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SERGIO BLANCO

TEBAS LAND

Personagens

S, dramaturgo, trinta e nove anos.

MARTÍN SANTOS, parricida, vinte e um anos.

FEDERICO, ator de teatro, vinte e um anos.

S está vestido com uma camiseta com a logomarca do Super-Homem, calça jeans e
tênis da marca Adidas. Embora sejam duas personagens diferentes, MARTÍN e
FEDERICO serão representados, durante a encenação, por um único ator, que está
vestido com uma jaqueta esportiva, calça de moletom e tênis da marca Nike, de cano
alto para proteger e segurar o tornozelo para caso de eventuais torções.

Dispositivo cênico

A encenação acontece em nossos dias, em um cenário de ensaio que representa uma


quadra de basquete de um presídio. Essa quadra, de 7 metros de comprimento e 4 de
largura, está cercada por um alambrado de 3 metros de altura. Em um dos cantos
superiores da quadra há uma câmera de vídeo-vigilância conectada em rede com um
telão que está em uma das paredes do fundo. Nesse telão serão projetadas as imagens
que são evocadas na peça, assim como os cinco nomes das cinco partes que compõem o
texto. Dentro do alambrado há uma tabela de basquete, uma escrivaninha, uma cadeira
e um banco. Em cima da escrivaninha há vários livros e um computador que também
está conectado em rede ao telão. Quando o público entra na sala, se escuta ao fundo a
música Amada amante, de Roberto Carlos, interpretada por ele mesmo. Na hora de
abandonar a sala, estará tocando With or without you de U2, interpretada por Bono.
Isto supõe que na cena final, enquanto a luz vai se apagando lentamente, o Andante
para Piano do Concerto N° 21 em Dó Maior, de Mozart, deverá ser sobreposto
gradualmente por With or without you, de forma tal que quando se atinge a completa
escuridão, só se escuta a voz de Bono.
Primeiro quarto

S. Podemos começar? Bom. Boa noite a todos. Espero que vocês estejam bem e
confortáveis. Sejam bem-vindos. Vou tentar explicar um pouco, e em poucas
palavras, o porquê de estarmos aqui. Já faz um tempo, o Teatro San Martín de
Buenos Aires me pediu um projeto para montagem. Naquele momento propus um
texto que se chamava, ou melhor, que se chama O Salto de Darwin. É um texto que
fala da guerra das Malvinas. Em um primeiro momento o projeto foi aprovado e
começamos a trabalhar com a equipe de produção do teatro, mas um dia me chegou
um e-mail dizendo que seria melhor trocar o texto. Perguntei se era pela temática que
a peça abordava, e a resposta foi que sim. Então decidimos deixar de lado O Salto de
Darwin, e foi nesse momento que comecei a idealizar esse projeto que se chama
Tebas Land. Quando expliquei que meu interesse era trabalhar com um prisioneiro
de verdade em cena, com um parricida de verdade, a primeira decisão, em conjunto
com o teatro San Martín, foi iniciar todos os trâmites a nível ministerial e jurídico,
para poder trabalhar na presença de um verdadeiro recluso em cena. Para mim essa
presença, real e verdadeira, não é um mero detalhe do projeto. É um detalhe
fundamental, já que desde o início meu interesse foi contar a história de um
parricídio de forma quase performática, sem que existisse necessariamente uma
representação. De fato, como vocês já devem ter imaginado, esse é o motivo pelo
qual o cenário consiste nessa espécie de gaiola, ou cercado. Foi uma das condições
que nos foi colocada a nível ministerial. O documento que nos foi outorgado pelo
Ministério da Justiça e Segurança Pública exige, cito: «um gradeado de no mínimo 3
metros de altura». Exigência que, como podem ver, foi respeitada ao pé da letra. Em
um primeiro momento, a ideia do alambrado nos perturbou um pouco. A ideia da
gaiola não agradava nem a mim nem ao San Martín, até o dia em que fomos à prisão
pra ter nosso primeiro encontro com Martín, nosso parricida. Esse é o nome dele,
Martín Santos. Por incrível que pareça nosso primeiro encontro foi em uma quadra
de basquete. Uma dessas quadras de basquete que, como geralmente acontece nos
presídios, está cercada de grades, assim como esta. Assim que vi a quadra percebi
que tínhamos solucionado o problema da segurança. Em seguida disse a mim
mesmo: Pronto, a cena vai estar rodeada por um dispositivo de grades que, desde o
ponto de vista cênico, vai dar segurança às autoridades, e ao mesmo tempo, do ponto
de vista dramático, vai me permitir recriar o espaço dos meus encontros com Martín.
Enfim, em todo caso a exigência foi respeitada. Por outro lado, confesso que achei
artisticamente interessante que as rubricas, as indicações cênicas deste projeto, em
parte, fossem ditadas por um comunicado do Ministério da Justiça e Segurança
Pública. Talvez poderíamos representar nosso primeiro encontro. A primeira vez que
a gente se viu. Pode ser? Ok.
**

S. Foi uma tarde de outono. Estava um pouco frio. Ventava. Muito vento. O diretor do
centro penitenciário me levou até a quadra onde estava Martín. Estava treinando.
(música Mozart número 21) Antes de entrar, perguntei ao diretor se podia ser a sós.
Queria conversar tranquilamente com ele. Ele disse que sim. Que não haveria
nenhum problema. Que eu podia entrar sozinho, mas que alguns dos guardas
obrigatoriamente nos vigiariam a certa distância da quadra. Disse que entendia
perfeitamente. Martín estava sozinho. Sabia que viriam vê-lo. Sabia que alguém
queria conversar com ele, com a intenção de escrever um texto e montar um
espetáculo. Obviamente a direção tinha pedido sua autorização, e ele disse que sim.
No começo eu preferia falar de fora e esperar que fosse ele que me convidasse a
entrar na quadra. Oi.

MARTÍN. É você?

S. Sim.

MARTÍN. Pensei que ia ser alguém mais velho. Que horas são?

S. Cinco.

MARTÍN. Não tenho muito tempo. Na verdade, você devia ter vindo mais cedo.

S. Sim. Chegamos atrasados. Tivemos alguns problemas. Peço desculpas pela demora.

MARTÍN. Que marca que é?

S. Como?

MARTÍN. Qual é a marca?

S. Ah. É um Casio.

MARTÍN. É a prova d’água?

S. Não sei. Imagino que sim. Sim. Trezentos metros.

MARTÍN. Tem cronômetro?

S. Tem. Sim.

MARTÍN. E despertador?

S. Sim. Você gosta de relógios? Você não respondeu.

MARTÍN. O quê?

S. Se você gosta de relógios.


MARTÍN. Sim. Mas… Não gosto de presentes.

S. Eu também não.

MARTÍN. Achei que você era mais velho.

S. Por quê?

MARTÍN. Não sei. Falaram que viria um escritor que queria escrever um livro. Que
queria me conhecer. Quantos anos você tem?

S. Trinta e nove.

MARTÍN. Trinta e nove?

S. Sim.

MARTÍN. E eu, quantos anos você acha que eu tenho?

S. Já sei tua idade.

MARTÍN. Já te falaram.

S. Não. Só vi o seu processo.

MARTÍN. Então, pra que você quer me conhecer?

S. Posso entrar?

MARTÍN. Não tá com medo?

S. Um pouco.

MARTÍN. Se você leu meu processo então você sabe que…

S. Que?

MARTÍN. Nada.

S. Te incomoda que eu tenha lido.

MARTÍN. Pode entrar se quiser.

S. Você vem com frequência?

MARTÍN. Todas as tardes.

S. Os guardas estão sempre por perto?

MARTÍN. Sim, mas não incomodam. Só ficam de olho enquanto eu treino.

S. E não te incomoda?
MARTÍN. O quê?

S. Que fiquem olhando.

MARTÍN. A gente se acostuma.

S. Você vai esquecendo, né?

MARTÍN. Pelo contrário. Você não esquece nunca. Eles estão sempre ali, daquele lado,
e nós aqui, desse outro lado. Aliás, todo o mundo gosta de ser olhado, né?

S. Não sei. Eu, por exemplo, não gosto.

MARTÍN. Quer arremessar?

S. Não. Obrigado.

MARTÍN. Não. Obrigado.

S. Tá rindo de quê?

MARTÍN. É que fazia muito tempo que ninguém me dizia “não, obrigado”. É estranho.

S. Sim. Imagino.

MARTÍN. Você nunca jogou?

S. Basquete? Não. Jogava um pouco quando eu era criança. Meu pai me mandou jogar
durante um ano.

MARTÍN. E qual é teu esporte favorito?

S. Não tenho.

MARTÍN. Sério? Você não pratica nenhum esporte?

S. Nado duas vezes por semana.

MARTÍN. Numa piscina?

S. Sim.

MARTÍN. E você não sabia que teu relógio era à prova d’água?

S. Não. Não sabia. Agora que eu sei, não vou tirar mais.

MARTÍN. Que horas são?

S. Não se preocupa. Podemos ficar todo o tempo que a gente quiser. O diretor deu a
autorização pra...

MARTÍN. É que não tem mais água quente depois das cinco e meia.
S. Ah, ok. Nesse caso…

MARTÍN. E eu tava te esperando às quatro.

S. Não tem problema. Não queria…

MARTÍN. Tá na hora.

S. De qualquer forma… Hoje… A ideia era… A gente se conhecer. Um primeiro


contato.

MARTÍN. Sim, eu sei.

S. Depois, o que eu gostaria é que a gente pudesse se ver uma ou duas vezes por
semana.

MARTÍN. Beleza.

S. Só se você concordar, claro.

MARTÍN. Já falei que sim.

S. Podemos nos encontrar aqui.

MARTÍN. Sim. E depois?

S. A ideia é que as primeiras vezes a gente se encontre aqui, que trabalhemos juntos e
que depois você venha ao teatro.

MARTÍN. E na televisão?

S. Quê?

MARTÍN. Também vamos estar na televisão?

S. Não, não. Só no teatro.

MARTÍN. Mas eu li que ia ter umas telas.

S. Sim. É verdade. Vai ter umas telas, mas não tem nada a ver com a TV. Depois
explico melhor.

MARTÍN. Beleza.

S. Imagino que também falaram que você vai ter um salário.

MARTÍN. Sim.

S. Bom. Não sei. O projeto… A ideia… Gostou?

MARTÍN. Sim.

S. Então podemos dar um aperto de mãos.


MARTÍN. Qual é teu nome?

S. Por que você pergunta se você já sabe?

MARTÍN. Porque deu vontade de perguntar.

S. Pode me chamar de S.

MARTÍN. Beleza.

S. Vai ficar aqui?

MARTÍN. Sim. Tenho que esperar que venham me buscar.

S. Bom. Boa sorte.

MARTÍN. Quando você volta?

S. Na próxima semana.

***

S. Nessa mesma tarde, durante o trajeto de trem que me levava ao centro da cidade, eu
fiquei escrevendo uma série de rascunhos no meu caderno de anotações. Não queria
começar a escrever. Queria esperar que a escrita viesse depois dos nossos encontros.
Por enquanto só queria registrar tudo o que vinha na minha cabeça para não me
esquecer de nada. Foi por isso que no trem anotei coisas como QUADRA DE
BASQUETE, RELÓGIO CASIO À PROVA D’ ÁGUA, OBSESSÃO PELA HORA,
entre parêntesis aparece escrito OBSESSÃO PELO TEMPO. Mais embaixo diz
PARRICÍDIO, dois pontos, ESTABELECER LINHAS DE LEITURA COM ÉDIPO
REI, OS IRMÃOS KARAMAZOV E ALGUNS TEXTOS DE FREUD. Um pouco
mais embaixo diz CONSULTAR O ÉDIPO DE PASOLINI. Depois, na outra página
aparece uma pergunta QUANDO SE COMEÇA REALMENTE A ESCREVER UM
TEXTO? E abaixo dessa pergunta, aparece mais uma pergunta que diz QUANDO SE
COMEÇA REALMENTE A COMETER UM PARRICÍDIO? Depois há alguns
endereços e alguns números de telefone. Acho que são dados do centro penitenciário.
Nesta outra página um pequeno diálogo que pela caligrafia ruim deve ter sido escrito
rapidamente e que diz VOCÊ GOSTA? DO QUÊ? QUE TE OLHEM. SIM, NÃO
ME INCOMODA. E finalmente há um enquadre que diz PODERIA ME CHAMAR
S COMO AS PERSONAGENS DOS ROMANCES DE KAFKA E ELE PODERIA
SE CHAMAR MARTÍN. Daí para abaixo uma seta em que eu escrevi e sublinhei
MARTÍN COMO SAN MARTÍN, MAS NÃO COMO O HERÓI SAN MARTIN,
SENÃO COMO O SANTO: SAN MARTÍN DE TOURS. Um dia depois daquela
primeira visita recebi uma ligação do Teatro San Martín. Era a direção, para me
informar que o Ministério da Justiça e Segurança Pública, finalmente, tinha decidido
não autorizar a participação de Martín no espetáculo. Em um primeiro momento
duvidei em continuar com o projeto. Não só não me interessava continuar desde um
ponto de vista artístico, já que a presença real de Martín era fundamental para mim,
como também achava que era uma falta de respeito com Martín ter falado que ele
participaria de um projeto que agora lhe era negado. Pedi à Direção do teatro uns
dias para pensar. Finalmente chegamos num acordo. Eu seguiria trabalhando com
Martín na escritura do texto, nossos encontros no centro penitenciário seguiriam
sendo autorizados e mesmo que fosse um ator, Fred, quem o representaria em cena,
Martín poderia, no entanto, assistir como espectador todas as noites das
apresentações. O acordo foi que assistiria na plateia e com a presença de dois guardas
policiais apaisana em cada noite. Esse é o motivo da presença dos agentes policias
que seguramente vários de vocês devem ter identificado na sala. Talvez possamos
contar nosso primeiro encontro. O que você acha?

