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O que não é

educação patrimonial:
cinco falácias sobre seu
conceito e sua prática

Átila Tolentino

O presente artigo tem por finalidade discutir aspectos conceituais e as


práticas em torno da educação patrimonial a partir de determinadas
falácias, que se propagaram na literatura sobre o tema e contribuíram
para a disseminação de uma educação patrimonial instrutivista e
opressora. O debate se situa em pensadores no campo do patrimônio,
da memória e da educação, que delineiam os jogos de poder e
os conflitos inerentes aos processos de seleção e apropriação do
patrimônio cultural. Defende-se que a educação patrimonial efetiva
é dialógica, reflexiva e crítica, que contribui para a construção
democrática do conhecimento e para a transformação da realidade.
Isso implica conceber o patrimônio cultural como um elemento social
inserido nos espaços de vida dos sujeitos e que, nas práticas educativas,
deve ser levada em conta a sua dimensão social, política e simbólica.
Desde o surgimento do termo, nos idos se pauta de políticas públicas ou, pelo menos,
dos anos 1980, o conceito de educação preocupação das agendas políticas de alguns
patrimonial ganhou contornos, reflexões, órgãos de preservação. Merece destaque a
críticas e, sobretudo, ressignificações. importância que o tema ganhou no âmbito
Mesmo com o avanço das discussões sobre do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
o tema, ainda é bastante recorrente, tanto no Nacional - Iphan nos últimos anos. Como
meio acadêmico como em instituições que demonstrado na recente publicação “Educação
atuam com o patrimônio, atrelar o conceito e patrimonial: histórico, conceitos e processos”
práticas no campo ao Guia Básico de Educação (Florêncio et al, 2014), em 2004 foi criada a
Patrimonial elaborado por Horta, Grunberg Gerência de Educação Patrimonial e Projetos -
e Monteiro (1999), a partir das experiências Geduc, primeira instância do Iphan voltada para
adotadas no Museu Imperial, de Petrópolis. A a gestão do campo, transformada, no ano de
esse guia, inclusive, recai o peso de se disseminar 2009, em Coordenação de Educação Patrimonial
nacionalmente o termo e de influenciar – Ceduc, vinculada ao Departamento de
inúmeras práticas autodeclaradas como Articulação e Fomento – DAF. Além dessa
educação patrimonial. ação institucional, diversos encontros foram
realizados, em nível nacional, para se debater a
Por outro lado, em paralelo surgem inúmeras
temática e construir diretrizes a serem seguidas
críticas no meio acadêmico denunciando
pelo Iphan no campo da educação patrimonial,
a inconsistência do termo, evocando a
constituindo, assim, uma determinada política
indissociabilidade entre a educação e o
pública na área.
patrimônio, o que seria uma redundância
falar em educação patrimonial. É o caso do Na publicação, o Iphan apresenta a
teor das discussões do Grupo de Trabalho sua concepção de educação patrimonial -
“Educação patrimonial: perspectivas e dilemas”, resultado de um longo processo de debates e
da 25ª Reunião da Associação Brasileira de aprofundamentos teóricos-, que orienta as suas
Antropologia – ABA, cujo relatório foi publicado ações e projetos na área:
por Silveira e Bezerra (2007). Esse relatório
também aponta para o modismo a que chegou Atualmente, a CEDUC defende que
a Educação Patrimonial constitui-se
a educação patrimonial, com a proliferação de
de todos os processos educativos
projetos e ações baseados nos bens patrimoniais, formais e não formais que têm como
e que essa expressão caiu no gosto popular, mas foco o Patrimônio Cultural, apropriado
muitas vezes de forma acrítica. A redundância do socialmente como recurso para a
termo também é entendimento do museólogo compreensão sócio-histórica das
Mário Chagas, para quem “educação e referências culturais em todas as suas
manifestações, a fim de colaborar para
patrimônio são práticas socialmente adjetivadas”
seu reconhecimento, sua valorização
(Chagas, 2013, p. 27). Ele explica que a
e preservação. Considera, ainda,
educação é uma prática sociocultural e que não que os processos educativos devem
há como se pensar em educação fora do campo primar pela construção coletiva e
do patrimônio, justamente pela inseparabilidade democrática do conhecimento, por meio
dos termos. do diálogo permanente entre os agentes
culturais e sociais e pela participação
O fato é que a expressão realmente efetiva das comunidades detentoras e
ganhou a boca do povo e, inclusive, tornou- produtoras das referências culturais, onde

