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Anais do 6º Encontro Celsul - Círculo de Estudos Lingüísticos do Sul

PROBLEMAS NA CARACTERIZAÇÃO DA “CLASSE” DOS ADVÉRBIOS

Márcio Renato GUIMARÃES (UFPR)

ABSTRACT: The aim of my work is to construct a better situation of the discussion about the parts of speech,
with some considerations about the nature of a (im)probable class of the adverbs.
KEYWORDS: adverbs; word classes; parts of speech.

0. Introdução. O conjunto1 de palavras a que a gramática tradicional convencionou chamar advérbios parece
ser bastante refratário a classificações e, certamente, não se submetem na mesma medida que nomes, verbos e
adjetivos (ao menos em português) a uma classificação mais ou menos bem definida. Pelo contrário, o
trabalho de Ilari et alii (1993) embora pareça sugerir que as subclasses (ou ao menos algumas delas) são mais
ou menos “naturais”, quase nada diz a respeito da classe dos advérbios como um todo, sobretudo se existe
alguma razão para que nós a consideremos uma classe de palavras ao lado dos nomes, verbos, adjetivos, etc,
ou que, antes, ela parece ser mais um amontoado heterogêneo de palavras (ou de classes menores) que
apresentam alguma vaga similaridade no que diz respeito ao comportamento sintático-semântico. A questão
seria decidir se esse amontoamento que tem sido feito pelas diversas tradições de gramática representa algum
tipo de relação entre essas classes de maneira que elas possam ser agrupadas em uma superclasse, ou se a
classe dos advérbios é antes uma espécie de asylum ignorantiarum, em que têm se colocado coisas que não
cabiam nas outras classes melhor definidas.
Nessa situação dos fatos, existe o perigo de se partir para as duas posições mais extremas possíveis.
A primeira seria a de afirmar que o parentesco entre essas subclasses é suficiente para a delimitação de uma
classe dos advérbios. Tal versão só se sustentaria através do atropelamento das enorme dificuldades que uma
tal classificação teria para se sustentar, caso a caso.
No outro extremo estaria a posição de que não existe no português (para não dizer em nenhuma
língua) um conjunto que possa ser caracterizado como “a classe dos advérbios”. Essa posição só se
sustentaria, também, através de outro atropelamento: o do fato de que existem algumas propriedades
compartilhadas por pelo menos algumas dessas classes, entre elas a possibilidade de ocuparem as posições
mais canonicamente atribuídas aos advérbios, quais sejam as de modificadores de verbos, adjetivos e de
modificadores de outros modificadores de verbos e adjetivos. Há mais propriedades: a) modificadores de
construções endocêntricas com a característica de não ser [+NOME].
A discussão da exata caracterização dos advérbios como classe é uma questão ambígua. Pode
significar a) dar à classe dos advérbios uma exata caracterização com relação a uma propriedade ou conjunto
de propriedades estruturais compartilhados por todos eles e b) dar uma exata caracterização às palavras e/ou
conjuntos de palavras que têm sido, tradicionalmente, classificadas como advérbios. Não acredito,
sinceramente, que a seja possível, ao menos em termos muito simples. E b, que acho que mais o caso, pode
implicar em, de alguma medida, implodir uma classe unificada dos advérbios em diversas subclasses que,
embora seja o caso de manterem algum parentesco do ponto de vista do comportamento sintático e (menos)
do ponto de vista nocional, não podem ser justificadamente classificadas sob uma mesma classe (mesmo
porque o parentesco entre algumas dessas “subclasses” dos advérbios é mais nítido, muitas vezes, com outras
classes, como os determinantes e os adjetivos, do que com os outros advérbios.
Na esteira do desatamento desse nó está a discussão acerca da natureza das classes de palavras, e de
quais são os critérios utilizáveis para proceder a essa classificação. Discorrerei largamente sobre isso, na
seção 2.

1. A Crítica de Ilari sobre a classificação dos advérbios.

A crítica feita por Ilari, como já ressaltei acima, diz respeito à impropriedade das definições
utilizadas, não ao uso de um ou outro critério. Nesse aspecto, é importante ressaltar que Ilari faz uso de

1 O uso de conjunto, ao invés de classe, denota que eu não estou assumindo, de partida, que essas palavras
constituam uma classe de palavras com base em elas compartilharem uma ou mais propriedades características.
Para colocar a questão em termos de conjuntística, estou fazendo referência a um conjunto extensionalmente (e não
intensionalmente) ou, talvez, ao conjunto de palavras que tem a característica “a que a gramática tem
tradicionalmente caracterizado como ‘advérbios’” sem assumir que elas formam uma classe de palavras. Por classe
de palavras entendo conjuntos de palavras definidas por propriedades centrais e características.
caracterizações tanto de caráter sintático (= distribucional), como de caráter semântico (= nocional),
sugerindo que uma análise consistente da classe dos advérbios precisaria abordar critérios dos dois tipos. Este
é também o ponto de vista defendido nessa tese.
No estudo das definições até então encontradas para advérbios, Ilari et alii (1993) dividem os
critérios em três níveis (morfológico, sintático e semântico).