FEDERICO. Pode ser.

S. Ok.

****

S. Lembro que assim que vi você entrar, percebi na hora que tinha que ser você. Era um
dia de chuva. Teu cabelo estava molhado.

FEDERICO. Fiz de propósito.

S. Você se molhou na chuva de propósito?

FEDERICO. Não. Molhei antes de entrar. Fui ao banheiro e molhei. Tinha escutado você
falar de uma foto do Martín de cabelo molhado. Então achei que o melhor era molhar
meu cabelo antes de entrar.

S. Mas, assim que você entrou falou que estava todo molhado da chuva.

FEDERICO. Sim, eu menti.

S. Você entrou e em vez de sentar, ficou parado.

FEDERICO. Aqui.

S. E você lembra o que você falou?

FEDERICO. O que eu falei primeiro?

S. Sim.

FEDERICO. Tava com medo de chegar atrasado.

S. Você tá todo molhado.

FEDERICO. É a chuva.

S. Continua chovendo?
FEDERICO. Muito.

S. Quer uma toalha?

FEDERICO. Não, obrigado. Estou bem.

S. Não, obrigado.

FEDERICO. Tá rindo do quê?

S. É que faz tempo que ninguém me diz: não, obrigado. É estranho.

FEDERICO. Imagino.

S. Bom. Como você se chama?

FEDERICO. Federico. Mas… Me chamam de Fred.

S. Fred.

FEDERICO. Sim, Fred.

S. Você não tá com frio?

FEDERICO. Não. Que horas são?

S. Cinco em ponto.

FEDERICO. Tava com medo de atrasar.

S. Estamos bem de tempo. Tranquilo.

FEDERICO. É um Casio a prova d’água.

S. Oi?

FEDERICO. O seu relógio. É um Casio a prova d’água.

S. Sim. Trezentos metros. Tem cronômetro. Tem despertador também. É estranho


que…

FEDERICO. É que eu fiz o comercial. Tenho igual. Eles me deram um relógio junto com
o cachê.

S. Ah, ok. Legal.

FEDERICO. Podemos começar quando você quiser.

S. Começar o que?

FEDERICO. O teste.

S. Já estamos fazendo.
FEDERICO. Ah… Já começamos?

S. Acho que sim.

FEDERICO. Bom. Meu nome é Federico. Tenho vinte e um anos. Um metro e oitenta.

S. Não, não. Tudo bem. Me diz uma coisa…. Você sabe jogar basquete?

FEDERICO. Sim…

S. Você sabe ou não sabe?

FEDERICO. Sim, um pouco.

S. Um pouco?

FEDERICO. Na verdade…

S. Acho que não sabe muito, né?

FEDERICO. Pra falar a verdade, não. Mas aprendo rápido.

S. Pode me mostrar um pouco?

FEDERICO. Claro.

S. ENTÃO ENTRA, AI TEM UMA BOLA.

FEDERICO. FECHO?

S. POR FAVOR.

FEDERICO. POSSO COMEÇAR? ( COMEÇA BATER A BOLA)

S. QUANDO VOCÊ QUISER. E se você tentar alguns arremessos?

FEDERICO. Claro.

S. Deixa ver…

FEDERICO. De onde você quer…

S. De onde você quiser.

FEDERICO. Daqui está bom?

S. Tenta de diferentes lugares.

FEDERICO. Beleza.

S. Certo.

FEDERICO. Esse estava fácil. Vou tentar um pouco mais de longe.


S. Vai.

FEDERICO. Agora errei.

S. Não foi tão ruim.

FEDERICO. Posso tentar outro?

S. Sim, claro.

FEDERICO. Tá bom.

S. Não foi ruim não. Você se saiu muito bem.

FEDERICO. Ainda posso treinar, né? Como já falei, pego rápido. Se tiver que ir fundo, eu
vou fundo.

S. Legal. Pode sentar.

FEDERICO. Não. Estou bem.

S. Senta. Vai ficar mais confortável.

FEDERICO. Tá bom.

S. Bom. Então me conta, por que você quis fazer este teste?

FEDERICO. Bom. Gosto muito do que você escreve. Vi alguns dos seus trabalhos…

S. Ok. Mas fora isso, dos meus textos ou dos meus trabalhos, me conta, o que você
achou interessante neste projeto?

FEDERICO. Bom… Um pouco de tudo.

S. Mas e em particular?

FEDERICO. A ideia.

S. Qual ideia?

FEDERICO. Não sei. A ideia de representar um parricida.

S. Por quê?

FEDERICO. Não sei. É uma coisa que… Algo que me intriga.

S. O quê?

FEDERICO. O parricídio.

S. E o quê é que te intriga no parricídio?


FEDERICO. Sei lá… O ato de matar o próprio pai. É algo que acho impossível de
compreender. Não sei. Acho que eu nunca faria. Nunca poderia fazer isso. E você?

S. Acho que não. Também não. Não poderia.

FEDERICO. Mas nunca se sabe. Assim sentados, tranquilos, é fácil falar que nunca
mataria o próprio pai, mas depois...

S. Depois o quê?

FEDERICO. Sei lá... Depois você não sabe o que pode acontecer. Você nunca sabe do que
é capaz em algumas situações. De como pode reagir.

S. Bom. Eu gostaria que você lesse algo que vou te dar.

FEDERICO. É uma parte da peça?

S. Talvez. Isso a gente vai ver depois.

FEDERICO. Tá bom.

S. Você pode ler?

FEDERICO. Claro. Quer que interprete?

S. Não. Só quero que você leia. Só isso.

FEDERICO. Beleza.

S. Pode começar.

FEDERICO. Posso?

S. Quando você quiser.

FEDERICO. « Esfinge. Na mitologia grega, a esfinge era um monstro de destruição e má


sorte, que foi representado por um corpo de leão com dois peitos, com rosto de
mulher e com asas de ave de rapina. Dizem que veio da Etiópia para causar terror
na cidade de Tebas. A Esfinge teria sido enviada pela deusa Hera para punir a
cidade pelo amor homossexual que seu rei Laio tinha sentido pelo jovem Crísipo.
Laio não só tinha seduzido o jovem como também o tinha sequestrado. Muitos
pensam que esta teria sido a primeira relação homossexual da história.( música
Mozart n 21) A Esfinge então teria se instalado em um dos bosques da cidade de
Tebas, destruindo aqueles que não foram capazes de resolver o seu enigma. Conta-
se que matava suas vítimas, estrangulando-as entre suas garras. Também dizem que
em um pacto com a cidade de Tebas, decidiu-se que aquele que respondesse seu
enigma não seria devorado, e que a esfinge iria embora para sempre. Assim que o
rei Laio morreu, Creonte se tornou o novo rei de Tebas e prometeu dar o trono da
cidade e a mão da rainha Jocasta àquele que resolvesse o enigma.( baixa a música,
continua tocando bem baixo) Isso é tudo.
S. Bem. Muito obrigado.

FEDERICO. É isso?

S. Sim. É isso. Lembro que naquela tarde assim que você terminou a leitura, confirmei
que seria você que iria representar Martín.

FEDERICO. Você nunca falou exatamente o porquê.

S. Nunca soube.

FEDERICO. Agora também não?

S. Também não.

FEDERICO. Foi só pelo cabelo molhado?

S. Não. Houve outra coisa. Depois que você terminou de ler… Na verdade nem
representou muito bem.

FEDERICO. Não?

S. Não. Depois que você acabou de ler o texto, comentou alguma coisa.

FEDERICO. Não lembro.

S. Falou alguma coisa de Laio e Édipo.

FEDERICO. Ah, sim. É verdade.

S. Você comentou que tinha acabado de perceber que na verdade Édipo não sabia que
estava matando o pai.

FEDERICO. Sim. Lembrei.

S. Foi bem na hora de ir embora.

FEDERICO. É verdade. Só agora percebi.

S. Como?

FEDERICO. Acabo de perceber uma coisa.

S. O quê?

FEDERICO. Que na verdade Édipo não sabia que era seu pai. Quer dizer, quando mata
Laio, ele pensa que está matando outra pessoa. Não sabe que está matando seu
próprio pai. Na verdade não sei se ele é realmente um parricida. Sim. É. Não é isso
que eu quero falar. O que eu quero falar é que na verdade ele é um parricida, mas não
sabe que é um parricida.

S. Sim. De alguma forma…


FEDERICO. É como um parricida errado. Sem vocação. Sem premeditação. Não é um
parricida cem por cento.

S. Pode ser. Mas mesmo sem saber quem está matando, ele mata o seu pai.

FEDERICO. Mas quando mata, não sabe. Não sabe o que tá fazendo na verdade. De
alguma maneira é discutível.

S. Então falei que sim. Que realmente poderia ser discutível. Só nesse momento você
foi em direção à porta, você disse adeus e foi embora.

FEDERICO. Então foi pelo comentário.

S. Em grande parte sim.

FEDERICO. Fecho a porta?

S. Sim, obrigado.

*****

S. Dois dias depois de ter escolhido Fred eu voltei ao centro penitenciário. Eu mesmo
queria explicar para Martín o problema que tinha acontecido. Os guardas me levaram
até a quadra e falaram que aguardasse. Tinha ido até a enfermaria porque tinha
machucado o pulso. Então esperei uns minutos até que finalmente chegou. Tinha o
pulso direito enfaixado .

******

MARTÍN. Não foi nada.

S. O que aconteceu?

MARTÍN. Torci um pouco o pulso.

S. Dói?

MARTÍN. Um pouco. Fazia tempo que estava esperando?

S. Não. Acabei de chegar.

MARTÍN. Já me falaram…

S. O quê?

MARTÍN. Que não vão deixar.

S. Quem falou?

MARTÍN. O diretor.
S. Eu mesmo queria falar.

MARTÍN. Mas já falaram. Não querem.

S. É por causa da segurança, mas estamos fazendo os trâmites para que você possa ir às
apresentações. Como espectador. O salário vai ser pago igual.

MARTÍN. Eles falaram. Mas não é a mesma coisa.

S. Bom…. Não vai poder estar em cena, mas pelo menos vai poder ir ao teatro. Você
vai estar com a gente todas as noites. Na plateia. Em cena, vai ter um ator, no seu
lugar.

MARTÍN. Como no cinema?

S. Sim.

MARTÍN. E ele se parece comigo?

S. Um pouco.

MARTÍN. Porque tem que se parecer, né?

S. Não necessariamente.

MARTÍN. Mas, se parece ou não?

S. Parece. Parece um pouco.

MARTÍN. Como se chama?

S. Federico.

MARTÍN. E ele…? Vai me imitar? Ele vai fazer que nem eu?

S. Na verdade, ele vai se inspirar em você.

MARTÍN. Vai o quê?

S. Inspirar…. Entendeu?

MARTÍN. Não muito.

S. Deixa ver…. Vou tentar explicar. Ele não vai te imitar. Ele é um ator. E o trabalho do
ator não é imitar. Ele vai criar o que chamamos de personagem. Vai se inspirar, quer
dizer, a partir de você, da tua história, de tudo aquilo que você vai contar para mim
ele vai criar um personagem.

MARTÍN. Mas, então não vou ser eu.

S. Bom…. Não. Vai ser um personagem. Um personagem criado a partir de você. Na


verdade ninguém além de você pode ser você.
MARTÍN. É por isso que você queria que eu atuasse no teatro?

S. Claro. Se eles tivessem te deixado atuar, nesse caso você seria ao mesmo tempo você
e teu personagem.

MARTÍN. É uma pena.

S. De alguma forma você vai estar presente.

MARTÍN. Então vou estar ali sentado?

S. Vai estar sentado lá.

MARTÍN. Na plateia?

S. Sim.

MARTÍN. Mas não vou poder estar deste lado.

S. Não... Mas de alguma forma você vai estar deste lado. É sobre você que vamos falar.

MARTÍN. E ele vem?

S. Quem?

MARTÍN. Como você falou que ele se chama?

S. O ator? Federico? Acho que não. É muito difícil conseguir entrar aqui. Precisa de
muitas autorizações.

MARTÍN. Mas se ele não me conhece, não entendo como vai fazer. Como vai me fazer,
sem nunca ter me visto?

S. Estará tudo no texto.

MARTÍN. Qual texto?

S. O texto que estou escrevendo. E ele vai trabalhar a partir desse texto.

MARTÍN. E o que vai ter no texto?

