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AS CRÍTICAS DE KRIPKE AOS DESCRITIVISMOS DE NOMES PRÓPRIOS

Matheus Stipp Correia

RESUMO:
Pretendo, no presente texto, construir uma explanação acerca das críticas erigidas pelo
filósofo da linguagem Saul Kripke às Teorias Descritivistas dos Nomes Próprios em O Nomear e
a Necessidade. Os Descritivismos (também assim chamados) são uma classe de tentativa de
resposta ao Problema da Referência e ao Problema do Significado dos Nomes Próprios. Tal
resposta se dá, em linhas gerais, através da defesa da tese de que nomes próprios são descrições
abreviadas ou disfarçadas. Kripke ataca os descritivismos valendo-se de uma tríade de contra-
argumentos: (i) o Argumento Modal; (ii) o Argumento Epistêmico e (iii) o Argumento Semântico.
Serão, portanto, os objetivos desse texto: uma introdução ao Problema da Referência e ao
Problema do Significado dos Nomes Próprios; uma caracterização das teses Descritivistas e, por
fim, uma apresentação dos contra-argumentos kripkeanos.

1. Teorias Descritivistas do significado e da referência dos Nomes Próprios e o criticismo


kripkeano.

Parece-me que o interesse, em filosofia da linguagem, pelos nomes próprios é tão claro
(podendo ser remontado com destaque aos precursores da área – Gottlob Frege, Bertrand
Russell, entre outros) porque neles, na nomeação propriamente, pode-se ver um tipo de exemplar
paradigmático da relação entre a linguagem e mundo. Nós temos a habilidade, através da
utilização de nomes da linguagem natural, de selecionar ou referir objetos particulares. O
Problema da Referência dos Nomes Próprios aparece como uma dúvida acerca da natureza dessa
relação – podendo ser analisada em termos de duas questões mais localizadas que o compõe: (i)
o problema descritivo da referência dos nomes próprios, a pergunta acerca de a que tipo de
objeto um nome próprio refere, e (ii) o problema fundacional da referência dos nomes próprios,
a pergunta acerca dos mecanismos linguístico que possibilitam a um usuário a competência na
utilização de um nome como um referencial. Uma teoria que pretende responder a essas questões
denomina-se Teoria da Referência dos Nomes Próprios.
Outra classe de questões relacionada a interpretação ou análise dos nomes próprios diz
respeito, grosso modo, àquilo que comunicamos através desse tipo de expressão (bem como o
seu papel semântico em sentenças). O Problema do Significado dos Nomes Próprios é a questão