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convivem diversas noções de Patrimônio Cultural. (Florêncio et al, 2014,
p. 19)1.
Nessa concepção, cumpre destacar a importância de o Iphan afirmar que
adota o patrimônio cultural como uma construção social e, portanto, deve ser
apropriado socialmente. O ganho está em não conceber o patrimônio como um
produto dado, que existe por si só e antes mesmo do sujeito social. Por isso,
a educação patrimonial é concebida também a partir da noção de referências
1
Recentemente, as concepções culturais2, que são conformadas socialmente com a participação efetiva dos
e orientações sobre educação
patrimonial adotadas
detentores e produtores dessas mesmas referências, por meio de um processo
pelo Iphan e descritas na permeado de consensos e conflitos a ele inerentes. O importante é o processo
publicação “Educação dialógico e democrático dessa prática educativa, numa perspectiva freiriana, que
patrimonial: histórico,
conceitos e processos” foram preza pela alteridade, pelo respeito à diversidade cultural e pela participação
institucionalizadas por meio ativa dos produtores e detentores do patrimônio como sujeitos sócio-históricos.
da Portaria nº 137, de 28 de
abril de 2016, que estabelece A partir dessa perspectiva, pretende-se, neste trabalho, discorrer sobre o que
as diretrizes de educação não é educação patrimonial, ou pelo menos o que não é educação patrimonial
patrimonial no âmbito
do Iphan e das Casas do com uma base democrática e dialógica, bem como debater sobre determinadas
Patrimônio. O teor da portaria falácias a respeito do tema, que ganharam corpo e contornos de verdades ao
levou em consideração
recentes reflexões teóricas
longo do tempo e que contribuíram para a disseminação de uma educação
sobre o tema, bem como patrimonial instrutivista e opressora. Para tanto, procuramos situar o debate
documentos decorrentes de a partir de pensadores do campo do patrimônio, da memória e da educação,
encontros nacionais onde
a educação patrimonial foi que nos ajudem a refletir sobre os conflitos, jogos de poder e acepções que
objeto de debate, como a envolvem a educação patrimonial.
Carta de Nova Olinda – CE, de
2009, e o Plano Nacional de Vamos, então, às falácias!
Cultura, institucionalizado pela
Lei nº 12.343/2010. O objetivo 1ª. A metodologia da educação patrimonial é um instrumento de
da portaria, conforme descrito alfabetização cultural
em seu art. 1º, foi instituir
um conjunto de marcos É importante frisar essa como a primeira. São dois problemas em um único
referenciais para a educação
patrimonial enquanto prática enunciado. Virou uma máxima chamar a educação patrimonial de metodologia
transversal aos processos de e afirmar que ela é um instrumento de alfabetização cultural, uma herança
preservação e valorização do
herdada do Guia Básico de Educação Patrimonial (Horta; Grimberg; Monteiro,
patrimônio cultual no âmbito
do Iphan. 1999). De forma acrítica, inúmeros projetos e até mesmo textos acadêmicos
2
Aqui cabe apresentar a noção repetem o texto do Guia Básico, que traz a ideia de alfabetização cultural
de referência cultural descrita inspirada nos escritos de Paulo Freire, mas sem a necessária reflexão no âmbito
por Cecília Londres Fonseca: da educação patrimonial.
“A expressão referência
cultural tem sido utilizada Na verdade, a concepção de educação patrimonial adotada no referido
sobretudo em textos que têm
como base uma concepção Guia apresenta-se como instrutivista, isto é, a educação é considerada apenas
antropológica de cultura, e que como “transmissão de conhecimento”. Parte de um patrimônio cultural dado,
enfatizam a diversidade não
fetichizado, e não concebe o patrimônio como uma construção e apropriação
só da produção material, como
também dos sentidos e valores social, com seus consensos e conflitos. Nesse sentido, utiliza-se de conceitos
atribuídos pelos diferentes controversos, como o de alfabetização cultural, que vai de encontro ao conceito
sujeitos a bens e práticas
sociais. (Fonseca, 2001, p. antropológico de cultura. Ao afirmar que é necessário alfabetizar o outro
112-113). culturalmente, não reconhecemos o outro como produtor e protagonista de