S. Não sei. Muitas coisas. Tua história. Tudo o que gente vai falar. As coisas que você
vai me contar. Nossos encontros. Tudo o que estamos falando agora, por exemplo,
pode também estar no texto.

MARTÍN. Tudo isso o quê?

S. Tudo o que estamos falando.

MARTÍN. Isso? Agora?

S. Sim.
MARTÍN. Então tudo o que eu falar vai estar no texto.

S. Não. Tudo não. Só algumas coisas.

MARTÍN. E desse, o de agora, vai botar o quê? Do que falamos? Minhas perguntas?

S. Sim.

MARTÍN. Assim mesmo? Desse jeito?

S. Não. Depois eu troco algumas coisas. Modifico um pouco. Não vou fazer uma
transcrição exata de que falamos

MARTÍN. Uma o quê?

S. Uma transcrição. Uma cópia. Idêntico. O interessante é trocar um pouco. Alterar


algumas coisas.

MARTÍN. Quer dizer que você vai inventar algumas coisas.

S. Muitas coisas.

MARTÍN. Mas então não vai ficar nada.

S. Como assim, nada?

MARTÍN. Ué! Nem eu vou ser eu. Nem o que falamos vai ser o que falamos. Vai estar
tudo mudado.

S. Sim. De certa forma. Tudo estará um pouco mudado.

MARTÍN. E se, por exemplo… Se houver algo que eu não queira que esteja?

S. Fala pra mim.

MARTÍN. Eu falo e você tira.

S. A gente discute.

MARTÍN. Mas, e se eu não quero que esteja?

S. Fica tranquilo que não vai ter nada que te incomode.

MARTÍN. Não… Eu estou tranquilo.

S. Ok. Melhor.

MARTÍN. É só no caso que tenha algo que…

S. Não se preocupa.

MARTÍN. Sei lá… Algumas coisas… Não sei se tenho vontade que…
S. Quais, por exemplo?

MARTÍN. Não sei. Então... Você sabe por que eu estou aqui. Você falou que que tinha
lido meu processo.

S. Sim.

MARTÍN. Então… Tem coisas que… Não sei. Não é fácil. Não sei se quero que depois
todo mundo esteja vendo.

S. O quê?

MARTÍN. Agora que sei que você vai escrever tudo o que gente fala, fico meio assim de
falar.

S. Já falei que não vou escrever nada que você não queira. Vai ser como se tivéssemos
escrito o texto os dois juntos.

MARTÍN. Mesmo assim. Tem coisas que não é fácil de contar.

S. Imagino. Mas pode ficar tranquilo que não vou escrever nada que você não queira.
Aliás, você também não é obrigado a falar coisas que não queira.

MARTÍN. Eu… Matei meu pai. Então… Tem coisas… Que não é fácil de falar.

S. Então não fala. Fala só do que você quiser.

MARTÍN. Você voltar quando?

S. Depois de amanhã.

MARTÍN. Ontem, quando falaram que eu não ia poder me fazer no teatro, fiquei com
medo.

S. De quê?

MARTÍN. De que você não voltasse.

S. Vou vir duas ou três vezes por semana.

MARTÍN. Eles não vão deixar. Só temos direito a uma visita a cada quinze dias.

S. Já tenho autorização.

MARTÍN. Então vamos nos ver muito.

S. Se você concordar…

MARTÍN. Eu já estou aqui.

S. Ahãm… Ontem estive procurando a origem do teu nome.


MARTÍN. O quê?

S. O que significa teu nome. O significado de Martín. Você sabe o significado?

MARTÍN. Não.

S. Guerra. Guerreiro. O que é isso?

MARTÍN. É um terço. Carrego sempre comigo. Na verdade aqui dentro não deixam ter
objetos. Mas o terço... Eles deixam.

S. Tá vendo. Por exemplo, nesse momento, vou fazer com que você fale algo assim... É
um terço. Carrego sempre comigo. Mas vou agregar… É feito de pétalas de jasmim.

MARTÍN. O quê?

S. O terço.

MARTÍN. Pétalas de jasmim? Nunca tinha escutado.

S. Você não sabia? Muitos são feitos de pétalas de jasmim.

MARTÍN. Este não…

S. Mas agora sim.

MARTÍN. Foi minha mãe que me deu.

S. Você nunca tira? (música Mozart n 21)

MARTÍN. Não. Nunca. Por isso que sempre cheiro a jasmim.


Segundo quarto

S. Assim que cheguei nessa noite no meu hotel, comi, tomei banho e respondi os meus
e-mails. Comecei a pesquisar todo o material que tinha sobre ele na Internet. Tinha
mais de 600 links, de vários artigos da imprensa até um monte de fóruns sociais em
que aparecia seu nome. A cada tanto aparecia sua imagem. Quase sempre era a
mesma. Era a foto de uma criança que, inacreditavelmente, aparecia do lado do seu
pai. Essa é a foto. Estão em uma praia. Um tempo depois Martín me contou que
tinham tirado essa foto durante umas férias. Na foto, os dois estão rindo. O pai e o
filho. E, como dá pra ver, Martín está apoiado no ombro do pai ao mesmo tempo em
que o está beijando. Os dois estão com o cabelo molhado. Com certeza tinham
acabado de sair do mar. Cada vez que se abria essa imagem no meu computador, não
podia deixar de pensar em duas coisas. Primeiro no cinismo da imprensa, que para
escrever sobre o parricídio tinha escolhido uma foto que, como dá pra ver, transborda
ternura entre pai e filho. Preferia ver as clássicas imagens do condenado chegando ou
saindo do tribunal no dia do seu julgamento. Mas não essa foto em que os dois
aparecem num momento de tanta cumplicidade. A segunda coisa que eu não
conseguia parar de pensar era em quem tinha tirado essa foto. Claro que a imagem da
mãe se fazia presente o tempo todo. Martín e eu falamos várias vezes dessa foto
durante nossos encontros. E estive muitas vezes a ponto de perguntar quem tinha
tirado essa foto. Mas, sei lá. Nunca me atrevi. E acho que ele também não tinha
vontade de me contar. Sempre que a gente via a foto juntos, a única coisa que ele
falava era da lembrança intacta que tinha das gotas da água que caiam pelo cabelo
molhado do pai sobre a sua pele quente.

**

FEDERICO. Atrás aparece o mar.

S. Estão na praia.

FEDERICO. Quantos anos ele tinha?

S. Dez anos.

FEDERICO. E o pai?

S. Vinte anos a mais do que ele.

FEDERICO. Trinta anos? E ele lembra?


S. Sim, claro.

FEDERICO. É impressionante. Tem irmãos?

S. Não. É filho único. Como está indo no basquete?

FEDERICO. Bem.

S. Está indo todos os dias?

FEDERICO. Todas as manhãs.

S. Perfeito.

FEDERICO. A ideia é jogar em cena?

S. Não sei. Talvez.

FEDERICO. Você gosta?

S. Do quê?

FEDERICO. De basquete.

S. Não. Não sei. Nem gosto nem deixo de gostar. De fato não sei quase nada. Outro dia
pedi para o Martín fazer uma lista com todas as palavras próprias do basquete. Para
conhecer um pouco o vocabulário. Falou que ia fazer.

FEDERICO. Li em uma entrevista que te fizeram que o teu pai jogou basquete quando
jovem.

S. Sim.

FEDERICO. Imagino que foi esse o motivo de montar tudo em torno do basquete, né?

S. Não. Nada a ver. Na verdade eu escolhi porque é o lugar onde a gente sempre se
encontra na prisão .

FEDERICO. Joga muito?

S. O dia inteiro. Acho que é a única coisa que ele faz...

FEDERICO. E joga bem?

S. Joga muito bem.

FEDERICO. A ideia é que eu também vá?

S. Não. Acho que por enquanto não é uma boa ideia vocês se conhecerem. Acho que
não seria bom pra ele e nem pra você.

FEDERICO. Pode ser.


S. Tenho medo que tua visita confunda ele ainda mais. Está muito confuso. Tem coisas
difíceis de entender para ele. Outra tarde ele não conseguia entender muito bem a
ideia da representação. Não entendia direito o trabalho do ator. Misturava tudo na sua
cabeça.

FEDERICO. Comigo também acontece. Tudo se mistura.

S. Sim, mas com ele é diferente. Ele não entendia bem a diferença entre apresentar e
representar.

FEDERICO. Não é tão fácil de entender.

S. Você acha?

FEDERICO. Sei lá.

S. Pra mim é tão obvio. Me diz uma coisa, você viu o processo?

FEDERICO. Sim. Comecei.

S. Não precisa ler tudo.

FEDERICO. Estou nas primeiras páginas.

S. As mais interessantes vêm depois.

FEDERICO. Você vai usá-las?

S. Acho que sim. É provável que use os relatórios dos peritos também.

FEDERICO. O texto, então… você ainda está escrevendo?

S. Sim. Aos poucos.

FEDERICO. Depois de cada encontro com ele, você avança um pouco.

S. E depois de cada encontro com você também.

FEDERICO. A cada dia você vai acrescentando...

S. Por enquanto vou juntando material. Depois vejo como organizo.

FEDERICO. Vai usando tudo que passa pela tua cabeça.

S. Não tudo. Vou tentando juntar tudo o que, de uma maneira ou de outra, possa ter
alguma relação. Isto que a gente acabou de falar, por exemplo, de que a
representação do mundo pode ser melhor que o mundo, eu poderia usar. Ou a foto
que acabamos de ver. Ou algumas informações do arquivo jurídico. Ou o texto sobre
a Esfinge que você leu no dia do teste.

FEDERICO. De quem era?


S. O texto da Esfinge? Não sei. É um texto que baixei da Wikipédia essa mesma manhã.

FEDERICO. E das entrevistas com ele imagino que você vai tirando o material mais
interessante.

S. Claro. E não só das coisas que ele conta. Também das coisas que eu vejo. Das coisas
que escuto. Outro dia, por exemplo, no ônibus que vai da prisão até a estação de
trem, durante todo o trajeto o motorista ia escutando “Quem é”, do Agnaldo
Timóteo. Conhece?

FEDERICO. Não.

S. Você é muito novo.

FEDERICO. Talvez já tenha escutado. Não sei.

S. É um clássico. “ quem é que não sofre por alguém... quem é que não chora uma
lágrima sentida...”

FEDERICO. Não conheço.

S. Bom, fiquei escutando durante todo o trajeto. E depois como não consegui tirar a
música da minha cabeça durante a noite toda, pensei que talvez poderia utilizá-la em
algum momento. Então é quase certo que em alguma passagem eu vou usar. Talvez
possamos começar a trabalhar a partir da foto da praia.

FEDERICO. Sim. A foto da praia…

S. Quê que tem?

FEDERICO. Não. Nada. É que eu tava pensando que é bem normal que ele esteja
preocupado em ser representado por outra pessoa.

S. É possível.

FEDERICO. Comigo acho que ia acontecer a mesma coisa. Não sei se eu ia gostar que
alguém me representasse.

S. Faz sentido… Talvez por isso você seja ator, né?

FEDERICO. Pode ser.

S. Começamos?

FEDERICO. Vai.

***

MARTÍN. Eu sou obrigado a falar do...? Tenho que falar obrigatoriamente que
aconteceu…?
S. Não. Não necessariamente. Pode me falar do que você quiser.

MARTÍN. E você vai me fazer perguntas?

S. Às vezes. Mas hoje quero que você me conte o que você quiser.

MARTÍN. Mas não vai fazer pergunta difícil. Olha que eu não terminei a escola.

S. Tá vendo? Pode falar disso, por exemplo.

MARTÍN. Do quê?

S. Dos estudos. Até que ano você estudou?

MARTÍN. Até a oitava série.

S. E gostava?

MARTÍN. Às vezes. Gostava de alguns professores. Mas não era um bom aluno.

S. Por quê?

MARTÍN. É… Não entendia. As coisas. Do que falavam. Não entendia nada.

S. E por que parou?

MARTÍN. Por isso. Não sei. Um dia não fui mais. Parei de ir. Agora estou arrependido.
Se tivesse terminado talvez… Não sei. Teria sido tudo diferente. Não teria ficado
doente da cabeça. Porque é isso que falam. Que eu tô doente. Daqui ó! É isso.

S. É isso que te falam?

MARTÍN. Eu tenho um psicólogo. Ele me visita uma vez por mês. Mas pra ele não conto
quase nada. Ele fala que eu tô doente. Que é por isso que eu… Que foi por isso que
aconteceu o que aconteceu.

S. Mas isso não tem nada a ver com os estudos.

MARTÍN. Mas eu tô doente.

S. Não sei. Pode ser. Mas de qualquer forma você não fica doente por deixar de estudar.

MARTÍN. Não sei. De certa forma sim. Porque você vai ficando meio idiota. Meu pai
sempre falava isso.

S. Isso o quê?

MARTÍN. Que eu era um idiota. Que por ter parado de estudar tava ficando mais idiota
do que eu já era.

S. Às vezes os pais falam isso para os os filhos. Com certeza ele não gostou quando
você parou de ir à escola.
MARTÍN. É provável, mas meu pai falava isso o tempo todo. Você é um idiota. É um
tremendo idiota. Você não serve pra porra nenhuma. O tempo todo falava a mesma
coisa. Desde que você parou de estudar ficou mais idiota ainda. Você tá virado um
inútil. Então eu fui ficando doente. Você entende agora?

