunda Veneza, a Veneza de Moçambique. A única diferença é que a Veneza europeia está em
cima das águas, esta minha, porém, está em baixo destas. Mas as águas são todas as mesmas,
quase as mesmas a bem dizer, pois essas nossas têm algo valioso que as outras não têm: são
feitas de ouro fundido.

99
100
Capítulo XII

Equipa de salvamento

101
“Acendemos paixões no rastilho do próprio coração.
O que amamos é sempre chuva,
entre o voo da nuvem e a prisão do charco.
Afinal, somos caçadores que a si mesmo se azagaiam.
No arremesso certeiro vai sempre um pouco de quem dispara.”

(Mia Couto em “Cada homem é uma raça”)

102
Do terraço ouvimos um ruído incomum que vinha acompanhado de uma frescura que ia ganhando
níveis sublimes a cada segundo. Pasmos, todos se dispersaram perscrutando o pobrezonte, o que seria?
Estaria o ciclone Idai regressando novamente? Estaríamos nós prestes a vivenciar mais um episódio deste
sádico episódio chamado ciclone Idai? Seria este o Idai parte 2? As perguntas borbulhavam efervescentes
em nossas mentes, trocamos olhares agressivos, opacos e esfomeados, cada olhar expressando medos
individuais e não havia em olho algum a resposta para essa abrupta vicissitude da calmidade dos ventos,
até que de rompante vislumbrou-se, longínquo, num lusco-fusco um corpo voador. “O que será?”
Questionamos todos com os olhos esfomeados de curiosidades.
− Licóptro, licóptro…! − Gritou Munhava Filho do Vento, menino de 8 anos de idade. Então
percebemos, o que se aproximava não era uma outra tempestade nem seu barulho se assemelhava
a trovões, de perto percebemos: era mesmo um helicóptero. Primeiro, começou por rodovoar
(voar aos rodeios) umas duas voltas, o vento provocado era tão intenso que quase não
conseguíamos fitar o artificial animal voador, em baixo as águas desconfortavam-se em moviam-
se sobremodo formando médias ondas, em derredor os coqueiros e demais árvores deitavam-se
de cabelo penteado como se sentissem saudades da terra e almejassem beijar o chão,
infelizmente todos padecíamos da mesma saudade mas não podíamos. Do vidro frontal era
possível ver o piloto perscrutando o terraço e da porta um outro homem, todos parecia procurar
algo em baixo.
Por instantes, o veículo aéreo pareceu querer aterrar, mas hesitou, tornou a ganhar alturas e
desvaneceu-se como águia no acizentado firmamento. Enquanto isso, as pessoas que iam
gritando aos acenos de mãos: “heiiii, heeiii, heii…! Aqui! Aquiii!” tornaram a perder o
entusiasmo, a expressão de derrotados em seus corpos era como o da vela que socumbe do seu
próprio calor. As pessoas tornaram ao aconchego da tristeza, esperantristes (esperançosas e
tristes). De outra sorte que na tarde do mesmo dia para o nosso espanto as árvores começaram a
solavancar sobremodo e olhando, percebemos: eram passos de marabenta. Os rios e mares
interiores por sua vez agitavam-se em desordenadas ondulações, e olhando percebemos: era a
coreografia do Nhau (dança tradicional da zona centro do país, concretamente na província de
Tete). E não foi preciso levantar inquérito, ouvindo, todos entendemos: dançavam ao som da
aeronave que havia regressado, de sorte que dessa vez o helicóptero replicava o trabalho de
Deus: regar-nos de bençãos.
Todos regozijávamo-nos enquanto do céu choviam alimentos diversos, água potável e
cobertores para que pudéssemos aguentar-nos por um pouco de tempo enquanto as equipas de
emergência não chegavam, diziam eles do altifalante e nos pediam perseverança. Infelizmente
não foi como disseram: “um pouquinho de tempo” pois tivemos de segurar firme por mais dois
dias e foram esses como a etrnidade, na manhã do dia terceiro chegaram-nos os barcos salva-
vidas da marinha que foram evacuando o prédio com os cuidados treinados. Dali fomos todos
conduzidos ao Centro de Acolhimento das Vítimas do Ciclone Idai, alí não tive dúvidas: DEUS
É BOM A TODO MOMENTO! Pois sem esperar reencontrei os meus amigos Binga e Khadunga
e na manhã do dia seguinte reencontrei-me com os meus avôs que acabam de ser resgatados.
No centro não havia muito, entretanto, o que havia era melhor do que tudo que havíamos
sofrido.