(1) Critérios tradicionalmente utilizados para a delimitação da classe dos advérbios


1. Morfológico:
a) palavra invariável
a1) palavra terminada em -mente
b) modificador de não substantivos (morfossintático)
2. Sintático:
a) modificador de adjetivos, verbos e advérbios
3. Semântico:
a) palavra que indica “circunstância”
b) palavra que modifica o sentido de outra palavra
c) termo não-essencial, ou acessório

Em primeiro lugar, apesar de reconhecer que os critérios apontados por Ilari em (1) acima
reproduzem a caracterização dada pelas gramáticas tradicionais aos advérbios, acho necessário, primeiro,
elimin ar a redundância que existe entre 1b e 2a, que são idênticos (embora 1b seja mais abrangente). Em
segundo lugar, dado que se usa os termos modificar/modificador no âmbito sintático e no semântico, seria
interessante tentar definir se se tratam de duas propriedades (uma sintática, outra semântica), ou se é apenas
uma. Mais adiante a noção de modificador será melhor caracterizada.
Mais coisa poderia ter sido dita acerca dessa fantasmática noção de “circunstância”. Os autores
apontam para o fato de que essa noção tem um âmbito bastante variável, ora apontando para as circunstâncias
daquilo que é dito, ora para as circunstâncias da enunciação:

(1) Os dois estão na escola (porque eu trabalho de manhã... Então, eu os levo para a escola... e vou
trabalhar... Depois, saio na hora de buscá-los... aí depois tem natação segunda, quarta e sexta... (...)
Depois, terça e quinta a menina faz fonoaudiologia.... (1993: 68)

as duas primeiras ocorrências de depois se referem à situação descrita pelas sentenças, enquanto a
terceira se refere não às circunstâncias da ação “mas à organização do fluxo de informações”.
Embora essa observação seja importante e rica em conseqüências, não responde à questão de como
se definem essa noção de circunstância, se essa noção se aplica à todos os advérbios (ou, de uma maneira
mais desdobrada – se todas as noções significadas pelas diferentes subclasses dos advérbios podem ser
reunidas nessa “supernoção” de circunstância). Na seqüência, sobretudo no momento da exposição da sua
classificação dos advérbios, os autores deixam de fazer referência a essa noção de circunstância (embora na
página 68 eles tenham sugerido que ela pode ser aplicada, ao menos para os “dêiticos” de tempo, os quais,
aliás, foram excluídos da análise).
Os autores partem, na seqüência, para a listagem de exemplos que não cabem nas definições
tradicionais, sem abordar a propriedade de cada definição, em si. Sua argumentação mostra que algumas
ocorrências de termos que são tradicionalmente caracterizados como advérbios violam as definições dadas
para a classe em (2) e (3). Assim, há vários termos que violam a definição de advérbios como modificadores,
pois apresentam-se numa posição argumental:

(2) Aqui tem brisa marinha.


(3) Eu pensei que ela fosse ter problemas [na escola] porque ela não fala muito ela fala muito
pouco.