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sua própria cultura e colocamos uma cultura (a 2ª. A educação patrimonial surgiu, no Brasil,
minha) como superior à outra (a do outro). Não nos anos 1980
se considera, desta forma, o conhecimento como
A educação patrimonial surge muito antes da
uma ação mediadora a partir de uma construção
própria existência do termo. Chagas (2013) alerta
coletiva e dialógica.
a tentativa de se estabelecer um marco zero para
Além disso, o citado Guia, ao conceber a a educação patrimonial, sendo 1983 o ano e
educação patrimonial como uma metodologia Petrópolis, no Rio de Janeiro, o local. Na verdade,
e não como um processo, esquece que essa quando faz isso, está se referindo à realização
prática educativa pode e deve ser baseada em do 1º Seminário sobre o Uso Educacional
diferentes metodologias que levem em conta as de Museus e Monumentos, promovido pelo
especificidades e peculiaridades de cada caso, Museu Imperial, a partir do qual se introduziu a
dependendo do público com quem se trabalha, expressão educação patrimonial no Brasil,
do ambiente e dos diferentes contextos. inspirada numa metodologia britânica de heritage
Essa mesma linha de reflexão é seguida pelo education. O autor esclarece que a relação
historiador Fernando Siviero (2015). Segundo entre educação e patrimônio está presente nos
o autor, há um descompasso entre o conceito museus desde longa data, vindo desde práticas
e a metodologia proposta pelo Guia Básico de museológicas do século XIX e do serviço educativo
Educação Patrimonial, que reside inclusive na do Museu Nacional, instituído formalmente em
própria concepção educacional e patrimonial que 1926, por exemplo.
carrega. A metodologia proposta preocupa-se
Silveira e Bezerra (2007) também afirmam
mais com os objetos culturais e patrimonializados
que, embora a introdução da educação
do que com os sujeitos envolvidos nos processos
patrimonial costuma ser datada nos anos 1980,
de aprendizagem. Em suas palavras, “com a
os germes dessa prática já se encontravam
‘alfabetização cultural’, pretende-se realizar uma
presentes no Brasil antes. Explicam também
ação educativa de transmissão de informações,
que o próprio Guia Básico de Educação
valores e concepções de mundo de alguns
Patrimonial [embora com uma metodologia
‘detentores de conhecimento’ para aqueles que
instrutivista de educação] reivindica inspiração
nada sabem e que devem ser conscientizados”
em Paulo Freire, cuja concepção de educação,
(Siviero, 2015, p. 97).
já em décadas anteriores, fundamentava-se no
Ao afirmar isso, não esquecemos da conceito antropológico de cultura e incluía as
importância desse material para a delimitação e manifestações culturais da população envolvida
afirmação do campo da educação patrimonial e nas práticas educativas, sejam elas eruditas
de sua contribuição para a disseminação do tema ou populares.
como uma área estratégica dentro das ações
Cabe citar, ainda, que ao longo dos anos
preservacionistas. Entretanto, como frisa Simone
1980, portanto em paralelo à disseminação
Scifoni ao se referir ao Guia,
do termo “educação patrimonial” a partir do
qualquer conhecimento deve ser entendido
seminário de Petrópolis, acontecia em várias
como historicamente datado, como produto
partes do país o projeto Interação, ao qual
de um momento e das reflexões que foram
possíveis naquele momento. As práticas de não foi dada a visibilidade e a atenção devida,
Educação Patrimonial pedem, há muito tempo, apesar do pioneirismo de suas concepções
que se avance em relação àquelas proposições. e práticas. Recentemente, com a publicação
(Scifoni, 2012, pp 31-32) Educação patrimonial: histórico, conceitos e

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processos (Florêncio et al, 2014), o Iphan retoma o processo histórico de criação
e concepção desse projeto, difundindo-o amplamente como uma referência
de atuação que alia a educação a práticas preservacionistas e à valorização da
diversidade cultural. Derivado de experiências desenvolvidas no âmbito do Centro
Nacional de Referências Culturais – CNRC3, esse projeto buscava discutir as
relações entre a educação e a cultura, comumente tratadas de forma isolada, e,
concebendo a cultura no seu sentido antropológico, dava-se ênfase aos saberes e
fazeres recriados e integrados aos conteúdos escolares. Nesse sentido, o projeto
Interação teve atuação em favelas da cidade de Salvador; em aldeias de nações
indígenas do Acre e regiões fronteiriças; nos seringais de Xapuri, também no
Acre; em áreas de colonização em Guarantã do Norte, em Mato Grosso; entre
outras experiências (Brandão, 1996).