S. Você sabe que aqui pode estudar?

MARTÍN. Sim. Mas Não entra nada na minha cabeça.

S. Por que você não tenta?

MARTÍN. Já tentei. Tentei, mas não entra nada. Os professores falavam, mas eu não
entendia as palavras que usavam. Usam palavras difíceis. Que nem você.

S. Às vezes você não entende o que eu falo?

MARTÍN. Às vezes você usa umas palavras um pouco complicadas.

S. Como quais?

MARTÍN. Ah… Não sei.

S. Mas tem que falar. Quando eu falar alguma coisa que você não entenda, tem que falar
na hora.

MARTÍN. Também não entendo o psicólogo. E aos advogados também não. Tem um
monte de gente que eu não entendo.

S. Mas justamente… Um professor está lá para explicar. Para explicar as palavras que
você não entende.

MARTÍN. Sim. Eu sei. Sei de tudo isso. Mas fico com vergonha.

S. Do quê?

MARTÍN. De estar o tempo todo perguntando. Você fica meio assim, né?… Sei lá. Você
nunca teve vergonha?

S. Bom. Às vezes. Mas por outros motivos.

MARTÍN. Cada um tem vergonha de coisas diferentes. No chuveiro, por exemplo, alguns
têm vergonha de ficar pelados. Eu, por exemplo, não tenho vergonha. E você?

S. Eu o quê?

MARTÍN. Você tem vergonha de ficar pelado no chuveiro quando vai à academia?

S. Não. Vergonha do quê?

MARTÍN. É que quem tem vergonha de ficar pelado no chuveiro é porque tem pau
pequeno.
S. De qualquer modo, você não deveria ter vergonha de perguntar uma coisa que você
não saiba.

MARTÍN. Falar é fácil, né?

S. Eu sei.

MARTÍN. Você é professor?

S. Sim, também sou professor. Entre outras coisas.

MARTÍN. Num colégio?

S. Não. Na universidade.

MARTÍN. E tem alunos?

S. Sim. Graduandos. Na universidade se diz graduandos. E sim, tenho muitos.

MARTÍN. Você deve ser cabeção.

S. Isso não significa nada.

MARTÍN. Quis dizer que você teve que trabalhar muito. Estudar, ler um monte.

S. Sim. Isso sim. Mas pra isso você precisa ser perseverante.

MARTÍN. O que?

S. Quer dizer que você precisa ser perseverante, paciente… ter saco.

MARTÍN. E então porque você não disse que tem que ter saco?

S. Sim, poderia ter dito, mas preferi usar outra palavra. Quando você conhece várias
palavras, pode escolher.

MARTÍN. Mas, quando conhece poucas, não pode.

S. Tá bom. Mas não custa perguntar, né? Agora, por exemplo, você conhece uma
palavra nova. Em uma próxima oportunidade, em vez de falar paciência ou saco, você
pode falar perseverança.

MARTÍN. Tá falando como um professor falaria pro aluno.

S. Tá certo. E para falar a verdade não gosto nem um pouco.

MARTÍN. Eu gosto.

S. Do quê?

MARTÍN. De escutar você falando desse jeito. Explicando as coisas.

S. Mas eu não sou professor.


MARTÍN. Você falou que era.

S. O que estou querendo dizer é que não sou teu professor.

MARTÍN. Mas poderia…

S. Eu não estou aqui na qualidade de professor. Estou aqui para falar com você. Para te
conhecer.

MARTÍN. Você prefere que eu continue sendo um idiota.

S. Por que você está falando isso?

MARTÍN. Porque você falou que não quer ser meu professor.

S. Você tem uma leve tendência a emaranhar as coisas.

MARTÍN. Não entendi o que você falou por último.

S. Você mistura tudo na tua cabeça.

MARTÍN. Pode ser.

S. Você sabe muito bem que eu não estou aqui pra ser teu professor.

MARTÍN. Sim. Já entendi.

S. Então, por que você fala que prefiro que você continue sendo um idiota?

MARTÍN. Era brincadeira.

S. Não é algo agradável de escutar.

MARTÍN. Falei sem pensar.

S. O que eu posso fazer é falar com o diretor Da prisão para que deixem você se
inscrever nos cursos, mesmo que já tenham começado.

MARTÍN. Tá vendo?

S. O quê?

MARTÍN. Tirou o problema das costas. Ajudo ele se inscrever num curso e deu. Posso ir
embora em paz.

S. Não entendi.

MARTÍN. Deixa pra lá.

S. Que foi?

MARTÍN. Não, nada.


S. Sim, aconteceu alguma coisa.

MARTÍN. É que. Às vezes acho que no fundo vocês todos desprezam a gente.

S. Por que você fala vocês todos?

MARTÍN. Porque são todos iguais.

S. Quem?

MARTÍN. Vocês.

S. Do que você está falando?

MARTÍN. Do desprezo que vocês têm da gente.

S. Isso é paranoia.

MARTÍN. Não entendi. Não sei o significado dessa palavra.

S. Eu não te desprezo de forma alguma.

MARTÍN. Despreza, sim.

S. Se te desprezasse não estaria aqui.

MARTÍN. Não sei.

S. Mas eu sei.

MARTÍN. Na verdade você está aqui só por egoísmo.

S. Por que você fala isso?

MARTÍN. Porque é verdade. Você está aqui só para escrever o seu livro. Para que eu
conte coisas.

S. Se estivesse procurando isso, só era ler o seu processo.

MARTÍN. Não é verdade. O que você quer é que eu conte aquilo que não aparece no
processo. O que nunca contei pra ninguém.

S. Pode ser. É possível.

MARTÍN. É isso o que você quer.

S. E o que tem de egoísta nisso?

MARTÍN. Que na verdade você não liga pra mim.

S. Do que você está falando?


MARTÍN. Eu ou qualquer um, dá no mesmo. O que importa pra você é o que aconteceu.
O que eu fiz. Como eu fiz. Com o quê eu fiz. Quantos golpes eu dei. Onde. Que
conte direitinho como foi que eu fiz. E também que fale o motivo, do porquê que eu
fiz o que fiz. Os motivos e tudo isso… É só isso que te interessa, a única coisa que te
interessa.

S. O que você está falando?

MARTÍN. E mais! Que fique bom! E que depois as pessoas falem: que impressionante!
Que livro bom! A única coisa que te interessa é isso. E depois poder contar que na
verdade você escreveu tudo aquilo indo se encontrar com o assassino. E que escreveu
dentro da quadra. É isso o que te interessa.

S. Não estou entendendo porque você está falando tudo isso. Se você quiser a gente para
por aqui agora mesmo. Acho que é melhor.

MARTÍN. Tá com medo?

S. Não. Que medo! Não é isso. Acho que as coisas não ficaram claras. Acho que você
não entendeu.

MARTÍN. E daí?

S. Não sei. Acho que eu vou embora.

MARTÍN. Espera. Não vai.

S. Acho que por hoje já deu.

MARTÍN. Mas não vai embora.

S. Não sei o que aconteceu com você. Não sei por que você falou tudo o que falou.

MARTÍN. Desculpa.

S. Não é questão de desculpar. Não sei. É como se você misturasse tudo na sua cabeça.

MARTÍN. Já falei que não sou inteligente. Eu não consigo entender. Fico confuso. De
verdade. É difícil para mim. Desculpa.

S. Tá bem.

MARTÍN. Tudo o que eu falei foi por falar, sem pensar.

S. Algumas das coisas que você falou estão certas, outras não.

MARTÍN. Não fica bravo. Não quero que você vá embora bravo.

S. Não. Não vou embora bravo.

MARTÍN. Vai voltar?


S. Vamos deixar passar uns dias.

MARTÍN. Prometo que eu vou fazer a lista.

S. Que lista?

MARTÍN. A que você pediu, com as palavras do basquete.

S. Ok.

MARTÍN. Mas… Você vai voltar?

S. Vou tentar voltar na próxima terça.

MARTÍN. Vou esperar.

****

S. Na semana seguinte não fui. Preferi deixar passar uns dias antes de voltar. Quando
liguei para o diretor do centro penitenciário para lhe comunicar que não iria naquela
terça feira, aproveitei e falei que achava bom que Martín pudesse retomar os estudos.
Ele respondeu que achava uma boa ideia. Mas que em geral, Martín não gostava de
participar de atividades coletivas. Era um recluso que preferia a solidão. Quando ele
me disse isso, tive vontade de voltar atrás e de dizer que finalmente iria me encontrar
com Martín. Mas não achei sério anunciar uma coisa e três minutos depois outra. No
entanto tive a ideia de pedir que falasse pra Martín que eu não iria porque estava
doente e que assim que melhorasse voltaria. Antes de desligar ele perguntou se
Martín já tinha me falado das visões. Falei que não. Que nunca tínhamos falado
sobre isso. E que de fato não entendia do que ele estava falando. Aparentemente
Martín tinha visões frequentemente.

*****

FEDERICO. Visões?

S. Foi isso que ele falou. Mas prefiro que falemos disso em outra cena.

FEDERICO. Beleza. Como você tocou no assunto…

S. É verdade. É uma questão de ansiedade. Agora prefiro que trabalhemos um pouco no


relatório dos peritos.

FEDERICO. Eu trouxe.

S. Você leu?

FEDERICO. Sim. É pesado. Principalmente as fotos.


S. Sim. Não é nada agradável.

FEDERICO. E também fiquei impressionado com os vinte e um golpes. E o lugar onde


ele fez... Na cozinha. É curioso. E foi pelo que diz o pai? Pelo insulto?

S. Aparentemente o chamou de puta. Bom… Isso seria o que o deixou furioso. Mas,
acredito que não seja só por isso que deu vinte e um golpes no pai. Segundo o que
está escrito em algumas partes da perícia, houve outras vezes que o pai já o tinha
chamado de puta. Até em público.

FEDERICO. Sim. Eu li.

S. Já fazia algum tempo que Martín tinha começado a se prostituir. Tinha abandonado
os estudos. Trabalhou alguns meses, mas pouco tempo depois que começava a
trabalhar era demitido. E no final, uns meses após a morte da mãe começou a se
prostituir. Num começo fazia em hotéis ou nos carros, mas depois começou a levar
alguns clientes para casa.

FEDERICO. Foi aí que o pai ficou sabendo…

S. Aparentemente sim.

FEDERICO. E naquela madrugada discutiram por quê?

S. Isso está explicado em uma das últimas páginas do processo. Nesta. Foi num
domingo. Martín chegou de madrugada, o pai estava na cozinha. Tinha se levantado
para beber água e quando o viu chegar, olhou pra ele e parece que teria dito: você
não é capaz nem de trazer um litro de leite. Martín teria respondido alguma coisa e o
pai, aparentemente, teria falado que era uma puta. Foi nesse momento que Martín
teria pegado um garfo e dado vinte e um golpes. No processo diz que Martín falou
que enquanto ele enterrava o garfo, o pai continuava falando: tá vendo? Tá vendo
que você é uma puta incapaz de trazer nem mesmo um litro de leite?

FEDERICO. Falava isso?

S. Sim, podemos ver algumas fotos. Há algumas que gostaria de poder mostrar.

FEDERICO. A tua ideia é… Mostrar as fotos ao público?

S. Talvez.

FEDERICO. Seria ótimo, mas… Você acha que vão autorizar?

S. Vamos ter que pedir uma autorização.

FEDERICO. E se não deixarem?

S. Podemos fazer montagens. Botar outras fotos. Você nunca entrou no youtube pra ver
imagens de crimes?
FEDERICO. Não. Pra falar a verdade não.

S. Têm centenas. Milhares.

FEDERICO. Mas, são imagens de crimes de verdade?

S. Sim, claro. E podemos falar para o público que por uma questão de pudor ou sei lá o
quê, tivemos que cobrir os rostos. Dessa forma passamos qualquer foto, de qualquer
outro crime, fazemos como se fossem fotos do crime de Martín.

FEDERICO. Algumas são impressionantes.

S. Tem três em especial, muito interessantes.

FEDERICO. Essa, por exemplo.

S. Essa é ótima. Podemos ver. Deixa pensar... Antes de passar a projeção de alguma
dessas imagens que vamos ver em seguida, me sinto na obrigação de fazer um
esclarecimento importante. Caso alguém queira se retirar, pode sair agora. Pode
também fechar os olhos. É só um minuto. Alguém quer sair? Certo. Como acabei de
explicar, fomos obrigados a cobrir dois terços do rosto da vítima com uma tarja
preta. Essa é a primeira. O que me interessa dessa foto é que dá pra ver, de forma
muito clara, a quantidade de cortes em todo o corpo, e que, de certa forma, todas as
feridas me lembram de algumas pinturas da Escola Flamenca, onde os corpos dos
Cristos frequentemente aparecem com excesso de danificações para acentuar a dor e
o sofrimento. Na segunda foto o que mais me cativa são os olhos abertos do pai.
Penso que em nenhum momento fechou os olhos. Parece que viu toda a sua morte.
Os olhos abertos me levam a pensar que assistiu, como se fosse um espectador, a
cena toda do seu assassinato. E por último, a terceira foto me intriga pelo lugar onde
está o cadáver. Fico impressionado de vê-lo encostado contra a porta da geladeira.
Fico impressionado porque, depois de tê-lo matado e antes de chamar a policia, o que
aconteceu apenas ao meio-dia, Martín confessou ter aberto várias vezes a geladeira
para pegar várias coisas. Fico impressionado com a imagem do filho abrindo a
geladeira, com o cadáver do próprio pai fazendo pressão. Bom. É isso.

