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Luiz Mott

Sergipe
Colonial & Imperial
Religião, Família, Escravidão e Sociedade

Editora UFS
Luiz Mott

SERGIPE
COLONIAL & IMPERIAL
Religião, Família, Escravidão e Sociedade:
1591-1882

Editora UFS
Ficha Catalográfica

Mott, Luiz
Sergipe Colonial &Imperial:
Religião, Família, Escravidão e Sociedade: 1591-1882.
Aracaju, Editora UFS, Aracaju: Fundação Oviedo Teixeira, 2008, 210 páginas.

1. Sergipe
2. Colônia
3. Império
4. Historia Social.

CDU -
ÍNDICE

1. Capítulos da história sacra de Sergipe del Rei: Sacerdotes ilustres e santos e

santas milagreiros: 1678-1882....................................................................p.08

2. Sergipanas no Convento da Soledade da Bahia: 1739-1870......................p.25

3. A presença de Sergipe del Rei no Catálogo Genealógico das principais famílias

de Pernambuco e Bahia, de Frei Jaboatão e Pedro Calmon: 1546-1794....p.34

4. Os pombos e os primos sujam as casas: a propósito das dispensas

matrimoniais de nubentes sergipanos: 1807-1854.........................................p.46

5. A Fuga de Escravos nos Anúncios de Jornal de Sergipe: 1833-1864............p.75

6. Três Sonetos Seiscentistas sobre São Cristóvão de Sergipe del Rei................p.95

7. Vida Social e cotidiano em ‘Sergipe o Novo’ à época das Visitações do Santo

Ofício e das Cartas de Sesmaria: 1591-1623.................................................p.109


Apresentação

Meu interesse por Sergipe data de 1966 – 40 anos atrás! - quando com 20
anos de idade, então jovem estudante de Ciências Sociais na Universidade de São Paulo
(USP), realizei uma pesquisa antropológica em Brejo Grande, pequeno município
sergipano, o derradeiro antes do Rio São Francisco desembocar no mar. “Estrutura de
produção de um município sergipano do Baixo São Francisco” foi o tema de minha
tese de Mestrado defendida em Paris, na Sorbonne, em 1972. Creio que ainda até hoje,
continua sendo a única vez que Sergipe foi tema de uma dissertação nesta venerável
instituição acadêmica francesa. Em 1975 defendi tese de doutorado na Unicamp
intitulada “Brejo Grande e as Feiras Sergipanas do Baixo São Francisco”, tendo entre os
examinadores o saudoso Manuel Correia de Andrade, autor do antológico A Terra e o
Homem no Nordeste. Foi com vistas a conhecer a origem das feiras rurais sergipanas
que comecei a pesquisar documentação manuscrita no Arquivo Público do Estado de
Sergipe (APES) e nos demais arquivos eclesiásticos e judiciais de Aracaju, Propriá, São
Cristóvão, entre outros. Foi portanto em Sergipe onde descobri minha vocação para
pesquisar papéis velhos, tornando-me etno-historiador, buscando sempre um casamento
harmonioso da metodologia e teoria da Antropologia com a História, passando, com o
tempo, da antropologia econômica de Sergipe para sua etno-história.
Nestes primórdios de minha pesquisa histórica, o foco principal da
investigação era a demografia histórica sergipana, tendo a felicidade de descobrir uma
importante e até então inédita coleção de estatísticas do segundo quartel do século XIX,
os “Mapas exatos da população de Sergipe”, documentação riquíssima de detalhes
sobre a cor, idade, estado civil e outras características sociais da população livre e
escrava desta província logo após sua emancipação da Bahia. Minha primeira
publicação sobre tal área data de 1974: "Brancos, pardos, pretos e índios em Sergipe,
1825-1830". A partir deste trabalho, ampliei minhas fontes documentais, coletando
sistematicamente informações nos principais arquivos nacionais e internacionais que
conservam manuscritos sobre Sergipe del Rei: Arquivo Público do Estado da Bahia e
Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador; o Arquivo Nacional e Biblioteca
Nacional, no Rio de Janeiro; os Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de Sergipe
e da Bahia; e em Portugal, a Torre do Tombo e Arquivo Histórico Ultramarino.
Em 1986 reuni nove artigos divulgados em diferentes revistas, fruto de
comunicações apresentadas em congressos científicos nacionais e internacionais,
redundando na publicação de meu primeiro livro sobre esta que se tornou minha terra de
predileção científica: Sergipe del Rey: População, Economia e Sociedade, com selo da
Fundação Estadual de Cultura de Sergipe (Fundesc, 204 páginas). Na Apresentação, a
Profa. Dra. Beatriz Góis Dantas assim dizia: “Baseado em farta e variada
documentação, pacientemente coletada em arquivos diversos, associando dados
quantitativos e qualitativos trabalhados com os instrumentos do fazer antropológico e
historiográfico, o autor constrói uma obra que é uma contribuição original e
imprescindível para a compreensão acerca da sociedade sergipana.”
De especialista em Sergipe Provincial na primeira metade do Século XIX,
sobretudo em seus aspectos etno-demográficos, após prolongadas pesquisas
notadamente nos arquivos portugueses, passei a publicar sobre Sergipe Colonial,
concentrando-me num tema até então praticamente “virgem” na historiografia local: A
Inquisição em Sergipe, título de meu segundo livro, vencedor do Concurso “Sergipe
Memória e Momento”, instituído pela Fundação Estadual de Cultura e Conselho
Estadual de Cultura de Sergipe (Coleção Jacson da Silva Lima, 1989, 100 páginas). No
Prefácio, eis como a Profa. Maria Thetis Nunes se refere a esta obra: “Estudo sério,
embasado em pesquisas realizadas especialmente na Torre do Tombo, nele o Prof. Luiz
Mott divulga páginas da história de Sergipe que até o momento haviam permanecido
desconhecidas dos que a estudaram. Livro que confirma as qualidades do pesquisador
demonstradas em obras anteriores. Importante é sua contribuição à historiografia
sergipana.”
Agora, neste terceiro livro consagrado precipuamente a esta mesma região,
SERGIPE COLONIAL & IMPERIAL: Religião, Família, Escravidão e Sociedade,
1591-1882, reunimos sete ensaios publicados em diferentes revistas e periódicos, entre
1987-2006, artigos que aqui mereceram cuidadosa revisão, bastante acrescidos de novas
descobertas, cobrindo ampla área de sua vida sócio-cultural, como se pode ver pelos seus
títulos, a saber: Capítulos da história sacra de Sergipe del Rei: Sacerdotes ilustres e
santos e santas milagreiros: 1678-1882; Sergipanas no Convento da Soledade da Bahia:
1739-1870; A presença de Sergipe del Rei no Catálogo Genealógico das principais
famílias de Pernambuco e Bahia, de Frei Jaboatão e Pedro Calmon: 1546-1794; “Os
pombos e os primos sujam as casas”: a propósito das dispensas matrimoniais de
nubentes sergipanos: 1807-1854; A Fuga de Escravos nos Anúncios de Jornal de
Sergipe: 1833-1864; Três Sonetos Seiscentistas sobre São Cristóvão de Sergipe del Rei;
Vida Social e cotidiano em ‘Sergipe o Novo’ à época das Visitações do Santo Ofício e
das Cartas de Sesmaria: 1591-1623. Como se vê, trata-se de uma cardápio bastante
variado quanto à cronologia e à temática, concentrando-se contudo em quatro vertentes
referida no subtítulo desta obra: Religião, Família, Escravidão e Sociedade.
Com exceção do ensaio obre escravos fujões, que concentra-se apenas na
época imperial (1833-1864), todos os demais navegam a história sergipana em sua
“larga duração”, dos tempos da Colônia ao Império. Sobretudo quando nos
aprofundamos nos séculos XVI, XVII e XVIII, as fontes manuscritas, em sua maior
parte, procedem de arquivos de Portugal, Bahia e Rio de Janeiro, documentação mais
rara e não menos importante para o resgate da história regional. A ordenação dos
capítulos é meramente editorial: que o leitor siga a ordem que melhor lhe apetecer.
Ao reunir esses sete artigos num único volume, minha intenção é facilitar
aos estudiosos e jovens pesquisadores, o acesso a fontes pouco exploradas, novos temas
e abordagens originais da história sergipense, já que algumas das revistas onde estes
ensaios foram originalmente publicados, tornaram-se de difícil acesso.
Ao completar quatro décadas de pesquisa sobre Sergipe, terra que se tornou
minha terceira pátria, depois de São Paulo onde nasci, e da Bahia, onde vivo nas últimas
décadas e cuja Assembléia Legislativa recentemente me honrou com o título de
“cidadão baiano”, assumo meu orgulho em ser identificado como “sergipólogo” e de
contribuir, com mais esta obra, para incrementar o conhecimento e divulgação da
história de Sergipe del Rei.
Salvador-Aracaju, 2006
Luiz Mott
8

1. Capítulos da história sacra de Sergipe del Rei: Sacerdotes ilustres e


santos e santas milagreiros: 1678-1882 1

“A experiência testifica que a religião santa e divina, que


professamos, tem a força mais eficaz de manter a ordem pública, de
conservar a paz e tranqüilidade nos corpos políticos, de refrear as
paixões dos homens, de dirigi-los a cumprir os seus deveres; ensina-
lhes a moral mais perfeita e sublime,que serve de regra não só as
nossas ações, como aos ossos pensamentos e desejos.” (D.Marcos
Antonio de Souza, Vigário em Divina Pastora, Sergipe, 1808) 2

Muito pouco se escreveu a respeito da vida religiosa em Sergipe del Rei


durante o período colonial. As belas igrejas barrocas eretas em suas vilas mais antigas
atestam a importância que os sergipanos conferiram ao culto religioso, muito embora
também nesta comarca o catolicismo fosse, para a maioria da população, muito mais
uma tradição familiar de fachada do que radical e profundo ideal de santidade.3 A irreli-
giosidade, as práticas supersticiosas heterodoxas, os desvios sexuais e até mesmo a
embustice mística já foram amplamente descritos em meu livro A Inquisição em
Sergipe, a única de nossas capitanias que dispõe de uma obra monográfica
reconstituindo integralmente a atuação do Santo Ofício na região.
Como resultado de pesquisas recentes em fontes variegadas apresento
algumas novas achegas, outras revistas, à história religiosa de Sergipe del Rei: inicio
com o levantamento biobibliográfico de uma dezena dos mais ilustres sacerdotes do
Vicariato da Capitania de São Cristóvão no período colonial, incluindo presbíteros
seculares e frades das ordens religiosas. Em seguida discorro sobre três “santos” e
algumas “beatas”, alguns sergipanos natos, outros vivendo nesta Comarca durante o
século XVIII.

1
Uma versão resumida deste artigo, intitulada “Capítulos da vida religiosa em Sergipe:
santos e santas milagreiros”, foi publicada originalmente no Diário Oficial Leitura,
Imprensa Oficial de São Paulo, n.12, volume 137, outubro l993, p.12-13. Agradeço ao
jovem historiador Wendell Mendonça da UFS e ao vestibulando Ronaldo Assis a
digitalização de alguns destes artigos.
2
Souza, D.Antonio Marcos. Memória sobre a Capitania de Sergipe, sua fundação,
população, produtos e melhoramentos de que é capaz. (1808), Aracaju, IBGE/DEE, 2ª
Edição, 1944, p. 20
3
Mott, Luiz. “Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu”, in Souza,
Laura de Mello (org.). História da Vida Privada no Brasil. São Paulo, Companhia das
Letras, 1997, p.155-220
9

Cumpre lembrar, introdutoriamente, que apesar de sua pequenez


populacional, da simplicidade quase franciscana de sua vida urbana e a rusticidade de
sua elite cultural, dispomos de uma pequenina constelação de distinguidos sacerdotes
que também foram homens de letras, os quais viveram ou atuaram em Sergipe
Setecentista.4

I. Sacerdotes ilustres no Vicariato de Sergipe del Rei

O primeiro desta lista de clérigos escritores que viveram em Sergipe é o


jesuíta italiano Padre Luigi Vicenzo Mamiani (Pésaro, 1652- Roma, 1730), missionário
por muitos anos na Aldeia de Geru, em Sergipe, construtor de sua igreja e local onde
escreveu sua obra magna, Catecismo da doutrina cristã na língua brasílica da nação
Kiriri, composto pelo Padre Luis Vicêncio Mamiani, da Companhia de Jesus,
Missionário da Província do Brasil, publicado em Lisboa em 1698 e Arte da Gramática
da Língua Brasília da Nação Kiriri (1699).5 Mamiani entrou na Companhia de Jesus
aos 16 anos, na Província de Veneza, chegando à Bahia em 1684, aprendendo não só o
português, como a língua Kiriri, redigindo “o melhor catecismo nesta língua,” obra que
teve três edições, inclusive em Leipizig. 6 Consta que foi igualmente o tradutor para o
italiano os Sermões da Quaresma do Padre Antonio Vieira e teria deixa outra obra
impressa: Concordia doctrinae Probabilistarum cum doctrina probabilioristarum,
Roma, 1708. Através deste trecho de seu Catecismo, podemos nos adentrar na
pedagogia catequética dos inacianos nas suas missões no interior do Brasil nos finais do
século XVII: “Modo com que se pode dispor um índio pagão para receber o santo
batismo: “Meus filhos, não é bem que sigais os costumes de vossos avós, porque se os

4
Sobre o clero sergipense, cf. Albuquerque, Samuel B. de M. “O Clero sergipano no
banco dos réus.” Jornal da Cidade, Aracaju, 5 dez. 2002, Caderno B, p.6
5 1699 - Arte de Grammatica da Lingua Brasilica da Naçam Kiriri - Off. de Miguel
Deslandes - Lisboa - Portugal - 124 p. [BID] 1877 - Arte de Grammatica da Lingua
Brasilica da Naçam Kiriri - Typ. Central de Brown & Evaristo - Estudo Linguístico de
Batista Caetano de Almeida Nogueira - Biblioteca Nacional - Rio de Janeiro - Brasil -
184 p. [BCM] 1942 - Catecismo da Doutrina Cristãa na Lingua Brasilica da Nação
Kiriri (1698) - Introdução de Rodolfo Garcia - Edição Fac-Similar - Biblioteca Nacional
- Imprensa Nacional - Rio de Janeiro - Brasil - 236 p.
6
Mamiani, Luís Vincencio. Arte de Grammatica da Lingua Brasilica da Naçam Kiriri.
Rio de Janeiro, 1877 Biblioteca Nacional. (1ª. ed., Lisboa: Miguel Deslandes, 1699)
10

seguirdes, não podereis ir para o céu e gozar de Deus. Somente o fogo do inferno será a
vossa morada para sempre. Portanto, entendei bem o que vos digo e crede o que vos
ensino para que sejais filhos de Deus. Se assim fizerdes, ireis para o céu a gozar a bem-
aventurança. Querei saber o modo disso? Quero! Esse é o caminho dos filhos de Deus:
crer em Deus, esperar em Deus e amar a Deus. Para isto hão de guardar os
mandamentos da lei de Deus e hão de receber o santo batismo. Quereis vós fazer assim?
Quero de veras! Depois de recitar os artigos da fé, o índio repete: Creio
verdadeiramente e espero com toda confiança e amo-o sobre tudo. Prometeis de não
pecar mais daqui em diante? Prometo! Quereis que vos batize? Quero e desejo muito!” 7

E assim se fazia mais um cristão batizado e súdito de Sua Majestade. Consta que Padre
Mamiani retornou para Itália em 1701, na qualidade de Procurador das Missões.

Segue-lhe, no rol dos sacerdotes ilustres que exerceram o apostolado em


terras sergipanas, o carmelita baiano Frei Antonio da Piedade, missionário da Aldeia de
Japaratuba, em Sergipe, que em 1703 publica o Sermão que nas Exéquias da
Sereníssima Rainha nossa Senhora Dona Maria Sofia Isabel de Neoburg, feitas pela
nobre Vila de Santo Amaro das Grotas do Rio de Sergipe a 19 de abril de 1700. Pregou
o Reverendo Padre Mestre Frei Antonio da Piedade, religioso de Nossa Senhora do
Monte do Carmo, Doutor na Sagrada Teologia, ex-Prior duas vezes do Convento do
Pará, e ex- Vigário provincial da Vigaria do Maranhão, Governador, Provisor e
Visitador Geral daquele Bispado e nele Comissário da Bula da Santa Cruzada,
Definidor perpétuo desta Província da Bahia e atualmente Missionário da Aldeia de
Japaratuba no Sertão do Rio de São Francisco da Praia. Oferecido à Majestade del Rei
Nosso Senhor D. Pedro II. Pela Câmara da dita Vila. [Lisboa, Oficina dos Herdeiros de
8
Miguel Deslandes, 1703, 22 páginas.] Atente o leitor para o detalhe que tal sermão é

7
Hoonaert, Eudardo (et aliis). História da Igreja no Brasil. Petrópolis, Editora Vozes,
1977, tomo 2, p.147
8
Maria Sofia Isabel de Neubourg (Bélgica,1666 - Lisboa,1699), Rainha de Portugal,
segunda mulher de D. Pedro II, casou-se quando tinha 20 anos. “A rainha D. Maria
Sofia era muito bondosa, e D. Pedro II consagrava-lhe o maior afeto e respeito. Era
muito devota e caritativa, a tal ponto que do seu bolsinho sustentava muitas viúvas e
órfãs, chegando a recolher no paço alguns doentes pobres, de quem tratava e servia à
mesa. Fundou em Beja um colégio para os religiosos franciscanos, que dotou com
muitos rendimentos. Faleceu com 33 anos de idade, vitima dum ataque de erisipela, que
lhe atacou o rosto e a cabeça. Durante a doença fizeram-se preces e muitas procissões.
A sua morte causou a maior consternação tanto na corte, como no povo, que deveras a
estimava. Foi sepultada, levando o hábito de S. Francisco, no panteão real de S. Vicente
11

todo ele dedicado a louvar as qualidades genealógicas e as virtudes da finada rainha,


sem qualquer referência ao lócus onde foi pregado – “a nobre Vila de Santo Amaro das
Grotas do Rio de Sergipe, a 19 de abril de 1700”. Consta, entretanto uma curiosa
“apresentação”, assinada por cinco ilustres homens bons desta localidade, que
ocupavam a vereança na Casa da Câmara. Eis o que dizem ao Rei enlutado,
conservando sua ortografia original:

“Senhor.

Foi tam grande o sentimento que occasionou a triste, e infausta notícia da


morte da Sereníssima Rainha N. Senhora em corações destes leaes Vassallos de V.Real
Magestade, que sobrando-lhes lágrimas para a sentir, lhes faltão as palavras para o
encarecer. E se o affecto mais calificado só se justifica quando pelas obras he
conhecido; na acção presente bem alcançarà V.Real Magestade, qual he o nosso
affecto, pois com ella fez esta Villa tam publico o seu sentimento. Sirva-se a benigna e
Real clemência de V.Magestade de patrocinar esta obra, que reverentemente
obsequiosa offerece esta Villa a seus Reaes pés, que se não iguala ao seu argumento, he
por ser quasi inexplicaval a sua matéria; pois se se convertesse em línguas quantas
folhas ornão os innumeraveis troncos de que se compõem estes matos, todas forão
poucas para encarecer as sublimes prerogativas e relevantes prendas de que a natureza
dotou a Sereníssima Rainha N. Senhora; razão por que a nossa pena na sua falta ainda
deve ser mais excessiva. E supposto que o orador pela occupaçao em que estava e pela
distancia tam dilatada em que vive, (que são perto de noventa legoas do Certao da sua
Missão à Cidade da Bahia), se achasse sem as notícias necessárias e sem os livros
sufficientes para o desempenho desta grandiosa empreza; com tudo antepondo ao
credito de sua pessoa o affecto de vassallo, se expoz a toda a censura, so por não faltar
em concorrer nesta acção , em que tam empenhada se conhecia a obrgação desta Villa,
toda ella deseja a V.Real Magestade dilatados séculos de vida para amparo de seus
Vassallos e conservação da Monarquia Portugueza. Escrita na Vila de Santo Amaro
das Grotas, na Câmera della, aos 30 do mez de Abril do anno de 1700. Amaro Pereira
Castellão, Escrivão da Câmera a escrevi. Manoel Garcia Velho. João Gonçalves de
Moura. João Antunes. Joseph Moreira da Rocha. Domingos Pinto da Fonseca.”

de Fora. Nos 12 anos de casada teve 7 filhos, sendo o segundo o príncipe D. João, que
sucedeu no trono, com o nome de D. João V. Acerca desta rainha, cf.: Triumpho
Lusitano, applausos festivos, sumptuosidades regias nos augustissimos desposorios do
inclito D. Pedro II com a serenissima Maria Sofia Izabel de Baviera, monarchas de
Portugal, por Manuel de Leão; Bruxelas, 1688; Heptaphonon, ou portico de sete vozes,
consagrado á magestade defunta da senhora D. Maria Sophia Izabel de Neuburgo, por
Pascoal Ribeiro Coutinho, Lisboa, 1699; Sentimento lamentavel, que a dor mais sentida
em lagrimas tributa na intempestiva morte da Serenissima Rainha de Portugal D.
Maria Sophia Izabel e Neuburgo, por Bernardino Botelho de Oliveira, Lisboa, 1699;
Oração funebre nas exequias da Rainha D. Maria Sophia Izabel, celebradas na Real
Casa da Misericordia de Lisboa, por D. Diogo da Anunciação Justiniano, Lisboa, 1699.
“ Portugal: Dicionário Histórico,
apud <http://www.arqnet.pt/dicionario/mariasofia_neuburgo.html>
12

Infelizmente não encontramos nenhum destes nomes entre os quinhentos


moradores de Sergipe no período de 1678-1798, arrolados por Ricardo Teles Araújo nos
Arquivos de Portugal,9 faltando portanto informação biográfica sobre vassalos tão fieis
à Monarquia Portuguesa.

Ostentando curriculum vitae tão ilustre, inclusive “Governador, Provisor e


Visitador Geral do Bispado do Maranhão”, a presença de Frei Antônio da Piedade
perdido nesta pequenina aldeia da Japaratuba sugere-nos duas hipóteses: ou o célebre
carmelitano buscava o recôndito “sertão franciscano” para aprimorar suas virtudes
religiosas, ou as fazendas de gado de sua Ordem situadas naquela região exigiam a
presença de sacerdote tarimbado na administração patrimonial, a fim de evitar a invasão
de forasteiros que fugidos da crise açucareira da Bahia, devido à concorrência das
Antilhas, buscavam nos sertões das Capitanias vizinhas alternativa econômica para
enfrentar a quebradeira geral observada na Capital da América Portuguesa. Diogo
Barbosa, na insuperável Biblioteca Lusitana, diz que “ao seu ardente zelo se deve o
fruto espiritual que abundamentemente se colheu na Missão da Aldeia de Japaratuba no
Sertão do Rio de São Francisco da Praia, sendo o primeiro instituidor e Missionário
desta sagrada empresa, e como tal conhecido e venerado por grande letrado, bom
pregador e exemplar religioso. Com estes honoríficos títulos o nomeia Frei Manoel de
Sá nas Memórias dos Escritores Portugueses da Ordem do Carmo.” 10

9
Araújo, Ricardo Teles. “Sergipanos dos séculos XVII e XVIII nos Arquivos
Portugueses”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, n.32, 1993-1999,
p.203-225
10
Barbosa, Diogo. Bibliotheca Lusitana, Historia, Critica e Chronologica, na qual se
comprehende a noticia dos autores portuguezes, e das obras que compozeram desde o
tempo da promulgação da Lei da Graça, até o tempo presente, Lisboa, 1741 e 1758, p.
350. “Em 1698, alguns frades tentavam catequizar os índios, entre eles frei Antônio da
Piedade. Por volta de 1704, religiosos da Irmandade dos Carmelitas Calçados chegaram
àquelas terras sob o domínio do cacique Japaratuba. O grupo era liderado pelo frei João
Batista da Santíssima Trindade. Num local chamado de Canavieirinhas, os religiosos
encontram os índios da nação Boimé. Mas logo que chegaram foram acometidos pela
varíola que assolava a região. Os religiosos, índios e colonos sobreviventes, se mudaram
para a parte mais alta chamada de ‘Alto do Borgardo’ ou ‘Lavradio’, um morro que hoje
ainda fica nos fundos da igreja matriz. Essa transferência de local recebeu o nome de
Missão de Japaratuba. Na colina ‘segura’, frei João deu início à construção de um
convento e de uma igreja. Ela foi erguida e sugestivamente invocada à Nossa Senhora
da Saúde de Japaratuba, “certamente traduzindo um brado de socorro enviado à Virgem
contra a moléstia que fazia inúmeras vítimas”. Ao lado do convento e da igreja, algumas
casas foram levantadas e a Missão de Japaratuba passou a ser conhecida. Por causa dos
13

Outro ilustre autor sergipense era como o missionário Mamiani igualmente


professo da Companhia de Jesus: o Padre Ângelo dos Reis, nascido no ano do Senhor
de 1664. Infelizmente nem Serafim Leite, na sua monumental Historia da Companhia
11
de Jesus no Brasil nem Rubens Borba de Moraes, na Bibliografia Brasileira do
12
Período Colonial indicam em que parte de Sergipe del Rei teria nascido este ilustre
inaciano. Dos nativos de Sergipe foi o mais prolífico, pois além de ter sido secretário do
Padre Antonio Vieira e contemporâneo de Antonil no Colégio da Bahia, assinou quando
menos quatro obras que vieram a lume entre 1706-1719, a saber: Sermão da
Restauração da Bahia, pregado na Sé da mesma cidade no dia dos Apóstolos . S. Felipe
e Santiago [Lisboa, Oficina de M. Manescal, 1706, 18 p.]; Sermão da Canonização do
Grande Apóstolo do Oriente São Francisco Xavier, pregado no dia da mesma festa, no
Colégio do Rio de Janeiro no ano de 1703 [Lisboa, Oficina de Valentim da Costa
Deslandes, 1709, 25 p.]; Sermão de Nossa Senhora de Belém, Pregado no Seminário do
mesmo nome e na primeira oitava do Natal, oferecido ao Padre Alexandre de Gusmão,
da mesma Companhia de Jesus [Lisboa, Oficina de Antonio Pedrozo Galram, 1718, 24
p] e o Sermão da Soledade da Mãe de Deus, que pregou na Sé da Bahia o Padre Ângelo
dos Reis, da Companhia de Jesus, da Província do Brasil. Ano de 1718, oferecido ao
Doutor Manoel Ribeiro da Penha, Cônego Prebendado da mesma Sé [Lisboa, Oficina
de Antonio Pedrozo Galram, 1719]. Consta ainda ser autor de uma ode latina dedicada
ao mais destacado bispo da Bahia setecentista, D.Sebastião Monteiro da Vide, incluída
na obra Vida Cronológica de Santo Inácio de Loiola [1718], assinada pelo jesuíta
Francisco de Matos. 13

Duas décadas mais novo que o Padre Reis, nasce também em Sergipe, no ano do
senhor de 1648, outro presbítero, o Padre Lourenço Ribeiro. Freqüentou o Colégio dos
Jesuítas da Bahia onde se licenciou em “ciências severas, concluindo o curso senhor de

rios e das terras férteis, alguns engenhos de cana-de-açúcar foram montados.” Apud
http://www.infonet.com.br/cinformmunicipios/municipio_japaratuba.htm Cf. também
SACRAMENTO BLAKE, Augusto Vitorino Alves. Dicionário Bibliográfico
Brasileiro. Rio de Janeiro: Tip. Nacional, 1883, volume 1, p.289
11
Leite, Serafim. Historia da Companhia de Jesus no Brasil . Lisboa, Portugalia - Rio
de Janeiro, Instituto Nacional do Livro/Civilização Brasileira, 1938-1950, vol.IX, p.69
12
Borba de Moraes, Rubens. Bibliografia Brasileira do Período Colonial, Instituto de
Estudos Brasileiros, USP, 1969, p.296
13
Barbosa Moraes, op.cit., 1969, p.226
14

profundos conhecimentos.” 14 Foi vigário da freguesia de Nossa Senhora da Encarnação


de Passé, no recôncavo baiano. “Venerado por sua ilustração e virtudes, profundo
conhecedor de teologia e amplos recursos de oratória, enfrentou Gregório de Matos na
sátira e no repente, desafiando a cólera do Boca do Inferno”, o qual em uma sátira
chama a este literato sergipense de “homem pardo” – grave afronta numa época em que
se exigia “limpeza de sangue” como condição para se ascender aos principais postos da
hierarquia estamental na América Portuguesa, inclusive ao clericato. Publicou as
seguintes homilias: Sermão do amparo de Maria Santissima no dia de sua
apresentaçam. Pregou-o o P. Lourenço ribeyro na Sé da Bahia. Dedicado ao D.
Chistovam de Bvrgos de Conteiras, Dezembargador dos Aggravos, &c. [a Officina de
Miguel Manescal da Costa, Impressor do Santo Officio, 1686]; Sermam de S. João da
Cruz, Que fez O P. Lourenço Ribeyra, Offerece-o Ao Senhor Fernam Telles Da Silva,
Conde de Villamayor, &c. [Na Officina de Manoel, e Joseph Lopes Ferreyra, 1693];
Sermam de S. Antonio, pregou-o O P. Lourenço Ribeyro Na Capella do carcere da
Cidade da Bahia. Offerece-o Ao Illustrissimo. & Reverendissimo Senhor Dom João
Franco de Oliveyra, Bispo do Congo, e Angolla, eleyto Arcebispo da Bahia, do
Conselho de Sua Magestade, &c. [Na Officina de Manoel, e Joseph Lopes Ferreyra,
1693] 15

Outro inaciano natural de Sergipe destacado nas letras foi o Padre João da
Rocha (Sergipe,1654-Espírito Santo,1702). Entrou na Companhia com 16 anos, aos 24
de maio de 1670, fazendo sua profissão solene em 1688 na igreja de Santiago, na
capitania do Espírito Santo. Foi pregador e administrador, superior da Aldeia do
Espírito Santo (Abrantes, próximo a Salvador) ,Reitor do Colégio de Santos e
Procurador da Província em Lisboa. Em 1702, pediu e foi transferido para a Índia
Oriental, desalentado pelo facciosismo no interior de sua corporação religiosa em terras
brasílicas. Faleceu durante a viagem, no Mar de Moçambique, aos 5 de maio do mesmo
ano. O historiador Serafim Leite enumera diversas cartas suas, na função de procurador
da Companhia, enviadas ao padre geral Tirso Gonzáles (1697-1701). Numa delas diz

14
Guaraná, Manoel Cordeiro Armindo. Dicionário Bio-bibliográfico Sergipano. Rio de
Janeiro, Empresa Gráfica Paulo, Pongetti e C, 1925, p. 198-199; Blake, Augusto
Vitorino Alves Sacramento. Dicionário Bibliográfico Brasileiro. Rio de Janeiro,
Tipografia Nacional, 1883-1902.
15
Projeto Isidoro da Fonseca, bibliografia brasileira do período colonial apud
<http://linodecampos.net/pif/TestePifR.html>
15

estar enviando o polêmico livro do padre Antonio Vieira, Clavis Profhetarum para ser
objeto de análise. Consta ter igualmente preparado para publicação seus Sermões
(1699). 16
Dentre os eclesiásticos moradores em Sergipe Colonial que se destacaram nas
letras, talvez o que continua sendo de todos o mais citado foi D. Marcos Antonio de
Souza, nascido na Bahia em 10 de fevereiro de 1771, tendo exercido a função de
Vigário na Freguesia sergipana de Jesus Maria José e São Gonçalo do Pé do Banco
(atual Siriri). Em 1808 escreveu obra fundamental para a história sergipana: Memória
sobre a Capitania de Sergipe, sua fundação, população, produtos e melhoramentos de
que é capaz.17 Tal manuscrito encontrava-se inédito num arquivo da Inglaterra, e graças
ao empenho de Antônio José Fernandes de Barros, ilustre proprietário do Engenho Mato
Grosso, em Maroim, conseguiu que o Barão de Rio Branco, então cônsul em Liverpool,
enviasse cópia da dita obra, que veio a lume pela primeira vez somente em 1877. Trata-
sede um verdadeiro vademecum para quantos desejam conhecer esta região à época em
que a família real transmigrava-se da metrópole para a América Portuguesa. Após
paroquiar em Sergipe, Padre Marcos Antônio de Souza foi vigário na Freguesia de
Nossa Senhora da Vitória, na capital da Bahia. Mudando-se para o Rio de Janeiro, fez
parte do conselho de Sua Majestade o Imperador, recebendo a graduação de
Comendador da Ordem de Cristo, dignitário da ordem da rosa. Foi eleito deputado na
Constituinte portuguesa de 1821 e deputado nas legislaturas brasileiras de 1826 e 1829.
Ocupou ainda a função de examinador sinodal e secretário do governo provincial. “Na
Constituinte portuguesa defendeu com todo vigor os interesses da Igreja e do Estado e a
liberdade da imprensa religiosa. Exaltado partidário da independência do Brasil, foi o
primeiro bispo de nomeado pelo fundador da monarquia brasileira. Eleito bispo do
Maranhão a 12 de outubro de 1826, o 15º daquela dioceses, foi sagrado no Rio de
Janeiro a 28 de outubro de 1827, pastoreando seu rebanho até sua morte, ocorrida aos
29 de novembro de 1842. Sua lápide pode ser admirada no transepto da catedral de São
Luis. “De uma caridade excessiva, ia muitas vezes procurar a indigência onde sabia que
a encontraria e levar com a esmola, o conforto do espírito. Não menos vezes, ouvindo a
noite o toque dos sinos para levar-se o viático a moribundo, ia ele mesmo levá-lo,

16
Leite, Serafim. Historia da Companhia de Jesus no Brasil. Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 1939, tomo IX, p.69 e ss.
17
Souza, D.Marco Antonio. Memória sobre a Capitania de Sergipe, sua fundação,
população, produtos e melhoramentos de que é capaz (1808), 2ª Edição,
IBGE/DEE,Aracaju, 1944
16

deixando a esmola se o doente era pobre. Antes de morrer mandou repartir pelo
indigentes a quem sempre socorreu, a quantia de cinco mil cruzados. Falava e escrevia
perfeitamente em latim e escreveu vários sermões inéditos, publicando contudo o
Sermão nas exéquias do papa Leão XII, pregado em presença de S.M. o senhor D.
Pedro I e de toda sua corte no Rio de Janeiro; Pastoral ao venerável clero secular e
caríssimos diocesanos, São Luiz do Maranhão, aos 8 de dezembro de 1827. 18
Eis uma página deste ilustre intelectual quando deputado no Parlamento
Brasileiro, em 1827, ao defender a manutenção da festa do Corpo de Deus e o dia da
aclamação do Imperador como feriados nacionais: “O homem, Senhor Presidente, é
composto de alma e corpo; e em outros termos deve adorar a Deus tanto em culto
interno, como em externo; este é um princípio da religião; o culto interno é tudo o que
pode dar de seu coração com seus atos internos de amor de Deus; mas o culto externo
pelo qual o homem adora a Deus, é com atos externos: ora, parece-me que nenhum
culto externo é tão agradável a Deus e tão saudável, como aquele culto de fazer aparecer
o autor da religião, Jesus Cristo sacramentado, este é o maior culto. Mais, passando ao
motivo da solenidade da procissão do Corpus Christi, sabemos que foi instituída para
dar a Deus o desagravo de todos os desacatos que se tenham cometido: a Igreja mui
sabiamente instituiu esta solenidade do Corpo de Deus, para que os homens festejassem
aquele dia de certo modo: por conseqüência não descubro solenidade que mais
necessária seja à Igreja e à religião, e por isso sustento o artigo que não fique excetuada
a festa do Corpus Christi, em todas a cidades e em todas as vilas e lugares mais
notáveis, na forma estabelecida. O artigo trata também da ação de graças pela
aclamação do Imperador; e também me parece digno a nossa atenção, pois que pela
aclamação do Imperador no dia 12 de outubro, começou a era notável para o Brasil, e
sendo uma época tão singular e memorável nos fastos da história do Império do Brasil,
o homem deve concorrer a dar graças a Deus por motivo de tão plausível memória, pela
independência do Brasil e pela sua liberdade.” 19

18
Sacramento Blake, op.cit., 1883, volume 6, p. 221-222. Nestes mais de 40 anos de
garimpagem pelos arquivos nacionais e europeus, encontrei apenas um documento
assinado pelo próprio Padre Marcos Antonio de Souza quando vigário em Sergipe, um
atestado de óbito, manuscrito incluído no acervo Sebrão Sobrinho, do Arquivo Público
do Estado de Sergipe, datado de 12 de março de 1804, quando este sacerdote tinha 33
anos.
19
O Clero no Parlamento Brasileiro. 1826-1829, 2º volume, Brasília, Câmara dos
Deputados, Fundação Casa Rio Branco, MEC, 1979, p.281 [16-7-1827, t.III, p.174]
17

Outro destaque no panorama sacro sergipense foi o Padre Antônio Fernandes


da Silveira, presbítero do hábito de São Pedro, nascido na vila de Estância em 1795.
Foi agraciado com o título de Monsenhor na Capela Imperial, eleito deputado
provincial na corte em três legislaturas (1830-1844), eleito também pela província do
Piauí, Conselheiro do Imperador, Comendador da Ordem de Cristo. “Cabe-lhe a glória
da instalação do primeiro jornal sergipano, em setembro de 1832, O Recopilador
Sergipano, sendo autor de um Offício sobre preciosas minas de ferro e sobre um rio
subterrâneo na província de Sergipe e da Resposta a carta escrita ao Ministro do
Império Joaquim Vieira da Silva e Souza contra a administração da província na
Presidência do Dr. Manoel Ribeiro da Silva Lisboa, 1835. Morreu no sertão do
Itapicuru aos 30 de janeiro de 1862. É o patrono da cadeira n.26 da Academia Sergipana
de Letras. 20
Frei José de Santa Cecília, músico e orador notável, nasceu em São Cristóvão
em 1809, sendo chamado no século José Pacífico de Salles. Professou na ordem
franciscana em 1827, desempenhando o cargo de presidente do Convento de São
Cristóvão e guardião do Convento de Penedo, na vizinha Comarca das Alagoas, onde
lecionou teologia moral e latim. Grande orador sacro e músico de notável valimento,
apesar de suas composições ficarem inéditas, publicou apenas um sermão. Foi amigo
do franciscano Frei Mont’Alverne (1784-1858), célebre cientista e orador carioca.
Apelidado de Frei Bastos Sergipano, “graças à vida licenciosa que levava, em tudo
igual à do licencioso Frei Bastos da Bahia.” No momento de sua morte, sucedida em
Sergipe aos 6-9-1859, recitou delicada ode à Virgem Santíssima:

“Já disse adeus ao Parnaso,


E pendurei minha lira;
Agora vou respirar,
Onde o Eterno respira.”

É o autor da música do Hino de Sergipe, sendo o patrono da Cadeira n.13 da Academia


Sergipana de Letras. Escreveu o Sermão no solene Te-Deum em comemoração da
emancipação política de Sergipe pela primeira vez festejada em São Cristóvão em 24 de
outubro de 1836. 21

20
Sacramento Blake, op.cit., 1883, volume 1, p.159; Bittencourt, op.cit. 1917, p. 27
21
Sacramento Blake, op.cit., 1883; Bittencourt, Liberato. Homens do Brasil. Sergipe.
Rio de Janeiro, Tipografia Mascotte, 1917, p. 132
18

Frei João Felipe Pinheiro, sacerdote, nascido em Lagarto nos primeiros anos do
século XIX, professou no Convento Franciscano da Bahia com o nome de Frei João do
Lado de Cristo. Percorreu os sertões com um breve de missionário apostólico, ocasião
em que acusado de pregar idéias subversivas quando catequizava o interior da Província
de Goiás, foi ipso facto exonerado desta comissão sacra. Não obstante tal nódoa em seu
ministério sacerdotal – na verdade, uma honraria, sob a perspectiva republicana - obteve
breve papal com licença eclesiástica para secularizar-se, abandonando a ordem seráfica,
tornando-se então vigário encomendado da freguesia de Itapemirim, na província do
Espírito Santo. Nesta vila passou a advogar com provisão da Relação, exercendo as
funções de Presidente da Câmara Municipal e vigário da Vara com honras de arcipreste.
Para escapar de um processo, mudou-se para o Rio de Janeiro, tornando-se pároco na
freguesia das Cachoeiras de Macacú. “Homem de grande inteligência, publicou em
1867 o Directório Parochial, Instrucções catechisticas e As Noite de Santa Maria
Magdalena. Foi portador da comenda de oficial da Ordem da Rosa.” 22
Certamente
devia ser homem de opinião que não levava desaforo para a casa, considerando os
diversos qüiproquós que enfrentou em diferentes províncias do Império.

Outro ilustre filho de Sergipe foi D. Domingos Quirino de Souza, nascido em


Estância aos 2 de outubro de 1815, sagrado bispo de Goiás em 1861. Enfrentou trágico
destino, vendo suas três irmãs solteiras e a própria mãe terem surto de loucura durante
sua viagem para tomar posse do bispado goiano. Publicou uma Carta Pastoral e consta
“ter sido afamado professor em Estância. Homem de excelsas virtudes, talhado como
que a Cristo, jamais pronunciou uma só queixa. Pouco falava, tristíssimo sempre.” 23

Da mesma geração do precedente foi o Padre José Gonçalves Barroso,


“presbítero secular, latinista e grande orador. Nasceu em Laranjeiras a 21 de março de
1821. Foi vigário colado na Matriz de São Cristóvão. Era de cor morena, de regular
estatura e de vigorosa constituição.” Antes de se ordenar ocupara a cadeira de latim na
cidade de Capela e a de filosofia, na capital da província. Foi vigário geral de Sergipe e
durante duas décadas, deputado na Assembléia Provincial. Exímio na erudição tanto no
púlpito como na tribuna, “foi um dos maiores pregadores sergipanos, talvez igualado
apenas por Frei José de Santa Cecília.” No Rio de Janeiro, entre 1866-1867, regeu

22
Bittencourt, op.cit., 1917, p. 109
23
Bittencourt, op.cit., 1917, p. 58
19

cadeiras de latim e filosofia. Recebeu a comenda da Ordem de Cristo. Publicou dois


discursos parlamentares, deixando inéditos alguns sermões e orações sacras. Morreu em
São Cristóvão em 1882. 24

Padre Urbano da Silva Monte, nascido em Japaratuba em 4 de julho de 1844,


doutorou-se em direito canônico pela Università di Roma "La Sapienza", obtendo o
bacharelado em teologia pelo Liceu Gregoriano de Roma. Foi cônego honorário da
Capela Imperial, vigário por nove anos na Vila de Santos, no litoral paulista e no final
da vida, capelão no Ceará. Escreveu diversos Sermões e três teses para o concurso de
italiano e grego no Colégio Pedro II. 25

II. Santos e santas milagreiros em Sergipe del Rei

Pelo exposto até aqui, patenteia-se que também na pequenina comarca de


Sergipe del Rei oradores sacros alimentavam os devotos fiéis que acorriam para suas
igrejas e matrizes com edificantes e ilustrados sermões — alguns deles impressos no
Reino, sobretudo quando dedicados e elogiando personalidades ou efemérides que
certamente encarregavam-se de cobrir os custos de sua impressão gráfica. Diversos
destes notáveis eclesiásticos de Sergipe, durante o século XIX, conseguiram disputadas
comendas e honrarias, seja de Roma, seja da Corte imperial.