Não pretendo me alongar na enumeração de exemplos; remeto ao texto em discussão para outros
casos.
Os autores não propõem o abandono total das definições da gramática tradicional. Apesar de
nenhuma resposta mais definida ser dada às questões acima (na verdade, elas nem mesmo são formuladas),
alguma coisa pode ser deduzida da análise que eles propõem. Em primeiro lugar, a afirmação explícita de que
os advérbios não constituem uma classe de palavras com características morfossintáticas uniformes (1993:
80), sugere que as propriedades não devem ser levadas em termos gerais. Em segundo lugar, o recurso a
diversas noções (inclusão/exclusão, intensidade, negação, etc.) revela, no mínimo, que a propriedade de
circunstância deve ser melhor redefinida, ou, no limite, completamente abandonada. Em terceiro lugar, os
autores fazem uso de critérios de distribuição sintática e de critérios nocionais. Os critérios morfológicos de
palavra invariável e de termo terminado em –mente são, em si, pouco produtivos, aparentemente não
definindo nenhuma propriedade a ser confirmada por outros critérios, ao menos nenhuma propriedade que
seja suficiente para definir esta classe ou qualquer outra. Na verdade, talvez o critério de invariabilidade não
seja em si um critério definidor de classe de palavras, mas de âmbito sintático. Alguns intensificadores são
sempre invariáveis, mas muito e pouco são variáveis nos âmbitos em que se faz a concordância. E o critério
de palavra terminada em –mente antes de um critério é a constatação de um processo de produção de palavras
na língua.
Proponho, na seqüência, um estudo dos critérios de classificação, não apenas como meros critérios
de classificação de palavras, mas como definidores de propriedades importantes das seqüências portadoras de
significado da língua natural.
A divisão em três tipos de critério não é invenção de Ilari. Ela é absolutamente generalizada na
análise lingüística do século XX (cf. Lyons, 1979; Kim, 2001; Câmara Jr., 1973). O questionamento dos
critérios utilizados pelas gramáticas tradicionais de recorte escolar2 também não é privilégio de Ilari. Há duas
maneiras de se fazer essa crítica. Em primeiro lugar, pode-se questionar problemas de alcance das definições
feitas, como Ilari critica. Em segundo lugar, pode-se questionar o recurso a algum dos critérios. Mais
tradicionalmente, têm-se questionado, sobretudo dentro dos estruturalismos, o recurso a critérios semânticos.
Câmara Jr., ao vincular o critério semântico ao mórfico, já reflete a tendência dominante numa certa
tradição gramatical do século XX de ignorar o critérios semântico, restringindo-o à consideração de noções
específicas trazidas por desinências nominais e verbais.

2. Dos problemas da classificação de palavras

A questão do que são as classes de palavras está no cerne de toda teoria gramatical. Toda teoria
gramatical pode ser entendida como uma teoria que reconheça como diferentes os pedaços de uma sentença.
Porém, nem toda teoria gramatical provê as classes de palavras de uma caracterização exata. Isso não é um
problema só da gramática tradicional. Muito pelo contrário: a maior parte das teorias gramaticais
contemporâneas trabalha alienando a discussão sobre o que são as classes de palavras e quais são as suas
propriedades definidoras. Mesmo teorias bem aparelhadas para resolver a esta questão como as gramáticas
categoriais, trabalham assim.
Meu objetivo neste artigo é revisar as dificuldades das definições de classe de palavras nas
gramáticas tradicionais, mas sobretudo as críticas que se fazem. Tradicionalmente essas críticas identificam o
problema das definições em: a) falta de explicitude; b) incompletude; c) critérios ambíguos e/ou díspares
(algumas classes definidas com uns critérios, outras com outro); d) predomínio do critério semântico; e) falta
de universalidade e ou generalização. Da aceitação de a), b) e c) se tira que o critério (ou os critérios) ideal
deve ser o mais explícito possível; o mais completo possível (ou seja, deve dar conta das generalizações que
se propõem) e c) não-ambíguo.
A solução que entrevejo é trabalhar com os três critérios, mas com articulação. Como essa
articulação pode ser feita: a) articulando morfologia com sintaxe; b) articulando o funcional (morfossintático)

2 Uma nota sobre a Gramática Tradicional e a Tradição Gramatical. Durante um certo período da história da sua
ciência, os lingüistas investiram contra uma série de conceitos cristalizados que acompanharam um determinado
conjunto de práticas escolares de ensino de línguas alicerçado (ao menos em tese) em concepções daquilo que se
convencionou, pejorativamente, chamar de Gram ática Tradicional. Nessa empreita, muitas vezes deixaram de
fazer justiça a um período importantíssimo da aventura humana do conhecimento que é o da Tradição Gramatical
Ocidental, sobretudo a sua vertente lógico -especulativa, iniciada com os gregos, na Antigüidade Clássica, e
continuada ao longo dos séculos.
Em alguns textos2, a rejeição da postura lógico -especulativa confunde-se a si mesma investindo contra as pobres
(em mais de um sentido) definições das gramáticas escolares, como se isso bastasse para descartar de uma vez essa
tradição, já presente no início da história dos estudos sobre os fenômenos da linguagem no Ocidente, e que
continua subsistindo, apesar do esforço de seus adversários.
com o semântico. Existe m exemplos de que essa articulação se dá nas línguas naturais. Uma mesma classe de
palavras definida funcionalmente costuma corresponder a uma mesma classe semântica, não apenas do ponto
de vista nocional, mas também semântico. É assim, por exemplo, para as classes dos nomes e dos verbos, no
português (esta última é mais convenientemente definida desta forma).
Essa possibilidade de articulação só se coloca dependendo de determinadas escolhas com relação a
modelos teóricos. Numa teoria que coloque a sintaxe como “central” ou “autônoma” (seja lá o que isso queira
dizer) há que se perguntar se é possível tal articulação, e se há alguma necessidade de postulá-la. Embora eu
não vá aprofundar a questão da escolha do modelo teórico, adianto que a presente discussão faz parte de uma
pesquisa muito maior, que tem como objetivo mais distante propor uma caracterização da classe (ou das
classes) que reunam as palavras tradicionalmente caracterizadas com advérbios dentro de uma conjugação
entre teorias de gramática categorial e de semântica de modelos.
Com relação a que tipo de classificação que este trabalho que ora proponho vai chegar é uma questão
que eu faço questão de deixar em aberto. Não há espaço disponível para discutir exaustivamente isso num
texto do tamanho deste.