FEDERICO. Só ao meio-dia ligou para polícia?

S. Sim. Passou a manhã inteira em casa com o cadáver do pai ao lado. Tomou banho.
Tomou café da manhã. Assistiu TV. Voltou para cozinha porque estava com fome. Fez
uma vitamina de banana. Bebeu. E só depois foi até o telefone, ligou para delegacia e
assim que atenderam, falou: acabei de matar meu pai com vinte e uma garfadas.

FEDERICO. Quer dizer que ele contou.

S. Parece que sim.

FEDERICO. Fiquei pensando nas fotos.

S. São fortes, né?


FEDERICO. Sim. Não deve ser um trabalho muito fácil. Ter que olhar aquilo que
ninguém quer ver. Eu não conseguiria. O que eu estava te falando é que fiquei pensando
nas fotos e naquele lance de não poder mostrar. Não sei. É que me veio à cabeça que nas
tragédias gregas também não se podiam representar atos violentos em cena.

S. É verdade. Não tinha pensado. Aliás, falando em tragédia grega, ontem estive lendo
Édipo em Colono e achei este fragmento. “De modo que, se a alma do meu pai vivesse,
julgo que ele não me contradiria”.

FEDERICO. É exatamente o que falei no dia do teste. Édipo não é um parricida cem por
cento.

S. Sim. Mas Sófocles fala isso melhor que você.

FEDERICO. Obrigado!

S. Aliás, ele vai ainda mais longe. O que ele fala é que finalmente todos, sem saber,
matamos um pouco nossos pais.

FEDERICO. Pode ser. O mais estranho é que sempre se coloca como exemplo de
parricídio, quando nesse caso tudo é muito confuso e embaralhado.

S. Então... Afinal não vamos negar que é um tema confuso e embaralhado, não é? Em
definitiva todos temos, como Édipo, uma Tebas um tanto ambígua. Um pouco confusa e
obscura. Uma espécie de zona ou território incompreensível. Não é? Uma espécie de
Tebas Land.

FEDERICO. De quê?

S. Uma Tebas Land. Está vendo? Acabo de perceber que achei o título.

FEDERICO. O título de quê?

S. Disso tudo. Tebas Land.

FEDERICO. Tebas Land?

S. Gostei.

******

S. À noite quando cheguei no hotel, tinha uma carta que tinham me enviado do centro
penitenciário. Era uma carta de desculpas de Martín. Se desculpando de novo por ter
sido grosso comigo. Eram apenas duas linhas. Do outro lado da lauda tinha uma lista
longa de palavras, um monte de palavras. Era a famosa lista sobre basquete que eu
tinha pedido. É esta que está comigo. É uma lista muito linda. Está separada em
cinco partes. E em cada parte Martín colocou um título com os nomes que se
utilizam para designar os cinco tempos ou períodos que compreende um jogo de
basquete. Primeiro tempo. Segundo tempo. Terceiro tempo. Quarto tempo. E
prorrogação. Li várias vezes. Não consegui deixar de admirar o trabalho notável de
escrita literária que tinha feito.

Martin - PRIMEIRO TEMPO. Basquete. Jogo. Competição. Campeonato. Partida.


Encontro. Período. Tempo de jogo. Tempo morto. Pontos. Um ponto. Dois pontos.
Três pontos. Empate. Reposição. Arremessos. SEGUNDO TEMPO. Time. Equipe.
Quinteto. Treinador. Jogadores. Base. Ala. Pivô. Ala-Pivô. Suplentes. Juiz.
Auxiliares. Marcador. Comissão técnica. Defesa. Ataque. Companheiro. Adversário.
Vencedor. Vencido. Corpo. Mãos. Braços. Cotovelos. Ombros. Cadeira. Cintura.
Pernas. Joelhos. Pés. TERCEIRO TEMPO. Passes. Passe de peito. Passe quicado.
Passe de ombro. Passe por cima da cabeça. Passe de letra. Passe com uma mão.
Arremessos. Bandeja. Com uma das mãos. Jump. Gancho. Enterrada. Lance-livre.
Ponte-aérea. Quicar a bola. Posse de bola. Defesa individual. Defesa por zona.
Defesa por pressão. Defesa mista. QUARTO TEMPO. Regulamento. Infração. Falta.
Falta pessoal. Falta antidesportiva. Falta técnica. Falta desqualificadora. Falta no
ataque. Toco. Bloqueio. Invasão. Empurrar. Penalização. Sanções. Reposição.
Lançamentos livres. Eliminação. Desqualificação. PRORROGAÇÃO. Quadra. Meio
da quadra. Círculo central. Centro da quadra. Quadra de defesa. Quadra de ataque.
Perímetro. Linha de fundo. Linha dos três pontos. Áreas restritivas. Bola. Tabela.
Cesta. Rede. Vestiários. Armários. Chuveiros. Arquibancadas. Público. Descanso.
Meio tempo. Intervalo.

Entreato

Terceiro quarto

S. Eu gosto de ver você jogar.

MARTÍN. Já percebi.

S. O quê?
MARTÍN. Já percebi que você gosta de me olhar.

S. Você gosta que olhem pra você, não é?

MARTÍN. Já falei. Não ligo. Eu li aquela entrevista em que você falou que teu pai jogou
basquete quando era jovem.

S. Faz tempo. Antes de eu nascer. Depois parou.

MARTÍN. Ele morreu?

S. Meu pai? Não. Está vivo. Falei com ele hoje de manhã.

MARTÍN. E vocês tem uma relação boa?

S. Em geral, sim. Às vezes discutimos um pouco. Mas a gente se dá bem.

MARTÍN. Então... Você ama ele?

S. Sim, claro! Muito!

MARTÍN. E ele?

S. Ele o quê?

MARTÍN. Ele também te ama?

S. Sim, claro. Bom… Pra falar a verdade nunca perguntei se ele me ama.

MARTÍN. Meu pai nunca gostou de mim. Eu também nunca perguntei para ele. Mas eu
sei, porque ele falava o tempo todo. Eu não gosto de você. Ele falava “eu não gosto
de você”. Qualquer coisa, qualquer problema, ele já falava que não me amava. Nunca
gostei e nunca vou gostar, ele falava. De um jeito ou de outro, ele sempre me fazia
saber que não me amava, que não gostava de mim. Desde criança. Desde bem
pequeno. E às vezes ele passava do meu lado e me batia. Do nada. Porque sim. Um
tapa. Na cara. E se eu falasse. Outro tapa. Acho que ele gostava de me bater. Não sei.
Gostava de me bater. Ele gostava. Também batia na minha mãe. Ela também
apanhava. E também era porque sim. Do nada. De repente tinha vontade de bater na
gente. E às vezes batia na frente dos colegas dele. Mandava eles se sentarem no sofá,
daí ele me botava na frente e começava a bater. Bem forte. Mas o pior era o cinto. A
fivela. Era muito ruim. E o cinto deixava marca. Na pele. Outras vezes pegava livros
e me batia com eles. Usava eles tipo uma prensa, pra esmagar as mãos. Os dedos. Ele
apertava até sair sangue. Por isso eu não suporto livro. Entende? Por isso eu nunca
vou à biblioteca. Traz lembranças ruins. É uma dor horrível. É como quando uma
porta prende os dedos. Às vezes as unhas ficavam pretas. Depois quando fui
crescendo, parou de me bater. Com minha mãe nunca parou. Bateu nela até ela
morrer. Mas comigo foi parando. Então em vez de me bater começou a me xingar.
Falava coisas horríveis. Falava que eu era um imbecil. Um inútil. Que era meio
idiota. Que eu não servia pra porra nenhuma. E falava essas coisas o tempo todo.
Depois, um dia, minha mãe morreu. Porque minha mãe está morta, sabe? Morreu de
câncer. Câncer de útero, falaram. Aí foi pior. Meu pai começou a falar que a culpa da
morte da minha mãe era minha. Que na verdade se ela não tivesse me parido, então
não tinha tido câncer de útero, nem tinha morrido. Esses foram os piores anos.
Queria fugir de casa, mas não tinha pra onde ir. Então tive que procurar trabalho.
Ganhar a vida. Mas eu não me dava bem em lugar nenhum. Porque eu era um inútil,
como meu pai dizia. Então sempre me mandavam embora. De todos os lugares. Até
que... Uma vez... Eu fiz um programa. Então… Pra isso eu servia. Mesmo que não
achasse uma coisa legal, que eu tivesse vergonha… Eu servia pra isso… Era foda,
mas era o que eu podia fazer. Foi nessa época que meu pai começou a me chamar de
puta. Um dos colegas do meu pai, que tinha saído comigo por uns trocados, foi e
contou pra ele. Falou que eu tava me prostituindo. O mesmo colega que quando eu
era pequeno vinha se sentar no sofá pra ver como eu apanhava de cinto do meu pai.
Foi a partir daí que ele fez da minha vida um inferno. Falou que se antes não gostava
de mim, agora ele tinha nojo. Então toda vez que a gente se cruzava, ele me chamava
de puta. Me chamava de puta. Quando queria falar comigo só dizia puta, me
chamava de puta o tempo todo. Até que um dia eu não aguentei mais e matei ele. De
manhã. Num domingo. Tem fotos. Você viu? Você viu todas as fotos? Mostraram
várias vezes pra mim. Ainda mais quando tive que fazer a reconstituição. A
reconstituição do crime. Você sabe o quê é, né? Tudo tem que ser igual. Exatamente
igual. É por isso que ficam te mostrando as fotos. Eles chamam de cena do crime.
Você tem que fazer tudo igual. As mesmas coisas. Seguir os mesmos passos. Os
mesmos movimentos. Tem que fazer tudo igual. Um dos policiais faz o... O morto.
Faz teu pai. Faz que é o cadáver. E você tem que fazer tudo igual. É estranho. É
como se fosse a mesma coisa, mas não é igual. Que horas são?

S. Quase cinco.

MARTÍN. Vão vir me buscar. Vão me levar no médico.

S. Você tá doente?

MARTÍN. Não. Ele tem que receitar de novo uns medicamentos, renovar a receita. Por
causa da epilepsia. Sabe o que é?

S. Sim. Claro.

MARTÍN. Eu tenho. Epilepsia.

S. Eu sei.

MARTÍN. Às vezes… Fico tremendo. Vejo coisas. Dói a mandíbula. Por isso tenho que
tomar tarja preta. Mas a verdade é que a única coisa que me acalma é o terço.

S. O terço que tua mãe te deu de presente?


MARTÍN. Na real não foi ela que me deu de presente. Eu fiquei com ele depois que ela
morreu. Era dela. Gostou?

S. É muito bonito.

MARTÍN. Muito bonito. Você sempre usa essas palavras… Eu, hein?

S. É que é muito bonito mesmo.

MARTÍN. Minha mãe era uma pessoa boa. Ela sim gostava de mim. Eu gostava dela. A
gente se amava. Eu acho que minha mãe me amava mais a mim do que ao meu pai.

S. Acho que vão vir te buscar.

MARTÍN. Sim. Tá na hora de você ir. Vai voltar quando?

S. Depois de amanhã.

MARTÍN. Beleza. Vem cá… Você acha que é possível…?

S. O quê?

MARTÍN. Que uma mãe possa morrer por ter tido um filho. Que o câncer seja culpa do
filho que ela teve.

S. Não. Não tem nada a ver uma coisa com a outra.

MARTÍN. Tá. Então a gente se vê depois de amanhã. Eu vou estar por aqui.

S. Vai ficar jogando?

MARTÍN. Até eles chegarem.

S. Vai ficar todo suado.

MARTÍN. Não ligo.

**

S. Você está ensopado!

FEDERICO. Vim correndo. Estava com medo de chegar atrasado.

S. Tranquilo. Tá tudo bem. Você mora longe?

FEDERICO. Uma meia hora daqui.

S. Ontem à noite mandei uma cena pra você.

FEDERICO. Sim. Tá ótima!


S. É que ontem Martín não parou de falar. Falou muito. De uma hora pra outra começou
a me contar muitas coisas. Falou do crime. Do pai. Da mãe. Da epilepsia.

FEDERICO. Ele é epilético mesmo?

S. Sim. Epilético acompanhada de visões. O que eu escrevi no texto foi exatamente o


que ele falou. Nem lembro o que foi que eu coloquei.

FEDERICO. Você colocou… Vejo coisas.

S. Isso. Foi isso o que ele falou. Aparentemente Martín seria epilético desde a
adolescência, mas só foi diagnosticado agora.

FEDERICO. Pensei que você tinha inventado.

S. Poderia, mas não. É epilético mesmo.

FEDERICO. O negócio do terço é muito bom.