As reflexões a seguir retratam aspectos da vivência religiosa dos habitantes


desta comarca, focalizando alguns casos pitorescos de moradores de Sergipe que se des-
tacaram por suas virtudes, sendo na época reputados como portadores de certos
sintomas do que os teólogos e hagiógrafos costumavam rotular como “odor de
santidade”.
A primeira referência a uma “santa” sergipana remete-nos aos finais dos
seiscentos, quando o carmelitano Frei Inácio da Purificação envia uma denúncia ao
Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa dando conta que nas bandas do Rio
Real, por volta do ano de 1678, um tal de Padre Antônio Correia realizara rituais de
adoração a uma sua prima, “fazendo uma procissão em que se deu culto de santa a uma

24
Bittencourt, op.cit., 1917, p.136-137
25
Bittencourt, op.cit., 1917, p.214
20

moça reputada por donzela, e levando-a num carro a foi incensando com um turíbulo e
na igreja o capelão fez uma prática em louvor da dita.” 26
Infelizmente, não sabemos o
nome nem o local exato deste culto idolátrico, nem sequer o nome da santinha. Certo é o
grau elevado de mistificação acrítica destes sertanejos que sob a influência de um
sacerdote espertalhão, qual um saltimbanco medieval, armava encenações para-
litúrgicas com vistas a reforçar a crendice de seu rebanho de matutos.
Data de 1720 uma informação mais detalhada sobre um devotado “santo”
sergipano: trata-se de Inácio da Rocha, “homem de cor parda e de humílima filiação,
que desde a mais tenra idade revelou forte tendência para as cousas do céu”. Sua
biografia e obras de virtude encontram-se resumidas no célebre Orbe Seráfico, de Frei
António de Santa Maria Joaboatão.27 Diz o franciscano que este pardinho sergipano
quando criança passava muitas horas do dia e da noite de joelhos, rezando com uma
cruz nas mãos, sendo muito dado a jejuns e outras mortificações. Casando-se ainda
jovem, logo enviuvou, mudando-se para Salvador, onde em 1720 recebeu das mãos de
Frei José de Santa Antônio o hábito franciscano na qualidade de irmão donato,
provavelmente devido à sua “impureza” racial. Piedoso, acolitava muitas missas todos
os dias, acompanhando com exemplar devoção o sacerdote quando transportava o
viático pelas ruas da cidade da Bahia. Vivia como perpétuo peregrino, sem dormida em
lugar certo, acodindo noite a dentro os pobres e desvalidos que pernoitavam pelos adros
das Igrejas baianas. Inspirado por Deus, lia o mais recôndito dos corações de seus fiéis,
adivinhando-lhes os pecados ou profetizando sucessos futuros, inclusive prevendo o
momento de sua própria morte, que ocorreu aos 18 de junho de 1744, permanecendo
com o semblante alegre “e como quem se estava rindo dos enganos deste mundo!”
Como ocorria com muitos outros fiéis falecidos com odor de santidade, seus restos
mortais foram disputados pela hierarquia religiosa, pois os Carmelitas queriam-no
enterrar em seu claustro, por usar o bentinho de Nossa Senhora do Carmo, enquanto os
franciscanos alegavam que o pardo sergipano trazia sempre o hábito de São Francisco.
O Bispo D. José Botelho de Matos agiu como mediador, atribuindo-se a melhor parte:

26
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, Caderno do Nefando
n.14, 1678, cf. Mott, Luiz. A Inquisição em Sergipe Aracaju, Fundação Estadual de
Cultura, 1989, p.23
27
Joaboatão, Frei António de Santa Maria. Novo Orbe serafico brazilico, ou Chronica
dos frades menores da provincia do Brazil, por Fr. Antonio de Santa Maria Jaboatão,
impressa em Lisboa em 1761, e reimpressa por ordem do Instituto Historico e
Geographico Brazileiro, Rio de Janeiro, 1858, 2 volumes1761: Vol. 1, Livro II,Cap. VI.
]
21

determinou que o santinho afro-brasileiro fosse sepultado na nova igreja matriz do


Santíssimo Sacramento, paróquia onde descansou para sempre o disputado irmão leigo.
Foi necessário que o Governador da Bahia mandasse uma guarda manter ordem no
velório, tantos e ousados eram os devotos que tentavam surrupiar alguma relíquia do
servo de Deus, cortando-lhe pedacinhos do cordão, fios de cabelo e retalhos do hábito.
Exatamente como acontecia na mesma época com outro irmão de hábito, Frei Fabiano
28
de Cristo, no convento franciscano do Rio de Janeiro. Seis sacerdotes carregaram o
esquife do santinho sergipano. Um cirurgião enviado por ordem do Bispo confirmou
que Irmão Inácio da Rocha apresentava nítidos sintomas que na época eram
identificados como privilégio dos bem-aventurados: “Acharam o corpo flexível em
todas suas partes, movendo-se e dando estalos os dedos dos pés e das mãos”. Para evitar
comoção do povo, o fradinho foi enterrado de madrugada: os devotos que tiveram o
privilégio de acompanharem Irmão Inácio no último adeus, declararam que “o sino da
torre da Igreja dera três badaladas” estando a porta da igreja fechada e sem pessoa
alguma dentro. Era sábado, dia de Nossa Senhora, de quem o pardinho sergipano era
particularmente devoto.
O terceiro episódio de santidade no período colonial relacionado à história
de Sergipe remete-nos ao célebre Padre Gabriel Malagrida, o principal taumaturgo do
Norte e Nordeste do Brasil, a última vítima da intolerância incendiária da Santa
Inquisição. Nascido na Itália em 1689, filho de família burguesa, Gabriel Malagrida
entrou na Companhia de Jesus, exercendo o cargo de professor de teologia nos Colégios
de Belém e São Luiz, percorrendo incansavelmente a pé, por diversas vezes, os
pedregosos caminhos que ligavam o Grão-Pará até o sul da Bahia, missionando pelo
Piauí, Sergipe e capitanias vizinhas. Sempre se fazia acompanhar de uma milagrosa
imagem de Nossa Senhora da Maravilha.29 Malagrida em suas ultraconcorridas
pregações lançava mão do dramalhão barroco para comover os pecadores mais
empedernidos: “na Aldeia de Vila Nova, nas margens do São Francisco, suspendeu-se
em meio do sermão, e com entonação profética, exclamou: Pecadores! Fazei penitência!
Dentro de quatro anos a morte devastará muitos dentre vós. Nesta igreja, em que vos es-
tou pregando, não achareis onde enterrar os cadáveres! Era em 1738. Em 1742, no

28
Mott, Luiz. Rosa Egipcíaca: Uma santa africana no Brasil. Rio de Janeiro, Editora
Bertrand do Brasil, 1993, p.231 e ss.
29
Santos, J.E.F. e Massimi, M. “Nossa Senhora das Maravilhas: corpo e alma de uma
imagem”. Memorandum, n.8, 2005, p.116-219
Apud < http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos08/santosmassimi01.htm.>
22

tempo predito pelo santo varão, o Rio de São Francisco, desbordando dos diques, alagou
todo o país, e as águas na ressaca deixaram um germe de epidemia, que empestou três
quartos da população. Oxalá que menos dada às delícias, aproveitasse [os habitantes]
das advertências do apóstolo!”30
Além desta catastrófica profecia, o santo taumaturgo “falando ao ar livre
diante de muito povo, em Sergipe del Rei, de repente estrugiu um violento furacão e
grossas nuvens sobranceiras aos ouvintes ameaçavam fundir-se em água. Já os
assistentes se remexiam em cata de abrigo, mas Malagrida fez-lhes sinal que
sossegassem. Lance maravilhoso! Enquanto a chuva caía a torrentes, nem uma só gota
molhou o auditório. Foi mais além o prodígio: na extrema da esplanada em que se
juntaram os fiéis, alteava-se um outeiro, donde ruíram em grossas ondas as águas da
chuva; já iam tocar no auditório, quando de repente, desviadas por mão invisível,
seguem outra direção, com grande espanto do povo. Em presença de tantas maravilhas,
o povo entusiasmado aclamava Malagrida um grande santo. Quando saía à rua, pessoas
de todas as condições e idades lhe beijavam respeitosamente as mãos, o hábito e até os
vestígios dos pés; outras menos discretas cortavam-lhe pedacinhos da loba para
conservá-los como relíquias de preço”. Salvo erro, o inaciano Gabriel Malagrida além
do maior taumaturgo a visitar Sergipe del Rei no período colonial, foi o único réu da
Santa Inquisição a ter passado por esta Capitania a ser queimado num Auto de Fé do
Santo Ofício.
Ainda na primeira metade do século XVIII, outro santo forasteiro fez de
Sergipe sua morada, edificando a população local por suas virtudes e graças
celestiais. Trata-se de outro pardo, Irmão Inácio, natural do Recife, filho de Domin-
gos de Sá e Silva e de Catarina Gonçalves de Azevedo, de ilustre família que em sua
ascendência incluía o bispo eleito de São Tomé, D. Manoel Gonçalves de Azevedo.
Batizado como Pedro, ao crismar-se mudou o nome para Inácio, e aos 18 anos
“levado por superior impulso, se ausentou da casa de seus pais, procurando seu
espírito a solidão para totalmente dedicar-se à contemplação das delícias celestiais,
encaminhou seus passos para o sertão do rio São Francisco e, num lugar deserto,
edificou uma casa de barro disposta de sorte que fosse mais um sepulcro que morada
de um vivente, onde vestido de saco e cingido com uma corda fazia vida eremítica,
servindo-lhe as ervas do campo de alimento, a terra nua de cama e uma pedra de

30
Mury, Paul. História de Gabriel Malagrida, São Paulo, Instituto Italiano de Cultura,
1992, p.114-119
23

cabeceira.” 31
Seguindo o mesmo modelo de incontáveis outros santos eremitas e
anacoretas, viveu neste solitário domicilio por dez anos sem falar com ninguém a não
ser com um sacerdote que lhe ministrava os sacramentos, não mudando de roupa nem
cortando cabelo, barba e unhas durante todo este tempo, vivendo com apertado cilício
a cortar-lhe as carnes. Passou então para a província de Sergipe onde assistiu alguns
anos sem afrouxar seus penitentes exercícios.” De Sergipe, transferiu-se para a cidade
da Bahia, onde todo desgrenhado, sujo e amalucado, comoveu os soteropolitanos pela
piedade com que venerava o Santíssimo Sacramento no altar. Pregando pelas ruas,
terminava sempre assim suas orações: “Ai de ti infeliz e miserável pecador, se
desprezando os avisos de Deus e sua palavra, te obstinas cegamente em tuas enormes
culpas. Ai de ti se arrependido não acodes as aras da misericórdia divina, verás sobre
ti as iras de sua justiça!” Solícito, trabalhou arduamente na construção das igrejas do
Carmo e do Santíssimo Sacramento.
A partir daí, não apenas seu nome, como os últimos detalhes da
biografia do irmão Inácio confundem-se com a vida de seu homônio a pouco citado,
Inácio Rocha, pois diz o biógrafo deste Irmão Inácio pernambucano que,
profetizando sua próxima morte, chamou o confessor, com quem fez detalhada
confissão geral de toda sua vida, chorando copiosas lágrimas, entregou sua alma aos
céus quando contava 70 anos de idade. Seu corpo ficou flexível e com o rosto tão
alegre como se estivera vivo, sendo o primeiro a ser enterrado na nova igreja do
Santíssimo Sacramento.” Um tal de Manoel da Rocha, morador no Piauí, divulgou
ser irmão consangüíneo de Inácio, ambos filhos de Antonio da Rocha, embora
paridos de mães diferentes, dando como local de seu nascimento a Torre de Garcia
Dávila. O beneditino D.Domingos Loreto Couto, de quem tiramos estas derradeiras
achegas biográficas, refuta tal opinião: “Não seguimos esta notícia por ser constante
que Pedro de Só (vulgo irmão Inácio) depois que no sertão se exercitou em rigorosas
penitências, fugindo dos aplausos que lhe haviam agenciado as suas virtudes, passou
a Sergipe dei Rei onde mudando o nome viveu desconhecido.” 32
De qual lado está a verdade seria temerário afirmar: se se trata de dois
pardos, um natural de Sergipe e donato franciscano, e o outro, pernambucano eremita

31
Loreto Couto, Domingos. Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco (1757).
Recife, Fundação de Cultura Cidade, 1981, p. 332
32
Loreto Couto, op.cit., 1981, p. 335
24

em Sergipe, mas ambos falecendo em Salvador nos meados do Século XVIII, ambos
profetizando a própria morte e enterrados na mesma igreja do Santíssimo
Sacramento, tais similitudes e contradições mostram muito bem o quão fantasiosas e
inverossímeis são as vidas de muitos de nossos santos, mesmo daqueles que
conviveram com nossos antepassados a apenas dois séculos da atualidade. Fica aqui
mais esta sugestão de pesquisa e esclarecimento para os historiadores da vida
religiosa em Sergipe colonial.
25

2. Sergipanas no Convento da Soledade da Bahia: 1739-187033

“No claustro ela encerra nos mudos sepulcros


Esp’ranças que teve – e pudera nutrir!
Seus puros afetos, ardentes, tão santos,
No claustro não pode, não podem florir.”
(Esteves, Joaquim. A Noviça, Sergipe, 1853)34

Havendo, desde o início da colonização do Brasil e ao longo dos primeiros


séculos de nossa história, grande falta de mulheres brancas no Novo Mundo, não
interessava à Coroa Portuguesa o enclausuramento religioso das filhas da terra, posto
urgir ocupar com a máxima presteza o imenso território colonial com cidadãos de
“sangue puro”, isto é, brancos cristãos-velhos, descendentes das mais antigas famílias
da velha Lusitânia. 35 Daí as dificuldades impostas pelas autoridades do Reino na ereção
de conventos e recolhimentos femininos nas terras de Santa Cruz, malgrado as
constantes solicitações e ofícios enviados por moradores de diferentes Capitanias, à
Corte de Lisboa, requerendo autorização para a abertura de casas pias destinadas a
abrigar donzelas, viúvas virtuosas ou mesmo madalenas arrependidas desejosas de
36
abandonar o mundo imundo. Diferentemente do que acontecia nos vice-reinos da
América Espanhola, onde desde o início da conquista são numerosos os conventos
religiosos femininos. 37

Embora desde as primeiras décadas da colonização haja notícia da existência de


“Casas de Recolhimento” nas cidades de Salvador e Olinda, pequeninas residências
privadas onde alguma matrona respeitável abrigava outras mulheres também de
reconhecida virtude, para viverem um arremedo de vida conventual, porém sem votos

33
Este artigo, com algumas alterações, foi originalmente publicado na Revista do
Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, n.31, 1992, p.93-99
34
Esteves, Joaquim (1832-1855). “A Noviça”, O Acadêmico, n.2, junho 1853, apud
Silva Lima, Jackson. História da Literatura Sergipana. Aracaju, Livraria Regina, 1986,
p.139
35
Nizza da Silva, Maria Beatriz. “Sistema de casamento no Brasil Colonial”, Ciência e
Cultura (SBPC), n.28 (110), 1976, p.1250-1263
36
Azzi, Riolando. A Vida Religiosa no Brasil. São Paulo, Edições Paulinas,
1983.
37
Algranti, Leila Mezan. Honradas e devotas: Mulheres da Colônia. Rio de Janeiro,
Jose Olympio, 1994
26

nem autorização oficial eclesiástica ou real38, somente em 1677 é que chegam na Bahia
as primeiras Irmãs Clarissas, provenientes da cidade de Évora, fundando na Capital da
Colônia nosso primeiro mosteiro de religiosas: o Convento de Nossa Senhora do
Desterro, que em apenas dez anos de existência, logo completou as 50 vagas de
religiosas professas enclausuradas.39

Após a ereção do Convento do Desterro, já no século XVIII, a Coroa autoriza a


instalação de outros conventos de religiosas, cabendo ao Bispo dar licença para a
abertura de novos recolhimentos femininos, destacando-se no Rio de Janeiro, os
conventos de Nossa Senhora da Ajuda, fundado pelas Clarissas da Bahia, e o de Santa
Tereza, das Carmelitas; o Recolhimento das Macaúbas, em Minas Gerais; o
Recolhimento de Nossa Senhora da Luz, em São Paulo. Em Salvador, por ser o coração
da América Portuguesa, foi a localidade onde existiu, no período colonial, o maior
número destas instituições recoletas: após o Convento do Desterro (1677), em 1725
concluem-se as obras do Recolhimento da Santa Casa de Misericórdia e outro menor,
dedicado a Bom Jesus dos Perdões. Em 1735 é a vez da inauguração do Convento das
Ursulinas, de Nossa Senhora das Mercês, e em 28 de outubro de 1739, o jesuíta Padre
Gabriel Malagrida (1698-1761), o mais controvertido e venerado taumaturgo do Norte e
40
Nordeste setecentista funda nos arrabaldes de Salvador o Convento do Santíssimo
Coração de Jesus da Soledade, contando para tanto com generosas esmolas de seus
devotos e a proteção do Vice Rei, o Conde de Galveas, ascetério que teve sua Provisão
aprovada por D. João V em 1741, passando à categoria de convento de religiosas em
1751, por Breve do papa Bento XIV. 41

38
Mott, Luiz. Rosa Egipcíaca: Uma Santa Africana no Brasil Colonial. Rio de Janeiro,
Editora Bertrand, 1993
39
Nascimento, Ana Amélia Vieira. O Convento do Desterro da Bahia. Salvador,
Editora Indústria e Comunicação, 1973; Patriarcado e Religião. As enclausuradas
Clarissas do Convento do Desterro da Bahia: 1677-1890. Salvador, Conselho Estadual
de Cultura, 1994; Soeiro, Susan. A Barroque Nunnery: The Economic and Social Role
of a Colonial Convent, Santa Clara do Desterro, Salvador; Bahia (1677-1800). Tese de
doutorado, New York University, 1974.
40
Mury, op.cit., 1992
41
União Romana da Ordem de Santa Ursula. Recopilação memorável da Fundação do
Convento Ursulino do Santíssimo Coração de Jesus da Soledade. Salvador, 1981,
mímeo, 91 pp.; “História do Colégio da Soledade”,
Apud <http://www.colegiosoledade.com.br/historia.html>
27

Este convento organizou-se de acordo com a regra das Ursulinas de Santa


Ângela de Mérici (1474-1540)42, e embora menos famoso que o Convento das
Franciscanas do Desterro, já em 1764 contava com 81 celas, sendo as religiosas servidas
por 35 escravas. Alguns anos mais tarde, em 1775, tal era a população residente neste
mosteiro: 36 religiosas professas, oito educandas seculares, uma recolhida secular, duas
hóspedes agregadas, 24 servas forras, sete escravas da comunidade e 35 escravas
particulares, perfazendo um total de 115 mulheres: era o terceiro convento feminino em
número de professas, após o Desterro, que abrigava 443 residentes, Nossa Senhora das
Mercês, com 149, seguido da Soledade com 115 e o convento de Nossa Senhora da
Lapa, com 49 residentes, entre professas e escravas. 43

Apesar de exígua a documentação disponível sobre este beatério, tivemos a


ventura de encontrar o Catálogo das recolhidas que entraram neste Convento da
Soledade, com data inicial de 1739, e neste manuscrito localizamos diversas moças
naturais da vizinha capitania de Sergipe del Rei entre as professas. Por tratar-se de
notícia inédita nos estudos sergipanos, consideramos que a divulgação de tais nomes
poderá ser de utilidade para os estudiosos da história social, religiosa e genealógica
desta região nordestina ainda com tantas lacunas a serem preenchidas.

Cumpre notar, à guisa de introdução, que nos séculos passados, os conventos


femininos funcionavam muito mais como recolhimentos, para não dizer prisões, para
moças e mulheres que não conseguiam casamento à altura das expectativas sócio-
econômicas de seus pais, do que como espaço destinado ao cultivo da piedade e
caminho à perfeição.6 Muitas famílias da elite, por não disporem de recursos suficientes
para o pagamento do “dote nupcial”, ou por não encontrarem pretendentes de “sangue
puro” e do mesmo status sócio-econômica das filhas de boas famílias, preferiam
internar suas descendentes nestas instituições religiosas, à revelia da donzela desejar ou
não seguir a vida enclausurada. Já em 1650 o autor da célebre Carta de Guia de
Casados, o ilustre pensador português D.Francisco Manuel de Melo, ponderava sobre a
violência destas internações á força, de donzelas sem dote, nos conventos e
recolhimentos: “Para as filhas, é grandíssimo o perigo [respeitar a eleição do estado]
porque havendo trazido a vaidade humana umas leis, por certo tiranas, contra a honra,

42
L. Mariani, E. Trarolli & M. Seynaeve, Angela Merici (1540). Contributo per una
biografia, Milano, 1986
43
Nascimento, op.cit., 1994, p.169
28

partes e virtude, e só em favor do interesse, sucede de ordinário que nas casas ilustres e
grandes, onde há muitas filhas, apenas pode haver dote com que casar uma com quem
convém. Ficam logo as outras condenadas a perderem por força a liberdade, e havendo
de tomar estado que não desejam, e violentissimamente sofrem! O remédio deste dano é
quase sem remédio, porque seria necessário emendar primeiro toda a república e os
maus costumes dela. Se nos houvéssemos de governar por exemplos passados, vimos
que muitos grandes homens, achando-se ricos de filhas, se fizeram maiores nas
descendências, e a elas não violentaram. Recolheram na religião as que pediam,
casaram as que o desejavam.” 44

Provavelmente, tais foram as razões que motivaram muitas famílias sergipenses


a enviarem suas descendentes para o Convento da Soledade da Bahia: Sergipe del Rei,
nos setecentos, carecia de mancebos brancos, de boa estirpe, cônjuges potenciais para as
herdeiras da aristocracia, daí preferirem seus pais a reclusão das mesmas intra-muros,
na vizinha Bahia, do que correr o risco de casá-las com pretendentes de inferior
condição, de “raças infectas ou misturadas.” Ou pior, como acontecera com algumas das
melhores famílias locais, serem ludibriadas por falsos solteiros, que na verdade eram
casados na Metrópole, e quando descoberta a fraude, acabaram sendo processados pelo
crime de bigamia, uma das contravenções perseguidas pelo Tribunal do Santo Ofício da
Inquisição, ficando estas infelizes mulheres, literalmente, na rua da amargura,
“seduzidas e abandonadas”.45

Nota-se, desde a fundação do Convento da Soledade, a presença neste beatério


de donzelas procedentes da Comarca de Sergipe: dentre as primeiras fundadoras a serem
enclausuradas, “cinco eram naturais do Sertão do Rio São Francisco” expressão que na
época era praticamente sinônimo de Sergipe del Rei. Eis os nomes destas pioneiras:
Arcângela dos Anjos, que foi a primeira Regente desta comunidade; Irmã Joana
Damasceno, Irmã Jerônima de Santo Jó; Irmã Custódia do Sacramento e Irmã Antônia
Maria de Jesus. Nada sabemos sobre a ascendência destas recolhidas, nem de que
freguesia procediam: não seria de todo infundado conjeturamos que em suas
caminhadas pelo sertão nordestino, o Padre Gabriel Malagrida ao percorrer as terras de

44
Melo, D.Francisco Manuel de. Carta de Guia de Casados. Para que pello caminho da
prudência se acerte com a casa do descanso. A hum amigo. 1650. Biblioteca Nacional
de Lisboa, Reservados, n. 2746 P; Lisboa, Editorial Verbo, 1994, p.175
45
Mott, Luiz. A Inquisição em Sergipe. Aracaju, Fundesc, 1989.
29

Sergipe — posto constar em sua biografia uma passagem pelo sertão do São Francisco,
quando do Maranhão veio missionando até o sul da Bahia, teria conhecido nesta região
as tais donzelas que vieram a ser as fundadoras, juntamente com o jesuíta, do primitivo
Recolhimento de Nossa Senhora da Soledade. 46

Irmã Beatriz Maria de Jesus, a segunda Regente deste mosteiro, era natural da
Freguesia de Nossa Senhora de Abadia do Rio Real, então pertencente à Comarca de
Sergipe del Rei, filha do proprietário João Batista Correia e de Antônia dos Santos
Siqueira. Juntamente com ela vieram mais duas filhas deste casal: as Irmãs Antônia
Maria de Jesus e Teresa Maria de Jesus. A mais velha, Irmã Beatriz Maria de Jesus
ocupou vários postos de destaque dentro desta comunidade consagrada ao Sagrado
Coração de Jesus: foi primeiramente Assistente da Regente no primeiro triênio da
fundação, depois, a partir de 27 de março de 1748, entrou na Regência do Convento,
governando-o por cinco anos e quatro meses: durante este tempo, realizou diversas
obras na instituição, apaziguado os ânimos dos Irmãos da Confraria da Soledade, que
disputavam com as freiras certos direitos em relação à capela do Convento, “porém tudo
venceu, ficando a Comunidade em paz.” Ainda entre as realizações desta ilustre abelha
mestra sergipana, citem-se: a colocação do Santíssimo Sacramento no altar, a confecção
dos confessionários da igreja, a fundação do Educandário de donzelas, com mestras para
o ensino das educandas tanto para tocar música e cantar, como para ler e escrever. Pelo
visto, a inteligência e autoridade desta filha de Sergipe foram fundamentais para a
consolidação e ampliação da ação social desta casa pia fundada pelo jesuíta italiano.

Ainda em 1739, consta no Catálogo das recolhidas que entraram neste


Convento da Soledade o nome de outra sergipana: Irmã Teresa de Jesus Maria, “natural
de Sergipe dei Rei”, isto é, provavelmente de São Cristóvão, filha de Máximo Luís da
Penha e de Dona Ana Pereira de Matos.

No ano seguinte, 1740, mais duas donzelas da mesma Ouvidoria: Isabel da Costa
de Jesus, “natural de Estância de Santa Luzia”, filha de Domingos Vieira de Melo e de
D. Maria Carvalho da Costa, e Antônia de Jesus Maria, também nascida na mesma
região, na freguesia de Nossa Senhora de Guadalupe da Estância, pertencente à vila de

46
Mury, op.cit., 1992, p.114-119
30

Santa Luzia do Itanhi, filha de Domingos Afonso Lena e de D. Maria Silva, a qual
faleceu antes de professar.

Ainda nesta mesma década, outras sergipanas são enclausuradas no mesmo


Convento da Soledade: em 1745, Irmã Ângela da Encarnação, procedente de Santa
Luzia, filha de Leandro Vieira de Melo e Eugênia (ilegível), e Irmã Bernardina de
(ilegível), filha de Domingos Rodrigues e Isabel da Costa de Jesus, todos residentes na
mesma vila de Santa Luzia. Em 1748 é a vez de entrar para a Soledade a jovem
Lourença de Jesus, de Estância, filha de (ilegível) e Lourença Rodrigues Barbosa. A
freqüência de donzelas procedentes da mesma vizinhança – Santa Luzia e Estância -
revela que certamente tais famílias deviam ser aparentadas, ou manter contatos pessoais,
lançando mão dos laços de amizade para trocar informação sobre esta importante
decisão familiar, representada pelo envio de uma filha para local distante vários dias de
viagem da terra natal.

Em 1745 inaugura-se a presença de sergipanas procedentes da região do rio


Cotinguiba entre as religiosas ou educandas recolhidas na Soledade da Bahia: Maria de
São José é a primeira desta lista, filha de Manuel Suzarte de Siqueira e de D. Antônia
Maria de Melo. Em seu registro consta ter professado como religiosa de véu preto,
fazendo portanto o voto perpétuo de pobreza, castidade e obediência. Este Manuel
Suzarte de Siqueira era natural de Santarém, no Ribatejo, e fora casado (primeira vez?)
com Maria Andrade (Melo), natural da Cotinguiba; era Cavaleiro da Ordem de Cristo e
grande proprietário. Seu neto, Domingos Dias Coelho, foi o primeiro sergipano nato a
receber a comenda e venera de Familiar do Santo Ofício da Inquisição, fato ocorrido em
1764. Trata-se de nobilíssima estirpe sergipana, citado inclusive por Frei Jaboatão no
célebre Orbe Seráfico. 47

Entre 1782-1797, cinco filhas de um rico proprietário de engenhos da


Cotinguiba, Leandro Ribeiro Siqueira e de D. Maria Diniz de Mello, são enviadas para
o Convento do Santíssimo Coração de Jesus da Soledade: Irmãs Ana Josefa Perpétua,
Eustáquia Maria de Santana, Maria Angélica de São José, Joaquina Perpétua do
Coração de Jesus e Emerenciana. Eram todas moradoras nos Engenhos São Paulo e

47
Mott, Luiz. A Inquisição em Sergipe. Op.cit., 1989, p. 62
31

Conceição do Campo Grande, aparentadas com o citado Familiar do Santo Ofício.


Gente, portanto, de “sangue limpo pelos quatro costados”.

Outra importante cepa sergipana a enviar duas de suas filhas a recolher-se na


Bahia, sempre no mesmo Convento da Soledade, foi a família do Coronel Pedro Vieira
de Mello, casado com Josefa Vieira de Mello: a primeira representante deste clã a
enclausurar-se foi Joana Josefa de São Pedro, nos últimos anos do século XVIII,
seguida por D. Antônia Maria das Mercês, em 1803. Passam-se algumas décadas sem
novas filhas de Sergipe baterem às portas deste provecto convento, até que em 1831, D.
Josefa Vieira de Mello, com apenas 13 anos de idade, filha do Coronel José Agostinho
da Silva Daltro e de D. Maria Diniz de Mello, é recebida na Soledade. Também natural
da Cotinguiba, esta donzela possui o mesmo nome e sobrenome da mãe das outras duas
religiosas que a precederam, sendo todas aparentadas entre si e descendentes de
respeitada cepa cotinguibense.

Em 1848 é a vez de outra moçoila de 16 anos, procedente da próspera freguesia


de Santíssimo Coração de Jesus das Laranjeiras, D. Maria Diniz, portadora do mesmo
nome da mãe da anterior, só que filha de José Gomes da Silva e de D. Josefa Maria de
Santa Clara. Neste mesmo ano, outra menina, Francisca de Meio Freire, de 11 anos,
procedente da Freguesia de Nossa Senhora de Guadalupe da Estância, é enviada para o
mesmo educandário: era filha de Torquato José de Mello e D. Joana de Jesus Maria.
Parece que foram todas juntas neste mesmo ano de 1848, levando consigo a mais jovem
das internas de Sergipe a viver na Soledade: Maria Rosa, filha de José Maria de Sousa e
D. Francisca Joaquina, com a idade de tão somente dois anos. Diz o documento que esta
menina, natural de Estância, então com 4 aninhos, fora retirada do Educandário da
Soledade em 1850. Também neste mesmo ano entrou para o mesmo Convento, D.
Isabel (ilegível), 28 anos, filha de Francisco José de Araújo e de D. Maria Manoela,
moradores na mesma freguesia do precedente. Em 1853, outra donzela do mesmo lugar:
Josefa Maria de Jesus, 18 anos, filha de Domingos Correia Pimentel e de D. Maria
Madalena de São José. Encerra a lista das educandas do Convento do Santíssimo
Coração de Jesus da Soledade a menina D. Marlene Freire de MeIo, recebida em 1870,
com 10 anos de idade, filha de Justiniano Freire de Melo e de D. Maria Pastora Freire
de Melo, residentes também na vila de Estância. Por esta época contava a Soledade tão
somente 11 religiosas.
32

Cumpre notar, à guisa de conclusão, que esta relação de sergipanas entradas no


Convento da Soledade inclui tanto religiosas, que depois de recolhidas desejaram e
foram aptas a receber o véu preto de professas, como também moçoilas ou mesmo
meninas pré-adolescentes que estiveram nesta instituição com finalidade de se
educarem, temporariamente. Tudo faz crer que algumas, após internato de diversos anos
dentro da Soledade, saíram, quer para retornar à casa paterna, as mais felizardas, para
constituir nova família. Outras, recebidas inicialmente como educandas, encaminharam-
se para a vida religiosa, como a filha de Manuel Suzarte de Siqueira, que professou em
1754 com o nome de Irmã Maria de São José.

Somente uma pesquisa mais minuciosa poderia responder a algumas indagações


que este rol de sergipanas residentes no Convento da Soledade, entre 1739-1870,
suscita: por que a concentração de filhas de Sergipe exatamente neste mosteiro?
Haveriam outras sergipanas professas ou educandas nos demais conventos baianos da
Lapa, Mercês e Desterro? Quais os laços parentais ou de outro tipo que uniria as
famílias sergipanas aqui citadas, cujas filhas viveram por algum tempo, ou até à morte,
na Soledade de Salvador? O que teria significado, para as educandas que retornaram à
Sergipe dei Rei, o fato de terem sido instruídas, acima da média de suas
contemporâneas? Que peso teria, para algumas das filhas de Sergipe internadas na
Soledade, o fato de serem parentas próximas de um Familiar do Santo Ofício da
Inquisição?

Que outros pesquisadores aprofundem o que apenas tivemos a intenção de


esboçar e indicar o “caminho das pedras”. E deixo mais duas pistas a quantos se
interessem por temas freiráticos: no famoso Recolhimento de Nossa Senhora da
Conceição de Monte Alegre, mais conhecido como Recolhimento dos Macaúbas, em
Minas Gerais, fundado em 1716 ereto segundo a regra das Franciscanas
Concepcionistas, pelo beato alagoano de Penedo, Félix da Costa, a partir de 1749
governou esta comunidade como Regente a Irmã Antônia da Conceição, “natural de
Sergipe”. Quem era, de onde veio, como chegou às Minas Gerais, que desempenho teve
nesta comunidade, são questões que ainda aguardam resposta.

A derradeira pista remete-nos ao primeiro convento de religiosas do Brasil, o


Desterro da Bahia, onde no ano do Senhor de 1802 receberam o hábito de noviças duas
donzelas das melhores estirpes de Sergipe: Irmã Maria Luiza do Espírito Santo, e Irmã
33

Catarina de Siena, filhas legítimas do Tenente Coronel José Bernardino de Sá Souto


Maior e D. Antônia Francisca do Santos, grandes proprietários na freguesia de São
48
Gonçalo do Pé do Banco. Irmã Maria Luiza tinha 20 anos quando recebeu o véu
branco, sendo registrada com o número 195: morreu em 1830, aos 48 anos,
completando 28 de vida religiosa. Irmã Catarina tinha 24 anos quando entrou para a
clausura, registrada sob o número 196: viveu muito mais que sua irmã, vindo a falecer
em 1855, aos 77 anos idade, completando 53 anos de votos de pobreza, castidade e
obediência. Salvo erro, foram as únicas sergipanas a professarem neste convento
primacial. 49 Resta aos pesquisadores conferir a presença de outras filhas de Sergipe nos
demais conventos e recolhimentos baianos .

48
Diversos são os membros da família Souto Maior referidos por Frei Jaboatão e Pedro
Calmon no Catálogo Genealógico (cf. capítulo 3 deste livro), incluindo um Capitão
mor e dois Capitães de Cavalos. Em 1818, o coronel José Bernardino de Sá Souto Maior
envia representação à Mesa Consciência e Ordens solicitando que os bens por ele
doado à Capela da Divina Pastora se conservassem em nome da mesma em caso de sua
morte. “O coronel, por possuir vasto patrimônio, não só edificara a capela como
também doara propriedades para financiar suas atividades. Como os fiéis desejassem
erigir uma irmandade na dita capela, o coronel temia que as propriedades fossem
desencaminhadas após a sua morte. Assim, requer que as mesmas fiquem sob a guarda
de um superintendente até que seja aprovado o Estatuto da Irmandade da Divina
Pastora, que passaria a ser a detentora dos referidos bens.” Solicitou mais, que “as
irmandades do Santíssimo Sacramento e a da Divina Pastora fossem reunidas em uma
única confraria, seguindo as mesmas obrigações, privilégios e direitos. As duas
irmandades passariam a ser regida pelo Compromisso já aprovado pela Mesa da
Consciência e Ordens para a Irmandade da Divina Pastora.” Este pleito foi
desacreditado pelo padre Manoel Rodrigues Vieira de Mello, representando a confraria
do Santíssimo Sacramento da Divina Pastora, solicitando ao rei que “não fosse atendido
o requerimento do tenente-coronel José Bernardino de Sá Souto Maior, pois tal união
não era desejada pela maioria dos irmãos do Santíssimo Sacramento, pedido motivado
por suas desavenças pessoais com o pároco da Capela da Divina Pastora, após esta ter
sido elevada à categoria de paróquia e com a união das duas confrarias poderia manter
sua influência na dita paróquia, sem ter de se submeter ao pároco.” [Arquivo Nacional,
Mesa da Consciência e Ordens, Caixa 291, pct. 5, 30 de abril de 1818]
49
Nascimento, op.cit., 1994, p.484
34

3. A presença de Sergipe del Rei no Catálogo Genealógico das Principais


Famílias de Pernambuco e Bahia, de Frei Jaboatão e Pedro Calmon:
1546-1794 50

“Pretendem os moradores de Sergipe del Rei ser muito


distintos pela nobreza de seus nascimentos. É verdade que
ali habitam muitas famílias puras e podem bem numerar-se
mais de 1500 brancos naturais da Europa e descendentes de
europeus, seus primeiros povoadores.” (D.Marcos Antonio
de Souza, Vigário em Divina Pastora, Sergipe, 1808) 51

Pouco se conhece da história de Sergipe no período colonial. Se compararmos a


produção historiográfica sergipana com a da Bahia ou de Pernambuco coloniais,
constataremos o quão escassa a lacunosa é tal fase cronológica, notadamente faltando
estudos relativos à história social, religiosa, econômicas e das mentalidades. Apesar das
fontes serem menos abundantes que a disponível para as maiores capitanias limítrofes,
existe ainda significativa documentação inédita, ou insuficientemente explorada, à
espera de pesquisadores que se disponham a revelar e por ordem nos papeis velhos. 52 53
Este pequeno ensaio pretende ser tão somente uma listagem de pessoas e
personalidades que viveram em Sergipe ou de alguma forma tiveram suas vidas
relacionadas com a pequenina capitania de São Cristóvão nos dois primeiros séculos de
sua colonicação. Ao todo enumeramos 65 nomes, entre o último quartel do século XVI
e os finais do século XVIII, todos extraídos do Catálogo genealógico das principais
famílias que procederão de Albuquerques, e Cavalcantes em Pernambuco, e
Caramurús na Bahya, tiradas de Memórias, Manuscriptos ãtigos, e fidedignos,
50
Este artigo, “A presença de Sergipe del Rei no Catálogo Genealógico das principais
famílias, de Frei Jaboatão e Pedro Calmon”, foi originalmente publicado, com algumas
modificações, na Revista do Instituo Histórico e Geográfico de Sergipe, Aracaju, n. 33,
2000-2002, p.47-61
51
Souza, op.cit., 1944, p. 16
52
Freire, Felisbelo. Historia de Sergipe. (1891) Petrópolis, Vozes, 1977; História
Territorial do Brasil. Rio de Janeiro, Tipografia do Jornal do Comércio, 1906; Prado,
Ivo. A Capitania de Sergipe e suas Ouvidorias. Rio de Janeiro, Papelaria Brasil, 1919;
Nunes, Maria Thetis. Sergipe Colonial I. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro/ UFSe, 1989;
Sergipe Colonial II. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1996; Mott, Luiz. A Inquisição
em Sergipe. Aracaju, FUNDE SC, 1988
53
Mott, Luiz. “A Etnodemografia histórica e o problema das fontes documentais para o
estudo da população em Sergipe na primeira metade do século XIX”, in Sergipe Del
Rei: População, Economia e Sociedade. Aracaju, Fundesc, 1986.
35

authorizados por algus Escriptores, por Frei Antonio de Santa Maria Jaboatão,1768.
Trabalho manuscrito, original, in-fol, de 546 pp., que ficou inédito até sair publicado
pela Revista do Instituto Histórico e Brasileiro, em 1889 (Tomo LII), com 497 páginas.
Segunda impressão em 1945, na Revista do Instituto Genealógico da Bahia. Nova
edição em 1947, pelo mesmo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol.191,
adaptado e desenvolvido por Afonso COSTA, com 279 págs. Quarta edição impressa,
em 1950, na íntegra, pelo mesmo Instituto Genealógico da Bahia, Salvador, Imprensa
Oficial, com 373 págs. Em 1985 é finalmente publicada quinta edição, por iniciativa de
Pedro Calmon, sob o título Introdução e Notas ao Catálogo Genealógico das Principais
54
Famílias de Frei Jaboatão. Obra fundamental para os estudos genealógicos e
históricos do nordeste brasileiro, o Catálogo Genealógico duzentos anos após sua
conclusão, recebeu um adendo de tamanha importância e profundidade, que nos obriga
doravante a referir inseparáveis os nomes de Frei Jaboatão com o seu comentador, “o
magnífico” Pedro Calmon.
Alguns dados da biografia de Frei Antonio de Santa Maria Jaboatão, extraídos
da obra Desagravos do Brasil, de D.Domingos de Loreto Couto e acréscimos de Pedro
Calmon, auxiliarão o leitor a admirar ainda mais este ilustre genealogista e historiador:
nasceu em 1695 em Santo Amaro de Jaboatão, Pernambuco, filho do sargento mor
Domingos Coelho de Meireles e de D.Francisca Varela. Em 1717, aos 22 anos recebeu
o hábito franciscano no Convento de Santo Antonio de Paraguaçu. Concluídos os
estudos no Convento da Bahia, passou três décadas como pregador, ocupando os postos
de Mestre de Noviços, Secretário do Capitulo Provincial, Prelado do Convento de
Recife, Lente de Filosofia e Véspera na Bahia, sendo em 1755 nomeado Cronista da
Província. Foi membro da Academia Brasílica dos Esquecidos, em Salvador, tendo
publicado cinco sermões em Lisboa, entre 1751-1762. Sua obra mais citada é Novo
Orbe Seráfico Brasílico, também conhecido como Crônica dos Frades Menores da
Província do Brasil (1761), onde são encontradas diversas referencias a Sergipe. 55

54
Calmon, Pedro. Introdução e Notas ao Catálogo Genealógico das Principais
Famílias de Frei Jaboatão. Salvador, Empresa Gráfica da Bahia, 1985, 2 volumes, 810
páginas
55
Obras de Frei Antonio de Santa Maria Jaboatão: Discurso historico, geographico,
genealogico, politico e encomiastico, recitado em a nova celebridade, que dedicaram os
pardos de Pernambuco ao santo da sua côr o Beato Gonçalo Garcia, Lisboa, 1751;
Sermão de Santo Antonio, em o dia do Corpo de Deus, Lisboa, 1751; Sermão de S.
Pedro Martyr, pregado na matriz do Corpo Santo do Reciffe, Lisboa, 1751; Josephina
Regio equivoco-panegyrica; tres praticas e um sermão do glorioso Patriarcha S. José,
36

As “notas” complementares acrescentadas pelo historiador baiano Pedro Calmon


ao Catálogo genealógico das principais famílias são fruto de varias décadas de pesquisa
realizadas por ele próprio e por diligentes auxiliares, quer nos arquivos civis e
eclesiástico da Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco, quer nas principais instituições
congêneres de Portugal, notadamente na inexaurível Torre do Tombo. Acompanhando
um a um os nomes dos principais expoentes das famílias da Bahia e Pernambuco, o
“Magnífico Calmon” brida o leitor com detalhes biográficos significativos, inter-
relações sócio-políticas destes personagens desconhecidas por Frei Jaboatão, ou
posteriores à conclusão do Catálogo original. Corrige e concerta alguns deslizes do
mestre franciscano, tudo com imenso brilho e humildade dos quantos conhecem
pessoalmente as agruras que sempre estão presentes nas investigações genealógicas.
Pedro Calmon, por sua obra volumosa e profunda, ocupa os primeiros lugares de nossa
plêiade de historiadores, mantendo a mesma tradição do primeiro genealogista dos
Calmon a aportar na Bahia de Todos os Santos, João Calmon, autor de obras sobre a
nobiliarquia lusitana.56
Perscrutando linha a linha a nova edição deste Catálogo Genealógico, aqui e
acolá fui encontrando referências a Sergipe del Rei: moradores daquela capitania,
militares companheiros de Cristóvão de Barros na conquista desbravadora, soldados
lutando contra os holandeses lá estacionados, funcionários civis e eclesiásticos, sejam
naturais da terra, sejam reinóis ou baianos, que ali residiram. Meu trabalho foi
transcrever as principais referências de tais nomes relacionadas a Sergipe, incluindo
pequeno sumario biográfico retirado tanto do original de Jaboatão, quanto dos

offerecidos ao Serenissimo Rei D. José I, pregados na egreja matriz da Paraiba,


Lisboa, 1753; Gemidos seraficos, exéquias celebradas pela província de Santo António
na morte do fidelíssimo rei D. João V, Lisboa, 1755; Jaboatão Mystico, em correntes
sacras dividido, corrente primeira, panegyrica e moral, Lisboa, 1758; Orbe Serafico
Novo Brazilico descoberto, estabelecido e cultivado a influxos da nova luz de Italia,
estreita brilhante de Hespanha, luzido sol de Padua, astro do céo de Francisco, o
thaumaturgo portuguez Santo Antonio, a quem vae consagrado como theatro glorioso e
parte primeira da chronica dos Frades menores da mais estreita e regular observancia
da Provincia do Brazil, Lisboa, 1761; Novo Orbe serafico brazilico, ou Chronica dos
frades menores da provincia do Brazil, por Fr. Antonio de Santa Maria Jaboatão,
impressa em Lisboa em 1761, e reimpressa por ordem do Instituto Historico e
Geographico Brazileiro, Rio de Janeiro, 1858, 2 volumes; Novo Orbe serafico brasilico,
ou Chronica dos frades menores, Parte segunda (inédita), Rio de Janeiro vol I, 1859,
vol. II, 1861; vol. III, 1862.
56
Mott, Luiz . “Um nome em nome do Santo Oficio: O Cônego João Calmon,
Comissário da Inquisição na Bahia Setecentista”, Universitas (UFBa), n.37,
julho/setembro, 1986, p.15-32
37

acréscimos de Pedro Calmon. Ao todo são 65 nomes, agrupados 10 no século XVI , 34


no século XVII e 21 para o XVIII. Alguns destes personagens viveram parte num, parte
no século seguinte: optamos por situá-los na centúria em que viveram em terras
sergipanas. Os números após cada nome remetem à página do Catálogo de 1985.
Que os pesquisadores de Sergipe Colonial prossigam a investigação aqui tão
somente delineada: ponto de partida apenas, é o que pleiteamos para este humilde labor
que entrego ao público estudioso por estímulo da principal historiadora sergipana
contemporânea, Profa. Maria Thetis Nunes, só superada na historiografia local pelo
luminar Felisbelo Freire. À ilustre professora e amiga fiel por mais de duas décadas,
ofereço este trabalho.