103
5 (cinco) dias depois

Volvido quase uma semana quando achei ter já vivenciado todas as emoções que a vida me
reservara, ocorreu o que de tudo estava à anos luz das minhas expectativas: na manhã do quinto
dia, tomávamos a papa conforme o hábito quando uma moça intermitou-nos a refeição: −
matxérua! (Bom dia!) − Disse
− Matxérua! (Bom dia!) − Respondeu a avó
− Sim, desculpa incomodar é que está uma menina à procura de Nkulo, provavelmente seja seu
familiar. Alguém conhece ou sabe onde está?
− Nkulo? − Questionou estupefacta a avó
− Sim!
− Eh! Essa pessoa tisse que nome tessa tal pessoa chama-se Nkulo?
− Sim, mãe! Disse que é um rapaz baixinho que vivia em Ndunda 2.
− Ehh! Nkulo é meu neto e a única família tele somos nós não tem manche não. Essa pessoa
tisse que é familiar to meu neto?
− Não, a pessoa só está a procura dele e já passou por quase todas as tendas, começou há muito
tempo a perguntar por isso que julguei que fosse um familiar.
− Manche pessoa tele é como?
− É uma menina muito clara ou mulata não sei bem.
− Mulata? Muito clara? Eh! Fosse conhece essa pessoa Nkulo?
− Nkabe, yavo! (Não, avó!)
− Eh, manche fai lá fer pote ser uma conhecita aí ou fissinha mesmo. Fão lá fer Pinca e
Khatunca! − Aos tragos terminei a refeição e rapidamente fomos ver a pessoa que tanto
procurava por mim, chegado ao local tal indivíduo não estava.
− Está aonde essa tal menina? − Inquiri à moça
− Eh! Estava aqui há pouco tempo, já não sei!
E ocorreu que quando ensaiava o contorno, um vulto tapou-me os olhos. Levei alguns minutos
a tentar desvendar o titular daquelas mãos que carregavam suavidades angelicais e espargiam um
aroma de aquietar a alma, como se fossem feitas não de dedos, mas de pétalas. Aquela suavidade
e aroma fizeram-me concluir de imediato: eram mãos que nunca haviam tateado a pobreza. E
aconteceu que o vulto se aproximou ainda mais e em surdina sussurrou em meus ouvidos: − olá!
A voz, delicada e esbelta que era, dispensava apresentações, nesse instante uma chama interior
ateou-me sentimentos adormecidos, meus ouvidos sabiam, mas meu coração negava-se a
acreditar e os meus olhos buscavam ratificação, por isso virei-me, rente ao vulto meu coração
multiplicou seus batimentos cardíacos, a célere respiração escapava-me dos poros. Incontido,
lacrichorei (uma combinação dos termos “lacrimejar” e “chorar”), um turbilhão de sentimentos
crepitava no meu coração.
− Eh… ah… Chonguile?
− Sim, sou eu! Procurei-te por todos os cantos e recantos do mundo.

104
− Mas o que voç…
− Shiii‼! Não fala nada, eu aceito!
− Aceita?
− Sim, aceito ser tua namorada. Eu não me importo com nada!
− Ser minha namorada? Aceita? Como assim? De verdade? Mas é que… eh, como você…
daquela vez… − balbucioso, as palavras negavam-me a fala, fugidias. E foi com um beijo que ela
calou-me, essa foi de todas as vivências a melhor da minha vida! E mais, com o grupo no qual
estava traziam mais alimentos e roupas angariadas para as vítimas.