S. Gostaria de ler a parte final.

FEDERICO. Tá bom. A partir de onde?

S. Quando pergunta a hora.

FEDERICO. Beleza.

S. Começamos?

FEDERICO. Que horas são?

S. Quase cinco.

FEDERICO. Vão vir me buscar. Vão me levar no médico.

S. Você tá doente?

FEDERICO. Não. Ele tem que receitar de novo uns medicamentos, renovar a receita. Por
causa da epilepsia. Sabe o que é?

S. Sim. Claro.

FEDERICO. Eu tenho. Epilepsia.

S. Sim. Eu sei.

FEDERICO. Às vezes… Fico tremendo. Vejo coisas. Dói a mandíbula. Por isso tenho que
tomar tarja preta. Mas a verdade é que a única coisa que me acalma é o terço.

S. O terço que tua mãe te deu de presente?


FEDERICO. Na real não foi ela que me deu de presente. Eu fiquei com ele depois que ela
morreu. É a única coisa dela que eu tenho. Gostou?

S. É muito bonito.

FEDERICO. Muito bonito. Você sempre usa essas palavras… Eu, hein?

S. É que é muito bonito mesmo.

FEDERICO. Minha mãe era uma pessoa boa. Ela sim gostava de mim.

S. Peraí… É aí que eu gostaria de agregar algo novo. Quando fala que a única coisa da
mãe que ele ficou foi o terço. Aí podemos agregar que também ficou com um CD. Por
exemplo, algo como... Fiquei com ele depois que ela morreu. Era dela. Foi a única coisa
dela que eu fiquei para mim. Com isso e com um CD. Um CD que minha mãe escutava
o tempo todo. Um CD do Agnaldo Timótio. Era seu cantor predileto. E esse CD tem sua
música predileta. “Quem é”. Uma coisa assim...

FEDERICO. Logo depois do assunto do terço?

S. Logo depois. Foi com a única coisa dela que eu fiquei pra mim. Com isso e com um
CD. Fala do CD, do Agnaldo Timóteo, da “Quem é”, e depois volta ao terço pra
perguntar se ele gosta.

FEDERICO. É o cantor que você tinha me falado?

S. Sim. Agnaldo Timóteo. Desde que escutei a música não consigo tirá-la da cabeça.
Aliás, acho que a música “Quem é” ficaria muito boa nesse momento. Bem na hora
que ele fala do amor que sente pela mãe. Deixa ver. Queria provar com a música de
fundo. Depois de… É o rosário que tua mãe te deu de presente?

FEDERICO. Bom… Na real não foi ela que me deu de presente. Fiquei com ele depois
que ela morreu. Com isso e com um CD. Um CD que minha mãe escutava o tempo
todo. Um CD do Agnaldo Timóteo. Era o cantor predileto dela. E esse CD tem sua
música predileta. “Quem é”. Mas pra falar a verdade o que me acalma é o terço.
Gostou?

S. É muito bonito.

FEDERICO. Muito bonito. Você sempre usa essas palavras… Eu, hein?

S. É que é muito bonito mesmo.

FEDERICO. Minha mãe era uma pessoa boa. Ela sim gostava de mim. Eu gostava dela.
Tinha algo entre nós, sabe. A gente se amava. A gente se amava de verdade. Eu acho
que minha mãe me amava mais a mim do que ao meu pai.

S. O que ele fala é terrível, né? A gente se amava de verdade. Eu acho que minha mãe
me amava mais a mim do que ao meu pai. É pesado.
FEDERICO. Ele falou assim? Desse jeito?

S. Sim. Assim mesmo. A gente se amava de verdade. Eu acho que minha mãe me
amava mais a mim do que ao meu pai. Que estranho...

FEDERICO. O quê?

S. Você está usando os mesmos tênis que ele.

FEDERICO. Nike?

S. Sim. Exatamente o mesmo modelo. As mesmas cores.

FEDERICO. Os dele devem ser falsificados.

S. É provável.

FEDERICO. Agora fazem umas imitações incríveis. Estes são originais.

S. Talvez seja o inverso.

***

S. Gostou?

MARTÍN. Escutava o tempo todo. Sempre que se trancava sozinha no quarto com chave,
botava bem alto. Com o volume bem alto. Assim eu não percebia que ela tava
chorando. Sei a letra de cor. Tô sempre cantando. Quase que todos os dias. É tipo
uma Ave Maria.

S. Então você é religioso.

MARTÍN. Claro. Até porque eu… Várias vezes eu vi coisas. Como é que se fala?... Tive
visões. Por isso depois tenho dor de cabeça e ataques.

S. E o que você viu?

MARTÍN. Agora não quero falar disso.

S. Você sabe que já tenho o título?

MARTÍN. O quê?

S. O título. O nome que vai ter a peça de teatro. É Tebas Land.

MARTÍN. Como é que é?

S. Tebas Land. Terra de Tebas. Land em inglês significa terra.

MARTÍN. E Tebas?
S. Tebas é o nome de uma cidade muito conhecida. Era uma cidade da antiguidade onde
acontece o mito de Édipo. Já escutou falar de Édipo?

MARTÍN. Não conheço. Não sei quem é.

S. Aconteceu com ele algo parecido com o que aconteceu com você.

MARTÍN. A mãe morreu?

S. Édipo é alguém que matou seu pai. Pra falar a verdade não se sabe se ele existiu ou
não. É um mito. É uma historia. Édipo é a personagem principal da história.

MARTÍN. O super-herói?

S. Exatamente. Ele é o herói da história.

MARTÍN. E foi preso que nem eu?

S. Não. A história é diferente. Quando matou o pai ele não sabia que era o pai. Porque
os pais o tinham abandonado quando ele era pequeno. O entregaram para alguém que
por sua vez o pendurou pelos tornozelos em uma árvore. Por esse motivo se chama
Édipo. O nome significa “o dos pés inflamados”. Depois outra pessoa o tirou, salvou
sua vida e o levou para outro país.

MARTÍN. Longe de Tebas?

S. Sim, pra Corinto. Quando Édipo cresce e retorna a Tebas, mata seu pai no caminho,
que era o rei de Tebas, mas sem saber que era seu pai. Depois se casa com a rainha
de Tebas, sem saber que era sua mãe.

MARTÍN. Casa com a mãe?

S. Sim.

MARTÍN. E vai pra cama com ela?

S. Sim. Claro.

MARTÍN. E fazem amor?

S. E tem filhos.

MARTÍN. Juntos?

S. Sim. Juntos.

MARTÍN. E ela sabia que ele era filho dela?

S. Não. Nenhum deles sabia nada.

MARTÍN. Então não tem culpa.


S. Mas um dia, ficam sabendo de tudo. Um dia ele fica sabendo que o homem que tinha
matado era seu pai e que a mulher com que tinha se casado era sua mãe.

MARTÍN. E o que ele faz?

S. Fura os próprios olhos.

MARTÍN. Sério?

S. Sim. Vai até o quarto onde estava o cadáver da sua mãe, que tinha se enforcado
quando ficou sabendo, pega a presilha do cabelo dela e enfia nos próprios olhos.

MARTÍN. E fica cego?

S. Completamente. No lugar dos olhos ficam dois buracos pretos.

MARTÍN. E depois?

S. É mandado embora. É desterrado. Tem que ir embora.

MARTÍN. De Tebas?

S. Sim. De Tebas.

MARTÍN. E vai embora…

S. Sim. Ninguém gosta dele na cidade. Você nunca tinha escutado a história?

MARTÍN. Não sei. Na escola… Uma vez um professor contou uma história parecida.
Alguma coisa da tragédia da Grécia.

S. É isso. Porque depois muitos escreveram sobre essa história. E na Grécia, há muitos
séculos, houve algumas pessoas que pegaram a história e escreveram umas peças de
teatro que foram chamadas de tragédias. Há uma que se chama Édipo Rei. Outra que
se chama Édipo em Colono.

MARTÍN. Para falar a verdade é uma tragédia mesmo.

S. Então. É por isso que chamei minha peça de Tebas Land. Entendeu agora?

MARTÍN. Mas eu nunca fui pra cama com a minha mãe.

S. Eu sei. Mas de certa forma aconteceu com Édipo o mesmo que com você.

MARTÍN. Pelo que aconteceu com meu pai?

S. Claro. E acontece que sempre que uma pessoa mata o seu próprio pai, se fala do caso
de Édipo.

MARTÍN. E ele não foi preso?


S. Não. Mas foi desterrado, que naquela época era quase a mesma coisa. Se você quiser
posso te trazer as tragédias pra você ler.

MARTÍN. E fizeram no cinema?

S. Sim. Fizeram vários filmes. Se quiser posso conseguir os filmes. Tem algumas
pinturas também.

MARTÍN. Isso eu gosto.

S. De pintura?

MARTÍN. Sim. Gosto muito de ver pinturas.

S. Então posso trazer. Vou juntar as pinturas que existem sobre o mito e vou trazer.

MARTÍN. Beleza.

S. Também vou te trazer as duas tragédias, assim você pode ler. Capaz que estão na
biblioteca.

MARTÍN. Eu não vou à biblioteca. Já falei.

S. Desculpa. Não percebi. É verdade.

MARTÍN. Deve ser foda. Ir pra cama com a própria mãe. Deve ser esse o motivo do por
que ele arrancou os próprios olhos.

S. Arrancou os próprios olhos quando ficou sabendo de tudo.

MARTÍN. Sim, mas tenho certeza que arrancou os olhos por ter ido pra cama com a mãe,
não tanto por ter matado o pai. Sacou?

S. É provável.

MARTÍN. Deve ser horrível.

S. Tenho que ir.

MARTÍN. Já?

S. Sim. Estamos na hora.

MARTÍN. E… Como matou o pai?

S. Ninguém sabe ao certo. Algumas versões falam que foi com um porrete.

MARTÍN. Ah… O meu… Eu matei ele com um garfo.

S. Sim. Eu sei.

MARTÍN. Vai ficar tarde.


S. Volto depois de amanhã.

MARTÍN. Beleza. Vou esperar.

****

S. Alguns dias depois fui convocado pela direção do Teatro San Martín. Tinham
recebido um novo correio do Ministério da Justiça e Segurança Pública em que se
proibia terminantemente a ida de Martín às apresentações. A negativa era definitiva.

FEDERICO. Então ele não estará presente.

S. Não. Só vai poder vir a um ensaio e sem público. Não sei se você viu que estive
trabalhando com a reconstituição do crime.

FEDERICO. Sim. Isso de fazer que ele reconstitua a cena do crime é impressionante, né?

S. Sim. Foi muito forte escutar como ele contava que tinha sido levado até a casa e
tinham feito com que ele fizesse exatamente as mesmas coisas. Os mesmos gestos
que tinha feito quando matou ao pai.

FEDERICO. Ele também quis fazer a reconstituição pra você?

S. Sim. Outro dia. Foi realmente muito violento. Eu falei que ele não era obrigado. Mas
ele insistiu que sim, que queria fazer. Na verdade quem não queria que ele fizesse era
eu. Não tinha a menor vontade de ver ele ali, atuando a cena do assassinato. Sabia
que ia me impressionar. E foi o que aconteceu.

FEDERICO. E fez mesmo?

S. Ficou assim, na minha frente e começou. Foi um domingo... De madrugada... Bem


cedo... Começou e não parou até que contou tudo. Foi um horror. Vê-lo repetir,
exatamente, os mesmos gestos. Os mesmos movimentos.

FEDERICO. Você quer que…?

S. Não sei.

*****

MARTÍN / FEDERICO. Foi num domingo. De madrugada. Bem cedo. Eu entro. Abro a
porta e entro. Ele está na cozinha. Ali. Tinha se levantado pra tomar um copo d´água.
Do nada ele olha pra mim e diz que sou incapaz de trazer um litro de leite pra casa.
Assim, do nada. Eu respondo que se ele quiser um litro de leite que ele mesmo vá
buscar. Você é uma puta, ele falou. Não respondo. Pergunta, você escutou? Continuo
sem responder. Então diz de novo, você é uma puta. Tá vendo? Estou falando que
você é uma puta e você não se defende. Puta. Então é nesse momento. É nesse
momento que tenho a visão. É nesse momento que eu vejo a imagem. Na minha
frente. E me faz um gesto. Com o braço. Assim. Então vou até a gaveta dos talheres e
abro. Uma verdadeira puta. Escolho um garfo. Não falo nada. Puta, ele fala de novo.
Então viro. Vou até ele. Levanto o garfo e enfio nele. Assim. Só um golpe. No
pescoço. Ele grita, o que você fez? Tenta me parar e então o empurro. Contra o
refrigerador. Então dou o segundo golpe. No mesmo lugar. Sempre no mesmo lugar.
No pescoço. Tá louco, grita. Você está me machucando. Então dou o terceiro golpe,
um pouco mais embaixo. Aqui. E então ele grita ainda mais forte. Mas, o que você tá
fazendo? Tá me machucando. E fala: tá vendo? Tá vendo que você é uma puta
incapaz de trazer um litro de leite? Nesse momento tenta de novo me empurrar, mas
eu travo ele com a minha perna direita e dou o quarto golpe. Na garganta. Em plena
garganta. E ele grita, está me matando. E então eu enterro o garfo bem fundo. Bem
profundo pra ele parar de falar. Para que ele pare de falar. Está matando o seu
próprio pai. Foi a última coisa que escutei dele. Então enfio o garfo na garganta
várias vezes. E nesse momento o sangue começa a correr para todos os lados. O
pescoço começa a se abrir. Quer falar alguma coisa, mas só sai alguns barulhos da
garganta aberta. Tipo roncos misturados com sangue. Então continuo enfiando o
garfo, várias vezes. Pra matar ele bem morto. Pra que ele pare de falar. Enfio aqui.
Atrás da orelha. E aqui, debaixo da mandíbula. E depois nessa parte. E depois enterro
o garfo no peito. E aqui onde fica o fígado. E desse outro lado também. E depois no
meio da barriga. Então enfio várias vezes. E depois nessa parte da virilha. Aqui
mesmo. E depois ali. Na virilha. Várias vezes. Dezoito. Dezenove. Vinte. Vinte e
um. Só nesse momento percebi que ele tava morto. Tinha os olhos abertos, mas na
verdade já não respirava. Parecia que tava me olhando. Que mesmo morto
continuava a me olhar. Papai, falei. Papai. Mas não respondeu. Tava morto. Tava
bem morto.