2.1. Sobre os problemas no uso de critérios nocionais

Creio que a primeira questão que deve ser abordada é a da validade do uso do critério semântico, ou,
mais propriamente, da necessidade desse critério. Essa validade tem sido questionada em muitas análises, que
têm preferido trabalhar sem o critério nocional (cf. Lyons, 1979)
O problema essencial dos critérios semânticos para algumas propostas reside na sua base referencial.
Consiste na afirmação de que as relações referenciais utilizadas como critério para a delimitação de classes de
palavras pelas classificações que fazem uso desse critério não são válidas, ou não são eficientes em classificar
as palavras a que se propõem classificar. Um exemplo dessa ineficiência é a que pesa sobre a afirmação de
que verbos são palavras que designam ação. Há uma série de palavras que designam ação que não são verbos,
mas substantivos. Por outro lado, há uma série de verbos que designam situações que não são ações, mas
acontecimentos, estados, entre outras coisas. Em que pese o fato de que a definição apresentada é bastante
caricatural, ela sobrevive, em versões mais sofisticadas, em algumas definições ainda hoje utilizadas na
literatura semântica. Uma definição mais contemporânea não caracterizaria os verbos como referenciais de
ações, mas como peça central de sentenças, elas sim designadoras de ação. E, se é verdade que outras palavras
designam ação, é também verdade que não são quaisquer outras palavras que designam ações, mas mais
especificamente apenas os nomes, e não os advérbios, ou os adjetivos, ou as conjunções. Além disso, já se
apontou o parentesco de sentenças como César conquistou as Gálias com sintagmas nominais do tipo a
conquista das Gálias por César, em que existe uma relação óbvia entre o verbo conquistar e o nome
conquista.
A permanência de explicações de base referencial no seio de teorias do significado talvez seja um
indício bastante forte de que é muito difícil fugir a ela. Talvez se deva avaliar o fato de que muitos dos que
fogem desse tipo de explicação, fogem também muito obviamente de qualquer tipo de gramática (ou de
qualquer tipo de explicação objetiva sobre a realidade das coisas). Rejeitaremos ir atrás de quem foge porque,
se a fuga é uma das artes mais fáceis, ir atrás de quem foge é tão fácil que chega a ser covardia.
As teorias semânticas de base lógicas continuam a construir explicações fortemente referenciais para
as classes de palavras, nos mesmos moldes em que tais explicações têm sido elaboradas ao longo dos séculos
na tradição lógico-especulativa do estudo da linguagem no Ocidente. Os modelos de interpretação das
semânticas formais são um exemplo extremo de organização no que diz respeito às qualidades referenciais da
linguagem. As classes de palavras são organizadas, nesses modelos, de acordo com o tipo específico de
“coisa” que designam (objetos, conjuntos, operações, etc.).
Não é objetivo deste trabalho discutir os fundamentos das teorias semânticas de base lógica. No
entanto, farei algumas considerações sobre a impropriedade das classificações feitas a partir de um único
critério (sintático, ou melhor, sintático-distribucional) e a necessidade de se utilizarem os critérios semânticos.
A principal tônica da argumentação utilizada nesta tese é a de que os critérios semânticos (= referenciais)
conseguem apreender características essenciais das línguas naturais, que não são apreendidas por meros
critérios distribucionais. E, além disso, que critérios mórficos e/ou funcionais -distribucionais (sintáticos) não
são suficientes para proverem classificações lexicais seguras.
Em primeiro lugar, existe uma confusão no que diz respeito às noções representadas na língua
natural. Uma coisa é a classificação de noções. A classificação em termos de eventos é uma delas. Também a
classificação em termos de propriedade é enganosa. Seria possível, por exemplo, fixar os adjetivos como
termos que indicam qualidades. No entanto, predicados inteiros no presente do indicativo indicam qualidades,
as well. Essa similaridade já foi apontada por Port Royal.
O principal argumento a favor de que existe uma correspondência entre qualidades semânticas e
sintáticas é a observação de que termos que apresentam propriedades semânticas e/ou nocionais semelhantes
(ou de uma mesma natureza) apresentam também propriedades sintáticas muito semelhantes.

