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ISSN 2316-266X, nº 7
RESUMO
Práticas de turismo em favelas e bairros populares por vezes são incentivadas por elementos como a
“autenticidade” ou pela construção de infraestruturas de mobilidade urbana inovadoras. Como nos casos
de algumas favelas da cidade do Rio de Janeiro e de alguns dos bairros populares que compõem as
Comunas 01 e 13 da cidade de Medellín, Colômbia. Na dinâmica dessas práticas, espaços de interesse
turístico são construídos ou apropriados, envolvendo, voluntária ou compulsoriamente, diferentes atores
sociais. São estabelecidos acordos e conflitos, relações de hospitalidade ou de hostilidade que marcam
interesses diversos. Este trabalho se propõe a evidenciar relações entre visitantes e visitados, em favelas
e bairros populares, nas dinâmicas de apropriação dos espaços que conformam um roteiro turístico.
Defende-se que a turistificação constrói “espaços seguros” e leva à apropriação de espaços públicos que
antes eram destinados aos moradores.
ABSTRACT
Touristical practices in favelas and popular districts are sometimes encouraged by elements such as
"authenticity" or the construction of innovative urban mobility infrastructures. As in the cases of some
favelas of Rio de Janeiro and some popular districts, part of the comunas 01 and 13 of the city of
Medellín, Colombia. In the dynamics of these practices, spaces of tourist interest are built or
appropriated, involving, voluntarily or compulsorily, different social actors. Agreements and conflicts,
relations of hostility or hostility that mark diverse interests are established. This work intends to show
relationships between visitors and visitors, in favelas and popular districts, in the dynamics of
appropriation of spaces that make up a touristical tour. It is argued that the turistification builds "safe
spaces" and leads to the appropriation of public spaces that were previously destinated to the residents.
Key-words: Slum tourism. Turistification of spaces. Appropriation of spaces. Guests and hosts.
Seightseeing.
Nos estudos teóricos do turismo, afirma-se que esse é um fenômeno social, econômico e
cultural, podendo acontecer espontaneamente ou de forma planejada e induzida. Diferencia-se
da “atividade turística” por essa corresponder às práticas de turismo e lazer, realizadas por
visitantes e turistas, envolvendo prestadores de serviços e equipamentos turísticos. Nesta
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Medellín é dividida, em termos políticos e administrativos, em seis zonas (urbanas) e cinco corregimientos
(rurais). Cada zona agrupa comunas que, por sua vez, agrupam bairros.
ANINTER/SH - ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO INTERDISCIPLINAR EM SOCIAIS E HUMANIDADES
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VII CONINTER - Congresso Internacional Interdisciplinar em Sociais e Humanidades, Rio de Janeiro-RJ, 12 a 16 de novembro 2018
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passivamente da interação com moradores locais. Por sua vez, alguns moradores locais ou
atores “de fora”, como agentes de viagem ou mesmo guias de turismo, ao perceberem a
possibilidade de benefícios econômicos que pode ser gerada pelo movimento de turistas,
ressignificam ou se apropriam de espaços que antes era de usufruto dos residentes. Ou que
foram construídos, a partir de políticas públicas, para beneficiar os que ali vivem. Em alguns
casos, subverte-se a ordem urbana pré-estabelecida ou apaga-se a memória local, privilegiando
a construção de um imaginário turístico.
Outro ponto a ser considerado, é o de que a elaboração de um roteiro pressupõe o
planejamento de uma série de elementos que vão desde o meio de locomoção a ser utilizado, até
o espaço a ser percorrido. Indubitavelmente, ao se planejar um roteiro que utilize espaços
urbanos de uma sociedade complexa, uma das preocupações será a da segurança.
Selecionam-se, portanto, caminhos considerados mais “seguros” - e que privilegiem uma maior
quantidade de bens e serviços de interesse ao caráter turístico local – evitando-se outros
considerados “arriscados” ou “sem interesse turístico”. A visita do turista torna-se, então,
“segura” e “controlada”, seguindo os desejos do desenvolvimento da atividade turística para o
local.