1
acerca dos conteúdos semânticos desse tipo de expressão linguística, que pode ser analisada, de
maneira análoga ao primeiro problema, em outras duas questões menores: (iii) o problema
descritivo do significado dos nomes próprios, a pergunta geral acerca de qual significado um
determinado nome próprio possui; e (iv) o problema fundacional do significado dos nomes
próprio, referente a que fatos determinam a ocorrência de tal significado em determinado nome
próprio. Uma teoria que pretende responder a essas questões denomina-se Teoria do Significado
dos Nomes Próprios.1
Acerca de ambos, a Teoria descritivista dos Nomes Próprios desponta como uma
tentativa de resposta largamente aceita. Melhor dizendo, os descritivismos de nomes próprios são
melhor compreendidos como uma família de teorias, sendo defendidos de maneiras dispares
desde as suas primeiras aparições na filosofia da linguagem. Gottlob Frege (1892) e Bertrand
Russell (1912; 1905; 1972) são geralmente apontados como principais precursores desse tipo de
interpretação da nomeação, sendo a eles atribuída uma versão conhecida atualmente como
descritivismo clássico – para uma discussão crítica dessa atribuição, ver (COSTA, 2009). A tese
descritivista clássica é a de que para cada nome próprio há uma descrição definida, tal que (i) o
referente da descrição é necessariamente o referente do nome próprio; (ii) a descrição associada
provê o significado do nome próprio e (iii) um usuário competente de um nome deve ter a
capacidade de saber que a descrição é satisfeita por algo se, e somente se, esse algo é o referente
do nome próprio. Frege constantemente se vale de descrições definidas para explicar o sentido de
nomes, e Russell explicitamente afirma que os significados dos nomes próprios são equivalentes
aos significados de descrições associadas a esses nomes pelos falantes – também ambos
defendendo a tese da referência indireta: o significado dos nomes próprios possui um papel na
determinação do seu referente (relacionando-se, assim, o Problema do Significado e o Problema
da Referência).
Já foi apontado que os descritivismos podem ser defendidos tanto tendo em vista apenas
o problema da referência quanto conjuntamente em relação ao problema do significado. A defesa
do primeiro tipo2 tem a vantagem de ser mais ‘barata’ conceitualmente, ao passo que possui
menos poder explicativo que a defesa do segundo tipo. Intuitivamente, parece estranha a
tentativa de relacionar de maneira tão direta tipos de expressões linguísticas que parecem
funcionar de maneiras distintas: nomes próprios não parecem, intuitivamente falando, referir a
partir da especificação de certas condições ao referente, o que parece ser o caso das descrições
definidas. Quais são as motivações que levaram, portanto, a adoção dessa ideia por boa parte dos
filósofos da linguagem? A defesa do descritivismo como teoria do significado e da referência, se
1
Para essas distinções, tanto acerca das teorias da referência como das teorias do significado, me valho de Salles,
Sagid (2020). Filosofia da Linguagem. In Rodrigo Reis Lastra Cid & Luiz Helvécio Marques Segundo (eds.),
Problemas Filosóficos. Editora UFPel. pp. 453-489.
2
Paul Ziff é um exemplo de defensor de um descritivismo do primeiro tipo ao negar que nomes possuem
significado (e que até fazem parte da linguagem), e mesmo assim aceitando que a sua referência e determinada
via descrições definidas. Ver HAACK, 2002, p. 93-94).

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correta, possui a capacidade de lançar luz sobre algumas questões clássicas envolvidas na
interpretação da nomeação, como: (i) o Enigma de Frege (apresentado por Frege em Sobre o
Sentido e a Referência (1892)) – um tipo problema que aparece, grosso modo, quando
consideramos o valor de verdade e a informatividade expressas por sentenças envolvendo nomes
próprios, na substituição, tanto em contextos de crença, quanto em contextos de afirmação de
identidade, de um nome correferencial por outro, o que parece resultar na alteração daqueles
valores (conclusão que não deveria se seguir, caso o conteúdo semântico de um nome próprio
fosse equivalente a sua referência); 3 e (ii) a questão acerca das sentenças existenciais envolvendo
nomes próprios, que parecem ser melhor compreendidas através do recurso as descrições como
explicação do conteúdo semântico desse tipo de termo, (iii) o Problema dos Nomes Vazios, a
determinação do significado de nomes sem referente. etc.
Alguns filósofos encaram a versão clássica do descritivismo como problemática em certo
sentido, mesmo tomando partido da sua visão geral da nomeação. Uma questão claramente
preocupante para uma teoria do tipo que Frege e Russell propunham é a de como determinar qual
a descrição que corresponde a determinado nome próprio:
Se um nome próprio é uma descrição abreviada ou disfarçada, nós podemos perguntar
quê descrição definida ele abrevia ou disfarça. Em alguns casos, há indiscutivelmente
uma descrição definida em particular que naturalmente pensada como um nome próprio
não abreviado ou indisfarçado. Alguém poderia sustentar, por exemplo, ‘0’ abrevia ou
disfarça ‘o menor número natural’ (em ver de, digamos, ‘o número pelo qual você não
pode dividir nada’ ou ‘o elemento de identidade para adição’; que ‘ø’ abrevia ou
disfarça ‘o conjunto vazio’ (em vez de ‘o conjunto que é subconjunto de todo conjunto’)
e assim por diante. Mas frequentemente, porém, parece arbitrário destacar uma
descrição definida específica e como aquela que um nome próprio abrevia ou disfarça.
Qual descrição definida é abreviada ou disfarçada pelo nome próprio da pessoa que está
lendo estas palavras? (HUGHES, p. 3, 2004, tradução nossa)