Século XVI

1. Baltazar Barbosa (D’ Araújo)


Morador de Sergipe, filho de Violante Gonçalves. Nasceu em Arcos, Portugal
em 1546; lavrador de canas, casado com Catarina Álvares, da família de Caramuru.
(p. 212-228)
2. Garcia D’Avila, 1º
Combateu o gentio de Sergipe, estendendo seus currais de gado ao longo do Rio
São Francisco. Foi “criado” do primeiro Governador Geral do Brasil, Tomé de
Souza. Morreu em 1609 deixando grandes cabedais, fundador do Morgado da
Casa da Torre. (p. 157-164)
3. Jorge Barreto de Melo
Alegando querer ajudar a povoar a capitania de Sergipe del Rei, teve sesmaria de
uma légua na testada da de Duarte Barreto, seu pai, a 19 de abril de 1602. Foi o
3º Alcaide Mor da Bahia em 1573. Era filho de Helena de Melo, casando-se com
D. Maria de Lomba, da ilha da Madeira. (p.272-285)
4. Pedro de Alomba
Ou Pedro de Lomba, um dos conquistadores de Sergipe em companhia de
Cristóvão de Barros (1589). Era sogro do anterior. (p.272-282)
5. Gaspar Fernandes (da Fonseca)
Era meeiro, no Lagarto, com Baltazar de Barbuda, tendo conseguido sesmaria
nos limites de Sergipe Del Rei. Casado com D. Escolástica, sobrinha de seu
sócio. Era natural da vila de Viana, Foz do Lima, das principais famílias do
38

lugar, mui opulento de cabedais, tendo a propriedade do oficio de Juiz dos


Órfãos. (p.254-250)
6. Antonio Guedes
“Conseguiu sesmaria nas terras da Capitania de São Cristóvão onde mandou
situar um curral de gado vacum pensando fazer maior povoação.” (12-1-1598).
Natural de Tarouca, nascido em 1560. Em 1609 recebeu mais seis léguas de
sesmaria nas cabeceiras do Rio Real e dez entre o Inhambupe e Itapicuru. Seu
filho, Antônio do Espírito Santo tornou-se carmelita na Bahia. (219-235)
7. Melchior Dias
Trata-se do “fabuloso” Belchior Dias Moréia (ou Caramuru), pai de Robério
Dias, imortalizado pelas Minas de Prata. Foi o fundador da Capela de Nossa
Senhora da Abadia do Rio Real. (p. 157-163)
8. Antonio de Barros Cardoso
Filho de Cristóvão de Barros, a quem acompanhou na conquista de Sergipe del
Rei, neto do provedor da fazenda que os Caetés devoraram: sua sesmaria se
estendia de São Cristóvão ao São Francisco. (p. 118-120)
9. Aires da Rocha Peixoto
Foi o primeiro a receber sesmaria em Sergipe del Rei, entre os rios Japaratuba e
Sergipe, em 1590, “sertão de Itabaiana”. Morreu a 15 de outubro de 1599,
enterrado na capela de Nossa Senhora da Ajuda. (p.156-162)
10. Sebastião de Faria
Chefiou a retaguarda da expedição de Cristóvão de Barros quando da conquista
de Sergipe. Cavaleiro da Casa Real, Escrivão da Fazenda, companheiro de Men
de Sá na conquista do Rio de Janeiro aos franceses, fundador do engenho
Freguesia, defronte da Ilha da Maré, hoje transformado no museu Wanderley do
Pinho. (p.202-204)

Século XVII

11. Tome de Aguiar (Daltro)


Capitão Mor de Sergipe em 1655. Filho terceiro de Pedro de Aguiar e de
Custódia de Farias; casou-se com Maria de Lemos, viúva de Martim Carvalho.
Morreu em Paripe em 1715. (p.429-433)
12. Brás da Arocha Cardoso
39

Capitão Mor de Sergipe, soldado, alferes, ajudante, capitão de infantaria e cabo


na praça de Pernambuco. Filho de Domingos de Oliveira. Teve participação
valorosa na luta contra os holandeses. Foi o 15º Capitão Mor de São Cristóvão,
prestando preito e homenagem em mãos do Governador da Bahia aos 14 de
dezembro de 1682. Em 1684 ocupa o cargo de Escrivão do Crime na Bahia.
Lutou na conquista do Quilombo de Palmares. (p. 110-115)
13. Padre Pedro Garcia de Araújo
Recebeu 4 léguas de sesmaria no Vaza-barris. Ordenou-se sacerdote já maior de
idade, muito rico, instituiu um morgado de toda sua fazenda, doando terras para
a fundação do convento de Santo Antonio do Paraguaçu em 1694, onde foi
sepultado. (p.172-189)
14. Belchior Velho
Um dos conquistadores de Sergipe com Cristóvão de Barros, recebendo uma
sesmaria em Itabaiana a 5 de outubro de 1603, pessoa de muita posse. Casado
com Maria da Rocha Peixoto. (p.203-210)
15. Baltazar de Barbuda
Alcaide Mor em Sergipe em 1604. Casado com Catarina Dias Adorno. Natural
de Lamego. Possuiu extensas terras em Sergipe, na região de Lagarto, vendendo
uma parte delas ao Engenho do Carmo da Bahia. Casou-se em 1646, em Paripe,
com Ângela de Menezes. (p.245-251)
16. Duarte Moniz Barreto
Acompanhou Cristóvão de Barros à conquista de Sergipe e foi aquinhoado com
sesmaria, 1602. Foi Alcaide Mor da Bahia, sendo denunciado ao Santo Oficio,
na visita de 1591, de ter proferido palavras heréticas. (p.270-271)
17. Baltazar Lourenço Pacheco
Teve sesmaria em Sergipe, juntamente com o irmão Urbano Pacheco e José
Leitão, duas léguas, aos 12 de março de 1665. (p.284)
18. Diogo Moniz Teles
Participou da jornada do mestre de campo Luiz Barbalho em campanha de
Sergipe del Rei, ajudando bravamente a defender a cidade atacada pelo conde de
Nassau. Era fidalgo da Casa del Rei, nascido em 1578. Foi da governança de
Salvador, tido como “de nação” (judeu). Casou com Catarina Vitória em
Primeiras núpcias; segunda vez com Felipa de Almeida. (p. 278-286)
19. Baltazar dos Reis Barrenho
40

Destacou-se nas guerras holandesas na Bahia e em Pernambuco, desde 1631. Foi


um dos cabos enviados da Torre de Garcia D’Ávila por Bagnolo, para espreitar o
inimigo, salvando uma ponta de gado de 700 cabeça que os flamengos levavam
do Rio São Francisco. Em 1649 foi destacado com sua ordenança para Sergipe,
nomeado Capitão Mor desta Capitania a 13 de dezembro de 1663, Coronel do
Distrito em 1668 e a Vigilância da Costa, a partir de Itapoã ante possível ataque
dos corsários. Em 1664, por portaria, é encarregado de proceder ao inventário
geral para a contribuição dos 80 mil cruzados. Teve como primeira mulher Ana
de Sousa, viúvo casou-se outra vez, com D. Isabel Teles. (p.299-312)
20. João Borges David
Capitão de Companhia na Praça de Sergipe em 1668. Casou-se com D. Isabel de
Meneses. Ele era natural da Bahia, filho do capitão Gaspar Borges David e de D.
Antonia Castro. (p.301-315)
21. André de Padilha
Participou da tomada de Sergipe ao lado de Cristóvão de Barros. Era natural do
Reino, passando ao Brasil em 1589, sendo capitão de infantaria nas guerras
contra os batavos. Cavaleiro da Ordem de Cristo. (p.316-318)
22. Leandro Correia de Vasconcelos
Capitão de Ordenanças em Sergipe a 1º de outubro de 1687. Recebeu sesmaria
nesta capitania. Casou-se com Margarida da Câmara Pesqueira, na vila de
Cachoeira, em 1715. (p.361-365)
23. Antonia de Mello Vasconcelos
Herdou meia légua de terra nos termos de Lagarto, de seu tio Bento de Araújo
Soares, 1653. Nascida em 1646, casou-se três vezes. (p. 459-461)
24. Francisco Gomes de Abreu e Lima
Teve sesmaria de 600 braças no Vasa-Barris, junto do Engenho de Sergipe, 12
de março de 1697. Sua mulher, Maria de Brito Cassão era de Sergipe, filha do
Mestre de Campo Cosme Brito Cassão e Clara Aranha. (p.474-475)
25. Antonio Alemão
Capitão Mor de Sergipe. Teve importante curriculum militar, lutando no
Alentejo, Pernambuco, Morro de São Paulo. Casou-se com Brites de Barros.
Data de nascimento: 1633. (477-483)
26. Guilerme Barbalho Bezerra
41

Foi Alcaide Mor de São Cristóvão, carta de 15 de março de 1664. Fidalgo da


Casa Real, Cavaleiro da Ordem de Cristo, Coronel de Partido de Auxiliares na
Bahia, casado com D. Ana de Negreiros. (p. 514-517)
27. Rui Carvalho Pinheiro
2º Alferes, ajudante de Sargento Mor, andou três anos em Sergipe, à sua custa,
regulando descida do gado. Acusado de cristão-novo na Inquirição de 1646. Era
fidalgo da Casa del Rei e mordomo-mor do bispo de Coimbra. (p.483-484)
28. Manuel Vieira de Barros (Padre)
Foi pároco em Sergipe del Rei, chegando à meia prebenda, cônego e tesoureiro
mor na Sé da Bahia. Tinha o titulo de doutor. Batizado em 1663. (p.523-525)
29. Manuel de Couto Deça
Morador em Sergipe del Rei, teve aí sesmaria junto com Cristóvão de Burgos,
1660. Casou-se com Micaela de Azevedo na Casa do Segredo da Cadeia da
Bahia em 1702, sendo degolado no dia seguinte em punição por ter atirado
contra um Juiz de Fora, causando a morte do Meirinho. (p.543)
30. Cosme Barbosa de Almeida
Capitão Mor de Sergipe, casado com Helena de Castro, teve sete filhos. Foi o
substituto de Bento Ferraz. (p.550-551)
31. Antonio Lopes Soeiro
Capitão de infantaria da Ordenança de Sergipe do Conde e sesmeiro no Rio São
Francisco. (p.561-563)
32. Pedro Gomes
Alferes e capitão em Sergipe del Rei, fundador do morgado de Porto da Folha.
Natural de Setúbal, passou ao Brasil em 1625, na armada de D. Fradique de
Toledo. Lutou bravamente na guerra contra os holandeses. Embarcou na frota do
conde da torre e retirou, com Luiz Barbalho, do Porto de Touros do Rio Real,
ajudando a desalojar os holandeses do Rio São Francisco. Foi Governador
interino da Capitania do Rio de Janeiro, professo da Ordem de Cristo. Em 1683
é denunciado á Inquisição pela pratica do nefando pecado de sodomia, sendo um
de seus parceiros, um escravo de Luiz Gomes, espancado até a morte em castigo
por tal “crime”. Morreu em 1692. (p.570-571) 57
33. Sebastião Soares Pinto

57
Mais detalhes biográficos sobre as acusações de sodomia contra o Capitão Pedro
Gomes, cf. Mott, Luiz. Op.cit., p..27 e ss.
42

Provedor da Fazenda Real de Sergipe del Rei, Ouvidor da mesma capitania.


Casado com Maria Borges, dois filhos. (p.509-513)
34. D. Escolástica (Barbuda)
Sobrinha de Baltazar de Barbuda, um dos primeiros sesmeiros de Sergipe,
mulher do Capitão Gaspar Maciel. (p.638-639)
35. Gaspar Dias Barbosa
Morador em Sergipe del Rei pelos anos 1610, chamado “o moço”. (p.638-639)
36. Diogo de Sá Souto Maior
Capitão de cavalos de Sergipe del Rei, falecido em 1696. Era filho da citada D.
Escolástica e Gaspar Maciel.(p.640-645)
37. Gonçalo de Sá Souto Maior
Capitão das Ordenanças de Sergipe em 15 de março de 1683. Foi Coronel. Filho
de D. Escolástica e Gaspar Maciel. Casado com D. Ana Correa Dantas. (p. 640-
645)
38. Leonardo de Sá Souto Maior
Capitão de cavalos de Sergipe, substituiu seu pai Diogo de Sá Souto Maior no
mesmo cargo. Casou-se com D. Clara Soares, filha de João Soares Brandão e D.
Maria de Sousa. (p.640-645)
39. Padre Sebastião Pedroso de Góes
Vigário da Vara e paroquial de Sergipe del Rei, filho de Sebastião Pedroso e
Maria Barbosa. Contra ele se amotinou o povo e o prenderam em casa de Tomé
de Aguiar em 1658. (p.703-705)
40. Gaspar de Armas de Brum
Estava em Sergipe del Rei quando em 1651 foi encarregado de observar o
Gentio Amoré no Camamu, no sul da Bahia. (p.709-712)
41. Francisco de Góes de Araújo
Em 1656 socorreu Sergipe del Rei, impedindo a tomada do gado pelos
holandeses, serviços que lhe valeram a pensão de 80$000 réis. Foi batizado em
1616. (p.713-720)
42. Antonio Brandão Araújo
Capitão da Ordenança dos Auxiliares de Sergipe del Rei nomeado a 19 de
janeiro de 1701. Casado com Francisca de Góes. (p.716-722)
43. Francisco de Bra
43

Capitão Mor em Sergipe del Rei, nomeado a 3 de junho de 1659. Natural de


Roterdam, Cavaleiro da Ordem de Cristo, lutou na batalha de Guararapes.
Possuiu fazendas no S. Francisco, morreu em 1692. (p.733-735)
44. Pascoal Rodrigues de Brito
Capitão Mor do Distrito do Rio Real em 1689, dividindo sua jurisdição com
Belchior da Fonseca Saraiva, que ficou como Capitão mor dos mocambos de
Sergipe del Rei. Foi familiar do Santo Oficio e Professor na Ordem de Cristo,
natural de Viana, casado com Simoa de Brito. (p.768-769)

Século XVIII

45. Domingos Pires de Carvalho


Sargento Mor, coronel dos distritos do Rio Real de Cima e de Baixo, de Lagarto,
da Cidade de Cotinguiba e da Capitania de Sergipe del Rei, 1701. Era filho de
João Pires e Catarina Francisca, naturais de Portela, no Reino, onde também
nascera. Foi familiar do Santo Oficio e Cavaleiro da Ordem de Cristo. Lutou na
conquista do Quilombo de Palmares, foi administrador da Casa da Moeda,
tesoureiro geral da fazenda em 1696. Mandou construir a bela igreja da Ordem
Terceira de São Francisco em Salvador cuja fachada apresenta semelhanças com
a de Santo Amaro das Brotas de Sergipe. Seu retrato encontra-se na sacristia da
dita igreja, provavelmente, a única pintura conservada de um morador de
Sergipe dos inícios do século XVIII. (p.125-129)
46. João de Sá Sottomaior
Nomeado Ouvidor de Sergipe em 1708: desembargador, veio do Reino em
agosto de 1699. Casado com D. Brites, da família Deusdará. (p.145-149)
47. João Pereira de Vasconcelos
Ouvidor de Sergipe. Natural de Lisboa, era casado com D. Marta de Sousa, foi
antes Juiz de Fora de Setúbal. Morou em São Cristóvão em 1712. (p.178-191)
48. Domingos Dias Machado
Proprietário de fazenda em Sergipe e no Rio São Francisco. Foi meirinho e do
mar e procurador dos índios forros. Rico e poderoso, morava nobremente. A
crueldade com os escravos motivou a carta régia de 25 de janeiro de 1695. Em
1714 seu oficio de procurador dos índios passou para o Dr. João Calmon,
Comissário do Santo Oficio na Bahia. (p.193-197)
44

49. Antonio Telles de Menezes


Capitão de Infantaria de Lagarto e Rio Real, sem soldo, provido pelo Vice Rei
Vasco Fernandes César e confirmado em 1726. (p.222-241)
50. Pedro Moniz Barreto
Capitão de Ordenanças Auxiliar do Rio São Francisco da Capitania de Sergipe
del Rei nomeado em 1691. Seu filho Francisco Moniz Teles foi o terceiro avô de
Hermenegildo José Telles de Menezes. (p.276-284)
51. Inácio Teles
Sargento Mor de Ordenança dos sertões de Sergipe del Rei a 10 de outubro de
1703. Casado com Maria de Sá Bareto. (p.370-372)
52. Padre Manuel Monteiro de Abreu
Vigário da Freguesia de Cotinguiba, batizado a 11 de janeiro de 1683, filho de
João Vieira e Domingas Monteiro. (p.379)
53. Padre Afonso da Franca
Sacerdote do habito de São Pedro, provido na igreja de Nossa Senhora da
Piedade do Lagarto por carta régia de 27 de novembro de 1724. (p.411-414)
54. Lopo Gomes de Abreu e Lima
Proprietário de uma sesmaria no Vazabarris junto de seu engenho do Acupe. Aos
30 anos fez a leitura de bacharel em Coimbra. Casado com Catarina da Franca
Corte Real. (p.474-475)
55. Jose de Melo Vasconcelos
Capitão do Regimento de Auxiliares de Sergipe del Rei em 1731. Era filho de
Manuel de Araújo Teles e Brites de Belo de Vasconcelos, casado em segundas
núpcias com Filipa de Silva. (p.479-484)
56. Alexandre Gomes Ferrão Castelo Branco
Natural de Penedo, Morgado do Porto da Folha, neto do Capitão Pedro Gomes,
fidalgo da Casa Real, Coronel de Ordenanças dos distritos de Tabanga para
cima, preso em Sergipe em 1720 por ordem do Governador. (p.571-572)
57. Antonio Gomes Ferrão Castelo Branco
Morgado do Porto da Folha, fidalgo cavaleiro da Casa Real, Tenente Alcaide da
Bahia, morou na vila de Penedo no fim da vida. Era natural da freguesia de Bom
Sucesso e Almas no Rio São Francisco, nascido em 1727. Seu filho Pedro
Gomes Ferrão Castelo Branco, nascido em 1763, o sucedeu no morgado a partir
de 1794. (p.571-573)
45

58. Toma Feliciano Albernaz


Filho do Dr. Tomaz Feliciano de Albernaz, Ouvidor de Sergipe, Juiz do Crime
em Salvador, Familiar do Santo Oficio. (p.574)
59. Domingos Dias Coelho e Melo
Sargento Mor de Cavalaria auxiliar da cidade de Sergipe del Rei em 1773,
Familiar do Santo Oficio, ascendente do Barão de Itaporanga. (p.643-648) 58
60. Antonio Dutra D’Almeida
Teve sesmaria de uma légua de largo por três de comprido no Rio Sergipe,
casado com Bernarda de Sá Soutomaior. (p.643-648)
61. Mem de Sa Souto Maior
Morador em Sergipe, pediu em 1726 a El Rei se tirasse nova devassa das mortes
de seus parentes. Era filho de Diogo de Sá Soutomaior e de Guiomar da Rocha,
foi capitão mor, casado com Mariana Cecília da Gerra. (p.644-648)
62. Antonio de Brito Correa
Coronel da Vila de Lagarto e arraial de Santa Luzia a partir de 31 de janeiro de
1701. Era filho de Francisco Araújo de Brito, coronel e de Brites de Sousa.
Casou-se primeira vez com Isabel Maria, do Rio de Janeiro e segunda com
Francisca Araújo, sua prima. (p.653-660)
63. João Pereira de Vasconcelos
Ouvidor Geral de Sergipe em 1712. Natural de Lisboa, bacharel em direito,
casado com Maria de Souza, viúva do capitão Mor Bento Pereira de Ferraz. Era
desembargador. (p.657-664)
64. Antonio Brandão de Araújo
Capitão da Ordenança dos auxiliares de Sergipe del Rei, 1701. Filho de
Francisco de Góes Vasconcelos e Isabel Araújo, casado com Francisca de Góes.
(p.716-722)
65. Pedro Barbosa Leal (2º)
Doou em 1721 aos Carmelitas a Capela de Santo Amaro da Cotinguiba, em São
Cristóvão. Era filho de Pedro Barbosa Leal, sertanista, nascido em São Gonçalo
da Cachoeira, Familiar do Santo Oficio. (p.715-722)

58
Mais detalhes biográficos sobre o Familiar do Santo Ofício Domingos Dias
Coelho e Melo, cf. Mott, Luiz. Op.cit., 1989, p. 62 e ss.
46

4. ‘Os pombos e os primos sujam as casas’: a propósito das dispensas


matrimoniais de nubentes sergipanos: 1807-1854

“Muito sofre a natureza humana quando é embaraçada


por alguns óbices a reproduzir-se.” (D. Marco Antônio
de Souza, Vigário de Divina Pastora, Sergipe 1808) 59

Preciosidades sobre a história social de Sergipe colonial e imperial continuam


praticamente “virgens” no Arquivo da Cúria de Salvador, à espera de pesquisadores que
se disponham a decifrar e divulgar milhares de manuscritos que abordam diferentes
aspectos do dia a dia e da vida privada dos moradores desta pequenina Comarca e
Vigaria que somente se emancipou do Arcebispado da Bahia em 1910, com a criação da
Diocese de Aracaju.
Destaco quatro coleções de manuscritos deste arquivo particularmente prenhes
de informação etnohistórica sobre Sergipe del Rei: os Processos de Genere, que tratam
da qualificação dos seminaristas candidatos às ordens sacras, documentos que fornecem
interessantes elementos sobre a genealogia e estrato sócio-econômico dos postulantes ao
clero sergipano; os Processos de Breves e Oratórios, relativos aos pedidos de
autorização para a ereção de capelas e oratórios particulares, material que revela traços
cruciais da religiosidade e do culto doméstico notadamente da elite local; os Processos
de Dispensas Matrimoniais, que tratam dos laços inter-familiares e relações na época
consideradas incestuosas, que na qualidade de “impedimentos” necessitavam
autorização especial do Arcebispo da Bahia para a celebração do matrimônio e
finalmente Processos de Divórcio, relativos aos litígios entre esposos que pediam à
Cúria Soteropolitana anulação do casamento ou separação de corpos .
É sobre as Dispensas Matrimoniais, que me ocuparei neste ensaio, entrando
portas a dentro no recesso do lares sergipenses, às vezes penetrando nas próprias
alcovas dos noivos, esquadrinhando a intimidade e mazelas de duas dezenas de famílias
sergipanas que entre 1807-1854, por reconhecerem que seus filhos nubentes

59
Souza, D.Antonio Marcos. Memória sobre a Capitania de Sergipe, sua fundação,
população, produtos e melhoramentos de que é capaz. (1808), Aracaju, IBGE/DEE, 2ª
Edição, 1944, p. 17
47

apresentavam algum impedimento previsto pelo Código Canônico, requereram ao


Arcebispado da Bahia, através do pároco de suas respectivas freguesias, licença para
poder celebrar o santo sacramento do matrimônio.
Afim de familiarizar o leitor com o casuísmo do matrimônio católico, na
época de nossos antepassados, reproduzimos, à guisa de introdução, os principais
parágrafos das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707) relativos ao
Sacramento do Matrimônio, para em seguida perscrutarmos as principais
irregularidades que exigiram que os nubentes sergipanos recorressem à máxima
autoridade religiosa regional para obter autorização de se casar.

I. O Matrimônio segundo as Constituições do Arcebispado da Bahia

“O casamento é uma simples criação humana, não divina,


sucedânea da promiscuidade primitiva, do matriarcado, da
poliandria, que se foi lentamente depurando através das diversas
fases da evolução da cultura, desde o regime tribal até à
organização dos grandes Estados antigos e assim sucessivamente
até os tempos hodiernos.”(Sílvio Romero, Sergipe 1851-1914) 60

Toda a vida religiosa brasileira – incluindo incontáveis aspectos de nossa


estrutura social, econômica, cultural e familiar – foram minuciosamente orientadas e
controladas durante séculos pelas célebres Constituições Primeiras do Arcebispado da
Bahia, feitas e ordenadas pelo Ilustríssimo e Reverendíssimo Senhor D.Sebastião
Monteiro da Vide, 5º Arcebispo do dito Arcebispado e do Conselho de Sua Magestade,
propostas e aceitas em o Synodo Diocesano, que o dito celebrou em 12 de junho de
1707, impressas sem Lisboa no ano de 1719, e em Coimbra em 1720, com todas as
licenças necessárias [e ora reimpressa na Capital de São Paulo em 1853].61
É nesta obra basilar, válida para todo o território brasileiro, que nos escoramos
para entender o funcionamento do casamento no Brasil colonial e imperial, cujos
ditames tiveram validade até a instituição do casamento civil, em 1916. Eis seu
conteúdo tal qual podemos ler no Livro I, Título LXII, a partir do parágrafo 259:

60
Romero, Sílvio. Discursos. Do casamento civil. Porto, Livraria Chardron, 1904, p.47
61
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707). São Paulo, Tipografia 2 de
Dezembro, 1853
48

“O último sacramento dos sete instituídos por Cristo Nosso Senhor é o do


Matrimônio. E sendo ao princípio um contrato com vínculo perpétuo e indissolúvel pelo
qual o homem e a mulher se entregam um ao outro, o mesmo Cristo o levantou com a
excelência do sacramento, significando a união que há entre o mesmo Senhor e a sua
Igreja, por cuja razão confere graça aos que dignamente o recebem.
Foi o matrimônio ordenado principalmente para três fins, e são três bens que
nele se encerram. O primeiro é a propagação humana, ordenada para o culto e honra de
Deus. O segundo é a fé e lealdade que os casados devem guardar mutuamente. O
terceiro é o da inseparabilidade dos mesmos casados, significativa da união de Cristo
Nosso Senhor com a igreja Católica. Alem destes fins é também remédio da
concupiscência e assim São Paulo o aconselha como tal aos que não podem ser
continentes.
Desponsórios de futuro são o mesmo que promessa de futuro matrimônio, para
ele é necessário que tenham os promitentes, assim homem com a mulheres, sete anos
completos de idade. Para os desponsórios de futuro se não requer a presença do pároco,
ficam proibidos e incorrem em pena de multa e suspensão se se fizerem presentes. Que
os pais impeçam aos esposos de futuro que antes de serem recebidos em face da igreja
não coabitem com suas esposas, vivendo ou conversando a sós em uma casa, nem
tenham cópula entre si, sendo gravemente castigados se fizerem o contrário.
O varão para poder contrair matrimônio deve ter 14 anos completos e a fêmea
12 anos também completos, salvo quando antes da dita idade constar, que têm discrição
e disposição bastante que supra a falta da idade, exigindo-se licença do Bispo.
Os que pretenderem casar, o farão saber a seu pároco antes de se celebrar o
matrimônio de presente, para os denunciar, o qual antes que faça as denunciações, se
informará se há entre os contraentes algum impedimento e estando certo o não há, fará
as denunciações em três domingos ou dias santos de guarda contínuos à estação da
missa do dia, e as poderá fazer em todo o tempo do ano, ainda que seja Advento ou
Quaresma, em que são proibidas as solenidades do matrimônio e se farão na forma
seguinte:
Quer casar N. filho de N. e de N. naturais de tal terra, moradores de tal parte,
Freguesia de N, com N, filha de N, e N, naturais de tal terra, moradores em tal parte,
freguesia de N. Se alguém souber que há algum impedimento pelo qual não possa haver
efeito o matrimônio, lhe mandamos em virtude de obediência, e sob pena de
excomunhão maior, o diga e descubra durante o tempo das denunciações, ou em quanto
os contraentes se recebem, e sob a mesma pena não porão impedimento algum ao dito
matrimônio maliciosamente.
49

E nós, pela presente damos poder aos párocos e capelães para assim o
mandarem. E quando fizerem as ditas denunciações, declararão ao povo, qual é a
primeira, qual a segunda, e qual a terceira. E terão advertência que sendo algum dos
contraentes ilegítimos, não nomeiem seus pai e mãe, salvo não havendo escândalo em se
nomearem ambos ou algum deles. E se os pais e mães dos contraentes forem falecidos
ou algum deles, assim o declararão nas ditas denunciações.
Os viúvos têm de comprovar o falecimento do cônjuge com atestado do livro
de óbitos, e os contraentes tendo residido mais de seis meses em outra freguesia ou
bispado, farão as denunciações nas duas localidades. No final das denunciações, o
prazo para o recebimento é de dois meses.
Se entre uma e outra denunciação descobrir-se algum impedimento, deve-se
prosseguir até o final, passando o pároco certidão na qual declarara os impedimentos,
assinada pelos impedientes. E mandamos aos párocos, sob pena de excomunhão maior
ipso facto e multa de um marco de prata pago do aljube, não dissimulem ou ocultem o
tal impedimento ou impedimentos, mas antes, os enviem com muita brevidade ao Bispo
ou ao Provisor em maço fechado e selado na forma costumada, por pessoa fiel, à custa
dos contraentes.
E não poderão os párocos assistir aos matrimônios em cujas denunciações
saíram impedimentos, sem mandado ou sentença de nosso Vigário Geral por escrito, sob
pena de serem gravemente castigados, ainda quando lhes parecer que os impedimentos
foram impostos maliciosamente, porquanto eles ficam sendo nesta parte os juízes.
E os noivos que receberem as bênçãos de outro pároco que não seja o seu
próprio ou tiverem licença sua ou nossa para lhas dar, serão arbitrariamente castigados.
E o pároco ou sacerdote secular que receber ou der as bênçãos a freguês alheio sem
licença do próprio pároco ou nossa, conforme o sagrado Concilio de Trento, fica ipso
jure suspenso a arbítrio do Ordinário do pároco que devia assistir ao matrimônio.
Os padres e capelães declararão ao povo que cometem grave pecado os que
encobrem os impedimentos sabendo-os, ou denunciando-os maliciosamente quando os
não há. E que todos são obrigados a denunciá-los, ainda que sejam o pai ou a mãe ou
irmãos dos contraentes, e ainda que saibam debaixo de segredo natural ou não haja mais
prova que a fama pública, de que sabem muitas pessoas ou uma testemunha de certeza.
Tem obrigação toda a pessoa, que por qualquer via tiver noticia de algum impedimento,
de o manifestar ao Pároco e ele ao nosso Vigário Geral.” (§259-283)
50

Até agora as Constituições do Arcebispado da Bahia trataram dos pressupostos


teológicos e das regras básicas para a celebração do casamento, ou seja: da instituição
do sacramento do matrimônio; sua matéria, forma e ministro; dos fins para que foi
instituído e dos efeitos que causa. Trataram igualmente dos desponsórios de futuro, da
idade e capacidade que se requer nos que houverem de contrair matrimônio, das
denunciações que se devem proceder, da fórmula do registro de casamento, como as
denunciações se devem repetir, como haverão de proceder os párocos saindo algum
impedimento.
Já que a grande preocupação da Igreja, refletida nestes detalhados
regulamentos, era impossibilitar a união matrimonial de candidatos portadores de algum
impedimento, considerado matéria grave e pecado mortal, vejamos agora,
resumidamente, quais eram as 14 infrações consideradas “dirimentes”, isto é,
anulatórias do 7º Sacramento da Santa Madre Igreja, tal qual arroladas no Titulo
LXVII, a partir do parágrafo 285 das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia:

“Os impedimentos dirimentes são os seguintes:

1. Erro de pessoa: quando o contraente recebeu pessoa diferente que a


pessoa certa
2. Condição: se um dos contraentes é cativo e o outro não sabe
3. Voto religioso solene ou ordens sacras
4. Cognação:
i. Natural, quando os contraente são parentes por
consangüinidade dentro do quarto grau
ii. Espiritual: quando os contraentes são padrinhos ou
compadres
iii. Legal: quando os contraentes são adotados ou pais
de adotados
5. Crime: quando o contraente maquinou a morte do cônjuge para se casar
de novo
6. Disparidade da religião
7. Força ou medo
8. Ordem sacra: subdiaconato, diaconato e presbiterato
9. Ligame: quando um dos contraentes é casado por palavras de presente
10. Pública honestidade: desponsório de futuro com algum parente próximo
do outro contraente, mesmo falecido
11. Afinidade: o marido e mulher pelo matrimônio consumado contrai
afinidade com todos os consangüíneos do outro cônjuge até o quarto grau, e assim,
ficando viúvo, não pode contrair matrimônio com algum consangüíneo do cônjuge
falecido até o quarto grau. Também contrai aquele que tiver cópula ilícita imperfeita e
natural com alguma mulher ou mulher com algum varão, e por esta causa não pode
contrair matrimônio com parente do outro por consangüinidade dentro do segundo grau.
12. Impotência
51

13. Rapto
14. Ausência do pároco e de duas testemunhas.” (§285)

Como se constata, os impedimentos cobriam variegada gama de situações, seja


de ordem religiosa, criminal, da legislação civil e canônica e do que na época, por
inspiração do Concílio de Trento (1545-1563) era considerado como relação incestuosa
por consangüinidade – e também por parentesco espiritual.
Detalhavam ainda mais as Constituições do Arcebispado da Bahia, a partir do
parágrafo 289, os procedimentos a serem observados pelo pároco ou capelão na
celebração dos esponsais, interditando sua celebração antes do nascer do sol e depois
dele posto, ou fora da igreja paroquial - medidas acauteladoras para se evitar a fraude
por parte de noivos portadores de impedimento. Era igualmente proibido celebrar-se
matrimônio com solenidade desde o primeiro domingo do Advento até o dia da Epifania
inclusivamente e da 4ª feira de Cinzas até a Dominica in Albis inclusivamente. Atenção:
“somente se proíbe a solenidade, que consiste nas bênçãos nupciais e a levada da noiva
à casa do noivo com acompanhamento, e na solenidade do banquete. Porém em
nenhum tempo do ano é proibido celebrar-se o matrimônio de presente em face da
igreja, sem a dita solenidade.” Havia obrigação de celebrar o casamento oito dias depois
de cessado o impedimento, “ficando os noivos obrigados a vir receber as bênçãos
nupciais à igreja paroquial, publicamente, sob pena de serem evitados dos ofícios
divinos, ate obedecerem.” (§290)
Quanto à desobediência dos ditos impedimentos, a hierarquia católica
mantinha postura extremamente rigorosa para evitar excessos por parte dos nubentes:
“Grave pecado cometem e dignos são de exemplares castigos os que sem o devido
temor de Deus, em grande prejuízo de suas almas, se casam sabendo que há entre eles
impedimento dirimente, com o qual não vale o matrimônio e os contraentes ficam em
estado de condenação, estando sujeitos a excomunhão maior, prisão no aljube e
condenados a 50 cruzados e demais penas que parecerem justas, inclusive os que
ignorantemente contraírem, sem proceder às diligências que se requerem, ficarão
sujeitos as mesmas penas.”(§294)
52

II. Dispensas Matrimoniais em Sergipe: 1807-1854

“Tuas irmãs se casaram, publicamente furtadas;


E há quem diz, que já furadas d´outros, que se não declaram.
Oh! se as paredes falaram, ainda hoje bem podias ouvir
tantas putarias de tanto caminho lhano!
Não te envergonhas, magano?”
(Sátira do Padre Lourenço Ribeiro, Sergipe, 1684-1724) 62

Até aqui discorremos sobre as determinações e casuística da Santa Madre


Igreja relativas à união matrimonial, válidas para toda a cristandade, particularmente
sobre o procedimento imposto aos nubentes no caso de apresentarem algum
impedimento canônico para a celebração deste augusto sacramento, base da
constituição da célula mater da sociedade, a família monogâmica e indissolúvel.
Vejamos a seguir como se passavam as coisas na Capitania e Província de Sergipe.
No citado Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador 63, na coleção de
manuscritos intitulados “Dispensas Matrimoniais”, em pesquisa por nós realizada na
década de 70 do século XX, encontramos processos originários de Sergipe nos
Pacotes n.13 [1809], n.14 [1815-1828], n.15 [1828], n.16 [1845-1854], n.17 [1830-
1831], n.28 [1825-1829], n.31 [1845] e nos Pacotes sem numeração [1807-1839].
Como se observa a partir deste rol, na época deste levantamento, a documentação não
estava rigorosamente organizada em ordem cronológica, havendo ainda “pacotes” e
“maços” sem numeração.
Ao todo localizamos 25 processos relativos a nubentes de Sergipe del Rei64,
incluindo apenas um processo para os seguintes anos: 1807, 1809, 1815, 1816, 1824,
1830, 1839, 1845, 1847, 1854; dois processos para os anos de 1825 e 1829; três
processos para 1831 e finalmente, oito processos para 1828. Provavelmente novos
levantamentos neste arquivo podem localizar mais processos, sobretudo para a segunda

62
Obra Poética, Gregório de Matos, Rio de Janeiro, Editora Record, 1992, “Resposta
do vigário Lourenço Ribeiro escandalizado”, verso 13.
Apud <http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/briga.html>
63
O Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador funciona atualmente nas instalações
da Universidade Católica do Salvador, à Rua Cardeal da Silva, bairro da Federação, com
acesso marcado previamente ao telefone (71) 3324.7748. Lastimavelmente, alterou-se a
catalogação original, na qual registrei a documentação aqui citada.
64
Obviamente, excluídos os processos da freguesia de Sergipe do Conde, no recôncavo
baiano, fonte de confusão devido à semelhança toponímica.
53

metade do século XIX, já que na época da pesquisa, estabelecemos 1854 como marco
cronológico final, data de mudança da capital de Sergipe para o Aracaju. Suspeitamos
que o elevado aumento de pedidos de dispensa matrimonial em 1828 – oito processos –
seria conseqüência do Decreto Imperial de 3 de novembro de 1827 “sobre as licenças
para casamentos”, pelo qual o Imperador determinava maior zelo na observância do
direito canônico quanto à licitação dos nubentes. 65
Praticamente todas as freguesias mais antigas de Sergipe fizeram-se presentes
na Cúria do Arcebispado da Bahia, solicitando dispensa matrimonial para seus
paroquianos: uma vez para fregueses de Santo Antonio de Vila Nova, Nossa Senhora da
Purificação da Capela, Sagrado Coração de Jesus de Laranjeiras, Santo Antonio do
Urubu de Baixo de Propriá; duas vezes para Nossa Senhora do Guadalupe de Estância,
Nossa Senhora da Piedade do Lagarto, Santo Amaro das Brotas; três vezes para Santo
Antonio e Almas de Itabaiana, Nossa Senhora dos Campos do Rio Real de Cima; e
finalmente, as freguesias com maior numero de impedimentos, cada uma com quatro
processos: São Cristóvão, Nossa Senhora do Socorro da Cotinguiba, São Gonçalo do Pé
do Banco da Divina Pastora – num total de 12 autuações, estando tais paróquias
situadas na mais próspera região canavieira de Sergipe, e por conseqüência, com
famílias patriarcais mais notáveis e com inequívocos interesses nos casamentos
endogâmicos. 66
Conforme aprendemos através das Constituições Primeiras do Arcebispado da
Bahia, a Igreja autorizava o casamento dos “varões” a partir dos 14 anos, e as “fêmeas”
depois dos 12 anos. Na maioria das vezes, antigamente, cabia aos pais, sobretudo ao
pater-familias, decidir sobre o “estado” de seus filhos e filhas: se deviam casar-se ou
entrar para convento ou vida religiosa, qual a idade do matrimônio, com quem se casar.
Nos inícios do século XVII, tratados de teologia ainda ameaçavam: “Se os filhos se
casam contra a vontade de seu pai e mãe, pecam mortalmente!” 67

65
Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, IJ1 – 905
66
Milliet de Saint-Adolphe, J. C. R. Dicionário da Província de Sergipe. Aracaju,
Editora Universidade Federal de Sergipe, 2001, (Orgs. Francisco José Alves & Itamar
Freitas); Nunes, Maria Thetis. Sergipe Colonial II. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro,
1996.
67
Benedicti, Jean. La somme des péchés, liv.IV, chap.VI, n.241, Toulouse, 1610, apud
Flandrin, Jean-Louis. Les amours paysannes (XVI-XIXème siècle). Paris, Editions
Gallimard, 1975, p.40
54

Pesquisas realizadas na Capitania e Província de São Paulo, em documentação


variegada, comprovam que “a legalização das uniões matrimoniais dependia do
consentimento paterno, cuja autoridade era legítima e incontestável, sendo de sua
competência decidir e até determinar o futuro dos filhos sem lhes consultar as
inclinações e preferências, de sorte que casamentos se fazem, às vezes, sem que os
nubentes tenham jamais se comunicado ou visto.”68 Casamentos realizados à revelia dos
pais, em geral, resultavam em punições de diversos tipos e significavam, em muitos
casos, a exclusão dos filhos na participação do patrimônio da família, aliás, como
previsto nas Ordenações Filipinas.
Acertado o casamento, deviam os familiares dos dois candidatos apresentar-
se aos respectivos párocos para proceder às proclamas. O termo canônico para tal ato
era “denunciação” ou “banhos corridos na forma do Sagrado Concilio Tridentino e das
Constituições do Arcebispado da Bahia”, devendo ser divulgados em três domingos
seguidos, durante a principal missa da matriz, afixando-se as proclamas em local de
circulação pública, para que o maior número de fregueses tomasse conhecimento do fato
e eventualmente viessem denunciar, no caso de ter conhecimento de algum
impedimento canônico. Eis um destes “Banhos para se casar: Joana Martins da
Purificação com Simão da Cruz, moradores na vila do Socorro da Cotinguiba, 1807.”
Consta no processo atestado dos respectivos vigários que são solteiros, ela é de
Portugal, tendo chegado com 12 anos, o que foi jurado por fiador, e publicado em três
missas conventuais.69 A realização dos “banhos corridos” era fundamental para se evitar
o crime de bigamia numa sociedade fundada no casamento monogâmico e indissolúvel.
A dispensa ou não realização das proclamas podia redundar em problemas gravíssimos
sobretudo para as donzelas, ludibriadas pela esperteza de aproveitadores, como se
patenteia nesta Autuação de pedido de Nulidade de Matrimônio de 18 de setembro de
1828. “Diz D.Maria Manuela das Neves, da Freguesia de Santa Luzia da Estância, que
achando-se mansa e pacífica vivendo no estado de celibato, lhe apareceu o Ajudante
Soldado Francisco Correia da Silva, que fingindo-se também solteiro, conseguiu iludir

68
Machado, Alcântara. Vida e morte do Bandeirante. São Paulo, Empresa Gráfica da
Revista dos Tribunais, 1930, p.146. apud Samara, Eni de Mesquita. As mulheres, o
poder e a família: São Paulo, Século XIX. São Paulo, Secretaria de Estado e Cultura,
1989, p. 89
69
Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador, Dispensas Matrimoniais, Pacote s/n,
1824-1839
55

à suplicante a casar-se com ele somente para desperdiçar os seus bens com muita porfia,
sem que o vigário da Freguesia de Nossa Senhora do Ó de Paripe se importasse de
exigir a prévia dispensa de banhos, para que pudesse ser válido tal matrimônio, e após
trinta dias do dito matrimônio, apareceu outra mulher do suplicado e filhos havidos do
primeiro matrimônio, deixando logo a suplicado de coabitar com sua primeira mulher.
Pede, porquanto, que o casamento contraído com a suplicante seja ipso facto nulo, já
que falto dos indispensáveis banhos ou proclamas, já pela bigamia do suplicado.
Implora que V.Exca.Rvdssa. digne anular inteiramente o mesmo matrimônio, sem
dependência de ser ela suplicante obrigada a intentar ação ordinária competente. “
Informa mais que o falso marido a reduziu ao deplorável estado de pobreza, roubando-
lhe um mulatinho de nome Máximo, à escrava Vitória e sua cria, alem de ter dado
consumição em suas jóias de ouro e prata, deixando-a “na última miséria”. 70
Curioso
que neste processo, a suplicante ludibriada ao solicitar uma certidão ao Cartório Geral
Eclesiástico da Vara Geral na Cidade de São Cristóvão, capital da Província de Sergipe
del Rei,o então Escrivão do Juízo Eclesiástico, Ignácio Dormundo Roxa, personagem
destacado da inteligentsia local, certificou que “neste cartório não há cousa alguma
sobre a dispensa de banhos que foi recebido o soldado ajudante Francisco Correia da
Silva com Maria Manuela das Neves há três ou quatro anos, já que as dispensas dos
banhos são concedidas quando há motivo justo por simples requerimento dos nubentes
ao Reverendo Vigário Geral.” 71

Infelizmente não há pistas na documentação de quem fazia as denúncias e


como estas chegavam ao conhecimento do Pároco: como o Direito Canônico era
extremamente rigoroso em ameaçar com multa, excomunhão e até prisão a quantos
maliciosamente omitiam ou escamoteavam tais obstáculos dirimentes, sejam os próprios
noivos, sejam seus parentes ou conhecidos, supomos que tais acusações deviam ser
feitas ao vigário, oralmente no confessionário ou em lugar reservado da igreja ou
parlatório na casa paroquial, quiçá enviada por escrito assinado ou anônimo. A leitura
destes 25 processos de Sergipe faz-nos suspeitar que na maioria dos casos, os próprios
nubentes tomavam a iniciativa de auto-denunciar-se posto serem os principais
interessados em cumprir a lei canônica, evitando de um lado a calamitosa anulação das
núpcias, e do outro, a fim de acelerar a autorização para celebrar as núpcias.