Na relação entre turistas e locais – visitantes e visitados – podemos observar, também,
algumas particularidades. Levados por motivações de diferente natureza, não é raro turistas
iniciarem um fluxo de visitação contínuo e intenso a determinados lugares, instalando neles o
fenômeno turístico. A partir daí, é comum observarmos que, dentro de um espaço turistificado,
a presença do estrangeiro se torna mais “familiar” do que em espaços, mesmo que próximos,
que são alheios à atividade turística (espaços não-turistificados). Assim, defende-se que a
turistificação e a elaboração de roteiros, promovem a construção de espaços “seguros” para as
práticas do turismo, controlados, onde a população local convive – ou é obrigada a conviver –
com práticas cotidianas, onde as do turismo passam a ser familiares. Na dinâmica dessa
convivência, inventa-se uma comunidade local e uma comunidade turística que são tomadas
como generalizações, já que quando analisado o turismo em sociedades complexas ou em
grandes cidades, sempre vão existir relações diferentes entre diferentes comunidades desta
sociedade e os turistas que a visitam (BARRETTO, 2007, p. 56). Além disso, espaços de
usufruto de moradores são apropriados, por vezes desordenadamente, por práticas e atividade
turística, que ameaçam, outras vezes, a manutenção de memórias comunitárias importantes
para a história local.
PRESSUPOSTOS TEÓRICOS
O geógrafo francês Jean Remy Knafou é uma das principais referências para o termo
“turistificação”. Ele é usado até hoje para designar o processo de apropriação de trechos do
espaço territorial por agentes do turismo, objetivando a implantação da atividade turística.
Segundo Fratucci (2008), é o processo de turistificação o responsável por amalgamar a lógica
da produção (esfera do trabalho) e a lógica do lazer (esfera do lazer), podendo apresentar
diferentes origens. Uma das origens da turistificação citadas por Knafou (apud FRATUCCI,
2008) são as práticas sociais de deslocamentos temporários de pessoas, fazendo, assim, com
que surjam espaços turísticos. O turista “na busca de novas paisagens mais agradáveis e
salutares, diferentes daquelas do seu dia a dia, se apropria de alguns trechos privilegiados do
espaço” (FRATUCCI, 2008, p. 68 e 69). Estes espaços que se tornam “turísticos” são, por sua
vez e posteriormente, apropriados pelos agentes de mercado. A turistificação seria também a
responsável pelo surgimento do “espaço turístico”, que seria composto pelo “espaço do turista”
e pelo “espaço do turismo” que, apesar de ocuparem o mesmo espaço físico, desempenham
funções diferentes. O “espaço do turista” é identificado como o espaço de fruição e consumo,
enquanto que o “espaço do turismo” é o da produção e trabalho, ou seja, mais amplo e
abrangente do que aquele que o turista ocupa (COSTA e FERREIRA, 2016). Contudo,
defende-se aqui que estes espaços, inclusive aqueles preconizados pelo turista, são
pré-determinados e “controlados”.
ou outra característica dissonante, que denuncia sua “clandestinidade”. “Do ponto de vista
social e cultural [os turistas] sempre serão forasteiros, e sua relação com a população local
sempre será influenciada por esse fato” (BARRETTO, 2007, p.76).
Os antagonismos identificados nas relações entre a comunidade receptora e os turistas
podem aparecer através de um gracejo, de uma zombaria, do atendimento com negligência ou
má vontade, do “assédio”, da curiosidade sobre o outro, da atenção diferenciada, entre outros.
Tudo isso vai de encontro ao simplismo dos pressupostos da Organização Mundial do Turismo
(OMT), que afirma categoricamente que o turismo propicia o entendimento e a aproximação
dos povos, das diferentes culturas, promovendo a paz. (OMT, 2001). Nem sempre.
(https://extra.globo.com/noticias/rio/plano-inclinado-no-morro-dona-marta-i
naugurado-nesta-quinta-517812.html. Acesso em 05 de nov. de 2018).
2
Devido a falhas estruturais de construção, a Biblioteca, um dos ícones do Urbanismo Social em Medellín, foi
fechada em 2015.
3
Pintura de fachada de casas e criação de murais artísticos (Alcadía de Medellín, 2015.).