2.2. O problema da universalidade

Uma seguinte dificuldade levantada pelos adversários das classificações de palavras baseadas na
tradição lógico especulativa diz respeito à questão da universalidade. Uma teoria consistente de descrição das
línguas naturais, baseada em uma teoria universalista da linguagem, tem que dar conta das classes das
palavras nas diferentes línguas. Há duas maneiras de se encarar este problema: a primeira, que quer negar o
universalismo, define que as classes de palavras de uma língua não vão coincidir nunca com as classes de uma
outra língua porque não existe nada de universal na linguagem. No fim das contas, essas teorias decidem a
priori que não existe nada de universal nas diversas línguas, bloqueando qualquer possibilidade de que se
possa encontrar qualquer similaridade entre as diferentes línguas da terra. No entanto, qualquer teoria,
inclusive as funcionalistas, vão fazer uso de certas categorias, como ergatividade, tempo, verbo, que vão
aplicar nas mais diferentes línguas.
Se o que se quer não é negar a hipótese universalista, mas trabalhar com essa hipótese em
perspectiva, que é o que se quer aqui, vai se colocar a questão de uma outra forma. Em primeiro lugar, é
importante reconhecer que as definições de classes de palavras herdadas da gramática tradicional não são
universalmente aplicável. Que numa certa medida a asserção de que as diferentes línguas naturais não
possuem exatamente as mesmas classes é verdadeira. O que não significa que não se podem achar parentescos
entre as diferentes classes gramaticais das diferentes línguas. A própria constatação de que as classes de
palavras são mais diferentes em algumas línguas do que em outras é motivo para que não se abandone a busca
por classificações mais generalizantes, ou, melhor colocando, aquilo que existe de comum entre as classes de
palavras das diversas línguas naturais.
Assim, por exemplo, entre o português e as outras línguas indo -européias da Europa é possível (seria
melhor colocar a questão do ponto de vista empírico) que haja menos diferença em termos de classes de
palavras do que com línguas de outros grupos. Tomemos o caso dos adjetivos. Em português, ao contrário do
que acontece em alemão e em inglês, um adjetivo é muito facilmente convertido em substantivo e vice-versa.
Em tupi, os adjetivos funcionam efetivamente como verbos, recebendo inclusive marcas da pessoa do sujeito.
Ikatu, em (4), pode ser traduzido por é bonita , que é um complexo formado por verbo (de ligação) mais
adjetivo, mas, funcionalmente falando, não se pode segmentar essa palavra em pedaços que correspondam ao
verbo cópula e ao adjetivo – e devemos nos perguntar seriamente se há mesmo que se postular uma tal divisão
no nível da forma lógica (seja lá o que isso quer dizer).

(4) A’e kunhã i-katu


esta mulher 3sg-boa
“esta mulher é boa”

Kim (2001: 11) apresenta alguns exemplos interessantes a esse respeito, do chinês antigo:

(5) sou bù yuan qian li le


velho não distante mil “milha li”
“My honourable Lord, you did not consider a thousand li mile too far away and have
come”
(6) nàn màn zhi yuan
bárbaros (chamados) man marcador de genitivo distante
“The distance from the Southern barbarian called man”
(7) yuan den ze
distante bandidos ladrões
“Keep away from bandits and thiefs
(8) yuan fang zhi rou
distante país marcador de genitivo homem
“Someone form a distant country”
A questão nos exemplos de Kim não é como traduzir o chinês yuan, mas a interpretação estrutural a
ser dada para ele. Em (5) e (7) eles podem ser descritos como elementos centrais dentro de uma “oração”
(verbos?), em (6) ele pode ser considerado um “nome”, em (8), um “adjetivo”. Ou, ainda, as classes de
palavras tais como as conhecemos podem não fazer muito sentido quando aplicadas ao chinês, e talvez o
máximo que possamos ter é critérios mais ou menos rigorosos para a definição de classes de palavras nas
mais diversas linguas naturais.
Um caso mais clássico na literatura é representado pelas as línguas wakashan, que são famosas por
apresentarem contra-evidências para a mais grata das distinções gramáticas do ocidente: a que existiria entre
nomes e verbos (dados do Lilloet, em Eijk e Hess, 1986: 323):