70
Arquivo da Cúria Metropolitana da Bahia, Estante 1, Caixa 80, 1828
71
Arquivo da Cúria Metropolitana da Bahia, Estante 1, Caixa 80, 1828
56

Excepcionalmente, é o pai ou mãe de um dos nubentes que assinam a petição


de dispensa: “Diz o Coronel Vicente Luiz de Freitas Barreto, de Laranjeiras, (1847) que
seu filho legítimo Francisco Felix de Freitas Barreto está justo e contratado para
receber-se em casamento com Dª Mariana Freire de Mesquita Barreto, filha legítima do
Capitão Paulo Freire de Mesquita e Dª Rita Vitorina de Mesquita Barreto, [já] morta, da
Vila do Lagarto, lhes obsta, porém, o impedimento dirimente em 2º grau de
consangüinidade pela linha transversal igual.” 72
Neste outro caso, datado de 29 de dezembro de 1829, a requerente é a mãe da
noiva, provavelmente viúva: “Maria Rosa de Jesus e Melo, de Vila Nova, quer casar sua
filha Ana Luiza com Manuel Dias Coelho e Melo, mas são primos carnais [mas] por ser
conveniente á sua família casar a dita sua filha com o dito parente, não havendo no
lugar outro de igual condição com quem tenha casá-la, pede dispensa.” 73
Na quase totalidade dos casos, é apenas o noivo, ou noivo e noiva
conjuntamente que encabeçam a petição à Cúria, certamente contando com a
colaboração do Pároco para redigi-la de acordo com a linguagem canônica: “Autos de
dispensa de 3º grau de consangüinidade de Bento José de Oliveira e Dª Benta Josefa do
Espírito Santo, enviado ao Cartório das Dispensas e Breves Apostólicos do Arcebispado
da Bahia, 1815. Diz Bento José de Oliveira, homem branco, natural da Freguesia de
Nossa Senhora dos Campos do Rio Real de Cima, que está justo e contratado casar com
Dª Benta Josefa do Espírito Santo, da mesma freguesia, e não pode efetuar o casamento
por lhe obstar o impedimento seguinte: os pais dos oradores são primos carnais. E por
serem pobres e não poderem recorrer à Sé Apostólica, pedem a Vossa Excelência
Reverendíssima se digne dispensá-los no dito impedimento, pelo que rogarão a Deus
pela vida e saúde de V.E.R., de que espera real mercê.” 74
Escrita a petição, devia então ser encaminhada à Bahia, distante
aproximadamente 50 léguas de São Cristóvão, capital da Comarca, o que representava
três ou quatro dias a cavalo. Lembremos o que prescreviam as Constituições: “Se entre
uma e outra denunciação descobrir-se algum impedimento, deve-se prosseguir até o
final, passando o pároco certidão na qual declarara os impedimentos, assinada pelos

72
Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador, Dispensas Matrimoniais, Pacote 16,
1847
73
Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador, Dispensas Matrimoniais, Pacote 28,
1829
74
Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador, Dispensas Matrimoniais, Pacote 14,
1815
57

impedientes. E mandamos aos párocos, sob pena de excomunhão maior ipso facto e
multa de um marco de prata pago do aljube, não dissimulem ou ocultem o tal
impedimento ou impedimentos, mas antes, os enviem com muita brevidade ao Bispo ou
ao Provisor em maço fechado e selado na forma costumada, por pessoa fiel, à custa dos
contraentes.” [§275]
O tempo gasto entre o envio da petição de Sergipe e o recebimento da
autorização da Bahia variava de dois meses a quase um ano: não sabemos se tal demora
devia-se à lentidão da máquina burocrática curial baianense, à delonga dos nubentes em
pagar a multa devida ou à lerdeza dos encarregados de transportar tal comissão.
Na autuação de dispensa matrimonial a favor de Francisco de Lavre e Menezes
e Maria Teresa de Jesus, casal branco da freguesia de Santo Antonio e Almas de
Itabaiana, o ofício do vigário Alexandre Pinto Lobão encaminhou favoravelmente a
demanda data de 20 de março de 1828, sendo exarada a dispensa sete meses e meio
depois, aos 4 de novembro de 1828.75 A dispensa que levou menos tempo para ser
concedida – apenas dois meses - beneficiou Pedro de Andrade Vieira e Bárbara Maria
de Sousa, brancos, moradores na freguesia de Nossa Senhora dos Campos do Rio Real
de Cima, tendo como data inicial 23 de agosto de 1828 e concluída aos 23 de outubro
de 1828. 76 O processo mais demorado de que temos conhecimento levou 10 meses para
sua conclusão: aos 20 de janeiro de 1831, José Inácio do Prado e Dª Mariana Rosa do
Prado, fregueses da Paróquia de Divina Pastora e São Gonçalo do Pé do Banco,
entraram com o pedido de dispensa na Cúria, recebendo autorização para se casarem
somente aos 30 de novembro de 1831. 77

III. Dispensas matrimoniais por consangüinidade

“O clima deste termo é benigno, o caráter de seus


habitantes é afável, são inclinados à vida conjugal,
um dos motivos do aumento de sua população.” (D.
Marco Antônio de Souza, Sergipe 1808) 78

75
Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador, Dispensas Matrimoniais, Pacote 14,
1828
76
Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador, Dispensas Matrimoniais, Pacote 13,
1828
77
Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador, Dispensas Matrimoniais, Pacote 17,
1831
78
Souza, op.cit., 1944, p. 20
58

Quanto ao motivo do impedimento – o cerne desta pesquisa – vimos na


primeira parte deste ensaio que as Constituições do Arcebispado da Bahia, refletindo o
determinado pelo Concílio Tridentino, alencavam catorze quesitos que poderiam tornar
o matrimônio nulo, destacando-se o erro de pessoa ou de condição, voto religioso,
crime, impotência, rapto, etc. Destes catorze empecilhos, encontramos apenas duas
79,
categorias em Sergipe: Cognação natural “quando os contraente são parentes por
consangüinidade dentro do quarto grau” (nenhum caso de cognação espiritual ou legal)
e Afinidade: “quando o marido e mulher pelo matrimônio consumado contrai afinidade
com todos os consangüíneos do outro cônjuge até o quarto grau, e assim, ficando viúvo,
não pode contrair matrimônio com algum consangüíneo do cônjuge falecido até o
quarto grau. Também contrai aquele que tiver cópula ilícita imperfeita e natural com
alguma mulher ou mulher com algum varão, e por esta causa não pode contrair
matrimônio com parente do outro por consangüinidade dentro do segundo grau.” (§285)
“A abundancia de casamentos consangüíneos entre parentes até quarto grau,
nas áreas rurais e urbanas [do Brasil antigo], objeto de preocupação de clérigos e
governantes, fez com que o papa Pio VI em bula expedida em Roma, de 26 de janeiro
de 1790, desse poder aos bispos do Brasil para dispensarem da graça em todos os graus
de parentesco, à exceção do primeiro de consangüinidade, assim em linha reta, como em
linha transversal, e do primeiro de afinidade em linha reta somente. Dessa forma
facilitavam-se os matrimônios que seriam irrealizáveis enquanto se precisasse dispensa
de Roma. O intuito dessa dispensa era, obviamente, o de abreviar os processos, evitando
demoras e diminuindo os gastos. Nas famílias paulistas as núpcias entre parentes
próximos, primos e mesmo meio-irmãos, parecem ter sido uma ocorrência natural.“ 80O
mesmo se diga para Sergipe, conforme lemos na obra A Vida Patriarcal de Sergipe: “O
patriarcalismo predominou na época da Colônia, do Império e até o meado do século
XX, sobretudo entre os senhores de engenho do Nordeste brasileiro. Os chefe das
famílias exerciam um poder absoluto sobre os filhos, procurando através dos
casamentos aumentar o patrimônio econômico das mesmas. Eram enlaces matrimoniais
de interesse. Muitas vezes as noivas desconheciam pessoalmente os seus futuros
esposos. Na época, as viúvas ricas eram disputadas pelos poderosos das redondezas. O

79
“Cognação: no Direito Romano e Canônico, parentesco consangüíneo pelo lado
materno ou paterno, indiferentemente, parentesco baseado na comunidade de sangue.”
80
Samara, op.cit., 1989, p.89-91
59

comendador Botto casara-se duas vezes com duas irmãs, ambas viúvas, ricas e filhas de
Dias Melo, o Barão de Itaporanga. O Dr. Fernandes de Barros casou-se com a viúva do
Capitão Mor José de Barros Pimentel, dos Engenhos Jesus-Maria-José, em Laranjeiras e
Mato Grosso, em Maroim. Os crimes de envenenamento se amiudavam para heranças
de fortunas como a de D.Maria Acioly Rollemberg, irmã do Barão de Japaratuba.” 81
Dos 25 pedidos de dispensa matrimonial provenientes de Sergipe, entre 1807-
1854, vinte (80%) referem-se a consangüinidade, sendo o mais comum, 11 casos, de
consangüinidade apenas de segundo grau, geralmente por serem os nubentes primos
carnais. Eis dois exemplos “Antonio Pereira dos Santos Jurema, da vila do Socorro da
Cotinguiba e D.Clara Francisca de Medeiros, de Divina Pastora, pedem dispensa de 2º
grau de consangüinidade, por ser o pai do orador irmão da mãe da oradora”. 82 Estes
outros nubentes viviam em Santo Amaro das Brotas, 1831: “José Nunes de Moura e
Maria Pastora, não podem unir-se por se acharem ligados em parentesco por ser o pai do
orador irmão legítimo da mãe da oradora.” 83
Há três casos de impedimento de 3º grau, como o envolvendo Antônio Luiz da
Anunciação e Rosa Maria da Circuncisão, ambos de Divina Pastora, os quais aos 3 de
julho de 1816 enviaram petição à Cúria Soteropolitana informando que “ele é filho de
Ana Luiza da Conceição, prima carnal do pai dela oradora em 3º grau; ele foi casado,
viúvo, com a filha de uma prima carnal do pai dela, e como “ela é pobre que não
possuirá mais de 150$000, o orador lhe quer fazer essa esmola de casar com ela, o que
não sucedendo poderá não achar outro amparo sem deslustre a sua pessoa”. 84 Esta outra
ocorrência é data de 1830: “Dispensa matrimonial em favor de Jose Sutério de
Mendonça e Dª Maria José, o orador da freguesia da Capela de Nossa Senhora da
Purificação, e ela de São Cristóvão, 1830. Diz que a oradora foi casada com Simeão
Teles e o avô deste, era irmão do avô do orador e a oradora precise quem lhe administre
seus bens, motivo porque pede a dispensa dos mencionados impedimentos.”85

81
Dantas, Orlando Vieira. A Vida Patriarcal de Sergipe. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1980, p.32-33
82
Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador, Dispensas Matrimoniais, Pacote 15, 21-
7-1828
83
Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador, Dispensas Matrimoniais, Pacote 17,
1831
84
Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador, Dispensas Matrimoniais, Pacote s/n,
1824-1839
85
Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador, Dispensas Matrimoniais, Pacote 17,
1828
60

Seis nubentes revelaram possuir consangüinidades múltiplas, incluindo


impedimentos de 2º, 3º e 4º graus. São casos tão complicados para ser entendidos e
devidamente classificados, que os Manuais de Teologia costumavam desenhar um
modelo de “Árvore da Consangüinidade” para auxiliar os párocos na identificação dos
impedimentos. Eis como um dos compêndios de teologia mais utilizados pelo clero
brasileiro, o famoso Padre Larraga, tentava ajudar os párocos nesta árdua tarefa de
qualificar os graus de incesto e conseqüente impedição matrimonial. “Do Matrimônio e
seus impedimentos dirimentes: o parentesco natural em linha transversal inclui irmãos,
primos direitos, primos segundos e terceiros, este impedimento chega até o quarto grau
inclusive. Para saber os graus de consangüinidade, se hão de contar as pessoas que há,
deixando uma, que é o tronco, p.ex, para saber em que grau está Pedro, que é a raiz, com
seu quarto neto, se há de contar as pessoas que há, que são Pedro, seu filho, seu neto,
seu bisneto, terceiro neto e quarto neto, que são seis pessoas, e tirando Pedro, que é o
tronco, ficam as cinco, pelo que Pedro está em quinto grau com seu quarto neto. Esta
mesma regra se há de observar na linha transversal, com advertência que dois
transversais estão naquele grau de parentesco em que está com o tronco o que mais dista
dele. E assim o tio irmão de meu pai e eu estamos em segundo grau, porque eu, que sou
o mais remoto do tronco, estou distante dois graus do mesmo tronco, como se pode ver
na árvore da consangüinidade.”86
Eis aqui um bom exemplo deste cipoal genealógico envolvendo rica família de
senhores de engenho da na zona da Cotinguiba: José Leandro Vieira e Andrade, da
freguesia de Santo Amaro das Brotas e Ana Joaquim Rosa de São José, de Divina
Pastora, pedem dispensa matrimonial aos 9 de agosto de 1828 alegando que “o pai do
orador é primo em 3º grau do pai da oradora e primo carnal da mãe dela, e a mãe dela,
prima em 4º grau com o pai dele e a mãe dele prima em 3º grau da mãe dela.” Não
bastasse tamanho emaranhado familiar, o Vigário Gonçalo Pereira Coelho acrescenta
que “o avô dela, por parte paterna, era irmão da bisavó dele por parte paterna”,

86
Larraga, Francisco. Promptuario da theologia moral, muito util, e necessario para
todos os que se quizerem expor para confessores, e para a devida administraçaõ do
santo sacramento da penitencia composto pelo muito reverendo padre Fr.Francisco
Larraga, Regente da universidade de Santiago de Pamplona, da ordem dos
Prégadores. Com todas as Proposiçoens condemnadas até o tempo do Pontificado do
Santissimo Papa Clemente XI, explicadas pelo mesmo Author. Traduzido de Castelhano
em portuguez pelo padre Manoel da Sylva Moraes, Eagora nesta impressão correcto, e
accrescentado com as Doutrina do seu Addicionador. Lisboa, Na officina de Antonio
Simoens Ferreyra,1737, p. 127
61

esclarecendo que são irmãs a avó paterna dele e a avó materna dela; são irmãos o avô
paterno dela e a avó materna dele; também são irmãos a avó materna dela e a bisavó
materna dele e finalmente também eram irmãos a bisavó materna dela e o avô paterno
dele.” 87 Uma verdadeira Torre de Babel! E tudo isto, vivendo os noivos em freguesias
separadas, o que revela a dispersão dos grandes clãs familiares pelo território sergipano.
Este outro caso de múltiplos casamentos consangüíneos remete-nos a uma
família de gente humilde de Propriá, demonstrando igualmente a força da endogamia
não apenas nas grandes propriedades patriarcais: Francisco Álvares e Isabel de Jesus, da
Freguesia de Santo Antonio do Urubu de Baixo de Propriá, aos 20 de janeiro de 1825
notificam achar-se “ligados no 2º e 4º grau de consangüinidade, no 4º por ser Antônio
Teixeira avô dos oradores por parte paterna e no 2º por ser o mesmo Antônio terceiro
avô por parte materna.” Acrescenta o Vigário que “os oradores são muito pobres, não há
infâmia entre eles mas têm familiaridade e que não haverá no lugar outro que quisesse
torná-la por esposa”. 88 Se de um lado, nas famílias abastadas o interesse de casamentos
endogâmicos visava a manutenção do patrimônio dentro da mesma parentela,
reforçando o milenar binômio - matrimônio=patrimônio - no outro extremo, nos
estratos mais baixos, entre a “raia miúda”, a endogamia parental justifica-se sobretudo
pela convivência mais íntima dos jovens nubentes de ambos os sexos e provavelmente
pela maior liberdade de tais jovens desclassificados escolherem com mais liberdade os
parceiros de sua eleição.

IV. Dispensas matrimoniais por afinidade e cópula ilícita

“A carne de ovelhas é alimento quase comum neste Distrito,


à qual se atribui certa virtude prolífica. Seus moradores são
muito inclinados ao toro conjugal. É certo que as mulheres
têm uma natural fecundidade: costumam parir vinte e vinte
cinco filhos.” (D. Marcos Antônio de Souza, Sergipe, 1808) 89

Como rezam as Constituições do Arcebispado da Bahia, no citado parágrafo


284, além da Cognação natural, outro óbice capaz de anular o sacramento do

87
Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador, Dispensas Matrimoniais, Pacote 28,
1828
88
Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador, Dispensas Matrimoniais, Pacote 28,
1825
89
Souza, op.cit., 1944, p. 31
62

matrimônio era a Afinidade: “Afinidade: o marido e mulher pelo matrimônio


consumado contrai afinidade com todos os consangüíneos do outro cônjuge até o 4º
grau, e assim, ficando viúvo, não pode contrair matrimônio com algum consangüíneo
do cônjuge falecido até o quarto grau. Também contrai impedimento aquele que tiver
cópula ilícita imperfeita e natural com alguma mulher ou mulher com algum varão e por
esta causa não pode contrair matrimônio com parente do outro por consangüinidade
dentro do segundo grau.”
Seis pedidos de dispensa matrimonial oriundos de Sergipe tiveram como
impedimento relações de afinidade, sendo duas relações lícitas e quatro ilícitas.
Comecemos pelo que a Igreja considerava “incesto por afinidade lícita”: aos 25 de
outubro de 1854, “Manuel Muniz da Fonseca, da Freguesia de Nossa Senhora do
Guadalupe de Estância, viúvo de Maria Piedade da Fonseca Morais, quer casa-se com
Josefa Maria de Trindade, mas obsta ser a oradora irmã da finada mulher. Razões mui
fortes obrigam ao suplicante assim proceder: viúvo pobre e com três filhos menores,
sem ter quem deles cuide e não podendo estar sempre o suplicante em casa por viver
cuidando aqui e ali dos alimentos para sua família, jamais poderá encontrar uma outra
mulher além desta que vê em seus sobrinhos seus filhos e que queria se encarregar da
criação e da direção das três crianças em uma idade em que só os cuidados de uma mãe
os podem consolar e dirigir.” 90
Claro que com argumentos tão sensibilizantes o viúvo
recebeu as bênçãos da Santa Madre Igreja para casar-se com a cunhada.
A segunda ocorrência passou-se em Itabaiana em 1828, envolvendo o viúvo
Francisco de Lavre e Menezes e Maria Teresa de Jesus, que além de terem diversos
impedimentos por consangüinidade, eram cunhados: “querem casar-se mas obstam os
impedimentos em 4º grau misto ao 3º, por ser o bisavô da oradora irmão do avô da avó
do orador por parte paterna e em 4º grau por ser a avó materna do orador irmã da avó
materna da oradora e de afinidade lícita por ter sido o orador casado com uma irmã da
oradora e porque essa se acha órfã e vive em companhia do orador, deflorada da sua
virgindade pelo orador, difamada e só casando ficará livre da miséria humana e para
viverem na graça de Deus Nosso Senhor.” 91

90
Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador, Dispensas Matrimoniais, Pacote 16,
1854
91
Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador, Dispensas Matrimoniais, Pacote 14,
1828
63

As afinidades ilícitas, sobretudo quando se mantinham sigilosas, devem ter


causado enorme constrangimento aos infratores de se verem forçados a revelar seus
“pecados mortais” não só ao Vigário da Freguesia, como aos funcionários do
Arcebispado da Bahia encarregados das dispensas matrimoniais, posto que mesmo
sendo parentes próximos, haviam mantido relações não apenas desonestas mas
incestuosas. Tal foi o caso de Estevão José de Oliveira e Maria Rosa das Virgens,
moradores em São Cristóvão, no ano do Senhor de 1828, que além do impedimento por
consangüinidade na linha transversal igual, isto é, o pai dele era primo carnal da mãe
dela e “por afinidade ilícita na linha direta, sendo impedimento oculto pois ele teve
cópula ilícita com a mãe da oradora uma única vez, depois de ter nascido a oradora.”
Com certeza o orador devia ter idade para ser o pai de sua noiva, e segundo o Vigário
local, não havia infâmia alguma entre a futura sogra e seu genro, “mas sim entre os
oradores, pois apesar de não terem copulado, tem presença freqüente na casa dela em
razão do parentesco e se a oradora não se casar com ele, não achará outro que a queira
por usa esposa, e como esta é órfã de pai e tem cessado a causa do 2º impedimento,
fazem-se dignos da graça”. 92
Alguns destes processos confirmam um ditado luso-sergipano, que ouvi-o
citado primeira vez pelo saudoso prof. José Calasans: “os primos e os pombos sujam as
casas”. De fato, também em Sergipe a proximidade física dos primos, malgrado os
anátemas da igreja, algumas vezes redundavam em pecaminosas intimidades sexuais.
Em 1829, os primos carnais Domingos de Sousa e Oliveira e Rita Campos de Oliva, da
Freguesia dos Campos do Rio Real entraram com pedido de licença para nupciar-se, já
que além do pai dele ser irmão da mãe dela, e a mãe dele ser prima carnal do pai dela,
ostentavam impedimento canônico “por copula ilícita que o nubente teve com uma
prima carnal dela, que não se continua”.93 Esta e outras situações semelhantes
demonstram que não se pode generalizar para Sergipe o observado na Capitania de São
Paulo: segundo Eni de Mesquita Samara “pedir dispensa matrimonial por cópula ilícita
com parente de futuro cônjuge significa portanto baixo nível social, ao passo que pedir
dispensa por consangüinidade revela uma posição mais elevada na hierarquia da

92
Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador, Dispensas Matrimoniais, Pacote s/n,
1824-1839
93
Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador, Dispensas Matrimoniais, Pacote 28,
1829
64

sociedade colonial.”94 Este rio-realense acima citado, Domingos de Sousa, inculpado em


ter copulado ilicitamente com sua prima carnal, era herdeiro de “40 escravos, gados,
terras, etc, cabendo a cada nubente 600$000”, portanto, membro da elite latifundiária
local, segundo informa o vigário Francisco Xavier Góis Amaral.
Na Autuação do pedido de dispensa matrimonial a favor de Pedro de Andrade
Vieira e Bárbara Maria de Sousa, de 23-8-1828, moradores na freguesia de Nossa
Senhora dos Campos do Rio Real de Cima, mais grave do que no caso precedente, o
primo assumiu ter mantido “conversação ilícita” com duas primas: além dos
impedimentos “em 2º grau de consangüinidade por serem primos carnais, filhos de dois
irmãos, há óbice em 2º grau por cópula ilícita tida com duas primas carnais da oradora e
dele suplicante.” 95
Encontramos no célebre Catálogo Genealógico das Principais
Famílias, do franciscano Frei Jaboatão, referência ao caso mais antigo até agora
conhecido, de primos que se casam em Sergipe del Rei, anterior a 1701: Antonio de
Brito Correa, Coronel da Vila de Lagarto e arraial de Santa Luzia, casou-se primeira vez
com Isabel Maria, do Rio de Janeiro e segunda com Francisca Araújo, sua prima. 96

IV. Motivos das dispensas matrimoniais em Sergipe

Como o leitor deve ter notado, ao transcrever alguns destes pedidos de


dispensa matrimonial, diversos processos trazem informações do Vigário comentando as
qualidades ou defeitos dos oradores, assim como detalhes sobre a vivência dos mesmos
que justificariam o despacho favorável. Tais informações tinham como objetivo
subsidiar os juízes do Auditório de Casamentos da Bahia a fim de poder sentenciar com
maior conhecimento de causa.
A Santa Madre Igreja levava em consideração diversos motivos humanitários
para conceder tais dispensas. Com base sobretudo nas obras do jesuíta espanhol Tomas
Sanchez, particularmente no Disputationes de matrimonii Sacramento, compêndio que
teve doze edições entre 1602-1669, a hierarquia diocesana costumava levar em

94
Nizza da Silva, Maria Beatriz. “Sistema de casamento no Brasil Colonial”, Ciência e
Cultura (SBPC), n.28 (110), 1976, p. 1254
95
Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador, Dispensas Matrimoniais, Pacote 14,
1828
96
Jaboatão, Frei Antonio de Maria. Introdução e Notas de Pedro Calmon ao Catálogo
Genealógico das Principais Famílias de Frei A Jaboatão (1768). Salvador, Empresa
Gráfica da Bahia, 1985, 2 volumes, p.653-660
65

consideração nove atenuantes para conceder dispensa: a pequenez do lugar, a


modicidade do dote, a consolidação da paz, o perigo de vida, ter a moça mais de 25
anos, ser órfã ou viúva carente, afim de manter a pureza e riqueza da família, pelos
grandes serviços prestados ao Estado e à Igreja e pela dificuldade de encontrar
97
pretendentes católicos. Alguns destes atenuantes tinham mais a ver com o contexto
europeu do que latino-americano.
Em Sergipe, várias das oradoras são apontadas como órfãs, fragilidade social
que certamente facilitou parecer favorável à concessão da dispensa, considerando o
risco que na sociedade antiga corriam as moças desamparadas de seus pais. No processo
de Maria Pastora, de Santo Amaro das Brotas, (1831), impedida canonicamente de
matrimoniar-se por ser prima carnal de seu noivo, consta que “ela é órfã de pai e mãe,
pobre.” 98
A já citada Dª Mariana Freire de Mesquita Barreto, da vila do Lagarto, “é
órfã [de mãe] e vive com boa nota em casa de seu pai”. Dª Clara Perpétua de Amorim,
do Socorro “é órfã” 99
Sobre a donzela Maria Rosa das Virgens, assim informava o
Vigário de São Cristóvão, aos 26 de fevereiro de 1828: “se a oradora não se casar com
orador, não achara outro que a queira por usa esposa, e como é órfã de pai e tem cessado
a causa do segundo impedimento, fazem-se dignos da graça.”
Neste último e em outros casos, a orfandade decorrente da morte da pessoa que
causava o impedimento canônico, desfazia o óbice de afinidade lícita ou mesmo, ilícita.
O parecer emitido pelo Vigário do Lagarto, Padre Alexandre Pinto Lobão, (1828)
enfatiza que “Maria Teresa de Jesus, “merece a dispensa por ser a oradora pobre e nada
possuir, sendo órfã do primeiro matrimônio.”
A manutenção do patrimônio dentro da família sempre foi uma razão
substantiva que levava também em Sergipe algumas famílias mais abastadas a
preferirem as uniões endogâmicas entre parentes próximos, na maioria dos casos,
primos carnais da mesma geração. O coronel Vicente Luiz de Freitas Barreto, de
Laranjeiras, (1847) ao pedir dispensa para que seu filho legítimo Francisco Felix de
Freitas Barreto se case com sua prima Dª Mariana Freire de Mesquita Barreto, diz sem
reservas: “o suplicante ansiosamente aspira que seu filho casasse com esta sua parenta,

97
Flandrin, op.cit., 1975, p.40
98
Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador, Dispensas Matrimoniais, Pacote 17,
1831
99
Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador, Dispensas Matrimoniais, Pacote s/n,
1824-1839, 1825
66

por ser ela mais pobre e ficar alguns bens da fortuna, que Deus lhe deu, no recinto de
sua própria família”. Segundo o Vigário, Padre José Joaquim Campos, o nubente
possuía quase 8:000$000 de legítima materna na propriedade do Engenho Varzinhas e
alguns escravos.”
Nest’outra ocorrência, patenteia-se também em Sergipe del Rei uma regra
conjugal que a Antropologia classifica como hipogamia, o casamento de um homem
com mulher status social ou econômico mais baixo: O já citado coronel Vicente Luiz de
Freitas Barreto pleiteava que seu filho se casasse com a prima de segundo grau “por ser
ela mais pobre”100 Sobre Rosa Maria, de Divina Pastora (1816) consta que “é pobre
que não possuirá mais de 150$000 [de patrimônio], e o orador lhe quer fazer essa
esmola de casar com ela, o que não sucedendo poderá não achar outro amparo sem
deslustre a sua pessoa.” Quanto à nubente Maria Teresa de Jesus, de Lagarto (1828), diz
o capelão: “merece a dispensa por ser a oradora pobre e nada possuir.” 101 Também no
Brasil Meridional o casamento interparental era bastante praticado: “as relações de
parentesco eram tradicionalmente comuns nos arranjos matrimoniais na sociedade
paulista e desde o período colonial eram freqüentes as uniões de primos entre si e de tios
e sobrinhas. Alfredo Ellis Jr aponta para a população paulista, no seiscentismo, um
índice de consangüinidade de 23,3% que chega no setecentismo a 42,8%. 102
Há situações em que a pobreza material da nubente é acrescida da desonra,
ambos fatores colaborando positivamente para obter a misericórdia da Santa Madre
Igreja, que través do 7º Sacramento atenuava ambas mazelas. Em 1845, Antonio
Francisco da Piedade, morador em Estância, ficando viúvo, quer casar-se com sua
cunhada, Maria Angélica de Jesus, irmã de sua finada esposa; em seu favor advoga o
Vigário: “como já vivem no pecaminoso estado de amancebia e ela não achará outro
com quem se case pela sua pobreza e igualmente pela triste fama”103
Este é outro aspecto merecedor de nossa atenção para entendermos as nuances
do mercado matrimonial em Sergipe colonial e imperial: o casamento como remédio
para recuperar a honra perdida. A jovem Dª Clara Francisca de Medeiros, de Divina

100
Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador, Dispensas Matrimoniais, Pacote 16,
1847
101
Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador, Dispensas Matrimoniais, Pacote s/n,
1824-1839, 1828
102
Apud Samara, Eni de Mesquita, “Casamento e papeis familiares em São Paulo no
século XIX”, Caderno de Pesquisas, São Paulo, n.37, 1981, p.19
103
Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador, Dispensas Matrimoniais, Pacote 31,
1845
67

Pastora (1828) era duplamente digna de comiseração: “ela é pobre e acha-se deflorada
pelo orador que por meio do matrimônio quer pagar-lhe a honra”. O pretendente,
Antonio Pereira dos Santos Jurema era homem abastado, talvez o mais rico desta
amostra oitocentista: “ele possui um engenho de açúcar moente e corrente com mais de
100 cativos maiores e menores, gados vacuns e cavalares, 21 caixas de açúcar e móveis
de casa, ouro, prata, mas como há três dias faleceu seu avô de quem houve esta herança,
não sabe que dividas haverão na casa, de modo que no mínimo deve possuir
100:000$000.”104
Outra cunhada encontra-se em situação parecida à anterior: Josefa Maria de
Trindade, desde que sua irmã morreu, “já vive na casa do orador cuidando das crianças
e o vulgo não deixa de pensar na honra da nubente, pelas continuadas visitas e quase
morada que faz o supradito orador em casa da mãe da oradora, a qual também é
pobríssima e vive de esmola.” 105
Algumas vezes, o motivo da dispensa tinha como alegação que a mulher viúva
com filhos carecia do apoio de um pater famílias que administrasse seus bens,
exercendo o papel de cabeça do casal: em 1830, José Sutério de Mendonça, da
freguesia da Capela de Nossa Senhora da Purificação, justifica seu pedido de dispensa
por ser ter sido a viúva Dª Maria José, de São Cristóvão, casada com Simeão Teles e o
avô desta era irmão do avô dele, mas como “a oradora precise quem lhe administre seus
bens e porque tendo três filhos estes se acham casados e o orador tem uma filha solteira
e possui o valor de 600$000 e a oradora 2:000$000 em bens periveis (sic) e de raiz, não
tendo quem lhes administre, não poderá subsistir com a devida decência, motivo porque
pede a dispensa dos mencionados impedimentos.” Informação que é ratificada pelo
Vigário Luiz Antonio Esteves: “a oradora precisa quem administre seus bens.” 106
Nest’outro episódio, é o viúvo onerado de filhos quem necessita da irmã de
sua finada mulher como mater famílias: Manuel Muniz da Fonseca, de Estância,
justifica seu pedido para casar-se com sua cunhada, Josefa Maria de Trindade nos
seguintes termos: “razões mui fortes obrigam ao suplicante assim proceder: viúvo pobre
e com três filhos menores, sem ter quem deles cuide e não podendo estar sempre o

104
Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador, Dispensas Matrimoniais, Pacote 15,
1828
105
Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador, Dispensas Matrimoniais, Pacote 16,
1845
106
Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador, Dispensas Matrimoniais, Pacote 17,
1830
68

suplicante em casa por viver cuidando aqui e ali dos alimentos para sua família, jamais
poderá encontrar uma outra mulher além desta, que vê em seus sobrinhos seus filhos e
que queria se encarregar da criação e da direção das três crianças em uma idade em que
só os cuidados de uma mãe os podem consolar e dirigir.” O Vigário padre Manuel José
Alves dá parecer favorável à que se desconsidere a afinidade de 1º grau lícita: “a
cunhada já vive na casa cuidando das crianças e o vulgo não deixa de pensar na honra
da nubente, pelas continuadas visitas e quase morada que faz o supradito orador em casa
da mãe da oradora, a qual também é pobríssima e vive de esmola.” 107
Subjacente a vários destes casamentos interparentais, patenteia-se o desejo de
que o/a nubente escolhido ostentem a mesma “qualidade” racial, social e econômica –
regra matrimonial conhecida como homogamia. Como magistralmente enfatizava já em
1650 o autor da Carta de Guia aos Casados, D.Francisco Manuel de Melo, “uma das
coisas que mais assegurar podem a futura felicidade de casados é a proporção do
casamento. A desigualdade no sangue, nas idades, na fazenda, causa contradição; a
contradição, discórdia. Para satisfação dos pais convém muito a proporção do sangue;
para proveito dos filhos, a da fazenda; para o gosto dos casados, a das idades. É a suma
felicidade do casamento quando em tudo sejam iguais. “ 108 Um ditado antigo luso-
brasileiro confirma a excelência das uniões homogâmicas: “Casar e compadrar, cada
qual com seu igual.”
Maria Rosa de Jesus e Melo, de Vila Nova do Rio São Francisco, em 1831,
mãe da nubente Ana Luiza insistia nesta “iguala” para dispensar o primo carnal de sua
filha da interdição canônica: “por ser conveniente á sua família casar sua filha com o
dito parente, não havendo no lugar outro de igual condição com quem venha casá-la”
109
Em Divina Pastora, no mesmo ano, o casal José Inácio do Prado e Dª Maria Rosa do
Prado pedia dispensa de 2º e 3º graus de consangüinidade “porque a oradora acha esse
seu primo que com igualdade a quer receber por mulher”. Eram ricos: “o orador deve
ter 1:200$000.”110

107
Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador, Dispensas Matrimoniais, Pacote 16,
1845
108
Melo, D.Francisco Manuel. Carta de Guia aos Casados (1650), Lisboa, Editorial
Verbo, s/d, p.21
109
Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador, Dispensas Matrimoniais, Pacote 28,
1829
110
Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador, Dispensas Matrimoniais, Pacote 17,
1831
69

Honra, virtude e vergonha eram valores fundamentais no Brasil de antanho,


sobretudo no tocante à honestidade e recato exigido de todas as mulheres de bem,
sobretudo as solteiras vivendo sob o pátrio poder. O casamento compensatório, mesmo à
força, foi também em Sergipe de antanho, a solução corrente para compensar a honra
perdida: em carta enviada ao presidente da Província, “diz Henrique José Peixoto, que
onerado de filhos, reclama contra o soldado de polícia Antonio da Cruz, o qual de noite,
raptou e deflorou sua filha menor, Alexandrina, que sob sua guarda estava, recusando o
queixado casar-se com a deflorada, e para que não fique impune o fato e a filha do
suplicante no desamparo, e seja para um pai de família revoltante tal procedimento, e
não pode o queixoso usar dos meios judiciais por ser pobre, pede solução para este
caso.” 111 Maior angustia revelava este requerimento de José Joaquim da Santa Unção e
sua mulher, moradores no Engenho Madre de Deus, datado de 9 de maio de 1859:
“somos pobre e miseráveis e há muitos anos moradores neste engenho, e por
infelicidade, cheios de dor, mágoa e coberto de vergonha publicam que os moços
Ângelo e João, moradores nas ditas terras, não respeitando o decoro de uma casa,
enganaram as usas filhas, Eliza, de 17 anos, e Vicência, de 16, e lhes roubaram o que
tinham de mais precioso, a virgindade, e vindo o suplicante e sua mulher disto a saber,
fizeram ver a eles que deveriam casar, não só porque deviam, como também para que
não ficasse desonrada a sua família,a mas estes moços a isso se negam. E como não
podemos recorrer com os gastos da justiça pois os lucros de nossos trabalhos apenas
chegam para mal subsistir e curtissimamente vestir-se, solicita que os dois moços sejam
obrigados a casar, para lavarem esta nódoa.” 112
Deixo aqui uma pista curiosa a ser investigada: no Catálogo Genealógico de
Frei Jaboatão e Pedro Calmon consta que Manuel de Couto Deça, “morador em
Sergipe del Rei, onde teve sesmaria junto com Cristóvão de Burgos (1660), casou-se
com Micaela de Azevedo na Casa do Segredo da Cadeia da Bahia em 1702, sendo
113
degolado no dia seguinte. Qual teria sido o motivo deste casamento e degola
subseqüente? É muito mais provável que nobre tenha sido o motivo, garantir à sua
amásia o status de casada in extremis mortis, do que o castigo por ter vilipendiado a
honra da dita mulher que de esposa num dia, tornou-se viúva no seguinte.

111
Arquivo Público do Estado de Sergipe, Pacotilha 846, 1844
112
Arquivo Público do Estado de Sergipe, Pacotilha 595, 1849
113
Jaboatão, op.cit., 1985, p.543
70

Em Sergipe, estes valores morais são particularmente enfatizados em diversos


processos de dispensa matrimonial. Em Itabaiana, em 1828, Francisco Barreto de
Vasconcelos, diz em sua correspondência para a Cúria Arquiepiscopal que pedira
anteriormente dispensa de 2º grau por consangüinidade para casar-se com sua prima
carnal, Maria do Amor Divino, de São Cristóvão, pedido indeferido – o único caso
indeferimento por nós encontrado - porém, como “tem residido o mais do tempo em
casa do seu tio, pai da oradora, e não se efetuando este casamento ficará a oradora
infamada e privada de casar-se com outro homem da sua qualidade, e por este tão justo
poderoso motivo, novamente recorre solicitando deferimento”. 114 Dispensa concedida.
O perigo da má fama para uma mulher honesta era motivo freqüente para se
pleitear e conseguir a autorização matrimonial: “se a oradora não se casar com o
pretendente, não achará outro que a queira por usa esposa”, dizia o Vigário de São
Cristóvão, em 1828, dando apoio ao casamento de um “cabra macho” que havia
primeiramente copulado com a mãe da oradora, e agora queria casar-se com a filha. Em
Lagarto, em 1828, o Padre Lobão informava que Maria Teresa de Jesus, foi “deflorada
da sua virgindade pelo orador, difamada e só casando ficara livre da miséria humana e
para viverem na graça de Deus Nosso Senhor.” Dª Clara Francisca de Medeiros, de
Divina Pastora e São Gonçalo, (1828) justifica seu desejo de casar-se com o primo
Jurema alegando que “acha-se deflorada pelo orador que por meio do matrimônio quer
pagar-lhe a honra”.“115 A expressão “triste fama” e “infâmia” aparecem diversas vezes
nesta documentação para se referir a opinião dos sergipanos para quantos mantinham
“conversação desonesta” ou viviam “de portas a dentro” ou para a mulher “teúda e
manteúda” por seu amásio.
Até o presente, localizamos apenas uma ocorrência em que após as proclamas
ou banhos corridos, houve contestação por parte de terceiros, mas o final foi feliz para
os nubentes. “ Dizem Manuel Sutério Paulino e Vitória Maria, da Freguesia de Santo
Antonio e Almas de Itabaiana, 1809, que “como miseráveis cometeram carnal
ajuntamento sendo a oradora roubada de sua honra pelo orador há 14 anos pouco mais
ou menos, e desejando remediar-se, se trataram receber matrimonialmente na forma do
Sagrado Concilio de Trento. Mandou o orador correr as três canônicas admoestações,

114
Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador, Dispensas Matrimoniais, Pacote 28,
1828
115
Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador, Dispensas Matrimoniais, Pacote 15,
1828
71

saindo com impedimento José Carvalho, dizendo ser procurador de Vitório Fagundes,
pai da oradora, e de novo, por impedimento outro tio da oradora, Silvestre Jose, só pelo
pretexto de ser o orador pardo, cujo impedimento não devia prevalecer já que é da
mesma cor da oradora, depois de já estar purgado e não ser posto [impedimento] pelo
pai da oradora a quem maiormente, de direito, só competia protestar, como seu tio
Silvestre não conseguisse na vigaria de Sergipe seu mau intento, tentou impedir o
casamento através de uns missionários. Diz que o orador e oradora têm seis filhos e se
acham em concubinato, são pobres e ovelhas desgarradas do rebanho, rogam que o
pároco os case.” O vigário substituto, frei Manuel da Encarnação depois de realizar as
devidas averiguações, diz que é a favor do casamento. A cúria arquiepiscopal da Bahia
acata o pedido, determinando que a mulher fique apartada do seu amásio orador por
trinta dias a fim de que “possa em sua plena liberdade escolher livremente o estado
matrimonial.” Que paguem as custas dos autos.116
Apesar de todo o cuidado burocrático da Igreja para que os casamentos
fossem realizados dentro de todos o casuísmo burocrático estabelecido pelo direito
canônico, sem qualquer impedimento dirimente, cerimônia que devia sempre ser e
devidamente documentada no Livro de Registro de Matrimônio, com presença
obrigatória do capelão e de testemunhas, livro zelosamente conservado em armários
trancados das sacristias Matrizes, malgrado todos esses cuidados, há diversos processos
no Arquivo do Arcebispado Soteropolitano se requer a “justificação do casamento” já
que os interessados não encontraram na época registro comprobatório de tais uniões
sacramentais.
Entre 1811-1820 encontramos quando menos três casais de moradores de
Sergipe que tiveram de recorrer à Secretaria da Câmara Primacial da Bahia para obter
atestado de casamento. Em 1811, Antonio Moniz Bittencourt, filho legítimo José da
Câmara Bittencourt e Maria Perpétua e Almeida, todos naturais da Freguesia de Nossa
Senhora do Socorro da Cotinguiba pede ”lhe passe certidão por não ter achado o
casamento de seus pais.” Neste e nos demais casos, urgia que fossem ouvidas ao menos
quatro testemunhas. Neste caso, o primeiro a ser ouvido foi Manuel José de Meneses,
“branco, solteiro, morador em Santo Amaro das Brotas, que vive de seus estudos, 24
anos, testemunha jurada nos Santos Evangelhos disse que conhece muito bem ao

116
Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador, Dispensas Matrimoniais, Pacote 13,
1809
72

justificante e sabe por estar estudando nas Laranjeiras ser ele filho legítimo de José da
Câmara Bittencourt e Maria Perpétua e Almeida, ouvindo o mesmo pai chamar-lhe de
filho, sendo público ter se casado na Matriz da vila do Socorro.” Outra testemunha,
Capitão Bonifácio Francisco de Freitas Barreto, morador na Freguesia do Desterrro da
Bahia, diz saber que vindo Antonio Moniz Bittencourt de sua pátria em Portugal, se
117
casara no Socorro com Maria Perpétua e Almeida. Em 1816 é a vez de um morador
na cidade de Sergipe del Rei, Luiz Correa de Caldas e Lima, filho legítimo de Antonio
Correa da Purificação e Dionísia Correa de Lima, solicitar “certidão de casamento de
seus pais para se ordenar e como não tendo descoberto tal assento, o quer justificar.”
Feito o sumário, conclui-se que seus progenitores casaram de fato na Igreja Matriz de
Nossa Senhora da Vitória da cidade de Sergipe, aos 19 de dezembro de 1801, perante o
vigário Padre Caetano da Silva Nolette. 118
Na justificação de casamento de Amaro Álvares de Oliveira e Maria José do
Sacramento a favor de José Lino de Oliveira, datado de 1819, o orador diz ser natural de
Itabaiana, filho legitimo do casal, casamento feito na Capela filial de Nossa Senhora da
Piedade: a autoridade a dar o atestado, Padre Feliciano Garcez Pinto de Madureira, por
sua titulação, revela que tal cargo devia ser ocupado exclusivamente por eclesiásticos do
alto patente: era Professo da Ordem de Cristo, Beneficiado Colado, Secretário da Cúria
Arquiepiscopal da Bahia, o qual, após mandar pesquisar nos livros de registro de
casamento conclui: “nada foi possível achar-se entre 1785-1807.” É feito então sumário
de testemunhas que confirmam o matrimônio do casal, atestado concedido aos 12 de
maio de 1820 119
Tais pedidos de justificação de casamento destinavam-se sobretudo a
comprovar filiação legítima por ocasião de inventário e partilha de bens entre herdeiros,
ou para o recebimento de ordens religiosas a fim de instrumentar os Processos de
Genere et Moribus, posto que no Brasil antigo, só os filhos legítimos podiam ter acesso
pleno à carreira militar, civil, eclesiástica e ao pleno respeito social. Mazelas de uma
sociedade estamental fortemente marcada pela moral católica.

Anexo:
117
Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador, Dispensas Matrimoniais, Caixa 80,
1811
118
Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador, Dispensas Matrimoniais, Pacote,
Estante 1, Caixa 80
119
Arquivo da Cúria Metropolitana da Bahia, Estante 1, Caixa 80
73

Onomástica das mulheres de Sergipe

De 28 mulheres sergipanas nomeadas nas Dispensas Matrimoniais, a


metade tem sobrenome com onomástico religioso, seja nome de santos, de Nossa
Senhora ou de Jesus. Destas, apenas três são referidas como “Donas”. Em contrapartida,
a outra metade das mulheres que têm sobrenomes leigos, sete são “donas”, sugerindo
que também em Sergipe, como foi constatado na vizinha Bahia 120, pessoas de condição
inferior, notadamente pardos e pretos, assim como descendentes de índios, adotavam
sobrenomes religiosos, enquanto descendentes de famílias mais abastadas preferiam
sobrenomes leigos, algumas portando dois sobrenomes, como Fonseca Morais,
Mesquita Barreto, Vieira do Nascimento. Eis uma pista interessante a ser aprofundada
por pesquisas mais amplas.

 Mulheres de Sergipe com sobrenomes religiosos

1. Ana Joaquim Rosa de São José


2. Ana Luiza da Conceição,
3. D. Benta Josefa do Espírito Santo
4. Isabel de Jesus
5. D.Joana Francisca de São Jose
6. D.Joana Maria de Santana
7. Josefa Maria da Trindade
8. Maria Angélica de Jesus,
9. Maria Cara de Jesus
10. Maria do Amor Divino
11. Maria Pastora,
12. Maria Rosa das Virgens
13. Maria Teresa de Jesus
14. Rosa Maria da Circuncisão

 Mulheres de Sergipe com sobrenomes leigos e sem sobrenomes

1. Bárbara Maria de Sousa


2. D.Clara Francisca de Medeiros
3. D.Clara Perpetua de Amorim
4. D. Joaquina Maria de Araújo
5. D.Maria José

120
Azevedo, E. S./Azevedo S./Azevedo E.E.S. “Análise Antropológica e Cultural dos
Nomes das Famílias da Bahia. Centro de Estudos Afro-Orientais, v. 8, p. 01-14, 1981;
“Sobrenomes no Nordeste e suas Relações com a heterogeneidade étnica. Estudos
Econômicos (IPE/USP), São Paulo, v. 13, p. 103-116, 1983.
74

6. Maria Piedade da Fonseca Morais


7. Maria Rosa de Jesus e Melo
8. D. Mariana Freire de Mesquita Barreto
9. D. Mariana Rosa do Prado,
10. D. Rita Vitorina de Mesquita Barreto
11. Rita Campos de Oliva
12. Rosa Maria
13. Sabina Vieira do Nascimento
14. Vitória Maria
75

5. A Fuga de Escravos nos Anúncios de Jornal de Sergipe: 1833-


1864 121

“Quem pegar o escravo fugido e levá-lo a casa de seu senhor


será bem recompensado.” (Recopilador Sergipense, 1833)

Dois são os objetivos deste estudo: I. Chamar a atenção dos estudiosos da


população brasileira do passado para uma importante fonte documental pouquíssimo
explorada pela demografia histórica – os anúncios de jornal, fonte que após depuração
sistemática pode fornecer ricas informações quantitativas e qualitativas sobre inúmeros
aspectos da estrutura e dinâmica das nossas populações escravas; II. Avançar na
caracterização etnodemográfica do contingente escravo da Província de Sergipe,
trazendo novas informações sobre seu perfil sócio-cultural retiradas agora dos anúncios
de jornal.