3ª. A educação patrimonial configura uma conscientização da população


3
Em sua obra sobre a para a preservação do patrimônio cultural
trajetória histórica do Iphan,
Cecília Londres Fonseca (2005) Da mesma forma que não podemos falar em alfabetização cultural, a
traz detalhes sobre a criação educação patrimonial não pode ser assumida na perspectiva de conscientização
do CNRC. Capitaneado pelo da população, em que é necessário levar a luz do conhecimento ao outro.
designer e futuro presidente
do Iphan, Aloísio Magalhães, Silveira e Bezerra advertem que “a ideia redentora de conscientizar o Outro,
o CNRC surgiu a partir da tão propalada por educadores e técnicos do campo do patrimônio, revela
articulação de diferentes
profissionais, de distintas
uma violência simbólica (Bourdieu, 1989) ante as comunidades” (Silveira;
áreas acadêmicas. Começou Bezerra, 2007, p. 87). A linha de pensamento de Pierre Bourdieu, trazida
a funcionar em 1975, devido pelos autores, pauta-se na questão do poder a partir do “capital simbólico”
a um convênio firmado entre
diversas instituições, e, em (Bourdieu, 2005), extremamente importante para refletir sobre a trama que
1979, passou a integrar a envolve o jogo social no campo do patrimônio. No processo de seleção de
estrutura do governo federal,
patrimônios e, consequentemente, de construção de memórias e identidades
quando Aloísio Magalhães
foi nomeado diretor do coletivas, comumente esse processo seletivo, concebido como um espaço
Iphan. Diferentemente social de disputa política, econômica e simbólica, tende a reproduzir, como um
da atuação do Iphan até
então, o foco do CNRC não
discurso homogeneizante, a manutenção de uma hegemonia de determinados
eram os bens de pedra e grupos sociais dominantes, detentores de maior capital simbólico. Não é à toa
cal. Seu interesse recaía que a maioria dos patrimônios culturais tutelados pelo Estado está carregada
às manifestações culturais
vivas, inseridas nas práticas de bens representativos de nossa herança europeia e, como reforça Simone
sociais contemporâneas. Nas Scifoni (2012), composta de casas de câmara e cadeia, engenhos, igrejas
próprias palavras de Aloísio
católicas e fortalezas militares. Indo além, Emanuel Braga (2016) afirma, em
(apud Fonseca, 2005, p.
154), a “aproximação que sua análise, que os bens tombados trazem em sua narrativa de brasilidade
o CNRC deu ao conceito de um reconhecimento do périplo colonial lusitano temperado com curiosidades
bem cultural atinge uma área
que o Patrimônio não estava etnográficas e folclóricas dos elementos indígena e africano. Além do mais, nessa
cuidando. Ou seja: o bem narrativa, não se concebe que índios e negros possam ter idealizado ou mesmo
cultural móvel, as atividades arquitetado artisticamente os monumentos edificados, pois supostamente há
do povo, as atividades
artesanais, os hábitos culturais uma oposição entre a intelectualidade e a criatividade civilizatória versus o suor
da humanidade. O Patrimônio e o trabalho braçal indígena e africano nesses bens de pedra e cal.
atuava de cima para baixo,
e, de certo modo, com uma Não é possível, portanto, pensar em patrimônio ou memória coletiva sem
concepção elitista”.
pensar em alguma relação de poder. Nessa relação de poder, necessariamente