(9) sqáyxw -kan


homem-1.sg.
“eu sou um homem”
(10) nk’yáp-kan
coiote-1.sg.
“eu sou um coiote”
(11) λ’ák-kan
ir-1.sg.
“eu vou”
(12) q w \nq wánt-kan
pobre-1.sg.
“eu sou pobre”

Estruturalmente falando, os correspondentes aproximados para “homem”, “coiote” e “pobre”


comportam-se como “verbos”, em Lilloet, recebendo a mesma terminação de pessoa dos “verbos de verdade”,
como “ir” (λ’ák -). Quer dizer, as traduções literais de (9, 10 e12) não seriam as apresentadas acima, mas eu
homo, eu coioto e eu pobro (seguindo o raciocínio de Sapir, 1949).
Sob esse ponto de vista, parece-me que a discussão a ser levada em questão é a da definição de
critérios para classificação de palavras, não a definição de uma classificação de palavras. Quer dizer, não
existe um sistema de classes de palavras universalmente adaptável a toda e qualquer língua natural. As classes
de palavras das diferentes línguas não se comportam da mesma forma. O que uma teoria da gramática das
línguas naturais poderia (e deveria) se propor é um conjunto de critérios gerais de descrição que pudesse dar
conta das classes de palavras das diversas línguas naturais atendendo a um mesmo conjunto básico de
postulados.

2.3. O problema dos limites das classes de palavras

Uma outra dificuldade é o fato de que algumas palavras resistem a uma classificação mais rigorosa
por exibirem comportamento correspondente a mais de uma classe. Em português, por exemplo, pode ocorrer
de um adjetivo aparecer desempenhando a função de substantivo e vice-versa, como já foi citado acima. Mas
o mais abominável problema é o de certos grupos de palavras que apresentam tal comportamento
distribucional que dificulta muito sua classificação com relação às classes de palavras mais tradicionais.
Provavelmente, a maior parte delas têm sido tradicionalmente classificada como “advérbios”. Dentre os
numerosos exemplos, tomarei três. Em primeiro lugar, temos aquele conjunto que foi definido, por Ilari et alii
(1993) como intensificadores (muito, pouco, mais, menos, demais, bastante, tão). Eles apresentam-se em
construções típicas de advérbios como em (13-16), devendo-se notar que pouquíssimos outros advérbios
(bem, quase, meio, extremamente, e uns outros poucos a mais) modificam também advérbios. Além disso,
eles modificam raízes nominais, ao contrário da grande maioria dos outros advérbios. E, mesmo comparando-
se com outros advérbios que aparecem em tal posição (como mesmo, também, só) eles apresentam um
comportamento muito típico dos determinantes (17, 18), o que leva, por exemplo, as gramáticas tradicionais
classificarem-nos como “pronomes indefinidos”. Além disso, aparece um terceiro uso, que é denominado, por
Ilari et alii, de indefinidos absolutos (19, 20), posição em que eles têm que ser interpretados como elementos
argumentais, solapando a proposta desses autores de uma análise dos advérbios como modificadores em
construções endocêntricas:
(13) Pedro trabalha demais.
(14) Esta calça está muito rasgada.
(15) Eles ganham muito pouco por mês.
(16) Eu não sei muito exatamente o que ele quer.
(17) Mais gente apareceu hoje.
(18) Camila trouxe muitos brinquedos
(19) João disse pouco.
(20) Eles são pobres, não têm muito para dar.

O segundo caso é representado pelo assim, tratado por Valenza (2004). Como expressão (cata)fórica,
assim aparece ocupando a posição sintática da sua âncora referencial (o “antecedente”), como se vê em (21 -).
E, se a âncora referencial for um advérbio (como em 22, 23) ele pode, excepcionalmente aparecer em posição
“adverbial”:

(21) São muito acomodadas...ainda não começaram assim... aquela fase chamada de mais difícil,
de crítica. (Ilari et alii, 1993: 71)
(22) Eles não trabalham assim... muito.
(23) – e gosta de piano?
– gosta assim... para acompanhar o bailado porque ela toca dançando. (Ilari et alii, 1993: 71)

O terceiro caso é o dos chamados advérbios de inclusão/exclusão. Destes, é apenas artificialmente


que se poderia considerar que o só adjetivo (cf. 24) e o só “advérbio” não são a mesma palavra. Também ele
apresenta uma gama considerável de contextos mais ou menos díspares, difíceis de serem entendidos de
acordo com as mais diferentes análises, embora se acomode melhor na definição de modificador em
construção endocêntrica:

(24) Eu estou me sentindo muito só.