I. Os anúncios de jornal: Fonte para a Etnodemografia Histórica

Foi em 1934 que o pioneiro Gilberto Freyre iniciou o estudo sobre a


presença dos escravos nos anúncios de jornais do Brasil imperial: tomando como
amostra o Diário de Pernambuco e o Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, entre
1825-1888, este Autor demonstrou tanto entusiasmo por esta fonte documental que
chegou a propor mais um ramo do saber, “a Anunciologia, uma quase nova ciência”.122
Embora sempre muito criativo, mestre Gilberto não vai alem de generalizações
assistemáticas sobre o tema, pois os dez mil anúncios que diz ter consultado permitiriam
um tratamento quantitativo bastante sofisticado, tarefa que deixa de fazer. Mais
preocupado na interpretação antropológica das características de personalidades e das
formas corporais dos escravos anunciados à venda ou fugidos, não explora

121
Este artigo, agora com vários acréscimos, foi originalmente publicado na Revista do
Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, n.29, 1983-1987, p.133-147.
122
Freyre, Gilberto. O Escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX:
tentativa de interpretação antropológica, através de anúncios de jornais, de
característicos de personalidade e de deformações de corpo de negros ou mestiços,
fugidos ou expostos à venda, como escravos, no Brasil do século passado. Recife,
Imprensa Universitária, 1963.
76

convenientemente o manancial que tais anúncios podem representar como fonte


subsidiária crucial para a caracterização demográfica do segmento servil. 123
Uma primeira observação digna de nota é que os anúncios além das fugas ou
roubos de cativos, retrata também outros aspectos ligados à comercialização deste “gado
humano”: compra, venda, aluguel hipoteca e leilão. Embora a fuga seja a notícia mais
freqüente – ao menos na imprensa sergipana – os anúncios do comércio de cativos
fornecem igualmente riquíssimas informações sobre o valor, habilidades e outros
aspectos da demografia e do cotidiano da mão-de-obra de origem africana.
Recurso praticado por todos os paises escravistas124, tais anúncios de jornal
via de regra fornecem minuciosas descrições sobre os escravos fujões, verdadeiros
“retratos falados”, que numa época anterior à fotografia, constituem a imagem mais fiel
que podemos dispor da aparência física e outras características da escravaria. Eis um
exemplo dentre os 132 anúncios que nos servirão de guia e que foram recolhidos
maciçamente no Correio Sergipense, o principal jornal de Sergipe entre os anos 1838-
1864, acrescido de dois anúncios extraídos do primeiro periódico desta província, o
Recopilador Sergipense, datados de 1833:

“Fugiu ao abaixo assinado, morador na cidade de Laranjeiras, no dia 19-7-1849,


uma sua escrava de nome Hilária, com os sinais seguintes: mulata, cabelo ruim,
testa alta, um sinal de talho na testa em cima de um olho, sobrancelhas regulares
e pretas, olhos pretos, nariz regular, boca regular, beiços roxos, dentadura sã e
dentes iguais, orelhas pequenas, pescoço fino, peitos pequenos e caídos, altura
regular, seca de corpo, pés pequenos, dedos curtos com sinal de panos escuros
(micose) pelas pás, representa ter de idade 25 anos, tem de costume quando foge
mudar o nome, cuja escrava comprou à Sra. D. Francisca Maria do Espírito
Santo, moradora em Itaporanga. Quem a prender e a trouxer ao anunciante
receberá 30$000 pelo seu trabalho. Ass. Francisco José dos Santos Cardozo”. 125

123
Graf, Márcia Elisa de Campos. “O escravo no cotidiano através dos anúncios de
jornais paranaenses.” Anais do Congresso Brasileiro de Tropicologia, Recife,
Fundaj/Massangana, 1987; Brandão, Helena H.N. “Escravos em anúncios jornais
brasileiros no século XIX: discurso e ideologia.” Anais do Seminário do Grupo de
Estudos Lingüísticos do Estado de São Paulo/Gel, Taubaté/Campinas, 2004. p. 694-700;
Reis, Liana Maria. Escravos e abolicionismo na imprensa mineira (1850/1888).
Dissertação de Mestrado em História. UFMG, 1993; Renault, Delso. Rio antigo nos
anúncios de jornais :1808-1850. Rio de Janeiro, José Olympio, 1969.
124
Mullin, G.W. Flight and Rebellion. Slave resistance in Eighteenth-Century Virginia.
Oxford University Press, New York, 1972; Everett, S. The Slaves, Bison Books, New
York, 1978
125
Correio Sergipense, 26-9-1849, Ano XII, n.67, p.4
77

Alem de fornecer informações detalhadas sobre o físico e a procedência


étnica e/ou cor dos fugitivos, cuidavam também em salientar os defeitos físicos ou
vícios morais, assim como as habilidades profissionais e as circunstancias e objetos
carregados na ocasião da fuga. Eis outro exemplo:

“Na madrugada do dia 9 de junho de 1844, fugiu um escravo de nação Congo, de


nome Francisco, com os seguintes sinais: tem uma ferida ou carnosidade em um
dos olhos, faltam-lhe dentes na frente de ambos os queixos, principia a ter alguns
cabelos brancos na cabeça e barba. Fala um tanto apressado e mal o nosso
idioma e é muito pródigo em chorar. Este escravo o anunciante o comprou a José
Mauricio de Santana, morador na vila da Estância, tirando-o da cadeia no dia 8,
onde se achava penhorado pelo juízo dos feitos da Fazenda Pública Provincial,
por dívida que a mesma Fazenda devia o dito Maurício. Levou a seguinte roupa:
camisas de algodão da terra e americano, ceroulas do mesmo e traz calça e véstia
azuis e um chapéu de copa alta de carnaúba. Também levou um cobertor de
algodão novo. Quem o levar a seu senhor que reside na Capital de Sergipe, será
generosamente pago.” 126

Como se pode inferir, um levantamento sistemático destes anúncios permite


ao pesquisador interessado no estudo da população servil, reconstituir, minuciosamente
e com bastante regularidade, inúmeros traços e aspectos deste segmento que as outras
fontes – os censos, as cartas de alforria, os testamentos e inventários, as matrículas, as
relações nominais, etc – geralmente omitem ou são lacunosos. A saber: sexo, cor,
aparência e condição física, naturalidade, residência, estado civil, ocupação, preço,
proprietários anteriores. Posto que tais anúncios cobrem praticamente todo território
imperial, conclui-se que tal fonte poderá permitir um sofisticado tratamento
demográfico em escala nacional, que, com os recursos da informática, hão de trazer
informações cruciais e inéditas sobre a ainda mal conhecida “mancha negra” de nossa
história. Que tal começar pelos dez mil anúncios que Gilberto Freyre diz ter coletado e
que certamente estão arquivados na Fundação Joaquim Nabuco em Recife?

II. Perfil dos escravos fugidos de Sergipe

126
Correio Sergipense, 15-6-1844
78

Sergipe del Rei, a menor das províncias do Império, embora possuindo base
ecológica e estrutura sócio-econômica bastante semelhante à Bahia, revela, no que tange
à composição demográfica do elemento servil, marcantes peculiaridades. Não dispondo
de autonomia para importar mão-de-obra diretamente da África, era sobretudo através
de Salvador que os africanos aportavam na Província, sendo por conseguinte, já desde
os meados do século XVIII, diminuto aí o numero de cativos originários da África,
predominando por conseguinte os crioulos e mestiços. Numa amostra de 814 escravos
ocupados na lavoura de mandioca em cinco freguesias sergipanas, no ano de 1785,
encontramos 34% de africanos e 66% de nacionais.127 Na primeira metade do século
XIX os negros e pardos ingênuos, isto é, já nascidos livres, representavam 45,6% da
população de cor de Sergipe, reforçando nossa ilação de que certamente os africanos
natos nunca ultrapassaram 1/3 de escravaria desta Província nordestina.128
Em nossa amostra dos 144 escravos fugidos entre 1833-1864, ¼ são
nascidos em África, entre eles 5 Nagô, 5 Angola, 3 Congo, 1 Gêge, e quatro referidos
genericamente como “africano”. Comparativamente a composição étnica da amostra de
1785, notamos tendência semelhante à observada na importação de africanos pela
Bahia, onde o ciclo da Guiné é seguido pelos ciclos do Congo-Angola e do Golfo de
Benin.129 O pequeno numero de fujões africanos em Sergipe reflete a nosso ver antes
sua pequenez na massa escrava do que a maior conformidade ou inviabilidade destes
estrangeiros deixarem o cativeiro. Se de um lado encontramos, nestes anúncios negros
do Congo ainda “com fala um tanto atrapalhada, grossa e arremessada”, ou “ainda
pronunciando mal a língua nacional”, por outro lado há cativos como Pedro, 18 anos,
“nação Angola, bem cuidado que parece crioulo”130, ou o caso do fujão do Engenho
Araçá, em Laranjeiras, também angolano, que é apontado como sendo “bem ladino”. 131
Alguns destes negróides traziam estampado no corpo as marcas indeléveis de
suas etnias e/ou posição social na terra de origem: “Maria Rosa, nação Nagô, macia e
preguiçosa no falar, tem sinais Gêge na cara e sinais bordados no braço direito junto à

127
Mott, Luiz. “População e Economia: Aspecto do Problema da mão de obra escrava
em Sergipe”, Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, nº 28, 1979-1982,
p.19-32.
128
Mott, Luiz. “Pardos e Pretos em Sergipe: 1774-1851”, Revista do Instituto de
Estudos Brasileiros, USP, nº 18, 1976, p.7-37.
129
Verger, Pierre. O Fumo da Bahia e o tráfico dos escravos do Golfo de Benin. Centro
de Estudos Afro-Orientais, nº 6, 1966
130
Correio Sergipense, 12-5-1849
131
Correio Sergipense, 12-5-1849
79

mão”132; Romão, 35 anos, nação Congo, “tem sobre o peito, costas e braços os sinais de
sua terra, que são uns pequenos quadradinhos” 133. Alguns Nagôs são descritos como
possuindo marcas tribais Gêge.
Digno de nota são as alterações dentárias: quatro dos fujões possuíam dentes
limados (pontiagudos), sendo dois do Congo e curiosamente, dois já nascidos no Brasil,
a parda Isabel e o mestiço Joaquim , demonstrando o quão forte ainda na segunda
metade do século XIX era a influência estética ou ritual de certas culturas africanas,
assimilada e mantida inclusive pelos mestiços. Aliás, tais anúncios fornecem mais
elementos informativos sobre os africanismos persistentes na escravaria sergipana: alem
da língua, muitos cativos carregam consigo traços culturais do continente negro, como
três mulheres e um negro que levaram na fuga os cobiçados “panos da costa”, usados
como turbante, faixa ou mesmo mochila. 134 Um dos africanos , de nome Caciano, fugiu
com “uma carapuça na cabeça”135 quem sabe se não era o complemento do “abadá”, o
traje islâmico usado pelos Malê na vizinha Bahia? 136 O que pensar do cabra Agostinho,
28 anos, “bom cozinheiro, com uma orelha furada que botava brinco”?137 Esta argola
seria um enfeite típico de sua nação originária, ou uma vaidade feminil de influência
lusitana, tão comum hoje em dia inclusive entre cozinheiros gays?
Quanto a composição deste segmento populacional no tocante à cor, temos
68% de fugitivos pretos para 32% de pardos, – porcentagem idêntica à encontrada no
cômputo geral dos escravos de Sergipe constante no “Mapa Exato da população de
1834”.138 Assim foram identificados os escravos fujões: crioulos, mulatos, pardos,
cabras. Nestes anúncios os negros aparecem referidos com os seguintes qualificativos:
muito preto, bem preto, crioulo, crioulo retinto, fula (cor baça). Os mestiços, por seu
turno, assim foram chamados: pardo claro e escuro, mulato, mulato claro, cor de
formiga, alaranjado, cabra.139

132
Correio Sergipense, 4-10-1854
133
Correio Sergipense, 22-6-1842
134
Torres, H. A. Alguns aspectos da indumentária da crioula baiana. Cadernos. Pagu,
Jul/Dez. 2004, nº 23, p. 413-467
135
Correio Sergipense, 29-9-1862
136
Reis, J.J. Rebelião Escrava no Brasil. São Paulo, Editora Brasiliense, 1986
137
Correio Sergipense, 10-11-1847
138
Mott, op.cit., 1986, p.86
139
Mott, Luiz. “Brancos, Pardos, Pretos e Índios em Sergipe: 1825-1830”. Anais de
Historia” (Assis), ano VI, 1974, p.139-184
80

Dos 144 os escravos fugidos, 36 eram mulheres (25%) e 108 homens (75%).
Apresentando Sergipe nesta época em média uma superioridade de apenas 8,4% de
cativos do sexo masculino face ao feminino, (54,2% de homens para 45,8% de
mulheres), a vantagem de 50% dos fugitivos homens faz-nos conjecturar que para estes,
a condição servil devia ser mais cruel e insuportável, acrescentando o fato de que as
peripécias e riscos da fuga tornavam tal decisão mais dificultosa para o chamado “sexo-
frágil”. Tendência, alias, também observada alhures, pois nos Estados Unidos, entre
1736-1801, de um total de 1280 fugitivos anunciados nos jornais da Virgínia, 89% eram
homens, as mulheres representando tão somente 11%. 140
Embora predomine em Sergipe a fuga individual, por vezes os escravos
escapam em pequenos grupos: há três anúncios de dois escravos fugidos juntos, um
magote de três negros, três grupos de um homem e uma mulher e dois de duas mulheres.
Nestes casos, geralmente os desertores apresentavam certas similaridades sócio-
demográficas, como pertencerem á mesma etnia, ou serem ambos crioulos ou de idade
próxima. Ás vezes são parentes: Guilherme, 18 anos, “crioulo um tanto prozista e ar
alegre”, escapuliu levando sua irmã Marta, 13 anos, “bastante magra, fala fina e
viciosa” 141
; Mariana, 40 anos, africana “com princípios de cabelos brancos e fala
sofrível”, bateu em retirada com a filha Genoveva, 14 anos, a qual “principia a apontar
os bicos do peito e tem um ar um pouco tristonho.”142 Alguns abandonava a senzala,
parece, por razões sentimentais, como o cabra-acaboclado João, 30 anos, que carregou
consigo Agostinha, 18, “crioula fula com peitos ainda de pé”.143 Do africano Benedito,
diz o anuncio que o motivo da deserção foi “uma tal Perpétua, sua amásia.” 144
Se de um lado o escravismo não discriminava idade na exploração do
trabalho dos africanos e seus descendentes – aproveitando esses infelizes desde a
145
puerícia até provecta velhice , a fuga, por seu turno, imitou-lhe o proceder: o desejo
da liberdade perpassa todas as idades. Encontramos na terra sergipana negrinhos que
desde os 13 anos caíram o mato, quer isoladamente, quer junto de outros, 21% dos
fugitivos tinham 13 a 19 anos. É contudo na flor da idade, dos 20 aos 29 anos, que mais

140
Mullin, op.cit., 1972, p.40
141
Correio Sergipense, 12-3-1842
142
Correio Sergipense, 18-10-1854
143
Correio Sergipense, 10-1-1855
144
Correio Sergipense, 21-10-1854
145
Mott, Maria Lúcia. “A criança escrava na literatura de viagens”. Cadernos de
Pesquisa da Fundação Carlos Chagas, São Paulo, n.31, dezembro 1979, p.57-68
81

o desejo da liberdade tentava a escravaria. 61% dos fujões tinham entre 20 e 39 anos.
Como a esperança de vida era bastante reduzida nesta população de trabalhadores
forçados, a velhice com seus achaques e doenças devia inibir cedo as esperanças da
liberdade através da fuga, quem sabe, deslocando a partir dos 40 a expectativa das
pretas e pretos velhos para através da alforria, comprada ou ganha, conseguirem a tão
desejada libertação do cativeiro: apenas 17% desses evadidos ostentava idade superior a
40 anos. O mais idoso fujão desta lista foi o negro Gregório, “70 anos pouco mais ou
menos, sem dentes, tem por costume andar bulindo com os queixos como quem masca
fumo.”146 Devia ser ainda economicamente ativo, pois seu senhor prometeu ”a quem o
pegar e trouxer no seu sítio Bomfim, boa recompensa.”
Possuindo Sergipe vida urbana extremamente simples e diminuta, poucos
eram os escravos dedicados a misteres citadinos, como se observa nos anúncios de
jornal das maiores cidades do Império. Reflexo do ruralismo dominante, é a referência a
diversos escravos fugidos de engenhos e sítios, alguns referidos como trabalhadores do
eito e em menor numero, em ocupações domesticas: 23 escravos fugiram de engenhos,
5 de sítios. Aos demais não se identifica onde viviam, se na roça ou nas vilas.
É de São Cristóvão, a capital de Sergipe até 1855, e das vilas circunvizinhas
da Cotinguiba, donde há mais anúncios de negros fujões: 25 de São Cristóvão, 16 do
Aracaju, 13 das Laranjeiras, e em menor número de Santo Amaro, Maroim, Socorro,
seguidas das localidades situadas no sertão ou no sul da Província: 13 fujões e fujonas
de Estância, 5 de Lagarto, Itabaiana, Simões Dias, Itabaianinha.
Não há referência a nenhum escravo de ganho ou de aluguel, aguadeiro ou
de arruar: dentre os fujões com especialização profissional, o mais comum eram os
sapateiros, que aparecem em 11 anúncios, seguidos de 4 carpinteiros, as demais
profissões são citadas apenas uma vez: alfaiate, sapateiro, carreiro, cavaleiro, mestre de
açúcar, pedreiro, cozinheiro, lacaio, charuteiro, caldeireiro, canoeiro, pintor, pedreiro.
Apenas 16% destes escravos são identificados como possuído tais habilidades, sendo
digno de destaque o fato que nove destes revelavam mais de uma especialização
profissional: há três sapateiros que também eram: um cozinheiro, outro mestre de açúcar
e o ultimo charuteiro; um mestre de açúcar era também pedreiro; um caldeireiro exercia
igualmente o oficio de carpinteiro; estoutro era cozinheiro e lacaio. A mulata Luiza, 40

146
Correio Sergipense, 7-5-1864
82

anos, sabia “cozer, bordar, tecer, lavar, engomar e é cozinheira” 147; Joaquim, 25 anos,
mestiço “é oficial de alfaiate, muito curioso a outros ofícios, bem como ao de pedreiro
e carpinteiro.”148 Mais habilidoso de todos era o crioulo Firmino, que fugido do Rio de
Janeiro, sua senhora supunha estar escondido em Sergipe: “é perfeito criado e copeiro,
entende de cozinha, lava, engoma, coze e anda bem a cavalo” – um misto de mucama e
amazonas!149 Alguns destes profissionais revelavam mérito no exercício da arte, sendo
apontados como “bom oficial”, “perfeito”.
Também dignas de ressalva são algumas habilidades pessoais da escravaria
nesta pequena província nordestina; dentre os evadidos há três escravos alfabetizados: o
cabra Carlos, 25, “escreve alguma coisa”150 ; o já citado mestiço Joaquim, 25, “sabe ler
e escrever” e finalmente Claudino, 28 anos, crioulo “apesar de pegar na pronuncia da
letra ‘R’, é muito retórico, sabe ler e escrever”. 151 Em Sergipe, pelo Decreto nº 13 de 20
de março de 1838, proibiam-se freqüentar as Escolas Públicas “os africanos quer livres,
quer libertos”, não obstante, já em 1850, de um total de 1980 alunos matriculados nas
50 escolas desta província, 31 eram da cor negra, 152 havendo desde 1848 uma parda,
filha de libertos, entre as candidatas ao cargo de professora de Primeira Letras de
153
meninas na vila do Rosário do Catete. Com toda certeza aqueles três fujões
alfabetizados aprenderam os segredos da leitura e escrita nas casas de seus senhores
posto não termos notícia de escravos sentados nos bancos escolares.
Outra habilidade de alguns dos escravos escapulidos tinha a ver com o lazer:
o crioulo Francisco, de Estância, é descrito como “muito retórico e contador de
histórias, toca sofrivelmente guitarra e alguma coisa viola, e canta suas cantatas”; 154

Luiz, “cor formiga, 15 anos, muito ladino, alegre e contador de história” 155: no caso
deste, apontam-lhe outro detalhe. “gosta de batuques”, subentendendo-se por este termo,
tanto os rituais religiosos realizados ao som de atabaques, os “xangôs”, quanto
divertimentos profanos igualmente animados ao som dos tambores.

147
Correio Sergipense, 8-7-1854
148
Correio Sergipense, 25-10-1862
149
Correio Sergipense, 30-5-1860
150
Correio Sergipense, 31-5-1854
151
Correio Sergipense, 12-4-1854
“Retórico: Que tem estilo empolado, que fala muito, mas superficialmente.”
152
Nunes, Maria Thetis. História da Educação em Sergipe, Paz e Terra, São Paulo,
1984, p.285
153
Mott, op.cit., 1976, p. 21
154
Correio Sergipense, 18-1-1854
155
Correio Sergipense, 18-10-1854
83

Através de alguns destes anúncios podemos detectar certos indícios que


parecem comprovar a afirmação de D. Marcos Antonio de Souza, ex-vigário da
freguesia sergipana da Divina Pastora e São Gonçalo do Pé do Banco , de que nesta
província, os escravos eram melhor alimentados e tratados com mais humanidade do
que os da vizinha Bahia156: muitos negros destes anúncios são referidos como
“grossos”, i.e., gordos, outros são “bem aparecidos”, inclusive africanos, como o
angolano Pedro, “bem cuidado que parece crioulo”. Algumas negras destacam-se por
serem “bonitas, vistosas, limpas e bem cuidadas”, como a crioula fula Eugênia “de
corpo proporcionado, traz os cabelos altos por diante”157 ou a parda Isabel, 40, “cabelo
pouco encarapinhado e alguns brancos, enseba-os e os reparte em frente”. 158
Também os escravos alimentavam certas vaidades: Brás, 30, costuma
amarrar um lenço na cabeça; Romão, escravo do Juiz de Direito de Laranjeiras, nação
Congo, além dos dentes limados tinha “suíças curva chegadas aos cantos da boca”. 159

Benedito, “crioulo, 24 anos, alto, cheio do corpo, com principio de barba, cabelo
cortado e não muito carapinhado, e consta também que fizera topete, pernas finas, bem
parecido...”160 Neste particular, nossa amostra contradiz a opinião de Gilberto Freyre
quando defende terem predominado no Brasil os negros eugênicos do tipo longilíneo:
em Sergipe, apenas 20% dos fujões de ambos os sexos são referidos como altos, os
restantes, apontados como “baixos” ou “de estatura regular”.
A maior parte dos anúncios revela o lado feito e desumano do escravismo, a
tal ponto que Joaquim Nabuco, no antológico O Abolicionismo assim se expressou:
“Não há documento antigo, preservado nos papiros egípcios ou em caracteres góticos,
nos pergaminhos da Idade Média, em que se revela uma ordem social mais afastada da
civilização moderna.”161 No caso de Sergipe, há provas incontestáveis de que também a
crueldade extrema aí grassou desvairada: alhures divulgamos o abominável episódio de
um senhor residente dos lados do São Francisco, que nos idos de 1678 matou de açoites
um seu moleque por ter cometido o pecado de sodomia162. Suspeitamos, contudo, que as
dificuldades de importação de africanos e o numero reduzido de escravos por

156
Souza, op.cit., 1944, p.117
157
Correio Sergipense, 10-3-1848
158
Correio Sergipense, 10-3-1854
159
Correio Sergipense, 22-6-1842
“Suíça: barba que se deixa crescer nos lados da face.”
160
Correio Sergipense, 21-10-1840
161
Apud Freyre, op.cit., 1979, p.XI
162
Mott, op.cit., 1989, p.29
84

propriedade, tenham forçado os senhores sergipanos a tratar seus cativos com mais
cuidado do que nos lugares onde eram mais abundantes e facilmente podiam ser
substituídos. Reforça tal ilação o fato de que apenas quatro destes fugitivos ostentavam
sinais de chicote e castigo: Felix, crioulo bem preto, “tem nas costas uma malha
proveniente de surra e levou consigo uma boa escrava, Joaquina, mestiça clara, com um
sinal de costura na garganta de golpe de ferro”.163 Destes, quem mais apanhou e ficou
marcado foi o já citado Luiz, “cor de formiga”, que nos seus 15 anos de vida, já
ostentava indelével, as marcas de sua revolta contra as tiranias senhoriais: “tem sinais de
chicote pela barriga, costas e pescoço, parecendo-se aquelas com cicatrizes de fogo.”
Não obstante experiências tão traumatizantes, era descrito como “muito ladino, alegre e
contador de história”. O excesso do castigo parece ter sido o móvel da fuga do mulato
Agostinho, do Engenho São José, vila do Rosário: “foi há pouco surrado.”164
Muitos escravos ostentavam feias marcas, cicatrizes, aleijões e achaques
provocados certamente por acidentes de trabalho: dedos ralados na roda de mandioca,
coices de animais, falta de dedos nos pés devido a golpes de machado, queimaduras
diversas provavelmente adquiridas em acidentes nos tachos de açúcar, alambiques ou
em fogões de lenha, caroços, cicatrizes e arranhões por todo corpo, resultado de
acidentes na faina dentro das matas, brejos e lavouras.
Desde os tempos dos padres Antonio Vieira e Jorge Benci, jesuítas da Bahia,
que alguns colonos mais sensíveis comparavam a labuta e o corpo dos escravos aos
sofrimentos da paixão do Cristo: os anúncios do Correio Sergipense revelam mais de
uma dezena de escravos doentes e achacados, constituindo tal fonte documental
importante manancial para o estudo da história sanitária destes segmento demográfico.
Comecemos pelos pés dos escravos: como o uso de sapato era reservados aos cidadãos
livres, freqüentemente os anúncios referem-se aos pés dos cativos como “grossos,
rachados, malfeitos, com bicho, fora de articulação, inchados, com cravos dificultando o
andar”. Alguns são mancos ou faltos de alguns dedos. Os joelhos são descritos como
grossos ou inchados, as pernas zambras, isto é, tortas e fracas, como um deles, “quando
caminha cai a banda para os lados carregando para o esquerdo.” Certos tem a virilha
quebrada e algumas negras só podem “caminhar muito descansado”, certamente por
causa de reumatismo ou problemas ortopédicos. É contudo na epiderme que mais se
notavam os efeitos de várias doenças: muitos mostravam a cara, pescoço e pá cobertos

163
Correio Sergipense, 12-3-1845
164
Correio Sergipense, 17-7-1860
85

de “pano”, uma dermatose ainda muito comum no Nordeste (pitiríase versicolor). Outra
tanto tinha sinais de bexiga (varíola) por todo o negro corpo, referida como “cicatrizes
de bichas”.
As mãos calejadas destes trabalhadores e trabalhadoras forçados ostentavam
marcas doentias: dedos aleijados, ralados, rombudos, faltos de unhas causados por
panariz, unhas podres e comidas por “afomentação” (sic), mãos sarnentas, dedos
bichentos. Vários são os que tem sinais na cabeça: cicatrizes, queimaduras, falta de
cabelo devido a feridas ou cutiladas, orelhas cortadas, carnosidade no queixo ou
bochecha provenientes de dor de dente ou feridas. Os dentes foram referidos em 1/3 dos
anúncios, elemento, portanto, importante na identificação dos fugitivos: 25 escravos
tinham dentes ou com falta total ou parcial dos mesmos; 16 cativos mostravam “dentes
bons” ou dentição “sem falha”, alguns com “dentes alvos”. Os olhos destes escravos
espelham facetas subjetivas das vidas destes infelizes: são “fundos, amortecidos,
vagarosos”; às vezes referidos como esfumaçados ou vermelhados. Alguns
“defeituosos, vesgos,” outros com “carnosidades e feridas oculares.”
Outro aspecto constante nos anúncios que revela faceta íntima dos cativos é
a sua fala. Ao tratar dos africanos antecipamos que alguns dos fujões “mal
pronunciavam” a língua de Camões, enquanto outros falavam “bem explicado” ou
“desembaraçados”. Vários são os gagos, como o crioulo do Padre Ferreira Castro do
Engenho Serraria165 ou o Nagô Antônio, “bastante ladino e bem apessoado, que quando
tem raiva fala gaguejando.” 166
Gagueiras certamente causadas pela tensão e ansiedade
causados pelo cativeiro.
Diversos são os desertores apontados por seus proprietários como possuindo
incorreções de conduta ou vícios morais: o mulato Pedro, “de cor bem clara que parece
até branco, cabelos corridos, tem fala fina e é muito mentiroso e ladrão”. 167 Antonio
Congo, 38 anos, “é tomador de tabaco e cachaça”168 e o crioulo Pedro, 28, “bebe muita
aguardente e toma tabaco e quando está um pouco bêbado, fica muito gracioso.” 169 Há
os que são apontados como “preguiçosos, ladrões, sonsos” e vários demonstram no
semblante ou na conduta, a infelicidade da condição servil: o congo Francisco, 40, do

165
Correio Sergipense, 24-7-1853
166
Correio Sergipense, 14-9-1842
167
Correio Sergipense, 3-11-1849
168
Correio Sergipense, 1-7-1840
169
Correio Sergipense, 12-6-1861
86

Engenho Beija Flor “é muito pródigo em chorar”170; a moleca Genoveva, apesar de seus
14 anos, “tem um ar um pouco tristonho” 171; o mulato Serafim, 20 anos, “é um tanto
carrancudo”172, enquanto o pardo Vicente, apesar de bem parecido, “tem olhar umas
vezes carregado e outras, jovial”173
Estaríamos faltando á objetividade se omitíssemos certas evidências de que
os escravos sergipanos pareciam estar – alguns – conformados ou mesmo adaptados à
triste condição em que viviam: o supracitado Vicente entremeava sua carranquice com
jovialidade; o crioulo Paulo, asmático, é apontado por seu proprietário como sendo
“muito cortês”174; o moleque Sanção, 18, salientou-se por ser “um tanto gaiato no falar”.
175
Vários são referidos como “alegres”. Contudo, o fato de terem fugido obriga-nos a
relativizar a pseudoconformidade destes ”bons escravos” e interpretá-la, quiçá, como
camuflagem longamente arquitetada a fim de despistar as atenções senhoriais e facilitar-
lhes o caminho da estrada.
O próprio abandono da propriedade suscita uma série de indagações ao
pesquisador, algumas ainda sem resposta. Por exemplo: qual a percentagem de escravos
fugidos que eram anunciados nos jornais de Sergipe? Encontramos entre 1840-1864 em
média apenas 5 anúncios por ano neste que foi o principal periódico sergipano, taxa que
consideramos muito baixa se levarmos em conta que neste período a Província deveria
contar por volta de 40 mil escravos e 150 mil habitantes livres. 176
Sempre tentando vislumbrar o significado numérico dos escravos anunciados
face ao total dos fugitivos, contabilizamos o tempo que os senhores levavam para dar
publicidade do desaparecimento de seus cativos: de um total de 111 informações
disponíveis, apenas 5 deram a notícia do nome e característica dos fujões no dia
seguinte, 21 dos senhores dentro de uma semana, 60 no prazo de um mês, 23 entre dois
meses e um ano. Provavelmente a maior parte dos senhores desprezavam tal recurso,
apesar de custar poucos réis: conversas e promessas de viva voz feitas aos Capitães do
Mato, Delegados de Polícia, Milicianos e com a vizinhança, talvez produzissem
melhores resultados e mais certas capturas.

170
Correio Sergipense, 15-6-1844
171
Correio Sergipense, 29-12-1847
172
Correio Sergipense, 2-10-1855
173
Correio Sergipense, 15-1-1859
174
Correio Sergipense, 9-8-1848
175
Correio Sergipense,14-3-1849
176
Mott, op.cit., 1982, p. 21
87

Notável e sintomático é que uma vintena destes proprietários anunciantes


possuía patente militar: Major, Capitão, Coronel, Comandante, estando entre tais
senhores também quatro sacerdotes e um Juiz de Direito. Um dos escravos fugidos
pertencera anteriormente ao Barão de Itaporanga, importante personagem na historia
sergipana. O que vale dizer: tais proprietários deviam possuir importantes e extensas
redes sociais que passavam a ser acionadas na captura dos fujões.
Há senhores que não perdiam a esperança no poder recuperativo dos
anúncios, como o herdeiro do casal Luiz Pereira Ribeiro, de Estância, cujo escravo
Francisco, fugira “há 9 anos mais ou menos”. 177 Há escravista de outras Províncias que
anunciavam no Correio Sergipense, não só das limítrofes Bahia (9 anúncios) e
Alagoas, mas da Paraíba e do Rio de Janeiro: com o incremento do tráfico inter-
provincial, após a proibição da importação de escravos d’África, muitos foram os
cativos que retornavam para suas regiões de origem.
Datam de julho e agosto de 1833 os dois mais antigos anúncios de fugas de
escravo que até agora conseguimos localizar em Sergipe, divulgados no primeiro jornal
provincial, em ambos, coincidentemente, são mencionados sacerdotes como
proprietários dos cativos: “Fugiu ao Padre Francisco Antonio Ferreira Castro, um
escravo de nome Luiz, crioulo bem retinto, gago, alto, grosso do corpo, nariz afilado e
pés malfeitos: é oficial de sapateiro, mestre de açúcar e tocador de viola. Quem o
conduzir a seu Senhor no Engenho Serraria, será generosamente gratificado.” 178 O
outro escravo fugiu à véspera da festa da Assunção de Nossa Senhora: “No dia 14 de
agosto de 1833 fugiu um escravo do Capitão Luiz de Mello de Faria, de nome
Quintiliano, crioulo, que foi do Padre Mestre Raimundo de Campos da Silveira, tem um
sinal no nariz e outro no beiço de baixo. Quem o pegar e levá-lo a casa de José Vidal
de Mello e Oliva, nesta Vila, será bem recompensado.” 179
O maior número de anúncios de escravos fugidos concentraram-se nos
seguintes anos: 1849 (19), 1854 (16) e 1853 (14): escapam-nos as razões destes ápices,
assim como são tênues as explicações para a variação do numero de fugas ao longo dos
diferentes meses do ano: notamos todavia pequeno aumento nos meses de plantio da
cana em comparação com o período da safra. Tais são os motivos destas escapulidas

177
Correio Sergipense, 18-1-1854
178
Recopilador Sergipense, 24-7-1833, n.128, p.4
179
Recopilador Sergipense, 25-8-1833, n.136, p.4
88

apontadas no Correio Sergipense: maltratos, desejo de voltar para um antigo senhor ou


para o local originário da parentela, razões “do coração”, sonho de liberdade.
Vários são os escravos que escolhem dias especiais para a concretização
deste desígnio tão cobiçado: 1º do ano, quinta-feira santa, ou então, a calada da noite ou
madrugada. Aliás, também foi nos dias festivos que muitas das revoltas de escravo se
concretizaram, tanto na Bahia quanto em Sergipe, intentando aproveitar os oprimidos da
distração dos opressores.180
Isoladamente ou em grupos de até três pessoas, lá vão os desertores levando
consigo uma série de objetos, no mais das vezes, roupas, que são minuciosamente
indicadas pelos proprietários com vistas a auxiliar os caçadores de fujões. Alguns saem
apenas com a roupa do corpo, como o crioulo Marcos, 20 anos, “que levou apenas
camisa e ceroula de algodão da terra”,181 ou como o pardo Vicente, 20, “que deve andar
com pouca roupa visto não ter podido carregar a que tinha guardada”.182
A certos desertores faltavam partes essenciais do vestuário, p.ex. as calças,
calções ou ceroulas, levando-nos a concluir que tangas ou faixas substituíam aquelas,
cobrindo as “partes pudendas” com as fraldas das camisas. Outros carregavam muita
roupa, quiçá surrupiada da casa grande: várias camisas, calças, ceroulas, jaquetas,
chapéu, panos. Embora predominem roupas confeccionadas com tecidos grosseiro –
“algodão da terra” ou “da fábrica de Valença” (BA), estopa, constam também
indumentárias de baeta, morim, algodão americano, azulão, chita, zuarte, brim,
riscadinho, lã e cassa. Vários trazem jaquetas e chapéus, variando o material destes
entre palha, baeta, de pelo preto, de lebre ou de couro. Dois tinham bonés, sendo um de
“marinheiro inglês”. As cores predominantes nas roupas destes escravos eram branco,
preto, verde e riscado.
As negras, por seu turno, vestiam-se mais colorido: suas saias eram de “chita
cor de rosa com flores vermelhas, de zuarte azul ou com ramagens, de riscadinho, de
chita amarela francesa, de chitão”. Por cima da saia – que devia vir quase até os pés,
rodadas tal qual ainda hoje vestem as filhas de santo nos terreiros de Xangô de Sergipe
– traziam “camisas de cassa em quadro, de brim, de riscadinho da Bahia, de madrasto”:
algumas dessas peças são descritas como já desbotadas ou remendadas. Várias são as

180
Mott, Luiz. "Violência e repressão em Sergipe: Notícia de revoltas de escravos,
século XIX", Mensário do Arquivo Nacional, ano 11, Nº5, 1980, p. 3-22, in Mott,
op.cit., 1989, p.189-204
181
Correio Sergipense, 22-3-1854
182
Correio Sergipense, 15-1-1859
89

negras que carregaram os cobiçados “panos da costa”: branco, azul. Nem todos eram
tecidos de fato na Costa d’ África: um deles, listrado de vermelho, era “pano da costa
inglês”. Há mesmo uma fujona que trazia um xale francês, provavelmente surrupiado de
sua sinhá-dona.
Alguns fugiam calçados, inclusive com botas, e uma dezena levou uma
trouxa “nas costas, ou mesmo um surrão de couro:“André, crioulo, 20 anos,
sobrancelhas fechadas, levou vestido uma calça preta e uma jaqueta nova de chita preta
e um chapéu de palha, levando às costas um surrão com mais roupa e uma baeta
encarnada”183; Luiz, cabra de 30 anos, ao desertar de sua fazenda em 1854, carregava
“um machado no ombro com uma trouxa”184 fazendo figura igual ao clichê que em
muitos jornais do Brasil e exterior costumavam estampar no cabeçalho dos anúncios dos
fujões. Rede de dormir é outro pertence carregado por alguns cativos de Sergipe,
demonstrando que certos desses descendentes dos silvícolas africanos não dispensavam
a comodidade de dormir balangando-se: o cabra Matias alem da rede não esqueceu do
lençol185 e o congo Francisco, carregou “cobertor de algodão novo.”Apenas uma
escrava é acusada de ter roubado dinheiro no momento da fuga.
Diversificadas são as estratégias dos fugitivos para evitarem ser
reconhecidos e recambiados às suas senzalas de origem. Muitos mudam de nome: o
africano Messias apresentava-se como Joaquim186; Luiz cabra, “consta que chama-se
ora João Maurício, ora Luiz Ramos”.187 Alguns inventam também novo nome para seu
senhorio: em 1848, o angola Afonso “costuma dizer que se chama João e o seu senhor
Paxeco.”188 Tais anúncios servem também como fonte complementar para o estudo da
onomástica escrava: apenas 5 destes 144 cativos não tiveram seus nomes declinados
pelos proprietários, revelando que até mesmo os africanos boçais já eram identificados
com nomes cristãos.
Ás vezes o disfarce é sutil: o cabra Brás amarrava um lenço na cabeça para
ocultar a falta de uma orelha189; um outro se fazia passar por “apatetado”. Diversos
apresentam-se como forros, posto que já desde a primeira metade do século XIX, 50,5%

183
Correio Sergipense, 2-9-1848
184
Correio Sergipense, 4-10-1854
185
Correio Sergipense, 4-5-1844
186
Correio Sergipense, 9-4-1842
187
Correio Sergipense, 2-9-1848
188
Correio Sergipense, 30-9-1848
189
Correio Sergipense, 29-1-1853
90

dos habitantes de Sergipe era constituída de pardos e pretos livres. 190 É o caso do
crioulo Adriano, 25 anos: “dizem que vende na feira e que tem trabalhado no serviço do
canal Pomonga, onde se diz forro”191; José Crioulo, 30, “bastante conversador, anda
com papéis falsos de alforria”192, quem sabe, conseguidos graças à colaboração de
algum escravo alfabetizado.
Importante regularidade aparece nestes anúncios: parte significativa dos
escravos foge a fim de retornar a seu antigo senhorio, ou então, dirige-se ocultamente
para a propriedade de um senhor por quem desejam ser comprados, seja para escapar de
maus tratados, seja para unir-se a algum ente querido. Às vezes havia participação
dolosa de um pretendente comprador que estimulava a fuga e acobertava o cativo até
realizar seu desiderato, ambas contravenções puníveis criminalmente.
Certos senhores, talvez sabendo desses antecedentes, no próprio anuncio
manifestam sua disposição de desfazer-se do fugitivo. “O anunciante não duvida em
vender o mencionado escravo à pessoa que o pretender”.193 Se verdadeiramente cumpria
a promessa, não há como saber. Dona Maria Francisca do Amparo, de São Cristóvão,
dizia em 1847: “Aparecendo quem queira comprar o cabra fugido, se venderá”.194 Outra
escravista, DªÁgueda Maria do Espírito Santo tendo perdido seu mestiço Eufrásio,
assim publicou: “Consta que o dito escravo fora desencaminhado por pessoa mal
intencionada, que ocultamente o pretende vender para o Rio Grande.” 195 O proprietário
do Engenho Mato Grosso não titubeia em apontar os nomes dos suspeitos criminosos:
“Consta que meus escravos Josão e Agostinha foram seduzidos pela senhora Dª Rosa
Luiz d’ Andrade Maciel, a quem o anunciante os comprou”.196 Outra acusação de
sedução refere-se a um cativo da vizinha província das Alagoas, suposto estar escondido
em Sergipe: trata-se do crioulo Hirênio, que além das “cicatrizes provenientes de
chicote, levou consigo um cavalo russo capado e passeiro, constando ao anunciante que
fora o dito escravo seduzido pelo alemão F.O.F. Rud, de quem trouxera uma guia para

190
Mott, Luiz. "Economia e Sociedade: O problema da mão de obra escrava em Sergipe,
século XIX", Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, nº 28, 1979-1981,
p. 19-32, in Mott, op.cit., 1986, p.139-150
191
Correio Sergipense, 18-10-1854
192
Correio Sergipense, 3-11-1860
193
Correio Sergipense, 11-4-1842
194
Correio Sergipense, 10-11-1847
195
Correio Sergipense, 29-3-1854
196
Correio Sergipense, 10-11-1855
91

seu livre transporte à cidade do Maroim. O anunciante está colhendo as precisas provas
para proceder na forma da lei.”197
Como este último, são muitos os proprietários que ameaçam “com todo
rigor da lei” processar os culpados, seja “o malicioso desencaminhador”, seja os que
“ocultam dolosamente” o escravo desaparecido. A estes, os anúncios chamam de
“padrinhos”: Francisco, crioulo de Estância, era protegido por pessoas da vila de Campo
do Brito e “quando é procurado, retira-se ou esconde-se, apadrinhado que está por
ali”.198 Outros proprietários previnem que os “padrinhos” além do processo contra suas
pessoas, terão que saldar os gastos decorrentes da ausência do fujão. O dono do
Engenho Belém dizia: “consta estar meu crioulo Lúcio escondido em poder do Senhor
que o vendeu ao anunciante, o qual protesta haver do mesmo os dias de serviços que
decorrem até sua entrega, bem como todo e qualquer prejuízo que possa ocorrer”. 199 É o
Padre João Antonio Figueiredo Matos, da freguesia de Simão Dias, que esclarece em
seu anúncio o valor que pretendia cobrar pela diária de seu escravo ausente: 1$600
reis.200 Valor, diga-se de passagem, um tanto exagerado, pois na capital da Província,
pagava-se nesta mesma época, “a serventes reforçados, forros ou cativos o jornal diário
de $880 reis”.201
Certas vezes os senhores não tinham certeza se o desaparecimento de suas
“peças” se devia a furto ou fuga: como o Sr. José Antonio Leite, da vila de Capela, que
assim anunciou: “No dia 27 de junho, pelas três horas da madrugada, dois sujeitos a
cavalo furtaram uma sua escrava, Luiza, nação crioula, prenha de 6 a 7 meses, de idade
de 15 a 16 anos, bem parecida, levando consigo sua roupa azul e limpa, com 50$000 em
dinheiro e 16 a 20$000 em moedas de prata que furtou do anunciante, por ser induzida
talvez pelos ditos ladrões, pois que não era de seu costume.” 202 Também furtado, em
1842, foi o moleque de nação Nagô, Manoel, de 16 a 18 anos, que levou consigo um
boné inglês, um pano da costa: “tem um sinal bem fácil de conhecê-lo, uma grande
cicatriz que perece cutilada na cabeça do lado esquerdo, e tem os beiços encarnados.