105
106
Capítulo XIII

O depoimento de Matakupandja
(Uma árvore tatuada à alma, uma alma tatuada à árvore)

107
“Inquirido sobre a sua raça, respondeu:
— A minha raça sou eu, João Passarinheiro.
Convidado a explicar-se, acrescentou:
— Minha raça sou eu mesmo. A pessoa é uma humanidade individual. Cada homem é
uma raça, senhor polícia.”
(Extrato das declarações do vendedor de pássaros em “Cada homem é uma raçã”, Mia Couto)

108
Um ano depois
Março de 2020

“Despertado por um aterrador roncar fui fitando, em visão embaçada, um vulto sacudir o ar,
o que é isso agora? Questionei-me estupefacto! Escancabri (escancarar, abrir) os olhos para me
ampliarem a visão, em debalde, não era capaz de contemplar o vulto até que foi se aproximando
em demasia, foi quando vi: era um helicóptero e parecia-me das Forças Aéreas. Chorei de
alívio, chorei muito. Lançaram-me a escada, mas não tinha forças se quer para segurá-la,
quanto mais para escalar. Então desceu um homem até próximo de mim e agarrou-me, foi assim
que devagar, fomos ambos escalando com os cuidados de um camaleão.
Dentro do helicóptero fizeram-me um teste de consciência, o homem que me havia resgatado
da árvore começou por tatear minhas mãos, escancarou meus olhos e em seguida perguntou: −
como te chamas? Como te chamas?
− Matakupandja
− Nome completo senhor!
− Uyenda Kupe Matakupandja
− Consegue contar os meus dedos?
− Sim!
− Quantos são?
− Eh.. um, dois,… não, não um.. eh não estou a ver bem. − Em seguida o homem pressionou-me
as mãos e os pés para em seguida inquirir: − sente algo senhor?
− Não!
− Não sinto nada?
− Nada!
Na verdade fazia cinco dias que estava pendurado no apogeu do eucalipto, sem comida nem
água, sozinho, abandonado à própria sorte, nunca estive tão sozinho, nunca o mundo esteve tão
vazio, tão solitário, nem as aves riscavam o céu. Com razão, que céu ainda havia para ser
voado? O voo é da vida o acto mais expressivo de liberdade, a outra forma de celebrar o
contrato de vida que temos com Deus. Por isso que nenhuma ave ousou desfilar plumas no
firmamento, porque aquele ciclone condenou-nos à pobreza, e a vida naquele então dispensava
celebrações.
O helicóptero levou-nos até a um Centro do Acomodamento para as Vítimas do Ciclone Idai,
nas improvisadas tendas brancas encontrei outra gente desconhecida que em tão pouco tempo
tornamo-nos família, outros choravam seus familiares, outros lastimavam seus bens e outros a
fome. Eu, porém, estava absorto, pensando no quão louca tinha me sido a vida. Pensando no
eucalipto, tudo que lá passei e enquanto isso outra gente ia aterrando, resgatados de telhados,
árvores, postes e em morros transformados em ilhas. Nas tendas começaram por dar-nos papa
quente e mantas secas, recebi com as mãos apenas porque a minha mente ainda estava presa no
eucalipto, refletindo nos fortíssimos ventos que me flagelaram, as chuvas que me fustigaram
agarrado ao galho com as exíguas forças que me restavam.

109
Aquela árvore foi para mim a mão de Deus e eu estava agarrado a ela como a tatuagem
abraça o corpo, a bem dizer não havia eu não havia ela, éramos um só corpo, um só galho!
Ainda hoje sinto de relâmpago o aroma de eucalipto esvair em meu corpo, na verdade a árvore
ainda está tatuada em mim tal como eu estou nela. Por essa razão dei à minha filha o nome de
Eucalipta Mão de Deus Matakupandja em homenagem a essa árvore inolvidável. E penso ainda
que árvores como o eucalipto deveriam ser plantadas por todos os cantos do mundo, eu já
comecei, olha só para o meu quintal, olha! Plantei dez mudas de eucalipto, deeezzz!” −
Epilogou enfático.

110
Ficha técnica

Autor
Milton de Sousa Gemo

Tradução
Ana Simão Waite e Sicoche Pedro Chigua

Duração da obra
26 (vinte e seis) meses

Início
15 de Março de 2019

Término
01 de Junho de 2021

111

Você também pode gostar