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Na favela do Santa Marta, os tours são oferecidos por moradores locais, capacitados
pelo programa estadual e federal Rio Top Tour. A maior parte dos guias-moradores se
concentra em um quiosque localizado na estratégica entrada da favela. Contudo, também existe
uma empresa local que tem foco no Turismo de Base Comunitária e que, segundo sua
propaganda, busca “desconstruir os esteriótipos da favela, valorizando seus modos de fazer,
cultura local, história e identidade”. As abordagens dos guias são diferentes, dependendo da
escolha do coletivo de turismo feita pelo visitante.
No complexo de favelas Cantagalo/Pavão-Pavãozinho, o principal coletivo promotor do
turismo no território é ligado o Museu de Favela (MUF), uma organização não-governamental
privada, de caráter comunitário, fundada em 2008. No Museu existem guias que acompanham
turistas e promovem roteiros pelo território do complexo. O Museu se autodenomina o primeiro
territorial e vivo sobre memórias e patrimônio cultural de favela do mundo. (MUSEU DE
FAVELA, 2018).
deste personagem. A história local que envolve seus moradores corre o risco de não ser
percebida por muitos dos visitantes da favela.
Na comuna 01, observei que guias de turismo levavam grupos de visitantes desde a
saída da estação Santo Domingo Savio até a Biblioteca Parque España, percorrendo algumas
ladeiras próximas do entorno, passando por pontos do comércio local que vendem comida ou
bebida, parando no gradil que fornece uma vista do sobe e desce das gôndolas do metrocable,
até chegar à Biblioteca. Presenciei também, a entrada de um grupo, na casa de um dos
moradores, no entorno da Biblioteca, onde, do alto, era oferecida uma vista privilegiada do
bairro, da própria Biblioteca, e da região metropolitana do Valle do Aburrá. Aquilo que se
poderia, na visão do turista, chamar de “assédio” da população local para venda de serviços e
objetos turísticos não aparecia. Me intrigava a falta da oferta de serviços, e a tranquilidade da
população local na comuna 01, quando em contato com o movimento de turistas. Fui abordado
apenas por duas crianças que moravam perto do gradil, que se ofereciam para contar aos turistas
a história da “transformação” do bairro em troca de algum dinheiro.
A previsibilidade e constância da visita a estes espaços turistificados, no entanto, foi
quebrada quando ousei visitar, sozinho, espaços “de fora”, não-turistificados. Espaços
localizados fora do “controle” da atividade turística, e onde os conflitos entre o visitante e o
visitado foram muito mais evidenciados. Comprei a ideia de descer a pé da estação Santo
Domingo Savio até a estação Acevedo (estação de base e de embarque para o topo do morro) de
dois turistas franceses com quem conversei. No início, percebi que as ladeiras eram muito
inclinadas, o que dificultava a descida. Observei moradores na varanda das casas, conversando,
mas que, quando me viram, começaram a fazer brincadeiras e piadas, imitando uma fala em
inglês, já que eu era frequentemente confundido com um turista norte-americano. Segui a
infraestrutura de urbanização construída na comuna e, mais abaixo, me deparei com uma
criança que estava brincando no quintal de sua casa. Ao me ver, ela gritou na minha direção,
perguntando repetidamente: Eres turista?? Eres turista?? Continuei a descida, e, em uma das
escadas que levavam até a próxima estação, encontrei um grupo de jovens consumindo drogas.
Eles falaram alguma coisa comigo, que, pelo nervoso, acabei não entendendo. Desci ainda mais
rápido, e cheguei a uma estação abaixo da Santo Domingo Savio. Ali desisti de continuar a pé,
entrando então no metrocable. Ao final, já na estação Acevedo, encontrei os dois jovens turistas
franceses com quem tinha conversado. Eles não haviam descido a pé.