(25) Ele não pode ir aí fora porque está só de meia.
(26) Ele guia a bicicleta só com os pés, sem as mãos.
(27) Só a filha mais velha sabe onde ele guarda o dinheiro.
(28) Ela só estuda, não trabalha.

Existem duas saídas para essas dificuldades. A primeira, mais fácil, é implodir o conceito de classe
de palavras. A segunda é pacientemente estudar os casos de dificuldades em direção à construção de uma
teoria mais geral das classes de palavras. Em direção a um modelo que encare o fenômeno das classes de
palavras como mais complexo do que tem sido encarado aqui.
A questão a se colocar é o que existe de universal nas diferentes classes de palavras das diferentes
línguas naturais. Seria interessante preceder essa questão de uma outra: as classes de palavras existem3 . Ou,
colocando em outras palavras: as palavras das línguas naturais são passíveis de uma classificação?
Na base de todos os problemas das definições utilizadas nas gramáticas escolares vai se encontrar
não a afirmação de que elas não correspondem às classes de palavras que pretendem designar, mas que
designam a classe a partir de determinadas ocorrências de determinados itens lexicais pertencentes a essas
classes. Ou, ainda, que capturam mais coisas do que deveriam capturar enquanto coisas que deveriam capturar
deixam de sê-lo.
Apesar de você ter coisas diferentes que ocupam o mesmo lugar, elas não se comportam
absolutamente do mesmo jeito. Assim, em inglês, alguns substantivos podem ocupar a posição de adjetivo,
como ocorre com car em (29):

(29) the car salesman

3 E, antecipando-se a essa questão, poderia se fazer esta outra: existem as palavras? O que são? A delimitação das
palavras é assunto que ainda desafia a análise lingüística. Existem fortes evidências de que as palavras são unidades
efetivas das línguas naturais, embora nenhuma teoria lingüística tenha conseguido elaborar um conjunto de
critérios absolutamente coerente com seus pressupostos teórico -metodológicos para definir no que consiste uma
palavra.
Mas, como Kim (2001:14) observa, car não compartilha de todas as propriedades combinatórias dos
adjetivos. Em primeiro lugar, car não pode ser modificado por advérbios (como se vê em (30)), nem ser
utilizado como predicativo (como se vê em (31)):

(30) *the extremely car salesman


(31) *the salesman is car

Aparentemente, essa situação se repete com os substantivos e adjetivos em português. O famoso


exemplo da ambigüidade do velho palhaço aparentemente demonstraria, inclusive, que essa conversibilidade
é mais universal do que no português. Assim, ambos os itens lexicais admitem serem modificados por
advérbios, e ambos podem aparecer como predicativo:

(32) velho incrivelmente palhaço


(33) palhaço incrivelmente velho
mas:
(34) ?incrivelmente velho palhaço
(35) o palhaço é velho
(36) o velho é palhaço

mas existem mais ingredientes nesse caso do que a simples conversibilidade de substantivos em
adjetivos e vice-versa em português. O clássico exemplo é exatamente isso: clássico demais. Ele se prende ao
fato de que velho é um adjetivo que apresenta grande freqüência de uso à esquerda do substantivo modificado,
o que é atípico para a maior parte dos adjetivos, mas aparece como norma ou possibilidade para alguns
adjetivos específicos do português (com casos de alteração do significado, cf. mero, bom etc.). Além disso,
nem todos os substantivos têm a mesma possibilidade de conversão em adjetivos, com a compulsória
absorção de todas as possibilidades combinatórias de um adjetivo. Observe-se que outros substantivos não se
comportam como palhaço nos casos acima:
Pode-se dizer que diretor e palhaço assumem, alternadamente, o papel de adjetivo em palhaço
diretor e diretor palhaço. No entanto diretor em palhaço diretor parece se comportar mais como car em the
car salesman. Ele não aceita advérbios modificando-o ?um palhaço incrivelmente diretor. Além disso, nem
todos os adjetivos aceitam tão tranqüilamente advérbios modificando-os:

