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NO UMBRAL DA PATERNIDADE:
Os Direitos Autorais e a Prática de Ghost-Writing
São Paulo
2022
Introdução
Talvez uma das obras mais importantes de toda História, A Ilíada, de Homero, é um
grande clássico, conhecido, ao menos por nome, por boa parte dos estudantes
brasileiros. O que poucos sabem é que tal livro, possivelmente, não foi escrito por
Homero e sim que outros poetas teriam o atribuído ao ilustre escritor. Mais incomum
ainda é que eles conheçam a hipótese de que Homero talvez nem sequer tenha
existido, segundo a qual seria apenas uma construção coletiva constituída pelos
mesmos gregos artífices da palavra que o citavam como autor.
Embora a resposta para esse dilema não seja consensual na Academia, ele é útil
para demonstrar o quão antiga é uma prática muito semelhante ao tema que será
discutido neste texto, o ghost-writing.
1
Ghost-Writer. In: Aulete Digital, [s. d.].
Em meio a todo esse sucesso, havia ficado à margem, até então, o ghost-writer
Jorge Roberto Tarquini, responsável por converter a história de Bruna em livro. Eis
que, anos após o lançamento do filme, o jornalista decide abrir um processo contra a
Editora Original e Raquel Pacheco, exigindo ser reconhecido como único autor da
obra e a remuneração tanto pelas traduções dela para outras línguas, quanto pela
adaptação cinematográfica de 2011. Estava requerendo, portanto, os direitos morais
e parte dos patrimoniais sobre o texto. Vale, então, ressaltar a diferença entre eles à
luz da da lei n° 9.610, de 1998, conhecida como Lei de Direitos Autorais (LDA).
Segundo Luís Marcelo Algarve (2019), em linhas gerais, é possível definir os direitos
morais como aqueles que “dizem respeito à criação da obra, ou seja, ao aspecto
intrínseco da personalidade do criador”, enquanto os patrimoniais estão atrelados à
“exploração econômica da criação intelectual”. Cada um deles deriva de uma das
duas grandes correntes dos direitos autorais do século XIX. Os primeiros dos droits
d’auteur, que tiveram origem com a Revolução Francesa, enquanto os últimos da
doutrina do copyright, originada da common law inglesa2.
Uma característica muito importante que cada um dos tipos de direitos herdou de
seus originários foi a capacidade ou não de cessão para terceiros. Enquanto o artigo
27 da LDA afirma que “os direitos morais do autor são inalienáveis e irrenunciáveis”,
o 49 permite a transferência para terceiros dos direitos patrimoniais, desde que
cumpram as limitações expressas em seus incisos. Dentre eles, destacam-se o II, o
IV e o V, que asseguram, respectivamente, que “somente se admitirá transmissão
total e definitiva dos direitos mediante estipulação contratual escrita”, que “a cessão
será válida unicamente para o país em que se firmou o contrato, salvo estipulação
em contrário” e que “a cessão só se operará para modalidades de utilização já
existentes à data do contrato”. A partir disso, sigamos com o caso.
De acordo com Leonardo Zanini (2020), para a primeira instância, o jornalista não
poderia ter nenhuma autoria atribuída a si, pois seu papel foi apenas o de redigir os
relatos de Raquel e organizar os textos que ela já publicava em um blog e, na visão
da juíza, isso não configuraria “qualquer tipo de produção literária, artística ou
criativa”3.
2
Luís M. Algarve. “Direitos Autorais e o Trabalho do Ghostwriter na Visão da Justiça”. Consultor
Jurídico, 2019.
3
Leonardo E. A. Zanini. “A Violação de Direitos da Personalidade do Autor pela Prática do Ghost
Writer”. Videre, 12 (24), mai.-ago., pp. 8-18 (Dourados, MS).
Sob essa visão, a assinatura ou não do contrato não faria diferença, já que o artigo
11 da Lei de Direitos Autorais define como autor apenas “a pessoa física criadora de
obra literária, artística ou científica”.
Segundo o mesmo autor, a avaliação do Tribunal de Justiça de São Paulo foi distinta
da anterior, embora também desfavorável a Tarquini. Na perspectiva dos
magistrados, o requerente havia prestado papel criativo sobre a obra, mas ao
assinar o contrato, tinha plena ciência de que estava abdicando de seus direitos
autorais. Dessa forma, segundo o tribunal, o acordo teria sido assinado cumprindo
os princípios da boa-fé objetiva4, do consensualismo e da autonomia da vontade.
Vozes Destoantes
Segundo o professor de Direito Civil Leonardo Zanini (2020), a decisão do STJ feriria
o Código Civil, pois, em sua visão, é evidente que Jorge Tarquini empregou sua
criatividade para converter os textos e falas de Raquel em obra literária. Além disso,
um contrato não seria capaz de permitir a renúncia dos direitos morais de um
ghost-writer, uma vez que isso é expressamente proibido por lei5.