197
Correio Sergipense, 9-3-1861
198
Correio Sergipense, 10-1-1854
199
Correio Sergipense, 26-1-1845
200
Correio Sergipense, 2-12-1858
201
Correio Sergipense, 12-3-1859
202
Correio Sergipense, 20-8-1864
92

Este moleque é muito ladino, e tem estado alguns meses na venda defronte do trapiche
Coqueiro, quem o pegar ou der notícia certa, receberá 40$000.”203
No Arquivo Público do Estado de Sergipe há algumas denuncias de ciganos
envolvidos com o roubo e comércio doloso de escravos, assim como pelo “desastroso
crime de reduzir á escravidão pessoa livre” 204
Numerosos anunciantes prometiam recompensar tanto a quem desse notícia
certa sobre o paradeiro dos desaparecidos, quanto aos que os trouxessem às suas
presenças. Os termos mais usados são: “pegar, prender, agarrar” – e devem ser
consideradas expressões brandas, se comparadas com a crueldade como deviam ser
tratados os fujões quando capturados, após dias e dias de trabalho perdido, gastos com
anúncio e recompensas, etc.
Vários proprietários indicam variadas localidades alternativas onde poderiam
ser recebidos os trânsfugas: o Sr. José Fernandes de Oliveira Guimarães, residente no
Aracaju, dá os nomes de seus agentes em Maroim e Laranjeiras; quem prendesse o
mulato Joaquim fugido da Bahia, podia devolvê-lo e receber a recompensa em
Laranjeiras, Lagarto, Itabaiana, Aracaju ou no Lagarto. 205
Em muitas localidades, indicava-se o nome do Vigário local como a pessoa
encarregada de receber os capturados, mais uma prova do aval e comprometimento do
clero católico com a hedionda escravidão. Alguns senhores prometiam “recompensas”
em troca da devolução; outros, “recompensas generosas”; vários especificavam o
quando estariam dispostos a beneficiar quem devolvesse seus negros ao cativeiro:
encontramos fazendeiros oferecendo 20$000 de prêmio, independentemente da idade e
sexo dos desaparecidos, sendo porém mais comum a oferta de 50$000, quantia que
pereceu-nos muito reduzida, posto equivaler ao salário de 12 a 30 dias de trabalho,
apenas de 5 a 10% do valor médio dos cativos.
Quanto mais tempo desaparecido, mais os senhores mostram-se dispostos a
aumentar o prêmio, chegando a ser oferecidos 100$000 por um negro corcunda, sumido
há três anos; 200$000 por um mulato sapateiro escapulido há 5 anos e 400$000 em
troca de um “negro fula, bom serviçal, fugido do Rio de Janeiro”. Da mesma forma,
como já previa o regimento dos Capitães do Mato desde o século XVIII, o valor da
recompensa variava também em função da distância onde se efetuava a captura,

203
Correio Sergipense, 9-4-1842
204
Arquivo Público do Estado de Sergipe, Pacotilha 125, 23-11-1824
205
Correio Sergipense, 24-7-1861
93

contabilizando-se os gastos com o transporte e alimentação. O proprietário do escravo


Agostinho, do Engenho São José, no Rosário do Catete, oferecia por seu fujão 100$000
nesta Província ou 200$000 em outra qualquer do Império. 206 Nesta época, uma escrava
“própria para serviço de casa” ou um crioulo de 16 anos, “ótimo carreiro”, valiam
207
700$000, portanto, as recompensas podiam oscilar de 3,5% até mais da metade do
valor do escravo desaparecido.
Antes de finalizar, extrapolando a fonte documental que até agora tem nos
servido de base, os anúncios de jornal, vale referir um outro aspecto das fugas, onde
vemos as estratégias dos senhores na tentativa de recuperar seu capital perdido. No
Arquivo Público do Estado de Sergipe localizamos alguns requerimentos de
proprietários, ou seus prepostos, empenhados nesta captura:
“Diz o Capitão Mor Simeão Telles de Menezes que tendo-lhe fugido dois
escravos, agora sabe estarem no Recôncavo da Bahia, trabalhando pelos seus ofícios, e
como quer mandar em busca deles, porque não pode conseguir sem que os portadores
levarem passaporte, necessita que se mande passar passaporte para três escravos do
suplicante poderem seguir na busca, sendo dois pardos e um crioulo.” 208 Detalhe
interessante: escravos de confiança sendo utilizados como “capitães do mato” pelo
próprio senhor, sem temer que o apelo da liberdade fosse mais forte e tentasse a seus
enviados cativos a igualmente escaparem da mesma servidão.
Nesta outra ocorrência, são dois indivíduos sem sobrenome, provavelmente
capitães do mato profissionais ou ad hoc que solicitam autorização para ir á caça dos
fujões:
“Dizem Manoel Henrique e João Pedro que se lhes faz preciso seguirem
desta província de Sergipe ao Recôncavo da Bahia, em busca de dois escravos
fugitivos, João e Teresa, pertencentes ao Tenente Coronel José Róis Dantas, por
mandado e ordem de quem os suplicantes seguem o seu destino.” 209
Esta outra notícia revela o lado oposto: um senhor da Bahia oficia ao
Presidente de Sergipe solicitando seus préstimos a fim de recuperar um escravo que
constava estar vivendo nesta Província:

206
Correio Sergipense, 17-7-1860
207
Correio Sergipense, 1-10-1853
208
Arquivo Público do Estado de Sergipe, Pacotilha 588, 3-4-1826
209
Arquivo Público do Estado de Sergipe, Pacotilha 587, 1825
94

“Diz José Ferreira da Silva, que fugindo-lhe de Santana do Catu, Bahia, um


escravo de nome Eusébio, cabra ainda moço, tinha sido informado que o mesmo
passava-se por liberto em Vila Nova, Sergipe, com o nome de Francisco, servindo a um
sargento da 1ª Linha, Alexandre de Tal.” 210 Se recuperou seu Eusébio, quase
impossível saber.
O último documento, de 1825, é particularmente ímpar, pois envolve a
tentativa de prisão de um comboio de negros forros e escravos de passagem pelo
território de Sergipe. Em ofício enviado ao Presidente da Província, “diz o Capitão Mor
de Lagarto, Joaquim Martins Fontes, ter dado notícia para todos os capitães mores
vizinhos, também da Bahia, para prenderem ao preto denominado Major Jerônimo, que
vai fugindo com o séqüito seguinte: uma carga de arcas encouradas de sola curtida, uma
carga de mala de couro cru; uma parda sua concubina, Francisca, montada num cavalo;
uma escrava Josefa, crioula a cavalo; um moleque Lourenço, angola, a pé; um agregado
de cabelos ruivos, Antonio, a pé; uma menina, Firma, que terá 10 anos, a pé; um macho
de peito, filho do dito preto. Diz-se que o tal negro é fugido do Crato, Ceará, e que todos
estes bens foram roubados e que as crianças são seus filhos.” 211
Também não
localizamos até agora documentação que informe sobre o desfecho desta operação.
Aqui encerramos esta incursão pelos anúncios de escravos fugidos da
Província de Sergipe. Dada a limitação da amostra, consideramos este trabalho apenas a
ponta do iceberg, esperando que outros pesquisadores lancem mão desta fonte
documental, aumentando o universo e depurando-a através de metodologia mais
sofisticada. É notória sua contribuição para o conhecimento da demografia escrava,
levando-se em conta sua extensão documental e a facilidade de coleta deste material,
todo impresso. Só nos resta aguardar que alguma equipe realize tal levantamento e
sistematização em nível nacional. Isto talvez possa ser feito sem ter-se de sair do Rio de
Janeiro, pois a Biblioteca Nacional possui coleções de periódicos mais completos que
muitas das províncias de origem.

210
Arquivo Público do Estado de Sergipe, Pacotilha 132, 1826
211
Arquivo Público do Estado de Sergipe, Pacotilha 149, 5 de julho de 1825
95

6. Três Sonetos Seiscentistas sobre São Cristóvão de Sergipe el Rei 212

“Vivem contentes os povos de todos os


distritos de São Cristóvão, porque gozam dos
mais fáceis cômodos da vida humana.”
(D.Marcos Antonio de Souza, Sergipe, 1808)

Nos últimos anos, por vários meses seguidos, a cidade do Salvador foi
invadida por curiosos outdoors, espalhados pelos principais espaços urbanos:
“ARACAJU: O melhor fim de semana da Bahia”. De fato, baianos e soteropolitanos
estão mudando sua opinião a respeito do Estado vizinho: a animosidade antiga motivada
pela candente polêmica dos limites interestaduais, o desprezo e escárnio com os
habitantes da antiga Capital da Colônia tratavam a vizinha Comarca del Rei, mesmo as
contemporâneas piadas e chistes tendo os sergipanos como vilões, nos últimos anos têm
evoluído em sentido de uma opinião e relacionamento mais positivos e cordiais.
Sergipe, rotulado até pouco pelos mais preconceituosos como “o quintal da Bahia”,
representa agora exatamente o lado bucólico desta estória: a possibilidade para os
urbanitas baianos, de reencontrarem a natureza perdida, o campestre cada vez mais
distante de nossas avenidas engarrafadas, a segurança e tranqüilidade infelizmente ainda
só encontradas nos estados e cidades mais provincianos.
Baianos visitarem Sergipe, fazerem turismo além do rio Real, irem às festas
juninas em Estância ou “curtir” as barracas da praia de Atalaia, tudo isso é coisa
relativamente recente, pois por séculos seguidos a vizinha Comarca, tornada Capitania
independente só em 1820, era vista pelos da Capital, sobretudo nos finais do século
XVII, como local de desterro e degredo, posto avançado de vaqueiros e militares; no
século XVIII, já sem o perigo das invasões holandesas e com os índios praticamente
neutralizados nas missões jesuíticas, carmelitas e franciscanas, Sergipe se torna, no
imaginário dos baianos, o local de gente fora da lei, “valhacouto de facinorosos” como
se dizia na época, pois a fragilidade da força policial e o código de violência dos cabras
machos das bacias do Vazabarris e Cotinguiba, faziam desta zona o paraíso dos
foragidos da justiça, sobretudo da limítrofe Bahia: “Sofrem os habitantes de Sergipe

212
Este artigo, originalmente intitulado “Sergipe del Rei: Três sonetos seiscentistas”,
agora revisto e bastante acrescido, foi publicado em Estudos Humanísticos,
(Departamento de Letras da UFS), ano 1, vol.1, Dezembro 1990, p.123-130.
96

com presença de muitos facinorosos impunidos, sem respeito aos Ouvidores, Juizes e
Cabos das Ordenanças, inquietam a pública tranqüilidade, assassinam os pacíficos
habitantes e em cada um ano se cometem quase cem assassinatos em toda a comarca e
esta é uma das causas porque não tem prosperado ainda com mais rápido progresso a
povoação desta capitania.” 213

Desde o início de sua história, contudo, não havia razão para desprezar este
rincão limítrofe, pois se não foram as farinhas de mandioca de Santa Luzia do Itahim e
Estância e o gado do sertão sergipano, por muitas vezes a população baiana teria
passado as piores penúrias, destacando-se este pequenino vizinho pela fertilidade de
suas terras, a laboriosidade de seus habitantes e a abundância de seus recursos
214
extrativos. Há igualmente de se lembrar a importância do açúcar sergipano que
escoava pelos portos da Bahia e os milhares de africanos que os intermediários baianos
vendiam para acima do Rio Real, fontes importantes de arrecadação fiscal e
enriquecimento da elite baianense.

O outro lado da moeda – a revolta dos sergipanos pelo mandonismo e


arrogância da Bahia, “província maior”, é claramente manifesto no Hino de Sergipe,
oficializado pela Assembléia Provincial em 1836, com letra do poeta e professor
Manoel Joaquim de Oliveira Campos e música do citado Frei José de Santa Cecília, “o
Frei Bastos Sergipense”:

“Alegrai-vos, sergipanos,
Eis que surge a mais bela aurora,
Do áureo e jucundo dia
Que a Sergipe honra e decora.

O dia brilhante,
Que vimos raiar,
Com cânticos doces
Vamos festejar.

A bem de seus filhos todos


Quis o Brasil se lembrar
De o seu imenso terreno
Em províncias separar.

213
Souza, op.cit., 1944, p. 22
214
Souza, op.cit., 1944, p.16
97

Isto se fez, mas contudo


Tão cômodo não ficou,
Como por más conseqüências
Depois se verificou.

Cansado da dependência
Com a província maior,
Sergipe ardente procura
Um bem mais consolador.

Alça a voz, ao trono sobe


Que o soberano excitou;
E curvo o trono a seus votos,
Independente ficou.

Eis, patrícios sergipanos,


Nossa dita singular,
Com doces, alegres cantos
Nós devemos festejar.

Mandemos, porém, ao longe


Essa espécie de Rancor,
Que ainda hoje alguém conserva
Aos da província maior.

A união mais constante


Nós deverá congraçar,
Sustentando a liberdade
De que queremos gozar.

Se vier danosa intriga


Nossos lares habitar,
Desfeitos os nossos gostos
Tudo em flor há de murchar.”

Diferentemente do que sucedeu com as principais Capitanias do Norte e


Nordeste, sobretudo Bahia e Pernambuco, as Capitanias menores, como Sergipe e
Alagoas, por não desenvolverem vida urbana tão sofisticada como Salvador, Recife,
São Luis, Belém, só nos finais do período colonial começam a desenvolver suas
primeiras manifestações de literatura erudita, sendo raros os registros literários
relativos a tais regiões, conforme salientamos no ensaio Capítulos da história sacra
de Sergipe del Rei: Sacerdotes Ilustres e Modelos de Santidade. Salvo erro, além das
obras sacras assinadas pelos citados religiosos naturais ou moradores de Sergipe, o
único sergipense leigo que deixou obras literárias foi Luiz Canello (também grafado
98

Canelo) de Noronha, nascido em 1689, em local ainda controverso. Segundo o autor


da Biblioteca Lusitana, Diogo Barbosa, seu contemporâneo, Canello nascera em
“Vila Nova Real do Arcebispado da Bahia.” 215 Pedro Calmon, entre outros, apontam
como local de seu natalício a vila de Penedo, na Comarca das Alagoas. Como a vila
de Penedo encontra-se justo em face a Vila Nova (Sergipe), cremos que tal
proximidade seria o motivo desta confusão. Segundo outro estudioso, “esses dois
locais podem ser aceitos, pois há documentos da época controversos. O registro de
irmão na Misericórdia da Bahia mostra que Luís Canelo de Noronha era de Vila
Nova216, já a patente de capitão de ordenança dos Estudantes da Bahia, de 1719,
documenta-o natural de Penedo.217 Foi capitão de Ordenança dos Estudantes da
Bahia, recebendo em 1730 um lote de terra do rei de Portugal, no Jaqueriça, ao qual
se dedicou por um tempo. Também foi vereador do Senado da Câmara de Salvador.
Luís Canelo de Noronha compôs 57 poemas para a Academia Brasílicas dos
Esquecidos, dentre os quais 38 em vernáculo e 19 em latim. Como poeta desta
Academia, um dos que mais produziu, sendo que grande parte dessa produção foi
feita em língua latina, o que o caracteriza, no mínimo, como um intelectual de
formação humanística marcante. Foi considerado por Péricles Eugênio da Silva
Ramos218 como um de seus poetas mais ricos em relação aos aspectos formais de
sua produção. Um árcade seu companheiro na Academia assim o retratou:

“Nas loas do Parnaso as brancas aves


Avantajou no harmônico e sonoro
Luis Canelo, que em métrica harmonia
É modulado cisne da Bahia.” 219

Compôs Sonetos, Décimas, Romances, Idílios, Madrigais, Glosas em

215
Barbosa Machado, Diogo. Biblioteca Lusitana. Lisboa, Officina de Ignacio
Rodrigues, 1747
216
Registro de 5 de Abril de 1727, Livr. de Ir., nº 3, ms, apud Aguiar, Fabio Ângelo. A
poesia lírica de Luís Canelo de Noronha na Academia Brasílica dos Equecidos. Apud
<http://www.assis.unesp.br/eela/volume2p1.htm>
217
Ubiali, N.A. Luís Canelo de Noronha, poeta novilatino, no contexto do corpus da
Academia Brasílica dos Esquecidos. Tese de Doutorado em Letras, Assis, Faculdade de
Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, 1995; Documentos Históricos da
Biblioteca Nacional, XLIII, 308 e XLIX, 307
218
Apud Miranda, José Américo Miranda, (Org.). Poesia Brasileira: Época Barroca.
Belo Horizonte, Faculdade de Letras da UFMG, 2004
219
Silva Lima, op.cit., p.122
99

Epílogos, Canções, Endechas, Redondilhas, mas foi com os Sonetos Joco-sérios que
demonstrou-se um dos melhores da Academia dos Esquecidos. Com um temperamento
inquieto, Luís Canelo de Noronha marcou seus poemas com latinismos e agudezas.” 220

Entre suas obras, um Epigrama em latim que antecede a obra Aplausos Natalícios com
que a cidade da Bahia celebrou a notícia do feliz Primogênito do excelentíssimo senhor
D. Antonio de Noronha, Conde de Vila Verde; do Conselho de Sua Majestade e seu
Mestre de Campo General e Governador das Armas da Província de Entre Douro e
Minho221 e Pompas funerais que a cidade da Bahia e o seu Recôncavo dedicou as
saudosas memórias da Senhora D.Mariana de Lescastre, mãe do ilustríssimo e
excelentíssimo Conde de Sabugoza, Vasco Fernandes César de Menezes, vice-rei do
Estado do Brasil. Fica portanto a dúvida quanto à sua terra natal esperando que algum
historiador esclareça definitivamente: Canelo nasceu do lado de cá ou de lá do Velho
Chico? 222
Embora sergipanos de nascimento ou de moradia, tanto os autores sacros
biografados acima, como o poeta Canelo, mesmo que tenham eventualmente escrito
alguma de suas obras naquela comarca, pouco ou mesmo nada informam sobre tal
localidade ou sobre seus habitantes. E até agora tinham os estudiosos dessa Capitania
informação da existência de apenas um soneto, de autoria de Gregório de Mattos,
intitulado “Descrição da Cidade de Sergipe del Rei”, divulgado por Afrânio Peixoto no
primeiro volume das Obras de Gregório de Mattos, publicado pela Academia Brasileira
223
de Letras entre 1923- 1933. Como tal soneto não consta na edição mais recente das
obras do “Boca do Inferno”, de autoria de James Amado (1969) , pouco são os que
tiveram acesso ao referido soneto. 224
Consultando porém o artigo “Documentos para a
História Literária da Bahia”, publicado por Luiz Silveira em 1942, na Revista Brasília,
da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra225, tive a ventura de localizar dois
sonetos inteiramente consagrados à nossa querida Capitania, e que apesar de publicados

220
Aguiar, op.cit., 1995
221
Lisboa, Oficina de Miguel Manescal, 1718, 23 p.
222
Ubiali, op.cit., 1995
223
Obras de Gregório de Mattos. Direção de Afrânio Peixoto. 6 volumes, Rio de
Janeiro, Publicações da Academia Brasileira de Letras, 1923-1933 (Sacra, I, 1929;
Lírica, II, 1923; Graciosa, III, 1930; Satírica, IV e V; Ultima, 1933).
224
Mattos ,Gregório. Obras Completas. Edição James Amado, Salvador, Editora
Janaína , 1968, 7 volumes.
225
Silveira, Luiz. “Documentos para a História Literária da Bahia”, Revista Brasília,
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Volume 1, 1942, p. 561-562
100

a quase meio século, permaneceram incógnitos de quantos escreveram sobre a história


sergipense. Diz o articulista tê-los encontrado na Biblioteca de Évora, no Códice n.29 do
Armário 1, que traz o título: “Poesias do século XVII coligidas na Bahia”. A análise de
tais sonetos é o tema deste ensaio.

O primeiro soneto traz o título “Descrição d(e) Sergippe del Rei, do Dor. Gonçalo
Soares.” Não conseguimos informação cabal sobre este personagem: o título
abreviado “Dor.” significaria Doutor ou Desembargador Gonçalo Soares? Seria seu
autor o mesmo Gonçalo Soares da França (1632-1724?), membro da Academia
Brasílica dos Esquecidos, autor da mega obra “Brasília”, contendo nada mais nada
menos que 1.800 oitavas, 14.400 versos decassílabos e referido elogiosamente por
Gregório de Matos neste soneto:

“De repente, e cos mesmos consoantes,


Não o fazem Poetas negligentes,
Um Apolo o fará Mestre das gentes,
E vós, Gonçalo, Sol dos Estudantes....
Canta pois, doce espírito engenhoso,
Nunca a Lira deponhas, nem suspendas” 226

Consta, portanto, que teria sido Gonçalo Soares o autor destes dois sonetos
consagrados à capital de nossa Comarca. Confrontando o primeiro poema “Descrição
de Sergipe del Rei” com a “Descrição da Cidade de Sergipe dei Rei”, atribuído a
Gregório de Mattos, constatamos que se trata praticamente do mesmo soneto, com
pequeninas variantes em certos adjetivos, quantitativos e em algumas figuras de estilo.
Ambos descrevem com imensa ironia, desprezo e realística comicidade, o humilde
panorama e rusticidade social da comarca de Sergipe del Rei e sua sede administrativa.
Para efeito de comparação, transcrevo lado a lado as duas versões deste mesmo soneto.

226
Obra Poética, de Gregório de Matos, 3ª edição, Editora Record, Rio de Janeiro,
1992, “A esta décima respondeo o poeta com este soneto”, Apud
<http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/letrados.html>
101

Descrição de Sergipe del Rei, Descrição da Cidade de Sergipe del Rei, de


de Gonçalo Soares Gregário de Mattos

Dez dúzias de casebres remendados Três dúzias de casebre remendados,


Seis becos com mentrastos entupidos Seis becos de mentrastos entupidos
Trinta soldados rotos e despidos Quinze soldados rotos e despidos
Cinco igrejas, dez frades, três letrados. Doze porcos na praça bem criados.

Seis curados sem cura amancebados Dois conventos, seis frades, três letrados
Um Juiz com bigodes sem ouvidos Um Juiz com bigodes sem ouvidos
Doze presos de piolhos carcomidos Três presos de piolhos carcomidos
E dois meirinhos por comer cansados. Por comer dois meirinhos esfaimados.

Mulatas com capote de baeta As damas com sapatos de baeta


Palmilhas de tamanco,como frades Palmilha de tamanca como frade
Saia de chita, cintas de raqueta. Saia de chita, cinta de raqueta.

Muito feijão que faz ventosidade O feijão que só faz ventosidade


Muito enredo, trapaça, embuste, treta Farinha de pipoca, pão de greta
De Sergipe del Rei é a cidade. De Sergipe del Rei esta é a cidade.
102

Gregório de Mattos, baiano de nascimento (1636), quando tinha catorze anos


embarca para Portugal, recebendo formação acadêmica na Universidade de Coimbra. Só
retornará à América Portuguesa em 1682, com quarenta seis anos de idade. Caso esses
poemas sejam de fato de sua autoria, descreveria Sergipe del Rei entre 1682-1694,
época em que viveu na Bahia, pois nesta última data o Boca do Inferno é banido para
227
Angola, vindo a morrer em 1696, em Pernambuco. Não há informação se nosso
maior poeta barroco chegou a visitar o comarca vizinha: em dois poemas, contudo, a ela
faz referências: no soneto “Philosophia e rhetorica diz aqui o poeta, que leo, e como
rhetoricamente philosopho sempre tem que responder aos casos menos pensados, como
veremos”, ao reclamar do desprezo da “falsa Tetê”, assim se despede:

“Adeus, Tetê, que eu me vou


Para Sergipe d’El-Rei
A viver de me ausentar
E a morrer de vos não ver.”

Quer dizer: repete aqui a mesma imagem de Sergipe como local não só de
degredo de réus da Justiça real e da Inquisição, como também locus isolado, apropriado
para esquecer um amor não correspondido.
Neste segundo poema o Boca do Inferno refere-se a Sergipe como imagem
de lugar distante, equivalente ao nosso contemporâneo “no fim do mundo”. Novamente
o Dr.Matos faz queixumes contra “Outra mulata clara chamada Joanna Gafeyra,
camarada de Izabel, [que] se desviava do poeta temendo a sua língua, e elle dezejoso de
à conversar, e desconfiado de o poder conseguir, lhe faz este romance “. 228

“Daqui vos digo, Putinha,


que me arrependo, de que
meus recados vos chegassem,
pelo muito que fedeis.
Do vosso fedor se queixa
até Sergipe d'EI-Rei,

227
Calmon, Pedro. A Vida Espantosa de Gregório de Matos. Rio de Janeiro, Livraria
José Olimpio, 1983; Perez, Fernando da Rocha. Gregório de Mattos e Guerra: Uma
Revisão Biográfica. Salvador, Edições Macunaíma, 1983
228
Obra Poética, de Gregório de Matos, 3ª edição, Editora Record, Rio de Janeiro,
1992.
103

por ser o sovaco, e vaso


putiú, catinga, e pez.”

O território de Sergipe, conquistado em 1590 por Cristóvão de Barros,


completava seu primeiro século de colonização quando é retratado nestes poemas: toda
a Comarca devia contar na época, aproximadamente 17 mil habitantes dos quais um
quarto constituído de brancos portugueses ou neobrasileiros e o restante da população,
negros africanos e crioulos, mulatos, mamelucos e índios aldeados. Talvez quase uma
vintena de engenhos de açúcar já estavam em funcionamento nesse último quartel do
século XVII, contando a Comarca com as seguintes localidades: São Cristóvão, também
chamada de Cidade de Sergipe, cuja freguesia de Nossa Senhora da Vitória é ereta em
1608; seguida de Itabaiana (1675), Lagarto, Vila Nova e Santa Luzia, as duas primeiras
elevadas à condição de vila em 1679, e a última no ano seguinte. 229 (5)
Se confrontarmos as duas versões do soneto “Descrição de Sergipe del Rei’,
a primeira constatação é a variação dos números de seus prédios e logradouros públicos:
na versão atribuída a Gregório de Mattos, São Cristóvão é descrita como possuindo 36
casebres, 15 soldados, dois conventos, seis frades e três presos, enquanto no soneto de
Gonçalo Soares esta cidade possuiria 120 casebres, 30 soldados, cinco igrejas, 10
frades, 12 presos. Em ambos poemas, tais itens ostentam as mesmas quantidades: seis
becos, três letrados, dois meirinhos. Com certeza, tais números só podem ser
interpretados como grosseiras estimativas, provavelmente inferiores ao número real do
que existia realmente, pois a intenção óbvia do soneto é diminuir, amesquinhar e
ridicularizar a pequenina cidade de São Cristóvão.
A variação das quantidades notada entre uma versão e outra poderia ser
explicada, quem sabe, pela “atualização” dos dados quando o poema original foi
recopilado algumas anos, ou décadas, após sua versão original. Nos tempos de Gregório
a cidade ostentava tão somente 36 moradias, passando algumas décadas depois a cento
e vinte - e assim por diante. Tarefa praticamente impossível seria cotejar as informações
prestadas nestes sonetos com a realidade seiscentista, pois infelizmente a documentação
sobre a estrutura urbana de Sergipe é omissa quanto a tais detalhes. Que a Capital da
Comarca era de fato pequenina, se comparada com Salvador e mesmo Olinda e Recife,
não há a menor dúvida: em 1808 São Cristóvão possuía tão somente quatrocentos

229
Freire, Felisbelo. História de Sergipe (1891).2ª Edição, Petrópolis, Editora
Vozes/Mec, 1977.
104

moradores, e em 1837 suas residências atingiam o numero de 643, das quais quarenta e
cinco “ inabitáveis”230, de modo que não devia estar muito longe da realidade a
avaliação de que nos finais do século XVII deviam ali existir não mais que uma
centena de residências. Quanto a serem todos “casebres remendados”, com certeza,
trata-se de uma opinião depreciativa, pois então já deviam existir quando menos
algumas dúzias de construções de pedra e cal, cobertas de telhas, quiçá mesmo algum
sobrado. Também um pouco mais de seis deviam ser as ruas, becos e ladeiras desta
cidade naquele final de centúria, talvez o dobro. Quanto a estarem suas vielas atapetadas
de mentrastos (hortelã selvagem), causa-nos admiração, pois, não consta que tal erva
fosse tão corrente na circunvizinhança a ponto de “entupir” os caminhos, sendo antes tal
erva cultivada nos fundos dos quintais com finalidade medicinal.
Se reunirmos as igrejas dos dois conventos, a dos Franciscanos e dos
Carmelitas, com o número total dos demais templos dessa cidade, de fato eram cinco as
igrejas aí existentes à época destes sonetos: a matriz de Nossa Senhora da Vitória, a
ermida do Senhor das Misericórdias, a Igreja de São Cristóvão, e as igrejas conventuais
de São Francisco e Nossa Senhora do Carmo. Com o tempo acrescentem-se as capelas
da Santa Casa da Misericórdia, a de Nossa Senhora do Rosário, a de Nossa Senhora do
Amparo e o santuário de São Gonçalo.
Parece-nos igualmente que o número de frades, presos e funcionários
públicos foi de propósito subnotificado pelo poeta, pois cada convento, para funcionar
regularmente, carecia ao menos de uma dezena de religiosos professos, sem falar nos
noviços e postulantes. Doze presos trancafiados no aljube debaixo da Casa da Câmara
parece reproduzir mais fielmente a realidade seiscentista, do que apenas três
presidiários, considerando a falta de segurança das cadeias das vilas interioranas e o
costume de enviar para São Cristóvão os réus merecedores de penas mais graves.
Quanto ao funcionalismo, a cidade de Sergipe, como sede de Comarca e Ouvidoria,
possuía um Ouvidor, um Corregedor, um Escrivão, um Tabelião, um Inquiridor, um
Contador e Distribuidor, um Alcaide e um Carcereiro, sem falar nos cargos do
Eclesiástico, como Vigário Geral e da Vara, o meirinho e secretário do Vigário, além
dos párocos das igrejas, Curas e presbíteros Colados e Encomendados.
Dizer que na cidade de São Cristóvão haviam “seis curados sem cura
amancebados”, como consta apenas na primeira versão do poema, é outra inverdade,

230
Souza, op.cit., 1944, p.16
105

pois considerando as altas prebendas associadas à cura d’almas, logo que vagava uma
freguesia ou capela colada, inúmeros sacerdotes, inclusive de outras regiões e
capitanias, candidatavam-se junto à Cúria da cidade da Bahia para preencher tal função.
As duas últimas estrofes descrevem a rusticidade e costumes toscos
dos são-cristovenses: na versão gregoriana, que presumo ser a original, eram as damas
da elite que se vestiam e calçavam-se com tecidos inferiores: baeta e chita, em vez de
veludo e seda. Passadas algumas décadas, quando de 36 residências, esta Capital abriga
então mais de uma centena de fogos, não são mais as senhoras, porém as mulatas, que
se tornam alvo da ridicularia devido a suas vestimentas plebéias.
Termina o segundo soneto referindo os igualmente rústicos hábitos
alimentares dos sergipenses: o predomínio do consumo do feijão, a farinha de milho
(“de pipoca”), e um misterioso “pão de greta’, cujo significado nem o dicionário
Antonio de Moraes revela.
A penúltima estrofe da versão de Gonçalo Soares dá o tom da vida social
desta pequenina cidade encantoada no cocuruto do Monte de São Cristóvão: “muito
enredo, trapaça, embuste, treta”, que poderíamos atualizar desta forme: “muita fofoca,
trambicagem, mentira, engano”. De fato, inúmeros documentos dos finais do século
XVII e princípios do XVIII atestam a veracidade deste panorama social tão diruptivo,
onde as próprias autoridades davam péssimo exemplo de desonestidade, roubos e
extorsões; onde o diz-que-diz funcionava como rígido estratagema para reprimir e
controlar a vida dos indivíduos, cujos desvios no falar ou no agir podiam redundar em
perigosas devassas e inquirições, como a ocorrida em 1683, em São Cristóvão, por
determinação do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, na qual foram denunciados
mais de uma dezena de moradores locais pelos crimes de heresia, sodomia, solicitação e
bigamia.231
O segundo soneto, também conservado na Biblioteca de Évora e atribuído
ao mesmo Gonçalo Soares, descreve alguns detalhes da vida social sergipana sob a ética
de um observador provavelmente de fora, acantonado temporariamente nesta cidade.
Traz o título:

Vida de Sergipe del Rei

” Acordar... e jogar a polha

231
Mott, op.cit., 1985
106

de noite não dormir de cães à bulha


lançar ao Mestre torto muita pulha
e ouvir contar ao Crespo muita embrolha.

Esperar que o Vigário traga a olha


que costuma abranger toda a pa(trul)ha
e depois que o ventre se faz tulha
à botija viril tirar a rolha.

Ver que o Veiga se safa para a Ilha


que Caetano na praça nunca falta
e o Cafubá nos auditórios brilha.

Que o Escriba do campo sempre ralha


que reina Nicolau e sua quadrilha,
É a vida que passo entre a canalha.”

O estilo, vocabulário, temática e verve identificam-se perfeitamente com a


pena do Boca do Inferno, o que permite-nos conjecturar que também este soneto
poderia ter sido escrito por Gregório de Matos. Descreve a vida ociosa e rotineira de
uma “quadrilha” de homens estacionados em São Cristóvão, cuja diversão era comer,
reunir-se para jogar cartas, a desempulhar-se em desafios verbais. Quadrilha, segundo o
dicionário Moraes, é um italianismo que na época significava “companhia de soldados,
uma divisão de quatro ou mais cavaleiros, turma ou gente de cavalo aprestada para a
guerra.” Quadrilha de soldados, portanto. Esta canalha, id est, “plebe mais vil, ínfima,
ralé”, era composta do Mestre Torto, Crespo, Vigário, Veiga, Caetano, Cafubá 232
,
Escriba e Nicolau. Muito provavelmente tais nomes e cargos eram apelidos jocosos,
pois embora o clero sergipano, como acontecia por toda América Portuguesa, não
primasse pela disciplina e bons costumes, conforme comprova farta documentação
arquivística233, o tal ‘Vigário’ devia ser apelido de algum leigo pois causaria enormes
problemas a um sacerdote fazer parte de tal ralé, sobretudo numa cidade tão pequenina
onde todos seus moradores, sobretudo os togados, deviam ser alvo de grande controle
social.
Reclama o poeta das noites mal dormidas, não tanto peles orgias com negras
e mulatas, que na capital da Bahia distraiam os reinóis, entre eles o cinqüentão

232
“Cafubá: diz-se de vacum que tem certa cor, cinza-escuro na Bahia.
233
Mott, Luiz. "Modelos de santidade para um clero devasso: a propósito das pinturas
do cabido de Mariana" Revista de História, UFMG, 1989, p. 96-120
107

Gregário de Matos, como confessa em diversos sonetos, reclamava sim da bulha (latido)
dos cães, que não deixa a canalha dormir.
Amanhecendo o dia, quando a escravaria já suava nos canaviais, os mulatos
e pardos livres traziam seus feixes de lenha, gaiolas de caranguejos e demais crustáceos,
tão abundantes nos mangues dos arredores de São Cristóvão, as negras e negros
aguadeiros carregavam seus tonéis e moringas das bicas e fontes, lá iam os oito
privilegiados quadrilheiros desenfadar-se a “jogar a polha”. Esta expressão permite-nos
dupla leitura, pois tanto podia significar o jogo de cartas, também chamado na época de
“estadilha”, “voltarete” ou “arrenegada”, como “jogar a polha” podia referir-se, de
maneira metafórica, ao ato venéreo com mulher meretriz, posto que ‘polha” (do francês
“poulle”), já naquela época associava a galinha à prostituta, conforme ensina o
dicionarista pernambucano Antonio Moraes.
A interação dos membros desta “quadrilha”, que também pode significar
“quatro ou mais cavaleiros que vão jogar canas” era marcada por galhofeira
camaradagem, incluindo desafios verbais— quiçá acompanhados ao som de viola —
fazendo parte desta folgazã socialização “muita pulha”, isto é “dito caviloso e logrativo,
gracejo, escárnio; brincadeira usada sobretudo no entrudo; dito chulo com perguntas e
respostas equivocadas” , além de “muita embrolha”, o mesmo que “embrulho”: intriga,
enredo, embrulhada, confusão.
Entre jogos, desafios e dichotes, a fome apertava: cabia então ao “Vigário”
trazer a “olha” , quer dizer, “caldo gordo de perdizes, galinhas, carne de porco,
chouriços, lombo, tudo misturado com algumas hortaliças”, uma espécie do tradicional
cozido nordestino. Tal era a receita portuguesa original: em Sergipe, certamente a
“olha” teve de adaptar-se aos recursos regionais, incluindo feijões, farinha de pipoca,
pão de greta, etc. Sopa tão forte provocava - não as ventosidades atribuídas ao feijão
nos dois primeiros sonetos, mas sim, impulsos libidinosos: “depois que o ventre se faz
tulha, isto é, que ficou cheio como as tulhas ou recipientes onde se guardam castanhas,
arroz ou azeitonas, “à botija viril tira a rolha”: “botija” aqui é sinônimo de cilindro,
garrafa, e obviamente, refere-se ao membro viril, que excitado com refeição tão
substanciosa, qual afrodisíaco, quer logo “tirar a rolha” para dar vazão ao prazer.
Terminados os jogos, desafios e suculenta refeição, cada membro desta
quadrilha de bons vivants toma seu destino: o Veiga se safa para a Ilha, o Caetano
sempre vai à Praça, o Cafubá tinha compromissos “nos auditórios” talvez advogando
como juiz ou rábula; o “Escriba” talvez fosse um funcionário público, um almotacé, por
108

exemplo, cuja função era percorrer os campo para cobrar os impostos e taxas devidas à
Câmara, daí referir o soneto “que o Escriba do campo sempre ralha”, quiçá ameaçando
os lavradores em débito com os cofres públicos. Dentre os citados, Nicolau era o líder:
“que reina... e sua quadrilha.”
Tal “é a vida que passo entre canalha”, termina o poeta: “de Sergipe del Rei
(tal) é a cidade”.
109

7. Vida Social e cotidiano em ‘Sergipe o Novo’ à época das Visitações do


Santo Ofício e das Cartas de Sesmaria: 1591-1623 234

“Ajudei a povoar essas terras novas assim na paz como na guerra...”


[Carta de Sesmaria na Cotinguiba, Sergipe, 1594]

O objetivo deste ensaio é reconstituir aspectos da vida cotidiana em Sergipe


del Rei, partindo das referências a seus moradores citados na Primeira e Segunda
Visitação do Santo Ofício à Bahia, entre 1591 e 1620, cotejando tal documentação
primária com as Cartas de Sesmarias exaradas entre 1596-1623. Tratam-se de fontes
documentais com referências pioneiras à esta nova conquista lusitana anexa à Capitania
da Bahia, já que o primeiro núcleo “urbano” fundado em “Sergipe o Novo” data de 1º
de janeiro de 1590, quando o conquistador destes sertões, o Capitão Cristóvão de
Barros, finca os alicerces do arraial e depois vila de São Cristóvão, centro político e
administrativo da Comarca e Capitania de Sergipe del Rei até 1854, quando a capital da
Província é transladada para o Aracaju.
Pela primeira vez na historiografia sergipana, é feito aqui o cotejamento
destes dois corpos documentais até então nunca aproximados: as referidas confissões e
denunciações inquisitoriais e as cartas de pedidos e confirmação de sesmarias. 235
Documentos produzidos por autoridades distintas, com escopos diversos, onde são
citados dados identificadores e existenciais de aproximadamente duas dezenas dos
mesmos personagens: os primeiros brancos e alguns mestiços que participaram da
conquista e ocupação do território compreendido entre o Rio Real e o Rio de São
Francisco.
Malgrado Sergipe aparecer apenas pontualmente nas confissões e
denunciações da Primeira e Segunda Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil, o
interesse na divulgação destes documentos está sobretudo em permitir-nos reconstituir

234
Este artigo, originalmente intitulado “Aventuras e desventuras dos primeiros
moradores de Sergipe Del Rei mencionados nas Visitações do Santo Ofício e nas Cartas
de Sesmarias: 1591-1623”, foi publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico
de Sergipe, 2006
235
“Sesmaria: dada de terra inculta, ou abandonada, que os reis de Portugal cediam a
sesmeiros que se dispusessem a cultivá-la e povoá-la.” Esta e as demais explicações de
termos antigos foram pesquisadas no Dicionário da Língua Portuguesa, de Antonio de
Moraes Silva, Lisboa, Typographia Lacerdina, 1813.
110

traços fundamentais do dia a dia, das mentalidades, da história cultural e da cultura


material desta frente pioneira de soldados e colonos que participaram pessoalmente da
conquista e co-fundação deste novo pólo de expansão territorial da agroindústria
açucareira e pecuária nordestinas logo nos primórdios de sua instalação. Daí a sugestão
que o leitor “viaje” lado a lado com tais personagens na tormentosa “Guerra de
Sergipe”, detendo-se nos detalhes de suas angústias, medos, inseguranças, infidelidades,
mal querenças, palavras impensadas e desvios da religião oficial e da moral cristã, tal
qual foram registrados pelo notário inquisitorial.

I. Cartas de Sesmarias e a Toponomástica de Sergipe o Novo

Começamos revisando as Cartas de Sesmarias. Tratam-se de 213 Cartas


concedidas aos primeiros colonos de Sergipe, com datas extremas 1594-1623.236
Constituem valiosíssimo corpus documental, verdadeira cartola de mágico, do qual é
possível extrair informações fantásticas sobre a geografia, genealogia, atividades
econômicas, expansão territorial, administração governamental. Documentos que desde
sua redação original , apesar da rusticidade de seu estilo, foram considerados tão
fundamentais, que ao fugirem os primeiros moradores de São Cristóvão de Sergipe
quando da invasão holandesa, no ano do Senhor de 1637, tiveram o cuidado de levar
consigo esse precioso calhamaço de papel, deixando para traz os demais manuscritos
históricos, lastimavelmente destruídos pelos invasores quando em retirada, queimaram
essa cidade. Afim de familiarizar o leitor com seu conteúdo e redação complexa, às
vezes de difícil compreensão, transcrevo em redação diplomática, ipsis verbis, apenas a
primeira destas cartas de sesmaria:

“Carta de Tomé Fernandes, de 23 de julho de 1594.


Saibam quantos esta carta de sesmaria deste dia para sempre virem que no
ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1594, aos 23 julho de 1594, da
dita era, nesta cidade de São Cristóvão, Capitania de Sergipe, de que é Capitão e
Governador o Sr. Tomé da Rocha, governador geral de todo este estado do Brasil, nas
pousadas de mim, escrivão ao diante nomeado, por despacho ao pé dela, do dito Sr.

236
Estas cartas de sesmarias foram transcritas por Felisbelo Freire em 1891, em sua obra
pioneira História de Sergipe. Valemo-nos de sua 2ª Edição, Editora Vozes/Mec,
Petrópolis, 1977. Embora conste neste rol de sesmarias uma derradeira carta datada de
1669, para efeito do cotejamento com a documentação inquisitorial, que vai de 1591 a
1620, preferimos estabelecer como marco cronológico para as Cartas de Sesmaria, os
limites 1596-1623.
111

Capitão e Governador da qual petição e despacho o traslado, de verbo ad verbo é o


seguinte: Diz Tomé Fernandes que ele veio ajudar a dar guerra em Sergipe del Rei, em
companhia de Cristóvão de Barros, Capitão Geral das Entradas, com suas armas e
escravos, à sua custa, sem prêmio nenhum, nem cousa alguma del Rei, e depois da terra
já ganhada, se for [foi?] assim que nesse serviço de sua Majestade, gastou oito meses, o
qual daí a um ano, tendo notícias [que] vinham moradores a povoar, não quis ser dos
derradeiros, e não atendendo ao muito trabalho que passam nas terras novas, se veio
sua casa movida, trazendo consigo uma filha casada onde já nesta capitania a três anos
mora, ajudando a povoar assim na paz como na guerra. Pede a Vossa Mercê havendo
respeito a ser dos primeiros e por seu oficio permanecer a terra com embarcações, lhe
dê de sesmaria em Contemguiba [sic] para onde se acabam os mangues verdadeiros,
que chamam Corropoiba, três mil braças de terra pelo rio acima, e para o sul, quatro
mil braças, a qual terra se medirão donde se acabam os ditos mangues, que declara e
para este assim, e da maneira que corre o dito rio, ressalvando pontas, enseadas com
suas águas, madeiras e pastos, e receberá mercê.
Despacho: Visto esta petição do suplicante, e havendo respeito a ser já
morador nesta Capitania, e o que importa ao bem da terra e serviço de Sua Majestade,
lhe dou em seu nome de sesmaria na parte que pede, mil braças de terra em quadra,
salvando as pontas que junto do dito rio houver, que não entrarão na medição, e serão
também suas e disso lhe passem sua carta, porque lha dou, com todas as madeiras e
rios que dentro dela houverem. Sergipe, em 23 de julho de 1594 anos: Tomé Fernandes
o que tudo isto era contendo [conteúdo?] no dito despacho e o qual era assinado pelo
dito Sr. Capitão e Governador, por bem do regimento que para isso tendo dito Sr. faz-
me e deu em nome de Sua Majestade a dita terra do dito Tomé Fernandes, obrigado a
fazer benfeitorias na dita terra no tempo que a ordenação lhe limita, porque com as
ditas condições e obrigações o dito Sr. lhe fez mercê e mandou passar carta do dito
Tomé Fernandes deste dia para todo o sempre, e mandou as justiças e oficiais dela,
dêem e façam dar a posse da dita terra ao dito Tomé Fernandes pelas confrontações e
demarcações nesta carta conteúdas e nele e dela poderá fazer como cousa sua que já é,
conforme ao dito despacho e ordenação que em todo compraz, a qual terra lhe assim
dou livre e isenta de todo foro [e] tributo se mande que pagasse o dizimo a Deus que se
deve a ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo e por o dito Tomé Fernandes foi aceitada a
dita terra com todas condições e obrigações nesta carta contendas e da ordenação e
foros desta capitania, e se obrigará a todo cumprir pelo que lhe foi passada a presente
para sua guarda, da qual eu escrivão tomei e escrevi neste meu Livro das Dadas, em
nome do dito Tomé Fernandes e dos mais a que tocar esta [ausentes?] e eu Manoel
André, Escrivão dos Dados nesta capitania, por o Senhor Capitão e Governador a fiz
em que o dito senhor assinou. Tomé da Rocha.” 237

A leitura destas 213 Cartas de Sesmaria, que foram cuidadosamente


registradas pelas primeiras autoridades de Sergipe no Livro de Dadas, chama a atenção

237
Freire, op.cit., 1987, p.328-239. Há outra carta de sesmaria concedida a Thomé
Fernandes, datada de 17 de janeiro de 1600, “meia légua na testada de Francisco da
Silveira, no rio de Mocori”: não sabemos se se trata do mesmo sesmeiro ou de um seu
homônimo. As demais cartas constantes na História de Sergipe foram transcritas
apenas em seu “miolo”, com os dados identificadores do sesmeiro e sua localização,
sem repetir toda a fórmula solene de estilo.
112

para a indefinição e variedade como eram referidos os topônimos desta nova Capitania.
Tudo em Sergipe revelava-se instável e impreciso nestes primeiros anos de ocupação – a
começar por seu próprio nome, originado do tupi “SI´RI Ü PE” , que significa “curso
do rio dos siris”, e que antes de se fixar como Sergipe, foi igualmente grafado em mais
de uma dezena de variantes: Serigipe, Serygipe, Seregipe, Serigp, Sergi, Sirigipe,
Serjipe, Ciriji, Cyrigipe, Cirizipe, Cerigipe, Seregippe, Sarazipi, Serzipe.238 Nos
documentos inquisitoriais encontramos também a denominação “Sergipe o Novo”,
como forma coeva para distinguir a novel conquista da primeira localidade nos Brasis a
possuir tal denominação, as terras anexas ao famoso Engenho Sergipe do Conde,
situado no Recôncavo da Bahia, a légua e meia da foz do o rio Sergi, ou Sergimirim,
considerado um dos principais engenhos da Colônia, propriedade inicial de Mem de Sá,
cujo nome está associado à estirpe do Conde de Linhares. 239
Esta anomia lingüística, ou “anarquia ortográfica” 240
observada nas Cartas
de Sesmaria, reflete a dificuldade dos primeiros colonizadores em memorizar e
padronizar denominações toponímicas indígenas, a um tempo tão diversas da fonética
lusitana, mas tão importantes de serem referidas a fim de demarcar com precisão, as
“datas de terra” que pleiteavam receber como mercê real. Um bom exemplo desta
confusão é o nome de um dos principais afluentes da zona açucareira de Sergipe, o atual
241
rio Cotinguiba, em cuja embocadura se situou a antiga cidade de São Cristóvão ,
topônimo que aparece grafado nas cartas de sesmarias quando menos com doze
variantes: Cotemguiba, Cotindiba, Cotendiba, Quotidiba, Quoatinguyba, Quatimdiba ,
Quatimguiba, Quoatimgiba, Catimdiba, Quatenjiba Quatingeriba.
Vasculhando as referidas Cartas de Sesmarias, notamos que os
conquistadores e colonos mantiveram na maioria dos casos, os mesmos topônimos já
utilizados pelos indígenas, considerando que assim estariam tornando mais segura a
localização das glebas que estavam requerendo. Os rios, ribeiras e riachos eram os
principais pontos de referência toponímicos nos primórdios desta ocupação territorial, e
de um total de 45 cursos d’água citados, com exceção do Rio Real (cujo nome tupi era

238
Prado, Ivo. A Capitania de Sergipe e suas Ouvidorias. Rio de Janeiro, Papelaria
Brazil, 1919. Todos esses topônimos foram retirados das cartas geográficas dos séculos
XVI ao XVIII reproduzidas nesta obra.
239
Schwartz, Stuart B. Segredos Internos. Engenhos e escravos na sociedade colonial.
São Paulo, Companhia das Letras, 1988, p.53
240
Alves, Francisco. “Contribuição à arqueologia de Sergipe Colonial”, Revista do
Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, n.34. 2003-2005, p.49
241
Milliet de Saint-Adolphe, op.cit., 2001, p. 41
113

Hitahi), do São Francisco (Opara) e do Vaza Barris (Irapirang ou Potihipeba), 42


cursos d’água são referidos com seus nomes aborígines, mais da metade dos quais,
grafados com mais de uma variante. Transcrevo entre parênteses, quando disponíveis, os
comentários de Felisbelo Freire à esta primeira relação da malha fluvial de “Sergipe o
Novo”, sempre buscando, com tal descrição toponomástica, identificar tais variâncias
classificatórias como reflexo da instabilidade cultural desta frente pioneira de colonos
lusófonos em franco processo inclusão de neologismos da língua tupi e posterior
mestiçagem vernacular. Eis como eram chamados os rios, riachos, ribeiras e cursos
d’água em Sergipe entre 1596-1623: Aguapetiba, Agoa Petiba, Auguapetiba, (nome
indígena rio Santa Maria); Amdaijasu, Andajatu (desconhecemos qual seja essa ribeira);
Aracaju; Ariticuiba, Aryticuiba (afluente do Rio Real junto a foz, conserva o mesmo
nome); Augiapioba, Agiopioba (nome indígena de um riacho “esteiro” 242
que
desemboca no Poxim); Buzarema Areteca (acreditamos que se refira ao rio hoje
chamado Guararema); Cãbohi (conserva o mesmo nome); Cajaiba, Cajahiba, Caiaiba
(não sabemos bem qual o rio que os índios chamam Caiaiaba); Comendaroba,
Commendaroba; Cotemguiba, Cotindiba, Cotendiba, Quotidiba, Quoatinguyba,
Quatimdiba, Quatimguiba, Quoatimgiba, Catimdiba, Quatenjiba; Goarujaby Goarujahi,
Guruahy (Burarema, afluente do Real); Guacujahi; Guitihiba (nome indígena de um
afluente do Rio Real); Hitanhi (Real); Hunis Estriga; Hupatinga, Upatinga (riacho hoje
chamado Urubutinga, junto a Lagarto); Ibirarema (é o rio Guararema, afluente do Real);
Ibura, humbura, imbura (córrego do Cotinguiba, conserva o mesmo nome); Inajaroba;
Ipitanga (rio Pitanga; Ipochi, Ipochim, (nome indígena do rio Poxim); Ipochimerim;
Itaguandiba (não sabemos qual era esse rio, não será Cotinguiba?); Japaratuba; Mocori,
Mocory, Mocuri, Mocury, Mocoriria, Mucury; Paramupama, Peramupenba; Paratigim,
Paratigi, Pritigi (afluente desconhecido do Vaza Barris ou do rio Real, acreditamos ser o
Rio das Pedras); Piauhy; Piramopama, Pirao Mopama, Piranapama; Pixaxiapa (creio ser
o rio Indiatuba); Pochim, Poscim; Potegipe (nome primitivo de Cotinguiba); Potihipeba
(nome indígena do Vaza Barris); Quajpe; Real, Rial, (chamado pelos indios Hitanhi);
Saibetiaia; São Francisco ou San Francisco; Seregipe; Taipitaia, Taymytiaia, Taipitiaia;
Tãomytiaiaia, Tãomitiaia (nome indígena do rio chamado hoje Jacaré, afluente do
Piauí); Tapecahy; Taporanga; Tapucurá, Tapaquru, (rio Itapicurá); Una; Vasa Barris
(Irapirang).