Em julho de 2018 a cidade de Medellín noticiava a morte de líderes comunitários de
bairros populares. Inclusive na comuna 13 que vinha apresentando, também, episódios de
conflito armado. Tinha a intenção de fazer nova visita ao espaço turístico do bairro Las
Independencias e, ao perguntar para atores envolvidos com a atividade turística se havia perigo,
recebia sempre a resposta de que “lá não acontece nada”. Essa dissonância entre os espaços de
violência que estavam evidenciados, até mesmo na mídia local, e a “tranquilidade” do espaço
turístico onde se realizavam os Graffitours me intrigava. Visitei o bairro, percebendo a grande
transformação dos espaços públicos ocorrida desde 2014, quando fiz minha primeira visita, que
foram apropriados pelo comércio ligado à atividade turística: lojas e barracas de souvenirs,
algumas delas armadas na passagem, sempre próximas às escaleras eléctricas, performance de
jovens dançarinos e músicos, oferecendo seus talentos aos turistas, coffee shops, restaurantes,
“galerias de arte” abertas na casa de moradores vendendo imagens de grafites. Na televisão, o
noticiário Hora 13 Noticias, de 11 de julho, dizia:
este lugar tem duas realidades: uma a da violência (...) e outra a daqueles que
lutam para que esta zona não seja estigmatizada. Apesar da saída de
moradores do bairro, dos enfrentamentos e mortes que esta comuna agoniza,
segue chegando turistas” (HORA 13 NOTICIAS, 2018).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir do exposto, pode-se inferir que o espaço turistificado passa a ser também o espaço
seguro e controlado pela e para a atividade turística. Assim, nem todo o espaço de um território
está sujeito às mesmas dinâmicas e generalizações que levam a se falar de um “Turismo no
Santa Marta” ou em um “Turismo na comuna 01”. São apenas trechos do espaço que são
recortados para que a atividade turística ali aconteça. Esse recorte é dinâmico, mas moldado
pelo interesse do turista ou pelo poder público.
O turista, muitas vezes, entra em conflito com interesses da população local, por vezes é
visto como intruso em espaços não-turistificados, onde os conflitos entre a população local e os
visitantes ficam muito mais evidenciados. Variada é a natureza dos conflitos que ocorrer num
espaço turístico: entre turistas e comunidade local, entre turistas e trade turístico, entre
membros da mesma comunidade que são “a favor” ou “contra” a atividade turística, ou entre
comunidade local e grupos sociais externos, interessados na “exploração” do turismo. Sem
desconsiderar estas complexas relações que devem ser levadas em conta, os dados aqui
expostos podem levar a uma aderência às ideias de “cenário” (McCannell, 1976) e
“performance” (Kirshenblatt-Gimblett, 1990) dos espaços e população ligados ao turismo.
Alheios ou excluídos dos benefícios econômicos ou do entendimento da atividade
turística, alguns atores questionam a invasão de seus espaços sociais. Por outro lado, muitos dos
espaços públicos construídos para os moradores, são apropriados por dinâmicas que envolvem
a atividade turística e práticas de turismo. Por estes e outros fatores, boa parte dos turistas
tradicionais prefere uma experiência controlada; um passeio passivo onde prevaleça a “falta de
contato” com algo tipo como “perigoso” ou “indesejável” (Boorstin apud URRY, 2001, pág.
23). O “espaço do turista” e o “espaço do turismo” servem a este papel, enquanto constituintes
do espaço turístico. Ao se pensar em comunidades receptoras ou comunidades onde acontecem
práticas de turismo, a errônea tendência é percebê-las como um grupo homogêneo e imutável,
como se entre seus membros não houvesse hierarquias, classes-sociais distintas, divergências
político-ideológicas ou lutas de poder (BARRETTO, 2007, p.55).
Assim como evidenciou-se no “espaço Michael Jackson”, a memória histórica de uma
comunidade pode ser substituída ou ofuscada pela construção de uma “imagem turística”. Por
vezes, o imaginário de uma localidade pacífica e de fácil mobilidade, semelhante aquelas do
asfalto, precisa ser vendida para que a atividade turística se consolide e permaneça gerando
capital.
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___________. “Vem passear no teleférico. Tira foto manda pro internacional!”: políticas
e práticas de turismo em um Alemão-Complexo. Tese de doutorado, Universidade Federal
Fluminense (UFF), Rio de Janeiro, 2017.
URRY, J. O olhar do turista. Lazer e viagens nas sociedades contemporâneas. São Paulo:
Studio Nobel/SESC, 2001.