S. Já está bom. Por hoje deu.

******

MARTÍN. Não vai entrar?

S. Tudo bem?

MARTÍN. Mais ou menos…

S. Falaram?

MARTÍN. Sim. Ontem.

S. Não depende de nós.

MARTÍN. Eu sei.

S. Também estou triste.

MARTÍN. Queria ir. Queria tá lá.


S. Você vai estar de qualquer jeito, o tempo todo. Todos vão escutar tua história. A
verdadeira.

MARTÍN. Eu sei. Mas queria poder ir. Porque nunca vejo ninguém aqui. Nunca vem
ninguém. Ninguém vem me visitar. O que eu queria era poder ir ao teatro.

S. Eu também queria que você fosse.

MARTÍN. Pra dar uma saída.

S. De qualquer forma você vai poder assistir um ensaio. Isso já foi aprovado.

MARTÍN. Mas não vão poder ir todas as noites.

S. Vai ter um sistema de filmagem. Você vai poder assistir todas as apresentações. Isso
também já foi aprovado.

MARTÍN. Sim. Também me falaram. Mas não é a mesma coisa.

S. Muitas pessoas vão poder conhecer tua história.

MARTÍN. Vou ser que nem uma estrela.

S. De alguma forma. Quer andar um pouco?

MARTÍN. Não. Não estou com vontade.

S. Podemos tentar fazer uma conexão por Internet também. Por Skype. Podemos nos
organizar para ter um bate-papo durante a apresentação.

MARTÍN. Sim, mas o que eu queria era sair um pouco daqui.

S. Bom… é justamente isso o que eles não querem.

MARTÍN. Porque eu não vou poder sair nunca.

S. Às vezes…

MARTÍN. Não no meu caso. No meu caso é pra sempre. Vou ficar trancado aqui pra
sempre. Sempre, sempre, sempre. Até o dia que eu morrer.

S. Às vezes os advogados…

MARTÍN. Eu não tenho advogado.

S. Sim. Você tem. Qualquer pessoa tem direito a ter um advogado.

MARTÍN. Eu não. Não tenho grana. Nem ninguém que se preocupe comigo. Eu tive com
um senhor umas duas ou três vezes. Só isso.

S. Talvez ele possa te ajudar.


MARTÍN. Não. Eu sei que vou ficar aqui pra sempre.

S. O que é isso?

MARTÍN. Nada.

S. Por que você esconde?

MARTÍN. Não é nada.

S. O que é isso?

MARTÍN. Já falei que não é nada.

S. É um garfo…

MARTÍN. E daí? Ficou com medo?

S. Do quê?

MARTÍN. De me ver com um garfo.

S. Não. De jeito nenhum.

MARTÍN. Sempre tenho comigo. Aqui. Escondido. Por via das dúvidas.

S. E eles deixam?

MARTÍN. Não sabem. Eu sempre troco o garfo no refeitório. Você nunca sabe... aqui
dentro…

S. Está acontecendo alguma coisa?

MARTÍN. Nada. (ele cai tendo um ataque)

S. (pede ajuda para plateia) Martín estava começando a ter um ataque. Na hora vieram
atender ele e pediram que eu me retirasse. Que era melhor que eu fosse embora.
Fiquei aguardando um pouco para ter notícias, mas falaram que não adiantava
esperar. Que eles iam levá-lo à enfermaria e que o médico ia tomar conta dele. Pedi
para o diretor da prisão que me mantivesse informado. Quando cheguei ao hotel
tinha uma mensagem dele onde explicava que Martín tinha tido um ataque de
epilepsia muito forte e que o melhor era suspender nossos encontros, pelos menos
por uma semana, até que melhorasse. Essa noite foi difícil dormir. Não conseguia
tirar da cabeça a imagem de Martín ensanguentado com o garfo na mão e começando
a tremer cada vez mais. Tive que tomar meio comprimido para poder dormir.
Quarto quarto

S. Durante toda a semana seguinte ao ataque decidi ensaiar com mais intensidade.
Faltava pouco para a estreia. Hoje você pode ficar até as nove?

FEDERICO. Sim. Sem problemas. Ele nunca falou do julgamento? Deve ser terrível
saber que a vida inteira você...

S. Você sabe que quanto mais eu o conheço mais entendo que tenha matado o pai. Não
estou justificando. Pra falar a verdade às vezes me pergunto se mais que um
assassinato não foi um ato de legítima defesa. Às vezes me pergunto se foi um
verdadeiro parricídio ou não.

FEDERICO. Mas ele, diferente de Édipo, sabia que estava matando o próprio pai.

S. Não sei se um monstro como aquele pode ser chamado de pai. Não sei. Para mim um
monstro desses não é realmente um verdadeiro pai. Desculpa. Na verdade acho que
estou um pouco influenciado pela coisas que Dostoievsky diz em Os Irmãos
Karamazov. Ontem marquei algumas coisas no livro.

Um pai injusto e odioso acorda em seu filho perguntas dolorosas, por exemplo: «Será
que meu pai me amava quando me gerou? Esse filho deveria perguntar ao seu pai:
«Por que tenho que te amar? Prove que é uma obrigação.» E se esse pai detestável não
é capaz de demostrar ao seu filho que deve amá-lo, então o filho fica liberado e com
direito para considerar o autor dos seus dias como um estranho e até como um inimigo.
Certos crimes não podem ser chamados de parricídios. A morte de certos pais só pode
ser qualificada de parricídio por aquelas pessoas enceguecidas pelos preconceitos.

FEDERICO. Sim. É um pouco o que você acabou de falar.

S. Utilizava os livros para esmagar as mãos dele. Não sei se dá para chamar de pai.

FEDERICO. Ele também era epilético?

S. O Dostoievski? Sim. Aliás, aparentemente teve seu primeiro ataque de epilepsia no


mesmo dia da morte do seu pai. Toma.

FEDERICO. Não. Pode deixar que eu vou comprar.

S. É um presente. Estou te presenteando.

FEDERICO. Muito obrigado.

S. Assim sempre que pensar nos Karamazov, vai se lembrar de mim. As fotos do garfo,
você viu?
FEDERICO. Sim. Tava vendo. São desagradáveis.

S. Todos os dentes manchados de sangue. É sangue seco. Parece coagulado.

FEDERICO. Não sei o porquê, mas achei essas fotos mais perturbadoras que as fotos do
cadáver.

S. É verdade. E ao mesmo tempo… Há uma… Sei lá… O garfo dentro da sacola


plástica... Parece uma instalação num museu de arte contemporânea. É estranho
porque em uma das audiências Martín conta que, antes de ligar para polícia, ele fez
uma vitamina de banana e lavou tudo o que estava sujo. No entanto, o garfo ficou
sujo. Quer dizer que lavou tudo, menos o garfo.

FEDERICO. Quando acontecem crimes desse tipo entre familiares... Imagino que o
assassino é detido na hora... Quando é alguém da família, o assassino pode ir ao enterro?

S. Não sei. Imagino que não.

FEDERICO. Quer dizer que ele não viu nunca o túmulo do seu pai. O que acontece no
caso de a pessoa pedir pra assistir o enterro ou pra ir no túmulo da vítima?

S. Realmente nunca me perguntei. Onde tínhamos parado?

FEDERICO. Na parte em que Martín bota colírio.

S. É verdade. Ah… Não sei. Talvez fosse melhor que não fosse ele mesmo que coloca
as gotas.

FEDERICO. Pode ser. Em um momento posso pedir pra você.

S. Podemos experimentar.

FEDERICO. Beleza.

S. Como se finalmente fosse esse o único contato físico entre eles.

FEDERICO. Tá. Vamos?

S. Retomamos um pouco antes.

FEDERICO. Do início dessa cena.

S. Ok.

FREDERICO. Eu o imagino como… Cansado… Esgotado… Como se depois do ataque


de epilepsia, não aguentasse mais... Sei lá… Completamente rendido sobre o
banco…

**

S. Você está melhor?


MARTÍN. Sim. Agora sim.

S. Não vai treinar hoje?

MARTÍN. Não. O médico falou que era melhor descansar.

S. Liguei todos os dias pra perguntar como você estava.

MARTÍN. Sim, eu sei.

S. Se estiver muito cansado, podemos suspender.

MARTÍN. Não. Não. Me ajuda.

S. Claro. Posso voltar amanhã ou depois.

MARTÍN. Não.Tá Tudo bem.

S. O médico me falou que tinha sido um ataque bem forte.

MARTÍN. Sim. As primeiras convulsões foram um pouco longas. Mas agora tô bem.

S. Dói alguma coisa?

MARTÍN. Não. Tô um pouco cansado. O corpo todo. Mas só um pouco. E a luz.


Incomoda um pouco a luz. Os olhos. Tenho que botar esse colírio três vezes ao dia.
Que hora são?

S. Cinco.

MARTÍN. Então… Deixa ver…

S. Quer ajuda?

MARTÍN. Você sabe fazer isso?

S. Sim. Dá.

MARTÍN. Três gotas em cada olho.

S. Pode deixar.

MARTÍN. Tem que apertar… Tem que cair dentro.

S. Uma.

MARTÍN. Péra…

S. Não tenha medo. Uma. Duas. Três. Arde?

MARTÍN. Um pouco. Agora o outro.

S. Peraí… Um. Dois. Três.


MARTÍN. Não.

S. A última não entrou. De novo. ... Três. Agora sim.

MARTÍN. Arde um pouco.

S. Trouxe meu Mp3 para te emprestar por uns dias.

MARTÍN. Pra mim?

S. Assim você pode escutar um pouco de música. Tem uma música que eu sempre
escuto quando não estou muito bem.

MARTÍN. Qual é?

S. É um concerto para piano. Escuta. (música Mozart n 21)

MARTÍN. É muito…

S. Gosta?

MARTÍN. Sim.

S. É muito calmo. Sempre escuto.

MARTÍN. São violinos…

S. Agora vai entrar o piano. Vai ver.

Martin. Quando?

S. Aí.

MARTÍN. Ah… Sim… Escutei...

S. Está na hora.

MARTÍN. Por que você não fica mais um pouco?

S. É que eu tenho que ir. (diminui a música)

MARTÍN. Fecha bem quando sair. Senão, com o vento, a porta fica batendo e me
incomoda.

S. Sim. Claro. Bom. A gente se vê.

***

FEDERICO. É Mozart?

S. Sim. O Concerto para piano N° 21 em dó maior. É o andante.


FEDERICO. E ele gostou?

S. Muito. Ele compôs um pouco antes da morte do seu pai. Nessa época estavam
brigados. Não se falavam. Outros dois que tinham uma relação um tanto
atormentada. Você sabe que… Fiquei impressionado de ver ele tão frágil. É estranho,
mas me sinto culpado pelo ataque. Não sei. Tenho a ideia de que nossos últimos
encontros não lhe fizeram bem. A história de Édipo, por exemplo, ele ficou muito
perturbado. Acredito que não fez bem pra ele. É como se tivesse revivido muitas
coisas nesses dias.

FEDERICO. É provável. Viu os cartazes?

S. Sim. Vi hoje de manhã.

FEDERICO. Ficaram bem bons.

S. Sim. Trabalhamos muito com o designer na ideia do garfo manchado de sangue no


saco plástico. ( falamos sobre o nosso cartaz)

FEDERICO. O que não ficou claro pra mim é se a gente estreia quinta ou sexta.

S. Na quinta é só com ele. E na sexta é a estreia oficial.

FEDERICO. Então os convites são pra sexta.

S. Sim. A partir de sexta.

FEDERICO. Beleza. Não tinha ficado claro.

S. Se você quiser posso te dar meus convites.

FEDERICO. Você não vai convidar ninguém?

S. Só meus pais. Só preciso de dois convites. Os outros eu posso te dar.

FEDERICO. Beleza… Aceito. Vou usar.

S. Amanhã peço pra te entregarem.

FEDERICO. Muito obrigado. Como você falou que se chamava o concerto de Mozart?