242
“Esteiro: Parte estreita de rio ou de mar, que penetra terra adentro; braço, estuário”
114

Outros acidentes geográficos e localidades são igualmente referidos nas


Cartas de Sesmarias, representando tal documentação a principal fonte para a
reconstituição da história topográfica de Sergipe del Rei em seus primeiros anos de
colonização. Na orla marítima foram citados o cabedelo243 Ipelempe e a ponta Tinhare
e as Ilhas de Patatiba e Tinharé. São nomeadas quatro lagoas no Livro de Datas:
Jabotinhaia (lagoa do Poxim que fica entre Aracaju e São Cristóvão); Jacaré Merin;
Jaraputanema (nome primitivo da Lagoa Seca, na estrada de Itabaiana para Itaporanga)
e Jaraquatenema. O único mangue a ter seu nome referido era conhecido por
Corropoiba, havendo no rio Cotinguiba, nas proximidades da atual cidade de
Laranjeiras, uma famosa pedra, Itaboca, e no Rio Piauí, o “Porto das Pedras”. Algumas
veredas cortavam a novel capitania conquistada por Cristóvão de Barros: o Caminho
Novo (correndo para Hopiramopama), Gauquaju, Hopiramopama e Taperagua.
Algumas poucas serras e outeiros também mantiveram seus primitivos nomes tupis:
Serra da Cayaiba ou Caiaiaba; Serra do Bogio (macaco em tupi), Serra do Piauhy e da
Tabangua, além do outeiro de Joseaba ou Joseoba, “junto ao Rio São Francisco”.
Passam de uma dezenas as localidades já nomeadas no território sergipense nessa
passagem do século XVI para o XVII, predominando ainda os nomes nativos, diversos
destes lugarejos repetindo a denominação dos rios em cujas margens estavam situados:
Caipe; Cajabuta, Cajajbuta, Cajajbata (povoação junto à cidade de Laranjeiras);
Capitania de San Cristóvão de Seregipe, Capitania de Serigipe, Cidade de Serigipe;
Itaporãgua, Taporanga (vila de Itaporanga); Jarataquanoma; Jascoba; Parratigi; Pitanga,
Pitãgua; Tabaiana, Tabajana, Tabangua (Itabaiana); Taperogoi, Taperagua,
Taperahagua, Taperagoa, (acredito ser o nome de Taberauá). Com exceção da Aldeia
de São Tomé, sita nas imediações do Rio Real, assim batizada em 1575 pelos Jesuítas,
as demais povoações tupinambá referidas neste território mantêm seu nome tribal:
Maitacanema, Taperagua e Tepahoqua. Já nestes primórdios de ocupação
“civilizatória”, são citadas algumas “taperas”, termo tupi (tawa pwera,”taba que
foi”),que originalmente significava “aldeia abandonada, habitação em ruínas”, mas que
posteriormente,segundo o citado dicionarista Antonio de Moraes Silva, compreenderá
também “fazenda que algum tempo se granjeou, e que depois se abandonou e deixou
fazer mato ou sapezal, por cansada”. Nas Cartas de Sesmarias são referidas oito
taperas, relembrando que as identificações entre parêntesis são sempre de autoria do

243
“Cabedelo: Pequeno cabo ou pequeno monte de areia que se forma junto à foz dos
rios.”
115

ainda insuperável príncipe dos historiadores de Sergipe, o Dr.Felisbelo Freire:


Enforcados, Guarauna (antiga habitação indígena junto ao rio Cotinguiba), Manylha
(hoje é uma povoação na estrada de Laranjeiras para Itabaiana), Paranaçu, Pixapoam,
Samba, Serobim, Tajoaba ou Taioba (nome primitivo de uma aldeia junto ao rio Poxim,
onde está edificado o engenho Poxim).
Estas reflexões introdutórias, conforme aludimos acima, tiveram como
objetivo familiarizar o leitor com a predominância da toponomástica tupi e os primeiros
sinais de miscigenação cultural em “Sergipe o Novo” – aqui salientados através de sua
toponímia no primeiro quartel de sua belicosa história. Insistimos na expressão
“belicosa” pois este novo território acabava de ser “desinfestado do gentio bravo”, como
se dizia na época, em decorrência da sanguinolenta “Guerra de Sergipe”.

II. Franceses em ‘Sergipe o Novo’


A primeira entrada contra os índios de Sergipe, aldeados nas proximidades
do Rio Real, teria acontecido em 1556, por ordem de Mem de Sá, Governador da
Bahia, como vingança por terem os índios Caetés devorado D.Pero Fernandes Sardinha,
primeiro bispo do Brasil. “Decorrentes dessa perseguição e da investida predatória
realizada contra as aldeias indígenas, cresceu no Tupinambá do Rio Real e de todo
território sergipano, o ódio aos portugueses, o que os levaria a intensificar a aliança com
os franceses. Entre as instruções trazidas pelo novo governador Luiz de Brito,
orientando sua administração, estava a de combater a permanência dos franceses no Rio
Real.”244 Um documento inquisitorial faz referencia exatamente nesta época ao contacto
de um colono português com os invasores franceses que contrabandeavam pau Brasil e
pimenta nas costas sergipanas. Trata-se da confissão de Baltasar Barbosa, datada de 23
de janeiro de 1592, mas que se reporta a um episódio ocorrido duas décadas antes, lá
pelos idos de 1572, quando tinha 25 anos. Denunciou-se na Primeira Visitação da
Bahia, no tempo da graça. “Disse ser cristão velho, natural dos Arcos, cinco léguas de
Braga, filho de Gaspar Barbosa e de Violante Gonçalves, de idade de quarenta e cinco
anos pouco mais ou menos, casado com Catarina Álvares, lavrador, morador em Sergipe
do Conde deste Recôncavo. E confessando, disse que haverá vinte anos pouco mais ou
menos que, perdendo-se com o tempo na costa de Sergipe, o novo, onde ora é a cidade

244
Nunes, op.cit., 1989, p.19
116

de São Cristóvão desta capitania, e ele com outros seus companheiros foram tomados
pelos franceses luteranos que naquele tempo estavam no dito lugar. E um dia, estando
um luterano daqueles, disse aos companheiros, dele confessante, [que] se indo a Roma
ao Papa pedir-lhe perdão, se lhe poderia o Papa perdoar as culpas de luterano para que
ele voltasse a viver catolicamente, e um seu companheiro por nome Antônio Gonçalves
lhe respondeu que sim, poderia perdoar o Papa. Então, ele confessante, simples e
inconsideradamente, por contradizer ao seu companheiro, respondeu-lhe que o não
podia fazer - e desta culpa pede perdão. E foi logo perguntado se teve ele, ou tem,
dúvida que o Papa tenha maior poder sobre todos os bispos e prelados do mundo,
respondeu que nunca teve, nem tem tal dúvida, e que bem creu e sabia que o Papa tem
poderes de Deus para poder perdoar aos Luteranos, convertendo-se eles à fé católica. E
sendo ele mais perguntado, disse que o dito Antônio Gonçalves é já morto e quando isto
aconteceu estava também presente Diogo Dias, mameluco, genro de Garcia da Vila e
cunhado dele confessante, morador nesta cidade, e não foi mais presente outrem
alguém, e que o dito Antônio Gonçalves, já defunto, repreendeu logo a ele confessante e
ele se calou e isto fez com teima de sempre contradizer ao dito Antônio Gonçalves, por
andarem de rixa. E depois disto, o dito luterano blasfemou contra o Papa, dizendo
palavras injuriosas, e o dito luterano falou as ditas coisas em espanhol, que bem o
entendia; e não estava bêbado nem fora de seu juízo.E foi-lhe mandado ter segredo e
prometeu ter segredo pelo juramento que recebeu, e foi-lhe mandado que no mês de
março que vem torne a esta mesa.” 245
Nestas Cartas das Sesmarias há igualmente referência a animosidade
existente entre os colonos luso-brasileiros e os franceses por estarem estes
mancomunados com os tupinambá. Como se sabe, os índios chamavam aos franceses
de “mair”. Diz Bras Dabreo, em seu pedido de Sesmaria, datado de 15 de maio de
1623, que “sendo governador Cristóvão de Barros, ele veio ajudar a tomar este Sergipe
com suas armas, cavalo e escravos, à sua custa, em serviço de Sua Majestade, e sempre
o acompanhou em todos os rebates246, sempre esteve prestes donde recebeu muitas

245
Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil. Confissões da Bahia, 1591-
1592. Rio de Janeiro, F.Briguiet & Cia, 1935. Prefácio de Capistrano de Abreu, p.114.
Confissões da Bahia, 1591-1592. São Paulo, Companhia das Letras, 1997, Introdução e
Notas de Ronaldo Vainfas, a quem agradeço a gentileza de ter-me oferecido a versão
digitada das “Confissões da Bahia”, o que facilitou sobremaneira o trabalho de
cotejamento.
246
“Rebate: Incursão, assalto, ataque súbito e inesperado; escaramuça.”
117

flechadas e pelouradas247, por estarem os franceses em companhia do dito gentio e lhe


ensinavam o artifício do fogo, por terem muitas espingardas que lhes ficaram, sendo
cinqüenta homens que tinham mortos, havia três anos na Tabaiana, hora queriam os
ditos franceses por mar e o gentio por terra, a tomar a Bahia, se lhe não viera dar guerra
o dito Governador Cristóvão de Barros e hora matou muito gentio...”248
Diversos outros colonos luso-brasileiros ouvidos pelo Visitador do Santo
Ofício referiram ter “comido o pão que o diabo amassou” quando “tomados pelos
franceses luteranos”, inimigos dos portugueses católicos, sendo espancados com tirania,
sobretudo quando tais prisioneiros recusavam-se em cumprir a doutrina e rezar à moda
dos protestantes. Alguns destes, quando aprisionados em naus lusitanas, tiveram pior
sorte: foram jogados no mar, como aconteceu com o Beato Inácio de Azevedo e seus 39
companheiros jesuítas, os primeiros “Mártires do Brasil”, que foram afogados pelos
calvinistas perto das ilhas Canárias (1570) e outros 12 missionários jesuítas que
igualmente vinham para o Brasil e sofreram o mesmo martírio um ano depois (1571). 249
Pelo que sugere o supracitado confessante Baltasar Barbosa (1572), os
franceses acantonados em Sergipe eram menos fundamentalistas em matéria religiosa,
pois não obrigaram seus “tomados” à prática do luteranismo, participando inclusive das
conversações dos católicos – que talvez tentassem convertê-los à “verdadeira fé”,
atraindo-os com a promessa de que o Papa tinha poder suficiente para perdoar-lhes e re-
acolher os apóstatas ao rebanho da Santa Madre Igreja. Infelizmente a documentação
não fornece mais detalhes sobre esta convivência de luso-sergipanos com os franceses:
como foram “tomados” (capturados ou conquistados), como eram mantidos subjugados
para não fugir, que tipo de trabalho forçado eram obrigados a prestar aos estrangeiros,
como eram tratados pelos índios aliados dos invasores, como conseguiram escapar e
retornar à Bahia. A leitura de outros depoimentos de prisioneiros católicos presos pelos
luteranos e calvinistas, assim como a fantástica narrativa de Hans Staden, quando
capturado pelos Tupinambá, aliados dos franceses na Capitania de São Vicente (1554),
podem fornecer pistas cruciais para reconstituir experiência existencial tão dramática,
muito semelhante à experimentada por outros católicos nas costa de Sergipe, tal qual

247
“Pelourada: série de tiros de bala ou bola de ferro ou de pedra, esférica, empregada
em peças de artilharia.”
248
Freire, op.cit., 1977, p.409
249
Leite, Serafim. Historia da Companhia de Jesus no Brasil. Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 1939, v.10, p.2356-240; Mott, Luiz. “Santos e Santas no Brasil
Colonial”. Série História da Fundação Waldemar Alcântara, Fortaleza, 1994, p. 5
118

sucedeu com Baltazar Barbosa e seus “companheiros” de infortúnio: o português


Antônio Gonçalves e Diogo Dias, mameluco, “genro de Garcia da Vila (D’Ávila) e
cunhado dele confessante”. 250

III. A ‘Guerra de Sergipe’ nas Visitações do Santo Ofício

A prisão deste náufrago a pouco citado, nas costas sergipanas, efetuada


pelos franceses, segundo relatou o próprio depoente, teria sucedido por volta de 1572.
Poucos anos depois, exatamente, aos 5 de fevereiro de 1575, marca a chegada dos
primeiros missionários a esta região, os jesuítas padre Gaspar Lourenço e do irmão
leigo João Solônio, que se acantonaram às margens do Rio Real. Junto com os dois
inacianos, segundo narra Felisbelo Freire, baseado nos relatos de Frei Vicente do
Salvador, Southney e outros historiadores antigos, marchavam quarenta homens, sendo
vinte neófitos da aldeia de Santo Antonio da Bahia e vinte soldados. 251 Dirigem-se à
aldeia dos tupinambá situada a seis léguas do rio Real, onde viviam por volta de mil
almas, construindo aí uma capelinha de pindoba252, dedicando-a à ao apóstolo São
Tomé, festejado dia 21 de dezembro, certamente em lembrança ao mito que atribuía a
este incrédulo discípulo de Cristo a evangelização do Novo Mundo nos primeiros anos
da era cristã. A convite do cacique Surubi, outra igrejinha é ereta mais tarde na aldeia
Sarabi, tendo como orago Santo Inácio, situada às margens do Vaza Barris, talvez no
253
mesmo sítio onde foi posteriormente edificada a vila de Itaporanga. Mais tarde
fundam, perto do mar, a igreja de São Paulo, na região do cacique Serigi. 254 Em
setembro deste mesmo ano, 1575, sete meses após os primeiros contactos dos padres
com os nativos, em longa carta enviada ao Padre Geral da Companhia de Jesus, são
narradas as dificuldades enfrentadas e os primeiros frutos colhidos pelo Padre Gaspar
Lourenço, “grande língua e muito afamado”, na catequização dos “negros da terra”.
Informa-se sobre a fundação de uma escola de catecismo, consagrada a São Sebastião,

250
Em 1595, segundo Porto Seguro, uma nau comandada por Pires de Mill naufraga nas
costas de Sergipe, onde ficaram prisioneiros 116 homens. Apud Freire, op.cit., 1977
251
Freire, op.cit., 1977, p.70
252
“Pindoba: Palmeira de belo porte (Attalea compta), que compõe amplos palmeirais e
apresenta nozes muito duras, com algumas sementes, ricas em óleo utilizável.”
253
Freire, op.cit., 1977, p.70.
254
Nunes, op.cit., 1989, p.21; Dantas, Beatriz. “Os índios em Sergipe”, in Textos para a
História de Sergipe, Aracaju, Universidade Federal de Sergipe, 1991, p.35
119

que chegou a reunir cem catecúmenos. Muitos perigos e ameaças faziam parte do dia a
dia, e sobretudo das noites, destes abnegados missionários, tanto que um morubixaba de
outra aldeia, por nome Curubi, “que em tempos passados tinha morto alguns brancos e
nunca havia podido aceitar sua amizade”, vindo visitar os sacerdotes, queria a todo
custo que fossem visitar sua distante maloca, mas, segundo opinião dos demais
silvícolas, ”não havia entrado em a aldeia com boa intenção, sim com o desejo de
quebrar a cabeça do padre adiante de todos, e havia alguns que estavam a esperar
(dizendo): agora será, agora será!”, mas “graças à misericórdia divina”, escaparam deste
ardil. “Vendo, porém, o demônio tão bons princípios na conversão daqueles gentios e
que já começavam a tirar-lhes as almas da boca, começou a levantar as tempestades
acostumadas para impedir esta obra”, havendo diversas deserções de índios e índias já
catequizados, retorno às praticas de canibalismo e amancebias escandalosas – condutas
pecaminosas que os cristãos, notadamente os Inquisidores, chamarão de gentilismo ou
paganismo. Cerca de trinta aldeias teriam sido então contatadas pelos missionários.
Gravíssima tragédia, porém, sucedeu em novembro de 1575, quando o
governador da Bahia, Luiz de Brito e seus soldados, “com grande aparato de guerra” e
“animados pelo desejo de trazer gentio para o cativeiro”, invadem a missão de São
Tomé, assolando tudo o que encontraram pela frente, levando 1200 índios cativos para a
Bahia, arruinando no nascedouro a ação missionária nestes sertões. “Luiz de Brito
retirou-se do território sergipano sem deixar, porém, qualquer marco de colonização.
Logo os franceses retornaram ao comércio do pau Brasil com os índios Tupinambás,
que voltaram dos sertões, e os Kiriri vindos das regiões interioranas para ocupar os
espaços vazios resultantes da devastação que havia sido feita..” 255
A sanha expansionista dos conquistadores luso-baianos mantinha a faísca
dos arcabuzes bem acesa, embora se registrando também desalentadores revezes. Em
1586, uma década após a destruição da nascente aldeia jesuítica de São Tomé, 150
soldados e 300 índios domesticados, que contavam com o apoio da Casa da Torre,
adentram-se por esses sertões, sendo ferozmente trucidados pelos índios Kiriri,
comandados pelo cacique Baepeba, sempre instigados pelos franceses, com quem
comerciavam produtos da terra.256 Foi em 1590, sob o reinado de Felipe II, que tem
início a famigerada Guerra de Sergipe, tendo como comandante Cristóvão de Barros,

255
Nunes, op.cit., 1989, p.23
256
Bezerra, Felte. Investigações histórico-geográficas de Sergipe. Rio de Janeiro,
Edição da Organização Simões, 1952, p.33; Nunes, op.cit., 1989, p.24
120

então membro da junta interina que governava o Brasil. 257 Experiente guerreiro, teve
participação vital, ao lado de Mem de São, na conquista e restauração do Rio de Janeiro.
Nos finais de 1590 parte da Torre de Tatuapara, a célebre sede da Casa da Torre de
Garcia D’Ávila, comandando mais de três mil soldados, entre brancos e índios
domesticados. Devido à superioridade bélica dos brancos, advinda das armas de fogo e
da cavalaria, em poucos meses conseguiram vencer mais de vinte mil índios, dos quais
2400 foram mortos e 4 mil escravizados. Como relatou Frei Vicente do Salvador,
“alcançada a vitória e curados os feridos, armou Cristóvão de Barros alguns cavaleiros
como fazem na África, por provisão de El Rei, que para isso tinha, e fez repartição dos
cativos e das terras.” 258
Tanto nas Cartas de Sesmarias quanto nas Confissões da Visitação do Santo
Ofício à Bahia vamos encontrar interessantes informações sobre diversos destes
personagens que participaram diretamente da Guerra de Sergipe, permitindo-nos
conhecer, com riqueza de detalhes, as aventuras e desventuras dos primeiros moradores
de Sergipe, esses intrépidos desbravadores das terras situadas entre o Rio Real e o Rio
de São Francisco. A primeira menção a tal campanha militar aparece numa confissão de
20 de agosto de 1591: Catarina Fróes, natural de Lisboa, meia cristã nova, 50 anos
pouco mais ou menos, mulher de Francisco de Morais que serviu nesta cidade de
escrivão e de meirinho e outros ofícios, moradora nesta cidade, confessando, disse que
haverá um ano que nesta cidade contratou com Maria Gonçalves, d’alcunha Arde-lhe-o-
rabo, mulher não casada, vagabunda, ora ausente, que lhe fizesse uns feitiços para que
um seu genro Gaspar Martins, lavrador morador em Tassuapina ou morresse ou o

257
Cristóvão de Barros era filho do Provedor da Fazenda Antonio Cardoso de Barros (e
seu vingador), veio comandando a frota de três galeões em socorro a Estácio de Sá,
instalado no Rio de Janeiro. Engrossada na Bahia com outros barcos, constituía a
armada com que Mem de Sá conquistou e restaurou a cidade em 1567. Foi o 3º Capitão
Mor do Rio de Janeiro, entre 1572-1577, onde teve sesmarias e engenho de açúcar em
Magé. Em 1577 é nomeado Provedor Mor da Fazendo, como o pai, com 100 mil réis
anuais.Governou interinamente a Bahia, com o Bispo D. Antonio Barreiros (1587-
1591). Conquistou e fundou a Capitania de Sergipe Del Rei (1589-1590). Perpetua-lhe o
nome a cidade de São Cristóvão. Ainda em 1601, na Bahia, exercia o governo. No ano
anterior, instituiu morgado, “para obstar que seu filho Antônio Cardoso de Barros tudo
esbanjasse”. Suas irmãs, Dona Mariana, mulher de Pedro de Abreu Lima, recebeu da
sogra, viúva, D.Guiomar de Melo, terra em Sergipe Del Rei e no São Francisco,
vendidas aos Carmelitas e aos jesuítas em 1652 e D.Maria, foi casada com Antônio das
Neves Ferro. Calmon, op.cit., 1985, p.120
258
Calmon, Pedro. O Segredo das Minas de Prata, 1950, p.20, apud Nunes, op.cit.,
1989, p.27
121

matassem ou não tornasse da guerra de Sergipe, sertão desta capitania, na qual então
estava, por não dar boa vida à sua mulher moça, filha dela confessante, por nome Isabel
da Fonseca, e isto entendendo que os ditos feitiços haviam de ser arte do diabo. E para
isto deu algum dinheiro à dita Maria Gonçalves e a dita Maria lhe dizia que já lhe faria
os tais feitiços, pedindo-lhe mais dinheiro, e por ela vir a entender que a dita Maria
Gonçalves lhe não havia de fazer coisa que obrasse, desistiu disto, nem veio a haver
efeito, nem chegou a dita Maria Gonçalves dar os feitiços, e declarou ela confessante
que pretendeu haver os ditos feitiços da dita maneira à instância e rogo da dita sua filha,
que lho pediu que lhos negociasse por não gostar dele. 259
Infelizmente não sabemos o que aconteceu com o referido soldado Gaspar
Martins: se morreu em campanha, se retornou ou não da guerra de Sergipe. Seu nome
não consta entre os que solicitaram sesmaria no sertão sergipense. Quantos outros destes
desbravadores do sertão sergipano ter-se-iam alistado nesta campanha para escapar dos
desamores de suas esposas ou da implicância de sogras abusadas?
Outro colono a referir-se à Capitania de Sergipe – provavelmente soldado a
pouco chegado do campo de batalha –foi Roque Garcia, que se confessou ter cometido
o pecado de blasfêmia. Compareceu perante o Visitador no tempo da graça, aos 19 de
agosto de 1591, dizendo que “haverá cinco meses, estando ele em Sergipe, donde é
capitão Tomé da Rocha, disseram uns negros que os gentios tinham mortos quatro ou
cinco homens que estavam em um barco em o rio de São Francisco, e que queimaram o
barco. E dizendo o capitão que os negros mentiram, respondeu ele confessante que tanto
cria ele no que diziam aqueles negros, como nos Evangelhos de São João, sendo
presente Antônio Fernandes, casado, natural da ilha Terceira, soldado em Sergipe, o
qual o repreendeu e ele se calou. E disse aquelas palavras parvamente, e pede delas
perdão e penitência saudável com misericórdia, e disse que não deu conta disto a
outrem, e foi-lhe mandado ter segredo e que atente como fala, e fale palavras de bom
cristão que não dêem escândalo e lhe não causem dano em sua alma, e se vá confessar a
um padre da Companhia e traga escrito, e cumprirá a penitência que lhe derem.” 260
Essa blasfêmia contra o quarto Evangelho não foi considerada
suficientemente grave pelo Visitador para merecer punição, prevalecendo nesta
avaliação mais a misericórdia do que a justiça, os dois alicerces em que se escoravam os
julgamentos deste santo tribunal da fé. Digno de destaque também na confissão desse

259
Confissões da Bahia, op.cit, 1935, p.53
260
Confissões da Bahia, op.cit, 1935, p.41
122

Roque Garcia – cujo nome não consta entre os beneficiários de sesmaria, é que suas
palavras néscias foram proferidas como parte de um diálogo com o Capitão Tomé da
Rocha, figura importante na história local, posto que o Capitão Geral das Entradas
Cristóvão de Barros ao retirar-se de Sergipe, “deixou o governo entregue a Tomé da
Rocha, que na guerra de Sergipe tomou parte importante, vindo da Bahia, depois da
saída de Cristóvão, auxiliar-lhe a acabar a obra da conquista que durou oito meses de
grandes lutas.”261 Permanece contudo a dúvida: seria verdade que “os gentios tinham
mortos quatro ou cinco homens que estavam em um barco em o rio de São Francisco”,
queimando em seguida a embarcação? Ou estaria certo o Capitão Tomé de Rocha,
identificando esse suposto sinistro como “mentira de negros”? Outra dúvida sugere a
confissão deste retornado de Sergipe: embora “negros” nesta época fosse usado
indistintamente na identificação dos ameríndios, chamados de “negros da terra”, e dos
africanos, referidos como “negros da guiné”, nesse contexto, tudo leva a crer que os tais
“negros” que se supunha estarem mentindo, deviam ser mesmo africanos ou afro-
descendentes, já que na mesma frase há referencia a “gentios”, isto é, ameríndios. Salvo
erra, seria esta então a primeira referência a presença da raça negra em terras de Sergipe
del Rei, 1591.Uma derradeira observação: como o Rio de São Francisco atravessa no
nordeste as Capitanias da Bahia, Sergipe, Alagoas e Pernambuco, não há como saber
com exatidão, quando citado genericamente, em qual das capitanias ocorreu o fato em
tela. Nesse caso, tudo leva a crer, dadas as circunstâncias relativas ao acontecimento, se
tratava mesmo da margem sergipana do Velho Chico.

IV. Vivendo como gentios

Estoutra confissão, datada de 2 de fevereiro de 1592, revela aspectos deveras


romanescos do quotidiano dos primeiros habitantes dessa Capitania, novamente
voltando ao tema da presença francesa em Sergipe del Rei, mais precisamente na região
do São Francisco. “Simão Luis disse ser francês de nação, natural da cidade de Rabra
Nova (sic), filho de Roberto Luis, luterano, e de sua mulher Margarida Grisel, católica,
que não sabe se são vivos, se defuntos, viúvo, lavrador e morador no Rio de Perabasu,
de idade de 35 anos.E confessando-se, disse que, sendo ele moço de dez anos, na sua
terra, fugia da doutrina de sua mãe católica e seguia a seita luterana que o dito seu pai

261
Freire, op.cit., 1977, p.85
123

luterano lhe ensinava. E sendo da dita condição e idade, [portanto em 1567], se veio em
um navio da sua terra, o qual navio era também de luteranos, e com eles vinha ele
guardando a sua seita , e desembarcando na costa deste Brasil a buscar pau [Brasil], ele,
quando foi o tempo da partida no rio de S.Francisco, fugiu e se ficou em terra com os
negros gentios deste Brasil, no sertão, e com os ditos gentios esteve dois anos, usando
todas as gentilidades como os ditos gentios, de maneira que até ser de idade de 12 anos
pouco mais ou menos, ele não teve a lei de Jesus Cristo. E depois de isto passar, fugiu
dos ditos gentios para esta cidade e, em Vila Velha, o cura o confessou e os padres do
dito Colégio da Companhia de Jesus o doutrinaram, e de então até agora vive
catolicamente, porém sempre em seu coração teve até agora uma erronia, a qual é
parecer-lhe e ter por certo que não era necessário rezar aos Santos nem às Santas, nem
honrá-los, nem rogar-lhes nada, mas que somente bastava honrar, rogar, pedir e rezar a
Deus, a Jesus Cristo e a Nossa Senhora, tendo para si que pois os Santos eram servos e
Deus é o senhor, que não era necessário fazer conta dos servos senão do senhor, e que
destas culpas pede misericórdia, dizendo que já é do conhecimento da verdade que os
Santos devem ser venerados e honrados. E foi-lhe mandado que no Colégio de Jesus
continuasse cada manhã estar de uma hora, estes dias seguintes, com o Padre Pero
Coelho, até ele o instruir bem nas coisas de Nossa Santa Fé e que lhe importam para a
salvação de sua alma, e no fim se confesse a ele fazendo confissão geral de toda sua
vida, e que traga escrito a esta mesa de como tem satisfeito a isto.” 262
Fixemo-nos apenas na culpa confessada por esse que parece ser o primeiro
francês, ou um dos primeiros desta região, a aparecer na documentação, com nome,
sobrenome e alguns dados biográficos: disse Simão Luiz que “com os ditos gentios
esteve dois anos, usando todas as gentilidades como os ditos gentios, de maneira que até
ser de idade de 12 anos pouco mais ou menos, ele não teve a lei de Jesus Cristo.” Quais
seriam tais “gentilidades”, entendidas na época como sinônimo de paganismo, idolatria?
Dois moradores de Sergipe nos dão mais minudência desta exótica adoção por parte de
civilizados dos costumes do “gentio bravo”. O primeiro é João Gonçalves, que
confessou aos 29 de janeiro de 1592. “Disse ser cristão velho, natural da capitania dos
Ilhéus, costa deste Brasil, filho de Tomé Fernandes263 e de sua mulher Isabel Gonçalves,
trabalhadores, solteiro, que lhe parece ser de idade de 20 anos, alfaiate, morador em

262
Confissões da Bahia, op.cit, 1935, p.146-147
263
Seria esse Tomé Fernandes, pai do confessante, o mesmo que recebeu sesmaria em
Sergipe em 23 de julho de 1594? Freire, op.cit., 1977, p.323.
124

Sergipe do Conde deste Recôncavo. E confessando, disse que haverá três anos que foi
na companhia de Cristóvão de Barros à guerra de Sergipe Novo, na qual andou no
arraial, e mandando Cristóvão de Barros a Álvaro Rodrigues, mameluco da Cachoeira,
por capitão de uma companhia de cento e tantos homens pelo sertão adentro a fazer
descer gentio com paz, ele confessante foi na dita companhia, na qual andou no dito
sertão algum mês e meio, e nesse tempo, nos sábados e sextas-feiras e dias que não eram
de carne, ele confessante comeu sempre carne.E antes de partir com o dito Álvaro
Rodrigues para o dito sertão, estando no arraial em Sergipe, se fez riscar em um braço e
logo mostrou o braço esquerdo, entre o cotovelo e o ombro, cortados na carne, feitos
como ferretes que ficam em sinal para sempre, o qual riscado é uso e costume dos
gentios valentes, de maneira que riscar-se e ser riscado significa entre os gentios ser
gentio cavaleiro e valente, e declarou que Estácio Martins, mameluco, alfaiate, morador
de Ilhéus, lhe fez o dito riscado. Confessou mais, que haverá ano e meio que ele,
confessante, foi na companhia de Gonçalo Álvares, carpinteiro de Tamararia, ao sertão
das Alpariacas, na qual companhia eram por todos 25 brancos, e alguns 60 selvagens
pagãos, e alguns 30 escravos cristãos, e andaram no sertão 15 meses sem se confessar,
donde ora poucos dias há que vieram, nos quais 15 meses, em todos os dias da
quaresma e nas sextas-feiras e sábados e mais dias que não eram de carne, comeu, e
assim comia toda a dita companhia do seu rancho. E de tudo pediu perdão nesta mesa e
foi-lhe mandado ter segredo pelo juramento que recebeu e que se vá confessar ao
Colégio de Jesus e traga escrito a esta mesa antes de se tornar para sua casa, e que
depois de março torne a esta mesa.”264 Nesse caso, além das tatuagens no braço,
“cortados na carne, feitos como ferretes”, prova de valentia mas que possuía certamente
significado simbólico,quiçá religioso, a única gentilidade praticada por esse soldado foi
o comer carne em dias defesos.
Outro confessante, talvez devido à sua condição de mestiço ameríndio,
apesar de ter sobrinho de um cônego no cabido de Salvador, deixou-se seduzir com mais
comprometimento e por mais tempo pelo gentilismo. Trata-se de Lázaro da Cunha265,
“mameluco, natural da capitania do Espírito Santo, filho de Tristão da Cunha, defunto,
homem branco, e de sua mulher Isabel Pais, mameluca, irmã do Cônego Jácome de

264
Confissões da Bahia, op.cit, 1935, p.126
265
Este réu foi processado, apesar de confessar na graça. Recebeu penitências
espirituais, além de ser proibido de voltar ao sertão. Arquivo Nacional da Torre do
Tombo, Inquisição de Lisboa, Processo 11068. [Nota de R.Vainfas]
125

Queiroz, solteiro, de idade de 30 anos, que não tem ora lugar certo de morada. E
confessando suas culpas, disse que haverá sete anos pouco mais ou menos que ele foi de
Pernambuco na companhia de Manuel Machado para o sertão de Paripe, no qual se
deixou ficar na companhia dos tupinambases, que são gentios, e entre eles andou
vivendo cinco anos pouco mais ou menos, sempre ao modo gentílico, tingido e fazendo
e usando todas as cerimônias, usos, ritos, estilos e costumes dos ditos gentios, fazendo
tudo assim e da maneira como se ele fora gentio, e tratando com feiticeiros como eles
fazem , porém, ainda que fazia tudo isto, ele nunca no seu coração deixou a fé de Jesus
Cristo, e sempre em seu coração foi cristão e se encomendou a Deus e a Nossa Senhora
e Santos do Paraíso. E no dito tempo andava com os ditos gentios nas suas guerras,
ajudando-os contra os outros gentios, e uma vez vieram brancos cristãos ter sobre uma
aldeia onde ele confessante estava, e o puseram em cerco, pelo que ele os guerreou e
desbaratou, porém neste desbarate não ficou nenhum dos cristãos mortos, ainda que
ficaram alguns feridos, que depois sararam. E outrossim, no dito tempo, nas guerras que
ele fazia contra outros gentios, ferrou muitos deles e matou, e os deu a comer aos
gentios em cuja companhia ele andava, e em todos os ditos cinco anos e meio pouco
mais ou menos que andou no dito sertão, sempre nos dias das quaresmas e das sextas-
feiras e sábados, e mais dias de jejum proibidos pela Igreja, comeu carne sem fazer
diferença alguma e sem ter necessidade dela, e deu mais aos gentios uma espada.
E sendo perguntado, disse que os ditos gentios em cuja companhia andou são
inimigos dos brancos cristãos e os guerreiam, como fizeram no dito tempo que ele com
eles andou, que tendo feito resgate com um arraial de perto de duzentos brancos
cristãos, que foram ao dito sertão resgatar, eles ditos gentios, à traição, assaltaram com o
dito arraial de brancos e mataram quatorze ou quinze brancos cristãos, e a muitos
feriram e os desbarataram, tomando-lhe as peças266 e ficando-se com elas e com o
resgate delas que já tinham, e neste desbarate, ficou ele confessante então desbaratado, e
por isso se veio então. De maneira que os ditos gentios são inimigos dos brancos
cristãos e não costumam ter paz com eles, senão enquanto eles não têm força nem posse
para lhes dar guerra. E em todos os ditos anos não se confessou nem comungou, e
conversou carnalmente as gentias, e tinha mulheres muitas, como costumam os gentios,

266
Esta confissão que descreve uma típica operação de resgate, isto é, de troca de índios
escravos por armas e outros bens. Neste caso, os índios que “venderam” os escravos
ficaram com o resgate e com os próprios escravos - as mencionadas peça, tomando de
assalto o arraial dos portugueses após a negociação. [Nota de R.Vainfas]
126

e todos os exteriores de gentio guardou inteiramente e, depois do dito tempo passado, se


veio a Sergipe desta capitania. E depois, ainda haverá quinze meses, tornou para o
sertão outra vez em companhia de Gonçalo Álvares, onde andou até agora, que de lá
vem, e sempre neste espaço de tempo, nos dias da quaresma e sextas -feiras e sábados, e
mais dias proibidos pela Igreja, comeu carne sem necessidade (e) não se confessou na
quaresma passada que esteve no dito sertão. E foi perguntado se alguma vez em seu
coração lhe pareceu que se podia salvar naquela gentilidade e que a lei dos cristãos não
era boa para a salvação das almas, e se com essa intenção fez algumas obras de gentio
das que tem dito ou outras algumas mais, respondeu que nunca tal lhe pareceu e sempre
esperou salvar-se na lei de Cristo, e o que fez fazia por comprazer aos índios. E foi-lhe
declarado o muito que lhe importa falar verdade, se fez as ditas obras de gentio com
intenção de gentio, porque não pode ser absoluto senão nesta mesa, e foi admoestado
que desencarregue sua consciência, porque nesta mesa não se trata mais que da salvação
de sua alma, pois está no tempo da graça e perdão, respondeu que sempre teve a fé de
Cristo no coração e tem dito a verdade. E foi perguntado que adorações fez ele e a quem
adorava, respondeu que os ditos gentios não têm Deus nenhum em que creiam, nem
adorem, nem têm ídolos mais que somente as coisas que os seus feiticeiros lhes dizem,
essas crêem, e quando tomam carne humana dos selvagens, que é outra casta dos
gentios, comem-na com grandes festas, bailes e regozijos, as quais festas ele confessante
se achava presente, e nunca no seu coração creu aos ditos feiticeiros, mas de fora
mostrava-lhes que os cria, e assim também ajuntava carne de porco com carne humana
e, comendo com os ditos gentios, ele comia a de porco e os gentios a humana, cuidando
eles que também a de porco que ele comia era humana, e de todas estas culpas disse que
estava arrependido e pedia perdão. E assim também confessou que, uma vez no dito
sertão, pecou no nefando consumadamente, dormindo carnalmente com uma gentia pelo
vaso traseiro como se propriamente fizera por diante, pelo natural, e de tudo disse que
pedia perdão. E foi logo mandado que se fosse confessar ao Colégio de Jesus e traga
escrito de confissão a esta mesa. E sendo perguntado se nas ditas gentilidades andou
outro algum cristão fazendo com ele o mesmo que dito tem, respondeu que não.”267
A confissão deste mameluco Lázaro da Cunha revela com riqueza de
detalhes, o que significava para um cristão católico adotar o “modo gentílico, tingido e
fazendo e usando todas as cerimônias, usos, ritos, estilos e costumes dos ditos gentios,

267
Confissões da Bahia, op.cit, 1935, p.107-108
127

fazendo tudo assim e da maneira como se ele fora gentio, e tratando com feiticeiros
como eles fazem”.
Resta ainda citar um destacado sesmeiro de Sergipe, peça importante na
história das heterodoxias na Bahia quinhentista, que em seu processo inquisitorial cita o
nome de outro mameluco morador em Sergipe o Novo, ambos envolvidos em uma sorte
de traição pátria – favorecer a guerra dos gentios contra os cristãos - crime que fazia
parte do conhecimento criminal do Tribunal do Santo Ofício por representar uma
ameaça ao progresso da fé na conversão dos pagãos. O tal personagem ilustre é
Domingos Fernandes Nobre, de alcunha Tomacaúna268, mameluco, cristão velho, que
confessou aos 11 de fevereiro de 1592 ter sido testemunha ocular e segundo outros
denunciantes, seguidor destacado da famigerada “erronia da Santidade”, uma espécie de
cisma religioso sincrético com elementos do catolicismo e da religião tupinambá,
fenômeno estudado em 1952 pelo sergipano José Calasans na obra Fernão Cabral e a
Santidade de Jaguaripe, e em 1995 por Ronaldo Vainfas, em A Heresia dos Índios.269
Tomacaúna em sua confissão descreve com verve o hibridismo da vida dos mamelucos
desta região nordestina, divididos entre o mundo tribal e a nova cultura dos lusitanos.
Veniam petimus por sua transcrição integral, pois permite-nos entrar no cotidiana e
imaginário de um mameluco, cuja vivência hibridizada deve ter sido assaz semelhante à
de muitos outros mestiços sergipanos. “Confissão de Domingos Fernandes Nobre, de
alcunha Tomacaúna, no tempo da graça do Recôncavo, no último dia dela, em 11 de
fevereiro de 1592: disse ser cristão velho, natural de Pernambuco, costa deste Brasil,
mameluco, filho de Miguel Fernandes, homem branco, pedreiro, e de Joana, negra do
gentio deste Brasil, defuntos, de idade de quarenta e seis anos, casado com Isabel
Beliaga, mulher branca, cristã velha, morador nesta cidade e não tem ofício.E
confessando suas culpas, disse que de idade de dezoito anos até idade de trinta e seis
anos viveu como homem gentio, não rezando, nem se encomendando a Deus, cuidando
que não havia de morrer nem tendo conhecimento de Deus, como verdadeiro cristão, e
posto que se confessava pelas quaresmas, era por cumprir com a obrigação, e sua vida