Como base para o primeiro ponto, ele retoma o trecho da fala do relator do processo
no TJ-SP demonstrado abaixo.
“O recorrente, por sua vez, com a sua grande habilidade profissional, pôde
transformar todo o referido conteúdo recebido em sucesso editorial, mas
justamente prestando o serviço de transportar para a forma escrita as palavras e
sentimentos emitidos pela recorrida Raquel, bem como, posteriormente,
escolhendo as histórias e as ordenando de forma a trazer um conteúdo de mistério
4
Princípio que estipula que todo cidadão deve seguir o padrão ético esperado de suas ações,
prezando pela honestidade, lealdade e probidade. Em casos de contratos, é esperado que, baseado
nesses valores, sejam cumpridos os deveres anexos do texto. Exemplos deles são a colaboração, o
respeito e o cuidado com a outra parte e a tomada de ações baseadas na equidade e na
razoabilidade.
5
Leonardo E. A. Zanini. “A Violação de Direitos da Personalidade do Autor pela Prática do Ghost
Writer”. Videre, 12 (24), mai.-ago., pp. 8-18 (Dourados, MS).
e envolvimento ao leitor, captando o espírito do próprio gênero literário e
desenvolvendo com eficiência o próprio trabalho para o qual foi contratado.6”
O também professor Rodrigo Moraes (2020) segue a mesma linha, porém com mais
ênfase. Afirma que “biógrafo não deve ser equiparado a escrivão de Justiça”.
Como pode ser visto, em nenhum momento, a lei obriga o autor a requisitar sua
paternidade sobre a obra, o que possibilita a elaboração de um contrato de
consentimento em não reivindicar autoria por um determinado período. Nessa
situação, o dono dos direitos poderia solicitá-la quando quisesse, e a outra parte
seria obrigada a acatar o pedido. Porém o autor arcaria com perdas e danos, em
decorrência do rompimento do contrato.
Tal visão é defendida também por Luís Marcelo Algarve (2019), autor de uma
dissertação de mestrado sobre o caso Bruna Surfistinha, e Antonio Carlos Morato
(2018 apud MORAES, 2020), docente da área de Direitos Autorais.
6
Idem. Ibidem.
7
Jéssica Trombini. Autoria à Venda: ghost writers no Brasil. Florianópolis, Centro de Comunicação e
Expressão do Curso de Jornalismo, UFSC, 2014, 12 p. (Trabalho de Conclusão de Curso).
8
Leonardo E. A. Zanini. “A Violação de Direitos da Personalidade do Autor pela Prática do Ghost
Writer”. Videre, 12 (24), mai.-ago., pp. 8-18 (Dourados, MS).
9
Idem. Ibidem.
Vale mencionar um último tópico apontado pelo mesmo professor: embora o dono
dos direitos possa solicitar autoria a qualquer momento, seria “admissível a sua
retificação apenas nos suportes produzidos após a decisão judicial”. Ou seja,
nenhuma editora teria que recolher as obras já impressas para realização da
correção.
Conclusão
É importante ressaltar que o precedente aberto pela sentença do STJ não torna
essa decisão uma jurisprudência, ou seja, uma interpretação dominante sobre o
assunto que deva ser cumprida com o intuito de garantir maior segurança jurídica no
país. Isso porque se trata de um julgamento isolado, situação em que, segundo um
artigo publicado no site do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios,
torna-se discutível a formação dessa modalidade jurídica.
Mesmo se convertida em jurisprudência, isso não impede que ela possa ser
alterada, pois a situação se enquadraria em uma das duas situações em que uma
jurisprudência é passível de modificações, segundo a jurista Teresa Alvim Wambier
(2015 apud GARCIA, 2020)10. No caso, pelo fato de o entendimento atual poder ser
considerado equivocado.
Por fim, ainda seria possível a elaboração de uma lei que regulamente a prática do
ghost-writing, fornecendo proteção aos direitos da classe. Dessa forma, ressaltamos
que, apesar de injusta a situação que se apresenta no momento deste texto, ela é
passível de mudança e deve contar com o apoio de outros profissionais do ramo
editorial.
10
Para Teresa Alvim, uma modificação na jurisprudência pode ocorrer caso a interpretação do momento esteja
errado ou se houver alterações de espectro social.
Bibliografia
BRASIL. Lei n° 9.610, de 19 fev. 1998. Altera, atualiza e consolida a legislação sobre
direitos autorais e dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9610.htm. Acesso em: 8 mai. 2022.
PANDA Books. “O Doce Veneno do Escorpião”. Panda Books, [s. d.]. Disponível em:
https://www.pandabooks.com.br/literatura/biografia/o-doce-veneno-do-escorpiao.
Acesso em: 9 mai. 2022.