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entra a questão do capital. Mas diferentemente do outro, pois, novamente recorrendo a Silveira
de Karl Marx, Bourdieu não dá ênfase somente e Bezerra, “as perspectivas conscientizadoras
ao capital econômico e não entende que este desconsideram a visão de mundo dos envolvidos
é o principal motor da relação de poder entre com o processo de conservação patrimonial,
os agentes sociais. O poder se exerce de outras tendendo a tomá-los como pessoas que
formas. Tantas são as formas de interesse quanto necessitam da luz do conhecimento para aclarar
de poder ou, dito de outra forma, Bourdieu suas consciências obtusas” (Silveira; Bezerra, 2007,
considera que existem múltiplos valores na vida p. 87).
social e muitas outras formas de poder. Existem,
Diferentemente dessa linha de conduta, cabe
portanto, diferentes tipos de capital. O capital
apresentar o que defende atualmente o Iphan,
simbólico é o que conhecemos, detemos e
conforme disposto na publicação “Educação
atribuímos valor (em seus diversos sentidos) nos
patrimonial: histórico, conceitos e processos”:
distintos campos ou universos sociais, onde sempre
haverá disputa por esse capital. Mas também deve A perspectiva de educação que aqui se
apresenta é a que entende que educadores
se considerar que há hierarquia de valores entre os
são mediadores para a apropriação do
distintos capitais simbólicos e, geralmente, como conhecimento e para a sua construção
bem demonstra Bourdieu (2005), o capital cultural coletiva, que reconhece as comunidades como
dos grupos que detêm maior capital econômico é produtoras/detentoras de saberes locais, e que
o mais valorizado na sociedade moderna. o bens culturais estão inseridos em um contexto
de significados locais associados às memórias
No campo do patrimônio, essa discussão é
dos lugares. Essa perspectiva é diferente
fundamental para se analisar como os diferentes daquela que entende a educação como
grupos se apropriam de sua herança cultural reprodutora de informações e as comunidades
e como são regidos os jogos de disputas e as como meras consumidoras e “público-alvo”
relações de poder em torno da seleção dos das ações educativas. (Florêncio et al, 2014,
patrimônios e da construção das narrativas p. 27).
de memórias coletivas. García Canclini (1997)
4ª. A educação patrimonial destina-se aos
aponta que mesmo nos países onde o discurso
patrimônios culturais tutelados pelo Estado
oficial adota a noção antropológica de cultura,
que confere legitimidade a todas as formas de É ainda bastante recorrente, em muitos projetos
organizar e simbolizar a vida social, existe uma e ações de educação patrimonial, que eles se
hierarquia dos capitais culturais: a arte vale mais voltem exclusivamente aos bens culturais tutelados
que o artesanato, a medicina científica mais que ou consagrados pelo Estado. Na educação formal,
a popular, a cultura escrita mais que a transmitida por exemplo, é muito comum, quando se pensa
oralmente. A reformulação do patrimônio em em educação patrimonial, a prática de se levar os
termos de capital cultural tem a vantagem de não alunos ao centro histórico da cidade. Geralmente
representá-lo como um conjunto de bens estáveis esses estudantes saem do ambiente escolar sem
e neutros, com valores e sentidos fixados de uma qualquer reflexão sobre suas próprias referências
vez para sempre, mas como um processo social, culturais, sobre o local onde moram ou sobre
que, como qualquer outro capital, acumula-se, o entorno da escola. A educação patrimonial é
reestrutura-se, produz rendimentos e é apropriado pensada a partir de um patrimônio cultural já
de maneira desigual por diversos setores. eleito, fetichizado, cabendo ao aluno aceitá-lo e
Por isso a importância de não conceber a preservá-lo, mesmo que não se identifique com
educação patrimonial como a conscientização esse patrimônio nem se reconheça nele.