268
Processado pelo visitador. Abjurou de leve suspeita na mesa, onde foi “grandemente
repreendido”. Penitências espirituais, pena pecuniária de 5 mil réis e proibição de voltar
ao sertão. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, Proc.10776.
[Nota de R. Vainfas]
269
Calasans, José. Fernão Cabral e a Santidade de Jaguaripe. Salvador, s/e, 1952;
Vainfas, Ronaldo. A Heresia dos Índios. Catolicismo e rebeldia no Brasil Colonial. São
Paulo, Companhia das Letras, 1995
128

no dito tempo foi mais de gentio que de cristão, porém nunca deixou a fé de Cristo e
essa teve sempre em seu coração. Confessou que haverá vinte e dois anos pouco mais
ou menos que, em Pernambuco, pecou no pecado da carne com duas moças suas
afilhadas, das quais ele foi padrinho quando, sendo elas gentias, as batizaram e fizeram
cristãs, parecendo-lhe que tanto pecado era dormir com elas sendo suas afilhadas como
se não o foram. Confessou que haverá vinte anos pouco mais ou menos que ele foi ao
sertão de Porto Seguro em companhia de Antônio Dias Adorno, à conquista do ouro, e
no dito sertão ele usou dos usos e costumes dos gentios, tingindo-se pelas pernas com
uma tinta chamada urucum e outra jenipapo, e empenando-se pela cabeça de penas, e
tangendo os pandeiros dos gentios, que são uns cabaços com pedras dentro, e tangendo
seus atabaques e instrumentos, bailando com eles, cantando suas cantigas gentílicas pela
língua gentílica que ele bem sabe, e que estas coisas fez por dar a entender aos gentios
do dito sertão que ele era valente e não os temia, por andarem sempre em guerra.
Confessou que haverá dezesseis anos pouco mais ou menos que, por mandado de João
de Brito d’Almeida, que foi governador nesta capitania na ausência do governador, seu
pai, Luis de Brito, que ia para a Paraíba, foi ele confessante ao sertão de Arabó, por
capitão de uma companhia a fazer descer o gentio para o povoado, na qual jornada
gastou quatro ou cinco meses e, no dito sertão ele tinha mulheres, duas, ao modo
gentílico, as quais eram gentias filhas de gentios que lhas davam por mulheres, e se
tingia ao seu uso gentílico, e bailava e cantava e tangia com os gentios ao seu uso
gentílico, e se riscou pelas coxas, nádegas e braços ao modo gentílico, o qual riscado se
faz rasgando com um dente de um bicho chamado paca, e depois de rasgar a carne
levemente pelo couro, esfregam por cima com uns pós pretos, e depois de sarado, ficam
os lavores pretos impressos nos braços e nádegas, ou onde os põem, como ferretes, para
sempre. O qual riscado costumam fazer os gentios em si quando querem mostrar que
são valentes e que tem já mortos a homens, e por ele confessante se ver então em um
aperto dos gentios, que se levantavam contra ele, se fez riscar por um negro do dito
modo para se mostrar valente e assim escapou, porque vendo isso os gentios lhe
fugiram, e então se riscou com ele pela dita maneira Francisco Afonso Capara, morador
em Pirajá, termo desta cidade.Confessou que haverá quinze anos pouco mais ou menos
que tornou ao mesmo sertão de Arabó desta capitania, por mandado do dito governador
Luis de Brito, por capitão doutra capitania a fazer descer gentios para o povoado, na
qual jornada gastou alguns seis meses, e no dito sertão lhe deram também os gentios
suas filhas gentias por mulheres, e tinha duas e três juntamente por mulheres, como
129

qualquer gentio, e bebia com eles o seu fumo, que é o fumo de uma erva que em
Portugal chamam a erva santa270, e bebia com eles os seus vinhos e bailava e tangia e
cantava com eles ao seu modo gentílico, e andava nu como eles, e chorava e lamentava
propriamente como eles ao seu uso gentílico, as quais coisas todas fazia em descrédito
da lei de Deus porque os gentios, vendo-o fazer as ditas coisas, o tinham também por
gentio e lhe chamavam sobrinho e estas coisas fazia (tendo em seu coração a fé de
Cristo), para os gentios lhe darem bom tratamento.Confessou que haverá treze ou
quatorze anos que, por mandado do mesmo governador, tornou ao sertão dos Ilhéus,
onde gastou quatorze meses, e nele se empenou pelo rosto com almécega (resina
amarela) e se tingiu com a tinta vermelha de urucum ao modo gentílico, e teve sete
mulheres gentias que lhe deram os gentios, e as teve ao modo gentílico, e tratou com
eles e bebeu seus vinhos e fez seus bailes e tangeres e cantares, tudo como gentio.E
porque eles se levantaram contra ele e seus companheiros, ele confessante e João de
Remirão, senhor do engenho seu, que mora vizinho de Tassuapina desta capitania, se
fingiram serem feiticeiros da maneira que os gentios costumam ser, dizendo que lhes
haviam de lançar a morte para todos morrerem, e fazendo algumas invenções e
fingimentos para que eles assim o cuidassem e para escaparem que os não matassem,
como escaparam. Confessou que haverá vinte anos, no sertão de Pernambuco, no Rio de
São Francisco, deu uma espada e rodelas, e adagas e facas grandes de Alemanha, e
outras armas aos gentios que são inimigos dos cristãos e os matam e guerreiam quando
tem lugar para isso. Confessou que haverá cinco ou seis anos pouco mais ou menos que,
no sertão desta cidade, se alevantou entre os gentios uma erronia e abusão a que eles
chamavam Santidade, e tinham um gentio a que chamavam Papa, o qual dizia ser Deus,
e a outros chamavam Santos, e uma gentia chamavam mãe de Deus, e a outras
chamavam santas, e faziam entre si batismos com candeias acesas, lançando água pelas
cabeças dos batizados, e punham -lhe nomes a seu modo, os quais batismos fazia o dito
chamado Papa, autor e inventor da dita erronia e abusão, o qual se chamava Antônio e
era do gentio deste Brasil, e se criou em casa dos padres da Companhia de Jesus no
tempo que eles tinham aldeias em Tinharé, capitania dos Ilhéus, donde ele fugiu para o
sertão. E ordenou a dita erronia, arremedando e contrafazendo os usos da igreja cristã,
fazendo os ditos batismos e fazendo igrejas com altares e pias de água benta, e mesas de

270
Trata-se do tabaco, e onde todos diziam “beber” entenda-se “fumar”. [Nota de R.
Vainfas]
130

confrarias e tocheiros, e contas de rezar, e sacristia, e tinham no altar um ídolo de uma


figura de animal que nem demonstrava ser homem, nem pássaro, nem peixe, nem bicho,
mas era como quimera, no qual adoravam, e a dita negra chamada mãe de Deus era
mulher do dito Papa ao seu uso gentílico. E sendo assim levantada esta abusão, foi ele
confessante, por mandado do governador Manuel Teles Barreto, por capitão de uma
companhia de soldados que consigo levou para desfazer a dita erronia e prender e trazer
os sustentadores dela, dos quais muitos e a mor parte deles eram cristãos que, depois de
serem cristãos, fugiram para o dito chamado Papa, que também era cristão.E indo ele
confessante já pelo sertão dentro, achou que os sustentadores da dita abusão fugiam por
sentirem que iam contra eles, e topou com uma manga de negros do gentio deste Brasil,
deles gentios e deles cristãos, os quais traziam consigo o dito ídolo, e vendo ele
confessante o dito ídolo, lhe tirou o chapéu e o reverenciou fingidamente, por enganar
aos que o traziam, dando-lhes a entender que cria naquela sua abusão. E pedindo-lhe
os ditos negros que os deixasse fazer uma procissão com o dito ídolo, ele confessante
lhes deu licença para isso, e mandou aos seus negros que consigo levava que os
ajudassem a fazer a dita procissão, e com eles fez ele seus sagrados e tangeu seus
instrumentos gentílicos ao seu uso daquela sua abusão chamada Santidade.E então
mandou ele confessante a alguns de seus companheiros com o dito ídolo que o levassem
a Fernão Cabral de Taíde, à sua fazenda de Jaguaripe, donde ele confessante tinha
partido para o dito sertão, os quais companheiros eram Domingos Camacho, natural do
Algarve, que ora está nas Índias de Tocumão, e Pantaleão Ribeiro, lavrador e morador
na fazenda de Diogo Correa, pelos quais, com o dito ídolo, escreveu uma carta ao dito
Fernão Cabral em que lhe dizia que lhe mandava ali aquele ídolo com aquela gente
seguidora da dita abusão, que poderiam ser algumas sessenta almas, que lhes fizesse boa
companhia enquanto ele confessante ia por diante ao sertão, por que não corresse ele
perigo no sertão. E que depois de assim despedir aos ditos seus companheiros que
levaram a dita sua gente e ídolo, ele confessante foi por diante, levando já consigo novo
socorro de companheiros que lhe mandou o governador Manuel Teles.E chegando a um
passo onde chamam Palmeiras Compridas, lhe mandou dizer o principal dos
sustentadores daquela erronia, o qual chamavam papa, que ele não passasse daquele
lugar sob pena de obediência, porque ele viria logo aí ter, e logo o dito chamado Papa
veio vestido com uns calções de raxa preta e uma roupeta verde e um barrete vermelho
na cabeça, trazendo consigo muitos dos seus sequazes em fileiras de três, em ordem, e
as fêmeas e crianças todas detrás com as mãos levantadas. E o dito chamado Papa, que
131

vinha na dianteira, e os mais que o seguiam em fileiras, vinham fazendo meneios e


movimentos com os pés e a mão e pescoço, e falando certa linguagem nova, que tudo
era invenção e cerimônia daquela abusão chamada Santidade. E ele, confessante, adorou
ao dito chamado Papa e se ajoelhou diante dele dizendo estas palavras, “adoro-te bode
porque hás de ser odre”.E logo ele confessante fez também o pranto ao dito chamado
Papa, segundo o costume gentílico, e saltou e festejou com ele ao seu modo gentílico, e
bebeu o fumo com ele, ao qual fumo os seguidores da dita abusão chamavam sagrado, e
tangeu e cantou com eles seus instrumentos e suas cantigas em suas linguagens, e
consentiu que adorassem a ele confessante, e lhe chamassem filho de Deus e lhe
chamassem também São Luis.E que todas estas coisas fez e consentiu sem a intenção
nem ânimo de gentio, mas fingidamente, para enganar aquela gente daquela erronia e a
trazer consigo, como trouxe, para a dita fazenda do dito Fernão Cabral. E ao dito
chamado Papa deu ele confessante uma espada de cavalgar, e dantes já lhe tinha
mandado um traçado271 e o dito vestido com que ele vinha vestido.Confessou mais, que
antes deste caso da dita abusão, foi ele ao sertão desta capitania em companhia de Luis
Lopes Pessoa, com licença do governador Lourenço da Veiga 272, que então governava
este estado, para fazerem descer gente do gentio e trazê-la consigo para o povoado, na
qual entrada gastou um ano, e no dito tempo fez e usou com os ditos gentios os seus
costumes gentílicos, fazendo seus tangeres e cantares da maneira sobredita, e aceitou
deles quatro mulheres que lhe deram por mulheres ao seu modo gentílico. Confessou
mais, que haverá dois anos e meio que ele foi com licença da mesa do governo ao
sertão, na companhia de Cristóvão da Rocha, a fazer descer gentio donde ora vem ao
sertão de Pernambuco, onde também consentiu e mandou fazer uma dança de espadas e
festas aos gentios do dito sertão de Pernambuco, (e) também deu duas espingardas aos
ditos gentios e também lhe deram seis mulheres que ele teve por mulheres.
E assim confessou que, em todos os ditos tempos que andou nos ditos
sertões, comeu sempre por muitas vezes carne em todas as quaresmas e mais dias em
que a igreja defende carne, e muitas vezes disse que não queria vir-se nunca do sertão,
pois nele tinha muitas mulheres e comia carne nos dias defesos, e fazia mais que queria
sem ninguém lhe tomar conta. E disse que, de todas estas coisas e culpas que confessado
tem, pede perdão neste tempo de graça.E foi logo perguntado quanto tempo há que ele é
casado com sua legítima mulher Isabel Beliaga e de que maneira tinha ele as mulheres

271
“Traçado ou terçado: espada curta”. [Nota de R.Vainfas]
272
- Foi Governador de 1578 a 1581. [Nota de R.Vainfas]
132

do sertão, respondeu que há vinte e três anos pouco mais ou menos que é casado, e que
no sertão as mulheres que lhe davam, ele as não recebia por palavras algumas da Igreja,
somente as tomava como é costume entre os gentios para conservação de mulheres para
conversação desonesta. E perguntado se podia ele escusar de comer carne nos tempos
defesos, respondeu que sempre a comeu por necessidade, por não ter outro mantimento,
e que quando tinha mantimento deixava de comer a carne. E declarou que, no tempo que
ele adorou o chamado Papa, ele disse aos seus companheiros que o adorassem por
dissimular, porém que estava diante de todos e não viu se adoraram, senão que o dito
chamado Papa lhe disse que se chamava Antônio e era cristão, e fora dos padres da
Companhia de Jesus de Tinharé, capitania dos Ilhéus.E sendo perguntado que pessoas
viu na dita sua companhia fazer o mesmo que ele fez, ou outras coisas semelhantes,
respondeu que viu ao dito capitão Cristóvão da Rocha dar aos gentios que são inimigos
dos brancos, e quando podem os guerreiam e matam, um instrumento de guerra,
bandeira de seda, tambor, cavalo, égua, espingarda, espada, e assim se dizia que dera
uma botija de pólvora, e o viu tisnado pelo pescoço com tinta de jenipapo ao costume
gentílico, e lhe viu ter cinco ou seis mulheres ao modo gentílico, e viu a Pedro Álvares,
mameluco, morador ora em Sergipe o Novo, mandar dar uma espada aos ditos gentios
por três peças, e viu a Fernão Sanches Carrilho, homem branco d’Alentejo, que ora está
no rio de São Francisco, dar aos ditos gentios uma coura 273, e viu a Domingos Dias,
mameluco, riscado em um braço ao modo gentílico, o qual ora lhe parece que está em
Paraguaçu.E por não dizer mais, foi-lhe mandado ter segredo e assim o prometeu, e do
costume disse que tem ódio a Cristóvão da Rocha.”274 Cabia aos Inquisidores a
perseguição também do crime de entregar armas, munições ou cavalos aos índios e
demais inimigos da fé – muçulmanos, protestantes e gentios em geral, pois assim
fazendo, estavam traindo não só a nação e ao Rei, como obstaculizando o progresso da
verdadeira religião, municiando os infiéis em sua peleja contra a cristandade. O tal
mameluco morador em Sergipe trocou com os índios uma espada “por três peças”, isto
é, três escravos, revelando o quão pouco valia o gado humano nestes sertões del Rei.
Tomacaúna, que na pia fora batizado como Domingos Fernandes Nobre, em
25 de maio de 1596 recebeu para si e para sua filha Joana Nobre, das mãos do Capitão

273
“Coura: gibão de couro com abas.” [Nota de R.Vainfas]
274
Confissões da Bahia, op.cit, 1935, p.167
133

de Sergipe, Diogo Quadros, “duas mil braças de terras no rio de Tãomityiaiaia, braço do
rio Piauí, que corre para a banda do norte”. 275

V. Pecados da carne

Outros soldados participantes da Guerra de Sergipe o Novo, além dos já


citados, também confessaram ter infringido o 4º Mandamento da Igreja, comendo carne
em dia proibido. De acordo com o Direito Canônico, todo católico acima de 21 anos era
obrigado a jejuar e se abster de carne 69 dias por ano, tendo em vista tratar-se tais
sacrifícios de “sólido fundamento da castidade, extinguindo os ardores da lascívia”. 276
De acordo com as determinações do Concílio de Trento, aplicadas através das
Constituições dos Arcebispados de Portugal e seus domínios, “é proibido por direito
Canônico comer carne em todos os dias da Quaresma, que começam na Quarta Feira de
Cinzas até o sábado, véspera da Páscoa e em todas as sextas feira e sábados de cada
semana. Também é proibido comê-la na segunda, terça e quarta feira das Ladainhas de
Maio, nas quatro têmporas ano e em todos os mais dias em que há obrigação de jejuar,
por ser da essência do jejum a abstinência da carne.277 Na perspectiva inquisitorial, o
comer carne em dia proibido poderia ser indício de gentilismo ou protestantismo, já que
luteranos e calvinistas desprezavam tais práticas de penitência católica.
Um dos soldados que tomou parte na Guerra de Sergipe e se acusou neste
particular perante o Visitador Heitor Furtado de Mendonça aos 8 de fevereiro de 1592,
foi o mameluco Paulo Adorno, natural da Bahia, 39 nove anos, viúvo, morador em
Matoim, filho de Francisco Rodrigues, homem branco, defunto, cristão novo, e de sua
mulher Catarina Dias Adorno, mameluca: “confessando-se, disse que no tempo que foi
governador deste Brasil Luis de Brito d’Almeida 278, foi duas vezes ele confessante ao
sertão, uma na companhia do capitão Antônio Dias Adorno, já defunto, e outra ele e
Brás Dias, mameluco, morador na barra de Jaguaripe, ambos sós, nas quais jornadas ele
comeu carne por muitas vezes em todo o tempo que elas duraram. Que a primeira, na
companhia de Adorno, durou nove meses, e a outra durou três meses, e sem terem
necessidade e podendo escusar carne, a comeram por muitas vezes não lhe lembra

275
Freire, op.cit., 1977, p.337
276
Vide, op.cit., 1853, § 392.
277
Vide, op.cit., 1853, § 408 e ss.
278
Foi Governador entre 1573 e 1578. [Nota de R.Vainfas]
134

número certo, assim na quaresma como nos mais dias proibidos, e nas ditas jornadas
fizeram o mesmo com ele o dito seu companheiro Brás Dias, que é homem pretalhão,
muito bexigoso, cujo pai foi morador em Vila Velha, e assim também outros que ora lhe
não lembram. E que, outrossim, haverá três anos que foi ao sertão de Sergipe na
companhia de Cristóvão de Barros, onde também comeu carne por muitas vezes, o
número lhe não lembra, também em dias proibidos, podendo-a escusar e sem desculpa,
e destas culpas disse que pedia perdão. E sendo mais perguntado, disse que na dita
jornada de Cristóvão de Barros, comeu também carne João Ribeiro, seu camarada e
morador em Paripe, e do costume disse nada. E foi-lhe mandado ter segredo, e que torne
a esta mesa no mês de maio primeiro que vem.” 279
Há entre os soldados e agregados que acompanharam o Capitão Geral das
Entradas Cristóvão de Barros na conquista de Sergipe, ou que depois ali serviram,
alguns que procuraram o Visitador do Santo Oficio para se auto-delatarem de desvios
relacionados ao “apetite carnal”: pecados contra o sexto mandamento da Lei de Deus,
estes sim, os verdadeiros “pecados da carne”. Outros foram denunciados, como é o caso
de Gaspar Rodrigues (também conhecido como Gaspar Róis) “que está ora feito soldado
na cidade de São Cristóvão de Sergipe desta capitania, infamado de forçar a um negro
para fazer o pecado de sodomia”. Esse escândalo se espalhou como a peste pela
provinciana Salvador e seu recôncavo por anos seguidos: segundo o denuncia do cristão
velho Antônio Gomes, 30 anos, agente das causas dos padres da Companhia de Jesus
e escrivão da câmara episcopal, casado com Antônia de Pina, “há quatro ou cinco anos,
nesta cidade, no Juízo Eclesiástico se tratou um auto de uma denunciação que se fez
contra Gaspar Rodrigues, criado que foi de Manuel de Melo por pecar no pecado
nefando com Matias, negro de Guiné. E vindo depois ter as ditas culpas à mão dele

279
O cotejamento entre os nomes de moradores de Sergipe citados nas Cartas de
Sesmarias e nos Livros das Visitações do Santo Ofício, deve ser feito com muito
cuidado, pois apesar da diminuta população residente no nordeste brasileiro nos finais
do século XVI e primeiro quartel do XVII, é freqüente a ocorrência de homônimos.
Nesse sentido, encontramos um tal de Baltasar Ferreira, que apesar de ser um nome e
sobrenome razoavelmente raros, pleiteia em 1596 gleba de “meia légua no rio Hitanhi
para viver com sua mulher e muitos filhos”, sendo que em 1618, na Mesa Inquisitorial é
citado outro Baltasar Ferreira, mercador cristão velho de 40 anos, porém
diferentemente do anterior, identificado como solteiro.Cf. Freire, op.cit., 1977, p.336 e
p.410
135

confessante, as queimou, e por isso lhe deram dez cruzados280, e isto negociou com ele
Bartolomeu de Vasconcelos, irmão do amo do dito culpado, os quais dez cruzados lhe
pagou pelo dito culpado Pero de Vila Nova, francês, morador em Sergipe do Conde.”
Este Gaspar Rodrigues “que está ora feito soldado na cidade de São
Cristóvão de Sergipe desta capitania”, natural de Torres Novas, tinha 30 anos quando
foi denunciado.”Homem baixo do corpo e magro”, filho de Pedro Vaz e Margarida
Róis, ostentava invejável destaque em seu curriculum: participara no Marrocos da
Batalha da Alcácer Quibir em companhia de Dom Sebastião (1578), tornando-se cativo
dos mouros e vendido para remar nas galés dos turcos de Argel. “Atrás quatro anos, per
si adquiriu cento e tantos escudos espanhóis de ouro com que se resgatou e se tornou
para Portugal, depois tornou à Ilha Terceira na armada do Marquês de Santa Cruz, daí
vindo para o Brasil”. No tempo que viveu na Berbéria, esteve em Constantinopla e
Grécia. Na Bahia foi criado e feitor de Manuel de Mello, o qual no tempo da graça da
Primeira Visitação encontrava-se ausente, na cidade de Cusco, no Vice-Reino do Peru.
Foi o irmão de seu senhor, o Cônego Bartolomeu de Vasconcelos, baiano de 32 anos,
quem o denunciou na Visita de 1591. Disse que ao chegar do Reino pelo ano de 1586,
Gaspar Róis “cometera algumas vezes o pecado nefando com um negro da Guiné,
Matias, 18 anos, ora em Jaguaripe, escravo de seu irmão, atando-o e constrangendo-o e
que por amor disto o negro lhe fugira uma vez e fora ter à casa de Manoel Miranda,
cunhado do denunciante e lhe descobrira o caso. E perguntando ele denunciante ao dito
negro, lhe confessara também dizendo que Gaspar Róis “pecava com ele, tendo
ajuntamento carnal, penetrando com seu membro desonesto no seu vaso traseiro e tendo
aí polução e cumprimento com efeito e consumação, assim como faz o mesmo com uma
mulher, sendo sempre ele Matias negro o paciente, e que o dito Gaspar Róis o forçara e
era feitor.” Disse mais que já anos antes dera seu testemunho deste crime perante o
Vigário Geral da Bahia, Sebastião da Luz, que mandou fazer os autos pelo escrivão
Belchior da Costa de Ledesma, e que estando em poder do escrivão Antônio Gomes, da
Câmara do Bispo, negociou Gaspar Róis com o citado cônego denunciante, irmão de
seu empregador, que queimasse as ditas culpas, pagando dez cruzados ao escrivão Pero
de Vila Nova, francês, morador em Sergipe do Conde, que de fato rompeu e queimou
os autos, deixando-se por conseguinte de se proceder contra o delato. Devido a este

280
Para ser ter uma idéia do montante envolvido nesta corrupção, um escravo africano
de menos de 25 anos (um “molecão”) valia, à época, cerca de 50 cruzados. [Nota de
R.Vainfas]
136

qüiproquó, tendo sido despedido da feitoria onde trabalhava, Gaspar Róis fugiu para
Sergipe Del Rei, engajando-se como soldado na recém conquistada cidade de São
Cristóvão. Experiência militar é o que não lhe faltava! Em seu processo, arquivado na
Torre do Tombo, além do cônego, consta o testemunho de mais oito moradores da
Bahia, um deles o Padre Baltazar Lopes, 35 anos: acrescenta que o réu estava debaixo
de uma escada quando foi surpreendido em ato sodomítico com seu escravo “e ouvia
dizer que estando cativo em terras de mouros usava no dito pecado, e trazia os cabelos
do toutiço281 depenado”. Muitos foram os portugueses denunciados na Inquisição por
terem se tornado berdaches282 na terra dos infiéis – posto haver então na barbárie maior
tolerância ao homoerotismo. Seria o tal “toutiço depenado” um distintivo diacrítico
utilizado pelos praticantes deste amor secreto? Outra testemunha, o eclesiástico João da
Costa Tição, 39 anos, disse mais: que Gaspar Róis levou um mameluco para debaixo de
uma escada “e mandando que se descalçasse e se pusesse de quatro pés – e o mameluco
se benzera, afastando-se...” O próprio escravo Matias – já então com 25 anos, casado,
contou que estava dormindo quando o feitor Gaspar Rodrigues “o pegou à força, e por
se queixar, lançou as mãos à garganta e disse que calasse se não o mataria, metendo o
membro no seu traseiro, mas conseguiu desapegar, fugindo para Pirajá, e logo depois
chegou o réu dizendo que era preguiçoso e não trabalhava, por isto que fugira...”. Disse
que naquela época era solteiro e amigo do réu, mas depois ficou-o querendo mal e que
“se não fora negro como é, se fora branco, por esta causa o houvera de matar.” O
próprio Gaspar Róis é ouvido pelo Visitador em 7 de outubro de 1592: declara não ter
culpas a confessar, mas suspeita ter sido preso por “causa de uns documentos falsos que
seu amo mandou fazer contra si, onde se dizia que havia sodomitado a um negro.
Retrucou o Inquisidor: se eram falsos os documentos, qual a razão para queimá-los?
Respondeu com matreirice: “não por temer as falsidades, mas para ficar tranqüilo...”. O
parecer conclusivo da Mesa Inquisitorial, datado de 4 de agosto de 1593, favoreceu o
acusado: “Visto as testemunhas que depõem com o negro, [serem] somente de ouvido,
que ouviram ao mesmo negro, que é cativo e ao qual o réu açoitava e castigava, e

281
“Toutiço: parte posterior da cabeça.”
282
“Berdache, bardache ou bardajo”, termo utilizado pelos europeus para referir-se aos
nativos do Novo Mundo ou aos europeus em terra dos mouros, praticantes do
homoerotismo, acompanhado ou não de travestismo. O termo “bardaxo” aparece em
alguns processos de sodomitas da Inquisição de Lisboa. Cf. Arquivo Nacional da Torre
do Tombo, Inquisição de Lisboa, Proc. 6465 [1576]. Dynes, W. Encyclopedia of
Homosexuality. New York, Garland, 1990
137

nenhuma das coisas que diz contra o réu são provadas, mas antes são boas as suposições
em favor do réu, pois se apresentou à esta mesa antes de ser preso, que Gaspar Róis seja
absoluto e que não lhe dê pena alguma, mas penitências espirituais, que se confesse e
pague as custas de 2$348 réis." De que lado estava a verdade, jamais poderemos
saber.283 O única certeza é que Gaspar Rodrigues amargava a fama de sodomita quando
“era feito soldado na cidade de São Cristóvão de Sergipe”. Diversos praticantes do
amor que não ousava dizer o nome viveram nesta capitania, conforme relatamos no livro
A Inquisição em Sergipe. 284
Outra vez desvios da moral sexual são citados entre os agregados do
Capitão Geral da Guerra de Sergipe. Em 20 de agosto de 1591 Domingos Paiva,
estudante de 21 anos, denuncia perante o Visitador que “em casa de Cristóvão de
Barros, ouviu dizer a Francisco Nunes, criado do dito Cristóvão de Barros, que ora
mostra ser de idade de vinte e dois anos, estando ambos sós, vindo a falar no pecado da
carne, que dormir um homem com mulher não era pecado. E isto lhe disse o dito
Francisco Nunes, o qual é natural dos Ilhéus e ele o tem por cristão velho e é irmão de
Gaspar Fernandes, capelão desta Sé. E por ele confessante cuidar que o dito Francisco
Nunes lhe disse era verdade, que dormir um homem com mulher não era pecado, assim
o teve para si por espaço de alguns dias, e estando neste erro, isto mesmo disse a
algumas pessoas, até que o dito capelão Gaspar Fernandes emendou a ele confessante
deste erro em que estava, e lhe declarou como fazer o sobredito era pecado, e de então
por diante entendeu ele ser o sobredito pecado, e nunca mais disse a ninguém que o não
era, como dantes tinha dito, e que desta culpa pede perdão.” 285
Citamos acima outros colonos de Sergipe que assumiram pecados carnais: o
mameluco Lázaro da Cunha disse que “uma vez no sertão, pecou no nefando
consumadamente, dormindo carnalmente com uma gentia pelo vaso traseiro como se
propriamente fizera por diante, pelo natural”; Tomacaúna e outros soldados disseram ter
seguido o costume tupinambá, mantendo várias índias como concubinas; o feitor Gaspar
Róis era infamado de sodomisar um negro guiné; o estudante de filosofia, filho de

283
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, Proc. 11061;
Denunciações da Bahia, p.380-381; Confissões da Bahia, p. 54-56 e 52-53
284
Mott, op.cit., 1985
285
Quanto à Cristóvão de Sá Betancourt, “morador em Sergipe”, cristão velho, que
confessou em 19 de janeiro de 1592, sua descrença na existência do Inferno, por não ter-
se especificado se se tratava de Sergipe Del Rei ou do Conde, deixamo-lo no “limbo”
dos duvidosos. Confissões da Bahia, op.cit, 1935, p.100
138

morador de São Cristóvão, manteve diversas cópulas sodomíticas com outros jovens,
etc. Resta ainda citar o processo de Marcos Tavares, mameluco, 18 anos, o único réu
das Visitações do Santo Ofício a ser degredado para São Cristóvão. Era filho de
Francisco Fernandes, feitor branco e Iria Alves, “brasila forra”, tendo sido criado na
casa de Pero d’Aguiar d’Altro, natural de Alenquer em Portugal, membro de família que
teve proeminente participação na história política e econômica de Sergipe, a ela
pertencendo Tomé de Aguiar Daltro, Ouvidor de Sergipe del Rei em 1565, e um século
286
depois, um homônimo que ocupou o posto de Capitão Mor desta Capitania. Em seu
processo consta que o mameluco Marcos Tavares, nos idos de 1586, manteve dezenas
de cópulas anais com os filhos de seus protetores, Bastião e Antônio Aguiar, então com
12 e 16 anos, respectivamente. Segundo Antônio Aguiar “o dito Marcos se veio a fazer
ladrão e de ruins manhas e fugiu de casa haverá 5 anos”. Foi preso por ordem do
Visitador. Em sua confissão, em 3 de julho de 1593, declarou ter fornicado mais de
quinze vezes com Antônio Aguiar, enquanto com Bastião Aguiar não se lembrava, pois
somitigavam atrás da cama ou quando iam “passarinhar no mato” , sempre praticando
“sodomia ad invicem” (reciprocamente). Quando da análise deste caso, a Mesa
Inquisitorial ponderou que apesar deste jovem de ter consumado por mais de quinze
vezes o abominável pecado nefando, respeitando porém ser menor de idade no tempo
em que delinqüiu “e em consideração de ser mameluco”, em vez de ser condenado à
morte na fogueira , “usando de misericórdia, o relevam das penas de direito”,
recebendo alternativamente as seguintes punições: no dia 19 de agosto de 1593 Marcos
Tavares foi conduzido ao Auto Público na Sé da Bahia, vestindo apenas uma túnica,
cingido com uma corda, descalço, trazendo acessa uma vela na mão. Ali, ostentando
todos aqueles símbolos humilhantes “em presença do Senhor Inquisidor e seus
assessores, de muitos religiosos, Cônegos do Cabido, dos Oficiais das Justiças, e de
grande concurso de gente e povo”, teve seus nefandos pecados proclamados em alto e
bom tom. No dia seguinte, foi açoitado publicamente, pelas principais ruelas de
Salvador, degredado em seguida para São Cristóvão de Sergipe, ficando ainda com a
pendência de pagar $738 réis pelas custas processuais. Foi o primeiro sodomita do
Brasil a ser castigado publicamente: sua condição de mestiço – provavelmente bem
visível em seu biotipo, além do fato de ter menos de 25 anos, levaram os juizes

286
Calmon, op.cit., 1985, p.432-433
139

inquisitoriais a agir mais com misericórdia do que com justiça. Sem estes dirimentes,
poderia ter sido queimado. 287

VI. Sesmeiros de Sergipe na Segunda Visitação da Bahia

Até aqui tratamos de soldados ou moradores de Sergipe citados na Primeira


Visitação do Santo Ofício à Bahia e nas Cartas de Sesmarias. Analisemos a seguir as
referências à dita Capitania encontradas nas Confissões e Ratificações na Segunda
Visitação do Santo Ofício à Bahia (1618-1620), onde diversos personagens aparecem
igualmente citados nas mesmas cartas de doação de terras. Aos 16 de setembro de 1618,
na confissão que fez o cristão novo Cristóvão Luis de Solazar, de ter zombado de uma
imagem de Santo Antônio, são citados como estando presente nesse desacato, quatro
dos povoadores inaugurais associados à colonização de Sergipe o Novo: o Padre
Leandro Pero Velho, Gaspar Róis e Gaspar Dias Barbosa.288 O citado sacerdote,
também referido apenas como Pero Velho, era cônego no cabido da Sé da Bahia, e seu
nome consta entre os que receberam mercê régia, com carta de sesmaria datada de 30 de
junho de 1603, onde justificava seu pedido dizendo querer “ajudar a povoar a capitania
de Sergipe na qual tem muitas criações de gado de toda a sorte e não tem terras onde
traga as ditas criações e faça mantimentos.” Recebeu do Capitão Tomé da Rocha data de
uma légua em quadra de terras devolutas “na ribeira de Ipoxy Grande que se medirão
da Ponte (ou Ponta?) do Caminha de Taperahaugua, tanto pera além como pera aquém,
ficando em meio a ribeira acima rumo direito.” 289 O segundo morador de Sergipe citado
nessa confissão já é nosso conhecido: o sodomita Gaspar Rodrigues (ou Róis), que
servia como soldado em Sergipe, “feitor que foi de Domingos Araújo”, e cuja fama
pública de praticante do “mau pecado” foi maldosamente lembrada pelo judeu para
blasfemar contra o santinho lusitano. O terceiro e quarto “moradores de Sergipe del Rei”
citados nesse documento foram Gaspar Dias Barbosa, casado e seu irmão Manoel
Afonso – que recebeu uma sesmaria de 1200 braças em quadra “no rio Quatimdiba nas
quabeseiras de huã dada de joam ferreira”.290 Em 1618, quando da Segunda
Visitação, este último já havia falecido. Outra testemunha citada nessa mesma visitação

287
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, Processo 11080;
Confissões da Bahia, op.cit., 1935, p. 153
288
Segunda Visitação, op.cit.,1963, p. 428-429
289
Freire, op.cit., 1977, p.396.
290
Freire, op.cit., 1977, p.388.
140

inquisitorial chamava-se Paulo Afonso, “feitor de uma roça [do fazendeiro] Pero Garcia,
morador no Rio Vermelho, residente o mais do tempo em Sergipe del Rei”. Aliás, este
parece ter sido um padrão bastante regular de posse fundiária nesta novel capitania: o
absenteísmo, intercalando, os proprietários de terra e fazendas, suas estadias, entre
Sergipe e a Bahia, malgrado muitos dos primeiros sesmeiros terem perdido suas doações
exatamente por terem deixado devolutas suas propriedades. 291
Aos 25 de maio de 1620, novamente a capitania de São Cristóvão vem
nomeada na mesa inquisitorial presidida pelo Visitador Marcos Teixeira: trata-se da
confissão do estudante de filosofia no Colégio da Companhia de Jesus, Jorge Moniz de
Lisboa, 27 anos, cristão novo, filho de Antonio Moniz de Lisboa, “morador em Sergipe
del Rei”, e de sua mulher Branca da Costa, ambos de nação. Também este jovem
confessava-se de ter cometido “o pecado nefando de sodomia, três vezes, com João
Albuquerque, estudante, metendo sua natura na parte traseira do dito cúmplice e
derramando semente genital, sendo também paciente por uma vez”, nomeando ainda
como parceiro a um Luiz Correa, mameluco, então casado no Rio de Janeiro. 292 Eis aí,
portanto, a prova de uma família hebréia também presente nas origens da colonização
de Sergipe. Caso o sesmeiro Baltasar de Leão, que recebeu data no Vaza Barris em
mercê assinada pelo Capitão Cosme Barbosa aos 15 de setembro de 1602, seja
efetivamente membro da mesma abastada família de cristãos-novos residente da
Capitania da Bahia, confirma-se mais outra presença da “gente da nação” em Sergipe
entre seus primeiros colonizadores. A historiadora Anita Novinsky relata que outro
judeu da mesma parentela, Simão de Leão, em 1614 teve contratos dos dízimos em
Salvador e também em Sergipe del Rei.293
Mais sesmeiros de Sergipe aparecem citados na Segunda Visitação da Bahia:
Antônio da Costa , “sargento do presídio de Sua Majestade, que há seis anos que reside
nesta capitania de Sergipe e é atualmente morador nela e não tem terra em que lavrar e
manter suas criações de gados e mais criações”, requereu e foi agraciado com meia
légua no rio Vaza Barris em 16 de junho de 1602. Consta que esse colono era cristão
velho, 35 anos, natural de Darque, Arcebispado de Braga, casado, então morador na
Bahia, próximo ao Mosteiro de São Bento. È no Livro das Confissões onde

291
Segunda Visitação, op.cit., 1963, p. 446
292
Segunda Visitação, op.cit., 1963, p. 523
293
Novisnky, Anita. Cristão Novos na Bahia. São Paulo, Editora Perspectiva, 1972,
p.87
141

encontramos pitorescas informações sobre suas crendices e condutas consideradas


desviantes pela ortodoxia católica. Na tarde de 17 de setembro de 1618 ele se apresenta
na Igreja do Colégio da Companhia de Salvador, e jurando sobre os Santos Evangelhos
confessou que “há dois meses pouco mais ou menos, [teve] um cartapácio294 pequeno e
sento de mão que tratava de Quiromancia Judiciária, o qual leu e trasladou uma parte
dele sem saber que era defeso. “ Delatou-se mais, que “há três anos e meio, achando
menos de sua casa dois pares de meia de seda e um corte de gibão, e desejando saber
quem fizera o dito furto, fora a casa de Ana Coelha, a qual a rogo e mando dele
confitente, fizera diante ele a feitiçaria que chamam das Horas de Nossa Senhora, que é
do modo seguinte: tomou um livro das horas de Nossa Senhora e abrindo, lhe meteu
uma chave de cadeado no meio ficando a maior parte da chave de fora, e fechando as
horas com as brochas, por um dedo na chave e com o dedo de um menino seu filho,
posto também na chave, de modo que ficava o livro no ar e nomeando-lhe ele confitente
as pessoas em que tinha suspeita do furto de lhe fizeram, dera o livro uma volta no
tempo em que ele nomeara um mameluco e um negro da terra e logo a dita Ana Coelha
dissera que aqueles eram os que tinham cometido o dito furto”. Disse ainda mais: que
chamara dois negros feiticeiros para curar sua filha menina, os quais fizeram mezinhas
com umas ervas.295 Em sua mesma confissão, delatou outros dois vizinhos que também
obtiveram sesmarias em Sergipe: Pedro Alves (Pedralves) Aranha , “homem de posse
assim de gente como de criações”, casado, morador na Bahia, recebeu meia légua de
terra em quadro no Rio Piauí em 16 de maio de 1596, referido como sendo dono de um
negro escravo, o qual, por estar muito doente, “mandou chamar um negro feiticeiro
residente na freguesia de Nossa Senhora do Socorro que diziam ser feiticeiro, o qual
negro veio e curou o outro negro doente e no mesmo dia o deu são, tirando-lhe donde
lhe doía com uma ventosa sarjada, um godilhão (nó) de cabelos que dizia serem feitiços
de que estava doente o dito negro”. É também acusado de ter colaborado na trasladação
do dito “Livro de Choromançia”.296 Um terceiro sesmeiro de Sergipe aparece citado na
mesma ocasião: Domingos de Andrade, que recebeu em 23 de maio de 1596 do Capitão
Diogo de Quadros “meia légua de terras devolutas com todas as águas e matos que nela
houver no Rio Real, chamado pela língua dos índios Hitanhi”, o qual, agora em 1618

294
“Cartapácio: livro de mão de várias matérias, ou de papeis avulsos, calhamaço em
mau estado.”
295
Segunda Visitação, op.cit., 1963, p.447
296
Segunda Visitação, op.cit., 1963, p. 448. “Quiromancia: adivinhação pelo exame das
linhas da palma da mão.”
142

ocupava o cargo de escrivão dos agravos da Relação da Bahia: foi delatado perante a
mesa inquisitorial pelo mesma falta: ter colaborado na transcrição do dito livro
proibido.297 Também o cristão velho Francisco da Costa, que recebeu meia légua na
banda sul do rio Ipochi em carta assinada aos 22-4-1602, citado nesta Visitação como
barqueiro, teria dito a um passageiro que “o livro de Diana era defeso” 298,
demonstrando assim que, mesmo sub-repticiamente, circulavam alguns livros entre os
primeiros colonizadores da Bahia e Sergipe. Seria esse Francisco da Costa o mesmo
viúvo, porteiro da Relação da Bahia, acusado por Catarina Nunes, cristão velha, viúva,
moradora na Rua da Ajuda em Salvador, de ter cometido “o pecado nefando de
sodomia, metendo-lhe ele sua natura no corpo dela pela parte traseira e lançando-lhe a
semente genital”? 299
Concluo esse cotejamento entre os moradores de Sergipe citados na
documentação inquisitorial e nas cartas de sesmarias trazendo à baila três destacados
membros da elite nordestina pertencentes à família de Egas Moniz Barreto, cepa que
tem suas origens ainda no período visigótico e que foi inclusive cantada por Camões nos
Lusíadas. Duarte Moniz Barreto, primogênito desta família, foi alcaide de Salvador, e
em seu pedido de duas léguas de terras na “Tabaiana”, em 19 de abril de 1602, declarou
que “veio ajudar a tomar esta terra do gentio em companhia de Cristóvão de Barros
aonde gastou muitas de suas fazendas e hora manda um curral de vacas e gente”para
povoar a novel capitania.300 Apesar de toda sua excelência, recebeu das mãos do capitão
Manoel Miranda Barbosa tão somente a metade das léguas que solicitara. Seu segundo
irmão, cujo nome aparece também grafado como Anrique Moniz Barreto, pediu duas e
obteve uma légua de sesmaria “ao longo do Vasa Barris da banda do sul donde acabar
pero carneiro pera cima com todas as lenhas, águas e madeiras que na dita terra
houver.”301 Segundo podemos ler no Catálogo Genealógico das Principais Famílias, de
Frei Jaboatão, esse terratenente, fidalgo da casa de Sua Majestade, natural da Ilha da
Madeira, vereador na Bahia, morava então em Cotogipe, senhor do Engenho Matoim,
302
no Recôncavo da Bahia, sendo citado na Segunda Visitação como testemunha de
uma blasfêmia proferida por um mercador judeu, que comparara o santo nome de Deus

297
Freire, op.cit., 1977, p. 335; Segunda Visitação, op.cit., 1963, p. 448
298
Freire, op.cit., 1977, p. 380; Segunda Visitação, op.cit., 1963, p. 372
299
Segunda Visitação, op.cit., 1963, p.461-462
300
Freire, op.cit., 1977, p.369
301
Freire, op.cit., 1977, p.393
302
Calmon, op.cit., 1985, p. 286
143

com suas contas comerciais. O Outro irmão de Duarte e Henrique, Diogo Moniz
Barreto Telles, o quarto na ordem de sucessão, Sua mulher, Maria de Reboredo, com 46
anos em 1592, “queixou-se que seu marido na sua fazenda do Peruassu lhe dava muitas
ocasiões de se enojar,por fazer sem razões e dormir com as escravas moças da casa.” 303
É igualmente citado na Mesa da Visitação, em razão de viver em suas terras um negro
304
feiticeiro que fora por esse delito preso no aljube Todos esses Moniz ou Muniz
Barreto, de Sergipe e da Bahia, alguns com o sobrenome Telles acrescentado, como
dissemos, são descendentes do patriarca Egas Moniz Barreto, natural da Ilha da
Madeira, o primeiro desta estirpe a viver nos Brasil, “no tempo em que só havia a Vila
Velha e a povoação do Pereira junto à Vitória”, casado com Ana Soares. Segundo Frei
Jaboatão e Pedro Calmon, “Duarte Moniz Barreto, primeiro filho do dito Egas Moniz
Barreto e D.Maria da Silveira ou Ana Soares, foi o segundo alcaide-mor da Bahia, por
doação que lhe fez da alcadaria-mor Antônio de Oliveira de Carvalhal, por casar com
sua filha, D.Helena de Melo (17-12-1633) de quem teve oito filhos. Duarte Moniz
Barreto, como vimos, acompanhou Cristóvão de Barros à conquista de Sergipe . Foi
acusado nas Denunciações da Bahia de ter dito palavras heréticas “haverá quatro anos,
por ser perder um pouco de fato, com agastamento e cólera, arrenegou de si.” 305

À guia de conclusão

Esse trabalho comprova que ainda resta muita novidade a ser descoberta e
interpretada a respeito das primeiras décadas da história de Sergipe del Rei. Apesar das
Cartas de Sesmarias e das Visitações do Santo Ofício estarem publicadas desde quando
a maioria de nós, mesmo os mais velhos, ainda não tinha nascido, nenhum historiador se
dera até hoje ao trabalho de cotejar esses dois corpus documentais, ambos riquíssimos
de informações sobre a história social, política, econômica e das mentalidades.
Esse nosso ensaio está longe de ter esgotado tais fontes, posto que ainda
restam a ser esquadrinhados os livros inquisitoriais relativos às Denunciações da Bahia e
as Confissões e Denunciações de Pernambuco, sem falar nos Processos Inquisitoriais e
Cadernos do Promotor ainda inéditos, conservados na Torre do Tombo – onde com

303
Calmon, op.cit., 1985, p. 271-272
304
Segunda Visitação, op.cit., 1963, p. 396/452
305
Calmon, op.cit., 1985, p. 270
144

certeza há referencias substantivas sobre o passado sergipano. Mesmo as Cartas das


Sesmarias, impressas primeira vez em 1891, estão a merecer análise integral e mais
sistemática, posto que seu conteúdo sócio-antropológico e lingüístico persiste em ser
subestimado.
Neste ensaio procuramos reconstruir aspectos do cotidiano, as aventuras e
desventuras dos primeiros moradores da Capitania de Sergipe, dando voz, cor e vida a
esta frente pioneira de soldados e colonos, sobre os quais até então, os historiadores
contentaram-se em referir os nomes, cargos e eventualmente, seus feitos políticos. O
cotejamento dos aludidos corpus, sobretudo a documentação inquisitorial, confirmou a
heterogeneidade étnica e cultural e a heterodoxia religiosa e também sexual destes
fundadores da “sergipanidade”, cujos ancestrais, reunidos no território compreendido
entre o Rio Real e o São Francisco, revelavam a enorme diversidade de tipos humanos,
incluindo, portugueses, índios, negros, baianos, franceses, soldados, nobres e plebeus,
mamelucos, apóstatas, sodomitas, blasfemos, degredados, entre outros – cujas histórias
de vida, mesmo que fragmentadas e até então desconhecidas, foram aqui resgatadas.
145

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