Uma solução possível frente a esse problema é o abandono da tese clássica de que cada
nome próprio deve abreviar ou disfarça uma descrição, propondo que a eles deve corresponder
um agregado ou uma família de descrições. Em um Descritivismo de Agregados, portando, o
referente de um nome próprio é determinado pelo cumprimento da maioria das descrições
definidas associadas.
Grosso modo, a tese descritivista (clássica e de agregados) pode ser apresentada como se
segue: Para cada nome próprio N, existe uma descrição (ou um agregado) D tal que: (i)
qualquer usuário competente de N deve associá-lo, em virtude da sua competência linguística,
com o D, e (ii) se N tem um referente r, há exatamente um D, e r é D.
Porém, essas vantagens teóricas acima apresentadas parecem ser solapadas, afirma
Kripke, através das objeções apresentadas por ele em N&N: os contra-argumentos modais,
epistêmicos e semânticos ao descritivismo.

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Acerca do Enigma de Frege, veja LIMA (2016).

3
Primeiramente, o argumento modal de Kripke. Suponhamos (como um descritivista) que
um nome próprio como ‘Aristóteles’ seja uma abreviatura ou um disfarce da descrição definida
‘o professor de Alexandre, o Grande, nascido em Estagira’. Disso se segue que, se Aristóteles
existe, logo é uma verdade necessária que ele é o professor de Alexandre, o Grande, nascido em
Estagira. Mas isso é simplesmente um absurdo. Aristóteles poderia perfeitamente ter escolhido
outra profissão e nunca ter sido professor. O argumento modal de Kripke pode ser apresentado
como uma distinção entre nomes próprios e descrições em contextos modais (contextos que
envolvem necessidade e possibilidade): nomes próprios, Kripke afirma, são designadores
rígidos, “A noção intuitiva de designador rígido é a seguinte: Um termo t é um designador rígido
se, e somente se, designa o mesmo indivíduo em todos os mundos possíveis onde ele existe, e
designa nada mais em qualquer outro mundo possível.” (SALLES, p. 48, 2020); por outro lado,
descrições, ao menos as do tipo que um usuário, para um descritivista, associaria a um nome
próprio, não são designadores rígidos, por referirem apenas os objetos, em outros mundos
possíveis, que cumprem a suas especificações. Ao passo que um nome próprio como ‘Aristóteles’
designa o mesmo objeto em todo mundo possível, e nada além dele, uma descrição definida do
tipo ‘o professor de Alexandre, o Grande, nascido em Estagira’ refere qualquer indivíduo que a
cumpra. Assim, há uma diferença inconciliável entre nomes próprios e descrições definidas do
tipo que um descritivista se valeria em contextos modalizados. Disso se segue que a afirmação
por parte do descritivista de que há uma relação de necessidade entre o referente do nome
próprio e o referente da descrição definida que ela abrevia ou disfarça é falsa. Nisso consiste,
grosso modo, o Argumento Modal.
O argumente epistêmico é estruturalmente análogo ao modal. Suponhamos como um
descritivista, por exemplo, que a descrição que fornece análise para o nome ‘Gödel’ seja ‘o
homem que descobriu a incompletude da aritmética’. Então, se alguém é Gödel, ele (unicamente)
descobriu a incompletude da aritmética e se alguém (unicamente) descobriu a incompletude da
aritmética, foi Gödel, serão verdades que qualquer usuário competente do nome ‘Gödel’ está em
condições de saber a priori. Mas embora sejamos usuários competentes do nome ‘Gödel’, não
estamos em condições de conhecer essas verdades de uma forma a priori; poderíamos
perfeitamente descobrir que a descoberta da incompletude da aritmética foi atribuída
erroneamente a Gödel e se deve a um homem diferente, Schmidt. ‘O homem que descobriu a
incompletude da aritmética’ não pode, portanto, ser a descrição definitiva que fornece análise
para ‘Gödel’. O argumento epistêmico mostra que somos capazes de referir através de nomes
próprios mesmo sem associar a eles uma descrição definida que selecione o indivíduo que é o
referente do nome próprio. (Por exemplo, alguém pode associar ao nome ‘Einstein’ a uma
descrição definida do tipo ‘o físico que desenvolveu a teoria da relatividade de Einstein’, o que
de longe não é suficiente para selecionar Einstein de maneira nenhuma, visto que a descrição
equivale a ‘o físico que desenvolveu a teoria que ele mesmo desenvolveu’. O argumento
epistêmico de Kripke mostra que um usuário de um nome próprio pode referir mesmo possuindo