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Uma das premissas conceituais da educação sempre concebida como estratégia pós-
patrimonial adotadas atualmente pelo Iphan é patrimonialização para a resolução de
conceber o patrimônio cultural como um campo conflitos locais. (Florêncio et al, 2014, p. 27).

de conflito (Florêncio et al, 2014). Isso implica que Considerar a dimensão política da educação e a
as práticas educativas devem levar em conta a sua memória e o esquecimento como produtos sociais
dimensão política, considerando que a memória também implica conceber que nessa relação há
e o esquecimento são produtos sociais. Explica o um jogo de poder. Em instigante reflexão sobre
documento do Iphan que, “ao assumir funções os abusos da memória e, consequentemente,
de mediação, as instituições públicas devem, mais do esquecimento, Paul Ricoeur (2007) delineia
do que propriamente determinar valores a priori, que um desses abusos se trata da memória
criar espaços de aprendizagem e interação que manipulada, ou seja, formas concertadas de
facultem a mobilização e reflexão dos grupos manipulação ou de instrumentalização da
sociais em relação ao seu próprio patrimônio” memória e do esquecimento pelos detentores
(Florêncio et al, 2014, p. 23). de poder. Essa manipulação refrata uma suposta
Bastante comum também no âmbito da identidade coletiva coesa e homogênea e
educação formal, a educação patrimonial, muitas contribui para a manutenção de um determinado
vezes, fica a reboque do ensino de História. status quo e de processos de dominação vigentes.
Aliada às visitas aos centros históricos urbanos, Não é à toa que Walter Benjamin afirma que
ela acaba se resumindo, em diversos projetos, à nunca houve um monumento de cultura que
transmissão da historiografia oficial das cidades não representasse também um monumento
e relacionada aos bens culturais, sem considerar de barbárie (Benjamin, 1994). Os monumentos
os usos sociais do tecido urbano na atualidade e e bens patrimoniais historicamente estiveram
os significados atribuídos pelos sujeitos sociais a associados a espaços elitizados e opressores.
esses determinados bens culturais. Ao mesmo tempo que pretendem se configurar
como uma expressão de memórias coletivas e,
De forma contrária, tanto no âmbito formal
portanto, de conformação de identidades, esses
como no não formal da educação, defende-se
monumentos e bens também institucionalizam
que a educação patrimonial deve ser um processo
“esquecimentos aniquiladores” (Berger, 2014).
transversal, não presa a uma determinada
disciplina. Da mesma forma, a educação Atuar com educação patrimonial é, sobretudo,
patrimonial é entendida como um elemento fazer uma reflexão nesse sentido e não atuar de
fundamental integrado às práticas cotidianas uma forma passiva em relação a um patrimônio
dos sujeitos, concebendo-os como protagonistas fetichizado, que já vem pronto e determinado.
na construção e apropriação do seu patrimônio É necessário compreender o patrimônio de
cultural, incentivando, assim, a participação social uma forma crítica e não apenas contemplativa.
em todas as etapas de preservação dos bens e Cabe, portanto, ao educador patrimonial, criar
manifestações culturais. Novamente recorrendo à possibilidades para uma construção coletiva do
publicação do Iphan sobre o tema, este entende que é patrimônio cultural, a partir do diálogo e
da negociação, sabendo que, nesse processo,
a Educação Patrimonial como um processo
transversal, componente essencial presente necessariamente pode haver consensos, dissensos,
em todos os momentos da preservação e dilemas e conflitos. Aí está presente mais uma das
valorização do patrimônio cultural, [que] premissas conceituais adotadas pelo Iphan, em
é crucial para ultrapassar o entendimento que a educação patrimonial é adotada como um
de que ela seria uma atividade final, quase processo de mediação, inspirado no pensamento