S. Concerto para piano N° 21 em dó maior.

****

MARTÍN. Hoje estou me sentindo melhor. Muito melhor.

S. Dá para ver.

MARTÍN. É por causa dos remédios. Aquele dia não tava passando bem, mas hoje estou
muito melhor. Ontem à tarde fiquei escutando a música que você trouxe.
S. Fez bem pra você?

MARTÍN. Não sei, mas eu gostei.

S. Então foi bom.

MARTÍN. Agora não consigo tirar da cabeça. Toca o tempo inteiro. Aqui.

S. Fico contente.

MARTÍN. E hoje de manhã li aquilo que você falou no jornal.

S. A entrevista?

MARTÍN. Sim. Tem um monte de coisas que não entendi. Mas vi que você falou de
basquete e tudo.

S. O jornalista fez muitas perguntas sobre você.

MARTÍN. E também sobre meus pais.

S. Queria te entrevistar.

MARTÍN. Se ele quiser…

S. Mas não deixam. A diretor da prisão diz que não é possível.

MARTÍN. Não querem. Melhor. Pra falar a verdade eu também não quero. Melhor assim.
Não sabia que você mora em Paris.

S. Sim. Há muitos anos.

MARTÍN. E você gosta?

S. Muito.

MARTÍN. Então você fala francês.

S. Claro.

MARTÍN. Fala alguma coisa.

S. Quando falo em português não gosto de dizer coisas em francês.

MARTÍN. Mas você fala ou não fala?

S. Sim. Já falei que falo.

MARTÍN. Então fala alguma coisa.

S. O que você quer que eu fale?

MARTÍN. Sei lá. O Pai Nosso, por exemplo.


S. O Pai Nosso?

MARTÍN. Sim. Em francês.

S. Notre Père, qui es aux Cieux, que ton nom soit sanctifié… Aconteceu alguma coisa?

MARTÍN. Nada.

S. Sim. Aconteceu alguma coisa.

MARTÍN. Não. Não é nada.

S. Que foi?

MARTIN. Sei lá… Você olhou de um jeito…

S. Olhei como?

MARTÍN. Um pouco estranho…

S. Estava olhando como sempre.

MARTÍN. Não. Você olhou de um jeito diferente.

S. Eu?

MARTÍN. Sim.

S. Não estou entendendo o que você está falando.

MARTÍN. Você olhou várias vezes. Pro meu pau.

S. Sei lá. É possível. Mas…

MARTÍN. Você… Gosta de homem?

S. Não vou responder essa pergunta.

MARTÍN. Não tem nada de errado.

S. Não é que tenha algo de errado...

MARTÍN. Então?

S. É que não tem nada a ver.

MARTÍN. Mas, você me fez muitas perguntas. E eu sempre respondo.

S. Sim. Eu gosto de alguns homens.

MARTÍN. E de mulheres, você gosta?

S. Sim. Também gosto de algumas mulheres.


MARTÍN. Mas você não vai pra cama com mulheres.

S. Não entendo por que de uma hora pra outra você está me fazendo todas essas
perguntas.

MARTÍN. Vai ou não?

S. O que é que você quer saber?

MARTÍN. Eu, por exemplo, você gosta de mim?

S. Ah… É isso o que você quer saber.

MARTÍN. Comigo, por exemplo, você iria pra cama comigo?

S. Sei lá.

MARTÍN. Por que você não quer responder?

S. E você… Você gosta de homens?

MARTÍN. Sim.

S. E de mulheres?

MARTÍN. Também. Muito.

S. Não sei por que estamos falando sobre isso.

MARTÍN. Você ainda não respondeu se iria para cama comigo.

S. Por que você quer saber?

MARTÍN. Pra saber.

S. Não sei.

MARTÍN. Sim. Você sabe. A gente sempre sabe se transaria ou não com a pessoa que
está na sua frente.

S. Não acho. Nem sempre. Está vendo. Eu não sei.

MARTÍN. Você sabe sim… O problema é que você não tem coragem.

S. Por que não?

MARTÍN. Você teria medo.

S. Como você sabe?

MARTÍN. Eu sei.

S. E você?
MARTÍN. Eu o quê?

S. Você teria coragem?

MARTÍN. De ir pra cama com você? Sim. Por que não?

S. Acho que já está na hora.

MARTÍN. Já vai?

S. Sim.

MARTÍN. Ficou chateado com as minhas perguntas?

S. Não estou acostumado a falar dessas coisas.

MARTÍN. Isso é teu. Toma. Teu Mp3.

S. Não quer ficar?

MARTÍN. Não. Você tinha emprestado, e eu gosto de devolver as coisas emprestadas.

S. Como você quiser.

MARTÍN. Antes de você ir embora, posso te pedir um favor?

S. Claro.

MARTÍN. Preciso pedir algo à direção. E se eu fizer, vão dizer que não. Agora, se você
pedir, talvez...

S. Depende do que você quiser pedir.

MARTÍN. É que eu gostaria de visitar o túmulo do meu pai. Você acha que vão deixar?

S. Podemos tentar.

MARTÍN. Tentar não custa nada, né?

S. Não.

MARTÍN. Mesmo sabendo que não vão deixar.

*****

S. Eu também já sabia. Sabia que não iam deixar. Mesmo assim insisti muitas vezes
com o diretor do centro quando falei com ele. Tentei explicar o importante que era
aquele pedido. Quão importante era para Martín poder visitar o túmulo do pai. O
diretor não entendeu por que Martin queria visitar o túmulo do pai que ele mesmo
tinha matado de maneira tão bestial. Não achava sentido. Nem a razão. Eu disse
várias vezes que não podíamos saber e que era algo muito íntimo e quiçá muito
difícil de explicar para Martín. Foi nesse momento que, depois de fazer uma pausa, o
diretor disse que se Martín queria conhecer o túmulo, então ele teria que escolher
entre uma das duas saídas: ou ir ao teatro ou ir ao cemitério. Ele explicou que não
poderia autorizar as duas. Que autorizar uma saída já era complicado. Tem que
escolher onde prefere ir, ele me disse antes de eu ir embora. Em todo o caminho de
volta para o meu hotel eu fui pensando que a escolha não seria fácil. O cemitério ou
o teatro?

******

FEDERICO. E escolheu rápido?

S. Imediatamente. Assim que eu sugeri as duas possibilidades. Não hesitou nem por um
segundo.

FEDERICO. O que você teria escolhido?

S. Acho que teria escolhido ir ao teatro.

FEDERICO. Eu também.

S. Mudando de assunto, experimentou o figurino?

FEDERICO. Sim.

S. Gostou?

FEDERICO. Sim.

S. Legal. Então podemos começar…

FEDERICO. Ah… Queria te agradecer.

S. Por quê?

FREDERICO. Por ter me escolhido. Por trabalharmos juntos. Não sei. É pra você.

S. O que é?

FEDERICO. É um presente.

S. Muito obrigado.

FEDERICO. É uma lembrança.

S. Já sei o que é. É um terço.

FEDERICO. Sim. Perguntei ao figurinista onde tinha comprado o meu e fui procurar
outro igual.

S. Muito obrigado. É de jasmim.


FEDERICO. Sim. O meu também é.

S. Ontem estive procurando a origem do seu nome e, você sabe o que significa?

FEDERICO. Não.

S. Paz. Pacificador. É de origem germânica. Que governa para a paz.

FEDERICO. Não sabia.

S. Ontem procurei.

FEDERICO. E o teu?

S. O quê?

FREDERICO. Teu nome. Que significa?

S. O meu? Guardião. Guardião ou protetor.

FEDERICO. Olha!

S. Bom, começamos?

FEDERICO. A cena final?

S. Sim. A despedida.
Prorrogação

MARTÍN. É pra mim?

S. Sim. É um presente.

MARTÍN. Por que?

S. Pra agradecer por toda sua ajuda. E também porque tinha vontade de te dar um
presente.

MARTÍN. E eles sabem? Deixaram?

S. Sim. Pode deixar. Estão sabendo.

MARTÍN. O que é?

S. Olha.

MARTÍN. Não sei. Dá um negócio... Não estou acostumado a ganhar presente.

S. Rasga o papel.

MARTÍN. O que é?

S. Não percebeu?

MARTÍN. É um… Tablet.

S. Sim.

MARTÍN. Mas é um presente caro.

S. Isso não importa.

MARTÍN. É pra mim?

S. Sim. É um presente pra você.

MARTÍN. É novo.

S. Baixei pra você quase todos os livros que estão digitalizados. Você vai poder ler tudo
o que você quiser. Vai ter material por muito tempo.

MARTÍN. Legal!
S. Também salvei as imagens que tínhamos visto.

MARTÍN. As pinturas?

S. Sim. E também tem uma enciclopédia. E um monte de concertos de Mozart. O


músico que você gostou. Lembra?

MARTÍN. Sim. O que me fez bem.

S. Esse mesmo. E também coloquei um monte de discos do Agnaldo Timóteo.

MARTÍN. E tem “Quem é”?

S. Claro. Tem duas ou três versões de “Quem é”.

MARTÍN. E está também a peça de teatro?

S. Sim. Também deixei Édipo Rei.

MARTÍN. Não. Perguntava pela tua peça.

S. Tebas Land?

MARTÍN. Sim. Colocou a peça?

S. Também. Amanhã acaba a temporada.

MARTÍN. Já?

S. Bom… Dois meses é uma boa temporada. Talvez mais pra frente volte. Mas com
outra pessoa no meu lugar. Porque eu tenho que viajar.

MARTÍN. Vai voltar pra Paris?

S. Sim. De qualquer forma, você sabe que há outras pessoas, em outros países, que
estão querendo dirigir a peça.

MARTÍN. E você também vai aos outros países?

S. Não posso. Tenho que ficar em Paris. Mas cedo os direitos a outras pessoas para que
montem a peça.

MARTÍN. E outras pessoas vão me interpretar?

S. E a mim também. Outras pessoas vão me interpretar.

MARTÍN. É estranho.

S. O quê?

MARTÍN. Isso tudo do teatro.

S. Você está certo.


MARTÍN. E vai viajar quando?

S. Depois de amanhã.

MARTÍN. Daí a gente não vai se ver mais.

S. Agora não. Mas quando eu voltar venho te visitar.

MARTÍN. Quando?

S. Quando eu voltar.

MARTÍN. E, geralmente, você vem muitas vezes?

S. Pelo menos uma vez por ano.

MARTÍN. Eu não tenho nada pra te dar.

S. Você já me presenteou com algo muito importante.

MARTÍN. Está com você?

S. Claro. Carrego sempre comigo.

MARTÍN. Você percebeu que depois o peito fica sempre com cheiro de jasmim?

S. Sim. É bem cheiroso. Mas você tem certeza que quer deixar comigo?

MARTÍN. É um presente.

S. Sim. Mas estive pensando que é algo muito valioso para você.

MARTÍN. Então! Por isso mesmo que eu te dei. Eu queria que você tivesse algo meu.

S. Já tenho muitas coisas tuas. Foi muito importante para mim te conhecer. Aprendi
muito...

MARTÍN. Agora somos como amigos?

S. Sim.

MARTÍN. Se você me escrever... Depois eles me dão as cartas.

S. Sei.

MARTÍN. Vai escrever?

S. Prometo que vou. De vez em quando vou mandar um cartão postal.

MARTÍN. Queria um da Torre Eiffel.

S. Bom… Está na hora. Tenho que ir.


MARTÍN. Já?

S. O tempo passa rápido…

MARTÍN. Que hora são?

S. São cinco e um.

MARTÍN. Como a gente faz?

S. Um... Abraço? E agora a gente vira e cada um vai pra sua casa.

MARTÍN. Eu não tenho.

S. Eu também não.

MARTÍN. Volta um dia.

S. Eu prometo.

MARTÍN. Fecha bem a porta. Senão a porta bate com o vento e o barulho me incomoda.

S. Se cuida.

MARTÍN. Boa viagem.

**

S. Fui me afastando sem me virar. Tive que atravessar o pátio inteiro sabendo que ele
estava me olhando. Só quando entrei em uma das unidades me virei, e por uma das
janelas o vi dentro do gradeado. Estava sentado e tinha ligado o tablet. Tinha
escolhido o Concerto para piano N° 21 em dó maior de Mozart. ( música Mozart) O
vento trazia alguns acordes do andante até onde eu estava. Era uma tarde de
primavera. Os dias estavam se tornando menos frios. Fiquei por um momento
olhando de longe. A luz da tela iluminava um pouco seu rosto. De repente, vi que
seus lábios começavam a mover-se lentamente. Então percebi que estava lendo.
Fiquei sempre com a dúvida de saber o que ele estava lendo. Nunca soube.

***

MARTÍN. Cidadãos de Tebas. Ó meus filhos, gente nova desta velha cidade de Cadmo,
por que vos prostemais assim, junto a estes altares, tendo nas mãos os ramos dos
suplicantes? Sente-se, por toda a cidade, o incenso dos sacrifícios; ouvem-se
gemidos, e cânticos fúnebres. Não quis que outros me informassem da causa de
vosso desgosto; eu próprio aqui venho, eu, o rei Édipo, a quem todos vós conheceis.

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