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apenas uma descrição trivial (a do exemplo de Einstein, por exemplo) do referente, ou mesmo
uma descrição falsa (como no exemplo de Gödel).
Por fim, o argumento semântico. Suponha, como um descritivista, que ‘Peano’ – o nome
de um famoso matemático – signifique (ou que seja analítico a) ‘o matemático que descobriu tais
e tais postulados (postulados esses que são erroneamente atribuídos a Peano). Então o nome
‘Peano’ se refere a Dedekind, o verdadeiro descobridor dos postulados de Peano – e isso parece
absurdo. O argumento semântico baseia-se na afirmação de que certas verdades sobre a
referência não são contingentes, ou, pelo menos, não são contingentes da forma como seriam se
o descritivismo fosse verdadeiro. Por exemplo, o fato de ‘Peano’ se referir a esta pessoa em
particular não depende de ela ter descoberto um certo conjunto de postulados, embora fosse
assim se ‘Peano’ significasse ‘a pessoa que descobriu tais e tais postulados’. Esse argumento
implica que as descrições fornecidas pelos descritivistas como sendo aquilo que fornece o
significado a um nome próprio não são suficientes para determinar o referente desse nome.
A partir desses argumentos, Kripke afirma que o descritivismo falha como teoria da
referência (já que ela não fornece condições nem necessárias nem suficientes para a
determinação nem referência, nem do significado dos nomes próprios), pregando o seu abandono
e a busca por outra. Por fim, Kripke não pretende, Em O Nomear e a Necessidade, refutar uma
teoria ou autor específico, mas sim uma certa ‘ortodoxia’ presente na filosofia analítica até a
década de setenta no que tange à semântica dos nomes próprios: os descritivismos clássicos de
Frege e Russell e seus desdobramento futuro (como as teorias dos agregados). Cito:

Não terei sido muito injusto com a teoria descritivista? Formulei-a aqui com muita
precisão — talvez com mais precisão do que qualquer um dos seus defensores. Por isso
é depois fácil refutá-la. Se eu tentasse formular a minha teoria com precisão suficiente,
sob a forma de seis ou sete ou oito teses, talvez ao examiná-las uma a uma elas se
revelassem todas também falsas. Isso até pode ser verdade, mas a diferença é a seguinte.
Julgo que os exemplos que dei mostram, não apenas que há algum erro técnico aqui ou
algum engano ali, mas que a concepção de conjunto que esta teoria nos dá sobre como
se determina a referência parece estar errada desde as suas bases. Parece errado julgar
que damos a nós próprios algumas propriedades que de algum modo seleccionam um e
um só objecto e que determinamos a nossa referência dessa maneira. Estou a tentar
apresentar uma concepção melhor — uma concepção que, se fosse suplementada com
mais pormenores, poderia ser apurada de modo a fornecer condições mais exactas para
que haja referência. (KRIPKE, 2012, p. 154)

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Referências

COSTA, Cláudio F. Teorias Descritivistas dos Nomes Próprios. Dissertatio (2009), v. 30, p. 185-
195.

FREGE, Gottlob (1892). Sobre o Sentido e a referência. In: Lógica e Filosofia da Linguagem.
Tradução de Paulo Alcoforado. São Paulo: Cultrix, 1978.

HAACK, Susan. Filosofia das Lógicas. Tradução: Cezar Augusto Mortari & Luiz Henrique de
Araújo. São Paulo: Unesp, 2002.

HUGHES, Christopher. Kripke: Names, Necessity, and Identity. Oxford: Clerendon Press, 2004

KRIPKE, Saul. O Nomear e a Necessidade. Lisboa: Gradiva, 2012.

LIMA, Juliana F. O Enígma de Frege. Fundamento (2016), n. 12.

SALLES, Sagid. Filosofia da Linguagem. In Rodrigo Reis Lastra Cid & Luiz Helvécio Marques
Segundo (eds.), Problemas Filosóficos. Pelotas: Editora UFPel, 2020. pp. 453-489.

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