(37) incrivelmente mero professor


(38) incrivelmente bom amigo

Os casos do português estão sugerindo, na minha opinião, duas coisas. Em primeiro lugar, é possível
que tenhamos não um fenômeno generalizado de conversão entre substantivos e adjetivos, e vice-versa, mas
fenômenos lexicalmente localizados. Assim parece acontecer com os adjetivos que podem aparecer em
função de advérbio (como rápido e só). Nem todo adjetivo aparece como advérbio, ou é reinterpretado com
advérbio:

(39) ?ele trabalha bom


(40) ele trabalha satisfeito
(41) ?ele trabalha satisfatório

Em segundo lugar, talvez tenhamos, mais do que uma peculiaridade de itens isolados, evidências
para uma subclassificação dos adjetivos e dos substantivos em português com base na propriedade de ser
conversível na outra classe.
Conversões do tipo de velho e de palhaço são, talvez, mais freqüentes em português por conta das
semelhanças morfológicas que as duas classes têm em português. Nas línguas da família tupi-guarani, em que
os adjetivos se parecem mais com os verbos, provavelmente tais conversões não sejam tão comuns (embora,
alternativamente, qualquer verbo tupi pode se transformar em nome através do sufixo –a). E em inglês, por
outro lado, a inexistência de morfologia de tipo nominal nos adjetivos talvez bloqueie mais conversões do tipo
das de velho e palhaço, embora não bloqueie as do tipo car e diretor. Por outro lado, a exigüidade de flexões
morfológicas em inglês talvez explique a relativa facilidade de adjetivos e nomes aparecerem como verbos.
Em chinês, onde a eliminação da morfologia atingiu um ponto ainda mais avançado do que em inglês, essa
possibilidade é ainda mais extrema.
Finalmente, não é o caso de que itens de qualquer classe podem aparecer em qualquer função (ao
menos em português). Pelo contrário, as conversões seguem padrões bem específicos. Adjetivos podem
aparecer como advérbios; substantivos e adjetivos são mutuamente conversíveis (a questão é saber qual
sentido é mais comum); particípios/adjetivos em –nte aparecem como preposições (durante, perante); verbos
no infinitivo aparecem como substantivos (estar, andar).
A assunção de que não existem, ou não precisamos reconhecer classes de palavras nas línguas
naturais desviam o curso da análise que poderia se colocar a rastrear essas conversões, ver onde elas são
possíveis (ou mais freqüentes) e o que está por trás dessas possibilidades e freqüência. Talvez essas
conversões não denotem exatamente a inexistência de classes de palavras. Antes, o seu comportamento está
sugerindo que elas demonstram relações de parentesco entre as classes. Sugerem, também, que o modelo de
classificação tradicional de dez classes “singulares” talvez seja muito tosco para dar conta da natureza das
línguas naturais. Talvez essas relações entre as classes denotem a existência de uma hierarquia de
superclasses (assim como poderíamos entrever uma hierarquia de subclasses). A distinção categoremático
versus sincategoremático (e os critérios derivados da conexidade das gramáticas categoriais) pode ser a base
de uma classificação desse tipo.
Mas o modelo de estrutura de hierarquias não necessariamente precisa ser o modelo em árvore, de
uso tão difundido seja na classificação genética, seja na análise de estruturas de sentenças. Em certa medida,
esse modelo de classificação pode compartilhar propriedades com o modelo de classificação chomskyano,
que utiliza os traços [+NOME] e [+VERBO]. Mas o modelo de Chomsky, além de ser igualmente tosco, não
possibilita a possibilidade de uma hierarquia.

RESUMO: O objetivo do presente trabalho é resituar a discussão acerca dos critérios de delimitação das
classes de palavras, com especial atenção em uma caracterização de uma (im)provável classe dos advérbios.

PALAVRAS-CHAVE: chave; chave; chave; chave; chave.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CÂMARA JÚNIOR, Joaquim Mattoso. Estrutura da língua portuguesa . 7.ed. Petrópolis: Vozes, 1976.
EIJK, J. P. van; HESS, T. Nouns and verbs in Salish. Lingua 69 : 319-331, 1986.
ILA RI, R. et alii Considerações sobre a posição dos advérbios. In: CASTILHO, A. F. (org.) Gramática do
Português falado I: a ordem. Campinas: FAPESP/Editora da Unicamp, 1993. p. 63-141.
KIM, J i-yung. The parts of speech. Ms. 2001.
LYONS, John. Introdução à lingüística teórica. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979.
SAPIR, Edward. Language. New York: Harper, 1949.
VALENZA, Giovanna Mazaro. Problemas na caracterização da classe dos advérbios: o caso do assim.
Comunicação apresentada no VI Seminário do CELSUL.

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