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do psicólogo e educador Lev Vygotsky (Florêncio et É necessário compreender o
al, 2014). Nesse sentido, o Iphan entende que os patrimônio de uma forma crítica
diferentes contextos culturais em que as pessoas
e não apenas contemplativa.
vivem também são considerados como contextos
educativos importantes para a formação do sujeito Cabe, portanto, ao educador
e para seus modos de ser e estar no mundo. O patrimonial, criar possibilidades
processo de mediação é necessário, portanto, para
a apropriação do conhecimento e conformação do
para uma construção coletiva
patrimônio cultural, reconhecendo e respeitando do que é patrimônio cultural,
a existência dos saberes locais, o olhar da vivência a partir do diálogo e da
das comunidades onde esse patrimônio cultural
é construído e a participação efetiva dos sujeitos negociação, sabendo que, nesse
sociais na conformação e apropriação do seu processo, necessariamente
patrimônio cultural. Além dos patrimônios
pode haver consensos,
consagrados, que em muitos casos tendem a uma
homogeneização de identidades e memórias, é dissensos, dilemas e conlitos.
preciso considerar também a “patrimonialização
das diferenças” a que se refere Regina Abreu
(2015), levando em conta as singularidades, essa dimensão raramente é levada em conta.
especificidades e diversidades locais. Reflexos que comprovam isso são algumas
Portanto, a educação patrimonial, como pichações que encontramos em meio às cidades
observa Fábio Vergara Cerqueira (2012), deve ter e centros históricos. Simone Scifoni, em palestra
o compromisso com a diversidade cultural. Ao ter proferida no 5º Seminário do Patrimônio Cultural
esse compromisso, complementa, de estimular de Fortaleza, em 2014, relembrou as pichações
o conhecimento e a valorização das referências feitas no Monumento às Bandeiras, no Parque
culturais e identitárias das comunidades, propicia o Ibirapuera em São Paulo, durante as chamadas
sentimento de tolerância para diversidade cultural jornadas de junho de 2013, marcadas pelas
e a sensibilidade para admirar a cultura dos outros manifestações populares em todo o país em
povos, grupos e segmentos sociais. protesto ao aumento das tarifas do transporte
público. O monumento foi alvo de uma grande
5ª. É preciso conhecer para preservar pichação, onde foi escrita a palavra “assassinos”
A partir da célebre e difundida frase de Aloísio nos bandeirantes ali representados.
Magalhães: “A comunidade é a melhor guardiã Em outro caso, na cidade de João Pessoa/PB, a
do patrimônio. [...] Só se protege o que se ama, Superintendência do Iphan colocou tapumes na
só se ama o que se conhece.” (Magalhães, 1997, obra de restauração de sua sede, na Praça Barão
p. 190), propagou-se a máxima de que é preciso do Rio Branco, localizada no Centro Histórico
conhecer para preservar. É certo que isso é uma da cidade. Aos tapumes foram fixados adesivos
condição, mas conhecer, por si só, não é suficiente que contam a história da praça e do prédio,
para garantir a preservação dos bens culturais. anteriormente pertencente à Polícia Federal, onde
Como aponta Cecília Londres (2001), o conhecer seria instalada a futura sede da Superintendência.
é o primeiro passo para proteger as nossas Alguns trechos do adesivo foram pichados e
referências culturais, mas a dimensão simbólica do chama atenção uma determinada frase, com os
espaço costuma ser mais vivida do que conhecida e dizeres “Patrimônio do poder”.

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Esses exemplos reforçam que é necessário bastante comum em instituições de preservação
mais que conhecer para preservar. Certamente os e projetos que se intitulam como de educação
autores das pichações conhecem o monumento patrimonial, ou seja, a difusão, pura e simples, do
que foi pichado em São Paulo e o teor das patrimônio e das ações desenvolvidas. As famosas
referências históricas difundidas no tapume cartilhas, folhetos ou tapumes explicativos em
em João Pessoa. As bandeiras eram expedições obras que visam informar sobre o patrimônio
ao interior do país, durante o século XVII, cultural, quando produzidos como uma atividade
encabeçadas pelos bandeirantes, que tinham, final em determinados projetos, não podem ser
entre outras, a finalidade de apoderar-se das concebidos como uma prática educativa. No
terras além do litoral e angariar mão de obra máximo são ações de difusão ou até mesmo
escrava indígena, uma prática marcada por promoção dos órgãos que executam os projetos,
muita violência, assassinatos e opressão. Em João haja vista que visam, tão-somente, levar o
Pessoa, os dizeres “Patrimônio do poder” refletem conhecimento (como via de mão única) ao outro,
uma reflexão acerca dos processos seletivos em mas que não é suficiente como condição para
que se baseiam os patrimônios tutelados pelo garantir a preservação dos bens culturais.
Estado e que remetem às discussões já aqui
Para que possam ser consideradas como
travadas em torno dos abusos de memória e
educação patrimonial, essas ações devem fazer
esquecimentos denunciados por Paul Ricouer. Com
parte de um processo e o uso desses materiais
a frase, o autor da pichação questiona o fato de
de difusão deve estar atrelado a um projeto
muitos patrimônios serem reflexo da afirmação
permanente e sistemático de um trabalho
identitária de um determinado segmento política
reflexivo e crítico em relação ao patrimônio
e economicamente hegemônico da sociedade,
cultural. O campo do patrimônio, como sabemos,
contribuindo, assim, para a manutenção de um
é um campo de conflitos e de construção social
sistema de dominação vigente.
e, ao adentrar nele, não se pode ser ingênuo. Por
A máxima “É preciso conhecer para preservar” isso, a educação patrimonial, para que possa ser
também aponta para um aspecto e uma prática efetiva, implica ir além do conhecer para preservar;
é necessário que se propicie a reflexão crítica. E,
a partir dessa reflexão, buscar a transformação
O campo do patrimônio, como da realidade.

sabemos, é um campo de conlitos Considerações finais


e de construção social e, ao Discutir o que é educação patrimonial a partir
adentrar nele, não se pode ser do seu reverso, como proposto neste artigo,
apresenta-se como uma estratégia de colocar às
ingênuo. Por isso, a educação claras determinadas práticas equivocadas que se
patrimonial, para que possa ser auto intitulam como de educação patrimonial
efetiva, implica ir além do conhecer ou de projetos sem o aprofundamento teórico
necessário em sua implementação. Como diante
para preservar; é necessário que do trabalho com o patrimônio cultural exige-
se propicie a relexão crítica. E, se conceber a dimensão política e reflexiva da
educação, o primordial, na sistematização dessas
a partir dessa relexão, buscar a falácias, é aguçar a reflexão crítica do educador
transformação da realidade.

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diante da literatura em torno do tema e dos próprios O patrimônio cultural, concebido
projetos que desenvolve.
como um elemento social
Essas falácias certamente não se esgotam
aqui. Mas são apresentadas justamente para que
inserido nos espaços de vida
possam ser debatidas, rebatidas e complementadas. dos sujeitos, que dele se
E partem da concepção de que a educação apropriam, deve ser tratado,
patrimonial efetiva é dialógica, reflexiva e crítica,
que contribui para a construção democrática do nas práticas educativas,
conhecimento e para a transformação da realidade, levando em conta a sua
e não uma educação instrutivista, homogeneizadora
e bancária (na acepção freiriana), a serviço da
dimensão social, política e
manutenção de um determinado status quo e de simbólica. Isso implica dizer
sistemas de dominação vigentes. que, nas ações educativas,
O patrimônio cultural, concebido como um
o patrimônio cultural não
elemento social inserido nos espaços de vida dos
sujeitos, que dele se apropriam, deve ser tratado, pode ser tratado como pré-
nas práticas educativas, levando em conta a sua concebido, em que seu valor
dimensão social, política e simbólica. Isso implica
dizer que, nas ações educativas, o patrimônio
é dado a priori, cabendo ao
cultural não pode ser tratado como pré-concebido, indivíduo aceitar essa valoração
em que seu valor é dado a priori, cabendo ao e reconhecê-lo como parte
indivíduo aceitar essa valoração e reconhecê-lo
como parte de sua herança cultural. Além disso,
de sua herança cultural. Nas
nas práticas educativas que se pretendem dialógicas práticas educativas que
e democráticas, o patrimônio cultural concebido
se pretendem dialógicas e
como um elemento social implica reconhecer o
jogo de forças existentes no seu processo seletivo democráticas, o patrimônio
e até mesmo de sua apropriação, em que estão cultural concebido como
imbricados os conflitos e as divergências na
permanente luta entre a memória e o esquecimento.
um elemento social implica
E também, ao levar em conta que o patrimônio reconhecer o jogo de forças
cultural está inserido no espaço de vida das pessoas, existentes no seu processo
a sua construção e conformação devem considerar
as referências culturais e os diferentes saberes
seletivo e até mesmo de sua
existentes nas comunidades onde esse patrimônio apropriação, em que estão
está inserido, bem como as distintas visões dos imbricados os conlitos e as
sujeitos detentores e produtores dessas referências.
Isso requer, necessariamente, que as práticas
divergências na permanente
educativas sejam dialógicas e democráticas, partindo luta entre a memória e o
do pressuposto de que o patrimônio cultural é esquecimento.
dinâmico e histórico-socialmente determinado pelos
sujeitos que lhes atribuem sentidos e significados.

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